Artigo Teorias Linguisticas Borges Neto

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e-ISSN: 1981-4755

DOI: 10.5935/1981-4755.20180013

Teorias Linguísticas Contemporâneas: Superação e


Rupturas

Contemporary linguistic theories: overcoming and ruptures

José Borges Neto*


*Universidade Federal do Paraná, UFPR, Curitiba – PR, 80.060-000, Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, Cascavel – PR, 85.819-110,
e-mail: borgesnetojose@gmail.com

RESUMO: As teorias linguísticas contemporâneas rompem com a tradição


gramatical, que remonta às gramáticas greco-latinas, em diversos pontos. Não
conseguem, no entanto, superá-la. Minha argumentação procura mostrar que essa
situação é resultado de um processo de naturalização da teoria gramatical
tradicional que, como um filtro, distorce a visão que o linguista tem dos fatos
gramaticais. Na medida em que o linguista tem sempre a teoria tradicional como
guia para suas análises e suas classificações, e assume como se fossem da língua
objetos teóricos tradicionais, noções desnecessárias para suas teorias acabam sendo
tratadas. Vou exemplificar esse processo de naturalização – e os problemas que
causa nas teorias linguísticas contemporâneas – com algumas noções ligadas à
morfologia da língua portuguesa, particularmente noções ligadas às classes de
palavras e à distinção entre os processos morfológicos de flexão e derivação.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da Linguística; gramática tradicional;
naturalização

ABSTRACT: Contemporary linguistic theories break with the grammatical


tradition, which goes back to the Graeco-Latin grammars, at several points. They
cannot, however, overcome it. My argument seeks to show that this situation is the
result of a process of naturalization of traditional grammatical theory that, like a
filter, distorts the linguist's view of grammatical facts. To the extent that the linguist
always has the traditional theory as a guide for his analyzes and assumes as if
traditional theoretical objects are objects of the language, unnecessary notions for
his theories end up being treated. I will illustrate this process of naturalization - and
the problems it causes in contemporary linguistic theories - with some notions
related to the morphology of the Portuguese language, particularly notions related
to the classes of words and to the distinction between the morphological processes
of inflection and derivation.
KEYWORDS: Philosophy of Linguistics; traditional grammar; naturalization

O título deste texto levanta um conjunto de questões: o que é uma teoria linguística?
O que é que as teorias linguísticas contemporâneas superam? Com o que elas rompem?

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Vou começar discutindo a noção de teoria.


O termo teoria vem de uma palavra grega que queria dizer algo como
contemplação, reflexão. Para a fala cotidiana, não técnica, teoria significa uma conjectura,
uma suposição, uma explicação, de qualquer natureza, sobre algum aspecto da realidade.
Nesse sentido do senso comum, por exemplo, podemos admitir como teoria a afirmação
de que os relâmpagos são dardos arremessados por Zeus ou que nossas vidas são
determinadas pela posição dos planetas no momento de nosso nascimento, na medida em
que são “explicações” para fenômenos meteorológicos ou características de nossas
personalidades.
Uma teoria científica é, certamente, outra coisa. Apesar de não sabermos
exatamente o que torna científica uma teoria – o problema da demarcação entre ciência e
conhecimento não-científico continua aberto – sabemos, em linhas gerais, que as teorias
científicas supõem, necessariamente, dois conjuntos de coisas: um conjunto de fatos
observáveis e um conjunto de hipóteses verificáveis, explicativas, sobre os fatos
observáveis. Ainda, para termos uma teoria, é preciso que os fatos observáveis sejam
obtidos a partir de uma observação sistemática e metódica e que as hipóteses sejam
adequadas a eles, ou seja, expliquem adequadamente os fatos. A diferença entre as teorias
científicas e as teorias “populares”, então, poderia estar na exigência de que as primeiras
deveriam ser sistematicamente contrastadas com as evidências empíricas, testadas e, na
existência de indícios de que não se conformam aos fatos, abandonadas (ou, pelo menos,
reformuladas). As teorias científicas devem ser, em consequência, testáveis e os cientistas
que as propõem devem estar prontos para abrir mão delas diante de fatos que as refutem.
As teorias “populares”, por outro lado, costumam ser não-testáveis, imunes às evidências
contrárias e muitas vezes incompatíveis com o conhecimento científico obtido em outras
áreas cujas teorias estão solidamente justificadas. A astrologia, por exemplo, ignora o fato
de que o corpo do médico obstetra que auxilia um parto exerce influência maior,
gravitacional, eletromagnética etc., no corpo do nascituro do que Júpiter ou qualquer
estrela.
Um dos problemas que impedem uma rigorosa distinção entre ciência e não-ciência
está na natureza dos fatos observáveis. Imaginar que os fatos são neutros, objetivos,
isentos de ideologia, é ignorar a história da ciência. Milhares de pessoas viram uma maçã
cair da árvore antes de Isaac Newton, mas ele, ao observar a queda da maçã (segundo a
lenda), viu (criou? imaginou?) um fenômeno particular que denominou gravidade e
definiu como uma força que atrai coisas para o centro da terra. A partir daí construiu uma

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teoria – científica – que assume que os corpos têm massa e que atraem outros corpos na
proporção direta de suas massas e do inverso do quadrado de suas distâncias. Em suma,
o fato que é assumido pela teoria gravitacional de Newton não é a queda da maçã, mas a
força que puxa a maçã para o chão. Creio que não estarei distante da verdade se disser
que a gravidade não foi diretamente observada por Newton, mas é uma noção criada por
ele para explicar quedas em geral. Os fatos supostos por uma teoria científica não são
eventos particulares e concretos, mas sim noções, ideológicas e datadas, que surgem de
explicações, conjecturas ou suposições iniciais relacionadas aos eventos concretos. Tanto
é assim que a gravidade – uma força, para Newton – é entendida como uma curvatura do
tempo-espaço por Einstein.
Ao mesmo tempo em que a teoria científica explica fatos do mundo, os fatos são
selecionados e caracterizados a partir uma perspectiva já em parte teórica. É quase o
dilema do ovo e da galinha. Os fatos “brutos” não dizem como querem ser entendidos e
é a interpretação que o cientista dá a eles que os torna fatos para uma teoria.
Creio que já posso introduzir uma nova distinção. O conjunto dos fatos observáveis,
construídos ideologicamente, interpretados, constitui o objeto observacional de uma
teoria. Na medida em que é submetido a uma explicação sistemática por meio de hipótese
falseáveis torna-se um objeto teórico.
Creio que já posso passar às teorias linguísticas.
As línguas humanas, no fundo, são conjuntos de eventos particulares e concretos –
enunciados, digamos. Esses eventos servem para a comunicação interpessoal, para a
expressão de sentimentos, para agir sobre as outras pessoas e várias outras coisas.
Um observador poderia ver nesses eventos, potencialmente, unidades sonoras,
porções significativas, expressão de juízos, perguntas, ordens etc. E poderia buscar
organizá-los num sistema. O primeiro passo seria criar objetos teóricos abstratos como
fones, sílabas, palavras, proposições etc. e, em seguida, estabelecer hipóteses sobre seu
funcionamento. Sobre fones e sílabas, o observador poderia estabelecer hipóteses e obter
teorias fonológicas; sobre as palavras, poderia estabelecer teorias morfológicas ou
lexicais; sobre as proposições, poderia estabelecer teorias sintáticas.
Cada teoria fonológica, por sua vez, transforma o objeto observacional em um
objeto teórico particular. Ou seja, um mesmo objeto observacional pode ser submetido a
n teorias distintas e em cada uma delas é um novo objeto teórico.
Se lançarmos um olhar para a história dos estudos linguísticos, veremos que o
primeiro objeto observacional foi estabelecido pelos filósofos e gramáticos da

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antiguidade greco-latina. Esses filósofos e gramáticos olhavam para os enunciados e


viam, entre outras coisas, (i) elementos não-significativos que lhes davam suporte
material (sons elementares, sílabas, elementos prosódicos); (ii) elementos significativos
(palavras); (iii) relações entre os elementos significativos (flexões, derivações,
concordâncias, regências); (iv) articulações entre os elementos significativos para obter
expressões significativas não-elementares (orações ou proposições); (v) “papéis” que
cada unidade exercia nas orações (sujeito, atributo, complemento etc.).
Esses mesmos filósofos e gramáticos da antiguidade acabaram por permitir o
estabelecimento de uma teoria, que transformou o objeto observacional num objeto
teórico. Há um conjunto de noções básicas (sílabas, palavras, orações – que equivaleriam
às noções de massa, força etc. da teoria newtoniana); um sistema de hipóteses – como,
por exemplo, a que estabelece que entre sujeito e predicado há uma relação de
concordância – que equivaleria à “lei” que diz que os corpos com massa se atraem – e
assim por diante.
Essa primeira teoria das línguas, que vou chamar aqui de gramática tradicional.,
vai ser construída aos poucos por vários séculos e vai estar pronta, quase como a
conhecemos hoje, por volta do final do século IV.
Posso voltar agora à questão do título do texto e tratar da ruptura e da superação das
teorias linguísticas contemporâneas.
Uma primeira ruptura que se podia esperar é com relação à gramática tradicional.
As teorias linguísticas, em geral, assumem um discurso de ruptura com os estudos
gramaticais, tanto com relação aos velhos objetivos pedagógicos que determinavam a
função desses estudos, como com relação à teoria de fundo que os suportava.
Numa visão bem geral, podemos dizer que o pensamento linguístico tradicional
entendia os estudos linguísticos como propostas de descrição de alguma forma
privilegiada de língua (a variedade linguística considerada correta, nobre, sempre com
base no uso da língua feito pelos “bons escritores”): Homero, para os gregos; Horácio e
Cícero, para os romanos e assim por diante. Essa descrição atendia a propósitos
normativos, uma vez que buscava registrar a língua que deveria ser usada por quem
procurasse falar ou escrever corretamente a língua.
Simultaneamente, essa forma privilegiada de língua era descrita com o auxílio da
teoria da gramática tradicional.
O primeiro momento de ruptura com o pensamento linguístico tradicional vai se dar
por volta do ano 1000, com o surgimento do pensamento especulativo. Para os

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especulativos, a descrição do latim apresentada nos trabalhos gramaticais de Donato


(século IV) e Prisciano (século V), embora rigorosamente correta em termos descritivos,
falhava na justificativa das regras gramaticais. Para corrigir essa falha, empenharam-se
na construção de uma teoria capaz de dar as razões lógicas para que as formas linguísticas
fossem do jeito como foram descritas.
Os trabalhos dos especulativos não tinham caráter normativo nem eram produzidos
com fins pedagógicos – rompiam, assim, com os objetivos da gramática antecedente. A
teoria que informava os trabalhos descritivos, no entanto, era assumida no geral. Num
movimento interessante, o objeto teórico construído na gramática tradicional foi
entendido pelos especulativos como se fosse o objeto observacional: assumia-se a
descrição como correta, objetiva, fiel à realidade, como fatos, em consequência. Ignorava-
se a possibilidade de que tais “fatos” resultassem de uma visada ideológica e que a
realidade da língua pudesse ter outra constituição. Sobre esse objeto teórico entendido
como objeto observacional, os especulativos construíram sua própria teoria.
É importante destacar que as gramáticas de Donato e de Prisciano continuaram a
ser usadas nas escolas medievais, para o ensino do latim, mesmo durante o período de
prestígio das gramáticas especulativas, o que facilitou o entendimento de que a teoria
tradicional espelhasse a realidade das línguas.
No século XVI, com o Renascimento, essa teoria dos especulativos é abandonada
e os estudos gramaticais retomam a teoria das gramáticas tradicionais – agora para a
explicação das línguas vernáculas, entre as quais o português.
Essa situação vai perdurar até o século XIX (com um ou outro momento de
dissenso, que vou ignorar aqui). Nesse século, com o surgimento do modelo histórico-
comparativo, a atenção dos estudiosos vai se voltar para a história das línguas, para o
estabelecimento de relações de parentesco entre as línguas, para a busca de leis para a
mudança linguística.
Pode-se dizer que o objeto observacional dos trabalhos histórico-comparativos não
é o mesmo que a gramática tradicional supõe, já que sua questão central é a mudança
linguística e a tipologia. Ocorre, no entanto, que a teoria da gramática tradicional, tal
como acontecera com os especulativos, é integralmente assumida pelos comparativistas.
É como se os aspectos históricos fossem apenas acrescentados, como adendo, na teoria
da linguística histórico-comparativa. É interessante notar, também, que o ensino das
línguas continuou sendo feito a partir das velhas gramáticas normativas, que assumiam a
teoria da gramática tradicional.

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Houve tentativas de incorporar o conhecimento histórico nas gramáticas escolares


da época. A dificuldade da tarefa e uma suposta inutilidade desse conhecimento histórico
para os fins normativos e pedagógicos das gramáticas escolares levou a um
desmembramento dos estudos em duas vertentes: gramáticas históricas ou filológicas, de
um lado, como estudos científicos, e, de outro lado, gramáticas normativas, tradicionais,
para serem usadas nas escolas.
Ou seja, novamente chegamos a uma situação de existência paralela entre o estudo
das línguas pela teoria tradicional – sempre tendo em vista uma forma privilegiada de
língua – e uma teoria das línguas, nova, científica, baseada na história.
Vamos passar à contemporaneidade. O que vemos hoje é um quadro muito
semelhante: de um lado temos as gramáticas escolares (Celso Cunha, Bechara, Cegalla,
Pasquale etc.) destinadas ao ensino da língua “correta” e assumindo a teoria da gramática
tradicional, e de outro lado os estudos linguísticos, teóricos, científicos, não normativos.
Esse breve percurso histórico nos revela duas coisas: primeiro, que a proposta
gramatical surgida no pensamento greco-latino parece imbatível, já que a sua teoria das
línguas permanece quase intacta por mais de dois mil anos; segundo, que as teorias
alternativas sobre a linguagem percorrem caminhos paralelos à gramática tradicional.
Não sei se é possível dizer que as propostas teóricas contemporâneas superam a tradição,
embora talvez se possa dizer que rompem com elas, ao menos parcialmente. E digo
parcialmente porque nem o rompimento está claro para mim.
Vou dar dois exemplos do que estou dizendo.
Começo pelo capítulo 4 do volume II da Gramática do Português Culto Falado no
Brasil, obra gigantesca, coordenada por Ataliba Teixeira de Castilho e produzida por uma
grande equipe, constituída por alguns dos melhores linguistas em atividade no Brasil. Este
capítulo – denominado O Adjetivo – foi escrito por Esmeralda Negrão, Ana Müller, Geisa
Nunes-Pemberton e Maria José Foltran, linguistas de competência acima de qualquer
suspeita. As autoras iniciam o capítulo com uma afirmação e uma pergunta:

Para estabelecer que um item lexical pertence a uma determinada classe


gramatical, é necessário reconhecer que tal item possua as propriedades
que caracterizam essa classe. Nesse sentido, caracterizar um conjunto
de propriedades é condição prévia para definir e delimitar uma
determinada classe gramatical.
Quais são as propriedades que caracterizam os adjetivos?
(NEGRÃO et al. 2008, p. 371 – o grifo é acrescentado)

É notável que a pergunta que encerra o trecho citado contradiga absolutamente a


afirmação do parágrafo anterior. A afirmação diz que antes de incluir um item lexical
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(uma palavra, digamos) em alguma classe é preciso ter estabelecido as propriedades que
caracterizam a classe: só assim, pela identificação da presença das propriedades da classe
no item lexical, é que podemos determinar o pertencimento ou não do item na classe. A
pergunta, por sua vez, parece supor a existência da classe dos adjetivos e o conhecimento
de sua extensão. Ou seja, as autoras parecem ser capazes de identificar “adjetivos” e a
partir da investigação das propriedades que eles apresentam chegar às propriedades da
classe. A classe dos adjetivos já está previamente delimitada. Antes mesmo da
identificação de suas propriedades.
Ao invés de procurar propriedades nas palavras – nas palavras, individualmente, e
não nas classes já estabelecidas (certamente por algum critério) – o que de fato se busca
é a recuperação dos critérios que alguém, no passado, já usou para definir a classe que é
tomada como ponto de partida. Em outras palavras, parte-se da classe tal como definida
pela gramática tradicional.
Isso fica ainda mais claro quando olhamos o que as autoras dizem na sequência:

Neste capítulo, partiremos da análise do comportamento gramatical de


itens lexicais intuitivamente classificados como adjetivos, enumerando
as propriedades que exibem e que determinam a classificação proposta.
(NEGRÃO et al. 2008, p. 371 – o grifo é acrescentado)

As autoras escondem que a sua busca é dos critérios que levaram outros a proporem
os limites da classe atrás do apelo a uma intuição (o que quer que isso possa ser) de classe.
Talvez analfabetos possam ter “intuições” sobre a língua, linguistas apenas relembram e
retomam análises com que tiveram contato. A classe dos adjetivos analisada, em busca
de propriedades comuns (necessárias e suficientes, imagino), é a velha classe dos nomes
adjetivos, apontada por Dionísio Trácio (séc. I a.C.)1, presente nas gramáticas medievais
e já discutida longamente por Santo Anselmo de Cantuária, no século XI, em seu texto O
Gramático 2.
Este exemplo mostra que mesmo linguistas altamente competentes, especialistas
em teorias linguísticas de alta complexidade como a gramática gerativa e a semântica
formal, são incapazes de se desvencilhar da teoria de nossas gramáticas tradicionais. O
trabalho com palavras (o termo item lexical é enganador, já que fica a meio termo entre
palavra e morfema) e suas classificações seria uma demonstração disso.
O segundo exemplo envolve a distinção entre flexão e derivação.

1
Ver Chapanski 2003.
2
Ver Anselmo de Cantuária 1973.
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No pensamento grego – aristotélico – os nomes denotavam substâncias (por


exemplo, o nome cavalo). Podíamos identificar nas substâncias propriedades acidentais,
isto é, propriedades que se ajuntavam à substância sem que ela passasse a ser outra. Por
exemplo, malhado, em cavalo malhado: um cavalo malhado ainda é um cavalo. Daí a
distinção tradicional entre nomes substantivos, que designam as substâncias, e nomes
adjetivos, que designam os acidentes.
Nos estudos tradicionais das partes do discurso, distinguiam-se dois tipos de
palavras: as palavras variáveis e as palavras invariáveis. As primeiras, eram palavras que
podiam apresentar informações semânticas acidentais adicionadas à ideia central a que
correspondiam. Por exemplo, o nome cavalo correspondia a uma substância, e a mesma
palavra podia apresentar uma forma alternativa – cavalos – em que a substância era
acrescida do acidente plural. As duas formas da palavra – cavalo e cavalos – denotam a
mesma substância e se distinguem pelo acidente número.
Desta forma, uma mesma palavra, a depender dos acidentes adicionados à ideia
central (à substância, no caso dos nomes), podia se apresentar sob várias formas, ou seja,
podia ser variável. Os nomes, os verbos, os artigos, os adjetivos, os particípios e os
pronomes eram classes de palavras variáveis. As variações de uma mesma palavra eram
chamadas de flexão e constituíam o paradigma associado a ela.
Por outro lado, algumas palavras sempre se apresentavam sob uma mesma forma –
nunca variavam – e o paradigma associado a elas era constituído por uma única forma,
invariável. Essas palavras não possuíam flexão. Advérbios, preposições e conjunções
eram palavras invariáveis.
Esse modo de fazer morfologia foi denominado por Charles Hockett, em 1954, de
modelo “palavra-e-paradigma”.
O estruturalismo americano, no século XX, substituiu o modelo “palavra-e-
paradigma” pelo modelo “item-e-arranjo”. Neste novo modelo morfológico, as palavras
deixaram de ser a unidade de análise. A unidade de análise passou a ser o morfema e as
palavras deixaram de ser atômicas e passaram a ser entendidas como arranjos particulares
de morfemas.
Creio que podemos dizer que a abordagem estruturalista alterou significativamente
o modo de funcionamento da morfologia, ou seja, rompeu com o modelo anterior.
Nesse novo modelo, no entanto, não é mais possível dizer que há palavras variáveis
e invariáveis. Tudo que podemos dizer é que há palavras monomorfêmicas, constituídas
por um único morfema, e palavras plurimorfêmicas, constituídas por mais de um

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morfema. Não temos mais como falar de flexão, já que essa noção supunha a variação de
uma mesma palavra (e dependia crucialmente da noção de palavra variável).
Também não podemos mais distinguir flexão de derivação. Para os gramáticos
tradicionais a flexão era a variação de uma palavra, enquanto a derivação era a construção
de uma nova palavra a partir de uma palavra anterior (chamada primitiva).
Como a palavra passa a ser um arranjo de morfemas e como os morfemas que
constituem a palavra “meninos” (menin+o+s) não são os mesmos que constituem
“meninas” (menin+a+s) ou que constituem “meninices” (menin+ice+s), estamos diante
de palavras distintas, cada uma delas constituída por um conjunto próprio de morfemas.
Mas qual é o procedimento dos gramáticos? Eles estipulam, sem qualquer base
teórica relevante, que alguns morfemas são flexionais e outros são derivacionais.
Estipulam, também, que os morfemas flexionais não mudam a palavra (a palavra continua
a mesma), enquanto a presença, numa palavra, de um morfema derivacional, indica que
estamos diante de uma palavra derivada de outra.
Parece claro que o que se pretende é chegar exatamente aos mesmos resultados a
que a gramática tradicional chegava com o modelo “palavra-e-paradigma”. É como se
tudo que constava na teoria tradicional – e da mesma forma como constava – precisasse
ser mantido sem alteração.
O modelo morfológico estruturalista, “item-e-arranjo”, certamente rompe com o
modelo tradicional, mas não o supera, na medida em que dá um jeito de garantir que os
resultados da análise não se alterem. Mesmo o rompimento é apenas parcial: as noções
básicas e os procedimentos teóricos são efetivamente alterados, mas de forma que se
chegue exatamente no mesmo lugar. Qualquer discrepância significativa deverá ser
evitada.
Tenho chamado de naturalização esse processo de tornar os resultados da
perspectiva teórica tradicional na base empírica dos novos tratamentos propostos pelos
gramáticos e pelos linguistas. Naturalizar uma teoria seria tomar o objeto teórico que ela
constrói como objeto observacional sobre o qual vai se construir uma nova teoria3.
É isso que se vê claramente no levantamento feito por Carlos Alexandre Gonçalves
em seu livro Iniciação aos Estudos Morfológicos: flexão e derivação em português
(Gonçalves 2011). O trabalho de Gonçalves consiste numa apresentação cuidadosa de
todas as propostas já feitas para a distinção entre flexão e derivação e numa avaliação de
sua adequação para o tratamento da distinção na língua portuguesa.

3
Ver BORGES NETO 2012a e 2012b.
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Já na introdução de seu livro, Gonçalves diz:

Em linhas gerais, a flexão tem sido definida como processo morfológico


regular, aplicável em larga escala e sem qualquer possibilidade de
mudança na categorização lexical das bases. Radicalmente diferente, a
derivação tem sido descrita como processo idiossincrático,
caracterizado pelo potencial de mudar classes e por grandes restrições
de aplicabilidade. Ao longo do livro, mostramos que essas diferenças
são relativas, uma vez que à flexão também podem estar associadas
arbitrariedades formais e restrições de aplicabilidade, entre outras
características tradicionalmente atribuídas à derivação.
(Gonçalves 2011, p. 6)

Note-se que já nas primeiras palavras fica patente que Gonçalves considera que
flexão é um processo morfológico que pertence à língua e que, como tal, deve ser
definido. É como se ele dissesse: “nas línguas, existe flexão; e é necessário que a
definamos em nossa teoria morfológica”. Na sequência, ele vai dizer que o critério da
regularidade é inadequado porque “à flexão também podem estar associadas
arbitrariedades formais”. Ou seja, Gonçalves sabe, de antemão, o que é flexão e o que é
derivação e, a partir de seu conhecimento prévio, o critério da regularidade não obtém
adequação empírica, isto é, não permite uma descrição adequada dos fenômenos. Parece
claro que para Gonçalves (e para a quase totalidade dos gramáticos e dos linguistas) flexão
e derivação são entendidas como características empíricas do objeto e não noções
teóricas, ligadas a uma ou outra teoria da linguagem.
Se – como penso que acontece – o conhecimento que Gonçalves tem dos processos
de flexão e derivação é resultado de um processo de naturalização da teoria tradicional,
qualquer resultado a que ele chegue, por qualquer critério que venha a adotar, que não
seja igual ao resultado a que a teoria tradicional chegava não será empiricamente
adequado. E isso pode ser visto pela reação que Gonçalves apresenta diante de outro
critério: o critério da relevância sintática.
Em linhas gerais, esse critério – proposto inicialmente por Stephen Anderson
(1982) – diz que a flexão é requerida pela sintaxe, o que não acontece com a derivação.
Por este critério, o número é uma categoria flexional, já que a informação sobre o
número dos nomes deve ser acessível para a sintaxe no processo de concordância
(nominal e verbal). Por outro lado, o grau não é uma categoria flexional (seria, por
definição, derivacional), já que não encontramos nenhuma razão sintática para sua
manifestação nas expressões.

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É interessante notar, desde já, que não se trata mais de distinguir flexão de derivação
– a distinção já foi feita e está clara – trata-se, tanto para Anderson quanto para Gonçalves,
de achar o critério que subjaz à distinção. Em outras palavras, não se trata de dizer que
será flexão o que for relevante para a sintaxe, mas de dizer que o que é flexão pode
apresentar a propriedade de ser relevante para a sintaxe.
Por mais interessante que o critério da relevância sintática possa parecer aos olhos
dos linguistas, na medida em que estabelece um critério claro e objetivo para a distinção
– um critério que envolve vários fatores de “módulos” gramaticais distintos, como a
morfologia e a sintaxe – certamente não é capaz de recobrir exatamente a distinção
prevista pela teoria da gramática tradicional.
Se eu uso o critério de usar óculos ou não para dividir as pessoas presentes em um
auditório, eu obtenho dois conjuntos de pessoas; se eu troco o critério – digamos, por
homens e mulheres – eu obtenho também dois conjuntos, mas só por extrema
coincidência os conjuntos serão os mesmos que obtinha antes. É ingenuidade achar que a
troca do critério pode nos permitir chegar ao mesmo resultado.
Na medida em que a distinção tradicional entre flexão e derivação foi naturalizada
e que é entendida, portanto, como inerente aos fenômenos e não a uma teorização
específica, o critério da relevância sintática – e qualquer outro critério que não o original
– não seria adequado para reestabelecer a distinção efetuada pela gramática tradicional,
exceto por coincidência improvável. Ou seja, o critério da relevância sintática certamente
não é adequado para reproduzir uma distinção estabelecida cerca de seis séculos antes de
que a sintaxe fosse um assunto da preocupação dos gramáticos.
O próprio Gonçalves (e Anderson) nos dão argumentos para reforçar a proposta de
que estamos diante de um caso claro de naturalização da teoria tradicional4. Em sua recusa
do critério da relevância sintática, Gonçalves diz:

Apesar de dar conta de muitas categorias tradicionalmente


caracterizadas como flexionais, o critério ora em exame não se mostra
inteiramente adequado, em virtude de nem todos os aspectos da
morfologia flexional serem diretamente relevantes para a sintaxe. Por
exemplo, classes de conjugação e de declinação, embora consideradas
flexionais pelo próprio Anderson (1985), independem da atuação de
fatores sintáticos. De fato, nenhuma regra sintática é acionada para
estabelecer que um verbo como “tingir” pertence à terceira conjugação;

4
Minha intenção, obviamente, não é criticar Carlos Alexandre Gonçalves. Se ele tem culpa, é de ter escrito
um livro (Gonçalves 2011) tão claro e minucioso sobre a distinção flexão/derivação que facilitou em muito
meu trabalho. Gonçalves é apenas um linguista típico, que, como a imensa maioria dos linguistas, assume
a teoria da gramática tradicional naturalizada como seu objeto de análise.
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na verdade não há contexto sintático que determine a conjugação (1ª, 2ª


ou 3ª) de um verbo da língua portuguesa.
Vogais temáticas, embora relevantes morfologicamente, são invisíveis
para a sintaxe e, por isso, não aparecem, de acordo com Anderson
(1982:598), num contexto sintático apropriado. Nenhum morfólogo
ousaria afirmar que vogais temáticas – legítimos representantes de uma
morfologia mais “pura” (ou by itself, nos termos de Aronoff, 1994), sem
interação com a sintaxe ou com a fonologia – não constituem unidades
da flexão.
(Gonçalves 2011, p. 15-16)

A primeira crítica de Gonçalves ao critério da relevância sintática consiste em


reconhecer que embora dê conta de muitos fenômenos tratados como flexão ou derivação
pela gramática tradicional, não dá conta de todos. Em outras palavras, o critério estabelece
novos conceitos de flexão e de derivação. Ao invés de acreditar no critério – supor que a
relevância sintática tem consequências teóricas importantes – Gonçalves (e Anderson,
pelo menos) preferem abandonar o critério porque ele não permite chegar aos mesmos
resultados a que a gramática tradicional chegava. A afirmação de que classes de
conjugação e vogais temáticas são flexionais, além de estar acima de qualquer critério
que se possa propor, ainda é o critério de avaliação de novas propostas de distinção.
Mais de dois mil e quinhentos anos depois da proposição original da distinção,
considera-se que ela corresponde fielmente aos fenômenos.
Se for assim, a questão da flexão e da derivação está resolvida: a flexão corresponde
às variações de uma mesma palavra e a derivação é uma relação entre palavras distintas.
Voltamos ao velho modelo morfológico palavra-e-paradigma e zeramos toda a
morfologia que se fez no século XX.
A questão toda se concentra na necessidade de mantermos noções teóricas,
distinções e classificações criadas no quadro teórico da gramática tradicional. Em outras
palavras, a pergunta inicial deveria ser: precisamos distinguir flexão de derivação?
Parece claro que estamos diante de distintos processos morfológicos e que valeria
a pena distingui-los. Ocorre, no entanto, que o comportamento desses processos
morfológicos não parece permitir que os separemos em apenas duas classes, como faz a
gramática tradicional. Por exemplo, número e gênero são tratados como flexão, mas seu
comportamento não é exatamente o mesmo: a marcação de número está presente na quase
totalidade dos substantivos e dos adjetivos, enquanto a marcação de gênero, embora
presente em quase todos os adjetivos, se manifesta apenas em pequena parte dos
substantivos (apenas cerca de 5% dos substantivos apresenta formas para ambos os
gêneros, como menino/menina). A grande maioria dos substantivos se comporta como

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DOI: 10.5935/1981-4755.20180013

mesa ou telhado, que não possuem contraparte do outro gênero. Só levando em conta o
gênero, então, já deveríamos buscar um tratamento desses processos que se afastasse do
tratamento tradicional, que os considera “de mesmo tipo”.
Se pensarmos ainda que a noção de flexão se liga a uma perspectiva que a entende
como variação de uma mesma palavra, teríamos que discutir melhor o que se entende
por uma mesma palavra. Pensemos no caso de menino/menina. Trata-se de uma mesma
palavra por razões semânticas, por nomearem uma mesma substância, ou por razões
formais, por partilharem um mesmo radical?
Parece fácil argumentar que menino/meninos referem uma mesma “coisa”, só
diferindo no número, mas não parece fácil argumentar que menino e menina se refiram a
uma mesma “coisa” (pelo menos, não nesses tempos em que vivemos). E se o critério for
a denotação, por que não considerar flexão a oposição entre mesa/mesinha, já que o objeto
denotado parece ser o mesmo, com mudança apenas do tamanho? E antes que alguém
diga que porta e portão não são a mesma coisa, lembro que o aumentativo de porta é
portona, e não portão. E o estudo da história da língua pode nos mostrar os porquês dessas
variações de forma.
Se a noção de uma mesma palavra se basear em características formais, a situação
não melhora: o que fazer com os casos de meninice e meninada?
Enfim. Estamos diante de múltiplos processos morfológicos, cada um com suas
características próprias. A descrição cuidadosa de cada um deles, sem levar em conta o
que a gramática tradicional dizia, talvez possa nos levar a um melhor entendimento sobre
a morfologia da língua portuguesa.
A naturalização da teoria gramatical greco-latina, processo que transforma um
objeto teórico em objeto observacional, que considera a teoria das gramáticas tradicionais
como se fosse a própria língua (que supõe que teoria tradicional é fiel aos fatos, é
transparente, é objetiva, não é ideológica), é responsável por boa parte da confusão em
que se debate a linguística contemporânea.
Porque ainda trabalhamos tendo a teoria da gramática tradicional como guia, nós,
linguistas, não conseguimos propor novos olhares sobre as estruturas linguísticas e a
língua que vemos está destorcida pelo filtro da gramática tradicional.
Teorias linguísticas contemporâneas: superação e rupturas: apesar de ver rupturas
parciais – e tímidas – não consigo ver superação da tradição gramatical.

REFERÊNCIAS.
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Número 43
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DOI: 10.5935/1981-4755.20180013

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Data de recebimento: 04/09/2018


Data de aprovação: 04/09/2018

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Número 43
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