Artigo Teorias Linguisticas Borges Neto
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DOI: 10.5935/1981-4755.20180013
O título deste texto levanta um conjunto de questões: o que é uma teoria linguística?
O que é que as teorias linguísticas contemporâneas superam? Com o que elas rompem?
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teoria – científica – que assume que os corpos têm massa e que atraem outros corpos na
proporção direta de suas massas e do inverso do quadrado de suas distâncias. Em suma,
o fato que é assumido pela teoria gravitacional de Newton não é a queda da maçã, mas a
força que puxa a maçã para o chão. Creio que não estarei distante da verdade se disser
que a gravidade não foi diretamente observada por Newton, mas é uma noção criada por
ele para explicar quedas em geral. Os fatos supostos por uma teoria científica não são
eventos particulares e concretos, mas sim noções, ideológicas e datadas, que surgem de
explicações, conjecturas ou suposições iniciais relacionadas aos eventos concretos. Tanto
é assim que a gravidade – uma força, para Newton – é entendida como uma curvatura do
tempo-espaço por Einstein.
Ao mesmo tempo em que a teoria científica explica fatos do mundo, os fatos são
selecionados e caracterizados a partir uma perspectiva já em parte teórica. É quase o
dilema do ovo e da galinha. Os fatos “brutos” não dizem como querem ser entendidos e
é a interpretação que o cientista dá a eles que os torna fatos para uma teoria.
Creio que já posso introduzir uma nova distinção. O conjunto dos fatos observáveis,
construídos ideologicamente, interpretados, constitui o objeto observacional de uma
teoria. Na medida em que é submetido a uma explicação sistemática por meio de hipótese
falseáveis torna-se um objeto teórico.
Creio que já posso passar às teorias linguísticas.
As línguas humanas, no fundo, são conjuntos de eventos particulares e concretos –
enunciados, digamos. Esses eventos servem para a comunicação interpessoal, para a
expressão de sentimentos, para agir sobre as outras pessoas e várias outras coisas.
Um observador poderia ver nesses eventos, potencialmente, unidades sonoras,
porções significativas, expressão de juízos, perguntas, ordens etc. E poderia buscar
organizá-los num sistema. O primeiro passo seria criar objetos teóricos abstratos como
fones, sílabas, palavras, proposições etc. e, em seguida, estabelecer hipóteses sobre seu
funcionamento. Sobre fones e sílabas, o observador poderia estabelecer hipóteses e obter
teorias fonológicas; sobre as palavras, poderia estabelecer teorias morfológicas ou
lexicais; sobre as proposições, poderia estabelecer teorias sintáticas.
Cada teoria fonológica, por sua vez, transforma o objeto observacional em um
objeto teórico particular. Ou seja, um mesmo objeto observacional pode ser submetido a
n teorias distintas e em cada uma delas é um novo objeto teórico.
Se lançarmos um olhar para a história dos estudos linguísticos, veremos que o
primeiro objeto observacional foi estabelecido pelos filósofos e gramáticos da
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(uma palavra, digamos) em alguma classe é preciso ter estabelecido as propriedades que
caracterizam a classe: só assim, pela identificação da presença das propriedades da classe
no item lexical, é que podemos determinar o pertencimento ou não do item na classe. A
pergunta, por sua vez, parece supor a existência da classe dos adjetivos e o conhecimento
de sua extensão. Ou seja, as autoras parecem ser capazes de identificar “adjetivos” e a
partir da investigação das propriedades que eles apresentam chegar às propriedades da
classe. A classe dos adjetivos já está previamente delimitada. Antes mesmo da
identificação de suas propriedades.
Ao invés de procurar propriedades nas palavras – nas palavras, individualmente, e
não nas classes já estabelecidas (certamente por algum critério) – o que de fato se busca
é a recuperação dos critérios que alguém, no passado, já usou para definir a classe que é
tomada como ponto de partida. Em outras palavras, parte-se da classe tal como definida
pela gramática tradicional.
Isso fica ainda mais claro quando olhamos o que as autoras dizem na sequência:
As autoras escondem que a sua busca é dos critérios que levaram outros a proporem
os limites da classe atrás do apelo a uma intuição (o que quer que isso possa ser) de classe.
Talvez analfabetos possam ter “intuições” sobre a língua, linguistas apenas relembram e
retomam análises com que tiveram contato. A classe dos adjetivos analisada, em busca
de propriedades comuns (necessárias e suficientes, imagino), é a velha classe dos nomes
adjetivos, apontada por Dionísio Trácio (séc. I a.C.)1, presente nas gramáticas medievais
e já discutida longamente por Santo Anselmo de Cantuária, no século XI, em seu texto O
Gramático 2.
Este exemplo mostra que mesmo linguistas altamente competentes, especialistas
em teorias linguísticas de alta complexidade como a gramática gerativa e a semântica
formal, são incapazes de se desvencilhar da teoria de nossas gramáticas tradicionais. O
trabalho com palavras (o termo item lexical é enganador, já que fica a meio termo entre
palavra e morfema) e suas classificações seria uma demonstração disso.
O segundo exemplo envolve a distinção entre flexão e derivação.
1
Ver Chapanski 2003.
2
Ver Anselmo de Cantuária 1973.
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morfema. Não temos mais como falar de flexão, já que essa noção supunha a variação de
uma mesma palavra (e dependia crucialmente da noção de palavra variável).
Também não podemos mais distinguir flexão de derivação. Para os gramáticos
tradicionais a flexão era a variação de uma palavra, enquanto a derivação era a construção
de uma nova palavra a partir de uma palavra anterior (chamada primitiva).
Como a palavra passa a ser um arranjo de morfemas e como os morfemas que
constituem a palavra “meninos” (menin+o+s) não são os mesmos que constituem
“meninas” (menin+a+s) ou que constituem “meninices” (menin+ice+s), estamos diante
de palavras distintas, cada uma delas constituída por um conjunto próprio de morfemas.
Mas qual é o procedimento dos gramáticos? Eles estipulam, sem qualquer base
teórica relevante, que alguns morfemas são flexionais e outros são derivacionais.
Estipulam, também, que os morfemas flexionais não mudam a palavra (a palavra continua
a mesma), enquanto a presença, numa palavra, de um morfema derivacional, indica que
estamos diante de uma palavra derivada de outra.
Parece claro que o que se pretende é chegar exatamente aos mesmos resultados a
que a gramática tradicional chegava com o modelo “palavra-e-paradigma”. É como se
tudo que constava na teoria tradicional – e da mesma forma como constava – precisasse
ser mantido sem alteração.
O modelo morfológico estruturalista, “item-e-arranjo”, certamente rompe com o
modelo tradicional, mas não o supera, na medida em que dá um jeito de garantir que os
resultados da análise não se alterem. Mesmo o rompimento é apenas parcial: as noções
básicas e os procedimentos teóricos são efetivamente alterados, mas de forma que se
chegue exatamente no mesmo lugar. Qualquer discrepância significativa deverá ser
evitada.
Tenho chamado de naturalização esse processo de tornar os resultados da
perspectiva teórica tradicional na base empírica dos novos tratamentos propostos pelos
gramáticos e pelos linguistas. Naturalizar uma teoria seria tomar o objeto teórico que ela
constrói como objeto observacional sobre o qual vai se construir uma nova teoria3.
É isso que se vê claramente no levantamento feito por Carlos Alexandre Gonçalves
em seu livro Iniciação aos Estudos Morfológicos: flexão e derivação em português
(Gonçalves 2011). O trabalho de Gonçalves consiste numa apresentação cuidadosa de
todas as propostas já feitas para a distinção entre flexão e derivação e numa avaliação de
sua adequação para o tratamento da distinção na língua portuguesa.
3
Ver BORGES NETO 2012a e 2012b.
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Note-se que já nas primeiras palavras fica patente que Gonçalves considera que
flexão é um processo morfológico que pertence à língua e que, como tal, deve ser
definido. É como se ele dissesse: “nas línguas, existe flexão; e é necessário que a
definamos em nossa teoria morfológica”. Na sequência, ele vai dizer que o critério da
regularidade é inadequado porque “à flexão também podem estar associadas
arbitrariedades formais”. Ou seja, Gonçalves sabe, de antemão, o que é flexão e o que é
derivação e, a partir de seu conhecimento prévio, o critério da regularidade não obtém
adequação empírica, isto é, não permite uma descrição adequada dos fenômenos. Parece
claro que para Gonçalves (e para a quase totalidade dos gramáticos e dos linguistas) flexão
e derivação são entendidas como características empíricas do objeto e não noções
teóricas, ligadas a uma ou outra teoria da linguagem.
Se – como penso que acontece – o conhecimento que Gonçalves tem dos processos
de flexão e derivação é resultado de um processo de naturalização da teoria tradicional,
qualquer resultado a que ele chegue, por qualquer critério que venha a adotar, que não
seja igual ao resultado a que a teoria tradicional chegava não será empiricamente
adequado. E isso pode ser visto pela reação que Gonçalves apresenta diante de outro
critério: o critério da relevância sintática.
Em linhas gerais, esse critério – proposto inicialmente por Stephen Anderson
(1982) – diz que a flexão é requerida pela sintaxe, o que não acontece com a derivação.
Por este critério, o número é uma categoria flexional, já que a informação sobre o
número dos nomes deve ser acessível para a sintaxe no processo de concordância
(nominal e verbal). Por outro lado, o grau não é uma categoria flexional (seria, por
definição, derivacional), já que não encontramos nenhuma razão sintática para sua
manifestação nas expressões.
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É interessante notar, desde já, que não se trata mais de distinguir flexão de derivação
– a distinção já foi feita e está clara – trata-se, tanto para Anderson quanto para Gonçalves,
de achar o critério que subjaz à distinção. Em outras palavras, não se trata de dizer que
será flexão o que for relevante para a sintaxe, mas de dizer que o que é flexão pode
apresentar a propriedade de ser relevante para a sintaxe.
Por mais interessante que o critério da relevância sintática possa parecer aos olhos
dos linguistas, na medida em que estabelece um critério claro e objetivo para a distinção
– um critério que envolve vários fatores de “módulos” gramaticais distintos, como a
morfologia e a sintaxe – certamente não é capaz de recobrir exatamente a distinção
prevista pela teoria da gramática tradicional.
Se eu uso o critério de usar óculos ou não para dividir as pessoas presentes em um
auditório, eu obtenho dois conjuntos de pessoas; se eu troco o critério – digamos, por
homens e mulheres – eu obtenho também dois conjuntos, mas só por extrema
coincidência os conjuntos serão os mesmos que obtinha antes. É ingenuidade achar que a
troca do critério pode nos permitir chegar ao mesmo resultado.
Na medida em que a distinção tradicional entre flexão e derivação foi naturalizada
e que é entendida, portanto, como inerente aos fenômenos e não a uma teorização
específica, o critério da relevância sintática – e qualquer outro critério que não o original
– não seria adequado para reestabelecer a distinção efetuada pela gramática tradicional,
exceto por coincidência improvável. Ou seja, o critério da relevância sintática certamente
não é adequado para reproduzir uma distinção estabelecida cerca de seis séculos antes de
que a sintaxe fosse um assunto da preocupação dos gramáticos.
O próprio Gonçalves (e Anderson) nos dão argumentos para reforçar a proposta de
que estamos diante de um caso claro de naturalização da teoria tradicional4. Em sua recusa
do critério da relevância sintática, Gonçalves diz:
4
Minha intenção, obviamente, não é criticar Carlos Alexandre Gonçalves. Se ele tem culpa, é de ter escrito
um livro (Gonçalves 2011) tão claro e minucioso sobre a distinção flexão/derivação que facilitou em muito
meu trabalho. Gonçalves é apenas um linguista típico, que, como a imensa maioria dos linguistas, assume
a teoria da gramática tradicional naturalizada como seu objeto de análise.
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mesa ou telhado, que não possuem contraparte do outro gênero. Só levando em conta o
gênero, então, já deveríamos buscar um tratamento desses processos que se afastasse do
tratamento tradicional, que os considera “de mesmo tipo”.
Se pensarmos ainda que a noção de flexão se liga a uma perspectiva que a entende
como variação de uma mesma palavra, teríamos que discutir melhor o que se entende
por uma mesma palavra. Pensemos no caso de menino/menina. Trata-se de uma mesma
palavra por razões semânticas, por nomearem uma mesma substância, ou por razões
formais, por partilharem um mesmo radical?
Parece fácil argumentar que menino/meninos referem uma mesma “coisa”, só
diferindo no número, mas não parece fácil argumentar que menino e menina se refiram a
uma mesma “coisa” (pelo menos, não nesses tempos em que vivemos). E se o critério for
a denotação, por que não considerar flexão a oposição entre mesa/mesinha, já que o objeto
denotado parece ser o mesmo, com mudança apenas do tamanho? E antes que alguém
diga que porta e portão não são a mesma coisa, lembro que o aumentativo de porta é
portona, e não portão. E o estudo da história da língua pode nos mostrar os porquês dessas
variações de forma.
Se a noção de uma mesma palavra se basear em características formais, a situação
não melhora: o que fazer com os casos de meninice e meninada?
Enfim. Estamos diante de múltiplos processos morfológicos, cada um com suas
características próprias. A descrição cuidadosa de cada um deles, sem levar em conta o
que a gramática tradicional dizia, talvez possa nos levar a um melhor entendimento sobre
a morfologia da língua portuguesa.
A naturalização da teoria gramatical greco-latina, processo que transforma um
objeto teórico em objeto observacional, que considera a teoria das gramáticas tradicionais
como se fosse a própria língua (que supõe que teoria tradicional é fiel aos fatos, é
transparente, é objetiva, não é ideológica), é responsável por boa parte da confusão em
que se debate a linguística contemporânea.
Porque ainda trabalhamos tendo a teoria da gramática tradicional como guia, nós,
linguistas, não conseguimos propor novos olhares sobre as estruturas linguísticas e a
língua que vemos está destorcida pelo filtro da gramática tradicional.
Teorias linguísticas contemporâneas: superação e rupturas: apesar de ver rupturas
parciais – e tímidas – não consigo ver superação da tradição gramatical.
REFERÊNCIAS.
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