Botelho Vargas 2021

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DOI: 10.20396/cel.v63i00.

8660188

INFERÊNCIAS E ATIVIDADES DE LEITURA: COGNIÇÃO E


METACOGNIÇÃO EM SALA DE AULA

INFERENCIAS Y ACTIVIDADES DE LECTURA: COGNICIÓN Y


METACOGNICIÓN EN LA SALA DE CLASE

PATRICIA BOTELHO1
DIEGO DA SILVA VARGAS2

Resumo: Pesquisas recentes que desenvolvemos sobre o ensino de leitura conduziram nossos olhares
acerca da compreensão do processo de construção de inferências em função dos objetivos pretendidos em
uma atividade de leitura. Nesse sentido, este artigo se volta para as possibilidades de o aluno acionar
informações mais precisas para construir inferências pertinentes ao que se pretende alcançar numa atividade
de leitura. Sabendo que a inferência deve ser compreendida como um processo cognitivo que pode ser
administrado por meio de estratégias metacognitivas, pretendemos, assim, desenvolver esse trabalho em
duas frentes: retomada de alguns pressupostos dos estudos em cognição para entender os processos
cognitivos que possibilitam a construção de inferências, em especial, o de integração conceptual
(FAUCONNIER e TURNER, 2002) e, também, apresentação de estudos em metacognição e leitura que
nos possibilitem desenvolver estratégias de ensino que auxiliem os estudantes a acionar as informações
necessárias para a construção organizada de inferências. Para isso, empregamos o modelo de processamento
da informação em termos do desenvolvimento do aprendizado em três estágios: aquisição, retenção e
recuperação de informações (NELSON e NARENS, 1990, 1994) e a apresentação de questões de leitura
em função de níveis inferenciais (APPLEGATE et al., 2002) para, então, apresentarmos um protocolo de
ensino que auxilie os docentes na elaboração e desenvolvimento de atividades de leitura.
Palavras-chave: leitura; metacognição; inferência.

Resumen: Investigaciones recientes acerca de la enseñanza de la lectura nos condujeron a comprender el


proceso de construcción de inferencias a partir de los objetivos pretendidos en una actividad de lectura. De
ese modo, este artículo se direcciona a las posibilidades de el alumno accionar informaciones más precisas
para construir inferencias pertinentes a lo que se pretende alcanzar en una actividad de lectura. Una vez que
se debe comprender la inferencia como un proceso cognitivo que se puede administrar por medio de
estrategias metacognitivas, pretendemos desarrollar este trabajo en dos frentes: la retomada de los
presupuestos de los estudios en cognición para entender los procesos cognitivos que posibilitan la
construcción de inferencias, en especial, el de integración conceptual (FAUCONNIER y TURNER, 2002)
y, también, la presentación de los estudios en metacognición y lectura que nos posibiliten desarrollar
estrategias de enseñanza que auxilien a los estudiantes a accionar las informaciones necesarias para la
construcción ordenada de inferencias. Para lo que empregamos el modelo de procesamiento de la
información en términos del desarrollo del aprendizaje en tres etapas: adquisición, retención y recuperación
de las informaciones (NELSON y NARENS, 1990, 1994) y la presentación de cuestiones de lectura en

1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, Brasil.
patriciafbufrj@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8825-5985
2
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
dsvargas04@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6292-256X

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función de niveles inferenciales (APPLEGATE et al., 2002) para, entonces, presentar un protocolo de
enseñanza que auxilie a los docentes en la elaboración y el desarrollo de actividades de lectura.
Palavras-llave: lectura; metacognición; inferência.

INTRODUÇÃO

Diversos estudos dedicados à compreensão da educação linguística que se desenvolve nas


salas de aula das escolas brasileiras, em língua materna ou em línguas adicionais, demonstram a
precariedade do trabalho desenvolvido com a leitura. Apesar dos esforços de muitos docentes
para a superação desse problema e do crescimento da pesquisa no campo, não se notam melhoras
consistentes quando se avaliam o desempenho de estudantes em avaliações locais ou de larga
escala e, de forma generalizada, o trabalho apresentado em livros didáticos e, consequentemente,
nas salas de aula em que são utilizados.
Neste artigo, postulamos que um dos pontos centrais dessa precariedade está na
inadequação do trabalho (não) realizado com o “plano inferencial de leitura” (GERHARDT e
VARGAS, 2010) quando se pensa no ensino escolar de leitura. Com isso, o problema se apresenta
em dois níveis: a) um primeiro - cognitivo - uma vez que “inferência” ainda é tratada como termo
que expressa qualquer nível não literal de leitura (cf. APPLEGATE et al., 2002; VARGAS, 2015),
tornando indefinidos os processos cognitivos envolvidos em sua construção e, consequentemente,
problemático o trabalho com eles em atividades escolares; b) um segundo - metacognitivo - uma
vez que, não encaradas como resultante de processos cognitivos específicos, não se pensa em
formas de se trabalhar com as inferências de modo que se leve os estudantes a pensarem sobre
como constroem-nas enquanto leem e o que se pode fazer com elas antes, durante e depois da
leitura (cf. BOTELHO, 2015; 2018).
Cabe salientar que não entendemos a inferência como sendo de natureza exclusivamente
linguística. Outros trabalhos já evidenciaram que a construção de inferências é um processo
básico de significação, por meio do qual é possível construir o significado de maneira negociada
em toda atividade que envolva a compreensão (cf. VARGAS, 2015). Como processo de
significação e, portanto, como processo cognitivo, pode ser administrada por meio de estratégias
metacognitivas, especialmente, quando pensamos no trabalho escolar.
Este artigo pretende responder, simultaneamente, duas questões: a) como se acessam as
informações e como se constroem sentidos ao ler?; e b) como ajudar o aluno a acionar informações
precisas para gerar inferências pertinentes ao que se pretende ler? Assim, partimos dos Estudos
em Cognição para entender os processos envolvidos na construção de inferências e dos Estudos
em Metacognição para pensar como atividades escolares de leitura podem desenvolver
procedimentos que ajudem o leitor a administrar seus processos inferenciais. Para isso, como será
apontado ao longo do texto, trabalhamos com a noção de que o desenvolvimento do aprendizado
pode se dar em três estágios: aquisição, retenção e recuperação de informações (NELSON e
NARENS, 1994) e de que movimentos de monitoramento (postulação de hipóteses) e de controle
(objetivos de uma ação) são essenciais para se administrar qualquer processo cognitivo
(BOTELHO, 2015; 2018).
Apresentaremos, então, os pressupostos adotados por nós para o trabalho com a leitura
em sala de aula e, ao final, incluiremos uma proposta comentada de atividade, derivada de práticas
experienciadas em pesquisas recentes que desenvolvemos. Na próxima seção, segue a nossa visão
de leitura e como, a partir dessa perspectiva, podemos fundamentar teoricamente nossa definição
sobre o processo inferencial.

1. UMA VISÃO DE LEITURA - A LEITURA INTEGRATIVA

Diversas são as concepções de leitura existentes no campo acadêmico. Tais visões


fundamentam diferentes práticas de trabalho com a leitura e se constroem de diferentes modos
porque se fundamentam em diferentes perspectivas de ser humano, de interação, de linguagem,
de ensino, de aprendizagem etc. que atravessam os diversos campos científicos.

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Nossa perspectiva está fundamentada no campo interdisciplinar dos Estudos em
Cognição, no qual se inserem também os Estudos em Metacognição, uma vez que nos propomos
a discutir a construção de significados por meio da leitura e o processo de aprendizagem que se
realiza em sala de aula. Assim, não estamos preocupados somente em compreender as questões
linguísticas envolvidas na significação, mas também todos os outros recursos que utilizamos para
compreender o mundo e dizer coisas sobre ele.
Desse modo, não podemos ignorar que todo processo de interação linguística passa pela
mente humana, que interage com os textos e por meio de textos, elaborando e padronizando
significados, distribuindo-se pelo corpo, pelo ambiente e pelas pessoas que o formam. A partir
dessa integração mente + corpo + ambiente, construímos frames - nossas bases estáveis. Dentro
da perspectiva de cognição que adotamos, denominada recentemente de ecológica (DUQUE,
2018; SINHA, 1999a), entende-se que a cognição, como a linguagem, é experiencial (portanto,
social, cultural, intersubjetival), corporificada, baseada em frames e desenvolvida por meio de
mesclagens conceptuais (cf. VARGAS, 2017). Em resumo, pode-se dizer que a cognição é
distribuída, logo, situada e normatizada (GERHARDT, 2012).
Dentro desta perspectiva, entende-se o significado como sendo construído on-line e real
time, de forma negociada na interação. Isso se articula à noção de que nossa cognição se
desenvolve a partir de nossas experiências físicas e sociais, o que nos define como “selves
situados” (SINHA, 1999b), ou seja, como pessoas que pensam de maneiras diferentes em
ambientes e situações diferentes.
Em relação à leitura, temos que se trata de processo de significação desenvolvido de
forma negociada e dinâmica - e variável, pois depende de quem a realiza e em que contexto se
realiza. Alinhamo-nos ao que se denomina de perspectiva interativa de leitura, em oposição às
perspectivas ascendente e descendente (ou hipóteses top-down e bottom-up) (FULGÊNCIO e
LIBERATO, 2003; KLEIMAN, 2001). Tal perspectiva pressupõe que, isoladamente, as duas
visões a que se opõe não representam o processo de construção de significados pelo leitor, posto
que a compreensão ocorreria por meio da interação entre experiências prévias (conceitos
linguístico-culturais recuperados pelo leitor) e o texto (cf. BOTELHO, 2010).
Entretanto, partindo dos pressupostos anteriormente colocados nesta seção, entendemos
que tal representação (top-down + bottom-up) não é suficiente para definir a complexidade da
leitura, já que ela simplifica os processos cognitivos envolvidos no ato de ler, reduzidos a dois
movimentos opostos (ascendente e descendente). Acreditamos, inclusive, que tal redução
dificulta as possibilidades de intervenção em relação ao ensino3.
Dessa forma, estamos nomeando nossa perspectiva de “leitura integrativa”, entendendo
que o processo de inferenciação é evidência dessa concepção, e, portanto, uma possibilidade de
intervenção na formação de leitores. Embora não negue que o processamento da leitura exige do
leitor previsões e saltos de informação, demandando menos tempo e menos esforço cognitivo,
como apontam os estudos clássicos (FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003; KLEIMAN, 2001), a
concepção integrativa concebe que os conhecimentos do leitor e as informações do texto se
integram (e não apenas interagem) para o surgimento de novos conhecimentos, pois essa é a
natureza da cognição humana (VARGAS, 2017).
Os estudos psicolinguísticos clássicos já demonstraram que, para haver leitura, é
necessário que o leitor tenha conhecimentos para serem ativados, de modo que possa receber a
informação nova e compreendê-la. Já se destacava, inclusive, o papel fundamental do
conhecimento prévio no desenvolvimento da leitura. Kleiman (2010, p.13) aponta que “sem o
engajamento do conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão”. Partindo de uma
perspectiva ecológica de cognição, entendemos que nossos conhecimentos estão organizados em
saberes acumulados, que se relacionam e se manifestam na interação por meio de saberes
processuais (GERHARDT, 2006). Basicamente, os saberes acumulados se estruturam e são

3
Além disso, existe também um problema de nomenclatura, uma vez que o termo “leitura
interativa” (também denominada de “interacional”, o que comprova a existência do problema) vem sendo
utilizado por diferentes correntes teóricas, o que esconde diferenças substanciais entre elas. O termo
“interativa” pode, inclusive, referir-se a diferentes tipos de interação: leitor-texto, leitor-autor, leitor-texto-
autor, leitor-leitor etc.

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acionados inconscientemente através de padrões cognitivos denominados frames (DUQUE, 2015)
e se integram a outros saberes por meio de integrações conceptuais (FAUCONNIER e TURNER,
2002). Na leitura, o leitor integra a informação recebida aos seus conhecimentos organizados em
frames, por meio de sucessivas integrações conceptuais (VARGAS, 2017).
Duque (2015, p.26) define frames como “mecanismos cognitivos através dos quais
organizamos pensamentos, ideias e visões de mundo” e afirma que “novas informações só
ganham sentido se forem integradas a frames construídos por meio da interação ou do discurso”
(DUQUE, 2015, p.26). Cognitivamente, a linguagem aciona e constrói frames em nossa memória
continuamente, o que teria respaldo nos estudos neurais da linguagem, que demonstram que “um
frame é uma ‘cascata’ de circuitos neurais acionada por palavras” (DUQUE, 2015, p.27).
Tratando especificamente do ensino da leitura, BOTELHO (2015) afirma que a organização do
conhecimento prévio do leitor deve ser compreendida em função do emprego dos frames, uma
vez que são

estruturas de conhecimento altamente sistematizadas, delimitadas por experiências corporificadas


e por interações sociais, (...) [e que] além de não permanecerem na memória de forma aleatória,
podem ser entendidas como uma espécie de conhecimento compartilhado a fim de se compreender
um dado evento ou objeto abordados em um texto (BOTELHO, 2015, p.49).

Além disso, reconhecendo que texto e leitor contribuem de igual maneira para a
construção de significados, é possível dizer que apenas a ativação dos frames não é suficiente
para a compreensão. É preciso que eles se articulem, em um duplo movimento, às informações
que o texto traz. Para isso, o leitor se utiliza de seus saberes processuais, especialmente da
integração conceptual (FAUCONNIER e TURNER, 2002), que permite a articulação de
diferentes domínios já existentes e a formação de novos significados.
Assim, ao longo de uma atividade de leitura, ocorrem sucessivas integrações conceptuais
entre o conhecimento prévio (organizado em frames) e a informação textual (que ativa os frames
do conhecimento prévio e é também selecionada em função dos frames já construídos pelo leitor),
o que permite a formação de novos significados nos sucessivos espaços-mescla que se formam
para a construção do todo conceptualizado. Dessa forma, tanto a informação nova, recebida do
texto, como a informação velha, se alteram para que novos saberes, conceitos, experiências,
visões, sentidos, etc. se construam (VARGAS, 2017).

2. A INFERENCIAÇÃO COMO PROCESSO COGNITIVO

Com base nos pressupostos anteriores, entendemos a inferenciação como um processo


cognitivo básico de construção de significados, consequência, na leitura, da integração de duas
fontes de informação: a informação visual (texto) e o conhecimento prévio. Aqui, cabe ressaltar
que trabalhos clássicos sobre leitura já deram o devido destaque ao papel cumprido pelas
inferências, apontando que os leitores sempre constroem inferências de forma espontânea
enquanto leem, e que o que fica após uma leitura, ou seja, seu resultado para o leitor, na verdade,
são as inferências construídas ao longo do processo e não as informações explicitamente postas
nos textos (DELL’ISOLA, 2001; FULGÊNCIO e LIBERATO; 2003; KATO, 1990; KLEIMAN,
2001, 2010). Entretanto, tais estudos não permitiam ainda observar a processualidade da leitura,
como destacado na seção anterior, tornando-se necessário, também, construir uma visão de
inferência que se encaixe na visão de leitura que assumimos.
A partir da inclusão de uma perspectiva ecológica de cognição neste debate, as inferências
passam a ser entendidas como resultados únicos e novos de cada leitura, sendo, portanto, uma
evidência de que a leitura é um processo que acontece on line, em condições singulares. Dessa
forma, um leitor só é capaz de atribuir sentido a um texto se passa a constituí-lo também,
transformando-o em algo novo. A construção de inferências é, assim, um processo de criação, um
processo básico de produção de (novos) significados.
Com base nisso, ao incorporar-se a teoria da integração conceptual (FAUCONNIER e
TURNER, 2002) aos estudos anteriormente citados, é possível trazer uma maior noção de

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processualidade ao estudo da inferenciação, que pode, então, ser analisada de maneira on line e
por meio de integrações de conceitos projetados seletivamente. Assim, a inferenciação é vista
como um processo de formação de conceitos (inferências). A inferência, por sua vez, é entendida
como um resultado imprevisto e particular, sendo um elemento novo derivado da integração entre
as fontes de informação (VARGAS, 2017).
Cabe lembrar que a informação recebida não vem por meio de frases, mas de
agrupamentos de saberes (frames), ativados a partir da informação linguística. Como pode se ver
na figura 1, a construção de inferências se dá por meio das projeções entre conhecimento prévio
e informações visuais. Assim, por meio da projeção seletiva, obtêm-se as inferências no espaço-
mescla. Essas inferências são base para outras que se desenvolvem ao longo da leitura. Como
explicam Fauconnier e Turner (2002, p.24), “a existência de uma boa mescla pode tornar possível
o desenvolvimento de uma mescla melhor. A estrutura conceptual contém muitos produtos
entrincheirados da integração conceptual anterior”.
Tal processo seria a base da compreensão leitora, que se daria sempre como fruto de
inferenciações situadas, porque dependem, em um sentido amplo, do contexto em que são
realizadas. Utilizando o esquema de integração conceptual representado na figura, podemos dizer
que, no input I, estão as informações que o leitor seleciona de seu conhecimento prévio,
organizado em frames, e que se articulam ao input II, das informações trazidas pelo texto e
igualmente selecionadas pelo leitor. Da projeção seletiva das informações de ambos os espaços,
são construídas as inferências no espaço-mescla, que se forma pela integração deles, com base
em elementos que tenham em comum. Como salientam Fauconnier e Turner (2002), podemos
criar diferentes mesclagens a partir dos mesmos inputs, o que indica que o processo pode ter
resultados diferentes, uma vez que os inputs não determinam a rede de integração.

Figura 01: Esquema de integração conceptual em leitura, baseado em Fauconnier e Turner (2010)

Dessa forma, a inferência torna-se a evidência de que a leitura é essencialmente


integrativa, uma vez que, ao mesmo tempo em que é o resultado de uma integração conceptual,
representa o que retemos após a realização de uma leitura. Assim, mais do que uma interação na
qual leitor e texto contribuem para a construção de significados por meio dos movimentos
ascendente e descendente, o que temos é uma verdadeira integração entre texto e leitor, sendo os
resultados dessa integração completamente novos em relação aos domínios que os formam e
únicos para cada leitor em cada momento de cada leitura.
Não há, portanto, dentro desta concepção, qualquer sentido anterior à integração. Mesmo
a informação textual, que poderia ser entendida como dada antes da integração, torna-se única,
uma vez que cada leitor seleciona o que dela lhe interessa ou o que pode selecionar em função de
seus conhecimentos prévios – e de seus objetivos de leitura. Nesse sentido, não só a leitura
integrativa comprova a natureza distribuída da cognição humana, apontada na seção anterior, mas
também as inferências – enquanto resultado dessa leitura – o fazem. Isso porque as inferências só
são construídas ao distribuirmos nossa cognição entre o que há em nossos conhecimentos prévios,
o texto com o qual nos integramos e a situação em que nos encontramos, que vai nos levar a
definir objetivos específicos para nossa leitura, usando elementos e pessoas nela presentes como
parte também desse processo de construção.

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Como afirmam Fauconnier e Turner (2002), vivemos na mescla, pois nossa experiência
deriva das integrações conceptuais que realizamos. Assim, há que se lembrar que a “leitura de
mundo”4 se constrói do mesmo modo, já que as inferências que produzimos formam nossa
realidade. Entretanto, há também atividades altamente abstratas que realizamos e que dependem
da nossa capacidade de separar passo a passo as integrações realizadas:

Quão completamente nossa apreensão consciente é limitada à mescla depende do tipo de atividade
para qual a mesclagem serve. No caso da sensação e da percepção, nossa experiência consciente
vem inteiramente da mistura - nós "vivemos na mistura", por assim dizer. Em outras, a apreensão
consciente tem mais margem para avançar e retroceder, para “viver na rede de integração
completa” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.83).

Partindo, então, dessa ideia de que podemos refletir sobre parte das integrações que
realizamos, e entendendo que a escola é o espaço – socialmente construído – que deveria nos
levar a nos fazermos sujeitos críticos, autônomos, reflexivos, acreditamos que nela, o ensino de
leitura deveria ir além do estímulo à produção de processos espontâneos de inferenciação.
Considerando que as inferências construídas são parte da nossa realidade, deveria a escola levar
os alunos a pensarem sobre essa realidade construída, não naturalizando sentidos e visões de
mundo. A leitura crítica parte, então, de um trabalho realizado no plano inferencial. Para isso,
precisamos tornar esse processo consciente através de práticas metacognitivas.

3. METACOGNIÇÃO: UM CAMINHO PARA APONTAR FORMAS DE ESTUDO EM


LEITURA

A metacognição é uma habilidade humana relativa às ações de autoconhecimento e de


gerenciamento de qualquer atividade que venhamos a desenvolver. Monitoramos nossas posturas
em sociedade, refletimos acerca de decisões a serem tomadas, pensamos acerca das
probabilidades de sucesso no exercício de dada tarefa, etc. Assim, dizemos que essa postura de
autorregulação das funções cognitivas, tanto em termos do gerenciamento das tarefas a serem
executadas quanto dos procedimentos a serem empregados, são ações que podemos aprender,
delas nos apropriarmos e, consecutivamente, construirmos melhores estratégias.
Os estudos em metacognição apontam caminhos para definição dessa estrutura que
envolve o gerenciamento do conhecimento relativo à administração de saberes (conhecer o
conhecer); ao aprendizado que se processa em uma dada atividade (saber o quê); e ao
conhecimento de estratégias e procedimentos envolvidos na administração dos saberes (saber
como) em dois planos: objeto e meta (FLAVELL, 1979; KORIAT, 2000; SCHNEIDER e LOCKL
2002).
Nelson e Narens (1994) partiram da articulação entre esses saberes e, em seus estudos,
desenvolveram o que nos permitiu entender a metacognição como habilidade que envolve
gerenciamento e regulação da própria cognição, por meio de dois processos essenciais ao fluxo
de informação: o monitoramento e o controle. Selecionamos, assim, estratégias viabilizadoras ao
nosso aprendizado e conceptualizamos as informações nos dois planos (SINHA, 1999b;
TOMASELLO e RAKOCZY, 2003) em que se processam os movimentos metacognitivos do
controle e do monitoramento, como se pode verificar na figura 02:

4
Tomamos aqui emprestada a famosa expressão de Paulo Freire, entendendo, inclusive, que a
concepção posta neste texto detalha, cognitivamente, os processos apresentados pelo autor ao tratar da
leitura em seus trabalhos.

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Figura 02- Esquema para os movimentos de monitoramento e controle (Nelson e Narens, 1994, p.11)

O esquema de processamento da informação proposto por Nelson e Narens permite


compreender que o controle e o monitoramento são movimentos que atuam nos níveis objeto e
meta, em que há a construção de um modelo do nível do objeto que funciona para reconhecimento
e validação das informações passíveis de serem acionadas em meio ao fluxo de informações entre
ambos os níveis. Vale apontar que o direcionamento dado pelo fluxo de informação será definidor
aos propósitos e estratégias de controle e monitoramento.
Nesse sentido, ressaltamos a necessidade de os estudantes aprenderem a pensar
ativamente sobre os conhecimentos envolvidos e sobre suas próprias ações em meio ao processo
da leitura, ações relacionadas tanto à seleção de informações quanto à determinação de estratégias,
o que denota a importância de, em todas as atividades, apontarmos objetivos claros de realização
e propor ações de autorregulação desses estudantes sobre a atividade que estão realizando em
termos da checagem do seu aprendizado.
A sistematização do ensino-aprendizado por meio das ações de gerenciamento
metacognitivo com a postulação de hipóteses viabilizadoras à realização da leitura e com o
estabelecimento dos objetivos de leitura é uma tarefa que envolve meta-aprendizado a fim de que
se torne comum às rotinas de leitura da pessoa - como proposto na estrutura de gerenciamento de
aprendizado de Nelson e Narens (1994) - em três etapas.
Em cada uma dessas etapas, os estudantes podem ser confrontados por meio de questões
e de orientações que os auxiliem a pensar no que aprendem e no que conseguem construir
enquanto leem por meio de ações de autorregulação das ações que realizam e dos significados
que criam, o que será abordado de forma detalhada na próxima seção.

4. ADMINISTRAÇÃO DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE INFERÊNCIAS VIA


METACOGNIÇÃO

As ações voltadas ao gerenciamento da leitura, por meio do emprego de estratégias


metacognitivas, são organizadas para desenvolver a conscientização do aluno sobre a atividade
que realizará. Para tanto, a organização das atividades de leitura e a delimitação das estratégias
de autorregulação serão decisivas em relação ao acesso e ao emprego ordenado do conhecimento
prévio para estruturar as reflexões construídas pelos estudantes enquanto leem.
Vale dizer que essa organização envolverá, necessariamente, duas ações metacognitivas
básicas: a) estabelecer um objetivo explícito para a leitura e b) gerenciar as informações
empregadas ao ler, baseando-se no objetivo delimitado e pensando nas significações construídas
em leitura, para auxiliar a autorregulação dos estudantes em termos do acesso (ou não) ao
conhecimento prévio relacionado às informações lidas.
Botelho (2015) revisou o modelo de gerenciamento do aprendizado proposto por Nelson
e Narens (1994), viabilizando a proposta de questões que explicitem os objetivos de leitura e de
orientações que evidenciem quais informações do conhecimento prévio e do texto são relevantes
à atividade e, consecutivamente, à construção de inferências. Pensamos, com esse modelo, que os
alunos teçam articulações produtivas e reflexões consistentes sobre o que leem - acerca dos
significados que constroem e das ações de autorregulação em sua leitura.
Entendendo, então, que qualquer leitura depende tanto do leitor quanto do texto, o texto
não pode se distanciar demais dos conhecimentos prévios do leitor, o que exige um trabalho de

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construção desses conhecimentos anterior à leitura, nem o leitor pode abrir mão de engajar seus
saberes nesse processo. A leitura é definida pelos contextos macro e microssocial, envolvendo
outras pessoas e o ambiente físico e institucional em que se encontram. Metacognitivamente,
cabe, então, ao leitor saber que está realizando esse processo, em uma situação específica,
regulando-o em função de seus objetivos. Acreditamos, então, que as atividades escolares
deveriam, em relação às inferências, atuar em dois planos:

(a) desenvolvendo, no plano do objeto, tarefas em que os alunos reconheçam as


inferências que constroem e pensem sobre elas como resultados de um processo que envolve a
integração de duas fontes de informação; o que depende de um trabalho de ativação e, se
necessário, de construção de conhecimento prévio e de um trabalho com questões sobre diferentes
níveis de leitura, orientando o aluno em sua reflexão sobre as inferências construídas e sobre os
elementos selecionados e articulados para essa construção; e
(b) no plano meta, trabalhando com habilidades metacognitivas desenvolvidas em função
de objetivos previamente definidos e de hipóteses construídas ao longo da leitura; o que, pensando
no plano inferencial, faz com que a escola leve os alunos a proporem objetivos para suas próprias
leituras e a pensarem estratégias em função desses problemas. Também deve-se compreender
como as inferências atuam na formulação de hipóteses, de forma que a leitura seja vista como
processualidade e que o aluno possa pensar sobre ela enquanto lê.

Assim, dentro da proposta aqui levantada, em atividades escolares de leitura que


considerem o plano inferencial como relevante e que pensem nos alunos como sujeitos de sua
aprendizagem, torna-se fundamental a elaboração de:

(a) questões de pré-leitura (etapa de aquisição), que solicitem a ativação de


conhecimentos prévios ou que auxiliem na construção de conhecimentos necessários para o
desenvolvimento da leitura e que contribuam para o estabelecimento de objetivos de leitura;
(b) questões de leitura (etapa de retenção), que auxiliem o aluno em seu processo de
integração com o que lê, através de questões que priorizem níveis mais inferenciais de leitura,
usando o nível literal apenas como suporte à construção de inferências; e
(c) questões de pós-leitura (etapa de recuperação), que busquem o desenvolvimento de
reflexões derivadas das inferências construídas pela articulação entre o que o leitor sabia e o que
ele aprendeu com a leitura, inclusive em relação às suas capacidades metacognitivas.

Entendemos que, em vez de ser uma “atividade-meio”, a organização da atividade


didática, por meio das orientações para acionamento da informação relevante à leitura e dos
objetivos relativos à prática e ao aprendizado do que é ler em cada etapa de sua realização, pode
tornar os alunos mais conscientes das estratégias e dos saberes que precisam acessar e empregar
em apoio ao seu desenvolvimento como leitores (cf. BOTELHO e NEVES, 2019).
Em meio a tudo isso, cabe também auxiliar o aluno no desenvolvimento da compreensão
de que toda inferência construída durante a leitura representa uma hipótese provisoriamente
levantada e que, por isso, é preciso verificação e reformulação constante, pela integração e não
pela reprodução, dos sentidos construídos ao longo da leitura.

5. UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O PLANO INFERENCIAL

Nesta seção, apresentaremos, então, uma atividade pensada para o trabalho metacognitivo
com o plano inferencial de leitura. Foi escolhido, para isso, um texto narrativo, apresentado em
um livro didático, como forma de mostrar que materiais de leitura propostos para o
direcionamento do trabalho dos docentes podem ser (re)pensados na elaboração de propostas
didáticas autorais e mais adequadas para o trabalho com os alunos. Não pretendemos que essa
atividade seja replicada tal e como se apresenta ou que sirva de modelo rigoroso de produção de
uma atividade de leitura. Entretanto, cabe esclarecer que se trata de uma proposta desenvolvida

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após uma série de testes com atividades semelhantes e que têm mostrado bons resultados em sala
de aula da educação básica e do ensino superior.
Apresentaremos a atividade em partes, comentando-as. Como consideramos que ler
envolve integração dos saberes do leitor aos conhecimentos presentes no texto e que essa
integração pode ser guiada por estratégias metacognitivas, estamos propondo a configuração de
uma leitura por etapas. Em cada uma dessas etapas, são apresentadas questões: (i) relacionadas à
postulação de hipóteses e ao estabelecimento de objetivos de leitura; (ii) voltadas para a seleção
de informações que auxiliem os estudantes no desenvolvimento da leitura, de acordo com os
objetivos da atividade, uma vez que a cognição é perspectival.
Começamos, então, apresentando seus objetivos, separando o que é o objetivo de leitura
dos alunos do que são os objetivos da atividade, direcionados para o trabalho docente:

OBJETIVOS DA ATIVIDADE:
- Ensinar o estudante a construir um pensamento crítico em suas leituras.
- Motivar o estudante a refletir sobre o racismo a partir do plano inferencial de leitura por meio de
texto narrativo apresentado em um livro didático.

OBJETIVO DE LEITURA: Refletir sobre as inferências construídas ao longo da leitura de um


texto narrativo.

Como propusemos, uma atividade de leitura inicialmente deve requerer a ativação de


conhecimentos prévios (ou sua construção), como se propõe nas questões seguintes:

ANTES DA LEITURA:
1 – O texto a seguir conta a história da chegada de um novo aluno em uma turma do ensino
fundamental. Pensando nisso, responda:
a) Você já viveu a experiência de ser um novo aluno em uma turma em que todos se conheciam?
Como foi essa experiência?
b) Como os novos alunos costumam ser recebidos em sua escola? O que você acha dessa forma
de recepção?

Tais questões permitem aos estudantes, em um nível cognitivo, acionar os frames que
serão centrais para a construção da compreensão do texto e aos professores conhecer as
perspectivas construídas por seus alunos sobre tais frames, o que será fundamental para entender
as inferências que serão construídas. Ao mesmo tempo, em um nível metacognitivo, permite a
construção de hipóteses de leitura, que deverão ser flexibilizadas ao longo da inte(g)ração com o
texto, enquanto as inferências vão sendo construídas.

DURANTE A LEITURA:
Um novo aluno na classe
9 de agosto
Neste semestre apareceu um cara novo na classe. É de Mato Grosso, Goiás, coisa assim. Agora
veio estudar em São Paulo.

2 – O narrador inicia o texto contando a chegada do aluno novo em sua classe.


a) Como você espera que esse aluno vá ser recebido?
b) Que experiências pessoais te levam a pensar isso?
c) Que informações do texto te levam a pensar isso?

Eu também não fui com a cara dele, sei lá, a primeira coisa que eu pensei foi o que todo
mundo deve ter pensado. Ele é escuro, cara de índio ou de mulato. E grandão, e no primeiro dia
de aula que ele chegou na classe já foi fazendo pergunta pra professora de geografia e ela até
gostou das perguntas dele e todo mundo achou que ele era um crioulo metido.

3 – Agora, o autor nos mostra como foi a chegada desse aluno.


a) O aluno novo foi recebido da maneira como você esperava?
b) Em sua opinião, por que ele foi recebido dessa maneira?
c) Que experiências pessoais e que elementos do texto te levam a dar essa explicação?

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Neste primeiro bloco, o foco está na construção da hipótese principal, derivada de um
processo inferencial, que guiará toda a atividade de leitura - como os leitores esperam que o aluno
novo seja recebido pela turma. Metacognitivamente, as questões buscam levar os alunos a
pensarem sobre como tais inferências foram construídas, refletindo sobre as bases ativadas para
tal construção. Há, portanto, questões que propõem a recuperação do conhecimento prévio e
questões que buscam o acionamento de informações na superfície do texto.
Aqui, cabe salientar que a seleção de informações explícitas se trata, também, de uma
ação cognitiva relevante, desde que se considere as etapas que envolvem a leitura. É uma ação
preliminar que pode conduzir os alunos a desenvolverem uma leitura aprofundada e uma melhor
compreensão dos textos lidos nas etapas posteriores, sobretudo, considerando-se a construção de
inferências (APPLEGATE et al., 2002). Portanto, não cabe uma atividade de leitura que trabalhe
a seleção de informações pela pura cópia do texto lido.

4 – O narrador diz que também não foi com a cara do aluno novo, mas conta a história sobre seu
ponto de vista. A partir do que ele diz, você imagina que os colegas tenham compartilhado deste
mesmo ponto de vista? Por quê?

5 – Sabendo que racismo significa: “1 Teoria ou crença que estabelece uma hierarquia entre as
raças (etnias). 2 Doutrina que fundamenta o direito de uma raça, vista como pura e superior, de
dominar outras. 3 Preconceito exagerado contra pessoas pertencentes a uma raça (etnia) diferente,
geralmente considerada inferior. 4 Atitude hostil em relação a certas categorias de indivíduos.”
(Dicionário Michaelis online), responda:
a) Você acredita que o aluno novo foi vítima de racismo?
b) Que dados do texto comprovam essa sua leitura?
c) Caso tenha respondido que “sim”, quais das definições do dicionário te levaram a essa
leitura?

Neste bloco, pretendemos levar os alunos a pensarem sobre as inferências e hipóteses


construídas anteriormente, a partir da proposição de questões que enfocam o plano
metalinguístico (cf. GERHARDT e VARGAS, 2010). Além disso, elas permitem que os
estudantes teçam considerações acerca de como a integração de informações prévias são a base
para a construção de uma leitura crítica. São, assim, questões que também propiciam o debate em
sala de aula, explorando a natureza distribuída da cognição (e da leitura).

Mas hoje ele fez um negócio que me deixou encucado. Deixou mesmo. Nos primeiros dias, o
pessoal ainda não tinha maior intimidade, mas depois de uma semana, já começaram as
brincadeiras.
O Tadeu, que gosta de sacanear os outros, mais ainda se é novo na classe, forrou a carteira
dele com papel preto, até no assento da carteira. Tudo. Inteirinha de luto. Todo mundo rindo e
doido pra ver como é que o “crioulo” ia reagir.

6 - Com base nisso, como você espera que o menino possa reagir? Que experiências
pessoais e que informações do texto te levam a pensar assim?

(...)Ele chegou, todo mundo rindo. Ele olhou pra carteira, olhou pra gente. Sério e calado.
E em vez de gritar ou rasgar o papel, que era o que a gente esperava, ele sentou. Sentou como se
nada tivesse de diferente, sentou e começou a assistir aula. As seis aulas e ele sentado lá, copiando
a matéria, como se nem tivesse percebido a carteira forrada de preto.

7 – Você ficou surpreso com a reação do menino? Você acha que o resto da turma teve uma
surpresa? Por quê?

No começo, um e outro ainda ria, gritava “A coisa tá preta”, algo assim. Depois, eu sei que
foi dando vergonha no pessoal. A aula acabou ficando um inferno, porque todo mundo prestava
mais atenção na carteira preta do que na aula, e se algum professor estranhava, pelo menos não
disse nada, acho que meio sem graça, ele é aluno novo, sei lá que doidice era.

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8 – A reação dos alunos correspondeu ao que você esperava? Há algo que foi diferente do que,
geralmente, se espera?

É possível observar que as questões vão, mais ou menos, se utilizando de procedimentos


semelhantes, em que as inferências precisam ser explicitadas, bem como os processos construídos
pelos alunos ao produzirem-nas, enquanto também refletem sobre as hipóteses construídas,
flexibilizando-as se necessário, e mantêm o objetivo de leitura em foco.

9 - Observe que o narrador usa a palavra “inferno” para descrever a aula. Com base nisso, faça o
que se pede:
a) Apresente diferentes significados que a palavra “inferno” pode assumir e indique qual se
encaixaria melhor no texto.
b) Justifique sua escolha, a partir de informações dadas pelo texto.

Essa questão, especificamente, se destaca porque nela é possível pensar sobre relações
entre frames - RACISMO e INFERNO, por exemplo – e em como tais relações atuam no processo
de inferenciação, trazendo à consciência, ainda, o caráter perspectival da cognição.

Só de assistir sei que a classe inteira nem conseguiu assistir aula direito, porque ele senta
na primeira fileira, e todo mundo só conseguia grudar os olhos na carteira forrada de preto, dele.

10 – Em sua opinião, com base em tudo que você leu até agora e em suas experiências pessoais,
por que a turma acabou reagindo da maneira como reagiu?

Na saída, o Tadeu e o Beto criaram coragem e tentaram falar com ele.


– Olha, João – o nome dele é João. – É o seguinte. A gente…

11 – O nome do aluno novo só é revelado a esta altura do texto.


a) Em sua opinião, por que o narrador só resolveu citar o nome do aluno agora?
b) O que te leva a pensar isso?

12 - O que você acha que eles vão dizer? Que informações do texto e que experiências suas te
levam a pensar isso?

Ele nem deu chance do pessoal falar. Levantou, pegou o material, interrompeu:
– Você não copiou a aula? Eu anotei tudo. Se quiser, eu passo depois pra vocês.
E saiu.
Nunca vi o Tadeu daquele jeito. Ele arrancou todo o papel preto da carteira, mas com uma
raiva, raiva mesmo, e eu sei que todo mundo acabou a aula com uma coisa que nunca teve.
Não sei, mas gostei dele. Gostei mesmo do que ele fez. (...)

Márcia Kupstas. Crescer é perigoso. São Paulo: Moderna, 2001, p.36-8


(in: Tânia A.Oliveira, R. Bertolin, A.S. Silva. Tecendo textos – Ensino de Língua
Portuguesa através de Projetos. 8a série. São Paulo: IBEP, 2002, p.42-43.)

13 - O que você achou da atitude do João? Por quê?

14 - O que você achou da atitude do Tadeu? Por quê?

15 - Ao final, o narrador fala de uma coisa que todo mundo nunca teve. De acordo com o que
você leu no texto, o que seria essa “coisa”? Ela seria a mesma para todos? Por quê?

Essas questões vão encaminhando o leitor à construção de reflexões mais globais,


derivadas da discussão anterior sobre como o racismo se manifesta no texto. São questões que se
voltam para a seleção de informações e para a manutenção do foco no aprendizado do tema a ser
(re)pensado – o racismo – e nas inferências e, consequentemente, nas hipóteses construídas em
relação aos conhecimentos prévios, aos objetivos de leitura e à identificação dos frames
empregados na inferenciação. Passamos, então, às questões de pós-leitura:

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DEPOIS DA LEITURA:
16 - Em sua opinião, o que teria tornado possível a mudança de comportamento do narrador da
história de antipatia para simpatia em relação ao João?

17 - Você acredita que o problema vivenciado por João esteja resolvido naquela sala de aula depois
do episódio final da história? Por quê?

18 - Pensando agora de forma mais ampla:


a) Você acredita que o problema do racismo é enxergado em nossa sociedade?
b) O que te leva a acreditar nisso?
c) Sua concepção de racismo se alterou após a leitura do texto? Justifique sua resposta,
retomando dados do texto.

19 - Pensando sobre o conceito de racismo:


a) Você acha que a atitude do João foi a melhor maneira de enfrentar esse problema? Por
quê?
b) Procure pessoas que tenham sido vítimas de racismo e conte essa história para elas.
Pergunte como elas se sentiram ao ouvir essa história e compartilhe o depoimento delas com
os colegas. Se você mesmo já foi ou é vítima de racismo, conte como se sentiu ao ler a
história para os colegas.

Tais questões são relacionadas às significações construídas ao longo de todo o texto.


Pensando, portanto, nos pressupostos metacognitivos, são questões de recuperação, que
possibilitam retomar noções e conceitos do texto essenciais para a construção de uma leitura
global – e crítica. São também a possibilidade de pensar de forma mais organizada as inferências
construídas ao longo de todo o texto, identificando a origem dos frames acionados (do texto e do
conhecimento prévio), e de, se necessário, retomar a leitura das informações explícitas. Além
disso, também permitem a checagem do alcance dos objetivos de leitura.
Vale dizer, por fim, que, nessa proposta, temos em vista conceber e, assim, ensinar que a
leitura é uma atividade que deve ser pensada em etapas, o que envolve também postular que esse
tipo de atividade pode (e deve) constituir ações viáveis à dinâmica do dia a dia escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do trabalho, ao discutirmos o ensino de leitura, entendemos que, mais do que


abordar uma habilidade linguística trabalhada em sala de aula, estamos pensando em políticas
cognitivas (KASTRUP, 2012), uma vez que estamos discutindo concepções de aprendizagem, de
ensino, de aprendiz, de professor, de aluno, de leitor etc., que se estendem para além do espaço
escolar e contribuem para a construção de modelos de existência em nossa sociedade. Como
aponta Kastrup (2012), a suspensão de uma política cognitiva reprodutora5 nos obriga a colocar
outras práticas no lugar, o que não é simples, uma vez que tal política “é um modelo que nos puxa
sempre e a resistência tem que ser constantemente reiterada. O caminho tem que ser feito dia a
dia, como um desafio permanente”.
Acreditamos que se torna cada vez mais urgente a busca por práticas escolares que
fomentem a invenção (no lugar da reprodução) e que, portanto, reconheçam uma visão de
cognição como distribuída, como aqui posto, e de aprendizagem como problematização. Essa
aprendizagem, como o processo leitor, deveria ser construída, na escola, através da integração
conceptual entre o que o aluno já sabe e as informações novas que a escola traz.
Neste texto, buscamos tratar especificamente do problema do ensino de leitura e de
possíveis caminhos para sua (re)construção. Reconhecer que (e como) o ser humano cogniza

5
A autora nomeia essa política de “política de recognição”, em oposição a uma “política de
invenção”, na qual a aprendizagem é entendida não só como resolução de problemas, mas como invenção
de problemas, ou seja, como fomentando uma postura de (re)construção de realidades que estão sempre
“em devir”.

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quando lê torna-se fundamental nas perspectivas metacognitivas de ensino, porque, com a
identificação de dificuldades e de falhas no processo da leitura, podemos apontar estratégias de
autorregulação – julgamentos de aprendizagem – para gerenciamento de estratégias que busquem
saná-las em atividades posteriores. Essa é uma contribuição fundamental não apenas para o ensino
de línguas na escola brasileira, mas também, para o ensino de qualquer disciplina em qualquer
etapa, uma vez que a leitura permeia toda e qualquer atividade escolar.
O trabalho reflexivo sobre esse movimento de integração entre o espaço cotidiano do
aluno, de seus saberes e suas experiências, e o espaço da escola, manifestado no texto lido e na
atividade de leitura realizada em sala de aula, seja essencial. Não apenas o aluno pode selecionar
melhor as informações que busca em seu conhecimento prévio e as informações novas recebidas
em função de um objetivo específico, como também pode refletir sobre possíveis direcionamentos
presentes nos textos lidos para que ele selecione determinadas informações e ignore outras. Além
disso, ao pensar sobre as inferências construídas, o aluno pode refletir sobre sua concepção de
mundo, alterando-a, de maneira consciente, em função da sua integração com novos saberes, o
que colabora na construção de uma consciência de que nenhum saber (consequentemente,
nenhuma leitura) é fixo, uma vez que não existe ninguém nem nada que esteja dado e acabado.
Não é nosso objetivo propor aos alunos a realização de sequências de tarefas que sigam
o modelo apresentado aqui anteriormente, levando-os ao treinamento maçante de determinadas
técnicas e estratégias específicas de leitura. Nossa proposta é que, através de atividades que
trabalhem níveis diversos de leitura e habilidades metacognitivas igualmente diversas, eles
possam (re)construir sua relação com os textos que leem, o que exige o (auto)reconhecimento de
sua agentividade e da importância de seus conhecimentos prévios para a construção de novos
saberes. Igualmente, exige a desconfiança em relação ao que se lê e aos sentidos construídos, não
de forma vazia, como quem não pensa sobre o que diz, mas de forma crítica, partindo da
informação recebida e de sua integração aos saberes anteriores.

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REFERÊNCIAS

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Recebido: 23/6/2020
Aceito: 23/2/2021
Publicado: 25/1/2021

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