CORTÁZAR, Julio. Todos Os Contos
CORTÁZAR, Julio. Todos Os Contos
CORTÁZAR, Julio. Todos Os Contos
BESTIÁRIO (1951)
Casa tomada
Carta a uma senhorita em Paris
Distante
Ônibus
Cefaleia
Circe
As portas do céu
Bestiário
FIM DO JOGO (1956)
I.
Continuidade dos parques
A culpa é de ninguém
O rio
Os venenos
A porta condenada
As mênades
II.
O ídolo das Cíclades
Uma flor amarela
Sobremesa
A banda
Os amigos
O motivo
Torito
III.
Relato com um fundo de água
Depois do almoço
Axolotes
A noite de barriga para cima
Fim do jogo
I. Primeira e ainda incerta aparição dos cronópios, famas e esperanças. Fase mitológica
Costumes dos famas
A dança dos famas
Alegria do cronópio
Tristeza do cronópio
II. Histórias de cronópios e de famas
Viagens
Conservação das lembranças
Relógios
O almoço
Lenços
Comércio
Filantropia
O canto dos cronópios
História
A colherada estreita
A foto saiu tremida
Eugenia
Sua fé na ciência
Inconvenientes nos serviços públicos
Faça de conta que está na sua casa
Terapias
O particular e o universal
Os exploradores
Educação de príncipe
Cole o selo no canto superior direito do envelope
Telegramas
Suas histórias naturais
III. Histórias (inesperadas) de cronópios
Sistema viário
Almoços
Never stop the press
HISTÓRIAS (INESPERADAS)
A adaga e o lírio. Notas para um relatório
Relato com um fundo de água
Os gatos
Manuscrito encontrado ao lado de uma mão
Para Paco, que gostava destes contos
1. O filho do vampiro
P
rovavelmente todos os fantasmas sabiam que Duggu Van era um
vampiro. Não o temiam, mas abriam caminho quando ele saía de
sua tumba à meia-noite em ponto e entrava no antigo castelo em
busca de seu alimento predileto.
O rosto de Duggu Van não era agradável. O muito sangue bebido desde
sua morte aparente — no ano de 1060, pela mão de um menino, novo Davi
armado de um estilingue-punhal — havia infiltrado em sua opaca pele a
coloração lavada das madeiras que passaram muito tempo debaixo da água.
Naquele rosto, só o que havia de vivo eram os olhos. Olhos fixos na figura
de Lady Vanda, adormecida como um bebê no leito que não conhecia outra
coisa além de seu leve corpo.
Duggu Van caminhava sem produzir ruído. A mistura de vida e morte que
conformava seu coração se resolvia em qualidades inumanas. Vestido de
azul-escuro, sempre acompanhado por um silencioso séquito de perfumes
rançosos, o vampiro passeava pelas galerias do castelo em busca de vivos
depósitos de sangue. A indústria frigorífica o teria indignado. Lady Vanda,
adormecida, com uma mão diante dos olhos como numa premonição de
perigo, parecia um bibelô repentinamente morno. E também um relvado
propício, ou uma cariátide.
Duggu Van tinha o louvável costume de nunca pensar antes da ação. No
quarto e junto ao leito, despindo com levíssima carcomida mão o corpo da
rítmica escultura, a sede de sangue começou a ceder.
Vampiros que se apaixonam é coisa que na lenda se mantém oculta. Se ele
houvesse ponderado, talvez sua condição tradicional o tivesse detido no
limiar do amor, limitando-o ao sangue higiênico e vital. Mas Lady Vanda
não era, para ele, mera vítima destinada a uma série de colações. A beleza
irrompia de sua figura ausente, combatendo, no exato centro do espaço que
separava os dois corpos, com a fome.
Sem tempo para se sentir perplexo, Duggu Van ingressou no amor com
voracidade estrepitosa. O atroz despertar de Lady Vanda chegou um
segundo atrasado com relação a suas possibilidades de defesa. E o falso
sonho do desmaio foi forçado a entregá-la, branca luz na noite, ao amante.
Verdade que, de madrugada e antes de se retirar, o vampiro não resistiu a
sua vocação e fez uma pequena sangria no ombro da desfalecida castelã.
Mais tarde, ao pensar no fato, Duggu Van argumentou para si próprio que as
sangrias eram muito recomendáveis para os desmaiados. Como em todos os
seres, seu pensamento era menos nobre que o ato simples.
Duggu Van, prestes a morrer a morte dos vampiros (coisa que o aterrorizava
por razões compreensíveis), ainda alimentava a frágil esperança de que seu
filho, quiçá detentor de suas próprias qualidades de sagacidade e destreza,
encontrasse meios de levar-lhe algum dia a mãe.
Lady Vanda estava cada dia mais branca, mais aérea. Os médicos
imprecavam, os tônicos malogravam. E ela sempre repetindo:
— Ele é como o pai, como o pai.
Miss Wilkinson chegou à conclusão de que o pequeno vampiro estava
dessangrando a mãe com a mais refinada das crueldades.
Quando os médicos tomaram conhecimento, houve menção a um aborto
amplamente justificável; mas Lady Vanda se recusou, virando a cabeça
como um ursinho de pelúcia, acariciando com a destra seu ventre de cetim.
— Ele é como o pai — disse. — Como o pai.
O filho de Duggu Van crescia rapidamente. Não só ocupava a cavidade
que a natureza lhe destinara como invadia o resto do corpo de Lady Vanda.
Lady Vanda já mal conseguia falar, não lhe restava sangue; o pouco que
possuía estava no corpo do filho.
E quando chegou o dia fixado pelas memórias para o nascimento, os
médicos disseram a si mesmos que aquele seria um nascimento estranho.
Num total de quatro, rodearam o leito da parturiente à espera da meia-noite
do trigésimo dia do nono mês do atentado de Duggu Van.
Miss Wilkinson, na galeria, viu aproximar-se uma sombra. Não gritou
porque acreditava firmemente que com isso não ganharia nada. Verdade que
o rosto de Duggu Van não era de provocar sorrisos. A cor terrosa de seu
rosto se transformara num relevo uniforme e cárdeno. Em lugar dos olhos,
duas grandes interrogações chorosas se equilibravam sob o cabelo
emplastrado.
— Ele é absolutamente meu — disse o vampiro na linguagem caprichosa
de sua seita — e ninguém pode se interpor entre sua essência e o meu
carinho.
Falava do filho; Miss Wilkinson serenou.
Os médicos, reunidos num ângulo do leito, dedicavam-se a demonstrar
uns para os outros que não estavam com medo. Começavam a admitir
alterações no corpo de Lady Vanda. A pele ficara repentinamente escura, as
pernas se enchiam de relevos musculares, o ventre se aplanava suavemente
e, com uma naturalidade que parecia quase familiar, seu sexo se
transformava no oposto. O rosto não era mais o de Lady Vanda. As mãos
não eram mais as de Lady Vanda. Os médicos sentiam um medo atroz.
Então, quando soaram as doze horas, o corpo de quem havia sido Lady
Vanda e era agora seu filho ergueu-se docemente no leito e estendeu os
braços na direção da porta aberta.
Duggu Van entrou no salão, passou diante dos médicos sem vê-los e
tomou as mãos do filho.
Os dois, olhando-se como se se conhecessem desde sempre, saíram pela
janela. O leito levemente amarrotado e os médicos balbuciando coisas ao
redor dele, contemplando os instrumentos do ofício sobre as mesas, a
balança para pesar o recém-nascido, e Miss Wilkinson na porta,
contorcendo as mãos e perguntando, perguntando, perguntando.
1937
A
s mãos de Delia doíam. Como vidro moído, a espuma do sabão
insistia em se infiltrar nas rachaduras de sua pele, punha nos
nervos uma dor áspera percorrida de súbito por fisgadas
lancinantes. Delia teria chorado sem disfarce, entregando-se à dor
como a um abraço necessário. Não chorava porque uma secreta energia a
repelia na entrega fácil ao soluço; a dor do sabão não era motivo suficiente,
depois de todo o tempo que vivera chorando por Sonny, chorando pela
ausência de Sonny. Teria sido degradar-se, sem a única causa que para ela
merecia o dom de suas lágrimas. E além disso ali estava Babe, em seu berço
de ferro e pago a prestação. Ali, como sempre, estavam Babe e a ausência
de Sonny. Babe em seu berço ou engatinhando sobre o tapete puído; e a
ausência de Sonny, presente em toda parte como são as ausências.
A tina, sacudida em seu suporte pelo ritmo do esfregar da roupa, se
somava à percussão de um blues cantado pela mesma jovem de pele escura
que Delia admirava nas revistas de rádio. Preferia sempre as audições da
cantora de blues: às sete e quinze da noite — a rádio, entre uma e outra
música, anunciava a hora com um hi, hi de camundongo assustado — e até
sete e meia. Delia não pensava nunca: “Dezenove e trinta”; preferia a velha
nomenclatura familiar, tal como proclamada pelo relógio de parede de
pêndulo fatigado que Babe observava agora balançando comicamente a
cabecinha pouco firme. Delia gostava de ficar olhando o relógio ou de
prestar atenção no hi, hi da rádio; embora a entristecesse associar ao tempo
a ausência de Sonny, a maldade de Sonny, seu abandono, Babe, e a vontade
de chorar, e como a sra. Morris dissera que a conta do armazém precisava
ser paga imediatamente, e que bonitas aquelas meias cor de avelã.
Primeiro sem saber por quê, Delia flagrou a si mesma no ato de olhar
furtivamente para uma fotografia de Sonny pendurada ao lado da prateleira
do telefone. Pensou: “Hoje ninguém me telefonou”. Mal entendia a razão de
continuar pagando a conta mensal do telefone. Ninguém ligava para aquele
número desde a partida de Sonny. Os amigos, porque Sonny tinha muitos
amigos, não ignoravam que agora ele era um estranho para Delia, para
Babe, para o pequeno apartamento onde as coisas se amontoavam no
reduzido espaço dos dois cômodos. Só Steve Sullivan às vezes telefonava e
falava com Delia; ligava para dizer a Delia como estava feliz em saber que
ela ia bem de saúde, e que não fosse imaginar que o que acontecera entre
ela e Sonny seria razão para ele deixar de telefonar perguntando como ela
andava de saúde e pelos dentinhos de Babe. Só Steve Sullivan; e naquele
dia o telefone não havia tocado nem uma única vez; nem mesmo por
engano.
Eram sete e vinte. Delia ouviu o hi, hi misturado com anúncios de
dentifrício e cigarros mentolados. Ficou sabendo também que o gabinete
Daladier estava cai não cai. Depois voltou a cantora de blues e Babe, que
mostrava propensão a chorar, fez um gracioso gesto de alegria, como se
naquela voz morena e espessa houvesse alguma guloseima de que gostasse.
Delia foi descartar a água ensaboada e enxugou as mãos, gemendo de dor
ao esfregar a toalha sobre a carne macerada.
Mas não ia chorar. Só por Sonny ela era capaz de chorar. Em voz alta,
dirigindo-se a Babe, que de seu berço amarfanhado sorria para ela, tentou
encontrar palavras que justificassem um soluço, um gesto de dor.
— Se ele pudesse compreender o mal que nos fez, Babe… Se tivesse
alma, se fosse capaz de pensar por um segundo no que deixou para trás
quando bateu a porta num gesto de raiva… Dois anos, Babe, dois anos… e
nós sem saber nada dele… Nem uma carta, nem uma remessa… nem
mesmo uma remessa para você, para comprar roupa e sapatinhos… Você já
nem se lembra do dia do seu aniversário, não é mesmo? Foi no mês
passado, e eu fiquei ao lado do telefone com você no colo esperando que ele
ligasse, que dissesse simplesmente: “Alô, parabéns!”, ou que lhe mandasse
um presente, só um presentinho, um coelhinho ou uma moeda de ouro…
Assim, as lágrimas que queimavam sua face lhe pareceram legítimas
porque as derramava pensando em Sonny. E foi nesse momento que tocou o
telefone, justamente quando brotava da rádio o guincho esmerado e miúdo
que anunciava as sete e vinte e dois.
— Telefone — disse Delia, olhando para Babe como se o menino fosse
capaz de compreender. Aproximou-se do telefone um pouco insegura,
pensando que talvez fosse a sra. Morris atrás do pagamento. Sentou-se no
banquinho. Não demonstrava pressa, apesar da campainha insistente. Disse:
— Alô.
A resposta demorou a vir.
— Alô. Quem…?
Claro que ela já sabia, e por isso teve a impressão de que o aposento
estava girando, de que o minueto do relógio se transformava numa hélice
enfurecida.
— Aqui é o Sonny, Delia. O Sonny.
— Ah, Sonny.
— Você vai desligar?
— Vou, Sonny — disse ela, muito devagar.
— Delia, preciso falar com você.
— Fale, Sonny.
— Preciso lhe dizer muitas coisas, Delia.
— Está bem, Sonny.
— Você está… está brava comigo?
— Não consigo ficar brava. Estou triste.
— Eu sou um desconhecido para você… um estranho, agora?
— Não me pergunte isso. Não quero que você me pergunte isso.
— É que eu lamento, Delia.
— Ah, lamenta.
— Por favor, não fale assim, nesse tom…
—…
— Alô.
— Alô. Achei que…
— Delia…
— O quê, Sonny.
— Posso lhe perguntar uma coisa?
Ela percebia alguma coisa estranha na voz de Sonny. Claro que talvez já
tivesse esquecido um pedaço da voz de Sonny. Sem formular a pergunta,
entendeu que estava tentando adivinhar se ele ligava da prisão ou de algum
bar… Por trás da voz dele havia silêncio, e quando Sonny se calava tudo era
silêncio, um silêncio noturno.
— … só uma pergunta, Delia.
Do berço, Babe olhou para a mãe inclinando a cabecinha num gesto de
curiosidade. Não mostrava impaciência nem vontade de cair no choro. A
rádio, na outra ponta do quarto, acusou novamente a hora: hi, hi, sete e
vinte e cinco. E Delia ainda não pusera o leite de Babe para esquentar; e
não pendurara a roupa recém-lavada.
— Delia, quero saber se você me perdoa.
— Não, Sonny, não perdoo.
— Delia…
— O quê, Sonny?
— Você não me perdoa?
— Não, Sonny, agora o perdão não faz diferença… Perdoamos as pessoas
a quem ainda amamos um pouco… e é por causa do Babe, por causa do
Babe que eu não o perdoo.
— Por causa do Babe, Delia? Você acha que eu seria capaz de esquecer o
Babe?
— Não sei, Sonny. Mas eu nunca permitiria que você voltasse a morar
com ele porque agora ele é só meu filho, só meu filho. Não permitiria
nunca.
— Agora não importa mais, Delia — disse a voz de Sonny, e Delia sentiu
novamente, só que com mais força, que faltava (ou sobrava) alguma coisa
na voz de Sonny.
— De onde você está ligando?
— Isso também não importa — disse a voz de Sonny como se fosse
penoso para ele responder daquele jeito.
— Mas é que…
— Vamos deixar isso para lá, Delia.
— Está bem, Sonny.
(Sete e vinte e sete.)
— Delia, faça de conta que estou indo embora.
— Você? Indo embora? E por quê?
— Pode acontecer, Delia… Acontecem tantas coisas que… Entenda,
entenda… Ir embora assim, sem seu perdão… ir embora assim, Delia, sem
nada… sem roupa… sem roupa e sem ninguém!
(A voz, tão esquisita. A voz de Sonny, como se ao mesmo tempo não
fosse a voz de Sonny mas fosse, sim, a voz de Sonny.)
— Tão sem nada, Delia… Sozinho e sem roupa, indo embora desse jeito,
sem nada, só com minha culpa… Sem seu perdão, sem seu perdão, Delia!
— Por que você está dizendo isso, Sonny?
— Porque não sei… Estou tão sozinho, tão privado de carinho, tão
estranho…
— Mas…
Como quem olha através da neblina, Delia olhava fixamente à frente, para
o relógio. Sete e vinte e nove; o ponteiro coincidia com a firme linha
anterior ao traço mais grosso da meia hora.
— Delia… Delia…!
— De onde você está ligando…? — ela gritou, inclinando-se sobre o
telefone, começando a sentir medo, medo e amor; e sede, muita sede, e
querendo pentear entre os dedos o cabelo escuro de Sonny, e beijá-lo na
boca. — De onde você está ligando…?
—…
— De onde você está ligando, Sonny?
—…
— Sonny…!
—…
— Alô, alô…! Sonny!
— Seu perdão, Delia…
O amor, o amor, o amor. Perdão, que absurdo já…
— Sonny… Sonny, venha…! Venha, estou à sua espera…! Venha…!
(“Deus. Deus…!”)
—…
— Sonny…!
—…
— Sonny! Sonny!!
—…
Nada.
Eram sete e trinta. O relógio mostrava. E a rádio: hi, hi. O relógio, a rádio
e Babe, que estava com fome e olhava para a mãe um pouco assombrado
com o atraso.
J
á vinham. Imaginara muitas vezes os passos, distantes e leves e depois
densos e próximos, retendo-se um pouco nos últimos metros como um
último vacilo. A porta se abriu sem que tivesse ouvido o rangido
familiar da chave; de tão atento que estava, esperando o instante de
levantar-se e enfrentar seus verdugos.
A frase se construiu em sua consciência antes que os lábios do prefeito a
modulassem. Quantas vezes havia suspeitado que somente uma coisa podia
ser dita naquele instante, uma simples e clara coisa que tudo continha.
Ouviu-a:
— Chegou a hora, Remi.
A pressão nos braços era firme mas sem maligna dureza. Sentiu-se levado
pelo corredor como se fosse a passeio, olhou desinteressado para algumas
silhuetas que se prendiam às grades e adquiriam no ato uma importância
imensa e tão terrivelmente inútil, a importância de ser silhuetas vivas que
ainda se moveriam por muito tempo. O recinto maior, nunca visto antes
(mas Remi o reconhecia na imaginação e era exatamente como o pensara),
uma escada sem corrimãos porque com ele ascendia o apoio lateral dos
carcereiros, e em cima, em cima…
Sentiu o redondo laço, soltaram-no bruscamente, ficou um instante
sozinho e aparentemente livre num grande silêncio repleto de nada. Então
quis adiantar-se ao que ia acontecer, como sempre e desde menino adiantar-
se ao fato por intermédio da reflexão; meditou no instante fulmíneo as
possibilidades sensoriais que o galvanizariam um segundo depois, quando
soltassem a escotilha. Cair num grande poço negro ou apenas a asfixia lenta
e atroz ou algo que não o satisfazia plenamente como construção mental;
algo defectivo, insuficiente, algo…
Enfadado, retirou do pescoço a mão com a qual havia fingido a corda
ensaboada; outra farsa idiota, outra sesta perdida por culpa de sua
imaginação doente. Endireitou-se na cama em busca dos cigarros pelo mero
fato de fazer alguma coisa; ainda estava com o gosto do último na boca.
Acendeu o fósforo, ficou olhando para ele até quase queimar os dedos; a
chama dançava em seus olhos. Depois se estudou em vão no espelho do
lavabo. Hora de tomar banho, ligar para Morella e marcar encontro na casa
da sra. Belkis. Outra sesta perdida; a ideia o atormentava como um
mosquito, afastou-a com esforço. Por que não acabava o tempo de varrer
aqueles ressaibos de infância, a tendência a imaginar-se personagem
heroico e forjar na modorra de fevereiro longas sequências em que a morte
o esperava ao pé de uma cidade murada ou no ponto mais alto de um
patíbulo? Quando criança: pirata, guerreiro gaulês, Sandokan, concebendo o
amor como um empreendimento em relação ao qual somente a morte
constituía troféu satisfatório. A adolescência, imaginar-se ferido e
sacrificado — revoluções da sesta, derrotas admiráveis nas quais algum
amigo dileto ganhava a vida em troca da dele! —, capaz sempre de entrar
na sombra pelo alçapão elegante de alguma frase extrema que adorava
compor, recordar, ter pronta… Esquemas já estabelecidos: a) A revolução
onde Hilario, da trincheira oposta, o enfrentava. Etapas: tomada da
trincheira, encurralamento de Hilario, encontro em clima de destruição,
sacrifício ao dar-lhe seu uniforme e deixá-lo partir, balaço suicida para
disfarçar as aparências. 2) Resgate de Morella (quase sempre impreciso);
leito de agonia — intervenção cirúrgica inútil — e Morella segurando suas
mãos e chorando; frase magnífica de despedida, beijo de Morella em sua
fronte suarenta. c) Morte diante do povo que circunda o cadafalso; vítima
ilustre, por regicídio ou alta traição, Sir Walter Raleigh, Álvaro de Luna etc.
Palavras finais (o rufar dos tambores apagou a voz de Luís XVI), o carrasco
diante dele, sorriso magnífico de desprezo (Carlos I), pavor do público
transmutado em admiração diante de semelhante heroísmo.
Acabava de voltar de um desses devaneios — sentado à beira da cama
continuava se olhando no espelho, ressentido — como se já não tivesse
trinta e cinco anos, como se não fosse idiota manter essas aderências de
infância, como se não estivesse demasiado quente para imaginar
semelhantes transes. Variante dessa sesta: execução privada, em alguma
prisão londrina onde se enforca sem muita testemunha. Final sórdido, mas
digno de ser saboreado lentamente; olhou o relógio e eram quatro e dez.
Outra tarde perdida…
Por que não conversar com Morella? Discou o número, sentindo que ainda
lhe restava o gosto ruim das sestas, e isso que não havia adormecido, apenas
imaginado a morte como tantas vezes em criança. Quando o fone foi
erguido do outro lado, Remi teve a impressão de que o “Alô” não estava
sendo dito por Morella, mas por uma voz de homem e que havia um
cochichar abafado quando ele respondia: “Morella?”, e depois sua voz
fresca e aguda, com o cumprimento de sempre, só que um pouco menos
espontâneo precisamente porque Remi sentia nele uma espontaneidade
desconhecida.
Da rua Greene até a casa de Morella eram dez quadras exatas. De carro,
dois minutos. Mas ele não lhe dissera: “Nos vemos às oito na casa da sra.
Belkis”? Quando chegou, quase se jogando do táxi, eram quatro e quinze.
Entrou na sala às carreiras, subiu para o primeiro andar, parou na frente da
porta de mogno (a da direita para quem vem da escada), abriu-a sem bater.
Ouviu o grito de Morella antes de vê-la. Lá estavam Morella e o tenente
Dawson, mas somente Morella gritou ao ver o revólver. Remi teve a
impressão de que o grito fosse dele, um berro quebrando-se de chofre em
sua garganta contraída.
O tremor do corpo cessava. A mão do executor verificou o pulso nos
tornozelos. As testemunhas já se afastavam.
1939
5. Puzzle
Para Rufus King
V
ocê havia feito as coisas com tanto capricho que ninguém, nem
mesmo o morto, poderia tê-lo culpado pelo assassinato.
À noite, quando as substâncias submergem numa identidade de
arestas e planos que somente a luz poderia desfazer, você
apareceu armado de uma faca curva, de lâmina vibrante e sonora, e se
deteve junto ao quarto. Escutou, e ao obter como réplica unicamente o
silêncio, empurrou a porta; não com a lentidão sistemática do personagem
de Poe, aquele que sentia ódio por um olho, mas com alegre decisão, como
quando entramos na casa da namorada ou nos apresentamos para receber
um aumento de salário. Você empurrou a porta, e só um motivo de
elementar precaução foi capaz de dissuadi-lo de assobiar uma melodia.
Que, convém dizer, teria sido “Gimiendo por ti”.
Ralph costumava dormir de lado, oferecendo um dos flancos aos olhares
ou às facas. Você se aproximou devagar, calculando a distância que o
separava da cama; à distância de um metro, estacou. A janela, que Ralph
deixava aberta para receber a brisa do amanhecer (e levantar-se para fechá-
la pelo mero prazer de dormir novamente até as dez), dava acesso aos
letreiros luminosos. Naquela noite Nova York estava ruidosa e cheia de
caprichos, e você achou graça em observar a competição que travavam, sem
quartel, as marcas de cigarros e os diferentes tipos de pneus.
Mas não era o momento para ideias humorísticas. Era preciso concluir
uma tarefa iniciada com alegre decisão, e você, afundando os dedos no
cabelo e jogando esse cabelo para trás, decidiu-se a dar uma punhalada em
Ralph, poupando-se de preliminares e mise-en-scènes.
De acordo com tal princípio, você pôs o pé direito no tapetinho vermelho
que assinalava a perfeita localização da cama de Ralph (é claro que um
passo mais à frente); esquecendo os cartazes luminosos, girou o torso para a
esquerda e, movendo o braço como se estivesse a ponto de dar uma tacada
de golfe, enterrou a faca na lateral de Ralph, alguns centímetros abaixo da
axila.
Ralph despertou no exato instante de morrer, e teve consciência de sua
morte. Isso não deixou de lhe dar satisfação. Você preferia que Ralph
compreendesse sua morte, e que a cessação de tão odiada vida tivesse outro
espectador diretamente interessado no fato.
Ralph deixou escapar um suspiro, depois um gemido, depois outro
suspiro, depois um borborigmo, e não ficou nada no ar capaz de alimentar a
dúvida de que a morte havia entrado junto com a faca e abraçava sua nova
conquista.
Você desenterrou a lâmina, limpou-a no lenço, acariciou suavemente o
cabelo de Ralph — numa ofensa premeditada — e foi até a janela.
Permaneceu um longo tempo inclinado sobre o abismo, olhando Nova
York. Olhava atentamente a cidade, com atitude de descobridor que se
antecipa visualmente à proa de seu navio. A noite era antipoética e
enluarada. Lá embaixo, com o império da cor e da hora e da distância,
silhuetas de automóveis recuperavam sua condição de escaravelhos e
vagalumes.
Você abriu a porta, fechou-a novamente e se foi pelo corredor com um
doce sorriso de anjo perdido fora dos dentes.
— Bom dia.
— Bom dia.
— Dormiu bem?
— Dormi. E você?
— Bem.
— Café da manhã?
— Aceito, irmãzinha.
— Café?
— Pode ser, irmãzinha.
— Bolacha?
— Obrigado, irmãzinha.
— Aqui está o jornal.
— Vou ler, irmãzinha.
— É estranho Ralph ainda não estar de pé.
— Muito estranho, irmãzinha.
Foi então que o senhor passou alguns acontecimentos em revista. Fez isso
aproveitando uma trégua no assédio policial.
O senhor se recordou de como ele era pesado. O senhor disse para si
mesmo que a destreza fora um fator importante na obtenção do resultado. O
corredor, o amanhecer. E o céu plúmbeo, carregado de cães ambulantes cor
de manteiga.
Seria preciso pintar alguma gaiola de pássaros, pronto. Comprar uma tinta
carmesim, ou melhor, vermelhão, ou melhor ainda, púrpura, embora talvez
a cor por excelência fosse o violeta, utilizando a calça e a camisa que agora
repousavam ao lado de uma coisa.
Segundo: o senhor pensou na necessidade de comprar areia, separá-la em
grande quantidade de pacotes de cinco quilos e levá-la até a casa. A areia
serviria para neutralizar decisões de ordem sensorial.
Terceiro: o senhor pensou que a tranquilidade de Rebeca devia ter origens
neuróticas e começou a se perguntar se, afinal de contas, não teria lhe
prestado um considerável favor.
Mas, é claro, essas eram coisas impossíveis de verificar com clareza.
— Adeus, sargento.
— Adeus, senhor.
— Feliz Natal, sargento.
— O mesmo digo eu, senhor.
A casa sozinha e seus dois ocupantes.
Rebeca pôs a tampa na panela da sopa. Bem vagarosamente. O senhor
estava na sala de jantar ouvindo rádio à espera da janta. Rebeca olhou para
a panela, depois para a travessa de salada, depois para o vinho. O senhor
criticava mentalmente Rudy Vallée.
Rebeca entrou com a bandeja e foi se sentar em seu lugar enquanto o
senhor fechava o receptor e ocupava a cadeira da cabeceira.
— Não voltou.
— Voltará.
— Talvez, irmãzinha.
— Por acaso você está duvidando?
— Não. Quer dizer, gostaria de não duvidar.
— Estou lhe dizendo que ele vai voltar.
O senhor se sentiu arrastado para a ironia. Era perigoso, mas o senhor não
ligava.
— Me pergunto se uma pessoa que não partiu… pode voltar.
Rebeca olhava para o senhor com uma fixidez inacreditável.
— É o que eu me pergunto.
O senhor não gostou nem um pouco dessa resposta.
— Por que você se pergunta isso, irmãzinha?
Rebeca olhava para o senhor com uma fixidez inacreditável.
— Por que supor que ele não partiu?
Seus cabelos da nuca estavam começando a ficar eriçados.
— Por quê? Por quê, irmãzinha?
Rebeca olhava para o senhor com uma fixidez inacreditável.
— Sirva a sopa.
— Por que eu é que devo servi-la, irmãzinha?
— Sirva você, esta noite.
— Está bem, irmãzinha.
Rebeca lhe passou a panela da sopa e o senhor a depositou a seu lado. Não
estava com o menor apetite, coisa que o senhor mesmo havia previsto.
Rebeca olhava para o senhor com uma fixidez inacreditável.
Então o senhor ergueu a tampa da panela. Foi erguendo devagar, tão
devagar quanto Rebeca ao colocá-la. O senhor sentia um estranho medo de
destampar a panela da sopa, mas entendia que se tratava de uma armadilha
de seus nervos. O senhor pensou em como seria bom estar longe, no térreo,
e não no último dos trinta andares, a sós com ela.
Rebeca olhava para o senhor com uma fixidez inacreditável.
E quando a tampa da panela ficou inteiramente erguida, e o senhor olhou
para dentro, e depois olhou para Rebeca, e Rebeca olhou para o senhor com
uma fixidez inacreditável, e depois olhou para dentro da panela, e sorriu, e
o senhor começou a gemer, e tudo resolveu dançar diante de seus olhos, as
coisas foram perdendo o relevo, e ficou unicamente a visão da tampa,
erguendo-se devagar, o líquido na panela, e… e…
Por aquela o senhor não havia esperado. O senhor era inteligente demais
para esperar aquilo. O senhor tinha inteligência de sobra e o excedente de
sua inteligência sentiu-se incapacitado para continuar vivendo no interior de
seu cérebro e resolveu sair em busca de uma escapatória. Agora o senhor
faz números e mais números, sentado no estrado. Ninguém consegue
arrancar uma só palavra do senhor, mas o senhor costuma olhar na direção
da janela como se esperasse ver anúncios luminosos, e depois adianta o pé
direito, gira o torso à maneira de quem se dispõe a dar uma tacada de golfe,
e enterra a mão vazia no vazio ar da cela.
1938
Histórias de Gabriel Medrano
1. Regresso da noite
A
dormecemos; só isso. Ninguém jamais dirá o instante em que as
portas se abrem para os sonhos. Naquela noite adormeci como
sempre, e como sempre tive um sonho. Só que…1
Naquela noite sonhei que me sentia muito mal. Que morria
devagar, fibra a fibra. Uma dor horrível no peito; e quando respirava, a
cama se transformava em espadas e vidros. Estava coberto de suor frio,
sentia aquele tremor pavoroso das pernas que uma outra vez, anos atrás…
Quis gritar, para que me ouvissem. Sentia sede, medo, febre; uma febre de
serpente, viscosa e gelada. Ao longe se ouvia o canto de um galo e alguém,
agoniantemente, assobiava pelo caminho.
Devo ter sonhado durante muito tempo, mas sei que minhas ideias ficaram
subitamente claras e que ergui o corpo no escuro, ainda trêmulo com o
pesadelo. É inexplicável a maneira como a vigília e o sonho continuam
entrelaçados nos primeiros momentos de um despertar, negando-se a
separar suas águas. Eu me sentia muito mal; não tinha certeza de que aquilo
tivesse acontecido comigo, mas também não conseguia suspirar aliviado e
voltar para um sono agora livre de espantos. Localizei a lâmpada de
cabeceira e creio que a acendi, pois os cortinados e o grande armário se
revelaram bruscamente a meus olhos. Tinha a impressão de estar muito
pálido. Quase sem saber como, me vi de pé, avançando para o espelho do
armário com um desejo de me olhar de frente, de afastar o horror imediato
do pesadelo.
Quando cheguei à frente do armário, alguns segundos se passaram até eu
entender que meu corpo não se refletia no espelho. Bem acordado, havia
sentido meu cabelo se arrepiar, mas nesse automatismo de todas as minhas
atitudes julguei simples explicação o fato de que a porta do armário
estivesse fechada e de que, por conseguinte, o ângulo do espelho não
chegava a me incluir. Com a mão direita abri a porta num gesto rápido.
E então me vi, só que não a mim mesmo. Ou seja, não me vi diante do
espelho. Diante do espelho não havia nada. Iluminada cruamente pela
lâmpada de cabeceira estava a cama e meu corpo jazia sobre ela, com um
braço nu pendendo até o chão e o rosto branco, sem sangue.
Creio que gritei. Mas minhas próprias mãos abafaram o brado. Eu não
ousava virar-me, acordar de uma vez. Em minha atonia, nem mesmo se
afirmava a absurda irrealidade daquilo. De pé diante do espelho que não
devolvia minha imagem, continuei olhando o que havia atrás de mim.
Compreendendo, pouco a pouco, que eu estava na cama e acabava de
morrer.
O pesadelo… Não, não fora isso. A realidade da morte. Mas como…
— Como…?
Não cheguei a formular a pergunta. Uma assombrosa sensação de coisa
inevitável, consumada, entrou na minha consciência. Pensei ver claro, tive a
sensação de que tudo ficava explicado. Mas não sabia o que era aquilo que
eu via claro nem como era possível que tudo ficasse explicado. Devagar,
afastei-me do espelho e olhei para a cama.
Era tão natural. Vi que estava deitado um pouco de lado e que tinha um
início de rigidez no rosto e nos músculos do braço. Meu cabelo derramado e
brilhante estava úmido de uma agonia que eu havia imaginado sonhar, de
desesperada agonia antes da anulação total.
Me aproximei do meu cadáver. Toquei uma das mãos e me repeliu seu
frio. Na boca havia um fio de espuma e gotas de sangue se inflamavam no
travesseiro disforme, torto, quase embaixo do ombro. O nariz, subitamente
afilado, exibia veias que eu desconhecera até ali. Compreendi tudo o que
havia sofrido antes de morrer. Meus lábios estavam apertados, cruelmente
duros, e por entre as pálpebras entreabertas me olhavam meus olhos verde-
azulados, com uma recriminação fixa.
Passei da calma para o estupor, brutalmente. Um segundo depois estava
refugiado no canto oposto ao que ocupava a cama, convulso e tiritante.
Minha severa tranquilidade, ali na cama, era quase um exemplo, mas eu não
sentia sobre mim as vergastadas da loucura e me aferrava ao medo como a
um socorro. Que aquilo fosse possível, que eu estivesse ali, a três metros de
meu corpo retraído em sua morte, que a noite e o pesadelo e o espelho e o
medo e o relógio marcando três e dezenove, e o silêncio…
Chega-se ao topo e é preciso descer. Meus nervos — meus nervos? —
ficaram frouxos; devagar, a calma me devolvia a uma dor suave, a um choro
que era como uma mão de amigo surgindo da sombra. Apertei aquela mão e
deixei-me ir, interminavelmente.
“Então, estou morto. Nada de investigações sobre o absurdo. Ali estou:
sou prova suficiente. Cada vez mais rígido e mais remoto. A mola tensa se
partiu e eis que estou sobre essa cama, entrecerrando os olhos diante da luz
que afasta a noite de sua presa. Morto. Nada mais simples. Morto. O que
isso tem de irreal, de pesadelo, de…? Morto. Que estou morto. Ergo o braço
de meu cadáver e o cubro. Ali estará melhor. Nada de perguntas. Tudo é
rigorosamente essencial e primitivo: esquema da morte. Sim, mas… Não,
nada de problemas; já sei, já sei que além de mim mesmo, morto na cama,
estou aqui, deste outro lado. Mas chega, chega disso; agora há outra coisa
em que pensar. Nada de perguntas. Uma cama comigo, morto. O resto é
simples; preciso sair daqui e avisar minha avó do ocorrido. Fazê-lo com
doçura, contar-lhe as coisas sem excessos, para que nunca fique sabendo de
minha angústia e de tudo o que sofri sozinho, sozinho na noite… Mas como
acordá-la, como dizer-lhe…? Nada de perguntas; o amor apontará os meios.
Preciso evitar o horror de sua entrada matinal, no café da manhã, o encontro
com o rígido espantalho crispado… Rígido espantalho crispado… Rígido…
Rígido espantalho crispado…”
Senti-me contente, de um contentamento triste. Era bom que tivesse me
acontecido aquilo. Minha avó merecia; era preciso prepará-la para o pior.
Docemente, com mimos de homem que vira menino ao lado da vasta cama
venerável.
“Preciso melhorar o aspecto desse rosto”, pensei antes de sair. Às vezes
minha avó se levantava no meio da noite, fazia longas inspeções pelos
aposentos. Eu deveria evitar que tivesse surpresas macabras; se ela entrasse
de repente e me surpreendesse ajeitando meu cadáver…
Fechei a porta à chave e me entreguei à tarefa, em paz comigo mesmo. As
perguntas, as horrendas perguntas se amontoavam em minha garganta mas
afastei-as brutalmente, estrangulando-as com estertores, sufocando-as em
negativas. E enquanto isso cuidava de minha tarefa. Estendi os lençóis,
alisei o acolchoado; meus dedos me pentearam grosseiramente até recolher
o cabelo e alisá-lo para trás. E depois, ah, depois fui corajoso! Modelei os
lábios de meu rosto convulso até conseguir com infinita paciência que
sorrissem… E fechei as pálpebras, comprimi-as até que obedecessem e meu
rosto tivesse assumido o semblante de um jovem santo que gozou seu
martírio. De um Sebastião, satisfeito de setas.
Qual seria a razão de todo aquele silêncio? E por que agora apontava uma
voz em minha lembrança, uma voz ouvida algum dia em lágrimas, a voz de
uma mulher negra cantando: “Sei que o Senhor pousou Sua mão sobre
mim”? Nada daquilo tinha o menor fundamento; simplesmente acontecia.
Imagem desgarrada, eu, em pé diante de meu corpo frio e cerimonioso,
morto com a falsa dignidade que minha destreza acabava de conferir-lhe.
“Oh, rio profundo, e agora é você na noite.” A voz da mulher negra que
chora e repete: “Rio profundo, meu coração está no Jordão”. — “E isto
continuará assim para sempre? Esta primeira noite será o espelho da
eternidade? Terá morrido o tempo no interior de meu cadáver? Prendem-no
essas mãos frouxamente abertas a seu abandono? Estaremos sempre assim,
meu corpo, a voz da mulher negra e minha consciência que pergunta e
pergunta?”
Mas estava ficando tarde; a reflexão me levou às dimensões de um dever a
cumprir. O tempo prosseguia; esse relógio o proclamava. Joguei para trás
uma mecha rebelde que insistia em voltar à fronte branquíssima de meu
cadáver e saí do quarto.
Andei pela galeria cheia de manchas cinzentas — quadros, bibelôs — até
chegar à porta do grande aposento onde minha avó repousava. Sua
respiração branda, um pouco entrecortada por soluços repentinos — como
eu conhecia aquela respiração, como ela me aconchegara numa infância
perdida, desmesuradamente distante e cinzenta! —, marcou o compasso de
meu avanço até a cama.
Então compreendi o horror do que ia fazer. Despertar a adormecida com
toda a doçura possível, roçando suas pálpebras com a ponta dos dedos,
dizer-lhe: “Vó, você precisa saber…”. Ou: “Entende, eu acabo de…?”. Ou
então: “Não leve o café da manhã para mim porque…”. Me dei conta de
que a demanda precipitava o mecanismo da mais abominável revelação.
Não, eu não tinha o direito de interromper um sono sagrado; não tinha o
direito de me adiantar à própria morte.
Vacilante, abalado, ia fugir — para onde, até quando? — e só consegui
deixar-me cair junto ao alto leito e afundar a testa no cobertor vermelho,
fundindo-me a ele e à noite, àquele sono profundo, maravilhoso, que minha
avó guardava sob as pálpebras. Queria surdamente erguer-me e voltar para
meu quarto, regressar do pesadelo ou confundir-me com ele até o fim. Mas
nisso ouvi uma exclamação temerosa e soube que minha avó percebia
minha presença no escuro. O silêncio teria sido monstruoso: era preciso
confessar ou mentir. (E lá, no meu quarto, aquilo à espera…)
— O que foi, o que foi, Gabriel?
— Nada, vó. Nada. Não é nada, vozinha.
— Por que você se levantou? Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu… (“Fale, fale. Ah, não, não conte agora, não conte nunca!”)
Ela havia se sentado na cama e aproximou a mão de minha testa. Tremi,
porque, se quando ela me tocasse… Mas a carícia foi suave como sempre e
compreendi que minha avó não havia percebido que eu estava morto.
— Você não está se sentindo bem?
— Não, não… É que não estou conseguindo dormir. Só isso. Não estou
conseguindo dormir.
— Fique aqui…
— Já estou me sentindo bem. Durma, vó. Vou voltar para minha cama.
— Beba água, a insônia passa…
— Está bem, vó, vou tomar. Mas durma, durma.
Já tranquila, ela se entregava a seu cansaço. Beijei sua testa, seus olhos —
naquele lugar onde era tão doce beijá-la —, e quando me levantei para sair,
com o rosto contraído pelas lágrimas, chegou até mim, de muito longe, a
voz da mulher negra, vinda de algum lugar antigo, querido e esquecido…
“Minha alma está ancorada no Senhor…”
É que não estou conseguindo dormir. A mentira se derreteu a meus pés
enquanto eu voltava por onde havia vindo. Ao chegar ao aposento tive um
momento de surda esperança. Tudo parecia claro, diferente. Bastaria eu
abrir a porta para dissipar os fantasmas. A cama vazia, o espelho fiel… e
uma paz de sonho até a manhã.
Mas lá estava eu, morto, à minha espera. O sorriso falsamente obtido me
recebeu, zombeteiro. E a mecha de cabelo caíra outra vez sobre a testa e
meus lábios já estavam distanciados de sua cor antiga, cinzentos e cruéis em
seu arco definitivo.
A presença odiosa me repeliu. Iluminado pela lâmpada de cabeceira de
rudes clarões, meu cadáver se oferecia em volumes espessos, inegáveis.
Senti que em minhas mãos despertava o desejo de me atirar na cama e
estraçalhar aquele rosto com unhas raivosas. Dei-lhe as costas numa
vertigem de lágrimas e me precipitei para a rua deserta, tingida de lua.
E então andei. Sim, então andei quadras e mais quadras pelos bairros de
meu povoado, deslizando por calçadas familiares. E o fato de sentir-me
longe de meu corpo jacente me devolveu uma falsa calma de resignado,
incutiu em minha consciência a serenidade inútil que convidava a meditar.
Assim caminhei interminavelmente, construindo sob a fria lua das altas
horas a teoria de minha morte.
E imaginei ter encontrado a justa verdade. “Adormeci e sonhei. Sem
dúvida minha própria imagem percorreu as dimensões inespaciais de meu
sonho; inespaciais e intemporais, dimensões únicas, estranhas a nossa
limitada prisão da vigília…”
Estava na praça, debaixo da velha tília.
“Despertei de repente, sabe-se lá por quê. De repente demais; nisso reside
a chave de minha atual condição. Por acaso não despertamos da morte?
Voltei com tanta rapidez a meu país humano que minha imagem — a do
sonho, aquela que naquele momento era recipiente de minha vida e de meu
pensar — não teve tempo de se virar… E assim se deu a divisão absurda,
minha surpresa de imagem onírica desgarrada de sua origem; e meu corpo,
obrigado a passar da pequena morte do repouso para a morte grande na qual
sorri agora.”
Surgia uma seta cinza nos paredões distantes.
“Ah, eu nunca deveria ter acordado tão bruscamente. Essa minha imagem
teria voltado a sua densa prisão de ossos e de carne; se eu tinha de morrer,
que morrêssemos juntos, sem passar por esse desdobramento cujo alcance
não consigo medir… A vida é o tempo! Por que essa ideia martela em
mim? A vida é o tempo! Mas este meu tempo de agora é mais horrível que
qualquer morte; é morte consciente, é assistir a minha própria
decomposição da cabeceira de um leito monstruoso…”
E a orquestra do amanhecer afinava seus cobres devagar.
“Ali fiquei, espaço absoluto; aqui estou, tempo vivo. Os quadros da
realidade se partiram! Meu cadáver é, já não sendo nada; enquanto eu só
atinjo o horror de meu não ser, tempo puro que não pode aplicar-se a forma
alguma, espectro que a manhã desnudará aos olhos sombrios das
pessoas…”
E já era quase dia.
“Posso ser visto? Sou invisível? Minha avó falou comigo, me acariciou.
Mas o espelho não quis refletir-me, permaneceu imutável. Quem sou eu?
Que fim terá essa farsa abominável?”
Verifiquei que estava outra vez diante das portas de casa. E um estridente
canto de galo mergulhou-me na angústia do imediato; era a hora em que
minha avó me levaria o café da manhã. A igreja disparava suas primeiras
setas para o céu; a hora em que minha avó entraria em meu quarto e me
encontraria morto. E eu, parado na rua, escutaria o berreiro, as primeiras
corridas, o estertor inexprimível da revelação consumada.
Não sei o que me deu. Entrei desabalado em meu quarto. A luz da manhã
brilhava muito branca sobre meu cadáver quando me agachei aos pés da
cama. Parecia-me já ouvir um ruído na galeria. Vó! Caí sobre mim mesmo
atracado àqueles ombros de mármore, agitando-me feito um louco,
apertando a boca contra meus lábios sorridentes, tentando reanimar aquela
rematada imobilidade. Apertei-me contra meu corpo, quis partir seus braços
com minhas garras, suguei desesperadamente a boca rebelde, quebrei meu
horror testa contra testa, até que meus olhos cessaram de ver, cegos, e o
outro rosto se perdeu numa névoa esbranquiçada, e restou apenas uma
cortina trêmula, e um arquejo, e uma aniquilação…
***
D
eixa cair as agulhas sobre o regaço. A cadeira de balanço se move
imperceptivelmente. Paula tem uma dessas estranhas impressões
que a acometem de quando em quando; a necessidade imperiosa
de apreender tudo o que seus sentidos possam captar em
determinado instante. Trata de ordenar suas intuições imediatas, de
identificá-las e transformá-las em conhecimento: movimento da cadeira de
balanço, dor no pé esquerdo, coceira na raiz do cabelo, gosto de canela,
canto do canário-flauta, luz violeta na janela, sombras roxas nos dois lados
do aposento, cheiro de coisa velha, de lã, de baralho de cartas. Mal
concluída a análise, é invadida por uma violenta infelicidade, uma opressão
física semelhante a um bolo histérico que lhe sobe à garganta e a impele a
correr, a ir embora, a mudar de vida; coisas em relação às quais basta uma
inspiração profunda, fechar os olhos por dois segundos e chamar a si
mesma de idiota para anular facilmente.
A juventude de Paula foi triste e silenciosa, como acontece nos povoados
com toda jovem que prefira a leitura aos passeios na praça, desdenhe
pretendentes regulares e se submeta ao espaço de uma casa como dimensão
suficiente de vida. Por isso, ao afastar agora os claros olhos do tricô — um
pulôver cinza simplíssimo —, acentua-se em seu rosto a sombria
conformidade daquele que obtém a paz graças a um moderado raciocínio e
não com a alegre desordem de uma existência total. É uma jovem triste,
boa, solitária. Tem vinte e cinco anos, terrores noturnos, certa melancolia.
Toca Schumann ao piano e às vezes Mendelssohn; não canta nunca, mas a
mãe, que já morreu, lembrava-se no passado de tê-la ouvido assobiar
mansamente quando estava com quinze anos, à tarde.
— De todo modo — articula Paula —, eu gostaria de estar com alguns
bombons, aqui.
Sorri diante do fácil e vantajoso intercâmbio de aspirações; sua horrível
ansiedade de fuga resumiu-se a um modesto capricho. Mas deixa de sorrir
como se lhe arrancassem o riso da boca: a lembrança da mosca se associa a
seu desejo, lhe traz um inquieto tremor às mãos vagas.
Paula tem dez anos. A lâmpada da sala de jantar salpica sua nuca e a curta
melena de chispas vermelhas. Por cima dela — que os percebe altíssimos,
remotos, impossíveis —, seus pais e o velho tio discutem questões
incompreensíveis. A negrinha criada depositou diante de Paula o fatal prato
de sopa. É preciso comer, antes que a testa da mãe se franza com desgosto
surpreso, antes que o pai, à sua esquerda, diga: “Paula”, e deposite nessa
singela nominação um velado universo de ameaças.
Comer a sopa. Não tomá-la: comê-la. É grossa, de sêmola morna; ela
odeia a massa esbranquiçada e úmida. Pensa que se o acaso trouxesse uma
mosca para precipitar-se no imenso charco amarelo do prato, receberia
permissão para suprimi-lo, seria salva do abominável ritual. Uma mosca
que caísse em seu prato. Nada além de uma pequena, mísera mosca opalina.
Intensamente, tem os olhos voltados para a sopa. Pensa numa mosca,
deseja-a, espera-a.
E então a mosca surge no exato centro da sêmola. Viscosa e lamentável,
arrastando-se alguns milímetros antes de sucumbir, queimada.
Retiram seu prato e Paula está a salvo. Mas jamais confessará a verdade;
jamais dirá que não viu a mosca cair na sêmola. Viu-a aparecer, o que é
diferente.
Ainda abalada pela lembrança, Paula se pergunta qual terá sido a razão de
não ter insistido, obtido a segurança do que suspeita. Tem medo: a resposta
é essa. Teve medo a vida inteira. Ninguém acredita em bruxas, mas se por
acaso encontram uma, matam. Paula guardou no vasto cofre de seus muitos
silêncios uma segurança íntima; alguma coisa lhe diz que pode. Deixou
partir a infância entre balbucios e esperanças; vê passar a juventude como
uma tristíssima guirlanda suspensa no ar por mãos vacilantes, desfolhando-
se devagar. Sua vida é assim; tem medo, gostaria de comer bombons. Os
pulôveres e casaquinhos se amontoam nos armários; assim como as toalhas
de mesa finamente desenhadas com motivos de Puvis de Chavannes. Não
quis adaptar-se ao povoado; Raúl, Atilio González, o pálido René são
testemunhas de outros tempos; quiseram-na, procuraram-na, ela sorriu para
eles ao repeli-los. Temia-os como a si mesma.
— De todo modo eu gostaria de estar com alguns bombons, aqui.
Está sozinha na casa. O velho tio joga bilhar no Tokio. Paula começa a
sentir a tentação, pela primeira vez intensa a ponto de dar-lhe náusea. Por
que não, por que não. Afirma perguntando, pergunta ao afirmar. Já é uma
coisa fatal, é preciso fazê-la. E como naquela vez, concentra seu desejo nos
olhos, projeta o olhar por cima da mesa baixa posicionada ao lado da
cadeira de balanço, toda ela se lança atrás de seu olhar até sentir de si
mesma uma espécie de vazio, um grande molde oco que antes ocupasse,
uma evasão total que a desgarra de seu ser, projeta-a em vontade…
E vê surgir pouco a pouco a materialização de seu desejo. Finas lâminas
rosadas, reflexos tênues de papel prateado com listras azuis e vermelhas;
brilho de hortelãs, de nozes polidas; escura concretização do chocolate
perfumado. Tudo isso transparente, diáfano; o sol que atinge a borda da
mesa percute na massa crescente, enche-a de translúcidas penetrações; mas
Paula projeta ainda mais a vontade em sua obra e no fim irrompe a
opacidade triunfante da matéria obtida. O sol é repelido em cada superfície
polida, as palavras das embalagens afirmam-se categóricas; e isso é uma
fina pirâmide de bombons. Praliné. Moka. Nougat. Rum. Khummel.
Maroc…
***
É de tarde, chove. Viver é triste numa casa solitária. Paula lê pouco, mal
toca o piano. Quer muito uma coisa, não sabe o quê. Quer muito não ter
medo, escapar. Pensa em Buenos Aires; talvez Buenos Aires, onde não a
conhecem. Talvez Buenos Aires. Mas sua razão lhe diz que enquanto levar
a si mesma consigo, o medo sufocará sua felicidade em todos os lugares.
Ficar, então, e ser passavelmente feliz. Criar para si mesma uma felicidade
doméstica, envolver-se com a satisfação de mil pequenos desejos, dos
caprichos minuciosamente destruídos na infância e na juventude. Agora que
pode, que pode tudo. Dona do mundo, se pelo menos se animasse a…
Mas o medo e a timidez comprimem sua garganta. Bruxa, bruxa.
Para as bruxas, o inferno.
As mulheres não têm toda a culpa. Se acreditam que Paula vende
secretamente seu corpo é porque para elas é incompreensível a origem de
tão insólito bem-estar. Por exemplo, a questão da casa de campo de Paula.
As roupas e o carro, a piscina, os cachorros elegantes e a estola de vison.
Mas o amante não vive no povoado, isso é certo; e Paula quase nunca se
afasta de sua residência. Existem homens assim pouco exigentes?
Ela colhe os olhares, reúne comentários da boca de alguns poucos amigos
de família que às vezes aparecem, com linguagem livre de perguntas, para
uma xícara de café. Sorri tristemente e diz que não se incomoda, que é feliz.
Seus amigos, antigos pretendentes convencidos do impossível, comprovam
toda essa felicidade no olhar de Paula. Agora se vê uma espécie de brilho de
fósforo em suas pupilas claras. Quando ela verte o chá nas xícaras
delicadas, seu gesto tem um tom triunfante, contido por uma personalidade
tímida que coíbe a si mesma a ostentação do que já obteve.
A sós, Paula recorda sua porfia de demiurgo; a lenta, meticulosa
realização dos desejos. O primeiro problema foi a casa; ter uma casa na
periferia do povoado com a comodidade que seu ócio reclamava. Procurou
o lugar, o ambiente; perto da estrada real, embora não tão perto assim.
Terras altas, águas sem sal. Criou dinheiro para adquirir o terreno e por
pouco não se confiou a um arquiteto para que construísse sua residência.
Contudo, retinha-a o temor de lidar com questões financeiras, acrescentar
suspeitas latentes a todo cumprimento, mais precisamente aos muitos
silêncios desdenhosos. Uma tarde, a sós em sua terra, pensou criar a casa
mas teve medo. Vigiavam-na, seguiam-na; num povoado, uma casa não
brota do nada. Era preciso recorrer ao arquiteto, então; Paula vacilava,
amedrontando-se diante de cada problema. Partir do povoado teria
encerrado tudo; isso e ser valente: os impossíveis.
Então fez uma coisa grande: criar não a casa, mas a construção da casa.
Dedicando-se noite e dia, conseguiu que a residência fosse edificada sem
despertar em ninguém as temidas reticências. Criou passo a passo a
construção de seu sítio, e, embora em certos dias tivesse se perguntado o
que fariam os operários ao concluí-la, teve no fim a satisfação de ver que
aqueles homens se iam em silêncio, contando seu dinheiro. Então entrou em
sua casa, que era verdadeiramente linda, e se dedicou a mobiliá-la pouco a
pouco.
Era divertido; pegava uma revista em busca de um ambiente que lhe
agradasse, escolhia o lugar exato e criava uma a uma aquelas imagens
prediletas. Teve gobelins; teve um tapete de Teerã; teve um quadro de
Guido Reni; teve peixes chineses, lulus-da-pomerânia, uma cegonha. Os
poucos amigos que apareciam na casa eram recebidos em aposentos muito
arrumados, de discreto gosto burguês; Paula os esperava cordialmente,
fazia-os visitar a casa e os jardins, mostrando-lhes os crisântemos e as
violetas; e como era a discrição em pessoa, as visitas tomavam seu chá e
abandonavam a residência sem descobrir nada de novo.
Compôs uma biblioteca com tomos cor-de-rosa, teve quase todos os
discos de Pedro Vargas e alguns de Elvira Ríos; chegou um momento em
que já quase nada desejava e somente seu capricho achou exercício em
alguma guloseima, um perfume novo, um tipo especial de peixe. Mas
depois Paula quis ter um homem que a amasse, e, embora tivesse vacilado
por muito tempo entre receber em seu leito qualquer dos fiéis pretendentes
e criar um ser que desempenhasse em tudo suas românticas visões de
antanho, compreendeu que não havia alternativa e que seria obrigada a
optar por esta última possibilidade. Um amante do povoado teria feito
perguntas, inquirido até descobrir, por trás do sorriso, o poder da bruxa. E
então teria sido o terror, a perseguição, a loucura.
Criou seu homem. Seu homem a amou. Era belo, elegante, chamava-se
Esteban, nunca queria sair de casa: era necessário que fosse assim. Já
inteiramente isolada de seus semelhantes, Paula negou o chá aos amigos e
eles pressentiram o governo de um macho na casa. Tristes de coração,
voltaram para o povoado.
Ela relembra agora sua porfia de demiurgo. Já é quase noite; Paula não está
triste e contudo há uma mão fria que se apoia em seu peito, cobrindo a
cavidade entre seus seios com uma firme opressão. “Estou cansada”, diz
para si mesma. “Tive que pensar tanto, que desejar tanto…” Compreende,
sem palavras, a tremenda fadiga de Deus. Também ela tem necessidade de
seu sétimo dia para ser inteiramente feliz.
Esteban se reclina a seu lado, olhando-a com profundos olhos negros;
sorri para ela, um pouco como um filho.
— Paula — murmura.
Ela acaricia o cabelo dele sem falar. É difícil não se sentir maternal com
aquele rapaz sensível demais, desprovido de todo vínculo humano,
integralmente dedicado à tarefa de adorá-la. Esteban não faz perguntas,
parece estar sempre à espera da voz dela. Melhor assim.
E de repente, como num distante acorde de cornes, Paula tem a fraca mas
nítida sensação de estar doente, de que vai morrer, de que o sétimo dia está
chegando sem postergação possível.
Quando os médicos voltam para o povoado, é bem pouco o que têm a dizer.
No dia seguinte é a mesma coisa. Na tarde do terceiro, o automóvel dos
médicos dá a volta na praça e se detém diante da funerária central.
É então que os amigos de Paula se veem na posição de ter de lutar contra
o rancor desatado de todo um povoado cristão. As esposas, as irmãs, os
professores de moral da família; há quem deseje que Paula apodreça na
solidão de sua casa, livre e abandonada como sua vida. O que é escolhido
neste mundo deve ser mantido no outro. E são poucos, apenas cinco
homens silenciosos os que comparecem à residência naquela noite para
velar o cadáver da amiga.
Os empregados da funerária e duas mulheres do sítio vizinho depositaram
a morta no caixão e montaram a capela-ardente. Os amigos encontram,
quase sem surpresa, Esteban. Veem-no pela primeira vez, apertam sua mão.
Esteban parece não entender, está sentado numa cadeira alta de espaldar
curvo, à direita do cadáver. De vez em quando se levanta, vai até Paula,
beija-a na boca; um beijo fresco, forte, que os amigos contemplam com
espanto. O beijo de um jovem guerreiro em sua deusa antes da batalha.
Depois Esteban volta para a cadeira e se imobiliza, olhando para a parede
por cima do caixão.
Paula morreu ao entardecer e já é meia-noite. Os amigos estão sós com ela
e Esteban. Lá fora faz frio e alguns pensam no povoado, nas bolsas de água
quente nas camas, nos boletins radiofônicos.
Num semicírculo olham Paula que jaz sem esforço, como se finalmente
liberada de uma carga superior a seus pequenos ombros que sempre
conservaram um pouco do formato infantil. As longuíssimas pestanas
projetam uma minúscula sombra sobre os pômulos cinzentos. Os médicos
disseram que sua morte foi lenta mas sem luta, como um fruto que
amadurece. E pelos cinco amigos passa, alternadamente, o mesmo
pensamento terno e batido: “Parece estar dormindo”.
Por que entra tanto frio no aposento? É repentino, em golfadas crescentes.
Talvez seja um frio que nasce de dentro, pensam os amigos; um frio que se
costuma sentir nos velórios. Um pouco de conhaque… E quando um deles
olha para Esteban, rígido em sua cadeira, sente uma espécie de horror que
aumenta de repente e lhe invade o cabelo, as mãos, a língua; através do
peito de Esteban vê as travessas do espaldar da cadeira. Os outros
acompanham seu olhar e ficam lívidos. O frio sobe, sobe como uma maré.
Para além da porta fechada ergue-se de chofre a massa espessa do bosque
de eucaliptos banhado pela lua; e eles compreendem que o veem através da
porta fechada. Agora são as paredes que cedem à paisagem do campo, ao
sítio vizinho, tudo sob uma luz crua de plenilúnio; e Esteban já não passa de
uma bolha de gelatina, belo e lamentável em sua cadeira que cede como ele
ao avanço do nada. Pelo teto entra um jato de luz prateada tirando a nitidez
dos clarões da capela-ardente. Pelas solas dos sapatos sentem agora os
cinco amigos filtrar-se uma umidade de terra fresca, com grama e trevos, e
quando olham uns para os outros, incapazes de pronunciar a primeira
palavra da revelação, já estão sozinhos com Paula, com Paula e com a
capela-ardente que se ergue despida no meio do campo, sob a lua inevitável.
1943
3. Mudança
A não ser que na verdade seja o mesmo quadro e que a luz do lustre,
incidindo em seu vidro com estranhos reflexos, esta noite lhe transforme os
lábios e os torne grossos e um pouco verdes. Do sofá tem-se uma visão
clara do retrato de tio Horacio, e Raimundo não se lembra de tê-lo visto
algum dia com aqueles lábios e aquela mão pendurada como um lenço
aberto, porque na verdade o retrato de tio Horacio está com as mãos nos
bolsos; somente um reflexo diferente do lustre do estúdio pode fingir aquela
mão branca e aqueles lábios quase verdes, sem falar que todo o ar do retrato
é de uma mulher, e não de tio Horacio.
Comentários de Atalaya, da BBC. Nada melhor que aqueles comentários
com a ardência quente do café que María, do outro lado do sofá, lhe
oferece. Raimundo o recebe agradecido, seus pés passeiam amplamente nas
pantufas agasalhadas e todo ele está confortável e abandonado, mas talvez
um pouco menos que em outras noites, que em outras noites da casa.
Alguém canta na cozinha a canção que sua mãe canta enquanto seca a
louça. É a mesma canção — “Rosas de Picardía”, pouquíssimas vezes
“Caminito” — e o mesmo jeito de cantar da mãe, só que a voz é mais rouca
e mais grave, talvez tenha tomado frio ao debruçar-se no balcão à tarde para
olhar a praça.
— Ande, vá dizer a mamãe que tome uma aspirina e cubra a garganta.
— Mas ela não tem nada — resmunga María, que lê o jornal na poltrona
baixa. — Tio Lucas passou por aqui hoje à tarde e achou que ela está ótima.
Deixa a xícara no pires e olha devagar para a irmã. Brincadeira dela, a
mãe só tem irmãos já falecidos. Agora disfarça atrás do jornal; melhor
acompanhá-la na toada e batê-la em esperteza.
— Pena que tio Lucas não seja médico. Se fosse, a opinião dele teria
algum valor.
— Não é médico mas sabe muito — diz a voz serena de María, e suas
mãos, que Raimundo achou maiores que as de María, sacodem de leve as
páginas do jornal.
— Ela me dá a impressão de estar afônica. E vovó, ainda não se deitou?
— Ah, ela se deita tarde, você sabe. Ainda vai tricotar um bom montão de
carreiras.
A brincadeira prossegue e Raimundo compreende que seria pouco
elegante frustrar o muito que María deve estar se divertindo. Como quando
eram pequenos e brincavam de imaginar-se adultos, casados, com filhos e
afazeres importantes. Dias e dias fazendo-se perguntas sobre os respectivos
lares, os cônjuges, a saúde de Raulito e Marucha… Até que um dia
brigavam ou o esquecimento vinha devolver-lhes uma infância sem
problemas. Curiosa — um pouco triste, até — aquela ressurreição em María
das antigas invenções; como se algum dia vovó tivesse sabido fazer tricô.
Agora ela está olhando para a porta e parece esperar por alguma coisa.
Moça esquisita, de repente penteia o cabelo que estava preso e o areja, e a
campainha toca num horário em que a campainha da casa jamais toca.
— Quem diabos pode ser? — murmura Raimundo.
María se ergueu e está ao lado da porta quando vira a cabeça para olhar
para ele.
— Nossa, como você está estranho! A zeladora, naturalmente.
Naturalmente nada, porque é inaudito que a zeladora suba naquele
horário. María recebe algumas cartas e a chave da caixa do correio, fecha a
porta com indiferença e olha as cartas uma por uma, inclinando-se na
direção do abajur, até quase tocar a cabeça de Raimundo com as mãos.
— Todas para mamãe — diz, decepcionada. — O Bebe não me
escreveu… Mas ele que espere carta minha, ah, ele que espere.
O vestido da mãe desaparece parcialmente sob um avental de cozinha que
ela justamente começa a retirar ao entrar no estúdio. Está com as mãos
avermelhadas pela água quente, sorri satisfeita e cansada. Recebe o maço de
cartas e as perde no interior de um grande bolso do qual sai uma espécie de
renda cor-de-rosa muito bonita mas que Raimundo não considera adequada
para um bolso; é como um pescoço transferido para o lugar do bolso. E no
pescoço? Muito simples, o tecido termina liso, apenas com uma bainha um
pouco franzida. Raimundo, que esteve se perguntando a quem María
chamaria de Bebe, pensa que a mãe entende de vestidos e lhe sorri quando
ela passa a seu lado.
— Cansado?
— Não, como sempre. Esta noite não há notícias interessantes.
— Que tal ouvirmos música?
— Está bem.
Move o dial, espera, escolhe, descarta. Onde está sua mãe? Onde se enfiou
María? Só vovó passa lentamente, se reclina na poltrona — ela que deveria
ir dormir cedo como mandou o dr. Ríos — e o observa atenta.
— Seu horário é muito longo, filhinho. Dá para perceber no seu rosto.
— O horário de sempre, vovó.
— Sim, mas é muito longo. Que música está tocando?
— Não sei, talvez seja de Nova York; um jazz. Tiro, se você quiser.
— Não, estou gostando muito; ótima, essa orquestra.
O hábito, pensa Raimundo. Mesmo as velhas gerações acabam aceitando
o que até a véspera — neste mesmo horário — lhes parecia abominável,
música de doidos, castigo do inferno. Impressiona-o ver como a avó está
forte e por nada neste mundo a mortificaria com a sugestão de que fosse se
deitar; se hoje à noite ela resolveu fazer o que teve vontade de fazer é sinal
de boa saúde e mente clara. Nem sequer admite um comentário para si
mesmo quando a vê inclinar-se para uma sacola pendurada na poltrona e
tirar um tricô preto, agulhas, olhar tudo aquilo com um profundo e absorto
ar de entendida. Por que estranhar? Os costumes da casa variam sem que
ele perceba; tantas horas no escritório, envolvido noite e dia com os
problemas da Contabilidade… Sente-se afastado, distante dos seus, pensa
que devem ter se passado semanas em que foi um mero autômato chegando
à noite, enfiando as pantufas, ouvindo a BBC e adormecendo no sofá. E
enquanto isso sua mãe cortava o vestido, María fazia as pazes com Bebe,
vovó aprendia a tricotar. Para que estranhar? No máximo podia estranhar ter
estado tão longe e ser tão diferente do que deveria ser, mostrar-se tão mau
filho, tão mau irmão. A vida tem dessas coisas e não se pode menosprezar
um escritório das Ferrovias do Estado. Ao fim e ao cabo, se alguma coisa se
altera em casa nem por isso ele pessoalmente precisa ser afetado pelo fato;
não é possível que estejam todos dependendo de sua vontade. E isso que as
alterações são simples detalhes, uma modificação na luz do lustre que altera
o retrato de tio Horacio, um amigo de sua irmã, a zeladora que inventa de
subir a correspondência vespertina, um bolso esquisito da mãe, a avó mais
vigorosa e sem aqueles ombros mirrados e fragílimos de antes. Detalhes,
coisas que têm de ir acontecendo numa casa.
— Lucía — diz do quarto a voz da mãe (é mesmo, está afônica).
— Já vou, mamãe — responde sem surpresa a voz de María.
4. Distante espelho
I feel like one who smiles, and turning shall remark,
Suddenly, his expression in a glass.
T.S. Eliot
A
pesar de tudo, a verdade é que acabei por dissuadi-los. São boas
pessoas e gostariam de me arrancar de minha solitária vida, levar-
me a cinemas e cafés, realizar em minha companhia intermináveis
voltas na praça central. Mas minhas negativas — que oscilam
entre o sorridente “não” e o silêncio — deram fim à solicitude que
demonstravam e há quatro anos levo aqui, bem no centro da cidade de
Chivilcoy, uma existência silenciosa e retirada. Por isso o que ocorreu no
dia 15 de junho será ouvido com benevolência por meus concidadãos, que
só verão no fato a primeira manifestação de uma neurose monomaníaca que
minha vida — tão pouco chivilcoyana — os leva a supor. Talvez estejam
certos; eu me limito a contar. É uma maneira de transferir definitivamente
para o passado, fixando-os, alguns acontecimentos que minha compreensão
só abrange exteriormente. E, além disso, seria tolice negá-lo, dá um bonito
conto.
Levo em Chivilcoy o que entendo como uma vida de estudos (e seus
habitantes, de isolamento). Pela manhã dou minhas aulas na Escola Normal,
até meio-dia ou um pouco mais; volto, sempre pelo mesmo itinerário, para a
pensão de d. Micaela, almoço na companhia de alguns bancários e logo em
seguida me adscrevo a meu quarto. Ali, iluminado pelo sol que a tarde
inteira incide sobre as duas altas janelas, preparo aulas até as três e meia e a
partir desse momento me considero plenamente dono de mim mesmo.
Posso, em outras palavras, estudar a gosto; abro a Bíblia de Lutero e fico
duas horas adentrando passo a passo o alemão, regozijando-me quando sou
capaz de ler um capítulo inteiro sem a ajuda de meu Cipriano de Valera. De
repente abandono a tarefa (há limites deliciosos do interesse que sinto
erguer-se em minha inteligência, e a eles reajo sem tardança), ponho água
para ferver enquanto acompanho um boletim vespertino da Rádio El
Mundo, e cevo cuidadosamente meu mate na jarrinha de louça que me
acompanha há tanto tempo. Tudo isso constitui, para usar a linguagem de
meus alunos da Escola, um “recreio”; nem bem esgotado o prazer do mate,
adentro com íntima complacência alguma outra leitura. Essa parte varia
com o tempo; em 1939 foram as obras completas de Sigmund Freud; em
1940, romances ingleses e norte-americanos, poesia de Eluard e Saint John
Perse; em 1941, Lewis Carroll (exaustivamente), Kafka e certos livros
indianos de Fatone; em 1942, a história da Grécia de Bury, as obras
completas de Thomas de Quincey e uma incrível bibliografia sobre Sandro
Botticelli, além de doze romances de François Carco empreendidos com o
propósito eminente de aperfeiçoar o argot; por fim, no corrente ano, estudo
paralelamente uma antologia de moderna poesia anglo-americana de Louis
Untermeyer, a história do Renascimento na Itália de John Aldington
Symonds e — absurda complacência — a série dos Césares romanos desde
o herói epônimo até o último capítulo de Anmiano Marcelino. Para essa
tarefa trouxe para casa — com a gentil aprovação da bibliotecária da Escola
— Tácito, Suetônio, os escritores da História Augusta e Marcelino. No
momento de escrever este texto cheguei a conhecer em detalhes a vida dos
imperadores até Probo; colada à parede de meu quarto há uma grande folha
de cartolina onde registro um por um os nomes daqueles romanos e as datas
de seus reinados. Procedimento menos mnemotécnico que divertido, e que
provoca (já o percebi regozijadamente) os surpresos olhares das filhas de d.
Micaela toda vez que vêm assear meu quarto.
“And such is our life.” Adicionarei, para total ilustração do ambiente em
que me movo, o pouco que resta de seus elementos: poemas em
avassaladora quantidade (quase todos meus, ai!), a quinta edição de
Noticias gráficas, algumas diversões noturnas como os programas da BBC
e da KGEI (San Francisco), uma garrafa de uísque Mountain Cream, um
quadro de papelão no qual arremesso com destreza um canivete e
estabeleço concursos com grandes prêmios que jamais ganho; reproduções
dos quadros de Gaughin, Van Gogh e Giotto, examinados com a mesma
falta de respeito da enumeração precedente. E algumas, muito poucas idas
ao cinema quando, por inexplicável equívoco, a empresa local exibe um
filme de René Clair, Walt Disney, Marcel Carné. Ninguém me visita, com
exceção de um professor que aparece às vezes e estranha reiteradamente
minha selvageria e alguns alunos que descobriram em mim um consultor
afetuoso, quem sabe um possível mas indefinidamente postergado amigo.
Entendo que meu relato manteve até agora o aspecto externo de um diário,
maneira elegante de submeter comptes rendues a biógrafos futuros, mas
talvez isso fosse necessário para que o possível leitor se surpreenda, como
eu o fiz, com a estranha sensação de isolamento que me tomou na tarde de
15 de junho. Existe um mal denominado claustrofobia; penso ser imune a
ele, e não a seu oposto. E apesar disso eu não conseguia isolar o ambiente
do que estava lendo, entender plenamente por que Cornélio chamou Pedro
no décimo capítulo da Apostelgeschichte. Avancei penosamente, lutando
contra um vazio interior, um desejo adoidado de fechar o livro e me lançar
rua afora para outro lugar que não fosse meu quarto. Eu me debatia com
esse combate duríssimo da alma com a própria alma e renunciava a
prosseguir a letra luterana — impossível entender isto, aliás tão simples:
“Darum habe ich mich nicht geweigert zu kommen…”, X, 29 — quando
uma coisa mais forte que eu me pôs o chapéu na mão e pela primeira vez
em muito tempo abandonei meu quarto e fui passear pelas ensolaradas ruas
do povoado.
Andar sem rumo é uma das coisas menos gratas para um espírito que, como
o meu, ama a ordem e a eficiência. O sol, contudo, me acariciava a nuca
com dedos dulcíssimos; e havia um ar com pássaros, uma atmosfera
propícia e moças bonitas que me olhavam sorrindo, talvez espantadas por
ver-me pestanejar sob aquela luz ofuscante das quatro da tarde. Percorri
ruas familiares, elencando calçadas e casas; a paz voltava a mim, mas sem
me incutir o desejo de regressar para o meu quarto, do qual já estava
separado por muitas ruas. Meu corpo tornava a sentir aquela impressão
deliciosa — tantas vezes desfrutada nas praias estivais — de dissolver-se
sob o sol, de fundir-se no ar azul e tornar-se incorpóreo, mantendo
unicamente o poder de sentir o morno, o azul-claro, o cômodo. Verão de
férias, definitivamente a minhas costas e havia quanto tempo! Mas a tarde
de outono era um consolo, quase uma promessa; e me senti leve, alegre por
ter saído, por abandonar-me ao demônio que assim me arrancasse dos textos
sagrados.
Tudo mudou ao chegar à esquina da Carlos Pellegrini com a Rivadavia,
que é onde se ergue o edifício do Banco da Província. Alguém conhece o
estado Tupac Amaru? Consiste numa diversão da alma e do corpo, em
sentir o desejo de fazer uma coisa e ao mesmo tempo seu oposto, de dobrar
para a direita e ao mesmo tempo para a esquerda. Assim, na esquina do
banco, eu planejava amavelmente prosseguir até a praça, a bela e espaçosa
praça de Chivilcoy, quando a rara atração que já me desgarrara de Cornélio
e Pedro me projetou, irresistível, pela rua Rivadavia, que se afastava sem
remédio da praça. E tive de seguir aquela rota melancólica, desprovida de
sol, deixando para trás as árvores e tantos hospitaleiros bancos de praça.
Recusei-me por um momento, mas a força aniquilava toda defesa; acho que
dei de ombros — gesto que meus amigos criticam com razão — e me deixei
levar, sentindo outra vez o ar morno da tarde e vendo ao longe como,
vespertinamente, as bordas das calçadas começavam a tingir-se de um fino
violeta.
“Puxa, a casa de d. Emilia. E se eu entrasse para cumprimentá-la?” Porque
d. Emilia é uma de minhas poucas amigas em Chivilcoy. Dá aulas de
línguas na Escola, tem a idade em que os sentimentos maternais superam
toda paixão temporal e gosta muito de mim, talvez porque eu seja
naturalmente simpático; certa vez apontou sua casa e me convidou para
tomar chá, convite que não aceitei na ocasião. Mas hoje à tarde… Quando
pensei no assunto pela segunda vez, meu dedo já estava apoiado na
campainha, no segundo pátio ouvia-se um som azedo e violento de
campainha, e eu, no meio do saguão, ficava pensando nas coisas que iria
dizer a d. Emilia para justificar minha insólita visita. Explicar-lhe que uma
força Tupac Amaru… impossível. A única solução era a burguesa: que
estava passando por ali, que ficara com vontade de etc. Enquanto isso,
continuava esperando, mas ninguém apareceu.
Toquei outra vez a campainha, que provavelmente dava para escutar em
qualquer lugar, inclusive da calçada do outro lado da rua. Então, enquanto
esperava, fiz uma coisa horrorosa: avancei pelo saguão com toda a
liberdade e entrei na sala como se estivesse entrando em minha própria
casa.
Como se…
Mas é que era mesmo a minha casa. Intuí isso quase sem surpresa, só com
uma coceirinha na raiz do cabelo. A sala estava mobiliada exatamente como
a sala de d. Micaela; e a porta da esquerda, a que sem dúvida dava para uma
sala, era minha porta, a que dava para meu quarto.
Fiquei parado na frente da porta, ainda com um restinho de independência
que poderia servir para projetar uma fuga imediata; e então ouvi alguém
tossir no interior do aposento.
Foi como antes, com a campainha; a mão se adiantou à vontade. A
maçaneta, tão familiar, cedeu à pressão e obtive acesso à sala. Só que não
era uma sala, mas meu aposento de trabalho. Inteira e absolutamente meu
aposento de trabalho. Tão inteira e absolutamente que, para dar-lhe a
perfeição total, lá estava eu sentado diante da mesa lendo a Bíblia de Lutero
posicionada em seu atril de madeira. Eu, vestindo o velho robe de listras
azuis e as pantufas quentinhas que havia ganhado de minha mãe naquele
outono.
Consegui pensar uma coisa, confessarei com toda a franqueza apesar de
seu viés literário e um tanto defensivo. “Por Deus, isto é LE HORLA.
Agora vai ser preciso dialogar etc.” E com tal pensamento chegou ao fim
meu papel ativo; tornei-me uma coisa imóvel em pé ao lado da porta,
assistindo ao desenrolar de uma cena cotidiana, em espectador atento, sem
medo por excesso de horror.
Vi-me consultar o dicionário de Pfohl e minha própria voz — alterada,
como nos discos — entoou majestosamente os versículos da Bíblia.
Cornélio chamava Pedro em sonoro alemão e este, depois de uma
gastronômica visão, acudia à casa de seu hóspede pregando a palavra do
Senhor; tudo isso, que havia ficado inconcluso quando eu saíra de minha
casa lá na casa de d. Micaela, agora prosseguia sem interrupção. De repente
me vi abandonar o livro, ligar o aparelho radiofônico; passei ao meu lado,
pus a chaleira com água para esquentar, e quando brotou da rádio uma
canção incaica assobiei-a amavelmente, arremedando bastante bem a
modulação nortista ad hoc. Tudo isso sem reparar em minha presença, sem
me conceder um olhar que fosse — não era LE HORLA, graças a Deus —,
num todo abstraído pelo ritual do mate doce e da música; ou bem com a
indiferença com que se espia para a própria imagem ao passar na frente de
um espelho. Fui forçado a ficar sabendo pelo rádio que os bombardeiros
Liberator haviam arrasado a ilha Pantelária, que o rei Jorge estava na
África, onde os soldados, ao descobri-lo, cantaram para ele “For He’s a
Jolly Good Fellow”, e que o general Pedro Pablo Ramírez estava disposto a
não permitir a especulação com artigos de primeira necessidade. Já era
quase noite, acendi a luz; posicionei a poltrona ao lado da mesa, tratei de
achar o primeiro volume de Renaissance in Italy, de Symonds, mergulhei
na leitura, sorrindo aqui e ali, fazendo anotações, protestando de repente
com veemência, outras vezes aderindo com manifesta complacência às
ideias do autor. E de repente — porque nesse horário costumo sentir a
bexiga cheia — larguei o livro na mesa, passei ao meu lado e saí do quarto.
O ator abandonava a cena; o espectador teve a coragem de fazer o mesmo,
mas na direção da rua e feito louco, recuperava subitamente a consciência
daquele rigoroso impossível.
1. Entendo que este conto pede um prelúdio adequado, no tom que os romancistas ingleses dão a seus romances de mistério. Um
acorde sombrio que se aloje na medula; uma luz cárdena. Também teria sido necessário explicar em detalhe a questão de meu
problema no coração e como, uma noite destas, de repente vou ficar com a última expressão pregada ao rosto, máscara. Mas perdi
a fé nas palavras e nos exórdios e mal afloro a linguagem para dizer essas coisas.
Prolegômenos à astronomia
1. Da simetria interplanetária
This is very disgusting.
Pato Donald
A
ssim que desembarquei no planeta Faros, os farenses me fizeram
conhecer o ambiente físico, fitogeográfico, zoogeográfico,
político-econômico e noturno de sua cidade capital, que eles
denominam 956.
Os farenses são o que aqui denominaríamos insetos; têm altíssimas patas
de aranha (supondo uma aranha verde, com pelos rígidos e excrescências
brilhantes de onde nasce um som ininterrupto, semelhante ao de uma flauta
e que, musicalmente conduzido, constitui sua linguagem); de seus olhos,
modo de vestir-se, sistemas políticos e procedimentos eróticos falarei em
outra ocasião. Acho que gostavam muito de mim; expliquei-lhes, mediante
gestos universais, meu desejo de aprender sua história e seus costumes; fui
acolhido com inegável simpatia.
Passei três semanas em 956; foi o suficiente para eu constatar que os
farenses eram cultos, amavam os poentes e os problemas de lógica. Faltava
conhecer sua religião, e para tanto solicitei dados com os poucos vocábulos
que possuía — pronunciando-os através de um apito de osso que fabriquei
com destreza. Me explicaram que professavam o monoteísmo, que o
sacerdócio ainda não havia perdido totalmente o prestígio e que a lei moral
determinava que fossem passavelmente bons. O problema atual parecia
consistir em Illi. Constatei que Illi era um farense com pretensões de
cinzelar a fé nos sistemas vasculares (“corações” não seria
morfologicamente correto) e que estava em vias de consegui-lo.
Levaram-me a um banquete que os notáveis de 956 estavam oferecendo a
Illi. Encontrei o heresiarca no alto da pirâmide (mesa, em Faros), comendo
e pregando. Ouviam-no com atenção, pareciam adorá-lo, enquanto Illi
falava e falava.
Eu só conseguia entender umas poucas palavras. Por meio delas passei a
ter Illi em alta conta. De súbito tive a sensação de estar vivendo um
anacronismo, de ter retrocedido às épocas terrestres em que se gestavam as
religiões definitivas. Lembrei-me do Rabbi Jesus. O Rabbi Jesus também
falava, comia e falava, enquanto os demais o escutavam com atenção e
pareciam adorá-lo.
Pensei: “E se esse aí também fosse Jesus? Não é novidade a hipótese de
que o Filho de Deus bem que poderia passear pelos planetas convertendo os
universais. Por que haveria de dedicar-se à Terra com exclusividade? Já não
estamos na era geocêntrica; concedamos-lhe o direito de desempenhar sua
dura missão em todos os lugares”.
Illi continuava doutrinando os comensais. Pareceu-me cada vez mais que
aquele farense podia ser Jesus. “Que tremenda tarefa”, pensei. “E
monótona, inclusive. Falta saber se os seres reagem igualmente em toda
parte. Será que o crucificarão em Marte, em Júpiter, em Plutão…?”
Homem da Terra, senti brotar em mim uma vergonha retrospectiva. O
Calvário era um estigma conterrâneo, mas também uma definição.
Provavelmente havíamos sido os únicos capazes de tamanha patifaria.
Cravar o filho de Deus num madeiro…!
Os farenses, para minha absoluta confusão, aumentavam as mostras de seu
carinho; prosternados (não tentarei descrever o aspecto deles), adoravam o
mestre. De repente tive a impressão de que Illi estava levantando todas as
patas ao mesmo tempo (e são dezessete as patas de um farense). Crispou-se
no ar e caiu de uma vez só sobre a ponta da pirâmide (da mesa).
Imediatamente ficou preto e em silêncio; perguntei, e me disseram que
estava morto. Parece que haviam envenenado a comida dele.
1943
2. Os limpadores de estrelas
Bibliografia: Isto nasceu de passar na frente de um comércio de
ferragens e ver uma caixa de papelão contendo algum objeto
misterioso com a seguinte legenda: Star Washers.
C
riou-se uma Sociedade com o nome de OS LIMPADORES DE
ESTRELAS.
Bastava ligar para o telefone 50-4765 para que na mesma hora
saíssem as brigadas de limpeza, equipadas com todos os implementos
necessários e munidas de ordens efetivas, que tratavam de pôr em prática
rapidamente; essa era, pelo menos, a linguagem empregada pela
propaganda da Sociedade.
Dessa forma, em pouco tempo as estrelas do céu readquiriram o brilho
que o tempo, os estudos históricos e a fumaça dos aviões haviam
empanado. Foi possível iniciar uma classificação mais legítima de
magnitudes, embora se tivesse comprovado, com alegria e surpresa, que
todas as estrelas, depois de submetidas ao processo de limpeza, pertenciam
às três primeiras. O que antes se tomara por insignificância — quem se
preocupa com uma estrela aparentemente situada a centenas de anos-luz?
— transformou-se em fogo solapado, à espera de recuperar sua legítima
fosforescência.2
Sem dúvida, a tarefa não era nada fácil. Nos primeiros tempos, sobretudo,
o telefone 50-4765 tocava ininterruptamente e os diretores da empresa não
sabiam como multiplicar as brigadas e confiar-lhes itinerários complicados
que, partindo da Alfa de determinada constelação, chegassem até a Kappa
no mesmo turno de trabalho, a fim de que um número considerável de
estrelas associadas ficasse simultaneamente limpo. Quando, à noite, uma
constelação refulgia de maneira inédita, o telefone era assediado por
miríades estelares incapazes de conter a inveja, dispostas a tudo desde que
se equiparassem às já atendidas pela Sociedade. Foi preciso recorrer a
subterfúgios diversos, tais como recobrir as estrelas já lavadas com
películas diáfanas que somente depois de algum tempo se dissolviam,
revelando seu brilho deslumbrante; ou bem aproveitar a época de densas
nuvens, quando os astros perdiam o contato com a Terra e ficavam
impossibilitados de chamar a Sociedade demandando limpeza. O diretório
comprou toda a ideia engenhosa destinada a melhorar os serviços e abolir
invejas entre constelações e nebulosas. Estas últimas, que só podiam valer-
se das vantagens de uma escovação enérgica e de um banho de vapor que as
libertasse das concreções da matéria, rotavam com melancolia, invejosas
das estrelas já integradas a sua forma esbelta. Não obstante, a diretoria da
Sociedade as consolou com prospectos elegantemente impressos nos quais
se especificava: “A escovação das nebulosas permite-lhes oferecer aos
olhos do universo a graça constante de uma linha em perpétua mutação, tal
como sonhada por poetas e pintores. Todas as coisas já definidas equivalem
à renúncia às outras múltiplas formas em que se compraz a vontade divina”.
As estrelas, por sua vez, não conseguiram evitar o desgosto que esse
prospecto produzia nelas, e foi necessário que a Sociedade oferecesse, à
guisa de compensação, um abono secular em que as várias limpezas eram
gratuitas.
Os estudos astronômicos sofreram uma crise tamanha que as precárias e
provisórias bases da ciência precipitaram sua estrepitosa bancarrota.
Imensas bibliotecas foram jogadas ao fogo e durante algum tempo os
homens puderam dormir em paz, sem pensar na falta de combustível, já
alarmante naquela época terrestre. Os nomes de Copérnico, Martín Gil,
Galileu, Gaviola e James Jeans foram apagados de panteões e academias;
em seu lugar, foram inscritos em letras garrafais e imorredouras os dos
fundadores da Sociedade. A Poesia também sofreu um abatimento
perceptível; hinos ao sol, agora em descrédito, foram galhofeiramente
desenterrados das antologias; poemas nos quais se mencionavam
Betelgeuse, Cassiopeia e Alfa Centauro caíram em estrondoso
esquecimento. Uma literatura fundamental, a da Lua, passou ao nada como
se tivesse sido varrida por vassouras gigantescas; a partir dali, quem se
lembrou de Laforgue, Júlio Verne, Hokusai, Lugones e Beethoven? O
Homem da Lua apoiou sua foice no solo e sentou-se sobre o Mar dos
Humores para chorar, longamente.
Por desgraça, as consequências de tamanha transformação sideral não
haviam sido previstas no seio da Sociedade. (Ou haviam sido e, movida
pelo afã do lucro, sua diretoria fingira ignorar o terrível futuro que
aguardava o universo?) O plano de trabalho encetado pela empresa se
dividia em três etapas sucessivamente levadas a cabo. Antes de mais nada,
atender aos pedidos espontâneos por meio do telefone 50-4765. Segundo,
reforçar as coqueterias graças a uma propaganda efetiva. Terceiro, limpar
de bom ou mau grado aquelas estrelas indiferentes ou modestas. Este
último item, acolhido por um clamor no qual se alternavam os protestos
com as vozes de estímulo, foi realizado de maneira implacável pela
Sociedade, ansiosa para que nenhuma estrela ficasse sem os benefícios da
organização. Durante um determinado tempo enviaram-se as brigadas
juntamente com tropas de assalto e instrumentos de cerco às áreas hostis do
céu. Uma após outra, as constelações recuperaram o brilho; o telefone da
Sociedade se cobriu de silêncio, mas as brigadas, movidas por um impulso
cego, prosseguiam seu mister incessante. Até que só restou uma estrela por
limpar.
Antes de emitir a ordem final, a diretoria da Sociedade subiu em cheio aos
terraços do arranha-céu — denominação adequadíssima — e contemplou
sua obra com orgulho. Todos os homens da Terra comungavam naquele
instante solene. Sem dúvida, jamais se vira semelhante céu. Cada estrela era
um sol de indescritível luminosidade. Já não se faziam perguntas como nos
velhos tempos: “Na sua opinião, ela é alaranjada, avermelhada ou
amarela?”. Agora as cores se manifestavam em toda a sua pureza, as
estrelas duplas alternavam seus raios em matizes únicos, e tanto a Lua como
o Sol apareciam confundidos na multidão de estrelas, invisíveis, derrotados,
desfeitos pela tarefa triunfal dos limpadores.
E só restava um astro por limpar. Era Nausicaa, uma estrela que raríssimos
sábios conheciam, perdida lá longe em sua falsa vigésima magnitude.
Quando a brigada concluísse sua tarefa, o céu estaria absolutamente limpo.
A Sociedade teria triunfado. A Sociedade desceria às sedes do tempo,
segura da imortalidade.
A ordem foi emitida. De seus telescópios, os diretores e os povos
contemplavam com emoção a estrela quase invisível. Um instante mais e
também ela viria somar-se ao concerto luminoso de suas companheiras. E o
céu seria perfeito, para sempre…
Um horrendo escarcéu, como se fossem vidros raspando um olho, ergueu-
se de repente no ar, desabrochando numa espécie de tremendo Yggdrasil
inesperado. A diretoria da Sociedade jazia por terra, comprimindo as
pálpebras com as mãos crispadas, e em todo o mundo as pessoas rolavam
pelo chão, abrindo caminho para os porões, para a treva, cegando-se uns aos
outros com unhas e com espadas para não ver, para não ver, para não ver…
A tarefa fora concluída, a estrela estava limpa. Mas sua luz, incorporando-
se à luz das demais estrelas atendidas pelos benefícios da Sociedade, já
ultrapassava as possibilidades da sombra.
A noite ficou instantaneamente abolida. Tudo ficou branco, o espaço
branco, o vazio branco, os céus pareciam um leito exibindo os lençóis, e
tudo se limitou a uma brancura total, soma de todas as estrelas limpas…
Antes de morrer, um dos diretores da Sociedade conseguiu separar um
pouco os dedos e olhar por entre eles: viu o céu inteiramente branco e as
estrelas, todas as estrelas, formando pontos negros. Lá estavam as
constelações e as nebulosas: as constelações, pontos negros, e as nebulosas,
nuvens de tempestade. E com elas o céu, inteiramente branco.
1942
O
bservando com atenção um mapa da Lua se notará que suas
“marés” e “rios” estão muito longe de comunicar-se entre si; pelo
contrário, guardam total reserva e perpetuam distraidamente a
lembrança de antigas águas. Vai daí que os professores ensinem a
seus boquiabertos discípulos que na Lua um dia houve bacias fechadas, e
com certeza nenhum sistema de vasos comunicantes.
Tudo isso ocorre por não dispormos oficialmente de informações sobre a
face oposta do satélite. Somente eu, ó dulcíssima Selene!, conheço teu
dorso de açúcar. Ali, na zona que o imbecil do Endimião teria podido
subjugar para sua própria delícia, os rios e mares se conjugavam outrora
numa vastíssima torrente, num estuário hoje pavorosamente seco e enxuto,
recoberto pelas ásperas crinas do sol, que o açoitam e devastam, verdade
que sem resultado algum.
Não temas, Astarte. Tua tragédia será gozo, tua pena e tua saudade; mas
eu a exporei lindamente, que aqui no planeta do qual dependes conta mais a
forma que a ética.3 Deixa-me narrar de que maneira nos antigos tempos teu
coração era um inesgotável manancial do qual fluíam os rios de voluptuosa
cintura, devoradores de montanhas, alpinistas amedrontados, sempre
encosta abaixo até todos se encontrarem, depois de petulantes evoluções, na
magna torrente de teu dorso que os conduzia ao OCEANO. Ao Oceano
multiforme, de cabeças e seios pleno!4
Acontecia a torrente de ampla envergadura, com águas já esquecidas de
adolescentes jogos. A Lua era donzela e seu rio tecia para ela uma trança
que lhe tombava pelo fino espaço entre as omoplatas, queimando-lhe com
fria mão a região onde os rins estremecem como potros sob a espora. Assim
e sempre, incessantemente a trança descia envolta em paisagens minerais,
assistida por grave complacência, já resumo de vastíssimas hidrografias.
Se na ocasião tivéssemos podido vê-la, se na ocasião não houvéssemos
estado entre o feto e o pterodáctilo, primeiros estágios na direção de uma
condição melhor, que prodígio de prata e espuma nos teria resvalado pelos
olhos. Verdade que a torrente coletora, a Magna, fluía sobre a face oposta à
Terra. Mas e os mares entre montanhas, os estupendos circos então
preenchidos por sua substância flexível? E a reverberação das ondas,
aplaudindo a própria arquitetura? Água surpreendente! Depois de mil
castelos e coberturas efêmeras, depois de regatas e bolos de casamento e
grandes demonstrações navais diante das rochas aferradas a sua sinecura, a
teoria rumorosa se encaminhava para o magno estuário do outro lado,
organizando suas legiões.
Deixa que eu diga isto aos homens, Selene cadenciosa; aquelas águas
eram habitadas por uma raça celeste, de fusiforme contextura, de hábitos
benignos e coração sempre transbordante. Conheces os delfins, leitor? Sim,
do parapeito do transatlântico, uma plateia de cinema, os romances
náuticos. Eu te pergunto se os conheces intimamente, se pudeste alguma
vez interrogar a esfera melancólica de suas vidas aparentemente tão
alegres.5 Eu te pergunto se, superando a fácil satisfação proporcionada
pelos textos de zoologia, olhaste um delfim exatamente no centro dos
olhos…
Pelas águas da grande torrente desciam pois os selenitas, seres avessos a
toda evidência excessiva, livres também de comparação e de nomes,
nadadores e lotógrafos. Diferentemente dos delfins, não saltavam sobre as
águas, seus lombos indolentes ascendiam com a pausa das ondas, suas
pupilas vidradas contemplavam em perpétua maravilha a sucessão de
vulcões fumegantes da margem, os glaciares cuja presença anunciava de
súbito no frio das águas algo como mãos viscosas em busca do ventre por
baixo e furtivamente. E então fugiam dos glaciares em busca da tepidez que
a torrente conservava em suas profundas capas de áspero azul.
Isto é o mais triste de contar; isto é o mais cruel. Que a torrente coletora
um dia esquecesse sua fidelidade a um leito, que por sobre a curvatura fácil
da Lua criasse uma úmida tangente de rebeldia, que se deslocasse apoiada
no ar espesso rumo ao espaço e à liberdade… como narrá-lo sem sentir nas
vértebras um acorde de ácida dissonância?6 Por sobre o ar se afastava a
torrente, projetando-se um trajeto de definido motim, levando consigo as
águas da Lua dilacerada de assombro, repentinamente nua e sem carícias.
Pobres selenitas, pobres tépidos e amáveis selenitas! Sumidos nas águas,
nada sabiam de sua sideral derrota; tão somente um, abandonado por ter
ficado para trás, repentinamente só e enxuto no meio do leito da grande
torrente, tinha condições de lamentar tão incerto destino. Longo tempo
ficou o selenita vendo a torrente afastar-se pelo espaço. Não ousava separar
dela seus olhos porque ela minguava por momentos e parecia não mais que
uma lágrima no alto do céu. Depois o tempo girou sobre seu eixo e a morte
foi chegando devagar até apoiar suavemente a mão sobre a testa abaulada
do abandonado. E a partir daquele instante a Lua começou a ser tal como a
descrevem os tratados.
A invejosa Terra — oh, Selene, digo-o embora te oponhas por temor a um
castigo mais severo! — era a culpada. Concentrando inúmeras reservas de
sua força de atração no topo do Kilimanjaro, fora ela, planeta infecto, que
arrancara da Lua sua trança poliforme. Agora, aberta de par em par a boca7
num esgar sedento, esperava a chegada da vasta torrente, ansiosa por
enfeitar-se com ela e esconder sob o líquido cosmético a feiura que nós,
seus habitantes, conhecemos de sobra.
Digo alguma coisa mais? Triste, triste é assistir à chegada daquelas águas
que se esparramaram no chão com um estalo opaco para depois se espalhar
como babas de vômito, sujas da escória primitiva, apoquentando-se nos
abismos de onde o ar fugia com horrendos estampidos… Oh, Astarte,
melhor calar agora mesmo; melhor é debruçar-se no parapeito dos navios
quando a noite é tua, olhando os delfins que saltam como piões e voltam
para o mar, reiteradamente saltam e regressam para sua prisão. E ver,
Astarte tristíssima, como os delfins saltam por ti, à tua procura, chamando-
te; como se parecem com os selenitas, raça celeste de fusiforme contextura,
de hábitos benignos e coração sempre transbordante. Transbordante agora
de suja ressaca e somente com a luz de tua imagem, que em pequeníssima
pérola fosforesce para cada um deles no mais fundo de sua noite.
1942
4. Estação da mão
Para Gladys e Sergio Sergi
D
eixava-a entrar à tarde, abrindo um pouco para ela a folha de
minha janela que dá para o jardim, e a mão descia suavemente
pelas bordas da escrivaninha, apoiando-se de leve na palma, os
dedos soltos e com ar de distraídos, até vir pousar imóvel sobre o
piano, ou sobre a moldura de um retrato, ou às vezes sobre o tapete cor de
vinho.
Eu amava aquela mão porque ela não tinha nada de voluntariosa mas sim
muito de pássaro e de folha seca. Será que ela sabia alguma coisa sobre
mim? Sem titubear, todas as tardes chegava à janela, às vezes depressa —
com sua pequena sombra que de súbito se projetava sobre os papéis — e
parecendo insistir para que eu abrisse; e outras lentamente, galgando os
degraus da hera onde, à força de escalá-la, abrira um caminho profundo. As
pombas da casa a conheciam bem; era frequente eu escutar pela manhã um
arrulho ansioso e continuado, e era que a mão andava pelos ninhos,
encolhendo-se no formato adequado para conter os peitos de giz das mais
jovens, a pluma áspera dos machos enciumados. Amava as pombas e as
jarras de água fresca; quantas vezes a encontrei à borda de um copo de
vidro, com os dedos levemente molhados na água que se comprazia e
dançava. Nunca a toquei; compreendia que isso teria significado desatar
cruelmente os fios de acontecimentos misteriosos. E por muitos dias a mão
percorreu minhas coisas, abriu livros e cadernos, apoiou o indicador — com
o qual sem dúvida lia — sobre meus poemas mais belos e os foi aprovando
um a um.
O tempo ia passando. Os sucessos exteriores aos quais minha vida tinha
de submeter-se com dor começaram a ondular como curvas que só me
atingiam de raspão. Deixei de lado a aritmética, vi meu terno mais
impecável cobrir-se de musgo; agora era raro que saísse de meu quarto, à
espera pausada da mão, vigiando com ansiedade o primeiro — e mais
distante e fundo — roçagar na hera.
Dei-lhe nomes; gostava de chamá-la de Dg, porque era um nome só para
ser pensado. Instiguei sua provável vaidade deixando anéis e pulseiras sobre
as estantes, espiando sua atitude com secreta persistência. Várias vezes
acreditei que se enfeitaria com as joias, mas ela as estudava dando voltas
em torno delas e sem tocá-las, ao modo de uma aranha desconfiada; e,
embora um dia tivesse chegado a enfiar no dedo um anel de ametista, foi só
por um instante e logo o abandonou como se ele a queimasse. Dei-me
pressa em esconder as joias em sua ausência e desde então me pareceu estar
muito mais satisfeita.
Assim se sucederam as estações, umas esbeltas e outras com semanas
cingidas por luzes violentas, sem que suas chamadas canhestras chegassem
até nosso âmbito. Todas as tardes a mão voltava, muitas vezes molhada
pelas chuvas outonais, e eu a via posicionar-se de costas sobre o tapete,
secar cuidadosamente um dedo com o outro, às vezes com saltos miúdos de
coisa satisfeita. Nos entardeceres de frio sua sombra se tingia de roxo.
Nesses dias eu instalava um braseiro a meus pés e ela se agachava e mal se
movia, exceto para receber, displicente, um álbum com gravuras ou um
novelo de lã que gostava de enodar e retorcer. Era incapaz, logo percebi, de
ficar quieta por muito tempo. Um dia encontrou uma gamela com argila e se
precipitou sobre a novidade; passou horas e horas modelando a argila
enquanto eu, de costas, fingia não ligar para sua tarefa. Naturalmente,
modelou uma mão. Deixei-a secar e a pus sobre a escrivaninha para provar-
lhe que sua obra era de meu agrado. Mas era um erro: como todo artista, Dg
acabou se incomodando com a contemplação daquela outra mão rígida e um
tanto crispada. Quando a retirei do quarto, ela fingiu, por pudor, não haver
notado.
Em pouco tempo meu interesse se tornou analítico. Cansado de
maravilhar-me, eu quis saber; e é esse o invariável e funesto fim de toda
aventura. Surgiam as perguntas acerca de minha hóspede: vegeta, sente,
compreende, ama? Imaginei testes, estabeleci contatos, preparei
experiências. Percebera que a mão, embora capaz de ler, jamais escrevia.
Uma tarde abri a janela e depositei sobre a mesa um lápis e folhas brancas,
e quando Dg entrou, saí de perto para deixá-la livre de toda timidez. Vi pela
fechadura que ela dava seus passeios de sempre e depois, vacilante, ia até a
escrivaninha e empunhava o lápis. Ouvi o arranhar da pena e depois de
algum tempo ansioso entrei na peça. Sobre o papel, em diagonal e com letra
desenhada, Dg escrevera: Esta resolução anula todas as anteriores até nova
ordem. Nunca mais consegui que ela tornasse a escrever.
Transcorrido o período de análise, comecei a gostar de Dg de verdade.
Amava seu jeito de olhar as flores dos púcaros, sua rotação compassada em
torno de uma rosa, aproximando a ponta dos dedos até roçar as pétalas, e
aquela maneira de deixar a palma côncava para envolver uma flor, sem
tocá-la, quem sabe sua maneira de aspirar a fragrância. Uma tarde em que
eu cortava as páginas de um livro recém-comprado, observei que Dg
parecia secretamente desejosa de me imitar. Então saí em busca de mais
livros e pensei que talvez ela gostasse de formar sua própria biblioteca.
Encontrei curiosas obras que pareciam escritas para mãos, assim como
outras para lábios ou cabelos, e também adquiri um punhal diminuto.
Quando pus tudo sobre o tapete — seu lugar preferido —, Dg verificou com
sua cautela costumeira. Parecia temer o punhal, e só alguns dias depois
resolveu tocá-lo. Eu continuava cortando meus livros para incutir-lhe
confiança, e uma noite (já falei que ela só se retirava ao alvorecer, levando
suas sombras consigo?) ela começou a abrir seus livros e a separar as
páginas. Não tardou a empenhar-se com destreza extraordinária; o punhal
entrava nas carnes brancas ou opalinas com graça cintilante. Concluída a
tarefa, punha o corta-papel sobre uma prateleira — onde havia acumulado
objetos de sua preferência: lãs, desenhos, fósforos usados, um relógio de
pulso, pequenos montes de cinza — e descia para deitar-se de bruços no
tapete e dar início à leitura. Lia a grande velocidade, roçando as palavras
com um dedo; quando dava com gravuras, jogava-se inteira sobre a página
e dava a impressão de estar adormecida. Percebi que minha seleção de
livros fora acertada; ela voltava diversas vezes a certas páginas (Étude de
Mains, de Gautier; um remoto poema meu que começa: “Poder tomar tuas
mãos…”; Le Gant de Crin, de Reverdy), e posicionava fiapos de lã para
recordá-las. Antes de partir, comigo adormecido em meu sofá, guardava
seus volumes num pequeno móvel que lhe destinei para esse fim; e nunca
encontrei nada fora do lugar ao despertar.
Dessa maneira sem razões — plenamente baseada na simplicidade do
mistério — convivemos por um tempo de estima e correspondência. Toda
indagação superada, toda surpresa abolida, que situação de total perfeição
nos continha! Nossa vida, assim, era uma louvação sem destino, canto puro
e jamais pressuposto. Dg entrava por minha janela e com ela ingressava o
absolutamente meu, por fim resgatado da limitação dos parentes e das
obrigações, recíproco em minha vontade de dar satisfação àquela que de tal
forma me libertava. E vivemos assim, por um período que eu não saberia
precisar, até que a sanção do real veio incidir em minha fraqueza, dorido de
ciúme por tanta plenitude fora de suas prisões pintadas. Uma noite sonhei:
Dg se apaixonara por minhas mãos — pela esquerda, sem dúvida, pois ela
era destra — e se valia de meu sonho para raptar a amada, cortando-a de
meu punho com o punhal. Acordei aterrado, compreendendo pela primeira
vez a loucura de deixar uma arma em poder daquela mão. Saí em busca de
Dg, ainda combalido pelas turvas águas de minha visão; ela estava
agachada no tapete e na verdade parecia atenta aos movimentos de minha
esquerda. Levantei-me e fui guardar o punhal onde ela não poderia alcançá-
lo, mas depois me arrependi e o trouxe outra vez, recriminando-me
amargamente. Ela parecia desencantada e estava com os dedos entreabertos
num misterioso sorriso de tristeza.
Sei que ela não voltará mais. Aquele comportamento tão inábil introduziu
em sua inocência a altivez e o rancor. Sei que ela não voltará mais! Por que
me criticar, pombas, invocando lá no alto a mão que não regressa para
acariciá-las? Por que toda essa movimentação, rosa de Flandres, se ela já
nunca mais te incluirá em suas dimensões esmeradas? Fazei como eu, que
voltei a fazer contas, a vestir minha roupa, e que passeio pela cidade o perfil
de um morador correto.
1943
2. Em novembro de 1942, o dr. Fernando H. Dawson (do Observatório Astronômico da Universidade de La Plata) anunciou com
estardalhaço ter descoberto uma “nova” localizada a 8h.9 ½ de ascensão em linha reta e 35º12’ de declínio austral, “sendo a
estrela mais brilhante da região situada entre Sírio, Canopus e o horizonte” (La Prensa, 10 de novembro, p. 10). Angélicas
criaturas! A verdade é que se tratava do primeiro teste — secreto, naturalmente — da Sociedade.
3. Graças sejam dadas ao Senhor.
4. Hommage à Hésiode.
5. “Os delfins executam saltos que se prestam a imaginá-los sumamente brincalhões…” (Jonathan Thorpe, Foam and Ashes). “Os
delfins, tristes como uma boca pousada sobre um espelho…” (Francis de Mesnil, Monotonies).
6. Hommage à Lautréamont.
7. Aquilo que o palerma do Magalhães chamou de oceano Pacífico.
Para Paco, que gostava de meus contos
Casa tomada
G
ostávamos da casa porque além de espaçosa e antiga (hoje que as
casas antigas sucumbem à venda sumária, mais vantajosa, dos
materiais que as compõem) ela guardava as lembranças de nossos
bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a infância.
Irene e eu nos acostumamos a persistir sozinhos nela, o que era uma
loucura pois naquela casa podiam morar oito pessoas sem aperto. Fazíamos
a limpeza pela manhã, levantando às sete, e por volta das onze eu deixava
Irene tomando conta dos últimos aposentos e ia para a cozinha.
Almoçávamos ao meio-dia, sempre pontuais; não restava mais nada por
fazer, fora uns poucos pratos sujos. Sentíamos prazer em almoçar pensando
na casa profunda e silenciosa e em como dávamos conta de mantê-la limpa.
Uma vez ou outra até imaginamos que ela é que não nos deixara casar. Irene
recusou dois pretendentes sem maiores motivos; de meu lado, María Esther
morreu antes que chegássemos a nos comprometer. Entramos nos quarenta
anos com a ideia não explicitada de que nosso simples e silencioso
casamento de irmãos era o fecho necessário da genealogia estabelecida
pelos bisavós em nossa casa. Algum dia morreríamos ali, incertos e
esquivos primos ficariam com a casa e a poriam abaixo para enriquecer
com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos daríamos cabo dela
justiceiramente antes que fosse tarde demais.
Irene era uma moça nascida para não incomodar ninguém. Tirando sua
atividade matinal, passava o resto do dia tricotando no sofá de seu quarto.
Não sei por que tricotava tanto, acho que as mulheres tricotam quando
encontram nessa atividade o grande pretexto para não fazer nada. Irene não
era assim, tricotava coisas sempre necessárias, pulôveres para o inverno,
meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e
depois o desmanchava bem depressa por não gostar de alguma coisa; era
divertido ver no cesto a montanha de lã crespa resistindo a perder a forma
mantida durante algumas horas. Nos sábados eu ia até o centro da cidade
comprar lã para Irene; ela confiava em meu gosto, aprovava as cores e
nunca foi preciso devolver uma só meada. Eu aproveitava aquelas saídas
para dar uma volta pelas livrarias e perguntar inutilmente se havia alguma
novidade em literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada que prestase
à Argentina.
Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não
tenho importância. Me pergunto o que Irene teria feito sem o tricô. É
possível reler um livro, mas quando um pulôver fica pronto não dá para
repeti-lo sem provocar comentários. Um dia encontrei a gaveta de baixo da
cômoda de canforeira cheia de xales brancos, verdes, lilases. Estavam com
naftalina, empilhados como numa loja; faltou-me coragem para perguntar a
Irene o que pretendia fazer com eles. Não tínhamos necessidade de ganhar a
vida, todos os meses chegava o dinheiro dos campos e a quantia aumentava.
Mas Irene só achava graça em tricotar, mostrava uma destreza maravilhosa
e eu passava horas vendo suas mãos que pareciam ouriços prateados,
agulhas indo e vindo e um ou dois cestinhos no chão, onde os novelos
trepidavam incessantemente. Era lindo.
Ficará para sempre com nitidez em minha memória porque foi simples e
sem circunstâncias inúteis. Irene tricotava em seu quarto, eram oito da noite
e de repente tive a ideia de pôr a chaleira no fogo para esquentar água para
o mate. Segui pelo corredor até diante da porta de carvalho entreaberta e ia
virando para me dirigir à cozinha quando ouvi um barulho na sala de jantar
ou na biblioteca. O barulho chegava impreciso e surdo, como uma cadeira
que cai sobre o tapete ou um sussurro abafado de pessoas conversando.
Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, ao fundo do
corredor que levava daqueles aposentos até a porta. Me joguei de encontro à
porta antes que fosse tarde demais, fechei-a de golpe apoiando o corpo;
felizmente a chave estava na fechadura de nosso lado da porta; para maior
segurança, passei o ferrolho.
Fui até a cozinha, esquentei água, e quando voltei com a bandeja do mate
falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. A parte do fundo foi tomada.
Ela deixou cair o trabalho e olhou para mim com graves olhos cansados.
— Tem certeza?
Confirmei com a cabeça.
— Então — disse ela recolhendo as agulhas — teremos de viver deste
lado.
Eu cevava o mate com muito cuidado, mas ela demorou um pouco a
retomar o tricô. Lembro-me de que estava fazendo um colete cinza; eu
gostava daquele colete.
Nos primeiros dias achamos penoso porque ambos havíamos deixado na
parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura
francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene sentia falta de
certas toalhinhas e de um par de pantufas que muito a agasalhavam no
inverno. Eu pensava em meu cachimbo de zimbro e acho que Irene se
lembrou de um frasco muito antigo de Hesperidina. Era frequente (mas isso
só aconteceu nos primeiros dias) fecharmos uma gaveta das cômodas e
olharmos tristemente um para o outro.
— Não está aqui.
E era mais uma de todas as coisas que havíamos deixado do outro lado da
casa.
Mas também tivemos proveitos. A limpeza se simplificou tanto que
mesmo nos levantando muito tarde, às nove e meia por exemplo, antes das
onze já estávamos de braços cruzados. Irene se habituou a ir comigo para a
cozinha e ajudar na preparação do almoço. Pensamos bem, e ficou decidido
o seguinte: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia pratos que
comeríamos frios, à noite. Ficamos felizes porque era sempre incômodo ter
de sair de nossos quartos ao entardecer para ir cozinhar. Agora o assunto
ficava resolvido com a mesa no quarto de Irene e as travessas com
fiambres.
Irene estava satisfeita porque lhe restava mais tempo para tricotar. Eu
andava um pouco perdido por causa dos livros, mas para não atormentar
minha irmã comecei a conferir a coleção de selos de papai, e isso serviu
para matar o tempo. Nos divertíamos muito, cada um com suas coisas,
quase sempre juntos no quarto de Irene, que era mais cômodo. Às vezes
Irene dizia:
— Olhe só esse ponto que eu inventei. Não dá um desenho de trevo?
Um pouco depois era eu que punha diante dos olhos dela um quadradinho
de papel para que ela apreciasse o mérito de algum selo de Eupen e
Malmédy. Estávamos bem, e pouco a pouco começávamos a não pensar. É
possível viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu imediatamente despertava. Nunca
consegui me acostumar com aquela voz de estátua ou de papagaio, voz que
vem dos sonhos e não da garganta. Irene dizia que meus sonhos consistiam
em grandes estremecimentos que às vezes derrubavam o cobertor. Nossos
quartos ficavam separados pelo living, mas à noite dava para ouvir tudo o
que acontecia na casa. Nós nos ouvíamos respirar, tossir, pressentíamos o
gesto dirigido ao interruptor da lâmpada de cabeceira, as mútuas e
frequentes insônias.
Fora isso, tudo se calava na casa. Durante o dia eram os barulhos
domésticos, a fricção metálica das agulhas de tricô, um rangido ao virar as
páginas do álbum filatélico. A porta de carvalho, creio que já falei, era
maciça. Na cozinha e no banheiro, situados no limite da parte tomada,
começávamos a falar em voz mais alta ou então Irene cantava canções de
ninar. Numa cozinha há muito barulho de louça e vidros para que nela
irrompam outros sons. Raríssimas vezes permitíamos ali o silêncio, mas,
quando voltávamos para os quartos e para o living, a casa ficava calada e a
meia-luz, chegávamos a pisar mais devagar para não nos perturbar. Acho
que era por isso que à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta,
eu imediatamente despertava.)
A
ndrée, eu não queria vir morar em seu apartamento da rua
Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, é mais porque me dá pena
entrar numa ordem estabelecida, já construída nas mais finas
malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da
lavanda, o adejar de uma pluma para pó de arroz, o jogo do violino e da
viola no quarteto de Rará. Me entristece entrar num recinto onde alguém
que vive lindamente arrumou tudo como uma reiteração visível de sua
alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro em francês e inglês),
ali as almofadas verdes, naquele lugar preciso da mesinha o cinzeiro de
cristal que parece o corte de uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um
som, um crescer de plantas, uma fotografia do amigo morto, ritual de
bandejas com chá e pequenas pinças para o açúcar. Ah, querida Andrée, que
difícil se opor, mesmo a aceitando com total submissão do próprio ser, à
ordem minuciosa que uma mulher instaura em sua leve residência. Quão
culposo agarrar uma xicrinha de metal e depositá-la na outra ponta da mesa,
depositá-la ali simplesmente porque chegamos com nossos dicionários
ingleses e é daquele lado, ao alcance da mão, que eles precisam estar. Tirar
a xicrinha do lugar equivale a um horrível vermelho inesperado no meio de
uma modulação de Ozenfant, como se de repente as cordas de todos os
contrabaixos arrebentassem ao mesmo tempo com a mesma tremenda
chicotada no instante mais recolhido de uma sinfonia de Mozart. Tirar a
xicrinha do lugar altera o jogo de relações da casa inteira, de cada objeto
com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua
moradora distante. E eu não consigo aproximar os dedos de um livro, tocar
de leve o cone de luz de uma lâmpada, destapar a caixa de música, sem que
um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de
pardais.
A senhora sabe por que vim até sua casa, até seu tranquilo salão de meio-
dia, tão solicitado. Tudo parece tão natural, como sempre que se desconhece
a verdade. A senhora viajou para Paris, eu fiquei com o apartamento da rua
Suipacha, elaboramos um plano de mútua convivência simples e satisfatório
até que setembro a traga de volta a Buenos Aires e me lance a alguma outra
casa onde talvez… Mas não é por isso que lhe escrevo, envio-lhe esta carta
em razão dos coelhinhos, parece-me correto informá-la; e porque gosto de
escrever cartas e talvez por estar chovendo.
Eu me mudei na quinta-feira passada às cinco da tarde, entre névoa e
tédio. Já fechei tantas malas na vida, passei tantas horas arrumando
bagagens que não levavam a lugar nenhum, que a quinta-feira foi um dia
cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das malas é
como se visse sombras, elementos de um chicote que me golpeia
indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas,
avisei sua criada que viria instalar-me e subi pelo elevador. Exatamente
entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Eu
nunca havia lhe falado nisso antes, não pense que por deslealdade, mas é
natural que a pessoa não comece a explicar aos outros que de vez em
quando vomita um coelhinho. Como o fato sempre se passou comigo
quando estou sozinho, guardei-o tal como se guardam tantos registros do
que sucede (ou fazemos suceder) na total privacidade. Não me recrimine,
Andrée, não me recrimine. De vez em quando me acontece de vomitar um
coelhinho. Isso não é razão para não morar em qualquer casa, não é razão
para que devamos nos envergonhar e isolar-nos e manter o bico calado.
Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho os dedos na boca
como uma pinça aberta e aguardo até sentir na garganta a lanugem morna
que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é veloz e higiênico,
transcorre num instante brevíssimo. Retiro os dedos da boca e neles trago
seguro pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é
um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um
coelhinho de chocolate, só que branco e inteiramente um coelhinho. Ponho-
o na palma da mão, arrepio sua lanugem com uma carícia dos dedos, o
coelhinho parece satisfeito de haver nascido e se remexe e gruda o focinho
em minha pele, movendo-o com aquela trituração silenciosa e cosquenta do
focinho de um coelho na pele de uma mão. Procura o que comer e então eu
(falo de quando isso acontecia na minha casa do arrabalde) vou com ele
para o balcão e o ponho no grande vaso onde cresce o trevo que semeei para
esse fim. O coelhinho levanta bem as orelhas, envolve um trevo tenro com
um veloz molinete do focinho, e sei que posso deixá-lo ali e me afastar,
prosseguir durante algum tempo com uma vida que não difere da de tantos
que compram seus coelhos nas granjas.
Entre o primeiro e o segundo andar, Andrée, como um prenúncio do que
seria minha vida em sua casa, percebi que ia vomitar um coelhinho. Logo
depois tive medo (ou era estranheza? Não, medo da própria estranheza,
digamos) porque antes de sair de minha casa, apenas dois dias antes, eu
havia vomitado um coelhinho e estava certo de que durante um mês, cinco
semanas, quem sabe seis, com um pouco de sorte. Veja bem, eu estava com
o problema dos coelhinhos inteiramente sob controle. Semeava trevo no
balcão de minha outra casa, vomitava um coelhinho, deixava-o no trevo e
um mês depois, quando me parecia que de um momento a outro… então eu
dava o coelho já crescido de presente à sra. de Molina, que acreditava num
hobby e nada dizia. Em outro vaso já vinha crescendo um trevo tenro e
propício, eu aguardava sem preocupação a manhã em que a cócega de uma
lanugem subindo me fechava a garganta, e o novo coelhinho repetia a partir
daquele momento a vida e os hábitos do anterior. Os hábitos, Andrée, são
formas concretas do ritmo, são a cota de ritmo que nos ajuda a viver. Não
era tão terrível vomitar coelhinhos uma vez que se havia entrado no ciclo
invariável, no método. A senhora haverá de querer saber por que esse
trabalho todo, por que todo esse trevo e a sra. de Molina. Teria sido
preferível matar o coelhinho logo depois e… Ah, seria preciso que a
senhora vomitasse um, um só, que o segurasse entre dois dedos e o pusesse
sobre a mão aberta, ainda preso à senhora pelo próprio ato, pela aura
inefável de sua proximidade recém-rompida. Um mês distancia tanto; um
mês é tamanho, longos pelos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta.
Andrée, um mês é um coelho, faz de fato um coelho; mas o minuto inicial,
quando o corpo morno e fremente encobre uma presença inalienável…
Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Idumeia:
tão nosso quanto nós mesmos… e depois tão não nosso, tão isolado e
distante em seu plano mundo branco tamanho carta.
Resolvi-me, apesar de tudo, a matar o coelhinho assim que ele nascesse.
Eu moraria em sua casa durante quatro meses: quatro — talvez, com sorte,
três — colheradas de álcool no focinho. (A senhora sabia que a piedade
permite matar instantaneamente um coelhinho fazendo-o beber uma
colherada de álcool? Sua carne fica imediatamente mais saborosa, dizem,
embora eu… Três ou quatro colheradas de álcool, depois o banheiro ou um
pacote no meio dos resíduos domésticos.)
Quando passei pelo terceiro andar o coelhinho se movia sobre minha mão
aberta. Sara esperava em cima para me ajudar com as malas… Como lhe
explicar que um capricho, uma lojinha de animais? Enrolei o coelhinho em
meu lenço, guardei-o no bolso do sobretudo deixando o sobretudo aberto
para não apertá-lo. Mal se movia. Sua miúda consciência devia estar lhe
revelando fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um
clique final, e que é também um céu raso, branco, envolvente e com cheiro
de lavanda, no fundo de um poço morno.
Sara não viu nada, estava completamente fascinada pelo árduo problema
de adaptar seu sentido de ordem a minha mala-armário, meus papéis e
minha displicência diante de suas elaboradas explicações, nas quais aparece
muito a expressão “por exemplo”. Assim que pude, me tranquei no
banheiro; matá-lo em seguida. Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o
coelhinho era branquíssimo e acho que mais bonito que os outros. Não
olhava para mim, simplesmente fremia e estava feliz, o que era a maneira
mais horrível de olhar para mim. Tranquei-o no armarinho vazio e voltei
para desfazer a mala, desorientado porém não infeliz, sem me sentir
culpado, sem ficar lavando as mãos para retirar delas uma última convulsão.
Compreendi que não podia matá-lo. Mas naquela mesma noite vomitei um
coelhinho preto.
E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.
A senhora deve gostar muito do belo armário de seu quarto, com a grande
porta que se abre, generosa, as prateleiras vazias à espera de minha roupa.
Agora é lá que eles estão. Lá dentro. É verdade que parece impossível; nem
Sara acreditaria. Porque Sara não desconfia de nada, e não desconfia em
decorrência de minha horrível tarefa, uma tarefa que consome meus dias e
minhas noites num só golpe de rastilho e vai me calcinando por dentro e
endurecendo como aquela estrela-do-mar que a senhora pôs sobre a
banheira e que a cada banho que se toma parece que enche nosso corpo de
sal e chibatadas de sol e grandes rumores das profundezas.
Durante o dia eles dormem. São dez. Durante o dia eles dormem. Com a
porta fechada, o armário é uma noite diurna somente para eles: ali eles
dormem sua noite com tranquila obediência. Quando vou para o trabalho,
levo as chaves do quarto. Sara deve achar que desconfio de sua honestidade
e olha para mim com ar de dúvida, toda manhã se percebe que está a ponto
de me dizer alguma coisa, mas no fim se cala e fico bem contente. (Quando
ela arruma o quarto, entre nove e dez da manhã, faço barulho na sala, ponho
um disco de Benny Carter que ocupa a atmosfera toda, e como Sara
também é amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e
decerto está, porque para os coelhinhos a noite e o descanso já estão em
curso.)
O dia deles começa no horário que se segue ao jantar, quando Sara retira a
bandeja com um miúdo tilintar de pinças para o açúcar, me deseja boa-noite
— sim, ela me deseja boa-noite, Andrée, o mais amargo de tudo é que ela
me deseja boa-noite — e se tranca em seu quarto, e de repente fico eu
sozinho, sozinho com o armário condenado, sozinho com meu dever e
minha tristeza.
Deixo-os sair, precipitar-se ágeis ao assalto da sala, farejando buliçosos o
trevo que meus bolsos ocultavam e que agora está sobre o tapete, um
rendilhado efêmero que eles alteram, removem, liquidam num instante.
Comem bem, silenciosos e corretos, até o momento nada tenho a dizer,
apenas olho para eles do sofá, com um livro inútil na mão — eu que queria
ler todos os seus Giraudoux, Andrée, e a história argentina de López que a
senhora guarda na prateleira de baixo —; e comem o trevo.
São dez. Quase todos brancos. Erguem a morna cabeça na direção das
lâmpadas do salão, os três sóis imóveis de seu dia, eles que amam a luz
porque sua noite não tem lua nem estrelas nem postes de luz. Olham seu
triplo sol e ficam felizes. E é assim que eles saltam pelo tapete, vão para
cima das cadeiras, dez manchas leves se transferem como uma móvel
constelação, de um lado para outro, enquanto eu gostaria de vê-los quietos,
vê-los a meus pés e quietos — um pouco o sonho de todo deus, Andrée, o
sonho nunca realizado dos deuses —, e não assim, insinuando-se por trás do
retrato de Miguel de Unamuno, ao redor da jarra verde-clara, pela negra
cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu
perguntando-me onde andarão os dois que faltam, e se por alguma razão
Sara se levantasse, e a presidência de Rivadavia que eu tinha vontade de ler
na história de López.
Não sei como eu resisto, Andrée. A senhora há de se lembrar que vim para
sua casa com o objetivo de descansar. Não é culpa minha se de vez em
quando vomito um coelhinho, se a mudança também me alterou por dentro
— não é nominalismo, não é magia, só que as coisas não podem variar
assim de repente, às vezes as coisas viram brutalmente e quando a senhora
esperava que a bofetada viesse da direita. Assim, Andrée, ou de outro
modo, mas sempre assim.
Escrevo-lhe à noite. São três da tarde, mas lhe escrevo sobre eles à noite.
Durante o dia eles dormem. Que alívio este escritório repleto de gritos,
ordens, máquinas de escrever Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que
alívio, que paz, que horror, Andrée! Agora estão me chamando ao telefone,
são os amigos preocupados com minhas noites recolhidas, é Luis me
convidando para caminhar ou Jorge dizendo que está com uma entrada de
concerto para me dar. Quase não ouso dizer-lhes que não, invento histórias
prolongadas e ineficazes de má saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E
quando volto e subo pelo elevador — no trecho entre o primeiro e o
segundo andar —, todas as noites formulo para mim mesmo
irremediavelmente a esperança vã de que não seja verdade.
Faço o que posso para que eles não destruam suas coisas. Roeram um
pouco os livros da prateleira de baixo, a senhora verá que estão escondidos
para que Sara não perceba. A senhora gostava muito de seu abajur com
suporte de porcelana cheio de borboletas e cavaleiros antigos? Mal se
notam as emendas, trabalhei a noite inteira com um cimento especial que
me venderam numa loja inglesa — como a senhora sabe, as lojas inglesas
vendem os melhores cimentos — e agora fico sempre ao lado dele para que
nenhum consiga tocá-lo de novo com as patas (é quase bonito ver como eles
gostam de ficar de pé, nostalgia do humano distante, quem sabe imitação de
seu deus ambulando e olhando para eles de cara feia; além disso a senhora
deve ter percebido — quem sabe em sua infância — que é possível deixar
um coelhinho de castigo por horas e horas, virado para a parede, de pé,
patinhas apoiadas e muito quieto).
Às cinco da manhã (dormi um pouco, atirado no sofá verde, acordando a
cada corrida abafada, a cada tilintar) eu os ponho no armário e faço a
limpeza. Por isso Sara encontra tudo no lugar, embora às vezes eu perceba
nela um certo assombro contido, um ficar olhando para algum objeto, uma
leve descoloração do tapete, e de novo a vontade de me perguntar alguma
coisa, mas eu assobiando as variações sinfônicas de Franck, de modo que
xongas. Para que contar a ela, Andrée, as minúcias desventuradas desse
amanhecer surdo e vegetal, no qual me locomovo semiadormecido
recolhendo cabos de trevo, folhas soltas, lanugens brancas, colidindo com
os móveis, louco de sono, e meu Gide se atrasando, Troyat que não traduzi,
e minhas respostas a uma senhora distante que já deve estar se perguntando
se… para que ir em frente com tudo isso, para que ir em frente com esta
carta que escrevo entre telefonemas e entrevistas.
Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e ficou por aí. Há
quinze dias segurei na palma da mão um último coelhinho, depois mais
nada, só os dez comigo, sua diurna noite e crescendo, já feios e com o pelo
comprido nascendo, já adolescentes e cheios de urgências e caprichos,
saltando sobre o busto de Antínoo (é Antínoo, não é, esse moço que olha
cegamente?) ou perdendo-se no living, onde seus movimentos criam ruídos
ressonantes, tanto que de lá é preciso expulsá-los, de medo de que Sara os
ouça e me apareça horripilada, talvez de camisola — porque Sara deve ser
assim, de camisola — e aí… Só dez, a senhora imagine essa pequena
alegria que eu tenho no meio de tudo, a crescente calma com que
transponho ao voltar os rígidos céus do primeiro e do segundo andar.
Interrompi esta carta porque precisava participar de uma reunião dos grupos
de trabalho. Retomo-a aqui em sua casa, Andrée, envolto pelo cinza surdo
do amanhecer. Estamos de fato no dia seguinte, Andrée? Um pedaço em
branco da página será, para a senhora, o intervalo, somente a ponte que une
minha letra de ontem a minha letra de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo
tudo se partiu, onde a senhora vê a ponte fácil eu ouço quebrar-se a cintura
furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado de minha carta não
prossegue a calma com que eu vinha lhe escrevendo quando a interrompi
para tomar conta de uma tarefa do setor de encargos. Em sua cúbica noite
sem tristeza dormem onze coelhinhos; quem sabe agora mesmo, mas não,
agora não. No elevador, logo, ou ao entrar; já não importa onde, se o
quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.
Já chega, escrevi isto porque para mim é importante provar para a senhora
que não fui tão culpado assim pela destruição insanável de sua casa.
Deixarei esta carta a sua espera, seria sórdido que o serviço postal a
entregasse à senhora em alguma clara manhã de Paris. Esta noite inverti a
posição dos livros da segunda estante; já estavam ao alcance deles, em pé
ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes — não por fome, têm
todo o trevo que compro para eles e que armazeno nas gavetas da
escrivaninha. Arrebentaram as cortinas, o forro das poltronas, a borda do
autorretrato de Augusto Torres, encheram o tapete de pelos, e além disso
gritaram, posicionaram-se em círculo sob a luz do abajur, em círculo e
como se me adorassem e de repente gritavam, gritavam como acredito que
coelhos não gritem.
Em vão tentei retirar os pelos que estragam o tapete, alisar a borda do
pano roído, trancá-los novamente no armário. O dia sobe, talvez Sara se
levante logo. É quase estranho que eu não me preocupe com Sara. É quase
estranho que eu não me preocupe vendo-os saltitar em busca de brinquedos.
Não tive tanta culpa, a senhora verá ao chegar que muitos dos escombros
estão bem reparados com o cimento que comprei numa loja inglesa, fiz o
que pude para evitar que a senhora se zangasse… Quanto a mim, do dez ao
onze há uma espécie de buraco intransponível. Veja a senhora: dez estava
bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas era possível
construir. Com onze já não, porque dizer onze é certamente dizer doze,
Andrée, doze que há de virar treze. Então chega o amanhecer e uma fria
solidão na qual cabem a alegria, as lembranças, a senhora e talvez muitos
mais. Esse balcão sobre a Suipacha está repleto de aurora, dos primeiros
sons da cidade. Não creio que tenham maior dificuldade em recolher onze
coelhinhos salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem cheguem a
tomar conhecimento deles, atarefados com o outro corpo que convém retirar
de uma vez, antes que passem os primeiros estudantes.
Distante
Diário de Alina Reyes
12 DE JANEIRO
Esta noite aconteceu de novo, eu tão cansada de pulseiras e farândolas, de
pink champagne e da cara do Renato Viñes, ai aquela cara de foca
balbuciante, de retrato de Dorian Gray no finzinho. Fui me deitar com gosto
de bombom de menta, do Boogie do Banco Vermelho, de mamãe bocejada
e cinzenta (do jeito que ela fica ao voltar das festas, cinzenta e caindo de
sono, peixe enormíssimo e tão não ela).
Nora que diz que dorme com luz, com barulho, entre os apelos crônicos
da irmã ainda tirando a roupa. Que felizes elas são, eu apago as luzes e as
mãos, me dispo aos gritos do que é diurno e se move, quero dormir e sou
um sino horrendo tocando, uma onda, a corrente que Rex arrasta a noite
inteira de encontro aos ligustros. Now I lay me down to sleep… Preciso
repetir versos, ou o sistema de encontrar palavras com a, depois com a e e,
com as cinco vogais, com quatro. Com duas e uma consoante (asa, oca),
com três consoantes e uma vogal (trás, gris) e de novo versos, a lua desceu
à frágua com seus babados de nardos, o menino olha olha, o menino a está
olhando. Com três e três alternadas, cabala, laguna, animal; Ulisses, rajada,
repouso.
Passo horas assim: de quatro, de três e dois, e mais tarde palíndromos. Os
fáceis, salta Lenín el atlas; amigo, no gima; os mais difíceis e lindos, átale,
demoníaco Caín, o me delata; Anás usó tu auto, Susana. Ou os preciosos
anagramas: Salvador Dalí, Avida Dollars; Alina Reyes, es la reina y… Tão
lindo, este, porque abre um caminho, porque não conclui. Porque la reina
y…
Não, horrível. Horrível porque abre caminho para essa que não é a rainha
e que de novo eu odeio à noite. Para essa que é Alina Reyes mas não é a
rainha do anagrama; que pode ser qualquer coisa, mendiga em Budapeste,
frequentadora de casa de má fama em Jujuy ou empregadinha em
Quetzaltenango, em qualquer lugar remoto, e não rainha. Mas sim Alina
Reyes, e por isso ontem à noite aconteceu de novo, senti-la e o ódio.
20 DE JANEIRO
Às vezes sei que está com frio, que sofre, que a espancam. Posso somente
odiá-la tanto, detestar as mãos que a jogam ao chão e também a ela, a ela
mais ainda porque a espancam, porque sou eu e a espancam. Ah, não me
desespera tanto quando estou dormindo ou corto um vestido ou está na hora
de mamãe receber visitas e eu sirvo o chá à sra. de Regules ou ao menino
dos Rivas. Aí fico menos incomodada, é um pouco assunto pessoal, eu
comigo; sinto-a mais dona de sua desgraça, distante e solitária mas dona.
Que sofra, que congele; eu me seguro daqui, e acho que com isso a ajudo
um pouco. É como fazer curativos para um soldado que ainda não foi ferido
e sentir tal gratidão, que ele está sendo aliviado desde antes,
previdentemente.
Ela que sofra. Dou um beijo na sra. de Regules, o chá ao menino dos
Rivas, e me preparo para resistir por dentro. Digo a mim mesma: “Agora
estou atravessando uma ponte gelada, agora a neve entra em meus sapatos
furados”. Não que eu sinta alguma coisa. Apenas sei que é assim, que em
algum lugar atravesso uma ponte no exato instante (mas não sei se é no
exato instante) em que o menino dos Rivas aceita o chá que lhe ofereço e
faz sua melhor cara de doido. E resisto sem problema porque estou sozinha
entre essas pessoas sem sentido e não me desespera tanto. Ontem à noite
Nora ficou feito uma tonta, disse: “Mas o que está acontecendo com
você?”. Estava acontecendo com aquela, comigo tão longe. Uma coisa
horrível deve ter acontecido com ela, estava sendo espancada ou se sentia
doente, e justamente quando Nora ia cantar Fauré e eu ao piano, tão feliz
olhando para Luis María de cotovelo apoiado na cauda que funcionava
como uma espécie de moldura, ele me olhando contente com cara de
cachorrinho, esperando para ouvir os acordes, os dois tão próximos e tão
nos amando. Assim é pior, quando fico sabendo de alguma coisa nova a
respeito dela bem na hora em que estou dançando com Luis María,
beijando-o ou simplesmente perto de Luis María. Porque de mim, a
distante, ninguém gosta. É a parte de que não gostam, e como não vou ficar
aniquilada por dentro se sinto que estão me espancando ou que a neve entra
em meus sapatos quando Luis María está dançando comigo e sua mão em
minha cintura vai subindo como um calor ao meio-dia, um sabor de laranjas
fortes ou bambus chicoteados, e ela sendo espancada e é impossível resistir
e então sou obrigada a dizer a Luis María que não estou me sentindo bem,
que é a umidade, umidade dessa neve que não sinto, que não sinto e que
entra em meus sapatos.
25 DE JANEIRO
Claro, Nora veio falar comigo e foi uma cena. “Queridinha, é a última vez
que lhe peço para me acompanhar ao piano. Fizemos um papelão.” Eu não
sabia nada de papelões, acompanhei-a como pude, me lembro de ouvi-la em
surdina. Votre âme est un paysage choisi… mas via minhas mãos entre as
teclas e tinha a sensação de que elas tocavam bem, de que acompanhavam
Nora honestamente. Luis María também olhou para minhas mãos,
coitadinho, acho que era porque não tinha coragem de me olhar no rosto.
Devo ficar muito estranha.
Coitada da Norita, ela que arrume outra para acompanhá-la. (Isso está
parecendo cada vez mais um castigo, agora só me conheço lá quando vou
ser feliz, quando sou feliz, quando Nora canta Fauré me conheço lá e só fica
o ódio.)
NOITE
Às vezes é ternura, uma súbita e necessária ternura para com a que não é
rainha e anda por aí. Eu gostaria de enviar um telegrama para ela,
encomendas, saber que seus filhos estão bem ou que não tem filhos —
porque acho que lá não tenho filhos — e precisa de aconchego, piedade,
balas. Ontem à noite adormeci confabulando mensagens, pontos de
encontro. Vou quinta stop me espere ponte. Que ponte? Ideia que volta
como volta Budapeste, acreditar na mendiga de Budapeste onde há tanta
ponte e neve à beça. Então ergui o corpo rígida na cama e quase uivo, quase
vou correndo acordar mamãe, mordê-la para que acorde. Unicamente por
pensar. Ainda não é fácil dizer. Unicamente por pensar que eu poderia partir
agora mesmo para Budapeste, se realmente me desse na veneta. Ou para
Jujuy, ou para Quetzaltenango. (Fui buscar esses nomes páginas atrás.) Não
valem, seria o mesmo que dizer Tres Arroyos, Kobe, Florida na altura do
quatrocentos. Fica apenas Budapeste porque é lá que está o frio, é lá que me
espancam e me ofendem. É lá (sonhei isso, não passa de sonho, mas como
gruda e se insinua na direção da vigília) que há uma pessoa chamada Rod
— ou Erod, ou Rodo —, e ele me espanca e eu o amo, não sei se o amo mas
permito que me espanque, isso volta todo dia, então não há dúvida de que o
amo.
MAIS TARDE
28 DE JANEIRO
Me ocorreu uma coisa curiosa. Faz três dias que não chega nada da distante.
Talvez agora não a estejam espancando, ou ela tenha encontrado um
refúgio. Mandar-lhe um telegrama, um par de meias… Me ocorreu uma
coisa curiosa. Eu estava chegando à terrível cidade e era à tarde, uma tarde
verdosa e áquea como nunca são as tardes se não as ajudamos pensando-as.
Para os lados da Dobrina Stana, na perspectiva Skorda, cavalos eriçados de
estalagmites e policiais rígidos, fogueiras fumegantes e rajadas de vento
assoberbando as janelas. Andar pela Dobrina a passo de turista, o mapa no
bolso do terninho azul (esse frio todo e deixar o casaco em Burglos), até
chegar a uma praça ao lado do rio, quase sobre o rio troante de gelos
partidos e barcaças e um ou outro martim-pescador que lá se chama sbunáia
tjéno ou coisa pior.
Depois da praça imaginei que viesse a ponte. Pensei isso e quis ficar por
ali. Era a tarde do concerto de Elsa Paggio de Tarelli no Odeón, vesti-me a
contragosto desconfiando que depois me esperaria a insônia. Esse pensar à
noite, tão à noite… Sabe-se lá se não acabaria comigo. Inventam-se nomes
ao viajar pensando, relembra-os na hora. Dobrina Stana, sbunáia tjéno,
Burglos. Mas não sei o nome da praça, é um pouco como se de fato eu
tivesse chegado a uma praça de Budapeste e estivesse perdida por não saber
seu nome; lá onde um nome é uma praça.
Já vou, mamãe. Chegaremos bem a seu Bach e a seu Brahms. É um
caminho tão simples. Sem praça, sem Burglos. Aqui nós, lá Elsa Piaggio.
Que triste ter me interrompido, saber que estou numa praça (mas isso já não
é uma certeza, simplesmente o penso e isso é menos que nada). E que ao
final da praça começa a ponte.
NOITE
30 DE JANEIRO
Coitado do Luis María, que trouxa, se casar comigo. Mal sabe o que vai cair
em cima dele. Ou embaixo, como diz Nora, que dá uma de emancipada
intelectual.
31 DE JANEIRO
Vamos até lá. Ele concordou tanto que quase grito. Senti medo, tive a
sensação de que ele entra facilmente demais nesse jogo. E não sabe nada, é
como o peãozinho da dama que arremata a partida sem se dar conta. O
peãozinho Luis María, ao lado de sua rainha. De la reyna y —
7 DE FEVEREIRO
Buscando a cura. Não escreverei o final do que havia pensado no concerto.
Na noite passada a senti sofrer de novo. Sei que lá me espancam de novo.
Não posso evitar sabê-lo, mas chega de relatos. Se eu tivesse me limitado a
deixar constância da coisa por gosto, por desafogo… Seria pior, um desejo
de conhecer ao ir relendo; de encontrar chaves em cada palavra jogada no
papel depois dessas noites. Como quando pensei a praça, o rio quebrado e
os ruídos, e depois… Mas não o escrevo, não o escreverei nunca mais.
Ir até lá e convencer-me de que a solteirice me fazia mal, simplesmente
isso, ter vinte e sete anos e sem homem. Agora terei meu cachorro, meu
bobo, chega de pensar, agora é ser, ser por fim e para o bem.
E contudo, já que encerrarei este diário, porque ou a pessoa se casa ou
escreve um diário, as duas coisas não funcionam juntas — por enquanto não
quero me afastar dele sem dizer isso com alegria de esperança, com
esperança de alegria. Vamos até lá mas não há de ser como pensei na noite
do concerto. (Escrevo-o, e para o meu bem, chega de diário.) Na ponte eu a
encontrarei e olharemos uma para a outra. Na noite do concerto eu sentia
nas orelhas a ruptura do gelo lá embaixo. E será a vitória da rainha sobre
essa aderência maligna, essa usurpação indevida e surda. Ela se submeterá,
se realmente sou eu, se somará a minha zona iluminada, mas bela e certa;
bastará ficar ao lado dela e apoiar uma das mãos em seu ombro.
***
—S
e não se incomoda, me traga El Hogar quando voltar
— pediu a sra. Roberta, reclinando-se na poltrona para
a sesta. Clara arrumava os remédios no carrinho de
chá, percorria o aposento com um olhar preciso. Não
faltava nada, a menina Matilde ficaria cuidando da sra. Roberta, a criada
estava ao corrente do necessário. Agora podia sair, com toda a tarde do
sábado só para ela, sua amiga Ana esperando-a para papear, o chá
dulcíssimo às cinco e meia, o rádio e os chocolates.
Às duas, quando a maré dos empregados acaba de jorrar dos umbrais de
tanto prédio, Villa del Parque fica deserta e luminosa. Clara seguiu pela
Tinogasta e pela Zamudio batendo distintamente os saltos dos sapatos,
saboreando um sol de novembro interrompido por ilhas de sombra que
jogavam sobre seus passos as árvores da Agronomía. Na esquina da avenida
San Martín com a Nogoyá, enquanto esperava o ônibus 168, ouviu uma
batalha de pardais sobre a cabeça, e a torre florentina da paróquia de San
Juan María Vianney lhe pareceu ainda mais vermelha contra o céu sem
nuvens, alta de dar vertigem. Passou d. Luis, o relojoeiro, e cumprimentou-
a apreciativo, como se elogiasse sua figura esmerada, os sapatos que a
tornavam mais esbelta, a golinha branca sobre o suéter creme. Pela rua
vazia aproximou-se pachorrento o 168, soltando seu seco bafejo insatisfeito
ao abrir a porta para Clara, única passageira a embarcar na esquina calada
da tarde.
Em busca das moedas na bolsa cheia de coisas, demorou a pagar a
passagem. O cobrador esperava com cara de poucos amigos, atarracado e
insolente sobre as pernas arqueadas, com muita cancha para enfrentar as
curvas e freadas. Clara falou duas vezes: “De quinze”, sem que o sujeito
afastasse os olhos dela, como se estivesse estranhando alguma coisa.
Depois entregou a ela a passagem rosa e Clara relembrou um verso da
infância, uma coisa mais ou menos assim: “Picote, picote, bilheteiro, um
bilhete azul ou rosa; cante, cante alguma coisa, enquanto conta o dinheiro”.
Sorrindo para si mesma foi sentar-se ao fundo, o assento ao lado da Porta
de Emergência estava desocupado e ela se instalou com o miúdo prazer de
proprietário que o lado da janela sempre proporciona. Então viu que o
cobrador continuava olhando para ela. E na esquina da ponte da avenida
San Martín, antes de dobrar, o motorista se virou e também olhou para ela,
com dificuldade devido à distância mas fazendo força até visualizá-la muito
afundada em seu assento. Era um louro ossudo com cara de fome que
trocou algumas palavras com o cobrador, os dois olharam para Clara,
olharam um para o outro, o ônibus deu um solavanco e entrou pela
Chorroarín a toda a velocidade.
“Dupla de idiotas”, pensou Clara sentindo-se ao mesmo tempo lisonjeada
e nervosa. Ocupada guardando sua passagem na carteira, ela observou com
o canto do olho a senhora com o grande buquê de cravos que viajava no
assento da frente. Então a senhora olhou para ela, virou-se por cima do
buquê e olhou-a docemente como uma vaca por cima de uma cerca, e Clara
puxou o espelhinho e passou algum tempo absorta no estudo de seus lábios
e suas sobrancelhas. Já sentia na nuca uma impressão desagradável; a
suspeita de outra impertinência a levou a virar-se depressa, irritada de
verdade. A dois centímetros de seu rosto estavam os olhos de um velho de
colarinho duro com um buquê de margaridas compondo um cheiro quase
nauseabundo. No fundo do ônibus, instalados no assento verde comprido,
todos os passageiros olharam para Clara, pareciam criticar alguma coisa em
Clara, que sustentou os olhares deles com um esforço crescente, sentindo
que ficava cada vez mais difícil, não pela coincidência dos olhos sobre ela
nem pelos buquês nas mãos dos passageiros; e sim porque havia esperado
um desenlace amável, uma razão para riso, como estar com uma mancha
preta no nariz (só que não estava); e sobre seu início de riso vinham pousar-
se, gelando-a, aqueles olhares atentos e contínuos, como se os buquês
estivessem olhando para ela.
Subitamente inquieta, escorregou um pouco o corpo, cravou os olhos no
estropiado encosto dianteiro, examinando a alavanca da porta de
emergência e sua inscrição Para abrir a porta PUXE A MANIVELA para
dentro e se levante, considerando as letras uma a uma sem conseguir reuni-
las em palavras. Desse modo conquistava uma área de segurança, uma
trégua na qual pensar. É natural que os passageiros olhem para quem
acabou de entrar, é normal que as pessoas levem buquês se estão a caminho
do cemitério da Chacarita e é quase normal que todas as pessoas do ônibus
estejam com buquês. Passavam na frente do Hospital Alvear, e do lado de
Clara estendiam-se os terrenos baldios em cuja ponta mais afastada se ergue
a Estrella, zona de poças sujas, cavalos amarelos com pedaços de corda
pendurados no pescoço. Clara tinha dificuldade para se afastar de uma
paisagem que o brilho duro do sol não conseguia alegrar, e só de vez em
quando tinha coragem de dar uma olhada rápida para o interior do ônibus.
Rosas vermelhas e copos-de-leite, mais adiante gladíolos horríveis,
parecendo machucados e sujos, cor-de-rosa velho com manchas lívidas. O
senhor da terceira janela (estava olhando para ela, agora não, agora de
novo) levava cravos quase negros apertados numa única massa contínua,
como uma pele enrugada. As duas mocinhas de nariz cruel sentadas à frente
num dos assentos laterais levavam juntas o buquê dos pobres, crisântemos e
dálias, só que não eram pobres, vestiam casquinhos bem cortados, saias
xadrez, meias três-quartos brancas, e olhavam para Clara com altivez. Clara
quis forçá-las a baixar os olhos, pirralhas insolentes, mas eram quatro
pupilas fixas, e também o cobrador, o senhor dos cravos, o calor na nuca
por causa de toda aquela gente que estava atrás, o velho do colarinho duro
tão perto, os jovens do assento lá atrás, La Paternal: passagens de Cuenca
valem até aqui.
Ninguém descia. O homem subiu agilmente, enfrentando o cobrador que o
esperava na metade do veículo olhando para as mãos dele. O homem tinha
vinte centavos na direita e com a outra alisava o casaco. Esperou, alheio ao
escrutínio. “Um de quinze”, ouviu Clara. Como ela: de quinze. Mas o
cobrador não separava a passagem, continuava olhando para o homem que
no fim percebeu e lhe dirigiu um gesto de impaciência cordial: “De quinze,
já falei”. Pegou a passagem e esperou o troco. Antes de recebê-lo já havia
escorregado com leveza para um assento vazio ao lado do senhor dos
cravos. O cobrador lhe deu os cinco centavos, olhou para ele mais um
pouco, de cima, como se examinasse sua cabeça; ele nem reparava, absorto
na contemplação dos cravos negros. O senhor o observava, olhou-o
depressa uma ou duas vezes e ele começou a devolver-lhe o olhar; os dois
mexiam a cabeça quase ao mesmo tempo, mas sem provocação, somente se
olhando. Clara continuava furiosa com as garotas lá da frente, que ficavam
olhando para ela durante muito tempo e depois para o novo passageiro;
houve um momento, quando o 168 começava seu trajeto ao longo do
paredão da Chacarita, em que todos os passageiros estavam olhando para o
homem e também para Clara, só que já não olhavam diretamente para ela
porque estavam mais interessados no recém-chegado, mas era como se a
incluíssem em seu olhar, como se unissem os dois na mesma observação.
Que coisa mais idiota essas pessoas, porque mesmo as pirralhas não eram
tão meninas assim, cada um com seu buquê e seus afazeres pela frente e
comportando-se daquela forma grosseira. Teria gostado de avisar o outro
passageiro, uma obscura fraternidade sem razões tomava conta de Clara.
Dizer a ele: “O senhor e eu compramos passagens de quinze”, como se isso
os aproximasse. Tocar o braço dele, aconselhá-lo: “Faça-se de
desentendido, são uns impertinentes, enfiados atrás das flores deles feito
uns bobos”. Teria gostado que ele fosse sentar-se a seu lado, mas o rapaz —
na verdade ele era jovem, embora tivesse marcas duras no rosto — se
deixara cair no primeiro assento livre que encontrou a seu alcance. Com um
gesto entre divertido e perturbado empenhava-se em devolver o olhar do
cobrador, das duas garotas, da senhora dos gladíolos; e agora o senhor dos
cravos vermelhos virara a cabeça para trás e olhava para Clara, olhava-a
inexpressivamente, com uma brandura opaca e flutuante de pedra-pomes.
Clara devolvia o olhar com obstinação, sentindo-se oca; sentia o impulso de
descer do ônibus (mas naquela rua, àquela altura, e afinal por nada, por
estar sem buquê); percebeu que o rapaz parecia inquieto, olhava para um
lado e para o outro, depois para trás, e se surpreendia ao ver os quatro
passageiros do assento de trás e o ancião do colarinho duro com as
margaridas. Seus olhos passaram pelo rosto de Clara, detendo-se por um
segundo em sua boca, em seu queixo; da frente vinham os olhares do
cobrador e das duas garotinhas, da senhora dos gladíolos, até que o rapaz se
virou para olhar para eles como se cedesse. Clara comparou o assédio que
sofrera minutos antes com o que agora perturbava o passageiro. “E o
coitado de mãos vazias”, pensou absurdamente. Achava-o um tanto
indefeso, somente com seus olhos para afrontar aquele fogo frio que recebia
de todos os lados.
Sem se deter, o 168 entrou nas duas curvas que dão acesso à esplanada
que fica na frente do peristilo do cemitério. As mocinhas vieram pelo
corredor e se instalaram junto à porta de saída; atrás delas se enfileiraram as
margaridas, os gladíolos, os copos-de-leite. Atrás havia um grupo confuso e
as flores emitiam seu aroma para Clara, quietinha em sua janela mas tão
aliviada ao ver quantos deles desciam, como estariam à vontade no trecho
seguinte da viagem. Os cravos negros apareceram no alto, o passageiro
havia se levantado para deixar que os cravos negros saíssem e ficou de lado,
meio enfiado num assento vazio à frente do de Clara. Era um rapaz muito
bonito, simples e franco, talvez um balconista de farmácia, ou um
bibliotecário, ou um construtor. O ônibus se deteve suavemente e a porta se
abriu com um bafejo. O rapaz esperou que as pessoas descessem para
escolher um assento de seu gosto, enquanto Clara participava de sua espera
paciente e incitava com o desejo os gladíolos e as rosas a descer de uma
vez. Com a porta já aberta e todos em fila, olhando para ela e olhando para
o passageiro, sem descer, olhando para eles entre os buquês que balançavam
como se houvesse vento, um vento de debaixo da terra que movesse as
raízes das plantas e agitasse os buquês em bloco. Saíram os copos-de-leite,
os cravos vermelhos, os homens de trás com seus buquês, as duas garotas, o
velho das margaridas. Ficaram só os dois e o 168 pareceu subitamente
menor, mais cinza, mais bonito. Clara achou correto e quase necessário que
o passageiro se sentasse a seu lado, embora tivesse o ônibus inteiro para
escolher. Ele se sentou e os dois baixaram a cabeça e olharam para as mãos.
Estavam ali, eram simplesmente mãos; nada mais.
— Chacarita! — gritou o cobrador.
Clara e o passageiro responderam a seu olhar insistente com uma simples
fórmula: “Nossas passagens são de quinze”. Não fizeram mais que pensá-la,
e bastava.
A porta continuava aberta. O cobrador se aproximou deles.
— Chacarita — disse, quase explicativamente.
O passageiro nem olhava para ele, mas Clara ficou com pena.
— Vou até Retiro — disse, e mostrou a passagem. Picote, picote,
bilheteiro, um bilhete azul ou rosa. O motorista estava quase saindo do
assento, olhando para eles; o cobrador ficou indeciso, fez um sinal. Olhou
para a porta de trás (ninguém havia subido na frente) e o 168 pegou
velocidade com guinadas coléricas, leve e solto numa disparada que largou
chumbo no estômago de Clara. Ao lado do motorista, o cobrador agora se
segurava na barra cromada e olhava profundamente para eles. Eles
devolviam o olhar, mantiveram-se assim até a curva de entrada em Dorrego.
Depois Clara sentiu que o rapaz pousava devagar a mão sobre a sua, como
aproveitando que não os pudessem ver lá da frente. Era uma mão delicada,
muito morna, e ela não retirou a sua, mas começou a movê-la devagar até a
ponta da coxa, quase sobre o joelho. Um vento de velocidade envolvia o
ônibus em plena marcha.
— Tanta gente — disse ele, quase sem voz. — E de repente desce todo
mundo.
— Iam levar flores à Chacarita — disse Clara. — Nos sábados muita
gente vai aos cemitérios.
— É, mas…
— Um pouco estranho, é mesmo. O senhor percebeu…?
— Percebi — disse ele, quase não a deixando passar. — E com a senhora
foi a mesma coisa, reparei.
— É estranho. Mas agora ninguém mais entra.
O veículo freou brutalmente, barreira do Central Argentino. Deixaram-se
ir para diante, aliviados pela surpresa, pelo solavanco que trocava o assunto.
O veículo tremia como um corpo enorme.
— Vou até Retiro — disse Clara.
— Eu também.
O cobrador não havia saído do lugar, agora falava iracundo com o
motorista. Viram (sem querer reconhecer que estavam atentos à cena) como
o motorista se levantava de seu assento e vinha pelo corredor na direção
deles, com o cobrador imitando seus passos. Clara percebeu que os dois
olhavam para o rapaz e que este ficava rígido, como se estivesse reunindo
forças; suas pernas tremiam, o ombro que se apoiava no dela. Então uma
locomotiva a todo o vapor uivou horrivelmente, uma fumaça preta cobriu o
sol. O fragor do trem rápido encobria as palavras que o motorista devia
estar dizendo; a dois assentos do deles ele estacou, agachando-se como
quem se prepara para saltar. O cobrador o reteve prendendo uma das mãos
em seu ombro, apontou imperioso para as barreiras que já se erguiam
enquanto o último vagão passava com um estrépito de ferros. O motorista
apertou os lábios e voltou correndo para seu lugar; com um solavanco de
raiva o 168 encarou os trilhos, o plano inclinado oposto.
O rapaz afrouxou o corpo e deixou-se escorregar suavemente.
— Nunca me aconteceu uma coisa dessas — disse, como se falasse
consigo mesmo.
Clara tinha vontade de chorar. E o choro esperava ali, disponível porém
inútil. Sem nem mesmo pensá-lo, tinha consciência de que tudo estava bem,
de que viajava num 168 vazio exceto por outro passageiro, e que todo
protesto contra aquela ordem podia ser resolvido puxando o cordel da
campainha e descendo na primeira esquina. Mas tudo estava bem assim; a
única coisa que restava era a ideia de descer, de afastar aquela mão que de
novo havia apertado a sua.
— Estou com medo — disse, simplesmente. — Se pelo menos eu tivesse
posto umas violetas no suéter.
Ele olhou para ela, olhou para seu suéter liso.
— Eu às vezes gosto de andar com um jasmim-estrela na lapela — disse.
— Hoje saí apressado e nem prestei atenção.
— Que pena. Mas na realidade vamos para Retiro.
— Isso, vamos para Retiro.
Era um diálogo, um diálogo. Cuidar dele, alimentá-lo.
— Seria possível abrir um pouco a janela? Estou ficando sufocada aqui
dentro.
Ele olhou para ela surpreso porque na verdade estava até com frio. O
cobrador os observava de soslaio, falando com o motorista; o 168 não havia
tornado a parar depois da barreira e já estavam dando a volta na esquina da
Cánning com a Santa Fe.
— A janela deste assento não abre — disse ele. — A senhora pode ver
que é o único assento do carro com janela assim, por causa da porta de
emergência.
— Ah — disse Clara.
— Podemos trocar de lugar.
— Não, não — ela apertou os dedos dele, detendo seu movimento de
levantar-se. — Quanto menos a gente se mexer, melhor.
— Bom, mas podíamos abrir a janela do assento da frente.
— Não, por favor não.
Ele esperou, pensando que Clara ia acrescentar alguma coisa, mas ela se
encolheu no assento. Agora o olhava em cheio para fugir da atração de lá da
frente, daquela ira que chegava até eles como um silêncio ou um calor. O
passageiro pôs a outra mão sobre o joelho de Clara e ela aproximou a dela e
os dois se comunicaram obscuramente pelos dedos, pela morna carícia das
palmas.
— Às vezes a gente é tão descuidada — disse Clara timidamente. — Acha
que está levando tudo e sempre esquece alguma coisa.
— É que não sabíamos.
— Bom, mas mesmo assim. Ficavam me olhando, principalmente aquelas
garotas, me senti tão mal.
— Elas eram insuportáveis — declarou ele. — A senhora viu como elas
haviam combinado uma com a outra aquilo de cravar os olhos em nós?
— Ao fim e ao cabo, o buquê era de crisântemos e dálias — disse Clara.
— Mesmo assim elas se davam ares.
— Porque os outros davam trela — afirmou ele com irritação. — O velho
do meu assento com seus cravos amontoados, com aquela cara de pássaro.
Os de trás é que não vi direito. A senhora acha que todos…
— Ainda bem que desceram.
Pueyrredón, freada seca. Um policial moreno se abria em cruz acusando-
se de alguma coisa em sua guarita elevada. O motorista saiu do assento
como se estivesse deslizando, o cobrador quis apanhá-lo pela manga mas
ele se soltou com violência e veio pelo corredor, olhando-os
alternadamente, encolhido e com os lábios úmidos tremendo. “Por ali dá
para passar”, gritou o cobrador com uma voz estranha. Dez buzinas se
esganiçavam na ré do ônibus e o motorista correu para seu assento, aflito. O
cobrador disse-lhe alguma coisa ao ouvido, virando-se a todo momento para
olhá-los.
— Se o senhor não estivesse aqui… — murmurou Clara. — Acho que se
o senhor não estivesse aqui eu teria resolvido descer.
— Mas a senhora vai a Retiro — disse ele, um tanto surpreso.
— É, preciso fazer uma visita. Não faz mal, mesmo assim eu teria
descido.
— Eu comprei passagem de quinze — disse ele. — Até Retiro.
— Eu também. O problema é que se a gente desce, depois, até aparecer
outro ônibus…
— Claro, e além disso pode estar lotado.
— É, pode. Hoje em dia o transporte é tão ruim… O senhor viu os
metrôs?
— Uma coisa incrível. A viagem é mais cansativa que o emprego.
Um ar verde e claro flutuava no veículo, viram o rosa velho do Museu, a
nova Faculdade de Direito, e o 168 acelerou mais ainda na Leandro N.
Alem, como se estivesse furioso para chegar. Duas vezes foi parado por
algum policial de trânsito e duas vezes o motorista quis se atirar para cima
deles; na segunda delas o cobrador ficou na frente dele, impedindo-o com
raiva, como a contragosto. Clara sentia seus joelhos subirem na direção do
peito, e as mãos de seu companheiro a desertaram bruscamente e se
cobriram de ossos salientes, de veias rígidas. Clara nunca havia visto a
transformação viril da mão em punho, contemplou aqueles objetos maciços
com uma humilde confiança quase perdida sob o terror. E falavam o tempo
todo das viagens, das filas que é preciso fazer na Plaza de Mayo, da
grosseria das pessoas, da paciência. Depois se calaram, fitando o paredão
ferroviário, e seu companheiro tirou a carteira, ficou algum tempo
conferindo-a, muito sério, com os dedos um pouco trêmulos.
— Falta pouco — disse Clara, endireitando o corpo. — Chegamos.
— É mesmo. Olhe, quando ele entrar em Retiro a gente levanta depressa
para descer.
— Está certo. Quando ele estiver ao lado da praça.
— Isso. A parada fica antes da torre dos Ingleses. A senhora desce
primeiro.
— Ah, dá no mesmo.
— Não, eu vou atrás, por via das dúvidas. Assim que a gente dobrar, me
levanto e lhe dou passagem. A senhora precisa se levantar depressa e descer
um dos degraus da porta; nesse momento eu me posiciono atrás.
— Está bem, obrigada — disse Clara emocionada, e os dois se
concentraram no plano, estudando a localização de suas pernas, dos espaços
a transpor. Viram que o 168 teria passagem livre na esquina da praça;
fazendo tremerem os vidros e quase atingindo o meio-fio da praça, fez a
curva a toda a velocidade. O passageiro se levantou do assento num salto e
atrás dele passou, veloz, Clara, jogando-se escada abaixo enquanto ele se
virava e a ocultava com o corpo. Clara olhava para a porta, para as faixas de
borracha preta e os retângulos de vidro sujo; não queria ver outra coisa e
tremia horrivelmente. Sentiu no cabelo o arfar do companheiro, a freada
brutal jogou-os para um lado, e no mesmo momento em que a porta se abria
o motorista correu pelo corredor com as mãos estendidas. Clara já saltava
para a praça, e quando se virou o companheiro saltava também e a porta
bufou ao fechar-se. As borrachas pretas aprisionaram uma das mãos do
motorista, seus dedos rígidos e brancos. Clara viu através das janelas que o
cobrador havia se jogado sobre o volante para chegar até a alavanca que
fechava a porta.
Ele a tomou pelo braço e os dois avançaram rapidamente pela praça cheia
de crianças e sorveteiros. Não disseram nada um para o outro, mas tremiam
como se fosse de felicidade e sem se olhar. Clara se deixava guiar,
percebendo vagamente a grama, os canteiros, sentindo o cheiro de um ar de
rio que crescia de frente. O florista estava num dos lados da praça, e ele foi
se posicionar diante do cesto montado sobre cavaletes e escolheu dois
buquês de amores-perfeitos. Entregou um deles a Clara, depois a fez
segurar os dois enquanto tirava a carteira e pagava. Mas ao continuar
andando (ele não voltou a segurá-la pelo braço) cada um deles levava seu
buquê, cada um deles ia com o seu e estava contente.
Cefaleia
Devemos à dra. Margaret L. Tyler as imagens mais belas deste
conto. Seu admirável poema “Sintomas orientadores para os
remédios mais comuns para vertigem e cefaleias” saiu na revista
Homeopatía (publicada pela Associação Médica Homeopática
Argentina), ano XIV, no 32, abril de 1946, pp. 33 e ss. Ao mesmo
tempo, agradecemos a Ireneo Fernando Cruz por ter nos
iniciado, durante sua viagem a San Juan, no conhecimento das
mancúspias.
C
uidamos das mancúspias até bastante tarde, agora com o calor do
verão elas ficam cheias de caprichos e versatilidades, as mais
atrasadas reclamam alimentação especial e lhes oferecemos aveia
maltada em grandes travessas de louça; as mais velhas estão
trocando a pelagem do dorso, de modo que é preciso separá-las, prender
nelas uma manta como agasalho e tomar cuidado para que à noite elas não
se reúnam às mancúspias que dormem em gaiolas e são alimentadas de oito
em oito horas.
Não nos sentimos bem. Começou pela manhã, talvez devido ao vento
quente que soprava ao amanhecer, antes de nascer esse sol alcatroado que
bateu na casa o dia inteiro. Temos dificuldade para atender os animais
doentes — como fazemos às onze horas — e conferir as crias depois da
sesta. Parece-nos cada vez mais penoso ir em frente, seguir a rotina; temos a
impressão de que uma única noite de desatenção seria funesta para as
mancúspias, a derrocada irreparável de nossa vida. Então vamos em frente
sem refletir, desempenhando um depois dos outros os atos que o hábito
escalona, detendo-nos apenas para comer (há pedaços de pão na mesa e
sobre a prateleira do living) ou olhar-nos no espelho que duplica o quarto. À
noite caímos repentinamente na cama, e a tendência a escovar os dentes
antes de dormir cede ao cansaço, é suficiente apenas para ser substituída por
um gesto na direção do abajur ou dos remédios. Lá fora ouvem-se as
mancúspias adultas andando em círculos.
Não nos sentimos bem. Um de nós é Aconitum, ou seja, deve medicar-se
com aconitum em diluições elevadas se, por exemplo, o medo lhe provoca
vertigem. O Aconitum é uma tempestade violenta que passa depressa. De
que outro modo descrever o contra-ataque a uma ansiedade que brota de
qualquer insignificância, do nada? Uma mulher encontra repentinamente
um cão e começa a sentir-se violentamente nauseada. Então aconitum, e
pouco depois resta apenas uma náusea leve, com tendência a recuar (isso
aconteceu conosco, mas era um caso Byronia, o mesmo que sentir que
afundávamos com, ou através da cama).
O outro, em compensação, é nitidamente Nux Vomica. Depois de levar a
aveia maltada às mancúspias, talvez por muito agachar-se para encher a
gamela, tem de pronto a sensação de que o cérebro está girando, não de que
tudo ao redor está girando — a vertigem em si —, mas de que é a visão que
está girando, dentro dele a consciência gira como um giroscópio em seu
aro, e lá fora tudo está tremendamente imóvel, só que fugindo e
inapreensível. Ocorreu-nos se não seria mais adequado pensar num quadro
de Phosphorus, porque também o aterroriza o perfume das flores (ou o das
mancúspias pequenas, que têm um leve odor de lilás) e coincide fisicamente
com o quadro fosfórico: é alto, fino, anseia por bebidas geladas, sorvetes e
sal.
À noite não é tanto, o cansaço e o silêncio nos ajudam — porque o rondar
das mancúspias escande docemente o silêncio do pampa — e às vezes
dormimos até o amanhecer e somos despertados por um esperançoso
sentimento de melhora. Se um de nós pula da cama antes do outro, pode
acontecer porém que assistamos consternados à repetição de um fenômeno
Camphora monobromata, pois acredita avançar numa direção quando na
verdade o faz na direção oposta. É terrível, vamos com absoluta certeza
para o banheiro e de inopino sentimos no rosto a pele nua do espelho alto.
Quase sempre levamos na brincadeira, porque é preciso pensar no trabalho
à espera e de nada serviria desanimar tão rápido. Buscam-se as cápsulas
gelatinosas, executam-se sem comentários nem desalentos as instruções do
dr. Harbín. (Talvez em segredo sejamos um pouco Natrum muriaticum.
Tipicamente, um natrum chora, mas ninguém deve presenciar. É triste, é
reservado; gosta de sal.)
Quem vai pensar em tantas vaidades se a obrigação espera nos currais, no
invernadouro e no tambo? Leonor e o Chango já estão lá fora fazendo
bagunça, e quando saímos com os termômetros e as bateias para o banho, os
dois se precipitam para o trabalho como se quisessem ficar cansados
depressa, organizando as preguiças da tarde. Sabemos muito bem disso,
portanto ficamos felizes por ter saúde para desempenhar nós mesmos todas
as coisas. Enquanto parar por aí e não aparecerem as cefaleias, podemos ir
em frente. Estamos em fevereiro, em maio as mancúspias já estarão
vendidas e nós a salvo por todo o inverno. Ainda dá para continuar.
As mancúspias nos distraem muito, em parte porque estão repletas de
esperteza e malevolência, em parte porque criá-las é um trabalho sutil, que
exige uma precisão incessante e minuciosa. Não temos por que exagerar,
mas eis um exemplo: um de nós retira as mancúspias mães das gaiolas de
invernadouro — são seis e meia da manhã — e as reúne no curral de
forragem seca. Deixa-as em seus folguedos por vinte minutos enquanto o
outro retira os filhotes dos compartimentos numerados onde cada um tem
seu histórico clínico, verifica rapidamente a temperatura retal, devolve para
o compartimento os que estão com mais de 37oC, e usando uma bacia de
lata leva os demais para que se reúnam às mães para a lactância. Talvez esse
seja o momento mais bonito da manhã, comove-nos a alegria das pequenas
mancúspias e de suas mães, sua rumorosa tagarelice ininterrupta. Apoiados
no parapeito do curral, esquecemos a figura do meio-dia que se aproxima, a
dura tarde impreterível. Por momentos sentimos um certo medo de olhar
para o chão do curral — um quadro Onosmodium acentuadíssimo —, mas
depois passa, e a luz nos salva do sintoma suplementar, da cefaleia que se
agrava com o escuro.
Às oito chega a hora do banho, um de nós vai jogando punhados de sais
Krüschen e farelo nas bateias, a outra dá instruções ao Chango, que vem
com baldes de água morna. As mancúspias mães não gostam de banho, é
preciso segurá-las com cuidado pelas orelhas e as patas, imobilizando-as
como coelhos, e submergi-las repetidas vezes na bateia. As mancúspias se
desesperam e se eriçam, e é o que queremos para que os sais penetrem em
sua pele tão delicada.
Leonor é a encarregada de alimentar as mães, e o faz muito bem; nunca a
vimos errar na distribuição das porções. Recebem aveia maltada e duas
vezes por semana leite com vinho branco. Desconfiamos um pouco do
Chango, achamos que bebe o vinho; seria melhor guardar o barril dentro de
casa, mas há pouco espaço e além disso o cheiro adocicado que rescende
nas horas de sol alto.
Talvez o que dizemos fosse monótono e inútil se em sua repetição não
estivesse passando lentamente por alterações; nos últimos dias — agora que
entramos no período crítico do desmame — um de nós foi obrigado a
reconhecer, com que amargo consentimento, o avanço de um quadro Silica.
Ele tem início no exato instante em que somos dominados pelo sono, é uma
perda da estabilidade, um salto para dentro, uma vertigem que escala a
coluna vertebral e chega ao interior da cabeça; como a própria escalada
rastejante (não há outra forma de descrever) das pequenas mancúspias pelos
tocos dos currais. Então, de repente, sobre o poço negro do sono no qual já
vamos caindo deliciosamente, somos aquele toco duro e ácido que as
mancúspias escalam, brincando. E fechando os olhos é pior. Desse modo o
sono se esvai, ninguém dorme de olhos abertos, ficamos morrendo de
cansaço mas basta um leve abandono para sentir a vertigem que rasteja, um
vaivém no crânio, como se a cabeça estivesse cheia de coisas vivas que
giram ao seu redor. Como mancúspias.
E é tão ridículo, ficou provado que os doentes silica têm falta de sílica,
areia. E nós aqui, rodeados de dunas, num pequeno vale ameaçado por
dunas imensas, com falta de areia ao adormecer.
Contra a probabilidade de que a coisa avance, preferimos perder algum
tempo dosificando-nos severamente; às doze horas percebemos que a
reação é favorável, e a tarde de trabalho decorre sem obstáculos — apenas,
talvez, um leve descompasso das coisas, de súbito como se os objetos
estacassem à nossa frente, erguendo-se sem se mover; uma sensação de
aresta viva em cada plano. Estamos com a suspeita de haver uma passagem
para Dulcamara, mas não é fácil ter certeza.
Flutuam leves no ar as lanugens das mancúspias adultas; depois da sesta,
munidos de tesouras e sacos de borracha, vamos ao curral cercado onde o
Chango as reúne para a tosa. Em fevereiro as noites já são frescas; as
mancúspias têm necessidade da pelagem porque dormem estiradas e
carecem da proteção que fornecem a si mesmos os animais que se enroscam
encolhendo as patas. Mesmo assim elas perdem o pelo do lombo, despelam
devagar e ao ar livre, o vento levanta do curral uma névoa fina de pelos que
fazem cócegas no nariz e nos atormentam até dentro de casa. Então
reunimos as mancúspias e lhes tosamos o lombo a média altura, cuidando
para não privá-las de calor; quando cai, esse pelo, curto demais para flutuar
no ar, vai formando um polvilho amarelado que Leonor molha com a
mangueira e recolhe diariamente, formando uma bola de massa que
jogamos no poço.
Enquanto isso um de nós tem de cruzar os machos com as mancúspias
jovens, pesar os filhotes enquanto o Chango lê em voz alta os pesos da
véspera, verificar o progresso de cada mancúspia e separar as atrasadas para
submetê-las à superalimentação. Vamos nisso até o anoitecer; só falta a
aveia da segunda refeição, que Leonor distribui num instante, e trancar as
mancúspias mães enquanto as pequenas guincham e teimam em continuar
junto delas. O Chango é quem se encarrega da separação; nós outros já
estamos na varanda fazendo o controle. Às oito as portas e janelas são
fechadas; às oito ficamos sós, lá dentro.
Antes era um momento doce, a evocação de episódios e esperanças. Mas
desde que passamos a não nos sentir bem, temos a sensação de que essa
hora ficou mais pesada. Em vão nos iludimos organizando a farmácia — é
comum a ordem alfabética dos remédios se alterar por descuido; no fim
sempre vamos ficando calados ao redor da mesa, lendo o manual de
Álvarez de Toledo (Estuda-te a ti mesmo) ou o de Humphreys (Guia
homeopático). Um de nós teve com intermitências uma fase Pulsatilla, vale
dizer, com tendência a mostrar-se volúvel, chorona, exigente, irritável. Isso
aflora ao anoitecer e coincide com o quadro Petroleum, que afeta o outro,
um estado em que tudo — coisas, vozes, lembranças — passa por cima
dele, intumescendo-o e entorpecendo-o. De modo que não há conflito,
somente um sofrer paralelo e tolerável. Depois, às vezes, vem o sono.
Também não gostaríamos de dar a estas notas uma ênfase progressiva, um
crescer articulando-se até o estalido patético da grande orquestra, por trás
da qual decrescem as vozes e se retoma uma calma de saturação. Às vezes
essas coisas que registramos já nos aconteceram (como a grande cefaleia
Glonoinum no dia em que nasceu a segunda ninhada de mancúspias), às
vezes é agora ou pela manhã. Julgamos necessário documentar essas fases
para que o dr. Harbín as adicione a nosso histórico clínico quando
voltarmos para Buenos Aires. Não somos hábeis, sabemos que de repente
nos afastamos do tema, mas o dr. Harbín prefere conhecer os detalhes
circunstanciais dos quadros. Aquele roçar contra a janela do banheiro que
ouvimos à noite pode ser importante. Pode ser um sintoma Cannabis
indica; já se sabe que um cannabis indica tem sensações exaltadas, com
exagero de tempo e distância. Pode ser uma mancúspia que conseguiu fugir
e é atraída, como todas, pela luz.
No início éramos otimistas, ainda não perdemos a esperança de ganhar um
bom dinheiro com a venda dos filhotes pequenos. Levantamo-nos cedo,
medindo o valor crescente do tempo na fase final, e de início a fuga do
Chango e de Leonor quase não nos afeta. Sem aviso prévio, sem o menor
respeito à legislação, nos deixaram na noite passada, aqueles filhos da puta,
levando o cavalo e a charrete, a manta de uma de nós, a lanterna de
carbureto, o último número da Mundo Argentino. Pelo silêncio nos currais,
desconfiamos da ausência deles; é preciso presteza para soltar os filhotes
para a lactância, preparar os banhos, a aveia maltada. Pensamos o tempo
todo que não se deve pensar no que aconteceu, trabalhamos sem admitir que
agora estamos sozinhos, sem cavalo para transpor as seis léguas que nos
separam de Puán, com provisões para uma semana e rondados por
vagabundos inúteis, agora que nos outros povoados se espalhou o boato
idiota de que criamos mancúspias e ninguém chega perto por medo de
doenças. Só trabalhando e com saúde conseguimos tolerar uma conspiração
que nos inferniza por volta do meio-dia, em pleno horário de almoço (uma
de nós prepara bruscamente uma lata de língua e outra de ervilha, frita
presunto com ovos), que rechaça a ideia de não dormir a sesta, nos encerra
na sombra do quarto com mais rudeza que as portas de ferrolho duplo. Só
agora recordamos claramente a noite maldormida, essa vertigem curiosa,
transparente, se é que temos permissão para inventar essa expressão. Ao
levantar, ao acordar, olhando para diante, qualquer objeto — digamos o
roupeiro, por exemplo — é visto girando em velocidade variável e
desviando-se de maneira inconstante para um lado (direito); enquanto ao
mesmo tempo, através do rodamoinho, observa-se o mesmo roupeiro
firmemente em pé, sem se mover. Cyclamen, de modo que o tratamento age
em poucos minutos e nos equilibra para a marcha e o trabalho. Muito pior é
perceber em plena sesta (quando as coisas são tão elas próprias, quando o
sol as recolhe duramente em suas arestas) que no curral das mancúspias
grandes há agitação e falação, uma renúncia súbita e inquietante ao repouso
que as engorda. Não queremos sair, o sol alto seria a cefaleia, como admitir
agora a possibilidade de cefaleia quando tudo depende de nosso trabalho.
Mas será preciso fazê-lo, cresce a agitação das mancúspias e é impossível
continuar na casa quando chega dos currais um rumor jamais ouvido, então
nos precipitamos para fora protegidos por cascas de cortiça, nos separamos
depois de um precipitado conciliábulo, uma de nós corre para as gaiolas das
mães enquanto o outro verifica os cadeados de portões, o nível da água no
tanque australiano, a possível irrupção de uma raposa ou de um gato
montês. Assim que chegamos à entrada dos currais e o sol já nos ofusca,
vacilamos como albinos entre as labaredas brancas, gostaríamos de ir em
frente com o trabalho mas ficou tarde, o quadro Belladona liquida conosco
até nos precipitar esgotados nas profundezas sombrias do galpão.
Congestionados, de rosto vermelho e quente; pupilas dilatadas. Pulsação
violenta no cérebro e nas carótidas. Violentas fisgadas e pontadas. Cefaleia
como sacolejos. A cada passo sacolejo para baixo como se houvesse um
peso no occipital. Facadas e fisgadas. Dor de estalo; como se se empurrasse
o cérebro; pior agachando-se, como se o cérebro caísse para fora, como se
fosse empurrado para a frente, ou os olhos estivessem a ponto de saltar.
(Como isso, como aquilo; mas nunca como é de fato.) Pior com os ruídos,
sacudidas, movimento, luz. E de repente cessa, a sombra e o frescor levam-
na num instante, deixam-nos uma maravilhada gratidão, um desejo de
correr e balançar a cabeça, de assombrar-se com o fato de que um minuto
antes… Mas tem o trabalho, e agora supomos que a agitação das
mancúspias obedece à falta de água fresca, à ausência de Leonor e do
Chango — elas são tão sensíveis que devem sentir essa ausência de alguma
forma —, e um pouco a estranharem a alteração nas atividades matutinas,
nossa falta de jeito, nossa pressa.
Como nos dias de tosa, um de nós se encarrega do acasalamento pré-
fixado e do controle do peso; é fácil perceber que de ontem para hoje as
criações tiveram uma piora súbita. As mães comem mal, farejam
prolongadamente a aveia maltada antes de dignar-se a morder a morna pasta
alimentícia. Desempenhamos em silêncio as últimas tarefas, agora a
chegada da noite tem outro sentido que não queremos examinar, já não nos
separamos como antes de uma ordem estabelecida e que funciona, de
Leonor e do Chango e das mancúspias cada uma em seu lugar. Fechar as
portas da casa é deixar a sós um mundo sem legislação, entregue aos
sucessos da noite e da aurora. Entramos temerosos e esmerados,
demorando-nos no momento, incapazes de retardá-lo e por isso furtivos e
esquivando-nos, com a noite inteira à espera como um olho.
Por sorte estamos com sono, a insolação e o trabalho podem mais que uma
inquietação não comunicada, vamos ficando adormecidos sobre os restos
frios que mastigamos penosamente, os retalhos de ovo frito e pão molhado
no leite. Alguma coisa raspa de novo a janela do banheiro, no forro parece
que se ouvem corridinhas furtivas; não há vento, é noite de lua cheia e os
galos cantariam antes da meia-noite, se galos tivéssemos. Vamos para a
cama sem falar, repartindo quase às apalpadelas a última dose do
tratamento. De luz apagada — mas isso não é preciso, não há luz apagada,
simplesmente está faltando luz, a casa é um fundo de treva e por fora tudo é
lua cheia — queremos dizer-nos alguma coisa e não passa de um perguntar-
se pelo dia de amanhã, pela forma de conseguir o alimento, de chegar ao
povoado. E adormecemos. Uma hora, não mais, o fio cinzento que puxa a
janela mal se moveu na direção da cama. De repente estamos sentados no
escuro, ouvindo no escuro porque se ouve melhor. Está acontecendo alguma
coisa com as mancúspias, o rumor é agora um alarido raivoso ou
aterrorizado, é possível distinguir o guincho afiado das fêmeas e o ulular
mais tosco dos machos, calam-se de repente e pela casa se move uma
espécie de rajada de silêncio, então novamente o alarido se ergue sobre o
fundo da noite e da distância. Não nos ocorre sair, já basta estar a ouvi-las,
um de nós não sabe bem se a gritaria é lá fora ou aqui, porque há momentos
em que ela brota como se fosse de dentro, e no decorrer dessa hora
entramos num quadro Aconitum, no qual tudo se confunde e nada é menos
verdadeiro que seu oposto. Sim, as cefaleias vêm com tal violência que mal
é possível descrevê-las. Sensação de ruptura, de ardência no cérebro, no
couro cabeludo, com medo, com febre, com angústia. Plenitude e aperto na
testa, como se ali houvesse um peso pressionando para fora, como se tudo
fosse arrancado pela testa. Aconitum é súbito; selvagem; pior com ventos
frios; com preocupação, angústia, medo. As mancúspias rondam a casa, é
inútil repetir-nos que elas estão nos currais, que os cadeados resistem.
Não nos damos conta do amanhecer, por volta das cinco somos abatidos
por um sono sem repouso do qual saem nossas mãos em horário fixo para
levar à boca os glóbulos. Faz algum tempo que estão batendo na porta do
living, as pancadas aumentam com raiva até que um de nós permite que os
chinelos se instalem em seus pés e se arrastem até a chave. É a polícia com
a notícia da prisão do Chango; trazem-nos de volta a charrete, desconfiaram
do roubo e do abandono. É preciso assinar uma declaração, está tudo bem, o
sol alto e um grande silêncio nos currais. Os policiais olham para os currais,
um deles tapa o nariz com o lenço, finge tossir. Dizemos depressa o que
querem, assinamos e eles partem quase correndo, passam longe dos currais
e olham para eles, também olharam para nós, arriscando uma olhadinha
para dentro (pela porta sai um ar de lugar fechado), e partem quase
correndo. É muito curioso que esses brutos não quisessem espiar mais,
fogem como pesteados, já passam a galope pelo caminho do lado.
Um de nós parece decidir pessoalmente que o outro vai sem demora
buscar alimento com a charrete enquanto se desempenham as tarefas
matinais. Subimos a contragosto, o cavalo está cansado porque o trouxeram
sem lhe dar folga, vamos saindo devagar e olhando para trás. Está tudo em
ordem, então não eram as mancúspias que estavam fazendo barulho na casa,
será preciso fumigar os ratos no forro, é incrível o barulho que um único
rato pode fazer durante a noite. Abrimos os currais, reunimos as mães mas
resta pouca aveia maltada e as mancúspias lutam ferozmente, arrancam
pedaços do lombo e do pescoço uma da outra, o sangue brota e é preciso
separá-las à força de chicote e gritos. Depois disso a lactância das crias é
penosa e imperfeita, dá para perceber que os filhotes estão famintos, alguns
vacilam ao correr ou se apoiam nos arames da cerca. Há um macho morto
na entrada de sua gaiola, inexplicavelmente. E o cavalo resiste, não quer
trotar, já estamos a dez quadras de casa e sempre a passo, de cabeça caída e
bufando. Desanimados empreendemos a volta, chegamos a tempo de ver
como os últimos restos de alimento desaparecem num tumulto de refrega.
Voltamos para a varanda sem insistir. No primeiro degrau há um filhote de
mancúspia morrendo. Recolhemos o filhote do chão, pusemos numa cesta
com palha, gostaríamos de saber o que ele tem, mas ele morre com a morte
obscura dos animais. E os cadeados estavam intactos, não se sabe como
essa mancúspia conseguiu escapar, se sua morte é resultado da escapada ou
se escapou porque estava morrendo. Jogamos dez glóbulos de Nux Vomica
em seu bico, que ficam ali mesmo como pequenas pérolas, ela já não
consegue engolir. De onde estamos dá para ver um macho caído sobre as
mãos; tenta levantar-se com um repelão, mas torna a cair como se rezasse.
Temos a impressão de ouvir gritos, tão perto de nós que chegamos a olhar
debaixo das cadeiras de palha da varanda; o dr. Harbín nos advertiu quanto
às reações animais que atacam pela manhã, não havíamos pensado que
pudesse ser uma cefaleia desse tipo. Dor occipital, de vez em quando um
grito: quadro de Apis, dores que parecem picadas de abelha. Dobramos a
cabeça para trás ou a afundamos no travesseiro (em algum momento
chegamos até a cama). Sem sede, mas transpirando; urina escassa, gritos
penetrantes. Parecemos machucados, sensíveis ao tato; houve um momento
em que nos demos as mãos e foi terrível. Até que cessa, paulatina,
deixando-nos o temor de uma repetição com variante animal, como já
aconteceu uma vez: depois da abelha, o quadro da serpente. São duas e
meia.
Preferimos completar estes informes enquanto ainda há luz e estamos
bem. Um de nós deveria ir agora até o povoado, se a sesta acaba ficará
muito tarde para voltar, e passar toda a noite sozinhos na casa, talvez sem
poder nos medicar… A sesta estanca silenciosa, está quente nos aposentos,
se vamos até a varanda nos rechaça a cor de giz da terra, os galpões, os
telhados. Morreram outras mancúspias mas o resto se cala, só de perto as
ouviríamos arfar. Uma de nós acredita que conseguiríamos vendê-las, que
deveríamos ir até o povoado. O outro faz estes apontamentos e já não
acredita em grande coisa. Que passe o calor, que seja noite. Saímos quase às
sete, ainda há alguns punhados de alimento no galpão, sacudindo as sacas
cai um pozinho de aveia que recolhemos preciosamente. Elas o farejam e a
agitação nas gaiolas é violenta. Não ousamos soltá-las, é melhor pôr uma
colherada de massa em cada gaiola, assim parece que ficam mais satisfeitas,
que é mais justo. Nem sequer recolhemos as mancúspias mortas, não
conseguimos entender como é possível haver dez gaiolas vazias, como parte
dos filhotes está misturada com os machos, no curral. Mal dá para ver,
agora anoitece de repente e o Chango roubou nossa lanterna de carbureto.
A impressão que se tem é de que no caminho, sobre o fundo da mata de
chorões, tem alguém. Seria o momento de chamar para que alguém fosse
até o povoado; ainda há tempo. Às vezes achamos que nos espiam, as
pessoas são tão ignorantes e nos olham tão de través. Preferimos não pensar
e fechamos a porta com deleite, recolhidos à casa onde tudo é mais nosso.
Gostaríamos de consultar os manuais para precaver-nos contra um novo
Apis, ou contra o outro animal ainda pior; deixamos a janta e lemos em voz
alta, quase sem escutar. Algumas frases sobem sobre as outras, e lá fora é a
mesma coisa, algumas mancúspias uivam mais alto que as demais,
persistem e repetem um ulular lancinante. “Crotalus cascavella tem
alucinações peculiares…” Um de nós repete a citação, alegra-nos
compreender tão bem o latim, crótalo cascavel, mas é dizer a mesma coisa,
porque cascavel é crótalo. Talvez o manual não queira impressionar os
doentes comuns com a menção direta ao animal. E não obstante o nomeia,
essa terrível serpente… “cujo veneno age com tremenda intensidade”.
Temos que forçar a voz para ouvir-nos em meio ao clamor das mancúspias,
de novo as sentimos perto da casa, nos telhados, arranhando as janelas,
empurrando os lintéis. De alguma forma deixou de ser estranho, à tarde
vimos tantas gaiolas abertas, mas a casa está fechada e a luz da sala de
jantar nos envolve numa fria proteção enquanto nos ilustramos a gritos.
Tudo está claro no manual, uma linguagem direta para doentes sem
preconceitos, a descrição do quadro: cefaleia e grande excitação, causadas
por começar a dormir. (Mas por sorte estamos sem sono.) O crânio
comprime o cérebro como um capacete de aço — boa descrição. Uma coisa
viva anda em círculos dentro da cabeça. (Então a casa é nossa cabeça,
sentimos que a rondam, cada janela é uma orelha voltada para o uivo das
mancúspias ali fora.) Cabeça e peito comprimidos por uma armadura de
ferro. Um ferro em brasa cravado no vértex. Não estamos seguros quanto ao
vértex, faz um tempinho que a luz vacila, cede pouco a pouco, esta tarde
esquecemos de pôr o moinho para funcionar. Quando fica impossível ler,
acendemos uma vela perto do manual para terminar de informar-nos sobre
os sintomas, é melhor saber para o caso de mais tarde — dores lancinantes
agudas na têmpora direita, essa terrível serpente cujo veneno age com
tremenda intensidade (já lemos isso, é difícil iluminar o manual com uma
vela), uma coisa viva anda em círculos dentro da cabeça, também já lemos e
é verdade, uma coisa viva anda em círculos. Não estamos preocupados, lá
fora é pior, se é que há um lá fora. Por sobre o manual estamos olhando um
para o outro, e se um de nós alude com um gesto aos uivos que aumentam
cada vez mais, voltamos à leitura como se estivéssemos convencidos de que
tudo isso está agora ali, onde uma coisa viva anda em círculos uivando de
encontro às janelas, de encontro aos ouvidos, os uivos das mancúspias
morrendo de fome.
Circe
And one kiss I had of her mouth, as I took the apple from her
hand. But while I bit it, my brain whirled and my foot stumbled;
and I felt my crashing fall through the tangled boughs beneath
her feet and saw the dead white faces that welcomed me in the
pit.
Dante Gabriel Rossetti, “The Orchard-Pit”
P
orque já não há de fazer diferença para ele, mas daquela vez doeu-
lhe a coincidência dos comentários entrecortados, a expressão servil
de Mãe Celeste contando a tia Bebé, o incrédulo desconforto no
gesto de seu pai. Primeiro foi a do sobrado, seu jeito bovino de girar
devagar a cabeça, ruminando as palavras com delícia de bolo vegetal. E
ainda a garota da farmácia — “não que eu acredite, mas se fosse verdade,
que coisa horrível” — e até d. Emilio, sempre discreto como seus lápis e
suas cadernetas de oleado. Todos falavam de Delia Mañara com um resto de
pudor, nem um pouco seguros de que pudesse ser assim, mas o rosto de
Mario ia sendo tomado por um ar de fúria que avançava sem encontrar
obstáculos. Sentiu um ódio súbito pela família, com um estalido ineficaz de
independência. Nunca havia gostado deles; só o sangue e o medo de ficar
sozinho o prendiam à mãe e aos irmãos. Com os vizinhos foi direto e brutal,
d. Emilio foi insultado de cima a baixo na primeira vez que os comentários
se repetiram. Negou cumprimento à do sobrado como se isso pudesse
aborrecê-la. E quando voltava do trabalho entrava ostensivamente para
cumprimentar os Mañara e aproximar-se — às vezes com balas ou um livro
— da moça que havia matado seus dois noivos.
Lembro-me mal de Delia, mas ela era fina e loura, muito lenta de gestos
(eu estava com doze anos, o tempo e as coisas são lentos nessa idade) e
usava vestidos claros de saias rodadas. Mario acreditou por algum tempo
que a graça de Delia e seus vestidos corroboravam o ódio das pessoas.
Disse-o a Mãe Celeste: “Vocês a odeiam porque ela não é matuta que nem
vocês, como eu”, e nem pestanejou quando a mãe fez menção de acertar seu
rosto com uma toalha. Depois disso foi a ruptura declarada; deixavam-no
só, lavavam sua roupa por muito favor, aos domingos iam para Palermo ou
faziam piquenique sem nem avisá-lo. Então Mario se aproximava da janela
de Delia e jogava uma pedrinha. Às vezes ela aparecia, às vezes ouvia-a rir
no interior da casa, um pouco cruelmente e sem lhe dar esperanças.
Chegou o dia da luta Firpo-Dempsey e em todas as casas houve choro e
indignações brutais, seguidos de uma humilhada melancolia quase colonial.
Os Mañara se mudaram para quatro quadras dali e isso significa muito em
Almagro, de modo que outros vizinhos começaram a se relacionar com
Delia, as famílias de Victoria e Castro Barros se olvidaram do caso e Mario
continuou visitando-a duas vezes por semana quando voltava do banco. Já
era verão e Delia queria sair de vez em quando, iam juntos às confeitarias
da Rivadavia ou sentar-se na praça Once. Mario completou dezenove anos,
Delia viu chegar sem festas — ainda estava de luto — os vinte e dois.
Os Mañara achavam injustificado usar luto por um noivo, até Mario teria
preferido uma dor só por dentro. Era penoso presenciar o sorriso velado de
Delia ao pôr o chapéu diante do espelho, tão loura contra o fundo do luto.
Delia deixava-se adorar vagamente por Mario e os Mañara, deixava-se
passear e comprar coisas, voltar com a última luz e receber nos domingos à
tarde. Às vezes saía sozinha para ir ao antigo bairro, onde Héctor a
festejara. Mãe Celeste a viu passar uma tarde e fechou as persianas com
desprezo ostensivo. Um gato acompanhava Delia, todos os animais sempre
se mostravam submissos a Delia, não se sabia se era afeto ou dominação,
andavam perto dela sem que ela olhasse para eles. Mario uma vez percebeu
que um cachorro se afastava quando Delia ia acariciá-lo. Ela o chamou (era
no Once, à tarde) e o cachorro veio manso, talvez contente, até os dedos
dela. A mãe dizia que Delia havia brincado com aranhas quando pequena.
Todos ficavam assombrados, até Mario, que as temia pouco. E as borboletas
pousavam no cabelo dela — Mario viu duas numa única tarde, em San
Isidro —, mas Delia as afugentava com um gesto leve. Héctor lhe oferecera
um coelho branco que logo morrera, antes de Héctor. Mas Héctor se atirou
em Puerto Nuevo um domingo de madrugada. Foi nessa época que Mario
ouviu os primeiros comentários. A morte de Rolo Médicis não havia
interessado a ninguém, visto que meio mundo morre de síncope. Quando
Héctor se suicidou, os vizinhos viram coincidências demais, em Mario
renascia o rosto servil de Mãe Celeste contando a tia Bebé, o incrédulo
desconforto no gesto de seu pai. Para completar, fratura do crânio, porque
Rolo caiu de repente ao sair do vestíbulo dos Mañara, e, embora já estivesse
morto, a pancada brutal contra o degrau foi outro detalhe horrível. Delia
havia ficado dentro da casa, estranho não se despedirem na porta, mas de
toda maneira estava perto dele e foi a primeira a gritar. Héctor, em
compensação, morreu sozinho, numa noite de geada, cinco horas depois de
ter saído da casa de Delia, como todos os sábados.
Lembro-me mal de Mario, mas dizem que ele e Delia formavam um casal
bonito. Embora ela ainda estivesse de luto por Héctor (nunca pôs luto por
Rolo, sabe-se lá por quê), aceitava a companhia de Mario para passear por
Almagro ou ir ao cinema. Até aquele momento Mario se sentira fora de
Delia, da vida de Delia, até da casa de Delia. Era sempre uma “visita”, e
entre nós a palavra tem um sentido exato e divisório. Quanto ele a tomava
pelo braço para atravessar a rua ou ao subir a escada da estação Medrano, às
vezes olhava para a própria mão apertada contra a seda negra do vestido de
Delia. Media aquele branco sobre negro, aquela distância. Mas Delia se
aproximaria quando voltasse ao cinza, aos claros chapéus para domingo de
manhã.
Agora que os comentários não eram um artifício absoluto, o que era
horroroso para Mario era o fato de acrescentarem episódios indiferentes
para dar-lhes um sentido. Muita gente morre em Buenos Aires de ataque
cardíaco ou asfixia por imersão. Muitos coelhos definham e morrem nas
casas, nos pátios. Muitos cachorros se esquivam ou aceitam as carícias. As
poucas linhas que Héctor deixou para a mãe, os soluços que a do sobrado
disse ter ouvido no vestíbulo dos Mañara na noite em que Rolo morreu
(mas antes da pancada), o rosto de Delia nos primeiros dias… As pessoas
aplicam tanta inteligência a essas coisas, e assim como da soma de muitos
nós acaba nascendo um tapete — Mario veria o tapete, às vezes, com nojo,
com terror, quando a insônia entrava em seu quartinho para roubar-lhe a
noite.
“Perdoe minha morte, é impossível você entender, mas me perdoe,
mamãe.” Um papelzinho arrancado da borda da página do Crítica, retido
por uma pedra ao lado do casaco que ficou como um marco para o primeiro
marinheiro da madrugada. Até aquela noite ele fora tão feliz, claro que
haviam percebido que estava estranho nas últimas semanas; não estranho,
mas distraído, olhando o espaço como se visse coisas. Como se tentasse
escrever alguma coisa no ar, decifrar um enigma. Todos os rapazes do Café
Rubí concordavam com isso. Já Rolo não, seu coração parou de repente.
Rolo era um jovem sozinho e tranquilo, com dinheiro e um Chevrolet
faetonte duplo, de modo que poucos o haviam confrontado nesse período
final. Nos vestíbulos as coisas ecoam tanto, a do sobrado insistiu durante
dias e mais dias que o choro de Rolo fora uma espécie de brado sufocado,
um grito entre as mãos que desejam afogá-lo e o vão cortando em pedaços.
E quase em seguida a pancada atroz da cabeça contra o degrau, Delia
correndo e alertando, o alvoroço já inútil.
Sem se dar conta, Mario reunia pedaços de episódios, flagrava-se urdindo
explicações paralelas ao ataque dos vizinhos. Nunca perguntou a Delia,
esperava vagamente que ela lhe dissesse alguma coisa. Às vezes se
perguntava se Delia saberia exatamente o que murmuravam. Até os Mañara
eram estranhos, com seu jeito de aludir a Rolo e a Héctor sem violência,
como se os dois estivessem de viagem. Delia se calava, protegida por
aquele acordo precavido e incondicional. Quando Mario se uniu a eles,
discreto também, os três cobriram Delia com uma sombra fina e constante,
quase transparente às terças e quintas, mais palpável e solícita de sábado a
segunda. Delia recuperava agora uma miúda vivacidade episódica, um dia
tocou piano, outra vez jogou ludo; era mais meiga com Mario, fazia-o
sentar-se perto da janela da sala e lhe explicava projetos de costura ou de
bordado. Nunca lhe dizia nada sobre os doces e bombons, Mario achava
esquisito mas atribuía o fato à delicadeza, ao medo de entediá-lo. Os
Mañara elogiavam os licores de Delia; uma noite quiseram servir-lhe um
copinho, mas Delia disse em tom seco que eram licores para mulheres e que
havia derramado o conteúdo de quase todas as garrafas. “Héctor…”,
começou sua mãe, queixosa, e mais não disse para não deixar Mario triste.
Depois se deram conta de que Mario não se incomodava com a evocação
dos noivos. Não voltaram a falar de licores enquanto Delia não recuperou a
animação e quis experimentar receitas novas. Mario se lembrava daquela
tarde porque haviam acabado de promovê-lo e a primeira coisa que fez foi
comprar bombons para Delia. Os Mañara esgravataram pacientemente a
galena do aparelhinho com fones, e o fizeram ficar na sala de jantar durante
algum tempo para escutar Rosita Quiroga cantar. Em seguida ele contou da
promoção, e que trazia bombons para Delia.
— Você não devia ter comprado isso, mas vá, leve para ela, ela está na
sala. — E o olharam sair e olharam um para o outro até que Mañara retirou
os fones dos ouvidos como quem retira uma coroa de louros, e a senhora
suspirou desviando os olhos. De repente os dois pareciam infelizes,
perdidos. Com um gesto obscuro, Mañara ergueu a alavanquinha da galena.
Delia ficou olhando para a caixa e não deu maior importância aos
bombons, mas quando estava comendo o segundo, de menta com uma
pequena crista de noz, disse a Mario que sabia fazer bombons. Parecia
desculpar-se por não haver confiado tantas coisas a ele antes, começou a
descrever com agilidade a maneira de preparar os bombons, o recheio e os
banhos de chocolate ou moca. Sua melhor receita eram uns bombons de
laranja recheados de licor, perfurou com uma agulha um dos que Mario
havia trazido para mostrar-lhe como se manipulavam; Mario via seus dedos
brancos demais contra o bombom; olhando-a explicar, ela parecia um
cirurgião interrompendo um delicado tempo cirúrgico. O bombom como um
pequeno camundongo entre os dedos de Delia, uma coisa diminuta porém
viva que a agulha lacerava. Mario sentiu um mal-estar bizarro, uma doçura
de abominável repugnância. “Jogue fora esse bombom”, teria querido dizer-
lhe. “Jogue bem longe, não o ponha na boca porque está vivo, é um rato
vivo.” Depois recuperou a alegria da promoção, ouviu Delia repetir a
receita do licor de chá, do licor de rosa… Mergulhou os dedos na caixa e
comeu dois, três bombons, um depois do outro. Delia lhe sorria como se
zombasse dele. Ele imaginava coisas e foi temerosamente feliz. “O terceiro
noivo”, pensou bizarramente. “Dizer-lhe isto: seu terceiro noivo, só que
vivo.”
Agora já é mais difícil falar nisso, mistura-se a outras histórias que vamos
adicionando a partir de esquecimentos menores, de mínimas falsidades que
tramam e tramam por trás das lembranças; parece que ele ia mais
frequentemente à casa dos Mañara, a volta à vida de Delia o atrelava aos
gostos e aos caprichos dela, até mesmo os Mañara lhe pediram um tanto
receosos que animasse Delia, e ele comprava as substâncias para os licores,
os filtros e funis que ela recebia com uma grave satisfação na qual Mario
entrevia um pouco de amor, pelo menos algum esquecimento dos mortos.
Aos domingos ficava para a sobremesa com os seus, e Mãe Celeste lhe
agradecia por isso sem sorrir, mas dando-lhe a parte melhor do doce e o
café muito quente. Por fim haviam cessado as fofocas, pelo menos não se
falava em Delia na sua presença. Quem sabe se os bofetões no mais jovem
dos Camiletti ou o azedo confronto na presença de Mãe Celeste contavam
para alguma coisa; Mario chegou a acreditar que haviam reconsiderado, que
absolviam Delia e até voltavam a respeitá-la. Nunca falou de sua casa na
casa dos Mañara, assim como não mencionou sua amiga nas sobremesas de
domingo. Começava a julgar possível aquela dupla vida a quatro quadras
uma da outra; a esquina da Rivadavia com a Castro Barros era a ponte
necessária e eficaz. Teve inclusive esperança de que o futuro aproximasse
as casas, as pessoas, surdo ao curso incompreensível que sentia — às vezes,
a sós — como intimamente alheio e obscuro.
Ninguém mais visitava os Mañara. Era um pouco assombrosa, aquela
ausência de parentes e amigos. Mario não tinha necessidade de inventar um
toque especial de campainha para si próprio, todos sabiam que era ele. Em
dezembro, com um calor úmido e doce, Delia teve sucesso em fazer o licor
de laranja concentrado, beberam-no felizes num entardecer de tempestade.
Os Mañara não quiseram prová-lo, convencidos de que lhes faria mal. Delia
não se ofendeu, mas parecia transfigurada enquanto Mario sorvia
apreciativo o dedalzinho violáceo cheio de luz alaranjada, de aroma
ardente. “Isso vai me fazer morrer de calor, mas está delicioso”, disse uma
ou duas vezes. Delia, que falava pouco quando estava contente, observou:
“Fiz para você”. Os Mañara olhavam para ela como se quisessem ler-lhe a
receita, a alquimia minuciosa de quinze dias de trabalho.
Rolo gostava dos licores de Delia. Mario ficou sabendo disso por algumas
palavras pronunciadas de passagem por Mañara num momento em que
Delia não estava presente: “Ela fez muitas bebidas para ele. Mas Rolo tinha
medo, por causa do coração. O álcool faz mal ao coração”. Ter um noivo
assim delicado… Mario entendia agora a libertação que transparecia nos
gestos, no jeito como Delia tocava piano. Quase perguntou aos Mañara
sobre Héctor, do que ele gostava, se Delia fazia licores ou doces para
Héctor. Pensou nos bombons que Delia voltava a ensaiar e que se
alinhavam para secar numa prateleira da copa. Algo dizia a Mario que Delia
ia obter coisas maravilhosas com os bombons. Depois de pedir muitas
vezes, conseguiu que ela o deixasse provar um. Já estava de partida quando
Delia lhe trouxe uma amostra branca e leve num pratinho de alpaca.
Enquanto o saboreava — uma coisa ligeiramente amarga, com uma pitada
de menta e noz-moscada fundindo-se de modo insólito —, Delia mantinha
os olhos baixos e um ar modesto. Recusou-se a aceitar os elogios, aquilo
não passava de ensaio e ainda estava longe de atingir o que pretendia. Mas
na visita seguinte — também à noite, já na sombra da despedida junto ao
piano — ela permitiu que ele provasse outro ensaio. Era preciso fechar os
olhos para adivinhar o sabor, e Mario obediente fechou os olhos e adivinhou
um sabor de mandarina, levíssimo, emanando das profundezas do
chocolate. Seus dentes moíam pedacinhos crocantes, não chegou a sentir
seu sabor e era somente a sensação agradável de encontrar um apoio em
meio àquela polpa doce e esquiva.
Delia estava feliz com o resultado, disse a Mario que sua descrição do
sabor se aproximava do que havia esperado. Ainda faltavam ensaios, havia
coisas sutis por equilibrar. Os Mañara disseram a Mario que Delia não
tornara a sentar-se ao piano, que passava as horas preparando os licores, os
bombons. Não o diziam como crítica, mas também não estavam contentes;
Mario adivinhou que os gastos de Delia os afligiam. Então um dia pediu a
Delia em segredo uma lista das essências e substâncias necessárias. Ela fez
uma coisa que nunca havia feito antes, pendurou-se em seu pescoço e lhe
deu um beijo na bochecha. Sua boca cheirava devagarinho a menta. Mario
fechou os olhos, levado pela necessidade de sentir o perfume e o sabor
desde a parte interna das pálpebras. E o beijo voltou, mais duro e
queixando-se.
Não soube se havia devolvido o beijo, talvez tivesse ficado imóvel e
passivo, degustador de Delia na penumbra da sala. Ela tocou piano, como
quase nunca fazia agora, e pediu-lhe que voltasse no dia seguinte. Eles
nunca haviam se falado com aquela voz, nunca haviam se calado assim. Os
Mañara desconfiaram de alguma coisa porque entraram agitando os jornais
e falando de um aviador perdido no Atlântico. Eram dias em que muitos
aviadores ficavam no meio do Atlântico. Alguém acendeu a luz e Delia se
afastou irritada do piano, por um momento Mario teve a impressão de que
seu gesto diante da luz tinha algo da fuga ofuscada da centopeia, uma
carreira enlouquecida pelas paredes. Abria e fechava as mãos, no vão da
porta, e depois voltou com ar de envergonhada, olhando de viés para os
Mañara; olhava para eles de viés e sorria para si mesma.
Sem surpresa, quase como uma confirmação, Mario avaliou naquela noite
a fragilidade da paz de Delia, o peso persistente da dupla morte. Rolo, ainda
vá lá; Héctor já era o transbordamento, a trinca que desnuda um espelho. De
Delia restavam as manias delicadas, a manipulação de essências e animais,
seu contato com coisas simples e obscuras, a proximidade das borboletas e
dos gatos, a aura de sua respiração meio na morte. Prometeu-se uma
caridade sem limites, uma convalescença de anos em aposentos claros e
parques distantes da lembrança; talvez sem se casar com Delia,
simplesmente prolongando aquele amor tranquilo até que ela deixasse de
ver uma terceira morte andando ao seu lado, outro noivo, o que avança para
morrer.
Pensou que os Mañara se alegrariam quando ele começasse a levar os
extratos para Delia; em vez disso, se abespinharam e se recolheram,
taciturnos, sem comentários, embora acabassem cedendo e se retirando,
sobretudo quando chegava a hora das provas, sempre na sala e logo antes da
noite, e era preciso fechar os olhos e definir — com quantas vacilações, às
vezes, devido à sutileza da matéria — o sabor de um pedacinho de polpa
nova, pequeno milagre no prato de alpaca.
Em troca dessas atenções, Mario obtinha de Delia a promessa de irem
juntos ao cinema ou passear por Palermo. Nos Mañara, percebia gratidão e
cumplicidade toda vez que ia buscá-la num sábado à tarde ou numa manhã
de domingo. Como se preferissem ficar sozinhos em casa para ouvir rádio
ou jogar cartas. Mas também achou que Delia não gostava de sair de casa
deixando os velhos para trás. Embora não ficasse triste ao lado de Mario,
nas raras vezes em que saíram com os Mañara ela ficou muito mais alegre,
divertindo-se para valer na Exposição Rural, queria doces e aceitava
brinquedos que ao voltar olhava fixamente, estudando-os até se cansar. O ar
puro lhe fazia bem, Mario achou que estava com uma tez mais clara e um
andar decidido. Uma pena aquela volta vespertina para o laboratório, o
ensimesmamento interminável com a balança e as pequenas pinças. Agora
os bombons a absorviam a ponto de esquecer os licores; agora era raro que
o deixasse provar suas descobertas. Os Mañara, esses nunca; do nada,
Mario desconfiava que os Mañara tivessem se recusado a provar sabores
novos; que preferiam as balas comuns e que se Delia deixasse uma caixa
sobre a mesa, sem lhes oferecer mas como se lhes oferecesse, eles
escolhiam as formas simples, as de antes, e até cortavam os bombons para
examinar seu recheio. Mario achava graça na surda insatisfação de Delia
junto ao piano, em seu ar falsamente distraído. Reservava as novidades para
ele, no último momento vinha da cozinha com o pratinho de alpaca; uma
vez tocou piano até tarde e Delia permitiu que ele a acompanhasse até a
cozinha para buscar alguns bombons novos. Ao acender a luz, Mario viu o
gato dormindo em seu canto e as baratas fugindo pelos azulejos. Lembrou-
se da cozinha de sua casa, Mãe Celeste aspergindo pó amarelo nas frestas.
Naquela noite os bombons tinham gosto de moca e um fundinho
estranhamente salgado (no mais recôndito do sabor), como se no fim do
gosto se escondesse uma lágrima; era idiota pensar naquilo, no resto das
lágrimas caídas na noite de Rolo no vestíbulo.
— O peixe colorido está tão triste — disse Delia apontando o aquário com
pedrinhas e falsas vegetações. Um minúsculo peixe rosa translúcido
dormitava com um movimento compassado da boca. Seu olho frio olhava
para Mario como uma pérola viva. Mario pensou no olho salgado como
uma lágrima que escorregasse entre os dentes ao mascá-lo.
— Precisa trocar a água mais vezes — sugeriu.
— Não adianta, está velho e doente. Vai morrer amanhã.
Para ele aquele anúncio soou como uma volta ao pior, à Delia atormentada
pelo luto e pelos primeiros tempos. Ainda tão perto daquilo, do degrau e do
cais, com fotos de Héctor aparecendo de repente em meio a pares de meias
ou anáguas de verão. E uma flor seca — do velório de Rolo — presa sobre
uma gravura na porta do guarda-roupa.
Antes de partir pediu-lhe que se casasse com ele no outono. Delia não
disse nada, começou a olhar para o chão como se quisesse achar uma
formiga na sala. Eles nunca haviam falado a respeito, Delia parecia querer
se acostumar com a ideia e pensar antes de responder. Depois olhou para ele
brilhantemente, erguendo-se de repente. Estava linda, a boca um pouco
trêmula. Fez um gesto como se quisesse abrir uma portinha no ar, um
movimento quase mágico.
— Então você é meu noivo — disse. — Que diferente você fica, que
mudado.
Mãe Celeste ouviu a notícia sem abrir a boca; afastou o ferro elétrico para
um lado e passou o dia inteiro sem sair do quarto, onde os irmãos iam
entrando um a um para sair com expressão abatida e copinhos de
Hesperidina. Mario foi assistir ao futebol e à noite levou rosas para Delia.
Os Mañara esperavam por ele na sala, abraçaram-no e disseram-lhe coisas,
foi o momento de desarrolhar uma garrafa de vinho do Porto e comer
docinhos. Agora o tratamento era íntimo e ao mesmo tempo mais distante.
Perdiam a simplicidade de amigos para olhar-se com os olhos do parente,
do que sabe de tudo desde a primeira infância. Mario beijou Delia, beijou
mamãe Mañara, e ao abraçar forte o futuro sogro teria querido dizer-lhe que
confiassem nele, novo arrimo do lar, mas as palavras não saíam. Também
dava para perceber que os Mañara teriam querido dizer-lhe alguma coisa e
não ousavam. Agitando os jornais, voltaram para seu quarto e Mario ficou
com Delia e o piano, com Delia e o chamado de amor índio.
Uma vez ou duas, durante aquelas semanas de noivado, ficou a um passo
de marcar um encontro com papai Mañara fora da casa para lhe falar das
mensagens anônimas. Depois achou que isso seria inutilmente cruel porque
não havia nada a fazer contra aqueles desgraçados que o atacavam. O pior
chegou num sábado ao meio-dia num envelope azul, Mario ficou olhando a
fotografia de Héctor no Última Hora e os parágrafos sublinhados com tinta
azul. “Só um profundo desespero pode tê-lo arrastado ao suicídio, segundo
declarações dos familiares.” Pensou surpreendentemente que os parentes de
Héctor não haviam mais aparecido na casa dos Mañara. Quem sabe
tivessem ido uma vez ou outra nos primeiros dias. Lembrava-se agora do
peixe colorido, os Mañara haviam dito que fora um presente da mãe de
Héctor. Peixe colorido morto no dia anunciado por Delia. Só um profundo
desespero pode tê-lo arrastado. Queimou o envelope, o recorte de jornal, fez
uma lista de suspeitos e planejou abrir-se com Delia, salvá-la em si mesmo
dos fios de baba, da destilação intolerável daqueles boatos. Cinco dias
depois (não havia dito nada a Delia nem aos Mañara) chegou o segundo. Na
cartolina azul-clara havia primeiro uma estrelinha (não dava para entender
por quê) e depois: “Eu no seu lugar tomaria cuidado com o degrau do
portão”. Do envelope saiu um vago perfume de sabonete de amêndoa.
Mario pensou se a do sobrado usaria sabonete de amêndoa, teve mesmo a
coragem receosa de revistar a cômoda de Mãe Celeste e da irmã. Queimou
também aquela mensagem anônima, mais uma vez não contou nada a Delia.
Era dezembro, um calor daqueles dezembros de vinte e tantos, agora depois
do jantar ele ia para a casa de Delia e os dois conversavam passeando pelo
jardinzinho de trás ou dando a volta no quarteirão. Com o calor comiam
menos bombons, não que Delia renunciasse a seus experimentos, mas trazia
poucas amostras para a sala, preferia guardá-los em caixas antigas,
protegidos por pequenos moldes com um fino gramado de papel verde-claro
por cima. Mario a notou inquieta, parecia de prontidão. Às vezes olhava
para trás nas esquinas, e na noite em que fez um gesto de repulsa quando
chegaram à caixa postal da esquina da Medrano com a Rivadavia, Mario
compreendeu que também ela estava sendo torturada de longe; que
partilhavam sem dizê-lo um mesmo acuo.
Encontrou papai Mañara no Munich da esquina da Cangallo com a
Pueyrredón, entupiu-o de cerveja e batatas fritas sem conseguir arrancá-lo
de uma modorra vigilante, como se desconfiasse do encontro. Mario disse a
ele, rindo, que não ia pedir dinheiro, e lhe falou sem rodeios das mensagens
anônimas, do nervosismo de Delia, da caixa postal da Medrano com a
Rivadavia.
— Sei bem que assim que nos casarmos essas infâmias acabam. Mas
preciso que vocês me ajudem, que a protejam. Uma coisa dessas pode
prejudicá-la. Ela é tão delicada, tão sensível.
— Você está querendo me dizer que ela pode ficar louca, não é mesmo?
— Bem, não é isso. Mas se ela está recebendo mensagens anônimas como
eu e não fala nada, e a coisa vai se acumulando…
— Você não conhece Delia. Ela ignora as mensagens anônimas… quero
dizer que as mensagens não têm o menor efeito sobre ela. Delia é mais forte
do que você imagina.
— Mas observe como ela parece tensa, agoniada com alguma coisa —
conseguiu dizer Mario, indefeso.
— Não é por isso, sabe — ele bebia sua cerveja como se quisesse que ela
escondesse sua voz. — Antes foi a mesma coisa, conheço bem minha filha.
— Antes do quê?
— Antes de eles morrerem, seu pateta. Pague que estou com pressa.
Fez menção de protestar, mas papai Mañara já se afastava na direção da
porta. Com um gesto vago de despedida, afastou-se de cabeça baixa na
direção do Once. Mario não teve coragem de segui-lo, nem mesmo de
pensar muito no que acabava de ouvir. Agora estava outra vez sozinho
como no início, diante de Mãe Celeste, da do sobrado e dos Mañara. Até
dos Mañara.
Delia desconfiava de alguma coisa porque estava diferente ao recebê-lo,
quase tagarela e astuciosa. Talvez os Mañara tivessem mencionado o
encontro no Munich, Mario esperou que ela tocasse no assunto para ajudá-
la a sair daquele silêncio, mas ela preferia Rose Marie e um pouco de
Schumann, os tangos de Pacho de ritmo brusco e abusado, até chegarem os
Mañara com biscoitinhos e málaga e acenderem todas as luzes. Falaram de
Pola Negri, de um crime em Liniers, do eclipse parcial e da descompostura
do gato. Delia achava que o gato estava empanturrado de pelos e
preconizava um tratamento com óleo de rícino. Os Mañara lhe davam razão
sem opinar, mas não pareciam convencidos. Lembraram-se de um
veterinário amigo, de umas folhas amargas. Optaram por deixá-lo a sós no
jardinzinho, ele que escolhesse por si mesmo as ervas curativas. Mas Delia
disse que o gato morreria, que talvez o óleo prolongasse sua vida um pouco
mais. Ouviram o pregão de um vendedor de jornais na esquina e os Mañara
correram juntos para comprar o Última Hora. A uma consulta muda de
Delia, Mario foi apagar as luzes da sala. Ficou o abajur na mesa de canto,
manchando de amarelo velho o tapete de bordados futuristas. Ao redor do
piano havia uma luz velada.
Mario indagou sobre a roupa de Delia, se ela estava trabalhando bem em
seu enxoval, se março era melhor que maio para o casamento. Esperava um
momento de coragem para mencionar as mensagens anônimas, um resto de
medo de enganar-se detinha-o toda vez que se dispunha a fazê-lo. Delia
estava ao lado dele no sofá verde-escuro, sua roupa azul-clara a recortava
suavemente na penumbra. Uma vez que quis beijá-la, sentiu-a contrair-se
pouco a pouco.
— Mamãe vai voltar para se despedir. Espere eles irem se deitar…
Lá fora ouviam-se os Mañara, o barulho do jornal, seu diálogo contínuo.
Naquela noite estavam sem sono, onze e meia e continuavam conversando.
Delia voltou para o piano, como por teimosia tocava longas valsas crioulas
com da capo al fine uma e outra vez, escalas e adornos um pouco cafonas
mas que Mario achava lindos, e no piano continuou até os Mañara virem
dizer-lhes boa noite, e que não ficassem até muito tarde, agora ele era da
família e precisava mais que nunca velar por Delia, para que ela não fosse
dormir tarde. Quando saíram, como a contragosto mas vencidos pelo sono,
o calor entrava em golfadas pela porta do vestíbulo e pela janela da sala.
Mario quis um copo de água gelada e foi até a cozinha embora Delia
quisesse servi-lo e tivesse ficado um pouco incomodada. Ao voltar, viu
Delia à janela olhando para a rua vazia por onde antes em noites iguais
seguiam Rolo e Héctor. Uma ponta de lua já se deitava sobre o assoalho
perto de Delia, no prato de alpaca que Delia retinha na mão como outra
pequena lua. Não quisera pedir a Mario que provasse na frente dos Mañara,
ele precisava entender como ela achava cansativas as reprimendas dos
Mañara, eles sempre achavam que ela estava abusando da bondade de
Mario ao lhe pedir que provasse os novos bombons. Claro que se não
quisesse, mas ninguém merecia sua confiança mais que ele, os Mañara eram
incapazes de apreciar um sabor diferente. Oferecia-lhe o bombom como se
suplicasse, mas Mario entendeu o desejo que povoava sua voz, agora ele o
incluía com uma clareza que não vinha da lua, nem sequer de Delia. Largou
o copo de água sobre o piano (não havia bebido na cozinha) e segurou o
bombom com dois dedos, Delia ao lado esperando o veredicto, respiração
ofegante como se tudo dependesse daquilo, sem falar mas insistindo com
ele em seu gesto, com os olhos aumentados — ou seria a sombra da sala —,
oscilando de leve o corpo ao arquejar, porque agora era quase um arquejo
quando Mario aproximou o bombom da boca, ia morder, baixava a mão e
Delia gemia como se em meio de um prazer infinito se sentisse um pouco
frustrada. Com a mão livre apertou de leve as laterais do bombom mas sem
olhar para ele, tinha os olhos pregados em Delia e no rosto de gesso, um
pierrô repugnante na penumbra. Os dedos se separavam, partindo o
bombom. A lua caiu em cheio na massa esbranquiçada da barata, o corpo
despojado de seu revestimento coriáceo, e em torno, mesclados à menta e
ao marzipã, os pedacinhos de patas e asas, o pó da carapaça triturada.
Quando ele atirou os pedaços na cara dela, Delia cobriu os olhos e
começou a soluçar, arquejando num soluço que a sufocava, o choro cada
vez mais agudo como na noite de Rolo, então os dedos de Mario se
cravaram em sua garganta como para protegê-la daquele horror que lhe
subia pelo peito, um borborigmo de choro e queixa, com risadas partidas
por contorções, mas ele queria apenas que ela se calasse e apertava para que
ela se calasse, só isso, a do sobrado já estaria à escuta com medo e delícia
de modo que era preciso fazê-la calar-se a qualquer custo. A suas costas, da
cozinha onde encontrara o gato com as estilhas cravadas nos olhos, ainda se
arrastando para morrer dentro de casa, ouvia a respiração dos Mañara de pé,
escondendo-se na sala de jantar para espiá-los, tinha certeza de que os
Mañara haviam escutado e estavam ali, junto à porta, na sombra da sala de
jantar, escutando como ele forçava Delia a calar-se. Afrouxou o apertão e
deixou que ela escorregasse até o sofá, convulsionada e preta mas viva.
Ouvia os Mañara ofegantes, sentiu pena deles por tantas coisas, pela própria
Delia, por abandoná-la mais uma vez, e viva. Tal como Héctor e Rolo,
partia e a deixava para eles. Teve muita pena dos Mañara, que haviam
ficado ali encolhidos esperando que ele — alguém, afinal — forçasse Delia,
que chorava, a calar-se, fizesse finalmente cessar o choro de Delia.
As portas do céu
À
s oito apareceu José María com a notícia, quase sem rodeios me
disse que Celina acabava de morrer. Lembro-me de que reparei
instantaneamente na frase, Celina acabando de morrer, um pouco
como se ela própria tivesse decidido o momento no qual aquilo
devia se concluir. Era quase noite e os lábios de José María tremiam ao
pronunciar aquelas palavras.
— Mauro ficou tão mal, deixei-o enlouquecido. Melhor irmos.
Eu precisava terminar umas anotações, além de que havia prometido a
uma amiga levá-la para jantar. Dei um par de telefonemas e saí com José
María em busca de um táxi. Mauro e Celina moravam para os lados da
Cánning com a Santa Fe, de modo que calculamos que seriam dez minutos
de minha casa até lá. Já ao aproximar-nos vimos pessoas em pé na entrada
com ar culposo e abatido; a caminho fiquei sabendo que Celina havia
começado a vomitar sangue às seis, que Mauro chegara com o médico e que
sua mãe estava junto. Parece que o médico começava a escrever uma longa
receita quando Celina abriu os olhos e acabou de morrer com uma espécie
de tosse, mais bem um assobio.
— Eu segurei o Mauro, o médico teve que sair porque o Mauro queria
partir para cima dele. O senhor sabe como ele é quando fica invocado.
Eu pensava em Celina, no último rosto de Celina que nos esperava na
casa. Quase não ouvi os gritos das velhas e a revoada no pátio, mas em
compensação me lembro de que o táxi custou dois e sessenta e de que o
motorista estava com uma boina encerada. Vi dois ou três amigos da turma
de Mauro, lendo o La Razón perto da porta; uma garota de vestido azul
segurava no colo o gato rajado e alisava minuciosamente os bigodes dele.
Mais para o fundo começavam as lamentações e o cheiro de fechado.
— Vá logo ver o Mauro — falei para José María. — Como você sabe, é
bom dar bastante alpiste a ele.
Na cozinha já havia mate. O velório se organizava sozinho, por conta
própria: os rostos, as bebidas, o calor. Agora que Celina tinha acabado de
morrer, era incrível como as pessoas de um bairro largam tudo (até os
programas de perguntas e respostas) para comparecer ao local do ocorrido.
Quando passei ao lado da cozinha ouvi o barulho nítido de uma bomba de
mate sendo sugada depois de a água da cuia ter acabado; em seguida,
cheguei à porta da câmara mortuária. Misia Martita e outra mulher me
olharam da sombra do fundo do aposento, onde a cama parecia flutuar
numa geleia de marmelo. Pelo ar superior das duas percebi que tinham
acabado de lavar e amortalhar Celina; inclusive dava para sentir um leve
cheiro de vinagre.
— Coitadinha da finadinha — disse Misia Martita. — Entre, doutor, entre.
Vá vê-la. Parece dormir.
Segurando a vontade de mandá-la à merda, mergulhei no caldo quente do
aposento. Fazia um tempo que eu olhava para Celina sem vê-la; naquele
momento deixei-me avançar para ela, para o cabelo negro e liso brotando de
uma testa baixa que brilhava como nácar de violão, para o prato raso
branquíssimo de seu rosto sem remédio. Me dei conta de que não tinha nada
a fazer ali, que aquele aposento agora era das mulheres, das carpideiras que
chegavam na noite. Nem mesmo Mauro poderia entrar em paz para sentar-
se ao lado de Celina, nem mesmo Celina estava ali esperando, aquela coisa
branca e negra pendia para o lado das chorosas, favorecia-as com seu tema
imóvel repetindo-se. Melhor Mauro, sair em busca de Mauro, que
continuava de nosso lado.
Do aposento à sala de jantar havia surdos sentinelas fumando no corredor
sem luz. Peña, o louco Bazán, os dois irmãos mais jovens de Mauro e um
velho indefinível me cumprimentaram respeitosos.
— Obrigado por vir, doutor — disse-me um deles. — O senhor sempre
tão amigo do pobre Mauro.
— Amigos são para essas coisas — disse o velho, estendendo-me a mão
que me pareceu uma sardinha viva.
Tudo isso estava acontecendo, mas eu estava outra vez com Celina e
Mauro no Luna Park, dançando no Carnaval de quarenta e dois, Celina de
azul-claro que combinava tão mal com seu tipo meio de índia, Mauro de
palm-beach e eu com seis uísques e um puta porre. Eu gostava de sair com
Mauro e Celina para assistir de banda à dura e quente felicidade dos dois.
Quanto mais me criticavam por essas amizades, mais eu me aproximava
deles (nos dias e horas que me convinham) para presenciar sua existência,
da qual eles mesmos não faziam ideia.
Me obriguei a sair do baile, um guincho vinha do quarto ao lado, subindo
pelas portas.
— Essa deve ser a mãe — disse o louco Bazán, quase satisfeito.
“Silogística perfeita do humilde”, pensei. “Celina morta, mãe chega,
guincho mãe.” Me dava nojo pensar assim, mais uma vez estar pensando
tudo o que aos outros bastava sentir. Mauro e Celina não haviam sido
minhas cobaias, nada disso. Eu gostava deles, tanto quanto continuo
gostando. Só que nunca consegui entrar na simplicidade deles, só que me
via forçado a alimentar-me por reflexo do sangue deles; eu sou o dr.
Hardoy, um advogado que não se conforma com a Buenos Aires forense ou
musical ou hípica, e que avança até onde consegue por outros vestíbulos.
Sei que por trás disso está a curiosidade, as anotações que pouco a pouco
lotam meu arquivo de dados. Mas Celina e Mauro não, Celina e Mauro não.
— Quem haveria de dizer — ouvi de Peña. — Uma coisa tão rápida…
— Bom, você sabe que ela estava muito mal do pulmão.
— Sei, mas mesmo assim…
Defendiam-se da terra aberta. Muito mal do pulmão, mas com isso e
tudo… Nem Celina devia esperar pela própria morte, para ela e Mauro a
tuberculose era “fraqueza”. Vi-a outra vez girando entusiasmada nos braços
de Mauro, a orquestra de Canaro lá no alto e um cheiro de pó de arroz
barato. Depois ela dançou um maxixe comigo, a pista estava entupida de
gente, um calorão. “Como o senhor dança bem, Marcelo”, como se
estranhasse um advogado ser capaz de acompanhar um maxixe. Ela e
Mauro nunca abandonaram o “senhor” ao falar comigo. Com Mauro eu
usava “você”, mas com ela eu devolvia o tratamento. Celina teve
dificuldade para abandonar o “doutor”, vai ver que se orgulhava de usar o
título comigo na frente dos outros, meu amigo o doutor. Pedi a Mauro que
dissesse a ela, então começou o “Marcelo”. Com isso eles se aproximaram
um pouco de mim, mas eu continuava tão distante quanto antes. Nem
frequentando juntos os bailes populares, o boxe, até o futebol (anos atrás
Mauro jogou no Racing), ou tomando mate até tarde na cozinha. Quando
acabou o pleito e fiz Mauro ganhar cinco mil pesos, Celina foi a primeira a
me pedir que não me afastasse, que fosse visitá-los. Ela já não estava bem, a
voz sempre um pouco rouca era cada vez mais fraca. À noite ela tossia,
Mauro lhe comprava Neurofosfato Escay, o que era uma idiotice, e também
Ferro Quina Bisleri, coisas que saem nas revistas e nas quais as pessoas
acabam confiando.
Íamos juntos aos bailes e eu os olhava viver.
Achei que era o caso de tomar um banho, ligar para Nilda dizendo que iria
buscá-la no domingo a caminho do hipódromo e ir logo em seguida
procurar Mauro. Ele estava no pátio, fumando entre longos mates. Fiquei
enternecido com os dois ou três furinhos de sua camiseta e lhe dei uma
palmada no ombro ao cumprimentá-lo. Estava com a mesma cara da última
vez, ao lado da sepultura, ao jogar o punhado de terra e atirar-se para trás
como se tivesse sido eletrocutado. Mas vi um brilho claro em seus olhos, a
mão firme ao cumprimentar.
— Obrigado por vir me ver. O tempo custa a passar, Marcelo.
— Você precisa ir ao Mercado ou tem alguém para substituí-lo?
— Meu irmão, aquele manquinho, vai no meu lugar. Não tenho forças
para ir, e isso que os dias não acabam nunca.
— Claro, você precisa se distrair. Vá pôr uma roupa, vamos dar uma volta
por Palermo.
— Vamos, para mim tanto faz.
Vestiu um terno azul, lenço bordado, vi quando pôs perfume de um vidro
que fora de Celina. Eu gostava do jeito dele de ajeitar o chapéu, com a aba
erguida, e de seu passo leve e silencioso, bem compadre. Resignei-me a
escutar — “os amigos são para essas horas” — e na segunda garrafa de
Quilmes Cristal ele veio para cima de mim com tudo. Estávamos numa
mesa do fundo do bar, quase a sós; eu o deixava falar mas de vez em
quando derramava cerveja em seu copo. Quase não me lembro de tudo o
que falou, acho que na verdade era sempre a mesma coisa. Uma frase ficou
em minha lembrança: “Ela está aqui”, acompanhada do gesto de cravar o
indicador no meio do peito como se mostrasse uma dor ou uma medalha.
— Quero esquecer — dizia também. — Qualquer coisa, tomar um porre,
ir para o cabaré, comer uma mulher. O senhor me entende, Marcelo, o
senhor… — o indicador subia, enigmático, e dobrava-se de repente, como
um canivete. A essa altura ele já estava disposto a aceitar o que pintasse, e
quando mencionei o Santa Fe Palace como por acaso, ele deu por entendido
que íamos dançar e foi o primeiro a levantar-se e olhar a hora. Fomos
andando sem falar, mortos de calor, e o tempo todo eu o imaginava
assaltado por alguma lembrança, a repetida surpresa de não sentir contra o
braço a quente alegria de Celina a caminho do baile.
— Eu nunca a levei a esse Palace — disse de repente. — Estive lá antes
de conhecê-la, era uma milonga muito muquirana. O senhor frequenta?
Em minhas fichas tenho uma boa descrição do Santa Fe Palace, que não se
chama Santa Fe nem fica nessa rua, mesmo estando ao lado. Pena que nada
disso possa ser efetivamente descrito, nem a fachada modesta com seus
cartazes promissores, nem o guichê escuro e nem, menos ainda, os olheiros
que enrolam na entrada e examinam os que chegam de cima a baixo. O que
vem em seguida é pior; não que seja ruim, porque ali nada é uma coisa
precisa; justamente o caos, a confusão resolvendo-se numa falsa ordem: o
inferno e seus círculos. Um inferno de parque japonês a dois e cinquenta o
ingresso, senhoras cinquenta centavos. Compartimentos mal isolados,
lembrando sucessivos pátios cobertos tendo no primeiro uma orquestra
típica, no segundo uma regional, no terceiro uma nortenha com cantores e
malambo. Posicionados numa passagem intermediária (eu Virgílio),
ouvíamos os três ritmos e víamos os três círculos dançando; então se
escolhia o preferido, ou se ia de dança em dança, de genebra em genebra,
tentando encontrar mesinhas e mulheres.
— Nada mau — disse Mauro, com seu jeito bisonho. — Pena o calor.
Deviam instalar exaustores.
(Para uma ficha: estudar, segundo Ortega, os contatos do homem do povo
com a técnica. Ali onde se imaginaria haver um choque encontra-se, em vez
disso, assimilação violenta e utilização; Mauro falava em refrigeração ou
em super-heteródinos com a autossuficiência portenha que acredita que
tudo lhe é devido.) Agarrei-o pelo braço e o encaminhei para uma mesa
porque ele continuava distraído, olhando para o palco da orquestra típica,
para o cantor que segurava o microfone com as duas mãos e o balançava
devagarinho. Instalamo-nos felizes diante de duas aguardentes secas e
Mauro bebeu a dele de uma vez só.
— Ajuda a cerveja a descer. Cacete, esta milonga está concorrida!
Fez sinal pedindo outra e me deu espaço para me distrair e olhar. A mesa
ficava bem junto da pista, do outro lado havia cadeiras posicionadas ao
longo de uma parede comprida; uma grande quantidade de mulheres se
revezava com aquele ar abstrato das milongueiras quando estão trabalhando
ou se divertindo. Ninguém conversava muito, ouvíamos perfeitamente bem
a orquestra típica, bem equipada de foles e tocando com vontade. O cantor
insistia no tema da saudade, milagrosa sua maneira de dar dramaticidade a
um ritmo mais para rápido e sem pausas. Las trenzas de mi china las traigo
en la maleta… Pendurava-se ao microfone como aos barrotes de um
vomitório, com uma espécie de luxúria cansada, de necessidade orgânica.
De vez em quando comprimia os lábios contra a redinha cromada e dos
alto-falantes saía uma voz pegajosa — “yo soy un hombre honrado…”; me
veio à cabeça que uma solução seria uma boneca de borracha com o
microfone escondido em seu interior, pois assim o cantor poderia tê-la nos
braços e excitar-se à vontade cantando para ela. Mas não serviria para os
tangos, para esses melhor o bastão cromado com a pequena caveira
brilhante no topo, o sorriso tetânico da redinha.
Creio que a essa altura convém dizer que eu frequentava aquela milonga
por causa dos monstros, e que não conheço outra onde haja tantos deles
juntos. Aparecem às onze da noite, descem de regiões imprecisas da cidade,
pausados e seguros, sós ou em duplas, as mulheres quase anãs e meio
caboclas, os homens com jeito de javanês ou mocovi, apertados em ternos
quadriculados ou pretos, cabelo duro penteado com denodo, brilhantina em
gotinhas contra os reflexos azuis e rosa, as mulheres com enormes
penteados altos que as tornam ainda mais anãs, penteados duros e difíceis
dos quais guardam o cansaço e o orgulho. Eles agora inventaram de usar
cabelo solto e alto no meio, topetes enormes e afrescalhados sem nada a ver
com o rosto brutal logo abaixo, o gesto de agressão disponível e esperando
sua hora, os torsos eficazes sobre finas cinturas. Reconhecem-se e se
admiram em silêncio, sem demonstrá-lo, é o baile deles, o encontro deles, a
noite de gala deles. (Para uma ficha: de onde eles saem, que profissões os
dissimulam durante o dia, que obscuras servidões os isolam e disfarçam.)
Vão para isso, os monstros se enlaçam com grave civilidade, música após
música giram morosos sem falar, muitos de olhos fechados gozando por fim
a paridade, a completação. Recuperam-se nos intervalos, nas mesas são
fanfarrões e as mulheres falam guinchando para serem vistas, então os
machos ficam mais invocados e já vi voar um sopapo e entortar para um
lado o rosto e metade do penteado de uma cabocla vesga vestida de branco
que bebia anis. Além disso tem o cheiro, não se concebem monstros sem
esse cheiro de talco molhado contra a pele, de fruta passada, dá para
imaginar as higienes apressadas, o pano úmido pelo rosto e pelos sovacos,
depois o que importa, loções, rímel, pó de arroz no rosto de todas elas, uma
crosta esbranquiçada que não encobre as placas pardas por trás. Além disso
se oxigenam, as negras erguem maçarocas rígidas sobre a terra espessa do
rosto, chegam a estudar gestos de loura, vestidos verdes, se convencem da
própria transformação e desdenham condescendentes as outras que
defendem sua cor. Olhando para Mauro com o rabo do olho eu estudava a
diferença entre seu rosto de traços italianos, o rosto do portenho suburbano
sem mistura de negro nem de provinciano, e me lembrei de repente de
Celina, mais próxima dos monstros, muito mais próxima deles que Mauro e
eu. Acho que Kasidis a escolhera para atender a parcela acaboclada de sua
clientela, os poucos que na época se animavam a frequentar seu cabaré. Eu
nunca havia ido ao estabelecimento de Kasidis nos tempos de Celina, mas
depois fui até lá uma noite (para conhecer o lugar onde ela trabalhava antes
de Mauro tirá-la de lá) e vi apenas brancas, louras ou morenas mas brancas.
— Que vontade de dançar um tango — disse Mauro chateado. Já estava
um pouco alto ao entrar na quarta aguardente. Eu pensava em Celina, tão
em casa aqui, justamente aqui, aonde Mauro nunca a trouxera. Anita
Lozano recebia agora os aplausos fortes do público ao saudar do palco, eu
já a ouvira cantar no Novelty, nos tempos em que estava em alta, agora
ficara velha e magra mas conservava a voz para os tangos. Melhor ainda,
porque seu estilo era canalha, pedia uma voz um pouco rouca e suja para
aquelas letras desabusadas. Celina tinha essa voz depois de beber, de
repente me dei conta de quanto o Santa Fe era Celina, da presença quase
insuportável de Celina.
Ir embora com Mauro fora um erro. Ela tolerou porque o amava e porque
ele a tirava da imundície de Kasidis, da promiscuidade e dos copinhos de
água com açúcar entre as primeiras joelhadas e o hálito carregado dos
clientes sobre seu rosto, mas se não tivesse sido obrigada a trabalhar nas
milongas, Celina teria gostado de ficar por lá. Percebia-se em seus quadris e
em sua boca, estava equipada para o tango, nascera de cima a baixo para a
farra. Por isso era necessário que Mauro a levasse aos bailes, eu a vira
transfigurar-se ao entrar, com as primeiras lufadas de ar quente e de foles.
Àquela hora, enfiado no Santa Fe sem possibilidade de retrocesso, medi a
grandeza de Celina, sua coragem ao retribuir a Mauro com alguns anos de
cozinha e mate doce no pátio. Renunciara a seu céu de milongas, a sua
quente vocação para o anis e as valsas crioulas. Como quem se condena
conscientemente, por Mauro e pela vida de Mauro, limitando-se a forçar de
leve o mundo dele para que de vez em quando a levasse a alguma festa.
Mauro já estava pendurado a uma negrinha mais alta que as outras, de
cintura fina como poucas e nada feia. Achei graça em sua seleção instintiva
mas ao mesmo tempo pensada, a empregadinha era menos igual aos
monstros; então fui tomado outra vez pela ideia de que Celina tinha sido, de
certa maneira, um monstro como eles, só que fora dali e durante o dia não
dava para perceber, como aqui. Perguntei-me se Mauro teria se dado conta,
tive um certo receio de que me recriminasse por trazê-lo a um lugar onde a
lembrança crescia de cada coisa como pelos num braço.
Dessa vez não houve aplausos e ele se aproximou com a jovem, que
parecia subitamente tonta e incerta fora de seu tango.
— Eu lhe apresento um amigo.
Trocamos os “encantados” portenhos e em seguida servimos uma bebida a
ela. Eu ficava feliz por ver Mauro entrando na noite e até troquei algumas
frases com a mulher, que se chamava Emma, um nome que não combina
muito com as magras. Mauro parecia bastante embalado, falando de
orquestras com as frases breves e sentenciosas que admiro nele. Emma se
dedicava a nomes de cantores, a lembranças de Villa Crespo e de El Talar.
A essa altura Anita Lozano anunciou um tango antigo e houve gritos e
aplausos entre os monstros, sobretudo entre os índios, que a favoreciam sem
restrições. Mauro não estava curtido a ponto de esquecer-se por completo,
quando a orquestra abriu caminho com um floreio dos bandoneons, ele me
olhou de repente, tenso e rígido, como se lembrando. Também me vi no
Racing, Mauro e Celina muito juntos naquele tango que depois ela passou a
noite inteira cantarolando, inclusive no táxi de volta.
— Dançamos este? — perguntou Emma, engolindo ruidosamente sua
groselha.
Mauro nem olhava para ela. Tenho a impressão de que foi naquele
momento que nós dois nos encontramos mais profundamente. Agora (agora
que escrevo) só me ocorre uma imagem dos meus vinte anos no Sportivo
Barracas, atirar-me na piscina e encontrar outro nadador no fundo, tocar no
fundo ao mesmo tempo e entrever-nos na água verde e acre. Mauro
empurrou a cadeira para trás e se apoiou na mesa com um cotovelo. Olhava
para a pista, tal como eu, e Emma ficou perdida e humilhada entre os dois,
mas disfarçava comendo batatas fritas. Agora Anita começava a cantar com
torções improvisadas, os casais dançavam quase sem sair do lugar e dava
para perceber que escutavam a letra com desejo e desdita e todo o negado
prazer da farra. Os rostos se voltavam para o palco e mesmo girando via-se
como acompanhavam Anita, inclinada e confidente ao microfone. Alguns
moviam a boca repetindo as palavras, outros sorriam estupidamente como
de detrás de si mesmos, e quando ela encerrou seu tanto, tanto como fuiste
mío, y hoy te busco y no te encuentro, à entrada em coro dos foles
respondeu a renovada violência da dança, as corridas laterais e os oitos
entreverados no meio da pista. Muitos suavam, uma cabocla que teria
chegado no máximo ao segundo botão de meu casaco passou raspando em
nossa mesa e vi como o suor jorrava da raiz de seu cabelo e lhe escorria
pela nuca, onde a gordura criava uma canaleta mais clara. Entrava fumaça
do salão contíguo, onde as pessoas comiam parrilladas e dançavam
rancheiras, o churrasco e os cigarros criavam uma nuvem baixa que
deformava os rostos e as pinturas baratas da parede em frente. Acho que eu
contribuía de dentro com minhas quatro doses de aguardente, e Mauro
segurava o queixo com o avesso da mão, olhando fixamente para diante.
Não chamou nossa atenção o fato de o tango continuar interminavelmente
lá em cima, uma ou duas vezes vi Mauro lançar um olhar para o palco, onde
Anita fazia de conta que brandia uma batuta, mas depois voltou a cravar os
olhos nos casais que dançavam. Não sei como explicar, tenho a sensação de
que eu acompanhava o olhar dele e ao mesmo tempo lhe indicava o
caminho; sem nos ver, sabíamos (tenho a sensação de que Mauro sabia) a
coincidência daquele olhar, fitávamos juntos os mesmos casais, os mesmos
cabelos, as mesmas calças. Ouvi Emma dizer alguma coisa, uma desculpa, e
o espaço de mesa entre mim e Mauro ficou mais claro, embora não nos
olhássemos. Sobre a pista parecia haver descido um momento de imensa
felicidade, respirei fundo como se me associasse a ela e creio ter ouvido
Mauro fazer o mesmo. A fumaça era tanta que depois do centro da pista os
rostos ficavam borrados, de modo que não dava para ver, entre os corpos
interpostos e a neblina, a área das cadeiras das que não haviam sido tiradas
para dançar. Tanto como fuiste mío, curiosa a crepitação que o alto-falante
emprestava à voz de Anita, de novo os dançarinos se imobilizavam (sempre
se movendo) e Celina, que estava à direita, saindo da fumaça e girando
obediente à pressão de seu companheiro, ficou um momento de perfil para
mim, depois de costas, depois foi o outro perfil, e ergueu o rosto para ouvir
a música. Digo: Celina; mas nesse momento foi mais como saber sem
compreender, Celina ali sem estar, claro, como compreender isso naquele
momento. A mesa tremeu de repente, eu sabia que era o braço de Mauro
que tremia, ou o meu, mas não estávamos com medo, era uma coisa mais
próxima do espanto e da alegria e do estômago. Na verdade era idiota, um
sentimento de coisa à parte que não nos deixava sair, recompor-nos. Celina
continuava sempre ali, sem nos ver, bebendo o tango com toda uma
expressão que uma luz amarela de fumaça desmentia e alterava. Qualquer
das negras poderia ter se parecido mais com Celina do que ela naquele
momento, a felicidade a transformava de uma maneira atroz, eu não teria
podido tolerar Celina como a via naquele momento e naquele tango.
Restou-me entendimento para avaliar a devastação de sua felicidade, seu
rosto alheado e estúpido no paraíso enfim alcançado; não existissem o
trabalho e os clientes, quem sabe ela fosse assim na milonga de Kasidis.
Agora nada a tolhia em seu céu só dela, entregava-se de pele inteira ao gozo
e entrava mais uma vez na ordem aonde Mauro não tinha como segui-la.
Era seu duro céu conquistado, seu tango tocando outra vez só para ela e
seus iguais, até o aplauso de vidros quebrados que encerrou o refrão de
Anita, Celina de costas, Celina de perfil, outros casais encobrindo-a, e a
fumaça.
Não quis olhar para Mauro, agora eu me repunha e meu notório cinismo
empilhava comportamentos a todo o vapor. Tudo dependia de como ele se
posicionasse no assunto, de modo que permaneci como estava, estudando a
pista que pouco a pouco se esvaziava.
— Você viu? — perguntou Mauro.
— Vi.
— Viu como era parecida?
Não respondi, o alívio contava mais que a pena. Ele estava do lado de cá,
o coitado estava do lado de cá e já não conseguia acreditar no que havíamos
sabido juntos. Vi-o levantar-se e andar pela pista com passo de bêbado, em
busca da mulher que se parecia com Celina. Eu fiquei quieto, fumando sem
pressa, olhando-o ir e vir, sabendo que perdia seu tempo, que voltaria
atormentado e sedento sem ter encontrado as portas do céu em meio àquela
fumaça e àquela gente.
Bestiário
E
ntre a última colherada de arroz de leite — pouca canela, uma pena
— e os beijos antes de subir para dormir, ouviram tocar a
campainha na sala do telefone e Isabel ficou enrolando até Inés
voltar depois de atender e dizer alguma coisa ao ouvido da mãe. As
duas se entreolharam e depois olharam para Isabel, que pensou na gaiola
quebrada e nas contas de dividir e um pouco na fúria de d. Lucera por ela
ter tocado a campainha da casa dela ao voltar da escola. Não estava tão
preocupada, a mãe e Inés pareciam estar olhando para além dela, quase
como se a utilizassem como pretexto; mas de fato olhavam para ela.
— Quanto a mim, não me agrada que ela vá, acredite — disse Inés. —
Não tanto pelo tigre, afinal cuidam bem desse aspecto. Mas é uma casa tão
triste, e só aquele garoto para brincar com ela…
— Também não me agrada — disse a mãe, e Isabel entendeu, como se
estivesse no alto de um escorrega, que a mandariam para a casa de Funes
durante o verão. Jogou-se na notícia, na enorme onda verde, a casa de
Funes, a casa de Funes, claro que a mandariam. Não gostavam de fazer isso,
mas convinha. Brônquios delicados, Mar del Plata caríssima, difícil lidar
com uma garota mimada, tola, de comportamento regular e isso que a srta.
Tania é tão boa, sono inquieto e brinquedos por todo lado, perguntas,
botões, joelhos sujos. Sentiu medo, delícia, perfume de chorões, e o u de
Funes se misturava ao arroz de leite, tão tarde, hora de dormir, já para a
cama.
Deitada, luz apagada, coberta de beijos e olhares tristes de Inés e da mãe,
não completamente decididas mas já completamente decididas a mandá-la
para lá. Antecipava a chegada de charrete, o primeiro café da manhã, a
alegria de Nino caçador de baratas, Nino sapo, Nino peixe (lembrança de
três anos antes: Nino mostrando-lhe figurinhas coladas com goma arábica
num álbum e declarando, sério: “Isto é um sapo e isto é um pei-xe”). Agora
Nino no parque esperando-a com a rede de caçar borboletas, e ainda as
mãos macias de Rema — viu-as nascendo da penumbra, estava de olhos
abertos e em lugar do rosto de Nino, zás, as mãos de Rema, a caçula dos
Funes. “Tia Rema me ama tanto”, e os olhos de Nino ficavam grandes e
molhados, em outra ocasião viu Nino cair flutuando no ar confuso do
quarto, olhando feliz para ela. Nino peixe. Adormeceu querendo que a
semana passasse naquela mesma noite, e as despedidas, a viagem de trem, a
légua na charrete, a porteira, os eucaliptos do caminho de entrada. Antes de
adormecer teve um momento de horror ao imaginar que podia estar
sonhando. Ao estirar-se bruscamente deu com os pés nas barras de bronze,
doeram através das colchas, e na sala de jantar dava para ouvir a mãe e Inés
falando, bagagem, ver com o médico a questão do eczema, óleo de bacalhau
e hamamélis virginiana. Não era sonho, não era sonho.
Não era sonho. Numa manhã de vento levaram-na até a estação
Constitución, com bandeirinhas nas bancas de ambulantes da praça, torta no
Tren Mixto e chegada triunfal à plataforma número 14. Foram tantos beijos
de Inés e da mãe que seu rosto ficou parecendo pisoteado, mole e com
cheiro de ruge e pó Rachel da Coty, úmido ao redor da boca, um nojo que o
vento carregou de um só golpe. Não tinha medo de viajar sozinha porque
era uma menina grande, com nada menos que vinte pesos na bolsa, a
Compañía Sansinena de Carnes Congeladas entrando pela janela do trem
com um cheiro adocicado, o Riachuelo amarelo e Isabel já refeita de um
choro forçado, contente, morta de medo, ativa no exercício pleno de seu
assento, de sua janela, viajante quase única num pedaço de vagão onde dava
para experimentar todos os assentos e ver-se nos espelhinhos. Pensou uma
ou duas vezes na mãe, em Inés — elas já deviam estar no 97, saindo da
estação —, leu proibido fumar, proibido cuspir, capacidade quarenta e dois
passageiros sentados, estavam passando por Banfield a toda a velocidade,
vuuuum! campo mais campo mais campo misturado com o gosto da barra
de chocolate e as balas de menta. Inés a aconselhara a ir tricotando o
casaquinho de lã verde, de modo que Isabel o levava no recanto mais
escondido da mala, coitada da Inés, cada ideia mais boba.
Na estação ficou com um pouco de medo, porque se a charrete… Mas lá
estava ela, com d. Nicanor cortês e respeitoso, menina daqui e menina dali,
se a viagem havia sido boa, se d. Elisa continuava bonita, claro que havia
chovido — Oh, o avanço da charrete, o vaivém para oferecer-lhe o aquário
completo de sua vinda anterior a Los Horneros. Tudo mais miúdo, mais de
vidro e rosa, sem o tigre na época, com d. Nicanor menos grisalho, só três
anos antes, Nino um sapo, Nino um peixe, e as mãos de Rema que davam
vontade de chorar e senti-las eternamente sobre a cabeça, numa carícia
quase de morte e de baunilhas com creme, as duas melhores coisas da vida.
Querida mamãe tomo da pena para — Comiam na copa dos cristais, onde
era mais fresco. Nene se queixava o tempo todo do calor, Luis não dizia
nada mas pouco a pouco se via o suor brotar de sua testa e da barba. Só
Rema não se abalava, passava os pratos devagar e sempre como se a
refeição fosse de aniversário, um pouco solene e emocionante. (Isabel
aprendia em segredo seu jeito de trinchar, de instruir as criadinhas.) Luis
estava quase sempre lendo, punhos nas têmporas e livro apoiado num sifão.
Rema tocava seu braço antes de entregar-lhe um prato, e às vezes Nene o
interrompia e o chamava de filósofo. Isabel ficava sentida por Luis ser
filósofo, não pelo fato em si mas por Nene, que assim encontrava pretexto
para zombar de Luis e dizê-lo.
Na refeição, sentavam-se assim: Luis na cabeceira, Rema e Nino de um
lado da mesa, Nene e Isabel do outro, de modo que havia um adulto na
cabeceira e nas duas laterais um adulto e uma criança. Quando Nino queria
muito dizer alguma coisa a Isabel, batia em sua canela com o sapato. Uma
vez Isabel gritou e Nene ficou furioso e a chamou de malcriada. Rema ficou
olhando para ela, até Isabel se consolar com seu olhar e a sopa juliana.
Mãezinha, antes de comer é como em todos os outros momentos, é preciso
prestar atenção para verificar se — Quase sempre era Rema quem ia
verificar se o caminho para a copa dos cristais estava livre. No segundo dia
entrou no salão e disse aos outros que esperassem. Passou-se um bom
tempo até um peão avisar que o tigre estava no jardim dos trevos, então
Rema pegou as crianças pela mão e todos entraram para comer. Nessa
manhã as batatas estavam ressecadas, mas só Nene e Nino reclamaram.
Você me disse para não ficar fazendo — Porque Rema parecia deter, com
sua suave bondade, toda pergunta. Estavam tão à vontade que não
precisavam preocupar-se com a questão dos cômodos. Uma casa enorme, e
na pior das hipóteses era preciso não entrar numa peça; nunca em mais de
uma, de modo que não fazia diferença. Dois dias depois de chegar, Isabel
ficou tão habituada quanto Nino. Os dois brincavam da manhã à noite no
bosque de chorões, e quando não podiam brincar no bosque de chorões
tinham o jardim dos trevos, o parque das redes e a margem do arroio. Na
casa era a mesma coisa, tinham seus quartos, o corredor do meio, a
biblioteca de baixo (exceto numa quinta-feira em que não foi possível ir
para a biblioteca) e a copa dos cristais. Não iam para o escritório de Luis
porque ele lia o tempo todo, às vezes chamava o filho e lhe dava livros com
estampas; mas Nino saía de lá com os livros e os dois iam olhá-los na sala
ou no jardim da frente. Nunca entravam no escritório de Nene porque
tinham medo das brabezas dele. Rema lhes disse que era melhor assim,
disse como se os advertisse; eles já sabiam ler em seus silêncios.
Ao fim e ao cabo era uma vida triste. Uma noite Isabel se perguntou por
que os Funes a teriam convidado para veranear. Faltou-lhe idade para
entender que não era por ela, mas por Nino, um brinquedo estival para
alegrar Nino. Por enquanto só se dava conta da casa triste, de que Rema
parecia cansada, de que chovia pouco mas as coisas pareciam úmidas e
abandonadas. Depois de alguns dias acostumou-se à ordem da casa, à
disciplina descomplicada daquele verão em Los Horneros. Nino estava
começando a entender o microscópio que ganhara de Luis, os dois passaram
uma semana esplêndida criando insetos numa bacia com água estagnada e
folhas de copo-de-leite, pingando gotas na lâmina de vidro para olhar os
micróbios. “São larvas de mosquito, com esse microscópio vocês não vão
conseguir ver micróbios”, dizia-lhes Luis com seu sorriso um pouco
forçado e distante. Eles não conseguiam acreditar que aquele horror que se
contorcia não fosse um micróbio. Rema lhes trouxe um caleidoscópio que
guardava em seu guarda-roupa, mas eles sempre preferiam descobrir
micróbios e numerar suas patas. Isabel anotava os experimentos numa
caderneta, combinava biologia com química e a preparação de uma
farmácia. Instalaram a farmácia no quarto de Nino, depois de percorrer a
casa em busca de coisas. Isabel declarou a Luis: “Queremos de tudo:
coisas”. Luis lhes deu pílulas de Andreu, algodão cor-de-rosa, um tubo de
ensaio. Nene, um saco de borracha e um frasco com pílulas verdes e rótulo
raspado. Rema foi ver a farmácia, leu o inventário na caderneta e lhes disse
que estavam aprendendo coisas úteis. Ela ou Nino (que sempre se
entusiasmava e queria se exibir para Rema), um dos dois, teve a ideia de
montar um herbário. Como naquela manhã o jardim dos trevos estava
liberado, andaram recolhendo amostras e à noite estavam com o assoalho de
seus quartos cheio de folhas e flores sobre papéis, quase não restava espaço
onde pisar. Antes de dormir, Isabel anotou: “Folha número 74: verde,
formato de coração, com pintinhas marrons”. Achava um pouco chato todas
as folhas serem verdes, quase todas lisas, quase todas lanceoladas.
Uma tarde houve sesta, melancia, pelota basca no paredão junto ao arroio, e
Nino teve um desempenho fantástico devolvendo bolas que pareciam
impossíveis e subindo no telhado pela glicínia para recuperar a bola presa
entre duas telhas. Apareceu um peãozinho vindo do lado dos salgueiros e
jogou com eles, mas era lerdo e não acertava a bola. Isabel sentia cheiro de
folhas de aroeira e em determinado momento, ao rebater uma bola insidiosa
que Nino lhe mandava por baixo, sentiu lá no fundo a felicidade do verão.
Pela primeira vez entendia sua presença em Los Horneros, as férias, Nino.
Pensou no formigário lá em cima e era uma coisa morta e regurgitante, um
horror de patas tentando sair, um ar viciado e venenoso. Acertou a bola com
raiva, com alegria, partiu um talo de aroeira com os dentes e cuspiu-o
enojada, feliz, por fim verdadeiramente sob o sol do campo.
Os vidros caíram como granizo. Era no escritório de Nene. Viram-no
debruçar-se em mangas de camisa, com os grandes óculos pretos.
— Fedelhos de merda!
O peãozinho fugia. Nino foi para junto de Isabel, ela o sentiu tremer com
o mesmo vento dos salgueiros.
— Foi sem querer, tio.
— É mesmo, Nene, foi sem querer.
Já se retirara.
Mas dizer à mãe que Rema chorava à noite, que a ouvira chorar passando
pelo corredor a passos hesitantes, parar na porta de Nino, ir em frente,
descer a escada (devia estar enxugando os olhos) e a voz de Luis, ao longe:
“O que você tem, Rema? Está sentindo alguma coisa?”, um silêncio, a casa
inteira parecendo uma imensa orelha, depois um murmúrio e de novo a voz
de Luis: “Ele é um canalha, um canalha…”, quase como se comprovasse
friamente um fato, uma filiação, talvez um destino.
… está um pouco doente, se você viesse ficar com ela, faria bem a ela.
Preciso lhe mostrar o herbário e umas pedras do arroio que os peões me
trouxeram. Diga a Inés…
Era uma noite como ela gostava, com insetos, umidade, pão requentado e
flã de sêmola com passas de uva. Os cachorros não paravam de latir na
margem do arroio, um enorme louva-a-deus chegou voando e pousou na
toalha e Nino foi buscar a lupa, cobriram-no com um copo largo e o
provocaram para que mostrasse as cores das asas.
— Jogue esse bicho fora — pediu Rema. — Tenho nojo.
— É um belo exemplar — concedeu Luis. — Vejam como ele acompanha
minha mão com os olhos. O único inseto que gira a cabeça.
— Que noite insuportável — disse Nene atrás de seu jornal.
Isabel teria querido decapitar o louva-a-deus, dar-lhe uma tesourada e ver
o que acontecia.
— Deixe dentro do copo — pediu a Nino. — Amanhã a gente põe no
formigário e observa o que acontece.
O calor aumentava, às dez e meia não dava para respirar. As crianças
ficaram com Rema na sala de jantar de dentro, os homens foram para seus
escritórios. Nino foi o primeiro a dizer que estava com sono.
— Suba sozinho, que depois vou ver você. Lá em cima está tudo bem. —
E Rema o prendia pela cintura, com um gesto de que ele gostava muito.
— Você nos conta uma história, tia Rema?
— Outra noite.
Ficaram as duas sozinhas, com o louva-a-deus olhando para elas. Luis
veio dar boa-noite, murmurou alguma coisa sobre a hora em que as crianças
deviam ir para a cama, Rema sorriu para ele ao beijá-lo.
— Urso resmungão — disse, e Isabel, inclinada sobre o copo do louva-a-
deus, pensou que nunca havia visto Rema beijando Nene nem um louva-a-
deus de um verde tão verde. Movia um pouco o copo e o louva-a-deus se
enfurecia. Rema se aproximou para pedir-lhe que fosse dormir.
— Jogue esse bicho fora, ele é horrível.
— Amanhã, Rema.
Pediu a Rema que subisse para dar boa-noite. Nene estava com a porta do
escritório entreaberta e andava lá dentro em mangas de camisa, com o
colarinho aberto. Assobiou para ela quando ela passou.
— Estou indo dormir, Nene.
— Ouça, vá dizer a Rema que prepare uma limonada bem gelada para
mim e traga aqui. Depois você sobe para seu quarto.
Claro que subiria para seu quarto, não via por que ele precisava ficar
mandando. Voltou à sala de jantar para dar o recado a Rema, viu que ela
hesitava.
— Não suba ainda. Vou fazer a limonada e você mesma leva para ele.
— Ele disse que…
— Por favor.
Isabel sentou-se ao lado da mesa. Por favor. Havia nuvens de insetos
girando sob o lampião de carbureto, poderia passar horas olhando para o
nada e repetindo: por favor, por favor. Rema, Rema. Gostava tanto dela, e
aquela voz de tristeza sem fundo, sem razão possível, a própria voz da
tristeza. Por favor. Rema, Rema… Um calor de febre invadia seu rosto, um
desejo de jogar-se aos pés de Rema, de deixar-se levar nos braços de Rema,
uma vontade de morrer olhando para ela, e Rema que sentisse pena dela,
que passasse finos dedos frescos por seu cabelo, por suas pálpebras…
Agora ela lhe estendia uma jarra verde cheia de limões cortados e gelo.
— Leve para ele.
— Rema…
Teve a impressão de que estava trêmula, de que se punha de costas para a
mesa para que ela não visse seus olhos.
— Já joguei fora o louva-a-deus, Rema.
Dorme-se mal com o calor pegajoso e tanto mosquito zunindo. Duas vezes
esteve a ponto de levantar, sair para o corredor ou ir até o banheiro molhar
os pulsos e o rosto. Mas ouvia os passos de alguém lá embaixo, alguém que
andava de um lado para outro na sala de jantar, chegava ao pé da escada,
voltava… Não eram os passos sombrios e espaçados de Luis, não era o
andar de Rema. Quanto calor sentia Nene aquela noite, devia ter tomado a
limonada aos golaços. Isabel o via bebendo da jarra, as mãos sustentando a
jarra verde com rodelas amarelas oscilando na água sob o lampião; mas ao
mesmo tempo tinha certeza de que Nene não havia bebido a limonada, que
continuava olhando para a jarra que ela levara para ele até a mesa como
alguém que contempla uma perversidade infinita. Não queria pensar no
sorriso de Nene, em seu avanço até a porta como se pretendesse chegar à
sala de jantar, em sua volta lenta.
— Ela é que devia ter trazido. Mandei você subir para seu quarto.
E ocorrer-lhe apenas uma resposta tão idiota…
— Está bem gelada, Nene.
E a jarra verde como o louva-a-deus.
Nino foi o primeiro a levantar e sugeriu que fossem procurar caracóis no
arroio. Isabel quase não havia dormido, lembrava-se de salões com flores,
campainhas, corredores de hospital, irmãs de caridade, termômetros em
bocais com bicloreto, imagens de primeira comunhão, Inés, a bicicleta
estragada, o Tren Mixto, a fantasia de cigana dos oito anos. No meio disso
tudo, como um ar tênue entre folhas de álbum, via-se acordada, pensando
em tantas coisas que não eram flores, campainhas, corredores de hospital.
Levantou-se de má vontade, lavou as orelhas com gana. Nino disse que
eram dez horas e que o tigre estava na sala do piano, de modo que podiam ir
sem demora até o arroio. Desceram juntos, cumprimentando rapidamente
Luis e Nene que liam com as portas abertas. Os caracóis ficavam na
margem, sobre os trigais. Nino se queixou da distração de Isabel, acusou-a
de ser má companheira e de não ajudá-lo a montar a coleção. Ela o via de
repente menino, tão garotinho entre seus caracóis e suas folhas.
Voltou antes dele, quando na casa içavam a bandeira do almoço. Dom
Roberto concluía sua inspeção e Isabel o interrogou, como sempre. Nino já
se aproximava devagar, carregando a caixa dos caracóis e os rastelos, Isabel
o ajudou a deixar os rastelos no alpendre e entraram juntos. Rema estava lá,
branca e calada. Nino pôs um caracol azul na mão dela.
— Para você, o mais bonito.
Nene já estava comendo, jornal ao lado, Isabel quase não tinha onde
apoiar o braço. Luis foi o último a chegar de seu quarto, contente como
sempre ao meio-dia. Comeram, Nino falava dos caracóis, dos ovos de
caracol entre os caniços, da coleção por tamanhos ou cores. Iria matá-los
sozinho porque Isabel ficava com pena, poriam para secar sobre uma folha
de zinco. Depois veio o café, Luis olhou para eles com a pergunta usual,
então Isabel foi a primeira a levantar para ir em busca de d. Roberto,
embora d. Roberto já tivesse lhe dito antes. Deu a volta no alpendre e
quando entrou de novo, Rema e Nino estavam com as cabeças juntas sobre
os caracóis, pareciam uma fotografia de família, só Luis olhou para ela e ela
disse: “Está no escritório de Nene”, ficou vendo como Nene erguia os
ombros, incomodado, e Rema tocava um caracol com a ponta do dedo, tão
delicadamente que seu dedo também tinha alguma coisa de caracol. Depois
Rema se levantou para ir buscar mais açúcar e Isabel foi atrás dela
conversando até que voltaram rindo por causa de uma brincadeira que
haviam feito na copa. Como Luis estava sem tabaco e mandou Nino buscar
em seu escritório, Isabel o desafiou, dizendo que encontraria os cigarros
primeiro, e os dois saíram juntos. Nino venceu, voltaram correndo e se
empurrando, quase colidem com Nene, que ia ler o jornal na biblioteca,
queixando-se de não poder usar seu escritório. Isabel se aproximou para
olhar os caracóis, e Luis, esperando que ela acendesse seu cigarro como
sempre, viu-a distraída, estudando os caracóis que começavam devagarinho
a aparecer e se mover, olhando de repente para Rema, mas apartando-se
dela como uma rajada de vento, e obcecada pelos caracóis, tanto que não se
moveu quando Nene começou a gritar, todos já estavam correndo e ela
atenta aos caracóis como se não ouvisse o novo grito engasgado de Nene,
os murros de Luis na porta da biblioteca, d. Roberto entrando com
cachorros, os gemidos de Nene em meio aos latidos furiosos dos cachorros,
e Luis repetindo: “Mas se estava no escritório dele! Ela disse que estava no
escritório dele!”, inclinada sobre os caracóis esguios como dedos, quem
sabe como os dedos de Rema, ou era a mão de Rema que segurava seu
ombro, forçava-a a erguer a cabeça para olhar para ela, para ficar uma
eternidade olhando para ela, vencida por seu choro feroz contra a saia de
Rema, sua alterada alegria, e Rema passando a mão pelo cabelo dela,
acalmando-a com um suave apertar de dedos e um murmúrio junto a seu
ouvido, um balbucio que poderia ser de gratidão, de inominável
aquiescência.
I.
C
omeçara a ler o romance alguns dias antes. Abandonara-o por
negócios urgentes, tornara a abri-lo quando voltava de trem para a
estância; deixava-se envolver lentamente pela trama, pelo desenho
dos personagens. Naquela tarde, depois de escrever uma carta a
seu procurador e de discutir com o mordomo uma questão de parcerias,
voltou ao livro na tranquilidade do escritório que dava para o parque dos
carvalhos. Refestelado em sua poltrona predileta, de costas para a porta que
o teria perturbado como uma possibilidade irritante de intrusões, deixou que
sua mão acariciasse uma e outra vez o veludo verde e começou a ler os
últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens
dos protagonistas; a ilusão romanesca o tomou quase em seguida. Gozava
do prazer quase perverso de ir se desgarrando linha a linha do que o
cercava, e sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente
sobre o veludo do espaldar alto, que os cigarros continuavam ao alcance da
mão, que para além das janelas dançava o ar do entardecer ao redor dos
carvalhos. Palavra por palavra, captado pelo sórdido dilema dos heróis,
deixando-se levar na direção das imagens que se concatenavam e adquiriam
cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da
montanha. Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante,
rosto ferido pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela estancava o
sangue com seus beijos, mas ele repelia as carícias, não estava ali para
repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de
folhas secas e trilhas furtivas. O punhal se amornava de encontro a seu
peito, e por baixo pulsava a liberdade expectante. Um diálogo palpitante
corria pelas páginas como um arroio de serpentes, e dava para perceber que
tudo estava decidido desde sempre. Até aquelas carícias que enredavam o
corpo do amante como querendo retê-lo e dissuadi-lo delineavam
abominavelmente a silhueta de outro corpo que era necessário destruir.
Nada fora esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir daquela hora,
cada instante tinha uma finalidade minuciosamente determinada. O duplo
ensaio impiedoso só se interrompia para que uma mão acariciasse um rosto.
Começava a anoitecer.
Já sem olhar um para o outro, atrelados rigidamente à tarefa que os
aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela deveria seguir pela trilha
que levava ao norte. Da trilha oposta ele se virou por um instante para vê-la
correr com o cabelo solto. Correu por sua vez, entrincheirado entre as
árvores e as sebes, até distinguir na bruma malva do crepúsculo a alameda
que levava à casa. Os cães não deveriam latir, e não latiram. Àquela hora o
mordomo não estaria por lá, e não estava. Subiu os três degraus do alpendre
e entrou. Do sangue galopando em seus ouvidos lhe chegavam as palavras
da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada
acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro aposento, ninguém
no segundo. A porta do salão, e em seguida o punhal na mão, a luz das
janelas, o espaldar alto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do
homem na poltrona lendo um romance.
A culpa é de ninguém
O rio
E então, parece que é isso, que você saiu dizendo não sei o quê, que ia se
atirar no Sena, algo nesse estilo, uma dessas frases de plena noite,
misturadas a lençol e boca pastosa, quase sempre no escuro ou com um
pedaço de mão ou de pé roçando o corpo de quem mal escuta, porque faz
tanto tempo que mal escuto você quando fala esse tipo de coisa, isso vem
do outro lado de meus olhos fechados, do sono que outra vez me puxa para
baixo. Então está bem, não estou nem aí se você saiu, se se afogou ou
continua andando pela beira do rio olhando para a água, e além disso não é
verdade porque você continua aqui adormecida e respirando
entrecortadamente, mas então você não saiu quando saiu em algum
momento da noite antes de eu me perder no sono, porque você havia saído
dizendo alguma coisa, que ia se afogar no Sena, ou seja, você ficou com
medo, desistiu e de repente está aqui quase encostada em mim, e se mexe
ondulando como se alguma coisa se movesse suavemente em seu sono,
como se de fato você sonhasse que saiu e que afinal de contas havia
chegado aos molhes e se atirado na água. E assim uma vez mais, para
depois dormir com o rosto empapado de lágrimas idiotas até as onze da
manhã, hora em que chega o jornal com as notícias dos que se afogaram de
fato.
Dou risada de você, coitada. Suas decisões trágicas, esse seu jeito de
andar batendo as portas como uma atriz de turnê de interior, a gente se
pergunta se você de fato acredita em suas ameaças, em suas chantagens
repugnantes, em suas inesgotáveis cenas patéticas untadas de lágrimas e
adjetivos e inventários. Você mereceria alguém mais capacitado que eu para
fornecer a réplica, e nesse caso surgiria o par perfeito, com o fedor refinado
do homem e da mulher que se despedaçam olhando-se nos olhos para
certificar-se da protelação mais mambembe, para continuar sobrevivendo e
começar de novo e perseguir inesgotavelmente sua verdade de terreno
baldio e fundo de panela. Mas, como você vê, escolho o silêncio, acendo
um cigarro e ouço você falar, ouço você se queixar (com razão, mas o que
fazer), ou, o que é melhor ainda, vou caindo no sono, praticamente
embalado por suas imprecações previsíveis, de olhos entrecerrados ainda
confundo durante algum tempo as primeiras rajadas dos sonhos com seus
gestos de camisola ridícula sob a luz do lustre que nos deram quando nos
casamos, e acho que no fim adormeço e levo comigo, confesso quase com
amor, a parte mais aproveitável de seus movimentos e de suas denúncias, o
som estridente que lhe deforma os lábios lívidos de cólera. Para enriquecer
meus próprios sonhos, onde ninguém jamais tem a ideia de ir se afogar, isso
eu lhe garanto.
Mas, sendo assim, me pergunto o que você está fazendo nesta cama que
havia decidido trocar por outra mais vasta e mais fugidia. Agora se constata
que você dorme, que de vez em quando move uma perna que vai alterando
o desenho do lençol, você parece irritada com alguma coisa, não irritada
demais, é como um cansaço amargo, seus lábios esboçam uma careta de
desprezo, vão soltando o ar entrecortadamente, colhem-no em lufadas
breves, e acho que se eu não estivesse tão exasperado com suas falsas
ameaças admitiria que ficou bonita outra vez, como se o sono a devolvesse
um pouco para meu lado, onde o desejo é possível e mesmo a reconciliação
ou um novo prazo, uma coisa menos sombria que esse amanhecer no qual
os primeiros carros já começam a circular e os galos exibem
abominavelmente sua horrenda servidão. Não sei, já nem sequer faz sentido
perguntar outra vez se em algum momento você havia saído, se foi você que
bateu a porta ao sair no instante mesmo em que eu escorregava para o
olvido, e vai ver que é por isso que prefiro pôr a mão em você, não porque
duvide que você está aqui, provavelmente em nenhum momento você saiu
do quarto, talvez uma rajada de vento tenha fechado a porta, sonhei que
você havia saído enquanto você, achando que eu estava acordado, me
anunciava sua intenção aos gritos junto ao pé da cama. Não é por isso que
ponho a mão em você, na penumbra verde do amanhecer é quase doce
passar a mão por esse ombro que estremece e me repele. O lençol a cobre
em parte, meus dedos começam a descer pela linha esmerada de sua
garganta, inclinando-me respiro seu hálito que cheira a noite e a xarope, não
sei como meus braços a enlaçaram, ouço um queixume enquanto você
arqueia a cintura, negando-se, mas nós dois conhecemos mais que bem esse
jogo para acreditar nele, é preciso que você me entregue a boca arfante de
palavras soltas, não adianta nada seu corpo modorrento e vencido lutar para
esquivar-se, somos a tal ponto uma mesma coisa nesse emaranhado de
novelo em que a lã branca e a lã preta lutam como aranhas num frasco. Do
lençol que mal a cobria consigo entrever a rajada instantânea que sulca o ar
para perder-se na sombra e agora estamos nus, o amanhecer nos envolve e
reconcilia numa única matéria trêmula, mas você insiste em lutar,
encolhendo-se, lançando os braços por cima de minha cabeça, abrindo as
coxas como num relâmpago para tornar a fechar suas tenazes monstruosas
que gostariam de me separar de mim mesmo. Sou forçado a dominá-la
lentamente (e isso, você sabe, sempre fiz com uma graça cerimoniosa), sem
machucá-la vou dobrando os juncos de seus braços, me estreito a seu prazer
de mãos crispadas, de olhos enormemente abertos, agora seu ritmo por fim
afunda em movimentos lentos de moiré, de profundas borbulhas que
ascendem até meu rosto, vagamente acaricio seu cabelo derramado no
travesseiro, na penumbra verde olho com surpresa minha mão que escorre,
e antes de deslizar para seu lado sei que acabam de tirá-la da água, tarde
demais, naturalmente, e que você está caída sobre as pedras do molhe
cercada de sapatos e vozes, nua deitada de costas com o cabelo empapado e
os olhos abertos.
Os venenos
N
o sábado o tio Carlos chegou ao meio-dia com a máquina de
matar formigas. Na véspera dissera à mesa que ia trazê-la e minha
irmã e eu esperávamos a máquina imaginando que fosse enorme,
que fosse terrível. Conhecíamos bem as formigas de Banfield, as
formigas pretas que vão comendo tudo, que fazem os formigueiros na terra,
nos desvãos, ou nesse lugar misterioso onde uma casa afunda no solo, ali
fazem buracos disfarçados mas não conseguem esconder sua fileira negra
que vai e vem trazendo pedacinhos de folhas, e os pedacinhos de folhas
eram as plantas do jardim, por isso a mamãe e o tio Carlos haviam decidido
comprar a máquina para acabar com as formigas.
Lembro que minha irmã viu o tio Carlos chegar pela rua Rodríguez Peña,
viu de longe que ele vinha chegando no tílburi da estação e entrou correndo
pela ruela lateral gritando que o tio Carlos estava chegando com a máquina.
Eu estava perto dos ligustros que davam para a casa da Lila, falando com a
Lila por cima da cerca, contando a ela que à tarde íamos experimentar a
máquina, e a Lila estava interessada mas não muito, porque meninas não se
interessam por máquinas nem por formigas, a única coisa que chamava sua
atenção era que a máquina soltava fumaça e que isso mataria todas as
formigas lá de casa.
Quando ouvi minha irmã falei para a Lila que precisava ir ajudar a descer
a máquina e corri pela ruela com o grito de guerra de Sitting Bull, correndo
de um modo que eu tinha inventado naquele tempo e que era correr sem
dobrar os joelhos, como se viesse chutando uma bola. Cansava pouco e era
como um voo, só que nunca como o sonho de voar que eu sempre tinha
naquela época, e que consistia em recolher as pernas do chão e com um
mero movimento de cintura voar a vinte centímetros do chão, de uma
maneira impossível de contar de tão incrível que é, voar por ruas
compridas, subindo um pouco às vezes e depois de novo ao rés do chão,
com uma sensação tão nítida de estar desperto, fora que nesse sonho o
inconveniente era que eu sempre sonhava que estava acordado, que voava
de verdade, que antes era sonho mas dessa vez estava voando de verdade, e
quando acordava era como cair no chão, tão triste sair andando ou correndo
mas sempre pesado, um tombo a cada salto. A única coisa um pouco
parecida era aquele jeito de correr que eu havia inventado, com os tênis de
borracha Keds Champion com biqueira tinha a sensação do sonho, claro
que não dava para comparar.
A mamãe e a vovó já estavam na porta falando com o tio Carlos e o
cocheiro. Fui chegando devagar porque às vezes gostava de me fazer
esperar, e eu e minha irmã contemplamos o volume embrulhado em papel
pardo e amarrado com uma grande quantidade de barbante, que o cocheiro e
o tio Carlos estavam tirando do tílburi e pondo na calçada. A primeira coisa
que me ocorreu foi que era uma parte da máquina, mas logo depois vi que
era a máquina completa, e ela me pareceu tão pequena que minha alma
esvaziou feito um balão furado. A melhor parte foi carregá-la para dentro,
porque quando fui ajudar o tio Carlos vi que a máquina era muito pesada, e
o peso me devolveu a confiança. Eu mesmo a desvencilhei dos barbantes e
do papel, porque a mamãe e o tio Carlos precisavam abrir um pacote
pequeno onde estava a lata de veneno, e de saída eles já nos anunciaram que
ali não poderíamos pôr a mão e que mais de quatro já haviam morrido se
contorcendo pelo chão por ter encostado a mão na lata. Minha irmã foi para
um canto porque seu interesse pelo assunto estava encerrado e um pouco
também por medo, mas eu olhei para a mamãe e nós dois rimos, e todo
aquele discurso era por causa da minha irmã, eu receberia permissão para
manejar a máquina com veneno e tudo.
Não era bonita, quero dizer que não era uma máquina máquina, pelo
menos com uma roda que gira ou um apito que expele um jato de vapor.
Parecia uma estufa de ferro preto, com três pés virados para dentro, uma
porta para o fogo, outra para o veneno e de cima saía um tubo de metal
flexível (como o corpo dos lagartos) onde depois se conectava outro tubo de
borracha com um bico. Na hora do almoço a mamãe leu para nós o manual
de instruções, e toda vez que ela chegava aos trechos que falavam do
veneno todos olhávamos para minha irmã, e a vovó tornou a dizer para ela
que em Flores três crianças haviam morrido por ter encostado a mão na lata.
Já tínhamos visto a caveira na tampa, e o tio Carlos foi buscar uma colher
velha e disse que aquela seria para o veneno e que as coisas da máquina
seriam guardadas na prateleira de cima do quartinho das ferramentas. Lá
fora fazia calor porque janeiro estava começando e a melancia estava
gelada, com as sementes pretas que me lembravam as formigas.
Depois da sesta, a dos adultos, porque minha irmã estava lendo Billiken e
eu classificando os selos no pátio interno, fomos para o jardim e o tio
Carlos instalou a máquina na rótula das redes onde sempre apareciam
formigueiros. A vovó preparou braseiros de carvão para abastecer a
fornalha e eu fiz um barro lindíssimo numa bacia velha, mexendo com a
colher de pedreiro. A mamãe e a minha irmã se sentaram nas cadeiras de
palha para assistir, e a Lila olhava pelo meio do ligustro até que gritamos
para ela vir e ela disse que a mãe não deixava mas que ia do mesmo jeito.
Do outro lado do jardim já estavam aparecendo as dos Negri, que eram uns
casos sérios e que por isso não eram do nosso círculo. O pessoal chamava
as três de Chola, Ela e Cufina, coitadas. Eram boas mas patetas, e não dava
para brincar com elas. A vovó tinha pena delas, mas a mamãe nunca as
convidava para ir a nossa casa porque elas sempre arranjavam uma
encrenca com minha irmã ou comigo. Elas queriam comandar a brincadeira
mas não sabiam nem amarelinha nem bolinha de gude nem polícia e ladrão
nem canoa virou, e a única coisa que sabiam era rir como umas bobas e
falar de tantas coisas que nem sei a quem poderiam interessar. O pai era
vereador e a família criava galinhas Orpington amarelas. Nós criávamos
galinhas Rhode Island, melhores poedeiras.
A máquina parecia maior de tão preta que surgia em meio ao verde do
jardim e dos pomares. O tio Carlos a abasteceu com brasas, e enquanto ela
aquecia escolheu um formigueiro e aplicou nele o bico do tubo; eu joguei
barro ao redor e depois pisoteei o barro só que não com muita força, para
evitar o desmoronamento das galerias, como dizia o manual. Então meu tio
abriu a porta do veneno e veio com a lata e a colher. O veneno tinha uma
cor roxa, incrível, e era preciso jogar uma colherada grande e fechar a porta
em seguida. Assim que jogamos o veneno ouvimos uma espécie de bufo e a
máquina começou a trabalhar. Era formidável, em toda a volta do bico saía
uma fumaça branca e era preciso pôr mais barro e esmagar com as mãos.
“Vão morrer todas”, disse meu tio, que estava muito feliz com o
funcionamento da máquina, e eu me posicionei ao lado dele com as mãos
cheias de barro até os cotovelos, e dava para perceber que aquele trabalho
só podia ser feito por homens.
— Durante quanto tempo é preciso fumigar cada formigueiro? — a
mamãe perguntou.
— Pelo menos meia hora — disse o tio Carlos. — Alguns deles são
compridíssimos, mais do que se imagina.
Para mim ele queria dizer dois ou três metros, porque havia tantos
formigueiros lá em casa que não era possível que eles fossem assim tão
compridos. Mas justo naquele momento a gente ouviu a Cufina começar a
guinchar com aquela voz dela, que dava para ouvir até na estação, e toda a
família Negri veio para o jardim dizendo que estava saindo fumaça de um
canteiro de alfaces. No começo eu não conseguia acreditar, mas era
verdade, porque no mesmo instante a Lila, no meio dos ligustros, me avisou
que na casa dela também estava saindo fumaça ao lado de um pessegueiro,
e o tio Carlos parou para pensar e depois foi até a cerca dos Negri e pediu
para a Chola que era a menos preguiçosa deles que pusesse barro no ponto
onde estava saindo a fumaça, e eu pulei a cerca para a casa da Lila e vedei o
formigueiro. Agora estava saindo fumaça em outros pontos da casa, no
galinheiro, para lá da porta branca e ao pé da parede do lado. A mamãe e
minha irmã estavam ajudando a enfiar barro, era fantástico pensar que
embaixo da terra havia tanta fumaça tentando sair, e que no meio daquela
fumaça as formigas estavam se desesperando e se retorcendo como as três
crianças de Flores.
Naquela tarde trabalhamos até anoitecer, e mandaram minha irmã
perguntar nas casas de outros vizinhos se estava saindo fumaça. Logo antes
de ficar escuro a máquina foi desligada, e quando o bico foi retirado do
formigueiro eu cavei um pouco com a colher de pedreiro e todo o túnel
estava cheio de formigas mortas e de uma cor roxa com cheiro de enxofre.
Joguei barro por cima, como nos enterros, e calculei que pelo menos cinco
mil formigas haviam morrido. Todo mundo já tinha entrado porque estava
na hora de tomar banho e pôr a mesa, mas o tio Carlos e eu ficamos
verificando a máquina para guardá-la. Perguntei a ele se podia levar as
coisas para o quarto das ferramentas e ele falou que sim. Por via das
dúvidas passei uma água nas mãos depois de encostar na lata e na colher, e
isso que já havíamos limpado a colher.
O dia seguinte foi domingo e minha tia Rosa chegou com meus primos, e
foi um dia em que ficamos o tempo inteiro brincando de polícia e ladrão
junto com minha irmã e a Lila, que tinha autorização da mãe. À noite a tia
Rosa perguntou para a mamãe se meu primo Hugo podia passar a semana
em Banfield porque estava um pouco atacado da pleurisia e precisava de
sol. A mamãe disse que podia e todo mundo ficou feliz. Arrumaram uma
cama para o Hugo no meu quarto, e na segunda-feira a empregada chegou
trazendo a roupa que ele ia usar durante a semana. A gente tomava banho
junto e o Hugo sabia mais histórias que eu, mas não conseguia pular tão
longe. Dava para ver que ele era de Buenos Aires, com a roupa vieram dois
livros de Salgari e um de botânica, porque ele precisava estudar para entrar
no primeiro ano. Dentro do livro tinha uma pena de pavão-real, a primeira
que eu via, e ele a usava como marcador. Era verde com um olho roxo e
azul, toda salpicada de dourado. Minha irmã pediu ao Hugo que a desse
para ela, mas o Hugo disse que não porque era um presente da mãe. Não
deixou nem mesmo que ela encostasse a mão, mas eu sim, porque tinha
confiança em mim e eu segurava a pena pelo cálamo.
Nos primeiros dias, como o tio Carlos estava trabalhando no escritório,
não voltamos a ligar a máquina, mesmo eu tendo dito para a mamãe que se
ela quisesse eu podia fazê-la funcionar. A mamãe disse que era melhor a
gente esperar o sábado, que afinal naquela semana não havia tantas
mudinhas e não se viam tantas formigas quanto antes.
— Há umas cinco mil a menos — informei, e ela ria mas concordava
comigo. Era quase melhor ela não me deixar ligar a máquina, assim o Hugo
não se metia, porque ele era do tipo que sabe tudo e abre as portas para
olhar o que tem dentro. Principalmente com o veneno, era melhor que ele
não me ajudasse.
Na hora da sesta nos mandavam ficar quietos por medo de insolação.
Minha irmã, a partir do momento em que o Hugo começou a brincar
comigo, passava o tempo todo conosco, e sempre queria brincar em parceria
com o Hugo. Quando a gente jogava bolinha de gude eu sempre ganhava
deles, mas bilboquê, não sei como o Hugo sabia todas e sempre ganhava de
mim. Minha irmã o elogiava o tempo todo e eu percebia que ela estava
querendo ser sua namorada, era melhor contar à mamãe para que ela lhe
desse uns tapas, só que eu não estava sabendo como contar à mamãe, afinal
eles não estavam fazendo nada de mau. O Hugo ria dela mas disfarçando, e
eu nessas horas queria dar um abraço nele, mas era sempre no meio das
nossas brincadeiras e aí o assunto era ganhar ou perder e nada de abraços.
A sesta ia das duas às cinco e era a melhor hora para ficar em paz e fazer o
que a gente tinha vontade de fazer. Eu e o Hugo ficávamos olhando os selos
e eu dava a ele os repetidos, ensinava a classificar os selos por país, e ele
achava que no outro ano teria uma coleção como a minha, mas só da
América. Ia ficar sem os de Camarões, que são de animais, mas ele dizia
que assim as coleções ficam mais importantes. Minha irmã dava razão a ele,
e isso que não sabia dizer se um selo estava do direito ou do avesso, mas era
só para ser do contra. Em compensação, a Lila, que chegava lá pelas três
depois de pular a cerca entre os ligustros, estava do meu lado e gostava dos
selos da Europa. Uma vez eu tinha dado à Lila um envelope só com selos
diferentes, e ela falava disso e dizia que o pai ia ajudá-la com a coleção,
mas que a mãe achava que não era coisa de menina e que tinha micróbios, e
o envelope estava guardado no aparador.
Para que não ficassem bravos lá em casa com o barulho, quando a Lila
chegava a gente ia para o quintal e se instalava embaixo do pomar. As
meninas dos Negri também andavam pelo jardim da casa delas, e eu sabia
que as três estavam enlouquecidas com o Hugo e falavam umas com as
outras aos gritos e sempre pelo nariz, e a Cufina principalmente ficava
perguntando: “E onde está a caixa de costura com as linhas?”, e a Ela
respondia não sei o quê, e aí as duas brigavam, só que de propósito para
chamar a atenção, e menos mau que daquele lado os ligustros eram densos e
não dava para ver direito. Eu e a Lila morríamos de rir ouvindo as meninas
dos Negri e o Hugo tapava o nariz e dizia: “E onde está a chaleirinha do
mate?”. Aí a Chola, que era a mais velha, dizia: “Meninas, vocês já
repararam como este ano apareceu gente grosseira?”, e nós enfiávamos
grama na boca para não rir muito alto, porque o bom era deixá-las na
vontade e interromper a conversa, assim, depois, quando elas nos ouviam
brincar de pega-pega, ficavam muito mais furiosas e no fim brigavam umas
com as outras até aparecer a tia que puxava o cabelo delas e as três iam para
dentro chorando.
Eu gostava de ter a Lila como companheira de brincadeiras, porque
irmãos não gostam de brincar entre si quando tem mais gente e minha irmã
ficava sempre atrás do Hugo para ele brincar com ela. A Lila e eu
ganhávamos deles nas bolinhas de gude, mas o Hugo gostava mais de
polícia e ladrão e esconde-esconde, a gente sempre precisava concordar e
brincar dessas coisas, mas também era incrível, só que a gente não podia
gritar e brincadeiras assim sem gritos não são tão legais. Quando a gente
brincava de esconde-esconde era quase sempre eu que tinha de contar, não
sei por que eles ficavam sempre me enganando e eu encontrava todo
mundo. Às cinco horas aparecia a vovó e nos dava bronca porque
estávamos suados e porque havíamos tomado sol demais, mas a gente fazia
ela rir e lhe dava beijos, até o Hugo e a Lila que não eram de casa. Na época
reparei que a vovó sempre ia olhar a estante das ferramentas, e me dei conta
de que ela ficava com medo de que nós estivéssemos mexendo nas coisas
da máquina. Mas ninguém teria a ideia de fazer uma burrice dessas, com a
história das três crianças de Flores e ainda por cima a surra que a gente ia
levar.
De vez em quando eu gostava de ficar sozinho, e nesses momentos não
queria nem que a Lila ficasse por perto. Principalmente ao entardecer, um
pouco antes da vovó sair com sua túnica branca e começar a regar o jardim.
Àquela hora a terra já não estava tão quente, mas as madressilvas ficavam
muito cheirosas e também os canteiros de tomates, onde havia canaletas
para a água e bichos que só apareciam por lá. Eu gostava de me deitar no
chão de barriga para baixo e cheirar a terra, de sentir a terra embaixo de
mim, quente com seu cheiro de verão, tão diferente de outras vezes.
Pensava em muitas coisas, mas principalmente nas formigas, agora que
havia visto o que eram os formigueiros ficava pensando nas galerias que se
espalhavam para todos os lados e que ninguém via. Como as veias da minha
pele, que mal se conseguia ver por baixo da pele, mas cheias de formigas e
mistérios que iam e vinham. Se a pessoa comesse um pouco de veneno, na
verdade funcionava como a fumaça da máquina, o veneno andava pelas
veias do corpo igualzinho à fumaça na terra, não havia muita diferença.
Depois de algum tempo eu me cansava de ficar sozinho e de estudar os
bichos do tomate. Ia até a porta branca, tomava impulso e disparava feito
Buffalo Bill, e quando chegava ao canteiro das alfaces pulava direto por
cima sem nem encostar na borda de grama. Eu e o Hugo fazíamos tiro ao
alvo com a espingarda de ar comprimido, ou brincávamos nas redes quando
minha irmã ou às vezes a Lila saíam do banho e vinham para as redes com
roupa limpa. O Hugo e eu também íamos tomar banho, e no finzinho da
tarde íamos todos para a calçada, ou minha irmã tocava piano na sala e nós
nos sentávamos na balaustrada e ficávamos vendo as pessoas voltarem do
trabalho até o tio Carlos chegar, e todos íamos ao encontro dele e
aproveitávamos para ver se ele trazia algum pacote amarrado com barbante
rosa ou o Billiken. Foi justamente numa dessas ocasiões que ao correr para
a porta a Lila tropeçou num ladrilho e esfolou o joelho. Coitada da Lila, não
queria chorar mas as lágrimas pulavam dos olhos dela e eu pensava na mãe
que era tão brava e que a chamaria de bêbada e de tudo quanto é coisa
quando a visse machucada. O Hugo e eu fizemos cadeirinha e a levamos até
junto da porta branca enquanto minha irmã ia buscar um pano e álcool sem
que os outros percebessem. O Hugo dava uma de controlado e queria fazer
o curativo na Lila, minha irmã idem só para ficar ao lado do Hugo, mas eu
tirei os dois aos empurrões e falei para a Lila que aguentasse um
segundinho só e que se quisesse podia fechar os olhos. Mas ela não quis e
enquanto eu passava o álcool nela ela olhava fixamente para o Hugo só para
mostrar como era valente. Eu soprei o machucado com força, e com o
curativo ficou muito bem e não doía.
— É melhor você voltar logo para casa — disse minha irmã —, assim sua
mãe não fica brava.
Depois que a Lila foi embora eu comecei a me irritar com o Hugo e com
minha irmã, que estavam falando sobre orquestras típicas, e o Hugo tinha
assistido a De Caro num filme e assobiava tangos para que minha irmã
tirasse no piano. Fui para meu quarto pegar o álbum de selos pensando o
tempo todo se a mãe da Lila ia dar bronca nela e que talvez ela estivesse
chorando ou a ferida infeccionasse, como acontece tantas vezes. Era
incrível como a Lila tinha sido valente com o álcool e como olhava para o
Hugo sem chorar nem baixar os olhos.
Na mesa de cabeceira estava o livro de botânica do Hugo e aparecia o
cálamo da pena de pavão-real. Como ele me deixava olhar, tirei a pena com
cuidado e fui para perto da lâmpada para ver bem. Acho que não havia
nenhuma pena mais bonita que aquela. Parecia as manchas que se formam
na água das poças, mas não dava para comparar, era muitíssimo mais
bonita, de um verde brilhante como aqueles animais que vivem nos pés de
damasco e têm duas antenas compridas com uma bolinha peluda em cada
ponta. No centro da parte mais larga e mais verde se abria um olho azul e
roxo todo salpicado de ouro, uma coisa nunca vista antes. Eu de repente me
dava conta de por que ele se chamava pavão-real, e quanto mais olhava a
pena mais pensava em coisas bizarras, como nos romances, e no fim tive
que largar a pena porque senão ia acabar roubando ela do Hugo e isso não
estaria certo. Quem sabe a Lila estivesse pensando em nós, sozinha em sua
casa (que estava escura e com aqueles seus pais tão severos), enquanto eu
brincava com a pena e os selos. Melhor guardar tudo e pensar na coitada da
Lila tão valente.
À noite tive dificuldade para dormir, não sei por quê. Eu tinha enfiado na
cabeça que a Lila não se sentia bem e que estava com febre. Teria gostado
de pedir à mamãe que fosse perguntar à mãe dela, mas não era possível,
primeiro por causa do Hugo que ia começar a rir, depois que minha mãe
ficaria brava se ficasse sabendo do machucado e de que não tínhamos dito
nada a ela. Tentei dormir um monte de vezes mas não conseguia, e no fim
pensei que seria melhor ir até a casa da Lila de manhã para ver como ela
estava, ou chamá-la no ligustro. No fim adormeci pensando na Lila e no
Buffalo Bill e também na máquina das formigas, mas principalmente na
Lila.
No dia seguinte levantei antes de todo mundo e fui para meu jardim, que
ficava perto das glicínias. Meu jardim era um canteiro exclusivamente meu,
que a vovó tinha me dado para eu fazer o que quisesse. Uma vez plantei
alpiste, depois batatas, mas agora preferia as flores e principalmente meu
jasmim do Cabo, que é o que tem cheiro mais forte principalmente à noite,
e mamãe sempre dizia que meu jasmim era o mais bonito da casa. Fui
cavando devagar com a pá em torno do jasmim, que era a melhor coisa que
eu tinha, e no fim o retirei com toda a terra grudada na raiz. Assim fui
chamar a Lila, que também já tinha se levantado e que não tinha quase nada
no joelho.
— O Hugo vai embora amanhã? — ela me perguntou, e falei que sim,
porque ele precisava continuar seus estudos em Buenos Aires para entrar no
primeiro ano. Falei para a Lila que tinha um presente para ela e ela me
perguntou o que era e então eu lhe mostrei meu jasmim pelo meio do
ligustro e disse a ela que era um presente que eu lhe dava e que se ela
quisesse eu a ajudaria a fazer um jardim só para ela. A Lila disse que o
jasmim era muito lindo e pediu licença à mãe e eu pulei o ligustro para ir
ajudá-la a plantá-lo. Escolhemos um canteiro pequeno, arrancamos uns
crisântemos meio secos que havia nele e eu comecei a remexer a terra, a dar
outra forma ao canteiro, e depois a Lila me mostrou onde gostaria que
ficasse o jasmim, que era bem no meio. Plantei, regamos com o regador e o
jardim ficou muito bonito. Agora eu precisava conseguir um pouco de
grama, mas não havia pressa. A Lila estava muito feliz e o machucado não
estava doendo nada. Ela queria que o Hugo e minha irmã vissem
imediatamente o que havíamos feito, e eu fui buscá-los bem na hora em que
a mamãe me chamava para o café com leite. As dos Negri brigavam no
jardim, e a Cufina aos gritos como sempre. Não sei como elas conseguiam
brigar numa manhã tão linda.
No sábado à tarde o Hugo precisava voltar para Buenos Aires e eu até que
achei bom, porque o tio Carlos não queria ligar a máquina naquele dia e
deixou para domingo. Era melhor estarmos só ele e eu, vai que desse o azar
do Hugo se envenenar ou coisa assim. Naquela tarde senti um pouco de
falta dele porque já tinha me acostumado com ele no meu quarto e ele sabia
tantas histórias e aventuras de memória. Mas o pior era para minha irmã,
que andava pela casa inteira feito uma sonâmbula, e quando a mamãe
perguntou o que ela tinha ela disse que nada, mas com uma cara que a
mamãe ficou olhando para ela e no fim saiu dizendo que algumas pessoas
se achavam mais velhas do que eram e isso sem saber nem mesmo assoar o
nariz sozinhas. Eu achava que minha irmã estava se comportando como
uma idiota, principalmente quando a vi escrever com giz colorido na lousa
do pátio o nome do Hugo, depois apagava e escrevia de novo, sempre com
cores e letras diferentes, me olhando com o canto do olho, e depois fez um
coração com uma flecha e eu saí para não lhe dar uns tabefes ou ir contar
para mamãe. Para piorar as coisas, naquela tarde a Lila tinha voltado para
casa cedo, dizendo que a mãe não permitia que ela ficasse mais por causa
do machucado. O Hugo lhe disse que às cinco horas viriam de Buenos
Aires para buscá-lo, e por que ela não ficava até ele sair, mas a Lila disse
que não podia e foi embora correndo e sem se despedir. Por isso quando
vieram buscá-lo, o Hugo teve que ir se despedir da Lila e da mãe, e depois
se despediu de nós e foi embora todo feliz dizendo que voltava no outro fim
de semana. Naquela noite eu me senti um pouco sozinho no meu quarto,
mas por outro lado era uma vantagem sentir que tudo era meu de novo e
que podia apagar a luz quando tivesse vontade.
No domingo quando me levantei ouvi a mamãe falando por cima da cerca
com o sr. Negri. Me aproximei para dizer bom dia e o sr. Negri estava
dizendo à mamãe que no canteiro de alfaces por onde estava saindo fumaça
no dia em que experimentamos a máquina todas as alfaces estavam
murchando. A mamãe disse que era muito estranho porque no prospecto da
máquina estava escrito que a fumaça não era daninha para as plantas, e o sr.
Negri respondeu que não dá para acreditar nos prospectos, que acontece a
mesma coisa com os remédios, que quando a pessoa lê o prospecto pensa
que vai se curar de tudo e depois quem sabe acaba entre quatro velas. A
mamãe disse a ele que talvez alguma das meninas tivesse jogado água com
sabão no canteiro sem querer (mas eu percebi que a mamãe estava querendo
dizer de propósito, de encrenqueiras que eram, sempre atrás de briga) e
então o sr. Negri disse que ia investigar mas que na verdade se a máquina
matava as plantas não via qual era a vantagem de ter tanto trabalho. A
mamãe disse a ele que não ia comparar umas porcarias de umas alfaces com
o estrago que as formigas fazem nos jardins, e que à tarde íamos ligar a
máquina e que se eles vissem fumaça que avisassem, que nós íamos tapar
os formigueiros para que eles não tivessem nenhum incômodo. A vovó me
chamou para tomar café e não sei o que mais eles falaram, mas eu estava
entusiasmado pensando que íamos combater as formigas de novo, e passei a
manhã lendo Raffles embora não achasse tão bom quanto Buffalo Bill e
outros romances.
Minha irmã tinha se curado do ataque de loucura e andava cantando pela
casa inteira, e nessas inventou de pintar com os lápis de cor e veio até onde
eu estava, e antes que eu me desse conta ela já havia enfiado o nariz no que
eu estava fazendo, e por mero acaso eu acabava de escrever meu nome, que
eu gostava de escrever em toda parte, e o da Lila, que por mero acaso eu
tinha escrito ao lado do meu. Fechei o livro mas ela já havia lido e começou
a rir às gargalhadas olhando para mim com cara de pena, e eu fui para cima
dela mas ela guinchou e ouvi mamãe chegando perto de nós, então fui para
o jardim explodindo de raiva. No almoço ela ficou o tempo todo me
olhando com cara de gozação e eu teria adorado acertar um pontapé nela
por baixo da mesa, mas ela era capaz de começar a gritar e à tarde íamos
ligar a máquina, de modo que me segurei e não falei nada. Na hora da sesta
subi no chorão para ler e pensar, e quando o tio Carlos acabou de dormir às
quatro e meia e saiu, cevamos mate e depois preparamos a máquina e eu fiz
duas bacias com barro. As mulheres estavam dentro de casa e fazia calor,
principalmente ao lado da máquina que era a carvão, mas o mate é bom
para essas coisas quando é tomado amargo e muito quente.
Havíamos escolhido a parte do fundo do jardim, perto dos galinheiros,
porque parecia que as formigas estavam se refugiando naquela área e
faziam muito estrago nas sementeiras. Foi só a gente pôr o bico no
formigueiro maior e começou a sair fumaça por toda parte, até por entre os
tijolos do chão do galinheiro saía fumaça. Eu ia de um lado para outro
tampando a terra, gostava de aplicar o barro por cima e esmagá-lo com as
mãos até parar de sair fumaça. O tio Carlos se aproximou da cerca das dos
Negri e perguntou à Chola, que era a menos pateta, se não estava saindo
fumaça no jardim deles, e a Cufina na maior agitação começou a andar por
toda parte para verificar, pois elas tinham o maior respeito pelo tio Carlos,
mas do lado delas não estava saindo fumaça. Em compensação, ouvi a Lila
me chamar e fui correndo para o ligustro e vi que ela estava com o vestido
de bolinhas laranja que era o que eu mais gostava, e de joelho vermelho.
Gritou para mim que estava saindo fumaça do seu jardim, do jardim que era
só dela, e eu já estava pulando a cerca com uma das bacias de barro
enquanto a Lila me dizia aflita que quando tinha ido ver seu jardim ouvira a
gente falar com as dos Negri e que então bem ao lado do lugar onde
havíamos plantado o jasmim começou a sair fumaça. Eu estava ajoelhado
jogando barro com todas as minhas forças. Era muito perigoso para o
jasmim recém-transplantado, e agora com o veneno tão perto, mesmo com o
manual dizendo que não. Tive a ideia de interromper a galeria das formigas
alguns metros antes do canteiro, mas antes de mais nada apliquei o barro e
vedei a saída o melhor que pude. A Lila tinha se sentado à sombra com um
livro e me observava trabalhar. Eu gostava que ela ficasse me olhando, e
joguei tanto barro que sem dúvida por ali não sairia mais fumaça. Depois
me aproximei dela para perguntar onde havia uma pá para ver se conseguia
interromper a galeria antes dela chegar ao jasmim com todo o veneno. A
Lila se levantou e foi buscar a pá, e como ela estava demorando comecei a
olhar o livro, que era de histórias com figuras, e fiquei assombrado ao ver
que a Lila também tinha uma pena de pavão-real linda no livro, e que nunca
havia me dito nada. O tio Carlos estava me chamando para vedar novos
furos, mas eu fiquei olhando a pena que não podia ser a do Hugo mas era
tão idêntica que parecia ter saído do mesmo pavão-real, verde com o olho
roxo e azul, e as manchinhas de ouro. Quando a Lila voltou com a pá,
perguntei de onde ela havia tirado a pena, pensando em contar a ela que o
Hugo tinha uma idêntica. Quase não me dei conta do que ela estava dizendo
quando ficou muito vermelha e respondeu que o Hugo lhe dera a pena de
presente ao se despedir.
— Ele me disse que há muitas na casa dele — acrescentou como se
desculpando mas não olhava para mim, e o tio Carlos me chamou mais alto
do outro lado dos ligustros e eu joguei a pá que a Lila tinha me dado e
voltei para a cerca, embora a Lila estivesse me chamando e dizendo que
estava saindo fumaça de novo no jardim dela. Pulei a cerca e lá de casa por
entre os ligustros olhei para a Lila, que estava chorando com o livro na mão
e a pena só com a pontinha aparecendo, e vi que agora a fumaça estava
saindo bem ao lado do jasmim, todo o veneno se misturando com as raízes.
Fui até a máquina, aproveitando que o tio Carlos estava falando de novo
com as dos Negri, abri a lata de veneno e joguei duas, três colheradas cheias
na máquina e depois a fechei; assim a fumaça invadia bem os formigueiros
e matava todas as formigas, não deixava nem uma única formiga viva no
jardim lá de casa.
A porta condenada
P
etrone gostou do Hotel Cervantes por razões que teriam
desagradado a outros. Era um hotel sombrio, tranquilo, quase
deserto. Um conhecido, de passagem, o recomendara quando
cruzava o rio no vapor de carreira, dizendo que estava situado na
região central de Montevidéu. Petrone aceitou um quarto com banheiro no
segundo andar, que dava diretamente para a recepção. Pelo quadro de
chaves na portaria ficou sabendo que havia pouca gente no hotel; as chaves
estavam presas a pesados discos de bronze com o número do quarto,
recurso inocente da gerência para impedir que os clientes saíssem com elas
no bolso.
Desembarcava-se do elevador na frente da recepção, onde havia um
mostruário com os jornais do dia e a central telefônica. Ele só precisava
andar uns poucos metros para chegar a seu quarto. A água saía fervendo, e
isso compensava a falta de sol e de ar. No quarto havia uma janelinha que
dava para o terraço do cinema vizinho; às vezes uma pomba passeava por
ali. O banheiro tinha uma janela maior, que se abria tristemente para uma
parede e um pedaço de céu distante, quase inútil. Os móveis eram de boa
qualidade, havia gavetas e estantes à vontade. E muitos cabides, coisa rara.
O gerente era um homem alto e magro, completamente careca. Usava
óculos com armação de ouro e falava com a voz forte e sonora dos
uruguaios. Disse a Petrone que o segundo andar era muito tranquilo, e que
no único quarto contíguo ao dele morava uma senhora sozinha, que
trabalhava em algum lugar e só voltava para o hotel ao anoitecer. Petrone
encontrou-se com ela no dia seguinte, no elevador. Deu-se conta de que era
ela pelo número da chave que levava na palma da mão, como se oferecesse
uma enorme moeda de ouro. O porteiro pegou a chave junto com a de
Petrone para pendurá-las no quadro, e ficou falando com a mulher sobre um
assunto de cartas. Petrone teve tempo de ver que ela ainda era jovem,
insignificante, e que se vestia mal, como todas as uruguaias.
O contrato com os fabricantes de mosaicos levaria mais ou menos uma
semana. À tarde Petrone ajeitou a roupa no armário, organizou seus papéis
na mesa e depois de tomar um banho saiu para andar pelo centro enquanto
não chegava a hora de ir até o escritório dos sócios. O dia se passou em
conversas, interrompidas por um drinque em Pocitos e um jantar na casa do
sócio principal. Quando o deixaram no hotel já passava da uma. Cansado,
deitou-se e adormeceu em seguida. Quando acordou eram quase nove
horas, e nesses primeiros minutos em que as sobras da noite e do sono ainda
não se dissiparam, pensou que em algum momento fora perturbado pelo
choro de uma criança.
Antes de sair, conversou com o empregado que atendia na recepção e que
falava com sotaque alemão. Enquanto se informava sobre linhas de ônibus e
nomes de ruas, olhava distraído para a grande sala em cuja extremidade
ficavam as portas de seu quarto e da senhora sozinha. Entre as duas portas
havia um pedestal com uma réplica nefasta da Vênus de Milo. Outra porta,
na parede lateral, dava para uma saleta com as indefectíveis poltronas e
revistas. Quando o empregado e Petrone se calavam, o silêncio do hotel
dava a impressão de coagular-se, de cair como cinza sobre os móveis e as
lajotas. O elevador se tornava quase estrepitoso, o mesmo acontecendo com
o ruído produzido pelas páginas de um jornal ou o riscar de um fósforo.
As reuniões terminaram ao anoitecer e Petrone deu uma volta pela 18 de
Julio antes de entrar para jantar num dos botecos da praça Independencia.
Tudo estava correndo bem, e talvez pudesse voltar para Buenos Aires antes
do que imaginara. Comprou um jornal argentino, um maço de cigarros
escuros, e foi andando devagar até o hotel. No cinema ao lado estavam
passando dois filmes que ele já havia visto, e na verdade não estava com
vontade de ir a lugar nenhum. O gerente cumprimentou-o quando ele
passou e perguntou-lhe se estava precisando de mais roupa de cama.
Conversaram por um momento, fumando um cigarrinho, e se despediram.
Antes de deitar, Petrone organizou os papéis que utilizara durante o dia e
leu o jornal sem grande interesse. O silêncio do hotel era quase excessivo, e
o barulho de um ou outro bonde descendo a Soriano só fazia pausá-lo,
fortalecê-lo para um novo intervalo. Sem ansiedade mas com alguma
impaciência, jogou o jornal no cesto e tirou a roupa olhando-se distraído no
espelho do armário. Era um armário já velho, que havia sido encostado a
uma porta que dava para o quarto contíguo. Petrone ficou surpreso ao
descobrir a porta, que não percebera em sua primeira inspeção do quarto.
No início imaginara que o edifício fora construído para ser hotel, mas agora
se dava conta de que ocorria o mesmo que em tantos hotéis modestos,
instalados em antigos prédios de escritório ou familiares. Pensando bem,
em quase todos os hotéis que conhecera na vida — e eram muitos — os
quartos tinham alguma porta condenada, às vezes à vista mas quase sempre
com um guarda-roupa, uma mesa ou um porta-chapéus na frente, que, como
no caso, lhes dava uma certa ambiguidade, um envergonhado desejo de
disfarçar sua existência, como uma mulher que imagina cobrir-se dispondo
as mãos sobre o ventre ou os seios. Fosse como fosse, a porta estava ali,
sobressaindo do nível do armário. Algum dia as pessoas haviam entrado e
saído por ela, batendo-a, entreabrindo-a, dando-lhe uma vida que ainda
estava presente em sua madeira tão diferente das paredes. Petrone imaginou
que do outro lado também haveria um guarda-roupa e que a senhora que
morava lá pensaria a mesma coisa sobre a porta.
Não estava cansado, mas adormeceu com gosto. Teria dormido três ou
quatro horas quando foi acordado por uma sensação de desconforto, como
se algo já tivesse acontecido, algo desagradável e irritante. Acendeu a
lâmpada de cabeceira, viu que eram duas e meia, e tornou a apagá-la. Então
ouviu no quarto ao lado o choro de uma criança.
No primeiro momento não se deu conta direito. Seu primeiro movimento
foi de satisfação; então era verdade que na noite anterior uma criança não o
deixara descansar. Tudo explicado, era mais fácil adormecer novamente.
Mas depois pensou no outro lado da coisa e sentou-se devagarinho na cama,
sem acender a luz, escutando. Não estava enganado, o choro vinha do
quarto ao lado. Dava para ouvir o barulho através da porta condenada,
estava localizado na área do quarto correspondente aos pés da cama. Mas
não era possível que no quarto ao lado houvesse uma criança; o gerente
dissera claramente que a senhora morava sozinha, que passava quase o dia
inteiro no trabalho. Por um segundo Petrone alimentou a ideia de que talvez
naquela noite ela estivesse tomando conta do filho de alguma parente ou
amiga. Pensou na noite anterior. Agora tinha certeza de que já ouvira aquele
choro, porque não era um choro fácil de confundir, era mais uma série
irregular de gemidos muito fracos, de soluços queixosos seguidos de um
choramingo breve, tudo isso inconsistente, mínimo, como se a criança
estivesse muito doente. Devia ser um bebê de poucos meses, embora não
chorasse com a estridência e os repentinos cacarejos e engasgos de um
recém-nascido. Petrone imaginou um menino — uma criança do sexo
masculino, não sabia por quê — frágil e doentinho, de feições abatidas e
movimentos apagados. Aquilo se queixava à noite, chorando com pudor,
sem chamar muito a atenção. Se a porta condenada não estivesse ali, o
choro não teria vencido as costas robustas da parede, ninguém teria sabido
que no quarto ao lado havia um menino chorando.
O cabaré era de um tédio mortal, e seus dois anfitriões não pareciam tão
entusiasmados assim, de modo que ficou fácil para Petrone alegar o cansaço
do dia e ser deixado no hotel. Combinaram assinar os contratos no dia
seguinte à tarde; o negócio estava praticamente fechado.
O silêncio na recepção do hotel era tão grande que Petrone se flagrou
andando na ponta dos pés. Alguém havia deixado o jornal da tarde ao lado
de sua cama; havia também uma carta de Buenos Aires. Reconheceu a letra
de sua mulher.
Antes de deitar ficou olhando o armário e a parte sobressalente da porta.
Quem sabe se pusesse as duas malas em cima do armário, bloqueando a
porta, os ruídos do aposento ao lado diminuiriam. Como sempre àquela
hora, não se escutava nada. O hotel dormia, as coisas e as pessoas dormiam.
Mas Petrone, já de mau humor, imaginou que não era nada disso e que
estava tudo acordado, veementemente acordado no centro do silêncio. Sua
ansiedade inconfessa devia estar se comunicando à casa, às pessoas da casa,
emprestando-lhes uma qualidade de espreita, de vigilância disfarçada.
Milhões de besteiras.
Quase não acreditou quando o choro da criança o trouxe de volta às três
da manhã. Sentando-se na cama, perguntou-se se não seria melhor chamar o
vigia para ter uma testemunha de que naquele quarto era impossível dormir.
A criança chorava tão baixinho que às vezes nem se escutava, embora
Petrone percebesse que o choro estava ali, contínuo, e que não demoraria a
crescer outra vez. Dez ou vinte lentíssimos segundos se passavam; então
chegava um soluço breve, um gemido que mal se percebia e que se
prolongava suavemente até se desfazer no verdadeiro choro.
Acendendo um cigarro, perguntou-se se não deveria bater discretamente
na parede para que a mulher fizesse a criança se calar. Só quando imaginou
os dois, a mulher e a criança, deu-se conta de que não acreditava neles, de
que absurdamente não acreditava que o gerente tivesse mentido para ele.
Agora se ouvia a voz da mulher, encobrindo por completo o choro da
criança com seu arrebatado — embora tão discreto — consolo. A mulher
estava ninando a criança, consolando-a, e Petrone a imaginou sentada ao pé
da cama, balançando o berço da criança ou segurando-a no colo. No
entanto, por mais que quisesse, não conseguia imaginar a criança, como se a
afirmação do homem do hotel fosse mais verdadeira que aquela realidade
que ouvia ali. Pouco a pouco, à medida que o tempo passava e os débeis
gemidos se alternavam ou cresciam entre os murmúrios de consolo, Petrone
começou a desconfiar que aquilo era uma farsa, uma brincadeira ridícula e
monstruosa que não tinha como explicar para si mesmo. Pensou em antigas
histórias de mulheres sem filhos organizando em segredo um culto de
bonecas, uma oculta maternidade inventada, mil vezes pior que os mimos
dedicados a cães ou gatos ou sobrinhos. A mulher imitava o choro de seu
filho frustrado, consolava o ar entre as mãos vazias, talvez com o rosto
molhado de lágrimas porque o choro que fingia era ao mesmo tempo seu
verdadeiro choro, sua grotesca dor na solidão de um quarto de hotel,
protegida pela indiferença e pela madrugada.
Acendendo a lâmpada de cabeceira, incapaz de voltar a dormir, Petrone se
perguntou o que iria fazer. Seu mau humor era maligno, estava contagiado
por aquele ambiente onde de repente tudo lhe parecia manipulado, oco,
falso: o silêncio, o choro, o acalento, a única coisa real daquela hora entre a
noite e o dia e que o enganava com sua mentira insuportável. Bater na
parede pareceu-lhe pouco demais. Não estava totalmente acordado, embora
adormecer fosse uma coisa impossível; sem saber bem como, viu-se
movendo devagarinho o armário até deixar a descoberto a porta empoeirada
e suja. De pijama e descalço, colou-se a ela como uma centopeia, e
aproximando a boca das tábuas de pinho começou a imitar em falsete,
imperceptivelmente, um gemido como o que vinha do outro lado. Subiu o
tom, gemeu, soluçou. Do outro lado fez-se um silêncio que haveria de durar
toda a noite; mas no instante que o precedeu, Petrone pôde ouvir a mulher
correndo pelo quarto com um chicotear de pantufas, soltando um grito seco
e instantâneo, um começo de berro que se interrompeu de repente, como
uma corda tensionada.
Quando passou pelo balcão da gerência eram mais de dez horas. Entre
sonhos, depois das oito, ouvira as vozes do empregado e de uma mulher.
Alguém andara pelo quarto ao lado arrastando coisas. Viu um baú e duas
malas grandes perto do elevador. O gerente estava com um ar que Petrone
classificou como desconcertado.
— Passou bem a noite? — perguntou-lhe no tom profissional que mal
dissimulava a indiferença.
Petrone deu de ombros. Não queria insistir, quando só lhe restava uma
noite no hotel.
— De todo modo agora o senhor vai ficar mais tranquilo — disse o
gerente, olhando para as malas. — A senhora nos deixará ao meio-dia.
Esperava um comentário, e Petrone o ajudou com os olhos.
— Fazia muito tempo que ela estava aqui, e agora vai embora assim de
repente. Com as mulheres, nunca se sabe.
— É mesmo — disse Petrone. — Nunca se sabe.
Na rua sentiu-se nauseado, com uma náusea que não era física. Engolindo
um café amargo, começou a matutar no assunto, esquecendo-se do negócio,
indiferente ao esplêndido sol. Ele é que tinha a culpa de que a mulher
deixasse o hotel, louca de medo, de vergonha ou de raiva. Fazia muito
tempo que ela estava aqui… Era uma pessoa doente, talvez, mas
inofensiva. Não era ela, mas ele quem deveria ter resolvido deixar o
Cervantes. Tinha o dever de falar com ela, de desculpar-se e pedir-lhe que
ficasse, jurando discrição. Deu alguns passos de volta, e no meio do
caminho estacou. Tinha medo de fazer um papelão, de que a mulher
reagisse de algum modo imprevisível. Já estava na hora de encontrar os dois
sócios e não queria deixá-los esperando. Bom, ela que se virasse. Não
passava de uma histérica, logo encontraria outro hotel onde cuidar do filho
imaginário.
As mênades
E
ntregando-me um programa impresso em papel creme, d. Pérez me
conduziu até meu lugar na plateia. Fila nove, ligeiramente para a
direita: o perfeito equilíbrio acústico. Conheço bem o Teatro
Corona e sei que tem caprichos de mulher histérica. A meus
amigos, aconselho que não aceitem nunca a fila treze, porque ali há uma
espécie de poço de ar onde a música não entra; nem o lado esquerdo das
tertúlias, porque é igual ao Teatro Comunale de Florença, alguns
instrumentos dão a impressão de se destacar da orquestra, flutuar no ar, e é
por isso que uma flauta pode começar a tocar a três metros da pessoa
enquanto o resto continua corretamente no proscênio, o que pode ser
pitoresco mas é muito pouco agradável.
Dei uma olhada no programa. Teríamos O sonho de uma noite de verão,
Don Juan, O mar e a Quinta sinfonia. Não consegui deixar de rir ao pensar
no Maestro. Uma vez mais o velho raposão organizara seu programa de
concerto com aquela insolente arbitrariedade estética que encobria um
profundo olfato psicológico, traço comum aos régisseurs de music hall, aos
virtuosos de piano e aos matchmakers de luta livre. Só eu, de puro tédio,
tinha a capacidade de me enfiar num concerto com Strauss, Debussy e logo
em seguida Beethoven, contra todos os preceitos humanos e divinos. Mas o
Maestro conhecia seu público, montava concertos para os habitués do
Teatro Corona, ou seja, pessoas tranquilas e bem-dispostas que preferem o
ruim conhecido ao bom que ainda não conhecem, e que antes de mais nada
exigem profundo respeito para com sua digestão e sua tranquilidade. Com
Mendelssohn ficariam à vontade, depois o Don Juan, generoso e redondo,
com melodiazinhas assobiáveis. Debussy os faria sentir-se artistas, porque
não é qualquer um que entende sua música. E em seguida o prato principal,
a grande massagem vibratória beethoveniana, é assim que o destino bate à
porta, o V da vitória, o surdo genial, e depois voar para casa que amanhã o
trabalho no escritório vai estar uma loucura.
Na realidade eu tinha um enorme carinho pelo Maestro, que trouxe boa
música para esta cidade sem arte, afastada dos grandes centros, onde há dez
anos não se passava de La traviata e da abertura de O guarani. O Maestro
veio para a cidade contratado por um empresário de iniciativa, e montou
essa orquestra, que poderia ser considerada de primeira linha. Pouco a
pouco foi nos largando Brahms, Mahler, os impressionistas, Strauss e
Mussorgski. No início os assinantes rosnaram para ele e o Maestro foi
obrigado a baixar a bola e incluir muitas “seleções de ópera” nos
programas; depois começaram a aplaudir o Beethoven duro e parelho que
ele nos impingia, e no fim o ovacionavam por qualquer coisa, pelo mero
fato de vê-lo, como agora que sua entrada estava provocando um
entusiasmo fora do comum. Mas nos inícios de temporada as pessoas estão
com as mãos frescas, aplaudem com gosto, e além disso todo mundo
gostava do Maestro, que se inclinava secamente, sem excessiva
condescendência, e se virava para os músicos com seu ar de chefe de
brigantes. Sentada a minha esquerda estava a sra. de Jonatán, a quem não
conheço muito mas que passa por melômana, e que me disse
enrubescidamente:
— Esse sim, esse sim é um homem que conseguiu o que poucos
conseguiram. Não só criou uma orquestra como criou um público. Não é
admirável?
— É — falei, com minha condescendência habitual.
— Às vezes penso que ele deveria reger olhando para o público, porque
nós também somos um pouco seus músicos.
— Não me inclua, por favor — eu disse. — Em matéria de música eu
tenho uma triste confusão mental. Esse programa, por exemplo, me parece
horrendo. Mas sem dúvida estou enganado.
A sra. de Jonatán me olhou com dureza e desviou o rosto, embora sua
amabilidade tenha sido mais forte, induzindo-a a me oferecer uma
explicação.
— É um programa só de obras-primas, e cada uma foi solicitada
especialmente por cartas de admiradores. O senhor não sabe que esta noite
o Maestro está completando bodas de prata com a música? E que a
orquestra comemora cinco anos de formação? Leia a parte de trás do
programa, tem um artigo muito sensível do dr. Palacín.
Li o artigo do dr. Palacín no intervalo, depois de Mendelssohn e de
Strauss, que valeram as correspondentes ovações ao Maestro. Passeando
pelo foyer perguntei-me uma ou duas vezes se as execuções justificavam
semelhantes arrebatamentos de um público que, até onde eu sei, não é tão
generoso assim. Mas as efemérides são as grandes portas da estupidez, e
concluí que os admiradores do Maestro não eram capazes de conter a
própria emoção. No bar encontrei o dr. Epifanía com a família e fiquei
alguns minutos conversando. As garotas estavam vermelhas e excitadas, me
cercaram como franguinhas cacarejantes (fazem pensar em voláteis
diversos) para me dizer que Mendelssohn havia sido animal, que sua
música parecia de veludo e tule, que ele era de um romantismo
maravilhoso. Que a pessoa podia passar a vida inteira ouvindo o noturno, e
o scherzo fora tocado por mãos de fadas. Beba gostava mais de Strauss
porque era forte, verdadeiramente um dom Juan alemão, com aqueles
cornes e aqueles trombones de arrepiar — coisa que teve sobre mim um
efeito surpreendentemente literal. O dr. Epifanía nos escutava com
sorridente indulgência.
— Ah, os jovens! Bem se vê que vocês nunca viram Risler tocar, nem Von
Bülow reger. Aqueles eram os grandes tempos.
As garotas olhavam para ele furiosas. Rosarito disse que hoje em dia as
orquestras são muito mais bem regidas que cinquenta anos atrás, e Beba
recusou ao pai todo direito de diminuir a qualidade extraordinária do
Maestro.
— Claro, claro — disse o dr. Epifanía. — Considero que esta noite o
Maestro está genial. Que fogo, que entusiasmo! Eu mesmo fazia anos que
não aplaudia tanto.
E me mostrou duas mãos com as quais até parecia que acabava de
esmagar uma beterraba. O curioso é que até aquele momento eu tivera a
impressão oposta, achando que o Maestro estava numa daquelas noites em
que o fígado o perturba e ele opta por um estilo sucinto e direto, sem
maiores efusões. Mas devia ser o único a pensar assim, porque Cayo
Rodríguez quase pulou no meu pescoço quando me descobriu e me disse
que o Don Juan estava um negócio e que o Maestro era um dirigente
incrível.
— Você reparou naquele trecho do scherzo de Mendelssohn quando
parece que em vez de uma orquestra o que a gente está ouvindo são
murmúrios de vozes de duendes?
— A verdade — eu disse — é que primeiro eu teria de ficar sabendo
como são as vozes dos duendes.
— Não seja grosso — disse Cayo enrubescendo, e vi que falava com uma
raiva sincera. — Como é possível que você não seja capaz de perceber uma
coisa dessas? O Maestro está genial, tchê, rege como nunca. Parece mentira
que você seja tão obtuso.
Guillermina Fontán vinha em nossa direção toda afogueada. Repetiu os
epítetos das garotas de Epifanía, depois ela e Cayo olharam um para o outro
com lágrimas nos olhos, comovidos com aquela fraternidade na admiração
que por um momento torna os humanos tão bons. Eu os contemplava com
assombro, porque não conseguia entender semelhante entusiasmo; é
verdade que não vou a concertos todas as noites, como eles, e que às vezes
me acontece de confundir Brahms com Bruckner e vice-versa, o que no
grupo deles seria considerado de uma ignorância irrecorrível. De todo modo
aqueles rostos rubicundos, aqueles pescoços transpirados, aquele desejo
latente de continuar aplaudindo nem que fosse no foyer ou no meio da rua,
levavam-me a pensar nas influências atmosféricas, na umidade ou nas
manchas solares, coisas que costumam afetar os comportamentos humanos.
Lembro-me de que naquele momento pensei se algum engraçadinho não
estaria repetindo o memorável experimento do dr. Ox para inflamar o
público. Guillermina me arrancou de minhas cavilações sacudindo meu
braço com violência (mal nos conhecemos).
— E agora vem Debussy — murmurou excitadíssima. — Essa rendinha
de água, La Mer.
— Vai ser magnífico ouvi-la — falei, acompanhando sua corrente
marinha.
— O senhor faz uma ideia de como o Maestro vai reger La Mer?
— Impecavelmente — avaliei, olhando-a para ver como ela recebia minha
observação. Mas era evidente que Guillermina esperava mais fogo, porque
se virou para Cayo, que tomava soda como um camelo sedento, e os dois se
entregaram a um cálculo beatífico sobre o que seria o segundo movimento
de Debussy e a força grandiosa que teria o terceiro. Fui dar uma volta pelos
corredores, voltei para o foyer, e em toda parte era entre comovente e
irritante ver o entusiasmo do público pelo que acabava de escutar. Um
enorme zumbido de colmeia em polvorosa incidia pouco a pouco nos
nervos, e eu próprio acabei me sentindo um pouco febril e dupliquei minha
dose habitual de soda Belgrano. Me dava uma certa tristeza não estar
integralmente no jogo, olhar aquelas pessoas de fora, como se fosse um
entomologista. Mas o que fazer… É uma coisa que sempre me acontece na
vida e quase cheguei a me valer desse talento para não me comprometer
com nada.
Quando voltei para a plateia, todos já estavam em seus lugares e tive que
perturbar a fila inteira para chegar ao meu assento. Os músicos iam
entrando no proscênio sem muito entusiasmo, e achei curioso como as
pessoas haviam se instalado antes deles, ávidas por ouvir. Olhei para o
paraíso e as galerias altas; uma massa negra, pareciam moscas num vidro de
doce. Nas galerias altas, mais separadas, os ternos dos homens davam a
impressão de bandos de corvos, algumas lanternas elétricas se acendiam e
apagavam, os melômanos providos de partituras ensaiavam os métodos de
iluminação de que dispunham. A luz da grande luminária central foi
diminuindo pouco a pouco, e no escuro da sala ouvi brotarem os aplausos
que saudavam a entrada do Maestro. Achei curiosa aquela substituição
progressiva da luz pelo ruído, e como um de meus sentidos entrava em ação
justamente quando o outro se entregava ao descanso. À minha esquerda a
sra. de Jonatán batia palmas com força, toda a fileira aplaudia maciçamente;
mas à direita, dois ou três assentos adiante, vi um homem que se mantinha
imóvel, de cabeça pensa. Cego, sem dúvida; adivinhei o brilho da bengala
branca, os óculos inúteis. Só ele e eu nos recusávamos a aplaudir, e a atitude
dele me atraiu. Eu teria gostado de sentar-me ao seu lado, falar com ele:
alguém que não aplaudia naquela noite era um ser digno de interesse. Duas
fileiras à frente as garotas de Epifanía arrebentavam as mãos de aplaudir, e
o pai não ficava atrás. O Maestro fez um breve cumprimento, olhando uma
ou duas vezes para cima, de onde o ruído descia como uma ondulação para
encontrar-se com o da plateia e dos camarotes. Tive a sensação de ver nele
um ar entre interessado e perplexo; seu ouvido devia estar lhe mostrando a
diferença entre um concerto comum e o das bodas de prata. Nem é preciso
dizer que La Mer lhe valeu uma ovação só um pouco inferior à obtida com
Strauss, coisa altamente compreensível. Eu mesmo me deixei capturar pelo
último movimento, com seus fragores e seus imensos vaivéns sonoros, e
aplaudi até minhas mãos doerem. A sra. de Jonatán chorava.
— É tão inefável — murmurou ela, virando para meu lado um rosto que
parecia estar saindo da chuva. — Tão incrivelmente inefável…
O Maestro entrava e saía, com sua destreza elegante e seu jeito de subir no
pódio como quem vai dar início a um leilão. Mandou a orquestra se
levantar, e os aplausos e bravos redobraram. À minha direita, o cego
aplaudia gentilmente, tomando cuidado com as mãos, era delicioso ver com
que parcimônia ele contribuía para a homenagem popular, a cabeça pensa, o
ar absorto e quase ausente. Os “bravo!”, que sempre ecoam isoladamente e
como expressões individuais, pipocavam de todas as direções. Os aplausos
haviam começado com menos violência que na primeira parte do concerto,
mas agora que a música ficava para trás e que não se aplaudia Don Juan
nem La Mer (ou melhor, seus efeitos), mas unicamente o Maestro e o
sentimento coletivo que envolvia a sala, a força da ovação começava a
alimentar-se a si mesma, crescia por momentos e se tornava quase
intolerável. Irritado, olhei para a esquerda e vi uma mulher vestida de
vermelho que corria aplaudindo pelo centro da plateia, e que se detinha ao
pé do pódio, praticamente aos pés do Maestro. Ao inclinar-se para uma
nova saudação, o Maestro deu com a senhora de vermelho a uma distância
tão pequena que endireitou o corpo surpreso. Mas das galerias altas vinha
um fragor que o obrigou a erguer a cabeça e saudar, como raras vezes fazia,
levantando o braço esquerdo. Aquilo exacerbou o entusiasmo, e aos
aplausos se somaram estrondos de sapatos batendo no assoalho das tertúlias
e dos palcos. Realmente um exagero.
Não havia intervalo, mas o Maestro se retirou para descansar dois minutos
e eu me levantei para apreciar melhor a sala. O calor, a umidade e a
excitação haviam transformado a maioria dos assistentes em lamentáveis
lagostins suarentos. Centenas de lenços funcionavam como ondas de um
mar que prolongava grotescamente o que acabávamos de ouvir. Muitas
pessoas corriam até o foyer para engolir a toda a velocidade uma cerveja ou
uma laranjada. Com medo de perder alguma coisa, voltavam, mesmo com o
risco de tropeçar com outros que saíam, e na porta principal da plateia havia
uma confusão considerável. Contudo, não se verificavam altercações, as
pessoas se sentiam de uma bondade infinita, era antes como um grande
amolecimento sentimental em que todos se encontravam fraternalmente e se
reconheciam. A sra. de Jonatán, gorda demais para manifestar-se em seu
assento, erguia para mim, sempre de pé, um rosto estranhamente
semelhante a um rabanete. “Inefável”, repetia. “Tão inefável.”
Quase me alegrei com a volta do Maestro, porque aquela multidão de que
eu fazia parte inapelavelmente me dava uma mistura de pena e nojo. De
toda aquela gente, os músicos e o Maestro pareciam ser os únicos dignos. E
também o cego a poucos assentos do meu, rígido e sem aplaudir, com uma
atenção refinada e sem a menor baixeza.
— A Quinta — umedeceu minha orelha a sra. de Jonatán. — O êxtase da
tragédia.
Pensei que aquele era um bom título de filme e fechei os olhos. Talvez
naquele instante estivesse procurando assimilar-me ao cego, o único ser
entre tanta coisa gelatinosa que me cercava. E quando já começava a ver
pequenas luzes verdes cruzando minhas pálpebras feito andorinhas, a
primeira frase da Quinta caiu sobre mim como uma pá de escavadora,
obrigando-me a olhar. O Maestro estava quase belo, com seu rosto fino e
alerta, fazendo decolar a orquestra, que tinia com todos os seus motores.
Um grande silêncio se fizera na sala, sucedendo-se fulminantemente aos
aplausos, creio mesmo que o Maestro soltou a máquina antes que
acabassem de saudá-lo. O primeiro movimento passou por cima de nossa
cabeça com seus fogos de recordação, seus símbolos, seu fácil e
involuntário poder de envolvimento. O segundo, magnificamente regido,
repercutia numa sala cujo ar dava a impressão de estar incendiado, mas de
um incêndio que fosse invisível e frio, que queimasse de dentro para fora.
Quase ninguém ouviu o primeiro grito, porque foi sufocado e curto, mas
como a moça estava sentada justamente à minha frente, sua convulsão me
surpreendeu e ao mesmo tempo a ouvi gritar, no meio de um grande acorde
de metais e madeiras. Um grito seco e breve, como o de um espasmo
amoroso ou de histeria. Sua cabeça se inclinou para trás, sobre aquela
espécie de estranho unicórnio de bronze dos assentos do Corona, e ao
mesmo tempo seus pés golpearam furiosamente o assoalho enquanto as
pessoas sentadas ao lado a seguravam pelos braços. Em cima, na primeira
fila das tertúlias, ouvi outro grito, outra pancada no assoalho. O Maestro
encerrou o segundo movimento e partiu imediatamente para o terceiro; me
perguntei se um regente consegue ouvir um grito na plateia, prisioneiro
como está do primeiro plano sonoro da orquestra. A moça da poltrona da
frente agora ia se dobrando pouco a pouco e alguém (talvez a mãe) a
sustentava o tempo todo pelo braço. Eu gostaria de ter ajudado, mas
envolver-se nas questões da fileira da frente em pleno concerto e com
pessoas desconhecidas é uma bela de uma complicação. Eu quis dizer
alguma coisa à sra. de Jonatán, relativa ao fato de que as mulheres são mais
indicadas para atender a esse tipo de crise, mas ela estava com os olhos
fixos nas costas do Maestro, perdida na música; me pareceu que alguma
coisa brilhava abaixo de sua boca, no queixo. De repente parei de ver o
Maestro, porque as costas rotundas de um senhor de smoking se altearam na
fileira da frente. Era muito estranho alguém se levantar na metade do
movimento, mas também eram estranhos aqueles gritos e a indiferença das
pessoas com relação à moça histérica. Algo que lembrava uma mancha
vermelha me obrigou a olhar para o centro da plateia e vi novamente a
senhora que no intervalo havia corrido para aplaudir ao pé do pódio. Ela
avançava lentamente, eu teria dito que agachada, embora seu corpo se
mantivesse ereto, mas era antes o tom de sua marcha, um avanço a passos
lentos, hipnóticos, como alguém que se prepara para dar um salto. Ela
olhava fixamente para o Maestro, vi por um instante o lume emocionado de
seus olhos. Um homem saiu das fileiras de assentos e começou a andar atrás
dela; agora eles estavam à altura da quinta fileira e outras três pessoas se
somaram a eles. A música chegava à conclusão, brotavam os primeiros
grandes acordes finais, desencadeados pelo Maestro com esplêndida secura,
como massas escultóricas surgindo de uma só vez, altas colunas brancas e
verdes, um Karnak de som por cuja nave avançavam passo a passo a mulher
vermelha e seus seguidores.
Entre duas explosões da orquestra ouvi outro grito, mas agora o clamor
vinha de um dos palcos da direita. E com ele os primeiros aplausos,
sobrepondo-se à música, incapazes de conter-se por mais tempo, como se
naquele arquejo de amor que vinham mantendo o corpo masculino da
orquestra e a enorme fêmea da sala rendida, esta não tivesse querido esperar
o gozo viril e se abandonasse ao próprio prazer entre contorções e gemidos
e gritos de insuportável voluptuosidade. Incapaz de mover-me da poltrona,
eu sentia às minhas costas uma espécie de nascimento de forças, um avanço
paralelo ao avanço da mulher de vermelho e seus seguidores pelo centro da
plateia, que já chegavam aos pés do pódio no exato momento em que o
Maestro, qual toureiro que enfia o estoque no touro, introduzia a batuta na
última muralha de som e se dobrava para diante, esgotado, como se o ar
vibrante o tivesse espicaçado para o impulso final. Quando ele se
endireitou, a sala inteira estava de pé e eu com ela, e o espaço era um vidro
instantaneamente trincado por um bosque de lanças agudíssimas, os
aplausos e os gritos confundindo-se numa matéria insuportavelmente
grosseira e gotejante, mas ao mesmo tempo repleta de certa grandeza, como
uma manada de búfalos em disparada ou algo do estilo. O público confluía
de toda parte para a plateia e quase sem surpresa vi dois homens saltarem
dos palcos para o chão. Gritando como um rato pisoteado, a sra. de Jonatán
conseguira se desentalar de seu assento, e com a boca aberta e os braços
estendidos para o proscênio vociferava seu entusiasmo. Até aquele instante
o Maestro havia permanecido de costas, quase desdenhoso, olhando para
seus músicos com provável aprovação. Naquele momento se virou,
lentamente, e baixou a cabeça numa primeira saudação. Seu rosto estava
muito branco, como se o cansaço o vencesse, e cheguei a pensar (entre
tantas outras sensações, retalhos de pensamentos, rajadas instantâneas de
tudo o que me rodeava naquele inferno do entusiasmo) que ele talvez
desmaiasse. Saudou pela segunda vez, e ao fazê-lo olhou para a direita,
onde um homem de smoking e cabelo louro acabava de pular para o
proscênio seguido por outros dois. Tive a impressão de que o Maestro
estava iniciando um movimento condizente com descer do pódio, mas
depois reparei que naquele movimento havia algo de espasmódico, como
querendo libertar-se. As mãos da mulher de vermelho se fechavam sobre
seu tornozelo direito; o rosto dela estava erguido para o Maestro e ela
gritava, ou pelo menos eu via sua boca aberta e suponho que gritasse como
os demais, provavelmente como eu mesmo. O Maestro deixou a batuta cair
e fez força para se soltar, enquanto dizia alguma coisa impossível de ouvir.
Um dos seguidores da mulher abraçava sua outra perna a partir do joelho, e
o Maestro se virou para sua orquestra como quem pede socorro. Os músicos
estavam de pé numa enorme confusão de instrumentos, sob a luz ofuscante
dos spots do proscênio. Os suportes das partituras caíam como espigas à
medida que pelos dois lados do palco subiam homens e mulheres da plateia,
a tal ponto que já não era possível saber quem era músico e quem não era.
Por isso o Maestro, ao ver que um homem estava subindo por trás do pódio,
agarrou-se a ele para que ele o ajudasse a se arrancar da mulher e de seus
seguidores, que já cobriam suas pernas com as mãos, e naquele momento se
deu conta de que o homem não era um de seus músicos e quis repeli-lo, mas
o outro o abraçou pela cintura, vi que a mulher de vermelho abria os braços
como quem exige, e o corpo do Maestro desapareceu num vórtice de
pessoas que o envolviam e o levavam amontoadamente. Até aquele instante
eu havia olhado tudo com uma espécie de espanto lúcido, por cima ou por
baixo do que acontecia, mas no mesmo instante fui distraído por um grito
agudíssimo à minha direita e vi que o cego se levantara e retorcia os braços
como pás de moinho, clamando, reclamando, pedindo alguma coisa. Foi
demais, a partir dali não consegui mais continuar assistindo, me senti parte,
confundido àquele transbordamento do entusiasmo, e corri por minha vez
na direção do proscênio e pulei por um dos lados, justamente quando uma
multidão delirante cercava os violinistas, tomava-lhes seus instrumentos
(ouvia-se como rangiam e se arrebentavam como enormes baratas marrons)
e começava a jogá-los do proscênio para a plateia, onde outros esperavam
os músicos para abraçá-los e fazê-los desaparecer em confusos
redemoinhos. É muito curioso, mas eu não tinha o menor desejo de
contribuir para aquelas manifestações, queria apenas estar ali ao lado e ver
o que acontecia, abismado com aquela homenagem inaudita. Restava-me
lucidez suficiente para perguntar-me por que os músicos não fugiam a toda
a velocidade por entre os bastidores, e logo depois vi que isso não era
possível porque legiões de ouvintes haviam bloqueado as duas saídas do
proscênio, formando um cordão móvel que avançava, pisoteando os
instrumentos, jogando para o ar os suportes de partitura, aplaudindo e
vociferando ao mesmo tempo, num estrépito tão monstruoso que já
começava a parecer-se com o silêncio. Vi correr em minha direção um
sujeito gordo com seu clarinete na mão, e tive a tentação de agarrá-lo ao
passar ou de dar-lhe um tranco para que o público pudesse capturá-lo. Não
me decidi, e uma senhora de rosto amarelento e grande decote onde
galopavam montões de pérolas me olhou com ódio e escândalo ao passar ao
meu lado e apoderar-se do clarinetista, que soltou um guincho tímido e
tentou proteger seu instrumento. Dois homens tomaram-lhe o clarinete e o
músico foi obrigado a deixar-se levar para o lado da plateia onde a confusão
chegava ao auge.
Agora os gritos eram mais numerosos que os aplausos, as pessoas estavam
ocupadas demais abraçando e adulando os músicos para poder aplaudir, de
modo que a qualidade do estrépito ia adquirindo um tom cada vez mais
agudo, fraturado aqui e ali por verdadeiros alaridos em meio aos quais me
pareceu ouvir alguns com a tonalidade especialíssima produzida pelo
sofrimento, tanto que me perguntei se nas correrias e nos saltos não haveria
indivíduos quebrando braços e pernas, e por minha vez me joguei de volta
na plateia, agora que o proscênio estava vazio e os músicos em poder de
seus admiradores, que os levavam em todas as direções, parte para os
palcos, onde confusamente se adivinhavam movimentos e alvoroços, parte
rumo aos estreitos corredores que conduzem lateralmente ao foyer. Era dos
palcos que vinham os berreiros mais violentos, como se os músicos,
incapazes de resistir à pressão e ao sufoco de tantos abraços, pedissem
desesperadamente que os deixassem respirar. As pessoas que estavam na
plateia se amontoavam diante das aberturas dos palcos-balcão, e quando eu
corri por entre as poltronas para me aproximar deles a confusão parecia
maior, as luzes baixaram bruscamente e se reduziram a um reflexo
avermelhado que mal permitia que se divisassem os rostos, enquanto os
corpos se transformavam em sombras epilépticas, num amontoamento de
volumes informes dedicados a repelir-se ou a confundir-se uns com os
outros. Tive a impressão de distinguir a cabeleira prateada do Maestro no
segundo palco do meu lado, mas naquele mesmo instante ele desapareceu
como se o tivessem feito cair de joelhos. Perto de mim ouvi um grito seco e
violento e vi a sra. de Jonatán e uma das garotas de Epifanía precipitando-se
na direção do palco do Maestro, porque agora eu tinha certeza de que
naquele palco se encontrava o Maestro cercado pela mulher vestida de
vermelho e seus seguidores. Com uma agilidade incrível, a sra. de Jonatán
posicionou um pé entre as duas mãos da garota de Epifanía, que cruzava os
dedos para lhe oferecer um estribo, e se precipitou de cabeça para dentro do
palco. A garota de Epifanía olhou para mim, reconhecendo-me, e gritou
alguma coisa, provavelmente pedindo que a ajudasse a subir, mas não lhe
dei ouvidos e fiquei distante do palco, pouco inclinado a disputar os direitos
de indivíduos absolutamente enlouquecidos de entusiasmo que se agrediam
entre si aos empurrões. Cayo Rodríguez, que se destacara no proscênio por
seu encarniçamento em obrigar os músicos a descer para a plateia, acabava
de ter o nariz partido com um trompaço, e andava trôpego de um lado para
outro com o rosto coberto de sangue. Não fiquei com a menor pena, nem
mesmo quando vi o cego se arrastando pelo chão, colidindo com os
assentos, perdido num bosque simétrico sem pontos de referência. Eu já não
me preocupava com nada, somente com saber se os gritos iam parar em
algum momento, porque dos palcos continuavam saindo gritos penetrantes
que o público da plateia repetia e corroborava incansável, enquanto cada
um se esforçava para desalojar os demais e entrar nos palcos dessa ou
daquela maneira. Era evidente que os corredores externos estavam
abarrotados, pois o assalto mais importante se dava a partir da própria
plateia, com as pessoas tentando pular como fizera a sra. de Jonatán. Eu via
tudo isso e me dava conta de tudo isso e ao mesmo tempo não sentia o
menor desejo de me somar à confusão, de modo que minha indiferença
produzia em mim um estranho sentimento de culpa, como se meu
comportamento fosse o escândalo final e absoluto daquela noite. Sentando-
me numa poltrona solitária, deixei passarem os minutos, enquanto à
margem de minha inércia ia registrando o decréscimo do imenso clamor
desesperado, a debilitação dos gritos que no fim cessaram, a retirada
confusa e murmurante de parte do público. Quando achei que já seria
possível sair, deixei para trás a parte central da plateia e atravessei o
corredor que dá para o foyer. Um ou outro indivíduo se deslocava com jeito
de bêbado, enxugando as mãos ou a boca com o lenço, alisando o terno,
ajeitando o colarinho. No foyer vi algumas mulheres em busca de espelhos
e revirando as bolsas. Uma delas devia ter se machucado, pois tinha sangue
no lenço. Vi as garotas de Epifanía saírem correndo; pareciam furiosas por
não haver chegado até os palcos, e me olharam como se a culpa fosse
minha. Quando julguei que elas já estariam do lado de fora, fui andando na
direção da escadaria da saída, e naquele momento vi surgirem no foyer a
mulher de vermelho e seus seguidores. Os homens marchavam atrás dela
como antes, e pareciam cobrir-se mutuamente para que ninguém percebesse
o estado lastimável em que suas roupas se encontravam. Mas a mulher de
vermelho ia na frente com um olhar altaneiro, e quando cheguei perto dela
vi que passava a língua pelos lábios, lenta e gulosamente passava a língua
pelos lábios que sorriam.
II.
—P
ara mim dá no mesmo você me ouvir ou não — disse
Somoza. — O fato é esse, e acho justo você saber.
Morand se assustou como quem volta bruscamente
de muito longe. Lembrou-se de que antes de se perder
num vago devaneio chegara à conclusão de que Somoza estava ficando
louco.
— Desculpe, me distraí por um momento — disse. — Você há de
concordar que tudo isso… Enfim, chegar aqui e encontrar você no meio
de…
Mas dar por entendido que Somoza estava ficando louco era fácil demais.
— É, não há palavras para isso — disse Somoza. — Pelo menos nossas
palavras.
Olharam-se por um segundo e Morand foi o primeiro a desviar os olhos,
enquanto a voz de Somoza se erguia novamente com o tom impessoal
daquelas explicações que se perdiam logo depois, para lá da inteligência.
Morand preferia não olhar para ele, mas quando não olhava recaía na
contemplação involuntária da estatueta sobre a coluna, e era como voltar
àquela tarde dourada de cigarras e perfume de ervas em que
inacreditavelmente Somoza e ele haviam-na desenterrado na ilha.
Lembrava-se de como Thérèse, alguns metros mais adiante, sobre o
penhasco de onde dava para divisar o litoral de Paros, voltara a cabeça para
eles ao ouvir o grito de Somoza e depois de um segundo de hesitação
correra até eles, esquecida de que tinha na mão o sutiã vermelho de seu
deux pièces, para inclinar-se sobre o buraco de onde brotavam as mãos de
Somoza com a estatueta, quase irreconhecível pelo mofo e pelas aderências
calcárias, até que Morand, numa mescla de ira e risadas, gritou com ela para
que se cobrisse, e Thérèse endireitara o corpo olhando para ele com uma
cara de quem não está entendendo, e de repente lhe deu as costas e
escondeu os seios entre as mãos enquanto Somoza estendia a estatueta para
Morand e pulava para fora do buraco. Quase sem transição, Morand se
recordou das horas seguintes, da noite nas barracas de campanha às
margens da torrente, da sombra de Thérèse andando sob a lua entre as
oliveiras, e era como se naquele momento a voz de Somoza, reverberando
monótona no ateliê de escultura quase vazio, também lhe chegasse vinda
daquela noite, fazendo parte de sua recordação, insinuando confusamente
sua absurda esperança, e ele, entre dois goles de vinho resinoso, rira
alegremente e o chamara de falso arqueólogo e de incurável poeta.
“Não há palavras para isso”, acabara de dizer Somoza. “Pelo menos
nossas palavras.”
Na barraca de campanha no fundo do vale de Skoros suas mãos tinham
segurado a estatueta e a haviam acariciado para acabar de retirar aquela
falsa roupagem de tempo e olvido (Thérèse, entre as oliveiras, continuava
amuada pela repreensão de Morand, por seus preconceitos idiotas), e a noite
se desenrolara lentamente enquanto Somoza lhe confiava sua insensata
esperança de algum dia chegar à estatueta por outras vias que não as mãos e
os olhos e a ciência, enquanto o vinho e o tabaco se somavam ao diálogo,
bem como os grilos e a água da torrente, até não restar mais que uma
confusa sensação de não ser capaz de entender a si mesmo. Mais tarde,
quando Somoza foi para sua barraca levando a estatueta e Thérèse se
cansou de ficar sozinha e veio se deitar, Morand lhe falou das ilusões de
Somoza e os dois se perguntaram com amável ironia parisiense se no Rio da
Prata todo mundo tinha aquela imaginação fácil. Antes de dormir os dois
discutiram em voz baixa o que se passara naquela tarde, até que Thérèse
aceitou as desculpas de Morand, até que o beijou e foi como sempre na ilha,
em toda parte, foram ele e ela e a noite por cima e o vasto olvido.
— Alguém mais sabe? — perguntou Morand.
— Não. Só você e eu. Era justo, na minha opinião — disse Somoza. — Eu
quase não saí daqui nesses últimos meses. No começo vinha uma mulher
arrumar o ateliê e lavar minha roupa, mas me incomodava.
— Parece incrível que se possa viver assim como você vive, nas
proximidades de Paris. O silêncio. Escute, mas pelo menos você desce até o
povoado para comprar provisões?
— Antes ia, já falei. Agora não precisa mais. Há tudo o que é necessário
ali.
Morand olhou na direção para a qual apontava o dedo de Somoza, para lá
da estatueta e das réplicas abandonadas nas estantes. Viu madeira, gesso,
pedra, martelos, pó, a sombra das árvores contra os vidros. O dedo parecia
indicar um canto do ateliê onde não havia nada, só um pano sujo caído no
chão.
Mas no fundo pouco mudara, aqueles dois anos juntos tinham sido
também um recanto vazio do tempo com um pano sujo que era como tudo o
que não se haviam dito e que talvez devessem ter se dito. A expedição até
as ilhas, uma loucura romântica nascida num terraço de café do bulevar
Saint-Michel, chegara ao fim tão logo encontraram o ídolo nas ruínas do
vale. Talvez o receio de serem descobertos tivesse pouco a pouco
desgastado a alegria das primeiras semanas, e chegou o dia em que Morand
surpreendeu um olhar de Somoza no momento em que os três desciam para
a praia, e naquela noite ele conversara com Thérèse e os dois resolveram
voltar o mais depressa possível, porque gostavam de Somoza e achavam
quase injusto que ele começasse — tão imprevisivelmente — a sofrer. Em
Paris continuaram se vendo a intervalos, quase sempre por razões
profissionais, mas Morand ia sozinho aos encontros. Na primeira vez
Somoza perguntou por Thérèse, depois pareceu não se importar. Tudo o que
deveriam ter se dito pesava entre os dois, talvez entre os três. Somoza
guardaria a estatueta durante algum tempo, Morand concordou. Era preciso
esperar uns dois anos para poder vendê-la; Marcos, o homem que conhecia
um coronel que conhecia um inspetor da alfândega de Atenas, impusera
esse prazo como condição complementar do suborno. Somoza levou a
estatueta para seu apartamento e Morand a via sempre que os dois se
encontravam. Nunca se cogitou de Somoza fazer alguma visita aos Morand,
como tantas outras coisas que já não se mencionavam e que no fundo eram
sempre Thérèse. Somoza parecia preocupar-se exclusivamente com sua
ideia fixa, e se acontecia de convidar Morand para beber um conhaque em
seu apartamento era sempre para voltar ao mesmo assunto. Nada muito
extraordinário, afinal de contas Morand conhecia bem demais os gostos de
Somoza por determinadas literaturas marginais para estranhar sua
melancolia. A única coisa que o surpreendia era o fanatismo daquela
esperança na hora das confidências quase automáticas e nas quais ele se
sentia como que desnecessário, a repetida carícia das mãos no corpinho da
estátua inexpressivamente bela, as monótonas encantações repetindo até a
exaustão as mesmas fórmulas de passagem. Vista a partir de Morand, a
obsessão de Somoza era analisável: todo arqueólogo se identifica em algum
sentido com o passado que explora e expõe à luz. Daí a acreditar que a
intimidade com um desses rastros pudesse alienar, alterar o tempo e o
espaço, abrir uma fissura por onde aceder a… Somoza nunca utilizava esse
vocabulário; o que ele dizia era sempre mais ou menos que isso, uma
espécie de linguagem que aludia e conjurava a partir de planos irredutíveis.
Àquela altura ele já começara a trabalhar canhestramente nas réplicas da
estatueta; Morand chegou a ver a primeira, antes de Somoza ir embora de
Paris, e ouviu com amistosa cortesia seus obstinados lugares-comuns sobre
a reiteração dos gestos e das situações como via de abolição, a convicção de
Somoza de que seu obstinado avizinhamento o levaria a identificar-se com
a estrutura inicial, numa superposição que seria mais que isso porque já não
haveria dualidade, mas fusão, contato primordial (as palavras não eram
dele, mas de alguma maneira Morand precisava traduzi-las quando, mais
tarde, as reconstruía para Thérèse). Contato que, como Somoza acabava de
lhe dizer, ocorrera quarenta e oito horas antes, na noite do solstício de
junho.
— Sim — admitiu Morand, acendendo outro cigarro. — Mas eu gostaria
que você me explicasse por que tem tanta certeza de que… Bom, de ter
batido o pé no fundo.
— Explicar… Mas você não está vendo?
Uma vez mais ele estendia a mão para uma casa do ar, para um canto do
ateliê, descrevia um arco que incluía o teto e a estatueta pousada sobre uma
fina coluna de mármore, envolta pelo cone brilhante do refletor. Morand se
lembrou incongruentemente de que Thérèse cruzara a fronteira levando a
estatueta escondida no cachorro de brinquedo fabricado por Marcos num
porão de Plaka.
— Era impossível que não acontecesse — disse Somoza quase
puerilmente. — A cada nova réplica eu chegava um pouco mais perto. As
formas iam me conhecendo. O que estou querendo dizer é que… Ah, eu
teria que passar dias e dias lhe explicando… e o absurdo é que ali tudo entra
num… Mas quando é isso…
A mão ia e vinha, acentuando o ali, o isso.
— A verdade é que com isso você virou um escultor — disse Morand,
ouvindo-se falar e achando-se idiota. — As duas últimas réplicas são
perfeitas. Se algum dia você me deixar ficar com a estátua, nunca vou saber
se você me deu o original.
— Não vou lhe dar nunca — disse Somoza com simplicidade. — E não
pense que esqueci que ela é de nós dois. Mas não vou lhe dar nunca. A
única coisa que eu teria querido é que Thérèse e você me seguissem, que se
encontrassem comigo. É, eu teria gostado que vocês estivessem ao meu
lado na noite em que cheguei.
Era a primeira vez havia quase dois anos que Morand o ouvia mencionar
Thérèse, como se até aquele momento ela houvesse estado morta para ele,
mas seu jeito de falar em Thérèse era incuravelmente antigo, era a Grécia
naquela manhã em que os três haviam descido para a praia. Pobre Somoza.
Ainda. Pobre louco. Porém mais estranho que isso era perguntar-se por que
no último momento, antes de entrar no carro depois do telefonema de
Somoza, ele sentira quase a necessidade de telefonar para Thérèse no
escritório dela para pedir-lhe que mais tarde fosse ao encontro deles no
ateliê. Seria preciso perguntar-lhe, saber o que Thérèse havia pensado
enquanto ouvia suas instruções para chegar até o pavilhão solitário na
colina. Que Thérèse repetisse exatamente o que o ouvira dizer, palavra por
palavra. Morand maldisse em silêncio aquela mania de recompor a vida da
mesma maneira como restaurava um vaso grego no museu, colando
minuciosamente os caquinhos mais ínfimos, e a voz de Somoza misturada a
isso com o ir e vir de suas mãos que também pareciam querer colar pedaços
de ar, montar um vaso transparente, suas mãos que designavam a estatueta,
obrigando Morand a olhar uma vez mais, contra a vontade, aquele branco
corpo lunar de inseto anterior a toda história, trabalhado em circunstâncias
inconcebíveis por alguém inconcebivelmente remoto, milhares de anos
antes porém num momento ainda mais anterior, numa lonjura vertiginosa de
grito animal, de salto, de ritos vegetais alternando-se com marés e sizígias e
épocas de cio e toscas cerimônias propiciatórias, o rosto inexpressivo no
qual apenas a linha do nariz quebrava seu espelho cego de insuportável
tensão, os seios definidos de leve, o triângulo sexual e os braços cingindo o
ventre, o ídolo das origens, do primeiro terror sob os ritos do tempo
sagrado, do machado de pedra das imolações nos altares das colinas. Era
realmente de acreditar que também ele estivesse ficando imbecil, como se
ser arqueólogo não bastasse.
— Por favor — disse Morand —, será que você poderia fazer um esforço
para me explicar, mesmo acreditando que nada disso pode ser explicado?
Em resumo, a única coisa que eu sei é que você passou os últimos meses
esculpindo réplicas, e que há duas noites…
— É tão simples — disse Somoza. — Eu sempre senti que a pele ainda
estava em contato com o resto. Mas era preciso recuar cinco mil anos de
caminhos equivocados. Curioso que eles próprios, os descendentes dos
egeus, fossem responsáveis por esse erro. Mas agora não faz diferença.
Olhe, é assim.
Ao lado do ídolo, ergueu uma das mãos e a pousou delicadamente sobre
os seios e no ventre. A outra acariciava o pescoço, subia até a boca ausente
da estátua, e Morand ouviu Somoza falar com uma voz surda e opaca, um
pouco como se fossem as mãos dela, ou quem sabe aquela boca inexistente
que falava da caça nas cavernas, da fumaça, dos cervos encurralados, do
nome que só deveria ser pronunciado depois, dos círculos de graxa azul, do
jogo dos rios duplos, da infância de Pohk, da marcha rumo às encostas do
oeste e às alturas nas sombras nefastas. Perguntou-se se usando o telefone
num descuido de Somoza conseguiria avisar a Thérèse que trouxesse o dr.
Vernet. Mas Thérèse já devia estar a caminho, e à borda das rochas onde
mugia a Múltipla, o chefe dos verdes removia o corno esquerdo do macho
mais belo e o oferecia ao chefe dos responsáveis pelo sal, para renovar o
pacto com Haghesa.
— Ouça, me deixe respirar — disse Morand, levantando-se e dando um
passo à frente. — É fabuloso, e além disso estou com uma sede horrível.
Vamos beber alguma coisa, posso ir buscar um…
— O uísque está ali — disse Somoza, retirando lentamente as mãos da
estátua. — Eu não vou beber, preciso jejuar antes do sacrifício.
— Pena — disse Morand, pegando a garrafa. — Não gosto nem um pouco
de beber sozinho. Que sacrifício?
Encheu o copo de uísque até a borda.
— O da união, para falar com suas palavras. Você não os ouve? A flauta
dupla, como a da estatueta que vimos no museu de Atenas. O som da vida à
esquerda, o da discórdia à direita. A discórdia é também a vida para
Haghesa, mas quando o sacrifício for realizado os flautistas deixarão de
soprar pelo bambu da direita e só se ouvirá o silvo da vida nova que bebe o
sangue derramado. E os flautistas encherão a boca de sangue e o soprarão
pelo bambu da esquerda, e eu untarei o rosto dela com sangue, está vendo,
assim, e de debaixo do sangue surgirão seus olhos e sua boca.
— Deixe de besteira — disse Morand, bebendo um gole prolongado. — O
sangue não combinaria com nossa bonequinha de mármore. É verdade, que
calor.
Somoza despira o pulôver com um gesto lento e pausado. Ao vê-lo
desabotoar a calça, Morand disse para si mesmo que havia sido um erro
permitir que ele se excitasse, consentir naquela explosão de mania. Magro e
moreno, Somoza se ergueu nu sob a luz do refletor e pareceu perder-se na
contemplação de um ponto no espaço. De sua boca entreaberta escorria um
fio de saliva e Morand, largando precipitadamente o copo no chão, calculou
que para chegar à porta teria que enganá-lo de algum modo. Nunca soube
de onde havia saído o machado de pedra que oscilava na mão de Somoza.
Compreendeu.
— Era previsível — disse, retrocedendo lentamente. — O pacto com
Haghesa, hã? O sangue quem fornece é o coitado do Morand, não é
mesmo?
Sem olhar para ele, Somoza começou a avançar em sua direção
descrevendo um arco de círculo, como a percorrer um trajeto
preestabelecido.
— Se você quer mesmo me matar — gritou Morand, retrocedendo para a
área em penumbra —, para que essa mise-en-scène? Nós dois sabemos
muito bem que é por causa de Thérèse. Mas de que adianta, se ela não
gostava de você nem nunca vai gostar?
O corpo nu já saía do círculo iluminado pelo refletor. Refugiado na
sombra do canto, Morand pisou nos panos úmidos do chão e entendeu que
não havia mais como ir para trás. Viu o machado subir e saltou como
Nagashi lhe ensinara no ginásio da Place des Ternes. Somoza recebeu o
pontapé na metade da coxa e o golpe nishi no lado esquerdo do pescoço. O
machado desceu em diagonal, longe demais, e Morand repeliu
elasticamente o torso que tombava sobre ele e agarrou o punho indefeso.
Somoza ainda era um grito sufocado e atônito quando o fio do machado o
atingiu no meio da testa.
Antes de voltar a olhar para ele, Morand vomitou no canto do ateliê, sobre
os panos sujos. Sentia-se como se estivesse oco, e vomitar lhe fez bem.
Pegou o copo do chão e bebeu o que restava do uísque, pensando que
Thérèse chegaria a qualquer momento e que seria preciso fazer alguma
coisa, avisar a polícia, explicar-se. Enquanto arrastava por um dos pés o
corpo de Somoza até expô-lo em cheio à luz do refletor, pensou que não
teria dificuldade para demonstrar que agira em legítima defesa. As
excentricidades de Somoza, seu afastamento do mundo, a loucura evidente.
Agachando-se, molhou as mãos no sangue que escorria pelo rosto e pelo
cabelo do morto, olhando ao mesmo tempo o relógio de pulso, que marcava
sete e quarenta. Thérèse não podia demorar, o melhor seria sair dali, esperá-
la no jardim ou na rua, poupá-la do espetáculo do ídolo com a face
encharcada de sangue, os riozinhos rubros que deslizavam por seu pescoço,
contornavam seus seios, reuniam-se no fino triângulo do sexo, caíam-lhe
pelas coxas. O machado estava profundamente enterrado na cabeça do
sacrificado e Morand o empunhou, sopesando-o com as mãos pegajosas.
Com um dos pés, empurrou um pouco mais o cadáver até deixá-lo
encostado na coluna, farejou o ar e se aproximou da porta. O melhor seria
abri-la, para que Thérèse pudesse entrar. Apoiando o machado junto à porta,
começou a tirar a roupa porque estava quente e com cheiro de fechado,
cheiro de multidão reclusa. Já estava nu quando ouviu o barulho do táxi e a
voz de Thérèse sobrepondo-se ao som das flautas; apagou a luz e com o
machado na mão esperou atrás da porta, lambendo o fio do machado e
pensando que Thérèse era a pontualidade em pessoa.
P
arece brincadeira, mas somos imortais. Sei disso pela negativa, sei
porque conheço o único mortal. Ele me contou sua história num
bistrô da Rue Cambronne, tão bêbado que não encontrava a menor
dificuldade em falar a verdade, mesmo com o dono do bar e os
velhos clientes do balcão rindo até o vinho lhes sair pelos olhos. Ele deve
ter visto algum interesse pintado na minha cara, porque grudou em mim e
acabamos nos dando o luxo de uma mesa a um canto, onde dava para beber
e conversar em paz. Contou-me que havia sido aposentado pela prefeitura e
que a mulher fora passar uma temporada na casa dos pais, um jeito como
qualquer outro de admitir que a mulher o abandonara. Era um cara nem um
pouco velho e nem um pouco ignorante, de rosto chupado e olhos de
tuberculoso. Realmente bebia para esquecer, e o proclamava a partir do
quinto copo de tinto. Não senti nele aquele cheiro que é a assinatura de
Paris, mas que aparentemente só nós, estrangeiros, somos capazes de sentir.
E tinha as unhas cuidadas, e nem um pouco de caspa.
Contou que num ônibus da linha 95 tinha visto um garoto de uns treze
anos, e que depois de olhá-lo durante algum tempo concluíra que o garoto
se parecia muito com ele, pelo menos se parecia com a lembrança que ele
guardava de si mesmo naquela idade. Pouco a pouco foi constatando que o
garoto se parecia em tudo com ele, o rosto e as mãos, a mecha de cabelo
caindo na testa, os olhos muito separados, e mais ainda na timidez, na
forma como se refugiava numa revista em quadrinhos, no gesto de jogar o
cabelo para trás, nos movimentos desajeitados. Era de tal forma parecido
com ele que ele quase achou graça, mas quando o garoto desceu na Rue de
Rennes ele descera também e dera o cano num amigo que o esperava em
Montparnasse. Procurou um pretexto para falar com o garoto, perguntou por
uma rua e ouviu, já sem surpresa, uma voz que era sua voz da infância. Ele
estava indo para aquela rua, foram andando timidamente um ao lado do
outro por algumas quadras. Àquela altura uma espécie de revelação caiu
sobre ele. Nada estava explicado mas era uma coisa que podia prescindir de
explicação, que ficava embaçada ou tola quando se pretendia — como
agora — explicá-la.
Resumindo, deu um jeito de saber onde morava o garoto, e com o
prestígio que lhe dava um passado de instrutor de escoteiros abriu caminho
até essa fortaleza entre as fortalezas, um lar francês. Encontrou uma
pobreza digna e uma mãe avantajada, um tio aposentado, dois gatos. Depois
não foi tão complicado conseguir que um irmão seu lhe confiasse o filho
que andava pelos catorze anos, e os dois garotos ficaram amigos. Começou
a ir semanalmente à casa de Luc; a mãe o recebia com café requentado,
falavam da guerra, da ocupação, e também de Luc. O que havia começado
como uma revelação se organizava geometricamente, ia assumindo esse
perfil demonstrativo que as pessoas gostam de chamar de fatalidade.
Inclusive era possível expressá-lo com as palavras de todos os dias: Luc era
ele outra vez, não havia mortalidade, éramos todos imortais.
— Todos imortais, velho. Veja bem, ninguém havia conseguido
comprovar isso e aconteceu logo comigo, num ônibus da linha 95. Um
errinho no mecanismo, uma dobra no tempo, um avatar simultâneo e não
consecutivo. Luc deveria ter nascido depois da minha morte, porém… Sem
contar a fabulosa casualidade de eu encontrá-lo no ônibus. Acho que já lhe
falei, foi uma espécie de certeza absoluta, sem palavras. Era isso e pronto.
Mas depois começaram as dúvidas, porque nesses casos ou o cara conclui
que é um imbecil ou parte para os tranquilizantes. E junto com as dúvidas,
matando-as uma por uma, as demonstrações de que eu não estava enganado,
de que não havia razão para dúvida. O que vou lhe dizer agora é o que mais
faz esses imbecis darem risada, quando às vezes invento de contar a eles.
Luc não apenas era eu outra vez, como também ia ser como eu, como este
pobre infeliz que lhe fala. Bastava vê-lo brincar, vê-lo cair sempre de mau
jeito, torcendo um pé ou deslocando uma clavícula, aqueles sentimentos à
flor da pele, aquele rubor que lhe subia ao rosto nem bem se perguntava
alguma coisa a ele. A mãe, em compensação, como gosta de falar, como nos
conta não importa o quê, mesmo que o garoto esteja ali morrendo de
vergonha, as intimidades mais incríveis, as histórias do primeiro dente, os
desenhos dos oito anos, as doenças… A boa senhora não desconfiava de
nada, claro, e o tio jogava xadrez comigo, eu era como se fosse da família,
até emprestei dinheiro a eles para que conseguissem fechar o mês. Não tive
o menor trabalho para ficar conhecendo o passado de Luc, bastava
intercalar perguntas entre os temas que interessavam aos velhos: o
reumatismo do tio, as maldades da zeladora, a política. Assim fui
conhecendo a infância de Luc entre xeques ao rei e considerações sobre o
preço da carne, e assim a demonstração foi se realizando, infalível. Mas me
entenda, enquanto pedimos mais um copo: Luc era eu, aquele que eu fora
quando menino, mas não o imagine como um decalque. Mais bem uma
figura análoga, entende, ou seja, aos sete anos eu havia deslocado um pulso
e Luc a clavícula, e aos nove havíamos tido, respectivamente, sarampo e
escarlatina, e além disso a história intervinha, velho, meu sarampo tinha
durado quinze dias, enquanto Luc havia sido curado em quatro, os
progressos da medicina e coisas do estilo. Tudo era análogo, e por isso, para
lhe dar um exemplo, bem podia ser que o padeiro da esquina fosse um
avatar de Napoleão, e ele não sabe porque a ordem não se alterou, porque
nunca poderá dar com a verdade num ônibus; mas se de alguma maneira ele
chegasse a dar-se conta dessa verdade, poderia compreender que repetiu e
está repetindo Napoleão, que passar de lavador de pratos a dono de uma boa
padaria em Montparnasse é a mesma figura que pular da Córsega para o
trono da França, e que cavoucando devagar na história da sua vida ele
encontraria os momentos que correspondem à campanha do Egito, ao
consulado e a Austerlitz, e até se daria conta de que dentro de alguns anos
vai acontecer alguma coisa com sua padaria e ele acabará numa Santa
Helena que talvez seja um quartinho num sexto andar, mas também
derrotado, também cercado pela água da solidão, também orgulhoso da sua
padaria que foi como um voo de águias. O senhor se dá conta, não é
mesmo?
Eu me dava conta, mas opinei que na infância todos temos doenças típicas
com prazo fixo, e que quase todos fraturamos alguma coisa jogando futebol.
— Eu sei, falei apenas das coincidências visíveis. Por exemplo, que Luc
fosse parecido comigo não tinha importância, embora tenha tido, sim, para
a revelação no ônibus. Verdadeiramente importantes eram as sequências, e
isso é difícil de explicar porque elas dizem respeito ao caráter, a lembranças
imprecisas, a fábulas da infância. Naquela época, quer dizer, quando eu
tinha a idade de Luc, eu havia passado por um período difícil que começou
com uma doença interminável, depois, em plena convalescença, fui brincar
com meus amigos e fraturei um braço, e mal tinha saído disso me apaixonei
pela irmã de um colega e sofri como se sofre quando não se é capaz de
olhar nos olhos uma garota que está zombando da gente. Luc também
adoeceu, e no começo da convalescença foi convidado para ir ao circo e
quando estava descendo as arquibancadas escorregou e deslocou um
tornozelo. Pouco depois a mãe o surpreendeu uma tarde chorando junto da
janela com um lencinho azul apertado na mão, um lenço que não era da
casa.
Como alguém precisa fazer o papel de contraditor nesta vida, falei que os
amores infantis são o complemento inevitável dos machucados e das
pleurisias. Mas admiti que o assunto do avião já era diferente. Um avião a
hélice, de corda, que ele oferecera ao garoto como presente de aniversário.
— No momento em que o entreguei, lembrei-me mais uma vez do
Meccano que ganhei da minha mãe ao completar catorze anos, e do que
aconteceu comigo. Aconteceu que eu estava no jardim, apesar de que se
armava uma tempestade de verão e já se ouviam os trovões, e tinha
começado a montar um guindaste em cima da mesa do quiosque, perto do
portão. Alguém me chamou de dentro de casa e precisei entrar por um
minuto. Quando voltei, a caixa do Meccano havia desaparecido e o portão
estava aberto. Gritando, desesperado, corri para a rua, onde já não se via
ninguém, e nesse exato momento caiu um raio no chalé em frente. Tudo
isso aconteceu como num ato único, e eu rememorava a ocasião enquanto
entregava o avião a Luc e ele ficava olhando para o brinquedo com a
mesma felicidade com que eu contemplara meu Meccano. A mãe veio me
trazer uma xícara de chá e trocávamos as frases de sempre quando ouvimos
um grito. Luc correra para a janela como se quisesse atirar-se no vácuo.
Tinha o rosto branco e os olhos cheios de lágrimas, conseguiu balbuciar que
o avião havia feito um desvio no voo e passara exatamente pela fresta da
janela entreaberta. “Não dá mais para ver, não dá mais para ver”, repetia
chorando. Ouvimos alguém gritar mais embaixo e o tio entrou correndo
para avisar que havia um incêndio na casa em frente. Entende, agora? Sim,
é melhor tomarmos mais um copo.
Depois, como eu não dizia nada, o homem falou que havia começado a
pensar somente em Luc, na sorte de Luc. A mãe o enviara a uma escola de
artes e ofícios para que ele modestamente abrisse o que ela chamava de
caminho na vida, mas esse caminho já estava aberto e somente ele, que não
teria podido dizer nada sem que o tomassem por louco e o separassem para
sempre de Luc, poderia dizer à mãe e ao tio que tudo aquilo era inútil, que
independentemente do que eles fizessem o resultado seria o mesmo, a
humilhação, a rotina lamentável, os anos monótonos, os fracassos que vão
desgastando a roupa e a alma, o refúgio numa solidão ressentida, num bistrô
de bairro. Mas o pior de tudo não era o destino de Luc; o pior era que Luc
morreria por sua vez e outro homem repetiria a figura de Luc e sua própria
figura, até morrer para que outro homem entrasse na roda por sua vez. Luc
já quase não lhe importava; à noite, sua insônia se projetava até mais
adiante, até outro Luc, até outros que se chamariam Robert ou Claude ou
Michel, uma teoria ao infinito de pobres-diabos repetindo a figura sem
sabê-lo, convictos da própria liberdade e do próprio livre-arbítrio. O homem
tinha o vinho triste, nada a fazer.
— Agora todo mundo ri de mim quando digo que Luc morreu alguns
meses depois, são burros demais para entender que… É, não comece o
senhor também a me olhar com esses olhos. Morreu alguns meses depois,
começou com uma espécie de bronquite, assim como na mesma idade eu
tivera uma enfermidade hepática. Eu havia sido internado num hospital,
mas a mãe de Luc fez questão de cuidar dele em casa e eu ia visitá-lo quase
todos os dias, às vezes levando meu sobrinho para que brincasse com Luc.
Havia tanta miséria naquela casa que minhas visitas eram um consolo em
todos os sentidos, a companhia para Luc, o pacote de arenques ou a torta de
damascos. Acostumaram-se a que eu me encarregasse de comprar os
remédios, depois que lhes falei de uma farmácia onde me faziam um
desconto especial… Acabaram por me admitir como enfermeiro de Luc; dá
para imaginar que numa casa como a deles, onde o médico entra e sai sem
maior interesse, ninguém se liga muito em verificar se os sintomas finais
coincidem perfeitamente com o primeiro diagnóstico… Por que o senhor
está me olhando desse jeito? Falei alguma coisa errada?
Não, ele não dissera nada errado, ainda mais àquela altura do vinho.
Muito pelo contrário, excluindo-se a possibilidade de imaginar alguma
coisa horrível, a morte do pobre Luc vinha demonstrar que todo indivíduo
propenso à imaginação pode dar início a um devaneio no ônibus 95 e
concluí-lo ao lado da cama onde está morrendo, calado, um menino. Para
tranquilizá-lo, eu lhe disse isso. Ele ficou olhando o ar por um instante antes
de tornar a falar.
— Bem, como quiser. A verdade é que nas semanas que se sucederam ao
enterro eu senti pela primeira vez algo que talvez se parecesse com a
felicidade. De vez em quando ainda visitava a mãe de Luc, levava um
pacote de biscoitos, mas já pouco me importava com ela ou com a casa
deles, estava como que impregnado da certeza maravilhosa de ser o
primeiro mortal, de sentir que minha vida continuava se desgastando dia
após dia, vinho após vinho, e que no fim se acabaria num lugar qualquer,
numa hora qualquer, repetindo em tudo o destino de algum desconhecido
morto sabe-se lá onde e quando, mas eu sim estaria morto de verdade, sem
um Luc para entrar na roda e repetir estupidamente uma vida estúpida.
Compreenda essa plenitude, velho, inveje-me tanta felicidade enquanto
durou.
Porque, aparentemente, não havia durado. O bistrô e o vinho barato o
comprovavam, e aqueles olhos onde brilhava uma febre que não era do
corpo. E não obstante ele vivera alguns meses saboreando cada momento de
sua mediocridade cotidiana, de seu fracasso conjugal, de sua rotina aos
cinquenta anos, certo de sua mortalidade inalienável. Uma tarde, cruzando o
Luxemburgo, viu uma flor.
— Estava à beira de um canteiro, uma flor amarela qualquer. Eu havia
parado para acender um cigarro e me distraí olhando para ela. Foi um pouco
como se a flor também olhasse para mim, esses contatos, às vezes… O
senhor sabe, todo mundo sente, isso que chamam beleza. Justamente isso, a
flor era bela, era uma belíssima flor. E eu estava condenado, eu ia morrer
um dia para sempre. A flor era linda, sempre haveria flores para os homens
futuros. De repente compreendi o nada, isso que eu havia imaginado que
era a paz, a ponta da corrente. Eu ia morrer e Luc já estava morto, nunca
mais haveria uma flor para alguém como nós, não haveria nada, não haveria
absolutamente nada, e o nada era isso, que não houvesse nunca mais uma
flor. O fósforo aceso ardeu nos meus dedos. Na praça entrei num ônibus que
ia para qualquer lugar e comecei absurdamente a olhar, a olhar tudo o que
se via na rua e tudo o que havia no ônibus. Quando chegamos ao ponto-
final, desci e entrei em outro ônibus que ia para os subúrbios. A tarde
inteira, até depois de anoitecer, entrei e desci dos ônibus pensando na flor e
em Luc, procurando alguém entre os passageiros que se parecesse com Luc,
alguém que se parecesse comigo ou com Luc, alguém que pudesse ser eu
outra vez, alguém a quem olhar sabendo que era eu, para depois deixá-lo
partir sem lhe dizer nada, quase protegendo-o para que fosse em frente com
sua pobre vida estúpida, com a imbecil da sua vida fracassada rumo a outra
imbecil vida fracassada rumo a outra imbecil vida fracassada rumo a
outra…
Paguei.
Sobremesa
O tempo, um menino que brinca
e move os peões.
Heráclito, fragmento 59
E
m fevereiro de 1947, Lucio Medina me contou um divertido
episódio que acabava de se passar com ele. Quando, em setembro
daquele ano, eu soube que ele havia renunciado a sua profissão e
abandonara o país, pensei confusamente numa conexão entre as
duas coisas. Não sei se alguma vez lhe ocorreu a mesma conclusão. Caso
lhe seja útil à distância, caso ainda esteja vivo em Roma ou em
Birmingham, narro sua história singela com a maior fidelidade possível.
Uma olhada na programação dos cinemas informou a Lucio que no Gran
Cine Ópera exibiam um filme de Anatole Litvak que ele havia perdido no
período em que o filme ficara em cartaz nas salas do centro. Chamou sua
atenção que um cinema como o Ópera exibisse outra vez aquele filme, mas
em 1947 Buenos Aires já andava carente de novidades. Às seis, encerrado o
trabalho na Sarmiento com a Florida, partiu para o centro com o empenho
do bom portenho e chegou ao cinema quando a sessão ia começar. O
programa anunciava um noticiário, um desenho animado e o filme de
Litvak. Lucio pediu um lugar na plateia, fila doze, e comprou o Crítica para
não ser obrigado a olhar para a decoração da sala e para os balcõezinhos
laterais que lhe davam verdadeiros engulhos. O noticiário começou naquele
momento, e muita gente entrou na sala enquanto banhistas em Miami
rivalizavam com as sereias, e em Túnis inauguravam uma barragem
gigante. À direita de Lucio sentou-se um corpo volumoso que cheirava a
Couro da Rússia, da Atkinson, o que não é pouco cheirar. O corpo vinha
acompanhado de dois corpos menores, que durante algum tempo se
agitaram inquietos e só se acalmaram na hora do Pato Donald. Tudo isso era
usual num cinema de Buenos Aires, principalmente na sessão vermute.
Quando as luzes se acenderam, toldando em parte o indescritível céu
estrelado e nebuloso, meu amigo se preparou para a leitura do Crítica dando
uma olhada na sala. Algo ali estava fora do lugar, algo indefinível. Senhoras
preponderantemente obesas se disseminavam pela plateia, e, tal como a que
estava ao lado dele, vinham acompanhadas de uma prole mais ou menos
numerosa. Achou estranho pessoas assim comprarem ingressos para o
Ópera; várias das referidas senhoras tinham a cútis e a indumentária de
respeitáveis cozinheiras endomingadas, falavam com fartura de ademanes
de nítida índole italiana, e submetiam os filhos a um regime de beliscões e
arengas. Senhores com o chapéu sobre as coxas (e seguro com as duas
mãos) representavam a contrapartida masculina de um público que deixava
Lucio perplexo. Conferiu o programa impresso sem encontrar outra menção
que não fosse aos filmes projetados e aos programas vindouros. No exterior,
tudo estava em ordem.
Desinteressando-se, começou a ler o jornal e deu cabo dos telegramas do
exterior. Quando estava no meio do editorial, sua noção do tempo o alertou
de que o intervalo estava anormalmente prolongado e tornou a dar uma
olhada na sala. Chegavam casais, grupos de três ou quatro senhoritas
paramentadas com o que Villa Crespo ou o parque Lezama julgavam
elegante, e havia grandes encontros, apresentações e entusiasmos em
diferentes setores da plateia. Lucio começou a se perguntar se não teria
cometido um equívoco, embora tivesse dificuldade para localizar seu
possível equívoco. Nesse momento as luzes se apagaram, mas ao mesmo
tempo flamejaram brilhantes projetores de cena, a cortina subiu e Lucio viu,
sem conseguir acreditar, uma imensa banda feminina de música perfilada no
palco com um cartaz onde se lia: BANDA DA “ALPARGATAS”. E
enquanto (lembro-me da expressão em seu rosto ao contar-me) ele arfava de
surpresa e maravilha, o regente ergueu a batuta e um estrépito
incomensurável atropelou a plateia, pretextando uma marcha militar.
— Entende, aquilo era tão incrível que foi preciso algum tempo para eu
conseguir sair do abobamento em que havia entrado — disse Lucio. —
Minha inteligência, se você me permite chamá-la assim, sintetizou
instantaneamente todas as anomalias dispersas e as transformou na verdade:
um espetáculo para empregados e famílias da empresa “Alpargatas”, que os
safados do Cine Ópera omitiam dos programas para vender os ingressos
disponíveis. Sabiam muito bem que se nós, de fora, ficássemos sabendo da
banda não entrávamos nem a tiros. Tudo isso eu vi muito bem, mas não
imagine que assim meu assombro diminuiu. Primeiro que eu jamais havia
imaginado a existência em Buenos Aires de uma banda de mulheres tão
fenomenal (me refiro à quantidade). E depois, que a música que elas
tocavam era tão terrível que o sofrimento dos meus ouvidos não permitia
que eu coordenasse as ideias nem os reflexos. Tinha ao mesmo tempo
vontade de rir aos gritos, de distribuir palavrões e de ir embora. Mas ao
mesmo tempo não queria perder o filme do velho Anatole, tchê, de modo
que não saía do lugar.
A banda concluiu a primeira marcha e as senhoras rivalizaram entre si no
mister de celebrá-la. Durante o segundo número (anunciado com um
cartazinho), Lucio começou a fazer novas observações. Para começar, a
banda era um enorme engodo, pois de suas cento e tantas integrantes apenas
uma terça parte tocava os instrumentos. O resto era puro farol, as meninas
alçavam trompetes e clarins tal como as verdadeiras executantes, mas a
única música que produziam era a de suas belíssimas coxas, que Lucio
julgou dignas de culto e louvor, sobretudo depois de algumas lúgubres
experiências no Maipo. Em suma, aquela banda descomunal se reduzia a
cerca de quarenta sopradoras e tamborileiras, enquanto as demais se
apresentavam sob a forma de adereço visual, com a ajuda de lindíssimos
uniformes e carinhas de fim de semana. O regente era um jovem totalmente
inexplicável quando se pensa que estava afundado num fraque que,
recortando-se como uma sombra chinesa contra o fundo ouro e rubro da
banda, lhe dava um ar de coleóptero totalmente desvinculado do
cromatismo do espetáculo. Aquele jovem movia em todas as direções sua
longuíssima batuta e parecia veementemente disposto a ritmar a música da
banda, coisa que estava muito longe de conseguir, na opinião de Lucio. Em
termos de qualidade, a banda era uma das piores que ele já escutara na vida.
Marcha após marcha, a apresentação prosseguia em meio ao beneplácito
geral (repito seus termos sarcásticos e esdrúxulos), e a cada número
concluído renascia a esperança de que por fim a centena de gatinhas se
retirasse e reinasse o silêncio sob a estrelada abóbada do Ópera. Caiu a
cortina e Lucio teve uma espécie de ataque de felicidade, até reparar que os
holofotes não haviam se apagado, o que o levou a perfilar-se preocupado
em seu assento. E aí, tranquilamente, a cortina sobe outra vez, agora
mostrando um cartaz diferente: A BANDA EM DESFILE. As garotas
estavam posicionadas de perfil, dos metais brotava uma ululante
discordância vagamente semelhante à marcha “El Tala”, e a banda inteira,
imóvel no palco, movia ritmicamente as pernas como se estivesse
desfilando. Era suficiente ser a mãe de uma das garotas para ter a perfeita
ilusão do desfile, sobretudo quando na dianteira evoluíam oito
imponderáveis aviões esgrimindo aqueles bastões com borlas que
rodopiam, são jogados para o ar e se entrecruzam. O jovem coleóptero abria
o desfile, fingindo caminhar com grande aplicação, e Lucio teve que escutar
intermináveis da capo al fine que em sua opinião foram suficientes para
cobrir entre cinco e oito quarteirões. No final houve uma modesta ovação, e
a cortina veio como uma imensa pálpebra proteger os maltratados direitos
da penumbra e do silêncio.
— Meu assombro havia passado — disse-me Lucio —, mas nem mesmo
no decorrer do filme, que era excelente, consegui me libertar de uma
sensação de estranhamento. Saí para a rua, com o calor pegajoso e as
pessoas das oito da noite, e me enfiei no El Galeón para beber um gin fizz.
De chofre me esqueci completamente do filme de Litvak, a banda me
ocupava como se eu fosse o palco do Ópera. Sentia vontade de rir, mas
estava irritado, entende. Primeiro que eu deveria ter me aproximado da
bilheteria do cinema para dizer umas boas verdades a eles. Não o fiz, sei
muito bem, porque sou portenho. Afinal, tanto faz como tanto fez, você não
acha? Mas não era isso o que me irritava, havia outra coisa mais profunda.
Na metade do segundo trago comecei a compreender.
Aqui o relato de Lucio se torna de difícil transcrição. Em essência (mas
justamente o essencial é o que não se consegue comunicar) seria o seguinte:
até aquele momento ele estivera preocupado com uma série de elementos
anômalos soltos: o programa enganador, os espectadores inadequados, a
banda ilusória na qual a maioria era falsa, o regente fora de tom, o desfile
de faz de conta, e ele próprio envolvido numa coisa que não fazia sentido
para ele. De repente teve a impressão de entender tudo aquilo em termos
que o extrapolavam infinitamente. Sentiu como se lhe tivesse sido dado ver
o fim da realidade. Um momento da realidade que lhe parecera falsa porque
era a verdadeira, a que agora já não via. O que acabava de presenciar era o
real, ou seja, o falso. Deixou de sentir indignação com o fato de estar
rodeado por elementos que não estavam em seus lugares, porque na própria
consciência de um mundo outro compreendeu que aquela visão poderia se
ampliar para a rua, para o El Galeón, para seu terno azul, para seu programa
da noite, para seu escritório do dia seguinte, para seu plano de poupança,
para seu veraneio de março, para sua amiga, para sua maturidade, para o dia
de sua morte. Por sorte deixara de considerar as coisas dessa maneira, por
sorte era outra vez Lucio Medina. Mas só por sorte.
Às vezes pensei que isso teria sido realmente interessante se Lucio volta
ao cinema, se informa e descobre a inexistência de tal festival. Mas é fato
verificável que a banda tocou no Ópera naquela tarde. Na realidade não há
por que ficar exagerando as coisas. Quem sabe a mudança de vida e o exílio
de Lucio lhe venham do fígado ou de alguma mulher. E além disso não é
justo continuar falando mal da banda, pobres garotas.
Os amigos
N
aquele jogo tudo precisava ser rápido. Quando o Número Um
resolveu que era preciso liquidar Romero e que o Número Três se
encarregaria do trabalho, Beltrán recebeu a informação poucos
minutos mais tarde. Tranquilo, mas sem perder um instante, saiu
do café da Corrientes com a Libertad e entrou num táxi. Enquanto tomava
um banho em seu apartamento ouvindo o noticiário, lembrou-se de que
havia visto Romero pela última vez em San Isidro num dia de azar nas
corridas. Na época Romero era um tal Romero e ele um tal Beltrán; bons
amigos antes que a vida os pusesse em caminhos tão diferentes. Sorriu
quase a contragosto, pensando na cara que Romero ia fazer ao se encontrar
novamente com ele, mas a cara de Romero não tinha a menor importância e
em compensação era preciso pensar com cuidado na questão do café e do
carro. Era curioso que o Número Um tivesse tido a ideia de mandar matar
Romero no café da Cochabamba com a Piedras, e naquele horário; talvez,
se fosse o caso de acreditar em certas informações, o Número Um já
estivesse um pouco velho. De toda maneira, a incompetência da ordem lhe
dava uma vantagem: podia tirar o carro da garagem, estacioná-lo com o
motor ligado para os lados da Cochabamba e ficar esperando que Romero
chegasse, como sempre, para encontrar os amigos por volta das sete da
noite. Se tudo desse certo, evitaria que Romero entrasse no café e, ao
mesmo tempo, que os que estavam no café vissem sua intervenção ou
suspeitassem que ela ocorrera. Era questão de sorte e de cálculo, um
simples gesto (que Romero não deixaria de ver, porque era um lince), e
saber avançar pelo meio do trânsito e fazer a curva a toda a velocidade. Se
os dois fizessem as coisas como tinham que ser feitas — e Beltrán estava
tão seguro de Romero quanto de si próprio —, tudo ficaria resolvido num
instante. Tornou a sorrir, pensando na cara do Número Um quando, mais
tarde, bem mais tarde, ligasse para ele de algum telefone público para
informá-lo do sucedido.
Vestindo-se devagar, acabou o maço de cigarros e se olhou no espelho por
um momento. Depois tirou outro maço do pacote, e antes de apagar as luzes
certificou-se de que estava tudo em ordem. Os galegos da garagem
mantinham seu Ford como uma seda. Desceu pela Chacabuco devagar, e às
dez para as sete estacionou a poucos metros da porta do café, depois de dar
duas voltas no quarteirão à espera de que um caminhão de entrega liberasse
uma vaga. De onde estava, era impossível que os do café o vissem. De vez
em quando pressionava um pouco o acelerador para manter o motor
aquecido; não queria fumar, mas sentia a boca seca e ficava com raiva.
Às cinco para as sete viu Romero se aproximando pela calçada em frente;
reconheceu-o na mesma hora pelo chapelão cinza e o paletó cruzado. Com
uma olhadela para a vidraça do café, calculou o tempo que seria necessário
para atravessar a rua e chegar até lá. Mas não podia acontecer nada com
Romero a tanta distância do café, era preferível deixá-lo atravessar a rua e
subir para a calçada. Exatamente naquele momento, Beltrán deu a partida
no carro e pôs o braço para fora da janela. Tal como previsto, Romero o viu
e estacou, surpreso.
A primeira bala o acertou no meio dos olhos, depois Beltrán atirou no
volume que desmoronava. O Ford saiu em diagonal, passando justo na
frente de um bonde, e deu a volta pela Tacuarí. Dirigindo sem pressa, o
Número Três pensou que a última visão de Romero fora a de um tal
Beltrán, um amigo do hipódromo em outros tempos.
O motivo
N
inguém vai acreditar, é como fita de cinema, as coisas são como
acontecem e a gente tem que aceitar, se não gostar vai embora e o
dinheiro ninguém devolve. Como quem não quer nada, já se
passaram vinte anos e a coisa está mais que prescrita, de modo
que vou contar e quem achar que estou inventando que vá fritar bolinhos.
Montes foi morto no baixo numa noite de agosto. Vai ver que era verdade
que Montes tinha faltado ao respeito com uma mulher e que o macho dela
cobrou com juros. O que eu sei é que Montes foi morto por trás, com um
tiro na cabeça, e isso não se perdoa. Montes e eu éramos unha e carne,
sempre juntos no carteado e no boteco do negro Padilla, mas vocês não
devem estar lembrados do negro. Ele também foi morto; um dia, se
quiserem, eu conto.
O fato é que quando me avisaram, Montes já tinha batido as botas e
cheguei a duras penas bem na hora de ver a irmã se jogar em cima dele e ter
um chilique. Fiquei um tempo olhando pro Montes, que estava com os
olhos abertos, e jurei pra ele que o outro não ia sair dessa sem mais nem
menos. Naquela noite falei com Barros e é agora que vocês vão achar que
minha história não bate. A questão é que Barros tinha sido o primeiro a
chegar quando se ouviu o tiro, e encontrou Montes agonizando ao lado de
um cinamomo. Barros, que era um azougue, fez o impossível pra que ele
falasse quem tinha feito aquilo. Montes queria falar, mas com chumbo na
cabeça não deve ser nada fácil, de modo que Barros não conseguiu tirar
grande coisa dele. De todo jeito Montes conseguiu lhe dizer, prestem
atenção no que é o delírio de um moribundo, algo do tipo “o do braço azul”,
e depois disse uma palavra que parecia “tatuagem”, e disso a gente tirou
que o cara era marinheiro e deu. Pensem só, tão fácil dizer López ou
Fernández, mas com um balaço na cuca, fazer o quê? Vai ver que Montes
não sabia como o outro se chamava, tatuagem dá pra ver, mas um nome é
preciso verificar, e numa dessas vai ver que é grupo.
Agora vocês vão achar graça quando eu disser que oito dias depois Barros
e eu localizamos o sujeito, enquanto a melhor do mundo dá batidas no porto
e pra tudo quanto é lado sem encontrar nada. Tínhamos nossos macetes e
não vou dar canseira com detalhes. Mas não é disso que vocês vão rir, vão
rir é de que o cagueta não conseguiu nos fornecer a filiação do indivíduo,
em compensação nos avisou que ele estava se mandando num navio francês
e que não era como marinheiro, mas como passageiro, vejam só que luxo.
Daí deduzimos que o cara tinha largado a profissão e que como conhecia
meio mundo estava aproveitando pra dar sumiço. A única coisa que a gente
sabia era que ele viajava na terceira classe e era argentino. Nada de estranho
nisso, um gringo não teria encarado Montes, mas o mais bizarro do caso foi
o cagueta não conseguir descobrir o sobrenome do cara. Ou melhor,
forneceram um nome pra ele que depois não constava entre os passageiros.
A galera às vezes tem medo, tchê, vai ver que o sujeito que cantou o
informe pro nosso cagueta por trinta mangos enrolou o nome do outro pra
não se dar mal. Ou então vai ver que o indivíduo na última hora arrumou
documentos fajutos. O fato é que agora a fita prossegue, porque eu e Barros
trocamos ideia a noite inteira e de manhã rumei pro Departamento e dei
entrada nos papéis. Naquela época não era tão trabalhoso conseguir o
passaporte. Bom, para encurtar a conversa, a questão é que no comitê me
facilitaram a passagem e uma noite às dez horas este que vos fala estava a
bordo de um navio a caminho de Marselha, que é um apeadeiro dos franças.
Estou até vendo a cara de vocês, mas paciência. Se quiserem, fico por aqui.
Bom, então toca mais uma cana e façam de conta que estão lendo O conde
de Monte Cristo. Avisei desde o começo que esses casos não acontecem
com todo mundo, sem contar que eram outros tempos.
No navio, que viajava quase vazio, deram pra mim sozinho um camarote
com quatro camas, vejam só que luxo. Dava pra eu me espalhar e ainda
sobrava espaço. Vocês já viajaram pra Europa, rapazes? Pergunto só pra
botar banca. É o seguinte: os camarotes davam pra um corredor, e pelo
corredor se chegava a um barzinho que havia numa das pontas; pelo outro
lado precisava subir uma escada pra chegar à ponta da frente do navio.
Passei a primeira noite no convés, olhando Buenos Aires desaparecer
devagarinho. Mas no dia seguinte comecei a verificar a área. Em
Montevidéu ninguém desembarcou, o navio nem chegou a atracar. Quando
a gente tocou mar afora, amarguei os pinotes das minhas tripas, coisa que
não desejo pra vocês. O assunto não ia ser difícil porque no bar o cara fica
sabendo de tudo na mesma hora e ocorre que dos vinte e tantos passageiros
da terceira classe uns quinze eram mulheres e o resto quase tudo galego e
macarrone. Fora eu, só três argentinos, e não demorou nada pra nós quatro
pegarmos firme no truco e na cerveja.
Um dos três já era velho, mas bem que ele era capaz de dar um passa-fora
no mais esperto. Os outros dois andavam pelos trinta, como eu. Pereyra e eu
ficamos chapas na hora, mas Lamas era mais reservado e parecia meio
tristão. Eu ficava de orelha em pé pra ver qual dos três falava o lunfardo dos
marinheiros, e volta e meia soltava algum comentário a respeito do navio
pra ver se algum deles caía na armadilha. Logo me dei conta de que não ia
conseguir nada, porque o envolvido estava mais fechado que baú de
solteirona. Diziam cada idiotice sobre o navio que até eu percebia. E com
tudo isso fazia um frio horroroso e ninguém tirava o casaco nem o pulôver.
Os três já tinham me dito que iam pra Marselha, de modo que fiquei de
olhos bem abertos até a gente sair do Brasil, mas era verdade e nenhum
deles se mandou. Quando o calor começou a apertar, fiquei só de camiseta
pra dar o exemplo, mas eles andavam de camisa e só arregaçavam as
mangas até os cotovelos, não mais que isso. O velho Ferro dava risada
quando me via de treta com a camareira e me felicitava por ter todos
aqueles colchões no camarote. Pereyra também estava se dando bem, e por
causa da Petrona, que era uma galeguinha esperta, andávamos os dois
aperreados. E isso sem falar no tanto que o navio balançava e na porcaria da
comida que nos serviam.
Quando achei que Pereyra estava levando muito a sério a história de dar
em cima da Petrona, tomei minhas providências. Nem bem a encontrei no
corredor, falei que estava entrando água no meu camarote. Ela acreditou, e
assim que entrou, tranquei a porta. Na minha primeira investida largou uma
bofetada, mas rindo. Depois ficou mansinha feito ovelha. Imaginem só,
com todas aquelas camas, como dizia o Ferro. Na verdade naquela noite
não fizemos grande coisa, mas no dia seguinte mostrei a que vinha e a
verdade é que galega ou não galega, ela valia a pena. Puta se valia.
Como quem não quer nada, toquei no assunto com Lamas e Pereyra, que
no começo não queriam acreditar ou deram uma de impressionados. Lamas
ficou quieto como sempre, mas Pereyra estava passado e percebi suas
intenções. Me fiz de desentendido e ele saiu de fininho. Naquela noite a
Petrona não apareceu no meu camarote; eu já tinha visto os dois de papo
perto dos banheiros. Vocês vão achar estranho a galeguinha me largar assim
tão depressa, por isso é melhor eu contar tudo de uma vez. Com uma nota
de cem pesos e a promessa de outra se ela me conseguisse a informação que
eu desejava, a Petrona topou o negócio na hora. Vocês podem imaginar que
eu não falei pra ela por que queria saber se Pereyra tinha alguma marca no
braço; mencionei uma aposta, uma besteira dessas. Rimos feito uns loucos.
Na manhã seguinte conversei um tempão com o Lamas, os dois sentados
num rolo de cordas na parte da frente do navio. Ele me disse que estava
indo para a França trabalhar de ordenança na embaixada, ou algo do estilo.
Era um sujeito calado, meio tristão, mas comigo ele se abria bastante. Eu
tratava de olhá-lo nos olhos e de repente me passava pela memória o rosto
de Montes morto, os gritos da irmã, o velório, depois que o devolveram da
autópsia. Eu tinha vontade de botar pressão no Lamas e perguntar na cara se
tinha sido ele. Mas qual era a vantagem? Fazendo isso poria tudo a perder.
Melhor esperar a Petrona aparecer no meu camarote.
Aí pelas cinco ela bateu na minha porta. Vinha morrendo de rir e de cara
me anunciou que Pereyra não tinha nada nos braços. “Tive tempo de sobra
pra olhar pra ele por todos os lados”, disse, rindo feito louca. Pensei no
Lamas, que pra mim era o mais simpático, e me dei conta de como o cara
pode ser imbecil quando se deixa levar desse jeito. Que simpático porra
nenhuma. Se Ferro e Pereyra estavam fora, não havia dúvida. De pura
invocação, tracei ali mesmo a Petrona, que não queria, e tive que aplicar
uns tabefes nela pra agilizar o lance de tirar a roupa. Não desgrudei dela até
a hora da janta, e só desgrudei pra não comprometê-la com os caras do
navio, que já deviam estar atrás dela. Combinamos que ela voltaria no dia
seguinte à tarde e fui jantar. Haviam posicionado os quatro conterrâneos na
mesma mesa, longe dos galegos e dos macarrones, comigo de frente pro
Lamas. Vocês não imaginam a dificuldade que foi olhar pra ele com cara
normal, pensando no Montes. Agora eu já não estranhava ele ter enrolado
Montes, qualquer um entrava na dele com aquele seu ar todo concentrado
que inspirava confiança. Eu nem ligava pro Pereyra, mas acabei achando
estranho ele não comentar nada sobre a Petrona, ele que antes ficava o
tempo todo alardeando o que ia fazer com a galeguinha na cama. Me
ocorreu que ela do lado dela também não tinha me falado muito do rapaz,
exceto me dizer o que importava. Por via das dúvidas fiquei de prontidão
com a porta entreaberta e lá pela meia-noite eu a vi entrar no camarote de
Pereyra. Me deitei e fiquei pensando.
No dia seguinte a Petrona não apareceu. Acuei-a num dos banheiros e
perguntei o que estava acontecendo. Falou que nada, que estava com muito
trabalho.
— Esta noite você se encontrou de novo com o Pereyra? — perguntei de
supetão.
— Eu? Por quê? Não, não me encontrei com ele de novo — mentiu.
Alguém roubar a mulher do cara não é pouca brincadeira, mas se além
disso a culpa é sua mesmo, vocês podem imaginar que eu não estava
achando a menor graça. Quando insisti pra que ela fosse me ver naquela
mesma noite, ela começou a chorar e disse que o cabo ou o capataz de
bordo estava pelas tabelas com ela, desconfiado do que havia acontecido,
que não queria perder o trampo e outros lances do tipo. Acho que foi
naquele momento que eu saquei do que se tratava e fiquei pensando. O
assunto com a galega não era tão grave, mesmo com o amor-próprio
azedando meu sangue. Mas havia outras coisas mais sérias, e tive a noite
inteira para pensar nelas. A tal noite também me serviu pra ver a Petrona se
esgueirando mais uma vez pra dentro do camarote do Pereyra.
No dia seguinte dei um jeito de ficar de charola com o velho Ferro. Fazia
um bom tempo que eu não desconfiava dele, mas achei melhor ter certeza.
Ele repetiu com todos os detalhes que estava indo para a França visitar a
filha que tinha se casado com um frança e era mãe de uma penca de filhos.
O velho queria ver os netos antes de esticar as canelas e andava com a
carteira cheia de fotos da família. Pereyra apareceu tarde e com cara de
sono. Também… E Lamas andava às voltas com um método pra aprender
francês. Veja só a companhia que eu arrumei, tchê.
A coisa continuou assim até a véspera da chegada a Marselha. Fora
encurralá-la uma ou duas vezes nos corredores, não consegui que a Petrona
voltasse ao meu camarote. Ela já nem se lembrava da grana que eu tinha
prometido, e isso que toda vez que eu falava com ela, mencionava o
assunto. Como ela fazia cara de nojo ao ouvir falar nos pesos que eu lhe
devia, me convenci do que estava pensando e vi tudo com muita clareza. Na
noite anterior à chegada encontrei-a tomando a fresca no convés. Pereyra
estava ao lado dela e quando me viu passar fez cara de inocente. Esperei a
ocasião e na hora de ir dormir interpelei a galeguinha, que andava muito
atarefada.
— Você não vai me visitar? — perguntei, fazendo um carinho nos quadris
dela.
Ela se jogou para trás como se estivesse vendo o diabo, mas depois
disfarçou.
— Não posso — disse. — Eu já lhe disse que estou sendo vigiada.
Fiquei com vontade de arrebentar a fuça dela com uma porrada pra ela
parar de me fazer de idiota, mas me segurei. Não havia mais tempo pra
palhaçada.
— Me diga uma coisa — perguntei. — Você tem certeza mesmo do que
me falou sobre o Pereyra? Olhe que é importante e vai ver que você não
olhou direito.
Vi nos olhos dela a vontade de rir, misturada ao medo.
— Claro que olhei, já falei pra você que não havia nada. O que você quer,
que eu vá pra cama com ele outra vez?
E sorria, a cadela, convencida de que eu estava no mundo da lua. Dei-lhe
um tapa de leve e voltei para o camarote. Não estava mais interessado em
espiar se a Petrona ia pro quarto do Pereyra.
Pela manhã eu já estava de mala feita e com o necessário na cinta. O
frança que servia o café patinava um pouco no espanhol e já tinha me
explicado que quando chegássemos a Marselha a polícia subiria a bordo
com o objetivo de fazer o controle dos documentos. Só depois as pessoas
receberiam permissão pra desembarcar. Todos formamos uma fila e fomos
passando um a um pra mostrar os documentos. Deixei Pereyra ir na frente, e
quando chegamos ao outro lado peguei-o pelo braço e convidei-o pra uma
despedida no meu camarote com um gole de cana. Como ele já tinha
provado da cana e gostado, foi sem discutir. Fechei a porta com a tranca e
fiquei olhando pra ele.
— E a caninha? — ele perguntou, mas quando viu o que eu tinha na mão
ficou branco e recuou. — Não seja besta… Por uma mulher como aquela…
— conseguiu dizer.
O camarote ficou apertado, tive que pular por cima do finado para jogar o
facão na água. Mesmo sabendo que era inútil, me agachei para verificar se a
Petrona não tinha mentido para mim. Peguei a mala, fechei o camarote à
chave e saí. Ferro já estava na passarela e me cumprimentou aos gritos.
Lamas aguardava sua vez, calado como sempre. Aproximei-me e disse
algumas coisas no ouvido dele. Achei que ele ia cair duro no chão, mas foi
só impressão. Pensou um pouco e concordou. Eu sabia havia algum tempo
que ele ia concordar. Segredo por segredo, nós dois cumprimos o
prometido. Dele, nunca mais ouvi falar, exceto que me conseguiu
acomodações entre seus amigos franças. Três anos depois, já tive condições
de voltar. Estava com uma vontade de ver Buenos Aires…
Torito
À memória de d. Jacinto Cúcaro, que nas aulas de pedagogia do
curso Normal “Mariano Acosta”, por volta do ano de 1930, nos
contava as lutas de Suárez.
F
azer o quê, cara, quando você está por baixo todo mundo dá
porrada. Todos, tchê, até o mais cagão. Te sacodem de encontro às
cordas, te sentam a mão. Sai, sai, não me vem com consolo, saco.
Te conheço, seu mascarado. Toda vez que penso nisso, sai daí, sai.
Na sua cabeça estou desesperado, o que acontece é que não aguento mais
ficar aqui jogado o dia inteiro. Puta, como são longas as noites de inverno,
lembra do guri do armazém, como cantava essa milonga? Puta, como são
longas... E é isso, guri. Mais longas que esperança de pobre. Entende, eu
quase não conheço a noite — e venho conhecer agora, desse jeito... Sempre
cedo na cama, às nove ou às dez. O patrão me dizia: “Menino, já pra cama,
amanhã tem muito trabalho”. Rara a noite em que eu conseguia dar uma
fugida. E agora o tempo inteiro assim, olhando o teto. Outra coisa que eu
não sei fazer, olhar pra cima. Todo mundo falou que teria sido melhor, que
foi uma enorme besteira levantar dois segundos depois, invocadíssimo. É
verdade, se eu ficasse os oito segundos o branquelo não me acertava assim.
Fazer o quê? Deu nisso. E pra piorar, a tosse. Depois eles vêm com o
xarope e as injeções. Coitada da irmãzinha, o trabalho que eu lhe dou. Nem
mijar sozinho eu consigo. A irmãzinha é só bondade. Me dá leite quente,
me conta coisas. Quem diria, menino. O patrão só me chamava de menino.
Aplica um uppercut, menino. Pra cozinha, menino. Quando eu enfrentei o
negro em Nova York, o patrão ficou preocupado. Estive com ele no hotel,
antes de sair. “Você acaba com ele em seis rounds, menino”, mas fumava
feito um louco. O negro, como era mesmo o nome do negrinho, Flores, um
troço assim. Duro na queda, tchê. Um estilo lindo, a cada round me deixava
mais pra trás. Uppercut, menino, enfia um uppercut. Tinha razão. No
terceiro ele veio abaixo feito um pano velho. Ficou amarelo, o negro.
Flores, acho, um troço assim. Olha só como a gente se engana, no começo
achei que o branquelo ia ser mais fácil. O que é a autoconfiança, cara. Me
acertou um soco que nem te conto. Me pegou de guarda baixa, o maldito.
Pobre do patrão, não queria acreditar. Me levantei com uma bronca... Nem
sentia as pernas, queria acabar com ele ali mesmo. Azar, menino. Todo
mundo apanha, na final. Na noite do Tani, lembra? Coitado do Tani, que
tunda. Dava pra ver que o Tani estava acabado. Bonitão, o índio, veio em
cima com tudo, dá-lhe que dá-lhe, por cima, por baixo. E eu nem sentia,
coitado do Tani. E isso que quando fui cumprimentar o Tani no canto minha
cara estava doendo muito, ao fim e ao cabo ele me acertou uma bela de uma
cacetada. Coitado do Tani, sabe que ele olhou pra mim, eu botei a luva na
cabeça dele rindo de satisfação, eu não queria rir, claro que não era dele,
coitado do guri. Ele só olhou pra mim, mas me deu sei lá o quê. Todo
mundo me agarrava, garoto lindo, garoto macho, ah, guasca, e o Tani quieto
no meio do pessoal dele, mais por baixo que umbigo de cobra. Coitado do
Tani. Por que estou me lembrando dele, agora me diz. Vai ver que foi assim
que eu olhei pro branquelo naquela noite. Sei lá, entrei nessa de ficar
lembrando. Que tunda, mano. Sem chance de querer disfarçar. O cara me
deu uma surra e pronto. O pior era que eu não queria acreditar. Estava
deitado no hotel, o patrão fumando, fumando, quase não havia luz. Lembro
que estava quente. Depois me puseram gelo, imagine só, eu com gelo. O
patrão não dizia nada, o pior era que não dizia nada. Te juro que eu estava
com vontade de chorar, como na vez que ela... Mas pra que esquentar. Se
estou sozinho, juro que choro. “Deu ruim, patrão”, falei. O que mais podia
dizer? E ele fuma que fuma. Sorte cair no sono. Como agora. Toda vez que
eu pego no sono, tiro a sorte grande. De dia tem o rádio que a irmãzinha me
trouxe, o rádio que... Parece mentira, cara. Bom, dá pra ouvir uns
tanguinhos e as transmissões dos teatros. Você gosta do Canaro? Eu gosto
do Fresedo, tchê, também do Pedro Maffia. Vi os dois um monte de vezes
no ringside, iam me ver todas as vezes. Dá pra pensar nisso, as horas ficam
mais curtas. Mas à noite, que roubada, velho. Nem rádio nem irmãzinha, e
numa dessas vem a tosse e dá-lhe que dá-lhe, e nessas alguém da outra
cama se emputece e grita com a gente. Pensar que antes... Repare que agora
me incomoda mais que antes. Os jornais diziam que quando criança eu
brigava com os carroceiros no Lixão. Pura mentira, tchê, nunca me atraquei
com ninguém na rua. Uma ou duas vezes, nunca por culpa minha, juro.
Pode acreditar. Coisas que acontecem, o cara sai com a turma, encontra
outro pessoal e de repente, sujou. Eu não gostava, mas quando me envolvi
pela primeira vez achei o máximo. Claro, só podia ser o máximo, se quem
levava a pior era o outro. Quando menino eu brigava com a canhota,
adorava bater com a canhota. Minha velha ficou mal primeira vez que me
viu brigar com um cara que devia ter uns trinta anos. Achou que ele ia me
matar, coitada da velha. Quando o sujeito desabou, ela não queria acreditar.
Pra falar a verdade, nem eu, juro que nas primeiras vezes achei que era
sorte. Até que o amigo do patrão foi falar comigo no clube e me disse que
eu precisava seguir em frente. Lembra daqueles tempos, guri? Que surras!
Tinha cada meliante que te la voglio dire. “Senta a mão com vontade”, dizia
o amigo do patrão. Depois falava de profissionais, do Parque Romano, do
River. Eu totalmente por fora, nunca tinha cinquenta mangos pra ir ver
coisa nenhuma. Também, na noite em que ele me deu vinte pesos, que
alegria. Foi com o Tala, ou com aquele magrelo canhoto, nem me lembro
mais. Derrubei em dois rounds, ele nem chegou a encostar a mão em mim.
Sabe, eu sempre esquivei a cara. Nunca que eu ia imaginar o lance do
branquelo… O cara acredita que tem queixo de ferro e nisso chega alguém
e demole ele com um soco. Que ferro uma ova. Vinte pesos, guri, imagine
só. Dei cinco pra velha, juro que só pra me mostrar, só pra ela ver. A
coitada queria pôr água de flor de laranjeira no meu punho dolorido. Coisas
de velha, coitada. Repara bem, foi a única que tinha dessas delicadezas,
porque a outra... É isso, é só pensar na outra que já estou de novo em Nova
York. De Lanús me lembro muito pouco, tudo se mistura. Um vestido
xadrezinho, isso, agora estou vendo, e o saguão do Don Furcio, e mais as
mateadas. Como me sacavam, naquela casa, os guris se reuniam pra me
olhar pela grade, e ela sempre grudando algum recorte do Crítica ou do
Última Hora no álbum que tinha começado, ou me mostrava as fotos do El
Gráfico. Nunca se viu em foto? Na primeira vez impressiona, a gente pensa
mas esse sou eu, com essa cara. Depois percebe que a foto é bonita, quase
sempre é a gente que está atacando, ou então no final, de braço levantado.
Eu ia com meu Graham-Paige, pensa bem, botava roupa bonita pra ir visitá-
la, o bairro se alvoroçava. Era muito bom matear no pátio, e todos me
perguntavam, sei lá, um monte de coisa. Eu às vezes não conseguia
acreditar que era verdade, de noite antes de dormir falava pra mim mesmo
que estava sonhando. Quando comprei o terreno pra velha, o pessoal surtou.
O patrão era o único que não se abalava. “Você está certo, menino”, dizia, e
dá-lhe fumar. Até parece que estou vendo o patrão na primeira vez, no clube
da rua Lima. Não, era em Chacabuco, espera aí, deixa eu me lembrar, mas
se era em Lima, infeliz, então não se lembra do vestiário todo verde, todo
sujo... Naquela noite o treinador me apresentou ao patrão, ocorre que eram
amigos, quando ele me falou o nome dele quase me agarro nas cordas,
assim que eu vi que ele estava olhando pra mim, pensei: “Ele veio me ver
lutar”, e quando o treinador nos apresentou, eu quis morrer. Ele nunca tinha
me falado nada, muito raposa, mas fez bem, assim eu ia subindo devagar,
sem afobação. Como o coitado do canhotinho, que com um ano foi levado
pro River e que em dois meses veio abaixo sem apelação. Na época não era
fácil, garoto. Vinha cada macarrone da Itália, cada galego de dar medo, e
isso sem falar nos branquelos. Claro que às vezes dava pra curtir, como na
vez do príncipe. Aquilo foi um número, juro, o príncipe no ringside e o
patrão me dizendo no camarim: “Não fica de firula, não deixa ele sacar a
tua, que nisso os gringos são bambas”, e lembra que diziam que ele era o
campeão da Inglaterra, ou sei lá o quê. Coitado do branquelo, garoto bonito.
Me deu um negócio quando nos cumprimentamos, o sujeito engrolou uma
coisa que não dava pra entender e parecia que ia partir pra cima de você de
cartola na cabeça. Não vá pensar que o patrão estava muito tranquilo, posso
te dizer que ele nunca se dava conta de como eu sacava ele. Coitado do
patrão, achava que eu não percebia. Tchê, e o príncipe na lona, aquilo foi o
máximo, na primeira finta que o branquelo me faz, soquei ele com a direita
em gancho e acerto em cheio. Juro que até gelei quando ele desmoronou.
Que apagada, coitado do sujeito. Daquela vez eu não curti ganhar, teria sido
melhor um bom atraco, quatro ou cinco rounds como com o Tani ou com o
gringo aquele, o nome era Herman, um que chegava num carro vermelho e
na maior pinta. Apanhou, mas foi lindo. Que surra, mama mia. Ele não
queria entregar os pontos e tinha mais manhas que... Agora em matéria de
manha tinha que ver o Brujo, tchê. De onde foram tirar aquele sujeito? Era
uruguaio, sabe, já estava acabado mas era pior que os outros, grudava na
gente feito uma sanguessuga e quem disse que a gente consegue tirar ele de
cima? Dá-lhe lutar, e o sujeito cobrindo os olhos com a luva, puta, que
bronca me dava. No fim acertei ele em cheio, ele abriu a guarda e eu entrei
com vontade... Boneco no chão, guri. Muñeco al suelo fastrás... Sabe que
me fizeram um tango e tudo. Ainda me lembro de um pedaço, de
Mataderos al centro, y del centro a Nueva York... Cantavam pra mim em
toda parte, nos churrascos, pelo rádio... Era lindo ouvir pelo rádio, tchê, a
velha ouvia todas as minhas lutas. E sabe que ela também ouvia, uma vez
me disse que me conheceu pelo rádio, porque o irmão ligou na luta com um
dos macarrones... Lembra dos macarrones? Não sei de onde o patrão tirava
os macarrones, aparecia com eles fresquinhos da Itália e era cada pega que
se armava no River... Ele chegou a me botar pra lutar com dois irmãos, com
o primeiro foi sensacional, no quarto round começa a chover, tchê, e nós
querendo ir em frente com a luta porque o italianinho era dos bons e nos
socávamos com gosto, e nisso começamos a escorregar e dá-lhe eu na lona,
e ele na lona... Não dava pra acreditar, mano. Suspenderam a luta, que
besteira. Na segunda luta o italiano levou pelas duas e o patrão me botou
com o irmão, e foi outra pauleira... Que tempos aqueles, guri, aí sim, que
era bom lutar, com todo o pessoal que ia ver, lembra dos cartazes, das
buzinas de automóvel, tchê, que zona que ficava a geral... Uma vez li que o
boxeador não escuta nada quando está lutando, que mentira, garoto. Claro
que escuta, então eu não ouvia que o barulho dos gringos era diferente,
menos mal que o patrão estava ali no canto, uppercut, menino, vai de
uppercut. E no hotel, e nos cafés, que coisa mais estranha, tchê, eu não me
achava, ali. Depois o ginásio, com aqueles sujeitos dizendo coisas e o cara
entendendo picas. E tome língua de sinais, guri, como os mudos. Menos
mal que ela e o patrão estavam lá pra engrolar, podíamos matear no hotel e
de vez em quando aparecia um patrício e dá-lhe autógrafo, e quero ver dar
um pau nesse gringo pra eles aprenderem o que é um argentino. Só queriam
falar do campeonato, que remédio, acreditavam em mim, tchê, e eu ficava
com vontade de investir, atacar e só parar depois de virar campeão. Mas
mesmo assim pensava o tempo todo em Buenos Aires, e o patrão punha pra
tocar os discos do Carlitos, do Pedro Maffia, e o tango que fizeram pra
mim, sabe que fizeram um tango pra mim? Foi como com o Legui,
igualzinho. E uma vez me lembro que a gente foi a uma praia, ela, o patrão
e eu, passamos o dia na água, um estouro. Não pense que eu podia me
divertir muito, sempre com o treinamento e a alimentação controlada e não
tinha jeito, com o patrão sempre de olho. “Aguenta mais um pouco,
menino”, dizia o patrão. Me lembro da luta com o Mocoroa, aquilo sim foi
luta. Sabe que dois meses antes o patrão não me dava folga, força com essa
esquerda que não está boa, nada de abrir a defesa desse jeito, e trocava
meus sparrings, e toma pular corda e bife malpassado... Menos mal que me
deixava matear um pouco, e eu sempre com sede de verde. E tudo de novo
todos os dias, cuidado com a direita, você está indo com ela muito aberta,
olha que o fulano não é de brincadeira. Acha que eu não sabia? Mais de
uma vez fui ver ele lutar, eu gostava dele, nunca se mixava, e um estilo,
tchê... Sabe como é estilo, a gente está ali e quando é preciso fazer alguma
coisa vai e faz direto, não como esses que começam numa nova arrancada,
vai que vai, em cima embaixo os três minutos sem parar. Uma vez no El
Gráfico um fulano escreveu que eu não tinha estilo. Fiquei passado, juro.
Não que eu fosse um Rayito, aquilo sim, precisava ver, guri, e o Mocoroa
também. Eu, sabe como é, era só começar e já estava vendo tudo vermelho
e mandava ver, mas não pense que eu não me dava conta, só que aquilo
vinha e dava certo, qual é o problema. Olha como foi com o Rayito, está
certo que não nocauteei, mas dei luta. E com o Mocoroa a mesma coisa, não
é mesmo? Puta sova, velho, ele se agachava até o chão e lá de baixo me
largava cada soco que só vendo. E eu, toca na cara, juro que na metade a
gente já estava queimado e dá-lhe bater. Daquela vez não senti nada, o
patrão agarrava minha cabeça e dizia menino não abre desse jeito, ataca por
baixo, menino, reserva a direita. Eu escutava tudo mas depois a gente saía e
dá-lhe biaba nós dois, e até o fim, a gente não aguentava mais, foi um
negócio espetacular. Sabe que naquela noite depois da luta a gente se
encontrou num boteco, o pessoal todo foi, e foi lindo ver o garoto rindo, e
ele me disse que incrível, que soco o seu, e eu disse pra ele ganhei mas pra
mim a gente empatou, e todo mundo brindou e foi uma confusão que nem te
conto... Que droga essa tosse, te pega desprevenido e te derruba. Bom,
agora preciso me cuidar, muito leite, repouso, não tem jeito. Uma coisa que
eu lamento é não deixarem a gente levantar, às cinco estou acordado e dá-
lhe olhar pra cima. A gente pensa, pensa, e só coisa ruim, claro. Com os
sonhos é a mesma coisa, na outra noite lá estava eu lutando de novo com o
Peralta. Por que eu precisava cair logo naquela luta, imagina só o que foi,
guri, melhor não lembrar. Sabe o que é o pessoal todo lá, tudo de novo
como antes, não como em Nova York, com os gringos... E o pessoal do
ringside, toda a torcida, e uma vontade de ganhar pra que todos vissem
que... Outra a vencer, e eu não acertava uma, e sabe como o Víctor socava.
Já sei, já sei, eu ganhava dele com uma mão só, mas daquela vez foi
diferente. Eu estava sem ânimo, tchê, o patrão mais ainda, como o cara vai
conseguir treinar direito se está triste? Tudo bem, eu era o campeão e ele me
desafiou, tinha direito. Não vou fugir do cara, não é mesmo? O patrão
achava que dava pra vencer por pontos, não abra muito a defesa e não se
canse de saída, olha que esse aí vai socar o tempo todo. E claro, ele vinha
pra cima de tudo quanto é lado, e além disso eu não estava bem, com o
pessoal ali e tudo, juro que sentia um cansaço no corpo... Uma espécie de
preguiça, entende, não consigo explicar. Na metade da luta comecei a
passar mal, depois não me lembro de quase nada. Melhor não lembrar, não
é mesmo? São coisas que afinal. Eu queria esquecer tudo. Melhor dormir,
de todo jeito, mesmo que o cara sonhe com as lutas às vezes sai uma boa e é
de novo aquela alegria. Como naquela do príncipe, tão bom. Mas é melhor
quando a gente não sonha, guri, e dorme com gosto e não tosse nem nada,
dá-lhe dormir só isso a noite inteira dá-lhe que dá-lhe.
III.
N
ão se preocupe, desculpe esse gesto de impaciência. Era
perfeitamente natural que você falasse em Lucio, que se
lembrasse dele na hora das saudades, quando nos deixamos
corromper por essas ausências que denominamos recordações e é
preciso remendar com palavras e imagens tanto vazio insaciável. Além
disso, sei lá, você deve ter percebido que este bangalô convida, basta
instalar-se na varanda e olhar durante algum tempo para o rio e os laranjais
e de repente se está incrivelmente longe de Buenos Aires, perdido num
mundo elementar. Me lembro de Láinez dizendo que o certo seria chamar o
delta de alfa. E daquela outra vez na aula de matemática, quando você…
Mas por que você falou em Lucio, era preciso que dissesse: Lucio?
O conhaque está ali, sirva-se. Às vezes me pergunto por que você ainda se
dá ao trabalho de vir me visitar. Embarra os sapatos, precisa aguentar os
mosquitos e o cheiro do lampião a querosene… Sei, sei, não faça cara de
amigo ofendido. Não é isso, Mauricio, mas na verdade você é o único que
resta, não vejo mais ninguém, do grupo daquele tempo. Você… A cada
cinco ou seis meses recebo carta sua, depois você chega com a lancha
trazendo um pacote de livros e garrafas, com notícias desse mundo remoto a
menos de cinquenta quilômetros daqui, talvez com a esperança de algum
dia me arrancar deste rancho meio caindo aos pedaços. Não se ofenda, mas
sua fidelidade amistosa quase me irrita. Entenda, ela tem uma ponta de
crítica, quando você vai embora tenho a sensação de ter sido julgado, todas
as minhas escolhas definitivas me parecem meras formas de hipocondria
que uma viagem até a cidade bastaria para mandar para o diabo. Você faz
parte dessa espécie de testemunha carinhosa que até nos piores sonhos nos
acompanha sorrindo. E já que estamos falando de sonhos, já que você falou
no Lucio, por que deixar de lhe contar o sonho tal como na época contei a
ele? Foi aqui mesmo, mas naquele tempo — quantos anos já, velho? —
todos vocês vinham passar temporadas no bangalô que herdei dos meus
pais, a gente remava, lia poesia até enjoar, se apaixonava desesperadamente
pelo mais precário e mais perecível, tudo isso envolto num infinito
pedantismo inofensivo, numa ternura de cachorrinhos desorientados.
Éramos tão jovens, Mauricio, era tão fácil acreditar-se entediado, acariciar a
imagem da morte entre discos de jazz e mate amargo, donos de uma sólida
imortalidade de cinquenta ou sessenta anos por viver. Você era o mais
retraído, já demonstrava essa cortês fidelidade que não se pode rechaçar
como se rechaçam outras fidelidades mais impertinentes. Você olhava para
nós um pouco de fora, e já naquele tempo aprendi a admirar em você as
qualidades dos gatos. Falar com você é como se ao mesmo tempo se
estivesse só, e vai ver que é por isso que se fala com você como estou
falando agora. Mas na época havia os outros, e brincávamos de levar-nos a
sério. Sabe, o mais terrível daquele momento da juventude é que numa hora
sombria e sem nome tudo deixa de ser sério para ceder à suja máscara de
seriedade com que é preciso cobrir o rosto, e eu agora sou o doutor fulano, e
você o engenheiro sicrano, bruscamente ficamos para trás, começamos a
ver-nos de outro modo mesmo se durante algum tempo mantemos os rituais,
as brincadeiras comuns, as cenas de camaradagem que arremessam seus
últimos salva-vidas em meio à dispersão e ao abandono, e tudo é tão
horrivelmente natural, Mauricio, e para alguns é mais doloroso que para
outros, há quem seja como você, passando pelas diferentes idades sem
sentir, achando normal um álbum de fotografias onde estamos de calça
curta, de chapéu de palha ou uniforme de recruta do serviço militar…
Enfim, estávamos falando de um sonho que tive naquele tempo, e era um
sonho que começava aqui na varanda, comigo olhando a lua cheia sobre os
canaviais, ouvindo os sapos que ladravam como nem os cachorros ladram, e
depois seguindo por uma vaga trilha até chegar ao rio, andando devagar
pela margem com a sensação de estar descalço e de que meus pés
afundavam no barro. No sonho eu estava sozinho na ilha, o que era raro
naquele tempo; se voltasse a sonhá-lo agora, a solidão não me pareceria tão
próxima do pesadelo quanto naquele momento. Uma solidão com a lua
surgida havia pouco no céu da outra margem, com o barulho do rio e às
vezes a pancada fofa de um pêssego caindo numa vala. Agora até os sapos
haviam se calado, o ar estava pegajoso como esta noite ou como quase
sempre aqui, e parecia necessário ir em frente, deixar o cais para trás, se
enfiar pela curva grande da costa, atravessar os laranjais, sempre com a lua
no rosto. Não invento nada, Mauricio, a memória sabe o que deve guardar
por completo. Estou lhe contando a mesma coisa que na época contei a
Lucio. Vou chegando ao local onde os juncos iam ficando ralos e uma
língua de terra avançava para dentro do rio, perigosa por causa do barro e
da proximidade do canal, pois no sonho eu sabia que aquilo era um canal
profundo e cheio de remansos, e eu me aproximava da ponta passo a passo,
afundando no barro amarelo e quente de lua. E assim fiquei junto à borda,
vendo do outro lado os canaviais negros nos quais a água se perdia, secreta,
enquanto aqui, tão perto, o rio se movia furtivo, em busca de um lugar onde
se segurar, resvalando outra vez e insistindo. Todo o canal era lua, uma
imensa cutelaria confusa que talhava meus olhos, e por cima um céu que se
esborrachava contra minha nuca e meus ombros, obrigando-me a olhar
interminavelmente para a água. E quando vi rio acima o corpo do afogado
balançando lentamente como para se desvencilhar dos juncos da outra
margem, a razão da noite e de que eu estivesse nela se resolveu naquela
mancha negra à deriva, que girava muito de leve, retida por um tornozelo,
por uma mão, oscilando suavemente para se soltar, saindo dos juncos até
ingressar na corrente do canal, se aproximando cadenciosa da margem
desnuda sobre a qual a lua ia dar de cheio em pleno rosto.
Você está pálido, Mauricio. Apelemos para o conhaque, se você quiser.
Lucio também estava um pouco pálido quando lhe contei o sonho. Me disse
apenas: “Incrível como você se lembra dos detalhes”. E, ao contrário de
você, cortês como sempre, ele parecia adiantar-se ao que eu lhe contava,
como receoso de que eu de repente me esquecesse do resto do sonho. Mas
ainda faltava alguma coisa, eu estava lhe dizendo que a corrente do canal
havia girado o corpo, brincava com ele antes de trazê-lo para meu lado, e à
beira da língua de terra eu esperava o momento em que ele passaria quase a
meus pés e eu poderia ver seu rosto. Outra volta, um braço frouxamente
estendido como se aquilo ainda nadasse, a lua cravando-se no seu peito,
mordendo-lhe o ventre, as pernas pálidas, desnudando outra vez o afogado
deitado de costas. Tão perto de mim que teria bastado eu me agachar para
segurá-lo pelo cabelo, tão perto que o reconheci, Mauricio, vi seu rosto e
gritei, acho, uma coisa semelhante a um grito que me arrancou de mim
mesmo e me arremessou ao despertar, à jarra de água que bebi ofegante, à
assombrada e confusa consciência de que já não conseguia lembrar aquele
rosto que acabava de reconhecer. E aquilo já estaria seguindo corrente
abaixo, de nada adiantaria fechar os olhos e querer voltar para a beira
d’água, para a beira do sonho, lutando para me lembrar, querendo
precisamente aquilo que alguma coisa em mim não queria. Enfim, como
você sabe, mais tarde a gente se conforma, a máquina diurna está ali com
suas bielas bem lubrificadas, seus rótulos satisfatórios. Naquele fim de
semana você veio, vieram Lucio e os outros, aquele verão inteiro foi uma
festa, lembro-me de que depois você viajou para o norte, choveu muito no
delta, e lá pelo fim Lucio se cansou da ilha, da chuva, e muitas coisas o
irritavam; de repente começamos a olhar um para o outro como eu nunca
teria imaginado que pudéssemos nos olhar. Então começaram os refúgios no
jogo de xadrez ou na leitura, o cansaço de tantas concessões inúteis, e
quando Lucio voltava para Buenos Aires eu jurava para mim mesmo não
esperá-lo mais, incluía numa mesma condenação enfastiada todos os meus
amigos e o verde mundo que dia a dia ia se fechando e morrendo. Mas se
alguns se davam por entendidos e não apareciam mais depois de um
impecável “até breve”, Lucio voltava sem vontade, me encontrava no cais à
sua espera, olhávamos um para o outro como se nos olhássemos de longe,
na verdade era desse outro mundo cada vez mais para trás que nos
olhávamos, do pobre paraíso perdido que ele teimosamente tornava a buscar
e que eu quase contra a vontade me obstinava em vedar-lhe. Você nunca fez
muita ideia disso tudo, Mauricio, veranista imperturbável em alguma
quebrada nortenha, mas naquele fim de verão… Está vendo, ali? Ela
começa a se erguer entre os juncos, daqui a pouco estará iluminando seu
rosto. A essa hora é curioso como o barulho do rio ganha volume, não sei se
é porque os pássaros se calaram ou porque a sombra dá mais espaço para
determinados sons. Está vendo, seria injusto não concluir o que eu lhe
contava, a essa altura da noite em que tudo corresponde cada vez mais
àquela outra noite em que contei ao Lucio. Até a situação é simétrica, nessa
cadeira preguiçosa você preenche a ausência de Lucio, que chegava naquele
fim de verão e ficava como você, sem falar, ele que tanto havia falado, e
deixava passarem as horas bebendo, ressentido por nada ou pelo nada, por
esse nada repleto que ia nos acossando sem que pudéssemos nos defender.
Eu não acreditava que houvesse ódio entre nós, era ao mesmo tempo menos
e pior que ódio, um cansaço em pleno centro de uma coisa que havia sido
por vezes uma tempestade ou um girassol ou, se você prefere, uma espada,
tudo menos aquele tédio, aquele outono pardo e sujo que crescia de dentro
para fora como teias nos olhos. Saíamos para percorrer a ilha, corteses e
amáveis, tomando cuidado para não nos machucar; andávamos sobre folhas
secas, pesados colchões de folhas secas à margem do rio. Às vezes o
silêncio me enganava, às vezes uma palavra com o acento de antes, e quem
sabe Lucio caísse comigo nas astutas armadilhas inúteis do hábito, até que
um olhar ou o desejo excruciante de estar a sós nos pusesse outra vez frente
a frente, sempre amáveis e corteses e estranhos um ao outro. Então ele me
disse: “A noite está bonita, vamos dar uma volta”. E, tal como você e eu
poderíamos fazer agora, descemos da varanda e andamos naquela direção,
na direção em que surge essa lua que bate nos seus olhos. Não me lembro
muito bem do caminho, Lucio ia na frente e eu deixava que meus passos
caíssem sobre as pegadas dele e esmagassem pela segunda vez as folhas
mortas. Em algum momento devo ter começado a reconhecer a vereda entre
as laranjeiras, talvez tenha sido mais adiante, perto dos últimos ranchos e
dos juncais. Sei que naquele momento a silhueta de Lucio passou a ser a
única coisa incongruente naquele encontro metro a metro, noite a noite, a
tal ponto coincidente que não estranhei quando os juncos se entreabriram
para mostrar em plena lua a língua de terra entrando canal adentro, as mãos
do rio resvalando sobre o barro amarelo. Em algum ponto atrás de nós um
pêssego podre caiu com uma pancada que tinha alguma coisa de bofetada,
de moleza indizível.
À beira d’água Lucio se virou e ficou olhando para mim por um momento.
Disse: “O lugar é esse, não é mesmo?”. Nós nunca havíamos voltado a falar
no sonho, mas respondi: “Sim, o lugar é esse”. Passou-se algum tempo até
ele dizer: “Até isso você me roubou, até meu desejo mais secreto; porque eu
desejei um lugar assim, tive necessidade de um lugar assim. Você sonhou
um sonho alheio”. E ao dizer isso, Mauricio, ao dizer isso com uma voz
monótona e dando um passo na minha direção, alguma coisa deve ter se
partido no meu esquecimento, fechei os olhos e percebi que ia me lembrar,
sem olhar para o rio eu soube que ia ver o fim do sonho, e vi, Mauricio, vi o
afogado com a lua ajoelhada sobre o peito, e o rosto do afogado era o meu,
Mauricio, o rosto do afogado era o meu.
Por que você se vai? Se precisar, tem um revólver na gaveta da
escrivaninha, se quiser pode chamar as pessoas do outro rancho. Mas fique,
Mauricio, fique mais um pouco ouvindo o barulho do rio, quem sabe você
acaba por sentir que entre todas essas mãos de água e juncos que resvalam
no barro e se desmancham em redemoinhos há mãos que a esta hora se
cravam nas raízes e não largam, algo sobe para o cais e endireita o corpo
coberto de lixo e mordidas de peixes e vem até aqui à minha procura. Ainda
posso virar a moeda, ainda posso matá-lo pela segunda vez, mas ele teima e
volta, e uma noite ou outra me levará consigo. Me levará, estou lhe dizendo,
e o sonho chegará a sua verdadeira imagem. Serei obrigado a ir, a língua de
terra e os canaviais me verão passar deitado de costas, magnífico de lua, e o
sonho finalmente estará completo, Mauricio, o sonho finalmente estará
completo.
Depois do almoço
D
epois do almoço eu queria ter ficado no meu quarto lendo, mas
papai e mamãe entraram quase em seguida para me dizer que
naquela tarde eu precisava levá-lo para passear.
A primeira coisa que eu respondi foi que não, que outra pessoa
podia levar, que eles por favor me deixassem estudar no meu quarto. Ia
dizer outras coisas, explicar por que não gostava de ter que sair com ele,
mas papai deu um passo à frente e começou a me olhar daquele jeito a que
eu não consigo resistir, crava os olhos em mim e eu sinto que os olhos dele
vão entrando cada vez mais fundo na minha cara, até que fico a ponto de
gritar e sou obrigado a me virar e responder que sim, claro, imediatamente.
Mamãe nesses casos não diz nada e não olha para mim, mas fica um pouco
atrás com as duas mãos juntas e eu vejo seu cabelo cinzento que lhe cai
sobre a testa e sou obrigado a me virar e responder que sim, claro,
imediatamente. Então os dois saíram sem dizer mais nada e eu comecei a
me vestir, com o único consolo de que ia estrear uns sapatos amarelos que
brilhavam, brilhavam.
Quando saí do meu quarto eram duas horas e tia Encarnación disse que eu
podia ir buscá-lo no quarto dos fundos, onde ele sempre gosta de se enfiar à
tarde. Tia Encarnación devia estar se dando conta de que eu estava
desesperado por ter que sair com ele, porque passou a mão pela minha
cabeça e depois se abaixou e me deu um beijo na testa. Senti que punha
alguma coisa no meu bolso.
— Compre alguma coisa para você — disse no meu ouvido. — E não
esqueça de dar um pouco para ele, é melhor.
Dei um beijo na bochecha dela, mais feliz, e passei na frente da porta da
sala onde papai e mamãe jogavam damas. Acho que falei até logo para eles,
uma coisa assim, e depois tirei a nota de cinco pesos para alisar bem e
guardar na carteira onde já havia outra nota de um peso e moedas.
Ele estava num canto do quarto, segurei-o o melhor que pude e saímos
pelo pátio até a porta que dava para o jardim da frente. Uma ou duas vezes
senti a tentação de soltá-lo, voltar para dentro e dizer a papai e mamãe que
ele não queria sair comigo, mas tinha certeza de que eles acabariam por
trazê-lo e por me obrigar a ir com ele até a porta da rua. Nunca haviam me
pedido que o levasse ao centro, era injusto que pedissem pois sabiam muito
bem que a única vez que me obrigaram a levá-lo para passear na calçada
havia acontecido aquela coisa horrível com o gato dos Álvarez. Eu tinha a
sensação de ainda ver a cara do vigia falando com papai na porta, e depois
papai servindo dois copos de cana e mamãe chorando no quarto dela. Era
injusto que pedissem.
Havia chovido pela manhã e as calçadas de Buenos Aires estão cada vez
mais arrebentadas, difícil andar sem enfiar os pés em alguma poça. Eu fazia
o possível para andar pelas partes mais secas e não molhar os sapatos
novos, mas logo vi que ele gostava era de entrar na água, e tive que puxar
com todas as minhas forças para obrigá-lo a andar ao meu lado. Mesmo
assim ele conseguiu se aproximar de um lugar onde havia um ladrilho um
pouco mais afundado que os outros, e quando me dei conta ele já estava
completamente ensopado, com folhas secas por toda parte. Tive que parar,
limpá-lo, e o tempo todo sentia que os vizinhos estavam olhando dos seus
jardins, sem dizer nada mas olhando. Não quero mentir, na verdade eu não
me importava muito com o fato de eles olharem para a gente (que olhassem
para ele, e para mim que o levava para passear); o pior era estar ali parado,
com um lenço que ia se molhando e se enchendo de manchas de barro e
pedaços de folhas secas, e ao mesmo tempo sendo obrigado a segurá-lo para
que ele não fosse de novo para junto da poça. Além disso estou acostumado
a andar pelas ruas com as mãos nos bolsos da calça, assobiando ou
mascando chiclete, ou lendo historinhas enquanto com a parte de baixo dos
olhos vou adivinhando os ladrilhos das calçadas que conheço perfeitamente
da minha casa até o bonde, de modo que sei quando passo na frente da casa
de Tita ou quando vou chegar à esquina da Carabobo. E agora não podia
fazer nada disso, e o lenço estava começando a molhar o forro do meu bolso
e eu sentia a umidade na perna, não dava para acreditar em tanto azar ao
mesmo tempo.
A essa hora o bonde vem bastante vazio, e eu rezava para que a gente
pudesse sentar no mesmo assento, com ele do lado da janela para
incomodar menos. Não é que ele se mexa tanto, mas as pessoas se
incomodam do mesmo jeito e eu entendo. Por isso me preocupei ao subir,
porque o bonde estava quase cheio e não havia nenhum assento duplo
desocupado. A viagem era longa demais para ficarmos em pé perto da porta
do bonde, o cobrador teria me mandado sentar e botá-lo em algum lugar; de
modo que o fiz entrar imediatamente e o levei até um assento do meio onde
uma senhora ocupava o lado da janela. O melhor teria sido eu me sentar
atrás dele para tomar conta, mas o bonde estava cheio e tive que avançar e
me sentar bem mais adiante. Os passageiros não prestavam muita atenção,
àquela hora as pessoas estão fazendo a digestão e ficam meio que
cochilando com os trancos do bonde. O ruim foi que o cobrador parou ao
lado do assento onde eu o instalara, batendo com uma moeda no ferro da
máquina das passagens, e eu tive que me virar e lhe fazer sinais para que
viesse cobrar de mim, mostrando o dinheiro para que entendesse que
precisava me entregar as passagens, mas o cobrador era um desses caipirões
que estão vendo as coisas e não querem entender, e dá-lhe com a moeda
batendo na máquina. Tive que levantar (e agora havia dois ou três
passageiros olhando para mim) e me aproximar do outro assento. “Duas
passagens”, falei. Ele destacou uma, olhou um momento para mim, depois
me estendeu a passagem e olhou para baixo, meio de viés. “Duas, por
favor”, repeti, certo de que o bonde inteiro já estava sabendo. O caipirão
destacou a outra passagem e me entregou, ia dizendo alguma coisa mas
entreguei o dinheiro contado e voltei para meu assento em dois pinotes, sem
olhar para trás. O pior era que a todo momento precisava me virar para ver
se ele continuava quieto no assento de trás, e com isso comecei a chamar a
atenção de alguns passageiros. Primeiro resolvi só me virar ao passar por
uma esquina, mas os quarteirões me pareciam terrivelmente longos e a todo
momento temia ouvir alguma exclamação ou um grito, como naquela vez
do gato dos Álvarez. Aí comecei a contar até dez, como nas lutas, e isso
acabava sendo mais ou menos meio quarteirão. Quando chegava a dez, me
virava disfarçadamente, por exemplo ajeitando o colarinho da camisa ou
enfiando a mão no bolso do casaco, qualquer coisa que desse a impressão
de um tique nervoso ou coisa parecida.
Lá pelos oito quarteirões, não sei por quê, tive a impressão de que a
senhora que estava do lado da janela ia se levantar. Era o pior que poderia
acontecer, porque ela ia dizer alguma coisa para que ele a deixasse passar, e
quando ele não entendesse ou não quisesse entender, talvez a senhora se
irritasse e quisesse passar à força, mas eu sabia o que aconteceria nesse caso
e estava com os nervos à flor da pele, de modo que comecei a olhar para
trás antes de chegar a cada esquina, e numa dessas achei que a senhora já
estava quase se levantando, e teria jurado que ela lhe dizia alguma coisa
porque olhava na direção dele e acho que sua boca estava se mexendo. Bem
nesse momento uma velha gorda se levantou de um dos assentos perto do
meu e começou a andar pelo corredor, e eu atrás querendo empurrá-la, dar
um pontapé nas pernas dela para que andasse logo e me deixasse chegar ao
assento onde a senhora havia apanhado uma cesta ou outra coisa que estava
no chão e já se levantava para sair. No fim acho que a empurrei, ouvi
quando reclamou, não sei como cheguei ao lado do assento e consegui tirá-
lo a tempo para que a senhora pudesse descer na esquina. Então o coloquei
junto da janela e me sentei ao lado dele, todo feliz embora quatro ou cinco
idiotas estivessem olhando para mim dos assentos mais à frente e das duas
extremidades do bonde, onde talvez o caipirão tivesse falado alguma coisa.
Já havíamos chegado ao Once, lá fora havia um sol lindo e as ruas
estavam secas. Àquela hora, se eu estivesse sozinho teria descido do bonde
para continuar a pé até o centro, para mim não custa nada ir a pé do Once
até a Plaza de Mayo, uma vez marquei o tempo e contei trinta e dois
minutos certinhos, claro que correndo de vez em quando, principalmente no
final. Mas agora em compensação precisava tomar conta da janela, porque
um dia alguém havia falado que ele era capaz de abrir a janela de repente e
se jogar para fora, só pelo gosto de fazer isso, como tantos outros gostos
que ninguém consegue entender. Uma ou duas vezes achei que ele estava a
ponto de abrir a janela e tive que passar o braço por trás dele e segurar a
janela pela moldura. Talvez fossem coisas minhas, também não quero jurar
que ele estivesse a ponto de abrir a janela e se jogar. Por exemplo, quando
apareceu o fiscal esqueci completamente do assunto e mesmo assim ele não
se jogou. O fiscal era um sujeito alto e magro que entrou pela frente e
começou a picotar as passagens com aquele ar amável que têm alguns
fiscais. Quando chegou ao meu lugar entreguei as duas passagens e ele
picotou uma, olhou para baixo, depois olhou para a outra passagem, ia
picotá-la e ficou com a passagem enfiada na ranhura do alicate, e eu o
tempo todo rezando para ele picotar a passagem de uma vez e devolver para
mim, estava com a impressão de que as pessoas do bonde olhavam cada vez
mais para nós. No fim ele picotou a passagem e deu de ombros, me
devolveu as duas, e na parte de trás do bonde ouvi alguém soltar uma
gargalhada, mas naturalmente não quis me virar, tornei a passar o braço por
trás dele para segurar a janela, fazendo de conta que não estava mais vendo
o fiscal nem nenhum dos outros. Na esquina da Sarmiento com a Libertad
as pessoas começaram a descer, e quando chegamos à Florida não havia
mais quase ninguém. Esperei até a San Martín e o fiz sair pela frente,
porque não queria passar ao lado do caipirão que podia inventar de me dizer
alguma coisa.
Gosto muito da Plaza de Mayo, quando me falam do centro logo penso na
Plaza de Mayo. Gosto por causa das pombas, por causa da Casa do Governo
e porque traz tantas lembranças da história, das bombas que caíram quando
houve revolução e os caudilhos que haviam dito que iam amarrar seus
cavalos na Pirâmide. Lá tem vendedores de amendoim e de outras coisas,
não é difícil encontrar um banco vazio, e se a pessoa quiser pode andar um
pouco mais e logo chega ao porto e vê os navios e os guindastes. Por isso
achei que o melhor era levá-lo à Plaza de Mayo, longe dos automóveis e
dos coletivos, e ficarmos os dois sentados lá por um tempo até chegar a
hora de pensar em voltar para casa. Mas quando a gente desceu do ônibus e
começou a andar pela San Martín, senti uma espécie de enjoo, de repente
me dava conta de que havia me cansado terrivelmente, quase uma hora de
viagem e o tempo todo tendo que olhar para trás, fazer de conta que não
percebia que as pessoas estavam olhando para nós, e depois o assunto do
cobrador com as passagens, e a senhora que ia descer, e o fiscal. Eu gostaria
tanto de poder entrar numa lanchonete e pedir um sorvete ou um copo de
leite, mas tinha certeza de que não seria possível, de que ia me arrepender
se o fizesse entrar num lugar qualquer onde as pessoas estivessem sentadas
e tivessem mais tempo de olhar para nós. Na rua as pessoas passam umas
pelas outras e cada uma segue seu caminho, principalmente na San Martín,
que está cheia de bancos e escritórios, com todo mundo andando apressado
com pastas debaixo do braço. De modo que fomos andando até a esquina da
Cangallo, e então, quando íamos passando na frente das vitrines da Casa
Peuser, que estavam cheias de tinteiros e outras coisas bonitas, senti que ele
não queria continuar, estava ficando cada vez mais pesado e, por mais que
eu puxasse (tentando não chamar a atenção), ele quase não conseguia
caminhar e no fim tive que parar na frente da última vitrine, fazendo de
conta que olhava os jogos de escritório com relevos em couro. Vai ver que
ele estava um pouco cansado, vai ver que não era capricho. Afinal estarmos
ali parados não tinha nada de mau, mas mesmo assim eu não gostava
porque as pessoas que passavam tinham mais tempo para prestar atenção, e
duas ou três vezes me dei conta de que alguém fazia algum comentário para
outra pessoa, ou dava uma cotovelada para chamar a atenção. No fim não
aguentei mais e peguei-o outra vez, fazendo pose de quem caminha com
naturalidade, mas cada passo era um caro custo, como nesses sonhos em
que a gente está com uns sapatos que pesam toneladas e mal consegue
desgrudar do chão. Com o tempo consegui que passasse o capricho dele de
ficar ali parado, e fomos em frente pela San Martín até a esquina da Plaza
de Mayo. Agora o problema era atravessar, porque ele não gosta de
atravessar uma rua. É capaz de abrir a janela do bonde e se jogar, mas não
gosta de atravessar a rua. O problema é que para chegar à Plaza de Mayo
sempre é preciso atravessar alguma rua com muito tráfego, na Cangallo
com a Bartolomé Mitre não havia sido tão difícil, mas agora eu estava a
ponto de renunciar, ele me pesava terrivelmente na mão, e duas vezes em
que o trânsito fez uma pausa e quem estava ao lado da gente no meio-fio
começou a atravessar, me dei conta de que não íamos conseguir chegar ao
outro lado porque ele ia se plantar bem no meio, e aí preferi continuar
esperando até ele se decidir. E, claro, o cara da banca de revistas da esquina
já estava olhando cada vez mais, e dizia alguma coisa a um garoto da minha
idade que fazia caretas e respondia sei lá o quê, e os carros continuavam
passando e paravam e tornavam a passar, e nós ali plantados. Numa dessas
o guarda ia se aproximar, era o pior que poderia nos acontecer porque os
guardas são muito bons e por isso estragam tudo, começam a fazer
perguntas, querem saber se a pessoa está perdida, e de repente vai que ele
tem um dos seus caprichos e não sei como a coisa pode acabar. Quanto mais
eu pensava, mais me atormentava, e no fim fiquei com medo de verdade,
quase com vontade de vomitar, juro, e num momento em que o tráfego se
interrompeu peguei-o com força, fechei os olhos e puxei-o para a frente,
quase me dobrando ao meio, e quando chegamos à praça eu o soltei,
continuei dando alguns passos sozinho e depois voltei atrás e teria querido
que ele morresse, que já estivesse morto, ou que papai e mamãe estivessem
mortos, e eu também, ao fim e ao cabo, que todos estivessem mortos e
enterrados, menos tia Encarnación.
Mas essas coisas passam logo, vimos que havia um banco muito bonito
completamente vazio, e eu o dominei sem ficar puxando e fomos para
aquele banco olhar as pombas que por sorte não se deixam apanhar como os
gatos. Comprei amendoim e balas, fui dando as duas coisas a ele e ficamos
bastante bem com aquele sol que bate à tarde na Plaza de Mayo e as pessoas
andando de um lado para outro. Não sei em que momento tive a ideia de
abandoná-lo ali, a única coisa de que me lembro é que estava descascando
um amendoim para ele e ao mesmo tempo pensando que se eu fizesse de
conta que ia atirar alguma coisa para as pombas que passavam mais adiante
seria facílimo dar a volta na Pirâmide e perdê-lo de vista. Acho que naquele
momento não pensava em voltar para casa nem na cara de papai e mamãe,
porque se tivesse pensado não teria feito essa besteira. Deve ser muito
difícil ter tudo na cabeça ao mesmo tempo como fazem os sábios e os
historiadores, só pensei que poderia abandoná-lo ali e passear sozinho pelo
centro com as mãos nos bolsos e comprar uma revista ou entrar para tomar
um sorvete em algum lugar antes de voltar para casa. Continuei mais um
tempo dando amendoim para ele mas já estava decidido, e numa dessas fiz
de conta que me levantava para estender as pernas e vi que ele não se
importava em saber se eu continuava ao lado dele ou se me afastava para
dar amendoim para as pombas. Comecei a jogar para elas os amendoins que
me restavam e as pombas me rodearam por todos os lados, até que meu
amendoim acabou e elas cansaram. Da outra ponta da praça só se via o
banco; foi coisa de um momento atravessar a Casa Rosada, onde sempre há
dois granadeiros de guarda, e pela lateral disparei até o Paseo Colón, aquela
rua aonde mamãe diz que os meninos não devem ir sozinhos. Pelo hábito eu
me virava a todo momento, mas era impossível ele me seguir, o máximo
que poderia estar fazendo era rolar pelo chão em volta do banco até que se
aproximasse alguma senhora da beneficência ou algum guarda.
Não me lembro muito bem o que aconteceu naquele momento em que eu
andava pelo Paseo Colón, que é uma avenida como qualquer outra. Numa
dessas eu estava sentado numa vitrine baixa de uma loja de importações e
exportações, e aí meu estômago começou a doer, não como quando a gente
precisa ir correndo ao banheiro, era mais em cima, no estômago de verdade,
como se ele estivesse se retorcendo devagar, e eu queria respirar e não
conseguia, de modo que precisava ficar quieto e esperar que a cãibra
passasse, e à minha frente se via uma espécie de mancha verde e pontinhos
que dançavam, e a cara de papai, no fim era só a cara de papai porque eu
havia fechado os olhos, acho, e no meio da mancha verde estava a cara de
papai. Pouco depois consegui respirar melhor, e uns rapazes olharam um
tempo para mim e um deles disse para o outro que eu estava passando mal,
mas eu mexi a cabeça e disse que não era nada, que eu sempre tinha cãibra
mas que logo passava. Um deles me perguntou se eu queria que ele fosse
buscar um copo d’água e o outro me aconselhou a secar a testa, porque eu
estava transpirando. Sorri e falei para ele que já estava bem, e saí andando
para que eles fossem embora e me deixassem sozinho. Era verdade que eu
estava transpirando porque havia água escorrendo pelas minhas
sobrancelhas e uma gota salgada entrou num dos meus olhos, e então puxei
o lenço e passei pelo rosto, e senti um arranhão no lábio, e quando olhei era
uma folha seca grudada no lenço que havia arranhado minha boca.
Não sei quanto tempo demorei para chegar de novo à Plaza de Mayo. Na
metade da subida caí, mas me levantei de novo antes que alguém se desse
conta e atravessei correndo entre os carros que passavam na frente da Casa
Rosada. De longe vi que ele não havia se movido do banco, mas continuei
correndo e correndo até chegar ao banco, e me joguei feito morto enquanto
as pombas saíam voando assustadas e as pessoas se viravam com aquela
cara que elas fazem para olhar as crianças que correm, como se fosse um
pecado. Um tempo depois, limpei-o um pouco e disse que precisávamos
voltar para casa. Disse só para escutar minha própria voz e sentir-me ainda
mais contente, porque com ele a única coisa que funcionava era segurá-lo
bem e levá-lo, as palavras ele não escutava ou fazia de conta que não
escutava. Por sorte daquela vez ele não criou dificuldade para atravessar as
ruas, e o bonde estava quase vazio no início do trajeto, de modo que o
instalei no primeiro assento e me sentei ao lado dele e não me virei nem
uma vez na viagem toda, nem mesmo quando descemos. No último
quarteirão a gente avançou muito devagar, com ele querendo entrar nas
poças e eu lutando para que ele passasse pelos ladrilhos secos. Mas não
tinha importância, não tinha a menor importância. Pensava o tempo todo:
“Abandonei ele”, olhava-o e pensava “Abandonei ele”, e mesmo sem ter me
esquecido do Paseo Colón me sentia tão bem, quase orgulhoso. Quem sabe
de uma outra vez… Não era fácil, mas quem sabe… Sabe-se lá com que
olhos papai e mamãe olhariam para mim quando me vissem chegar com ele
pela mão. Claro que ficariam contentes com o fato de eu tê-lo levado para
passear no centro, os pais sempre ficam contentes com essas coisas; mas
não sei por que naquele momento me deu um negócio de pensar que às
vezes papai e mamãe também tiravam o lenço para se secar, e que nesse
lenço também havia uma folha seca que machucava o rosto deles.
Axolotes
H
ouve um tempo em que eu pensava muito nos axolotes. Ia vê-los
no aquário do Jardin des Plantes e passava horas olhando para
eles, observando sua imobilidade, seus obscuros movimentos.
Agora sou um axolote.
O acaso me levou até eles numa manhã de primavera em que Paris abria
sua cauda de pavão-real depois da lenta invernada. Desci pelo bulevar de
Port-Royal, peguei o St. Marcel e o L’Hôpital, vi os verdes em meio a tanto
cinza e me lembrei dos leões e das panteras, mas nunca havia entrado no
úmido e sombrio prédio dos aquários. Deixei a bicicleta encostada na grade
e fui ver as tulipas. Os leões estavam feios e tristes e minha pantera dormia.
Optei pelos aquários, vislumbrei peixes vulgares até dar inesperadamente
com os axolotes. Passei uma hora olhando-os e saí, incapaz de outra coisa.
Na biblioteca Sainte-Geneviève consultei um dicionário e fiquei sabendo
que os axolotes são formas larvais, providas de brânquias, de uma espécie
de batráquios do gênero amblistoma. Que eram mexicanos eu já sabia por
eles mesmos, por seus pequenos rostos rosados astecas e pela tabuleta no
alto do aquário. Li que foram encontrados exemplares na África capazes de
viver em terra durante os períodos de seca, e que retomam sua vida na água
ao chegar a estação das chuvas. Encontrei seu nome espanhol, ajolote, a
menção de que são comestíveis e de que seu óleo era usado (aparentemente
não se usa mais) como o de fígado de bacalhau.
Não quis consultar obras especializadas, mas voltei no dia seguinte ao
Jardin des Plantes. Comecei a ir todas as manhãs, às vezes pela manhã e à
tarde. O vigia dos aquários sorria perplexo ao receber o ingresso. Eu me
apoiava na barra de ferro que circunda os aquários e ficava olhando para
eles. Nada de estranho nisso, porque desde o primeiro momento
compreendi que estávamos vinculados, que uma coisa infinitamente perdida
e remota continuava a nos unir, apesar de tudo. Bastara eu me deter naquela
primeira manhã diante do vidro onde algumas bolhas se moviam na água.
Os axolotes estavam amontoados no exíguo e estreito (só eu posso saber
quão estreito e exíguo) chão de pedra e musgo do aquário. Havia nove
exemplares, e a maioria apoiava a cabeça de encontro ao vidro, olhando
com seus olhos de ouro aqueles que se aproximavam. Abalado, quase
envergonhado, senti uma espécie de impudicícia ao debruçar-me sobre
aquelas figuras silenciosas e imóveis aglomeradas no fundo do aquário.
Isolei mentalmente uma delas, posicionada à direita e um pouco separada
das demais, para estudá-la melhor. Vi um pequeno corpo rosado e quase
translúcido (pensei nas estatuetas chinesas de vidro leitoso), semelhante a
um pequeno lagarto de quinze centímetros, que terminava numa cauda de
peixe de uma delicadeza extraordinária, a parte mais sensível de nosso
corpo. Uma aleta transparente que se fundia à cauda percorria seu dorso,
mas o que me fascinou foram as patas, de uma fineza sutilíssima,
arrematadas por pequenos dedos, por unhas minuciosamente humanas. E
então descobri seus olhos, seu semblante. Um rosto inexpressivo cujo único
traço eram os olhos, dois orifícios do tamanho de cabeças de alfinete,
inteiramente de um ouro transparente, isentos de toda vida mas olhando,
deixando-se penetrar por meu olhar que parecia passar através do ponto
áureo e perder-se num diáfano mistério interior. Um finíssimo halo negro
circundava o olho e o inscrevia na carne rosa, na pedra rosa da cabeça
vagamente triangular mas com lados curvos e irregulares que lhe davam
total semelhança com uma estatueta corroída pelo tempo. A boca ficava
dissimulada pelo plano triangular do semblante, só de perfil era possível
adivinhar seu tamanho considerável; de frente, uma fina fissura rasgava de
leve a pedra sem vida. Dos dois lados da cabeça, onde deveriam estar as
orelhas, cresciam três raminhos rubros da cor do coral, uma excrescência
vegetal, as brânquias, suponho. E era a única coisa viva nele, a cada dez ou
quinze segundos os raminhos se aprumavam rigidamente e tornavam a se
abaixar. Às vezes uma pata se movia de leve, eu via os minúsculos dedos
pousando com suavidade sobre o musgo. É que não gostamos de nos mexer
muito, e o aquário é tão exíguo; é só avançar um pouco e topamos com a
cauda ou a cabeça de outro de nós; surgem dificuldades, lutas, cansaço.
Sente-se menos o tempo se ficamos quietos.
Foi sua imobilidade que me levou a inclinar-me fascinado na primeira vez
que vi os axolotes. Imprecisamente tive a sensação de compreender seu
desejo secreto: abolir o espaço e o tempo com uma imobilidade indiferente.
Depois soube melhor, a contração das brânquias, os ensaios das finas patas
nas pedras, a repentina natação (alguns deles nadam com a mera ondulação
do corpo) me mostraram que eles eram capazes de fugir àquele torpor
mineral em que passavam horas inteiras. Seus olhos, sobretudo, me
obcecavam. Ao lado deles, nos demais aquários, diversos peixes me
apresentavam a singela estupidez de seus belos olhos semelhantes aos
nossos. Os olhos dos axolotes falavam-me da presença de uma vida
diferente, de outra maneira de olhar. Colando meu rosto ao vidro (às vezes o
vigia tossia, inquieto), eu procurava ver melhor os minúsculos pontos
áureos, aquela entrada ao mundo infinitamente lento e remoto das criaturas
rosadas. Era inútil bater com o dedo no vidro diante da cara deles; jamais se
percebia a menor reação. Os olhos de ouro continuavam ardendo com sua
doce, terrível luz; de uma profundeza insondável, que me dava vertigem,
continuavam me olhando.
E contudo estavam perto. Fiquei sabendo antes disso, antes de ser um
axolote. Soube-o no dia em que me aproximei deles pela primeira vez. Os
traços antropomórficos de um macaco revelam, ao contrário do que acredita
a maioria, a distância que os separa de nós. A absoluta falta de semelhança
de um axolote com um ser humano me provou que meu reconhecimento era
válido, que eu não estava me apoiando em analogias fáceis. Só as
mãozinhas… Mas uma lagartixa também tem mãos assim, e não se parece
em nada conosco. Acho que era a cabeça dos axolotes, aquela forma
triangular rosada com os olhinhos de ouro. Aquilo olhava e sabia. Aquilo
reclamava. Não eram animais.
Parecia fácil, quase óbvio, cair na mitologia. Comecei vendo nos axolotes
uma metamorfose que não conseguia cancelar uma misteriosa humanidade.
Imaginei-os conscientes, escravos de seu corpo, infinitamente condenados a
um silêncio abissal, a uma reflexão desesperada. Seu olhar cego, o diminuto
disco de ouro inexpressivo e ao mesmo tempo terrivelmente lúcido, me
penetrava como uma mensagem: “Nos salve, nos salve”. Eu me surpreendia
sussurrando palavras de consolo, transmitindo pueris esperanças. Eles
continuavam olhando para mim, imóveis; de repente os raminhos rosados
das brânquias se perfilavam. Nesse momento eu sentia uma espécie de dor
surda; talvez eles me vissem, talvez captassem meu esforço por penetrar no
impenetrável de sua vida. Não eram seres humanos, mas eu não encontrara
em nenhum animal uma relação tão profunda comigo. Os axolotes pareciam
testemunhas de alguma coisa, e às vezes juízes horríveis. Eu me sentia
ignóbil diante deles; havia uma pureza tão tremenda naqueles olhos
transparentes. Eram larvas, mas larva significa máscara e também fantasma.
Por trás daqueles rostos astecas, inexpressivos e ao mesmo tempo de uma
crueldade implacável, que imagem esperava sua vez?
Eu os temia. Creio que se não tivesse sentido a proximidade de outros
visitantes e do vigia, não teria me atrevido a ficar a sós com eles. “O senhor
os come com os olhos”, dizia-me, rindo, o vigia, que decerto me achava um
pouco desequilibrado. Não se dava conta de que eram eles que me
devoravam lentamente pelos olhos, num canibalismo de ouro. Longe do
aquário eu não fazia outra coisa senão pensar neles, era como se eles me
controlassem à distância. Cheguei a ir todos os dias, e à noite os imaginava
imóveis no escuro, adiantando lentamente uma mão que de repente
encontrava a de outro. Talvez seus olhos vissem em plena noite, e o dia
continuasse para eles indefinidamente. Os olhos dos axolotes não têm
pálpebras.
Agora sei que não houve nada de estranho, que isso tinha de acontecer. A
cada manhã, quando eu me inclinava sobre o aquário, o reconhecimento era
maior. Eles sofriam, cada fibra de meu corpo chegava até aquele sofrimento
amordaçado, aquela tortura rígida no fundo da água. Espiavam alguma
coisa, um remoto senhorio aniquilado, um tempo de liberdade no qual o
mundo pertencera aos axolotes. Não era possível que uma expressão tão
terrível, capaz de vencer a inexpressividade forçada de seus rostos de pedra,
não fosse portadora de uma mensagem de dor, a prova daquela condenação
eterna, daquele inferno líquido que padeciam. Inutilmente eu queria provar
para mim mesmo que minha própria sensibilidade projetava nos axolotes
uma consciência inexistente. Eles e eu sabíamos. Por isso não houve nada
de estranho no que aconteceu. Meu rosto estava colado ao vidro do aquário,
meus olhos tentavam uma vez mais penetrar no mistério daqueles olhos de
ouro sem íris e sem pupila. Via de muito perto o rosto de um axolote imóvel
junto ao vidro. Sem transição, sem surpresa, vi meu rosto contra o vidro, em
vez de axolote vi meu rosto contra o vidro, vi-o fora do aquário, vi-o do
outro lado do vidro. Então meu rosto se afastou e eu compreendi.
Só uma coisa era estranha: continuar pensando como antes, saber. Dar-me
conta disso foi, num primeiro momento, como o horror do enterrado vivo
que desperta para seu destino. Do lado de fora, meu rosto se aproximava
novamente do vidro; eu via minha boca de lábios apertados no esforço de
compreender os axolotes. Eu era um axolote e sabia agora instantaneamente
que nenhuma compreensão era possível. Ele estava fora do aquário, seu
pensamento era um pensamento fora do aquário. Conhecendo-o, sendo ele
mesmo, eu era um axolote e estava em meu mundo. O horror decorria —
soube-o no mesmo instante — de acreditar-me prisioneiro num corpo de
axolote, transmigrado para ele com meu pensamento de homem, enterrado
vivo num axolote, condenado a mover-me lucidamente entre criaturas
insensíveis. Mas aquilo cessou quando uma pata veio roçar meu rosto,
quando ao mover-me de leve para um lado vi um axolote a meu lado
olhando para mim, e soube que também ele sabia, sem comunicação
possível mas tão claramente. Ou eu também estava nele, ou todos nós
pensávamos como um homem, incapazes de expressão, limitados ao reflexo
dourado de nossos olhos que olhavam o rosto do homem colado ao aquário.
Ele voltou muitas vezes, mas agora vem menos. Passa semanas sem
aparecer. Ontem o vi, me olhou durante muito tempo e foi embora
bruscamente. Tive a impressão de que já não se interessava tanto por nós,
de que obedecia a um hábito. Como a única coisa que faço é pensar, pude
pensar muito nele. Me ocorre que no início mantivemos a comunicação, que
ele se sentia mais que nunca unido ao mistério que o obcecava. Mas as
pontes entre mim e ele estão cortadas, porque o que era sua obsessão agora
é um axolote, alheio a sua vida de homem. Acho que no início eu era capaz
de voltar a ele, de certo modo — ah, só de certo modo —, e manter vivo seu
desejo de conhecer-nos melhor. Agora sou definitivamente um axolote, e se
penso como um homem é só porque todo axolote pensa como um homem
no interior de sua imagem de pedra rosa. Parece-me que consegui
comunicar-lhe um pouco disso tudo nos primeiros dias, quando eu ainda era
ele. E nessa solidão final a que ele já não volta, consola-me pensar que
talvez escreva sobre nós, que acreditando imaginar um conto escreva tudo
isso sobre os axolotes.
N
a metade do amplo saguão do hotel pensou que devia ser tarde e
apressou-se em sair para a rua e tirar a motocicleta do canto onde
o zelador do prédio ao lado o deixava guardá-la. Na joalheria da
esquina viu que eram dez para as nove; chegaria com folga a seu
destino. O sol se filtrava entre os edifícios altos do centro, e ele — porque
para si mesmo, para ir pensando, não tinha nome — montou na máquina
saboreando o passeio. A moto ronronava entre suas pernas e um vento
fresco chicoteava sua calça.
Deixou passar os ministérios (o rosa, o branco) e a sequência de lojas com
brilhantes vitrines da rua Central. Agora entrava na parte mais agradável do
trajeto, o verdadeiro passeio: uma rua larga, bordejada de árvores, com
pouco trânsito e amplos casarões com jardins que vinham até as calçadas,
demarcadas apenas por sebes baixas. Talvez um pouco distraído, mas
circulando pela direita como se deve, deixou-se levar pela pureza, pela leve
crispação daquele dia que mal começava. Quem sabe seu involuntário
relaxamento o tenha impedido de evitar o acidente. Quando viu que a
mulher parada na esquina se precipitava para a rua apesar do sinal verde, já
era tarde para as soluções fáceis. Freou com o pé e com a mão, desviando
para a esquerda; ouviu o grito da mulher, e simultaneamente à pancada
perdeu a visão. Foi como adormecer de repente.
Voltou a si do desmaio de supetão. Quatro ou cinco homens jovens o
retiravam de debaixo da moto. Sentia gosto de sal e sangue, doía-lhe um
joelho, e quando o ergueram gritou, porque não conseguia aguentar a
pressão no braço direito. Vozes que não pareciam pertencer aos rostos
suspensos sobre ele o alentavam com brincadeiras e certezas. Seu único
alívio foi ouvir que o sinal estava verde para ele ao cruzar a esquina.
Perguntou pela mulher, tentando dominar a náusea que tomava sua
garganta. Enquanto o levavam de barriga para cima até uma farmácia
próxima, soube que a causadora do acidente não sofrera mais que arranhões
nas pernas. “O senhor pegou ela de leve, mas a pancada fez o senhor cair de
lado da moto…” Opiniões, lembranças, devagar, entrem com ele de costas,
assim está bem, e alguém de guarda-pó dando-lhe uma bebida que o
aliviou, na penumbra de uma pequena farmácia de bairro.
A ambulância policial chegou cinco minutos depois e ele foi posto numa
maca macia onde pôde se estender à vontade. Com toda a lucidez, mas
sabendo que estava sob os efeitos de um choque terrível, forneceu seus
dados ao policial que o acompanhava. O braço quase não doía; de um corte
na sobrancelha gotejava sangue pelo rosto todo. Uma ou duas vezes lambeu
os lábios para bebê-lo. Sentia-se bem, era um acidente, falta de sorte,
algumas semanas imóvel, só isso. O guarda lhe disse que a motocicleta não
parecia muito avariada. “Claro”, disse ele. “Fiquei por baixo e amorteci…”
Os dois riram, e o guarda apertou sua mão ao chegar ao hospital e lhe
desejou boa sorte. A náusea estava voltando pouco a pouco; enquanto o
levavam numa maca de rodas até um pavilhão do fundo, passando por baixo
de árvores cheias de pássaros, fechou os olhos e desejou estar dormindo ou
cloroformizado. Mas ficaram com ele por muito tempo num aposento com
cheiro de hospital, preenchendo uma ficha, tirando sua roupa e vestindo-lhe
uma camisa acinzentada e dura. Moviam seu braço com cuidado, sem que
doesse. As enfermeiras brincavam o tempo todo, e se não fossem as
contrações do estômago ele teria se sentido muito bem, quase feliz.
Levaram-no para a sala do raio X, e vinte minutos depois, com a chapa
ainda úmida apoiada sobre o peito como uma lápide negra, passou para a
sala de operações. Alguém de branco, alto e magro, aproximou-se dele e
começou a olhar a radiografia. Mãos de mulher acomodavam sua cabeça,
sentiu que o passavam de uma maca para outra. O homem de branco veio
de novo para perto dele, sorrindo, tendo na mão direita uma coisa que
brilhava. Deu-lhe tapinhas na bochecha e fez um sinal para alguém de pé
atrás dele.
Como sonho era curioso, porque era cheio de odores e ele nunca sonhava
odores. Primeiro um cheiro de pântano, já que à esquerda da faixa
começavam os manguezais, os tremedais de onde ninguém voltava. Mas o
odor cessou, e em seu lugar veio uma fragrância composta e escura como a
noite em que se movia, fugindo dos astecas. E tudo era tão natural, ele
precisava fugir dos astecas que andavam à caça de homem, e sua única
probabilidade era esconder-se na parte mais densa da floresta, tomando
cuidado para não se afastar da faixa estreita que só eles, os motecas,
conheciam.
O que mais o torturava era o cheiro, como se mesmo na absoluta aceitação
do sonho algo se rebelasse contra aquilo que não era habitual, que até então
não entrara no jogo. “Cheiro de guerra”, pensou, tocando instintivamente o
punhal de pedra preso no cinto de lã tramada. Um ruído inesperado o fez
agachar-se e ficar imóvel, trêmulo. Ter medo não era estranho, seus sonhos
estavam recheados de medo. Esperou, encoberto pelos galhos de um
arbusto e pela noite sem estrelas. Muito longe, provavelmente do outro lado
do grande lago, deviam estar ardendo fogueiras de acampamento; um
reflexo avermelhado tingia aquele setor do céu. O ruído não se repetiu.
Havia sido como um galho quebrado. Talvez um animal que como ele fugia
do cheiro da guerra. Ergueu-se devagar, farejando o vento. Não se ouvia
nada, mas o medo continuava ali tal como o odor, aquele incenso adocicado
da guerra florida. Era preciso continuar, chegar ao coração da selva
evitando os pântanos. Tateando, agachando-se a todo momento para tocar o
solo mais duro da faixa, deu alguns passos. Gostaria de ter largado a correr,
mas os tremedais palpitavam ao lado. Na trilha envolta pelas trevas, tentou
se orientar. Então sentiu uma lufada pavorosa do cheiro que mais temia, e
saltou desesperado para a frente.
— Não vá cair da cama — disse o doente ao lado. — Não se mexa tanto,
amigão.
Abriu os olhos e era de tarde, com o sol já baixo nos janelões da ampla
sala. Enquanto tratava de sorrir para o vizinho, desprendeu-se quase
fisicamente da última visão do pesadelo. O braço, engessado, pendia de um
aparelho com pesos e polias. Sentiu sede, como se tivesse corrido
quilômetros, mas não queriam lhe dar muita água, só para molhar os lábios
e fazer um bochecho. A febre ia tomando conta dele devagar e teria podido
adormecer de novo, mas saboreava o prazer de ficar acordado, olhos
semiabertos, ouvindo a conversa dos outros doentes, respondendo de vez
em quando a alguma pergunta. Viu chegar um carrinho branco que puseram
ao lado de sua cama, uma enfermeira loura esfregou com álcool a face
anterior de sua coxa e lhe cravou uma grossa agulha conectada a um tubo
que subia até um frasco cheio de líquido opalino. Um médico jovem veio
com um aparelho de metal e couro que ajustou a seu braço bom para
verificar alguma coisa. A noite caía e a febre o arrastava suavemente para
um estado onde as coisas tinham um destaque de binóculo de teatro, eram
reais e suaves e ao mesmo tempo levemente repugnantes; como estar vendo
um filme chato e pensar que apesar de tudo na rua é pior; e ficar.
Veio uma xícara de um maravilhoso caldo dourado cheirando a alho-poró,
a aipo, a salsinha. Um pedacinho de pão, mais precioso que todo um
banquete, foi se esfarelando pouco a pouco. O braço não estava doendo
nada e só na sobrancelha, onde haviam suturado, rangia às vezes uma
fisgada quente e rápida. Quando os janelões da frente viraram manchas de
um azul-escuro, pensou que não teria dificuldade para adormecer. Um
pouco incômodo, de costas, mas ao passar a língua pelos lábios ressecados
e quentes sentiu o sabor do caldo e suspirou de felicidade, abandonando-se.
Primeiro foi uma confusão, um puxar para si todas as sensações, por um
instante embotadas ou embaralhadas. Compreendia que estava correndo em
plena escuridão, embora no alto o céu cortado por copas de árvores fosse
menos negro que o resto. “A faixa”, pensou. “Me afastei da faixa.” Seus pés
se afundavam num colchão de folhas e barro e já não conseguia dar um
passo sem que os ramos dos arbustos lhe açoitassem o torso e as pernas.
Ofegante, sabendo-se encurralado apesar da escuridão e do silêncio, se
agachou para escutar. Talvez a faixa estivesse perto, com a primeira luz do
dia poderia voltar a vê-la. Naquele momento nada podia ajudá-lo a
encontrá-la. A mão que, sem saber, ele aferrava ao cabo do punhal, subiu
como o escorpião dos pântanos até seu pescoço, de onde pendia o amuleto
protetor. Movendo de leve os lábios, sussurrou a oração do milho que traz
as luas felizes, e a súplica à Altíssima, dispensadora dos bens motecas. Mas
sentia ao mesmo tempo que seus tornozelos estavam afundando devagar no
barro, e a espera na escuridão do matagal desconhecido estava ficando
insuportável. A guerra florida havia começado com a lua e já se estendia
por três dias e três noites. Se conseguisse refugiar-se nas profundezas da
selva, abandonando a faixa situada depois da região dos pântanos, talvez os
guerreiros não seguissem seu rastro. Pensou nos muitos prisioneiros que
eles já teriam feito. Mas a quantidade não importava, só o tempo sagrado. A
caça continuaria até que os sacerdotes dessem o sinal do regresso. Tudo
tinha seu número e seu fim, e ele estava dentro do tempo sagrado, do outro
lado dos caçadores.
Ouviu os gritos e se levantou num salto, punhal na mão. Como se o céu se
incendiasse no horizonte, viu tochas movendo-se entre os ramos, muito
perto. O cheiro de guerra era insuportável, e quando o primeiro inimigo
saltou em seu pescoço quase sentiu prazer em lhe enterrar a lâmina de pedra
em pleno peito. Já o cercavam as luzes, os gritos alegres. Chegou a cortar o
ar uma ou duas vezes, quando uma corda o apanhou por trás.
— É a febre — disse o da cama ao lado. — Comigo foi a mesma coisa
quando operei o duodeno. Tome água e vai ver que dorme bem.
Em comparação com a noite de onde voltava, a penumbra morna da sala
lhe pareceu deliciosa. Uma lâmpada violeta velava no alto da parede do
fundo, como um olho protetor. Ouviam-se tosses, respirações fundas, às
vezes um diálogo em voz baixa. Tudo era grato e seguro, sem aquele
assédio, sem… Mas não queria continuar pensando no pesadelo. Havia
tantas coisas com que se distrair. Começou a olhar o gesso do braço, as
polias que o sustentavam no ar com tanta comodidade. Haviam deixado
uma garrafa de água mineral sobre sua mesa de cabeceira. Bebeu no
gargalo, sequiosamente. Agora conseguia distinguir as formas da sala, as
trinta camas, os armários com portas de vidro. Não devia mais estar com
tanta febre, sentia o rosto fresco. A sobrancelha doía só um pouquinho, era
como uma lembrança. Viu-se outra vez saindo do hotel, pegando a moto.
Quem teria imaginado que a coisa ia acabar assim? Procurava determinar o
momento do acidente e se irritou ao perceber que havia ali uma espécie de
buraco, um vazio que não conseguia preencher. Entre o choque e o
momento em que o haviam tirado do chão, um desmaio ou o que fosse não
o deixava ver nada. E ao mesmo tempo tinha a sensação de que aquele
buraco, aquele nada, durara uma eternidade. Não, nem mesmo tempo, era
como se nesse buraco ele tivesse passado através de alguma coisa ou
percorrido distâncias imensas. O choque, a pancada brutal contra o
pavimento. De todo modo, ao sair do poço negro sentira quase um alívio
enquanto os homens o erguiam do chão. Com a dor do braço partido, o
sangue da sobrancelha ferida, a contusão no joelho; com tudo isso, um
alívio ao regressar ao dia e sentir-se amparado e ajudado. E era estranho.
Algum dia perguntaria ao médico do escritório. Agora o sono voltava a
tomá-lo, a puxá-lo para baixo devagar. O travesseiro era tão macio, e em
sua garganta febril o frescor da água mineral. Talvez conseguisse descansar
de verdade, sem os malditos pesadelos. A luz violeta da lâmpada no alto ia
se apagando pouco a pouco.
Como dormia de costas, não se surpreendeu com a posição em que
tornava a reconhecer-se, mas em compensação o cheiro de umidade, de
pedra exsudando infiltrações, bloqueou sua garganta e o obrigou a
compreender. Inútil abrir os olhos e olhar em todas as direções; envolvia-o
uma escuridão absoluta. Quis erguer o corpo e sentiu as cordas nos pulsos e
nos tornozelos. Estava estaqueado no chão, num piso de lajotas, gelado e
úmido. O frio tomava suas costas nuas, suas pernas. Desajeitado, procurou
fazer o queixo entrar em contato com o amuleto e constatou que o haviam
arrancado. Agora estava perdido, nenhuma oração poderia salvá-lo no final.
Remotamente, como que se infiltrando entre as pedras do calabouço, ouviu
os atabaques da festa. Haviam-no trazido para o teocalli, estava nas
masmorras do templo à espera de sua vez.
Ouviu um grito, um grito rouco que ricocheteava nas paredes. Outro grito,
que acabava num gemido. Era ele gritando nas trevas, gritando porque
estava vivo, todo o seu corpo se defendia, com o grito, do que estava por
vir, do final inevitável. Pensou em seus companheiros enchendo outras
masmorras e nos que já galgavam os degraus do sacrifício. Gritou de novo
sufocadamente, quase não conseguia abrir a boca, suas mandíbulas estavam
travadas e ao mesmo tempo era como se fossem de borracha e se abrissem
lentamente, com um esforço interminável. O ranger dos ferrolhos sacudiu-o
como uma chibatada. Convulso, contorcendo-se, lutou para livrar-se das
cordas que se enterravam em sua carne. Seu braço direito, o mais forte,
forcejava, até que a dor ficou intolerável e ele foi obrigado a ceder. Viu
abrir-se a porta dupla, e o cheiro das tochas atingiu-o antes da luz.
Envergando apenas as tangas cerimoniais, os acólitos dos sacerdotes se
aproximaram, olhando para ele com desprezo. As luzes se refletiam nos
torsos suados, nos cabelos negros repletos de plumas. Folgaram as cordas e
em seu lugar agarraram-no mãos quentes, duras como bronze; sentiu-se
erguido, sempre de barriga para cima, puxado pelos quatro acólitos que o
transportavam pela galeria. Os homens com as tochas iam à frente,
iluminando vagamente o corredor de paredes molhadas e teto tão baixo que
os acólitos precisavam inclinar a cabeça. Agora o levavam, levavam, era o
fim. Barriga para cima, a um metro do teto de rocha viva que por momentos
se iluminava com um reflexo de tocha. Quando em vez do teto nascessem
as estrelas e se erguesse diante dele a escadaria incendiada de gritos e
danças, seria o fim. A galeria não acabava nunca, mas já ia acabar, de
repente respiraria o ar cheio de estrelas, mas ainda não, avançavam
levando-o sem fim na penumbra vermelha, puxando-o com brutalidade, e
ele não queria, mas como impedir aquilo se haviam arrancado seu amuleto
que era seu verdadeiro coração, o centro da vida?
Saiu num pinote para a noite do hospital, para o forro alto e aconchegante,
para a sombra amena que o rodeava. Pensou que devia ter gritado, porque
seus vizinhos dormiam calados. Na mesa de cabeceira a garrafa de água
tinha alguma coisa de bolha, de imagem translúcida contra a sombra
azulada dos janelões. Arquejou, em busca do alívio dos pulmões, tentando
esquecer aquelas imagens que continuavam grudadas a suas pálpebras. Toda
vez que fechava os olhos, via-as formar-se imediatamente e erguia o torso
aterrado mas ao mesmo tempo gozando do fato de saber que agora estava
desperto, que a vigília o protegia, que em breve amanheceria e viria o bom
sono profundo que se tem nessa hora, sem imagens, sem nada… Difícil
manter os olhos abertos, o torpor era mais forte que ele. Fez um último
esforço, com a mão boa esboçou um gesto na direção da garrafa de água;
não chegou a tomá-la, seus dedos se fecharam sobre um vazio novamente
negro, e a galeria continuava interminável, rocha atrás de rocha, com
súbitas fulgurações avermelhadas, e ele de barriga para cima gemeu sem
ruído porque o teto ia acabar, subia, abrindo-se como uma boca de sombra,
e os acólitos endireitavam o corpo e das alturas uma lua minguante caiu-lhe
sobre o rosto onde os olhos não queriam vê-la, desesperadamente se
fechavam e se abriam tentando passar para o outro lado, descobrir de novo
o forro protetor da sala. E a cada vez que se abriam era a noite e a lua
enquanto subiam com ele pela escadaria, agora com a cabeça pendendo
para baixo, e no alto estavam as fogueiras, as rubras colunas de fumaça
perfumada, e de repente viu a pedra vermelha, brilhante de sangue que
escorria, e o vaivém dos pés do sacrificado que arrastavam para jogá-lo
rolando pelas escadarias do norte. Com uma última esperança apertou as
pálpebras, gemendo para despertar. Durante um segundo acreditou que
conseguiria, porque uma vez mais estava imóvel na cama, a salvo do
balanço de cabeça para baixo. Mas sentia o cheiro da morte, e quando abriu
os olhos viu a figura ensanguentada do sacrificador vindo em sua direção
com a faca de pedra na mão. Conseguiu fechar novamente as pálpebras,
apesar de agora saber que não ia despertar, que estava desperto, que o sonho
maravilhoso fora o outro, absurdo como todos os sonhos; um sonho em que
percorrera estranhas avenidas de uma cidade assombrosa, com luzes verdes
e vermelhas que ardiam sem chama nem fumaça, com um enorme inseto de
metal zumbindo sob suas pernas. Na mentira infinita daquele sonho também
fora erguido do chão, alguém também se aproximara com uma faca na mão,
com ele estendido de barriga para cima, com ele de barriga para cima de
olhos fechados em meio às fogueiras.
Fim do jogo
N
os dias de calor, Leticia, Holanda e eu íamos brincar nos trilhos
do Central Argentino, esperando que mamãe e tia Ruth
começassem a sesta para escapar pela porta branca. Mamãe e tia
Ruth estavam sempre cansadas depois de lavar a louça,
principalmente quando Holanda e eu enxugávamos os pratos, porque nesses
dias havia discussões, colherinhas pelo chão, frases que só nós
entendíamos, e em geral um ambiente no qual o cheiro de gordura, os
miados de José e a penumbra da cozinha acabavam numa violentíssima
briga e na consequente comoção. Holanda se especializava em armar esse
tipo de encrenca, por exemplo deixando cair um copo já lavado na bacia de
água suja ou relembrando como quem não quer nada que na casa das de
Loza havia duas empregadas para todo o serviço. Eu adotava outros
sistemas, preferia dar a entender a tia Ruth que suas mãos iam descamar se
ela continuasse areando panelas em vez de se dedicar aos copos ou aos
pratos, que era precisamente o que mamãe gostava de lavar, com o que
contrapunha as duas surdamente numa disputa de saber quem fazia a tarefa
mais fácil. O recurso heroico, se os conselhos e as longas rememorações
familiares começassem a nos saturar, era derramar água fervente no lombo
do gato. É uma grande mentira, aquilo do gato escaldado, a não ser que seja
o caso de tomar a referência à água fria ao pé da letra; porque da quente
José nunca se distanciava, e até dava a impressão de se oferecer, pobre
bichinho, a que derramássemos em cima dele meia xícara de água a cem
graus de temperatura ou um pouco menos, bastante menos, provavelmente,
porque o pelo dele nunca caía. A coisa é que Troia pegava fogo, e na
confusão, coroada pelo esplêndido si bemol de tia Ruth e a disparada de
mamãe em busca da vara dos castigos, Holanda e eu desaparecíamos na
galeria coberta rumo aos aposentos vazios do fundo, onde Leticia nos
esperava lendo Ponson du Terrail, leitura inexplicável.
O normal era mamãe nos perseguir por um bom trecho, mas seu desejo de
quebrar nossa cabeça acabava com enorme rapidez, e no fim (havíamos
trancado a porta e pedíamos desculpas com emocionantes falas teatrais) se
cansava e ia embora, repetindo a mesma frase.
— Essas mal-educadas ainda acabam na rua.
Íamos era para os trilhos do Central Argentino, quando a casa ficava em
silêncio e víamos o gato se esticar debaixo do limoeiro para fazer também
ele sua sesta perfumada sob os zumbidos das vespas. Abríamos devagarinho
a porta branca, e ao tornar a fechá-la era como um vento, uma liberdade que
nos levava pelas mãos, pelo corpo inteiro e nos lançava para diante. Então
corríamos procurando ganhar impulso para escalar de uma vez só o breve
talude da ferrovia, e empoleiradas sobre o mundo contemplávamos
silenciosas nosso reino.
Nosso reino era assim: uma grande curva dos trilhos acabava sua inflexão
bem na frente dos fundos da nossa casa. Não havia nada além do cascalho,
dos dormentes e das duas vias; grama rala e bobinha entre os pedaços de
paralelepípedo onde a mica, o quartzo e o feldspato — que são os
componentes do granito — brilhavam como diamantes legítimos ao sol das
duas da tarde. Quando nos agachávamos para pôr a mão nos trilhos (sem
perda de tempo, pois teria sido perigoso ficar muito tempo por ali, não tanto
pelos trens como pelo pessoal de casa, caso chegassem a nos ver), subia ao
nosso rosto o fogo das pedras, e quando ficávamos de frente para o vento
que vinha do rio era um calor molhado que se grudava a nossa face e a
nossas orelhas. Gostávamos de flexionar as pernas e descer, subir, descer de
novo, entrando numa e noutra zona de calor, estudando nosso rosto para
apreciar a transpiração, com o que, passado um tempo, tínhamos virado
uma sopa. E sempre caladas, olhando para o fundo dos trilhos ou para o rio,
do outro lado, o pedacinho de rio cor de café com leite.
Depois dessa primeira inspeção do reino, descíamos do talude e
entrávamos pela sombra ruim dos salgueiros que acompanhavam a cerca de
nossa casa, onde se abria a porta branca. Era ali a capital do reino, a cidade
silvestre e a central de nosso jogo. A primeira a começar o jogo era Leticia,
a mais feliz das três e a mais privilegiada. Leticia não precisava secar os
pratos nem fazer as camas, podia passar o dia lendo ou colando figurinhas,
e à noite a deixavam ficar acordada até mais tarde quando ela pedia, isso
sem falar no quarto que era só dela, no caldo de osso e todo tipo de
vantagem. Pouco a pouco ela fora se aproveitando dos privilégios e desde o
verão anterior comandava o jogo, acho que na verdade comandava o reino;
pelo menos tomava a iniciativa de dizer as coisas e Holanda e eu
aceitávamos sem discutir, quase felizes. É provável que os longos discursos
de mamãe sobre como devíamos nos comportar com Leticia houvessem
tido efeito, ou simplesmente que gostávamos muito dela e não nos
importávamos que ela fosse a chefa. Pena que não tivesse aparência de
chefa, era a mais baixa das três, e tão magra. Holanda era magra e eu nunca
pesei mais de cinquenta quilos, mas Leticia era a mais magra das três, e
para piorar as coisas era uma dessas magrezas que se veem de fora, no
pescoço e nas orelhas. Talvez o enrijecimento das costas a fizesse parecer
mais magra, como quase não conseguia mexer a cabeça para os lados ela
dava a impressão de ser uma tábua de passar roupas em pé, daquelas
forradas com tecido branco, como as que havia na casa das de Loza. Uma
tábua de passar roupas com a parte mais larga para cima, em pé contra a
parede. E nos comandava.
Para mim, a satisfação mais profunda era imaginar que mamãe ou tia Ruth
algum dia tomassem conhecimento do jogo. Se chegassem a tomar
conhecimento do jogo ia haver uma confusão dos infernos. O si bemol e os
desmaios, os imensos protestos de devoção e sacrifício mal retribuídos, a
coleção de invocações aos castigos mais célebres, para concluir com o
anúncio de nossos destinos, que consistiam em que nós três acabaríamos na
rua. Esta última parte sempre nos deixara perplexas, porque terminar na rua
nos parecia uma coisa bastante normal.
Primeiro Leticia nos sorteava. Usávamos pedrinhas escondidas na mão,
contar até vinte e um, qualquer sistema. Se usássemos o de contar até vinte
e um, imaginávamos mais duas ou três garotas e as incluíamos na conta
para evitar tramoias. Se o vinte e um caísse para uma delas, a garota era
excluída do grupo e fazíamos um novo sorteio, até uma de nós ser sorteada.
Aí Holanda e eu levantávamos a pedra e abríamos a caixa dos enfeites.
Supondo que Holanda tivesse ganhado, Leticia e eu escolhíamos os
enfeites. O jogo incluía duas formas: estátuas e poses. As poses não
precisavam de enfeites mas era preciso muita expressividade; para a inveja,
mostrar os dentes, crispar as mãos e dar um jeito de ficar com um ar
amarelo. Para a caridade, o ideal era um rosto angelical, com os olhos
voltados para o céu, enquanto as mãos ofereciam alguma coisa — um
pedaço de pano, uma bola, um ramo de salgueiro — a um pobre orfãozinho
invisível. A vergonha e o medo eram fáceis de fazer; o rancor e o ciúme
exigiam estudos mais demorados. Quase todos os enfeites se destinavam às
estátuas, para as quais reinava liberdade absoluta. Para que uma estátua
desse certo, era preciso refletir muito bem sobre cada detalhe da
indumentária. O jogo determinava que a escolhida não podia fazer parte da
seleção; as duas restantes debatiam o assunto e em seguida aplicavam os
enfeites. A escolhida tinha que inventar sua estátua utilizando o que haviam
posto nela, e assim o jogo era muito mais complicado e excitante, porque às
vezes havia alianças adversas, e a vítima se via ataviada com enfeites que
não combinavam nem um pouco com ela; de sua esperteza dependia, assim,
inventar uma boa estátua. Em geral, quando o jogo determinava poses, a
escolhida se dava bem, mas houve vezes em que as estátuas foram terríveis
fracassos.
O que estou contando começou sabe-se lá quando, mas as coisas se
modificaram no dia em que o primeiro papelzinho caiu do trem. Claro que
as poses e as estátuas não eram para nós mesmas, porque teríamos enjoado
em seguida. O jogo determinava que a escolhida precisava se posicionar ao
pé do talude, saindo da sombra dos salgueiros, e esperar o trem das duas e
oito, que vinha do Tigre. Naquele ponto de Palermo os trens passam bem
depressa, e não ficávamos envergonhadas de fazer estátua ou pose. Quase
não víamos as pessoas que estavam nas janelas, mas com o tempo
adquirimos prática e sabíamos que alguns passageiros esperavam ver-nos.
Um senhor de cabelo branco e óculos de tartaruga punha a cabeça para fora
da janela e cumprimentava a estátua ou a pose com o lenço. As crianças que
voltavam da escola sentadas nos estribos gritavam coisas ao passar, mas
algumas ficavam sérias olhando para nós. Na realidade a estátua ou a pose
não via nada, no esforço de manter-se imóvel, mas as outras duas, embaixo
dos salgueiros, analisavam muito detalhadamente o bom êxito ou a
indiferença produzidos. O papelzinho caiu numa terça-feira, durante a
passagem do segundo vagão. Caiu muito perto de Holanda, que naquele dia
era a maledicência, quicou e foi até perto de mim. Era um papelzinho muito
dobrado e preso a uma porca. Com letra de homem e bastante ruim, dizia:
“Muito lindas, as estátuas. Viajo na terceira janela do segundo vagão. Ariel
B.”. Achamos um pouco seco, com todo aquele trabalho de prender o
bilhete a uma porca e arremessá-lo, mas adoramos. Tiramos a sorte para ver
quem ficaria com o bilhete e eu ganhei. No dia seguinte nenhuma queria
jogar, para poder ver como era Ariel B., mas tivemos medo de que ele
interpretasse mal nossa interrupção, de modo que fizemos o sorteio e caiu
para Leticia. Holanda e eu ficamos muito felizes, porque Leticia era ótima
como estátua, pobre criatura. Quando ela estava imóvel, não dava para
perceber a paralisia, e ela era capaz de gestos de uma imensa nobreza. Em
matéria de pose, sempre escolhia a generosidade, a piedade, o sacrifício e a
renúncia. Em matéria de estátua preferia o estilo da Vênus da sala, que tia
Ruth chamava de Vênus do Nilo. Por isso escolhemos enfeites especiais
para ela, para que Ariel tivesse boa impressão. Pusemos nela um pedaço de
veludo verde à maneira de túnica e no cabelo uma coroa de salgueiro.
Como estávamos de mangas curtas, o efeito grego era grande. Leticia
ensaiou um pouco na sombra e decidimos que as outras duas também
apareceriam para cumprimentar Ariel, de forma ao mesmo tempo discreta e
muito amável.
Leticia esteve magnífica; quando o trem chegou, não movia nem um dedo.
Como não conseguia girar a cabeça, jogava-a para trás, colando os braços
ao corpo, quase como se não os tivesse; fora o verde da túnica, era como
olhar a Vênus do Nilo. Na terceira janela vimos um rapaz de cabelo louro e
olhos claros, que nos dirigiu um grande sorriso ao descobrir que Holanda e
eu o estávamos cumprimentando. O trem o levou num segundo, mas às
quatro e meia ainda discutíamos se ele usava roupa escura, se sua gravata
era vermelha e se ele era detestável ou simpático. Na quinta-feira fiz a pose
do desânimo e recebemos outro papelzinho que dizia: “As três me agradam
muito. Ariel”. Agora ele punha a cabeça e um braço para fora da janela e
nos cumprimentava rindo. Achamos que devia ter dezoito anos
(convencidas de que não tinha mais que dezesseis) e concordamos em que
devia vir diariamente de alguma escola inglesa. A parte sobre a qual
estávamos mais seguras era a da escola inglesa: não podíamos aceitar um
admirador qualquer. Via-se que Ariel era pessoa de posses.
Acontece que Holanda teve a sorte incrível de ganhar três dias seguidos.
Superando-se, fez as atitudes do desengano e do latrocínio e uma estátua
dificílima de bailarina, equilibrando-se num pé desde que o trem entrou na
curva. No dia seguinte eu ganhei, no seguinte de novo; quando estava
fazendo a atitude do horror, recebi no nariz um papelzinho de Ariel que no
início não entendemos: “A mais bonita é a mais preguiçosa”. Leticia foi a
última a entender, vimos como ela ficou vermelha e foi para um lado, e
Holanda e eu nos olhamos com um pouco de raiva. A primeira coisa que
nos ocorreu sentenciar foi que Ariel era um idiota, mas não podíamos dizer
isso a Leticia, pobre anjo, com sua sensibilidade e a cruz que era obrigada a
carregar. Ela não disse nada, mas pareceu entender que o papelzinho era
dela e o guardou. Naquele dia voltamos para casa muito caladas, e à noite
não brincamos juntas. À mesa Leticia estava muito alegre, seus olhos
brilhavam, e mamãe olhou uma ou duas vezes para tia Ruth, como se a
tomasse por testemunha da própria alegria. Por aqueles dias
experimentavam um novo tratamento fortificante para Leticia, e pelo visto
era uma maravilha o bem que lhe fazia.
Antes de dormir, Holanda e eu discutimos o assunto. Não nos
importávamos com o papelzinho de Ariel; de um trem andando veem-se as
coisas do jeito que se veem, mas achávamos que Leticia estava se
aproveitando demais da vantagem adquirida sobre nós. Sabia que não íamos
comentar nada com ela e que numa casa onde há alguém com algum defeito
físico e muito orgulho, todos brincam de ignorar o assunto, a começar pelo
doente, ou então todos fingem que não sabem que o outro sabe. Mas
também não era o caso de exagerar, e a forma como Leticia se comportara
na mesa, ou seu jeito de guardar o papelzinho, aí já era demais. Naquela
noite tornei a sonhar meus pesadelos com trens, percorri de madrugada
enormes depósitos ferroviários recobertos de trilhos cheios de engates,
vendo à distância as luzes vermelhas de locomotivas que se aproximavam,
calculando angustiada se o trem passaria à minha esquerda, e ao mesmo
tempo ameaçada pela possível chegada de um rápido por trás de mim ou —
o que era pior — que no último momento um dos trens entrasse por um dos
desvios e viesse para cima de mim. Pela manhã, porém, esqueci, pois
Leticia amanheceu muito dolorida e tivemos que ajudá-la a se vestir.
Achamos que ela estava um pouco arrependida do que ocorrera ontem e
fomos muito boas com ela, dizendo-lhe que aquilo estava acontecendo com
ela por andar demais, e que talvez o melhor fosse ficar lendo no quarto. Ela
não disse nada, mas foi almoçar na mesa, e quando mamãe perguntava dizia
que já estava muito bem e que suas costas quase não doíam. Dizia isso e
olhava para nós.
Essa tarde eu ganhei, mas na hora me deu um não sei o quê e falei para
Leticia que cedia meu lugar a ela, claro que sem dar a entender a razão. Já
que o outro a preferia, que olhasse para ela até cansar. Como o jogo
determinava estátua, escolhemos coisas simples, para não complicar a vida
dela, e ela inventou uma espécie de princesa chinesa, de ar envergonhado,
olhando para o chão e juntando as mãos como fazem as princesas chinesas.
Quando o trem passou, Holanda ficou de costas embaixo dos salgueiros,
mas eu olhei e vi que Ariel só tinha olhos para Leticia. Continuou olhando
para ela até o trem desaparecer na curva e Leticia imóvel, sem saber que ele
acabava de olhar para ela daquele jeito. Mas quando ela foi descansar
debaixo dos salgueiros vimos que sim, sabia, e que teria gostado de
continuar com os enfeites a tarde inteira, a noite inteira.
Na quarta-feira só Holanda e eu tiramos a sorte, porque Leticia nos disse
que era justo que não participasse. Holanda ganhou, com sua maldita sorte,
mas a carta de Ariel caiu a meu lado. Ao pegá-la tive o impulso de entregá-
la para Leticia, que não dizia nada, mas pensei que também não era o caso
de fazer todos os gostos dela e a abri devagar. Ariel anunciava que no dia
seguinte desceria na estação ao lado e viria pelo aterro para conversar um
pouco. Tudo estava terrivelmente escrito, mas a frase final era linda:
“Cumprimento as três estátuas muito atenciosamente”. A assinatura parecia
um garrancho, embora desse para perceber que tinha personalidade.
Enquanto retirávamos os enfeites de Holanda, Leticia olhou uma ou duas
vezes para mim. Eu havia lido a mensagem para elas e nenhuma fez
comentários, o que ficava esquisito porque ao fim e ao cabo Ariel estava
para vir e era preciso pensar nessa novidade e decidir alguma coisa. Se lá
em casa ficassem sabendo, ou se por desgraça alguma das de Loza tivesse a
ideia de nos espiar, invejosas que eram aquelas anãs, com certeza haveria
encrenca. Sem falar que era muito estranho a gente ficar em silêncio com
uma coisa daquelas, quase sem nos olhar, enquanto guardávamos os
enfeites e voltávamos pela porta branca.
Tia Ruth pediu a Holanda e a mim que déssemos banho em José, levou
Leticia para fazer o tratamento, e finalmente pudemos desabafar em paz.
Achávamos maravilhoso Ariel nos visitar, nunca havíamos tido um amigo
assim, nosso primo Tito não contava, um bobalhão que colecionava
figurinhas e acreditava na primeira comunhão. Estávamos nervosíssimas
com a expectativa e José pagou o pato, pobre anjo. Holanda foi mais
valente que eu e puxou o assunto de Leticia. Eu não sabia o que pensar; de
um lado achava horrível Ariel ficar sabendo, mas também era justo que as
coisas ficassem esclarecidas, pois ninguém tem por que se prejudicar por
causa de outro. O que eu teria querido é que Leticia não sofresse, já bastava
a cruz que ela tinha de carregar, e agora com o novo tratamento e tantas
coisas.
À noite mamãe estranhou ver a gente tão calada e disse que milagre, se os
ratos tinham comido nossa língua, depois olhou para tia Ruth e com certeza
as duas acharam que havíamos aprontado alguma e que a consciência nos
torturava. Leticia comeu muito pouco e disse que estava dolorida, que a
deixassem ir para o quarto ler Rocambole. Holanda deu-lhe o braço embora
ela não quisesse muito, e eu comecei a tricotar, que é uma coisa que me dá
quando fico nervosa. Duas vezes pensei em ir até o quarto de Leticia, não
entendia o que as duas podiam estar fazendo lá sozinhas, mas Holanda
voltou com um ar da maior importância e ficou a meu lado sem falar até
mamãe e tia Ruth levantarem da mesa. “Amanhã ela não vai. Escreveu uma
carta e disse que se ele perguntar muito, a gente lhe entregue a carta.”
Revirando o bolso da blusa, me fez ver um envelope roxo. Depois nos
chamaram para secar os pratos, e naquela noite adormecemos quase
imediatamente por causa de todas as emoções e do cansaço e de dar banho
em José.
No dia seguinte foi minha vez de fazer compras no mercado, e passei a
manhã toda sem ver Leticia, que continuava em seu quarto. Antes que nos
chamassem para a mesa, entrei um momento e a encontrei ao lado da janela,
com muitas almofadas e o nono volume de Rocambole. Dava para perceber
que estava mal, mas começou a rir e me contou de uma abelha que não
encontrava a saída e de um sonho hilário que havia tido. Eu lhe disse que
era uma pena ela não ir até os salgueiros, mas achei muito difícil dizer
aquilo direito. “Se você quiser, podemos explicar ao Ariel que você não
estava bem”, sugeri, mas ela dizia que não e ficava em silêncio. Eu insisti
um pouco para ela ir, e no fim criei coragem e lhe disse que não tivesse
medo, dando o exemplo de que o verdadeiro amor não conhece obstáculos e
outras ideias lindas que havíamos aprendido no Tesouro da juventude, mas
era cada vez mais difícil dizer-lhe alguma coisa porque ela olhava para a
janela e dava a impressão de que ia começar a chorar. No fim saí, dizendo
que mamãe estava precisando de mim. O almoço durou dias, e Holanda
levou um sopapo de tia Ruth por salpicar a toalha com molho de tomate.
Nem me lembro de como secamos os pratos, de repente estávamos nos
salgueiros e nos abraçamos as duas cheias de felicidade e nem um pouco
enciumadas uma da outra. Holanda me explicou tudo o que tínhamos de
dizer sobre nossos estudos para que Ariel ficasse com uma boa impressão,
porque os do secundário desprezam as garotas que só fizeram o primário e
estudam apenas corte e costura e refogado no azeite. Quando o trem das
duas e oito passou, Ariel pôs os braços para fora com entusiasmo e nós
fizemos sinais de boas-vindas com nossos lenços estampados. Uns vinte
minutos depois, vimos que ele chegava pelo aterro, e era mais alto do que
havíamos imaginado e estava todo de cinza.
Não me lembro direito o que a gente falou no início, ele era bastante
tímido apesar de estar ali e dos papeizinhos, e dizia coisas muito pensadas.
Quase na mesma hora elogiou muito nossas estátuas e atitudes e perguntou
como nos chamávamos e por que a terceira não estava conosco. Holanda
explicou que Leticia não tinha podido vir, e ele disse que era uma pena e
que Leticia era um nome lindo. Depois nos contou coisas do Industrial, que
por desgraça não era uma escola inglesa, e quis saber se íamos lhe mostrar
os enfeites. Holanda levantou a pedra e mostramos as coisas a ele. Pelo jeito
ele ficou muito interessado, e várias vezes pegou algum dos enfeites,
dizendo: “Uma vez, Leticia estava com este”, ou “Este era o da estátua
oriental”, querendo se referir à princesa chinesa. Sentamos à sombra de um
salgueiro e ele estava contente, mas distraído, dava para perceber que só
não ia embora por uma questão de educação. Holanda olhou para mim duas
ou três vezes quando a conversa desanimava e aquilo fez muito mal a nós
duas, ficamos com vontade de sair dali ou de que Ariel nunca tivesse vindo.
Ele perguntou outra vez se Leticia estava doente, e Holanda olhou para mim
e achei que ela ia contar para ele, mas em vez disso ela respondeu que
Leticia não tinha podido vir. Com um graveto, Ariel desenhava corpos
geométricos na terra e de vez em quando olhava para a porta branca e nós
sabíamos o que ele estava pensando, por isso Holanda fez bem em pegar o
envelope roxo e lhe estender, e ele ficou surpreso com o envelope na mão,
depois muito vermelho enquanto lhe explicávamos que aquilo quem
mandava era Leticia, e guardou a carta no bolso de dentro do casaco sem
querer lê-la na nossa frente. Quase em seguida disse que tinha sido um
grande prazer e que estava encantado por ter vindo, mas a mão dele era
mole e antipática, de modo que foi melhor a visita se encerrar, embora mais
tarde não tivéssemos feito mais que pensar nos olhos cinzentos dele e
naquele jeito triste que ele tinha de sorrir. Também nos lembramos de como
ele se despedira dizendo “Até sempre”, uma forma que nunca havíamos
ouvido em casa e que nos pareceu muito linda e poética. Contamos tudo
para Leticia, que esperava por nós debaixo do limoeiro do quintal, e eu
queria ter lhe perguntado o que estava escrito na carta, mas me deu não sei
o quê, porque ela havia fechado o envelope antes de entregá-lo a Holanda,
de modo que não falei nada e só contamos como era Ariel e quantas vezes
ele havia perguntado por ela. Aquilo não era nada fácil de dizer, porque era
uma coisa bonita e ruim ao mesmo tempo, percebíamos que Leticia se
sentia muito feliz e que ao mesmo tempo estava quase chorando, até que
saímos dali dizendo que tia Ruth estava precisando de nós e a deixamos
olhando as vespas do limoeiro.
Quando fomos para a cama naquela noite, Holanda me disse: “Você vai
ver que a partir de amanhã o jogo acaba”. Mas estava enganada, embora
não por muito tempo, e no dia seguinte Leticia fez o sinal combinado na
hora da sobremesa. Fomos lavar a louça muito assombradas e com um
pouco de raiva, porque aquilo era uma pouca-vergonha de Leticia e não era
direito. Ela nos esperava na porta e quase morremos de medo quando, ao
chegar aos salgueiros, a vimos tirar do bolso o colar de pérolas de mamãe e
todos os anéis, até o grande, de rubi, da tia Ruth. Se as de Loza espiassem e
nos vissem com as joias, não havia dúvida de que mamãe ficaria sabendo na
mesma hora e nos mataria, anãs asquerosas. Mas Leticia não estava
assustada e disse que se alguma coisa acontecesse ela era a única
responsável. “Eu gostaria que hoje vocês me deixassem fazer o papel”,
acrescentou, sem olhar para nós. Pegamos logo os enfeites, de repente
ficamos com vontade de ser muito boas com Leticia, de fazer todas as
vontades dela, e isso que no fundo ainda estávamos um pouco bravas.
Como o jogo determinava estátua, escolhemos para ela coisas muito
bonitas, que combinassem com as joias: muitas penas de pavão-real para
prender no cabelo, uma pele que de longe parecia uma raposa prateada, e
um véu rosado que ela usou como turbante. Vimos que ela ficou pensando,
ensaiando a estátua mas sem se mexer, e quando o trem apareceu na curva
foi se posicionar junto ao talude com todas as joias brilhando ao sol. Ergueu
os braços como se em vez de estátua fosse fazer atitude, e com as mãos
apontou para o céu enquanto jogava a cabeça para trás (que era a única
coisa que conseguia fazer, coitada) e dobrava o corpo até nos deixar com
medo. Achamos que ficou maravilhosa, a estátua mais sensacional que já
havíamos feito, e então vimos Ariel olhando para ela, debruçado para fora
da janela ele olhava só para ela, girando a cabeça e olhando para ela sem
nos ver, até o trem levá-lo de repente. Não sei por que nós duas corremos ao
mesmo tempo para amparar Leticia, que estava com os olhos fechados e o
rosto coberto por enormes lágrimas. Ela nos empurrou sem raiva, mas a
ajudamos a esconder as joias no bolso e ela se afastou sozinha para casa
enquanto guardávamos os enfeites pela última vez em sua caixa. Quase
sabíamos o que ia acontecer, mas mesmo assim no dia seguinte fomos as
duas até os salgueiros, depois que tia Ruth exigiu que fizéssemos silêncio
absoluto para não incomodar Leticia, que estava dolorida e queria dormir.
Quando o trem chegou, vimos sem nenhuma surpresa a terceira janela
vazia, e enquanto sorríamos uma para a outra aliviadas e furiosas ao mesmo
tempo, imaginamos Ariel viajando do outro lado do vagão, quieto em seu
assento, olhando para o rio com seus olhos cinzentos.
Cartas de mamãe
P
oderia muito bem chamar-se liberdade condicional. Toda vez que a
zeladora lhe entregava um envelope, Luis só precisava reconhecer o
minúsculo semblante familiar de José de San Martín para
compreender que uma vez mais cruzaria a ponte. San Martín,
Rivadavia, mas esses nomes também eram imagens de ruas e de coisas,
Rivadavia, 6500, o casarão de Flores, mamãe, o café da San Martín com a
Corrientes onde às vezes os amigos o esperavam, onde o mazagrã tinha um
leve sabor de óleo de rícino. Com o envelope na mão, depois do Merci bien,
madame Durand, sair para a rua já não era como no dia anterior, como em
todos os dias anteriores. Cada carta de mamãe (mesmo antes do que acabara
de acontecer, daquele absurdo erro ridículo) mudava de chofre a vida de
Luis, devolvia-o ao passado como um rijo repique de bola. Mesmo antes do
que acabara de ler — e que agora relia no ônibus entre furioso e perplexo,
sem se convencer inteiramente —, as cartas de mamãe eram sempre uma
alteração do tempo, um pequeno escândalo inofensivo dentro da ordem de
coisas que Luis havia desejado e planejado e conseguido, uma ordem que
aceitara em sua vida como aceitara Laura em sua vida e Paris em sua vida.
Cada nova carta insinuava por um instante (porque depois ele as apagava,
no próprio ato de respondê-las carinhosamente) que sua liberdade
duramente conquistada, aquela nova vida recortada a ferozes tesouradas na
meada de lã que os demais haviam denominado sua vida, deixava de
justificar-se, perdia o pé, se apagava como o fundo das ruas enquanto o
ônibus trafegava pela Rue de Richelieu. Não restava mais que uma patética
liberdade condicional, a irrisão de viver à maneira de uma palavra entre
parênteses, divorciada da frase principal da qual mesmo assim é quase
sempre sustentáculo e explicação. E desgosto, e uma necessidade de
responder na mesma hora, como quem torna a fechar uma porta.
Aquela manhã fora uma das tantas manhãs em que chegava carta de
mamãe. Ele e Laura pouco falavam do passado, quase nunca do casarão de
Flores. Não que Luis não gostasse de lembrar-se de Buenos Aires. Era antes
uma questão de eliminar nomes (as pessoas, eliminadas havia tanto tempo
já, mas os nomes, os verdadeiros fantasmas que são os nomes, aquela
duração pertinaz). Um dia se atrevera a dizer a Laura: “Se fosse possível
rasgar e jogar fora o passado como o rascunho de uma carta ou de um livro.
Mas ele permanece o tempo todo, maculando a cópia passada a limpo, e eu
acho que isso é o verdadeiro futuro”. Na verdade, por que não haveriam de
falar de Buenos Aires, onde morava a família, onde os amigos de vez em
quando decoravam um postal com frases carinhosas. E a rotogravura do La
Nación com os sonetos de tantas senhoras entusiásticas, a sensação de já
lido, de para quê. E de vez em quando uma crise de gabinete, um coronel
irritado, um boxeador estupendo. Por que ele e Laura não haveriam de falar
de Buenos Aires? Mas ela também não voltava ao tempo de antes, só ao
sabor de algum diálogo, e, sobretudo quando chegavam cartas de mamãe,
deixava cair um nome ou uma imagem como se fossem moedas fora de
circulação, objetos de um mundo caduco na distante margem do rio.
— Eh oui, fait lourd — disse o operário sentado diante dele.
“Soubesse ele o que é calor”, pensou Luis. “Se pudesse andar numa tarde
de fevereiro pela avenida de Mayo, por alguma ruela de Liniers.”
Tirou novamente a carta do envelope, sem ilusões: o parágrafo estava ali,
bem claro. Era perfeitamente absurdo, mas ali estava. Sua primeira reação
depois da surpresa, da pancada em plena nuca, era, como sempre, de defesa.
Laura não deveria ler a carta de mamãe. Por mais ridículo que fosse o erro,
a confusão de nomes (mamãe devia ter querido escrever “Víctor” e pusera
“Nico”), de todo modo Laura ficaria aflita, seria besteira. De vez em
quando cartas desaparecem; pena que aquela não tivesse ido parar no fundo
do mar. Agora seria obrigado a jogá-la na privada do escritório, e
obviamente alguns dias depois Laura estranharia: “Que esquisito, não
chegou carta da sua mãe”. Ela nunca dizia mamãe, talvez por ter perdido a
dela ainda menina. Então ele responderia: “É mesmo, esquisito. Vou
mandar um bilhete para ela hoje mesmo”, e mandaria, preocupado com o
silêncio de mamãe. A vida continuaria sem alterações, o escritório, o
cinema à noite, Laura sempre tranquila, bondosa, atenta a seus desejos. Ao
desembarcar do ônibus na Rue de Rennes perguntou-se bruscamente (não
era uma pergunta, mas como dizê-lo de outro modo) por que não queria
mostrar a carta de mamãe a Laura. Não era por ela, pelo que ela pudesse
sentir. Não estava tão preocupado com o que ela pudesse sentir, desde que
ela disfarçasse. (Não estava tão preocupado com o que ela pudesse sentir,
desde que ela disfarçasse?) Não, não estava tão preocupado. (Não estava
preocupado?) Mas a verdade primeira, supondo que houvesse outra por trás,
a verdade mais imediata, por assim dizer, era que se preocupava com a cara
que Laura faria, com a atitude de Laura. E se preocupava por causa dele,
naturalmente, pelo efeito que a forma como Laura pudesse se preocupar
com a carta de mamãe teria sobre ele. Em algum momento os olhos dela
dariam com o nome de Nico e ele sabia que o queixo de Laura começaria a
tremer de leve, e que depois ela diria: “Mas que estranho… que será que
aconteceu com sua mãe?”. E ele teria sabido o tempo todo que Laura estava
se segurando para não gritar, para não esconder entre as mãos um rosto já
desfigurado pelas lágrimas, pelo desenho do nome de Nico tremendo em
sua boca.
***
Uma semana mais tarde, Laura achou estranho não ter chegado carta de
mamãe. Examinaram as hipóteses usuais e Luis escreveu naquela mesma
tarde. A resposta não o preocupava muito, mas teria desejado (sentia-o ao
descer as escadas pela manhã) que a zeladora lhe entregasse a carta em vez
de subir com ela até o terceiro andar. Quinze dias depois reconheceu o
envelope familiar, o rosto do almirante Brown e uma vista das cataratas do
Iguaçu. Guardou o envelope antes de sair para a rua e responder ao aceno
de Laura debruçada na janela. Achou ridículo ter de virar a esquina antes de
abrir a carta. Boby havia escapado para a rua e alguns dias depois começara
a se coçar, contágio de algum cachorro sarnento. Mamãe ia consultar um
veterinário amigo de tio Emilio, porque imagine se Boby passa a peste para
o Negro. Na opinião de tio Emilio era preciso dar banho nos dois com
creolina, mas ela já não tinha energia para essas providências e seria melhor
que o veterinário receitasse um pó inseticida ou alguma coisa para misturar
na comida. A senhora da casa ao lado tinha um gato sarnento, sabe-se lá se
os gatos não eram capazes de contagiar os cachorros, mesmo que fosse
através do alambrado. Mas que interesse teria para eles esse papo de velha,
mesmo Luis tendo sido sempre muito carinhoso com os cachorros e quando
pequeno até dormisse com um aos pés da cama, o oposto de Nico, que não
gostava muito deles. A senhora da casa ao lado a aconselhara a polvilhar os
cachorros com dedetê, para o caso de não ser sarna, os cachorros pegam
todo tipo de peste quando andam pela rua; na esquina da Bacacay se
instalara um circo com animais esquisitos, quem sabe havia micróbios no
ar, essas coisas. Mamãe não estava para sustos, entre o filho da costureira
que queimara o braço com leite fervente e Boby sarnento…
Depois havia uma espécie de estrelinha azul (a pena-colherinha que
enganchava no papel, a exclamação irritada de mamãe) e depois algumas
reflexões melancólicas sobre como ficaria sozinha se Nico também fosse
para a Europa como estava parecendo, mas esse era o destino dos velhos, os
filhos são andorinhas que um dia partem, é preciso ter resignação enquanto
o corpo aguentar. A senhora da casa ao lado…
Alguém empurrou Luis, recitou para ele uma rápida declaração de direitos
e obrigações com sotaque marselhês. Vagamente compreendeu que estava
atrapalhando a passagem das pessoas que entravam pelo corredor estreito
do métro. O resto do dia foi igualmente vago, telefonou para Laura para
avisar que não iria almoçar, passou duas horas num banco de praça relendo
a carta de mamãe, perguntando-se o que deveria fazer diante da demência.
Falar com Laura, antes de mais nada. Por que (não era uma pergunta, mas
como dizê-lo de outro modo) continuar escondendo de Laura o que estava
acontecendo. Já não podia fingir que aquela carta havia se extraviado como
a outra, já não podia continuar supondo que mamãe se enganara e que
escrevera Nico em vez de Víctor, e que era tão penoso que estivesse ficando
gagá. Decididamente aquelas cartas eram Laura, eram o que ia acontecer
com Laura. Nem mesmo isso: o que já havia acontecido a partir do dia de
seu casamento, a lua de mel em Adrogué, as noites em que haviam se
amado desesperadamente no navio que os trazia para a França. Tudo era
Laura, tudo ia ser Laura agora que Nico queria vir para a Europa no delírio
de mamãe. Cúmplices como nunca, mamãe estava falando de Nico para
Laura, estava anunciando para ela que Nico viria para a Europa, e o dizia
assim, só Europa, sabendo tão bem que Laura compreenderia que Nico ia
desembarcar na França, em Paris, numa casa onde estranhamente se fingia
que ele fora esquecido, pobrezinho.
Fez duas coisas: escreveu para tio Emilio mencionando os sintomas que o
inquietavam e pedindo-lhe que visitasse mamãe imediatamente para
verificar a situação e tomar as medidas condizentes. Bebeu um conhaque
atrás do outro e foi a pé até em casa para ir pensando no caminho o que
dizer a Laura, porque ao fim e ao cabo precisava falar com Laura e informá-
la da situação. De rua em rua foi sentindo como era difícil para ele situar-se
no presente, no que teria de acontecer meia hora depois. A carta de mamãe
jogava-o, afogava-o na realidade daqueles dois anos de vida em Paris, na
mentira de uma paz traficada, de uma felicidade da porta para fora,
sustentada por diversões e espetáculos, de um pacto involuntário de silêncio
em que os dois se desuniam pouco a pouco, como em todos os pactos
negativos. Sim, mamãe, sim, pobre Boby sarnento, mamãe. Pobre Boby,
pobre Luis, quanta sarna, mamãe. Um baile no clube de Flores, mamãe, fui
porque ele insistia, imagino que quisesse se mostrar com sua conquista.
Pobre Nico, mamãe, com aquela tosse seca em que ninguém acreditava
ainda, com aquele terno trespassado riscadinho, aquele penteado feito com
brilhantina, aquelas gravatas de raiom tão metidas a besta. O cara conversa
um pouco, simpatiza, como não vai dançar aquela música com a noiva do
irmão, ah, noiva é exagero, Luis, suponho que não preciso chamá-lo de
senhor, não é mesmo… Claro que não, estranho Nico ainda não tê-la
apresentado em casa, mamãe vai gostar tanto da senhora… Esse Nico é
muito atrapalhado, como é possível que ele nem mesmo tenha conversado
com seu pai… Tímido, é verdade, ele sempre foi assim. Como eu. Por que
está rindo, não acredita em mim? É que eu não sou o que pareço… Que
calor, não é mesmo? É verdade, a senhora precisa ir lá em casa, mamãe vai
ficar encantada. Somos só nós três e os cachorros, lá em casa. Nico, tchê,
que vergonha, você fazendo segredo, que malandro! Com a gente é assim,
Laura, falamos de tudo um para o outro. Se você permite, Nico, eu gostaria
de dançar esse tango com a senhorita.
Tão pouca coisa, tão fácil, tão verdadeiramente brilhantina e gravata de
raiom. Ela havia rompido com Nico por engano, por cegueira, porque o
irmão espertinho fora capaz de derrotar o outro no impulso e virar a cabeça
dela. Nico não joga tênis, imagine se vai jogar, ninguém consegue tirar Nico
do xadrez e da filatelia, francamente. Calado, tão sem brilho o pobrezinho,
Nico fora ficando para trás, perdido num canto do pátio, consolando-se com
o xarope expectorante e o mate amargo. Quando caiu de cama e receitaram
repouso, coincidiu exatamente com um baile no Gimnasia y Esgrima de
Villa del Parque. Como perder uma coisa assim, ainda mais quando
Edgardo Donato vai tocar e a coisa promete? Mamãe achou adequado que
ele acompanhasse Laura, passeasse com ela, bastou levá-la até lá em casa
uma tarde para que ela virasse uma filha. Veja bem, mamãe, o garoto está
fraco e pode ser que fique chateado se a gente contar a ele. Quem está
doente como ele imagina cada coisa, aposto que ele vai pensar que estou
passando a conversa em Laura. Melhor ele não saber que a gente vai ao
Gimnasia. Mas não falei isso a mamãe, lá em casa nunca ninguém ficou
sabendo que saíamos juntos. Isso enquanto o doentinho não melhorasse,
claro. E assim o tempo, os bailes, dois ou três bailes, as radiografias de
Nico, depois o carro do baixinho Ramos, a noite da farra na casa da Beba,
os tragos; o passeio de carro até a ponte do arroio, uma lua, aquela lua lá em
cima parecendo uma janela de hotel, e Laura no carro negando-se, um
pouco alta, as mãos hábeis, os beijos, os gritos abafados, a manta de
vicunha, a volta em silêncio, o sorriso de perdão.
O sorriso era quase o mesmo quando Laura abriu a porta para ele. Tinha
carne ao forno, salada, pudim. Às dez apareceram uns vizinhos que eram
companheiros de canastra. Muito tarde, enquanto se preparavam para ir
para a cama, Luis puxou a carta e a depositou sobre a mesa de cabeceira.
— Não falei antes porque não queria que você ficasse chateada. Estou
achando que mamãe…
Deitado, de costas para ela, esperou. Laura guardou a carta no envelope,
apagou a luz da mesinha. Sentiu-a de encontro a si, não exatamente de
encontro, mas ouvia-a respirar perto de sua orelha.
— Você se dá conta? — disse Luis, controlando a voz.
— Sim. Você não acha que ela pode ter se enganado de nome?
Tinha de ser. Peão quatro rei, peão quatro rei. Perfeito.
— Vai ver que ela queria escrever Víctor — disse, cravando lentamente as
unhas na palma da mão.
— Ah, claro. Quem sabe — disse Laura. Cavalo rei três bispo.
Começaram a fingir que dormiam.
Laura achava que tudo bem o tio Emilio ser o único a saber, e os dias se
passaram sem que voltassem a tocar no assunto. Sempre que chegava em
casa, Luis esperava uma frase ou um gesto insólito em Laura, uma brecha
naquela defesa perfeita de calma e de silêncio. Iam ao cinema como
sempre, faziam amor como sempre. Para Luis, o único mistério que ainda
havia em Laura era o de sua resignada adesão àquela vida em que nada
havia chegado a ser o que eles talvez esperassem dois anos antes. Agora ele
a conhecia bem, na hora dos confrontos definitivos era forçado a admitir
que Laura era como Nico havia sido, dessas que ficam para trás e só agem
por inércia, embora às vezes se valesse de uma determinação quase terrível
em não fazer nada, em não viver de verdade para nada. Ela teria combinado
muito mais com Nico que com ele, e os dois sabiam disso desde o dia de
seu casamento, desde as primeiras tomadas de posição que se seguem à
branda aquiescência da lua de mel e do desejo. Agora Laura voltava a ter o
pesadelo. Sonhava muito, mas o pesadelo era diferente, Luis o reconhecia
entre muitos outros movimentos de seu corpo, palavras confusas ou breves
gritos de animal que se afoga. Começara a bordo, na época em que ainda
falavam de Nico porque Nico tinha acabado de morrer e eles haviam
embarcado poucas semanas depois. Uma noite, depois de lembrar-se de
Nico e quando já se insinuava o tácito silêncio que em seguida se instalaria
entre os dois, Laura tivera o pesadelo. Repetia-se de vez em quando e era
sempre o mesmo, Laura o acordava com um gemido rouco, um
estremecimento convulsivo das pernas, e de repente um grito que era uma
negação total, uma recusa com as duas mãos e o corpo inteiro e toda a voz
de algo horrível que caía sobre ela vindo do sonho como um pedaço enorme
de matéria pegajosa. Ele a sacudia, acalmava, trazia água, que ela bebia
soluçando, ainda semiacossada pelo outro lado de sua vida. Dizia não se
lembrar de nada, era uma coisa horrível só que impossível de explicar, e
acabava por adormecer levando seu segredo consigo, porque Luis sabia que
ela sabia, que acabava de confrontar aquele que entrava em seu sonho,
sabe-se lá sob que horrenda máscara, e cujos joelhos Laura abraçaria numa
vertigem de espanto, quem sabe de amor inútil. Era sempre a mesma coisa,
ele lhe estendia um copo d’água, esperando em silêncio que ela tornasse a
apoiar a cabeça no travesseiro. Talvez um dia o espanto fosse mais forte que
o orgulho, se é que aquilo era orgulho. Talvez nesse dia ele pudesse lutar ao
lado dela. Talvez nem tudo estivesse perdido, talvez a nova vida chegasse
de fato a ser outra coisa que não aquele simulacro de sorrisos e de cinema
francês.
Diante da prancheta, cercado de pessoas com quem não tinha intimidade,
Luis recuperava o sentido da simetria e o método que gostava de aplicar à
vida. Visto que Laura não tocava no assunto, esperando com aparente
indiferença a resposta de tio Emilio, cabia a ele lidar com mamãe.
Respondeu a sua carta limitando-se às miúdas notícias das últimas semanas,
e deixou para o pós-escrito uma frase retificadora: “De modo que o Víctor
fala em vir para a Europa. Todo mundo querendo viajar, deve ser a
propaganda das agências de turismo. Diga a ele para escrever, podemos
mandar todos os dados de que precise. Diga a ele também que desde já pode
contar com nossa casa”.
A noite é boa conselheira etc. A eles coube um sono pesado e surdo, depois
que os corpos se encontraram numa monótona batalha que no fundo não
haviam desejado. Uma vez mais se fechava o tácito acordo: pela manhã
falariam do tempo, do crime de Saint-Cloud, de James Dean. A carta
continuava sobre o rebordo e enquanto tomavam chá não puderam deixar de
vê-la, mas Luis sabia que quando voltasse do trabalho já não a encontraria.
Laura apagava os rastros com sua diligência fria, eficaz. Um dia, outro dia,
outro dia mais. Uma noite os dois riram muito com as histórias dos
vizinhos, com um programa de Fernandel. Cogitaram assistir a uma peça de
teatro, passar um fim de semana em Fontainebleau.
Os dados desnecessários se acumulavam sobre a prancheta, tudo coincidia
com a carta de mamãe. O navio chegava efetivamente ao Havre na manhã
do dia 17, uma sexta-feira, e o trem especial entrava em Saint-Lazare às
onze e quarenta e cinco. Na quinta foram assistir à peça de teatro e se
divertiram muito. Duas noites antes Laura tivera outro pesadelo mas ele não
se dera ao trabalho de lhe buscar água e deixou que ela se acalmasse
sozinha, dando-lhe as costas. Depois Laura havia dormido em paz, passava
o dia ocupada cortando e costurando um vestido de verão. Falaram em
comprar uma máquina de costura elétrica quando terminassem de pagar a
geladeira. Luis encontrou a carta de mamãe na gaveta da mesa de cabeceira
e levou-a para o escritório. Telefonou para a companhia marítima, mesmo
estando seguro de que mamãe fornecia as datas exatas. Era sua única
certeza, porque não dava nem para pensar em todo o resto. E aquele imbecil
do tio Emilio. Era melhor escrever para Matilde, por mais que estivessem
afastados Matilde compreenderia a urgência de intervir, de proteger mamãe.
Mas era mesmo preciso (não era uma pergunta, mas como dizê-lo de outro
modo) proteger mamãe, justamente mamãe? Por um momento pensou em
pedir um longa distância e conversar com ela. Lembrou-se do xerez e das
bolachinhas Bagley e deu de ombros. Além disso, não havia tempo de
escrever para Matilde, embora na verdade houvesse tempo, mas talvez fosse
preferível esperar sexta-feira 17 antes de… O conhaque já não ajudava nem
mesmo a não pensar, ou pelo menos a pensar sem sentir medo. Lembrava-se
cada vez mais claramente do semblante de mamãe nas últimas semanas de
Buenos Aires, depois do enterro de Nico. O que ele entendera como dor
agora lhe aparecia como outra coisa, algo onde havia uma rancorosa
desconfiança, uma expressão de animal que sente que vão abandoná-lo num
terreno baldio distante de casa para livrar-se dele. Agora começava a ver de
fato o semblante de mamãe. Só agora a via de verdade naqueles dias em que
a família inteira se revezava para visitá-la, para dar-lhe os pêsames por
Nico, para fazer-lhe companhia à tarde, e em que Laura e ele também
vinham de Adrogué para fazer-lhe companhia, para estar com mamãe.
Ficavam só um pouco, porque depois aparecia tio Emilio, ou Víctor, ou
Matilde, e todos eram uma mesma fria repulsa, a família indignada pelo
sucedido, por Adrogué, porque eles eram felizes enquanto Nico,
pobrezinho, enquanto Nico. Nunca desconfiariam a que ponto haviam
colaborado para despachá-los no primeiro navio disponível; como se
tivessem se associado para pagar as passagens deles, para levá-los
carinhosamente a bordo com presentes e lenços.
Claro que seu dever de filho o obrigava a escrever sem demora para
Matilde. Ainda era capaz de pensar coisas assim antes do quarto conhaque.
No quinto pensava-as novamente e ria (cruzava Paris a pé para estar mais
sozinho e esvaziar a cabeça), ria de seu dever de filho, como se os filhos
tivessem deveres, como se os deveres fossem de quarto grau, os sagrados
deveres para a sagrada senhorita do imundo quarto grau. Porque seu dever
de filho não era escrever para Matilde. Para que fingir (não era uma
pergunta, mas como dizê-lo de outro modo) que mamãe estava louca? A
única coisa a fazer era não fazer nada, deixar passar os dias, exceto sexta-
feira. Quando se despediu como sempre de Laura, dizendo-lhe que não iria
almoçar porque precisava se dedicar a uns cartazes urgentes, estava tão
convencido do resto que teria podido acrescentar: “Se você quiser, podemos
ir juntos”. Refugiou-se no café da estação, menos por dissimulação do que
para contar com a pobre vantagem de ver sem ser visto. Às onze e trinta e
cinco localizou Laura pela saia azul, acompanhou-a à distância, viu-a
conferir o painel, consultar um funcionário, comprar um tíquete de acesso à
plataforma, passar para a área onde já se reuniam as pessoas com o ar de
quem espera. De trás de um carrinho de carga repleto de caixotes de fruta
fitava Laura, que parecia estar na dúvida entre posicionar-se perto da saída
da plataforma ou avançar plataforma adentro. Fitava-a sem surpresa, como
a um inseto cujo comportamento poderia ser interessante. O trem chegou
pouco depois e Laura se misturou às pessoas que se aproximavam das
janelas dos vagões em busca cada um do seu, entre gritos e mãos que se
projetavam como se dentro do trem as pessoas estivessem se afogando.
Contornou o carrinho de carga e entrou na plataforma entre mais caixotes
de fruta e manchas de óleo. Do lugar onde estava veria a saída dos
passageiros, veria Laura passar novamente, seu rosto tomado de alívio —
porque o rosto de Laura não estaria tomado de alívio? (Não era uma
pergunta, mas como dizê-lo de outro modo.) E então, dando-se ao luxo de
ser o último depois da passagem dos últimos viajantes e dos últimos
carregadores, sairia por sua vez, desceria até a praça repleta de sol para ir
tomar conhaque no café da esquina. E naquela mesma tarde escreveria para
mamãe sem a menor referência ao episódio ridículo (mas o episódio não era
ridículo) e depois criaria coragem e falaria com Laura (mas não criaria
coragem e não falaria com Laura). Fosse como fosse, conhaque, isso sem a
menor dúvida, e que tudo fosse para o diabo. Vê-los passar assim aos
cachos, abraçando-se com gritos e lágrimas; as parentelas desatadas, um
erotismo barato como um carrossel de parque de diversões varrendo a
plataforma, entre malas e pacotes e até que enfim, até que enfim, há quanto
tempo, como você está bronzeada, Ivette, pois é, fez um sol espetacular,
querida. Dedicado a procurar semelhanças, pelo prazer de aliar-se à
imbecilidade, dois dos homens que passavam perto deviam ser argentinos,
pelo corte de cabelo, pelos casacos, pelo ar de autossuficiência disfarçando
a insegurança de chegar a Paris. Um, sobretudo, era parecido com Nico,
dedicado a procurar semelhanças. O outro não, e na realidade o primeiro
também não quando se olhava o pescoço muito mais grosso e a cintura mais
larga. Mas dedicado a procurar semelhanças só pelo prazer da coisa, aquele
outro que já havia passado e avançava para a catraca da saída levando só
uma mala na mão esquerda, Nico era canhoto como ele, tinha aquelas
costas um pouco encurvadas, aquele desenho de ombros. E Laura devia ter
pensado a mesma coisa porque ia atrás olhando para ele tendo no rosto uma
expressão que Luis conhecia bem, o rosto de Laura quando acordava do
pesadelo e sentava na cama olhando fixamente para o espaço, olhando,
agora sabia, para aquele que se distanciava dando-lhe as costas, consumada
a inominável vingança que a fazia gritar e debater-se em sonhos.
Dedicados a procurar semelhanças, naturalmente o homem era um
desconhecido, viram-no de frente quando largou a mala no chão para
localizar o bilhete e entregá-lo ao encarregado da catraca. Laura foi a
primeira a sair da estação, esperou que ela se distanciasse e se perdesse no
ponto do ônibus. Entrou no café da esquina e se jogou numa banqueta. Mais
tarde não conseguiu se lembrar se havia pedido alguma coisa para beber, se
aquilo que lhe queimava a boca era o ranço do conhaque barato. Trabalhou
a tarde inteira nos cartazes sem parar para descansar. De quando em quando
pensava que teria de escrever a mamãe, mas foi deixando para depois até a
hora da saída. Cruzou Paris a pé, quando chegou em casa encontrou a
zeladora no saguão e conversou um pouco com ela. Teria gostado de ficar
conversando com a zeladora ou com os vizinhos, mas todos iam entrando
nos apartamentos e a hora do jantar estava se aproximando. Subiu as
escadas devagar (na verdade sempre subia devagar para não fatigar os
pulmões e não tossir) e quando chegou ao terceiro andar se apoiou na porta
antes de tocar a campainha, para descansar um momento na atitude daquele
que escuta o que está se passando no interior de uma casa. Depois tocou
com os dois toques curtos de sempre.
— Ah, é você — disse Laura, oferecendo-lhe uma face fria. — Eu já
estava começando a me perguntar se você teria sido obrigado a ficar até
mais tarde. A carne deve ter passado do ponto.
A carne estava no ponto, mas em compensação não tinha gosto de nada.
Se naquele momento ele tivesse sido capaz de perguntar a Laura por que
havia ido à estação, talvez o café tivesse recuperado o sabor, ou o cigarro.
Mas Laura não saíra de casa o dia inteiro, disse-o como se precisasse mentir
ou esperasse que ele fizesse um comentário brincalhão sobre a data, as
manias lamentáveis de mamãe. Mexendo o café, cotovelos apoiados na
toalha, deixou passar o momento uma vez mais. A mentira de Laura já não
tinha importância para ele, mais uma entre tantos beijos que não eram dele,
tantos silêncios nos quais tudo era Nico, nos quais não havia nada nela ou
nele que não fosse Nico. Por que (não era uma pergunta, mas como dizê-lo
de outro modo) não pôr um terceiro talher na mesa? Por que não partir, por
que não fechar o punho e acertar aquele rosto triste e sofrido que a fumaça
do cigarro deformava, fazia ir e vir como entre duas águas, parecia encher
pouco a pouco de ódio como se fosse o próprio rosto de mamãe? Talvez ele
estivesse no outro aposento, talvez esperasse apoiado na porta como ele
havia esperado, ou já se instalara onde sempre fora o senhor, no território
branco e morno dos lençóis onde comparecera tantas vezes nos sonhos de
Laura. Esperaria ali, deitado de costas, fumando também ele seu cigarro,
tossindo um pouco, rindo com uma cara de palhaço, como a dos últimos
dias, quando já não lhe restava uma só gota de sangue sadio nas veias.
Foi para o outro aposento, aproximou-se da prancheta, acendeu a
lâmpada. Não precisava reler a carta de mamãe para respondê-la como
devia. Começou a escrever, querida mamãe. Escreveu: querida mamãe.
Jogou fora o papel, escreveu: mamãe. Sentia a casa como um punho que
fosse se fechando. Tudo era mais estreito, mais sufocante. O apartamento
bastara para dois, havia sido planejado exatamente para dois. Quando
ergueu os olhos (acabava de escrever: mamãe), Laura estava na porta,
olhando para ele. Luis largou a caneta.
— Você não acha que ele emagreceu muito? — disse.
Laura fez um gesto. Um brilho paralelo lhe descia pela face.
— Um pouco — disse. — A pessoa vai mudando…
Os bons serviços
Para Marta Mosquera, que me me falou em Paris
de madame Francinet
J
á faz algum tempo que tenho dificuldade para acender o fogo. Os
fósforos não são mais como os de antigamente, agora é preciso virá-
los de cabeça para baixo e esperar que a chama crie força; a lenha
vem úmida, e por mais que eu recomende a Frédéric que me traga
troncos secos, eles sempre estão com cheiro de molhado e não se inflamam
direito. Desde que minhas mãos começaram a tremer, tudo ficou muito mais
difícil. Antes eu fazia uma cama em dois segundos e os lençóis ficavam
parecendo recém-passados. Agora preciso dar voltas e mais voltas ao redor
da cama, e madame Beauchamp se irrita e diz que se me paga por hora é
para que eu não perca tempo alisando uma ruga aqui e outra ali. Tudo
porque minhas mãos tremem e porque os lençóis de agora não são mais
como os de antigamente, firmes e grossos. O dr. Lebrun falou que não tenho
nada, a única coisa é que preciso me cuidar bem, não apanhar friagem e ir
deitar cedo. “E esse copo de vinho de vez em quando, hein, madame
Francinet? Seria melhor suprimirmos… E o pernod ao meio-dia também…”
O dr. Lebrun é um médico jovem, com ideias muito boas para os jovens. No
meu tempo ninguém teria acreditado que vinho faz mal. E depois que eu
nunca bebo, propriamente, como a Germaine, do terceiro andar, ou aquele
grosseirão do Félix, o carpinteiro. Não sei por que agora estou me
lembrando do coitado do monsieur Bébé, da noite em que me obrigou a
beber um copo de uísque. Monsieur Bébé! Monsieur Bébé! Na cozinha do
apartamento de madame Rosay, na noite da festa. Eu saía muito, naquele
tempo, ainda andava de casa em casa, trabalhava horas a fio. Na casa de
monsieur Renfeld, na casa das irmãs que davam aulas de piano e violino,
em tantas casas, todas muito boas. Agora mal posso ir três vezes por
semana à casa de madame Beauchamp e acho que não vai ser por muito
tempo. Minhas mãos tremem tanto, e madame Beauchamp se irrita comigo.
Agora ela já não me recomendaria a madame Rosay e madame Rosay não
viria me buscar, agora monsieur Bébé não me encontraria na cozinha. Não,
monsieur Bébé de jeito nenhum.
Quando madame Rosay apareceu lá em casa já era tarde e ela só ficou por
um momento. Na verdade minha casa é um cômodo só, mas como ali
dentro há a cozinha e o que sobrou dos móveis quando Georges morreu e
foi preciso vender tudo, tenho a sensação de que é meu direito chamá-la de
minha casa. De todo modo há três cadeiras, e madame Rosay tirou as luvas,
sentou-se e disse que o cômodo era pequeno mas simpático. Eu não me
senti impressionada por causa de madame Rosay, só teria gostado de estar
com uma roupa melhor. Ela me pegou de surpresa, eu estava com a saia
verde que me deram na casa das irmãs. Madame Rosay não olhava nada, ou
melhor, olhava mas logo desviava o olhar, como se quisesse se desgrudar do
que havia olhado. O nariz dela estava um pouco franzido; talvez não
gostasse do cheiro de cebola (eu gosto muito de cebola) ou do xixi do
coitado do Minouche. Mas eu estava feliz com a visita de madame Rosay e
falei isso a ela.
— Ah, claro, madame Francinet. Eu também estou muito contente por ter
encontrado a senhora, porque ando tão ocupada… — franzia o nariz, como
se as ocupações cheirassem mal. — Quero lhe pedir que… Quer dizer,
madame Beauchamp achou que talvez a senhora dispusesse da noite de
domingo.
— Mas com toda a certeza — eu disse. — Que mais eu iria fazer no
domingo depois da missa? Dou uma passadinha na casa de Gustave e…
— É, claro — disse madame Rosay. — Se a senhora estiver disponível no
domingo, eu gostaria de uma ajudinha lá em casa. Vamos dar uma festa.
— Uma festa? Parabéns, madame Rosay.
Mas madame Rosay pareceu não gostar dessa parte, e se levantou de
repente.
— A senhora ajudaria na cozinha, haverá muito trabalho. Se puder ir às
sete, meu mordomo lhe explica o necessário.
— Com certeza, madame Rosay.
— Aqui está meu endereço — disse madame Rosay, e me deu um
cartãozinho creme. — Quinhentos francos está bem?
— Quinhentos francos.
— Digamos seiscentos. Poderá sair à meia-noite, assim terá tempo de
pegar o último métro. Madame Beauchamp me disse que a senhora é de
confiança.
— Oh, madame Rosay!
Quando ela foi embora me deu vontade de rir pensando que por pouco não
lhe ofereci uma xícara de chá (teria sido preciso achar alguma que não
estivesse lascada). Às vezes não me dou conta da pessoa com quem estou
falando. Só quando vou à casa de alguma senhora me seguro e falo como
empregada. Deve ser porque na minha casa não sou empregada de ninguém,
ou porque ainda tenho a sensação de morar em nossa casinha de três
cômodos de quando Georges e eu trabalhávamos na fábrica e não
passávamos necessidade. Vai ver que é porque de tanto ralhar com o coitado
do Minouche, que faz xixi debaixo do fogão, acho que também sou uma
senhora, como madame Rosay.
***
Quando eu ia entrar na casa, por pouco não perdi o salto de um dos sapatos.
Falei na hora: “Boa sorte quero ver-te e querer-te, diabo afasta-te”. E toquei
a campainha.
Apareceu um senhor de costeletas grisalhas como no teatro, e me disse
para entrar. Era um apartamento imenso com cheiro de cera de assoalho. O
senhor de costeletas era o mordomo e tinha cheiro de benjoim.
— Até que enfim — disse ele, e depressa me mandou seguir por um
corredor que levava aos quartos dos empregados. — Numa outra vez, toque
na porta da esquerda.
— Madame Rosay não tinha me dito nada.
— A senhora não se preocupa com essas coisas. Alice, esta é madame
Francinet. Dê a ela um dos seus aventais.
Alice me levou até seu quarto, depois da cozinha (e que cozinha), e me
deu um avental grande demais. Parece que madame Rosay a deixara
encarregada de me explicar tudo, mas no começo achei que o assunto dos
cachorros era um engano e fiquei olhando para Alice, para a verruga que
Alice tinha embaixo do nariz. Ao passar pela cozinha, tudo o que eu havia
conseguido ver era tão luxuoso e reluzente que a mera ideia de ficar aquela
noite ali, limpando coisas de cristal e preparando as bandejas com as
guloseimas que se comem nas casas daquele tipo, me pareceu melhor que ir
a qualquer teatro ou ao campo. Vai ver que foi por isso que no início não
entendi direito o assunto dos cachorros e fiquei olhando para Alice.
— Eh, sim — disse Alice, que era bretã e bem que se percebia. — A
senhora falou.
— Mas como? E esse senhor de costeletas, não pode tomar conta dos
cachorros?
— O sr. Rodolos é o mordomo — disse Alice, com santo respeito.
— Bom, se não ele, alguém. Não entendo por que eu.
Alice ficou insolente de chofre.
— E por que não, madame…?
— Francinet, para servi-la.
— … madame Francinet? Não é um trabalho difícil. O pior é o Fido, a
srta. Lucienne o educou muito mal…
Me explicava, de novo amável como uma gelatina.
— Açúcar a todo momento, e atrás da gente o tempo todo. Monsieur Bébé
também estraga o Fido sempre que aparece, é tanto mimo, a senhora sabe…
Mas a Médor é muito obediente, e a Fifine se enfia num canto e de lá não
sai.
— Então — falei, sem me recuperar de meu espanto — são muitíssimos
cachorros.
— Eh, sim, muitíssimos.
— Num apartamento! — falei, indignada e sem conseguir disfarçar. —
Não sei qual é sua opinião, senhora…
— Senhorita.
— Desculpe. Mas no meu tempo, senhorita, os cachorros viviam nos
canis, e falo porque sei, pois meu falecido esposo e eu tínhamos uma casa
ao lado do palacete do monsieur… — mas Alice não permitiu que eu
explicasse. Não que dissesse alguma coisa, mas dava para perceber que ela
estava impaciente e quando isso acontece eu percebo na mesma hora.
Fiquei quieta, e ela começou a me dizer que madame Rosay adorava os
cachorros e que o senhor respeitava todos os seus gostos. E além disso
havia a filha, que herdara o mesmo gosto.
— A senhorita é louca pelo Fido, e com certeza vai comprar uma cadela
da mesma raça para que tenham filhotes. São só seis: Médor, Fifine, Fido,
Petite, Chow e Hannibal. O pior é o Fido, a srta. Lucienne o educou muito
mal. Não está ouvindo? Com toda certeza é ele latindo na recepção.
— E onde vou precisar ficar, para tomar conta deles? — perguntei com ar
despreocupado, não queria que Alice imaginasse que eu havia ficado
ofendida.
— Monsieur Rodolos lhe mostrará como se chega ao quarto dos
cachorros.
— Quer dizer que os cachorros têm um quarto? — falei, sempre com
muita naturalidade. Não era culpa de Alice, no fundo, mas devo dizer a
verdade e a verdade é que eu a teria enchido de bofetadas ali mesmo.
— Claro que eles têm o quarto deles — disse Alice. — A senhora quer
que os cachorros durmam cada um no seu colchão, e mandou preparar um
quarto só para eles. Daqui a pouco a gente leva uma cadeira para que a
senhora possa se sentar e cuidar deles.
Ajeitei o avental o melhor possível e voltamos para a cozinha. Justamente
naquele momento uma outra porta se abriu e madame Rosay entrou. Estava
com um robe de chambre azul com peles brancas e o rosto coberto de
creme. Parecia um pastel, com o perdão da palavra. Mas estava muito
amável, e dava para perceber que minha chegada tirava um peso de cima
dela.
— Ah, madame Francinet. Alice já deve ter lhe explicado do que se trata.
Talvez mais tarde a senhora possa ajudar em alguma outra coisa leve, secar
os copos ou algo assim, mas o principal é fazer meus tesouros ficarem
calminhos. Eles são deliciosos, mas não sabem ficar juntos, ainda mais
sozinhos; logo brigam, e não consigo tolerar a ideia de que o Fido morda o
Chow, coitadinho, ou que o Médor… — baixou a voz e se aproximou um
pouco. — Além disso, a senhora vai precisar ficar muito atenta para a
Petite, ela é uma pomerânia de olhos lindos. Tenho a impressão de que…
está chegando a hora… e não gostaria que o Médor, ou o Fido… a senhora
entende? Amanhã vou mandá-la para nosso sítio, mas até lá, não quero que
aconteça nada. E não saberia onde enfiá-la se não for com os outros no
quarto deles. Pobre do meu tesouro, tão mimosa! Ela ia passar a noite
inteira grudada em mim. A senhora vai ver que eles não vão lhe dar
trabalho. Pelo contrário, vai se divertir vendo como eles são inteligentes.
Vou até lá de vez em quando para ver como as coisas estão andando.
Me dei conta de que essa não era uma frase amável, e sim uma
advertência, mas madame Rosay continuava sorrindo embaixo do creme
com cheiro de flores.
— Lucienne, minha filha, também vai, claro. Ela não consegue ficar longe
do seu Fido. Até dorme com ele, imagine só… — mas esta última parte ela
estava dizendo a alguém que lhe passava pela cabeça, porque ao mesmo
tempo se virou para sair e não a vi mais. Alice, encostada na mesa, me
olhava com cara de idiota. Não é que eu despreze as pessoas, mas ela me
olhava com cara de idiota.
— A que horas é a festa? — perguntei, dando-me conta de que sem querer
continuava falando no tom de madame Rosay, aquele jeito de fazer as
perguntas um pouco para o lado da pessoa, como se a pergunta fosse
dirigida a um cabide ou a uma porta.
— Já vai começar — disse Alice, e monsieur Rodolos, que entrava
naquele momento retirando uma partícula de pó do terno preto, confirmou
com ar importante.
— Isso, já vão chegar — disse, fazendo um sinal para Alice para que se
encarregasse de umas lindas bandejas de prata. — Monsieur Fréjus e
monsieur Bébé já chegaram e querem drinques.
— Esses dois sempre chegam cedo — disse Alice. — Assim, também,
podem beber… Já expliquei tudo a madame Francinet, e madame Rosay
conversou com ela sobre o que precisa fazer.
— Ah, perfeitamente. Então o melhor será levá-la até o quarto onde ela
vai ter que ficar. Logo levo os cachorros; o senhor e monsieur Bébé estão
brincando com eles na sala.
— A srta. Lucienne estava com Fido no quarto — disse Alice.
— Isso. Ela mesma o entregará a madame Francinet. Mas agora, se quiser
me acompanhar…
Foi assim que me vi sentada numa velha cadeira vienense exatamente no
centro de um enorme quarto cheio de colchões pelo chão e onde havia uma
casinha com teto de palha igual às choças dos negros, que, segundo me
explicou o sr. Rodolos, era um capricho da srta. Lucienne para seu Fido. Os
seis colchões estavam jogados por todos os lados e havia tigelas com água e
comida. A única lâmpada elétrica pendia exatamente em cima da minha
cabeça, e fornecia uma luz muito fraca. Mencionei o fato ao sr. Rodolos, e
também que tinha medo de adormecer quando estivesse sozinha com os
cachorros.
— Ah, a senhora não vai adormecer, madame Francinet — ele respondeu.
— Os cachorros são muito carinhosos mas são mal-educados, a senhora vai
ter que se ocupar deles o tempo inteiro. Espere aqui um momento.
Quando ele fechou a porta e me deixou sozinha, sentada no centro daquele
quarto tão esquisito, com cheiro de cachorro (um cheiro limpo, é verdade) e
todos os colchões pelo chão, me senti um pouco estranha porque era quase
como estar sonhando, principalmente com aquela luz amarela no alto da
cabeça, e o silêncio. Claro que o tempo passaria depressa e não seria tão
desagradável, mas a todo momento eu tinha a sensação de que havia alguma
coisa errada. Não exatamente que tivessem me chamado para aquilo sem
avisar, mas talvez a estranheza de ter que fazer aquele trabalho, ou vai ver
que eu realmente achava que havia alguma coisa errada com aquilo. O
assoalho brilhava de tão lustrado e dava para perceber que os cachorros
faziam suas necessidades em outro lugar, porque não havia nenhum cheiro,
exceto o deles mesmos, que não é tão ruim depois de um tempinho. Mas o
pior era estar sozinha e esperando, e quase me alegrei quando a srta.
Lucienne entrou com Fido no colo, um pequinês horrível (não suporto os
pequineses), e o sr. Rodolos apareceu gritando e chamando os outros cinco
cachorros até entrarem todos no aposento. A srta. Lucienne estava linda,
toda de branco, e tinha um cabelo platinado que lhe chegava aos ombros.
Beijou e acariciou Fido durante muito tempo, sem prestar atenção nos
outros, que tomavam água e brincavam, e depois veio com ele e me
entregou, e olhou para mim pela primeira vez.
— A senhora é a pessoa que vai cuidar deles? — indagou. Tinha uma voz
um pouco esganiçada, mas não se pode negar que era muito bonita.
— Sou madame Francinet, para servi-la — eu disse, como cumprimento.
— O Fido é muito delicado. Segure. Sim, no colo. Não vai sujar a
senhora, eu mesma dou banho nele todas as manhãs. Como eu disse, ele é
muito delicado. Não deixe que ele se misture com esses aí. De vez em
quando lhe ofereça água.
O cachorro ficou quieto sobre minha saia, mas mesmo assim eu sentia um
certo nojo. Um dinamarquês imenso cheio de manchas pretas se aproximou
e começou a cheirá-lo, como fazem os cachorros, e a srta. Lucienne soltou
um guincho e encheu-o de pontapés. O sr. Rodolos não se afastava da porta,
e dava para ver que estava acostumado.
— Está vendo, está vendo — gritava a srta. Lucienne. — É isso que eu
não quero que aconteça, e a senhora não deve permitir. Mamãe já lhe
explicou, não é mesmo? A senhora não vai sair daqui enquanto a party não
acabar. E se o Fido se sentir mal e começar a chorar, bata na porta para que
ele me avise.
Saiu sem olhar para mim, depois de pegar o pequinês de novo no colo e
beijá-lo até que o cachorro ganiu. Monsieur Rodolos ficou um momento
mais.
— Os cachorros não são bravos, madame Francinet — ele me disse. —
De todo modo, se tiver alguma dificuldade, bata na porta que eu venho.
Fique calma — acrescentou, como se isso tivesse lhe ocorrido no último
momento, e saiu, fechando a porta com todo o cuidado. Me pergunto se não
passou o ferrolho por fora, mas resisti à tentação de ir verificar, porque acho
que teria me sentido muito pior.
Na realidade, cuidar dos cachorros não foi difícil. Eles não brigavam, e o
que madame Rosay dissera sobre a Petite não era verdade, pelo menos
ainda não havia começado. É claro, assim que a porta se fechou larguei o
pequinês asqueroso e deixei que se enroscasse tranquilamente com os
outros. Ele era o pior, ficava provocando o tempo todo, mas os outros não
faziam nada com ele e até dava para perceber que o convidavam para
brincar. De vez em quando tomavam água ou comiam a deliciosa carne das
tigelas. Com o perdão da palavra, quase me dava fome ver aquela carne tão
deliciosa nas tigelas.
Às vezes, muito longe, ouvia-se alguém rir e não sei se era porque eu
estava informada de que iam fazer música (Alice mencionara na cozinha),
mas tive a impressão de ouvir um piano, embora vai ver era em outro
apartamento. O tempo ia ficando longuíssimo, sobretudo por causa da única
luz que pendia do teto, tão amarela. Quatro dos cachorros adormeceram
logo, e o Fido e a Fifine (não sei se aquela era a Fifine, mas achei que devia
ser ela) brincaram um pouco mordendo as orelhas um do outro e
terminaram bebendo muita água e deitando-se um perto do outro num dos
colchões. Às vezes eu tinha a impressão de ouvir passos do lado de fora e
corria para pegar o Fido no colo, vai que a srta. Lucienne entrasse… Mas
ninguém apareceu e muito tempo se passou, até que comecei a cochilar na
cadeira, e quase teria gostado de apagar a luz e dormir de verdade num dos
colchões vazios.
Não direi que não fiquei contente quando Alice apareceu para me buscar.
Alice estava com o rosto muito vermelho e dava para perceber que ainda
estava tomada pela excitação da festa e de tudo o que teriam comentado na
cozinha, ela, as outras criadas e monsieur Rodolos.
— Madame Francinet, a senhora é uma maravilha — disse. — Tenho
certeza de que a patroa vai ficar encantada e vai chamá-la sempre que
houver uma festa. A última que veio não conseguiu que eles ficassem
quietos, e até a srta. Lucienne teve que parar de dançar e vir tomar conta
deles. Olhe só como eles dormem!
— Os convidados já foram embora? — perguntei, um pouco
envergonhada dos elogios.
— Os convidados já foram, mas há outros que são de casa e sempre ficam
mais um pouco. Todos beberam muito, isso eu garanto. Até o senhor, que
nunca bebe em casa, veio até a cozinha muito contente e fez brincadeiras
com Ginette e comigo sobre como a janta havia sido bem servida, e deu
cem francos para cada uma de nós. Acho que a senhora também vai receber
uma gorjeta. A srta. Lucienne e o namorado ainda estão dançando, e
monsieur Bébé e seus amigos estão brincando de se fantasiar.
— Então preciso ficar mais?
— Não, a patroa falou que quando o deputado e os outros fossem embora
era para soltar os cachorros. Adoram brincar com eles no salão. Eu levo o
Fido e a senhora só precisa me acompanhar até a cozinha.
Fui atrás dela, cansadíssima e morta de sono, mas cheia de curiosidade
para ver alguma coisa da festa, mesmo que fosse só os cálices e os pratos na
cozinha. E vi mesmo, porque havia montões empilhados por toda parte,
bem como garrafas de champanhe e de uísque, algumas ainda com um
fundo de bebida. Na cozinha usavam lâmpadas de luz azul, e fiquei
deslumbrada ao ver tantos armários brancos, tantas estantes onde reluziam
os talheres e as panelas. Ginette era uma ruiva pequenina, que também
estava muito excitada e recebeu Alice com risinhos e gestos. Parecia
bastante desavergonhada, como tantas nos tempos que correm.
— Continuam do mesmo jeito? — perguntou Alice, olhando para a porta.
— Continuam — disse Ginette, contorcendo-se. — Essa é a senhora que
ficou cuidando dos cachorros?
Eu estava com sede e sono, mas não me ofereciam nada, nem sequer um
lugar para sentar. Estavam entusiasmadas demais com a festa, por tudo o
que haviam visto enquanto serviam a mesa ou recebiam os agasalhos na
entrada. Soou uma campainha e Alice, que continuava com o pequinês no
colo, saiu correndo. Entrou monsieur Rodolos e passou sem me olhar,
voltando logo depois com os cinco cachorros que pulavam e faziam-lhe
festas. Vi que a mão dele estava cheia de torrões de açúcar e que os
distribuía para que os cachorros o seguissem até o salão. Me apoiei na
grande mesa do centro, fazendo força para não olhar muito para Ginette,
que assim que Alice voltou continuou falando de monsieur Bébé e das
fantasias, de monsieur Fréjus, da pianista que parecia tuberculosa, e de
como a srta. Lucienne tivera uma discussão com o pai. Alice pegou uma das
garrafas semivazias e a levou à boca, com uma grosseria que me deixou tão
desconcertada que eu não sabia para onde olhar; mas o pior foi que logo
depois ela passou a garrafa para a ruiva, que acabou de esvaziá-la. As duas
riam como se também tivessem bebido demais durante a festa. Talvez por
isso nem se lembravam de que eu estava com fome, principalmente com
sede. Com toda certeza, se estivessem em seu juízo perfeito teriam se dado
conta. As pessoas não são más, e muitas descortesias são cometidas porque
estão com a cabeça em outro lugar; o mesmo acontece no ônibus, nos
mercados e nos escritórios.
A campainha soou de novo e as duas criadas saíram correndo. Ouviam-se
grandes gargalhadas, e de vez em quando o piano. Eu não entendia por que
me faziam esperar; só precisavam pagar e me deixar ir embora. Sentei-me
numa cadeira e apoiei os cotovelos na mesa. Meus olhos estavam pesados
de sono, por isso não me dei conta de que alguém acabara de entrar na
cozinha. Primeiro ouvi um barulho de copos se batendo e um assobio muito
baixo. Pensei que era Ginette e me virei para perguntar quais eram os
planos deles em relação a mim.
— Ah, desculpe, senhor — falei, levantando-me. — Não sabia que o
senhor estava aqui.
— Não estou, não estou — disse o senhor, que era muito jovem. —
Loulou, venha ver!
Estava um pouco trôpego, apoiando-se numa das estantes. Enchera o copo
com uma bebida branca, e olhava para ele contra a luz, como se estivesse
desconfiado. A convocada Loulou não aparecia, de modo que o jovem
senhor veio para o meu lado e falou para eu me sentar. Era louro, muito
pálido, e estava vestido de branco. Quando me dei conta de que ele estava
vestido de branco em pleno inverno, perguntei a mim mesma se estava
sonhando. Isso não é maneira de dizer, quando vejo uma coisa estranha
sempre me pergunto com todas as letras se estou sonhando. Talvez
estivesse, porque às vezes sonho coisas estranhas. Mas o senhor estava ali,
sorrindo com ar de cansaço e quase de tédio. Me dava pena ver como era
pálido.
— A senhora deve ser a cuidadora dos cachorros — disse, e começou a
beber.
— Sou madame Francinet, para servi-lo — falei. Ele era tão simpático, e
não me dava o menor medo. Antes, o desejo de ser útil, de ter alguma
delicadeza com ele. Agora ele olhava de novo para a porta entreaberta.
— Loulou! Você vem? Aqui tem vodca. Por que a senhora andou
chorando, madame Francinet?
— Ah, não, senhor. Devo ter bocejado um pouco antes de o senhor entrar.
Estou um pouco cansada, e a luz no quarto dos… no outro quarto não era
muito boa. Quando a gente boceja…
— … os olhos choram — disse ele. Tinha dentes perfeitos, e as mãos mais
brancas que já vi num homem. Endireitando-se de repente, foi ao encontro
de um jovem que entrava cambaleante.
— Esta senhora — explicou a ele — é que nos livrou daqueles bichos
asquerosos. Loulou, diga boa noite.
Levantei-me outra vez e cumprimentei com a cabeça. Mas o senhor de
nome Loulou nem mesmo olhava para mim. Encontrara uma garrafa de
champanhe na geladeira e estava tentando extrair a rolha. O jovem de
branco se aproximou para ajudá-lo e os dois começaram a rir e a tentar abrir
a garrafa. Rir faz a pessoa ficar sem forças, e nenhum dos dois conseguia
desarrolhar a garrafa. Aí os dois tentaram fazer isso juntos e começaram a
puxar cada um de um lado, até que acabaram se apoiando um no outro, cada
vez mais contentes mas sem conseguir abrir a garrafa. Monsieur Loulou
dizia: “Bébé, Bébé, por favor, vamos embora agora…”, e monsieur Bébé ria
cada vez mais e o empurrava de brincadeira, até que no fim desarrolhou a
garrafa e deixou um grande jato de espuma cair pelo rosto de monsieur
Loulou, que soltou um palavrão e esfregou os olhos, andando de um lado
para outro.
— Pobre querido, você está muito bêbado — dizia monsieur Bébé,
apoiando as mãos nas costas dele e empurrando-o para que saísse. — Vá
fazer companhia à coitada da Nina, que está muito triste… — e ria, só que
já sem vontade.
Depois voltou, e achei que estava mais simpático que nunca. Tinha um
tique nervoso que o fazia levantar uma das sobrancelhas. Repetiu esse gesto
duas ou três vezes, me olhando.
— Pobre madame Francinet — disse, tocando minha cabeça com muita
delicadeza. — Deixaram a senhora sozinha, e certamente não lhe deram
nada para beber.
— Daqui a pouco eles vêm, para me dizer que já posso voltar para casa,
senhor — respondi. Não me incomodava ele ter tomado a liberdade de tocar
minha cabeça.
— Que pode voltar, que pode voltar… Que necessidade alguém pode ter
de que lhe deem licença para fazer alguma coisa? — disse monsieur Bébé,
sentando-se diante de mim. Havia erguido novamente o copo, mas largou-o
na mesa, foi buscar outro limpo e encheu-o de uma bebida cor de chá.
— Madame Francinet, vamos beber juntos — disse, estendendo o copo.
— A senhora gosta de uísque, claro.
— Deus meu, senhor — falei, assustada. — Fora vinho, e aos sábados um
pernodzinho na casa de Gustave, não sei o que é beber.
— É verdade que a senhora nunca tomou uísque? — disse monsieur Bébé,
maravilhado. — Só um gole. Vai ver como é bom. Vamos, madame
Francinet, coragem. O primeiro gole é o mais difícil… — e começou a
declamar uma poesia de que não me lembro que falava de uns navegantes
de algum lugar estranho. Tomei um gole de uísque e achei tão perfumado
que tomei outro, depois mais outro. Monsieur Bébé saboreava sua vodca e
me olhava encantado.
— Com a senhora é um prazer, madame Francinet — dizia. — Sorte que a
senhora não é jovem, dá para ser seu amigo… É só olhar para a senhora
para ver que é uma pessoa boa, uma espécie de tia do interior, alguém que
se pode mimar e que pode nos mimar, mas sem perigo, sem perigo… Veja,
por exemplo, Nina. Tem uma tia no Poitou que lhe manda frangos, cestas de
legumes e até mel … Não é uma maravilha?
— Claro que é, senhor — falei, deixando que ele me servisse mais um
pouco, já que lhe dava tanto gosto. — Sempre é agradável ter alguém que
tome conta de nós, principalmente sendo tão jovem. Na velhice só nos resta
pensar em nós mesmos, porque os outros… Veja eu, por exemplo. Quando
meu Georges morreu…
— Beba mais um pouco, madame Francinet. A tia de Nina mora longe e a
única coisa que faz é mandar frangos… Não há risco de assuntos de
família…
Eu estava tão enjoada que nem estava mais com medo do que aconteceria
se monsieur Redolos entrasse e me surpreendesse sentada na cozinha,
falando com um dos convidados.
Eu estava encantada olhando para monsieur Bébé, ouvindo sua risada tão
aguda, provavelmente por efeito da bebida. E ele gostava que eu olhasse
para ele, embora primeiro me parecesse um pouco desconfiado, mas depois
não fez mais que sorrir e beber, me olhando o tempo todo. Sei que ele
estava terrivelmente bêbado porque Alice me dissera tudo o que eles
haviam bebido e também pelo modo como brilhavam os olhos de monsieur
Bébé. Se ele não estivesse bêbado, o que estava fazendo na cozinha com
uma velha como eu? Mas os outros também estavam bêbados, porém
monsieur Bébé era o único que me fazia companhia, o único que havia me
oferecido uma bebida e que acariciara minha cabeça, mesmo não sendo
certo. Por isso eu me sentia tão contente na companhia de monsieur Bébé, e
olhava cada vez mais para ele, e ele gostando de ser olhado, porque uma ou
duas vezes ficou um pouco de perfil, e tinha um nariz belíssimo, de estátua.
Todo ele era como uma estátua, principalmente com aquele terno branco.
Até a bebida dele era branca, e estava tão pálido que me dava um pouco de
medo por ele. Via-se que ele passava a vida trancado, como tantos jovens de
hoje. Eu teria gostado de dizer isso a ele, mas quem era eu para dar
conselhos a um senhor como ele, e além disso não deu tempo porque se
ouviu uma pancada na porta e monsieur Loulou entrou arrastando o
dinamarquês, amarrado com uma cortina que ele havia torcido para formar
uma espécie de corda. Estava muito mais alto que monsieur Bébé, e quase
caiu quando o dinamarquês deu uma volta e enrolou a cortina nas pernas
dele. Ouviam-se vozes no corredor, e apareceu um senhor de cabelo
grisalho, que devia ser monsieur Rosay, e logo depois madame Rosay muito
vermelha e excitada, e um jovem magro com o cabelo mais preto que eu já
vi. Todos queriam socorrer monsieur Loulou, cada vez mais enrolado com o
dinamarquês e a cortina, sem parar de rir e fazer piada aos gritos. Ninguém
prestou atenção em mim, até que madame Rosay me viu e ficou séria. Não
consegui ouvir o que ela estava dizendo ao senhor de cabelo grisalho, que
olhou para meu copo (estava vazio, mas com a garrafa ao lado), e monsieur
Rosay olhou para monsieur Bébé e dirigiu a ele um gesto de indignação,
enquanto monsieur Bébé piscava um olho para ele e começou a rir às
gargalhadas, jogando-se para trás em sua cadeira. Eu estava muito
atrapalhada, de modo que achei melhor me levantar e cumprimentar a todos
com uma inclinação, depois ir para um lado e esperar. Madame Rosay havia
saído da cozinha, e um instante depois entraram Alice e monsieur Rodolos,
que se aproximaram de mim e me disseram para acompanhá-los.
Cumprimentei a todos os presentes com uma inclinação, mas não acredito
que alguém tenha reparado porque estavam acalmando monsieur Loulou,
que de repente havia começado a chorar e dizia coisas incompreensíveis
apontando para monsieur Bébé. A última coisa de que me lembro foi a
risada de monsieur Bébé, jogado para trás em sua cadeira.
Alice esperou que eu tirasse o avental e monsieur Rodolos me entregou
seiscentos francos. Lá fora estava nevando e já fazia um bom tempo que o
último metrô havia passado. Tive de andar mais de uma hora até chegar a
minha casa, porque o calor do uísque me protegia, e também a lembrança
de tantas coisas e do muito que eu havia me divertido na cozinha no fim da
festa.
As babas do diabo
N
unca se saberá como se conta isso, se na primeira pessoa ou na
segunda, usando a terceira do plural ou inventando continuamente
formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu
viram subir a lua, ou: nos me dói o fundo dos olhos, e
principalmente assim: tu a mulher loura eram as nuvens que continuam
correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus rostos. Que diabo.
Depois de começar a contar, se desse para ir beber uma bock por aí e a
máquina prosseguisse sozinha (porque escrevo à máquina), seria a
perfeição. E não se trata de maneira de dizer. A perfeição, sim, porque aqui
o furo que é preciso contar também é uma máquina (de outra espécie, uma
Contax 1.1.2), e vai ver que uma máquina sabe mais sobre outra máquina
que eu, tu, ela — a mulher loura — e as nuvens. Mas de bobo só tenho a
sorte, e sei que, caso eu saia, esta Remington ficará petrificada sobre a mesa
com aquele ar duplamente imóvel que têm as coisas móveis quando não se
movem. De modo que preciso escrever. Um dentre todos nós precisa
escrever, se é que isso vai ser contado. Melhor que seja eu, que estou morto,
que estou menos comprometido que os demais; eu que vejo somente as
nuvens e consigo pensar sem me distrair, escrever sem me distrair (lá vai
outra, de bordas cinza) e lembrar-me sem me distrair, eu que estou morto (e
vivo, não se trata de enganar ninguém, já se verá quando chegar o
momento, porque de alguma maneira preciso dar a partida e comecei por
esta ponta, a de antes, a do começo, que ao fim e ao cabo é a melhor das
pontas quando se quer contar alguma coisa).
De repente me pergunto por que necessito contar isso, mas se
começássemos a nos perguntar a razão pela qual fazemos tudo o que
fazemos, se nos perguntássemos até mesmo por que aceitamos um convite
para jantar (agora está passando uma pomba, e acho que um pardal) ou por
que, quando alguém nos conta uma boa história, logo depois começamos a
sentir uma cosquinha no estômago e não sossegamos enquanto não
entramos no escritório ao lado para contar a história também; só
sossegamos depois de fazê-lo, ficamos satisfeitos e podemos voltar para
nosso trabalho. Que eu saiba, ninguém explicou isso até agora, de modo que
o melhor a fazer é deixar os pruridos de lado e contar, porque ao fim e ao
cabo ninguém se envergonha de respirar ou de calçar os sapatos; são coisas
que todo mundo faz, e quando alguma coisa sai errado, quando dentro do
sapato encontramos uma aranha ou ao respirar sentimos uma espécie de
vidro quebrado, então é preciso contar o que se passa, contar para os
rapazes do escritório ou para o médico. Ai, doutor, toda vez que eu
respiro… Contar sempre, sempre afastar essa cosquinha incômoda do
estômago.
E já que vamos contar, organizemos um pouco, desçamos pela escada
deste edifício até o domingo 7 de novembro, exatamente um mês atrás. É só
descer cinco andares e já se chega ao domingo, com um sol inesperado para
novembro em Paris, morrendo de vontade de sair por aí, de ver coisas, de
tirar fotos (porque éramos fotógrafos, sou fotógrafo). Tenho consciência de
que o mais difícil será encontrar o modo de contar, e não tenho medo de me
arrepender. Vai ser difícil porque ninguém sabe direito quem
verdadeiramente está contando, se sou eu, ou o que aconteceu, ou o que
estou vendo (nuvens, e às vezes uma pomba), ou se simplesmente conto
uma verdade que é somente minha verdade, e nesse caso não se trata da
verdade salvo para meu estômago, para essa vontade de sair correndo e
acabar de alguma maneira com isso, seja lá o que for.
Contaremos devagar, e iremos vendo o que acontece à medida que
escrevo. Se me substituírem, se eu ficar sem saber o que dizer, se as nuvens
se acabarem e começar alguma outra coisa (porque não é possível que isso
seja estar continuamente vendo nuvens que passam, e às vezes uma pomba),
se alguma coisa disso tudo… E depois do “se”, o que vou pôr, como vou
encerrar corretamente a oração? Mas se começo a fazer perguntas não conto
nada; melhor contar, talvez contar seja uma espécie de resposta, pelo menos
para alguém que venha a ler isto.
Roberto Michel, franco-chileno, tradutor e eventualmente fotógrafo
amador, saiu do número 11 da Rue Monsieur-le-Prince no domingo 7 de
novembro do ano em curso (agora vão passando duas menores, de bordas
prateadas). Fazia três semanas que estava trabalhando na versão para o
francês do tratado sobre interpelações e recursos de José Norberto Allende,
professor na Universidade de Santiago. É estranho haver vento em Paris,
sobretudo um vento que rodopiava nas esquinas e subia, castigando as
velhas persianas de madeira por trás das quais surpresas senhoras
comentavam de diferentes maneiras a instabilidade do tempo nestes últimos
anos. Mas o sol também estava presente, cavalgando o vento e amigo dos
gatos, razão pela qual nada me impediria de dar uma volta pelos cais do
Sena e tirar algumas fotos da Conciergerie e da Sainte-Chapelle. Não
passava das dez horas e calculei que por volta das onze haveria boa luz, a
melhor possível no outono; para ganhar tempo derivei até a ilha Saint-Louis
e comecei a andar pelo Quai d’Anjou, fiquei algum tempo olhando o Hôtel
de Lauzun, recitei para mim mesmo alguns versos de Apollinaire que
sempre me vêm à cabeça quando passo na frente do Hôtel de Lauzun (e isso
que deveria me lembrar de outro poeta, mas Michel é um insistente), e
quando de repente o vento parou e o sol ficou pelo menos duas vezes maior
(quero dizer mais cálido, mas na realidade dá no mesmo), sentei no
parapeito e me senti terrivelmente feliz na manhã de domingo.
Entre as muitas maneiras de combater o nada, uma das melhores é tirar
fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde cedo às crianças, pois
exige disciplina, educação estética, bom olho e dedos seguros. Não se trata
de estar à espreita da mentira, como qualquer repórter, e de capturar a
estúpida silhueta do figurão que sai do número 10 da Downing Street, mas
de todo modo quando se anda com a câmera temos uma espécie de dever de
estar atentos, de não perder o brusco e delicioso rebote de um raio de sol
numa velha pedra, ou a corrida de tranças ao ar de uma garotinha que volta
para casa com um pão ou uma garrafa de leite. Michel sabia que o fotógrafo
realiza sempre uma espécie de substituição de sua maneira pessoal de ver o
mundo por outra que a câmera lhe impõe, insidiosa (agora passa uma
grande nuvem quase preta), mas não desconfiava, sabendo que bastava sair
sem a Contax para recuperar o tom distraído, a visão sem enquadramento, a
luz sem diafragma nem 1/250. Agora mesmo (que palavra, agora, que
mentira idiota) eu poderia ficar ali sentado no peitoril junto ao rio, olhando
passar as barcaças pretas e vermelhas, sem que me ocorresse pensar
fotograficamente as cenas, apenas me deixando levar no deixar-se levar das
coisas, correndo imóvel com o tempo. E já não havia vento.
Depois segui pelo Quai de Bourbon até chegar à ponta da ilha, onde a
íntima pracinha (íntima por ser pequena e não por ser recatada, pois oferece
em cheio o peito ao rio e ao céu) me jubila e rejubila. Encontrei apenas um
casal e, claro, pombas; quem sabe alguma das que agora passam pelo que
estou vendo. De um salto me instalei no parapeito e me deixei envolver e
amarrar pelo sol, oferecendo-lhe o rosto, as orelhas, as duas mãos (guardei
as luvas no bolso). Não estava com vontade de tirar fotos, e acendi um
cigarro só para fazer alguma coisa; acho que no momento em que ia
aproximando o fósforo do tabaco vi pela primeira vez o rapazinho.
O que eu havia tomado por um casal parecia muito mais um garoto com a
mãe, embora ao mesmo tempo eu me desse conta de que não era um garoto
com a mãe, de que era um casal no sentido que sempre damos aos casais
quando os vemos apoiados aos parapeitos ou abraçados nos bancos das
praças. Como não tinha nada para fazer, dispunha de tempo de sobra para
me perguntar por que o rapazinho estava tão nervoso, tão semelhante a um
potro ou uma lebre, enfiando as mãos nos bolsos, retirando-as em seguida,
uma e depois a outra, passando os dedos pelo cabelo, mudando de posição,
e principalmente por que estava com medo, pois isso se adivinhava em cada
gesto seu, um medo sufocado pela vergonha, um impulso de jogar-se para
trás que dava a sensação de que seu corpo estava no limite da fuga,
contendo-se num último e comovente decoro.
Tão claro era tudo aquilo, ali a cinco metros — e estávamos só nós contra
o parapeito, na ponta da ilha —, que no início o medo do garoto não me
deixou ver direito a mulher loura. Agora, ao refletir, vejo-a muito melhor
naquele primeiro momento em que li seu rosto (de repente ela havia girado
como um cata-vento de cobre e os olhos, os olhos estavam ali) e
compreendi vagamente o que poderia estar acontecendo com o menino e
disse para mim mesmo que valia a pena ficar e olhar (o vento carregava as
palavras, os meros murmúrios). Acho que sei olhar, se é que sei alguma
coisa, e que todo ato de olhar destila falsidade, pois é o que nos projeta mais
para fora de nós mesmos, sem a menor garantia, assim como farejar, ou
(mas Michel se bifurca facilmente, não se pode deixar que declame o que
bem entender). De todo modo, se podemos prever de antemão a provável
falsidade, olhar se torna possível; talvez seja suficiente escolher bem entre o
olhar e o olhado, despir as coisas de tanta roupa alheia. E, claro, tudo isso é
bastante difícil.
Do garoto, lembro-me da imagem, mais que do corpo propriamente dito
(mais adiante haverá uma explicação para isso, ao passo que agora tenho
certeza de que me lembro muito melhor do corpo da mulher que de sua
imagem. Ela era magra e esbelta, duas palavras injustas para dizer o que ela
era, e vestia um casaco de pele quase preto, quase longo, quase bonito.
Todo o vento daquela manhã (agora soprava muito de leve e não fazia frio)
havia passado por seu cabelo louro, que emoldurava seu rosto branco e
sombrio — duas palavras injustas — e deixava o mundo de pé e
horrivelmente só diante de seus olhos negros, seus olhos que pousavam
sobre as coisas como duas águias, dois saltos no vazio, duas rajadas de lodo
verde. Não estou descrevendo nada, na verdade estou tentando entender. E
falei duas rajadas de lodo verde.
Sejamos justos, o garoto estava bastante bem-vestido e calçava umas
luvas amarelas que eu teria jurado que pertenciam a seu irmão mais velho,
estudante de direito ou de ciências sociais; era simpático ver os dedos das
luvas saindo do bolso da jaqueta. Passou-se muito tempo sem que eu visse
seu rosto, apenas um perfil nada tolo — pássaro sobressaltado, anjo de Fra
Filippo, arroz de leite — e umas costas de adolescente que quer fazer judô e
que se bateu uma ou duas vezes por uma ideia ou uma irmã. Uns catorze,
talvez quinze anos, adivinhava-se que vestido e alimentado pelos pais mas
sem um centavo no bolso, precisando debater com os companheiros antes
de optar por um café, um conhaque, um maço de cigarros. Decerto percorria
as ruas pensando nas colegas, em como seria bom ir ao cinema assistir ao
filme mais recente, ou comprar romances ou gravatas ou garrafas de bebida
com rótulos verdes e brancos. Em sua casa (a casa devia ser respeitável,
almoço ao meio-dia e paisagens românticas nas paredes, com um saguão
sombrio e um porta-guarda-chuvas de mogno ao lado da porta) choveria
devagar o tempo de estudar, de ser a esperança de mamãe, de ser parecido
com papai, de escrever à tia de Avignon. Por isso tanta rua, todo o rio para
ele (mas sem um centavo) e a cidade misteriosa dos quinze anos, com seus
signos nas portas, seus gatos aterradores, o saco de batatas fritas a trinta
francos, a revista pornográfica dobrada em quatro, a solidão feito um vazio
nos bolsos, os encontros felizes, o fervor por tanta coisa incompreendida
mas iluminada por um amor total, pela disponibilidade semelhante ao vento
e às ruas.
Essa biografia era a do garoto e a de qualquer garoto, mas aquele eu agora
via isolado, tornado único pela presença da mulher loura que continuava
falando com ele. (Me cansa insistir, mas acabam de passar duas grandes
nuvens esfiapadas. Penso que naquela manhã não olhei nem uma vez sequer
para o céu, porque assim que pressenti o que se passava com o garoto e com
a mulher, não consegui fazer outra coisa senão olhar para eles e…)
Resumindo, o garoto estava inquieto e dava para adivinhar sem muito
esforço o que acabava de ocorrer poucos minutos antes, meia hora no
máximo. O garoto chegara à ponta da ilha, vira a mulher e a achara
admirável. A mulher esperava que isso acontecesse porque estava ali
justamente para esperar por tal coisa, ou quem sabe o garoto chegara antes e
ela o vira de uma sacada ou de um automóvel e saíra a seu encontro,
provocando o diálogo sob um pretexto qualquer, segura desde o início de
que ele sentiria medo dela e quereria fugir, e que naturalmente ficaria,
paralisado e sombrio, fingindo experiência e prazer na aventura. O resto era
fácil, porque estava acontecendo a cinco metros de mim e qualquer um teria
podido acompanhar as etapas do jogo, a esgrima irrisória; seu maior
encanto não era o presente, mas a previsão do desenlace. O rapaz acabaria
por dar uma desculpa, um encontro, uma obrigação qualquer, e se afastaria
tropeçando, confuso, querendo caminhar com desenvoltura, nu sob o olhar
zombeteiro que o acompanharia até o final. Ou então ficaria, fascinado ou
simplesmente incapaz de tomar a iniciativa, e a mulher começaria a
acariciar seu rosto, a despenteá-lo, falando-lhe já sem usar a voz, e de
chofre o tomaria pelo braço para levá-lo consigo, a menos que ele, com um
desconforto que talvez começasse a temperar o desejo, o risco da aventura,
tomasse coragem e passasse o braço pela cintura dela e a beijasse. Tudo isso
podia acontecer mas ainda não estava acontecendo, e Michel esperava
perversamente, sentado no peitoril, aprontando a câmera quase sem se dar
conta para tirar uma foto pitoresca num canto da ilha com um casal nada
comum falando e se olhando.
Curioso que a cena (o nada, quase: dois que estão ali, desigualmente
jovens) tivesse uma espécie de aura inquietante. Pensei que essa parte era
responsabilidade minha e que minha foto, se eu a tirasse, devolveria as
coisas a sua tola verdade. Eu teria gostado de saber o que pensava o homem
do chapéu cinza sentado ao volante do carro parado junto ao molhe que leva
à passarela, e que lia o jornal ou dormia. Eu acabara de avistá-lo, porque as
pessoas dentro de um carro parado praticamente desaparecem, somem na
mísera gaiola desprovida da beleza que lhe dão o movimento e o perigo. E
contudo o carro estivera ali o tempo todo, fazendo parte (ou deformando
aquela parte) da ilha. Um carro: é o mesmo que dizer um poste de
iluminação, um banco de praça. Nunca o vento, a luz do sol, essas matérias
sempre novas para a pele e para os olhos, e também o garoto e a mulher,
únicos, ali postados para alterar a ilha, para mostrá-la a mim de outra
maneira. Enfim, até podia ser que o homem do jornal também estivesse
atento ao que se passava e sentisse como eu aquele ranço maligno de toda
expectativa. Agora a mulher havia girado suavemente até posicionar o
rapazinho entre ela própria e o parapeito, eu os via quase de perfil, e ele era
mais alto, mas não muito mais alto, e mesmo assim ela o dominava, dava a
impressão de pairar sobre ele (sua risada, de repente, um chicote de
plumas), esmagando-o pelo mero fato de estar ali, de rir, de mover a mão
pelo ar. Por que esperar mais? Com um diafragma dezesseis, com um
enquadramento que não incluísse o horrível carro preto mas sim certa
árvore, necessária para quebrar um espaço excessivamente cinzento…
Ergui a câmera, fingi que estudava uma perspectiva que não os incluía e
fiquei à espreita, certo de que iria capturar por fim o gesto revelador, a
expressão que resume tudo, a vida a que o movimento dá ritmo mas que
uma imagem rígida destrói ao seccionar o tempo, se não escolhermos a
imperceptível fração essencial. Não foi preciso esperar muito. A mulher
avançava em sua tarefa de imobilizar suavemente o garoto, de retirar dele,
fibra por fibra, os últimos restos de liberdade, numa lentíssima tortura
deliciosa. Imaginei os finais possíveis (agora surge uma nuvenzinha
espumosa, quase sozinha no céu), previ a chegada em casa (no térreo,
provavelmente, um apartamento que ela teria saturado de almofadas e
gatos) e entrevi o constrangimento do garoto e sua determinação
desesperada em dissimular e deixar-se levar fingindo que nada daquilo era
novidade para ele. Fechando os olhos, se é que os fechei, organizei a cena,
os beijos brincalhões, a mulher repelindo com meiguice as mãos que
pretenderiam despi-la como nos romances, sobre uma cama coberta com
um edredom lilás, e obrigando-o em compensação a permitir que ela o
despisse, verdadeiramente mãe e filho sob a luz amarela do abajur de
opalina, e tudo acabaria como sempre, talvez, mas talvez tudo acontecesse
de outra maneira, e a iniciação do adolescente não passasse, não a
deixassem passar, de um longo preâmbulo em que as inépcias, as carícias
exasperantes, o açodamento das mãos se resolvessem sabe lá como, num
prazer em separado e solitário, numa petulante negativa misturada à arte de
cansar e desconcertar tanta inocência ferida. Podia ser assim, podia muito
bem ser assim; aquela mulher não buscava um amante no garoto, e ao
mesmo tempo se apossava dele para um fim impossível de entender se não
o imaginasse como um jogo cruel, desejo de desejar sem satisfação, de
excitar-se para algum outro, alguém que de maneira nenhuma podia ser
aquele garoto.
Michel é culpado de praticar literatura, de invenções irreais. Nada lhe dá
tanto prazer quanto imaginar exceções, indivíduos fora da espécie, monstros
nem sempre repugnantes. Mas aquela mulher era um convite à invenção,
talvez fornecendo as chaves suficientes para adivinhar a verdade. Antes que
ela fosse embora, e agora que preencheria minha lembrança durante muitos
dias, porque tenho inclinação a ruminar, decidi não perder nem um
momento mais. Incluí tudo no visor (com a árvore, o peitoril, o sol das
onze) e bati a foto. A tempo de entender que os dois haviam percebido e
estavam olhando para mim, o garoto surpreso e com um ar interrogativo,
mas ela irritada, decididamente hostis tanto o corpo como o rosto que se
sabiam roubados, ignominiosamente presos numa pequena imagem
química.
Eu poderia contar em detalhes, mas não vale a pena. A mulher falou que
ninguém tinha o direito de tirar fotos sem autorização e exigiu que eu lhe
entregasse o rolo de filme. Tudo isso numa voz seca e clara, com sólido
sotaque parisiense, que ia subindo de cor e tom a cada frase. Quanto a mim,
dar ou deixar de dar o rolo de filme a ela praticamente não tinha
importância, mas quem me conhece sabe que é preciso me pedir as coisas
com bons modos. O resultado é que me limitei a formular a opinião de que
a fotografia não só não é proibida nos lugares públicos, como conta com o
mais decidido favorecimento oficial e privado. E ao mesmo tempo que dizia
isso a ela, me divertia sem dar na vista observando como o garoto se retraía,
ia ficando para trás — simplesmente não saindo do lugar —, e de repente
(parecia quase incrível) se virava e largava a correr, imaginando, coitado,
que caminhava e na verdade fugindo a toda a velocidade, passando ao lado
do carro, perdendo-se como um fio da Virgem no ar da manhã.
Mas os fios da Virgem também se chamam babas do diabo, e Michel teve
de suportar minuciosas imprecações, ouvir-se chamar de intrometido e
imbecil, enquanto se esmerava deliberadamente em sorrir e declinar, com
simples movimentos de cabeça, todos aqueles insultos baratos. Quando eu
estava começando a me cansar, ouvi bater a porta de um carro. O homem do
chapéu cinzento estava ali, olhando para nós. Só então compreendi que ele
desempenhava um papel na comédia.
Começou a andar em nossa direção, segurando o jornal que havia
pretendido ler. Do que me lembro melhor é da careta que entortava a boca
daquele homem, cobrindo seu rosto de rugas, alguma coisa trocava de lugar
e de formato, porque a boca do homem tremia e a careta ia de um lado para
outro nos lábios, como uma coisa independente e viva, alheia à vontade.
Mas todo o resto era fixo, palhaço enfarinhado ou homem sem sangue, de
pele apagada e seca, olhos afundados e buracos do nariz negros e visíveis,
mais negros que as sobrancelhas ou o cabelo ou a gravata negra. Andava
cautelosamente, como se o calçamento lhe ferisse os pés; vi sapatos de
verniz, de sola tão fina que devia acusar cada aspereza da rua. Não sei por
que eu havia descido do peitoril, não sei bem por que tomei a decisão de
não entregar a foto a eles, de furtar-me àquela exigência em que adivinhava
medo e covardia. O palhaço e a mulher se consultavam em silêncio:
formávamos um perfeito triângulo intolerável, algo que forçosamente se
romperia com um clique. Ri na cara deles e saí andando, suponho que um
pouco mais devagar que o garoto. À altura dos primeiros prédios, do lado
da passarela de ferro, me virei para olhar para eles. Não se moviam, mas o
homem deixara cair o jornal; tive a impressão de que a mulher, de costas
para o parapeito, passava as mãos pela pedra, com o gesto clássico e
absurdo do acossado que tenta encontrar a saída.
O make me a mask.
Dylan Thomas
D
édée me telefonou à tarde dizendo que Johnny não estava bem, e
na mesma hora fui para o hotel. Faz alguns dias que Johnny e
Dédée estão instalados num hotel da Rue Lagrange, num
aposento do quarto andar. Bastou ver a porta do cômodo para
perceber que Johnny está na pior das misérias; a janela dá para um pátio
quase completamente escuro, e à uma da tarde ele tem que ficar de luz
acesa se quiser ler o jornal ou enxergar a própria cara. Não está frio, mas
encontrei Johnny enrolado num cobertor, encaixado numa poltrona
encardida que larga pedaços de estopa amarelada por todos os lados. Dédée
está envelhecida e o vestido vermelho lhe cai muito mal; é um vestido de
trabalho, para as luzes do palco; naquele quarto de hotel vira uma espécie
de coágulo repugnante.
— O companheiro Bruno é fiel como o mau hálito — disse Johnny à guisa
de cumprimento, encolhendo os joelhos até apoiar o queixo neles. Dédée
me passou uma cadeira e puxei um maço de Gauloises. No bolso eu trazia
uma garrafinha de rum, mas não queria mostrá-la antes de fazer uma ideia
do que está acontecendo. Acho que o mais irritante era a lâmpada com seu
bocal pendurada no fio sujo de moscas. Depois de olhar para ela uma ou
duas vezes e de proteger os olhos com a mão, perguntei a Dédée se não
podíamos apagar a lâmpada e ficar só com a luz da janela. Johnny
acompanhava minhas palavras e meus gestos com uma grande atenção
distraída, como um gato que olha fixo mas que se percebe que está inteiro
em outra coisa; que é outra coisa. Finalmente Dédée se levantou e apagou a
luz. No que restava, uma mistura de cinza e preto, pudemos nos reconhecer
melhor. Johnny tirou uma das longas mãos magras de debaixo do cobertor e
senti a flacidez morna de sua pele. Então Dédée disse que ia preparar uns
nescafés. Fiquei feliz em saber que pelo menos eles têm uma lata de
nescafé. Sempre que uma pessoa tem uma lata de nescafé me dou conta de
que ela não está na última lona; ainda há como resistir um pouco.
— Já faz um tempo que não nos vemos — eu disse a Johnny. — Pelo
menos um mês.
— Você só quer saber de contar o tempo — respondeu ele de mau humor.
— Dia 1o, 2, 3, 21. Em tudo você põe um número. E essa aí é a mesma
coisa. Quer saber por que ela está furiosa? Porque perdi o sax. Bom, na
verdade ela tem razão.
— Mas como você conseguiu perder o sax? — perguntei, percebendo no
mesmo instante que aquele era exatamente o tipo de pergunta que não se
pode fazer a Johnny.
— No metrô — disse Johnny. — Para maior segurança eu tinha posto ele
debaixo do assento. Era sensacional andar de metrô sabendo que o sax
estava debaixo das minhas pernas, bem seguro.
— Ele só se deu conta quando estava subindo a escada do hotel — disse
Dédée com a voz um pouco rouca. — E eu tive de sair feito uma maluca
para avisar o pessoal do metrô, a polícia.
Pelo silêncio que se seguiu, percebi que fora tempo perdido. Mas Johnny
começou a rir daquele jeito dele, com um riso por trás dos dentes e dos
lábios.
— Algum pobre coitado deve estar tentando tirar algum som dele —
falou. — Era um dos piores saxes que eu já tive; dava para perceber que
Doc Rodríguez tinha tocado nele, estava completamente deformado pelo
lado da alma. Como instrumento em si até que não era ruim, mas o
Rodríguez é capaz de estragar um Stradivarius simplesmente afinando-o.
— E você tem como conseguir outro?
— É o que estamos vendo — disse Dédée. — Parece que o Rory Friend
tem um. O problema é o contrato do Johnny…
— O contrato — arremedou Johnny. — O que tem o contrato? É só tocar
e pronto, e não tenho sax nem dinheiro para comprar um sax, e os
companheiros estão na mesma.
Esta última parte não é verdade, e nós três sabemos. Ninguém mais se
anima a emprestar um instrumento a Johnny porque ele o perde ou destrói
na mesma hora. Perdeu o sax de Louis Rolling em Bordeaux, partiu em três
o sax que Dédée havia comprado quando o contrataram para uma turnê pela
Inglaterra, pisoteando-o e golpeando as coisas com ele. Ninguém mais sabe
quantos instrumentos ele já perdeu, empenhou ou destruiu. E em todos
tocava como acredito que um deus é capaz de tocar sax alto, supondo-se
que os deuses tenham renunciado às liras e flautas.
— Quando você começa, Johnny?
— Não sei. Hoje, eu acho, não é, Dé?
— Não, depois de amanhã.
— Todo mundo sabe as datas menos eu — resmunga Johnny, cobrindo-se
até as orelhas com o cobertor. — Eu teria jurado que era esta noite, e que
hoje à tarde precisava ensaiar.
— Dá no mesmo — disse Dédée. — A questão é que você não tem sax.
— Como assim, dá no mesmo? Não dá no mesmo. Depois de amanhã é
depois de amanhã, e amanhã é muito depois de hoje. E mesmo hoje é bem
depois de agora, que é quando estamos falando com o companheiro Bruno,
e eu me sentiria muito melhor se conseguisse esquecer o tempo e tomar
alguma coisa quente.
— A água já vai ferver, espere um pouco.
— Não era de calor por ebulição que eu estava falando — disse Johnny.
Aí mostrei a garrafinha de rum e foi como se tivéssemos acendido a luz,
porque Johnny escancarou a boca, maravilhado, e seus dentes começaram a
brilhar, e até Dédée teve de sorrir ao vê-lo tão surpreso e satisfeito. O rum
com o nescafé até que caiu bem, e nós três nos sentimos muito melhor
depois da segunda rodada e de um cigarro. A essa altura comecei a me dar
conta de que Johnny estava pouco a pouco se retraindo e que continuava
fazendo alusões ao tempo, tema que o preocupa desde que o conheço.
Poucas vezes vi um homem tão preocupado com tudo o que se refere ao
tempo. É uma mania, a pior de suas manias, que são tantas. Mas ele
discorre sobre essa sua mania e a explica com tanta graça que quase
ninguém consegue resistir. Lembrei-me de um ensaio antes de uma
gravação, em Cincinnati, uma coisa que aconteceu muito antes de ele vir
para Paris, em 49 ou 50. Na época Johnny estava em grande forma e eu
havia ido ao ensaio só para escutá-lo, a ele e também a Miles Davis. Todos
queriam tocar, todos estavam felizes, andavam bem-vestidos (pode ser que
eu me lembre disso por causa do contraste, de tão malvestido e sujo que
Johnny anda agora), tocavam com prazer, sem a menor impaciência, e o
técnico de som fazia sinais de contentamento atrás de sua janelinha, como
um babuíno satisfeito. E justo nesse momento, quando Johnny parecia estar
perdido em sua alegria, de repente ele parou de tocar e deu um soco em
alguém que estava por ali, dizendo: “Estou tocando isso amanhã”, e os
caras travaram, só dois ou três tocaram mais alguns compassos, como um
trem que demora a frear, e Johnny dava tapas na testa e repetia: “Isso eu já
toquei amanhã, é horrível, Miles, isso eu já toquei amanhã”, e ninguém
conseguia fazê-lo sair disso, e a partir dali tudo deu errado, Johnny tocava
sem empenho e querendo ir embora (para se drogar de novo, disse o técnico
de som, morto de raiva), e quando o vi sair, cambaleante e de cara cinzenta,
perguntei-me se aquilo ainda duraria muito tempo.
— Acho que vou telefonar para o dr. Bernard — disse Dédée, olhando de
viés para Johnny, que toma seu rum aos golinhos. — Você está com febre e
não quer comer nada.
— O dr. Bernard é um pobre idiota — disse Johnny, lambendo o copo. —
Vai receitar aspirina, depois dizer que aprecia jazz imensamente, por
exemplo Ray Noble. Sabe como é, Bruno. Se eu estivesse com o sax,
recebia o doutor com uma música que o faria descer os quatro andares de
bunda, degrau por degrau.
— De todo modo não vai lhe fazer mal nenhum tomar as aspirinas —
falei, olhando Dédée com o rabo do olho. — Se você quiser, eu telefono
quando descer, assim a Dédée não precisa sair. Olhe, quanto ao tal
contrato… Se você começar depois de amanhã, acho que a gente consegue
fazer alguma coisa. Eu, do meu lado, também posso tentar conseguir um
sax com o Rory Friend. E na pior das hipóteses… A questão é que você vai
ter que tomar mais cuidado, Johnny.
— Mas não hoje — disse Johnny, contemplando a garrafinha de rum. —
Amanhã, quando eu estiver com o sax. De modo que não há por que falar
nisso agora, Bruno. Cada vez me dou mais conta de que o tempo… Acho
que a música sempre ajuda a compreender um pouco essa questão. Bom,
não a compreender, porque na verdade não compreendo nada. A única coisa
que faço é me dar conta de que ali tem coisa. Como nesses sonhos, sabe, em
que você começa a desconfiar que vai dar tudo errado e fica com um pouco
de medo por antecipação; mas ao mesmo tempo não tem a menor certeza, e
às vezes tudo dá uma reviravolta, como uma panqueca, e de repente você
está na cama com uma mulher incrível e tudo é divinamente perfeito.
Dédée está lavando as xícaras e os copos num canto do quarto. Me dei
conta de que naquele quarto eles nem sequer têm água corrente; vejo uma
bacia decorada com flores cor-de-rosa e uma vasilha que me faz pensar num
animal embalsamado. E Johnny continua falando com a boca meio tapada
pelo cobertor e também parece um embalsamado com os joelhos contra o
queixo e seu rosto negro e liso que o rum e a febre pouco a pouco começam
a umedecer.
— Li algumas coisas sobre essa história toda, Bruno. É muito estranho, e
na verdade tão difícil… Acho que a música ajuda, sabe? Não a entender,
porque na verdade eu não entendo nada. — Bate na cabeça com o punho
cerrado. A cabeça faz um barulho de coco. — Não tem nada aqui dentro,
Bruno, rigorosamente nada. Isso aqui não pensa nada, não entende nada.
Nunca me fez a menor falta, para falar a verdade. Eu começo a entender dos
olhos para baixo, e quanto mais para baixo, mais eu entendo. Só que não é
exatamente entender, nesse ponto estamos de acordo.
— Sua febre vai subir — resmungou Dédée do fundo do aposento.
— Ah, cale a boca. É verdade, Bruno. Nunca pensei em nada, de repente
percebo que pensei determinada coisa, só isso, mas desse jeito não tem
graça, não é mesmo? Qual é a graça de perceber de repente uma coisa que a
gente pensou? No caso dá no mesmo se você ou qualquer outra pessoa
tivesse pensado aquela coisa. Não sou eu, eu. Simplesmente me beneficio
do que penso, mas sempre com atraso, e é isso que acaba comigo. Ah, é
difícil, é tão difícil… Não sobrou nem um gole?
Dei a ele as últimas gotas de rum, justamente quando Dédée acendia outra
vez a luz; quase não se via mais nada no aposento. Johnny está
transpirando, mas continua enrolado no cobertor, e de vez em quando
estremece e faz a poltrona ranger.
— Eu era muito pequeno quando me dei conta disso, foi logo depois de
aprender a tocar sax. Minha casa era um inferno, só se falava em dívidas,
hipotecas… Você sabe o que é uma hipoteca? Deve ser uma coisa terrível,
porque a velha arrancava os cabelos toda vez que o velho falava da hipoteca
e a coisa sempre acabava em porrada. Eu tinha treze anos… mas já lhe
contei essa história.
Contou milhares de vezes; milhares de vezes procurei escrevê-la bem e
fielmente em minha biografia de Johnny.
— Por isso na minha casa o tempo nunca acabava, sabe? De briga em
briga, quase sem comer. E para completar, a religião. Ah, essa parte você
não é capaz de imaginar. Quando o professor me conseguiu um sax que
você, se visse, morreria de rir, foi ali que eu acho que me dei conta da coisa.
A música me tirava do tempo. Sei muito bem que isso é só maneira de
dizer. Se você quer saber o que eu verdadeiramente sinto… acho que a
música me fazia entrar no tempo. Só que aí é preciso acreditar que esse
tempo não tem nada a ver com… bom, conosco, por assim dizer.
Como há um bom tempo conheço as alucinações de Johnny e de todos os
que levam a vida que ele leva, escuto-o com atenção mas sem me preocupar
muito com o que diz. Pergunto-me, porém, de que jeito ele obteve a droga
aqui em Paris. Será preciso interrogar Dédée, suprimir sua possível
cumplicidade. Johnny não vai aguentar muito tempo no estado em que está.
Droga e miséria não sabem andar juntas. Penso na música que está se
perdendo, nas dúzias de gravações nas quais Johnny poderia continuar
deixando sua marca, nessa sua fantástica supremacia em relação a todos os
outros músicos. “Estou tocando isso amanhã” adquire para mim de repente
um sentido claríssimo, porque Johnny sempre está tocando amanhã e o
resto vem atrás, nesse hoje que ele deixa para trás sem esforço com as
primeiras notas de sua música.
Sou um crítico de jazz com sensibilidade suficiente para ter consciência
de minhas limitações, e me dou conta de que o que estou pensando está
num plano inferior àquele em que o pobre Johnny procura avançar com
suas frases truncadas, seus suspiros, suas fúrias repentinas e suas lágrimas.
Ele não está nem um pouco interessado no fato de que eu o acho genial, e
nunca se envaideceu por saber que sua música está muito à frente da que
tocam seus companheiros. Penso melancolicamente que ele está no ponto
inicial de seu sax enquanto eu vivo obrigado a me conformar com o final.
Ele é a boca e eu a orelha, para não dizer que ele é a boca e eu… Todo
crítico, ai, é o triste arremate de uma coisa que começou como sabor, como
delícia de morder e mastigar. E a boca se move outra vez, gulosamente a
grande língua de Johnny recolhe um fiozinho de saliva dos lábios. As mãos
fazem um desenho no ar.
— Bruno, se um dia você conseguisse escrever isso… Não por mim,
entende, para mim não faz diferença. Mas deve ser lindo, sinto que deve ser
lindo. Eu estava lhe dizendo que quando comecei a tocar, ainda criança, me
dei conta de que o tempo ficava diferente. Uma vez contei isso ao Jim e ele
me disse que todo mundo se sente desse jeito, e que quando a gente
desliga… Foi assim que ele falou, quando a gente desliga. Mas não, eu não
desligo quando toco. Só que vou para outro lugar. É como estar no elevador,
você fica no elevador falando com as pessoas e não sente nada de diferente,
e enquanto isso passa o primeiro andar, o décimo, o vigésimo primeiro, e a
cidade ficou lá embaixo, e você está terminando a frase que havia
começado ao entrar, e entre as primeiras palavras e as últimas há cinquenta
e dois andares. Quando comecei a tocar, me dei conta de que estava
entrando num elevador, só que era um elevador de tempo, por assim dizer.
Não vá imaginar que eu esquecia a hipoteca, que esquecia a religião. Só que
naqueles momentos a hipoteca e a religião eram como uma roupa que a
gente não está vestindo; sei que a roupa está no armário, mas não venha me
dizer que naquele momento a tal roupa existe. A roupa existe quando a
visto, e a hipoteca e a religião existiam quando eu acabava de tocar e minha
velha entrava de cabelo solto, com os cachos pendurados, se queixando de
que eu estava arrebentando os ouvidos dela com essa-música-do-diabo.
Dédée trouxe outra xícara de nescafé, mas Johnny olha tristemente para o
copo vazio.
— Esse negócio do tempo é complicado, me pega por todos os lados.
Pouco a pouco começo a me dar conta de que o tempo não é como uma
sacola que você vai enchendo. O que estou querendo dizer é que mesmo
que você modifique o que está dentro, na sacola só cabe uma determinada
quantidade, nada mais. Está vendo minha mala ali, Bruno? Cabem dois
ternos e dois pares de sapatos. Bom, agora imagine que esvaziou a mala e
depois vai pôr outra vez os dois ternos e os dois pares de sapatos, e nesse
momento se dá conta de que só entram um terno e um par de sapatos.
Porém o mais incrível não é isso. O mais incrível é quando você se dá conta
de que pode enfiar uma loja inteira na mala, centenas e mais centenas de
ternos, do jeito que eu enfio a música no tempo quando estou tocando, às
vezes. A música e as coisas que eu penso quando viajo de metrô.
— Quando você viaja de metrô.
— É, isso mesmo, a coisa é essa — disse Johnny, provocador. — O metrô
é uma grande invenção, Bruno. Viajando no metrô você se dá conta de tudo
o que poderia caber na mala. Vai ver que eu não perdi o sax no metrô, vai
ver…
Começa a rir, tosse, e Dédée olha para ele preocupada. Mas ele faz gestos,
e ri e tosse misturando tudo, sacudindo-se embaixo do cobertor como um
chimpanzé. Lágrimas escorrem por seu rosto e ele as engole, sempre rindo.
— É melhor não confundir as coisas — diz, depois de algum tempo. —
Perdi, ponto. Mas o metrô serviu para que eu me desse conta do lance da
mala. Olhe, esse negócio das coisas elásticas é muito esquisito, percebo por
todo lado. Tudo é elástico, menino. As coisas que parecem duras têm uma
elasticidade…
Pensa, concentrando-se.
— … uma elasticidade retardada — acrescenta, surpreendentemente. Faço
um gesto de admiração aprovativa. Bravo, Johnny. O homem que diz que
não é capaz de pensar. Esse Johnny é demais. E agora estou realmente
interessado no que ele vai dizer, e ele se dá conta e seu olhar é mais
provocador que nunca.
— Você acha que vou conseguir outro sax para tocar depois de amanhã,
Bruno?
— Acho, mas você vai ter que tomar cuidado.
— Lógico, vou ter que tomar cuidado.
— Um contrato de um mês — explica a pobre Dédée. — Quinze dias na
boate de Rémy, dois concertos e os discos. A gente ia conseguir se virar tão
bem…
— Um contrato de um mês — arremeda Johnny com grandes gestos. — A
boate de Rémy, dois concertos e os discos. Be-bata-bop bop bop, chrrr. O
que ele tem é sede, uma sede, uma sede. E uma vontade de fumar, de fumar.
Principalmente uma vontade de fumar.
Ofereço-lhe um maço de Gauloises, mesmo sabendo muito bem que ele
está pensando na droga. Já anoiteceu, no corredor começa um vaivém de
gente, diálogos em árabe, uma canção. Dédée saiu, provavelmente foi
comprar alguma coisa para o jantar. Sinto a mão de Johnny em meu joelho.
— A garota é boa gente, sabe. Mas estou por aqui com ela. Faz um bom
tempo que não gosto mais dela, estou farto. De vez em quando ela ainda me
excita, sabe fazer amor como… — junta os dedos à italiana. — Mas preciso
me ver livre dela, voltar para Nova York. Para mim o mais importante é
voltar para Nova York, Bruno.
— Para quê? Aqui você está se virando melhor que lá. Não me refiro ao
trabalho, mas a sua vida propriamente dita. Tenho a impressão de que aqui
você tem mais amigos.
— É, tem você e a marquesa, mais os caras do clube… Você nunca fez
amor com a marquesa, Bruno?
— Não.
— Bom, é uma coisa que… Mas eu estava lhe falando do metrô e não sei
por que mudamos de assunto. O metrô é uma grande invenção, Bruno. Um
dia comecei a sentir um negócio no metrô, depois esqueci… E aí a coisa se
repetiu, dois ou três dias depois. Acabei sacando. É fácil de explicar, sabe,
mas é fácil porque na realidade não é a verdadeira explicação. A verdadeira
explicação simplesmente é impossível de explicar. Você teria que pegar o
metrô e esperar que acontecesse com você, apesar de que tenho a impressão
de que só acontece comigo. É um pouco assim, olhe. É verdade mesmo que
você nunca fez amor com a marquesa? Você precisa lhe pedir que suba no
tamborete dourado do canto do quarto dela, ao lado de um abajur muito
bonito, e aí… Pô, olha a mulher aí… já voltou.
Dédée entra com um pacote e olha para Johnny.
— A febre subiu. Já telefonei para o doutor, ele vem às dez. Falou para
você ficar quieto.
— Bom, está bem, mas antes vou contar ao Bruno a história do metrô. No
outro dia me dei conta do que estava acontecendo. Comecei a pensar na
minha mãe, depois na Lan e nas crianças, e, claro, na hora eu tinha a
sensação de estar caminhando pelo meu bairro, e via a cara dos
companheiros, do pessoal daquele tempo. Não era bem pensar, acho que já
lhe falei muitas vezes que nunca penso; a sensação que eu tenho é de estar
parado numa esquina vendo as coisas que eu penso passarem na minha
frente, mas não penso as coisas que vejo. Entende? O Jim garante que
acontece com todo mundo, que em geral (é o que ele diz) a pessoa não
pensa porque quer pensar. Digamos que seja verdade, a questão é que eu
havia embarcado no metrô na estação Saint-Michel e logo depois comecei a
pensar na Lan e nas crianças e a ver o bairro. Assim que me sentei, comecei
a pensar neles. Mas ao mesmo tempo eu me dava conta de que estava no
metrô, e vi que mais ou menos um minuto depois chegávamos à estação
Odéon e que as pessoas estavam embarcando e desembarcando. Aí
continuei pensando na Lan e vi minha mãe voltando das compras e comecei
a ver todos eles, a estar com eles de um jeito maravilhoso, como havia
muito tempo não sentia. As lembranças sempre são uma merda, mas
daquela vez eu estava gostando de pensar nas crianças e de vê-las. Se eu
começar a lhe contar tudo o que vi, você não vai acreditar porque ia levar
um tempão. E isso sem entrar em detalhes. Por exemplo, só para você ter
uma ideia, eu estava vendo a Lan com um vestido verde que ela usava
quando ia ao Club 33, onde eu tocava com o Hamp. Via o vestido com
umas fitas, um laço, uma espécie de enfeite do lado, e uma gola… Não ao
mesmo tempo, na verdade eu estava fazendo um passeio ao redor do vestido
da Lan, olhando para ele bem devagar. E depois olhei para o rosto da Lan,
para os dos meninos, e depois me lembrei do Mike, que morava no quarto
ao lado, e de como o Mike tinha me contado a história de uns cavalos
selvagens no Colorado, ele que trabalhava num rancho e falava estufando o
peito como os domadores de cavalo…
— Johnny — falou Dédée de seu canto.
— E olhe que só estou lhe contando um pedacinho de tudo o que ia
pensando e vendo. Há quanto tempo, na sua opinião, estou lhe contando
esse pedacinho?
— Não sei, uns dois minutos, talvez.
— Uns dois minutos, talvez — arremeda Johnny. — Dois minutos e só lhe
contei um pedacinho. Se eu lhe contasse tudo o que vi as crianças fazerem,
e de como o Hamp tocava “Save It, Pretty Mamma”, e eu escutando cada
nota, entende, cada nota, e o Hamp não é desses que se cansam, e se eu lhe
contasse que também ouvi minha mãe rezando uma oração longuíssima na
qual falava em repolhos, acho, pedia perdão por causa do meu pai e por
minha causa e dizia alguma coisa sobre uns repolhos… Bom, se eu lhe
contasse tudo isso em detalhes levaria mais que dois minutos, não é mesmo,
Bruno?
— Se você realmente escutou e viu tudo isso, levaria um bom quarto de
hora — falei, dando uma risada.
— Levaria um bom quarto de hora, não é, Bruno? Então você vai me dizer
como é possível que de repente eu percebo que o metrô parou e me retiro da
minha mãe e da Lan e daquela coisa toda e vejo que estamos em Saint-
Germain-des-Prés, que fica só um minuto e meio depois de Odéon.
Nunca me preocupo muito com as coisas que Johnny diz, mas agora, com
aquele jeito dele de olhar para mim, senti frio.
— Só um minuto e meio medido pelo seu tempo, pelo tempo daquela ali
— disse Johnny com rancor. — E também pelo do metrô e pelo do meu
relógio, malditos sejam. Então, como é possível que eu tenha passado um
quarto de hora pensando, hem, Bruno? Como é possível pensar um quarto
de hora num minuto e meio? Juro que naquele dia eu não tinha fumado nem
um toquinho, nem uma folhinha — acrescenta, como um menino que se
desculpa. — E depois aconteceu de novo, agora deu para acontecer em tudo
quanto é lugar. Mas — acrescenta, astuto — é só no metrô que eu consigo
me dar conta, porque andar de metrô é como estar dentro de um relógio. As
estações são os minutos, entende, esse tempo de vocês, de agora; mas sei
que existe um outro, e que fiquei pensando, pensando…
Cobre o rosto com as mãos e estremece. Eu gostaria de já ter ido embora e
não sei como fazer para me despedir sem magoar Johnny, porque ele é
terrivelmente suscetível com os amigos. Se continuar assim isso vai fazer
mal a ele, pelo menos com Dédée ele não vai falar dessas coisas.
— Bruno, se eu conseguisse viver apenas como nesses momentos, ou
como quando estou tocando e o tempo também se altera… Você se dá conta
de quantas coisas poderiam acontecer num minuto e meio? E aí um sujeito,
não só eu, mas também aquela dali e você e todas as pessoas, poderiam
viver centenas de anos. Se descobríssemos como fazer, poderíamos viver
mil vezes mais do que estamos vivendo por culpa dos relógios, dessa mania
de minutos e de depois de amanhã…
Sorrio o melhor que posso, compreendendo vagamente que ele tem razão,
mas que o que ele suspeita e o que eu pressinto acerca de sua suspeita se
dissipará, como sempre, assim que eu pisar na rua e voltar a minha vida de
todos os dias. Neste momento tenho certeza de que Johnny está dizendo
uma coisa que não nasce apenas do fato de ele estar meio louco, de que está
perdendo o contato com a realidade, que para ele vira uma espécie de
paródia que ele transforma numa esperança. Tudo o que Johnny me diz em
momentos assim (e faz mais de cinco anos que Johnny me diz e diz a todo
mundo coisas semelhantes) não pode ser ouvido com a intenção de voltar a
pensar naquilo mais tarde. Assim que se pisa na rua, assim que aquelas
palavras começam a ser repetidas pela lembrança, e não por Johnny, tudo se
transforma num delírio provocado pela maconha, numa gesticulação
monótona (porque há outros que dizem coisas parecidas, a todo momento
tomamos conhecimento de testemunhos semelhantes), e depois da
maravilha nasce a irritação, e comigo pelo menos acontece que fico com a
sensação de que Johnny estava tirando sarro da minha cara. Mas isso
sempre acontece no dia seguinte, não quando Johnny está me dizendo
aquilo, porque na hora o que eu sinto é que há alguma coisa querendo ceder
em algum lugar, uma luz tentando se acender, ou melhor, como se houvesse
necessidade de quebrar alguma coisa, de rachá-la de cima a baixo como um
tronco, enfiando uma cunha e martelando até o fim. E Johnny já não tem
forças para martelar coisa nenhuma, e eu nem sequer sei qual seria o
martelo necessário para enfiar uma cunha que também não consigo
imaginar.
De modo que no fim fui embora daquele quarto, mas antes aconteceu uma
dessas coisas que têm de acontecer — essa ou outra parecida —, e foi que
quando eu estava me despedindo de Dédée, de costas para Johnny, senti que
estava acontecendo alguma coisa, vi que estava acontecendo nos olhos de
Dédée, e me virei depressa (porque vai ver que sinto um pouco de medo de
Johnny, daquele anjo que é como um irmão para mim, daquele irmão que é
como um anjo para mim) e vi Johnny, que afastou com um gesto brusco o
cobertor em que estava enrolado, vi-o sentado na poltrona completamente
nu, com as pernas erguidas e os joelhos encostados no queixo, tremendo
mas dando risada, nu em pelo na poltrona encardida.
— Está começando a esquentar — disse Johnny. — Bruno, olhe que linda
cicatriz eu tenho entre as costelas.
— Cubra-se — ordenou Dédée, envergonhada e sem saber o que dizer.
Nos conhecemos bem e um homem nu não passa de um homem nu, mas de
toda maneira Dédée ficou envergonhada e eu não sabia o que fazer para não
dar a impressão de que o que Johnny estava fazendo me chocava. E ele
sabia disso e riu, abrindo bem aquela bocarra dele, mantendo,
obscenamente, as pernas erguidas, o sexo pendurado na borda da poltrona
feito um macaco no zoológico, e a pele das coxas com manchas bizarras
que me deram um nojo infinito. Aí Dédée pegou o cobertor e embrulhou-o
depressa, enquanto Johnny ria e dava a impressão de estar muito feliz.
Despedi-me contrafeito, prometendo voltar no dia seguinte, e Dédée me
acompanhou até o vestíbulo, fechando a porta para que Johnny não ouça o
que vai me dizer.
— Ele está assim desde que voltamos da turnê na Bélgica. Tinha tocado
tão bem em todos os shows, eu estava tão contente…
— Me pergunto de onde foi que ele tirou a droga — falei, olhando-a nos
olhos.
— Não sei. Passou quase o tempo inteiro bebendo vinho e conhaque. Mas
também fumou, só que menos que lá…
Lá é Baltimore e Nova York, são os três meses no hospital psiquiátrico de
Bellevue e a longa temporada em Camarillo.
— É verdade que Johnny tocou bem na Bélgica, Dédée?
— É, Bruno, acho que melhor que nunca. As pessoas enlouqueceram, e os
caras da orquestra me disseram isso muitas vezes. De repente aconteciam
coisas estranhas, como sempre com Johnny, mas por sorte nunca na frente
do público. Eu achei… mas você está vendo, ele está pior que nunca.
— Pior que em Nova York? Vocês não se conheciam, naquele tempo.
Dédée não é tola, mas nenhuma mulher gosta que lhe falem de seu homem
na época em que ela ainda não fazia parte da vida dele, e isso que Dédée
agora é obrigada a aguentá-lo e o que aconteceu antes não passa de
palavras. Não sei como lhe dizer isso, inclusive não confio inteiramente
nela, mas no fim me decido.
— Imagino que vocês tenham ficado sem dinheiro.
— Temos esse contrato para começar depois de amanhã — disse Dédée.
— Você acha que ele consegue gravar e se apresentar em público?
— Ah, consegue — disse Dédée um pouco surpresa. — O Johnny vai
tocar melhor que nunca se o dr. Bernard der um jeito na gripe dele. O
problema é o sax.
— Vou resolver isso. Tome, Dédée. Só que… Seria melhor o Johnny não
saber.
— Bruno…
Com um gesto, e começando a descer a escada, cortei as palavras
imagináveis, a gratidão inútil de Dédée. Separado dela por quatro ou cinco
degraus ficou mais fácil dizer-lhe.
— Ele não pode de jeito nenhum fumar antes do primeiro concerto. Deixe
que ele beba um pouco, mas não lhe dê dinheiro para o outro lance.
Dédée não respondeu nada, embora eu tenha visto como suas mãos
dobravam e voltavam a dobrar as cédulas, até fazê-las desaparecer. Uma
coisa pelo menos me tranquiliza: sei que Dédée não fuma. Sua única
cumplicidade pode nascer do medo ou do amor. Se Johnny se ajoelha, como
o vi fazer em Chicago, e suplica, chorando… Mas é um risco como tantos
outros em se tratando de Johnny, e por enquanto eles terão dinheiro para
comer e comprar os remédios. Na rua levantei a gola da gabardina porque
estava começando a chuviscar e respirei até meus pulmões doerem; tive a
sensação de que Paris estava com cheiro de limpo, de pão quente. Só agora
me dei conta do cheiro do quarto de Johnny, com o corpo de Johnny suando
debaixo do cobertor. Entrei num café para tomar um conhaque e lavar a
boca, talvez também a memória, que insiste e torna a insistir nas palavras de
Johnny, em suas histórias, sua maneira de ver o que não vejo e no fundo não
quero ver. Comecei a pensar em depois de amanhã, e era como uma
tranquilidade, como uma ponte bem esticada do balcão para a frente.
Quando não se tem muita certeza de nada, o melhor é criar para si mesmo
deveres que funcionem como boias. Dois ou três dias depois pensei que
tinha o dever de verificar se a marquesa está passando maconha para
Johnny Carter e fui até o estúdio de Montparnasse. A marquesa é
verdadeiramente uma marquesa, tem montanhas de dinheiro fornecido pelo
marquês, embora já faça bastante tempo que os dois se divorciaram por
causa da maconha e outras razões do tipo. Sua amizade com Johnny data de
Nova York, provavelmente do ano em que Johnny ficou famoso da noite
para o dia simplesmente porque alguém lhe deu a oportunidade de reunir
quatro ou cinco rapazes que apreciavam seu estilo, e pela primeira vez
Johnny pôde tocar do jeito que queria, deixando a todos assombrados. Este
não é o momento de fazer crítica de jazz, e os interessados podem ler meu
livro sobre Johnny e o novo estilo do pós-guerra, mas posso muito bem
dizer que o ano de 1948 — digamos que até 1950 — foi como uma
explosão da música, mas uma explosão fria, silenciosa, uma explosão na
qual cada coisa ficou em seu lugar sem gritos nem escombros, mas a crosta
do hábito se estilhaçou em milhares de pedaços e até seus defensores (nas
orquestras e no público) transformaram algo que já não sentiam como antes
em questão de amor-próprio. Porque depois da passagem de Johnny pelo
sax alto não é mais possível continuar ouvindo os músicos anteriores e
acreditar que são o non plus ultra; é preciso conformar-se com aplicar essa
espécie de resignação disfarçada que chamamos senso histórico e dizer que
todos esses músicos foram estupendos e continuam a sê-lo nos respectivos
momentos específicos. Johnny passou pelo jazz como uma mão que vira a
página e fim de papo.
A marquesa, que tem ouvidos de cão de fila para tudo o que se relaciona a
música, sempre teve enorme admiração por Johnny e seus amigos do grupo.
Imagino que tenha lhes dado uns bons dólares nos tempos do Club 33,
quando a maioria dos críticos reclamava das gravações de Johnny e julgava
seu jazz recorrendo a critérios mais que superados. Provavelmente foi
também nessa época que a marquesa começou a ir para a cama de vez em
quando com Johnny, e a puxar fumo com ele. Muitas vezes vi os dois juntos
antes das sessões de gravação ou nos intervalos dos concertos, e Johnny
parecia imensamente feliz ao lado da marquesa, embora Lan e as crianças
estivessem à sua espera em casa ou em alguma outra plateia. Mas Johnny
nunca teve a menor noção do que seja esperar por alguma coisa, por isso
também é incapaz de imaginar que alguém possa estar esperando por ele.
Até seu jeito de abandonar Lan é um retrato seu de corpo inteiro. Vi o
postal que ele mandou para ela de Roma, depois de quatro meses de
ausência (havia embarcado num avião com dois outros músicos sem que
Lan soubesse). O postal mostrava Rômulo e Remo, que Johnny sempre
achou muito divertidos (uma de suas gravações tem esse título), e dizia:
“Ando só numa multidão de amores”, que é um fragmento de um poema de
Dylan Thomas, que Johnny lê o tempo inteiro. Os agentes de Johnny nos
Estados Unidos deram um jeito de deduzir parte de seus royalties e passá-
los para Lan, que de seu lado logo entendeu que não havia feito tão mau
negócio assim se livrando de Johnny. Alguém me disse que a marquesa
também deu dinheiro a Lan sem que ela soubesse de onde o dinheiro tinha
saído. Não acho nem um pouco estranho, porque a marquesa é
descabeladamente boa e entende o mundo um pouco como as tortilhas que
produz em seu estúdio quando os amigos começam a chegar aos magotes, e
que consiste em manter uma espécie de tortilha permanente em que joga
diversas coisas e da qual vai tirando pedaços e oferecendo-os conforme se
faça necessário.
Encontrei a marquesa com Marcel Gavoty e Art Boucaya, e estavam
justamente comentando as gravações feitas por Johnny na tarde anterior. Os
três vieram para cima de mim como se vissem chegar um arcanjo, a
marquesa só parou de me dar beijinhos depois que se cansou e os rapazes
me aplicaram tapinhas como só um contrabaixista e um sax barítono são
capazes de fazer. Tive que me refugiar atrás de uma poltrona, defendendo-
me do jeito que podia, e tudo isso porque tomaram conhecimento de que
sou o fornecedor do magnífico sax com o qual Johnny acaba de gravar
quatro ou cinco de seus melhores improvisos. A marquesa afirmou logo
depois que Johnny era um rato imundo, e que como estava brigado com ela
(não disse por quê) o rato imundo sabia muito bem que só se lhe pedisse
desculpas na devida forma teria podido obter o cheque para ir comprar um
sax. Naturalmente, desde que voltou a Paris Johnny nem pensou em pedir
desculpas — parece que a briga foi em Londres, dois meses atrás —, e
sendo assim ninguém tinha como saber que ele havia perdido o maldito sax
no metrô etc. Quando a marquesa começa a falar, o sujeito se pergunta se o
estilo de Dizzy não ficou grudado em seu idioma, pois é uma série
interminável de variações nos registros mais inesperados, até que no fim a
marquesa se aplica uma vigorosa palmada nas coxas, escancara a boca e
começa a rir como se alguém a estivesse matando de cócegas. Nesse
momento Art Boucaya aproveitou para me fornecer detalhes da sessão de
ontem, que perdi por causa da pneumonia de minha mulher.
— A Tica está de prova — disse Art, apontando a marquesa que se torce
de rir. — Bruno, você não imagina o que foi aquilo: precisa ouvir os discos.
Se ontem Deus estava em algum lugar, pode ter certeza de que era naquela
maldita sala de gravação, onde fazia um calor de mil diabos, diga-se de
passagem. Lembra como foi “Willow Tree”, Marcel?
— Se me lembro — disse Marcel. — O imbecil pergunta se eu me
lembro. Estou tatuado da cabeça aos pés com “Willow Tree”.
Tica apareceu trazendo highballs e nos acomodamos para conversar. Na
verdade pouco falamos da sessão de ontem, porque todo músico sabe que
não se pode falar dessas coisas, mas o pouco que eles me disseram me
devolveu alguma esperança e pensei que talvez meu sax dê sorte a Johnny.
De todo modo não faltaram histórias para arrefecer um pouco essa
esperança, como por exemplo que Johnny tirou os sapatos entre uma e outra
gravação e passeou descalço pelo estúdio. Por outro lado, fez as pazes com
a marquesa e prometeu aparecer no estúdio para tomar um drinque antes da
apresentação desta noite.
— Você conhece a moça com quem o Johnny está no momento? — quis
saber Tica. Fiz uma descrição tão sucinta quanto possível, mas Marcel
completou-a à francesa, com alusões e nuances de todo tipo, divertindo
muitíssimo a marquesa. Não houve a menor referência à droga, embora eu
esteja tão apreensivo que tive a sensação de farejá-la no ar do estúdio de
Tica, sem falar que Tica ri de uma maneira que às vezes também percebo
em Johnny e em Art, e que denuncia os dependentes. Me pergunto como
Johnny terá conseguido a maconha se estava brigado com a marquesa;
minha confiança em Dédée caiu por terra bruscamente, se é que de fato eu
tinha alguma confiança nela. No fundo são todos iguais.
Invejo um pouco essa igualdade que os aproxima, que os torna cúmplices
com tamanha facilidade; instalado em meu mundo puritano — não é preciso
confessar isso: todos os que me conhecem sabem de meu horror à desordem
moral —, vejo-os como anjos enfermos, irritantes de tanta
irresponsabilidade mas pagando as atenções com coisas como os discos de
Johnny, a generosidade da marquesa. E não estou dizendo tudo, e quisera
forçar-me a dizer: invejo-os, invejo Johnny, esse Johnny do outro lado, sem
que ninguém saiba exatamente o que é esse outro lado. Invejo tudo menos
sua dor, coisa que ninguém deixará de entender, mas mesmo na dor que ele
sente deve haver vestígios de algo que me é negado. Invejo Johnny e ao
mesmo tempo me irrito porque ele está se destruindo com o uso errado que
faz de seus talentos, com esse acúmulo idiota de insensatez exigido por sua
pressão de vida. Acho que se Johnny conseguisse dar um rumo a sua vida,
inclusive sem sacrificar nada, nem mesmo a droga, e se pilotasse melhor
esse avião que há cinco anos voa às cegas, talvez desse tudo errado, talvez
ele acabasse completamente louco ou morresse, mas não sem antes ter
tocado a fundo o que busca em seus tristes monólogos a posteriori, em suas
lembranças de experiências fascinantes que ficam pelo meio do caminho. E
tudo isso eu afirmo sem sair de minha posição de covardia pessoal, e talvez
no fundo eu quisesse que Johnny acabasse de uma vez, como uma estrela
que se parte em mil pedaços e deixa os astrônomos bestificados durante
uma semana, e depois é só ir dormir e amanhã é outro dia.
Até parece que de alguma maneira Johnny captou o que eu estava
pensando, porque ao entrar me cumprimentou com um gesto alegre e quase
na mesma hora veio se sentar a meu lado, depois de beijar a marquesa e
fazê-la rodopiar pelo ar, e trocar com ela e com Art um complicado ritual
onomatopaico que proporcionou imenso divertimento a todos.
— Bruno — disse Johnny, instalando-se no melhor sofá —, o instrumento
é uma maravilha, pode perguntar a esse pessoal aí o que eu consegui puxar
lá do fundo, ontem. A Tica parecia uma fábrica de lágrimas, e acho que não
era por estar devendo dinheiro à costureira… O que você acha, Tica?
Tentei obter mais informações sobre a sessão, mas Johnny se dá por
satisfeito com esse extravasamento de orgulho. Quase imediatamente
começou a falar com Marcel sobre o programa da noite e sobre como os
dois ficam bem com os novos ternos cinza com que irão se apresentar no
teatro. Johnny está mesmo muito bem, dá para perceber que há vários dias
não fuma demais; deve estar consumindo a dose exata de que precisa para
tocar com gosto. E justo quando estou pensando essas coisas, Johnny planta
a mão no meu ombro e se inclina para me dizer:
— A Dédée me contou que no outro dia me comportei mal com você.
— Ah, para que lembrar disso?
— Mas eu me lembro muito bem. E quer saber? Acho que na verdade me
comportei maravilhosamente. Você devia ficar contente por eu ter me
comportado daquele jeito com você; não faço isso com ninguém, pode
acreditar. É só porque tenho muita estima por você. Precisamos ir juntos a
algum lugar para conversar sobre um monte de coisas. Aqui… — estica o
lábio inferior, com menosprezo, e solta uma risada, dá de ombros, parece
estar dançando no sofá. — Velho Bruno. Segundo a Dédée, me comportei
muito, mas muito mal.
— Era a gripe. Está melhor?
— Não era gripe. O médico chegou e na mesma hora começou a me dizer
que é maluco por jazz, e que uma noite dessas preciso ir à casa dele escutar
discos. A Dédée me contou que você deu dinheiro a ela.
— Para tirar vocês do aperto enquanto não sai seu pagamento. Como vai
ser hoje à noite?
— Bom, estou com vontade de tocar e tocaria agora mesmo se estivesse
com o sax, mas a Dédée enfiou na cabeça que ele vai com ela para o teatro.
É um sax incrível, ontem fiquei com a sensação de estar fazendo amor
enquanto tocava. Se você visse a cara da Tica quando acabei. Era ciúme,
Tica?
E começaram de novo a rir aos gritos, e Johnny julgou conveniente correr
pelo estúdio dando grandes saltos de contentamento, e ele e Art dançaram
sem música, levantando e baixando as sobrancelhas para marcar o
compasso. É impossível perder a paciência com Johnny ou com Art; seria
como se encolerizar com o vento porque nos despenteia. Em voz baixa,
Tica, Marcel e eu trocamos impressões sobre a apresentação da noite.
Marcel está convencido de que Johnny vai repetir o sucesso incrível de
1951, quando veio a Paris pela primeira vez. Depois da sessão de ontem,
está convencido de que vai dar tudo certo. Eu gostaria de estar sentindo a
tranquilidade dele, mas seja como for não tenho outra saída senão sentar nas
primeiras filas e assistir ao concerto. Já é um alívio saber que Johnny não
está drogado como naquela noite em Baltimore. Quando falei isso a Tica,
ela apertou minha mão como se estivesse a ponto de cair n’água. Art e
Johnny foram para junto do piano e Art está mostrando um novo tema a
Johnny, que balança a cabeça e cantarola. Os dois estão elegantíssimos em
seus ternos cinza, embora Johnny fique um pouco prejudicado pela gordura
acumulada nos últimos tempos.
Tica e eu falamos da noite de Baltimore, que foi quando Johnny teve a
primeira grande crise violenta. Enquanto falávamos, olhei Tica nos olhos,
porque queria ter certeza de que ela está me entendendo, de que desta vez
não fraquejará. Se por acaso Johnny beber conhaque demais ou fumar
droga, por pouco que seja, o concerto será um fracasso e vai tudo para o
espaço. Paris não é um cassino do interior e todo mundo está com os olhos
voltados para Johnny. E enquanto penso isso não consigo evitar um gosto
ruim na boca, uma fúria que não se dirige a Johnny nem às coisas que se
passam com ele; é antes uma fúria voltada a mim e às pessoas que o
rodeiam: a marquesa e Marcel, por exemplo. No fundo somos um bando de
egoístas: com a desculpa de tomar conta de Johnny, o que fazemos é salvar
a ideia que temos dele, preparar-nos para os novos prazeres que Johnny vai
nos proporcionar, dar um lustro na estátua que construímos juntos e
defendê-la a todo custo. O fracasso de Johnny seria prejudicial para meu
livro (as traduções inglesa e italiana sairão a qualquer momento), e
provavelmente esse tipo de coisa contribui para que eu tome conta de
Johnny. Art e Marcel precisam dele para ganhar o pão de cada dia, e a
marquesa… sabe-se lá o que a marquesa vê em Johnny além de seu talento.
Tudo isso não tem nada a ver com o outro Johnny, e de repente me dei conta
de que talvez fosse isso o que Johnny estava querendo me dizer ao arrancar
o cobertor e mostrar-se nu como uma lagarta, Johnny sem sax, Johnny sem
roupa nem dinheiro, Johnny obcecado por algo que sua pobre inteligência
não consegue entender mas que flutua lentamente em sua música, acaricia
sua pele, quem sabe o prepara para um salto imprevisível que jamais
compreenderemos.
E quando pensamos coisas assim acabamos por sentir realmente um gosto
ruim na boca, e toda a sinceridade do mundo não paga a súbita constatação
de que somos uma porcariazinha ao lado de um sujeito como Johnny Carter,
que agora veio tomar seu conhaque no sofá e olha para mim com ar
divertido. Já está na hora de sairmos todos para a sala Pleyel. Que a música
salve pelo menos o restante da noite e realize plenamente uma de suas
piores missões, a de pôr um bom biombo diante de nosso espelho,
apagando-nos do mapa durante cerca de duas horas.
***
Mas não, ainda não. Cinco dias depois Dédée me telefona dizendo que
Johnny está muito melhor e quer falar comigo. Achei melhor não fazer
críticas, primeiro porque imagino que seria perda de tempo, segundo porque
a voz da coitada da Dédée parece sair de um bule rachado. Prometi ir até lá
na mesma hora, e falei que talvez quando Johnny estiver melhor seja
possível organizar uma turnê pelas cidades do interior. Desliguei no
momento em que Dédée começava a chorar.
Johnny está sentado na cama, num quarto onde há outros dois doentes que
por sorte dormem. Não deu tempo nem de abrir a boca, ele agarrou minha
cabeça com aquelas duas mãozonas dele e me deu muitos beijos, na testa e
nas bochechas. Está terrivelmente abatido, embora tenha me dito que lhe
dão muita comida e que está com apetite. No momento o que mais o
preocupa é saber se os rapazes estão falando mal dele, se sua crise
prejudicou alguém, coisas assim. É quase inútil responder, pois ele sabe
muito bem que os concertos foram cancelados e que isso prejudica Art,
Marcel e os outros; mas faz a pergunta como se acreditasse que no ínterim
pudesse ter acontecido alguma coisa boa, alguma coisa capaz de consertar a
situação. E ao mesmo tempo não consegue me enganar, porque no fundo de
tudo aquilo está sua soberana indiferença; Johnny não está nem aí se for
tudo para o espaço, conheço-o bem demais para não perceber.
— O que você quer que eu lhe diga, Johnny. As coisas poderiam ter saído
melhor, mas você tem o talento de conseguir estragar tudo.
— É, isso eu não posso negar — disse Johnny com ar cansado. — E tudo
por causa das urnas.
Lembrei do que Art me dissera, fiquei olhando para ele.
— Campos cheios de urnas, Bruno. Montões de urnas invisíveis,
enterradas num campo imenso. Eu ficava andando por ali e de vez em
quando tropeçava em alguma coisa. Você vai dizer que foi sonho, não é
mesmo? Era o seguinte, preste atenção: de vez em quando eu tropeçava
numa urna, até que me dei conta de que o campo inteiro estava cheio de
urnas, havia milhares e milhares delas, e dentro de cada urna estavam as
cinzas de um morto. Nesse ponto me lembro de que me abaixei e comecei a
cavar com as unhas até que uma das urnas ficou visível. Disso eu me
lembro. Me lembro de ter pensado: “Essa vai estar vazia porque é a minha”.
Mas não, estava cheia de um pó cinzento, como sei muito bem que as outras
estavam, mesmo sem ter visto. Aí… bom, foi aí que começamos a gravar
“Amorous”, se não me engano.
Discretamente, dei uma olhada no registro da temperatura. Bastante
normal, quem diria. Um médico jovem apareceu na porta e me
cumprimentou com uma inclinação da cabeça, depois fez um gesto de
estímulo para Johnny, um gesto quase esportivo, de rapaz do bem. Mas
Johnny não respondeu, e quando o médico se afastou sem transpor a porta,
vi que Johnny tinha os punhos cerrados.
— É isso que eles nunca vão entender — disse. — Parecem macacos de
espanador na mão, ou então as meninas do conservatório de Kansas City,
que achavam que estavam tocando Chopin, só isso. Bruno, em Camarillo
me puseram num quarto com mais três, e de manhã entrava um residente
todo lavadinho, todo cor-de-rosa, dava gosto ver aquilo. Parecia filho de
Kleenex com Tampax, juro. Uma espécie de imenso idiota que vinha se
sentar a meu lado e ficava me animando, logo a mim, que queria morrer,
que já não me lembrava mais da Lan nem de ninguém. E o pior era que o
sujeito se ofendia porque eu não prestava atenção nele. Parecia achar que eu
ia sentar na cama, maravilhado com seu rosto branco e seu cabelo bem
penteado e suas unhas cuidadas, e que ia melhorar como os caras que
chegam a Lourdes e jogam fora as muletas e saem pulando…
“Bruno, aquele cara e todos os outros caras de Camarillo tinham absoluta
certeza. Quer saber do quê? Não sei, juro, mas eles tinham absoluta certeza.
Do que eram, suponho, do que valiam, do diploma deles. Não, não é isso.
Alguns eram modestos e não se achavam infalíveis. Mas até o mais
modesto deles estava convencido. Era isso que me deixava louco, Bruno, o
fato de eles estarem convencidos. Convencidos do quê, agora me diga,
quando eu, um pobre-diabo mais ferrado que o demônio debaixo da minha
pele, tinha consciência suficiente para perceber que tudo era uma espécie de
geleia, que tudo balançava ao meu redor, que era só prestar um pouco de
atenção, sacar um pouco, ficar um pouco em silêncio, para descobrir os
buracos. Na porta, na cama: buracos. Na mão, no jornal, no tempo, no ar:
tudo cheio de buracos, tudo uma esponja, tudo parecendo um coador,
coando a si mesmo… Mas eles eram a ciência americana, entende, Bruno?
O avental os protegia dos buracos; eles não viam nada, aceitavam o que
outros já haviam visto, imaginavam que estavam vendo. E é claro que eram
incapazes de ver os buracos e que se sentiam muito seguros de si,
convencidíssimos das suas receitas, suas seringas, sua maldita psicanálise,
seus não fume e seus não beba… Ah, no dia em que eu consegui sair dali,
embarcar no trem, olhar pela janela e ver tudo ficar para trás, ver como tudo
se despedaçava, não sei se você já reparou como a paisagem se quebra
quando a gente olha ela sumir na distância…”
Fumamos Gauloises. Johnny tem autorização para tomar um pouco de
conhaque e fumar oito ou dez cigarros por dia, mas dá para perceber que
quem fuma é seu corpo, que ele mesmo está fazendo outra coisa, quase
como se recusando a sair do poço. Me pergunto o que ele viu, o que sentiu
nesses últimos dias. Não quero excitá-lo, mas se ele resolvesse falar por
vontade própria… Fumamos, calados, e de vez em quando Johnny estende
o braço e passa os dedos por meu rosto, como se quisesse me identificar.
Depois brinca com o relógio de pulso, olha para ele com carinho.
— O fato é que eles se acham sábios — diz de repente. — Se acham
sábios porque juntaram um montão de livros, que depois comeram. Eu acho
graça, porque na verdade eles são bons sujeitos e vivem convencidos de que
o que estudam e o que fazem são coisas muito difíceis e profundas. No
circo é a mesma coisa, Bruno, e conosco é a mesma coisa. As pessoas
imaginam que algumas coisas são o cúmulo da dificuldade, por isso
aplaudem os trapezistas, ou a mim. Não sei o que passa pela cabeça delas,
se acham que a gente está se estraçalhando para tocar bem, ou que o
trapezista arrebenta os tendões toda vez que dá um salto. Na realidade as
coisas verdadeiramente difíceis são outras muito diferentes: tudo o que as
pessoas imaginam que conseguem fazer em todos os momentos. Olhar, por
exemplo, ou compreender um cachorro ou um gato. São essas as
dificuldades, as grandes dificuldades. Ontem à noite tive a ideia de me olhar
neste espelhinho, e pode acreditar que a coisa era tão tremendamente difícil
que quase me joguei da cama. Imagine que está vendo a si mesmo; só isso
basta para ficar congelado durante meia hora. Realmente esse sujeito não
sou eu, no primeiro momento senti perfeitamente que não era eu. Peguei-o
de surpresa, de esguelha, e vi que não era eu. Era isso que eu estava
sentindo, e quando se sente alguma coisa… Mas é como em Palm Beach,
em cima de uma onda vem a segunda e depois outra… Você mal sentiu e já
vem outra coisa, vêm as palavras… Não, não são as palavras, é o que está
nas palavras, essa espécie de grude, essa baba. E a baba vem e cobre você e
o convence de que o sujeito do espelho é você. Claro, como não perceber.
Lógico que aquele ali sou eu, com meu cabelo, com aquela cicatriz. E as
pessoas não se dão conta de que na verdade estão concordando com a baba,
e por isso acham tão fácil se olhar no espelho. Ou cortar um pedaço de pão
com uma faca. Você já cortou um pedaço de pão com uma faca?
— De vez em quando acontece — falei, rindo.
— E ficou na maior calma. Eu não consigo, Bruno. Uma noite joguei tudo
tão longe que a faca quase arrancou um olho do japonês da mesa ao lado.
Foi em Los Angeles, uma confusão monumental… Quando eu quis
explicar, me prenderam. E eu que achei que seria tão simples explicar tudo
a eles… Foi nessa ocasião que conheci o dr. Christie. Um cara sensacional,
e isso que eu, em se tratando de médicos…
Passou uma das mãos pelo ar, tocando-o por toda parte, deixando-o como
que marcado por sua passagem. Sorri. Tenho a impressão de que está só,
completamente só. Sinto-me oco a seu lado. Se Johnny tivesse a ideia de
passar a mão através de mim, me cortaria como manteiga, como fumaça.
Vai ver que é por isso que de vez em quando ele roça meu rosto com os
dedos, cautelosamente.
— O pão está ali, em cima da toalha — diz Johnny, olhando o espaço. —
É uma coisa sólida, não se pode negar, com uma cor belíssima, um perfume.
Uma coisa que não sou eu, uma coisa diferente, fora de mim. Mas se
encosto nele, se estendo os dedos e o pego, aí alguma coisa muda, você não
acha? O pão está fora de mim, mas eu o toco com os dedos, sinto-o, sinto
que ele é o mundo, mas se sou capaz de tocá-lo e senti-lo, então não dá para
dizer verdadeiramente que ele é outra coisa… ou será que dá para dizer, o
que você acha?
— Querido, há milhares de anos um montão de barbudos está quebrando a
cabeça para resolver esse problema.
— No pão é dia — murmura Johnny, cobrindo o rosto. — E eu tenho a
ousadia de tocá-lo, de parti-lo ao meio, de enfiá-lo na boca. Não acontece
nada, já sei: o terrível é isso. Você se dá conta de que é terrível não
acontecer nada? Você corta o pão, crava a faca nele, e tudo continua como
antes. Não entendo, Bruno.
A expressão de Johnny, sua excitação, começaram a me preocupar. Cada
vez fica mais difícil fazê-lo falar de jazz, de suas lembranças, de seus
planos, trazê-lo de volta à realidade. (À realidade; mal escrevo isso, fico
enojado. Johnny tem razão, a realidade não pode ser isso, não é possível
que ser crítico de jazz seja a realidade, porque nesse caso alguém está de
gozação com a gente. Mas ao mesmo tempo ele não pode continuar nessa
toada porque vamos acabar todos loucos.)
Agora ele adormeceu, ou pelo menos fechou os olhos e faz de conta que
está dormindo. Uma vez mais percebo como é difícil saber o que ele está
fazendo, o que é Johnny. Se está dormindo, se faz de conta que está
dormindo, se acha que dorme. Me sinto muito mais fora de Johnny que de
qualquer outro amigo. Ninguém pode ser mais vulgar, mais comum, mais
atado às circunstâncias de uma pobre vida; acessível por todos os lados,
aparentemente. Não é nenhuma exceção, aparentemente. Qualquer um pode
ser como Johnny, desde que aceite ser um pobre-diabo doente e viciado e
sem força de vontade e repleto de poesia e de talento. Aparentemente. Eu
que passei a vida admirando os gênios, os Picassos, os Einsteins, toda a
santa lista que qualquer um pode elaborar num minuto (e Gandhi, e
Chaplin, e Stravinsky), estou disposto como qualquer um a admitir que
esses fenômenos andam nas nuvens e que em se tratando deles não é o caso
de estranhar nada. Eles são diferentes, ponto-final. Só que a diferença de
Johnny é secreta, irritante por ser misteriosa, porque não tem nenhuma
explicação. Johnny não é um gênio, não descobriu coisa nenhuma, toca jazz
como vários milhares de negros e de brancos, e, embora toque jazz melhor
que todos eles, é preciso reconhecer que isso depende um pouco dos gostos
do público, das modas, do tempo, em suma. Panassié, por exemplo, acha
que Johnny é francamente ruim, e, embora a gente ache que quem é
francamente ruim é Panassié, isso não impede que o assunto permaneça em
aberto, passível de discussão. Tudo isso prova que Johnny não é nem um
pouco do outro mundo, mas nem bem penso isso e me pergunto se
justamente não há algo em Johnny que é do outro mundo (algo que ele é o
primeiro a desconhecer). Provavelmente ele acharia muita graça se lhe
dissessem isso. Sei bastante bem o que ele pensa, como ele vive dessas
coisas. Digo: como ele vive dessas coisas, porque Johnny… Mas não vou
entrar nisso, o que eu queria explicar para mim mesmo é que a distância que
há entre Johnny e nós não tem explicação, não decorre de diferenças
explicáveis. E tenho a sensação de que ele é o primeiro a sofrer as
consequências disso, disso que o afeta tanto quanto a nós. Dá vontade de
dizer na mesma hora que Johnny parece um anjo entre os homens, até que
uma honradez elementar nos obriga a engolir a frase, a invertê-la com
capricho e reconhecer que talvez o que se passa é que Johnny é um homem
entre os anjos, uma realidade entre as irrealidades que somos todos nós. E
vai ver que é por isso que Johnny toca meu rosto com os dedos e me faz
sentir tão infeliz, tão transparente, tão pouca coisa, com minha boa saúde,
minha casa, minha mulher, meu prestígio. Meu prestígio, principalmente.
Principalmente meu prestígio.
Mas é o de sempre, saí do hospital e assim que olhei em volta, que me dei
conta da hora, que me lembrei de tudo o que preciso fazer, a tortilha
rodopiou molemente no ar e fez a volta completa. Pobre Johnny, tão fora da
realidade. (É isso, é isso. Para mim é mais fácil acreditar que é isso, agora
que estou num café e que duas horas me separam de minha visita ao
hospital, do que tudo o que escrevi mais acima, obrigando-me como um
condenado a ser pelo menos um pouco decente comigo mesmo.)
Por sorte ficou tudo certo com o assunto do incêndio, pois, como seria de
imaginar, a marquesa deu um jeito para que ficasse tudo certo com o
assunto do incêndio. Dédée e Art Boucaya passaram pelo jornal para me
buscar, e fomos os três até a Vix para escutar a já famosa — embora ainda
secreta — gravação de “Amorous”. No táxi Dédée me contou sem muito
empenho como a marquesa safou Johnny da encrenca do incêndio, que aliás
não havia passado de um colchão chamuscado e um susto terrível de todos
os argelinos que vivem no hotel da Rue Lagrange. Multa (já paga), outro
hotel (já conseguido por Tica), e Johnny está convalescendo numa cama
imensa e muito bonita, toma baldes de leite e lê a Paris Match e a New
Yorker, às vezes misturadas a seu famoso (e castigado) livrinho de bolso
com poemas de Dylan Thomas e anotações a lápis por todos os lados.
Com essas notícias e um conhaque no café da esquina, nos instalamos na
sala de audições para escutar “Amorous” e “Streptomycine”. Art pediu que
apagassem as luzes e deitou no chão para escutar melhor. E aí entrou
Johnny e nos passou sua música na cara, entrou ali embora esteja em seu
hotel enfiado na cama, e nos varreu com sua música durante um quarto de
hora. Entendo que se enfureça com a ideia de que publiquem “Amorous”,
porque qualquer um se dá conta das falhas, do sopro perfeitamente
perceptível que acompanha alguns finais de frase, e principalmente da
selvagem queda final, aquela nota surda e breve que me pareceu um
coração que se parte, uma faca entrando num pão (e há alguns dias ele
estava falando do pão). Mas por outro lado Johnny não se daria conta do
que para nós é terrivelmente belo, a ansiedade que procura saída nesse
improviso cheio de fugas em todas as direções, de interrogação, de
pancadas desesperadas com as mãos. Johnny não consegue compreender
(porque o que para ele é fracasso para nós parece um caminho, pelo menos
a marca de um caminho) que “Amorous” vai ficar como um dos momentos
mais altos do jazz. O artista que há nele ficará frenético de fúria toda vez
que ouvir esse arremedo de seu desejo, de tudo o que ele quis dizer
enquanto lutava, cambaleando, com a saliva escorrendo da boca junto com
a música, mais do que nunca sozinho diante do que persegue, do que se
esquiva dele quanto mais ele o persegue. É curioso, foi preciso escutar isso,
embora tudo já estivesse convergindo para isso, escutar “Amorous”, para
que eu me desse conta de que Johnny não é uma vítima, de que não é um
perseguido como todo mundo imagina, como eu mesmo dei a entender em
minha biografia (inclusive a edição inglesa acaba de ser lançada e vende
feito coca-cola). Agora sei que não é isso, que Johnny persegue em vez de
ser perseguido, que tudo o que está acontecendo com ele na vida são
contratempos do caçador e não do animal acossado. Ninguém pode saber o
que Johnny persegue, mas a verdade é essa, é só olhar, está em “Amorous”,
na maconha, em seus discursos absurdos sobre tantas coisas, nas recaídas,
no livrinho de Dylan Thomas, em todo o pobre-diabo que é Johnny e que o
engrandece e o transforma num absurdo vivente, num caçador sem braços
nem pernas, numa lebre que corre atrás de um tigre que dorme. E me vejo
compelido a dizer que no fundo “Amorous” me deu vontade de vomitar,
como se assim pudesse me libertar dele, de tudo o que nele investe contra
mim e contra todos, essa massa negra informe sem mãos e sem pés, esse
chimpanzé enlouquecido que me passa os dedos pelo rosto e sorri para
mim, enternecido.
Art e Dédée não veem (tenho a sensação de que não querem ver) nada
além da beleza formal de “Amorous”. Dédée inclusive prefere
“Streptomycine”, em que Johnny improvisa com seu desembaraço habitual,
aquilo que o público entende por perfeição e que a meus olhos em Johnny é,
antes, distração, deixar a música correr, estar em outro lugar. Já na rua
perguntei a Dédée por seus planos, e ela me disse que assim que Johnny
puder deixar o hotel (por enquanto a polícia o impede) um novo selo de
discos vai fazê-lo gravar tudo o que ele quiser, pagando muito bem. Art
afirma que Johnny está cheio de ideias fantásticas e que ele e Marcel
Gavoty vão “trabalhar” as novidades junto com Johnny, embora a partir das
últimas semanas dê para perceber que Art não as tem todas consigo, e eu de
meu lado sei que ele está de conversa com um agente para voltar a Nova
York assim que possível. Coisa que entendo perfeitamente bem, pobre
rapaz.
— A Tica está se comportando muito bem — disse Dédée com rancor. —
Claro, para ela é tão fácil. Sempre chega no último momento e é só abrir a
bolsa e dar um jeito em tudo. Eu, em compensação…
Art e eu nos entreolhamos. Que poderíamos dizer? As mulheres passam a
vida dando voltas em torno de Johnny e dos que são como Johnny. Nada de
estranho nisso, não é preciso ser mulher para sentir-se atraído por Johnny. O
difícil é girar em torno dele sem perder a distância, como um bom satélite,
um bom crítico. Na época Art não estava em Baltimore, mas me lembro dos
tempos em que conheci Johnny, ele vivia com Lan e os meninos. Dava pena
ver Lan. Mas depois de chegar mais perto de Johnny, de aceitar pouco a
pouco o império de sua música, de seus terrores diurnos, de suas
explicações inconcebíveis sobre coisas que nunca haviam acontecido, de
seus repentinos acessos de ternura, aí a pessoa compreendia o porquê
daquela cara de Lan e como era impossível que ela tivesse outra cara e ao
mesmo tempo vivesse com Johnny. Tica é outra coisa, ela se liberta dele
graças à promiscuidade, à vida em alto estilo, e além disso tem o dólar
preso pelo rabo e isso é mais eficaz que uma metralhadora, pelo menos é o
que diz Art Boucaya quando está magoado com Tica ou com dor de cabeça.
— Venha quanto antes — pediu Dédée. — Ele gosta de falar com o
senhor.
Eu teria gostado de lhe fazer um sermão pela história do incêndio (pela
causa do incêndio, de que ela certamente é cúmplice), mas isso seria tão
inútil quanto dizer ao próprio Johnny que ele tem de se transformar num
cidadão útil. Por enquanto tudo corre bem, e é curioso (inquietante) que
nem bem as coisas comecem a funcionar para o lado de Johnny eu me sinta
imensamente feliz. Não sou ingênuo a ponto de acreditar numa simples
reação amistosa. É antes uma espécie de trégua, um respiro. Não tenho
necessidade de procurar explicações quando sinto isso tão claramente
quanto sinto meu nariz grudado no rosto. Me irrita ser o único a sentir isso,
a padecer isso o tempo todo. Me irrita que Art Boucaya, Tica e Dédée não
se deem conta de que toda vez que Johnny sofre, vai preso, quer se matar,
toca fogo num colchão ou corre nu pelos corredores de um hotel está
pagando alguma coisa por eles, está morrendo por eles. Sem ter noção
disso, e não como os que proferem discursos grandiosos no patíbulo ou
escrevem livros para denunciar os males da humanidade ou tocam piano
com o ar de quem está lavando os pecados do mundo. Sem ter noção disso,
pobre saxofonista, com tudo o que essa palavra tem de ridículo, de coisa
pouca, de mais um entre tantos saxofonistas.
O ruim é que, se eu continuar assim, vou acabar escrevendo mais sobre
mim mesmo que sobre Johnny. Estou começando a parecer um
evangelizador, e não acho a menor graça nisso. No caminho para casa
pensei, com o cinismo necessário para recuperar a confiança, que em meu
livro sobre Johnny eu só menciono de passagem, discretamente, o lado
patológico de sua pessoa. Não me pareceu necessário explicar que Johnny
acredita percorrer campos repletos de urnas, ou que as pinturas se mexem
quando ele olha para elas; fantasmas da maconha, afinal, que desaparecem
com a cura de desintoxicação. Mas até parece que Johnny me deixa esses
fantasmas como penhor, que os enfia em meu bolso como se fossem lenços,
enquanto não chega o momento de recuperá-los. E acho que sou o único
que consegue tolerá-los, que convive com eles e os teme; e ninguém sabe
disso, nem mesmo Johnny. Não é possível confessar coisas desse tipo a
Johnny, como se confessaria a um homem realmente notável, ao mestre
diante de quem nos humilhamos em troca de um conselho. Que mundo é
esse que devo carregar como um fardo? Que espécie de evangelizador eu
sou? Em Johnny não há a menor grandeza, sei disso desde que o conheci,
desde que comecei a admirá-lo. Já faz tempo que isso não me surpreende,
embora no início eu achasse desconcertante essa falta de grandeza, talvez
porque essa é uma dimensão que não estamos dispostos a aplicar ao
primeiro que chega, principalmente aos jazzistas. Não sei por que (não sei
por que) cheguei a acreditar que em Johnny havia uma grandeza que ele
desmente todos os dias (ou que nós desmentimos, e na verdade não é a
mesma coisa; porque, sejamos honestos, em Johnny há como que o
fantasma de outro Johnny que não chegou a existir, e esse outro Johnny está
repleto de grandeza; percebe-se no fantasma a ausência dessa dimensão
que, no entanto, negativamente ele evoca e contém).
Digo isso porque as tentativas de Johnny no sentido de mudar de vida,
desde seu suicídio abortado até a maconha, são as que se poderiam esperar
de alguém tão sem grandeza quanto ele. Acho que o admiro ainda mais por
isso, porque ele realmente é o chimpanzé querendo aprender a ler, um pobre
coitado que bate a cabeça nas paredes e não se convence, e começa de
novo.
Ah, mas se um dia o chimpanzé começar a ler, que falência em massa, que
balbúrdia generalizada, que salve-se quem puder, eu em primeiro lugar. É
terrível que um homem tão sem grandeza se atire desse jeito contra a
parede. Ele denuncia a todos nós com o choque de seus ossos, nos
estraçalha com a primeira frase de sua música. (Os mártires, os heróis…
quanto a isso estamos de acordo: ao lado deles estamos seguros. Mas
Johnny!)
Haverá quinze dias vazios; trabalho aos montes, artigos jornalísticos, visitas
aqui e ali — um bom resumo da vida de um crítico, esse homem que só
pode viver por empréstimo, das novidades e das decisões alheias. Por falar
nisso, certa noite estaremos Tica, Baby Lennox e eu no Café de Flore,
cantarolando muito satisfeitos “Out of Nowhere” e comentando um solo de
piano de Billy Taylor que nós três achamos bom, principalmente Baby
Lennox, que além do mais está com uma roupa estilo Saint-Germain-des-
Prés, sensacional. Com o arrebatamento de seus vinte anos, Baby verá
surgir Johnny e Johnny olhará para ela sem vê-la e passará ao largo, até
sentar-se em outra mesa, completamente bêbado ou dormindo. Sentirei a
mão de Tica em meu joelho.
— Olhe ele ali, fumou de novo ontem à noite. Ou hoje à tarde. Aquela
mulher…
Respondi sem muita ênfase que Dédée é tão culpada quanto qualquer
outra, a começar por ela, que fumou dúzias de vezes com Johnny e que
voltará a fumar no dia em que lhe der na santa veneta. Sentirei um enorme
desejo de ir embora e ficar sozinho, como sempre que é impossível chegar
perto de Johnny, ficar com ele e a seu lado. Verei Johnny desenhar na mesa
com o dedo, ficar olhando para o garçom que quer saber o que ele vai beber,
e finalmente Johnny desenhará no ar uma espécie de flecha e a segurará
com as duas mãos como se ela pesasse uma tonelada, e nas outras mesas as
pessoas começarão a achar graça com muita discrição, como convém no
Flore. Então Tica dirá: “Merda”, passará para a mesa de Johnny, e depois de
dar uma ordem ao garçom começará a falar no ouvido de Johnny. Nem é
preciso dizer que Baby desatará a confiar-me suas mais caras esperanças,
mas eu lhe direi sem maiores detalhes que hoje à noite temos de deixar
Johnny quietinho e que as boas meninas vão cedo para a cama, se possível
na companhia de um crítico de jazz. Baby rirá amavelmente, sua mão
acariciará meu cabelo e depois ficaremos quietos, vendo passar a moça que
cobre o rosto com uma camada de alvaiade e pinta os olhos de verde e até a
boca. Baby dirá que em sua opinião não está nada mau, e eu lhe pedirei que
cante baixinho para mim um desses blues que a estão tornando famosa em
Londres e Estocolmo. E depois voltaremos a “Out of Nowhere”, que esta
noite nos persegue interminavelmente como um cachorro que também fosse
de alvaiade e tivesse olhos verdes.
Passarão pelo Flore dois dos rapazes do novo quinteto de Johnny e eu
aproveitarei para perguntar-lhes como foi o assunto esta noite; assim ficarei
sabendo que Johnny mal conseguiu tocar, mas que o que tocou valia por
todas as ideias de um John Lewis juntas, isso supondo que este último seja
capaz de ter alguma ideia, porque, como disse um dos rapazes, a única coisa
que ele sempre tem à mão são notas para tapar um buraco, o que não é o
mesmo. E enquanto isso eu me perguntarei até onde Johnny vai conseguir
resistir, e principalmente o público que acredita em Johnny. Os rapazes não
aceitarão uma cerveja, Baby e eu ficaremos de novo sozinhos e acabarei por
ceder a suas perguntas e explicar a Baby, que realmente merece esse
apelido, por que Johnny está doente e acabado, por que os rapazes do
quinteto estão cada dia mais sem saco, por que a coisa vai estourar uma
hora dessas, como já estourou meia dúzia de vezes em San Francisco, em
Baltimore e em Nova York.
Entrarão outros músicos que tocam por ali e alguns deles irão até a mesa
de Johnny para cumprimentá-lo, mas Johnny olhará para eles como se
estivesse longe, com um rosto horrivelmente aparvoado, os olhos úmidos e
mansos, a boca incapaz de reter a saliva que brilha entre seus lábios. Será
divertido observar as duplas manobras de Tica e Baby, Tica apelando para
seu domínio sobre os homens para afastá-los de Johnny com uma rápida
explicação e um sorriso, Baby soprando em meu ouvido sua admiração por
Johnny e como seria bom levá-lo a um sanatório para uma desintoxicação, e
tudo isso simplesmente porque está no cio e gostaria de ir para a cama com
Johnny naquela mesma noite, coisa aliás impossível como se pode ver, e
que me alegra bastante. Como acontece comigo desde que a conheço,
pensarei em como seria bom poder acariciar as coxas de Baby e estarei a
um passo de convidá-la para tomar alguma coisa num lugar mais tranquilo
(ela não vai querer, e no fundo eu também não, porque a outra mesa nos
manterá constrangidos e infelizes), até que de repente, sem nada que
anuncie o que vai acontecer, veremos Johnny levantar-se lentamente, olhar
para nós, reconhecer-nos e vir em nossa direção — digamos que vir em
minha direção, porque Baby não conta — e, ao chegar à mesa, irá dobrar-se
um pouco com toda a naturalidade, como quem vai pegar uma batata frita
do prato, e o veremos ajoelhar-se diante de mim, com toda a naturalidade
ele ficará de joelhos e me olhará nos olhos, e eu verei que está chorando, e
saberei sem palavras que Johnny chora pela pequena Bee.
Minha reação é tão natural, tentei erguer Johnny, evitar que fizesse papel
ridículo, e no fim quem fez papel ridículo fui eu, porque não há nada mais
lamentável que um homem se esforçando para mover outro que está muito
bem como está, que se sente ótimo na posição que lhe dá vontade, de modo
que os frequentadores do Flore, que não se abalam por qualquer coisinha,
me olharam pouco amavelmente, mesmo sem saber, em sua maioria, que
aquele negro ajoelhado é Johnny Carter, me olharam como olhariam alguém
que tivesse escalado um altar para ficar puxando Jesus Cristo para tirá-lo da
cruz. O primeiro a criticar minha atitude foi Johnny, simplesmente
chorando em silêncio ele ergueu os olhos e olhou para mim, e sua atitude,
somada à censura evidente dos circunstantes, não me deixou alternativa
senão me sentar outra vez diante de Johnny, sentindo-me pior que ele,
querendo estar em qualquer lugar menos naquela cadeira diante de Johnny
ajoelhado.
O resto não foi tão ruim, embora eu não saiba quantos séculos se passaram
sem que ninguém se movesse, sem que as lágrimas parassem de escorrer
pelo rosto de Johnny, sem que seus olhos estivessem ininterruptamente
fixos nos meus enquanto eu tratava de oferecer-lhe um cigarro, acendia
outro para mim, dirigia um gesto tranquilizador a Baby, que estava, acho, a
ponto de sair correndo ou de começar a chorar também. Como sempre, foi
Tica quem resolveu a situação sentando-se conosco à mesa com sua absurda
tranquilidade, puxando uma cadeira para perto de Johnny e apoiando a mão
no ombro dele, sem forçá-lo, até que no fim Johnny se endireitou um pouco
e passou daquele horror à atitude conveniente do amigo sentado, graças à
simples manobra de erguer os joelhos alguns centímetros e permitir que
entre suas nádegas e o chão (já ia dizer a cruz, realmente isso é contagioso)
se interpusesse a consensualíssima comodidade de uma cadeira. As pessoas
ficaram cansadas de olhar para Johnny, ele se cansou de chorar, e nós nos
cansamos de nos sentir uns cachorros. De chofre entendi o afeto que alguns
pintores têm pelas cadeiras, qualquer uma das cadeiras do Flore de repente
me pareceu um objeto maravilhoso, uma flor, um perfume, o perfeito
instrumento da ordem e da honradez dos homens em sua cidade.
Johnny puxou um lenço, pediu desculpas sem forçar a coisa, e Tica
mandou vir um café duplo e entregou a ele para que o tomasse. Baby foi
maravilhosa, renunciando de repente a toda a sua insensatez no que se
referia a Johnny, e começou a cantarolar “Mamie’s Blues” sem dar a
impressão de que fazia isso de propósito, e Johnny olhou para ela e sorriu e
tenho a impressão de que Tica e eu pensamos ao mesmo tempo que a
imagem de Bee se esfumava pouco a pouco no fundo dos olhos de Johnny,
e que uma vez mais Johnny aceitava voltar por algum tempo para nosso
lado, acompanhar-nos até a próxima fuga. Como sempre, assim que passou
o momento em que me sinto um cachorro, minha superioridade diante de
Johnny me permitiu mostrar-me indulgente, falar de tudo um pouco sem
entrar em áreas pessoais demais (teria sido horrível ver Johnny escorregar
da cadeira, voltar a…), e por sorte Tica e Baby se comportaram como anjos
e o pessoal do Flore foi se renovando no decorrer de uma hora, razão pela
qual os frequentadores da uma da manhã não chegaram nem sequer a
suspeitar do que acabara de acontecer, embora, pensando bem, na verdade
não tenha acontecido grande coisa. Baby foi a primeira a ir embora (Baby é
uma garota estudiosa, às nove da manhã já estará ensaiando com Fred
Callender para gravar à tarde), e Tica tomou seu terceiro copo de conhaque
e se ofereceu para nos levar em casa. Então Johnny disse que não, que
preferia continuar conversando comigo, e Tica concluiu que estava muito
bem e foi embora, não sem antes pagar o consumo de todos, como convém
a uma marquesa. E Johnny e eu tomamos um copinho de chartreuse, visto
que essas fraquezas são permitidas aos amigos, e começamos a caminhar
por Saint-Germain-des-Prés, porque Johnny insistiu que caminhar lhe fará
bem e não sou do tipo que abandona um companheiro nessas
circunstâncias.
Vamos descendo pela Rue de l’Abbaye até a praça Furstenberg, que para
Johnny evoca perigosamente um teatro de brinquedo que ao que parece o
padrinho lhe deu de presente quando ele tinha oito anos. Trato de fazê-lo
tomar o rumo da Rue Jacob, temendo que as lembranças o devolvam a Bee,
mas a impressão que se tem é de que Johnny encerrou o capítulo pelo que
resta da noite. Avança tranquilo, sem hesitar (outras vezes o vi cambalear
pela rua, e não por estar bêbado; alguma coisa em seus reflexos que não
funciona direito), e o calor da noite e o silêncio das ruas fazem bem a nós
dois. Fumamos Gauloises, vamos andando na direção do rio, e diante de
uma das caixas de metal dos livreiros do Quai de Conti uma lembrança
qualquer ou um assobio de algum estudante nos traz à boca um tema de
Vivaldi, e nós dois começamos a cantá-lo com muito sentimento e
entusiasmo, e Johnny diz que se estivesse com o sax passaria a noite
tocando Vivaldi, coisa que considero exagerada.
— Enfim, eu também tocaria um pouco de Bach e de Charles Ives — diz
Johnny, condescendente. — Não sei por que os franceses não se interessam
por Charles Ives. Você conhece as canções dele? A do leopardo, você
precisava conhecer a canção do leopardo. A leopard…
E com sua voz fraca de tenor se estende sobre o tema do leopardo, e nem
é preciso dizer que muitas das frases que canta não são em absoluto de Ives,
coisa que Johnny considera sem importância desde que esteja seguro de
estar cantando alguma coisa boa. No fim nos sentamos na mureta, na frente
da Rue Gît-le-Coeur, e fumamos outro cigarro porque a noite está magnífica
e daqui a pouco o tabaco nos obrigará a tomar cerveja num café, fato que
agrada desde já tanto a Johnny como a mim. Quase não presto atenção nele
quando menciona meu livro pela primeira vez, porque logo depois volta a
falar de Charles Ives e de como se divertiu citando inúmeras vezes temas de
Ives em seus discos sem que ninguém se desse conta (nem o próprio Ives,
suponho), mas pouco depois começo a pensar no assunto do livro e procuro
conduzi-lo para o tema.
— Ah, li algumas páginas — diz Johnny. — Na casa da Tica todo mundo
falava muito no seu livro, mas eu não entendia nem o título. Ontem o Art
me trouxe a edição inglesa e foi aí que tomei conhecimento de algumas
coisas. Seu livro é ótimo.
Adoto a atitude natural nesses casos, associando um ar de displicente
modéstia a certa dose de interesse, como se a opinião dele fosse me revelar
— a mim, o autor — a verdade sobre meu livro.
— É como num espelho — diz Johnny. — No começo eu achava que ler o
que escrevem sobre a gente era mais ou menos como olhar a nós mesmos, e
não no espelho. Admiro muito os escritores, é incrível, as coisas que eles
dizem. Toda aquela parte sobre as origens do bebop…
— Bom, eu simplesmente transcrevi literalmente o que você me contou
em Baltimore — digo, defendendo-me não sei do quê.
— É, está tudo ali, mas na verdade é como num espelho — empaca
Johnny.
— Que mais você quer? Os espelhos são fiéis.
— Ficam faltando coisas, Bruno — diz Johnny. — Você está muito mais
informado que eu, mas na minha opinião ficam faltando coisas.
— As que você tiver esquecido de me contar — respondo, bastante
irritado. Esse macaco selvagem é capaz de… (Vai ser preciso falar com
Delaunay, seria lamentável que uma declaração imprudente acabasse com
um saudável esforço crítico que… Por exemplo, o vestido vermelho da Lan
— está dizendo Johnny. E em todo caso aproveitar as novidades desta noite
para acrescentá-las numa próxima edição; seria uma boa ideia. — Tinha um
cheiro que parecia de cachorro — está dizendo Johnny —, e é a única
coisa que presta no disco. Sim, ouvir atentamente e agir com rapidez,
porque nas mãos de outras pessoas esses possíveis desmentidos poderiam
ter consequências lamentáveis. — E a urna maior, a do meio, cheia de um
pó quase azul — está dizendo Johnny —, e tão parecida com uma caixa de
pó de arroz que era da minha irmã. Enquanto ele ficar nas alucinações,
tudo bem, o pior seria que desmentisse as ideias de fundo, o sistema estético
que tantos elogios… — E além disso o cool não é nem de perto o que você
escreveu — está dizendo Johnny. Atenção.)
— Como, não é o que eu escrevi? Johnny, é verdade que as coisas
mudam, mas não faz nem seis meses que você…
— Faz seis meses — diz Johnny, descendo da mureta e apoiando nela os
cotovelos para descansar a cabeça entre as mãos. — Six months ago. Ah,
Bruno, o que eu poderia tocar neste momento se estivesse com os rapazes…
Aliás, muito engenhoso o que você escreveu sobre o sax e o sexo, muito
bonito o jogo de palavras. Six months ago. Six, sax, sex. Realmente lindo,
Bruno. Vá para o inferno, Bruno.
Não vou começar a dizer a ele que sua idade mental não o deixa
compreender que esse inocente jogo de palavras encobre um sistema de
ideias bastante profundo (Leonard Feather considerou-o impecável quando
lhe expliquei a coisa, em Nova York) e que o paraerotismo do jazz vem
evoluindo desde os tempos do washboard etc. É o de sempre, de repente me
dá prazer poder pensar que os críticos são muito mais necessários do que eu
mesmo estou disposto a reconhecer (em particular, nisto que escrevo),
porque os criadores, do inventor da música até Johnny, passando por toda a
maldita série, são incapazes de extrair as consequências dialéticas de sua
obra, de postular os fundamentos e a transcendência do que estão
escrevendo ou improvisando. Eu deveria me lembrar disso nos momentos
de depressão, em que lamento não ser mais que um crítico. — O nome da
estrela é Absinto — está dizendo Johnny, e de repente ouço sua outra voz, a
voz de quando ele está… como dizer isso, como descrever Johnny quando
está por conta própria, já sozinho outra vez, já fora? Preocupado, desço da
mureta, olho-o de perto. E o nome da estrela é Absinto, nada a fazer quanto
a isso.
— O nome da estrela é Absinto — diz Johnny, falando para suas duas
mãos. — E seus corpos serão jogados nas praças da grande cidade. Há seis
meses.
Embora ninguém esteja me vendo, embora ninguém o saiba, dou de
ombros para as estrelas (o nome da estrela é Absinto). Voltamos ao de
sempre: “Estou tocando isso amanhã”. O nome da estrela é Absinto e seus
corpos serão jogados há seis meses. Nas praças da grande cidade. Fora,
longe. E eu enfurecido, simplesmente porque ele não quis me dizer mais
nada sobre o livro, e na verdade não fiquei sabendo o que ele pensa do livro
que tantos milhares de fãs estão lendo em dois idiomas (muito em breve em
três, e já falam na edição espanhola, parece que em Buenos Aires as pessoas
não se limitam a tocar tangos).
— Era um vestido lindo — diz Johnny. — Nem queira saber como ele
ficava bem na Lan, vai ser melhor eu lhe explicar na frente de um uísque, se
é que você está com dinheiro. A Dédée me deixou só com trezentos francos.
Ri, brincalhão, olhando o Sena. Como se não soubesse ir atrás da bebida e
da maconha. Começa a me explicar que Dédée é uma pessoa muito boa (e
do livro, nada) e que faz isso por bondade, mas que por sorte existe o
companheiro Bruno (que escreveu um livro, mas nada), e o melhor será
irem sentar-se num café do bairro árabe, onde deixam a pessoa em paz
assim que percebem que ela tem alguma ligação com a estrela chamada
Absinto (isso quem pensa sou eu, estamos entrando pelo lado de Saint-
Sévérin e são duas da manhã, hora em que minha mulher costuma acordar e
ensaiar tudo o que vai me dizer com seu café com leite). É assim com
Johnny, assim bebemos um péssimo conhaque barato, assim duplicamos a
dose e nos sentimos tão contentes. Mas do livro, nada, só a caixa de pó de
arroz em forma de cisne, a estrela, pedaços de coisas que vão passando por
pedaços de frases, por pedaços de olhar, por pedaços de sorriso, por gotas
de saliva sobre a mesa, grudadas à borda do copo (do copo de Johnny). Sim,
há momentos em que eu gostaria que ele já tivesse morrido. Suponho que
muita gente em meu lugar pensaria a mesma coisa. Mas como aceitar que
Johnny morra levando o que não quer me dizer esta noite, que na morte
continue caçando, continue fora (não sei mais como escrever isso tudo),
mesmo que para mim isso signifique a paz, a cátedra, essa autoridade
conferida pelas teses inquestionáveis e os enterros bem conduzidos.
De vez em quando Johnny para um pouco de tamborilar na mesa, olha
para mim, faz um gesto incompreensível e volta a tamborilar. O dono do
café nos conhece desde os tempos em que frequentávamos o local na
companhia de um guitarrista árabe. Faz um bom tempo que Ben Aifa tem
vontade de ir dormir, somos os únicos fregueses do café sujo com cheiro de
pimentão e salgados engordurados. Também estou caindo de sono, mas a
cólera me segura, uma raiva surda que não se dirige contra Johnny, é mais
como quando se passou a tarde inteira fazendo amor se tem necessidade de
tomar uma chuveirada, de que a água e o sabão retirem aquilo que começa a
criar ranço, a expor com excessiva clareza algo que no início… E Johnny
batucando teimoso sobre a mesa, de vez em quando cantarola, quase sem
olhar para mim. Pode muito bem acontecer que ele não faça mais nenhum
comentário sobre o livro. As coisas o carregam de um lado para outro,
amanhã será uma mulher, alguma outra confusão, uma viagem. O mais
prudente seria subtrair-lhe disfarçadamente a edição em inglês, e com tal
objetivo falar com Dédée e pedir-lhe o favor em troca de tantos outros. É
absurda essa inquietação, essa quase cólera. Não era o caso de esperar
nenhum entusiasmo da parte de Johnny; na realidade nunca havia me
ocorrido pensar que ele leria o livro. Sei muito bem que o livro não diz a
verdade sobre Johnny (assim como não mente), que se limita à música de
Johnny. Por discrição, por bondade, eu não quis desnudar sua incurável
esquizofrenia, o sórdido pano de fundo da droga, a promiscuidade daquela
vida lamentável. Impus-me a tarefa de mostrar as linhas essenciais,
enfatizando o que verdadeiramente conta, a arte incomparável de Johnny.
Que mais poderia dizer? Mas talvez seja precisamente aí que ele está à
minha espera, como sempre à espreita, aguardando alguma coisa, agachado
para dar um daqueles saltos absurdos dos quais todos saímos machucados.
E é talvez aí que ele está à minha espera para desmentir todas as bases
estéticas sobre as quais fundei a razão última de sua música, a grande teoria
do jazz contemporâneo que tantos elogios me granjeou por toda parte.
Sinceramente, por que eu me preocuparia com a vida dele? A única coisa
que me inquieta é que ele se deixe levar por esse comportamento que sou
incapaz de acompanhar (digamos que não quero acompanhar) e acabe
desmentindo as conclusões de meu livro. Que saia por aí espalhando que
minhas afirmações são falsas, que sua música é outra coisa.
— Ouça, ainda há pouco você disse que estavam faltando coisas no livro.
(Atenção, agora.)
— Que estão faltando coisas, Bruno? Ah, sei, eu lhe disse que faltavam
coisas. Olhe, não é só o vestido vermelho da Lan. Tem ainda… Será que
aquilo são mesmo urnas, Bruno? Esta noite eu as vi de novo, um campo
imenso, mas já não estavam tão enterradas. Algumas tinham inscrições e
desenhos, havia gigantes com capacetes, como no cinema, com porretes
enormes nas mãos. É terrível andar entre as urnas e saber que não há mais
ninguém, que sou o único a andar pelo meio delas, procurando. Não se
aflija, Bruno, não faz mal que você tenha esquecido de incluir tudo isso.
Mas, Bruno — e ergue um dedo que não treme —, você se esqueceu foi de
mim.
— Que é isso, Johnny…
— De mim, Bruno, de mim. E não é culpa sua não ter conseguido
escrever o que eu também não sou capaz de tocar. Quando você sai por aí
dizendo que minha verdadeira biografia está nos meus discos, sei que você
acredita nisso de verdade, e além do mais o efeito é excelente, só que não é
verdade. E se eu mesmo não soube tocar como devia, tocar o que sou de
verdade… como você está vendo, ninguém pode lhe pedir que faça
milagres, Bruno. Está muito quente aqui dentro, vamos embora.
Sigo-o quando ele sai; andamos alguns metros, até que numa ruela um
gato branco cruza nosso caminho e Johnny o acaricia durante um longo
tempo. Bom, agora chega; na praça Saint-Michel encontrarei um táxi para
deixá-lo no hotel e depois ir para casa. Até que não foi tão terrível assim;
por um momento temi que Johnny tivesse elaborado uma espécie de
antiteoria do livro e quisesse testá-la comigo antes de espalhá-la por aí a
mil. Pobre Johnny, acariciando um gato branco. No fundo a única coisa que
ele disse foi que ninguém sabe nada de ninguém, o que não é nenhuma
novidade. Toda biografia dá isso por entendido e vai em frente, que diabo.
Vamos, Johnny, vamos para casa que está tarde.
— Não vá imaginar que é só isso — diz Johnny, endireitando o corpo de
repente como se soubesse o que estou pensando. — Tem Deus, meu
querido. Aí sim é que você não pescou coisa nenhuma.
— Vamos, Johnny, vamos para casa que está tarde.
— Tem isso que você e os que são como meu amigo Bruno chamam de
Deus. O tubo de pasta de dentes pela manhã, vocês chamam de Deus. O
latão do lixo, vocês chamam de Deus. O medo de explodir, vocês chamam
de Deus. E você teve a pouca-vergonha de me misturar com essa porcaria,
escreveu que minha infância, que minha família, e sei lá que heranças
ancestrais… Uma pilha de ovos podres e você cacarejando no meio, muito
satisfeito com seu Deus. Não quero seu Deus, ele nunca foi o meu.
— A única coisa que eu disse foi que a música negra…
— Não quero seu Deus — repete Johnny. — Por que você me fez aceitar
seu Deus no seu livro? Não sei se Deus existe. Toco minha música, faço
meu Deus, não preciso das suas invenções, deixe suas invenções para
Mahalia Jackson e o papa, e agora mesmo você vai cortar essa parte do seu
livro.
— Se você faz questão — digo, para dizer alguma coisa. — Na segunda
edição.
— Estou tão sozinho quanto esse gato; muito mais sozinho, porque sei
disso e ele não. Maldito gato, está enfiando as unhas na minha mão. Bruno,
o jazz não é só música, eu não sou só Johnny Carter.
— É exatamente isso que eu estava querendo dizer quando escrevi que às
vezes você toca como…
— Como se estivesse chovendo no meu rabo — diz Johnny, e é a primeira
vez na noite que o sinto furioso. — Não se pode dizer nada que na mesma
hora você traduz para seu idioma sujo. Se quando eu toco você vê os anjos,
a culpa não é minha. Se os outros abrem a boca para dizer que atingi a
perfeição, a culpa não é minha. E o pior é isso, o que você verdadeiramente
esqueceu de dizer no seu livro, Bruno, é que eu não valho nada, que o que
eu toco e o que as pessoas aplaudem em mim não vale nada, realmente não
vale nada.
Estranha modéstia, na verdade, a esta hora da noite. Esse Johnny…
— Como é que eu vou lhe explicar? — grita Johnny, apoiando as mãos
em meus ombros, sacudindo-me para a direita e para a esquerda. (La paix!,
berram de uma janela.) — Não é uma questão de mais música ou menos
música, é outra coisa… por exemplo, é a diferença entre a Bee ter morrido e
estar viva. O que eu toco é a Bee morta, sabe, enquanto o que eu quero, o
que eu quero… E por isso às vezes pisoteio o sax e as pessoas ficam
achando que passei dos limites na bebida. Claro que na verdade sempre que
eu faço isso estou bêbado, porque ao fim e ao cabo um sax custa um
dinheirão.
— Vamos por aqui. Vou levar você de táxi até o hotel.
— Você é um exemplo de bondade, Bruno — zomba Johnny. — O
companheiro Bruno anota no caderninho dele tudo o que o cara fala, só não
anota o que é importante. Nunca imaginei que você pudesse errar tanto,
Bruno. Só depois que o Art me passou o livro. No começo achei que você
estivesse falando de alguma outra pessoa, do Ronnie ou do Marcel, depois
foi Johnny para cá e Johnny para lá, ou seja, era de mim que se tratava, e eu
me perguntando, mas esse aí sou eu?, e dê-lhe eu em Baltimore, e o negócio
do Birdland, e meu estilo… Ouça — acrescenta quase com frieza —, não é
que eu não me dê conta de que você escreveu um livro para o público. Está
muito bem, e tudo que você diz sobre minha maneira de tocar e de sentir o
jazz me parece perfeitamente o.k. Para que vamos continuar discutindo o
livro? Um lixo no Sena, aquela palha boiando ao lado do cais, seu livro. E
eu sou aquela outra palha, e você é aquela garrafa que está passando agora,
pulando na água. Bruno, vou morrer sem ter encontrado… sem…
Seguro-o por baixo dos braços, encosto-o na mureta do cais. Está
submergindo no delírio de sempre, murmura pedaços de palavras, cospe.
— Sem ter encontrado — repete. — Sem ter encontrado…
— O que você queria encontrar, irmão? — digo a ele. — Não se deve
pedir o impossível, o que você encontrou seria suficiente para…
— Para você, já sei — diz Johnny rancorosamente. — Para o Art, para a
Dédée, para a Lan… Você não faz ideia como… É, uma ou outra vez a
porta começou a se abrir… Olhe as duas palhas, se encontraram, estão
dançando uma na frente da outra… Bonito, não é? Começou a se abrir… O
tempo… eu já lhe disse, acho, que esse negócio de tempo… Bruno, a vida
inteira andei atrás, na minha música, de que no fim essa porta se abrisse.
Um nada, uma frestinha… Me lembro em Nova York, uma noite… Um
vestido vermelho. É, vermelho, e ficava lindo nela. Bom, uma noite a gente
estava com o Miles, com o Hal… acho que fazia uma hora que a gente
estava tocando a mesma coisa, só nós, tão felizes… O Miles tocou uma
coisa tão bonita que quase me derruba da cadeira, e aí me entreguei, fechei
os olhos, comecei a voar. Bruno, eu juro que estava voando… Ouvia a mim
mesmo como se estivesse num lugar muitíssimo afastado, mas dentro de
mim, junto de mim, houvesse alguém em pé… Não exatamente alguém…
Olhe a garrafa, é incrível como ela pula… Não era alguém, estou
procurando comparações… Era a segurança, o encontro, como em alguns
sonhos, você não acha?, quando tudo ficou solucionado, a Lan e as meninas
à sua espera com um peru no forno, no carro você não encontra nenhum
sinal fechado, tudo rola com a suavidade de uma bola de bilhar. E o que
havia junto de mim era como se fosse eu mesmo só que sem ocupar
nenhum espaço, sem estar em Nova York, e principalmente sem tempo, sem
que depois… sem que houvesse depois… Por um momento houve apenas
sempre… E eu não sabia que era mentira, que aquilo só acontecia porque eu
estava perdido na música e que assim que acabasse de tocar, porque ao fim
e ao cabo em algum momento eu teria de deixar o pobre do Hal matar seu
desejo de tocar piano, no mesmíssimo instante eu cairia de cabeça em mim
mesmo…
Chora mansamente, esfrega os olhos com as mãos sujas. Não sei mais o
que fazer, está tão tarde, do rio sobe a umidade, nós dois vamos nos resfriar.
— Acho que eu estava querendo nadar sem água — murmura Johnny. —
Acho que quis ficar com o vestido vermelho da Lan, só que sem a Lan. E a
Bee morreu, Bruno. Acho que você tem razão, que seu livro é ótimo.
— Ora, Johnny, não tenho a intenção de me ofender com o que você achar
ruim.
— Não é isso, seu livro é bom porque… porque não tem urnas, Bruno. É
como o que o Satchmo toca, tão limpo, tão puro. Você não acha que o que o
Satchmo toca parece um aniversário, ou uma boa ação? Nós… Como estou
lhe dizendo, eu quis nadar sem água. Achei… mas é preciso ser uma
besta… achei que um dia encontraria outra coisa. Não estava satisfeito,
achava que as coisas boas, o vestido vermelho da Lan, e até a Bee, eram
como ratoeiras, não sei explicar de outro jeito… Ratoeiras para que nos
conformemos, sabe, para que digamos que está tudo bem. Bruno, eu acho
que a Lan e o jazz, é, até o jazz, eram como anúncios numa revista, coisas
bonitas para que eu me conformasse, como você se conforma porque tem
Paris e sua mulher e seu trabalho… Eu tinha meu sax… e meu sexo, como
diz o livro. Não precisava de mais nada. Ratoeiras, meu querido… porque
não é possível que não exista outra coisa, não é possível que estejamos tão
perto, tão do outro lado da porta…
— A única coisa que conta é dar tudo de si — digo, sentindo-me
insuperavelmente idiota.
— E ganhar todos os anos o referendo da Down Beat, claro — concorda
Johnny. — Claro que sim, claro que sim, claro que sim. Claro que sim.
Aos poucos, levo-o até a praça. Por sorte há um táxi na esquina.
— Principalmente, não aceito seu Deus — murmura Johnny. — Não me
venha com essa história, não autorizo. E se ele realmente está do outro lado
da porta, não me interessa. Não há mérito nenhum em passar para o outro
lado porque ele abriu a porta para você. Derrubar a porta a pontapés, aí sim.
Demolir a murros, ejacular nela, passar um dia inteiro mijando na porta.
Aquela vez em Nova York acho que abri a porta com minha música, até que
fui obrigado a parar, e aí o maldito fechou-a na minha cara pela simples
razão de que nunca rezei para ele, de que nunca vou rezar para ele, de que
não quero conversa com esse porteiro de libré, esse abridor de portas em
troca de gorjetas, esse…
Pobre Johnny, depois se queixa de que não ponham essas coisas num
livro. Três da madrugada, minha mãe.
***
Tica havia voltado para Nova York, Johnny havia voltado para Nova York
(sem Dédée, agora muito bem instalada na casa de Louis Perron, que
promete como trombonista). Baby Lennox havia voltado para Nova York. A
temporada em Paris não estava grande coisa e eu sentia falta de meus
amigos. Meu livro sobre Johnny estava vendendo muito bem em toda parte,
e naturalmente Sammy Pretzal já falava numa possível adaptação em
Hollywood, coisa sempre interessante quando se calcula a relação franco-
dólar. Minha mulher continuava furiosa comigo por causa de minha história
com Baby Lennox, nada de muito grave, aliás, afinal de contas Baby é
acentuadamente promíscua e qualquer mulher inteligente deveria entender
que essas coisas não comprometem o equilíbrio conjugal, fora o fato de que
Baby já havia voltado para Nova York com Johnny, finalmente tivera o
gostinho de partir com Johnny no mesmo navio. Já estaria fumando
maconha com Johnny, perdida como ele, pobre moça. E “Amorous”
acabava de sair em Paris, bem quando a segunda edição de meu livro ia
para o prelo e falavam em tradução para o alemão. Eu havia pensado muito
nas possíveis modificações da segunda edição. Honesto na medida em que a
profissão o permite, me perguntava se não teria sido necessário mostrar a
personalidade de meu biografado sob outra luz. Discuti o assunto várias
vezes com Delaunay e com Hodeir, eles na verdade não sabiam o que me
aconselhar porque achavam o livro sensacional e diziam que as pessoas
gostavam dele do jeito que estava. Tive a impressão de perceber que os dois
temiam um contágio literário, que eu acabasse tingindo a obra com matizes
que pouco ou nada tinham a ver com a música de Johnny, pelo menos tal
como todos nós a entendíamos. Tive a impressão de que a opinião de
pessoas autorizadas (e minha decisão pessoal, seria tolice negar esse fato a
esta altura dos acontecimentos) justificava deixar a segunda edição sem
modificações. A leitura minuciosa das revistas especializadas dos Estados
Unidos (quatro reportagens dedicadas a Johnny, notícias sobre uma nova
tentativa de suicídio, dessa vez com tintura de iodo, sonda gástrica e três
semanas de hospital, tocando de novo em Baltimore como se nada tivesse
acontecido) me tranquilizou bastante, fora a pena que me davam essas
recaídas lamentáveis. Johnny não dissera nem uma palavra
comprometedora sobre o livro. Exemplo (na Stomping Around, uma revista
musical de Chicago, entrevista de Teddy Rogers com Johnny): “Você leu o
que Bruno V… escreveu em Paris sobre você?”. “Li. Gostei muito.”
“Algum comentário sobre o livro?” “Nenhum, a não ser que é muito bom.
O Bruno é um ótimo sujeito.” Restava saber o que Johnny seria capaz de
dizer quando estivesse bêbado ou drogado, mas pelo menos não havia sinais
de nenhum desmentido de sua parte. Resolvi não mexer na segunda edição
do livro, continuar apresentando Johnny como o que ele era no fundo: um
pobre-diabo de inteligência apenas medíocre, dotado, como tantos músicos,
tantos enxadristas, tantos poetas, do dom de criar coisas fantásticas sem ter
a menor consciência (no máximo um orgulho de boxeador que se sabe
forte) das dimensões de sua obra. Tudo me induzia a manter tal qual esse
retrato de Johnny; não era o caso de arrumar complicações com um público
que quer muito jazz mas nada de análises musicais ou psicológicas, nada
que não seja a satisfação instantânea e bem recortada, as mãos que marcam
o ritmo, os rostos que se distendem beatificamente, a música que percorre a
pele, se incorpora ao sangue e à respiração, e depois fim, nada de razões
profundas.
Primeiro chegaram os telegramas (para Delaunay, para mim, à tarde já
estavam saindo os jornais com comentários idiotas), vinte dias depois recebi
carta de Baby Lennox, que não se esquecera de mim. “Ele recebeu um
ótimo tratamento em Bellevue, fui buscá-lo lá quando saiu. A gente estava
morando no apartamento do Mike Russolo, em turnê na Noruega. O Johnny
estava muito bem, não queria tocar em público mas aceitou gravar discos
com os rapazes do Club 28. A você eu posso dizer, na verdade ele estava
muito fraco (posso imaginar o que Baby queria dar a entender com isso,
depois de nossa aventura em Paris), e à noite a respiração e os gemidos dele
me deixavam assustada. A única coisa que me consola — acrescentava
Baby deliciosamente — é que ele morreu contente e sem se dar conta.
Estava vendo tevê e de repente caiu no chão. Me disseram que foi
instantâneo.” De onde se deduzia que Baby não presenciara a coisa, e não
presenciara mesmo porque pouco depois soubemos que Johnny estava
morando na casa de Tica e que havia passado cinco dias com ela,
preocupado e abatido, falando em abandonar o jazz, ir morar no México e
trabalhar no campo (todo mundo tem essa ideia em algum momento da
vida, não tem nem graça), e que Tica ficava de olho nele e fazia o possível
para tranquilizá-lo e obrigá-lo a pensar no futuro (foi o que Tica contou
logo depois, como se ela ou Johnny alguma vez tivessem tido a menor ideia
do futuro). No meio de um programa de televisão de que Johnny gostava
muito ele começou a tossir, de repente se dobrou bruscamente etc. Não
tenho tanta certeza de que a morte tivesse sido instantânea como Tica
declarou à polícia (tentando livrar-se da confusão monumental em que
estava envolvida pelo fato de Johnny ter morrido em seu apartamento, a
maconha ao alcance da mão, algumas confusões anteriores da pobre Tica, e
os resultados não de todo convincentes da autópsia. Dá para imaginar tudo
o que um médico poderia encontrar no fígado e nos pulmões de Johnny).
“Nem queira saber meu sofrimento com a morte dele, eu ainda poderia lhe
contar outras coisas”, acrescentava meigamente a querida Baby, “mas
algum dia, quando eu estiver mais forte, lhe escrevo ou conto em pessoa
(parece que Rogers quer me contratar para Paris e Berlim) tudo o que você
precisa saber, você que era o melhor amigo do Johnny.” E depois de uma
página inteira dedicada a insultar Tica, a qual, segundo Baby, não só seria
responsável pela morte de Johnny como também pelo ataque a Pearl
Harbour e pela Peste Negra, a pobrezinha concluía: “Antes que eu me
esqueça, um dia em Bellevue ele perguntou muito por você, suas ideias
estavam meio misturadas e ele achava que você estava em Nova York e não
queria ir visitá-lo, não parava de falar nuns campos cheios de coisas, e
depois chamava por você e até dizia palavrões, coitado. Você sabe como é a
febre. A Tica disse ao Bob Carey que as últimas palavras do Johnny foram
algo tipo: ‘Ah, me faça uma máscara’, mas você pode muito bem imaginar
que numa hora dessas…”. Imaginava, e como. “Ele havia engordado
muito”, acrescentava Baby no fim da carta, “e ficava ofegante quando
andava.” Eram os detalhes que cabia esperar de uma pessoa delicada como
Baby Lennox.
Tudo isso coincidiu com a saída da segunda edição de meu livro, mas por
sorte tive tempo de acrescentar uma nota necrológica redigida a todo o
vapor e uma fotografia do enterro, onde se viam muitos jazzistas famosos.
Desse modo a biografia ficou, por assim dizer, completa. Talvez não fique
bem eu dizer isso, mas, como é natural, eu me situo num plano meramente
estético. Já estão falando em nova tradução, acho que para o sueco ou o
norueguês. Minha mulher está encantada com a notícia.
As armas secretas
C
urioso que as pessoas acreditem que arrumar uma cama
corresponde exatamente a arrumar uma cama, que um aperto de
mão é sempre idêntico a um aperto de mão, que abrir uma lata de
sardinhas é abrir ao infinito a mesma lata de sardinhas. “Mas se
tudo é excepcional”, pensa Pierre, alisando desajeitadamente o puído
cobertor azul. “Ontem chovia, hoje fez sol, ontem eu estava triste, hoje
Michèle virá. A única coisa invariável é que nunca vou conseguir que esta
cama tenha um aspecto apresentável.” Não faz mal, as mulheres gostam da
desordem de um quarto de solteiro, podem sorrir (vê-se a mãe em todos os
seus dentes) e ajeitar as cortinas, mudar um vaso ou uma cadeira de lugar,
dizer só você para ter a ideia de pôr essa mesa num lugar onde não há luz.
Michèle provavelmente dirá coisas assim, se movimentará tocando e
deslocando livros e lâmpadas, e ele a deixará à vontade olhando-a o tempo
todo, jogado na cama ou afundado no velho sofá, olhando-a através da
fumaça de um Gauloise e desejando-a.
“Seis, a hora grave”, pensa Pierre. A hora dourada em que todo o bairro
de Saint-Sulpice começa a mudar, a preparar-se para a noite. Não demora e
sairão as meninas do escritório do notário, o marido de madame Lenôtre
arrastará sua perna pelas escadas, serão ouvidas as vozes das irmãs do sexto
andar, inseparáveis na hora de comprar o pão e o jornal. Michèle só pode
estar por chegar, a menos que se perca ou que se demore pelo caminho, com
seu talento especial para parar em qualquer lugar e começar a viajar pelos
mundinhos particulares das vitrines. Depois contará a ele: um urso de corda,
um disco de Couperin, uma corrente de bronze com uma pedra azul, as
obras completas de Stendhal, a moda de verão. Razões tão compreensíveis
para chegar um pouco tarde. Mais um Gauloise, então, mais um gole de
conhaque. Fica com vontade de ouvir canções de MacOrlan, procura sem
muito esforço entre montanhas de papéis e cadernos. Com certeza Roland
ou Babette levaram o disco; bem que eles poderiam avisar, quando levam
alguma coisa que lhe pertence. Por que Michèle não chega? Senta-se à beira
da cama, enrugando o cobertor. Pronto, agora vai ser preciso puxar de um
lado e depois do outro, a maldita borda do travesseiro vai ficar aparecendo
outra vez. O maldito cheiro de cigarro está horrível, Michèle vai franzir o
nariz e dizer-lhe que o cheiro de cigarro está horrível. Centenas e mais
centenas de Gauloises fumados em centenas e mais centenas de dias: uma
tese, algumas amigas, duas crises hepáticas, romances, tédio. Centenas e
mais centenas de Gauloises? Sempre fica surpreso ao descobrir-se
debruçado sobre o irrisório, dando importância aos detalhes. Lembra-se de
velhas gravatas que jogou no lixo há dez anos, da cor de um selo do Congo
Belga, orgulho de uma infância filatélica. Como se no fundo da memória
soubesse exatamente quantos cigarros já fumou na vida, que gosto tinha
cada um deles, em que momento o acendeu, onde jogou a bagana. Quem
sabe os números absurdos que às vezes aparecem em seus sonhos sejam
vislumbres dessa implacável contabilidade. “Mas então é porque Deus
existe”, pensa Pierre. O espelho do armário lhe devolve seu sorriso,
obrigando-o como sempre a rearrumar o rosto, a jogar para trás a mecha de
cabelo negro que Michèle ameaça cortar. Por que Michèle não chega?
“Porque não quer entrar no meu quarto”, pensa Pierre. Mas para um dia
poder cortar a mecha que lhe cai na testa ela vai ter que entrar no quarto
dele e deitar-se na cama dele. Alto preço paga Dalila, não se chega assim
sem mais ao cabelo de um homem. Pierre diz para si mesmo que é um tolo
por ter pensado que Michèle não quer subir para o quarto dele. Pensou-o
surdamente, como de longe. Às vezes o pensamento parece precisar abrir
caminho por incontáveis barreiras, até se apresentar e ser ouvido. É idiota
ter pensado que Michèle não quer subir até seu quarto. Se não chega é
porque está absorta diante da vitrine de uma loja de ferragens ou de um
empório, encantada com a visão de uma pequena foca de porcelana ou uma
litografia de Zao-Wu-Ki. Tem a sensação de vê-la, e ao mesmo tempo se dá
conta de que está imaginando uma espingarda de cano duplo, justamente
quando traga a fumaça do cigarro e tem a sensação de ter sido perdoado de
sua tolice. Uma espingarda de cano duplo, e aquela sensação de
estranhamento. Não gosta dessa hora em que tudo tende ao lilás, ao cinza.
Estende indolentemente o braço para acender a lâmpada de cabeceira. Por
que Michèle não chega? Não vem mais, é inútil continuar esperando. Será
preciso concluir que ela realmente não quer ir até seu quarto. Enfim, enfim.
Nada de levar para o lado da tragédia; outro conhaque, o romance iniciado,
descer para comer alguma coisa no café do Leon. As mulheres são todas
iguais, em Enghien ou em Paris, jovens ou maduras. Sua teoria dos casos
excepcionais começa a desmoronar, a ratinha recua antes de entrar na
ratoeira. Mas que ratoeira? Um dia ou outro, antes ou depois… Está
esperando por ela desde as cinco, mesmo ela devendo chegar às seis; alisou
especialmente para ela o cobertor azul, subiu feito um idiota numa cadeira
de espanador na mão para desprender uma insignificante teia de aranha que
não fazia mal a ninguém. E seria tão natural que naquele exato momento ela
descesse do ônibus em Saint-Sulpice e se aproximasse de seu prédio,
parando nas vitrines ou olhando as pombas da praça. Não há nenhuma razão
para que não queira subir até seu quarto. Claro que também não há
nenhuma razão para pensar numa espingarda de cano duplo ou decidir que
naquele momento Michaux seria melhor leitura que Graham Greene. A
opção instantânea sempre preocupa Pierre. Não é possível que tudo seja
gratuito, que um mero acaso decida Greene contra Malraux, Michaux
contra Enghien, ou seja, contra Greene. Inclusive confundir uma localidade
como Enghien com um escritor como Greene… “Não é possível que tudo
seja tão absurdo”, pensa Pierre jogando fora o cigarro. “E se ela não vier é
porque aconteceu alguma coisa com ela; nada a ver com a gente.”
Desce até a rua, espera um pouco na porta. Vê acenderem-se as luzes da
praça. No café do Leon não há quase ninguém quando se senta a uma mesa
da rua e pede uma cerveja. De onde está pode ver a entrada de seu prédio,
de modo que se ainda… Leon fala da Volta da França; chegam Nicole e sua
amiga, a florista da voz rouca. A cerveja está gelada, será coisa de pedir
umas salsichas. Na entrada de seu prédio o filho da zeladora brinca de pular
num pé só. Quando se cansa, troca de pé sem sair da frente da porta.
— Que besteira — diz Michèle. — Por que eu não ia querer ir a sua casa, se
a gente tinha combinado?
Edmond traz o café das onze da manhã. Não há quase ninguém àquela
hora, e Edmond se demora ao lado da mesa para comentar a Volta da
França. Depois Michèle explica o provável, o que Pierre devia ter pensado.
Os frequentes desmaios da mãe, papai que se assusta e telefona para o
escritório, correr para um táxi e depois não ser nada, uma náusea sem maior
importância. Não é a primeira vez que tudo isso acontece, mas precisa ser
Pierre para…
— Que bom que ela está bem — diz Pierre tolamente.
Põe a mão sobre a mão de Michèle. Michèle põe a outra mão sobre a de
Pierre. Pierre põe a outra mão sobre a de Michèle. Michèle tira a mão de
baixo e a põe em cima. Pierre tira a mão de baixo e a põe em cima. Michèle
tira a mão de baixo e apoia a palma no nariz de Pierre.
— Fria como a de um cachorrinho.
Pierre admite que a temperatura de seu nariz é um enigma insondável.
— Bobo — diz Michèle, resumindo a situação.
Pierre beija sua testa, por cima do cabelo. Como ela inclina a cabeça, ele
segura seu queixo e a obriga a olhar para ele antes de beijá-la na boca.
Beija-a uma, duas vezes. Cheira a coisa fresca, à sombra que há sob as
árvores. Im wunderschonen Monat Mai, ouve nitidamente a melodia. Sente-
se vagamente admirado por se lembrar tão bem das palavras, que só depois
de traduzidas adquirem pleno sentido para ele. Mas gosta da melodia, as
palavras soam tão bem contra o cabelo de Michèle, contra sua boca úmida.
Im wunderschonen Monat Mai, als...
A mão de Michèle agarra seu ombro, crava-lhe as unhas.
— Você está me machucando — diz Michèle repelindo-o, passando os
dedos sobre os lábios.
Pierre vê a marca de seus dentes na borda do lábio. Acaricia a face dela e
a beija outra vez, bem de leve. Michèle está zangada? Não, não está.
Quando, quando, quando vão se encontrar a sós? Tem dificuldade para
entender, as explicações de Michèle parecem referir-se a outra coisa.
Obcecado pela ideia de vê-la chegar um dia a seu apartamento, de que vai
subir os cinco andares e entrar em seu quarto, não entende que tudo se
desanuviou de repente, que os pais de Michèle vão passar quinze dias no
sítio. Que viajem, melhor assim, porque aí Michèle… De repente se dá
conta, fica olhando para ela. Michèle ri.
— Você vai passar esses quinze dias sozinha na sua casa?
— Que bobo você é — diz Michèle. Estende um dedo e desenha invisíveis
estrelas, losangos, suaves espirais. É óbvio que sua mãe conta com que a
fiel Babette lhe faça companhia durante aquelas duas semanas, já houve
tantos roubos e assaltos nos subúrbios… Mas Babette ficará em Paris todo o
tempo que eles quiserem.
Pierre não conhece o pavilhão, embora já o tenha imaginado tantas vezes
que é como se já estivesse nele, entra com Michèle num salãozinho
acanhado de móveis vetustos, sobe uma escada depois de roçar com os
dedos a bola de vidro no lugar onde nasce o corrimão. Não sabe por que a
casa lhe desagrada, tem vontade de sair para o jardim, embora seja difícil
acreditar que um pavilhão tão pequeno possa ter um jardim. Desprende-se
com esforço da imagem, descobre que é feliz, que está no café com
Michèle, que a casa deve ser diferente disso que imagina e que o sufoca um
pouco com seus móveis e seus tapetes puídos. “Preciso pedir ao Xavier que
me empreste a motocicleta”, pensa Pierre. Virá esperar Michèle e em meia
hora estarão em Clamart, terão dois fins de semana para fazer passeios, vai
ser preciso arrumar uma térmica e comprar nescafé.
— Na escada da sua casa tem uma bola de vidro?
— Não — diz Michèle —, você está confundindo com…
Cala-se, como se algo a incomodasse na garganta. Afundado no sofá, a
cabeça apoiada no alto espelho com que Edmond pretende multiplicar as
mesas do café, Pierre admite vagamente que Michèle é como uma gata ou
um retrato anônimo. Faz tão pouco tempo que a conhece, talvez ela também
o julgue difícil de entender. Para começar, amar-se nunca é uma explicação,
assim como não é uma explicação ter amigos comuns ou partilhar opiniões
políticas. Sempre se começa por acreditar que não há mistério em ninguém,
é tão fácil acumular notícias: Michèle Duvernois, vinte e quatro anos,
cabelo castanho, olhos cinzentos, trabalha num escritório. E ela também
sabe que Pierre Jolivet, vinte e três anos, cabelo louro… Mas amanhã irá
com Michèle à casa dela, em meia hora de viagem estarão em Enghien.
“Enghien de novo”, pensa Pierre, afastando o nome como se fosse uma
mosca. Terão quinze dias para ficar juntos, e na casa há um jardim,
provavelmente tão diferente do que imagina, terá de perguntar a Michèle
como é o jardim, mas Michèle está chamando Edmond, já passa das onze e
meia e o gerente franzirá o nariz se a vir voltar tarde.
— Fique um pouquinho mais — diz Pierre. — Lá vêm Roland e Babette.
É incrível como nunca conseguimos ficar sozinhos neste café.
— Sozinhos? — diz Michèle. — Mas se viemos até aqui para nos
encontrar com eles!
— Eu sei, mas mesmo assim.
Michèle dá de ombros, e Pierre sabe que ela o entende e que no fundo
também lamenta que os amigos apareçam tão pontualmente. Babette e
Roland trazem seu ar habitual de plácida felicidade, que daquela vez o irrita
e impacienta. Estão do outro lado, protegidos pelo quebra-mar do tempo;
suas iras e insatisfações pertencem ao mundo, à política ou à arte, nunca a
eles mesmos, à relação mais profunda dos dois. Salvos pelo hábito, pelos
gestos mecânicos. Tudo alisado, passado a ferro, guardado, numerado.
Porquinhos contentes, pobres rapazes tão bons amigos. Está a ponto de não
apertar a mão que Roland lhe estende, engole cuspe, olha-o nos olhos,
depois aperta seus dedos como se quisesse quebrá-los. Roland ri e se senta
na frente deles; traz notícias de um cineclube, será preciso ir sem falta na
segunda-feira. “Porquinhos contentes”, rumina Pierre. É idiota, é injusto.
Mas um filme de Pudovkin, francamente, está na hora de encontrar alguma
novidade.
— Novidade — zomba Babette. — Novidade. Que velho você está,
Pierre.
Nenhuma razão para não querer apertar a mão de Roland.
— E estava usando uma blusa laranja que ficava tão bem nela — conta
Michèle.
Roland oferece Gauloises e pede café. Nenhuma razão para não querer
apertar a mão de Roland.
— Sim, é uma menina inteligente — diz Babette.
Roland olha para Pierre e pisca um olho. Tranquilo, sem problemas.
Absolutamente sem problemas, porquinho tranquilo. Pierre sente nojo dessa
tranquilidade, que Michèle possa estar falando de uma blusa laranja,
distante dele como sempre. Não tem nada a ver com eles, entrou por último
no grupo, toleram-no e ponto.
Enquanto fala (agora sobre certos sapatos), Michèle passa um dedo pela
borda do lábio. Nem sequer é capaz de beijá-la direito, machucou-a, e
Michèle se lembra. E todo mundo o machuca, piscam um olho para ele,
sorriem para ele, adoram-no. É como um peso no peito, uma necessidade de
partir e de estar sozinho em seu quarto perguntando-se por que Michèle não
apareceu, por que Babette e Roland levaram um de seus discos sem avisar.
Michèle olha o relógio e se sobressalta. Combinam o assunto do
cineclube, Pierre paga o café. Sente-se melhor, gostaria de conversar mais
um pouco com Roland e Babette, saúda-os com afeto. Porquinhos bons, tão
amigos de Michèle.
Roland vê quando se afastam, saem para a rua sob o sol. Bebe seu café
devagar.
— Eu me pergunto — diz Roland.
— Eu também — diz Babette.
— Por que não, ao fim e ao cabo?
— Por que não, claro. Mas seria a primeira vez desde aquela outra.
— Já está em tempo de Michèle fazer alguma coisa da vida — diz Roland.
— E se você quer saber minha opinião, está muito apaixonada.
— Os dois estão muito apaixonados.
Roland fica pensando.
Marcou encontro com Xavier num café da praça Saint-Michel, mas chega
cedo. Pede cerveja e folheia o jornal; não se lembra bem do que fez desde
que deixou Michèle na porta do escritório. Os últimos meses são tão
confusos quanto a manhã que ainda não transcorreu e já é uma mistura de
falsas recordações, de equívocos. Nessa vida remota que leva, a única
certeza é a de haver estado o mais perto possível de Michèle, esperando e se
dando conta de que isso não basta, de que tudo é vagamente assombroso, de
que não sabe nada de Michèle, absolutamente nada na verdade (tem olhos
cinzentos, tem cinco dedos em cada mão, é solteira, usa um penteado de
menina), absolutamente nada na verdade. Então, se não se sabe nada de
Michèle, é só deixar de vê-la por um momento para que o vácuo se
transforme num emaranhado espesso e amargo; ela tem medo de você, tem
nojo de você, às vezes o repele no momento mais perdido de um beijo, não
quer ir para a cama com você, tem horror de alguma coisa, esta manhã
mesmo o repeliu com violência (e como estava encantadora, como se
agarrou a você no momento de despedir-se, e como preparou tudo para ir ao
seu encontro amanhã e irem juntos até sua casa em Enghien), e você deixou
em sua boca a marca dos dentes, você a estava beijando e a mordeu e ela
reclamou, passou os dedos pela boca e reclamou sem ficar brava, um pouco
assombrada apenas, als alle Knospen sprangen, você cantava Schumann
por dentro, seu animal, cantava enquanto mordia sua boca e agora se
lembra, além disso você subia uma escada, sim, subia, roçava com a mão a
bola de vidro no lugar onde nasce o corrimão, mas depois Michèle falou
que na casa dela não existe nenhuma bola de vidro.
Pierre desliza na banqueta, pega os cigarros. Afinal Michèle também não
sabe grande coisa dele, não é nada curiosa embora tenha aquele jeito atento
e grave de escutar as confidências, aquela capacidade de partilhar um
momento de vida, qualquer coisa, um gato que sai de um portal, uma
tempestade na Cité, uma folha de árvore, um disco de Gerry Mulligan.
Atenta, entusiasta e grave ao mesmo tempo, tão igual para ouvir como para
fazer-se ouvir. É assim que de encontro em encontro, de papo em papo,
derivaram para a solidão do casal na multidão, um pouco de política,
romances, ir ao cinema, beijar-se cada vez mais profundamente, permitir
que a mão dele desça pelo pescoço, roce os seios, repita a interminável
pergunta sem resposta. Chove, é preciso refugiar-se num portal; o sol cai
sobre a cabeça, entremos nessa livraria, amanhã apresento você a Babette, é
uma velha amiga, você vai gostar dela. E depois se verificará que o amigo
de Babette é um antigo colega de Xavier que é o melhor amigo de Pierre, e
o círculo irá se fechando, às vezes na casa de Babette e Roland, às vezes no
consultório de Xavier ou nos cafés do bairro latino à noite. Pierre se sentirá
grato, sem atinar com a causa de sua gratidão, pelo fato de Babette e Roland
serem tão amigos de Michèle e darem a impressão de protegê-la
discretamente, sem que Michèle precise ser protegida. Ninguém fala muito
dos outros nesse grupo; preferem os grandes temas, a política ou os
processos, e principalmente gostam de olhar-se satisfeitos, trocar cigarros,
sentar-se nos cafés e viver sentindo-se rodeados de companheiros. Sorte ter
sido aceito e poder entrar, não são fáceis, conhecem os métodos mais
seguros para desanimar os que se aproximam. “Gosto deles”, diz Pierre para
si mesmo, bebendo o resto da cerveja. Vai ver que imaginam que já é
amante de Michèle, pelo menos Xavier deve imaginar; não entraria na
cabeça dele que Michèle tenha podido negar-se todo esse tempo sem razões
precisas, simplesmente se negar e continuar se encontrando com ele, saindo
juntos, deixando-o falar ou falando ela. É possível habituar-se até à
estranheza, acreditar que o mistério se explica por si mesmo e que
acabamos vivendo nele, aceitando o inaceitável, despedindo-se nas esquinas
ou nos cafés quando tudo seria tão simples, uma escada com uma bola de
vidro no lugar onde nasce o corrimão que leva ao encontro, ao verdadeiro.
Mas Michèle falou que não existe nenhuma bola de vidro.
Alto e magro, Xavier traz seu semblante dos dias de trabalho. Fala de
certas experiências, da biologia como uma incitação ao ceticismo. Olha
para um dos dedos, manchado de amarelo. Pierre lhe pergunta:
— Acontece de você pensar de repente em coisas que não têm nada a ver
com o que estava pensando?
— Que não têm nada a ver é uma hipótese de trabalho, só isso — diz
Xavier.
— Estou me sentindo muito esquisito ultimamente. Você devia me dar
alguma coisa, uma espécie de objetivador.
— Objetivador? — diz Xavier. — Isso não existe, velho.
— Penso demais em mim mesmo — diz Pierre. — É idiota.
— E Michèle, não objetiva você?
— Justamente, ontem me ocorreu que…
Ouve-se falar, vê Xavier que o está vendo, vê a imagem de Xavier num
espelho, a nuca de Xavier, vê-se a si mesmo falando com Xavier (mas por
que preciso imaginar que há uma bola de vidro no lugar onde nasce o
corrimão), e de quando em quando assiste ao movimento de cabeça de
Xavier, o gesto profissional tão ridículo quando não se está num consultório
e o médico não veste o jaleco que o situa em outro plano e lhe confere outra
autoridade.
— Enghien — diz Xavier. — Não se preocupe com isso, eu sempre
confundo Le Mans com Menton. Deve ser culpa de alguma professora, lá
na infância remota.
Im wunderschonen Monat Mai, cantarola a memória de Pierre.
— Se você não estiver dormindo bem, me avise que lhe dou alguma coisa
— diz Xavier. — De todo modo, tenho certeza de que esses quinze dias no
paraíso serão suficientes. Nada como partilhar um travesseiro, clareia
completamente as ideias; às vezes até dá fim nelas, o que é uma
tranquilidade.
Quem sabe se trabalhasse mais, se se cansasse mais, se pintasse seu quarto
ou fizesse a pé o trajeto até a faculdade, em vez de tomar o ônibus. Se
tivesse que ganhar os setenta mil francos que os pais lhe enviam. Apoiado
no peitoril do Pont Neuf vê passarem as barcaças e sente o sol de verão no
pescoço e nos ombros. Um grupo de garotas ri e brinca, ouve-se o trote de
um cavalo; um ciclista ruivo assobia prolongadamente ao passar pelas
garotas, que riem ainda mais alto, e é como se as folhas secas se
levantassem e comessem sua face numa única e horrível dentada negra.
Pierre esfrega os olhos, se endireita devagar. Não foram palavras, também
não foi uma visão: uma coisa intermediária, uma imagem decomposta em
tantas palavras quantas folhas secas há no chão (que se levantou para atacar
em cheio seu rosto). Vê que sua mão direita treme sobre o peitoril. Cerra o
punho, luta até dominar o tremor. Xavier já deve estar longe, seria inútil
correr atrás dele, acrescentar uma nova historinha ao mostruário insensato.
“Folhas secas”, dirá Xavier. “Mas não há folhas secas no Pont Neuf.” Como
se ele não soubesse que não há folhas secas no Pont Neuf, que as folhas
secas estão em Enghien.
Agora vou pensar em você, querida, só em você a noite inteira. Vou pensar
só em você, é a única maneira de sentir-me a mim mesmo, ter você no
centro de mim como uma árvore, desprender-me pouco a pouco do tronco
que me ampara e me guia, flutuar ao seu redor cautelosamente, tateando o
ar com cada folha (verdes, verdes, eu mesmo e você mesma, tronco de seiva
e folhas verdes: verdes, verdes), sem me afastar de você, sem permitir que o
resto se infiltre entre mim e você, que me distraia de você, me prive por um
só segundo de saber que esta noite está girando no rumo do amanhecer e
que lá do outro lado, onde você vive e dorme, será de novo noite quando
chegarmos juntos e entrarmos em sua casa, subirmos os degraus da entrada,
acendermos as luzes, acariciarmos seu cachorro, tomarmos café, nos
olharmos tanto antes que eu a abrace (tê-la no próprio centro de mim
mesmo como uma árvore) e a conduza até a escada (mas não há nenhuma
bola de vidro) e começarmos a subir, subir, a porta está fechada mas a chave
está em meu bolso…
Pierre pula da cama, enfia a cabeça debaixo da torneira da pia. Pensar só
em você, mas como é possível que o que está pensando seja um desejo
obscuro e surdo no qual Michèle já não é Michèle (ter você no centro de
mim como uma árvore), no qual não consegue senti-la nos braços enquanto
sobe a escada, porque assim que apoiou o pé num degrau viu a bola de
vidro e está sozinho, está subindo sozinho a escada e Michèle lá em cima,
trancada, está atrás da porta sem saber que ele tem outra chave no bolso e
que está subindo.
Enxuga o rosto, abre de par em par a janela à fresca da madrugada. Um
bêbado monologa amistosamente na rua, oscilando como se flutuasse numa
água pegajosa. Cantarola, vai e vem executando uma espécie de dança
suspensa e cerimoniosa na grisalha que pouco a pouco morde as pedras do
calçamento, os portais fechados. Als alle Knospen sprangen, as palavras se
delineiam nos lábios ressecados de Pierre, se colam ao cantarolar lá
embaixo, que não tem nada a ver com a melodia, mas as palavras tampouco
têm a ver com coisa alguma, vêm como todo o resto, se colam à vida por
um momento e depois vem uma espécie de ansiedade rancorosa, buracos
virando do avesso para revelar retalhos que se prendem a qualquer outra
coisa, uma espingarda de cano duplo, um colchão de folhas secas, o bêbado
que dança ritmadamente uma espécie de pavana, com reverências que se
desdobram em farrapos e tropeções e vagas palavras resmungadas.
— Por Deus, mas se essa questão está mais que esquecida — diz Roland,
fazendo uma curva a toda a velocidade.
— Era o que eu pensava. Quase sete anos. E de repente aparece, justo
agora…
— Nisso você se engana — diz Roland. — Se é que tinha de aparecer,
precisava ser agora; no meio do absurdo até que é bastante lógico. Eu
mesmo… Às vezes sonho com aquilo tudo, sabe? A forma como a gente
matou o cara não é coisa que se esqueça. Enfim, naquele tempo não dava
para agir de outro jeito — diz Roland, acelerando ao máximo.
— Ela não sabe de nada — diz Babette. — Só sabe que o mataram pouco
depois. Seria justo contar a ela pelo menos isso.
— Sem dúvida. Mas ele não achou nada justo. Lembro da cara dele
quando a gente o tirou do carro em pleno bosque, percebeu imediatamente
que estava liquidado. Agora, ele era valente.
— Ser valente é sempre mais fácil que ser homem — diz Babette. —
Abusar de uma criança que… Quando eu penso em quanto tive que lutar
para que Michèle não se matasse. Aquelas primeiras noites… Não estranha
que ela agora volte a se sentir a mesma de antes, é quase natural.
O carro entra a toda na rua que leva ao pavilhão.
— Sim, ele era um porco — diz Roland. — Ariano puro, como eles se
viam naquele tempo. Pediu um cigarro, naturalmente, a cerimônia
completa. Também quis saber por que íamos liquidá-lo, e nós explicamos, e
como explicamos. Quando sonho com ele é sobretudo com aquele
momento, o ar de surpresa desdenhosa dele, seu jeito quase elegante de
balbuciar. Me lembro de como caiu, com o rosto estraçalhado entre as
folhas secas.
— Não prossiga, por favor — diz Babette.
— Ele merecia, e além disso aquelas eram as únicas armas que a gente
tinha. Um cartucho de caça bem utilizado… É à esquerda, lá no fundo?
— É, à esquerda.
— Espero que tenha conhaque — diz Roland, começando a frear.
Manual de instruções
Manual de instruções
D
eixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de
chorar, entendendo por isso um choro que não ingresse no
escândalo nem insulte o sorriso com sua paralela e inepta
semelhança. O choro médio ou comum consiste numa contração
geral do rosto e num som espasmódico acompanhado de lágrimas e ranhos,
estes últimos no final, pois o choro acaba no momento em que a pessoa
assoa energicamente o nariz.
Para chorar, dirija a imaginação para si mesmo, e se isso lhe for
impossível por haver contraído o hábito de acreditar no mundo exterior,
pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de
Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca.
Atingido o choro, trate de cobrir com decoro o rosto usando as duas mãos
com a palma para dentro. As crianças chorarão com a manga do casaco
apoiada no rosto, e de preferência num canto do quarto. Duração média do
choro, três minutos.
C
omece por quebrar os espelhos de sua casa, deixe caírem os
braços, olhe vagamente para a parede, esqueça. Cante uma única
nota, escute por dentro. Caso ouça (mas isso acontecerá muito
depois) algo semelhante a uma paisagem submersa no medo, com
fogueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, penso que
estará bem encaminhado, e da mesma maneira caso ouça um rio pelo qual
descem barcas pintadas de amarelo e preto, caso ouça um sabor de pão, um
roçar de dedos, uma sombra de cavalo.
Depois compre solfejos e um fraque, e por favor não cante pelo nariz e
deixe Schumann em paz.
N
um povoado da Escócia vendem livros com uma página em
branco perdida em algum lugar do volume. Se um leitor
desemboca nessa página às três da tarde, morre.
Na praça do Quirinal, em Roma, há um ponto conhecido pelos
iniciados até o século XIX, e a partir do qual, na ocorrência de lua cheia, se
veem movimentar-se lentamente as estátuas dos Dióscuros que lutam sobre
seus cavalos empinados.
Em Amalfi, no final da área costeira, há um trapiche que entra no mar e na
noite. Ouve-se um cão ladrar para além do último farol.
Um senhor aplica dentifrício na escova de dentes. De repente vê, deitada
de costas, uma diminuta imagem de mulher, de coral ou quem sabe de
miolo de pão pintado.
Ao abrir o guarda-roupa para tirar uma camisa, cai um velho almanaque
que se desmancha, se desfolha, cobre a roupa branca com milhares de sujas
borboletas de papel.
Sabe-se de um viajante do comércio cujo punho esquerdo começou a doer,
justamente embaixo do relógio de pulso. Quando ele arrancou o relógio, o
sangue pulou: a ferida mostrava a marca de uns dentes muito agudos.
O médico acaba de examinar-nos e nos acalma. Sua voz grave e cordial
precede os remédios cuja receita escreve agora, sentado diante de sua
escrivaninha. De quando em quando ele ergue a cabeça e sorri, animando-
nos. Nada de grave, em uma semana estaremos bem. Não é o momento de
acomodar-nos em nossa poltrona, felizes, e olhar distraidamente em torno.
De repente, na penumbra embaixo da mesa vemos as pernas do médico.
Enrolou a calça até as coxas e está com meias de mulher.
E
ssa detestável pintura representa um velório às margens do Jordão.
Poucas vezes a incompetência de um pintor foi capaz de aludir com
mais abjeção às esperanças do mundo num Messias que brilha por
sua ausência; ausente do quadro que é o mundo, brilha
horrivelmente no obsceno bocejo do sarcófago de mármore, enquanto o
anjo encarregado de proclamar a ressurreição de sua carne patibular espera
inobjetável que os sinais se cumpram. Não será necessário explicar que o
anjo é a figura desnuda, prostituindo-se em sua gordura maravilhosa, e que
se disfarçou de Madalena, irrisão das irrisões na hora em que a verdadeira
Madalena avança pelo caminho (onde em compensação cresce a venenosa
blasfêmia de dois coelhos).
O menino que enfia a mão no sarcófago é Lutero, ou seja, o diabo. Da
figura vestida se disse que representa a Glória no momento de anunciar que
todas as ambições humanas cabem num alguidar; mas está mal pintada e
leva a pensar num artifício de jasmins ou num relâmpago de sêmola.
A
s formigas comerão Roma, está dito. Entre os ladrilhos, elas
andam; loba, que carreira de pedras preciosas secciona sua
garganta? Por algum lugar saem as águas das fontes, as ardósias
vivas, os camafeus trêmulos que em plena noite balbuciam a
história, as dinastias e as comemorações. Seria preciso encontrar o coração
que faz pulsar as fontes para precavê-lo das formigas, e organizar nesta
cidade de sangue intumescido, de cornucópias eriçadas como mãos de cego,
um rito de salvação para que o futuro lime seus dentes nos montes, se
arraste manso e sem forças, completamente sem formigas.
Primeiro procuraremos a orientação das fontes, o que é fácil porque nos
mapas coloridos, nas plantas monumentais, as fontes têm também bombas e
cascatas azul-celeste, somente é preciso procurá-las bem e envolvê-las num
círculo de lápis azul, não vermelho porque um bom mapa de Roma é
vermelho como Roma. Sobre o vermelho de Roma o lápis azul assinalará
um círculo roxo em torno de cada fonte, e agora temos certeza de tê-las
todas e de conhecer a folhagem das águas.
Mais difícil, mais recolhido e sigiloso é o mister de verrumar a pedra
opaca sob a qual serpenteiam as veias de mercúrio, entender à força de
paciência o número de cada fonte, fazer em noites de lua penetrante uma
vigília enamorada junto aos vasos imperiais, até que de tanto sussurro
verde, de tanto gorgolejar que parece de flores, vão nascendo as direções, as
confluências, as outras ruas, as vivas. E sem dormir segui-las, com varas de
aveleira em forma de forquilha, de triângulo, com duas varetas em cada
mão, com uma apenas, retida entre os dedos frouxos, mas tudo isso
invisível para os carabineiros e a população amavelmente receosa, andar
pelo Quirinal, subir ao Campidoglio, correr aos gritos pelo Pincio,
aterrorizar com uma aparição imóvel como um globo de fogo a ordem da
Piazza della Essedra, e assim extrair dos surdos metais do solo a
nomenclatura dos rios subterrâneos. E não pedir ajuda a ninguém, nunca.
Depois se irá vendo como nessa mão de mármore desolado as veias
vagam harmoniosas, por prazer de águas, por artifício de jogo, até pouco a
pouco aproximar-se, confluir, enlaçar-se, intumescer as artérias, derramar-se
duras na praça central onde palpita o tambor de vidro líquido, a raiz de
copas pálidas, o cavalo profundo. E já saberemos onde está, em que lençol
de abóbadas calcáreas, entre miúdos esqueletos de lêmur, bate seu tempo o
coração da água.
Será difícil sabê-lo, mas será sabido. Então mataremos as formigas que
cobiçam as fontes, calcinaremos as galerias que esses mineiros horríveis
tramam para aproximar-se da vida secreta de Roma. Mataremos as formigas
meramente chegando antes à fonte central. E partiremos num trem noturno,
fugindo de lâmias vingadoras, obscuramente felizes, confundidos com
soldados e freiras.
N
inguém terá deixado de observar que com frequência o chão se
dobra de maneira tal que uma parte sobe em ângulo reto com o
plano do chão, e logo depois a parte seguinte se posiciona
paralela a esse plano, para dar vez a uma nova perpendicular,
conduta que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas
sumamente variáveis. Agachando-se e apoiando a mão esquerda numa das
partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, entramos em
possessão temporária de um degrau ou escalão. Cada um desses degraus,
formados, como se vê, por dois elementos, se situa um pouco mais acima e
mais adiante que o anterior, princípio que dá sentido à escada, já que
qualquer outra combinação produziria formas quiçá mais belas ou
pitorescas, mas incapazes de transferir de um andar térreo para um primeiro
piso.
As escadas são subidas de frente, pois para trás ou de lado se tornam
especialmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se de pé,
braços pensos sem esforço, cabeça erguida, embora não tanto que os olhos
deixem de ver os degraus imediatamente superiores àquele em que se pisa,
e respirando lenta e regularmente. Para subir uma escada se começa por
erguer a parte do corpo situada à direita embaixo, quase sempre envolta em
couro ou camurça, e que salvo exceções cabe exatamente no escalão. Posta
no primeiro degrau a mencionada parte, que para abreviar chamaremos pé,
recolhe-se a parte equivalente da esquerda (também chamada pé, mas que
não deve ser confundida com o pé antes citado), e, levando-a até a altura do
pé, faz-se com que prossiga até posicioná-la no segundo degrau, com o que
nele repousará o pé, e no primeiro repousará o pé. (Os primeiros degraus
são sempre os mais difíceis, até que se adquira a coordenação necessária. A
coincidência de nomes entre o pé e o pé dificulta a explicação. Atente-se
em especial para não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.)
Atingido dessa maneira o segundo degrau, basta repetir alternadamente os
movimentos até chegar ao final da escada. Sai-se dela facilmente, com um
leve bater de calcanhar que a fixa em seu lugar, do qual não se moverá até o
momento da descida.
P
ense nisto: quando o presenteiam com um relógio, o presenteiam
com um pequeno inferno florido, uma corrente de rosas, uma prisão
de vento. Não lhe dão apenas o relógio, que as datas sejam muito
queridas e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com
âncora de rubi; não o presenteiam apenas com esse mínimo pedreiro que
você prenderá ao pulso e levará a passeio consigo. Presenteiam-no — não
sabem que o fazem, o terrível é que não sabem que o fazem —,
presenteiam-no com um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, uma
coisa que é sua mas não é seu corpo, que é preciso prender a seu corpo com
uma pulseira como um bracinho desesperado pendurado em seu punho.
Presenteiam-no com a necessidade de dar-lhe corda todos os dias, a
obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio;
presenteiam-no com a obsessão de atentar para a hora exata nas vitrines das
joalherias, para o anúncio pelo rádio, pelo serviço telefônico. Presenteiam-
no com o medo de que o perca, de que o roubem, de que caia no chão e
quebre. Presenteiam-no com sua marca, e a segurança de que é uma marca
melhor que as outras, presenteiam-no com a tendência a comparar seu
relógio com os outros relógios. Não o presenteiam com um relógio, é você
o presente, é você o presente no aniversário do relógio.
L
á no fundo está a morte, mas não tenha medo. Imobilize o relógio
com uma das mãos, agarre com dois dedos a chave da corda, torça-
a suavemente. Agora se abre outra órbita, as árvores desfraldam
suas folhas, os barcos correm regatas, o tempo como um leque vai
se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de
uma mulher, o perfume do pão.
O que mais você quer, o que mais você quer? Prenda-o depressa a seu
punho, deixe-o pulsar em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as
âncoras, cada uma das coisas que poderíamos ter obtido e foi esquecida vai
corroendo as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos
rubis. E lá no fundo está a morte, se não corremos e chegamos antes e
compreendemos que já não faz diferença.
Ocupações bizarras
Simulacros
S
omos uma família bizarra. Neste país, onde as coisas são feitas por
obrigação ou exibicionismo, gostamos das ocupações livres, das
tarefas porque sim, dos simulacros que não servem para nada.
Temos um defeito: nos falta originalidade. Quase tudo o que
decidimos fazer se inspira — digamos francamente, é cópia — em modelos
famosos. Se é que contribuímos com alguma novidade, é sempre inevitável:
os anacronismos ou as surpresas, os escândalos. Meu tio mais velho diz que
somos como as cópias em papel-carbono, idênticas ao original só que em
outra cor, outro papel, outra finalidade. Minha irmã número três se compara
com o rouxinol mecânico de Andersen; seu romantismo beira a náusea.
Somos muitos e moramos na rua Humboldt.
Fazemos coisas, mas contar o que fazemos é difícil porque falta o mais
importante, a ansiedade e a expectativa de estar fazendo as coisas, as
surpresas tão mais importantes que os resultados, os fracassos em que toda
a família desmorona no chão feito um castelo de cartas e durante dias
inteiros não se ouvem mais que deplorações e gargalhadas. Contar o que
fazemos é simplesmente uma maneira de rechear os lapsos inevitáveis,
porque às vezes estamos pobres ou presos ou doentes, às vezes morre algum
de nós ou (me dói mencionar isso) algum de nós trai, renuncia ou entra na
Direção Impositiva. Mas não é o caso de deduzir daí que as coisas não vão
bem ou que somos melancólicos. Moramos no bairro de Pacífico e fazemos
coisas sempre que podemos. Somos muitos tendo ideias e com vontade de
pô-las em prática. Por exemplo o patíbulo; até hoje ninguém chegou a um
acordo sobre a origem da ideia, minha irmã número cinco afirma que foi de
um de meus primos de sangue, que são muito filósofos, mas meu tio mais
velho garante que ele é que teve a ideia depois de ler um romance de capa e
espada. No fundo tanto se nos dá, a única coisa que nos interessa é fazer
coisas, e por isso as conto quase sem vontade, só para não sentir tão de
perto a chuva desta tarde vazia.
A casa tem jardim na frente, coisa rara na rua Humboldt. Não é maior que
um pátio, mas fica três degraus acima da calçada, o que lhe dá um vistoso
aspecto de plataforma, localização ideal para um patíbulo. Como a cerca é
de ferro e alvenaria, dá para trabalhar sem que os transeuntes estejam por
assim dizer enfiados dentro de casa; eles podem se encostar na cerca e ficar
horas, mas isso não nos incomoda. “Começamos com a lua cheia”,
determinou meu pai. De dia íamos buscar madeiras e ferros nos depósitos
da avenida Juan B. Justo, mas minhas irmãs ficavam na sala praticando o
uivo dos lobos, depois que minha tia mais moça teimou que os patíbulos
atraem os lobos e os estimulam a uivar para a Lua. O abastecimento de
pregos e ferramentas ficava por conta de meus primos; meu tio mais velho
desenhava os projetos, discutia com minha mãe e meu tio número dois a
variedade e qualidade dos instrumentos de suplício. Lembro-me do fim da
discussão: decidiram-se adustamente por uma plataforma bastante alta,
sobre a qual seriam construídas uma forca e uma roda, com um espaço livre
destinado a supliciar ou decapitar, conforme o caso. Meu tio mais velho
achava muito mais pobre e mesquinho que sua ideia original, mas as
dimensões do jardim da frente e o custo dos materiais sempre restringem as
ambições da família.
Começamos a construção num domingo à tarde, depois dos raviólis.
Embora nunca tenhamos nos preocupado com o que os vizinhos possam
pensar, era evidente que os poucos curiosos imaginavam que íamos
construir um ou dois aposentos para aumentar a casa. O primeiro a se
surpreender foi d. Cresta, o velhinho da frente, que veio perguntar para que
estávamos instalando aquelas plataformas. Minhas irmãs se reuniram num
canto do jardim e soltaram alguns uivos de lobo. Juntou muita gente, mas
continuamos nosso trabalho até a noite e aprontamos a plataforma e as duas
escadinhas (para o sacerdote e o condenado, que não devem subir ao
mesmo tempo). Na segunda-feira uma parte da família rumou para seus
respectivos empregos e ocupações, já que de alguma coisa é preciso morrer,
e os demais, inclusive eu, começamos a erguer a forca enquanto meu tio
mais velho consultava desenhos antigos para a roda. A ideia dele consistia
em posicionar a roda o mais alto possível sobre uma viga levemente
irregular, por exemplo um tronco de choupo bem desbastado. Para agradá-
lo, meu irmão número dois e meus primos de sangue saíram com a
caminhonete em busca de um choupo; enquanto isso meu tio mais velho e
minha mãe encaixavam os raios da roda no cubo e eu preparava uma
braçadeira de ferro. Nesses momentos nos divertíamos enormemente
porque se ouviam marteladas de todo lado, minhas irmãs uivavam na sala,
os vizinhos se amontoavam na cerca trocando impressões, e em meio ao
solferino e o roxo do entardecer subia o perfil da forca e se via meu tio mais
moço a cavalo na travessa para fixar o gancho e preparar o nó corrediço.
Àquela altura dos acontecimentos as pessoas da rua não podiam continuar
ignorando o que estávamos fazendo, e um coro de protestos e ameaças nos
estimulou agradavelmente a arrematar a jornada com a ereção da roda.
Alguns descontrolados haviam pretendido impedir que meu irmão número
dois e meus primos pusessem para dentro de casa o magnífico tronco de
choupo que traziam na caminhonete. Uma tentativa de cabo de guerra foi
ganha de ponta a ponta pela família em cheio que, puxando
disciplinadamente o tronco, o dispôs no jardim juntamente com uma criança
de pouca idade agarrada às raízes. Meu pai em pessoa devolveu a criança
aos exasperados pais, passando-a cortesmente pela cerca, e enquanto a
atenção se concentrava nessas alternativas sentimentais, meu tio mais velho,
ajudado por meus primos de sangue, calçava a roda numa das extremidades
do tronco e passava a erguê-la. A polícia chegou na ocasião em que a
família, reunida na plataforma, comentava favoravelmente o belo aspecto
do patíbulo. Só minha irmã número três permanecia perto da porta, e coube
a ela dialogar com o subcomissário em pessoa; não teve dificuldade em
convencê-lo de que estávamos trabalhando nos limites de nossa
propriedade, numa obra que apenas o uso poderia revestir de um caráter
anticonstitucional, e que os comentários da vizinhança eram filhos do ódio
e fruto da inveja. O cair da noite nos salvou de outras perdas de tempo.
À luz de um lampião, jantamos na plataforma, observados por uma
centena de vizinhos rancorosos; nunca o leitão marinado nos pareceu mais
delicioso, ou mais negro e suave o nebiolo. Uma brisa do norte balançava
suavemente a corda da forca; uma ou duas vezes a roda rangeu, como se os
corvos já tivessem pousado para comer. Os curiosos começaram a se
afastar, ruminando vagas ameaças; agarrados à cerca ficaram vinte ou trinta,
que pareciam à espera de alguma coisa. Depois do café apagamos o lampião
para dar lugar à lua que subia pelos balaústres do terraço, minhas irmãs
uivaram e meus primos e tios percorreram lentamente a plataforma, fazendo
tremer as bases com seus passos. No silêncio que se seguiu, a lua veio se
posicionar à altura do nó corrediço e na roda pareceu se estender uma
nuvem de bordas prateadas. Olhávamos para elas, felizes de dar gosto, mas
os vizinhos murmuravam na cerca, como se estivessem à beira de uma
decepção. Acenderam cigarros e foram saindo, uns de pijama e outros mais
devagar. Ficaram a rua, um ou outro apito de guarda ao longe, e o ônibus
108, que passava a intervalos; nós já havíamos ido dormir e sonhávamos
com festas, elefantes e vestidos de seda.
Etiqueta e preleções
S
empre me pareceu que o traço distintivo de nossa família é o recato.
Levamos o pudor a extremos incríveis, tanto em nossa maneira de
vestir-nos e comer como na forma de expressar-nos e de embarcar
nos bondes. Os apelidos, por exemplo, que se conferem tão
despreocupadamente no bairro de Pacífico, são para nós motivo de cuidado,
reflexão e mesmo inquietação. Achamos que não se pode atribuir uma
alcunha qualquer a alguém que será obrigado a absorvê-la e tolerá-la como
um atributo ao longo da vida inteira. As senhoras da rua Humboldt chamam
os filhos de Toto, Coco ou Cacho, e as filhas de Negra, ou Beba, mas em
nossa família esse tipo usual de apelido não existe, e muito menos outros
rebuscados e estapafúrdios como Chirola, Cachuzo ou Matagatos,
frequentes para os lados da Paraguay com a Godoy Cruz. Como exemplo do
cuidado que tomamos com essas coisas, será suficiente citar o caso de
minha tia número dois. Visivelmente dotada de um traseiro de imponentes
dimensões, jamais teríamos nos permitido ceder à fácil tentação dos
apelidos habituais; assim, em vez de dar-lhe a alcunha brutal de Ânfora
Etrusca, concordamos em chamá-la pela mais decente e familiar de
Bunduda. Sempre procedemos com o mesmo tato, embora nos ocorra ter de
enfrentar vizinhos e amigos que insistem em usar os motes tradicionais.
Sempre recusamos a meu primo número dois mais moço, acentuadamente
cabeçudo, o apelido de Atlas, que lhe haviam dado na parrilla da esquina,
preferindo o infinitamente mais delicado Cacuça. E assim sempre.
Eu gostaria de esclarecer que não fazemos essas coisas para nos
diferenciar do resto do bairro. Simplesmente gostaríamos de modificar,
gradualmente e sem ofender os sentimentos de ninguém, as rotinas e
tradições. Não gostamos de vulgaridade em nenhuma de suas formas, e
basta algum de nós ouvir na cantina frases como “Foi uma partida de índole
violenta”, ou “Os arremates de Faggioli se caracterizaram por um notável
trabalho de infiltração preliminar do eixo médio”, para que imediatamente
façamos constar as formas mais castiças e aconselháveis na emergência, ou
seja: “Foi um festival de porrada que nem te conto”, ou “Primeiro acabamos
com eles, depois foi a goleada”. As pessoas nos olham com surpresa, mas
nunca falta alguém para extrair a lição oculta nessas frases delicadas. Meu
tio mais velho, que lê os escritores argentinos, diz que com muitos deles
seria possível fazer algo do gênero, mas nunca nos explicou a coisa em
detalhe. Uma pena.
Correios e Telecomunicações
U
ma vez que um parente para lá de distante chegou a ministro, nos
entendemos para que ele nomeasse parte da família para a
sucursal dos correios da rua Serrano. Durou pouco, é verdade.
Dos três dias que ocupamos o posto, dois passamos atendendo ao
público com uma celeridade extraordinária, que nos valeu a atônita visita de
um inspetor do Correio Central e uma menção elogiosa no La Razón. No
terceiro dia estávamos seguros de nossa popularidade, pois as pessoas já
vinham de outros bairros despachar sua correspondência e dar umas voltas
em Purmamarca e outros lugares igualmente absurdos. Então meu tio mais
velho soltou o lá vou eu e a família começou a desempenhar com capricho
seus princípios e predileções. No guichê de postagem, minha irmã número
dois oferecia uma bexiga colorida a cada comprador de selos. A primeira a
receber sua bexiga foi uma senhora gorda que ficou estaqueada, com a
bexiga na mão e o selo de um peso já umedecido que ia se enroscando
pouco a pouco em seu dedo. Um jovem cabeludo se recusou
categoricamente a receber sua bexiga e minha irmã o admoestou com
severidade enquanto na fila do guichê começavam a circular opiniões
conflitantes. Ao lado, vários interioranos, empenhados em fazer remessas
insensatas de parte de seus salários para os familiares distantes, recebiam
com certo assombro copinhos de grapa e de vez em quando uma empanada
de carne, tudo isso por iniciativa de meu pai, que além do mais recitava
para eles aos gritos os melhores conselhos do velho Vizcacha. Enquanto
isso meus irmãos, responsáveis pelo guichê de encomendas, untavam-nas
com alcatrão e as enfiavam num balde cheio de penas. Depois as
apresentavam ao estupefato expedidor e o faziam dar-se conta da alegria
com que seriam recebidos os pacotes assim incrementados. “Sem barbante à
vista”, diziam. “Sem o lacre tão vulgar, e com o nome do destinatário
parecendo estar escondido debaixo da asa de um cisne, repare.” Nem todos
se mostravam encantados, é preciso ser sincero.
Quando os curiosos e a polícia invadiram o local, minha mãe encerrou o
ato da maneira mais bonita, fazendo voar sobre o público uma infinidade de
aviõezinhos coloridos fabricados com os formulários dos telegramas, das
remessas bancárias e das cartas registradas. Cantamos o hino nacional e nos
retiramos em boa ordem; vi chorar uma menina que era a terceira da fila das
postagens e sabia que agora não ia mais ganhar uma bexiga.
Tia em dificuldades
P
or que haveríamos de ter uma tia tão receosa de cair de costas? Faz
anos que a família luta para curá-la de sua obsessão, mas chegou a
hora de confessar nosso fracasso. Por mais que nos esforcemos, a
tia tem medo de cair de costas e sua inocente mania afeta a nós
todos, começando por meu pai, que fraternalmente vai com ela a todos os
lugares e fica olhando o chão para que a tia possa caminhar sem
preocupações, enquanto minha mãe se esmera em varrer o pátio várias
vezes por dia, minhas irmãs recolhem as bolas de tênis com que se divertem
inocentemente no terraço e meus primos apagam todo rastro imputável aos
cães, gatos, tartarugas e galinhas que proliferam em nossa casa. Mas de
nada adianta, a tia só se decide a cruzar os aposentos depois de longa
hesitação, intermináveis observações oculares e palavras destemperadas
dirigidas a qualquer criança que passe por ali naquele momento. Depois,
põe-se em marcha apoiando primeiro um pé e movendo-o como um
boxeador na caixa de resina, depois o outro, trasladando o corpo num
deslocamento que na infância considerávamos majestoso, e demorando
vários minutos para ir de uma porta a outra. É uma coisa horrível.
Inúmeras vezes a família se esforçou para que minha tia explicasse com
alguma coerência seu medo de cair de costas. Em determinada ocasião foi
recebida com um silêncio que teria sido possível cortar a gadanho; mas uma
noite, depois de seu copinho de hesperidina, a tia condescendeu em insinuar
que se caísse de costas não conseguiria voltar a levantar-se. À observação
elementar de que trinta e dois membros da família estavam dispostos a
acudi-la, respondeu com um olhar lânguido e duas palavras: “Mesmo
assim”. Dias depois, meu irmão mais velho me chamou até a cozinha à
noite e me mostrou uma barata caída de costas embaixo da pia. Sem falar
nada um para o outro assistimos à longa e inútil luta do animal para virar-
se, enquanto outras baratas, dominando a intimidação da luz, circulavam
pelo piso e passavam roçando a que jazia em posição de decúbito dorsal.
Fomos para a cama com acentuada melancolia, e por uma razão ou por
outra ninguém tornou a interrogar a tia; limitamo-nos a amenizar seu medo
na medida do possível, a ir com ela a toda parte, a dar-lhe o braço e
comprar-lhe um sem-número de sapatos com solas antiderrapantes e outros
dispositivos estabilizadores. A vida foi em frente assim, e não era pior que
outras vidas.
M
uito antes de pôr nossa ideia em prática sabíamos que o pouso
dos tigres apresentava um duplo problema, sentimental e moral.
O primeiro não se referia tanto ao pouso em si como ao tigre
propriamente dito, na medida em que esses felinos não gostam
de ser pousados e recorrem a todas as suas energias, que são imensas, para
opor resistência. Nessas circunstâncias, seria o caso de fazer frente às
idiossincrasias dos mencionados animais? Mas a pergunta nos transportava
para o plano moral, no qual toda ação pode ser causa ou efeito de esplendor
ou de infâmia. À noite, em nossa casinha da rua Humboldt, meditávamos
diante das tigelas de arroz de leite, esquecidos de polvilhá-las com canela e
açúcar. Não estávamos verdadeiramente convencidos de conseguir pousar
um tigre, o que nos entristecia.
Finalmente ficou decidido que pousaríamos um, somente para efeitos de
acionar o mecanismo em toda a sua complexidade, para mais tarde avaliar
os resultados. Não falarei aqui da obtenção do primeiro tigre: foi um
trabalho sutil e penoso, um percorrer consulados e drogarias, uma
complicada urdidura de bilhetes, cartas aéreas e trabalho de dicionário.
Uma noite meus primos chegaram cobertos de tintura de iodo: era o
sucesso. Bebemos tanto nebiolo que minha irmã mais moça acabou tirando
a mesa com o rastelo. Naquela época éramos mais jovens.
Agora que a experiência produziu os resultados que conhecemos, posso
facilitar detalhes do pouso. Talvez o mais difícil seja tudo o que se refere ao
ambiente, pois é necessário um aposento com o mínimo de móveis, coisa
rara na rua Humboldt. No centro se coloca o dispositivo: duas tábuas
cruzadas, um jogo de varetas elásticas e algumas jarras de cerâmica com
leite e água. Pousar o tigre não é assim tão difícil, embora possa acontecer
de a operação fracassar e de ser necessário repeti-la; a verdadeira
dificuldade começa no momento em que, já pousado, o tigre recupera a
liberdade e opta — de múltiplas maneiras possíveis — por exercitá-la.
Nessa etapa, que chamarei intermediária, as reações de minha família são
fundamentais; tudo depende de como se comportem minhas irmãs, da
habilidade com que meu pai torne a pousar o tigre, utilizando-o ao máximo
como um oleiro sua argila. A menor falha seria o desastre, os fusíveis
queimados, o leite espalhado pelo chão, o horror de uns olhos
fosforescentes riscando a escuridão, os jatos mornos a cada golpe de garras;
não quero nem imaginar isso, visto que até agora pousamos o tigre sem
consequências perigosas. Tanto o dispositivo como as diferentes funções
que todos devemos desempenhar, desde o tigre até meus primos segundos,
parecem eficazes e se articulam harmoniosamente. Para nós o fato em si, de
pousar o tigre, não é importante, e sim que a cerimônia se realize até o final
sem transgressão. É preciso que o tigre aceite ser pousado, ou que o seja de
maneira tal que sua aceitação ou sua recusa careçam de importância. Nos
instantes que poderíamos ter a tentação de chamar cruciais — talvez por
causa das duas tábuas, talvez por um mero lugar-comum —, a família se
sente tomada por uma exaltação extraordinária; minha mãe não disfarça as
lágrimas e minhas primas de sangue trançam e destrançam convulsivamente
os dedos. Pousar o tigre tem alguma coisa de total encontro, de alinhamento
diante de um absoluto; o equilíbrio depende de tão pouco e o pagamos a um
preço tão alto que os breves instantes que se seguem ao pouso e que
determinam sua perfeição como que nos retiram de nós mesmos, aniquilam
a tigredade e a humanidade num só movimento imóvel que é vertigem,
pausa e chegada. Não existe tigre, não existe família, não existe pouso.
Impossível saber o que existe: um tremor que não é desta carne, um tempo
central, uma coluna de contato. E depois saímos todos para o pátio coberto
e nossas tias trazem a sopa como se alguma coisa cantasse, como se
fôssemos a um batismo.
ão é pelo anis que vamos, nem porque é preciso ir. Alguém já deve ter
desconfiado: vamos porque não conseguimos tolerar as formas mais
encobertas da hipocrisia. Minha prima segunda mais velha se encarrega de
N
verificar a índole do luto, e se ele é verdadeiro, se choram porque
chorar é só o que resta àqueles homens e àquelas mulheres em
meio ao aroma de nardos e de café, nesse caso ficamos em casa e
os acompanhamos de longe. No máximo minha mãe dá uma
passadinha e cumprimenta em nome da família; não gostamos de interpor
insolentemente nossa própria vida a esse diálogo com a sombra. Mas se da
detida investigação de minha prima surge a suspeita de que num pátio
coberto ou na sala montaram-se os trípodes da falsidade, então a família
enverga seus melhores trajes, espera que o velório esteja no ponto e vai se
apresentando aos poucos, mas implacavelmente.
Em Pacífico as coisas quase sempre se passam num pátio com vasos de
plantas e música de rádio. Para essas ocasiões os vizinhos condescendem
em apagar os rádios e ficam apenas os jasmins e os parentes, alternando-se
contra as paredes. Chegamos um a um, ou dois a dois, cumprimentamos os
familiares, fáceis de reconhecer porque choram assim que veem alguém
entrar, e vamos nos inclinar diante do defunto, escoltados por algum parente
próximo. Uma ou duas horas depois toda a família está na casa mortuária,
mas embora os vizinhos nos conheçam bem, comportamo-nos como se cada
um tivesse vindo por sua conta e pouco falamos entre nós. Um método
preciso ordena nossos atos, determina os interlocutores com quem trocamos
ideias na cozinha, debaixo da laranjeira, nos quartos, no vestíbulo, e de
quando em quando saímos para fumar no pátio ou na rua ou damos uma
volta no quarteirão para debater opiniões políticas e esportivas. Não
precisamos de muito tempo para sondar os sentimentos dos familiares mais
chegados; os copinhos de aguardente, o mate doce e os Particulares light
são a ponte confidencial; antes da meia-noite já estamos confiantes,
podemos agir sem remorsos. Quase sempre minha irmã mais moça se
encarrega da primeira escaramuça; habilmente posicionada aos pés do
ataúde, ela cobre os olhos com um lenço roxo e começa a chorar, primeiro
em silêncio, empapando o lenço a um ponto inimaginável, depois com
soluços e arquejos, e finalmente é tomada por um ataque terrível de choro
que obriga as vizinhas a levá-la para a cama preparada para essas
emergências, fazê-la cheirar água de flor de laranjeira e consolá-la,
enquanto outras vizinhas se encarregam dos parentes próximos bruscamente
contaminados pela crise. Durante algum tempo verifica-se um
amontoamento de pessoas à porta da capela-ardente, perguntas e notícias
em voz baixa, encolhimentos de ombros por parte dos vizinhos. Esgotados
por um esforço em que tiveram de empenhar-se a fundo, os familiares
arrefecem em suas manifestações, e nesse exato momento minhas três
primas segundas desatam a chorar sem afetação, sem gritos, mas tão
comovedoramente que os familiares e vizinhos sentem a emulação,
compreendem que não é possível ficar ali descansando enquanto gente
estranha proveniente do outro quarteirão se aflige daquela maneira, e mais
uma vez se associam à deploração geral, mais uma vez é preciso abrir
espaço nas camas, abanar as senhoras mais velhas, afrouxar o cinto de
velhinhos convulsos. Em geral meus irmãos e eu esperamos por esse
momento para entrar na sala mortuária e nos posicionar ao lado do ataúde.
Por estranho que pareça, estamos realmente desolados, somos incapazes de
ouvir nossas irmãs chorar sem que um pesar infinito nos tome o peito e nos
faça pensar em coisas da infância, nuns campos perto de Villa Albertina,
num bonde que rangia ao fazer a curva na rua General Rodríguez, em
Banfield, coisas assim, sempre tão tristes. Para nós é suficiente ver as mãos
cruzadas do defunto para que o pranto nos domine numa única onda, nos
obrigue a cobrir o rosto envergonhados, e somos cinco homens que choram
de verdade no velório, enquanto os familiares recuperam desesperadamente
o fôlego para fazer como nós, sentindo que custe o que custar têm de
demonstrar que o velório pertence a eles, que só eles têm direito a chorar
assim naquela casa. Mas são poucos, e mentem (isso sabemos por minha
prima segunda mais velha, e nos dá forças). Em vão acumulam os soluços e
os desmaios, inutilmente os vizinhos mais solidários os apoiam com seus
consolos e suas reflexões, levando-os e trazendo-os para que descansem e
se reintegrem à luta. Meus pais e meu tio mais velho nos substituem agora,
há algo que impõe respeito na dor daqueles velhos que saíram da rua
Humboldt para ir até ali, cinco quadras contando a partir da esquina, para
velar o finado. Os vizinhos mais coerentes começam a perder pé, deixam de
lado os familiares, vão para a cozinha beber grapa e fofocar; alguns
parentes, extenuados por uma hora e meia de choro ininterrupto, dormem
estertorosamente. Nós nos revezamos em ordem, porém sem dar a
impressão de uma coisa ensaiada; antes das seis da manhã nos
transformamos nos donos incontestes do velório, a maioria dos vizinhos foi
para casa dormir, os parentes jazem em diferentes posições e graus de
letargia, o dia nasce no pátio. A essa altura minhas tias organizam enérgicas
merendas na cozinha, tomamos café fervendo, olhamo-nos brilhantemente
ao atravessar o vestíbulo ou os quartos; temos algo de formigas que vão e
vêm, esfregando as antenas ao passar. Quando chega o carro fúnebre, as
providências estão tomadas, minhas irmãs levam os parentes para que se
despeçam do finado antes do fechamento do caixão, suportam-nos e
confortam-nos enquanto minhas primas e meus irmãos vão se aproximando
até deslocá-los, abreviando o último adeus e ficando sozinhos ao lado do
morto. Subjugados, desorientados, compreendendo vagamente mas
incapazes de reagir, os familiares se deixam levar e trazer, bebem qualquer
coisa que lhes aproximem dos lábios e reagem com vagos protestos
inconsistentes às carinhosas atenções de minhas primas e minhas irmãs.
Quando chega a hora de partir e a casa está repleta de parentes e amigos,
uma organização invisível mas sem fissuras determina cada movimento, o
diretor da funerária acata as ordens de meu pai, a remoção do ataúde é feita
de acordo com as indicações de meu tio mais velho. Uma vez ou outra os
parentes chegados no último momento externam uma reivindicação
despropositada; os vizinhos, já convencidos de que tudo é como deve ser,
olham para eles escandalizados e os obrigam a calar-se. No carro enlutado
se instalam meus pais e meus tios, meus irmãos embarcam no segundo e
minhas primas condescendem em aceitar alguns dos familiares no terceiro,
onde se acomodam envoltas em grandes lenços pretos e roxos. O resto
embarca onde consegue, e há parentes que se veem obrigados a chamar um
táxi. E se alguns deles, refrescados pelo ar matinal e o longo trajeto, tramam
uma reconquista na necrópole, amargo é seu dissabor. Assim que o caixão
chega ao peristilo, meus irmãos cercam o orador designado pela família ou
pelos amigos do defunto e facilmente identificável pela expressão
cerimoniosa e pelo rolinho fazendo volume no bolso do casaco. Apertando
as mãos dele, empapam suas lapelas com as lágrimas que lhes rolam pelo
rosto, dão-lhe palmadinhas com um leve som de tapioca, e o orador não
consegue impedir que meu tio mais moço suba na tribuna e dê andamento
aos discursos com uma fala que é sempre um modelo de verdade e
discrição. Leva três minutos, refere-se exclusivamente ao defunto, desfia
suas virtudes e aponta seus defeitos sem despojar de humanidade nada do
que diz; está profundamente emocionado, e às vezes tem dificuldade para
concluir. Assim que ele desce, meu irmão mais velho ocupa a tribuna e se
encarrega do panegírico em nome da vizinhança, enquanto o vizinho
designado para tal fim procura abrir caminho entre minhas primas e irmãs,
que choram penduradas em seu colete. Um gesto afável mas imperioso de
meu pai mobiliza o pessoal da funerária; o catafalco começa a rolar
suavemente e os oradores oficiais ficam ao pé da tribuna, olhando uns para
os outros e amassando os discursos nas mãos úmidas. De modo geral não
nos damos ao trabalho de acompanhar o defunto até a cripta ou sepultura;
em vez disso, damos meia-volta e saímos todos juntos, comentando os
acontecimentos do velório. De longe vemos como os parentes correm
desesperados para empunhar uma das alças do ataúde e brigam com os
vizinhos, que no ínterim se apropriaram das alças e preferem encarregar-se
delas eles mesmos, no lugar dos parentes.
Material plástico
Trabalhos de escritório
M
inha fiel secretária é das que levam sua função ao-pé-da-letra e,
como sabemos, isso significa passar para o outro lado, invadir
territórios, enfiar os cinco dedos no copo de leite para retirar
um pobre cabelinho.
Minha fiel secretária toma conta ou gostaria de tomar conta de tudo em
meu escritório. Passamos o dia travando uma cordial batalha de jurisdições,
um sorridente intercâmbio de minas e contraminas, de saídas e retiradas, de
prisões e resgates. Só que ela tem tempo para tudo, não apenas tenta se
adonar do escritório como executa escrupulosa suas funções. As palavras,
por exemplo; não há dia em que não as lustre, escove, ponha na estante
correspondente, prepare e arrume para suas obrigações cotidianas. Se me
vem à boca um adjetivo prescindível — porque todos eles nascem fora da
órbita de minha secretária e, de certo modo, de mim mesmo —, lá vem ela
de lápis em punho capturá-lo e matá-lo sem lhe dar tempo de soldar-se ao
resto da frase e sobreviver por descuido ou hábito. Se eu permitisse, se
neste instante mesmo permitisse, ela jogaria estas páginas no cesto,
enfurecida. Está tão decidida a que eu viva uma vida ordenada que qualquer
movimento imprevisto a leva a se aprumar, toda orelhas, toda cauda em
riste, tremendo como um arame ao vento. Sou obrigado a dissimular, e com
a desculpa de estar redigindo um informe, encher algumas folhinhas de
papel rosa ou verde com as palavras de que gosto, com seus jogos e
brincadeiras e suas raivosas rixas. Enquanto isso minha fiel secretária
arruma o escritório, distraída na aparência mas pronta para o salto. Na
metade de um verso que nascia tão feliz, coitado, ouço-a dar início a seu
horrível guincho de censura, e então meu lápis volta a galope para as
palavras vetadas, risca-as pressuroso, arruma o desarrumado, fixa, limpa e
dá brilho, e o que resta provavelmente está muito bom, mas essa tristeza,
esse gosto pela traição na língua, essa cara de chefe com sua secretária.
Maravilhosas ocupações
Q
ue maravilhosa ocupação cortar uma das pernas de uma aranha,
enfiar num envelope, escrever Senhor Ministro das Relações
Exteriores, adicionar o endereço, descer a escada aos pulos,
despachar a carta no correio da esquina.
Que maravilhosa ocupação ir andando pelo bulevar Arago contando as
árvores, e a cada cinco castanheiras ficar um momento em pé sobre uma
perna só e esperar alguém olhar, e então soltar um grito seco e breve e girar
feito uma piorra, de braços bem abertos, idêntico à ave cacuy, que se
lamenta nas árvores do norte argentino.
Que maravilhosa ocupação entrar num café e pedir açúcar, outra vez
açúcar, três ou quatro vezes açúcar, e ir formando um montão no meio da
mesa, enquanto cresce a fúria nos balcões e debaixo dos aventais brancos, e
exatamente no meio do montão de açúcar cuspir delicadamente, depois
acompanhar o descenso do pequeno glaciar de saliva, ouvir o barulho de
pedras partidas que o acompanha e que nasce nas gargantas contraídas de
cinco paroquianos e do patrão, homem honesto em seus momentos.
Que maravilhosa ocupação tomar o ônibus, descer na frente do Ministério,
abrir caminho a golpes de envelopes selados, deixar para trás o último
secretário e entrar, firme e sério, no vasto gabinete com espelhos,
exatamente no instante em que um contínuo vestido de azul entrega ao
ministro uma carta, e ver o ministro abrir o envelope com um dobrador de
origem histórica, enfiar os dedos delicados e retirar a perna de aranha, ficar
olhando para ela, depois imitar o zumbido de uma mosca e ver como o
ministro empalidece, quer jogar fora a perna mas não consegue, foi
capturado pela perna, e dar-lhe as costas e sair, assobiando, anunciar nos
corredores a renúncia do ministro, e saber que no dia seguinte chegarão as
tropas inimigas e tudo irá para o diabo e será uma quinta-feira de um mês
ímpar de um ano bissexto.
N
os bancos e estabelecimentos comerciais deste mundo ninguém
está minimamente interessado em que alguém entre com um
repolho debaixo do braço, ou um tucano, ou soltando pela boca
como se fossem um barbantinho as canções aprendidas com
minha mãe ou levando pela mão um chimpanzé de pulôver listrado. Mas é
só uma pessoa entrar com uma bicicleta que se verifica uma revoada
excessiva, e o veículo é expulso com violência para a rua enquanto seu
proprietário recebe admoestações veementes dos empregados da casa.
Para uma bicicleta, ente dócil e de comportamento modesto, constitui uma
humilhação e um insulto a presença de cartazes que a detêm altaneiros
diante das belas portas envidraçadas da cidade. É sabido que as bicicletas
buscaram por todos os meios remediar sua triste condição social. Em
absolutamente todos os países da Terra, porém, é proibido entrar com
bicicletas. Alguns acrescentam: “e cães”, o que duplica nas bicicletas e nos
cães seu complexo de inferioridade. Um gato, uma lebre, uma tartaruga
podem em princípio entrar na Bunge & Born ou nos escritórios dos
advogados da rua San Martín sem ocasionar mais que surpresa, grande
encantamento entre telefonistas ansiosas, ou no máximo uma instrução ao
porteiro para que jogue na rua os supramencionados animais. Esta última
hipótese pode se verificar, mas não é humilhante, primeiro porque só
constitui uma probabilidade entre muitas, e depois porque nasce como
efeito de uma causa, e não de uma fria maquinação preestabelecida,
horrendamente impressa em placas de bronze ou de esmalte, tábuas da lei
inexorável que esmagam a singela espontaneidade das bicicletas, seres
inocentes.
Seja como for, cuidado, gerentes! As rosas também são ingênuas e doces,
mas é possível que saibais que numa guerra de duas rosas morreram
príncipes que eram como raios negros, cegados por pétalas de sangue. Que
não aconteça de as bicicletas amanhecerem um dia cobertas de espinhos, de
as manoplas do guidão crescerem e investirem, de, blindadas de furor,
arremeterem em bloco contra os vidros das companhias de seguros, e que
esse dia enlutado se encerre com uma queda geral das ações, com luto em
vinte e quatro horas, com remessas de cartões de pêsames.
Q
uando se põe um espelho na parte oeste da ilha de Páscoa, ele
atrasa. Quando se põe um espelho na parte leste da ilha de
Páscoa, ele adianta. Recorrendo a delicadas medições, é possível
encontrar o ponto em que esse espelho estará na hora, mas o
ponto que serve para esse espelho não é garantia de que sirva para outro,
pois os espelhos são afetados por diferentes materiais e reagem conforme
lhes dá na real veneta. Assim Salomón Lemos, o antropólogo bolsista da
Fundação Guggenheim, viu-se morto de tifo quando olhou para seu espelho
de fazer a barba, tudo isso a leste da ilha. E ao mesmo tempo um espelhinho
que ele havia esquecido a oeste da ilha de Páscoa refletia para ninguém
(estava jogado entre as pedras) Salomón Lemos de calça curta indo para a
escola; depois Salomón Lemos nu numa banheira, sendo entusiasticamente
ensaboado pelo pai e pela mãe, depois Salomón Lemos dizendo agu para
emoção de sua tia Remeditos numa estância do distrito de Trenque
Lauquen.
Possibilidades da abstração
T
rabalho há anos na Unesco e em outros organismos internacionais,
mas apesar disso conservo um certo senso de humor e
especialmente uma notável capacidade de abstração, ou seja,
quando não gosto de um sujeito risco-o do mapa simplesmente
tomando essa decisão, e enquanto ele fala e fala eu passo para Melville e o
coitado acredita que estou escutando o que ele diz. Da mesma forma, se
gosto de uma garota posso abstrair sua roupa assim que ela entra em meu
campo visual, e enquanto ela comenta que a manhã está fria eu passo
longos minutos admirando seu umbiguinho. Às vezes essa minha faculdade
é quase malsã.
Na segunda-feira passada foram as orelhas. Na hora de entrar era
extraordinário o número de orelhas que se deslocavam na galeria da
entrada. Em meu escritório encontrei seis orelhas; na cantina, ao meio-dia,
havia mais de quinhentas, simetricamente dispostas em fileiras duplas. Era
divertido ver como de vez em quando duas orelhas subiam, saíam da fileira
e se afastavam. Pareciam asas.
Na terça-feira escolhi uma coisa que julgava menos frequente: os relógios
de pulso. Me enganei, porque na hora do almoço tive ocasião de ver cerca
de duzentos deles sobrevoando as mesas com um movimento para trás e
para a frente que remetia em especial à ação de seccionar um bife. Na
quarta-feira preferi (com certo constrangimento) uma coisa mais
fundamental, e escolhi os botões. Oh, espetáculo! O ar da galeria cheio de
cardumes de olhos opacos que se deslocavam horizontalmente, enquanto
aos lados de cada pequeno batalhão horizontal oscilavam pendularmente
dois, três ou quatro botões. No elevador, a saturação era indescritível:
centenas de botões imóveis, ou movendo-se de leve, num assombroso cubo
cristalográfico. Lembro-me em especial de uma janela (era à tarde) contra o
céu azul. Oito botões vermelhos desenhavam uma delicada vertical, e aqui e
ali se moviam suavemente pequenos discos nacarados e secretos. Aquela
mulher devia ser tão bela…
A Quarta-Feira era de Cinzas, dia em que os processos digestivos me
pareceram ilustração adequada à circunstância, razão pela qual às nove e
meia fui o bisonho espectador da chegada de centenas de saquinhos
contendo uma papa grisácea resultante da mistura de cornflakes, café com
leite e croissants. Na cantina, vi como uma laranja se dividia em esmerados
gomos, que num dado momento perdiam sua forma e desciam um depois do
outro até formar, em determinada altura, um depósito esbranquiçado. Nesse
estado a laranja percorreu o corredor, desceu quatro andares, e, depois de
entrar numa sala, foi imobilizar-se num ponto situado entre os dois braços
de uma cadeira. Um pouco mais adiante via-se em análogo repouso um
quarto de litro de chá forte. Como curioso parêntese (minha capacidade de
abstração costuma ser exercida arbitrariamente), eu também podia ver uma
golfada de fumaça entubar-se verticalmente, dividir-se em duas translúcidas
bexigas, subir outra vez pelo tubo e, depois de uma graciosa voluta,
dispersar-se em barrocos resultados. Mais tarde (eu estava em outra sala)
achei um pretexto para visitar novamente a laranja, o chá e a fumaça. Mas a
fumaça havia desaparecido, e em vez da laranja e do chá havia dois
desagradáveis tubos retorcidos. Até a abstração tem seu lado penoso;
cumprimentei os tubos e voltei para meu escritório. Minha secretária
chorava, lendo a portaria mediante a qual eu era exonerado. Para consolar-
me resolvi abstrair suas lágrimas, e por um momento me deliciei com
aquelas minúsculas fontes cristalinas que nasciam no ar e se esborrachavam
nos impressos, no mata-borrão e no boletim oficial. A vida está repleta de
encantos como esses.
O jornal diário
U
m senhor toma o bonde depois de comprar o jornal e de
posicioná-lo debaixo do braço. Meia hora depois, desce com o
mesmo jornal debaixo do mesmo braço.
Só que já não é o mesmo jornal, agora é um monte de páginas
impressas que o senhor abandona num banco de praça.
Assim que fica a sós no banco, o monte de páginas se transforma
novamente num jornal, até que um rapaz o vê, o lê e o larga transformado
num monte de páginas impressas.
Assim que fica a sós no banco, o monte de páginas impressas se
transforma novamente num jornal, até que uma senhora de idade o
encontra, o lê e o larga transformado num monte de páginas impressas. Em
seguida leva-o para sua casa e no caminho utiliza-o para empacotar meio
quilo de acelgas, que é para o que servem os jornais depois dessas
excitantes metamorfoses.
…C
onfusão pavorosa. Tudo corria perfeitamente bem e
nunca houve dificuldades com os regulamentos.
Agora de repente resolvem reunir o Comitê
Executivo em sessão extraordinária e começam as
dificuldades, o senhor já vai ver que tipo de encrencas inesperadas.
Embaraço absoluto nas fileiras. Incerteza quanto ao futuro. Acontece que o
Comitê se reúne e passa a eleger os novos membros do organismo, em
substituição aos seis membros titulares falecidos em trágicas circunstâncias
quando o helicóptero no qual sobrevoavam a paisagem se precipitou nas
águas, perecendo todos eles no hospital da região em decorrência de a
enfermeira ter se equivocado e aplicado neles injeções de sulfamida em
doses inaceitáveis pelo organismo humano. Reunido o Comitê, composto
do único membro titular sobrevivente (retido em seu domicílio no dia da
catástrofe em razão de resfriado) e por seis membros suplentes, passa-se a
votar os candidatos propostos pelos diferentes Estados-membros da
OCLUSIOM. É eleito por unanimidade o sr. Félix Voll (Aplausos). É eleito
por unanimidade o sr. Félix Romero (Aplausos). É efetuada nova votação, e
acaba eleito por unanimidade o sr. Félix Lupescu (Constrangimento). O
presidente interino toma a palavra e faz uma observação jocosa sobre a
coincidência dos nomes escolhidos. Pede a palavra o delegado da Grécia e
declara que, embora lhe pareça ligeiramente estrambótico, está encarregado
por seu governo de apresentar a candidatura do sr. Félix Paparemólogos. É
procedida a votação e o candidato é eleito por maioria. Passa-se à votação
seguinte e triunfa o candidato do Paquistão, sr. Félix Abib. A essa altura
reina grande confusão no Comitê, o qual se dá pressa em realizar a votação
final, sendo eleito o candidato da Argentina, sr. Félix Camusso. Entre os
aplausos acentuadamente desconcertados dos presentes, o decano do
Comitê dá as boas-vindas aos seis novos membros, a quem qualifica
cordialmente como xarás (Estupefação). É lida a composição do Comitê,
que fica assim definida: presidente e membro mais antigo sobrevivente do
desastre, sr. Félix Smith. Membros, srs. Félix Voll, Félix Romero, Félix
Lupescu, Félix Paparemólogos, Félix Abib e Félix Camusso.
Pois bem, as consequências dessa eleição são cada vez mais
comprometedoras para a OCLUSIOM. Os jornais vespertinos reproduzem
com comentários jocosos e impertinentes a composição do Comitê
Executivo. O ministro do Interior falou esta manhã por telefone com o
diretor-geral. Este, por falta de coisa melhor, mandou preparar uma nota
informativa contendo o curriculum vitae dos novos membros do Comitê,
todos eles eminentes personalidades no campo das ciências econômicas.
O Comitê deve realizar sua primeira sessão na próxima quinta-feira, mas
corre que os srs. Félix Camusso, Félix Voll e Félix Lupescu encaminharão
suas renúncias nas últimas horas da tarde de hoje. O sr. Camusso solicitou
instruções sobre a redação de sua renúncia; com efeito, não dispõe de
nenhuma razão válida para afastar-se do Comitê e somente o move, tal
como aos srs. Voll e Lupescu, o desejo de que o Comitê seja integrado por
pessoas que não respondam ao nome Félix. É provável que as renúncias
invoquem razões de saúde e que sejam aceitas pelo diretor-geral.
V
isto que os escribas seguirão existindo, os poucos leitores que no
mundo havia vão mudar de ofício e passarão também a escribas.
Cada vez mais, os países serão de escribas e de fábricas de papel
e tinta, os escribas de dia e as máquinas à noite, para imprimir o
trabalho dos escribas. Primeiro as bibliotecas transbordarão das casas; então
as municipalidades decidem (já estamos nessa fase) sacrificar os terrenos
das brincadeiras infantis para ampliar as bibliotecas. Depois caem os
teatros, as maternidades, os matadouros, as cantinas, os hospitais. Os pobres
utilizam os livros como tijolos, grudam-nos com cimento e fazem paredes
de livros e vivem em cabanas de livros. Então ocorre que os livros
sobrepujam as cidades e adentram os campos, vão esmagando os trigais e os
campos de girassol, a coordenação do trânsito mal consegue manter as
estradas desobstruídas entre duas altíssimas paredes de livros. Às vezes uma
parede cede e ocorrem tremendas catástrofes automobilísticas. Os escribas
trabalham sem trégua porque a humanidade respeita as vocações, e os
impressos já atingem a beira do mar. O presidente da República fala por
telefone com os presidentes das Repúblicas e propõe inteligentemente jogar
no mar o sobejo de livros, o que é concretizado ao mesmo tempo em todos
os litorais do mundo. Assim os escribas siberianos veem seus impressos
precipitados ao mar glacial e os escribas indonésios etc. Isso permite que os
escribas aumentem sua produção, porque na terra volta a haver espaço para
armazenar os livros. Não lhes ocorre que o mar tem fundo e que no fundo
do mar começam a amontoar-se os impressos, primeiro sob a forma de
pasta aglutinante, depois sob a forma de pasta consolidante, e por fim como
um piso resistente embora viscoso que sobe alguns metros diariamente e
que acabará por chegar à superfície. Então muitas águas invadem muitas
terras, produz-se uma nova distribuição de continentes e oceanos, e
presidentes de diversas repúblicas são substituídos por lagos e penínsulas,
presidentes de outras repúblicas veem abrir-se imensos territórios para suas
ambições etc. A água marinha, posta com tanta violência a expandir-se, se
evapora mais que antes, ou busca repouso misturando-se aos impressos para
formar a pasta aglutinante, a ponto que um dia os capitães dos navios das
grandes rotas percebem que os navios avançam lentamente, de trinta nós
baixam para vinte, para quinze, e os motores arquejam e os hélices se
deformam. Por fim todos os navios se detêm em diferentes pontos dos
mares, presos na pasta, e os escribas do mundo inteiro escrevem milhares
de impressos explicando o fenômeno, tomados por uma grande alegria. Os
presidentes e os capitães resolvem transformar os navios em ilhas e cassinos
onde orquestras típicas e características amenizam o ambiente climatizado e
as pessoas dançam até avançadas horas da madrugada. Novos impressos se
amontoam à beira do mar, mas é impossível mergulhá-los na pasta, e assim
crescem muralhas de impressos e nascem montanhas nas margens dos
antigos mares. Os escribas compreendem que as fábricas de papel e tinta
vão quebrar, e escrevem com letra cada vez mais miúda, aproveitando até
os cantinhos mais imperceptíveis de cada papel. Quando a tinta acaba,
escrevem a lápis etc.; quando o papel acaba, escrevem em tábuas e ladrilhos
etc. Começa a se disseminar o hábito de intercalar um texto em outro para
aproveitar as entrelinhas, ou se apagam as letras impressas com lâminas de
barbear com o fito de reutilizar o papel. Os escribas trabalham lentamente,
mas seu número é tão imenso que os impressos já separam por completo as
terras dos leitos dos antigos mares. Na terra vive precariamente a raça dos
escribas, condenada a se extinguir, e no mar estão as ilhas e os cassinos, ou
seja, os transatlânticos onde se refugiaram os presidentes das Repúblicas e
onde se celebram grandes festas e se trocam mensagens de ilha para ilha, de
presidente para presidente, e de capitão para capitão.
Acefalia
ortaram a cabeça de um senhor, mas como depois estourou uma greve e não
C
houve como enterrá-lo, esse senhor teve que continuar vivendo
sem cabeça e se virando do jeito que conseguia.
Logo depois ele percebeu que quatro dos cinco sentidos haviam
desaparecido junto com a cabeça. Dotado unicamente de tato, mas
cheio de boa vontade, o senhor se sentou num banco da praça Lavalle
tocando as folhas das árvores uma por uma, procurando distingui-las e
identificá-las. Assim, ao cabo de vários dias pôde ter a certeza de que havia
reunido sobre os joelhos uma folha de eucalipto, uma de plátano, uma de
magnólia fuscata e uma pedrinha verde.
Quando o senhor percebeu que este último item era uma pedra verde,
passou um par de dias muito perplexo. Pedra era correto e possível, mas não
verde. Para experimentar, imaginou que a pedra era vermelha, e no mesmo
instante sentiu uma espécie de profunda repulsa, uma recusa àquela mentira
flagrante, de uma pedra vermelha absolutamente falsa, já que a pedra era
inteiramente verde e em forma de disco, muito doce ao tato.
Quando se deu conta de que além do mais a pedra era doce, o senhor
passou algum tempo tomado por grande surpresa. Depois optou pela
alegria, o que sempre é preferível, pois dava para ver que, à semelhança de
certos insetos que regeneram suas partes cortadas, era capaz de sentir
diversamente. Estimulado pelo fato, abandonou o banco da praça e desceu
pela rua Libertad até a avenida de Mayo, onde, como é sabido, proliferam
as frituras originadas nos restaurantes espanhóis. A par desse detalhe que
lhe restituía um novo sentido, o senhor se encaminhou vagamente para leste
ou para oeste, pois disso não tinha certeza, e andou infatigável, esperando
de um momento para outro ouvir alguma coisa, já que a audição era a única
coisa que lhe faltava. Com efeito, via um céu pálido como o céu do
amanhecer, tocava as próprias mãos com dedos úmidos e unhas que se
cravavam na pele, sentia um odor semelhante ao do suor, e na boca gosto de
metal e de conhaque. Só lhe faltava ouvir, e justo nesse momento ouviu, e
foi como uma lembrança, porque o que ouvia eram de novo as palavras do
capelão da penitenciária, palavras de consolo e esperança muito lindas em
si, pena que com certo ar de usadas, de ditas muitas vezes, de gastas à força
de soar e soar.
Esboço de um sonho
B
ruscamente sente forte desejo de ver o tio e se apressa por ruelas
tortas e empinadas que parecem esforçar-se por distanciá-lo da
velha casa ensolarada. Depois de muito andar (mas seus sapatos
parecem pregados ao solo), vê o portão e ouve vagamente um
cachorro latir, se é que se trata de um cachorro. No momento de subir os
quatro gastos degraus e quando estende a mão para a aldrava, que é outra
mão que aperta uma esfera de bronze, os dedos da aldrava se movem,
primeiro o mindinho e pouco a pouco os outros, que vão soltando
interminavelmente a bola de bronze. A bola cai como se fosse de penas,
quica sem ruído no umbral e salta para seu peito, só que agora é uma
pujante aranha negra. Afasta-a com um repelão desesperado e nesse instante
a porta se abre: o tio está de pé, sorrindo sem expressão, como se havia
muito o esperasse sorrindo do outro lado da porta fechada. Trocam algumas
frases que parecem ensaiadas, um xadrez elástico. “Agora preciso
responder…” “Agora ele dirá que…” E tudo acontece exatamente assim. Já
estão num aposento profusamente iluminado, o tio puxa cigarros enrolados
em papel prateado e lhe oferece um. Passa um longo tempo procurando os
fósforos, mas na casa inteira não há fósforos nem fogo de nenhum tipo; não
podem acender os cigarros, o tio parece ansioso para que a visita acabe, e
por fim ocorre uma confusa despedida num corredor cheio de gavetas
semiabertas e onde quase não resta espaço para movimento.
Ao sair da casa, sabe que não deve olhar para trás, porque… Sabe apenas
isso, mas sabe, e se retira rapidamente, de olhos fixos na ponta da rua.
Pouco a pouco vai se sentindo mais aliviado. Quando chega em casa está
tão exausto que se deita em seguida, quase sem se despir. Então sonha que
está no Tigre e que passa o dia inteiro remando na companhia da namorada
e comendo linguiça no recreio Nuevo Toro.
E aí, López
U
m senhor encontra um amigo e o cumprimenta estendendo-lhe a
mão e inclinando um pouco a cabeça.
É assim que ele imagina que o cumprimenta, mas o
cumprimento já foi inventado e esse bom senhor não faz mais que
calçá-lo.
Chove. Um senhor se refugia embaixo de uma arcada. Quase nunca esses
senhores sabem que acabam de deslizar por um escorrega pré-fabricado
desde a primeira chuva e a primeira arcada. Um úmido escorrega de folhas
murchas.
E os gestos do amor, esse doce museu, essa galeria de figuras de fumaça.
Que sirva de consolo para sua vaidade: a mão de Antonio buscou o que a
sua busca, e nem aquela nem a sua buscavam nada que já não tivesse sido
encontrado desde a eternidade. Mas as coisas invisíveis precisam se
encarnar, as ideias caem no chão como pombas mortas.
O verdadeiramente novo dá medo ou maravilha. Essas duas sensações
igualmente perto do estômago sempre acompanham a presença de
Prometeu; o resto é a comodidade, aquilo que sempre sai mais ou menos
bem; os verbos ativos contêm o repertório completo.
Hamlet não duvida: procura a solução autêntica e não as portas da casa ou
os caminhos trilhados — por mais atalhos e encruzilhadas que proponham.
Quer a tangente que estilhaça o mistério, a quinta folha do trevo. Entre sim
e não, que infinita rosa dos ventos. Os príncipes da Dinamarca, esses
falcões que preferem morrer de fome a comer carne morta.
Quando os sapatos apertam, bom sinal. Algo se altera nisso, algo que nos
mostra, que surdamente nos põe, nos propõe. Por isso os monstros são tão
populares e os jornais ficam extasiados com os bezerros bicéfalos. Que
oportunidades, que esboço de um grande salto na direção do outro!
Lá vem o López.
— E aí, López?
— E aí, tchê?
E é assim que eles imaginam que se cumprimentam.
Geografias
J
á que está provado que as formigas são as verdadeiras rainhas da
criação (o leitor pode encarar o que antecede como uma hipótese ou
como uma fantasia; de todo modo, um pouco de antropofuguismo lhe
fará bem), eis aqui uma página de sua geografia:
(p. 84 do livro; entre parênteses são apontados os possíveis equivalentes
de certas expressões, de acordo com a clássica interpretação de Gaston
Loeb.)
“… mares paralelos (rios?). A água infinita (um mar?) cresce em certos
momentos como uma hidra-hidra-hidra (ideia de uma parede muito alta, que
expressaria a maré?). Caso se vá-vá-vá (noção análoga aplicada à
distância?), chega-se à Grande Sombra Verde (um campo semeado, uma
mata ripária, um bosque?) onde o Grande Deus erige o celeiro contínuo
para suas Melhores Operárias. Nessa região abundam os Horríveis Imensos
Seres (homens?) que destroem nossos caminhos. Do outro lado da Grande
Sombra Verde começa o Céu Duro (uma montanha?). E tudo é nosso, mas
com ameaças.”
Essa geografia foi objeto de outra interpretação (Dick Fry e Niels Peterson
Jr.). O trecho corresponderia topograficamente a um jardinzinho da rua
Laprida, 628, Buenos Aires. Os mares paralelos são duas canaletas de
deságue; a água infinita, um tanque para patos; a Grande Sombra Verde, um
canteiro de alfaces. Os Horríveis Imensos Seres sugeririam patos ou
galinhas, embora não se deva descartar a possibilidade de que realmente se
trate dos homens. Sobre o Céu Duro já está em andamento uma polêmica
que não terminará tão cedo. À opinião de Fry e Peterson, que veem nele
uma parede cega de tijolos, contrapõe-se a de Guillermo Sofovich, que
considera a possibilidade de um bidê abandonado entre as alfaces.
Avanço e retrocesso
I
nventaram um vidro que deixava passar as moscas. A mosca vinha,
empurrava um pouco com a cabeça e, pop, já estava do outro lado.
Alegria enormíssima da mosca.
Um sábio húngaro estragou tudo quando descobriu que a mosca
podia entrar mas não sair, ou vice-versa, devido a não se sabe que
maluquice na flexibilidade das fibras do mencionado vidro, que era muito
fibroso. Logo depois inventaram o caça-moscas com um torrão de açúcar
no interior, e muitas moscas morriam desesperadas. Assim acabou toda
possível confraternidade com esses animais dignos de melhor sorte.
História verídica
O
s óculos de um senhor caem no chão, fazendo um barulho terrível
ao se chocar com os ladrilhos. O senhor se acocora aflitíssimo
porque as lentes dos óculos são muito caras, mas descobre com
assombro que por milagre elas não se partiram.
Agora esse senhor se sente profundamente grato, e compreende que o
ocorrido funciona como um aviso amistoso, de modo que se dirige a uma
óptica e adquire sem tardar um estojo de couro alfmofadado dupla proteção,
a fim de recuperar-se na saúde. Uma hora mais tarde deixa cair o estojo e ao
acocorar-se sem maior preocupação constata que os óculos viraram pó. Esse
senhor leva algum tempo para entender que os desígnios da Providência são
inescrutáveis, e que na realidade o milagre aconteceu agora.
N
a casa de Jacinto há uma poltrona para morrer.
Quando a pessoa fica velha, um dia a convidam a sentar-se na
poltrona que é uma poltrona como qualquer outra mas com uma
estrelinha prateada no centro do encosto. A pessoa convidada
suspira, movimenta um pouco as mãos como se quisesse afastar o convite,
depois vai se sentar na poltrona e morre.
As crianças, sempre travessas, se divertem enganando as visitas na
ausência da mãe e as convidam a sentar-se na poltrona. Como as visitas
estão a par mas sabem que não se deve falar no assunto, olham para as
crianças muito atarantadas e se desculpam com palavras que nunca se
utilizam ao falar com crianças, coisa que produz nas crianças um
extraordinário regozijo. No fim as visitas se valem de qualquer pretexto
para não se sentar, porém mais tarde a mãe se dá conta do ocorrido e na
hora de dormir distribui tremendas surras. Nem por isso as crianças se
corrigem, de vez em quando conseguem enganar alguma visita inocente e a
fazem sentar na poltrona. Nesses casos os pais disfarçam, pois receiam que
os vizinhos tomem conhecimento das propriedades da poltrona e venham
pedi-la emprestada para nela fazer sentar-se uma ou outra pessoa de sua
família ou amizade. Enquanto isso as crianças vão crescendo e chega o dia
em que, sem saber por quê, elas deixam de interessar-se pela poltrona e
pelas visitas. Na verdade evitam entrar na sala, fazem um desvio pelo pátio,
e os pais, que já estão muito velhos, fecham a porta da sala à chave e olham
atentamente para os filhos como se quisessem ler os pensamentos deles. Os
filhos desviam o olhar e dizem que já está na hora do jantar ou de ir para a
cama. Pela manhã o pai é o primeiro a se levantar e sempre vai ver se a
porta da sala continua fechada à chave ou se algum dos filhos abriu a porta
para que da sala de jantar se veja a poltrona, porque a estrelinha de prata
brilha até mesmo no escuro e dá para vê-la perfeitamente de qualquer ponto
da sala de jantar.
S
ábio eminente, história romana em vinte e três volumes, candidato
garantido prêmio Nobel, grande entusiasmo em seu país. Súbita
consternação: rato de biblioteca em fulltime lança grosseiro panfleto
denunciando omissão Caracala. Relativamente pouco importante,
omissão mesmo assim. Admiradores estupefatos consultam Pax Romana
que artista perde o mundo Varo me devolva minhas legiões homem de todas
as mulheres e mulher de todos os homens (cuidado com os Idos de março) o
dinheiro não tem cheiro com este signo vencerás. Ausência incontestável de
Caracala, consternação, telefone desconectado, sábio impossibilitado de
comparecer perante o rei Gustavo da Suécia mas o tal rei nem pensa em
telefonar para ele, na verdade outra pessoa disca e disca em vão o número
maldizendo numa língua morta.
Q
ue seja Roma a que Faustina, que o vento aponte os lápis de
chumbo do escriba sentado, ou por trás de trepadeiras centenárias
apareça escrita certa manhã esta frase convincente: Não há
trepadeiras centenárias, a botânica é uma ciência, para o diabo os
inventores de imagens supostas. E Marat em sua banheira.
Também vejo a perseguição de um grilo por uma bandeja de prata, com a
sra. Delia aproximando delicadamente a mão que lembra um substantivo, e
quando está a ponto de apanhá-lo o grilo está no sal (então atravessaram
sem molhar os pés e Faraó praguejando na margem) ou salta para o
delicado mecanismo que da flor do trigo extrai a mão seca da torrada.
Senhora Delia, sra. Delia, deixe esse grilo andar por pratos praios. Um dia
ele cantará com tão terrível vingança que seus relógios de pêndulo se
enforcarão nos caixões eretos, ou a donzela que cuida da roupa branca dará
à luz um monograma vivo, que correrá pela casa repetindo suas iniciais
como um tamboreiro. Senhora Delia, os convidados se mortificam porque
está frio. E Marat em sua banheira.
Por fim que seja Buenos Aires num dia nascido e refiado, com panos ao
sol e todas as rádios do quarteirão vociferando ao mesmo tempo a cotação
do mercado livre de girassóis. Por um girassol sobrenatural pagaram-se em
Liniers oitenta e oito pesos, e o girassol fez manifestações oprobiosas ao
repórter Esso, um pouco por cansaço, concluída a contagem de seus grãos,
em parte porque seu destino ulterior não constava da nota de venda. Ao
entardecer haverá uma concentração de forças vivas na Plaza de Mayo. As
forças seguirão por diferentes ruas até se equilibrar na pirâmide, e se
verificará que vivem graças a um sistema de reflexos instalado pela
municipalidade. Ninguém duvida que os atos se realizarão com o máximo
brilhantismo, o que, como é de supor, provocou extraordinária expectativa.
Venderam-se camarotes, comparecerão o senhor cardeal, as pombas, os
presos políticos, os empregados da companhia de bondes, os relojoeiros, as
dádivas, as rotundas senhoras. E Marat em sua banheira.
A
ceitam todas as solicitações de passagem de fronteira mas Guk,
camelo, inesperadamente declarado indesejável. Comparece Guk
à central de polícia onde lhe dizem nada a fazer, volte para o
oásis, declarado indesejável inútil tramitar solicitação. Tristeza de
Guk, regresso às terras da infância. E os camelos da família, e os amigos,
rodeando-o e o que você tem, e não é possível, e por que justamente você.
Então uma delegação ao Ministério do Trânsito recorrer por Guk, com
escândalo de funcionários de carreira: isso nunca se viu, os senhores voltem
imediatamente para o oásis, será feito um relatório.
Guk no oásis come grama um dia, grama no outro dia. Todos os camelos
passaram a fronteira, Guk continua esperando. Assim se vão o verão, o
outono. Depois Guk de volta à cidade, de pé numa praça vazia. Muito
fotografado por turistas, respondendo a reportagens. Vago prestígio de Guk
na praça. Aproveitando, tenta sair, na porta tudo muda: declarado
indesejável. Guk baixa a cabeça, procura as ralas graminhas da praça. Um
dia é chamado pelo alto-falante e entra feliz na central. Ali é declarado
indesejável. Guk volta para o oásis e se deita. Come um pouco de grama e
depois apoia o focinho na areia. Vai fechando os olhos enquanto o sol se
põe. De seu nariz brota uma bolha que dura um segundo mais que ele.
Discurso do urso
S
ou o urso dos canos da casa, subo pelos canos nas horas de silêncio,
pelos tubos da água quente, da calefação, do ar fresco, vou pelos
tubos de apartamento em apartamento e sou o urso que anda pelos
canos.
Acho que me apreciam porque meu pelo mantém os dutos limpos,
incessantemente corro pelos tubos e nada me agrada mais que passar de um
andar para outro deslizando pelos canos. Às vezes estendo uma pata pela
torneira e a jovem do terceiro grita que se queimou, ou grunho à altura do
forno do segundo e a cozinheira Guillermina se queixa de que o ar puxa
mal. À noite ando calado e é quando mais depressa ando, apareço no
telhado pela chaminé para ver se a lua dança no alto e me vejo deslizar
como o vento até as caldeiras do porão. E no verão nado à noite na cisterna
pontilhada de estrelas, lavo a cara primeiro com uma mão depois com a
outra, depois com as duas juntas, e isso me proporciona grandíssima
alegria.
Então deslizo por todos os canos da casa, grunhindo feliz, e os casais se
agitam em suas camas e deploram a instalação dos encanamentos. Alguns
acendem a luz e escrevem um papelzinho para não esquecer de reclamar
quando encontrarem o zelador. Eu procuro uma torneira que sempre fica
aberta em algum andar, por ali ponho o nariz para fora e olho o escuro dos
aposentos onde vivem esses seres que não conseguem andar pelos canos, e
tenho um pouco de pena deles ao vê-los tão incompetentes e grandes, ao
ouvir como roncam e sonham em voz alta e estão tão sozinhos. Quando
pela manhã lavam o rosto, acaricio suas bochechas, lambo seus narizes e
me vou, vagamente convencido de ter agido bem.
Retrato do casuar
primeira coisa que faz o casuar é olhar para a pessoa com desconfiada
A altivez. Limita-se a olhar sem se mover, olhar de uma maneira tão dura
e continuada que é quase como se estivesse nos inventando, como se graças
a um terrível esforço nos tirasse do nada que é o mundo dos casuares e nos
pusesse diante dele, no ato inexplicável de estar a contemplá-lo.
Dessa dupla contemplação, que talvez seja uma só e quem sabe no fundo
nenhuma, nascemos, o casuar e eu, nos situamos, aprendemos a
desconhecer-nos. Não sei se o casuar me recorta e me inscreve em seu
simples mundo; de minha parte, só posso descrevê-lo, aplicar a sua
presença um capítulo de gostos e desgostos. Principalmente de desgostos,
porque o casuar é antipático e repugnante. Imagine-se um avestruz com um
abafador de bule córneo na cabeça, uma bicicleta esmagada entre dois
carros e que se amontoa sobre si mesma, uma decalcomania mal aplicada
onde predominam um roxo sujo e uma espécie de crepitação. Agora o
casuar dá um passo à frente e adota um ar mais seco; é como um par de
óculos cavalgando um pedantismo infinito. Vive na Austrália, o casuar; é
covarde e temível ao mesmo tempo; os tratadores entram em sua jaula com
altas botas de couro e um lança-chamas. Quando o casuar deixa de correr
espavorido em torno da panela de farelo que lhe trazem, precipita-se com
saltos de camelo sobre o tratador, não lhe deixando outro recurso senão
acionar o lança-chamas. Nesse momento, eis o que se desenrola: o rio de
fogo o envolve e o casuar, com todas as penas em chamas, avança seus
últimos passos enquanto prorrompe num guincho abominável. Seu corno,
porém, não pega fogo: a seca matéria escamosa, que é seu orgulho e seu
desprezo, entra em fusão fria, se inflama num azul prodigioso, num
escarlate que parece um punho esfolado, e por fim coalha no verde mais
transparente, na esmeralda, pedra da sombra e da esperança. O casuar se
desfolha, rápida nuvem de cinza, e o tratador corre ávido para apropriar-se
da gema recém-nascida. O diretor do zoológico sempre aproveita esse
instante para abrir contra ele um processo por maus-tratos aos animais, e
despedi-lo.
Que mais podemos dizer do casuar, depois dessa dupla desgraça?
S
ei lá, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora
encoberto e cinza, aqui junto à sacada com grandes gotas
coaguladas e duras, que fazem plaf como bofetadas uma atrás da
outra, que tédio. Agora aparece uma gotinha no alto do marco da
janela, fica tremelicando contra o céu que a estilhaça em mil brilhos foscos,
vai crescendo e cambaleia, já vai cair e não cai, ainda não cai. Está presa
com todas as unhas, não quer cair e dá para ver como se prende com os
dentes enquanto sua barriga cresce, já virou um gotão que pende majestoso,
e de repente zup, lá vai, plaf, se desfez, nada, uma viscosidade no mármore.
Mas algumas delas se suicidam e se entregam sem demora, brotam no
marco e se atiram no mesmo instante, tenho a sensação de ver a vibração do
salto, suas perninhas se desprendendo e o grito que as embriaga nesse nada
ao cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus, gotas.
Adeus.
História sem moral
U
m homem vendia gritos e palavras e era bem-sucedido, embora
encontrasse muitas pessoas que discutiam os preços e pediam
descontos. O homem quase sempre concordava, e assim
conseguiu vender muitos gritos de vendedores ambulantes, alguns
suspiros comprados por senhoras que viviam de rendas, e palavras para
tabuletas, slogans, lembretes e falsas ocorrências.
Por fim o homem percebeu que havia chegado a hora e pediu audiência ao
tiranete do país, que se parecia com todos os seus colegas e os recebia
cercado de generais, secretários e xícaras de café.
— Venho vender-lhe suas últimas palavras — disse o homem. — São
muito importantes porque o senhor nunca vai conseguir que elas saiam
direito na hora, e por outro lado é conveniente que as diga no duro transe
para configurar facilmente um destino histórico retrospectivo.
— Traduza o que ele diz — ordenou o tiranete a seu intérprete.
— Está falando argentino, Excelência.
— Argentino? E por que não entendo nada?
— O senhor entendeu muito bem — disse o homem. — Repito que venho
vender-lhe suas últimas palavras.
O tiranete se pôs de pé, como é de praxe nessas circunstâncias, e,
reprimindo um tremor, mandou prender o homem, a quem enfiaram nas
masmorras especiais que sempre existem nesses ambientes governativos.
— É pena — disse o homem, enquanto o levavam. — Na realidade o
senhor vai querer dizer suas últimas palavras quando chegar o momento, e
precisaria dizê-las para configurar facilmente um destino histórico
retrospectivo. O que eu ia lhe vender é o que o senhor vai querer dizer, de
modo que não há erro. Mas como não aceita o negócio, como não vai
aprender antecipadamente essas palavras, quando chegar o momento em
que elas queiram brotar pela primeira vez e naturalmente, o senhor não
conseguirá dizê-las.
— Por que não conseguirei dizê-las, se são as que vou querer dizer? —
perguntou o tiranete, já diante de outra xícara de café.
— Porque o medo não vai deixar — disse tristemente o homem. — Como
estará com uma corda no pescoço, em mangas de camisa e trêmulo de terror
e de frio, seus dentes se entrechocarão e não conseguirá articular palavra. O
carrasco e a assistência, em meio à qual estarão alguns desses senhores,
aguardarão por decoro um par de minutos, mas quando de sua boca brotar
somente um gemido entrecortado por soluços e súplicas por perdão (porque
isso sim o senhor conseguirá articular sem esforço), perderão a paciência e
o enforcarão.
Muito indignados, os presentes, e em especial os generais, cercaram o
tiranete para pedir-lhe que mandasse fuzilar imediatamente o homem. Mas
o tiranete, que estava-pálido-como-a-morte, os pôs para fora aos empurrões
e se trancou com o homem para comprar dele suas últimas palavras.
Enquanto isso, os generais e secretários, humilhadíssimos com o
tratamento recebido, prepararam um levante, e na manhã seguinte
prenderam o tiranete enquanto ele comia uvas em seu coreto predileto. Para
que não conseguisse pronunciar suas últimas palavras, mataram-no no ato
com um tiro. Depois começaram a procurar o homem, que havia
desaparecido da casa do governo, e não demoraram a encontrá-lo, pois
passeava pelo mercado vendendo pregões aos saltimbancos. Enfiaram-no
num camburão e o levaram para a fortaleza e o torturaram para que
revelasse quais poderiam ter sido as últimas palavras do tiranete. Como não
conseguiram arrancar dele a confissão, mataram-no a pontapés.
Os vendedores ambulantes que haviam comprado gritos do homem
continuaram a gritá-los nas esquinas, e um desses gritos, mais adiante,
serviu de santo e senha da contrarrevolução que acabou com os generais e
os secretários. Alguns, antes de morrer, pensaram confusamente que na
verdade tudo aquilo fora uma desastrada cadeia de equívocos, e que as
palavras e os gritos eram coisas que a rigor podem ser vendidas, mas não
compradas, embora pareça absurdo.
E todos foram apodrecendo, o tiranete, o homem, e os generais e
secretários, mas os gritos ecoavam de quando em quando nas esquinas.
As linhas da mão
D
e uma carta jogada sobre a mesa sai uma linha que percorre a
tábua de pinho e desce por uma das pernas. Basta olhar bem para
verificar que a linha prossegue pelo chão de parquê, sobe pela
parede, entra numa estampa que reproduz um quadro de Boucher,
desenha as costas de uma mulher reclinada num divã, e por fim escapole do
aposento pelo teto e desce pela corrente do para-raios até a rua. Na rua é
difícil acompanhá-la por causa do trânsito, mas com atenção será possível
vê-la subir pela roda do ônibus estacionado na esquina e que vai até o porto.
Lá, desce pela meia de náilon cristal da passageira mais loura, entra no
território hostil da alfândega, rampeia e rasteja e ziguezagueia até o cais
central, e ali (mas é difícil vê-la, só os ratos a acompanham a fim de subir
para bordo) entra no navio de turbinas sonoras, corre pelas tábuas do convés
da primeira classe, transpõe com dificuldade a escotilha central, e, numa
cabine onde um homem triste bebe conhaque e escuta a sirene da partida,
sobe pela costura da calça, pelo colete de malha, desliza até o cotovelo e
com um último esforço se refugia na palma da mão direita, que nesse
instante começa a se fechar em torno da culatra de uma pistola.
Histórias de cronópios e de famas
Vigias das praças, como permitem que os famas circulem, que andem soltos
cantando e dançando, os famas, cantando catala trégua trégua, dançando
trégua espera trégua, como podem?
Se ainda os cronópios (esses verdes, eriçados, úmidos objetos)
andassem pelas ruas, seria possível evitá-los
com um cumprimento: — Boas salenas cronópios cronópios.
Mas os famas.
ALEGRIA DO CRONÓPIO
TRISTEZA DO CRONÓPIO
Eu tenho um relógio com menos vida, com menos casa e menos deitar-me,
eu sou um cronópio desventurado e úmido”.
VIAGENS
RELÓGIOS
O ALMOÇO
COMÉRCIO
FILANTROPIA
HISTÓRIA
Um cronópio pequenino procurava a chave da porta da rua na mesa de
cabeceira, a mesa de cabeceira no quarto, o quarto na casa, a casa na rua.
Nesse ponto o cronópio se detinha, pois para sair à rua precisava da chave
da porta.
A COLHERADA ESTREITA
Um cronópio vai abrir a porta da rua e ao enfiar a mão no bolso para pegar
a chave o que pega é uma caixa de fósforos, então o cronópio se aflige
muito e começa a pensar que se em vez da chave encontra os fósforos, seria
horrível se de repente o mundo tivesse mudado de lugar e, quem sabe, se os
fósforos estão onde a chave deveria estar, pode acontecer de encontrar a
carteira cheia de fósforos, e o açucareiro cheio de dinheiro, e o piano cheio
de açúcar, e a lista telefônica cheia de música, e o armário cheio de
assinantes, e a cama cheia de ternos, e os vasos cheios de lençóis, e os
bondes cheios de rosas, e os campos cheios de bondes. De modo que o
cronópio se aflige horrivelmente e corre para se olhar no espelho, mas como
o espelho está meio torto, o que vê é o porta-guarda-chuvas do vestíbulo, e
suas hipóteses se confirmam e ele rompe em soluços, cai de joelhos e junta
as mãozinhas não sabe para quê. Os famas vizinhos correm para consolá-lo,
bem como as esperanças, mas horas se passam até o cronópio sair de seu
desespero e aceitar uma xícara de chá, que olha e examina muito antes de
beber, não vá acontecer que em vez de uma xícara de chá aquilo seja um
formigueiro ou um livro de Samuel Smiles.
EUGENIA
Acontece que os cronópios não querem ter filhos porque a primeira coisa
que um cronópio recém-nascido faz é insultar grosseiramente o pai, em
quem vê obscuramente o acúmulo de desgraças que um dia serão as suas.
Dadas essas razões, os cronópios recorrem aos famas para que fecundem
suas mulheres, coisa que os famas estão sempre dispostos a fazer por tratar-
se de seres libidinosos. Acreditam, além disso, que dessa maneira irão
minando a superioridade moral dos cronópios, mas se equivocam
tontamente pois os cronópios educam os filhos a sua maneira e em poucas
semanas os privam de toda semelhança com os famas.
SUA FÉ NA CIÊNCIA
Uma esperança acreditava nos tipos fisionômicos, por exemplo nariz de
batata, cara de peixe morto, boca de caçapa, melancólico e sobrancelhudo,
cara de intelectual, estilo cabeleireiro etc. Disposta a classificar esses
grupos de forma definitiva, começou por fazer grandes listas de conhecidos
e os distribuiu pelos grupos acima citados. Separou então o primeiro grupo,
formado por oito narizes de batata, e viu com surpresa que na realidade
aqueles rapazes se subdividiam em três grupos, a saber: os narizes de batata
bigodudos, os narizes de batata tipo boxeador e os narizes de batata estilo
funcionário de ministério, compostos respectivamente de três, três e dois
narizes de batata. Assim que os distribuiu por seus novos grupos (no
Paulista da San Martín, onde os reunira com grande trabalho e não pouco
mazagrã bem frappé), se deu conta de que o primeiro subgrupo não era
homogêneo, porque dois dos narizes de batata bigodudos pertenciam ao tipo
capivara, enquanto o remanescente era sem sombra de dúvida um nariz de
batata de feitio japonês. Chegando para um lado com a ajuda de um bom
sanduíche de anchova e ovo duro, organizou o subgrupo dos dois capivaras
e estava prestes a registrá-lo em sua caderneta de trabalhos científicos
quando um dos capivaras olhou para um lado e o outro capivara olhou para
o lado oposto, em decorrência do que a esperança e os demais circunstantes
puderam verificar que enquanto o primeiro capivara era evidentemente um
nariz de batata braquicéfalo, o outro nariz de batata produzia um crânio
muito mais apropriado para pendurar um chapéu que para ser encasquetado.
Foi assim que esse subgrupo se desintegrou, e quanto aos restantes, melhor
não falar porque os demais indivíduos haviam passado do mazagrã para a
cana queimada, e àquela altura dos acontecimentos a única coisa em que se
pareciam era em sua firme determinação de continuar bebendo a expensas
da esperança.
TERAPIAS
O PARTICULAR E O UNIVERSAL
OS EXPLORADORES
EDUCAÇÃO DE PRÍNCIPE
Os cronópios quase nunca têm filhos, mas quando têm, perdem a cabeça e
acontecem coisas extraordinárias. Por exemplo, um cronópio tem um filho e
é imediatamente invadido pela maravilha e tem certeza de que seu filho é o
para-raios da beleza e de que por suas veias corre a química completa, com
aqui e ali ilhas cheias de belas-artes e poesia e urbanismo. Então esse
cronópio não consegue ver o filho sem se inclinar profundamente diante
dele e dizer-lhe palavras de respeitosa homenagem.
O filho, como é natural, odeia minuciosamente o pai. Quando chega à
idade escolar, o pai matricula o filho no primeiro ano e o garoto está feliz
entre outros pequenos cronópios, famas e esperanças. Mas vai piorando à
medida que se aproxima o meio-dia, porque sabe que na saída o pai estará à
espera, o qual ao vê-lo erguerá as mãos e dirá diversas coisas, a saber:
— Buenas salenas cronópio cronópio, o melhor e mais crescido e mais
alvorecido, o mais asseado e mais respeitoso e mais aplicado dos filhos!
Diante do que os famas e as esperanças juniores morrem de dar risada
junto ao meio-fio, e o pequeno cronópio odeia rigorosamente o pai e
acabará sempre por aprontar alguma para ele entre a primeira comunhão e o
serviço militar. Mas os cronópios não sofrem muito com isso, porque
também eles odiavam seus pais, e até poderia parecer que esse ódio é outro
nome da liberdade ou do vasto mundo.
TELEGRAMAS
LEÃO E CRONÓPIO
Um cronópio que anda pelo deserto encontra um leão e tem lugar o seguinte
diálogo:
Leão. — Vou te comer.
Cronópio (aflitíssimo mas com dignidade). — Tudo bem.
Leão. — Ah, isso não. Nada de mártires comigo. Cai no choro, ou luta,
uma das duas. Desse jeito não posso te comer. Vamos, estou esperando. Não
dizes nada?
O cronópio não diz nada e o leão está perplexo, até que uma ideia lhe
ocorre.
Leão. — Menos mal que estou com um espinho na pata esquerda, que me
incomoda muito. Tira o espinho que eu te perdoo.
O cronópio tira o espinho e o leão se afasta, grunhindo de má vontade:
— Obrigado, Ândrocles.
CONDOR E CRONÓPIO
FLOR E CRONÓPIO
Um cronópio encontra uma flor solitária no meio dos campos. Primeiro vai
arrancá-la,
depois pensa que é uma crueldade inútil
e se ajoelha ao lado dela e brinca alegremente com a flor, a saber; acaricia
suas pétalas, sopra-a para que dance, zumbe feito uma abelha, aspira seu
perfume, e por fim se deita embaixo da flor e adormece envolto numa
grande paz.
A flor pensa: “Ele parece uma flor”.
FAMA E EUCALIPTO
Um fama anda pelo bosque e embora não precise de lenha olha avidamente
para as árvores. As árvores sentem um medo horrível porque conhecem os
costumes dos famas e temem o pior. No meio de todas está um belo
eucalipto, e ao vê-lo o fama dá um grito de alegria e dança trégua e dança
catala em torno do perturbado eucalipto, dizendo assim:
— Folhas antissépticas, inverno com saúde, grande higiene.
Puxa um machado e atinge o eucalipto no estômago, sem se importar a
mínima. O eucalipto geme, ferido de morte, e as outras árvores ouvem o
que ele diz entre suspiros:
— Pensar que era só esse imbecil comprar pastilhas Valda.
TARTARUGAS E CRONÓPIOS
SISTEMA VIÁRIO
Um pobre cronópio segue em seu automóvel e quando chega a uma esquina
os freios falham e ele colide com outro carro. Um guarda se aproxima
terrivelmente e puxa uma caderneta de capa azul.
— O senhor não sabe dirigir? — grita o guarda.
O cronópio olha um instante para ele, depois pergunta:
— Quem é o senhor?
O guarda fica duro, dá uma olhada no próprio uniforme como para
certificar-se de que não há erro.
— Como assim, quem sou eu? O senhor não está vendo?
— Estou vendo um uniforme de guarda — explica o cronópio muito
aflito. — O senhor está dentro do uniforme, mas o uniforme não me diz
quem é o senhor.
O guarda levanta uma das mãos para bater no outro, mas tem na mão a
caderneta e na outra mão o lápis, de modo que não bate e anda até a frente
para copiar o número da placa. O cronópio está muito aflito e gostaria de
não ter batido o carro, pois agora vão continuar a fazer-lhe perguntas e ele
não poderá respondê-las já que não sabe quem as está fazendo e entre
desconhecidos não há entendimento possível.
1952
ALMOÇOS
N
o começo a garota do Dauphine insistira em contabilizar o tempo,
embora para o engenheiro do Peugeot 404 isso já não fizesse
diferença. Qualquer um podia consultar o relógio mas era como
se aquele tempo preso ao pulso direito ou o bip bip do rádio
medissem outra coisa, fossem o tempo dos que não fizeram a besteira de
querer voltar para Paris pela autoestrada do sul num domingo à tarde e, logo
depois de sair de Fontainebleau, foram obrigados a diminuir a velocidade,
parar, seis filas de cada lado (é sabido que nos domingos a autoestrada fica
inteiramente reservada aos que regressam à capital), ligar o motor, avançar
três metros, parar, conversar com as duas freiras do 2HP da direita, com a
garota do Dauphine à esquerda, olhar pelo retrovisor o homem pálido ao
volante de um Caravelle, invejar ironicamente a felicidade avícola do casal
do Peugeot 203 (atrás do Dauphine da garota), que se distrai com a filhinha
e faz brincadeiras e come queijo, ou tolerar de tanto em tanto as
manifestações exasperadas dos dois rapazinhos do Simca que precede o
Peugeot 404, e mesmo descer do carro no topo da ladeira e explorar sem se
afastar muito (porque nunca se sabe em que momento os carros lá da frente
recomeçarão a avançar e será preciso correr para que os de trás não
disparem a guerra das buzinas e dos insultos), e assim chegar à altura de um
Taunus na frente do Dauphine da garota que verifica a hora a todo
momento, e trocar algumas frases desalentadas ou espirituosas com os dois
homens que viajam com o menino louro cujo maior divertimento nessas
precisas circunstâncias consiste em fazer circular livremente seu carrinho de
brinquedo sobre os assentos e o rebordo posterior do Taunus, ou ousar
avançar mais um pouco, embora não pareça que os carros da frente estejam
prestes a retomar a marcha, e contemplar com um pouco de pena o casal de
velhos do ID Citroën que parece uma gigantesca banheira roxa na qual
sobrenadam os dois idosos, ele descansando os antebraços sobre o volante
com ar de paciente cansaço, ela mordiscando uma maçã com mais aplicação
que vontade.
Na quarta ocasião em que deu com tudo isso, em que fez tudo isso, o
engenheiro havia decidido não sair mais de seu carro, à espera de que a
polícia desse um jeito de desmanchar o engarrafamento. O calor de agosto
se somava àquele tempo ao rés de pneus para que a imobilidade fosse cada
vez mais enervante. Tudo era cheiro de gasolina, gritos desabridos dos
rapazinhos do Simca, brilho do sol ricocheteando nos vidros e nos perfis
cromados, e, para rematar, a sensação contraditória de estar trancado em
plena selva de máquinas pensadas para correr. O 404 do engenheiro
ocupava a segunda posição da pista da direita contando a partir da faixa
divisória entre as duas pistas, portanto tinha outros quatro carros à sua
direita e sete à sua esquerda, embora na verdade só conseguisse distinguir
com clareza os oito carros que o rodeavam e seus ocupantes, que já estava
cansado de examinar em todos os detalhes. Havia conversado com todos,
exceto com os rapazes do Simca, com quem antipatizara; entre um e outro
trecho a situação fora discutida nos menores detalhes, e a impressão geral
era de que até Corbeil-Essonnes avançariam a passos de tartaruga, mas que
entre Corbeil e Juvisy o ritmo começaria a se acelerar quando os
helicópteros e os motociclistas conseguissem interferir no pior do
engarrafamento. Ninguém tinha a menor dúvida de que algum acidente
muito grave devia ter ocorrido na área, única explicação para uma lentidão
incrível daquelas. E com isso o governo, o calor, os impostos, a rede viária,
um tema depois do outro, três metros, outro lugar-comum, cinco metros,
uma frase sentenciosa ou uma praga entre os dentes.
Para as duas freirinhas do 2HP o ideal teria sido chegar a Milly-la-Forêt
antes das oito, já que estavam levando uma cesta de legumes para a
cozinheira. A grande preocupação do casal do Peugeot 203 era não perder
os jogos televisionados das nove e meia; a garota do Dauphine dissera ao
engenheiro que para ela não fazia diferença chegar mais tarde a Paris, mas
que estava se queixando por princípio, porque achava um absurdo submeter
milhares de pessoas a uma situação de caravana de camelos. Nas últimas
horas (já deviam ser quase cinco, mas o calor os assolava
insuportavelmente) haviam avançado uns cinquenta metros, na opinião do
engenheiro, embora um dos homens do Taunus, que se aproximara para
conversar trazendo pela mão o menino com seu carrinho, apontasse
ironicamente a copa de um plátano solitário e a garota do Dauphine
recordasse que aquele plátano (se não fosse uma amendoeira) ficara
alinhado com seu carro durante tanto tempo que nem valia mais a pena
olhar o relógio de pulso para perder-se em cálculos inúteis.
Nunca entardecia, a vibração do sol sobre o asfalto e os capôs dilatava a
vertigem até a náusea. Os óculos escuros, os lenços com água-de-colônia na
cabeça, os estratagemas improvisados para proteção, com o objetivo de
evitar um reflexo torturante ou para não engolir a fumaça dos canos de
descarga a cada avanço, se organizavam e aperfeiçoavam, eram objeto de
comunicação e comentário. O engenheiro desceu de novo do carro para
estender as pernas, trocou algumas palavras com o casal com jeito de
agricultores do Ariane que estava na frente do 2HP das freiras. Atrás do
2HP havia um Volkswagen com um soldado e uma mulher jovem que
pareciam recém-casados. A terceira fileira na direção da beirada ficava fora
de sua área de interesse porque teria sido preciso afastar-se perigosamente
do 404; via cores, formas, Mercedes-Benz, ID, 4R, Lancia, Skoda, Morris
Minor, o catálogo completo. À esquerda, sobre a pista oposta, desdobrava-
se outra multidão interminável de Renault, Anglia, Peugeot, Porsche,
Volvo; uma coisa tão monótona que no fim, depois de trocar ideias com os
dois homens do Taunus e de tentar inutilmente um intercâmbio de
impressões com o solitário motorista do Caravelle, o melhor a fazer foi
voltar para o 404 e retomar a mesma conversa sobre a hora, as distâncias e
o cinema com a garota do Dauphine.
Às vezes chegava um forasteiro, alguém que andava por entre os carros
vindo do outro lado da pista ou das fileiras exteriores da direita, e que trazia
alguma notícia provavelmente falsa repetida de carro para carro ao longo de
quilômetros candentes. O forasteiro saboreava o sucesso de suas novidades,
as batidas das portas quando os passageiros se precipitavam para comentar
o sucedido, mas passado um tempo ouvia-se uma buzina ou um motor
arrancando e o forasteiro saía correndo, todos o viam ziguezaguear por
entre os automóveis para se reinstalar no seu e não ficar exposto à justa
cólera dos demais. Dessa maneira, no decorrer da tarde se tomara
conhecimento da colisão de um Floride com um 2HP perto de Corbeil, três
mortos e uma criança ferida, da dupla colisão de um Fiat 1500 com um
furgão Renault que destroçara um Austin cheio de turistas ingleses, da
capotagem de um ônibus de Orly entupido de passageiros procedentes do
voo de Copenhague. O engenheiro tinha certeza de que tudo aquilo, ou
quase tudo, era falso, embora alguma coisa grave devesse ter ocorrido perto
de Corbeil e mesmo nas cercanias de Paris para que a circulação estivesse
paralisada daquele jeito. Os agricultores do Ariane, proprietários de uma
granja para os lados de Montereau e que conheciam bem a região, contavam
de um outro domingo em que o trânsito ficara interrompido durante cinco
horas, mas aquele lapso de tempo começava a parecer quase irrisório agora
que o sol, que se punha do lado esquerdo da rodovia, derramava sobre cada
automóvel uma última avalanche de geleia alaranjada que fazia ferver os
metais e ofuscava a vista, sem que jamais uma copa de árvore
desaparecesse completamente a suas costas, sem que outra sombra
entrevista à distância se aproximasse a ponto de mostrar sem a menor
dúvida que a massa de automóveis estava se movendo nem que fosse um
pouquinho, nem que fosse preciso parar e arrancar e pisar no freio e nunca
sair da primeira marcha, do desencanto insultante de passar uma vez mais
da primeira para o ponto morto, pedal de freio, freio de mão, stop, e assim
uma e outra vez, e mais outra ainda.
Em algum momento, farto de inação, o engenheiro se decidira a aproveitar
uma parada especialmente interminável para percorrer as fileiras da
esquerda, e, deixando para trás o Dauphine, encontrara um DKW, outro
2HP, um Fiat 600, e se detivera ao lado de um De Soto para trocar
impressões com o transtornado turista de Washington que não entendia
praticamente nada de francês mas que precisava estar às oito da noite na
Place de l’Opéra sem falta you understand, my wife will be awfully anxious,
damn it, e falavam disso e daquilo quando um homem com cara de
representante comercial saiu do DKW para contar-lhes que alguém havia
chegado um pouco antes com a notícia de que um Piper Cub se
esborrachara em plena autoestrada, vários mortos. Para o americano a
história do Piper Cub era profundamente indiferente, bem como para o
engenheiro, que ouviu um coro de buzinas e voltou correndo para o 404,
aproveitando para comunicar as novidades aos dois homens do Taunus e ao
casal do 203. Reservou uma explicação mais detalhada para a garota do
Dauphine, enquanto dois carros avançavam lentamente alguns poucos
metros (agora o Dauphine estava um pouquinho recuado em relação ao 404,
e mais tarde se verificaria o oposto, mas na verdade as doze fileiras se
moviam praticamente em bloco, como se um gendarme invisível no fundo
da autoestrada ordenasse o avanço simultâneo sem que ninguém pudesse se
beneficiar de favorecimentos). Piper Cub, senhorita, é um aviãozinho de
passeio. Ah. E a péssima ideia de se espatifar em plena autoestrada num
domingo à tarde. Dessas coisas. Se pelo menos não fizesse tanto calor
dentro dos malditos automóveis, se as árvores à direita da pista ficassem
finalmente na retaguarda, se o último algarismo do conta-quilômetros
acabasse de cair em sua casinha preta em vez de continuar pendurado pela
cauda, interminavelmente.
Em algum momento (começava de leve a anoitecer, o horizonte de tetos
de automóveis se tingia de lilás), uma grande borboleta branca pousou no
para-brisa do Dauphine, e a garota e o engenheiro admiraram suas asas na
breve e perfeita suspensão de seu repouso; com exasperada nostalgia viram-
na afastar-se, sobrevoar o Taunus, o ID roxo do casal de velhos, ir na
direção do Fiat 600, já invisível a partir do 404, voltar na direção do Simca,
onde uma mão caçadora tentou inutilmente apanhá-la, adejar amavelmente
sobre o Ariane dos agricultores que davam a impressão de estar comendo
alguma coisa, e depois voar para a direita e desaparecer. Ao anoitecer a
coluna fez um primeiro avanço importante, de quase quarenta metros;
quando o engenheiro olhou distraidamente para o conta-quilômetros, a
metade do 6 havia desaparecido e um pedacinho do 7 começava a
desprender-se do alto. Quase todo mundo escutava rádio; os do Simca
haviam ligado o seu a todo o vapor e cantavam com empenho um twist,
com sacudidas que faziam o capô trepidar; as freiras desfiavam as contas de
seus rosários, o menino do Taunus pegara no sono com o rosto colado a um
dos vidros, sem largar o carrinho de brinquedo. Em algum momento (já era
noite fechada) chegaram forasteiros com mais notícias, tão contraditórias
quanto as outras já esquecidas. Não fora um Piper Cub, mas um planador
pilotado pela filha de um general. Era correto que um furgão Renault havia
destruído um Austin, mas não em Juvisy e sim quase às portas de Paris; um
dos forasteiros explicou ao casal do 203 que o asfalto da autoestrada cedera
na altura de Igny e que cinco automóveis haviam capotado ao enfiar as
rodas dianteiras na fenda. A ideia de uma catástrofe natural se disseminou
até o engenheiro, que deu de ombros sem fazer comentários. Mais tarde,
pensando naquelas primeiras horas de escuridão em que haviam respirado
um pouco mais livremente, lembrou-se de que em algum momento
estendera o braço para fora da janela para tamborilar sobre o capô do
Dauphine e acordar a garota, que adormecera reclinada sobre o volante, sem
se preocupar com um novo avanço. Talvez já fosse meia-noite quando uma
das freiras lhe ofereceu timidamente um sanduíche de presunto, imaginando
que estaria com fome. O engenheiro aceitou por cortesia (na realidade
estava com enjoo) e pediu permissão para dividi-lo com a garota do
Dauphine, que aceitou e comeu avidamente o sanduíche e o tablete de
chocolate que o representante do DKW, seu vizinho da esquerda, lhe
ofereceu. Muitas pessoas haviam desembarcado dos carros superaquecidos,
porque mais uma vez havia horas que não avançavam; esgotadas as garrafas
de limonada, coca-cola e mesmo os vinhos de bordo, as pessoas
começavam a sentir sede. A primeira a reclamar foi a menina do 203, e o
soldado e o engenheiro saíram de seus carros junto com o pai da menina
para ir em busca de água. Na frente do Simca, onde o rádio parecia ser
alimento suficiente, o engenheiro encontrou um Beaulieu ocupado por uma
mulher de meia-idade de olhos inquietos. Não, água ela não tinha, mas
podia ceder algumas balas para a menina. O casal do ID se entreolhou por
um instante antes que a senhora enfiasse a mão numa bolsa e tirasse uma
latinha de suco de fruta. O engenheiro agradeceu e perguntou se estavam
com fome e se podia ser-lhes útil; o velho moveu a cabeça negativamente,
mas a mulher pareceu assentir sem palavras. Mais tarde a garota do
Dauphine e o engenheiro exploraram juntos as fileiras da esquerda, sem se
afastar muito; voltaram com alguns biscoitos e os levaram para a idosa do
ID, com o tempo justo para voltar correndo para seus carros sob uma
saraivada de buzinas.
Além dessas saídas mínimas, era tão pouco o que se podia fazer que as
horas acabavam por se sobrepor, por ser sempre a mesma na lembrança; em
algum momento o engenheiro pensou em riscar aquele dia de sua agenda e
conteve uma gargalhada, porém mais adiante, quando começaram os
cálculos contraditórios das freiras, dos homens do Taunus e da garota do
Dauphine, verificou-se que teria sido preferível fazer melhor a conta. As
rádios locais haviam suspendido a emissão e só o representante do DKW
dispunha de um aparelho de ondas curtas que transmitia com afinco notícias
da bolsa. Lá pelas três da madrugada aparentemente se estabeleceu um
acordo tácito para descansar, e até o amanhecer a coluna não se moveu. Os
rapazes do Simca tiraram colchões infláveis e se deitaram ao lado do
automóvel; o engenheiro baixou o encosto dos assentos dianteiros do 404 e
ofereceu as instalações às freiras, que recusaram; antes de se deitar um
pouco, o engenheiro pensou na garota do Dauphine, muito quieta apoiada
ao volante, e como se não desse importância ao assunto sugeriu-lhe que
trocassem de carro até o dia clarear; ela se recusou, argumentando que
podia dormir muito bem de qualquer jeito. Por um momento se ouviu o
menino do Taunus chorar, deitado no assento traseiro, onde devia estar
sentindo muito calor. As freiras ainda rezavam quando o engenheiro se
reclinou no assento transformado em cama e foi adormecendo, mas seu
sonho continuava muito próximo da vigília e ele acabou acordando agitado
e coberto de suor, sem entender, num primeiro momento, onde estava;
endireitando o corpo, começou a perceber os confusos movimentos do
exterior, um deslocamento de sombras por entre os carros, e viu um vulto
que se afastava para a beira da autoestrada; adivinhou a razão, e mais tarde
também ele saiu do carro sem fazer barulho e foi se aliviar à beira da
rodovia; não havia moitas nem árvores, somente o campo escuro e sem
estrelas, uma coisa que parecia um muro abstrato limitando a faixa branca
do asfalto com seu rio imóvel de veículos. Quase tropeçou no agricultor do
Ariane, que balbuciou uma frase ininteligível; ao cheiro de gasolina, ainda
presente na autoestrada aquecida, somava-se agora a presença mais ácida do
homem, e o engenheiro voltou para seu carro o mais depressa que pôde. A
garota do Dauphine dormia apoiada no volante, uma mecha de cabelo sobre
os olhos; antes de entrar no 404 o engenheiro se divertiu explorando seu
perfil na sombra, adivinhando a curva dos lábios que expiravam
suavemente. Do outro lado, o homem do DKW também olhava a garota
dormir, fumando em silêncio.
Na manhã seguinte o avanço foi muito pequeno, mas suficiente para dar-
lhes a esperança de que naquela tarde a estrada para Paris ficaria livre. Às
nove chegou um forasteiro com boas notícias: haviam remendado as fendas
e em breve seria possível circular normalmente. Os rapazes do Simca
ligaram o rádio e um deles subiu no teto do automóvel e começou a gritar e
cantar. O engenheiro disse para si mesmo que a informação era tão
duvidosa quanto as da véspera, e que o forasteiro se aproveitara da alegria
do grupo para pedir e obter uma laranja fornecida pelo casal do Ariane.
Mais tarde chegou outro forasteiro com a mesma história, mas ninguém
quis dar nada a ele. O calor começava a aumentar e as pessoas preferiam
ficar dentro dos carros à espera de que as boas notícias se concretizassem.
Ao meio-dia a menina do 203 começou de novo a chorar, e a garota do
Dauphine foi brincar com ela e fez amizade com o casal. Os do 203
estavam sem sorte: tinham à direita o homem silencioso do Caravelle,
indiferente a tudo o que se passava ao seu redor, e à esquerda eram
obrigados a aguentar a verbosa indignação do motorista de um Floride, para
quem o engarrafamento era uma afronta exclusivamente pessoal. Quando a
menina tornou a reclamar de sede, o engenheiro teve a ideia de ir falar com
os agricultores do Ariane, certo de que aquele carro estava repleto de
provisões. Para sua surpresa, os agricultores foram muito amáveis;
compreendiam que numa situação daquelas era preciso ajudar-se
mutuamente, e achavam que se alguém se encarregasse de dirigir o grupo (a
mulher fazia um gesto circular com a mão, abarcando a dúzia de carros que
os rodeava) não haveria maiores dificuldades até chegarem a Paris. O
engenheiro não gostava da ideia de assumir a posição de organizador e
preferiu chamar os homens do Taunus para conferenciar com eles e com o
casal do Ariane. Um pouco depois, consultaram sucessivamente todos os do
grupo. O jovem soldado do Volkswagen concordou imediatamente, e o
casal do 203 ofereceu as poucas provisões que lhes restavam (a garota do
Dauphine conseguira um copo de xarope de framboesa com água para a
menina, que ria e brincava). Um dos homens do Taunus, que fora trocar
ideias com os rapazes do Simca, obteve uma anuência debochada; o homem
pálido do Caravelle deu de ombros e disse que para ele dava no mesmo, que
fizessem o que achassem melhor. O casal de idosos do ID e a senhora do
Beaulieu ficaram manifestamente alegres, como se se sentissem mais
protegidos. Os pilotos do Floride e do DKW não comentaram nada, e o
americano do De Soto olhou para eles assombrado e disse alguma coisa
sobre a vontade de Deus. O engenheiro achou fácil propor que um dos
ocupantes do Taunus, em quem depositava uma confiança instintiva, se
encarregasse de coordenar as atividades. Por enquanto ninguém ficaria sem
se alimentar, mas era preciso conseguir água; o chefe, que só de brincadeira
os rapazes do Simca chamavam de Taunus, pediu ao engenheiro, ao soldado
e a um dos rapazes que explorassem a área circundante da autoestrada e
oferecessem alimentos em troca de bebidas. Taunus, que manifestamente
sabia mandar, calculara que deveriam tratar de cobrir as necessidades de um
dia e meio no máximo, assumindo a posição menos otimista. No 2HP das
freiras e no Ariane dos agricultores havia provisões suficientes para esse
período, e se os exploradores voltassem com água o problema estaria
resolvido. Mas só o soldado voltou com um cantil cheio, cujo dono exigia,
em troca, comida para duas pessoas. O engenheiro não encontrou ninguém
que lhe fornecesse água, mas a excursão serviu para que percebesse que à
frente de seu grupo estavam se constituindo outras células com problemas
semelhantes; em certa ocasião o ocupante de um Alfa Romeo se negou a
abordar o assunto com ele e lhe disse que procurasse o representante de seu
grupo, cinco carros atrás, na mesma fileira. Mais tarde viram o rapaz do
Simca voltar sem ter conseguido água, mas Taunus calculou que já tinham o
suficiente para as duas crianças, a idosa do ID e o resto das mulheres. O
engenheiro estava relatando seu circuito pela periferia à garota do Dauphine
(era uma da tarde e o sol os encurralava nos carros) quando ela o
interrompeu com um gesto e apontou para o Simca. Em dois saltos o
engenheiro se aproximou do carro e segurou pelo cotovelo um dos rapazes,
que se esparramava em seu assento para beber a grandes goles do cantil que
trouxera escondido no agasalho. A seu gesto iracundo o engenheiro
respondeu aumentando a pressão no braço; o outro rapaz desceu do carro e
partiu para cima do engenheiro, que deu dois passos atrás e ficou à espera
deles quase penalizado. O soldado já vinha correndo, e os gritos das freiras
chamaram a atenção de Taunus e de seu companheiro; Taunus tomou
conhecimento do que sucedera, aproximou-se do rapaz do cantil e lhe
aplicou duas bofetadas. O rapaz gritou e protestou, choramingando,
enquanto o outro resmungava sem coragem de intervir. O engenheiro se
apossou do cantil e o entregou a Taunus. Começaram a soar buzinas e cada
um voltou para seu carro, aliás inutilmente, visto que a coluna avançou
apenas cinco metros.
Na hora da sesta, sob um sol ainda mais inclemente que o da véspera, uma
das freiras tirou o toucado e sua companheira molhou-lhe as têmporas com
água-de-colônia. As mulheres improvisavam pouco a pouco suas atividades
samaritanas, indo de um carro para outro, tomando conta das crianças para
que os homens ficassem mais liberados; ninguém se queixava, mas o bom
humor era forçado, baseava-se sempre nos mesmos jogos de palavras, num
ceticismo de bom-tom. Para o engenheiro e a garota do Dauphine, sentir-se
suados e sujos era o maior dos vexames; chegava quase a enternecê-los a
rotunda indiferença do casal de agricultores ao cheiro que lhes brotava das
axilas toda vez que vinham conversar com eles ou repetir alguma notícia de
última hora. Ia entardecendo quando o engenheiro olhou casualmente pelo
retrovisor e deu, como sempre, com o rosto pálido e de traços tensos do
homem do Caravelle, que, tal como o gordo motorista do Floride, se
mantivera alheio a todas as atividades. Pareceu-lhe que suas feições
estavam ainda mais afiladas, e perguntou-se se ele não estaria doente.
Depois, porém, quando, ao ir conversar com o soldado e sua mulher, teve
oportunidade de olhá-lo mais de perto, disse para si mesmo que aquele
homem não estava doente; o problema era outro, uma separação, para dar-
lhe algum nome. O soldado do Volkswagen contou-lhe mais tarde que sua
mulher sentia medo daquele homem silencioso que nunca se afastava do
volante e que parecia estar dormindo acordado. Surgiam hipóteses, criava-
se um folclore para combater a inação. As crianças do Taunus e do 203
haviam feito amizade e depois brigado e em seguida se reconciliado; seus
pais se visitavam, e a garota do Dauphine ia a intervalos ver como estavam
se sentindo a idosa do ID e a senhora do Beaulieu. Quando, ao entardecer,
sopraram bruscamente algumas lufadas de tempestade e o sol sumiu no
meio das nuvens que subiam a oeste, as pessoas se alegraram pensando que
ia refrescar. Caíram algumas gotas, coincidindo com um avanço
extraordinário de quase cem metros; ao longe brilhou um relâmpago e o
calor aumentou ainda mais. Havia tanta eletricidade no ar que Taunus, com
uma intuição que o engenheiro admirou sem comentários, deixou o grupo
em paz até a noite, como se temesse os efeitos do cansaço e do calor. Às
oito as mulheres se encarregaram de distribuir as provisões; ficara decidido
que todos os mantimentos seriam armazenados no Ariane dos agricultores e
que o 2HP das freiras serviria de depósito suplementar. Taunus fora
pessoalmente parlamentar com os chefes dos quatro ou cinco grupos
vizinhos; depois, com a ajuda do soldado e do homem do 203, levara uma
boa quantidade de alimentos para os outros grupos, voltando com mais água
e um pouco de vinho. Ficou decidido que os rapazes do Simca cederiam
seus colchões infláveis à idosa do ID e à senhora do Beaulieu; a garota do
Dauphine levou para elas duas mantas xadrezes de lã, e o engenheiro
ofereceu seu carro, que chamava espirituosamente de vagão-dormitório, a
quem tivesse necessidade dele. Para sua surpresa, a garota do Dauphine
aceitou o oferecimento e naquela noite partilhou os assentos-cama do 404
com uma das freiras; a outra foi dormir no 203 com a menina e sua mãe,
enquanto o marido passava a noite sobre o asfalto, enrolado num cobertor.
O engenheiro estava sem sono e jogou dados com Taunus e seu amigo; em
algum momento reuniu-se a eles o agricultor do Ariane e todos falaram de
política enquanto tomavam uns tragos da aguardente que o agricultor
entregara a Taunus naquela manhã. A noite não foi má; refrescara e
brilhavam algumas estrelas por entre as nuvens.
Pouco antes de clarear o dia foram vencidos pelo sono, aquela necessidade
de estar em lugar coberto que nascia com a luz cinzenta do alvorecer.
Enquanto Taunus dormia ao lado do menino no assento traseiro, seu amigo
e o engenheiro descansaram um pouco no dianteiro. Entre duas imagens de
sonho, o engenheiro teve a impressão de ouvir gritos à distância e viu um
clarão indistinto; o chefe de outro grupo veio lhes dizer que trinta carros à
frente houvera um princípio de incêndio num Estafette, provocado por
alguém que pretendia cozinhar clandestinamente alguns legumes. Taunus
fez uma brincadeira sobre o sucedido enquanto ia de carro em carro ver
como todos haviam passado a noite, mas ninguém ignorou o que ele estava
querendo dizer. Naquela manhã bem cedo a coluna começou a se mover, e
foi preciso correr e se mexer para recuperar os colchões e as cobertas, mas
como em toda parte devia estar acontecendo a mesma coisa, quase ninguém
se impacientava nem acionava as buzinas. Ao meio-dia haviam avançado
mais de cinquenta metros, e à direita da estrada era possível começar a
avistar a sombra de um bosque. Invejava-se a sorte dos que naquele
momento podiam ir até o acostamento aproveitar o frescor da sombra;
talvez houvesse um arroio ou uma bica de água potável. A garota do
Dauphine fechou os olhos e mentalizou uma ducha, a água caindo em seu
pescoço, em suas costas, escorrendo-lhe pelas pernas; o engenheiro, que a
observava com o rabo do olho, viu duas lágrimas resvalando-lhe pela face.
Taunus, que acabara de ir até o ID, veio em busca das mulheres mais
jovens para que atendessem a idosa, que não estava se sentindo bem. O
chefe do terceiro grupo na retaguarda contava com um médico entre seus
homens, e o soldado foi correndo buscá-lo. O engenheiro, que acompanhara
com benevolência irônica os esforços dos rapazinhos do Simca para que sua
travessura fosse perdoada, percebeu que havia chegado o momento de dar-
lhes uma oportunidade. Com os elementos de uma barraca de campanha os
rapazes cobriram as janelas do 404, e o vagão-dormitório se transformou
em ambulância para que a idosa descansasse em relativa penumbra. O
marido estendeu-se ao lado dela, segurando sua mão, e os dois foram
deixados sozinhos com o médico. Depois as freiras tomaram conta da idosa,
que estava se sentindo melhor, e o engenheiro passou a tarde como pôde,
visitando outros automóveis e descansando no de Taunus quando o sol
ficava inclemente demais; apenas em três ocasiões teve que correr até seu
carro, onde os velhinhos pareciam dormir, para fazê-lo avançar juntamente
com a coluna até a parada seguinte. A noite caiu sem que tivessem chegado
à altura do bosque.
Pelas duas da madrugada a temperatura baixou, e os que tinham
cobertores ficaram felizes por poder se embrulhar neles. Como a coluna não
se moveria até o nascer do sol (era uma coisa que se sentia no ar, que
emanava do horizonte de carros imóveis na noite), o engenheiro e Taunus se
sentaram para fumar e conversar com o agricultor do Ariane e o soldado.
Os cálculos de Taunus já não estavam correspondendo à realidade, fato que
ele admitiu com grande sinceridade; pela manhã seria preciso fazer alguma
coisa para conseguir mais provisões e bebidas. O soldado foi falar com os
chefes dos grupos vizinhos, que também não estavam dormindo, e o
problema foi discutido em voz baixa, para não acordar as mulheres. Os
chefes haviam falado com os responsáveis pelos grupos mais afastados,
num raio de oitenta ou cem automóveis, e estavam seguros de que a
situação era análoga por toda parte. O agricultor conhecia bem toda a região
e sugeriu que dois ou três homens de cada grupo saíssem ao amanhecer para
comprar provisões nas granjas da vizinhança, enquanto Taunus se
encarregava de designar pilotos para os carros que ficavam sem dono
durante a expedição. A ideia era boa e não foi difícil fazer uma vaquinha
entre os presentes; ficou decidido que o agricultor, o soldado e o amigo de
Taurus iriam juntos e levariam todas as sacolas, redes e cantis que
conseguissem. Os chefes dos outros grupos voltaram para suas unidades
com o objetivo de organizar expedições semelhantes; ao amanhecer a
situação foi exposta às mulheres e fez-se o necessário para que a coluna
pudesse continuar avançando. A garota do Dauphine disse ao engenheiro
que a idosa já estava melhor e que queria de todas as maneiras voltar para
seu ID; às oito chegou o médico, que não viu inconveniente em que o casal
voltasse para seu carro. De toda maneira, Taunus resolveu que o 404 ficaria
permanentemente preparado para funcionar como ambulância; os rapazes,
para se distrair, fabricaram uma bandeira com uma cruz vermelha e
prenderam-na à antena do carro. Já fazia algum tempo que as pessoas
vinham preferindo sair o menos possível de seus carros; a temperatura
continuava baixando e ao meio-dia começaram as chuvaradas e viram-se
relâmpagos ao longe. A mulher do agricultor correu para recolher água
munida de um funil e de uma jarra de plástico, para especial regozijo dos
rapazes do Simca. Olhando isso tudo, inclinado sobre o volante, onde havia
um livro aberto que não o interessava tanto assim, o engenheiro se
perguntou por que os expedicionários estavam demorando a voltar; mais
tarde Taunus chamou-o discretamente; foram para o carro dele e depois que
se instalaram disse que haviam fracassado. O amigo de Taunus forneceu
detalhes: as granjas estavam abandonadas; quando isso não procedia, as
pessoas se recusavam a vender-lhes o que quer que fosse, invocando as
regulamentações sobre vendas a particulares e desconfiando que eles
pudessem ser inspetores aproveitando-se das circunstâncias para pô-los à
prova. Apesar de tudo, haviam conseguido trazer uma pequena quantidade
de água e algumas provisões, talvez roubadas pelo soldado, que sorria sem
entrar em detalhes. Obviamente não era mais possível que se passasse
muito tempo sem que o engarrafamento chegasse ao fim, mas os alimentos
de que dispunham não eram os mais adequados para as crianças e a idosa. O
médico, que apareceu por volta das quatro e meia para ver a doente, fez um
gesto de exasperação e cansaço e disse a Taunus que em seu grupo e em
todos os grupos vizinhos estava acontecendo a mesma coisa. Pelo rádio
haviam falado numa operação de emergência para liberar a autoestrada, mas
além de um helicóptero que apareceu brevemente ao anoitecer, não se
observaram outros preparativos. De todo modo o calor era cada vez menos
intenso, e as pessoas pareciam esperar a chegada da noite para cobrir-se
com suas mantas e abolir no sono algumas horas mais de espera. De seu
carro, o engenheiro escutava a conversa da garota do Dauphine com o
representante do DKW, que lhe contava casos e a fazia rir sem muita
vontade. Surpreendeu-se ao ver a senhora do Beaulieu, que quase nunca
abandonava seu carro, e foi indagar se ela estava precisando de alguma
coisa, mas a senhora só estava atrás das últimas notícias e começou a falar
com as freiras. Um desgosto sem nome pesava sobre eles ao anoitecer;
esperava-se mais do sono que das notícias sempre contraditórias ou
desmentidas. O amigo de Taunus apareceu discretamente em busca do
engenheiro, do soldado e do homem do 203. Taunus anunciou-lhes que o
tripulante do Floride acabava de desertar; um dos rapazes do Simca havia
visto o carro vazio, e pouco depois começara a procurar seu dono para
matar o tédio. Ninguém conhecia direito o gordo do Floride, que tanto
protestara no primeiro dia mas depois acabara por ficar tão calado quanto o
motorista do Caravelle. Quando, às cinco da manhã, não restava a menor
dúvida de que Floride, como se divertiam em chamá-lo os moços do Simca,
desertara levando consigo uma maleta e abandonando outra cheia de
camisas e roupa de baixo, Taunus determinou que um dos rapazes se
encarregasse do carro abandonado, para não imobilizar a coluna. Todos
haviam ficado vagamente irritados com aquela deserção no escuro,
perguntando-se até onde Floride teria conseguido chegar, em sua fuga
campos afora. No mais, aquela parecia ser a noite das grandes decisões:
estendido em seu assento-cama, o engenheiro teve a impressão de ouvir um
gemido, mas achou que o soldado e sua mulher deviam estar praticando
uma coisa que, afinal de contas, era muito compreensível em plena noite e
naquelas circunstâncias. Depois pensou melhor e ergueu a lona que cobria a
janela traseira; à luz de umas poucas estrelas viu a um metro e meio de
distância o eterno para-brisa do Caravelle e atrás dele, como se estivesse
colado ao vidro e um pouco caído de lado, o rosto convulsionado do
homem. Sem fazer barulho, saiu pelo lado esquerdo para não acordar as
freiras e se aproximou do Caravelle. Depois procurou Taunus, e o soldado
foi correndo avisar o médico. Ficou claro que o homem havia se suicidado
tomando algum veneno; os rabiscos a lápis na agenda eram suficientes, bem
como a carta dirigida a uma tal Yvette, alguém que o abandonara em
Vierzon. Por sorte o hábito de dormir nos carros estava bem estabelecido
(as noites já estavam tão frias que não ocorreria a ninguém ficar do lado de
fora) e poucos ali se preocupavam com o fato de que outros andassem entre
os carros e fossem até a beirada da autoestrada para satisfazer suas
necessidades. Taunus convocou um conselho de guerra e o médico
concordou com sua proposta. Deixar o cadáver à beira da autoestrada
significava submeter os que vinham atrás a uma surpresa no mínimo
penosa; levá-lo até um ponto mais afastado, em pleno campo, poderia
provocar o violento repúdio dos locais, que na noite anterior haviam
ameaçado e surrado um rapaz de outro grupo que procurava alguma coisa
para comer. O agricultor do Ariane e o representante do DKW dispunham
do necessário para fechar hermeticamente o porta-malas do Caravelle.
Estavam dando início à tarefa quando apareceu a garota do Dauphine, que
se pendurou, trêmula, ao braço do engenheiro. Ele lhe explicou em voz
baixa o que acabara de acontecer, e em seguida acompanhou-a até seu
carro, já mais calma. Taunus e seus homens haviam enfiado o corpo no
porta-malas, e o representante trabalhou com fita adesiva e tubos de cola
líquida à luz da lanterna do soldado. Como a mulher do 203 sabia dirigir,
Taunus determinou que seu marido se encarregaria do Caravelle,
posicionado à direita do 203; assim, depois que amanheceu, a menina do
203 descobriu que seu pai tinha outro carro e passou horas e horas
brincando de passar de um para outro e de instalar parte de seus brinquedos
no Caravelle.
Pela primeira vez o frio se fazia sentir em pleno dia, e ninguém pensava
em despir os casacos. A garota do Dauphine e as freiras fizeram o
inventário dos agasalhos disponíveis no grupo. Havia uns poucos pulôveres
que surgiam por acaso nos carros ou em uma ou outra mala, cobertores,
poucas gabardines ou casaquinhos leves. Foi elaborada uma lista de
prioridades, os agasalhos foram distribuídos. Mais uma vez faltava água e
Taunus enviou três de seus homens, entre eles o engenheiro, para que
tentassem estabelecer contato com os moradores locais. Sem que ninguém
soubesse por quê, a resistência exterior era total; bastava sair do limite da
autoestrada para que chovessem pedras vindas de algum lugar
indeterminado. Em plena noite alguém jogou um ancinho, que estourou no
teto do DKW e caiu ao lado do Dauphine. O representante ficou muito
pálido e não se moveu de seu carro, mas o americano do De Soto (que não
fazia parte do grupo de Taunus mas que todos apreciavam por seu bom
humor e suas gargalhadas) chegou correndo e depois de girar o ancinho no
ar devolveu-o campo adentro com todas as suas forças, gritando
impropérios. Mesmo assim, Taunus não acreditava que fosse conveniente
aprofundar a hostilidade; talvez ainda desse para fazer uma expedição em
busca de água.
Já não havia ninguém calculando o avanço daquele dia ou dos outros; a
garota do Dauphine achava que fora uma distância total de oitenta a
duzentos metros; o engenheiro era menos otimista mas se divertia
prolongando e complicando os cálculos com a vizinha, com vistas a retirá-
la intermitentemente da companhia do representante do DKW, que lhe fazia
a corte à sua maneira profissional. Naquela mesma tarde o rapaz
encarregado do Floride foi correndo avisar Taunus que um Ford Mercury
estava oferecendo água a bom preço. Taunus se recusou, mas ao anoitecer
uma das freiras pediu ao engenheiro um gole de água para a idosa do ID,
que padecia sem se queixar, sempre de mãos dadas com o marido e atendida
alternativamente pelas freiras e pela garota do Dauphine. Restava meio litro
de água, e as mulheres o destinaram à idosa e à senhora do Beaulieu.
Naquela mesma noite Taunus pagou de seu bolso dois litros de água; o Ford
Mercury prometeu conseguir mais para o dia seguinte, pelo dobro do preço.
Era difícil reunir-se para discutir, porque fazia tanto frio que ninguém saía
dos automóveis se não fosse por um motivo imperioso. As baterias
começavam a arriar e não era possível deixar a calefação ligada o tempo
todo; Taunus determinou que os dois carros mais bem equipados ficassem
reservados para os doentes, se fosse o caso. Enrolados em seus cobertores
(os rapazes do Simca haviam arrancado o forro do carro para confeccionar
coletes e gorros, e outras pessoas começavam a imitá-los), cada um tratava
de abrir as portas o mínimo possível, para conservar o calor. Numa daquelas
noites geladas o engenheiro ouviu o choro abafado da garota do Dauphine.
Sem fazer barulho, abriu pouco a pouco a porta e tateou no escuro até roçar
uma bochecha molhada. Quase sem resistência a garota se deixou atrair
para o 404; o engenheiro ajudou-a a estender-se no assento-cama, cobriu-a
com a única manta que possuía e jogou a gabardine por cima. A escuridão
era mais densa no carro-ambulância, com suas janelas cobertas pelas lonas
da barraca. Em algum momento o engenheiro baixou os dois para-sóis e
pendurou neles sua camisa e um pulôver para isolar completamente o carro.
Pouco antes de amanhecer, ela disse no ouvido dele que antes de começar a
chorar pensara ver ao longe, à direita, as luzes de uma cidade.
Talvez fosse uma cidade, mas com as névoas da manhã não se via nada
nem a vinte metros de distância. Curiosamente, naquele dia a coluna
avançou bem mais, talvez duzentos ou trezentos metros. O fato coincidiu
com novos anúncios pelo rádio (que quase ninguém escutava, exceto
Taunus, que se sentia obrigado a manter-se atualizado); os locutores
falavam enfaticamente em medidas de exceção que liberariam a
autoestrada, e mencionavam os trabalhos exaustivos das equipes de
manutenção das rodovias, bem como das forças policiais. De repente, uma
das freiras delirou. Enquanto sua companheira a contemplava aterrorizada e
a garota do Dauphine umedecia suas têmporas com um resto de perfume, a
freira falava de Armageddon, do nono dia, da cadeia de cinábrio. O médico
apareceu bem mais tarde, abrindo caminho em meio à neve que caía desde
o meio-dia e ia pouco a pouco emparedando os carros. Deplorou a
inexistência de uma injeção calmante e aconselhou que levassem a freira
para um carro com boa calefação. Taunus instalou-a em seu carro e o
menino foi para o Caravelle, onde também estava sua amiguinha do 203; os
dois brincavam com seus carrinhos e se divertiam muito porque eram os
únicos que não passavam fome. Ao longo de todo aquele dia e dos dias que
se seguiram, nevou quase ininterruptamente, e quando a coluna avançava
alguns metros era preciso retirar com meios improvisados as massas de
neve amontoadas entre os carros.
Ninguém teria estranhado a maneira como se obtinham provisões e água.
A única coisa que Taunus podia fazer era administrar os bens comuns e
esforçar-se para tirar o melhor partido possível de alguns escambos. O Ford
Mercury e um Porsche apareciam todas as noites para traficar com os
mantimentos; Taunus e o engenheiro se encarregavam de distribuí-los
conforme o estado físico de cada um. Incrivelmente, a idosa do ID ia
sobrevivendo, perdida num estupor que as mulheres tratavam de não
dissipar. A senhora do Beaulieu, que alguns dias antes padecera de náuseas
e vertigens, se recuperara com o frio e era das que mais ajudavam a freira a
cuidar de sua companheira, sempre fraca e um pouco desorientada. A
mulher do soldado e a do 203 tomavam conta das duas crianças; o
representante do DKW, talvez para se consolar do fato de a ocupante do
Dauphine ter preferido o engenheiro, passava horas contando histórias para
as crianças. À noite os grupos entravam numa outra vida sigilosa e privada;
as portas dos carros se abriam silenciosamente para deixar entrar ou sair
alguma silhueta enregelada; ninguém olhava para os demais, os olhos
estavam tão cegos quanto a própria sombra. Embaixo de cobertores sujos,
com mãos de unhas crescidas, cheirando a fechado e a roupa não trocada,
alguma felicidade resistia aqui e ali. A garota do Dauphine não se enganara:
ao longe brilhava uma cidade, e pouco a pouco iam se aproximando. Todas
as tardes o moço do Simca subia no teto de seu carro, vigia incorrigível
envolto em pedaços de forro e estopa verde. Cansado de explorar o
horizonte inútil, ele olhava pela enésima vez os carros que o rodeavam; com
uma ponta de inveja constatava que Dauphine estava no carro do 404, uma
mão acariciando um pescoço, o final de um beijo. Só de brincadeira, agora
que reconquistara a amizade do 404, gritava para eles que a coluna ia se
mexer; aí Dauphine tinha que abandonar o 404 e entrar em seu carro, mas
pouco depois pulava de volta em busca de calor, e o moço do Simca teria
ficado tão feliz se pudesse levar para seu carro alguma garota de outro
grupo, mas com aquele frio e aquela fome isso era impensável, sem contar
que o grupo mais à frente estava em franca maré de hostilidade com o de
Taunus devido a uma história envolvendo um tubo de leite condensado, e
fora as transações oficiais com Ford Mercury e com Porsche não havia
relação possível com os outros grupos. Então o rapaz do Simca suspirava
aborrecido e retomava sua vigília até que a neve e o frio o obrigassem a
entrar tiritando no automóvel.
Mas o frio começou a ceder, e depois de um período de chuvas e ventos
que tensionaram os ânimos e aumentaram as dificuldades de abastecimento,
vieram dias frescos e ensolarados em que já era possível sair dos carros,
fazer visitas, restabelecer relações com os grupos vizinhos. Os chefes
haviam discutido a situação, e finalmente as pazes foram feitas com o grupo
mais à frente. O brusco desaparecimento de Ford Mercury foi comentado
durante muito tempo, sem que ninguém soubesse o que poderia ter
acontecido com ele, mas Porsche continuou vindo e controlando o mercado
negro. Nunca acontecia de as conservas e a água acabarem inteiramente,
embora as reservas do grupo estivessem diminuindo e Taunus e o
engenheiro se perguntassem o que aconteceria no dia em que não houvesse
mais dinheiro para Porsche. Falou-se em atentado, em fazê-lo prisioneiro e
exigir que revelasse a fonte dos suprimentos, mas naqueles dias a coluna
avançara um bom trecho e os chefes preferiram continuar esperando e evitar
o risco de deitar tudo a perder com alguma decisão violenta. O engenheiro,
que acabara se entregando a uma indiferença quase agradável, sobressaltou-
se por um momento com a tímida declaração da garota do Dauphine, mas
depois entendeu que era impossível fazer alguma coisa para evitá-lo, e a
ideia de ter um filho com ela acabou por parecer-lhe tão natural quanto a
partilha noturna das provisões ou as excursões furtivas à margem da
autoestrada. A morte da idosa do ID foi outra coisa que não surpreendeu
ninguém. Mais uma vez, foi preciso trabalhar em plena noite, acompanhar e
consolar o marido que não se resignava a compreender. Estourou uma briga
entre dois dos grupos de vanguarda e Taunus teve de fazer o papel de
árbitro e resolver precariamente a pendenga. Tudo acontecia a qualquer
momento, sem horários previsíveis; o mais importante começou quando
ninguém mais esperava por aquilo, e o menos responsável foi quem se deu
conta primeiro. Encarapitado no teto do Simca, o alegre sentinela teve a
impressão de que o horizonte havia se alterado (entardecia, um sol
amarelado deslizava sua luz rasante e parca) e de que uma coisa
inconcebível estava acontecendo a quinhentos, a trezentos, a duzentos e
cinquenta metros dali. Com um grito, avisou o 404 e o 404 disse alguma
coisa a Dauphine, que passou rapidamente para seu carro no momento em
que Taunus, o soldado e o agricultor já se aproximavam correndo, e do teto
do Simca o rapaz apontava para a frente e repetia interminavelmente o
anúncio, como se quisesse convencer-se de que o que estava vendo era
verdade; então ouviram a comoção, algo como um pesado mas irrefreável
movimento migratório que despertava de um interminável estupor e testava
as próprias forças. Taunus ordenou aos gritos que voltassem para seus
carros; o Beaulieu, o ID, o Fiat 600 e o De Soto arrancaram com um mesmo
impulso. Agora o 2HP, o Taunus, o Simca e o Ariane começavam a
movimentar-se, e o rapaz do Simca, orgulhoso de uma coisa que era uma
espécie de triunfo seu, se virava para o 404 e agitava o braço, enquanto o
404, o Dauphine, o 2HP das freiras e o DKW davam a partida também. Mas
tudo estava em saber quanto tempo aquilo duraria; foi o que se perguntou o
404 quase por obrigação, enquanto se mantinha emparelhado com
Dauphine e sorria para ela para dar-lhe ânimo. Atrás, o Volkswagen, o
Caravelle, o 203 e o Floride arrancavam por sua vez lentamente, um trecho
em primeira, depois em segunda, interminavelmente a segunda mas agora
sem reduzir, como tantas vezes antes, com o pé firme no acelerador,
esperando o momento de passar a terceira. Estendendo o braço esquerdo, o
404 procurou a mão de Dauphine, roçou de leve a ponta de seus dedos, viu
no rosto dela um sorriso de incrédula esperança, e imaginou que chegariam
a Paris e que tomariam um banho, que iriam juntos a algum lugar, à casa
dele ou à dela tomar banho, comer, tomar banhos intermináveis e comer e
beber, e que depois haveria móveis, haveria um quarto com móveis e um
banheiro com espuma de sabão para fazer a barba de verdade, e instalações
sanitárias, comida e instalações sanitárias e lençóis, Paris era uma
instalação sanitária e dois lençóis e água quente caindo sobre o peito e as
pernas, e uma tesoura de unhas, e vinho branco, tomariam vinho branco
antes de beijar-se e sentir o próprio cheiro de lavanda e água-de-colônia,
antes de conhecer-se de verdade em plena luz, entre lençóis limpos, e voltar
para o banho só de brincadeira, amar e tomar banho e beber e entrar na
barbearia, entrar no banho, acariciar os lençóis e acariciar-se entre os
lençóis e amar-se em meio à espuma e à lavanda e às escovas antes de
começar a pensar no que iriam fazer, no filho e nos problemas e no futuro, e
tudo isso desde que não parassem, desde que a coluna prosseguisse embora
ainda não fosse possível engatar a terceira, continuar assim em segunda,
mas continuar. Com os para-choques roçando o Simca, o 404 se jogou para
trás no assento, sentiu a velocidade aumentar, sentiu que podia acelerar sem
risco de colidir com o Simca e que o Simca acelerava sem risco de colidir
com o Beaulieu, e que atrás vinha o Caravelle e que todos aceleravam cada
vez mais, e que já era possível engatar a terceira sem penalizar o motor, e
incrivelmente a alavanca se posicionou em terceira e a marcha ficou suave e
se acelerou mais ainda, e o 404 olhou enternecido e deslumbrado para a
esquerda em busca dos olhos de Dauphine. Era natural que com toda essa
aceleração as fileiras já não se mantivessem paralelas, Dauphine estava
quase um metro à frente e o 404 via sua nuca e, só um pouco, o perfil,
justamente quando ela se virava para olhá-lo e fazia um gesto de surpresa
ao ver que o 404 estava ficando ainda mais para trás. Tranquilizando-a com
um sorriso, o 404 acelerou bruscamente, mas quase em seguida foi obrigado
a frear porque estava quase encostando no Simca; deu uma buzinada seca e
o rapaz do Simca olhou para ele pelo retrovisor e fez um gesto de
impotência, mostrando-lhe com a mão esquerda o Beaulieu colado a seu
carro. O Dauphine ia três metros à frente, à altura do Simca, e a menina do
203, emparelhado com o 404, agitava os braços e lhe mostrava a boneca.
Uma mancha vermelha à direita desconcertou o 404; em vez do 2HP das
freiras ou do Volkswagen do soldado, viu um Chevrolet desconhecido, e
quase em seguida o Chevrolet avançou, seguido por um Lancia e um
Renault 8. À esquerda se alinhava com ele um ID que começava a
ultrapassá-lo metro a metro, mas antes que ele fosse substituído por um
403, o 404 ainda conseguiu distinguir, lá adiante, o 203 que já ocultava
Dauphine. O grupo se deslocava, já não existia, Taunus devia estar mais de
vinte metros à frente, seguido de Dauphine; enquanto isso a terceira fileira
da esquerda se atrasava porque em vez do DKW do representante o 404
conseguia ver a parte traseira de um velho furgão preto, talvez um Citroën
ou um Peugeot. Os carros corriam em terceira, adiantando-se ou perdendo
terreno conforme o ritmo da respectiva fileira, e dos dois lados da
autoestrada viam-se fugir as árvores, algumas casas entre as massas de
neblina e o anoitecer. Depois foram as luzes vermelhas que todos acendiam
seguindo o exemplo dos que iam à frente, a noite que se fechava
bruscamente. De vez em quando se ouviam buzinas, as agulhas dos
velocímetros subiam cada vez mais, algumas fileiras corriam a setenta
quilômetros por hora, outras a sessenta e cinco, algumas a sessenta. O 404
ainda esperara que o avanço e o retrocesso das fileiras lhe dessem
oportunidade de alcançar novamente Dauphine, mas cada minuto que
passava o convencia de que era inútil, de que o grupo se dissolvera
irrevogavelmente, que os encontros rotineiros não voltariam a repetir-se,
nem os mínimos rituais, os conselhos de guerra no carro de Taunus, as
carícias de Dauphine na paz da madrugada, os risos das crianças brincando
com seus carrinhos, a imagem da freira desfiando as contas do rosário.
Quando as luzes dos freios do Simca se acenderam, o 404 reduziu a marcha
com um absurdo sentimento de esperança, e assim que puxou o freio de
mão desceu do automóvel e correu para diante. Tirando o Simca e o
Beaulieu (mais atrás estaria o Caravelle, mas não estava interessado nisso),
não reconheceu nenhum carro; através de outros vidros olhavam-no com
surpresa e talvez indignação outros rostos que nunca vira. Soavam as
buzinas, e o 404 foi obrigado a voltar para seu carro; o rapaz do Simca lhe
dirigiu um gesto amistoso, como se compreendesse, e apontou
animadoramente para o lado de Paris. A coluna tornava a movimentar-se,
lenta durante alguns minutos e depois como se a autoestrada estivesse
definitivamente liberada. À esquerda do 404 corria um Taunus, e por um
segundo o 404 teve a sensação de que o grupo se recompunha, de que tudo
entrava na ordem, de que seria possível seguir em frente sem destruir nada.
Mas aquele Taunus era verde, e ao volante estava uma mulher de óculos
fumê que olhava fixamente para diante. Não se podia fazer outra coisa
senão se abandonar à marcha, adaptar-se mecanicamente à velocidade dos
carros circundantes, não pensar. No Volkswagen do soldado devia estar sua
jaqueta de couro. Taunus ficara com o romance que ele lera nos primeiros
dias. Um vidro quase vazio de lavanda no 2HP das freiras. E ele tinha ali
consigo, tocando-o às vezes com a mão direita, o ursinho de pelúcia que
Dauphine lhe oferecera para dar sorte. Absurdamente se agarrou à ideia de
que às nove e meia os alimentos seriam distribuídos, seria preciso visitar os
doentes, avaliar a situação com Taunus e o agricultor do Ariane; depois
seria a noite, seria Dauphine entrando discretamente em seu carro, as
estrelas ou as nuvens, a vida. Sim, tinha que ser assim, não era possível que
tivesse terminado para sempre. Talvez o soldado conseguisse uma ração de
água, que escasseara nas últimas horas; de toda maneira sempre se podia
contar com Porsche, desde que lhe pagassem o preço pedido. E na antena
do rádio adejava loucamente a bandeira com a cruz vermelha, e todos
corriam a oitenta quilômetros por hora na direção das luzes que cresciam
pouco a pouco, já sem que se soubesse direito para que tanta pressa, para
que tanta correria na noite entre carros desconhecidos onde ninguém sabia
nada dos outros, onde todo mundo olhava fixamente para diante,
exclusivamente para diante.
Q
uando inesperadamente tia Clelia se sentiu mal, na família houve
um momento de pânico e por várias horas ninguém foi capaz de
reagir e discutir um plano de ação, nem mesmo tio Roque, que
sempre encontrava a saída mais sensata. Carlos foi avisado por
telefone no escritório, Rosa e Pepa dispensaram os alunos de piano e
solfejo, e até tia Clelia ficou mais preocupada com mamãe que com ela
mesma. Tinha certeza de que o que estava sentindo não era grave, mas
mamãe, com sua pressão e seu açúcar, não podia receber notícias
preocupantes, todos sabiam muito bem que o dr. Bonifaz fora o primeiro a
compreender e aprovar que escondessem de mamãe o assunto de Alejandro.
Se tia Clelia precisava ficar de cama, era necessário encontrar alguma
maneira para que mamãe não desconfiasse que ela estava doente, mas já o
assunto de Alejandro havia ficado tão difícil, e agora mais essa; o menor
deslize e ela acabaria por saber a verdade. Mesmo a casa sendo grande, era
preciso levar em conta o ouvido apurado de mamãe e sua inquietante
capacidade de adivinhar onde estava cada um. Pepa, que chamara o dr.
Bonifaz do telefone de cima, avisou a seus irmãos que o médico viria assim
que possível e que deixassem a porta entreaberta para que ele pudesse
entrar sem tocar a campainha. Enquanto Rosa e tio Roque acudiam tia
Clelia, que tivera dois desmaios e se queixava de uma insuportável dor de
cabeça, Carlos ficou com mamãe para contar-lhe as novidades do conflito
diplomático com o Brasil e ler as últimas notícias para ela. Mamãe estava
de bom humor naquela tarde e sua cintura não doía como quase sempre na
hora da sesta. Foi perguntado a todos o que estava acontecendo para que
parecessem tão nervosos, e na casa se falou sobre a baixa pressão e os
efeitos nefastos dos aditivos no pão. Na hora do chá chegou tio Roque para
conversar com mamãe, e Carlos pôde ir tomar um banho e ficar à espera do
médico. Tia Clelia estava melhor, mas tinha dificuldade para se mover na
cama e já quase não se interessava mais pelo que tanto a preocupara ao sair
da primeira tontura. Pepa e Rosa se revezaram ao lado dela, oferecendo-lhe
chá e água sem receber resposta; com o entardecer a casa se apaziguou e os
irmãos pensaram que talvez o problema de tia Clelia não fosse grave e que
na tarde seguinte ela voltaria a entrar no quarto de mamãe como se nada
tivesse acontecido.
Com Alejandro as coisas haviam sido muito piores, porque Alejandro
havia morrido num acidente de automóvel pouco antes de chegar a
Montevidéu, onde era esperado na casa de um engenheiro amigo. Já fazia
quase um ano do acontecido, mas sempre continuava sendo o primeiro dia
para os irmãos e os tios, para todos menos para mamãe, já que para mamãe
Alejandro estava no Brasil, onde uma firma do Recife lhe confiara a
instalação de uma fábrica de cimento. A ideia de preparar mamãe, de
insinuar para ela que Alejandro tivera um acidente e que estava levemente
ferido não lhes ocorrera nem depois das advertências do dr. Bonifaz. Até
María Laura, incapaz de qualquer tipo de compreensão naquelas primeiras
horas, admitira que não era possível dar a notícia a mamãe. Carlos e o pai
de María Laura viajaram para o Uruguai para trazer o corpo de Alejandro,
enquanto a família cuidava como sempre de mamãe, que naquele dia estava
dolorida e difícil. O clube de engenharia aceitou que o velório se realizasse
em sua sede e Pepa, a que mais se ocupava de mamãe, nem sequer chegou a
ver o caixão de Alejandro, enquanto os outros se revezavam em turnos de
uma hora para fazer companhia à pobre María Laura, perdida num horror
sem lágrimas. Como quase sempre, tio Roque ficou encarregado de pensar.
Ele falou de madrugada com Carlos, que chorava silenciosamente a perda
do irmão com a cabeça apoiada na cobertura verde da mesa da sala de jantar
onde tantas vezes haviam jogado cartas. Depois tia Clelia se uniu a eles,
porque mamãe dormia a noite inteira e não era preciso preocupar-se com
ela. Com a anuência tácita de Rosa e de Pepa, decidiram as primeiras
medidas, a começar pelo sequestro do La Nación — às vezes mamãe se
animava a ler o jornal por alguns minutos e todos concordaram com o que
tio Roque havia pensado. Foi assim que uma empresa brasileira contratou
Alejandro para que passasse um ano no Recife, e em poucas horas
Alejandro tivera que renunciar a suas reduzidas férias na casa do
engenheiro amigo, fazer a mala e embarcar no primeiro avião. Mamãe
precisava entender que eram novos tempos, que os industriais não
entendiam de sentimento, mas que Alejandro logo encontraria um jeito de
tirar uma semana de férias na metade do ano e descer até Buenos Aires.
Mamãe achou tudo muito adequado, embora chorasse um pouco e tenha
sido necessário dar-lhe seus sais para respirar. Carlos, que sabia fazê-la rir,
disse a ela que era uma vergonha chorar pelo primeiro sucesso do caçula da
família, e que Alejandro não teria gostado de ficar sabendo que era assim
que recebiam a notícia de sua contratação. Então mamãe se acalmou e disse
que tomaria um dedinho de málaga à saúde de Alejandro. Carlos saiu
bruscamente à procura do vinho, mas foi Rosa quem o trouxe e brindou
com mamãe.
A vida de mamãe era bem penosa, e embora ela pouco se queixasse, era
preciso fazer o possível para ficar perto dela e distraí-la. Quando, no dia
seguinte ao do enterro de Alejandro, ela achou estranho María Laura não ter
ido visitá-la como em todas as quintas-feiras, Pepa foi à tarde à casa dos
Novalli para falar com María Laura. Àquela hora tio Roque estava no
escritório de um advogado amigo, explicando-lhe a situação; o advogado
prometeu escrever imediatamente a seu irmão, que trabalhava no Recife (na
casa de mamãe, as cidades não eram escolhidas aleatoriamente), e organizar
a parte da correspondência. Como por acaso, o dr. Bonifaz já fizera uma
visita a mamãe, e depois de examinar sua visão achou que havia melhoras
significativas, mas lhe pediu que se abstivesse de ler os jornais por alguns
dias. Tia Clelia se encarregou de comentar as notícias mais interessantes
com ela; por sorte mamãe não gostava de ouvir os noticiários radiofônicos
porque eram vulgares e a todo momento havia anúncios de remédios nada
confiáveis que as pessoas tomavam contra ventos e marés e iam levando.
María Laura apareceu na sexta-feira à tarde, falando que precisava estudar
muito para os exames da arquitetura.
— Claro, filhinha — disse mamãe, olhando para ela com afeto. — Você
está com os olhos vermelhos de tanto ler, e isso não é bom. Aplique
compressas de hamamélis, que é o melhor que há.
Rosa e Pepa estavam presentes, para intervir a todo momento na conversa,
e María Laura conseguiu resistir e até sorriu quando mamãe começou a
falar no malandro do namorado dela que viajava para tão longe
praticamente sem avisar. A juventude moderna era assim, o mundo tinha
ficado louco e todos andavam com pressa e sem tempo para nada. Depois
mamãe se perdeu nos consabidos casos de pais e avós, e chegou o café, e
depois entrou Carlos com brincadeiras e histórias, e em algum momento tio
Roque se instalou na porta do quarto e olhou para eles com seu ar
bonachão, e tudo se passou como deveria se passar até a hora do descanso
de mamãe.
A família foi se acostumando, o mais difícil foi para María Laura, mas
pelo menos ela só precisava falar com mamãe às quintas-feiras; um dia
chegou a primeira carta de Alejandro (mamãe já havia estranhado seu
silêncio duas vezes) e Carlos leu-a em voz alta ao pé da cama. Alejandro
estava encantado com o Recife, falava do porto, dos vendedores de
papagaios e do sabor dos refrescos, a família ficava com água na boca ao ter
notícia de que o abacaxi era praticamente de graça e que o café era de
verdade e com um perfume… Mamãe pediu para ver o envelope e disse que
era para dar o selo ao menino dos Marolda, que era filatelista, embora ela
não gostasse nem um pouco de que os meninos andassem às voltas com os
selos, porque depois não lavavam as mãos e os selos haviam rodado pelo
mundo inteiro.
— As pessoas passam a língua neles para grudá-los — mamãe dizia
sempre — e os micróbios ficam no selo e incubam, isso é sabido. Mas lhe
dê mesmo assim, afinal ele já tem tantos que um a mais, um a menos…
No dia seguinte, mamãe chamou Rosa e ditou-lhe uma carta para
Alejandro, perguntando quando ele ia poder tirar férias e se a viagem não
seria muito cara. Explicou-lhe como estava se sentindo, falou que Carlos
havia recebido uma promoção e contou do prêmio que um dos alunos de
piano de Pepa ganhara. Também disse que María Laura a visitava toda
quinta-feira sem falta, mas que estava estudando demais e que isso fazia
mal à vista. Depois que a carta ficou pronta, mamãe assinou embaixo com
um lápis e beijou delicadamente o papel. Pepa saiu com o pretexto de ir
buscar um envelope, e tia Clelia apareceu com os comprimidos das cinco e
flores para a jarra da cômoda.
Nada era fácil, porque nessa época a pressão de mamãe subiu ainda mais e
a família chegou a se perguntar se não haveria alguma influência
inconsciente, algo que transbordava do comportamento de todos eles, uma
preocupação e um desânimo que faziam mal a mamãe apesar das
precauções e da alegria fingida. Mas não era possível, porque à força de
fingir as risadas, todos terminavam rindo de verdade com mamãe, e às
vezes brincavam uns com os outros e trocavam empurrões, mesmo que não
estivessem com ela, depois se olhavam como se acordassem de repente, e
Pepa ficava muito vermelha e Carlos acendia um cigarro de cabeça baixa.
Só o que importava no fundo era que o tempo passasse e que mamãe não se
desse conta de nada. Tio Roque havia falado com o dr. Bonifaz e todos
eram da opinião de que era preciso continuar indefinidamente o piedoso faz
de conta, de acordo com a classificação de tia Clelia. O único problema
eram as visitas de María Laura, porque naturalmente mamãe insistia em
falar de Alejandro, queria saber se eles pretendiam se casar assim que ele
voltasse do Recife ou se aquele maluco do filho dela ia aceitar outro
contrato longe e por tanto tempo. O único jeito era entrar no quarto a todo
momento e distrair mamãe, tirar de lá María Laura, que permanecia muito
quieta em sua cadeira, com as mãos apertadas até doerem, mas um dia
mamãe perguntou a tia Clelia porque todos se precipitavam daquela
maneira quando María Laura ia visitá-la, como se fosse a única ocasião que
tinham de estar com ela. Tia Clelia começou a rir e lhe disse que todos viam
um pouco de Alejandro em María Laura e que por isso gostavam de estar
com ela quando ela aparecia.
— Você tem razão, María Laura é tão boa — disse mamãe. — O bandido
do meu filho não merece essa moça, pode acreditar.
— Olhe só quem está falando — disse tia Clelia. — Se é só falar no seu
filho que você já começa a babar.
Mamãe também começou a rir, e se lembrou de que por aqueles dias
chegaria carta de Alejandro. A carta chegou, e tio Roque a levou junto com
o chá das cinco. Daquela vez mamãe quis ler a carta e pediu os óculos de
ver de perto. Leu aplicadamente, como se cada frase fosse uma iguaria a
que era preciso dar voltas e mais voltas na boca para melhor saborear.
— Os jovens de hoje não têm mais respeito — disse, sem dar maior
importância a sua afirmação. — Está certo que no meu tempo não se
usavam essas máquinas, mas eu nunca teria coragem de escrever assim ao
meu pai, nem você.
— Claro que não — disse tio Roque. — Com aquele gênio do velho…
— Você nunca desiste dessa história de velho, Roque. Você sabe que eu
não gosto de ouvir você falar assim, mas não se importa. Lembre-se da
mamãe, do jeito que ela ficava.
— Bom, está certo. Isso de velho é maneira de dizer, não tem nada a ver
com respeito.
— É muito estranho — disse mamãe, tirando os óculos e olhando para as
molduras do forro. — Já são cinco ou seis cartas de Alejandro, e em
nenhuma delas ele me chama de… Ah, acho que é um segredo entre nós. É
estranho, sabe? Por que ele não me chamou nem uma única vez daquele
jeito?
— Vai ver que o rapaz acha bobo, escrever isso numa carta para você.
Uma coisa é eu te chamar de… como ele chama você?
— É um segredo — disse mamãe. — Um segredo entre mim e meu
filhinho.
Nem Pepa nem Rosa tinham conhecimento do tal nome, e Carlos deu de
ombros quando lhe perguntaram.
— O que você quer que eu faça, tio? O máximo que eu consigo fazer é
falsificar a assinatura dele. Acho que mamãe acaba esquecendo essa
história, não leve tão a sério.
Quatro ou cinco meses mais tarde, depois de uma carta de Alejandro em
que ele explicava a quantidade de coisas que precisava fazer (embora
estivesse contente porque era uma grande oportunidade para um engenheiro
jovem), mamãe insistiu em que já era tempo de ele tirar umas férias e
descer até Buenos Aires. Rosa, que escrevia a resposta de mamãe, achou
que ela estava ditando mais lentamente, como se houvesse pensado muito
cada frase.
— Sabe-se lá se o coitado consegue vir — disse Rosa como se fosse um
comentário casual. — Seria uma pena ele criar um problema com a empresa
justamente agora que está dando tudo certo e ele tão contente.
Mamãe continuou ditando como se não tivesse ouvido. Sua saúde deixava
muito a desejar e ela teria gostado de ver Alejandro, nem que fosse só por
uns dias. Alejandro também precisava pensar em María Laura, não por ela
achar que ele estava negligenciando a namorada, mas um amor não vive de
palavras bonitas e promessas à distância. Enfim, esperava que Alejandro
escrevesse em breve comunicando as boas notícias. Rosa observou que
mamãe não havia beijado o papel depois de assinar, mas que olhava
fixamente para a carta como se quisesse gravá-la na memória. “Pobre do
Alejandro”, pensou Rosa, e depois se benzeu num impulso, sem mamãe ver.
— Olhe só — disse tio Roque a Carlos naquela noite quando os dois
ficaram sozinhos para sua partida de dominó —, acho que esse caldo vai
entornar. Vai ser preciso encontrar alguma coisa plausível, do contrário ela
acaba se dando conta.
— Sei lá, tio. O melhor é Alejandro responder de um jeito que mamãe
fique tranquila por mais um tempo. A pobrezinha está tão frágil, não dá
nem para pensar em…
— Ninguém falou nisso, rapaz. Mas eu estou lhe dizendo que sua mãe é
do tipo das que não se entregam. É de família, tchê.
Mamãe leu sem fazer comentários a resposta evasiva de Alejandro: que
trataria de conseguir férias assim que entregasse o primeiro setor instalado
da fábrica. Quando María Laura chegou, naquela tarde, mamãe pediu a ela
que insistisse para que Alejandro viesse a Buenos Aires nem que fosse para
passar só uma semana. Depois María Laura disse a Rosa que mamãe havia
feito o pedido no único momento em que mais ninguém podia escutar. Tio
Roque foi o primeiro a sugerir o que todos já haviam pensado tantas vezes
sem ter coragem de dizer às claras, e quando mamãe ditou para Rosa outra
carta para Alejandro, insistindo para ele vir, ficou decidido que não havia
outro remédio senão fazer a tentativa e ver se mamãe estava em condições
de receber uma primeira notícia desagradável. Carlos consultou o dr.
Bonifaz, que aconselhou prudência e umas gotas. Deixaram passar o tempo
necessário, e uma tarde tio Roque foi se sentar aos pés da cama de mamãe
enquanto Rosa cevava um mate e olhava pela janela da sacada, ao lado da
cômoda dos remédios.
— Sabe que agora estou começando a entender um pouco por que esse
diabo de sobrinho não se decide a vir nos ver — disse tio Roque. — O fato
é que ele não quis dar preocupação a você, sabendo que ainda não está bem.
Mamãe olhou para ele com cara de quem não está entendendo.
— Hoje os Novalli telefonaram, parece que María Laura recebeu notícias
de Alejandro. Está bem, mas não vai poder viajar por alguns meses.
— Não vai poder viajar por quê?
— Porque parece que está com um problema num pé. No tornozelo, acho.
Precisamos perguntar a María Laura, para que ela conte o que está
acontecendo. O velho Novalli mencionou uma fratura, ou algo assim.
— Fratura de tornozelo? — falou mamãe.
Antes que tio Roque tivesse tempo de responder, Rosa já estava com o
frasco dos sais. O dr. Bonifaz veio logo em seguida, e depois de algumas
horas tudo estava normalizado, mas foram longas horas, e o dr. Bonifaz não
se afastou da família até a noite. Só dois dias mais tarde mamãe se sentiu
suficientemente recuperada para pedir a Pepa que escrevesse a Alejandro.
Quando Pepa, que não havia entendido bem, apareceu como sempre com o
bloco e a lapiseira, mamãe fechou os olhos e fez que não com a cabeça.
— Escreva você. Diga a ele para se cuidar.
Pepa obedeceu, sem saber por que estava escrevendo uma frase depois da
outra, já que mamãe não ia ler a carta. Naquela noite ela disse a Carlos que
o tempo todo, enquanto escrevia ao lado da cama de mamãe, estivera
absolutamente segura de que mamãe não ia ler nem assinar aquela carta.
Continuava de olhos fechados e só os abriu na hora do chá; parecia ter
esquecido, estar pensando em outras coisas.
Alejandro respondeu no tom mais natural do mundo, explicando que não
havia querido contar sobre a fratura para não preocupá-la. No começo
haviam se enganado e posto um gesso que depois fora preciso trocar, mas
agora estava melhor e em algumas semanas poderia começar a andar. No
total seriam uns dois meses, só que o problema era que seu trabalho tivera
um atraso tremendo no pior momento, e…
Carlos, que estava lendo a carta em voz alta, teve a impressão de que
mamãe não o escutava como das outras vezes. De vez em quando olhava
para o relógio, o que, nela, era sinal de impaciência. Às sete horas Rosa
tinha que servir seu caldo com as gotas do dr. Bonifaz, e já eram sete e
cinco.
— Bom — disse Carlos, dobrando a carta. — Como você vê, está tudo
bem, não aconteceu nada de grave com o garoto.
— Claro — disse mamãe. — Escute, diga a Rosa para andar logo, por
favor.
Quanto a María Laura, mamãe ouviu atentamente as explicações que ela
lhe deu sobre a fratura de Alejandro e até lhe disse que recomendasse a ele
certas massagens que haviam feito muito bem a seu pai quando caíra do
cavalo em Matanzas. Logo em seguida, como se fizesse parte da mesma
frase, perguntou se não poderiam lhe dar algumas gotas de água de flor de
laranjeira, que sempre clareavam sua cabeça.
A primeira a falar foi María Laura, naquela mesma tarde. Falou para Rosa
na sala, antes de sair, e Rosa ficou olhando para ela como se não
conseguisse acreditar no que havia ouvido.
— Francamente — disse Rosa. — Como você pode imaginar uma coisa
dessas?
— Não estou imaginando, é verdade — disse María Laura. — E eu não
volto mais, Rosa, podem me pedir quanto quiserem, mas eu não entro mais
nesse quarto.
No fundo ninguém achou assim tão absurda a fantasia de María Laura,
mas tia Clelia resumiu o sentimento de todos quando disse que numa casa
como a deles um dever era um dever. Rosa ficou encarregada de ir até a
casa dos Novalli, mas María Laura teve uma crise de choro tão histérico
que não houve outra saída senão acatar sua decisão; Pepa e Rosa
começaram naquela mesma tarde a fazer comentários sobre o muito que a
pobre garota precisava estudar, e sobre como ela andava cansada. Mamãe
não disse nada, e ao chegar quinta-feira não perguntou por María Laura.
Naquela quinta se completavam dez meses da partida de Alejandro para o
Brasil. A empresa estava tão satisfeita com seus serviços que algumas
semanas depois ele recebeu uma proposta de renovação do contrato por
mais um ano, desde que aceitasse viajar imediatamente para Belém, para
instalar outra fábrica. Tio Roque achou formidável, um grande triunfo para
um rapaz de tão pouca idade.
— Alejandro sempre foi o mais inteligente — disse mamãe. — Assim
como Carlos é o mais perseverante.
— Você tem razão — disse tio Roque, perguntando-se de repente que
bicho teria mordido María Laura naquele dia. — A verdade é que você
arrumou uns filhos que valem a pena, mana.
— Ah, sim, não posso me queixar. O pai teria gostado de vê-los crescidos.
As meninas, tão comportadas, e o pobre do Carlos, tão caseiro.
— E Alejandro, com tanto futuro pela frente.
— Ah, sim — disse mamãe.
— Pense nesse novo contrato que estão lhe oferecendo… Enfim, quando
se animar, responda ao seu filho; ele deve estar com o rabo entre as pernas,
pensando que a notícia da renovação do contrato não vai ser do seu agrado.
— Ah, sim — repetiu mamãe, olhando para o forro. — Diga a Pepa que
escreva para ele, ela já sabe.
Pepa escreveu, sem muita certeza do que deveria dizer a Alejandro, mas
convencida de que sempre era melhor ter um texto completo para evitar
contradições nas respostas. Alejandro, de seu lado, ficou muito feliz por
mamãe compreender a oportunidade que lhe ofereciam. O assunto do
tornozelo ia muito bem, assim que pudesse pediria férias para vir passar
quinze dias com eles. Mamãe concordou com um pequeno gesto e
perguntou se La Razón já havia chegado, para que Carlos lesse os
telegramas para ela. Tudo na casa se organizara sem esforço, agora que os
sobressaltos pareciam ter chegado ao fim e que a saúde de mamãe
permanecia estável. Os filhos se revezavam para fazer-lhe companhia; tio
Roque e tia Clelia entravam e saíam a qualquer momento. Carlos lia o
jornal para mamãe à noite, Pepa pela manhã. Rosa e tia Clelia se
encarregavam dos remédios e dos banhos; tio Roque tomava mate no quarto
dela duas ou três vezes por dia. Mamãe nunca estava sozinha, nunca
perguntava por María Laura; a cada três semanas recebia sem comentários
notícias de Alejandro; dizia a Pepa que respondesse e falava de outra coisa,
sempre inteligente, atenta e distante.
Foi nessa época que tio Roque começou a ler para ela as notícias sobre a
situação tensa com o Brasil. As primeiras ele havia escrito nas margens do
jornal, mas mamãe não se preocupava com a perfeição da leitura, e depois
de alguns dias tio Roque se habituou a inventar na hora. No início
acompanhava os inquietantes telegramas com um ou outro comentário
sobre os problemas que a situação poderia ocasionar para Alejandro e os
demais argentinos no Brasil, mas como mamãe não dava a impressão de se
preocupar, parou de insistir, embora a cada poucos dias a situação se
agravasse um pouco. Nas cartas de Alejandro se mencionava a
possibilidade de uma ruptura de relações, embora o rapaz continuasse sendo
o otimista de sempre e estivesse convencido de que os chanceleres dariam
um jeito no litígio.
Mamãe não fazia comentários, talvez porque o dia em que Alejandro teria
condições de pedir licença ainda estivesse longe, mas certa noite ela
perguntou abruptamente ao dr. Bonifaz se a situação com o Brasil era assim
tão grave como diziam os jornais.
— Com o Brasil? Bom, é verdade, as coisas não andam muito bem —
disse o médico. — Esperemos que o bom senso dos estadistas…
Mamãe olhava para ele um tanto surpresa com o fato de ele ter respondido
sem vacilar. Suspirou de leve e mudou de assunto. Naquela noite mostrou
mais animação que nas outras vezes, e o dr. Bonifaz se retirou satisfeito. No
dia seguinte tia Clelia adoeceu; os desmaios pareciam coisa passageira, mas
o dr. Bonifaz falou com tio Roque e aconselhou que internassem tia Clelia
num hospital. A mamãe, que naquele momento ouvia as notícias do Brasil
trazidas por Carlos junto com os jornais da noite, disseram que tia Clelia
estava com uma enxaqueca que não a deixava sair da cama. Tiveram a noite
inteira para pensar no que iam fazer, mas tio Roque estava com um ar
completamente perdido depois de conversar com o dr. Bonifaz, e Carlos e
as meninas foram obrigados a decidir. Rosa pensou no sítio de Manolita
Valle e no ar puro; no segundo dia da enxaqueca de tia Clelia, Carlos
conduziu a conversa com tanta habilidade que foi como se mamãe em
pessoa tivesse aconselhado uma temporada no sítio de Manolita, que tanto
bem faria a Clelia. Um colega de escritório de Carlos se ofereceu para levá-
la até lá de carro, já que a viagem de trem seria cansativa, com aquela
enxaqueca. Tia Clelia foi a primeira a querer se despedir de mamãe, e
Carlos e tio Roque, juntos, levaram-na passinho a passinho para que mamãe
lhe recomendasse não tomar friagem naqueles carros de agora e não
esquecer de tomar todas as noites o laxante de frutas.
— Clelia estava muito congestionada — disse mamãe a Pepa naquela
tarde. — Tive uma impressão ruim, sabe?
— Ah, uns dias no sítio e ela se recupera bem. Andava um pouco cansada
nestes últimos meses; lembro que Manolita até lhe disse que fosse com ela
para o sítio.
— É mesmo? Estranho, ela nunca me falou.
— Imagino que não quisesse preocupar você.
— E quanto tempo vai ficar, filhinha?
Pepa não sabia, mas perguntariam ao dr. Bonifaz, que era quem havia
aconselhado a mudança de ares. Mamãe só tornou a tocar no assunto alguns
dias depois (tia Clelia acabara de ter uma crise no hospital e Rosa se
revezava com tio Roque para fazer companhia a ela).
— Me pergunto quando Clelia volta — disse mamãe.
— Ora, por uma vez que a coitada se decide a sair de perto de você e
trocar um pouco de ares…
— Eu sei, mas ela não estava com nada de grave, segundo vocês.
— Claro que não é nada. Agora ela deve estar ficando lá por gosto, ou
para fazer companhia a Manolita; você sabe como elas são amigas.
— Telefone para o sítio e pergunte quando ela volta — disse mamãe.
Rosa telefonou para o sítio e lhe disseram que tia Clelia estava melhor,
mas que ainda se sentia um pouco fraca, de modo que ia aproveitar para
ficar. O tempo em Olavarría estava esplêndido.
— Não estou gostando nada disso — falou mamãe. — Clelia já deveria ter
voltado.
— Por favor, mamãe, não se preocupe tanto. Por que você não melhora de
uma vez e vai com Clelia e Manolita tomar sol no sítio?
— Eu? — disse mamãe, olhando para Carlos com algo semelhante a
assombro, escândalo, insulto. Carlos começou a rir para disfarçar o que
sentia (tia Clelia em estado gravíssimo, Pepa acabava de telefonar), e
beijou-a na bochecha como se ela fosse uma menina travessa.
— Mamãezinha boba — disse, fazendo força para não pensar em nada.
Naquela noite mamãe dormiu mal, e desde o amanhecer perguntou por
Clelia, como se naquele horário fosse possível eles terem notícias do sítio
(tia Clelia acabara de morrer e eles haviam resolvido fazer o velório na
funerária). Às oito ligaram para o sítio usando o telefone da sala, para que
mamãe pudesse ouvir a conversa, e por sorte tia Clelia havia passado muito
bem a noite, embora o médico de Manolita a aconselhasse a continuar por
lá enquanto o bom tempo se mantivesse. Carlos estava muito feliz com o
fechamento do escritório para inventário e balanço, e apareceu de pijama
para tomar mate ao pé da cama de mamãe e bater papo com ela.
— Olhe — disse mamãe —, acho que seria preciso escrever a Alejandro
dizendo a ele que venha visitar a tia. Sempre foi o preferido da Clelia, nada
mais justo que venha.
— Mas tia Clelia não tem nada, mamãe. Se Alejandro não conseguiu vir
para ver você, imagine então…
— Não interessa — disse mamãe. — Escreva e diga que Clelia está
doente e que ele deveria vir vê-la.
— Mas quantas vezes a gente precisa repetir que tia Clelia não tem nada
de grave?
— Se não é grave, tanto melhor. Mas não custa nada escrever para ele.
Escreveram naquela mesma tarde, depois leram a carta para mamãe. Na
altura em que a resposta de Alejandro deveria estar chegando (tia Clelia
continuava bem, mas o médico de Manolita insistia em que ela aproveitasse
os bons ares do sítio), a situação com o Brasil se agravou mais ainda, e
Carlos disse a mamãe que não seria de estranhar se as cartas de Alejandro
demorassem a chegar.
— Parece de propósito — disse mamãe. — Você vai ver como ele também
não consegue vir.
Nenhum deles se animava a ler para ela a carta de Alejandro. Reunidos na
sala de jantar, olhavam para o lugar vago de tia Clelia, olhavam uns para os
outros, vacilantes.
— É absurdo — disse Carlos. — Já estamos tão acostumados com essa
encenação que uma coisa a mais, uma a menos…
— Então vá você — disse Pepa, enquanto seus olhos se enchiam de
lágrimas e ela as secava com o guardanapo.
— Fazer o quê? Tem um negócio que não bate. Agora, toda vez que eu
entro no quarto dela parece que estou esperando uma surpresa, uma
armadilha, quase.
— A culpa é da María Laura — disse Rosa. — Ela enfiou essa ideia na
nossa cabeça e a gente não está mais conseguindo agir com naturalidade. E
para completar, tia Clelia…
— Olhe só, agora que você falou nisso me ocorre que seria o caso de falar
com María Laura — disse tio Roque. — O mais lógico seria ela aparecer
depois dos exames e dar a sua mãe a notícia de que Alejandro não vai poder
viajar.
— Mas seu sangue não gela quando pensa que mamãe não pergunta mais
por María Laura, mesmo Alejandro falando nela em todas as suas cartas?
— Não tem nada a ver com a temperatura do meu sangue — disse tio
Roque. — A questão é fazer ou deixar de fazer as coisas, ponto.
Rosa precisou de duas horas para convencer María Laura, mas era a
melhor amiga dela e María Laura queria muito bem a eles, até a mamãe,
mesmo tendo medo dela. Foi preciso preparar uma nova carta, que María
Laura trouxe junto com o ramo de flores e as balas de tangerina de que
mamãe gostava. Sim, isso mesmo, por sorte os exames mais difíceis já
haviam acabado e ela poderia ir passar algumas semanas em San Vicente
para descansar.
— O ar do campo vai lhe fazer bem — disse mamãe. — Já Clelia… Você
ligou para o sítio hoje, Pepa? Ah, é mesmo, estou me lembrando que você
falou… Bom, já faz três semanas que Clelia viajou e olhe só…
María Laura e Rosa fizeram os comentários do caso, veio a bandeja do
chá, e María Laura leu para mamãe alguns parágrafos da carta de Alejandro
com a notícia do confinamento provisório de todos os técnicos estrangeiros,
e a graça que ele achava em estar alojado num esplêndido hotel por conta
do governo, à espera de que os chanceleres solucionassem o conflito.
Mamãe não fez nenhum comentário, bebeu sua xícara de chá de tília e foi
adormecendo. As jovens continuaram a conversa na sala, mais aliviadas.
María Laura estava quase indo embora quando teve a ideia do telefone e
disse a Rosa. Rosa tinha a impressão de que Carlos também havia pensado
naquela solução, e mais tarde falou com tio Roque, que deu de ombros.
Diante de coisas assim, o único jeito era fazer um gesto e ir em frente com a
leitura do jornal. Mas Rosa e Pepa também contaram a Carlos, que desistiu
de inventar uma explicação que não fosse a de aceitar o que ninguém queria
aceitar.
— Vamos ver — disse Carlos. — Ainda pode acontecer de ela mesma ter
a ideia e vir nos pedir. Nesse caso…
Mas mamãe nunca pediu que lhe levassem o telefone para que pudesse
falar pessoalmente com tia Clelia. Todas as manhãs perguntava se havia
notícias do sítio, depois voltava para seu silêncio, em que o tempo parecia
ser contado por doses de remédios e xícaras de infusão. Não achava ruim
tio Roque chegar com o La Razón para ler para ela as últimas notícias do
conflito com o Brasil, embora também não parecesse preocupada com o
fato de o jornaleiro chegar tarde ou tio Roque dedicar mais tempo que de
costume a um problema de xadrez. Rosa e Pepa inclusive se convenceram
de que mamãe não estava nem aí para a leitura das notícias, ou para os
telefonemas ao sítio, ou para as cartas de Alejandro. Mas não dava para ter
certeza, porque às vezes mamãe levantava a cabeça e olhava para elas com
o olhar profundo de sempre, um olhar em que não havia a menor mudança,
a menor aceitação. A rotina envolvia a todos e, para Rosa, telefonar para
um buraco negro no outro lado do fio era tão simples e cotidiano quanto
para tio Roque continuar lendo falsos telegramas sobre um fundo de
anúncios de leilões ou notícias de futebol, ou para Carlos entrar contando os
acontecimentos de sua visita ao sítio de Olavarría e os pacotes de frutas
enviadas por Manolita e tia Clelia. Nem sequer durante os últimos meses de
mamãe os costumes foram alterados, embora já pouca diferença fizesse. O
dr. Bonifaz disse a eles que por sorte mamãe não sofreria nada e que se
apagaria sem se dar conta. Mas mamãe permaneceu lúcida até o fim,
quando os filhos já estavam ao seu redor sem conseguir fingir o que
sentiam.
— Como vocês todos foram bons comigo — disse mamãe com ternura. —
Tanto trabalho que tiveram para que eu não sofresse.
Tio Roque estava sentado ao lado dela, e acariciou jovialmente sua mão,
chamando-a de bobinha. Pepa e Rosa, fingindo procurar alguma coisa na
cômoda, já sabiam que María Laura tivera razão; sabiam o que de alguma
maneira sempre haviam sabido.
— Tantos cuidados comigo… — disse mamãe, e Pepa apertou a mão de
Rosa, porque ao fim e ao cabo aquelas palavras tornavam a pôr tudo no
lugar, restabeleciam a longa encenação necessária. Mas Carlos, aos pés da
cama, olhava para mamãe como se soubesse que ela ia dizer mais alguma
coisa.
— Agora vocês vão poder descansar — disse mamãe. — Não vamos mais
dar trabalho a vocês.
Tio Roque já ia protestar, dizer alguma coisa, mas Carlos se aproximou
dele e apertou seu ombro suavemente. Mamãe afundava pouco a pouco
numa modorra, e era melhor não perturbá-la.
Três dias depois do enterro chegou a última carta de Alejandro, indagando
como sempre sobre a saúde de mamãe e de tia Clelia. Rosa, que a recebera,
abriu-a e automaticamente começou a lê-la, e quando levantou os olhos
porque de repente as lágrimas a cegavam, deu-se conta de que enquanto a
lia estava pensando em como fariam para dar a Alejandro a notícia da morte
de mamãe.
Reunião
Me lembrei de um antigo conto de Jack London, em que o
protagonista, apoiado num tronco de árvore, se prepara para
acabar com dignidade a própria vida.
Ernesto “Che” Guevara,
em La sierra y el llano, Havana, 1961
N
ada poderia ir pior, mas pelo menos já não estávamos naquela
maldita lancha, entre vômitos e lambadas de mar e pedaços de
bolacha molhada, entre metralhadoras e babas, em estado
lamentável, consolando-nos quando podíamos com o pouco fumo
que permanecia seco porque Luis (que não se chamava Luis, mas havíamos
jurado que não nos lembraríamos de nossos nomes até chegar o dia) tivera a
boa ideia de guardá-lo numa lata que abríamos com mais cuidado do que se
estivesse cheia de escorpiões. Mas nada de fumo, nada de goles de rum
naquela lancha do inferno, balançando por cinco dias como uma tartaruga
bêbada, enfrentando um norte que a esbofeteava sem dó, e onda vai e onda
vem, os baldes arrancando a pele de nossas mãos, eu com uma asma
infernal e meio mundo passando mal, dobrando-se para vomitar como se
fossem quebrar ao meio. Mesmo Luis, na segunda noite, uma bile verde que
lhe roubou a vontade de rir, entre ali e o norte que não nos deixava ver o
farol do Cabo Cruz, um desastre que ninguém havia imaginado; e chamar
aquilo de expedição de desembarque até parecia motivo para continuar
vomitando, só que de pura tristeza. Enfim, qualquer coisa, desde que fosse
para largar a lancha, qualquer coisa, mesmo que fosse o que nos esperava
em terra — mas que sabíamos que estava nos esperando e por isso não fazia
tanta diferença —, o tempo que endireita justamente no pior momento e
zás, o aviãozinho de reconhecimento, nada a fazer, vadear o pântano ou o
que fosse, com água pelo meio das costelas procurando o abrigo das sujas
pastagens, dos manguezais, e eu feito um idiota com meu vaporizador de
adrenalina para poder seguir em frente, com Roberto levando meu
Springfield para me ajudar a vadear melhor o pântano (se é que aquilo era
um pântano, porque já ocorrera a muitos de nós que provavelmente
havíamos seguido na direção errada e que em vez de terra firme havíamos
feito a estupidez de nos enfiar em alguma ilha rasa coberta de lodo no meio
do mar, a vinte milhas da ilha…); e tudo assim, mal pensado e pior dito,
numa confusão contínua de atos e noções, numa mistura de alegria
inexplicável e de raiva contra a maldita vida que estavam nos dando os
aviões e o que nos esperava para os lados da estrada caso algum dia
chegássemos, se estivéssemos num pântano da costa e não dando voltas
como débeis mentais num circo de barro e total fracasso, para diversão do
babuíno em seu palácio.
Ninguém mais se lembra de quanto aquilo durou, medíamos o tempo pelas
falhas entre as pastagens, os trechos onde podiam nos metralhar em picada,
a comoção que ouvi à minha esquerda, longe, e acho que foi de Roque (ele
eu posso nomear, o pobre esqueleto entre as lianas e os sapos), pois dos
planos já não restava mais que a meta final, chegar até a Sierra e juntar-nos
a Luis caso ele também conseguisse chegar, o resto havia virado frangalhos
com o norte, o desembarque improvisado, os pântanos. Mas sejamos justos:
uma coisa se concretizava sincronicamente, o ataque dos aviões inimigos.
Havia sido previsto e provocado: não falhou. E por isso, embora ainda
doesse em meu rosto o uivo de Roque, minha maligna maneira de entender
o mundo me ajudava a rir ao mesmo tempo (e agora me sufocava mais
ainda, e Roberto levando meu Springfield para que eu pudesse inalar
adrenalina com o nariz quase no nível da água, engolindo mais barro que
outra coisa), porque se os aviões estavam ali então não era possível que
tivéssemos errado de praia, no máximo havíamos feito um desvio de
algumas milhas, mas a estrada devia estar além das pastagens, e depois a
planície aberta e ao norte as primeiras colinas. Tinha sua graça o inimigo
estar nos confirmando do ar o acerto do desembarque.
Durou sabe-se lá quanto tempo, e depois veio a noite e éramos seis
embaixo de umas árvores mirradas, pela primeira vez em terreno quase
seco, mascando fumo úmido e umas pobres bolachas. De Luis, de Pablo, de
Lucas nenhuma notícia; dispersos, provavelmente mortos, em todo caso tão
perdidos e molhados quanto nós. Mas eu gostava de sentir como, com o fim
daquela jornada de batráquio, minhas ideias começavam a se organizar, e
como a morte, mais provável que nunca, já não seria um tiro ao acaso em
pleno pântano e sim uma operação dialética a seco, perfeitamente
orquestrada pelas partes em jogo. Ao exército caberia vigiar a estrada,
cercando os pântanos à espera de que aparecêssemos de dois em dois ou de
três em três, exaustos devido ao barro e aos bichos e à fome. Agora eu via
tudo com a maior clareza, estava outra vez com os pontos cardeais na ponta
da língua, ria ao sentir-me tão vivo e tão lúcido no limiar do epílogo. Nada
me dava mais prazer que provocar Roberto, recitando junto ao seu ouvido
certos versos do velho Pancho que ele achava abomináveis. “Se pelo menos
pudéssemos tirar o barro do corpo”, queixava-se o Tenente. “Ou fumar de
verdade” (alguém, mais à esquerda, já não sei quem, alguém que se perdera
ao alvorecer). Organização da agonia: sentinelas, dormir em turnos, mascar
fumo, sugar bolachas estufadas como esponjas. Ninguém mencionava Luis,
o medo de que tivesse sido morto era o único inimigo real, porque a
confirmação disso nos aniquilaria muito mais que a perseguição, a falta de
armas ou as feridas nos pés. Sei que dormi um pouco enquanto Roberto
vigiava, mas antes fiquei pensando que tudo o que havíamos feito ao longo
daqueles dias era insensato demais para admitir assim de repente a
possibilidade de que tivessem matado Luis. De algum modo a insensatez
teria de prosseguir até o fim, que talvez fosse a vitória, e nesse jogo absurdo
em que havíamos inclusive chegado ao escândalo de avisar o inimigo que
desembarcaríamos não entrava a possibilidade de perder Luis. Acho que
também pensei que se desse certo, se conseguíssemos juntar-nos novamente
a Luis, só então começaria o jogo a sério, o resgate de tanto romantismo
necessário e desenfreado e perigoso. Antes de adormecer tive uma espécie
de visão: Luis ao lado de uma árvore, cercado por todos nós, levava
lentamente a mão ao rosto e o retirava como se ele fosse uma máscara. Com
o rosto na mão, Luis se aproximava de seu irmão Pablo, de mim, do
Tenente, de Roque, pedindo-nos com um gesto que o aceitássemos, que o
vestíssemos. Mas todos, um a um, iam se recusando, e eu também me
recusei, sorrindo até às lágrimas, e então Luis tornou a vestir seu rosto e vi
nele um cansaço infinito enquanto dava de ombros e puxava um charuto do
bolso da guayabera. Profissionalmente falando, uma alucinação do meio-
sono e da febre, facilmente interpretável. Mas se de fato houvessem matado
Luis durante o desembarque, quem subiria agora à Sierra com seu rosto?
Todos nos dedicaríamos a subir, mas ninguém com o rosto de Luis,
ninguém que pudesse ou quisesse assumir o rosto de Luis. “Os diádocos”,
pensei, já quase dormindo. “Mas foi tudo para o diabo com os diádocos,
como se sabe.”
Mesmo isso que conto tendo acontecido há muito tempo, restam pedaços e
momentos tão nítidos na memória que só é possível relatá-los no presente,
como estar outra vez atirado de costas sobre a pastagem, ao lado da árvore
que nos protege do céu aberto. Estamos na terceira noite, mas ao amanhecer
desse dia cruzamos a estrada apesar dos jipes e da metralha. Agora é
preciso esperar outro amanhecer porque mataram nosso guia e continuamos
perdidos, será preciso encontrar algum morador local que nos conduza até
onde a gente possa comprar alguma coisa para comer, e quando digo
comprar quase caio na risada e sufoco outra vez, mas nesse aspecto assim
como nos outros ninguém pensaria em desobedecer a Luis, e é preciso
pagar pelo que comemos e antes explicar às pessoas quem somos e por que
fazemos o que estamos fazendo. A cara de Roberto na cabana abandonada
da colina, deixando cinco pesos debaixo de um prato em troca da pouca
coisa que encontramos e que tinha gosto de céu, de comida do Ritz, se é que
lá se come bem. Estou com tanta febre que a asma está passando, não há
mal que não venha para o bem, mas penso outra vez na cara de Roberto
deixando os cinco pesos na cabana vazia e tenho tamanho ataque de riso
que sufoco outra vez e me amaldiçoo. Seria preciso dormir, Tinti está de
guarda, os rapazes descansam uns encostados nos outros, eu me afastei um
pouco porque tenho a impressão de que incomodo com a tosse e os assobios
do peito, e além disso faço uma coisa que não deveria fazer, e é que duas ou
três vezes por noite fabrico um anteparo de folhas e enfio a cabeça por trás
e acendo devagarinho o charuto para me reconciliar um pouco com a vida.
No fundo a única coisa boa do dia foi não receber notícias de Luis, o resto
é um desastre, dos oitenta que éramos mataram pelo menos cinquenta ou
sessenta de nós; Javier foi um dos primeiros a cair, o Peruano perdeu um
olho e agonizou por três horas sem que eu pudesse fazer nada, nem mesmo
acabar com aquilo quando os outros não estivessem olhando. O dia inteiro
receamos a chegada de algum mensageiro (houve três, com um risco
tremendo, bem nas fuças do exército) com a notícia da morte de Luis. No
fim é melhor não saber de nada, imaginá-lo vivo, poder continuar
esperando. Friamente, peso as possibilidades e concluo que foi morto, todos
sabemos como ele é, de que modo aquele delinquente é capaz de se expor
num local aberto de pistola em punho e quem vier atrás que dê cobertura.
Não, mas López com certeza tomou conta dele, ninguém como López para
enganá-lo de vez em quando, quase como se ele fosse um menino,
convencê-lo de que precisa fazer o oposto do que deseja fazer naquele
momento. Mas e se o López… Inútil esquentar a cabeça, não há elementos
para a menor hipótese, e além disso essa calma está esquisita, esse bem-
estar deitado de costas como se tudo estivesse em ordem, como se tudo
estivesse acontecendo (quase pensei “se consumando”, teria sido idiota) de
acordo com os planos. Deve ser a febre ou o cansaço, será que vão liquidar
todos nós como sapos antes do amanhecer? Mas agora vale a pena tirar
proveito desse respiro absurdo, deixar-se levar olhando o desenho formado
pelos galhos da árvore contra o céu mais claro, com algumas estrelas,
acompanhando de olhos entreabertos esse desenho casual dos ramos e das
folhas, esses ritmos que se encontram, se encavalam e se separam, e às
vezes se alteram de leve quando uma lufada de ar fervente passa por cima
das copas, vindo do pântano. Penso em meu filho, mas ele está longe, a
milhares de quilômetros, num país onde as pessoas ainda dormem em
camas, e sua imagem me parece irreal, se desfia e se perde entre as folhas
da árvore, e por outro lado me faz tão bem recordar um tema de Mozart que
me acompanha desde sempre, o movimento inicial do quarteto A caça, a
evocação do halali na mansa voz dos violinos, essa transposição de uma
cerimônia selvagem para um claro gozo pensativo. Penso, respiro, cantarolo
o movimento na memória, e sinto ao mesmo tempo como a melodia e o
desenho da copa da árvore contra o céu vão se aproximando, travam
amizade, se experimentam uma e outra vez até que o desenho se organiza
de repente na presença visível da melodia, um ritmo que sai de um galho
baixo, quase à altura de minha cabeça, sobe até certa altura e se abre como
um leque de talos, enquanto o segundo violino é esse galho mais fino que se
justapõe para confundir suas folhas num ponto situado à direita, lá pelo
final da frase, e deixá-la chegar ao fim para que o olho desça pelo tronco e
possa, se quiser, repetir a melodia. E tudo isso é também nossa rebelião,
isso que estamos fazendo mesmo que Mozart e a árvore não tenham como
saber disso, também nós à nossa maneira quisemos transpor uma guerra
infame para uma ordem que lhe dê sentido, que a justifique e em última
instância a conduza a uma vitória que seja como a restituição de uma
melodia depois de tantos anos de ásperos cornos de caça, que seja esse
allegro final que se sucede ao adágio como um encontro com a luz. Como
Luis se divertiria se soubesse que neste momento o comparo a Mozart,
vendo-o organizar pouco a pouco essa insensatez, elevá-la até sua razão
primordial, que aniquila com sua evidência e sua desmedida todas as
prudentes razões temporais. Mas que amarga, que desesperada tarefa a de
ser um músico de homens, por sobre o barro e a metralha e o desalento
urdir esse canto que imaginávamos impossível, o canto que vem travar
amizade com a copa das árvores, com a terra devolvida a seus filhos. Sim, é
a febre. E como Luis haveria de rir, embora pelo que me consta ele também
goste de Mozart.
E assim acabarei adormecendo, mas não sem antes conseguir perguntar a
mim mesmo se algum dia saberemos passar do movimento onde ainda
ressoa o halali do caçador à conquistada plenitude do adágio e dali para o
allegro final, que cantarolo para mim mesmo num fio de voz, se seremos
capazes de chegar à reconciliação com tudo o que ainda estiver vivo diante
de nós. Teríamos que ser como Luis, em lugar de segui-lo teríamos que ser
como ele, deixar inapelavelmente para trás o ódio e a vingança, olhar para o
inimigo como Luis olha para o inimigo, com uma implacável
magnanimidade que tantas vezes suscitou em minha memória (mas como
dizer isso a alguém?) uma imagem de pantocrator, um juiz que começa por
ser o acusado e a testemunha e que não julga, que simplesmente separa as
terras das águas para que no fim, algum dia, nasça uma pátria de homens
num amanhecer trêmulo, às margens de um tempo mais limpo.
Mas não mais adágio, e sim com a primeira luz eles caíram em cima de nós
por todos os lados, e foi preciso renunciar a continuar avançando para
nordeste e entrar por uma área pouco conhecida, gastando o que restava de
munição enquanto o Tenente, ao lado de um companheiro, crescia em força
numa colina e dali segurava um pouco o adversário, dando tempo a Roberto
e a mim de carregar Tinti ferido numa das coxas em busca de outro ponto
mais protegido onde pudéssemos resistir até a noite. À noite eles nunca
atacavam, mesmo munidos de sinalizadores e equipamentos elétricos, eram
tomados por uma espécie de pavor de sentir-se menos protegidos pela
quantidade e o esbanjamento de armas; mas ainda faltava quase o dia
inteiro para chegar a noite e éramos apenas cinco contra aqueles rapazes tão
valentes que nos perseguiam para fazer boa figura com o babuíno, sem
contar os aviões que a todo momento atacavam as clareiras da floresta e
estragavam um monte de palmeiras com suas rajadas.
Meia hora depois o Tenente cessou fogo e pôde reunir-se a nós, que íamos
só um pouco à frente. Como ninguém pensava em abandonar Tinti, porque
sabíamos muito bem qual era o destino dos prisioneiros, pensamos que ali,
naquela ladeira e naqueles matagais, iríamos queimar nossos últimos
cartuchos. Foi divertido constatar que os soldados atacavam não o ponto
onde estávamos, mas uma elevação bem mais a leste, enganados por um
erro da aviação, e na mesma hora tocamos morro acima por uma trilha dos
demônios, até chegar, em duas horas, a uma elevação quase inteiramente
despojada de vegetação, na qual um companheiro teve a sorte de descobrir
uma caverna encoberta pela relva, onde nos instalamos resfolegantes depois
de calcular uma possível retirada diretamente no rumo norte, de penhasco
em penhasco, perigosa mas no rumo norte, no rumo da Sierra onde, se tudo
desse certo, Luis já teria chegado.
Enquanto eu fazia um curativo em Tinti desmaiado, o Tenente me disse
que pouco antes do ataque da tropa ouvira, ao amanhecer, uma descarga de
armas automáticas e de pistolas na direção do poente. Podia ser Pablo com
seus rapazes, ou quem sabe o próprio Luis. Tínhamos a razoável convicção
de que nós, os sobreviventes, estávamos divididos em três grupos, e quem
sabe o de Pablo não estivesse tão longe. O Tenente me perguntou se não
valeria a pena tentar um contato ao cair da noite.
— Se você me faz essa pergunta é porque está se oferecendo para ir —
falei. Havíamos acomodado Tinti numa cama de relva seca, na parte mais
fresca da caverna, e fumávamos enquanto descansávamos. Os outros dois
companheiros montavam guarda do lado de fora.
— É o que você imagina — disse o Tenente, me olhando com ar maroto.
— Eu adoro esses passeios, garoto.
Prosseguimos assim durante algum tempo, trocando brincadeiras com
Tinti, que começava a delirar, e quando o Tenente estava prestes a partir
entrou Roberto com um serrano e um quarto de cabrito assado. Não
conseguíamos acreditar, comemos como quem come um fantasma, até Tinti
deu umas mordidinhas num pedaço que escapou dele duas horas depois,
junto com a vida. O serrano vinha com a notícia da morte de Luis; nem por
isso deixamos de comer, mas era muito sal para tão pouca carne: ele mesmo
não vira Luis ser morto, embora o filho mais velho, que também havia se
juntado a nós trazendo uma velha escopeta de caça, fizesse parte do grupo
que ajudara Luis e mais cinco companheiros a vadear um rio embaixo de
fogo, e tinha certeza de que Luis fora ferido quase ao sair da água e antes de
poder chegar às primeiras árvores. Os serranos haviam escalado o morro,
que conheciam como ninguém, trazendo junto com eles dois dos homens do
grupo de Luis, que chegariam à noite com as armas que restavam e alguma
munição.
O Tenente acendeu outro charuto e saiu para organizar o acampamento e
conhecer melhor os novatos; eu fiquei junto de Tinti, que definhava
lentamente, quase sem dor. Ou seja, Luis havia morrido, o cabrito estava de
lamber os beiços, naquela noite seríamos nove ou dez homens e teríamos
munição para continuar lutando. Quanta novidade. Era como uma espécie
de loucura fria que por um lado reforçava o presente com homens e
alimentos, mas tudo isso para apagar o futuro com um golpe de mão, o
motivo daquela insensatez que acabava de culminar com uma notícia e um
sabor de cabrito assado. No escuro da caverna, fazendo meu charuto durar,
senti que naquele momento não podia me dar ao luxo de aceitar a morte de
Luis, que só teria condições de lidar com ela como mais um dado no plano
de campanha, porque se Pablo também tivesse morrido o chefe era eu, por
determinação de Luis, e isso o Tenente e todos os companheiros sabiam, e
não era possível fazer outra coisa senão assumir o comando e chegar à
Sierra e continuar em frente como se nada tivesse acontecido. Acho que
fechei os olhos, e a lembrança de minha visão foi outra vez a visão
propriamente dita, e por um segundo tive a sensação de que Luis se
separava de seu rosto e o estendia para mim, enquanto eu protegia meu
rosto com as duas mãos, dizendo: “Não, não, por favor, não, Luis”, e
quando abri os olhos o Tenente estava de volta, olhando para Tinti que
respirava em estertores, e o ouvi dizer que dois rapazes da mata acabavam
de unir-se a nós, uma boa notícia depois da outra, munição e batata-doce
frita, estojo de remédios, a tropa perdida nas colinas a leste, uma fonte
estupenda a cinquenta metros. Mas ele não me olhava nos olhos, mascava o
charuto e parecia esperar que eu dissesse alguma coisa, que fosse eu o
primeiro a voltar a mencionar Luis.
Depois há uma espécie de vazio confuso, o sangue escorreu de Tinti e ele
de nós, os serranos se ofereceram para enterrá-lo, eu fiquei na caverna
descansando embora a caverna cheirasse a vômito e a suor frio, e
estranhamente comecei a pensar em meu melhor amigo de outros tempos,
de antes desse corte em minha vida que me arrancara de meu país para me
projetar a milhares de quilômetros de distância, para Luis, para o
desembarque na ilha, para aquela caverna. Calculando a diferença de
horário, imaginei que naquele momento, quarta-feira, ele estaria chegando a
seu consultório, pendurando o chapéu no cabide, dando uma olhada na
correspondência. Não se tratava de alucinação, bastava eu pensar naqueles
anos em que havíamos vivido tão perto um do outro na cidade, partilhando
a política, as mulheres e os livros, encontrando-nos diariamente no hospital;
cada um dos gestos dele me era tão familiar, e aqueles gestos não eram
apenas os dele, abarcavam todo o meu mundo da época, a mim mesmo, a
minha mulher, a meu pai, abarcavam meu jornal com seus editoriais
exagerados, meu café ao meio-dia com os médicos de plantão, minhas
leituras e meus filmes e meus ideais. Me perguntei o que meu amigo estaria
pensando daquilo tudo, de Luis ou de mim, e foi como se visse a resposta
delinear-se no rosto dele (mas nesse caso era a febre, seria preciso tomar
quinino), um rosto à vontade consigo mesmo, empachado pela boa vida e as
boas edições e a eficácia do bisturi qualificado. Não era preciso nem mesmo
que ele abrisse a boca para me dizer eu acho que essa sua revolução não
passa de… Não era absolutamente necessário, precisava ser assim, aquelas
pessoas não podiam aceitar uma transformação que deixava a descoberto as
verdadeiras razões de sua misericórdia fácil e com hora certa, de sua
caridade regulamentada e a prestação, de sua bonomia entre iguais, de seu
antirracismo de salão, mas como é possível a menina se casar com aquele
mulato, tchê, de seu catolicismo com dividendos anuais e efemérides nas
praças embandeiradas, de sua literatura de tapioca, de seu folclorismo em
exemplares numerados e de sua cuia com virola de prata, de suas reuniões
de chanceleres genuflexos, de sua estúpida agonia inevitável a curto ou a
longo prazo (quinino, quinino, e outra vez a asma). Pobre amigo, me dava
pena imaginá-lo defendendo como um idiota justamente os falsos valores
que iam dar cabo dele ou, na melhor das hipóteses, dos filhos dele;
defendendo o direito feudal à propriedade e à riqueza ilimitadas, ele que
não possuía mais que seu consultório e uma casa bem-posta, defendendo os
princípios da Igreja quando o catolicismo burguês de sua mulher só servira
para obrigá-lo a procurar consolo nas amantes, defendendo uma suposta
liberdade individual quando a polícia fechava as universidades e censurava
as publicações, e defendendo, por medo, por horror à mudança, pelo
ceticismo e pela desconfiança que eram os únicos deuses vivos em seu
pobre país perdido. E nisso estava quando entrou o Tenente às carreiras
gritando que Luis estava vivo, que acabavam de entrar em contato com o
norte, que Luis estava mais vivo que a porra de sei lá o quê, que havia
chegado ao alto da Sierra com cinquenta guajiros e todas as armas que
haviam tomado de um batalhão de soldados emboscado numa baixada, e
nos abraçamos como dois idiotas e dissemos aquelas coisas que depois, por
muito tempo, dão raiva e vergonha e perfume, porque aquilo e comer
cabrito assado e tocar em frente era a única coisa que fazia sentido, a única
coisa que contava e crescia enquanto não criávamos coragem de olhar-nos
nos olhos e acendíamos charutos com o mesmo tição, de olhos cravados
atentamente no tição e secando as lágrimas que a fumaça nos forçava a
derramar, condizentemente com suas conhecidas propriedades
lacrimogêneas.
Não há mais grande coisa a contar; de manhãzinha um de nossos serranos
conduziu o Tenente e Roberto até onde estavam Pablo e os três
companheiros, e o Tenente carregou Pablo no colo porque os pés dele
estavam destruídos pelo pantanal. Já éramos vinte, lembro-me de Pablo me
abraçando com seu jeito rápido e expeditivo e me dizendo sem tirar o
cigarro da boca: “Se Luis está vivo ainda podemos vencer”, e eu enrolando
seus pés em ataduras com a maior competência, e os rapazes gozando da
cara dele porque parecia que ele estava estreando sapatos brancos e falando
que ele ia levar uma bronca do irmão por causa daquele luxo
despropositado. “Que venha a bronca!”, brincava Pablo, fumando como um
louco, “para dar uma bronca em alguém é preciso estar vivo, companheiro,
e você já está sabendo que ele está vivo, vivinho da silva, mais vivo que um
crocodilo, e vamos lá para cima agora mesmo, olha só essas ataduras, que
luxo…” Mas não podia durar, com o sol veio o chumbo do alto e de baixo,
com isso recebi um tiro na orelha que, se acerta dois centímetros mais perto,
você, filho, que talvez um dia leia isso tudo, ficaria sem saber as encrencas
em que seu velho andou se metendo. Com o sangue e a dor e o susto, as
coisas ficaram estereoscópicas para mim, as imagens secas e em relevo,
com um colorido que devia ser minha vontade de viver, e fora isso não
havia problema comigo, um lenço bem amarrado e dá-lhe subir; para trás,
porém, ficaram os serranos, e o subordinado de Pablo com a fuça
transformada em peneira por uma bala calibre quarenta e cinco. Nessas
horas tem besteiras que grudam em você para sempre; me lembro de um
gordo, acho que também do grupo de Pablo, que no pior da refrega queria
se proteger atrás de um pé de cana, ficava de perfil, se ajoelhava atrás do pé
de cana, e principalmente me lembro daquele que começou a gritar que
queria se render, e da voz que respondeu a seus gritos entre duas rajadas de
Thompson, a voz do Tenente, um rugido por cima dos tiros, um “Aqui
ninguém se rende, caralho!”, até que o menorzinho dos serranos, tão calado
e tímido até aquele momento, me avisou que havia uma trilha a cem metros
dali, uma trilha que entrava à esquerda e que subia, e eu gritei a informação
para o Tenente e disparei na frente com os serranos atrás atirando feito uns
demônios, em pleno batismo de fogo e apreciando tanto que dava gosto ver,
e no fim fomos nos reunindo ao lado de um ceibo, que era onde começava a
trilha, e o serraninho enveredou pela trilha e nós atrás, eu com uma asma
que não me deixava andar e o pescoço mais ensanguentado que um porco
degolado, mas certo de que naquele dia também conseguiríamos escapar e,
não sei por quê, mas para mim era evidente como um teorema que naquela
mesma noite nos reuniríamos a Luis.
A gente nunca entende como teve a capacidade de deixar os perseguidores
para trás, pouco a pouco o fogo vai rareando, ouvem-se as arquissabidas
imprecações e “covardes, estão fugindo da briga”, e então de repente o
silêncio, as árvores que tornam a aparecer como coisas vivas e amigas, os
acidentes do terreno, os feridos de quem é preciso cuidar, o cantil de água
com um pouco de rum passando de boca em boca, os suspiros, um ou outro
gemido, o descanso e o charuto, seguir em frente, subir o tempo todo nem
que meus pulmões saiam pelas orelhas, e Pablo me dizendo, cara, esses que
você fez são quarenta e dois e eu calço quarenta e três, compadre, e as
risadas, o topo do morro, a cabaninha onde um paisano apareceu com um
pouco de mandioca com molho e água bem fresca, e Roberto, perseverante
e consciencioso, puxando seus quatro pesos para pagar o gasto, e todo
mundo, a começar pelo paisano, rindo até cair, e o meio-dia convidando
para aquela sesta que era preciso repelir como se deixássemos partir uma
moça linda, olhando suas pernas enquanto desse para ver.
Quando anoiteceu, a trilha empinou e ficou mais árdua, e a gente gostando
demais, pensando na posição escolhida por Luis para nos esperar, por ali
não subiria nem um cervo. “Quando a gente chegar lá em cima vai ser como
se estivéssemos na igreja”, dizia Pablo a meu lado, “já temos até o órgão”, e
olhava para mim com ar de gozação enquanto eu bufava uma espécie de
passacaglia da qual só ele achava graça. Não me lembro muito bem
daquelas horas, estava anoitecendo quando chegamos ao último sentinela e
passamos um depois do outro, identificando-nos e assumindo a
responsabilidade pelos serranos, até finalmente sair numa clareira entre as
árvores onde estava Luis, apoiado num tronco, naturalmente com seu boné
de viseira interminável e de charuto na boca. Foi um enorme sacrifício ficar
para trás, deixar Pablo correr e abraçar o irmão, depois esperei que o
Tenente e os outros também avançassem para abraçá-lo, e aí larguei a
maleta e o Springfield no chão e de mãos nos bolsos me aproximei e fiquei
olhando para ele, sabendo o que ele ia me dizer, a brincadeira de sempre:
— Que coragem, usar esses anteojos… — disse Luis.
— E você esses espejuelos! — respondi, e nos dobramos de rir, e o queixo
dele contra meu rosto fez doer pra caralho o tiro que eu havia levado, mas
era uma dor que eu teria gostado de prolongar até o outro lado da vida.
— Então você chegou, tchê — disse Luis.
Claro que ele não sabia dizer “tchê” direito.
— Qué tu crees? — respondi, também desajeitado. E de novo nos
dobramos de rir feito uns idiotas, e meio mundo ria sem saber por quê.
Trouxeram água e as notícias, fizemos um círculo olhando para Luis, e só
então nos demos conta de como ele havia emagrecido e de como brilhavam
seus olhos por trás da porra dos espejuelos.
Mais embaixo a luta recomeçava, mas o acampamento estava
temporariamente protegido. Pudemos atender os feridos, tomar banho na
fonte, dormir, principalmente dormir, até mesmo Pablo, que tanto queria
falar com o irmão. Mas como a asma é minha amante e me ensinou a tirar
proveito da noite, fiquei com Luis, apoiado no tronco de uma árvore,
fumando e olhando os desenhos das folhas contra o céu, contando um para
o outro a intervalos o que havia acontecido conosco a partir do momento do
desembarque, mas falamos principalmente do futuro, do que ia começar
quando chegasse o dia em que tivéssemos que passar do fuzil ao escritório
com telefones, da sierra à cidade, e me lembrei dos cornos de caça, e quase
conto a Luis o que havia pensado naquela noite, só para fazê-lo rir. No fim
não falei nada, mas sentia que estávamos entrando no adágio do quarteto,
numa precária plenitude de poucas horas que ao mesmo tempo era uma
certeza, um signo que não esqueceríamos. Quantos cornos de caça ainda
estavam à espera, quantos de nós entregariam os ossos como Roque, como
Tinti, como o Peruano. Mas bastava olhar para a copa da árvore para sentir
que a determinação organizava outra vez seu caos, impunha-lhe o desenho
do adágio que em algum momento desembocaria no allegro final,
ingressaria numa realidade digna desse nome. E enquanto Luis ia me pondo
a par das notícias internacionais e do que estava acontecendo na capital e
nas províncias, eu via como as folhas e os galhos se dobravam pouco a
pouco a meu desejo, eram minha melodia, a melodia de Luis, que
continuava falando, alheio a minhas fantasias, e depois vi aparecer uma
estrela no centro do desenho, e era uma estrela pequena e muito azul, e
mesmo não entendendo coisa nenhuma de astronomia e sendo incapaz de
dizer se aquilo era uma estrela ou um planeta, senti-me absolutamente
seguro de que não se tratava de Marte nem de Mercúrio, ela brilhava
demais no centro do adágio, demais no centro das palavras de Luis para que
alguém pudesse confundi-la com Marte ou com Mercúrio.
A senhorita Cora
We’ll send your love to college, all for a year or two
And then perhaps in time the boy will do for you.
“The Trees that Grow So High”
(canção folclórica inglesa)
N
ão entendo por que não me deixam passar a noite no hospital com
o neném, ao fim e ao cabo sou mãe dele, e o dr. De Luisi nos
recomendou pessoalmente ao diretor. Poderiam trazer um sofá-
cama e eu ficaria com ele para que vá se acostumando, chegou tão
pálido, coitadinho, como se fossem operá-lo em seguida, acho que é esse
cheiro de hospital, o pai dele também estava nervoso e não via a hora de ir
embora, mas eu tinha certeza de que iam me deixar ficar com o neném.
Afinal ele tem só quinze anos e ninguém diria, sempre grudado em mim,
apesar de que agora, de calça comprida, fique querendo disfarçar e se fazer
de homem adulto. Ele deve ter ficado muito impressionado quando se deu
conta de que não estavam me deixando ficar, menos mal que o pai
conversou com ele, mandou-o vestir o pijama e se deitar na cama. E tudo
por causa daquela pirralha da enfermeira, me pergunto se ela de fato tem
ordens dos médicos ou se faz as coisas de pura maldade. Mas bem que eu
falei, bem que perguntei se ela tinha certeza de que eu precisava ir embora.
Basta olhar para ela para perceber quem é, com aqueles ares de vampira e
aquela bata ajustada, uma porcaria de uma menina que acha que é a diretora
do hospital. Mas a verdade é que não deixei de graça para ela, falei o que eu
estava achando, e isso que o neném não sabia onde se enfiar de vergonha e
o pai fazendo ares de desentendido, e para completar tenho certeza de que
ele estava olhando para as pernas dela, como de costume. A única coisa que
me consola é que o ambiente é bom, dá para perceber que é um hospital
para gente endinheirada; o neném tem uma lâmpada de cabeceira lindona
para ler suas revistas, e por sorte o pai se lembrou de trazer balas de hortelã,
que são as preferidas dele. Mas amanhã de manhã, juro, a primeira coisa
que eu faço é falar com o dr. De Luisi para que ele ponha aquela pirralha
metida a besta no lugar. Precisa ver se o neném vai ficar bem agasalhado
com o cobertor, por via das dúvidas vou pedir que deixem outro à mão. Mas
sim, claro que estou agasalhado, ainda bem que foram embora, mamãe acha
que eu sou um menino e me faz fazer cada papelão. É lógico que a
enfermeira vai achar que não sou capaz de pedir por mim mesmo o que
preciso, me olhou de um jeito quando mamãe começou a reclamar… Está
bem, se ela não pode ficar comigo o que é que se vai fazer, tenho a
impressão de que já estou bem grandinho para passar a noite sozinho. E
nesta cama deve-se dormir bem, a esta hora já não se ouve nenhum barulho,
às vezes ao longe o zumbido do elevador, que me faz lembrar daquele filme
de terror que também se passava num hospital, à meia-noite a porta ia se
abrindo devagarinho e a mulher paralítica que estava na cama via o homem
da máscara branca entrar…
A enfermeira é bem simpática, voltou às seis e meia com uns papéis e
ficou perguntando meu nome completo, idade, essas coisas. Eu guardei a
revista na mesma hora porque seria melhor que eu estivesse lendo um livro
de verdade e não uma fotonovela, e acho que ela percebeu mas não falou
nada, com toda a certeza ainda estava zangada pelas coisas que mamãe
falou, decerto achando que eu era igual a ela e que ia sair dando ordens ou
algo assim. Perguntou se meu apêndice estava doendo, falei que não, que
esta noite estava me sentindo muito bem. “Vamos ver o pulso”, ela disse, e
depois de medir meu pulso anotou mais alguma coisa na planilha, que
pendurou no pé da cama. “Fome?”, ela perguntou, e acho que fiquei
vermelho porque me surpreendeu o jeito como ela falou comigo, como se
me conhecesse, ela é tão jovem que fiquei impressionado. Eu disse que não,
mesmo sendo mentira, porque nessa hora eu sempre sinto fome. “Esta noite
você vai fazer uma refeição bem leve”, ela disse, e quando me dei conta ela
já havia confiscado o pacote de balas de hortelã e estava saindo. Não sei se
comecei a dizer alguma coisa, acho que não. Me dava uma raiva ela fazer
aquilo comigo como se eu fosse criança, era só me dizer que não era para
eu comer balas, mas confiscar… Com certeza tinha ficado furiosa com o
assunto da mamãe e estava descontando em mim, de puro ressentimento;
sei lá, depois que ela saiu minha irritação desapareceu de repente, eu queria
continuar com raiva dela mas não conseguia. Que jovem ela é, aposto que
não tem nem dezenove anos, deve ter se formado em enfermagem há
pouquíssimo tempo. Quem sabe vem me trazer o jantar; vou perguntar o
nome dela, se vai ser minha enfermeira preciso que ela tenha um nome. Só
que apareceu outra, uma senhora muito amável vestida de azul que me
trouxe um caldo e biscoitos e me fez tomar uns comprimidos verdes. Ela
também perguntou meu nome e como eu estava me sentindo, e me disse que
neste quarto eu ia dormir tranquilo porque era um dos melhores do hospital,
e é verdade, porque dormi até quase oito horas, até ser acordado por uma
enfermeira miudinha e enrugada como um macaco mas muito amável, que
me disse que eu podia me levantar e me lavar mas antes me entregou um
termômetro e me disse para colocá-lo como fazem nesses hospitais, e eu
não entendi porque lá em casa é debaixo do braço que se põe, aí ela me
explicou e saiu. Pouco depois chegou mamãe e que alegria encontrar você
tão bem, eu que estava com medo de que ele tivesse passado a noite em
claro, coitadinho do meu querido, mas criança é assim, dão o maior trabalho
em casa e depois dormem como anjinhos mesmo estando longe da mamãe
que não pregou o olho, coitada. O dr. De Luisi entrou para dar uma olhada
no neném e eu saí por um momento porque ele já está grandinho, e eu teria
adorado encontrar a enfermeira de ontem para olhar bem na cara dela e
botá-la em seu lugar simplesmente olhando para ela de cima a baixo, mas
não havia ninguém no corredor. Pouco depois saiu o dr. De Luisi e me disse
que iam operar o neném na manhã seguinte, que ele estava muito bem e nas
melhores condições para a cirurgia, na idade dele uma apendicite é besteira.
Agradeci muito e aproveitei para dizer a ele que a impertinência da
enfermeira da tarde havia chamado minha atenção, que só estava falando
porque não queria que meu filho deixasse de receber a atenção necessária.
Depois entrei no quarto para fazer companhia ao neném que estava lendo
suas revistas e já sabia que ia ser operado no dia seguinte. Como se fosse o
fim do mundo, a coitada me olha de um jeito, mas eu não vou morrer,
mamãe, faça-me o favor. Cacho operou o apêndice no hospital e seis dias
depois já estava querendo jogar futebol. Pode ir embora tranquila que eu
estou muito bem e não me falta nada. Isso, mamãe, isso, dez minutos
querendo saber se me dói aqui ou ali, ainda bem que ela precisa tomar conta
da minha irmã lá em casa, no fim foi embora e eu pude terminar a
fotonovela que havia começado ontem à noite.
A enfermeira da tarde se chama srta. Cora, perguntei à enfermeira
miudinha quando ela veio me trazer o almoço; me deram bem pouca
comida, e de novo comprimidos verdes e umas gotas com gosto de hortelã;
acho que as gotas são para dormir, porque as revistas caíam da minha mão e
de repente eu estava sonhando com a escola e que íamos a um piquenique
com as meninas do normal como no ano passado e dançávamos à beira da
piscina, muito divertido. Acordei lá pelas quatro e meia e comecei a pensar
na cirurgia, não que esteja com medo, o dr. De Luisi disse que não é nada,
mas deve ser estranho tomar anestesia e te cortarem enquanto você dorme,
Cacho dizia que o pior é acordar, que dói muito e que você pode vomitar e
ter febre. O menininho da mamãe não está mais tão valente quanto estava
ontem, dá para perceber pelo jeito dele que está com um pouco de medo, é
tão menino que quase fico com pena. Deu um pulo e se sentou na cama
quando me viu entrar e escondeu a revista debaixo do travesseiro. O quarto
estava um pouco frio e fui aumentar a calefação, depois peguei o
termômetro e entreguei a ele. “Você sabe pôr?”, perguntei, e as bochechas
dele ficaram tão vermelhas que parecia que iam estourar. Fez que sim com a
cabeça e se estendeu na cama enquanto eu baixava as persianas e acendia a
lâmpada. Quando me aproximei para que me devolvesse o termômetro,
continuava tão vermelho que quase soltei uma risada, mas com os garotos
dessa idade sempre acontece isso, eles têm dificuldade para se acostumar
com essas coisas. E para piorar ela fica me encarando, por que não consigo
aguentar seu olhar se no fim das contas ela é só uma mulher, quando tirei o
termômetro de debaixo das cobertas e lhe entreguei, ela estava olhando para
mim e acho que com um sorrisinho, deve perceber como eu fico vermelho,
é uma coisa que não consigo evitar, é mais forte que eu. Depois anotou a
temperatura no papel pendurado no pé da cama e saiu sem falar nada.
Quase não consigo mais me lembrar do que falei com papai e mamãe
quando eles vieram me visitar às seis horas. Ficaram pouco porque a srta.
Cora disse a eles que era preciso fazer meu preparo e que era melhor eu
ficar bem tranquilo na noite anterior. Achei que mamãe ia soltar uma das
suas, mas depois ela simplesmente olhou para a srta. Cora de cima a baixo,
e papai também, mas eu conheço os olhares do velho, é uma coisa muito
diferente. Bem na hora em que ela estava saindo, ouvi mamãe dizer à srta.
Cora: “Vou lhe pedir que cuide bem dele, é um menino que sempre esteve
muito cercado pela família”, ou alguma idiotice do tipo, e me deu vontade
de morrer de ódio, nem cheguei a escutar o que a srta. Cora respondeu, mas
tenho certeza de que não gostou, vai ver que está achando que fiz alguma
reclamação dela ou algo assim.
Voltou lá pelas seis e meia com uma mesinha dessas de rodas, cheia de
vidros e algodões, e não sei por que de repente fiquei com um pouco de
medo, na verdade não era medo mas comecei a olhar as coisas da mesinha,
todo tipo de vidro, azuis ou vermelhos, recipientes com gaze e também
pinças e tubos de borracha, o coitado devia estar começando a ficar
assustado sem mamãe por perto, mamãe que parece um papagaio
endomingado, vou lhe pedir que cuide bem do menino, olhe que já falei
com o dr. De Luisi, mas claro, senhora, vamos cuidar dele como se ele fosse
um príncipe. Seu menino é bonito, senhora, com essas bochechas que ficam
coradas assim que ele me vê entrar. Quando puxei suas cobertas, ele fez um
gesto que dava a impressão de que queria se cobrir outra vez, e acho que
percebeu que eu estava achando graça de tanto pudor. “Vamos ver, baixe a
calça do pijama”, falei sem encará-lo. “A calça?”, perguntou, com uma voz
que quebrou e desafinou. “É, claro, a calça”, repeti, e ele começou a
desamarrar a cordinha da cintura e a se desabotoar com uns dedos que não
obedeciam. Eu mesma tive que baixar a calça dele até a metade das coxas, e
ele era como eu havia imaginado. “Você já está crescidinho”, falei,
preparando o pincel e o sabão, embora na verdade pouco houvesse a raspar.
“Como é que te chamam em casa?”, perguntei enquanto o ensaboava. “Meu
nome é Pablo”, ele respondeu, numa voz que dava pena, de tanta vergonha.
“Mas você deve ter algum apelido”, insisti, e foi ainda pior porque tive a
sensação de que ele ia começar a chorar enquanto eu raspava os poucos
pelinhos que encontrei. “Quer dizer então que você não tem nenhum
apelido? É só o neném, claro.” Acabei de raspá-lo e fiz um sinal para que se
cobrisse, mas ele se adiantou e num segundo estava coberto até o pescoço.
“Pablo é um nome bonito”, falei, para consolá-lo um pouco; quase me dava
pena vê-lo tão envergonhado, era a primeira vez que eu atendia um
rapazinho tão jovem e tão tímido, mas algo nele continuava me irritando,
vai ver que vinha da mãe, algo mais forte que a idade dele, uma coisa de
que eu não gostava, e até me incomodava ele ser tão bonito e tão bem-feito
para sua idade, um pirralho que já devia se achar um homem e que na
primeira oportunidade seria capaz de me passar uma cantada.
Fiquei de olhos fechados, era o único jeito de escapar um pouco daquilo
tudo, mas não adiantou nada porque justo naquele momento ela continuou:
“Quer dizer então que você não tem nenhum apelido? Você é só o neném,
claro”, e eu fiquei com vontade de morrer, ou de agarrá-la pela garganta e
estrangulá-la, e quando abri os olhos vi seu cabelo castanho quase
encostando no meu rosto porque ela havia se abaixado para limpar um resto
de sabão, e o cabelo tinha cheiro de xampu de amêndoa como o que a
professora de desenho usa, ou de algum desses perfumes, e fiquei sem saber
o que dizer e a única coisa que me veio à cabeça foi perguntar: “Seu nome é
Cora, não é mesmo?”. Ela me olhou com ar de troça, com aqueles olhos que
já me conheciam e que haviam me visto de tudo quanto é lado, e disse:
“Senhorita Cora”. Falou isso para me castigar, eu sei, assim como antes
dissera: “Você já está crescidinho”, só para gozar da minha cara. Embora
me desse raiva aquilo de ficar com o rosto vermelho, uma coisa que nunca
consigo disfarçar e que é o pior que pode me acontecer, mesmo assim
consegui dizer: “A senhora é tão jovem que… Bom, Cora é um nome muito
bonito”. Não era isso que eu queria lhe dizer, era outra coisa, e tenho a
impressão de que ela percebeu e ficou incomodada, agora tenho certeza de
que ela está ressentida por causa de mamãe, eu só estava querendo dizer
que ela era tão jovem que eu gostaria de poder chamá-la de Cora, só Cora,
sem o senhorita, mas como ia lhe dizer isso naquele momento em que ela
havia ficado brava e já ia saindo com a mesinha de rodas e eu com uma
vontade de chorar, essa é outra coisa que não consigo evitar, de repente
minha voz desafina e vejo tudo nublado, exatamente quando teria
necessidade de estar mais calmo para dizer o que estou pensando. Ela ia
sair, mas quando chegou à porta ficou parada um momento como se
quisesse verificar se havia esquecido alguma coisa, e eu querendo dizer a
ela o que estava pensando mas sem encontrar as palavras, e a única coisa
que me ocorreu foi apontar a xícara com o sabão, ele havia se sentado na
cama e depois de um pigarro disse: “A senhora está se esquecendo da xícara
com o sabão”, muito sério e com um tom de homem adulto. Voltei para
buscar a xícara e um pouco para que ele se acalmasse passei a mão pelo
rosto dele. “Não se preocupe, Pablito”, falei. “Tudo vai dar certo, é uma
cirurgia de nada.” Quando eu o toquei ele inclinou a cabeça para trás como
se estivesse ofendido, depois deslizou o corpo até esconder a boca na borda
das cobertas. Dali, com voz abafada, perguntou: “Posso chamar você de
Cora, não posso?”. Sou boa demais, quase fiquei com pena quando vi tanta
vergonha tentando, ao mesmo tempo, revidar, mas sabia que não era o caso
de ceder porque depois teria dificuldade para dominá-lo, e quando você não
consegue dominar um doente acontece o de sempre, as encrencas de María
Luísa no quarto 14 ou as broncas do dr. De Luisi, que tem um olfato de
perdigueiro para esse tipo de coisa. “Senhorita Cora”, ela me disse,
apanhando a xícara e saindo. Me deu uma raiva, uma vontade de bater nela,
de saltar da cama e derrubá-la a empurrões, ou de… Não consigo nem
entender como foi que consegui dizer: “Se eu estivesse bem de saúde, acho
que a senhora ia me tratar de outra maneira”. Ela fingiu que não tinha
ouvido, nem sequer virou a cabeça, e eu fiquei sozinho, sem vontade de ler,
sem vontade de nada, no fundo teria preferido que ela tivesse ficado brava
para poder pedir desculpas, porque na realidade não era aquilo que eu havia
pensado em lhe dizer, minha garganta estava tão fechada que não sei como
as palavras saíram, havia dito aquilo de pura raiva, mas não era isso, quer
dizer, era, só que de outro jeito.
É verdade, são todos iguais, é só fazer um carinho, dizer uma frase amável
que o machinho entra em cena, não querem reconhecer que ainda são uns
pirralhos. Essa eu preciso contar ao Marcial, ele vai achar a maior graça, e
amanhã com o menino na mesa de operações vai achar mais graça ainda,
tão delicado, coitadinho, com aquela carinha ruborizada, maldito calor que
me sobe pela pele, que será que eu posso fazer para que não me aconteça
isso, quem sabe respirando fundo antes de falar, sei lá. Ela deve ter saído
furiosa, tenho certeza de que ouviu muito bem, não sei como eu fui dizer
aquilo, acho que quando eu perguntei se podia chamá-la de Cora ela não
ficou brava, falou que eu precisava dizer senhorita porque é a obrigação
dela, mas não estava brava, a prova é que veio fazer um carinho no meu
rosto; mas não, isso foi antes, primeiro ela me fez um carinho e depois eu
falei no assunto Cora e estraguei tudo. Agora a gente está pior do que antes
e não vou conseguir dormir nem que me deem um tubo de comprimidos.
Minha barriga dói de vez em quando, é estranho passar a mão e sentir a pele
tão lisa, o pior é que me lembro de tudo de novo e também do perfume de
amêndoa, da voz de Cora, a voz dela é muito séria para uma garota tão
jovem, tão bonita, uma voz que parece de cantora de bolero, uma coisa que
acaricia mesmo estando brava. Quando ouvi passos no corredor me deitei
completamente e fechei os olhos, não queria vê-la, não estava com vontade
de vê-la, era melhor que me deixasse em paz, ouvi quando ela entrou e
acendeu a luz do teto, estava fingindo que dormia como um anjinho, com
uma das mãos cobrindo o rosto, e não abriu os olhos enquanto não cheguei
perto da cama. Quando viu o que eu tinha na mão ficou tão vermelho que
me deu pena de novo, também achei um pouco engraçado, realmente ele era
muito idiota. “Vamos ver, filhinho, baixe a calça e vire para o outro lado”, e
o coitado quase esperneando, do jeito que devia fazer com a mãe lá pelos
cinco anos, imagino, dizendo que não vai chorar e se enfiando debaixo das
cobertas para uivar, mas o coitado não podia fazer nada disso agora,
simplesmente ficou de olhos fixos no irrigador e depois em mim, que estava
à espera, e de repente se virou e começou a mexer as mãos debaixo das
cobertas, mas não atinava com coisa nenhuma, enquanto eu pendurava o
irrigador na cabeceira, o único jeito foi descer as cobertas e mandá-lo
erguer um pouco o traseiro para eu puxar melhor a calça e pôr uma toalha
por baixo. “Vamos ver, dobre um pouco as pernas, assim está bem, se vire
mais um pouco de barriga para baixo, estou falando para você se virar mais
um pouco de barriga para baixo, isso.” Tão calado que era quase como se
estivesse gritando, de um lado eu achava graça em estar olhando para o
cuzinho do meu jovem admirador, só que uma vez mais me dava um pouco
de pena dele, era realmente como se eu o estivesse castigando pelo que
havia me dito. “Avise se estiver muito quente”, expliquei, mas ele não
respondeu nada, devia estar mordendo um dos punhos e eu não queria ver
sua cara, por isso me sentei na beira da cama e fiquei esperando ele falar
alguma coisa, mas embora fosse muito líquido ele aguentou até o fim sem
dizer nada, e quando terminou eu falei, e isso sim eu falei para me vingar do
que havia acontecido antes: “Assim que eu gosto, um verdadeiro
homenzinho”, e cobri-o enquanto o aconselhava a se controlar durante o
máximo de tempo possível antes de ir ao banheiro. “Quer que eu apague a
luz ou deixo acesa até você levantar?”, ela perguntou da porta. Não sei
como consegui dizer que dava no mesmo, uma coisa assim, e ouvi o
barulho da porta se fechando e então cobri a cabeça com as cobertas e fazer
o quê, apesar das cólicas mordi as duas mãos e chorei tanto que ninguém,
ninguém é capaz de imaginar o tanto que eu chorei enquanto a amaldiçoava
e insultava e lhe cravava uma faca no peito cinco, dez, vinte vezes,
amaldiçoando-a a cada vez e gozando com o tanto que ela sofria e me
suplicava que eu a perdoasse pelo que havia feito comigo.
É o de sempre, tchê, Suárez, a gente corta e abre e numa dessas tem aquela
surpresa. Claro que com essa idade o garoto tem todas as chances a favor
dele, mas mesmo assim vou ser claro com o pai, não quero correr o risco de
me meter em encrenca. O mais provável é que haja uma reação positiva,
mas ali tem alguma coisa que não funciona direito, pense no que aconteceu
no começo da anestesia: parece mentira, um garoto da idade dele. Fui ver
como ele estava duas horas depois e achei que estava bastante bem, quando
se pensa no tempo que durou a coisa. Quando o dr. De Luisi entrou eu
estava secando a boca do coitado, ele não parava de vomitar e continuava
sob o efeito da anestesia, mas o doutor o auscultou mesmo assim e me
pediu para não sair do lado do garoto enquanto ele não acordasse
completamente. Os pais continuam no outro quarto, dá para perceber que a
boa senhora não está acostumada com essas coisas, de repente ela perdeu a
pose e o pai está que é um trapo. Vamos, Pablito, vomite se tem vontade e
reclame à vontade, estou aqui, isso, claro que estou aqui, o coitado continua
dormindo mas segura minha mão como quem está se afogando. Deve achar
que eu sou a mamãe, todos acham isso, é monótono. Vamos, Pablo, não se
mexa desse jeito, pare quieto senão dói mais, não, deixe as mãos quietas, aí
você não pode pôr a mão. Coitado, está com dificuldade para sair da
anestesia, Marcial me disse que a cirurgia havia sido muito longa. É
estanho, devem ter encontrado alguma complicação: às vezes o apêndice
não está tão à vista, hoje à noite pergunto ao Marcial. Mas claro, filhinho,
estou aqui, reclame à vontade mas não se mexa tanto, vou molhar seus
lábios com este pedacinho de gelo numa gaze, assim a sede vai passando.
Isso, querido, vomite mais, alivie-se o tanto que quiser. Que força você tem
nessas mãos, vou ficar toda roxa, isso, isso, chore se tem vontade, chore,
Pablito, isso alivia, chore e reclame, afinal você está tão adormecido e acha
que sou sua mãe. Você é bem bonito, sabe, com esse nariz um pouco
sardento e essas pestanas como cortinas, parece mais velho, agora que está
tão pálido. Do jeito que você está, nada te faria ficar vermelho, não é
mesmo, meu coitadinho? Está doendo, mamãe, está doendo aqui, me deixe
tirar esse peso que puseram em cima de mim, estou com alguma coisa na
barriga, uma coisa tão pesada, e dói, mamãe, diga para a enfermeira tirar
isso de cima de mim. Claro, filhinho, já vai passar, fique um pouco quieto,
por que você tem essa força toda, vou precisar chamar María Luisa para que
ela me ajude. Vamos, Pablo, vou ficar zangada se você não parar quieto, a
dor vai piorar muito, se você continuar se mexendo desse jeito. Ah, parece
que você está começando a atinar, está doendo aqui, srta. Cora, está doendo
tanto aqui, faça alguma coisa por favor, está doendo tanto aqui, solte minhas
mãos, não aguento mais, srta. Cora, não aguento mais.
Menos mau que ele adormeceu, coitado do meu querido, a enfermeira
veio me chamar às duas e meia e me disse para ficar um pouco com ele, que
já estava melhor, mas estou achando ele tão pálido, deve ter perdido tanto
sangue, menos mau que o dr. De Luisi disse que tudo havia ido bem. A
enfermeira estava cansada de lutar com ele, não entendo por que ela não me
fez entrar antes, aqui o pessoal é muito rigoroso. Já está quase noite e o
neném dormiu o tempo todo, dá para perceber que está esgotado, mas tenho
a impressão de que o aspecto está melhor, que ganhou um pouco de cor.
Ainda geme de vez em quando mas parou de tentar pôr a mão no curativo e
respira tranquilo, acho que vai passar bem a noite. Como se eu não soubesse
o que preciso fazer, mas era inevitável; assim que superou o primeiro susto,
a boa senhora veio de novo com seus desplantes de patroa, por favor, não
quero que falte nada ao neném esta noite, senhorita. E isso que tenho pena
de você, sua velha estúpida, senão você ia ver como eu a tratava. Conheço
esse tipo, acham que com uma boa gorjeta no último dia resolvem tudo. E
às vezes a gorjeta nem é boa, mas para que continuar pensando, ela já se
mandou e está tudo em paz. Marcial, fique mais um pouco, você não vê que
o garoto está dormindo, me conte o que aconteceu esta manhã. Bom, se está
com pressa a gente deixa para depois. Não, lembre que a María Luisa pode
entrar, aqui não, Marcial. Claro, o senhor é muito metido, já falei que não
quero que me beije quando estou trabalhando, não fica bem. Até parece que
a gente não tem a noite inteira para se beijar, seu bobo. Vá embora. Saia,
estou dizendo, senão me zango. Seu bobo, seu jaburu. Isso, querido, até
logo. Claro que sim. Muitíssimo.
Está muito escuro, mas é melhor, não tenho nem vontade de abrir os
olhos. Não está doendo quase nada, que bom ficar assim respirando
devagar, sem aquele enjoo. Tudo está tão quieto, agora me lembro de que vi
mamãe, ela me disse sei lá o quê, eu estava me sentindo tão mal. O velho eu
mal vi, estava parado junto ao pé da cama e piscou o olho para mim,
coitado, não muda. Sinto um pouco de frio, queria outro cobertor. Senhorita
Cora, eu queria outro cobertor. Mas ela estava ali, assim que abri os olhos a
vi sentada ao lado da janela lendo uma revista. Se aproximou na mesma
hora e me cobriu, quase não precisei falar nada porque ela percebeu na
hora. Agora estou me lembrando, acho que hoje à tarde eu ficava achando
que ela era mamãe e ela me acalmava, ou vai ver que foi tudo sonho. Foi
tudo sonho, srta. Cora? A senhora segurava minhas mãos, não é mesmo? Eu
dizia tanta besteira, mas é que estava doendo muito, e o enjoo… Me
desculpe, não deve ser fácil ser enfermeira. É, a senhora ri mas eu sei, vai
ver que sujei a senhora e tudo. Está bem, vou parar de falar. Estou tão bem
assim, já não sinto frio. Não, não está doendo muito, só um pouquinho. Está
tarde, srta. Cora? Shhh, agora fique quietinho, eu já lhe disse que não é para
falar muito, alegre-se por não estar doendo e fique bem quieto. Não, não
está tarde, são só sete horas. Feche os olhos e durma. Isso. Agora durma.
Sim, eu gostaria, mas não é tão fácil. Às vezes tenho a impressão de que
vou adormecer, mas de repente sinto uma fisgada na ferida e tudo gira na
minha cabeça e tenho que abrir os olhos e olhar para ela, ela está sentada ao
lado da janela e acendeu o abajur para ler sem que a luz me incomode. Por
que será que ela passa o tempo todo aqui no quarto? O cabelo dela é lindo,
brilha quando ela mexe a cabeça. E é tão jovem, pensar que hoje achei que
ela era mamãe, inacreditável. Vá saber as coisas que eu falei para ela, ela
deve ter rido de mim de novo. Mas ficava passando gelo na minha boca,
aquilo me dava tanto alívio, agora me lembro, passou água-de-colônia na
minha testa e no meu cabelo e segurava minhas mãos para que eu não
arrancasse o curativo. Já não está zangada comigo, vai ver que mamãe
pediu desculpas ou algo assim, estava me olhando de outro jeito quando me
disse: “Feche os olhos e durma”. Eu gosto que ela me olhe assim, parece
mentira o que aconteceu no primeiro dia, quando ela confiscou minhas
balas. Eu gostaria de lhe dizer que ela é muito linda, que não tenho nada
contra ela, ao contrário, que gosto que seja ela quem cuida de mim à noite e
não a enfermeira miudinha. Eu gostaria que ela passasse água-de-colônia no
meu cabelo de novo. Gostaria que me pedisse desculpas com um sorriso,
que me dissesse que posso chamá-la de Cora.
Passou um bom tempo adormecido, às oito imaginei que o dr. De Luisi
não ia demorar e acordei-o para medir sua temperatura. Estava com melhor
aspecto, dormir lhe fizera bem. Assim que viu o termômetro, tirou uma das
mãos para fora das cobertas, mas falei para ele ficar quieto. Não queria
olhá-lo nos olhos para que não sofresse, mas mesmo assim ele ficou
vermelho e começou a dizer que podia muito bem pôr o termômetro
sozinho. Não o atendi, claro, mas o coitado estava tão tenso que não tive
saída senão dizer: “Vamos, Pablo, você já é um homenzinho, não vai ficar
desse jeito todas as vezes, não é mesmo?”. É o de sempre, com a fraqueza
ele não conseguiu segurar as lágrimas; fingindo que eu não estava
percebendo, anotei a temperatura e fui preparar a injeção. Quando ela
voltou eu havia enxugado os olhos com o lençol e estava com tanta raiva de
mim mesmo que teria dado qualquer coisa para poder falar, dizer a ela que
tanto fazia, que na realidade tanto fazia mas que eu não conseguia evitar.
“Isso não dói nada”, disse ela de seringa na mão. “É para você dormir bem
a noite inteira.” Me descobriu e de novo senti que o sangue me subia ao
rosto, mas ela sorriu um pouco e começou a esfregar minha coxa com um
algodão molhado. “Não dói nada”, falei, porque precisava dizer alguma
coisa, não era possível que eu ficasse daquele jeito enquanto ela estava
olhando para mim. “Está vendo?”, disse ela, puxando a agulha e me
esfregando com o algodão. “Está vendo como não dói nada? Não é para
você sentir nenhuma dor, Pablito.” Me cobriu e passou a mão pelo meu
rosto. Eu fechei os olhos e gostaria de estar morto e que ela passasse a mão
pelo meu rosto, chorando.
Nunca entendi Cora direito, mas aquela vez passou da conta. Na verdade
não me incomodo com o fato de não entender as mulheres. A única coisa
que interessa é elas gostarem da gente. Se estão nervosas, se encontram
problema em tudo quanto é besteira, tudo bem, menina, não se preocupe, dê
um beijo e está tudo certo. Dá para ver que ela ainda está muito verdinha,
vai precisar de um bom tempo para aprender a viver nessa maldita
profissão, ontem à noite a coitada apareceu com uma cara esquisita e
precisei de meia hora para fazê-la esquecer aquelas bobagens. Ela ainda não
descobriu como fazer para lidar com alguns pacientes. Já aconteceu antes
com a velha do 22, mas eu achava que de lá para cá ela havia aprendido
alguma coisa, e agora está de novo com dor de cabeça por causa do tal
garoto. Ficamos tomando mate no meu quarto lá pelas duas da manhã,
depois ela foi dar a injeção do menino e quando voltou estava de mau
humor, não queria nada comigo. Ela fica bonita com aquela carinha de
brava, de tristinha, pouco a pouco fui fazendo que ela mudasse, no fim
começou a rir e me contou, nessa hora gosto tanto de tirar a roupa dela e
sentir como treme um pouco, parece que está com frio. Já deve ser bem
tarde, Marcial. Ah, então posso ficar mais um pouco, a outra injeção é só às
cinco e meia, a galeguinha só chega às seis. Desculpe, Marcial, sou uma
boba, não sei por que tanta preocupação com aquele pirralho, afinal de
contas ele está estável, mas de vez em quando fico com pena, nessa idade
eles são tão bobos, tão orgulhosos, se eu pudesse pedia ao dr. Suárez para
me trocar, tem dois operados no segundo andar, pessoas adultas, a gente
pergunta tranquilamente se já evacuaram, entrega a comadre, limpa quando
é preciso, tudo isso conversando o tempo todo sobre política, é um ir e vir
de coisas naturais, cada um na sua, Marcial, não como no caso do garoto,
entende? Certo, é claro que é preciso se acostumar com tudo, quantas vezes
ainda vou cuidar de garotos dessa idade, é questão de técnica, como você
diz. Sim, querido, claro. Mas é que tudo começou mal por causa da mãe,
aquilo não ficou esquecido, sabe, desde o primeiro minuto houve uma
espécie de mal-entendido, e o garoto tem seu orgulho e fica magoado,
principalmente porque no começo ele não se dava conta de tudo o que
estava por vir e quis se fazer de adulto, olhar para mim como se fosse você,
como um homem. Agora já não posso nem lhe perguntar se está com
vontade de fazer xixi, o problema é que ele seria capaz de se segurar a noite
inteira se eu ficasse no quarto. Quando eu me lembro me dá vontade de rir,
ele querendo dizer que sim e sem coragem de dizer, então me irritei com
aquela besteira toda e o obriguei a fazer, para que aprendesse a fazer xixi
sem se mexer, bem estendido de costas. Ele sempre fecha os olhos nesses
momentos, mas é quase pior, fica a ponto de chorar ou de me insultar, fica
entre as duas coisas e não consegue, é tão menino, Marcial, e aquela boa
senhora que deve ter criado o filho com um monte de frescuras, neném para
cá e neném para lá, muito chapéu e muito paletó social, mas no fundo o
bebê de sempre, o pequeno tesouro da mamãe. Ah, e quem fica encarregada
de cuidar dele? Logo eu, com minha alta voltagem, como você diz, quando
ele teria ficado tão bem com a María Luisa, que é idêntica à tia dele e que
poderia limpá-lo de cima a baixo sem que ele ficasse ruborizado. Não, a
verdade é esta: eu não tenho sorte, Marcial.
Começam sempre na mesma hora, entre seis e sete da manhã, deve ser um
casal com ninho nos beirais do pátio, um pombo que arrulha e a pomba que
responde, depois de um tempo se cansam, falei para a enfermeira miudinha
que vem me lavar e trazer o café da manhã e ela deu de ombros e disse que
outros doentes também já se queixaram das pombas, mas que o diretor não
queria que elas fossem retiradas. Não sei mais há quanto tempo ouço as
pombas, nas primeiras manhãs estava sonolento ou dolorido demais para
prestar atenção, mas de três dias para cá eu ouço e fico triste, queria estar
em casa ouvindo os latidos do Milord, ouvindo a tia Esther, que se levanta
nesse horário para ir à missa. Maldita febre que não quer baixar, vão me
prender aqui até sabe-se lá quando, vou perguntar ao dr. Suárez esta manhã
mesmo, afinal de contas eu poderia muito bem estar em casa. Olhe, sr.
Morán, quero ser franco com o senhor, o quadro não é nada simples. Não,
srta. Cora, prefiro que a senhora continue atendendo esse doente, e vou lhe
dizer por quê. Nesse caso, Marcial… Venha cá, vou fazer um café bem forte
para você, você ainda é uma potranca, parece mentira. Escute, menina,
estive conversando com o dr. Suárez, e parece que o menino…
Felizmente depois elas ficam quietas, decerto saem voando por aí, pela
cidade inteira, que sorte têm as pombas. Que manhã interminável, fiquei
feliz quando os velhos foram embora; agora, desde que estou com essa
febre alta, inventaram de vir mais seguido. Bom, se vou precisar ficar aqui
mais quatro ou cinco dias, que diferença faz. Em casa seria melhor, claro,
mas eu estaria com febre do mesmo jeito e de vez em quando me sentiria
muito mal. Pensar que não posso nem folhear uma revista, é tanta fraqueza
que até parece que meu sangue acabou. Mas tudo por causa da febre, foi o
que o dr. De Luisi me disse ontem à noite e o dr. Suárez repetiu esta manhã,
eles sabem. Durmo muito, mas mesmo assim é como se o tempo não
passasse, sempre é antes das três, como se três ou cinco fizesse alguma
diferença para mim. Ao contrário, às três a enfermeira miudinha vai embora
e é uma pena, porque com ela me sinto muito bem. Se eu conseguisse
dormir de uma só tacada até a meia-noite seria muito melhor. Pablo, sou eu,
a srta. Cora. Sua enfermeira da noite que lhe aplica as injeções doloridas.
Eu sei que não dói, seu bobo, é brincadeira. Continue dormindo se quiser, já
acabou. Ele disse “Obrigado” sem abrir os olhos, mas poderia abri-los, sei
que ele e a galeguinha ficaram conversando ao meio-dia, embora ele esteja
proibido de falar muito. Antes de sair me virei de repente e ele estava me
olhando, senti que havia ficado me olhando o tempo todo enquanto eu
estava de costas. Voltei e me sentei perto da cama, medi seu pulso, estendi
os lençóis, que ele amarfanhava com suas mãos de febre. Olhava meu
cabelo, depois baixava os olhos e evitava me olhar de frente. Fui buscar o
material para prepará-lo e ele me deixou trabalhar sem dizer palavra, de
olhos fixos na janela, me ignorando. Viriam buscá-lo às cinco e meia em
ponto, ainda poderia dormir um pouco, os pais esperavam no térreo porque
se ele os visse naquele horário ficaria impressionado. O dr. Suárez chegaria
um pouco antes para explicar a ele que seria preciso complementar a
operação, diria alguma coisa que não o deixasse tão preocupado. Só que em
vez disso mandaram Marcial, foi uma surpresa ver Marcial entrar de
repente, mas ele me fez um sinal para que eu não saísse dali e ficou junto ao
pé da cama lendo a tabela da temperatura até Pablo se acostumar com sua
presença. Começou a falar com ele num tom um pouco de brincadeira,
armou a conversa do jeito que sabe fazer, o frio lá fora, o conforto daquele
quarto, e ele olhando para Marcial sem dizer nada, como se esperasse,
enquanto eu me sentia muito esquisita, teria querido que Marcial saísse e
me deixasse sozinha com ele, eu saberia falar com ele melhor que ninguém,
embora vai ver que não, provavelmente não. Mas se eu já estou sabendo,
doutor, vão me operar de novo, o senhor é o médico que me deu a anestesia
na outra vez, bom, melhor isso que continuar nesta cama e com essa febre.
Eu sabia que iam acabar tendo que fazer alguma coisa porque desde ontem
está doendo muito, uma dor diferente, que vem de mais fundo. E a senhora,
aí sentada, não faça essa cara, não fique sorrindo como se tivesse vindo me
convidar para ir ao cinema. Saia com ele e beije-o no corredor, tão
adormecido assim eu não estava, na outra tarde, quando a senhora ficou
brava com ele porque ele havia beijado a senhora aqui dentro. Saiam os
dois, me deixem dormir, dormindo não dói tanto.
E então, garoto, agora vamos resolver esse assunto de uma vez por todas.
Até quando você vai continuar ocupando um leito, tchê. Conte devagarinho,
um, dois, três. Assim mesmo, muito bem, continue contando e dentro de
uma semana estará comendo um bife bem suculento na sua casa. Quinze
minutos de quatro, menina, depois costura tudo de novo. Precisava ver a
cara do De Luisi, a gente nunca se acostuma de todo com essas coisas.
Olhe, aproveitei para pedir ao Suárez que te trocassem, como você queria,
falei que você está muito cansada com um caso tão grave quanto esse; de
repente te transferem para o segundo andar, se você também pedir. Está
bem, faça como preferir, reclamou tanto na outra noite para agora dar uma
de samaritana. Não fique zangada comigo, foi só porque você queria. Sim,
claro que foi porque eu queria, mas perdeu seu tempo, vou ficar com ele
esta noite e todas as outras noites. Ele começou a acordar às oito e meia, os
pais foram embora logo depois porque era melhor que ele não visse a cara
deles, coitados, e quando o dr. Suárez chegou, me perguntou em voz baixa
se eu queria que a María Luisa me substituísse, mas eu fiz um sinal de que
ficaria e ele saiu. Maria Luísa ficou algum tempo comigo porque tivemos
que segurá-lo e acalmá-lo, depois ele se tranquilizou de repente e quase não
vomitou; está tão fraco que adormeceu novamente sem maiores queixas até
as dez. São as pombas, você vai ver, mamãe, já começaram a arrulhar como
fazem todas as manhãs, não sei por que não tiram as pombas daqui, elas que
voem para outra árvore. Me dê a mão, mamãe, estou com tanto frio. Ah,
quer dizer que foi tudo sonho, achei que já era de manhã e que estava
ouvindo as pombas. Desculpe, achei que você era minha mãe. Uma vez
mais ele desviava os olhos, se fechava no seu descontentamento, uma vez
mais me jogava toda a culpa. Cuidei dele como se não me desse conta de
que ele continuava zangado, sentei-me ao lado dele e umedeci seus lábios
com gelo. Quando ele olhou para mim, depois que passei água-de-colônia
nas suas mãos e na testa, cheguei mais perto e sorri para ele. “Me chame de
Cora”, falei. “Eu sei que no começo a gente não se entendeu, mas vamos ser
ótimos amigos, Pablo.” Ele me olhava calado. “Me diga: Está bem, Cora.”
Ele me olhava, o tempo todo. “Senhorita Cora”, disse depois, e fechou os
olhos. “Não, Pablo, não”, pedi, beijando-o no rosto, bem perto da boca.
“Para você eu sou Cora. Só para você.” Tive que me jogar para trás, mas
mesmo assim meu rosto ficou salpicado. Enxuguei-o, segurei a cabeça dele
para que ele pudesse enxaguar a boca, dei outro beijo nele e falei no seu
ouvido. “Desculpe”, ele disse, com um fio de voz, “não consegui segurar.”
Falei para ele que não fosse tolo, que eu estava cuidando dele para resolver
essas coisas, que vomitasse tanto quanto quisesse, para ficar aliviado. “Eu
gostaria que mamãe chegasse”, disse, olhando para o outro lado com os
olhos vazios. Ainda acariciei um pouco o cabelo dele, ajeitei suas cobertas
esperando que ele me dissesse alguma coisa, mas estava muito longe, e
senti que ficando eu o fazia sofrer mais ainda. Na porta me virei e esperei;
ele estava com os olhos muito abertos, fixos no forro. “Pablito”, falei. “Por
favor, Pablito. Por favor, querido.” Voltei até junto da cama, me inclinei
para beijá-lo; tinha um cheiro de frio, por trás da água-de-colônia havia o
vômito, a anestesia. Se fico um segundo mais, começo a chorar na frente
dele, por ele. Beijei-o outra vez e saí correndo, desci em busca da mãe e de
María Luisa; não queria voltar enquanto a mãe estivesse ali, pelo menos
naquela noite eu não queria voltar, e depois sabia muito bem que não
haveria a menor necessidade de voltar àquele quarto, que Marcial e María
Luisa tomariam conta de tudo até o quarto ficar novamente disponível.
A ilha ao meio-dia
primeira vez que viu a ilha, Marini estava cortesmente inclinado sobre
A os assentos da esquerda, ajustando a mesa de plástico antes de instalar a
bandeja do almoço. A passageira olhara várias vezes para ele enquanto ele
ia e vinha com revistas ou copos de uísque; Marini tomava seu tempo para
ajustar a mesa, perguntando-se entediado se valeria a pena corresponder ao
olhar insistente da passageira, uma americana entre muitas, quando no oval
azul da janelinha apareceu o litoral da ilha, a franja dourada da praia, as
colinas subindo na direção da meseta desolada. Corrigindo a posição
defeituosa do copo de cerveja, Marini sorriu para a passageira. “As ilhas
gregas”, disse. “Oh, yes, Greece”, reagiu a passageira com falso interesse.
Ouvia-se o toque breve de uma campainha e o comissário se endireitou sem
que o sorriso profissional se apagasse de sua boca de lábios finos. Começou
a atender um casal sírio que queria suco de tomate, mas na cauda do avião
concedeu-se alguns segundos olhando de novo para baixo; a ilha era
pequena e solitária, e o Egeu a rodeava com um intenso azul que realçava a
orla de um branco deslumbrante que parecia petrificado e lá embaixo seria
espuma estourando sobre os arrecifes e as enseadas. Marini viu que as
praias desertas se estendiam para o norte e para o oeste, o resto era a
montanha entrando a pique no mar. Uma ilha rochosa e deserta, embora a
mancha cor de chumbo perto da praia ao norte pudesse ser uma casa, quem
sabe um grupo de casas primitivas. Começou a abrir a lata de suco, e
quando ergueu o corpo a ilha sumiu da janelinha; ficou apenas o mar, um
verde horizonte interminável. Olhou para o relógio de pulso sem saber por
quê; era exatamente meio-dia.
Marini gostou de ter sido designado para a rota Roma-Teerã porque o
trajeto era menos lúgubre que os das rotas do norte e porque as garotas
sempre pareciam felizes de ir para o Oriente ou de conhecer a Itália. Quatro
dias depois, enquanto ajudava um menino que perdera a colher e apontava
desconsolado para o prato da sobremesa, descobriu novamente o contorno
da ilha. Havia uma diferença de oito minutos, mas quando se inclinou na
direção de uma janelinha da cauda não restaram dúvidas; a ilha tinha uma
forma inconfundível, parecia uma tartaruga começando a tirar as patas da
água. Ficou olhando para ela até que o chamaram, dessa vez convencido de
que a mancha cor de chumbo era um grupo de casas; chegou a distinguir o
desenho de uns poucos campos cultivados que iam até a praia. Durante a
escala em Beirute consultou o atlas da comissária e ficou pensando se a ilha
não seria Horos. O radiotelegrafista, um francês indiferente, estranhou seu
interesse. “Todas essas ilhas se parecem, faço esta rota há dois anos e não
ligo muito para elas. Isso, na próxima vez, me mostre.” Não era Horos mas
Xiros, uma das muitas ilhas à margem dos circuitos turísticos. “Essa não
dura mais que cinco anos”, disse a comissária enquanto tomavam um
drinque em Roma. “Se quer ir até lá, vá logo, as hordas chegarão a qualquer
momento, Gengis Cook não perde tempo.” Mas Marini continuou pensando
na ilha, olhando-a quando se lembrava ou no caso de haver uma janelinha
por perto, quase sempre dando de ombros no final. Nada daquilo tinha
sentido, voar três vezes por semana ao meio-dia sobre Xiros. Tudo estava
falseado na visão inútil e recorrente; exceto, talvez, o desejo de repeti-la, a
consulta ao relógio de pulso antes do meio-dia, o breve, lancinante contato
com a encantadora franja branca à beira de um azul quase negro, e as casas
onde os pescadores ergueriam os olhos de leve para acompanhar a
passagem daquela outra irrealidade.
Oito ou nove semanas depois, quando lhe ofereceram a rota de Nova York
com todas as suas vantagens, Marini disse para si mesmo que era a
oportunidade de acabar com aquela mania inocente e enervante. Tinha no
bolso o livro no qual um impreciso geógrafo de nome levantino fornecia
mais detalhes sobre Xiros que os habitualmente encontrados nos guias.
Respondeu negativamente, ouvindo-se como se fosse de longe, e depois de
enfrentar a surpresa escandalizada de um chefe e duas secretárias foi
almoçar na cantina da empresa, onde Carla estava à sua espera. A
desconcertada decepção de Carla não o inquietou; a costa sul de Xiros era
inabitável, mas na parte oeste ainda havia traços de uma colônia lídia, ou
quem sabe creto-micênica, e o professor Goldmann encontrara duas pedras
talhadas com hieroglifos que os pescadores utilizavam como pilastras do
pequeno molhe. Carla estava com dor de cabeça e se retirou pouco depois; a
principal fonte de renda do punhado de habitantes eram os polvos; a cada
cinco dias chegava um navio para recolher o produto da pesca e deixar uma
pequena quantidade de provisões e gêneros. Na agência de viagens lhe
disseram que seria preciso fretar uma embarcação especial a partir de
Rynos, ou quem sabe houvesse possibilidade de viajar na falua que ia
buscar os polvos, mas Marini só poderia verificar esta última alternativa em
Rynos, onde a agência não tinha representante. De todo modo, a ideia de
passar alguns dias na ilha não era mais que um plano para as férias de
junho; nas semanas que se seguiram foi preciso substituir White na rota de
Túnis, e depois começou uma greve e Carla voltou para a casa das irmãs,
em Palermo. Marini se instalou num hotel perto da Piazza Navona, onde
havia sebos; se distraía sem muito empenho procurando livros sobre a
Grécia, folheava de vez em quando um manual de conversação. Achou
graça na palavra kalimera e ensaiou-a num cabaré com uma garota ruiva,
deitou-se com ela, que lhe falou do avô em Odos e de umas dores de
garganta inexplicáveis. Em Roma começou a chover, em Beirute Tania
estava sempre à sua espera, havia outras histórias, sempre parentes ou
dores; um dia voltou para a rota de Teerã, para a ilha ao meio-dia. Marini
ficou tanto tempo grudado na janelinha que a comissária nova declarou que
ele era um mau colega e lhe comunicou quantas bandejas já havia servido.
Naquela noite Marini convidou a comissária para jantar no Firouz e não
teve dificuldade em obter seu perdão por sua distração naquela manhã.
Lucía aconselhou-o a cortar o cabelo à americana; ele falou um pouco de
Xiros, mas depois compreendeu que ela preferia a vodca lime do Hilton. O
tempo ia passando em coisas assim, em infinitas bandejas de comida, cada
uma com o sorriso a que o passageiro tinha direito. Nas viagens de volta o
avião sobrevoava Xiros às oito da manhã, o sol batia nas janelinhas de
bombordo e mal deixava entrever a tartaruga dourada; Marini preferia
esperar os meios-dias do voo de ida, sabendo que nesse horário poderia
ficar um longo minuto junto da janelinha enquanto Lucía (e depois Felisa)
assumia o trabalho com certa ironia. Uma vez tirou uma foto de Xiros mas
saiu borrada; já sabia algumas coisas sobre a ilha, sublinhara as raras
menções num livro ou noutro. Felisa lhe contou que os pilotos o chamavam
de louco da ilha e não se importou com isso. Carla acabara de lhe escrever
dizendo que havia decidido não ter o filho, e Marini lhe enviou dois soldos
e pensou que o que sobrava não seria suficiente para as férias. Carla aceitou
o dinheiro e o informou por intermédio de uma amiga que provavelmente se
casaria com o dentista de Treviso. Tudo tinha tão pouca importância ao
meio-dia de segundas, quintas e sábados (e, duas vezes por mês, domingo).
Com o tempo foi se dando conta de que Felisa era a única que o
compreendia um pouco; havia um acordo tácito para que ela tomasse conta
do serviço ao meio-dia assim que ele se instalasse junto à janelinha da
cauda. A ilha era visível durante uns poucos minutos, mas o ar estava
sempre tão limpo e o mar a recortava com uma crueldade tão minuciosa que
os menores detalhes iam se ajustando implacáveis à lembrança da visão
anterior: a mancha verde do promontório ao norte, as casas cor de chumbo,
as redes secando na areia. Quando as redes não estavam lá, para Marini era
uma espécie de empobrecimento, quase um insulto. Pensou em filmar a ilha
lá embaixo para repetir a imagem no hotel, mas preferiu economizar o
dinheiro da câmera, já que faltava apenas um mês para as férias. Não se
preocupava muito em saber em que dia estava; às vezes era Tania em
Beirute, às vezes Felisa em Teerã, quase sempre seu irmão mais moço em
Roma, tudo um pouco embaralhado, amavelmente fácil e cordial e como
que substituindo outra coisa, preenchendo as horas antes ou depois do voo,
e durante o voo tudo também era embaralhado e fácil e idiota até a hora de
ir se debruçar junto à janelinha da cauda, de sentir o frio vidro como um
limite do aquário onde lentamente se movia a tartaruga dourada no denso
azul.
Naquele dia as redes se delineavam precisas sobre a areia e Marini teria
jurado que o ponto negro à esquerda, à beira do mar, era um pescador que
decerto olhava o avião. “Kalimera”, pensou absurdamente. Não fazia mais
sentido continuar esperando, Mario Merolis lhe emprestaria o dinheiro que
faltava para a viagem, em menos de três dias estaria em Xiros. Com os
lábios colados ao vidro, sorriu pensando que subiria até a mancha verde,
que entraria nu no mar das enseadas ao norte, que pescaria polvos com os
homens, comunicando-se por meio de sinais e risadas. Nada era difícil uma
vez decidido, um trem noturno, uma primeira embarcação, outra
embarcação velha e suja, a escala em Rynos, a negociação interminável
com o capitão da falua, a noite no convés, aderido às estrelas, o sabor do
anis e do carneiro, o amanhecer entre as ilhas. Desembarcou com as
primeiras luzes e o capitão o apresentou a um velho que devia ser o
patriarca. Klaios segurou sua mão esquerda e falou lentamente, olhando-o
nos olhos. Dois rapazes se aproximaram e Marini compreendeu que eram os
filhos de Klaios. O capitão da falua recorria a todo o seu inglês: vinte
habitantes, polvos, pesca, cinco casas, italiano visitante pagaria alojamento
Klaios.
Os rapazes riram quando Klaios discutiu dracmas; Marini também, já
amigo dos mais jovens, vendo o sol nascer sobre um mar menos escuro do
que quando visto do espaço, um quarto pobre e limpo, uma jarra de água,
aroma de sálvia e de pele curtida.
Deixaram-no sozinho para ir carregar a falua, e depois de se desfazer com
impaciência da roupa da viagem e vestir um calção de banho e sandálias foi
dar uma caminhada pela ilha. Ainda não se via ninguém, o sol tomava
impulso lentamente e dos matagais se erguia um odor sutil, um pouco ácido,
misturado ao iodo do vento. Deviam ser dez horas quando chegou ao
promontório do norte e reconheceu a maior das enseadas. Preferia estar
sozinho, embora tivesse achado melhor nadar na praia de areia; a ilha o
invadia e o gozava com tal intimidade que não era capaz de pensar nem de
escolher. Sua pele ardia de sol e vento quando se despiu para atirar-se ao
mar de cima de uma rocha; a água estava fria e lhe fez bem, deixou-se levar
por correntes insidiosas até a entrada de uma gruta, voltou mar afora,
abandonou-se de costas, a tudo aceitou num ato único de conciliação que
era também um nome para o futuro. Soube sem sombra de dúvida que não
deixaria a ilha, que de algum modo ficaria para sempre na ilha. Chegou a
imaginar o irmão, Felisa, a cara deles quando tomassem conhecimento de
que ele ficara num penhasco solitário para viver da pesca. Já os esquecera
quando girou sobre si mesmo para nadar de volta à praia.
O sol o secou em seguida; desceu até as casas, onde duas mulheres
olharam para ele assombradas antes de correr para se trancar. Fez um gesto
de saudação no vazio e desceu até as redes. Um dos filhos de Klaios o
esperava na praia e Marini apontou para o mar, num convite. O rapaz
hesitou, mostrando a calça de pano e a camisa vermelha. Depois correu até
uma das casas, voltou quase nu; jogaram-se juntos num mar já morno,
deslumbrante sob o sol das onze.
Secando na areia, Ionas começou a dizer o nome das coisas. “Kalimera”,
disse Marini, e o rapaz riu até se dobrar ao meio. Depois Marini repetiu as
frases novas, ensinou palavras italianas a Ionas. Quase no horizonte, a falua
diminuía de tamanho; Martini sentiu que agora estava realmente sozinho na
ilha, com Klaios e os seus. Deixaria que alguns dias se passassem, pagaria
seu quarto e aprenderia a pescar; numa tarde qualquer, quando os outros já
o conhecessem bem, falaria em ficar por ali e trabalhar com eles.
Levantando-se, estendeu a mão para Ionas e saiu andando devagar na
direção do promontório. A costa era escarpada e ele subiu saboreando cada
elevação, virando-se uma e outra vez para ver as redes na praia, as silhuetas
das mulheres falando animadamente com Ionas e com Klaios e olhando-o
com o rabo dos olhos, às risadas. Ao chegar à mancha verde, entrou num
mundo onde o aroma do tomilho e da sálvia formava uma só matéria com o
fogo do sol e a brisa do mar. Marini olhou para seu relógio de pulso e
depois, com um gesto de impaciência, arrancou-o do punho e guardou-o no
bolso do calção. Não seria fácil matar o homem de antes, mas ali no alto,
tenso de sol e de espaço, sentiu que o projeto era possível. Estava em Xiros,
estava no lugar onde tantas vezes duvidara que algum dia pudesse chegar.
Deixou-se cair de costas entre as pedras aquecidas, resistiu às arestas e aos
dorsos incandescentes e olhou para o céu verticalmente; de uma região
remota chegou até ele o zumbido de um motor.
Fechando os olhos, disse para si mesmo que não olharia para o avião, que
não se deixaria contaminar pelo pior de si mesmo, que uma vez mais
passaria sobre a ilha. Mas na penumbra das pálpebras imaginou Felisa com
as bandejas, naquele instante mesmo distribuindo as bandejas, e seu
substituto, talvez Giorgio ou algum novato de outra rota, alguém que
também estaria sorrindo ao oferecer as garrafas de vinho ou o café. Incapaz
de lutar contra tanto passado, abriu os olhos e endireitou o corpo, e no
mesmo momento viu a asa direita do avião, quase sobre sua cabeça,
inclinando-se inexplicavelmente, ouviu a alteração do ruído das turbinas,
assistiu à queda quase vertical sobre o mar. Desceu em desabalada carreira
promontório abaixo, batendo-se nas pedras e rasgando um braço entre os
espinhos. A ilha não o deixava ver o local da queda, mas mudou de direção
antes de chegar à praia e por um atalho previsível venceu a primeira
elevação do promontório e foi sair na praia menor. A cauda do avião
submergia a cerca de cem metros dali, em absoluto silêncio. Marini tomou
impulso e se jogou na água, ainda na esperança de que o avião tornasse a
flutuar; mas a única coisa que se via era a linha suave das ondas, uma caixa
de papelão oscilando absurdamente perto do lugar da queda, e quase no fim,
quando já não havia sentido em continuar nadando, uma mão saindo da
água, apenas um instante, o tempo suficiente para que Marini mudasse de
rumo e mergulhasse até pegar pelo cabelo o homem que lutou para agarrar-
se a ele e engoliu num ronco o ar que Marini o deixava respirar sem se
aproximar demais. Rebocando-o pouco a pouco, Marini o levou até a
margem, segurou nos braços o corpo vestido de branco e, estendendo-o
sobre a areia, olhou o rosto cheio de espuma onde a morte já estava
instalada, sangrando por um enorme ferimento na garganta. De que poderia
servir a respiração artificial, se com cada convulsão o ferimento parecia
abrir-se um pouco mais, lembrando uma boca repugnante que chamava
Marini, que o arrancava de sua miúda felicidade de tão poucas horas na
ilha, que gritava para ele entre borbotões uma coisa que ele já não era capaz
de escutar. Correndo tão depressa quanto podiam chegavam os filhos de
Klaios e logo atrás as mulheres. Quando Klaios chegou, os rapazes
cercavam o corpo estendido na areia, sem entender como ele tivera forças
para nadar até a praia e arrastar-se até ali enquanto perdia todo o seu
sangue. “Feche os olhos dele”, pediu chorando uma das mulheres. Klaios
olhou para o mar, em busca de algum outro sobrevivente. Como sempre,
porém, estavam sozinhos na ilha e o cadáver de olhos abertos era o único
novato entre eles e o mar.
P
ensando depois no assunto — na rua, num trem, atravessando
campos — tudo aquilo teria parecido absurdo, mas um teatro não
passa de um pacto com o absurdo, com seu exercício eficaz e
luxuoso. Para Rice, que se entediava numa Londres outonal de fim
de semana e que havia entrado no Aldwych sem prestar muita atenção no
programa, o primeiro ato da peça pareceu antes de mais nada medíocre; o
absurdo começou no intervalo, quando o homem de cinza se aproximou de
seu assento e o convidou cortesmente, com uma voz quase inaudível, a
acompanhá-lo até atrás dos bastidores. Sem excessiva surpresa, imaginou
que a direção do teatro devia estar fazendo uma pesquisa de opinião,
alguma investigação indefinida com fins publicitários. “Se for para dar uma
opinião”, disse Rice, “achei o primeiro ato frouxo, e a iluminação, por
exemplo…” O homem de cinza concordou amavelmente com a cabeça, mas
sua mão continuava indicando uma saída lateral, e Rice compreendeu que
deveria levantar-se e acompanhá-lo sem que o outro fosse obrigado a
implorar. “Eu teria preferido uma xícara de chá”, pensou, enquanto descia
uns poucos degraus que davam num corredor lateral e se deixava guiar
entre distraído e incomodado. Quase do nada viu-se diante de um bastidor
que representava uma biblioteca burguesa; dois homens que pareciam se
entediar cumprimentaram-no como se sua visita tivesse sido prevista e
inclusive dada por certa. “Não há dúvida de que o senhor vai funcionar
admiravelmente”, disso o mais alto dos dois. O outro homem inclinou a
cabeça, com um ar de mudo. “Não temos muito tempo”, disse o homem
alto, “mas vou procurar lhe explicar seu papel em duas palavras.” Falava
mecanicamente, quase como se prescindisse da presença real de Rice e se
limitasse a desempenhar um anúncio monótono. “Não estou entendendo”,
disse Rice dando um passo atrás. “É quase preferível”, disse o homem alto.
“Nesses casos a análise é na verdade uma desvantagem; vai perceber que
assim que se acostumar aos refletores, começará a se divertir. O senhor já
conhece o primeiro ato; sei, sei, o senhor não gostou. Ninguém gosta. É a
partir de agora que a peça pode ficar melhor. Depende, claro.” “Tomara que
melhore”, disse Rice, que imaginava ter entendido mal, “mas em todo caso
já está na hora de eu voltar para meu lugar.” Como havia dado outro passo
atrás, não se surpreendeu demais com a mole resistência do homem de
cinza, que murmurava um pedido de desculpas sem se afastar. “Tenho a
impressão de que não estamos nos entendendo”, disse o homem alto, “e é
uma pena, porque faltam apenas quatro minutos para o segundo ato. Eu lhe
imploro que me ouça atentamente. O senhor é Howell, o marido de Eva.
Como já viu, Eva engana Howell com Michael, e provavelmente Howell se
deu conta, embora prefira não dizer nada por razões que ainda não estão
claras. Não se mova, por favor, é apenas uma peruca.” Mas a advertência
parecia quase inútil, porque o homem de cinza e o homem mudo o haviam
agarrado pelos braços, e uma jovem alta e magra que aparecera
bruscamente estava encaixando uma coisa morna em sua cabeça. “Os
senhores não vão querer que eu comece a gritar e faça um escândalo no
teatro”, disse Rice, procurando dominar o tremor da voz. O homem alto deu
de ombros. “O senhor não faria isso”, disse, cansadamente. “Seria tão
pouco elegante… Não, tenho certeza de que o senhor não faria isso. Além
do mais, a peruca lhe cai muito bem, o senhor tem um tipo de ruivo.”
Sabendo que não deveria dizer isso, Rice disse: “Mas eu não sou ator”.
Todos, até a jovem, sorriram, animando-o. “Precisamente”, disse o homem
alto. “O senhor percebe muito bem a diferença. O senhor não é um ator, o
senhor é Howell. Quando entrar em cena, Eva estará no salão escrevendo
uma carta para Michael. O senhor vai fingir que não se dá conta de que ela
esconde o papel e disfarça sua perturbação. A partir desse momento, faça o
que quiser. Os óculos, Ruth.” “O que eu quiser?”, disse Rice, tentando
surdamente libertar seus braços enquanto Ruth o equipava com uns óculos
de aro de tartaruga. “Sim, isso mesmo”, disse conformado o homem alto, e
Rice teve uma certa suspeita de que ele estava cansado de repetir as mesmas
coisas todas as noites. Ouvia-se a campainha chamando o público, e Rice
chegou a distinguir os movimentos dos auxiliares de palco no cenário,
algumas mudanças de luzes; Ruth desaparecera de repente. Foi invadido por
uma indignação mais amarga que violenta, que de alguma maneira parecia
fora de lugar. “Isso é uma brincadeira idiota”, disse, tentando se
desvencilhar, “e quero que saibam que…” “Lamento”, murmurou o homem
alto. “Francamente, eu teria imaginado outra coisa do senhor. Mas já que
leva as coisas para esse lado…” Não era exatamente uma ameaça, embora
os três homens o rodeassem de uma maneira que exigia obediência ou luta
declarada; Rice achou que uma coisa teria sido tão absurda ou talvez tão
falsa quanto a outra. “Howell entra agora”, disse o homem alto, apontando
para a estreita passagem entre os bastidores. “Lá chegando, faça o que
quiser, mas nós lamentaríamos que…” Dizia-o amavelmente, sem alterar o
repentino silêncio da sala; a cortina se ergueu com um roçar de veludo, e
eles foram envolvidos por uma lufada de ar morno. “Mas eu no seu lugar
pensaria bem”, acrescentou cansadamente o homem alto. “Vá, agora.”
Empurrando-o sem empurrá-lo, os três o acompanharam até a metade dos
bastidores. Uma luz violeta ofuscou Rice; diante dele havia uma extensão
que lhe pareceu infinita, e à esquerda adivinhou a grande caverna, algo que
parecia uma grande respiração contida, aquilo que afinal de contas era o
verdadeiro mundo onde pouco a pouco começavam a recortar-se plastrons
brancos e talvez chapéus ou altos penteados. Deu um passo ou dois,
sentindo que as pernas não lhe obedeciam, e estava a ponto de se virar e
retroceder às carreiras quando Eva, levantando-se precipitadamente,
avançou e lhe estendeu uma mão que parecia flutuar na luz violeta na
extremidade de um braço muito branco e longo. A mão estava gelada, e
Rice teve a impressão de que se crispava um pouco na sua. Deixando-se
conduzir até o centro do palco, escutou confusamente as explicações de Eva
sobre sua dor de cabeça, a preferência pela penumbra e a tranquilidade da
biblioteca, esperando que ela se calasse para adiantar-se até o proscênio e
dizer, em duas palavras, que estavam sendo enganados. Mas Eva parecia
esperar que ele se sentasse no sofá de gosto tão duvidoso quanto o
argumento da peça e os ornamentos, e Rice compreendeu que era
impossível, quase grotesco, continuar de pé enquanto ela, estendendo-lhe de
novo a mão, reiterava o convite com um sorriso fatigado. Do sofá distinguiu
melhor as primeiras filas da plateia, separadas do palco apenas pela luz que
fora passando do violeta para um laranja-amarelado, mas curiosamente Rice
achou mais fácil virar-se para Eva e sustentar seu olhar, que de algum modo
ainda o ligava àquela insensatez, postergando por mais um instante a única
decisão possível caso não acatasse a loucura e se rendesse ao simulacro.
“As tardes deste outono são intermináveis”, dissera Eva, em busca de uma
caixa de metal branco perdida entre os livros e os papéis da mesinha baixa e
oferecendo-lhe um cigarro. Rice puxou o isqueiro mecanicamente,
sentindo-se cada vez mais ridículo com a peruca e os óculos; mas o
pequeno ritual de acender os cigarros e aspirar as primeiras tragadas era
como uma trégua, dava-lhe oportunidade de sentar-se mais comodamente,
desatando a insuportável tensão do corpo que se sabia olhado por frias
constelações invisíveis. Ouvia suas respostas às frases de Eva, as palavras
pareciam suscitar-se umas às outras com um mínimo esforço, sem que
estivessem falando de nada em especial; um diálogo de castelo de cartas no
qual Eva ia erguendo as paredes do frágil edifício e Rice, sem esforço,
intercalava suas próprias cartas e o castelo ia subindo sob a luz alaranjada
até que no fim uma complexa explicação que incluía o nome de Michael
(“Como já viu, Eva engana Howell com Michael”) e outros nomes e outros
lugares, um chá de que havia participado a mãe de Michael (ou seria a mãe
de Eva?), e uma justificativa ansiosa e quase à beira das lágrimas, com um
movimento de ansiosa esperança Eva se inclinou para Rice como se
quisesse abraçá-lo ou esperasse que ele a tomasse nos braços, e exatamente
depois da última palavra pronunciada com uma voz claríssima, junto à
orelha de Rice, murmurou: “Não deixe que me matem”, e sem transição
retomou sua voz profissional para queixar-se da solidão e do abandono.
Bateram na porta dos fundos e Eva mordeu os lábios como se tivesse
querido acrescentar alguma coisa (mas isso foi algo que ocorreu a Rice,
confuso demais para reagir a tempo), e se levantou para dar as boas-vindas
a Michael, que chegava com o sorriso fátuo que já havia exibido
intoleravelmente no primeiro ato. Uma dama vestida de vermelho, um
ancião: de repente o palco se enchia de gente que trocava cumprimentos,
flores e notícias. Rice apertou as mãos que lhe estendiam e tornou a sentar-
se o mais depressa possível no sofá, entrincheirando-se atrás de outro
cigarro; agora a ação parecia prescindir dele e o público recebia com
murmúrios satisfeitos uma série de brilhantes jogos de palavras de Michael
e dos atores coadjuvantes, enquanto Eva tomava conta do chá e dava ordens
ao criado. Talvez fosse o momento de aproximar-se da boca de cena, deixar
cair o cigarro e esmagá-lo com o pé, para em seguida anunciar:
“Respeitável público…”. Mas talvez fosse mais elegante (Não deixe que me
matem) esperar a queda da cortina e então, adiantando-se rapidamente,
revelar a tramoia. Em todo caso havia uma espécie de lado cerimonial que
não era penoso acatar; à espera de sua deixa, Rice entrou no diálogo que o
cavalheiro idoso lhe propunha, aceitou a xícara de chá que Eva lhe oferecia
sem olhá-lo de frente, como sabendo-se observada por Michael e pela dama
de vermelho. Tudo se resumia a resistir, a fazer frente a um tempo
interminavelmente tenso, a ser mais forte que a ignóbil coalizão que
pretendia transformá-lo num fantoche. Já havia ficado fácil para ele
perceber como as frases que lhe dirigiam (às vezes Michael, às vezes a
dama de vermelho, agora quase nunca Eva) traziam implícita a resposta;
que o fantoche respondesse o previsível, a peça podia continuar. Rice
pensou que se houvessem lhe dado um pouco mais de tempo para dominar a
situação, teria sido divertido responder em contraponto, deixando os atores
em dificuldades; mas não consentiriam que fizesse isso, sua falsa liberdade
de ação só lhe deixava a alternativa da rebelião declarada, do escândalo.
Não deixe que me matem, dissera Eva; de alguma maneira, tão absurda
quanto todo o resto, Rice continuava sentindo que era melhor esperar. A
cortina caiu sobre uma réplica sentenciosa e amarga da dama de vermelho,
e Rice teve a sensação de que os atores eram figuras que subitamente
tivessem descido um degrau invisível: diminuídos, indiferentes (Michael
dava de ombros, virando as costas e desaparecendo no fundo do palco),
saíam de cena sem olhar uns para os outros, mas Rice percebeu que Eva
voltava a cabeça para ele enquanto a dama de vermelho e o ancião a
conduziam amavelmente pelo braço na direção dos bastidores da direita.
Pensou em ir atrás dela, teve uma vaga esperança de camarim e conversa
privada. “Magnífico”, disse o homem alto, dando tapinhas em seu ombro.
“Muito bem, realmente seu desempenho foi excelente.” Apontava para a
cortina que deixava passar os últimos aplausos. “Gostaram de fato. Vamos
tomar alguma coisa.” Os outros dois homens estavam um pouco mais
afastados, sorrindo amavelmente, e Rice desistiu de ir atrás de Eva. O
homem alto abriu uma porta no final do primeiro corredor e todos entraram
numa saleta onde havia poltronas caindo aos pedaços, um armário, uma
garrafa de uísque já começada e belíssimos copos de vidro talhado.
“Desempenho excelente”, insistiu o homem alto enquanto o grupo se
sentava em torno de Rice. “Com um pouco de gelo, não é mesmo? Claro,
qualquer um estaria com a garganta seca.” O homem de cinza se adiantou à
recusa de Rice e lhe estendeu um copo quase cheio. “O terceiro ato é mais
difícil mas ao mesmo tempo mais prazeroso para Howell”, disse o homem
alto. “O senhor já viu como os jogos vão se explicitando.” Começou a
explicar a trama, agilmente e sem vacilar. “De certa maneira o senhor
complicou as coisas”, disse. “Nunca imaginei que teria uma atitude tão
passiva diante da sua mulher, eu teria reagido de outra forma.” “Como?”,
perguntou Rice secamente. “Ah, querido amigo, não é justo que me
pergunte isso. Minha opinião poderia alterar suas próprias decisões, visto
que o senhor já deve ter um plano preconcebido. Ou não?” Como Rice
silenciava, acrescentou: “Se lhe digo isso é precisamente porque não se
trata de ter planos preconcebidos. Estamos todos satisfeitos demais para
arriscar-nos a estragar o resto”. Rice engoliu um longo gole de uísque.
“Contudo, no segundo ato o senhor me disse que eu poderia fazer o que
quisesse”, observou. O homem de cinza começou a rir, mas o homem alto
olhou para ele e o outro fez um gesto rápido de escusas. “Existe uma
margem para a aventura ou o acaso, como o senhor preferir”, disse o
homem alto. “A partir de agora lhe imploro que se atenha ao que vou lhe
indicar, entende-se que dentro da máxima liberdade nos detalhes.” Abrindo
a mão direita com a palma para cima, olhou fixamente para ela enquanto o
indicador da outra mão ia apoiar-se nela uma e outra vez. Entre um gole e
outro (haviam enchido seu copo novamente), Rice escutou as instruções
para John Howell. Estimulado pelo álcool e por algo semelhante a um lento
voltar-se para si mesmo que o fazia ser tomado por uma fria cólera,
descobriu sem esforço o sentido das instruções, a preparação da trama que
deveria desembocar numa crise no último ato. “Espero que tenha ficado
claro”, disse o homem alto com um movimento circular do dedo na palma
da mão. “Está muito claro”, disse Rice levantando-se, “mas além disso eu
gostaria de saber se no quarto ato…” “Evitemos confusões, querido amigo”,
disse o homem alto. “No próximo intervalo voltaremos ao assunto, mas
agora lhe sugiro que se concentre exclusivamente no terceiro ato. Ah, a
indumentária de rua, por favor.” Rice sentiu que o homem mudo
desabotoava sua jaqueta; o homem de cinza tirara do armário um terno de
tweed e um par de luvas; mecanicamente, Rice trocou de roupa sob os
olhares aprovadores dos três. O homem alto havia aberto a porta e estava à
espera; ao longe, ouvia-se a campainha. “Esta maldita peruca me faz sentir
calor”, pensou Rice, acabando o uísque com um gole só. Quase em seguida
viu-se entre novos bastidores, sem se opor à amável pressão da mão no
cotovelo. “Ainda não”, disse o homem alto mais atrás. “Lembre-se de que
no parque faz frio. Talvez, se levantasse a gola da jaqueta… Vamos, é sua
hora de entrar.” De um banco à beira da trilha, Michael adiantou-se para
ele, saudando-o com uma brincadeira. Seu papel era o de responder
passivamente e discutir os méritos do outono no Regent’s Park, até que
chegassem Eva e a dama de vermelho, que estariam alimentando os cisnes.
Pela primeira vez — e para ele foi quase tão surpreendente quanto para os
demais —, Rice pôs ênfase numa alusão que o público pareceu apreciar e
que obrigou Michael a se pôr na defensiva, forçando-o a utilizar os recursos
mais visíveis do ofício para encontrar uma saída; dando-lhe bruscamente as
costas enquanto acendia um cigarro, como se quisesse proteger-se do vento,
Rice olhou por cima dos óculos e viu os três homens entre os bastidores, o
braço do homem alto fazendo-lhe um gesto ameaçador. Riu entre dentes
(devia estar um pouco embriagado e além disso se divertia, aquele braço em
movimento parecia-lhe extremamente engraçado) antes de se virar e apoiar
uma das mãos no ombro de Michael. “Veem-se coisas regozijantes nos
parques”, disse Rice. “Realmente não entendo que alguém possa perder
tempo com cisnes ou amantes quando se está num parque londrino.” O
público riu mais que Michael, excessivamente interessado na chegada de
Eva e da dama de vermelho. Sem vacilar, Rice continuou nadando contra a
corrente, violando pouco a pouco as instruções, numa esgrima feroz e
absurda contra atores habilíssimos que se esforçavam por fazê-lo voltar a
seu papel e às vezes conseguiam, mas ele tornava a escapulir para de
alguma forma ajudar Eva, sem saber bem por quê, mas dizendo para si
mesmo (e lhe dava vontade de rir, e devia ser o uísque) que tudo o que
mudasse naquele momento alteraria inevitavelmente o último ato (Não
deixe que me matem). E os outros haviam se dado conta de sua intenção
porque bastava olhar por cima dos óculos na direção dos bastidores da
esquerda para ver os gestos iracundos do homem alto, fora e dentro do
palco estavam lutando contra ele e Eva, se interpunham para que os dois
não pudessem se comunicar, para que ela não conseguisse dizer-lhe nada, e
agora chegava o cavalheiro ancião seguido de um lúgubre chofer, havia
uma espécie de momento de calmaria (Rice lembrava-se das instruções:
uma pausa, em seguida a conversa sobre a compra de ações, depois a frase
reveladora da dama de vermelho, e cortina), e nesse intervalo em que
forçosamente Michael e a dama de vermelho deveriam se afastar para que o
cavalheiro falasse com Eva e Howell sobre a manobra acionária (realmente
não faltava nada naquela peça), o prazer de escangalhar um pouco mais a
ação encheu Rice de algo semelhante a felicidade. Com um gesto que
deixava bem claro o profundo desprezo que lhe inspiravam as especulações
de risco, tomou Eva pelo braço, se esquivou à manobra envolvente do
enfurecido e sorridente cavalheiro, e caminhou com ela ouvindo a suas
costas uma muralha de palavras engenhosas que não lhe diziam respeito,
exclusivamente inventadas para o público, e em compensação Eva, essa
sim, em compensação um hálito morno não mais que um segundo contra
sua face, o leve murmúrio de sua voz verdadeira dizendo: “Fique comigo
até o final”, interrompido por um movimento instintivo, o hábito que a fazia
responder à interpelação da dama de vermelho, arrastando Howell para que
ele recebesse em pleno rosto as palavras reveladoras. Sem pausa, sem a
minúscula fresta de que teria necessitado para poder alterar o rumo que
aquelas palavras davam definitivamente ao que haveria de vir mais tarde,
Rice viu cair a cortina. “Imbecil”, disse a dama de vermelho. “Saia, Flora”,
ordenou o homem alto, junto de Rice, que sorria satisfeito. “Imbecil”,
repetiu a dama de vermelho, segurando o braço de Eva, que baixara a
cabeça e havia assumido um ar ausente. Um empurrão mostrou o caminho a
Rice, que se sentia perfeitamente feliz. “Imbecil”, disse por sua vez o
homem alto. O safanão na cabeça foi quase brutal, mas Rice tirou sozinho
os óculos e os estendeu ao homem alto. “O uísque não era tão ruim”, disse.
“Se quiser me passar as instruções para o último ato…” Outro safanão
quase o derruba e quando conseguiu se endireitar, sentindo uma ligeira
náusea, já avançava aos tropeções por uma galeria mal iluminada; o homem
alto desaparecera e os outros dois se comprimiam contra ele, obrigando-o a
seguir em frente com a mera pressão de seus corpos. Havia uma porta com
uma lampadinha alaranjada no alto. “Troque a roupa”, disse o homem de
cinza, entregando-lhe seu terno. Quase sem lhe dar tempo de vestir a
jaqueta, abriram a porta com um pontapé; o empurrão o pôs para fora
trançando as pernas, viu-se na calçada de um beco cheirando a lixo. “Filhos
da mãe, vou acabar pegando uma pneumonia”, pensou Rice, enfiando as
mãos nos bolsos. Havia luzes na extremidade mais afastada do beco, de
onde vinha o rumor do trânsito. Na primeira esquina (não haviam tirado seu
dinheiro nem seus documentos) Rice reconheceu a entrada do teatro. Como
nada o impedia de assistir ao último ato de seu assento, entrou para o calor
do foyer, para a fumaça e as pessoas conversando no bar; havia tempo para
tomar outro uísque, mas se sentia incapaz de pensar no que quer que fosse.
Um pouco antes de subir a cortina atinou em se perguntar quem faria o
papel de Howell no último ato e se algum outro pobre infeliz estaria
passando por amabilidades e ameaças e óculos; mas a brincadeira devia
terminar todas as noites da mesma maneira, porque logo depois reconheceu
o ator do primeiro ato, lendo uma carta em seu escritório para em seguida
estendê-la em silêncio para uma Eva pálida e vestida de cinza. “É
escandaloso”, comentou Rice virando-se para o espectador da esquerda.
“Como permitem que um ator seja trocado no meio de uma peça?” O
espectador suspirou, fatigado. “Nunca se sabe, com esses autores jovens”,
disse. “Tudo é símbolo, suponho.” Rice se acomodou no assento
saboreando malignamente o murmúrio dos espectadores, que não pareciam
aceitar com tanta passividade quanto seu vizinho as alterações físicas de
Howell; e mesmo assim a ilusão do teatro os dominou quase na mesma
hora, o ator era excelente e a ação se precipitava de um modo que
surpreendeu inclusive Rice, perdido numa agradável indiferença. A carta
era de Michael, anunciando sua partida da Inglaterra; Eva a leu e devolveu-
a em silêncio; dava para perceber que chorava contidamente. Fique comigo
até o final, dissera Eva. Não deixe que me matem, dissera Eva
absurdamente. Da segurança da plateia era inconcebível que pudesse lhe
acontecer alguma coisa naquele cenário de pacotilha; tudo fora uma
enganação contínua, uma longa hora de perucas e árvores pintadas. É claro
que a inefável dama de vermelho invadia a melancólica paz do escritório
onde o perdão e quem sabe o amor de Howell eram perceptíveis em seus
silêncios, em seu jeito quase distraído de rasgar a carta e atirá-la ao fogo.
Parecia inevitável que a dama de vermelho insinuasse que a partida de
Michael era um estratagema, e também que Howell lhe desse a entender um
desprezo que não impediria um convite cortês para o chá. Rice achou
vagamente divertida a chegada do criado com a bandeja; o chá parecia um
dos principais recursos do comediógrafo, sobretudo agora que a dama de
vermelho manipulava em algum momento um frasquinho de melodrama
romântico enquanto as luzes iam baixando de um modo totalmente
inexplicável no escritório de um advogado londrino. Houve um telefonema
que Howell atendeu com perfeita compostura (era previsível a queda das
ações ou qualquer outra crise para o desenlace); as xícaras passaram de mão
em mão com os sorrisos pertinentes, o bom-tom que antecede as catástrofes.
Rice considerou quase inconveniente o gesto de Howell no momento em
que Eva levava a xícara aos lábios, seu brusco movimento e o chá se
derramando sobre o vestido cinza. Eva estava imóvel, quase ridícula;
naquela imobilização instantânea das atitudes (Rice se retesara sem saber
por quê, e alguém zombava impaciente atrás dele), a exclamação
escandalizada da dama de vermelho se superpôs ao leve estalido, à mão de
Howell se erguendo para anunciar alguma coisa, a Eva que virava a cabeça
e olhava para o público como se não quisesse acreditar e depois escorregava
de lado até ficar quase estendida no sofá, numa lenta retomada do
movimento que Howell pareceu receber e prosseguir com sua brusca
corrida rumo aos bastidores da direita, sua fuga que Rice não viu, porque
também ele já estava correndo pelo corredor central antes ainda que os
outros espectadores tivessem se movido. Descendo a escada aos saltos, teve
a presença de espírito de apresentar seu talão na chapelaria para recuperar o
casaco; quando estava chegando à porta ouviu os primeiros rumores do
final da peça, aplausos e vozes na sala; alguém do teatro corria escadas
acima. Fugiu na direção da Kean Street, e ao passar junto ao beco lateral
teve a impressão de ver uma sombra avançando rente à parede; a porta por
onde o haviam expulsado estava entreaberta, mas Rice ainda não terminara
de registrar essas imagens e já corria pela rua iluminada, e em lugar de se
afastar da zona do teatro descia outra vez pela Kingsway, prevendo que
ninguém teria a ideia de procurá-lo nas cercanias do teatro. Entrou na
Strand (erguera a gola do casaco e andava depressa, com as mãos nos
bolsos) até se perder, com um alívio que ele mesmo não conseguia explicar,
na vaga região de ruelas internas que saíam da Chancery Lane. Apoiando-se
numa parede (estava um pouco ofegante e sentia o suor grudar-lhe a camisa
à pele), acendeu um cigarro e pela primeira vez se perguntou
explicitamente, utilizando todas as palavras necessárias, por que estava
fugindo. Os passos que se aproximavam interpuseram-se entre ele e a
resposta que buscava, enquanto corria pensou que se conseguisse atravessar
o rio (já estava perto da ponte de Blackfriars) se sentiria a salvo. Refugiou-
se num portal, afastado do poste que iluminava a saída na direção da
Watergate. Algo queimou sua boca; arrancou com um repelão o toco de
cigarro esquecido e sentiu que lhe rasgava os lábios. No silêncio que o
envolvia, dedicou-se a repetir as perguntas não respondidas, contudo
ironicamente se interpunha a ideia de que só estaria a salvo se conseguisse
atravessar o rio. Era ilógico, os passos também poderiam segui-lo pela
ponte, por qualquer ruela da outra margem; e mesmo assim optou pela
ponte, correu a favor de um vento que o ajudou a deixar o rio para trás e
perder-se num labirinto que não conhecia até chegar a uma área mal
iluminada; a terceira parada da noite num profundo e estreito beco sem
saída deixou-o finalmente diante da única pergunta importante, e Rice
compreendeu que era incapaz de encontrar a resposta. Não deixe que me
matem, dissera Eva, e ele fizera o possível, desajeitada e miseravelmente,
mas mesmo assim eles a haviam matado e ele precisava fugir porque não
era possível que a peça terminasse assim, que a xícara de chá se derramasse
inofensivamente sobre o vestido de Eva, e mesmo assim Eva deslizara até
ficar estendida no sofá; acontecera outra coisa sem que ele estivesse ali para
impedi-lo, fique comigo até o final, Eva suplicara, mas eles o haviam
expulsado do teatro, eles o haviam afastado daquilo que precisava acontecer
e que ele, idiotamente instalado em seu assento, contemplara sem
compreender ou compreendendo a partir de outra região de si mesmo, onde
havia medo e fuga, e agora, pegajoso como o suor que lhe escorria pela
barriga, nojo de si mesmo. “Mas eu não tenho nada a ver”, pensou. “E não
aconteceu nada; não é possível que esse tipo de coisa aconteça.” Repetiu-se
com aplicação: não era possível que o tivessem abordado para propor-lhe
aquela insensatez, para ameaçá-lo amavelmente; os passos que se
aproximavam só podiam ser os de um vagabundo qualquer, passos que não
deixavam rastros. O homem ruivo que se deteve ao seu lado quase sem
olhar para ele e que tirou os óculos com um gesto convulsivo para tornar a
pô-los depois de esfregá-los com a aba da jaqueta era simplesmente alguém
que se parecia com Howell, com o ator que fizera o papel de Howell e havia
derramado a xícara de chá sobre o vestido de Eva. “Tire essa peruca”, disse
Rice, “eu o reconheceria onde quer que fosse.” “Não é peruca”, disse
Howell (talvez se chamasse Smith, ou Rogers, já nem se lembrava do nome
dele no programa). “Que burro que eu sou”, disse Rice. Era previsível que
tivessem preparado uma cópia exata dos cabelos de Howell, assim como os
óculos haviam sido uma réplica dos de Howell. “O senhor fez o que pôde”,
disse Rice, “eu estava na plateia e vi; todo mundo poderá depor a seu
favor.” Howell tremia, apoiado na parede. “Não é isso”, disse. “Que
diferença faz, se mesmo assim eles fizeram o que pretendiam.” Rice
inclinou a cabeça; estava tomado por um cansaço invencível. “Eu também
tentei salvá-la”, disse, “mas não me deixaram prosseguir.” Howell olhou
para ele cheio de rancor. “É sempre a mesma coisa”, disse, como se falasse
consigo mesmo. “É típico dos aficionados, acham que conseguem se ocupar
do assunto melhor que os outros e no fim não adianta nada.” Ergueu a gola
da jaqueta, enfiou as mãos nos bolsos. Rice teria querido perguntar-lhe:
“Por que é sempre a mesma coisa? E sendo assim, por que estamos
fugindo?”. O assobio pareceu enveredar pelo beco, procurando-os.
Correram lado a lado por muito tempo, até se deter em algum canto que
cheirava a petróleo, a rio estagnado. Descansaram por um momento atrás de
uma pilha de trouxas; Howell ofegava como um cachorro e Rice sentia
cãibras numa das panturrilhas. Massageou-a, apoiando-se nas trouxas,
equilibrando-se com dificuldade sobre um só pé. “Mas talvez não seja
assim tão grave”, murmurou. “O senhor disse que era sempre a mesma
coisa.” Howell cobriu a boca de Rice com a mão; ouviam-se dois apitos
alternadamente. “Cada um por si”, disse Howell. “Talvez um de nós consiga
escapar.” Rice compreendeu que ele tinha razão, mas teria querido que
antes Howell respondesse a sua pergunta. Segurou-o por um braço,
puxando-o com toda a força. “Não me deixe aqui assim”, suplicou. “Não
posso continuar fugindo sempre, sem saber.” Sentiu o cheiro ardido das
trouxas, sua mão como se estivesse oca no ar. Passos corriam, distanciando-
se; Rice se inclinou, tomou impulso e partiu na direção oposta. À luz de um
poste viu um nome qualquer: Rose Alley. Adiante estava o rio, alguma
ponte. Não faltavam pontes nem ruas por onde correr.
Todos os fogos o fogo
A
ssim será algum dia sua estátua, pensa ironicamente o procônsul
enquanto ergue o braço, fixa-o no gesto da saudação, deixa-se
petrificar pela ovação de um público que duas horas de circo e
calor não cansaram. Está na hora da surpresa prometida; o
procônsul baixa o braço, olha para a mulher, que lhe devolve o sorriso
inexpressivo das festas. Irene não sabe o que virá a seguir e ao mesmo
tempo é como se soubesse, até o inesperado acaba em hábito quando se
aprendeu a tolerar, com a indiferença que o procônsul detesta, os caprichos
do amo. Sem nem mesmo se voltar para a arena, prevê uma sorte já lançada,
uma sucessão cruel e monótona. Licas o vinhateiro e sua mulher Urânia são
os primeiros a gritar um nome que a multidão recolhe e repete. “Eu havia
guardado esta surpresa para ti”, diz o procônsul. “Me garantiram que gostas
do estilo desse gladiador.” Sentinela de seu sorriso, Irene inclina a cabeça
para agradecer. “Posto que nos fazes a honra de acompanhar-nos, embora os
jogos te aborreçam”, acrescenta o procônsul, “é justo que eu procure
oferecer-te o que mais te agrada.” “És o sal do mundo!”, grita Licas. “Fazes
descer a própria sombra de Marte à nossa pobre arena de província!”
“Ainda não viste nem metade”, diz o procônsul, molhando os lábios num
cálice de vinho e oferecendo-o à mulher. Irene bebe um gole prolongado,
que parece levar com seu perfume suave o odor espesso e persistente do
sangue e do estrume. Num brusco silêncio de expectativa que o recorta com
uma precisão implacável, Marco avança para o centro da arena; sua curta
espada brilha ao sol, no ponto onde o velho velário deixa passar um raio
oblíquo, e o escudo de bronze pende negligente da mão esquerda. “Não o
farás lutar com o vencedor de Smirnio?”, pergunta excitadamente Licas.
“Melhor que isso”, diz o procônsul. “Eu gostaria de ser lembrado por tua
província devido a esses jogos, e que por um momento minha mulher deixe
de entediar-se.” Urânia e Licas aplaudem, à espera da resposta de Irene,
mas ela devolve o cálice ao escravo em silêncio, indiferente ao clamor que
saúda a chegada do segundo gladiador. Imóvel, Marco também parece
indiferente à ovação que acolhe seu adversário; com a ponta da espada, toca
de leve suas grevas douradas.
“Alô”, diz Roland Renoir, escolhendo um cigarro como uma continuação
ineludível do gesto de tirar o telefone do gancho. Na linha há uma
crepitação de comunicações misturadas, alguém que recita números, de
repente um silêncio ainda mais escuro naquela escuridão que o telefone
verte no olho do ouvido. “Alô”, repete Roland, apoiando o cigarro na borda
do cinzeiro e procurando os fósforos no bolso da túnica. “Sou eu”, diz a voz
de Jeanne. Como Roland não responde, ela acrescenta: “Sonia acaba de
sair”.
Sua obrigação é fitar o camarote imperial, fazer a saudação de praxe. Sabe
que deve fazê-la e que verá a mulher do procônsul e o procônsul, e que
talvez a mulher sorria para ele como nos últimos jogos. Não tem
necessidade de pensar, quase não sabe pensar, mas o instinto lhe diz que
aquela arena é cruel, o enorme olho de bronze no qual os rastelos e as
folhas de palmeira desenharam suas encurvadas veredas sombreadas por um
ou outro rastro das lutas precedentes. Esta noite sonhou com um peixe,
sonhou com um caminho solitário entre colunas partidas; enquanto se
armava, alguém murmurou que o procônsul não lhe pagará com moedas de
ouro. Marco não se deu ao trabalho de perguntar, e o outro começou a rir
maldosamente antes de se afastar sem lhe dar as costas; um terceiro, depois,
disse-lhe tratar-se de um irmão do gladiador morto por ele em Massilia, mas
já o empurravam para a galeria, para os clamores de fora. O calor é
insuportável, pesa-lhe o elmo que devolve os raios do sol de encontro ao
velário e às arquibancadas. Um peixe, colunas partidas; sonhos sem um
sentido claro, com poços de esquecimento nos momentos em que teria
podido entender. E o homem que o armava disse que o procônsul não lhe
pagará com moedas de ouro; talvez a mulher do procônsul não sorria para
ele esta tarde. Os clamores o deixam indiferente porque agora estão
aplaudindo o outro, aplaudem-no menos que a ele um momento antes, mas
entre os aplausos filtram-se gritos de assombro, e Marco levanta a cabeça,
olha para o camarote onde Irene se virou para falar com Urânia, onde o
procônsul negligentemente faz um sinal, e todo o seu corpo se contrai e sua
mão agarra o punho da espada. Bastou que voltasse os olhos para a galeria
oposta; não é por ali que surge seu rival, subiram, rangendo, as grades da
passagem sombria por onde fazem sair as feras, e Marco vê delinear-se a
silhueta gigantesca do reciário núbio, até então invisível contra o fundo de
pedra bolorenta; agora sim, aquém de toda razão, sabe que o procônsul não
lhe pagará com moedas de ouro, adivinha o sentido do peixe e das colunas
partidas. E ao mesmo tempo tanto se lhe dá o que vai acontecer entre o
reciário e ele, esse é o ofício e os fados, mas seu corpo continua contraído
como se tivesse medo, alguma coisa em sua carne se pergunta por que o
reciário saiu pela galeria das feras, e também, entre ovações, pergunta-o o
público, e Licas pergunta-o ao procônsul, que sorri para reforçar sem
palavras a surpresa, e Licas protesta rindo e se julga obrigado a apostar a
favor de Marco; antes de ouvir as palavras que virão, Irene sabe que o
procônsul dobrará a aposta a favor do núbio, e que depois olhará
amavelmente para ela e dará ordens para que lhe sirvam vinho gelado. E ela
beberá o vinho e comentará com Urânia a estatura e a ferocidade do reciário
núbio; cada movimento está previsto, embora ele o ignore em si mesmo,
embora possam faltar o cálice de vinho ou o gesto da boca de Urânia
enquanto admira o torso do gigante. Então Licas, especialista em
incontáveis pompas circenses, lhes fará notar que o elmo do núbio roçou as
extremidades pontudas da grade das feras, erguidas a dois metros do solo, e
elogiará a desenvoltura com que ele ajeita as escamas da malha sobre o
braço esquerdo. Como sempre, como foi desde uma já remota noite nupcial,
Irene se retrai até o limite mais profundo de si mesma enquanto por fora
condescende e sorri e até goza; nessa profundidade livre e estéril, sente o
sinal de morte que o procônsul dissimulou numa alegre surpresa pública, o
sinal que só ela e possivelmente Marco têm condições de compreender, mas
Marco não compreenderá, funéreo e silencioso e máquina, e seu corpo, que
ela desejou em outra tarde de circo (coisa que o procônsul adivinhou, sem
necessidade de seus magos adivinhou como sempre, desde o primeiro
instante), vai pagar o preço da mera imaginação, de um duplo olhar inútil
sobre o cadáver de um trácio destramente morto com um talho na garganta.
Antes de discar o número de Roland, a mão de Jeanne esteve nas páginas
de uma revista de modas, num tubo de comprimidos calmantes, no lombo
do gato acomodado no sofá. Depois a voz de Roland pronunciou: “Alô”,
uma voz um pouco sonolenta, e bruscamente Jeanne teve uma sensação de
ridículo, de que vai dizer a Roland aquilo que haverá de incorporá-la
definitivamente à galeria das queixosas telefônicas, com o único e irônico
espectador fumando num silêncio condescendente. “Sou eu”, diz Jeanne,
mas disse mais para si mesma do que para aquele silêncio oposto no qual
dançam, como se fosse sobre um pano de fundo, algumas chispas de som.
Olha para a mão que acariciou distraidamente o gato antes de discar os
algarismos (e por acaso não se ouvem outros algarismos ao telefone, não há
uma voz distante que dita números para alguém que não fala, que está ali
apenas para copiar, obediente?), recusando-se a acreditar que a mão que
pegou e largou outra vez o tubo de comprimidos é a sua mão, que a voz que
acaba de repetir “Sou eu” é a sua voz, à beira do limite. Por dignidade,
calar, lentamente devolver o fone a seu gancho, permanecer limpamente só.
“Sonia acaba de sair”, diz Jeanne, e o limite foi transposto, o ridículo tem
início, o pequeno inferno confortável.
“Ah”, diz Roland, riscando um fósforo. Jeanne ouve distintamente o
raspão, é como se visse o rosto de Roland enquanto ele aspira a fumaça,
jogando-se um pouco para trás com os olhos semicerrados. Um rio de
escamas brilhantes parece saltar das mãos do gigante negro e Marco tem o
tempo exato para esquivar o corpo à rede. Em outras vezes — o procônsul
sabe disso e vira a cabeça para que somente Irene o veja sorrir —
aproveitou esse instante mínimo que é o ponto fraco de todo reciário para
bloquear com o escudo a ameaça do longo tridente e investir a fundo, com
um movimento fulgurante, na direção do peito descoberto. Mas Marco se
mantém fora de alcance, encurvadas as pernas como a ponto de dar um
salto, enquanto o núbio recolhe velozmente a rede e prepara o novo ataque.
“Ele está perdido”, pensa Irene sem olhar para o procônsul, que escolhe
doces na bandeja que Urânia lhe apresenta. “Ele não é mais o que era”,
pensa Licas, lamentando sua aposta. Marco se inclinou um pouco,
acompanhando o movimento giratório do núbio; é o único que ainda não
sabe o que todos pressentem, é apenas algo que à espreita espera outra
oportunidade, com o vago desconforto de não ter feito o que a ciência lhe
indicava. Teria necessidade de mais tempo, as horas tabernárias que se
seguem aos triunfos, para quem sabe entender a razão pela qual o procônsul
não lhe pagará com moedas de ouro. Sombrio, espera outro momento
propício; quem sabe no final, com um pé sobre o cadáver do reciário, possa
encontrar de novo o sorriso da mulher do procônsul; mas isso quem pensa
não é ele, e quem o pensa já não acredita que o pé de Marco se crave no
peito de um núbio degolado.
“Decida”, diz Roland, “a menos que você queira que eu passe a tarde
ouvindo esse sujeito ditar números sei lá para quem. Você está ouvindo?”
“Estou”, diz Jeanne, “dá a impressão de falar de muito longe. Trezentos e
cinquenta e quatro, duzentos e quarenta e dois.” Por um momento ouve-se
apenas a voz distante e monótona. “Em todo caso”, diz Roland, “ele está
utilizando o telefone para fins práticos.” A resposta poderia ser a previsível,
a primeira queixa, mas Jeanne se cala por mais alguns segundos e repete:
“Sonia acaba de sair”. Hesita antes de acrescentar: “Provavelmente está
chegando a sua casa”. Para Roland seria uma surpresa, Sonia não tem por
que ir a sua casa. “Não minta”, diz Jeanne, e o gato foge de sua mão, olha
para ela ofendido. “Não era uma mentira”, diz Roland. “Me referia à hora,
não ao fato de vir ou deixar de vir. Sonia sabe que eu fico incomodado com
visitas e telefonemas a esta hora.” Oitocentos e cinco, dita de longe a voz.
Quatrocentos e dezesseis. Trinta e dois. Jeanne fechou os olhos, esperando a
primeira pausa naquela voz anônima para dizer a única coisa que resta
dizer. Se Roland bater o telefone sempre lhe restará aquela voz no fundo da
linha, poderá manter o fone no ouvido, escorregando cada vez mais no sofá,
acariciando o gato que tornou a se deitar de encontro a ela, brincando com o
tubo de comprimidos, escutando os números até que a outra voz também se
canse e não reste mais nada, absolutamente nada além do fone, que
começará a pesar tremendamente entre seus dedos, uma coisa morta que
será preciso repelir sem olhar. Cento e quarenta e cinco, diz a voz. E mais
longe ainda, como um minúsculo desenho a lápis, alguém que poderia ser
uma mulher tímida pergunta entre dois estalos: “Estação do Norte?”.
Pela segunda vez consegue se esquivar da rede, mas errou a medida do
salto para trás e escorrega numa mancha úmida da areia. Com um esforço
que faz o público se levantar em suspense, Marco repele a rede com um
volteio da espada enquanto estende o braço esquerdo e recebe no escudo o
golpe altissonante do tridente. O procônsul ignora os comentários excitados
de Licas e vira a cabeça para Irene, que não se moveu. “Agora ou nunca”,
diz o procônsul. “Nunca”, responde Irene. “Ele não é mais o que era”,
repete Licas, “e vai pagar caro por isso, o núbio não vai dar outra
oportunidade a ele, é só olhar para os dois.” À distância, quase imóvel,
Marco parece ter se dado conta do erro; com o escudo no alto, olha
fixamente para a rede já recolhida, para o tridente que oscila
hipnoticamente a dois metros de seus olhos. “Tens razão, ele não é mais o
mesmo.” “Havias apostado nele, Irene?” Agachado, prestes a saltar, Marco
sente na pele, no fundo do estômago, que a multidão o abandona. Se tivesse
um momento de calma poderia desfazer o laço que o paralisa, a corrente
invisível que começa muito atrás, só que sem que ele consiga saber onde, e
que em algum momento é a solicitação do procônsul, a promessa de uma
remuneração extraordinária e também um sonho no qual há um peixe e
sentir-se agora, quando já não há tempo para nada, a imagem mesma do
sonho à frente da rede que lhe dança diante dos olhos e parece capturar cada
raio de sol que se filtra pelos rasgões do velário. Tudo é corrente,
armadilha; endireitando o corpo com uma violência ameaçadora que o
público aplaude enquanto o reciário dá pela primeira vez um passo atrás,
Marco opta pelo único caminho, a confusão e o suor e o cheiro de sangue, a
morte à sua frente, que é preciso esmagar; alguém que o desejou por sobre o
corpo de um trácio agonizante. “O veneno”, diz Irene para si mesma, “ainda
vou encontrar o veneno, mas agora aceita esse cálice de vinho que ele lhe
oferece, sê mais forte, espera tua hora.” O intervalo parece se prolongar,
assim como se prolonga a insidiosa galeria negra na qual volta intermitente
a voz distante que repete números. Jeanne sempre acreditou que as
mensagens que verdadeiramente contam estão em algum momento aquém
de toda palavra; quem sabe esses números digam mais, sejam mais que todo
discurso para aquele que os escuta atentamente, como para ela o perfume de
Sonia, o roçar da palma da mão de Sonia em seu ombro antes de ela partir
foram tão mais que as palavras de Sonia. Mas era natural que Sonia não se
conformasse com uma mensagem cifrada, que quisesse pronunciá-la com
todas as letras, saboreando-a até o talo. “Entendo que para você vá ser
muito difícil”, repetiu Sonia, “mas detesto disfarces e prefiro lhe dizer a
verdade.” Quinhentos e quarenta e seis, seiscentos e sessenta e dois,
duzentos e oitenta e nove. “Não me interessa se ela vai ou não para sua
casa”, diz Jeanne, “agora nada mais me interessa.” Em lugar de outro
número há um longo silêncio. “Você está aí?”, pergunta Jeanne. “Estou”,
diz Roland, largando a bituca no cinzeiro e pegando sem pressa a garrafa de
conhaque. “O que eu não consigo entender…”, começa Jeanne. “Por favor”,
diz Roland, “nesses casos ninguém entende grande coisa, querida, e além
do mais não se ganha nada com entender. Lamento que Sonia tenha se
precipitado, não era a ela que competia lhe falar. E esse infeliz, não vai
acabar nunca com esses números?” A voz miúda, que faz pensar num
organizado mundo de formigas, continua seu ditado minucioso encoberto
por um silêncio mais próximo e mais espesso. “Mas você”, diz
absurdamente Jeanne, “então, você…”
Roland toma um gole de conhaque. Sempre gostou de escolher suas
palavras, de evitar os diálogos supérfluos. Jeanne irá repetir cada frase duas,
três vezes, acentuando-as de maneira diferente; ela que fale, que repita,
enquanto ele prepara o mínimo de respostas sensatas que ponham ordem
naquele alvoroço lamentável. Respirando forte, se endireita depois de uma
finta e de um avanço lateral; alguma coisa lhe diz que daquela vez o núbio
vai alterar a ordem do ataque, que o tridente se adiantará ao disparo da rede.
“Presta bem atenção”, explica Licas a sua mulher, “eu o vi fazer isso em
Apta Iulia, sempre os deixa desconcertados.” Mal defendido, desafiando o
risco de ingressar no campo da rede, Marco se joga para a frente e só então
levanta o escudo para se proteger do rio brilhante que foge como um raio da
mão do núbio. Atalha a borda da rede, mas o tridente golpeia para baixo e o
sangue espirra da coxa de Marco, enquanto a espada curta demais ressoa
inutilmente contra o cabo. “Não falei?”, grita Licas. O procônsul olha
atentamente para a coxa ferida, para o sangue que se espalha na greva
dourada; pensa, quase penalizado, que Irene teria gostado de acariciar
aquela coxa, de encontrar sua pressão e seu calor, gemendo do jeito que
sabe gemer quando ele a aperta para machucá-la. Dirá isso a ela naquela
noite mesmo e será interessante estudar o rosto de Irene em busca do ponto
fraco de sua máscara perfeita, que fingirá indiferença até o fim, como agora
finge um interesse civil na luta que faz uivar de entusiasmo uma plebe
bruscamente excitada pela iminência do fim. “A sorte o abandonou”, diz o
procônsul a Irene. “Quase me sinto culpado de tê-lo trazido até esta arena
de província; uma parte dele ficou em Roma, pelo que se vê.” E o resto
ficará aqui, com o dinheiro que apostei nele”, diz Licas, rindo. “Por favor,
não fique assim”, diz Roland, “é absurdo continuar falando por telefone
quando podemos nos ver esta noite mesmo. Repito o que lhe disse, Sonia se
precipitou, eu queria poupar você desse golpe.” A formiga parou de ditar
seus números e as palavras de Jeanne são distintamente audíveis; não há
lágrimas em sua voz, o que surpreende Roland, que preparou suas frases
prevendo uma avalanche de recriminações. “Me poupar do golpe?”, diz
Jeanne. “Mentindo, claro, me enganando de novo.” Roland suspira, descarta
as respostas que poderiam prolongar até o bocejo um diálogo entediante.
“Sinto muito, mas se você vai continuar assim, prefiro desligar”, diz, e pela
primeira vez há um tom de afabilidade em sua voz. “É melhor eu lhe fazer
uma visita amanhã, ao fim e ao cabo somos pessoas civilizadas, que diabo.”
De muito longe a formiga dita: oitocentos e oitenta e oito. “Não venha”, diz
Jeanne, e é divertido ouvir as palavras misturando-se aos números, não
oitocentos venha oitenta e oito “não venha nunca mais, Roland.” O drama,
as prováveis ameaças de suicídio, o enfado como foi com Marie Josée,
como foi com todas as que levam a questão para o lado trágico. “Não seja
boba”, aconselha Roland, “amanhã você vai entender melhor, é preferível
para os dois.” Jeanne se cala, a formiga dita números redondos: cem,
quatrocentos, mil. “Bom, até amanhã”, diz Roland, admirando o vestido de
rua de Sonia, que acaba de abrir a porta e se deteve com um ar entre
interrogativo e brincalhão. “Ela não perdeu tempo para ligar”, diz Sonia,
largando a bolsa e uma revista. “Até amanhã, Jeanne”, repete Roland. O
silêncio na linha parece se tensionar como um arco, até ser interrompido
secamente por um número distante, novecentos e quatro. “Chega de ditar
esses números idiotas!”, grita Roland com todas as suas forças, e antes de
afastar o fone do ouvido ainda escuta o clique do outro lado, o arco que
dispara sua flecha inofensiva. Paralisado, sabendo-se incapaz de evitar a
rede que não tardará a envolvê-lo, Marco confronta o gigante núbio, a
espada curta demais imóvel na extremidade do braço estendido. O núbio
relaxa a rede uma, duas vezes, recolhe-a em busca da posição mais
favorável, continua a girá-la como se quisesse prolongar o alarido do
público, que o incita a acabar com o rival, e desce o tridente enquanto
pende para um dos lados para dar mais impulso ao tiro. Marco vai ao
encontro da rede com o escudo no alto, e é uma torre que desmorona contra
uma massa negra, a espada se enterra em algo que mais acima uiva; a areia
entra em sua boca e em seus olhos, a rede cai inutilmente sobre o peixe que
se afoga.
Aceita indiferente as carícias, incapaz de sentir que a mão de Jeanne treme
um pouco e começa a esfriar. Quando os dedos deslizam por sua pele e se
detêm, cravando-se numa crispação instantânea, o gato se queixa, petulante;
depois despenca de costas e move as patas na atitude de expectativa que
sempre faz Jeanne dar risada, mas agora não, a mão dela continua imóvel ao
lado do gato e é muito de leve que um dedo ainda procura o calor de sua
pele, percorre-a brevemente antes de se imobilizar outra vez entre o flanco
morno e o tubo de comprimidos que rolou até ali. Atingido em pleno
estômago o núbio uiva, jogando-se para trás, e naquele último instante em
que a dor é como uma labareda de ódio, toda a força que escapa de seu
corpo se concentra no braço para enterrar o tridente nas costas do rival de
bruços. Cai sobre o corpo de Marco, e as convulsões o fazem girar de lado;
Marco move lentamente um braço, cravado na areia como um enorme
inseto brilhante.
“Não é frequente”, diz o procônsul voltando-se para Irene, “que dois
gladiadores desse mérito se matem mutuamente. Podemos felicitar-nos de
ter visto um espetáculo raro. Esta noite escreverei a meu irmão para
consolá-lo de seu casamento tedioso.”
Irene vê o braço de Marco mover-se, um lento movimento inútil, como se
quisesse arrancar do corpo o tridente enterrado em seu dorso. Imagina o
procônsul nu na areia, com o mesmo tridente cravado até o cabo. Mas o
procônsul não moveria o braço com aquela dignidade última; guincharia
esperneando como uma lebre, pediria perdão a um público indignado.
Aceitando a mão que o marido lhe estende para ajudá-la a levantar-se,
concorda uma vez mais; o braço deixou de mover-se, a única coisa que lhe
resta fazer é sorrir, refugiar-se na inteligência. O gato não parece gostar da
imobilidade de Jeanne, continua jogado de costas à espera de uma carícia;
depois, como se o incomodasse aquele dedo contra a pele do flanco, mia
incontidamente e dá meia-volta para se afastar, já esquecido e sonolento.
“Perdoe por aparecer a esta hora”, diz Sonia. “Vi seu carro na porta, era
muita tentação. Ela ligou para você, não é mesmo?” Roland apanha um
cigarro. “Você fez mal”, diz. “Supostamente essa tarefa compete aos
homens, afinal de contas fiquei mais de dois anos com Jeanne e ela é uma
boa garota.” “Ah, mas o prazer”, diz Sonia, servindo-se de conhaque.
“Nunca consegui perdoá-la por ser tão ingênua, não há nada que me
exaspere mais. Imagine que a primeira coisa que ela fez foi rir, convencida
de que era brincadeira da minha parte.” Roland olha para o telefone, pensa
na formiga. Agora Jeanne vai ligar de novo e ele vai ficar constrangido
porque Sonia sentou-se a seu lado e acaricia seu cabelo enquanto folheia
uma revista literária como se estivesse procurando ilustrações. “Você fez
mal”, repete Roland, puxando Sonia para si. “Em vir a esta hora?”, ri Sonia,
cedendo às mãos que tentam localizar, desajeitadas, o primeiro gancho. O
véu púrpura cobre os ombros de Irene, que dá as costas ao público à espera
de que o procônsul faça a última saudação. Às ovações já se mescla um
rumor de multidão em movimento, a carreira precipitada dos que tentam
chegar mais depressa à saída e ganhar as galerias inferiores. Irene sabe que
os escravos estarão arrastando os cadáveres e não se volta; é agradável
pensar que o procônsul aceitou o convite de Licas para cear em sua mansão
às margens do lago, onde o ar da noite a ajudará a esquecer o cheiro da
plebe, os últimos gritos, um braço movendo-se lentamente como se
acariciasse a terra. Não lhe é difícil esquecer, embora o procônsul a
atormente com a evocação minuciosa de tanto passado que o inquieta; um
dia Irene encontrará o jeito de fazê-lo, também ele, esquecer para sempre, e
de que as pessoas simplesmente o imaginem morto. “Vais ver o que nosso
cozinheiro inventou”, está dizendo a mulher de Licas. “Ele devolveu o
apetite a meu marido, e esta noite…” Licas ri e saúda os amigos, à espera
de que o procônsul abra a caminhada na direção da galeria depois de uma
última saudação que se faz esperar como se ele sentisse prazer em continuar
olhando para a arena onde os cadáveres são enganchados e arrastados.
“Estou tão feliz”, diz Sonia, apoiando o rosto no peito de Roland cheio de
sono. “Não diga isso”, murmura Roland, “a gente sempre imagina que se
trata de amabilidade.” “Você não acredita?”, diz Sonia, rindo. “Acredito,
mas não diga isso agora. Vamos fumar.” Tateia na mesinha até encontrar os
cigarros, põe um nos lábios de Sonia, aproxima o seu próprio, acende-os ao
mesmo tempo. Os dois se olham um pouco, sonolentos, e Roland sacode o
fósforo e o deposita na mesa sobre a qual em algum lugar há um cinzeiro.
Sonia é a primeira a adormecer e ele retira muito devagar o cigarro de sua
boca, reúne-o ao seu e abandona os dois na mesinha, deslizando para junto
de Sonia num sono pesado e sem imagens. O lenço de gaze arde sem chama
na borda do cinzeiro, consumindo-se lentamente, cai sobre o tapete ao lado
do monte de roupas e de um copo de conhaque. Parte do público vocifera e
se amontoa nas arquibancadas inferiores; o procônsul fez uma nova
saudação e em seguida sinaliza para que sua guarda lhe abra caminho.
Licas, o primeiro a compreender, lhe mostra o setor mais distante do velho
velário que começa a se desprender enquanto uma chuva de chispas cai
sobre o público, que procura atropeladamente as saídas. Gritando uma
ordem, o procônsul empurra Irene, sempre de costas e imóvel. “Depressa,
antes que eles se amontoem na galeria baixa”, grita Licas, precipitando-se à
frente da mulher. Irene é a primeira a sentir o cheiro do óleo fervente, o
incêndio dos depósitos subterrâneos; atrás, o velário cai sobre as costas dos
que lutam para abrir caminho em meio a uma massa de corpos entremeados
que entopem as galerias estreitas demais. Parte deles salta para a arena às
centenas, em busca de outras saídas, mas a fumaça do óleo apaga as
imagens, um pedaço de tecido flutua na extremidade das chamas e cai sobre
o procônsul antes que ele consiga se refugiar na passagem que leva à galeria
imperial. Irene se volta ao ouvi-lo gritar, arranca o tecido chamuscado de
cima dele, segurando-o com dois dedos, delicadamente. “Não vamos
conseguir sair”, diz, “estão todos amontoados ali embaixo feito animais.”
Então Sonia grita, querendo desprender-se do braço ardente que a envolve
de dentro do sono, e seu primeiro berro se confunde com o de Roland, que
procura inutilmente se erguer, sufocado pela fumaça negra. Ainda gritam,
cada vez mais baixo, quando o carro dos bombeiros entra a toda a
velocidade pela rua entupida de curiosos. “É no décimo andar”, diz o
tenente. “Vai ser duro, temos vento norte. Vamos.”
O outro céu
Ces yeux ne t’appartiennent pas… où les as-tu pris?
…, IV, V.
M
e acontecia às vezes de tudo fluir, se abrandar e se render,
aceitando sem resistência que fosse possível ir assim de uma
coisa para outra. Digo que me acontecia, embora uma
esperança idiota gostasse de acreditar que talvez ainda venha a
me acontecer. E por essa razão, se o fato de sair andando uma e outra vez
pela cidade parece um escândalo quando se tem família e trabalho, há
momentos em que torno a dizer a mim mesmo que já seria tempo de voltar
ao meu bairro predileto, esquecer minhas ocupações (sou corretor da Bolsa)
e, com um pouco de sorte, encontrar Josiane e ficar com ela até a manhã
seguinte.
Quem sabe quanto tempo faz que me repito isso tudo, e é penoso porque
houve uma época em que as coisas me ocorriam quando eu menos pensava
nelas, bastando empurrar de leve com o ombro qualquer recanto do ar. Em
todo caso, era só entrar na deriva prazerosa do cidadão que se deixa levar
por suas preferências em matéria de ruas e quase sempre meu passeio ia dar
no bairro das galerias cobertas, talvez porque desde sempre as passagens e
as galerias foram minha pátria secreta. Aqui, por exemplo, a Passagem
Güemes, território ambíguo onde há tanto tempo fui me desfazer da
infância como de uma roupa velha. Por volta de 1928 a Passagem Güemes
era a caverna do tesouro onde deliciosamente se misturavam a entrevisão do
pecado e as pastilhas de hortelã, onde se apregoavam as edições vespertinas
com crimes de página inteira e cintilavam as luzes da sala do subsolo onde
se projetavam inatingíveis filmes realistas. As Josianes daqueles dias
deviam olhar para mim com uma expressão entre maternal e divertida, eu
com uns miseráveis centavos no bolso mas andando como um homem,
chapéu requintado e mãos nos bolsos, fumando um Commander unicamente
porque meu padrasto havia profetizado que eu acabaria cego por culpa do
tabaco louro. Lembro-me principalmente de cheiros e sons, de algo como
uma expectativa e uma ansiedade, da banca onde dava para comprar
revistas com mulheres nuas e anúncios de falsas manicures, e já na época eu
era sensível àquele falso céu de estuques e claraboias sujas, àquela noite
artificial que ignorava a tolice do dia e do sol ali fora. Com falsa indiferença
eu me plantava diante das portas da passagem onde tinha início o último
mistério, os vagos elevadores que deveriam levar aos consultórios de
doenças venéreas e também aos supostos paraísos lá no alto, com mulheres
da vida e amorais, como os chamavam os jornais da época, com bebidas
preferentemente verdes em cálices biselados, vestindo batas de seda e
quimonos roxos, e os apartamentos teriam o mesmo perfume que saía das
lojas que eu julgava elegantes e que cintilavam na penumbra da passagem,
um bazar inatingível de frascos e caixas de vidro e cisnes rosa e pós rachel
e escovas de cabo transparente.
Ainda hoje tenho dificuldade em cruzar a Passagem Güemes sem me
enternecer ironicamente com a lembrança da adolescência à beira da queda;
o antigo fascínio se mantém sempre, e por isso eu gostava de sair andando
sem rumo fixo, sabendo que em qualquer momento entraria na área das
galerias cobertas, onde qualquer butique sórdida e empoeirada me atraía
mais que as vitrines oferecidas à insolência das ruas abertas. A Galerie
Vivienne, por exemplo, ou a Passage des Panoramas com suas ramificações,
seus atalhos que vão dar num sebo ou numa inexplicável agência de viagens
onde talvez ninguém jamais tenha comprado um bilhete de trem, esse
mundo que optou por um céu mais próximo, de vidros sujos e estuques com
figuras alegóricas que estendem as mãos para ofertar uma guirlanda, essa
Galerie Vivienne a um passo da ignomínia diurna da Rue Réaumur e da
Bolsa (eu trabalho na Bolsa), quanto desse bairro foi meu desde sempre,
desde muito antes de suspeitá-lo ele já era meu, quando posicionado num
canto da Passagem Güemes, contando minhas poucas moedas de estudante,
eu debatia a questão de gastá-las num bar automático ou comprar um
romance e um pacote sortido de balas azedinhas em sua embalagem de
papel transparente, com um cigarro que me enevoava os olhos e no fundo
do bolso, onde os dedos por vezes o roçavam, o envelopinho do
preservativo comprado com falsa desenvoltura numa farmácia atendida só
por homens, e que não teria a menor oportunidade de utilizar, com tão
pouco dinheiro e tanta infância no semblante.
Minha namorada, Irma, acha inexplicável que eu goste de perambular à
noite pelo centro ou pelos bairros do sul, e se soubesse de minha predileção
pela Passagem Güemes não deixaria de se escandalizar. Para ela, como para
minha mãe, não há melhor atividade social que o sofá da casa onde
transcorre aquilo que denominam a conversa, o café e o drinque de anis.
Irma é a melhor e mais generosa das mulheres, jamais me ocorreria falar a
ela sobre o que realmente me importa, e dessa maneira algum dia chegarei a
ser um bom marido e um pai cujos filhos serão entre outras coisas os tão
almejados netos de minha mãe. Suponho que por coisas assim acabei
conhecendo Josiane, mas não apenas por isso, já que eu poderia tê-la
encontrado no Boulevard Poissonière ou na Rue Notre-Dame-des-Victoires,
e em vez disso nos olhamos pela primeira vez na parte mais recôndita da
Galerie Vivienne, embaixo das figuras de gesso que o bico de gás enchia de
tremores (as guirlandas iam e vinham entre os dedos das Musas
empoeiradas), e logo me dei conta de que Josiane trabalhava naquele bairro
e que não era tão difícil localizá-la conhecendo os cafés ou privando da
amizade dos cocheiros. Talvez fosse coincidência, mas tê-la conhecido
naquele lugar, enquanto chovia no outro mundo, o do céu alto e sem
guirlandas da rua, me pareceu um sinal que ia além do encontro corriqueiro
com qualquer outra prostituta do bairro. Depois eu soube que naqueles dias
Josiane não se afastava da galeria porque era o tempo em que só se falava
nos crimes de Laurent e a coitadinha vivia aterrorizada. Um pouco desse
terror se transformava em graça, em gestos quase esquivos, em puro desejo.
Lembro-me do seu jeito de me olhar, entre ávida e desconfiada, suas
perguntas que fingiam indiferença, meu quase incrédulo encanto ao tomar
conhecimento de que ela vivia na parte de cima da galeria, minha
insistência em subir a sua mansarda em vez de ir ao hotel da Rue du Sentier
(onde ela tinha amigos e se sentia protegida). E sua confiança mais tarde,
como rimos naquela noite com a mera ideia de que eu pudesse ser Laurent,
e que bonita e doce era Josiane em sua mansarda de romance barato, com o
medo do estrangulador rondando por Paris e aquele jeito dela de se apertar
cada vez mais contra mim enquanto passávamos em revista os assassinatos
de Laurent.
Minha mãe sempre sabe se não dormi em casa, e embora naturalmente
não diga nada, visto que seria absurdo que dissesse, passa um ou dois dias
me olhando entre ofendida e intimidada. Sei muito bem que ela jamais
pensaria em contar a Irma, mas mesmo assim me incomoda a persistência
de um direito materno que nada mais justifica, e sobretudo que seja eu
quem acabe aparecendo com uma caixa de bombons ou uma planta para o
pátio, e que o presente tenha o significado muito preciso e subentendido de
assinalar o término da ofensa, a retomada da vida corrente do filho que
continua morando na casa da mãe. Sem dúvida Josiane ficava feliz quando
eu lhe contava esse tipo de episódio, que uma vez no bairro das galerias
passava a fazer parte de nosso mundo com a mesma lhaneza de seu
protagonista. O sentimento familiar de Josiane era muito vivo e estava
repleto de respeito pelas instituições e pelos parentescos; sou pouco afeito a
confidências, mas como de alguma coisa precisávamos falar e o que ela
havia permitido que eu soubesse sobre sua vida já fora comentado, quase
inevitavelmente voltávamos a meus problemas de homem solteiro. Outra
coisa nos aproximou, e também nisso tive sorte, porque Josiane gostava das
galerias cobertas, talvez por viver numa delas ou porque elas a protegiam
do frio e da chuva (eu a conheci num começo de inverno, com neves
prematuras que nossas galerias e seu mundo ignoravam alegremente). Nos
habituamos a andar juntos quando ela estava com tempo, quando alguém —
ela não gostava de chamá-lo pelo nome — estava suficientemente satisfeito
com ela para permitir que se divertisse um pouco com os amigos.
Falávamos pouco desse alguém, depois que fiz as inevitáveis perguntas e
ela me respondeu com as inevitáveis mentiras de toda relação mercenária;
ficava entendido que ele era o amo, mas tinha o bom gosto de não aparecer.
Cheguei a pensar que não lhe desagradava que eu fizesse companhia a
Josiane em algumas noites, pois a ameaça de Laurent pesava mais que
nunca sobre o bairro, depois de seu novo crime na Rue d’Aboukir, e a
pobrezinha não teria ousado se afastar da Galerie Vivienne depois do
anoitecer. Era o caso de sentir-se grato a Laurent e ao amo: o medo alheio
me servia para percorrer com Josiane as passagens e os cafés, descobrindo
que podia chegar a ser amigo de verdade de uma moça a quem não estava
ligado por nenhuma relação profunda. Fomos nos dando conta dessa
confiada amizade pouco a pouco, por meio de silêncios, de bobagens. O
quarto dela, por exemplo, a mansarda pequena e limpa cuja única realidade
para mim era a de fazer parte da galeria. No início eu havia subido por
Josiane, e, como não podia ficar por não ter dinheiro suficiente para pagar
por uma noite inteira e alguém estava à espera de uma prestação de contas
sem mácula, eu quase não via o que me circundava, e muito mais tarde,
quando estava a ponto de adormecer em meu pobre quarto com seu
almanaque ilustrado e sua cuia de prata como únicos luxos, eu tentava
evocar a mansarda e não conseguia saber como era, não via mais que
Josiane, e era o que bastava para que eu entrasse no sono como se ainda a
tivesse entre os braços. Mas com a amizade vieram as prerrogativas, talvez
a aquiescência do amo; Josiane muitas vezes dava um jeito de passar a noite
comigo, e seu quarto começou a preencher as lacunas de um diálogo que
nem sempre era fácil; cada boneca, cada estampa, cada enfeite foram se
instalando em minha memória e me ajudando a viver quando chegava o
momento de voltar para meu quarto ou de conversar com minha mãe ou
com Irma sobre a política nacional e as doenças nas famílias.
Mais tarde houve outras coisas, e entre elas a vaga silhueta daquele a
quem Josiane chamava de sul-americano, mas no começo tudo parecia girar
em torno do grande terror do bairro, alimentado pelo que um jornalista
imaginoso inventara de chamar a saga de Laurent, o estrangulador. Se num
dado momento trato de evocar a imagem de Josiane, é para vê-la entrar
comigo no café da Rue des Jeuneurs, instalar-se na banqueta de veludo
carmim e trocar cumprimentos com as amigas e o pessoal do bairro, frases
soltas que logo se transformam em Laurent, porque só de Laurent se fala no
bairro da Bolsa, e eu que trabalhei o dia todo sem parar e aguentei entre
duas rodadas de cotação os comentários de colegas e clientes a respeito do
último crime de Laurent, me pergunto se esse pesadelo ignóbil acabará
algum dia, se as coisas tornarão a ser como imagino que fossem antes de
Laurent, ou se seremos castigados por suas diversões macabras até o fim
dos tempos. E o mais irritante (digo isso a Josiane, depois de pedir o grogue
que tanta falta nos faz com esse frio e essa neve) é que nem sequer sabemos
seu nome, o bairro o chama de Laurent porque uma vidente da barreira de
Clichy viu numa bola de cristal o assassino escrever seu nome com um
dedo ensanguentado, e os jornalecos se guardam bem de contrariar os
instintos do público. Josiane não é boba, mas ninguém seria capaz de
convencê-la de que o assassino não se chama Laurent, e é inútil lutar contra
o ávido terror que pestaneja em seus olhos azuis que agora olham
distraidamente para os passos de um homem jovem, muito alto e um pouco
encurvado, que acaba de entrar e se apoia no mostrador sem cumprimentar
ninguém.
— Pode ser — diz Josiane, acatando alguma reflexão tranquilizadora que
devo ter inventado sem nem pensar. — Mas enquanto isso preciso subir
sozinha para meu quarto, e se o vento apaga minha vela entre dois
andares… Só de pensar em ficar no escuro na escada, e que talvez…
— É raro você subir sozinha — digo, rindo.
— Você faz troça, mas há muitas noites ruins, justamente quando neva ou
chove e tenho que voltar às duas da madrugada…
Segue-se a descrição de Laurent agachado num patamar de escada ou, pior
ainda, esperando-a em seu próprio quarto, onde entrou utilizando uma
gazua infalível. Na mesa ao lado Kiki estremece ostentosamente e solta uns
gritinhos que se multiplicam nos espelhos. Nós, homens, nos divertimos
enormemente com esses espantos teatrais, que contribuirão para
protegermos com mais prestígio nossas companheiras. Dá gosto fumar
umas cachimbadas no café, nessa hora em que o cansaço do trabalho
começa a esmaecer com o álcool e o tabaco e as mulheres comparam seus
chapéus e seus boás ou riem de coisa nenhuma; dá gosto beijar Josiane na
boca enquanto ela, pensativa, fica olhando o homem — praticamente um
rapagão — que nos dá as costas e bebe seu absinto aos golinhos, apoiando
um dos cotovelos no balcão. É curioso, agora que penso nisso: à primeira
imagem que me ocorre de Josiane, e que é sempre Josiane na banqueta do
café numa noite de neve e Laurent, vem somar-se inevitavelmente aquele
que ela chamava de o sul-americano, bebendo seu absinto e me dando as
costas. Também eu o chamo de o sul-americano, porque Josiane me
garantiu que ele o era e que soubera disso pela Rousse, que se deitara com
ele ou quase, e tudo isso sucedera antes que Josiane e a Rousse se
desentendessem por uma questão de esquinas ou de horários e agora o
lamentassem com meias palavras porque haviam sido muito boas amigas.
De acordo com a Rousse ele dissera que era sul-americano, embora falasse
sem o menor sotaque; havia lhe dito isso ao ir para a cama com ela, talvez
para ter algum assunto enquanto acabava de afrouxar os cadarços dos
sapatos.
— Com aquela carinha, quase um menino… Você não acha que ele parece
um estudante que cresceu de repente? Bom, você precisava ouvir o que a
Rousse conta sobre ele.
Josiane insistia no hábito de cruzar e descruzar os dedos toda vez que
narrava alguma coisa apaixonante. Me explicou o capricho do sul-
americano, nada tão extraordinário afinal, a recusa categórica da Rousse, a
partida do cliente pensativo. Perguntei se alguma vez o sul-americano a
abordara. Claro que não, pois devia saber que a Rousse e ela eram amigas.
Conhecia bem as duas, morava no bairro, e quando Josiane disse isso olhei
com mais atenção para ele e o vi pagar seu absinto jogando uma moeda no
pratinho de estanho, ao mesmo tempo que nos oferecia, distraído — e era
como se deixássemos de estar ali durante um interminável segundo —, uma
expressão distante e ao mesmo tempo estranhamente fixa, o semblante de
alguém que se imobilizou num momento de seu sono e se recusa a dar o
passo que o devolverá à vigília. Na verdade uma expressão como aquela,
embora o rapaz fosse praticamente um adolescente e possuísse traços muito
belos, poderia muito bem inspirar o pesadelo recorrente de Laurent. Não
perdi tempo em propô-lo a Josiane.
— Laurent? Você está louco! Mas se Laurent é…
O problema era que ninguém tinha a menor informação sobre Laurent,
embora Kiki e Albert nos ajudassem a continuar pesando as probabilidades
para divertir-nos. A teoria inteira veio abaixo quando o dono do café, que
milagrosamente escutava todos os diálogos do local, lembrou-nos de que
pelo menos uma coisa se sabia sobre Laurent: a força que lhe permitia
estrangular suas vítimas com uma só mão. E aquele rapaz, convenhamos…
Sim, e já estava tarde e convinha voltar para casa; eu tão sozinho, porque
Josiane passaria a noite com alguém que já a esperava na mansarda, alguém
que tinha a chave por direito próprio, e então a acompanhei até a primeira
sobreloja para que ela não se assustasse se sua vela se apagasse na metade
da subida, e tomado por um profundo cansaço súbito vi-a subir, talvez feliz,
embora tivesse declarado o contrário, e depois saí para a noite nevada e
glacial e fiquei andando sem rumo até que em algum momento encontrei
como sempre o caminho que me devolveria a meu bairro, com pessoas que
liam a sexta edição dos jornais ou olhavam pelas janelinhas do trem como
se realmente houvesse algo a ver naquele horário e naquelas ruas.
Nem sempre era fácil chegar à região das galerias e dar certo de ser um
momento livre de Josiane; quantas vezes eu acabava andando sozinho pelas
passagens, um pouco decepcionado, até sentir pouco a pouco que a noite
também era minha amante. Na hora em que os bicos de gás eram acesos, a
animação despertava em nosso reino, os cafés viravam a bolsa do ócio e do
contentamento, bebia-se a grandes goladas o fim da jornada de trabalho, as
manchetes dos jornais, a política, os prussianos, Laurent, as corridas de
cavalos. Eu gostava de saborear um cálice aqui e outro acolá, aguardando
sem pressa o momento em que descobriria a silhueta de Josiane em algum
ângulo das galerias ou em algum balcão. Caso ela já estivesse
acompanhada, um sinal combinado me informava sobre quando seria
possível encontrá-la sozinha; outras vezes ela se limitava a sorrir e eu ficava
com o resto do tempo para as galerias; eram as horas do explorador, e assim
fui entrando nas áreas mais remotas do bairro, na Galerie Sainte-Foy, por
exemplo, e nas remotas Passages du Caire, mas embora qualquer uma delas
me atraísse mais que as ruas abertas (e eram tantas, hoje era a Passage des
Princes, de outra vez a Passage Verdeau, e assim até o infinito), de todo
modo o término de uma longa ronda que eu mesmo não seria capaz de
reconstruir me devolvia sempre à Galerie Vivienne, não tanto por Josiane,
embora também por ela, como por suas grades protetoras, suas alegorias
vetustas, suas sombras no ângulo da Passage des Petits-Pères, aquele
mundo diferente onde não era preciso pensar em Irma e era possível viver
sem horários fixos, ao sabor dos encontros e da sorte. Com tão poucos
pontos de referência, não consigo calcular o tempo transcorrido até
casualmente voltarmos a falar no sul-americano; uma vez eu havia tido a
impressão de vê-lo sair de um portal da Rue Saint-Marc, envolto numa
dessas túnicas negras tão na moda cinco anos antes, acompanhadas de
chapéus de copa exageradamente alta, e fiquei tentado a me aproximar e
perguntar de onde ele vinha. Desisti ao pensar na fria cólera com que eu
mesmo teria recebido uma interpelação do gênero, mas Josiane logo opinou
que havia sido uma besteira da minha parte, talvez porque o sul-americano
a interessasse a seu modo, com um pouco de ofensa de grupo e muito de
curiosidade. Lembrou-se de que umas noites antes pensara reconhecê-lo de
longe na Galerie Vivienne, embora aparentemente ele não a frequentasse.
— Não gosto daquele jeito dele de olhar para a gente — disse Josiane. —
Antes eu não me incomodava, mas depois que você falou no Laurent…
— Josiane, quando eu fiz aquela brincadeira a gente estava com a Kiki e
com o Albert. O Albert é informante da polícia, como você deve saber.
Então eu ia deixar passar a oportunidade? Vai que ele acha a ideia viável? A
cabeça do Laurent vale muito dinheiro, querida.
— Não gosto dos olhos dele — teimou Josiane. — Além do fato de que
ele não olha para a gente, a verdade é que crava os olhos, mas não olha. Se
um dia ele vier falar comigo, saio correndo, juro por esta cruz.
— Você está com medo de um menino. Ou será que acha que todos nós,
sul-americanos, parecemos orangotangos?
Dá para imaginar como esses diálogos acabavam. Íamos tomar um grogue
no café da Rue des Jeuneurs, andávamos pelas galerias, pelos teatros do
bulevar, subíamos para a mansarda, morríamos de rir. Houve algumas
semanas — para determinar um período, é tão difícil ser justo com a
felicidade — em que tudo nos fazia rir, até as besteiras de Badinguet e o
medo da guerra nos divertiam. É quase ridículo admitir que uma coisa tão
desproporcionalmente inferior como Laurent pudesse acabar com nosso
contentamento, mas foi o que aconteceu. Laurent matou outra mulher na
Rue Beauregard — tão perto, afinal de contas — e a turma do café ficou em
estado de alerta, e Marthe, que entrara correndo para gritar a notícia, acabou
numa explosão de choro histérico que de algum modo nos ajudou a engolir
a bola presa em nossa garganta. Naquela mesma noite a polícia passou
todos nós por seu pente mais fino, de café em café e de hotel em hotel;
Josiane foi atrás do amo e eu deixei que fosse, compreendendo que
estivesse precisando da proteção suprema que resolvia todas as
dificuldades. Mas como no fundo essas coisas me afundavam numa vaga
tristeza — as galerias não eram para isso, não deviam ser para isso —,
comecei a beber com Kiki e depois com a Rousse, que andava atrás de mim
para que eu fizesse a ponte para uma reconciliação com Josiane. Bebia-se
muito em nosso café, e naquela névoa quente das vozes e das bebidas
pareceu-me quase justo que à meia-noite o sul-americano se instalasse
numa mesa do fundo e pedisse seu absinto com a expressão de sempre,
bonita e ausente e desligada. No prelúdio da confidência da Rousse
respondi que já sabia e que afinal o jovem não era cego e seus gostos não
mereciam tanto rancor; ainda estávamos rindo das falsas bofetadas da
Rousse quando Kiki condescendeu em dizer que já havia estado no quarto
dele. Antes que a Rousse pudesse cravar-lhe as dez unhas de uma pergunta
previsível, eu quis saber como era esse quarto. “Ora, que diferença faz”,
dizia a Rousse desdenhosamente, mas Kiki já estava entrando em cheio
numa mansarda da Rue Notre-Dame-des-Victoires, tirando da cartola, como
um mau prestidigitador de bairro, um gato cinzento que no fundo parecia
ser a melhor lembrança de Kiki.
Eu a deixava falar, olhando o tempo todo para a mesa do fundo e dizendo
para mim mesmo que ao fim e ao cabo teria sido tão natural que eu me
aproximasse do sul-americano e lhe dissesse algumas frases em espanhol.
Quase fiz isso, e agora não passo de um dos muitos que se perguntam por
que em algum momento não fizeram o que tiveram vontade de fazer. Em
vez disso, fiquei ali com a Rousse e Kiki, fumando um novo cachimbo e
pedindo outra rodada de vinho branco; não me lembro bem do que estava
sentindo quando renunciei a meu impulso, mas era algo como um veto, o
sentimento de que se o transgredisse entraria em território inseguro. E não
obstante acho que fiz mal, que estive à beira de um ato que teria podido me
salvar. Me salvar do quê?, é o que me pergunto. Mas justamente disto:
salvar-me de hoje não poder fazer outra coisa a não ser me perguntar isso, e
que não haja outra resposta senão a fumaça do cigarro e essa vaga
esperança inútil que me segue pelas ruas como um cão sarnento.
Où sont-ils passés, les becs de gaz?
Que sont-elles devenues, les vendeuses d’amour?
…, VI, I
Pouco a pouco fui forçado a me convencer de que havíamos entrado em
tempos adversos, e de que enquanto Laurent e as ameaças prussianas nos
preocupassem àquele ponto, a vida nas galerias não voltaria a ser o que
havia sido. Minha mãe deve ter me achado abatido, porque me aconselhou a
tomar um fortificante, e os pais de Irma, que possuíam um chalé numa ilha
do rio Paraná, me convidaram a passar uma temporada de descanso e vida
saudável por lá. Tirei quinze dias de férias e sem a menor vontade fui para a
ilha, incomodado antecipadamente com o sol e os mosquitos. No primeiro
sábado, graças a um pretexto qualquer, voltei à cidade, percorri com passo
incerto ruas onde os saltos dos sapatos afundavam no asfalto mole. Daquela
errância tola guardei uma brusca recordação deliciosa: ao entrar ainda uma
vez na Passagem Güemes fui envolvido de repente pelo aroma do café, sua
violência já quase esquecida nas galerias onde o café era aguado e
requentado. Tomei duas xícaras, sem açúcar, saboreando e ao mesmo tempo
aspirando aquele aroma, queimando-me, feliz. Tudo o que aconteceu
depois, até o fim da tarde, ficou com outro cheiro, o ar úmido do centro se
encheu de poços de fragrância (voltei a pé para casa, acho que havia
prometido a minha mãe que jantaria com ela), e em cada poço do ar os
cheiros eram mais crus, mais intensos, sabão amarelo, café, tabaco escuro,
tinta de imprensa, erva-mate, tudo cheirava inflamadamente, e o sol e o céu
também eram mais crus, mais realçados. Durante algumas horas esqueci
quase rancorosamente o bairro das galerias, mas quando atravessei uma vez
mais a Passagem Güemes (isso aconteceu de fato no período da ilha? Será
que estou misturando dois momentos de uma mesma temporada? Mas na
verdade pouco importa) não adiantou invocar a alegre bofetada do café, seu
aroma continuou sendo o de sempre, mas em compensação reconheci a
mistura adocicada e repugnante de serragem com cerveja rançosa que
parece transpirar do assoalho dos bares do centro, mas talvez fosse porque
eu estava outra vez querendo encontrar Josiane e até acreditava que o
grande terror e as neves haviam chegado ao fim. Acho que foi naquela
época que comecei a ter a impressão de que o desejo já não era suficiente,
como antes, para que as coisas girassem compassadamente e me
propusessem determinadas ruas que levavam à Galerie Vivienne, mas
também é possível que tivesse acabado por submeter-me mansamente ao
chalé da ilha para não entristecer Irma, para que ela não desconfiasse que
meu único verdadeiro descanso estava em outro lugar; até que não aguentei
mais e voltei à cidade e andei até ficar exausto, com a camisa grudada no
corpo, sentando-me nos bares para tomar cerveja, esperando já não sabia o
quê. E quando, ao sair do último bar, vi que era só virar a esquina para
entrar em meu bairro, a alegria se mesclou ao cansaço e a uma obscura
consciência de derrota, porque bastava olhar para o rosto das pessoas para
entender que o grande terror estava longe de haver cessado, bastava prestar
atenção nos olhos de Josiane, em sua esquina da Rue d’Uzès, e ouvi-la
declarar em tom queixoso que o amo em pessoa havia decidido protegê-la
de um possível ataque; lembro-me de que entre dois beijos consegui
entrever a silhueta do amo na reentrância de um portal, protegendo-se do
granizo envolto numa ampla capa cinza.
Josiane não era das que recriminam pelas ausências, e me pergunto se no
fundo ela se dava conta da passagem do tempo. Voltamos de braços dados
para a Galerie Vivianne, subimos até a mansarda, mas depois percebemos
que não estávamos alegres como antes e vagamente atribuímos o fato a tudo
o que afligia o bairro; era inevitável que houvesse guerra, os homens teriam
de incorporar-se às fileiras (ela empregava solenemente essas palavras com
um ignorante, delicioso respeito), as pessoas sentiam medo e raiva, a polícia
não conseguira encontrar Laurent. Consolavam-se guilhotinando outros,
como naquela mesma madrugada, em que executariam o envenenador de
quem tanto havíamos falado no café da Rue Jeuneurs durante o processo;
mas o terror continuava solto nas galerias e nas passagens, nada mudara
desde meu último encontro com Josiane, e nem mesmo deixara de nevar.
Para nos consolar, fomos dar um passeio, desafiando o frio porque Josiane
vestia um casaco que precisava ser admirado numa série de esquinas e
portais onde suas amigas esperavam os clientes assoprando os dedos ou
afundando as mãos nos manguitos de pele. Poucas vezes havíamos andado
tanto pelos bulevares, e acabei desconfiando que, acima de qualquer outra
coisa, éramos sensíveis à proteção das vitrines iluminadas; entrar em
qualquer das ruas vizinhas (porque Liliane também precisava ver o casaco,
e Francine, mais adiante) ia nos afundando pouco a pouco no espanto, até
que o casaco ficou suficientemente exibido e sugeri nosso café e corremos
pela Rue du Croissant até dobrarmos a esquina e refugiar-nos no calor e nos
amigos. Para sorte de todos, àquela hora a ideia da guerra ia minguando nas
memórias, não ocorria a ninguém repetir os estribilhos obscenos contra os
prussianos, estávamos tão bem com os copos cheios e o calor da estufa, os
clientes de passagem haviam se retirado e só restavam os amigos do patrão,
o grupo de sempre, e a boa notícia de que a Rousse pedira perdão a Josiane
e as duas haviam se reconciliado com beijos e lágrimas e mesmo presentes.
Tudo tinha um quê de guirlanda (mas as guirlandas podem ser fúnebres,
depois compreendi) e por isso, como lá fora estavam a neve e Laurent,
permanecíamos o máximo possível no café e à meia-noite ficávamos
sabendo que o patrão completava cinquenta anos de trabalho atrás do
mesmo balcão, coisa que era preciso festejar, uma flor se entrelaçava à
seguinte, as garrafas cobriam as mesas porque agora quem oferecia era o
patrão e não podíamos fazer pouco de tanta amizade e tanta dedicação ao
trabalho, e lá pelas três e meia da manhã Kiki, completamente bêbada,
acabava de cantar para nós as melhores árias da opereta da moda enquanto
Josiane e a Rousse choravam abraçadas de felicidade e absinto e Albert,
quase sem dar importância ao fato, acrescentava outra flor à guirlanda e
sugeria que terminássemos a noite em La Roquette, onde o envenenador
seria guilhotinado precisamente às seis da manhã, e o patrão descobria
emocionado que aquele fim de festa era uma espécie de apoteose de
cinquenta anos de trabalho honrado e assumia o compromisso, abraçando-
nos a todos e falando da esposa morta no Languedoc, a alugar dois fiacres
para a expedição.
Em seguida houve mais vinho, a evocação de diversas mães e episódios
destacados da infância, e uma sopa de cebola que Josiane e a Rousse
elevaram à condição de sublime na cozinha do café enquanto Albert, o
patrão e eu jurávamos amizade eterna e morte aos prussianos. A sopa e os
queijos devem ter afogado tanta veemência, porque estávamos quase
calados e mesmo constrangidos quando chegou a hora de fechar o café com
um ruído interminável de trancas e correntes, e embarcar nos fiacres onde
todo o frio do mundo parecia estar à nossa espera. Teria sido melhor que
viajássemos juntos para maior aconchego, mas o patrão tinha princípios
humanitários em matéria de cavalos e se instalou no primeiro fiacre com a
Rousse e Albert enquanto me confiava Kiki e Josiane, as quais, disse, eram
verdadeiras filhas para ele. Depois de festejar adequadamente a frase com
os cocheiros, o ânimo nos voltou ao corpo enquanto subíamos até
Popincourt entre simulacros de aposta de corrida, gritos de estímulo e
chuvas de falsas chibatadas. O patrão insistiu em que descêssemos dos
fiacres a uma certa distância, alegando razões de discrição que não entendi,
e, dando-nos os braços para não escorregar demais na neve congelada,
subimos a Rue de la Roquette vagamente iluminada por postes isolados,
entre sombras móveis que de repente se definiam em chapéus de copa alta,
fiacres ao trote e grupos de embuçados que acabavam se amontoando diante
de um alargamento da rua, sob a outra sombra mais alta e mais negra da
prisão. Um mundo clandestino se acotovelava, passava garrafas de mão em
mão, repetia alguma piada que circulava entre gargalhadas e guinchos
sufocados, e também havia bruscos silêncios e rostos um instante
iluminados por um isqueiro enquanto continuávamos avançando com
dificuldade e tentávamos não nos separar, como se cada um soubesse que só
a vontade do grupo podia perdoar sua presença naquele local. A máquina
estava ali, sobre suas cinco bases de pedra, e todo o aparelho da Justiça
esperava imóvel no breve espaço entre ela e o pelotão de soldados com os
fuzis apoiados na terra e as baionetas caladas. Josiane enterrava as unhas
em meu braço e tremia de tal maneira que tive a ideia de levá-la até um
café, mas não havia cafés à vista e ela insistia em não sair dali. Pendurada
em mim e em Albert, de vez em quando ela dava um salto para ver melhor a
máquina, cravava de novo as unhas em meu braço e no fim me obrigou a
abaixar a cabeça até que seus lábios encontrassem minha boca, e me
mordeu histericamente murmurando palavras que poucas vezes eu a ouvira
pronunciar e que satisfizeram meu orgulho como se por um momento o amo
fosse eu. De todos nós, porém, o único aficionado apreciativo era Albert;
fumando um cigarro, ele matava os minutos comparando cerimônias,
imaginando o comportamento final do condenado, as etapas que naquele
momento mesmo eram cumpridas no interior da prisão e que ele conhecia
em detalhes por razões que não revelava. No início ouvi-o com avidez para
tomar conhecimento da articulação da liturgia em suas mínimas partículas,
até que, lentamente, como que vindo de um lugar além dele e de Josiane e
da celebração do aniversário, fui sendo invadido por algo que era como um
abandono, o sentimento indefinível de que aquilo não deveria ter acontecido
daquela forma, de que algo ameaçava em mim o mundo das galerias e das
passagens, ou, pior ainda, de que minha felicidade naquele mundo fora um
prelúdio enganoso, uma armadilha de flores, como se uma das figuras de
gesso tivesse me estendido uma guirlanda falsa (e naquela noite me
ocorrera que as coisas se entrelaçavam como as flores numa guirlanda),
para pouco a pouco desembocar em Laurent, derivar da embriaguez
inocente da Galerie Vivienne e da mansarda de Josiane, ir passando
lentamente para o grande terror, para a neve, para a guerra inevitável, para a
apoteose dos cinquenta anos do patrão, para os fiacres transidos da
madrugada, para o braço rígido de Josiane que prometia a si mesma que não
ia olhar e que já procurava em meu peito onde esconder o rosto no
momento final. Tive a sensação (e naquele instante as grades começavam a
se abrir e se ouvia a voz de comando do oficial da guarda) de que de
alguma maneira aquilo era um fecho, eu não sabia bem do que pois ao fim e
ao cabo continuaria vivendo, trabalhando na Bolsa e vendo de vez em
quando Josiane, Albert e Kiki, que agora havia começado a esmurrar
histericamente meu ombro, e embora eu não quisesse afastar os olhos das
grades que já estavam quase abertas, tive que prestar atenção nela por um
instante, e, acompanhando seu olhar entre surpreso e brincalhão, acabei
distinguindo, quase ao lado do patrão, a silhueta um pouco aflita do sul-
americano envolto na capa negra, e curiosamente pensei que também isso
entrava de alguma maneira na guirlanda e que era um pouco como se uma
mão acabasse de entrelaçar nela a flor que a encerraria antes do amanhecer.
Mas parei de pensar porque Josiane se apertou contra mim gemendo, e na
sombra que os dois postes da entrada agitavam sem afugentar, a mancha
branca de uma camisa surgiu como que flutuando entre duas silhuetas
negras, aparecendo e desaparecendo toda vez que uma terceira sombra
volumosa se inclinava sobre ela com os gestos de quem abraça ou admoesta
ou diz alguma coisa ao ouvido ou dá alguma coisa a beijar, até se afastar
para um lado, e a mancha branca se definir mais de perto, enquadrada por
um grupo de pessoas de chapéu de copa alta e capotes negros, e houve uma
espécie de prestidigitação acelerada, um rapto da mancha branca pelas duas
figuras que até aquele momento haviam dado a impressão de fazer parte da
máquina, um gesto de arrancar dos ombros um agasalho já desnecessário,
um movimento vertiginoso para a frente, um brado sufocado que podia ser
de qualquer um, de Josiane convulsa contra mim, da mancha branca que
parecia deslizar sob a armação onde algo se desencadeava com um estalo e
uma comoção quase simultâneos. Achei que Josiane ia desmaiar, todo o
peso de seu corpo escorregava ao longo do meu do jeito que devia estar
escorregando o outro corpo rumo ao nada, e me inclinei para sustentá-la
enquanto um enorme nó de gargantas se desatava num final de missa com o
órgão ressoando no alto (mas era um cavalo que relinchava ao farejar o
sangue), e o refluxo nos empurrou, entre gritos e comandos militares. Por
cima do chapéu de Josiane, que desatara a chorar consternada contra minha
barriga, cheguei a reconhecer o patrão emocionado, Albert na glória, e o
perfil do sul-americano perdido na contemplação imperfeita da máquina
que as costas dos soldados e o afã dos artesãos da Justiça iam desvendando
em manchas isoladas ao seu olhar, em relâmpagos de sombra entre capotes
e braços e uma ânsia geral por sair dali e ir em busca de um vinho quente e
de sono, como nós, amontoados mais tarde num fiacre para voltar ao bairro,
comentando o que cada um havia acreditado ver e que não era a mesma
coisa, não era nunca a mesma coisa e por isso valia mais, porque entre a
Rue de la Roquette e o bairro da Bolsa havia tempo para reconstruir a
cerimônia, discuti-la, surpreender-se em contradições, alardear uma visão
mais aguda ou nervos mais calejados para admiração de última hora de
nossas tímidas companheiras.
Não era nem um pouco estranho que minha mãe me achasse abatido na
época, lamentando francamente uma indiferença inexplicável que fazia
minha pobre namorada sofrer e que acabaria por me fazer perder a proteção
dos amigos de meu falecido pai, graças aos quais eu vinha abrindo caminho
nos meios bursáteis. Impossível responder a frases assim senão com o
silêncio, e aparecer uns dias depois levando uma nova planta para a
decoração ou um vale para meadas de lã a preços promocionais. Irma era
mais compreensiva, devia confiar simplesmente em que na devida hora o
casamento me devolveria à normalidade burocrática, e nesses últimos
tempos eu estava a ponto de lhe dar razão, embora me fosse impossível
renunciar à esperança de que o grande terror chegasse ao fim no bairro das
galerias e de que voltar para minha casa não se parecesse com uma fuga,
uma necessidade de proteção que desaparecia assim que minha mãe
começava a olhar para mim entre suspiros ou Irma me estendia a xícara de
café com o sorriso das namoradas aranhas. Na época estávamos em plena
ditadura militar, mais uma na série interminável, mas as pessoas se
apaixonavam sobretudo pelo desenlace próximo da guerra mundial e quase
diariamente se improvisavam manifestações no centro para celebrar o
avanço aliado e a libertação das capitais europeias, enquanto a polícia
investia contra os estudantes e as mulheres, as lojas desciam às pressas suas
cortinas metálicas e eu, incorporado pela força das coisas a algum grupo
estacionado diante das lousas do La Prensa, me perguntava se seria capaz
de continuar resistindo por muito tempo ao sorriso consequente da pobre
Irma e à umidade que me empapava a camisa entre uma e outra rodada de
cotação. Comecei a sentir que o bairro das galerias já não era, como antes, o
fim de um desejo, quando era suficiente sair andando por uma rua qualquer
para que em alguma esquina tudo girasse suavemente, e sem esforço eu me
visse nas proximidades da Place des Victoires, onde era tão agradável ficar
um bom tempo perambulando pelas ruazinhas, com suas lojas e seus
vestíbulos empoeirados, para na hora mais propícia entrar na Galerie
Vivienne em busca de Josiane, a menos que por puro capricho eu preferisse
primeiro percorrer a Passage des Panoramas ou a Passage des Princes para
voltar fazendo um desvio um tanto perverso pelas cercanias da Bolsa.
Agora, em compensação, sem ter nem mesmo o consolo de reconhecer,
como naquela manhã, o aroma veemente do café na Passagem Güemes (o
cheiro era de serragem, de água sanitária), comecei a admitir desde muito
longe que o bairro das galerias já não era meu porto de repouso, embora
ainda acreditasse na possibilidade de me livrar de meu trabalho e de Irma,
de encontrar sem esforço a esquina de Josiane. A todo momento eu era
tomado pelo desejo de voltar; diante das lousas dos jornais, com os amigos,
no pátio de minha casa, principalmente ao anoitecer, na hora em que lá
começariam a ser acesos os bicos de gás. Mas algo me obrigava a ir ficando
ao lado de minha mãe e de Irma, uma obscura certeza de que no bairro das
galerias eu já não era esperado como antes, de que o grande terror era mais
forte. Entrava nos bancos e nos estabelecimentos comerciais com um
comportamento de autômato, tolerando a obrigação cotidiana de comprar e
vender valores e escutar os cascos dos cavalos da polícia investindo contra
o povo que festejava os triunfos aliados, e minha crença em algum dia
conseguir me libertar novamente daquilo tudo era tão inconsistente que
quando cheguei ao bairro das galerias quase senti medo, senti-me forasteiro
e diferente como nunca antes me sentira, refugiei-me numa porta-cocheira e
deixei passar o tempo e as pessoas, forçado pela primeira vez a aceitar
pouco a pouco tudo o que antes me parecera meu, as ruas e os veículos, a
roupa e as luvas, a neve nos pátios e as vozes nas lojas. Até que uma vez
mais foi o deslumbramento, foi encontrar Josiane na Galerie Colbert e ficar
sabendo entre beijos e pinotes que Laurent não existia mais, que o bairro
havia festejado noite após noite o fim do pesadelo, que todo mundo havia
perguntado por mim e ainda bem que finalmente Laurent, mas onde é que
eu me enfiara para não estar sabendo de nada, e tantas coisas e tantos
beijos. Eu nunca a desejara tanto e nunca nos amamos melhor sob o teto de
seu quarto, que minha mão conseguia tocar comigo deitado na cama. As
carícias, os comentários, a deliciosa narrativa dos dias enquanto o anoitecer
ia invadindo a mansarda. Laurent? Um marselhês de cabelo crespo, um
miserável, um covarde que se entrincheirara no desvão da casa onde
acabara de matar outra mulher, e que implorara desesperadamente pela vida
enquanto a polícia punha a porta abaixo. E se chamava Paul, o monstro, até
nisso, pense bem, e acabava de matar sua nona vítima, e haviam-no
arrastado até a viatura policial enquanto todas as forças do segundo distrito
o protegiam sem empenho de uma multidão que o teria destroçado. Josiane
já tivera tempo de se habituar, de enterrar Laurent em sua memória que
poucas imagens guardava, mas para mim era muito e eu não conseguia
acreditar de todo enquanto sua alegria não me convenceu de que
verdadeiramente já não haveria Laurent, de que podíamos de novo vagar
pelas passagens e pelas ruas sem desconfiar dos portais. Foi preciso que
saíssemos os dois para festejar a libertação, e, como havia parado de nevar,
Josiane quis ir até a rotunda do Palais Royal, que nunca havíamos
frequentado nos tempos de Laurent. Prometi a mim mesmo, enquanto
descíamos a Rue des Petits Champs cantando, que naquela mesma noite
levaria Josiane aos cabarés dos bulevares e que acabaríamos o serão em
nosso café, onde à força de vinho branco eu a obrigaria a perdoar tanta
ingratidão e tanta ausência.
Por umas poucas horas bebi até a borda o tempo feliz das galerias, e
acabei me convencendo de que o fim do grande terror me devolvia são e
salvo a meu céu de estuques e guirlandas; dançando com Josiane na rotunda
me libertei da última opressão daquele interregno incerto, nasci de novo
para minha melhor vida, tão longe da sala de Irma, do pátio de minha casa,
do ralo consolo da Passagem Güemes. Nem mesmo quando mais tarde,
falando sobre tantas coisas alegres com Kiki e Josiane e o patrão, fiquei
sabendo do fim do sul-americano, nem mesmo naquele momento imaginei
que estava vivendo uma prorrogação, uma última graça; quanto ao demais,
eles falavam do sul-americano com uma indiferença trocista, como de
qualquer dos extravagantes do bairro que, se chegam a preencher um
buraco na conversa, são logo em seguida substituídos por temas mais
apaixonantes, e o fato de que o sul-americano tivesse acabado de morrer
num quarto de hotel era apenas pouco mais que uma informação casual, e
Kiki já discorria sobre as festas que estavam sendo preparadas num moinho
de la Butte, e tive dificuldade para interrompê-la, para pedir-lhe detalhes
sem saber muito bem a razão que me levava a pedi-los. Por intermédio de
Kiki fiquei sabendo de algumas coisas mínimas: o nome do sul-americano,
que ao fim e ao cabo era um nome francês que esqueci na hora, seu mal-
estar repentino na Rue du Faubourg Montmartre, onde Kiki tinha um amigo
que lhe contara o acontecido; a solidão, o círio miserável ardendo sobre o
balcão entupido de livros e papéis, o gato cinzento que o amigo recolhera, a
fúria do dono do hotel, a quem faziam aquilo justamente no momento em
que esperava a visita dos sogros, o enterro anônimo, o descaso, as festas no
moinho de la Butte, a prisão de Paul, o marselhês, a insolência dos
prussianos, nos quais já era tempo de aplicar a lição que eles bem
mereciam. E de tudo aquilo eu ia separando, como quem arranca duas flores
secas de uma guirlanda, as duas mortes que de alguma maneira me
pareciam simétricas, a do sul-americano e a de Laurent, um em seu quarto
de hotel, o outro dissolvendo-se no nada para ceder seu lugar a Paul, o
marselhês, e eram quase uma mesma morte, algo que se apagava para
sempre na memória do bairro. Naquela noite ainda consegui acreditar que
tudo continuaria como antes do grande terror, e Josiane foi minha uma vez
mais em sua mansarda, e quando nos despedimos prometemo-nos festas e
passeios quando o verão chegasse. Mas as ruas estavam geladas, e as
notícias da guerra exigiam minha presença na Bolsa às nove da manhã; com
um esforço que na época julguei meritório me recusei a pensar em meu
reconquistado céu, e depois de trabalhar até a náusea almocei com minha
mãe e fiquei grato por ela me achar com melhor aspecto. Passei a semana
em plena luta bursátil, sem tempo para nada, correndo até minha casa para
tomar uma ducha e trocar uma camisa ensopada por outra que pouco depois
estava pior. A bomba caiu sobre Hiroshima e tudo foi confusão entre meus
clientes, foi preciso travar uma longa batalha para salvar os valores mais
comprometidos e encontrar um rumo aconselhável naquele mundo onde
cada dia era uma nova derrota nazista e uma reação encarniçada e inútil da
ditadura contra o irreparável. Quando os alemães se renderam e o povo
tomou as ruas em Buenos Aires, pensei que poderia tirar uma folga, mas
toda manhã eu encontrava novos problemas, naquelas semanas casei-me
com Irma depois que minha mãe esteve à beira de um ataque cardíaco e
toda a família me responsabilizou pelo fato, talvez com justiça. Inúmeras
vezes me perguntei por que, se o grande terror cessara no bairro das
galerias, não chegava minha hora de ir ao encontro de Josiane para
passearmos novamente sob nosso forro de gesso. Suponho que o trabalho e
as obrigações familiares contribuíam para que eu não o fizesse, e só sei que
de vez em quando, em momentos perdidos, eu ia andar, como consolo, pela
Passagem Güemes, olhando vagamente para cima, tomando café e
pensando, cada vez com menos convicção, nas tardes em que fora suficiente
perambular um momento sem rumo fixo para chegar a meu bairro e dar
com Josiane em alguma esquina do entardecer. Eu nunca quis admitir que a
guirlanda estivesse definitivamente concluída e que eu não tornaria a
encontrar Josiane nas passagens ou nos bulevares. Há dias em que dou para
pensar no sul-americano, e em minha cisma tristonha até invento uma
espécie de consolo, como se ele tivesse nos matado, a Laurent e a mim, com
sua própria morte; raciocino e me digo que não, que exagero, que um dia
desses tornarei a entrar no bairro das galerias e encontrarei Josiane surpresa
com minha longa ausência. E entre uma coisa e outra fico em casa tomando
mate, ouvindo Irma que espera para dezembro, e me pergunto sem muito
entusiasmo se quando chegarem as eleições votarei em Perón ou em
Tamborini, se votarei em branco ou se simplesmente ficarei em casa
tomando mate e olhando para Irma e para as plantas do pátio.
Completamos esta edição com as quatro
peças que se seguem, publicadas
postumamente pela primeira vez no
volume Papeles inesperados (2009). (N.
E.)
A adaga e o lírio.
Notas para um relatório
N
ão, chega de falar em Lucien; chega de repetir seu nome até a
náusea. Você não parece se dar conta de que há frases, de que há
lembranças insuportáveis para mim; de que todas as fibras se
rebelam se essas coisas são ditas. Pare de falar em Lucien. Vá pôr
um disco ou trocar a água dos peixes. Daqui a pouco chega Lola e você vai
poder dançar com ela; já sei que você é volúvel, que me despreza um pouco
pelo meu isolamento e minha misoginia. Mas por que falar em Lucien? Era
necessário que você dissesse: Lucien?
Já nem sei se estou falando com você; tenho a sensação de estar sozinho
na biblioteca, sobre o rio, sem ninguém por perto. Você ainda está aí,
Mauricio? Foi você que mencionou Lucien? Não me responda agora; o que
ganharíamos com isso? Disse ou não disse, dá no mesmo. Eu sou um
professor em férias passando as férias na sua casa no lago, olhando o rio e
recebendo amigos, às vezes, ou perdendo-se num tempo sem fronteiras, sem
calendários nem mulheres nem cachorros. Um tempo meu, que já não
partilho com ninguém desde o fim daquelas aulas… quando foi, você está
lembrado?
Me dê um cigarro. Você está aí? Mauricio! Me dê um cigarro.
Lola já vai chegar; eu disse a ela que encontraria você aqui. Se está
entediado, procure os discos; ah, você está lendo. Lendo o quê? Não, não
diga; para mim dá no mesmo. Se está com sono, já lhe falei que a cadeira de
balanço ficou na varanda; toque a campainha, o negrinho traz para você.
Prescinda de mim, estou adormecido e ausente; você me conhece. Para que
lhe dar explicações? Os médicos, e a escola, e o repouso… coisas sem
consistência. Mas você é o Mauricio, pelo menos; tem um nome, dá para
ouvir, ver você. Por que me olha desse jeito? Não, velho, Gabriel não está
louco, Gabriel divaga; aprendi isso nos sonhos e na infância; claro que falta
o intérprete que trame os fios dessa corrida incoerente… Você não é esse
intérprete, é só um músico. Um músico cuja última balada me pareceu
deplorável. Já sei, já sei, não me explique nada; em música nada tem
explicação. Não gostei, e pode ser que a próxima me encante… Não olhe
assim para mim! Se estou falando desse jeito, a culpa é sua! Quero
esquecer, embaralhar as coisas…! Por que você fez isso, por que trouxe o
nome de Lucien do seu fundo de tempo? Não vê que o esqueço uma ou
duas horas por dia? É o antídoto, o que me permite resistir. Não se
impressione, Mauricio; é claro, o que é que você sabe daquilo? Estava
longe… Onde? Ah, em Jujuy, nas quebradas… por lá. Estava longe, longe.
Estava além, e aqui é um círculo; você não pode entrar. Não, Mauricio,
você não pode entrar se eu não disser a senha…
Mas por que você foi fazer isso, imbecil…? Venha, sente-se aqui; jogue
esse livro pela janela… Não, pela janela não; cairia no rio. Nada deve cair
no rio, agora, muito menos um livro. Largue ali… sim, vou lhe contar tudo
e depois você faz o que bem entender. Estou farto, farto; estou morto,
entende? Não, você não entende, mas ouça, agora, ouça tudo e não me
interrompa a não ser para me acertar um tiro ou para me afogar…
Este copo d’água… Foi assim que o sonho começou. E você, não sonha?
Falam tanta besteira sobre os sonhos… Eu só acredito nas inferências
sexuais, e olhe lá… Mauricio, Mauricio, na nossa infância nos falavam dos
sonhos proféticos… E depois, aquela tarde na saída do Normal, quando
você e eu ficamos lendo o livro de Dunne e nos lembrando do bobalhão do
Maeterlinck com aquela história do tapete queimado, e da profecia, e de que
sei lá que merda mais… Bah, fumo e besteiras… Pare de olhar para mim,
Lucien me olhava do mesmo jeito quando eu dizia um palavrão; sempre
acharam que não combinava comigo, vai ver que é verdade. O sonho era
idiota mas muito claro, Mauricio, muito claro — até certo ponto. Um ponto
em que acabava a sequência e depois… nada, névoa. Chamei Lucien e disse
a ele: “Esta noite eu tive um sonho”. A gente sempre contava nossos sonhos
um para o outro, sabia? É que você não tem sonhos, uma vez me falou;
então não vai entender o que aconteceu, vai achar sem sentido, ou que estou
louco, ou fazendo troça de você… Eu estava muito cansado e adormeci lá
fora na varanda, olhando para o lado do rio; havia lua. Não digo isso para
impressionar; sei bem que a lua é macabra quando se pensa um pouco nela;
mas esta lua do delta às vezes tem cor de terra, e naquela noite, como contei
depois a Lucien, a terra estava misturada com areia e com cristais
vermelhos. Adormeci, estava muito cansado, e foi então que o sonho
começou, sem que nada se alterasse… porque continuei vendo o mesmo
panorama que você pode ir descortinar da varanda, da cadeira de balanço. O
rio, e os salgueiros à esquerda como uma decoração de Derain, e uma
música de cães e pêssegos que caem e grilos idiotas e sei lá que barulho
esquisito de água, como mãos que quisessem se agarrar ao barro da margem
e vão escorregando, escorregando, e se debatem com as palmas
enlouquecidas, e o rio as suga para trás como uma horrível ventosa, e a
gente adivinha a cara dos afogados… Mas por quê, por que você
pronunciou o nome de Lucien…?
Não vá embora… não tenho a intenção de lhe fazer mal; você acha que eu
não conheço você? Vamos, músico amigo, fique aqui e se cale; não, não
quero água nem brometo nem morfina… Está ouvindo o barulho lá fora?…
É só a noite chegar que começa o barulho de água espirrando… primeiro
devagar, bem devagar… tentativas das mãos que chegam até a margem e
cravam as unhas no barro… Mas depois vai ficar mais forte, mais forte,
mais forte; é o que eu digo ao médico todas as noites, mas é preciso ser
médico para não entender as coisas mais simples. Ah, Mauricio, na verdade
era a mesma paisagem; como eu ia saber que estava sonhando? Então me
levantei e andei pelo rio, flutuando sobre ele mas não na água, entende?,
como nos sonhos: flutuando com as pernas um pouco encolhidas, numa
tensão maravilhosa… por sobre as águas, até cruzar aquelas primeiras ilhas,
prosseguir, prosseguir… até depois do embarcadouro podre, até depois dos
laranjais, depois, depois… E então estava na margem, caminhando
normalmente; e não se ouvia nada; era um silêncio que parecia de armário
por dentro, um silêncio esmagado e sujo. E eu continuava caminhando,
Mauricio, e eu continuava caminhando até chegar a um ponto e ficar muito
quieto à margem da água, olhando…
Foi assim que eu contei meu sonho a Lucien, sabe; contei com todos os
detalhes até ali, porque dali em diante o sonho começa a ficar impreciso;
chega a névoa, a angústia de não compreender… E você, que não sonha!
Como vou lhe explicar as coisas?… Talvez com um piano; era o que
imaginava um amigo meu para explicar as coisas aos cegos. Ele escreveu
um conto e nesse conto havia um cego e o cego tinha um amigo e o cego
era eu e aconteciam coisas… Aqui não há piano; você vai ter que me
escutar e compreender, mesmo sem nunca ter sonhado. Você tem que
compreender. Lucien entendeu muito bem o sonho quando lhe contei; e isso
que naqueles dias estávamos muito afastados, percorrendo caminhos
diferentes, e ele achava que pensava de um jeito e eu achava que ele devia
pensar de outro, e ele afirmava que eu me equivocava em todas as minhas
ações, que insistia em perpetuar estados caducos e que não adiantava nada
fazer oposição ao tempo, no que tinha muita razão, falando do ponto de
vista lógico. Mas você sabe, Mauricio, você sabe que a lógica…
Então eu estava em pé junto do rio, olhando as águas. Depois de todo o
meu voo e minha caminhada, agora estava imóvel, como à espera de
alguma coisa. E o silêncio prosseguia, e não se ouvia o chapisco da água;
não, não se ouvia. As coisas eram visíveis em todos os detalhes e por isso
depois pude descrever para Lucien cada árvore, cada dobra do rio, cada
entrecruzamento de troncos. Eu estava numa pequena língua pantanosa que
entrava pelo rio; atrás havia árvores, árvores e noite. Você sabe que meu
sonho acontecia à noite; mas ali não havia lua, e mesmo assim a paisagem
se destacava com uma nitidez petrificada, como uma paisagem dentro de
uma bola de vidro, entende; como uma vitrine de museu, nítida, precisa,
etiquetada. Árvores que se perdiam numa curva da água; céu negro mas de
um negro diferente do das árvores; e a água com seu discurso silencioso, e
eu na língua de terra olhando o meio do rio e esperando alguma coisa…
“Você se lembra do cenário com muita clareza”, me disse Lucien quando
descrevi o lugar para ele. Mas a partir desse ponto começava a névoa no
sonho e as coisas se tornavam esquivas, sinuosas como nos pesadelos; a
água era a mesma, mas de repente ecoou com força e ouviu-se o gorgolejo,
o gorgolejo constante das mãos tentando inutilmente se agarrar aos juncos,
repelidas na direção do leito do rio pela sucção da imensa boca gulosa…
Sempre a mesma coisa, clap, clap, clap, e eu ali esperando, clap, clap, até o
horror de que não acontecesse nada e de que mesmo assim fosse preciso
continuar esperando… Porque eu estava com medo, entende, Mauricio,
adormecido como estava eu tinha medo do que ia acontecer… E quando vi
chegar, trazido pelas águas, o corpo do afogado, foi uma espécie de alegria
de que por fim acontecesse alguma coisa; uma justificativa para aquele
século de imóvel mistério. Não sei se estou lhe contando as coisas direito;
Lucien ficou um pouco pálido quando eu contei a parte do afogado; é que
ele nunca soube controlar os nervos como você. Você não deveria ser
músico, Mauricio; em você perdeu-se um grande engenheiro, ou um
assassino… Ora, para que se dar ao trabalho de me contradizer, se deliro…
Você também está pálido? Não, é que está escurecendo, é a lua que cresce e
se desprende dos salgueiros e bate no seu rosto; você não ficou pálido, não
é mesmo? Lucien sim, quando contei do afogado; mas não deu para contar
muito mais, porque o sonho acaba ali; não sei se é uma decepção para você,
mas a coisa toda acaba ali… Eu o via passar, flutuando docemente de
barriga para cima… e não conseguia ver seu rosto. A angústia nascia disso:
de saber que de certo modo aquele afogado me pertencia, que laços
sensíveis se estendiam misteriosamente de mim até ele, e não conseguir ver
seu rosto… Mas isso não é nada, Mauricio; tem uma coisa muito mais
horrível… Não, não se levante; fique aqui, você precisa ouvir tudo. Por que
você foi falar o nome de Lucien? Agora precisa ouvir tudo. Até isso, que é
o mais desesperador; num certo momento, quando o afogado passou junto a
mim, tão perto que se ele tivesse podido estender um braço teria me
agarrado pelo tornozelo… então, naquele momento vi o rosto dele; a luz do
meu sonho dava em cheio sobre ele e vi seu rosto e o reconheci. Você
entende isso? Fiquei sabendo quem ele era e jamais teria imaginado que ao
acordar, esqueceria… Porque quando despertei, o sonho se interrompia
naquele instante e não consegui mais recordar quem era o morto. Mauricio,
eu sabia quem ele era mas não me lembrava; na vigília, toda a minha
clarividência se transformava em ignorância. Foi o que eu disse a Lucien,
trêmulo de fúria e de angústia: “Não sei quem ele era, e o mais horrível é
que vi o rosto dele, observei detalhadamente suas feições, e me lembro,
disso me lembro, que senti uma espécie de grande grito nas mãos, no
cabelo, uma espécie de revelação prodigiosa que me petrificava…”.
Você está ouvindo o barulho da água? Era o mesmo, na tarde em que
contei meu sonho a Lucien e ele saiu muito pálido, porque se impressionava
facilmente com minhas histórias. Você não vibra como ele; lembro-me de
uma noite, num banco de madeira lá pelo lado oeste da cidade, quando
repeti para Lucien um conto horrível que acabara de ler; talvez você o
conheça, é aquele da mão do macaco… Fiquei com pena ao ver como ele
entrava demais no conto, no clima de opressão e pesadelo… Mas precisava
contar meu sonho para ele, Mauricio; eu o estava vivendo intensamente
demais, para deixá-lo de fora dessa situação. Quando ele saiu senti um certo
alívio; mas a revelação não veio e continuei aquele verão todo, justamente
quando você viajou para o Norte, sem conseguir chegar ao instante do
conhecimento, à lembrança que me permitiria extrair, lá do fundo, o final
daquele pesadelo.
Não acenda a luz, para mim é mais fácil falar assim, sem que vejam minha
boca. Como você sabe, não resisto muito tempo a um olhar, nem mesmo ao
seu; assim é melhor. Me dê um cigarro, Mauricio: fume você também, mas
não vá embora; você precisa ouvir isso até o fim. Depois faça o que achar
melhor; tem um revólver na minha escrivaninha e um telefone no living.
Mas por enquanto fique. Você passou este verão inteiro longe de nós; eu
pensei muitas vezes em você, sempre que evocava nossos anos de
estudantes; seu fim, essa vida de hoje, essa independência desejada por
tanto tempo e que se traduz em amargo sabor de solidão… É, pensei em
você mas pensava ainda mais no sonho; e nunca, entende, nunca, em todas
essas noites de insônia, consegui chegar ao momento seguinte… Atingia
com nitidez o momento em que aquilo aparecia boiando e se ouvia
novamente o gorgolejo como mãos de afogados que quisessem sair do rio…
Nisso cessava tudo; tudo. Se pelo menos eu tivesse me lembrado de que
sabia! Deve haver sonhos piedosos, amigo; sonhos que por sorte são
esquecidos ao acordar; mas aquilo era uma obsessão torturante, como o
caranguejo vivo no estômago do peixe, vingando-se de dentro para fora… E
eu não estava louco, Mauricio, assim como agora também não estou; pare
de imaginar isso, porque é um engano. Acontece que eu tinha a sensação de
que aquele sonho era real, diferente dos sonhos de sempre; havia profecia,
prenúncio… uma coisa assim, Mauricio; havia ameaça e advertência… E
horror, um horror branco, viscoso, um horror sagrado… Lucien devia
entender isso muito bem, já que não tornou a mencionar meu sonho e eu
preferia me calar, porque mais ou menos na época em que você partiu nós
dois estávamos à beira de uma separação definitiva. Cansados mutuamente
de inúteis concessões, de perpetuar afetos que nele haviam morrido e que eu
por minha vez precisava matar… Você não desconfiava de que uma coisa
assim estivesse acontecendo? Ah, é que Lucien não deve ter lhe falado; nem
eu. Nosso mundo era outra coisa. Nosso, sabe; impossível cedê-lo a outros
mesmo que fosse apenas para explicar. E estávamos chegando ao fim desse
mundo e era necessário abolir suas portas, seguir caminhos divergentes…
Eu não acreditava que houvesse ódio entre nós; oh, não, Mauricio, você
sabe que eu jamais teria podido acreditar uma coisa assim, e quando Lucien
chegava em casa íamos dar um passeio como antes, corteses e amáveis,
tratando de não ferir mas sem afundar no que estava morto…
Caminhávamos sobre folhas secas; densos colchões de folhas secas à
margem do rio… E o silêncio era quase doce; e parecia até que ainda
pudéssemos pensar em querer-nos bem como antes, em retomar a amizade
de outros tempos… Mas agora tudo nos distanciava; ver-nos, conversar,
rotinas que nos exasperavam em vão.
Então ele me disse: “A noite está bonita; vamos dar uma volta”. E, tal
como nós dois poderíamos fazer agora, Mauricio, saímos do bangalô e
bordejamos a enseada até encontrar nossa margem preferida. Não dizíamos
nada, entende, porque já não tínhamos mais nada a nos dizer, mas toda vez
que eu olhava para Lucien tinha a impressão de que estava pálido, parecia
estar se preparando para definir uma situação confusa que o atormentava.
Andávamos, andávamos, e não sei por quanto tempo continuamos assim,
entrando em áreas que eu não conhecia, longe desta casa, para lá do setor
habitado, no trecho onde o rio começa a se queixar e a flexionar sua cintura
como uma serpente em chamas; andávamos, andávamos. Só se ouviam
nossos passos, macios sobre as folhas secas, e o gorgolejo da margem.
Nunca conseguirei esquecer aquelas horas, Mauricio, porque era como
avançar para um local indeterminado, mas sabendo que era necessário
chegar… para quê? Isso eu ignorava, e toda vez que voltava o rosto para
Lucien ardia nos seus olhos um brilho frio, ausente, de luar. Não falávamos;
mas lá fora, tudo falava, tudo parecia incitar-nos a avançar, avançar; e eu
não conseguia parar de pensar no sonho, agora que aquele trajeto na noite
começava a ficar tão parecido com o daquele sonho de tempos atrás… É
verdade que eu não estava voando sobre o rio com as pernas encolhidas; é
verdade que agora Lucien estava comigo; mas de um modo inexplicável
aquela noite era a noite do sonho, e por isso, quando, depois de uma virada
da margem me encontrei de repente no mesmo cenário onde sonhara a cena
horrível, pouco me surpreendi. Foi mais como um reconhecimento,
entende? Como chegar a um lugar onde nunca se esteve mas que se conhece
por fotografias ou por comentários. Me aproximei da beira da água e vi a
língua de terra pantanosa que permitia entrar um pouco rio adentro. Vi a luz
noturna, realçando timidamente a decoração das árvores, ouvi com mais
intensidade o gorgolejo na margem. E Lucien estava a meu lado, Mauricio,
e ele também, como se tivesse evocado de repente minha descrição, parecia
se lembrar…
Espere, espere… Não quero que você saia, preciso lhe contar tudo. Está
ouvindo os barulhos lá fora? É que alguma coisa tenta entrar no bangalô
assim que a noite cai; e esta noite eu não teria forças para enfrentá-la,
Mauricio, não teria. Fique aí, Lola já vai chegar e quando ela chegar você
resolve o que preferir. Deixe que eu lhe conte o resto, o momento em que
me inclinei sobre o rio e depois olhei para Lucien como se lhe dissesse:
“Vai chegar agora”. E quando olhei para Lucien, pensando no sonho, tive a
impressão… como explicar?… tive a sensação de que também ele estava
dentro do sonho, dentro do meu pensamento, fazendo parte de uma atroz
realidade fora dos contornos normais da vida; achei que o sonho ia
recomeçar ali… Não, não era isso; achei que era como se o sonho tivesse
sido a profecia, a presciência de algo que ia acontecer ali, justamente
naquele lugar onde eu nunca havia estado na vigília; naquele lugar que
havíamos encontrado depois de uma caminhada sem rumo mas
obscuramente necessária.
Falei para Lucien: “Você se lembra do meu sonho?”. E ele respondeu:
“Sim, e o lugar é este, não é mesmo?”. Percebi que a voz dele estava rouca;
falei: “Como você sabe que o lugar é este?”. Ele vacilou, ficou um
momento calado, depois confessou lentamente: “Porque eu pensei num
lugar assim; tive necessidade de um lugar assim. Você sonhou um sonho
alheio…”. E quando ele me disse isso, Mauricio, quando ele me disso isso
eu tive uma espécie de grande luz no cérebro, uma espécie de iluminação
deslumbrante e achei que ia me lembrar do fim do sonho. Fechei os olhos e
disse para mim mesmo: “Vou me lembrar… vou me lembrar…”. E foi tudo
um instante, e me lembrei. Vi o afogado diante de mim, quase tocando
meus tornozelos, à deriva, e vi seu rosto. E o rosto do afogado era o meu,
Mauricio, o rosto do afogado era o meu…
Fique, por Deus… já estou terminando. Lembro-me de que abri os olhos e
olhei para Lucien. Ele estava ali, a dois passos, com os olhos mergulhados
nos meus. Repetiu lentamente. “Eu tive necessidade de um lugar assim.
Você sonhou um sonho alheio, Gabriel… Você sonhou meu próprio
pensamento”. E não disse mais nada, Mauricio, mas já não era preciso,
entende; já não era preciso que ele dissesse uma única palavra mais.
Você está ouvindo o gorgolejar do rio lá fora? São as mãos querendo
agarrar-se aos juncos, a noite inteira, a noite inteira… Começa ao cair da
tarde e prossegue a noite inteira… Ouça, ali… Está ouvindo como a água
faz um barulho mais forte, mais imperioso? Sei que entre todas as mãos de
afogados querendo salvar-se do rio há certas mãos, Mauricio… certas mãos
que por vezes conseguem se agarrar ao barro… chegar até as madeiras da
enseada… e então o afogado sai da água… Você está ouvindo? Sai da água,
lhe digo; e vem… vem até aqui, pisoteando os frascos de brometo, o
veronal, a morfina… Vem até aqui, Mauricio, e sou obrigado a correr para
ele no escuro e destruir o sonho uma vez mais, entende… Destruir o sonho,
jogando-o novamente no rio para vê-lo flutuar, para vê-lo passar junto de
mim com um rosto que já não é o meu, que já não é o do sonho… Venci o
sonho, Mauricio, desmanchei a profecia; mas ele volta todas as noites e
algum dia me levará consigo… Não vá embora, Mauricio… Me levará
consigo, estou lhe dizendo, e seremos dois, e o sonho terá realizado suas
imagens… Lá fora, Mauricio, ouça o gorgolejar, ouça… Agora vá, se
quiser; deixe que ele saia da água, deixe que entre. Faça o que quiser, dá no
mesmo. Eu venci o sonho, derrotei o destino, entende; mas nada disso tem
importância porque o rio me espera e dentro do rio estão aquelas mãos e
aquele rosto, injustamente submissos à sua boca sedenta. E eu serei
obrigado a ir, Mauricio, e uma noite dessas a língua de terra me verá passar,
barriga para cima, magnífico de lua, e o sonho estará completo, completo…
O sonho estará completo, Mauricio, finalmente o sonho estará completo.
1941
Os gatos
Quando aproximo dos lábios
essa música incerta.
Vicente Aleixandre
A
os oito anos, Carlos María estudava em sua prima as
possibilidades de um jogo violento e eficaz, que durasse toda a
sesta. Marta vacilava antes de aceitar o papel de chefe sioux,
prevendo o rolo de corda como uma bofetada ao passar debaixo
do chorão, os tornozelos amarrados, o olhar justiceiro de Buffalo Bill antes
de arrastá-la para o tribunal dos homens brancos. Preferia pega-pega,
porque nessa brincadeira batia o primo menos ágil, ou ir para os terrenos
baldios capturar gafanhotos. Carlos María argumentava até convencê-la; às
vezes Marta se opunha terminantemente, nesses casos ele a agarrava pelo
cabelo e puxava, enquanto Marta se defendia chutando e gritando. Mamãe
Hilaire os fazia pagar pela sesta interrompida privando-os de sobremesa,
com um olhar sombrio que se prolongava por dias inteiros.
Aos dez anos, quando Marta deu uma espichada de repente e ele teve a
apendicite supurada, os jogos ganharam estilo, elegância. Já não iam
improvisadamente ao jardim assim que dobravam o guardanapo; usavam o
período de logo depois do almoço para amadurecer o emprego da tarde;
adentravam as diversões intelectuais, os blocos recortados para fabricar
papel-moeda, mata-borrões e selos de borracha, uma escrivaninha que às
vezes fazia empréstimos bancários, às vezes era escritório de serviços
públicos. Só a hora alta do calor, com o jardim a chamá-los, impunha os
prestígios da sesta; se reincidiam nos jogos de guerra, entre as correrias e
prisões já introduziam mapas de tesouro, inserções sonoras, discursos e
sentenças de morte; com resgates ou fuzilamentos, nos quais Carlos María
despencava no chão cheio de graça e heroísmo.
O chorão era alto mas subiam nele em dois saltos. Jogado na grama
quente, ele via as pernas de Marta balançar, a cavalo sobre a primeira
forquilha. Ela estava muito queimada até o tornozelo, depois vinha uma
área cor de trigo onde às vezes havia meias e às vezes não; do joelho para
cima ela era branquíssima, na penumbra de sino da saia dela adivinhava a
cor ainda mais branca da calcinha cortando suas coxas. Carlos María não
era curioso, mas um dia lhe pediu que tirasse a calcinha para ver. Depois de
implorar por algum tempo (estavam entre os caniços que ocultavam uma
velha fonte sem água), Marta deixou que ele olhasse, sem permitir que
chegasse perto. Carlos María não se impressionou, havia esperado uma
coisa mais escandalosa, mais proibida.
— Tanto tempo para isso — foi a sentença dele. — Um risquinho e fim.
Conosco é bem diferente.
Esperava que Marta lhe fizesse o mesmo pedido, mas ela se vestia sem
olhar para ele. Não falaram mais nada, e naquela tarde tampouco houve
guerras. Carlos María teve a impressão de que ela havia ficado mais
envergonhada desde aquele dia; achou que era uma coisa idiota, justamente
depois de ter tirado a roupa tão tranquilinha. Estava de acordo com os
colegas de turma, que achavam as garotas umas tontas. Contou aos amigos
íntimos que sua prima havia lhe mostrado. Todos riram, menos um, que
tinha treze anos e cabelo vermelho. Olhava para Carlos María sem dizer
nada, mas ele teve a impressão de que o foguinho estava pensando alguma
coisa. Não teve coragem de perguntar, sempre o havia respeitado porque o
pai era da polícia montada.
Quando chegaram ao fim do quinto grau (ela na escola nove, ele na seis), d.
Elías Hilaire começou a se interessar pelas brincadeiras dos dois e às vezes
ia para perto deles quando o calor acalmava. Carlos María estava muito alto
e queimado, agora passava Marta por mais de uma cabeça e fazia questão
de que ela se desse conta disso. Ela cultivava outras qualidades, rolos no
cabelo, sainhas plissadas, mas na hora da sesta vestia uma bata azul que
ficava muito justa e a deixava com jeito de rapazinho. Carlos María
mostrava mais confiança quando ela andava malvestida, à tarde saía com os
meninos amigos deixando-a na porta toda arrumada e altiva entre as outras
meninas. Era raro os dois grupos se reunirem para brincar, preferiam dizer
coisas de longe uns para os outros e se chamar de idiotas. Na frente das
outras meninas, Marta fingia desprezar o primo, mas guardava gestos
secretos de ternura que ele acatava receoso; como na noite em que
machucou o joelho no arame farpado e ela o ajudou a chegar em casa e se
esconder de mamãe Hilaire, expondo-se corajosamente até violar o proibido
armário dos remédios (cianeto, cloreto de mercúrio, seringas, cânulas) e
voltar com tintura de iodo e gazes, apertando os dentes para não chorar na
frente dela (“Não faça manha, fresco”, dizia Marta enquanto desinfetava o
ferimento com minúcia selvagem), Carlos María teve naquela noite uma
repentina impressão de distância, de afastamento, que aumentava
vertiginosa entre ambos. Ele gostava dos olhos de Marta, continuava
gostando de suas pernas finas de rapazinho, cheias de machucados
disfarçados com pó; mas em seu prazer ao olhar para ela havia agora uma
sensação de estranhamento, de que estava olhando para uma coisa afastada,
já inteiramente afastada. Pela primeira vez mediu uma distância que jamais
lhe parecera intransponível, que não tinha nem sequer o sentimento de ser
distância; agora Marta estava na frente dele (esparramada, soprando seu
machucado, fazendo-se de importante) como outra pessoa, alguém que está
com a gente mas que não é a gente; como d. Elías, como a empregada ou os
outros meninos da escola. Ouviu-se chorar com vontade, numa convulsão
repetida.
— Como você é fresco — dizia Marta. — Por uma bobagem dessas…
Você não vai morrer disso, idiota.
Sentira vontade de responder, de dizer que não era por isso. Antes bastava
querer alguma coisa dela para tomá-la à força; pancadas, apertões, abraços,
palavras. De repente sentia que nada mais era dele, que poderia continuar
obtendo o que quisesse mas que seria obrigado a pedi-lo à outra, à Marta
que não era uma parte dele; pedir todas as coisas, e mesmo quando as
tomasse dela, pancadas ou abraços, precisava pedir primeiro.
Quando voltou, feliz de seus dezesseis anos, dos braços fortes e da amizade
com todos os peõezinhos da estância, mamãe Hilaire não esperou nem um
dia para ter uma conversa séria com ele e avisá-lo sobre Marta, que perdera
peso e alegria durante o verão, estava pálida e com jeito distante; o dr.
Roderich havia reforçado o cálcio, com francas incitações ao campo e à
tranquilidade.
— Mas por que você não a mandou para a estância?
— Porque eu não podia ir com ela, você sabe que a Obra não me deixa
nem um dia livre, ainda mais agora, com o esforço de guerra.
— Ela é que deveria ter ido — insistiu Carlos María, soturno.
— Vou com ela na semana que vem. Consegui uma pessoa para me
substituir. Seu pai toma conta da casa.
“Que idiotas”, pensou Carlos María ao sair. Receava uma desconfiança da
mãe, medo de Marta sozinha com ele sem ninguém tomando conta. Mas
depois gostou da ideia, a prova indireta de sua hombridade. E assim que
gostou da ideia voltou o incômodo, o mal-estar que às vezes o acossava sem
que soubesse como, quando o Bebe Matti falava de suas aventuras com uma
mulher de cabaré, dizendo que seria bom arrumarem uns pesos e ir para o
Bajo num sábado qualquer.
— Realmente você está um nojo — disse para Marta quando acabaram de
se abraçar. — Mas lá você logo entra nos eixos. Pena não ir com você, eu
lhe ensinava a andar a cavalo.
— Não tenho a intenção de andar a cavalo — disse Marta, que estava na
fase da languidez e da indiferença. — Para mim é suficiente andar pelos
campos ao entardecer.
— Você vai é se encher de carrapato.
Começavam a olhar um para o outro, a se reconhecer. Trocavam tímidas
referências ao passado, à festa de aniversário de Marta, ao presente que ela
havia mandado para o de Carlos María. Ele achava os braços dela bonitos,
longos e muito brancos, o pescoço quase transparente, e os olhos Hilaire
ardendo para dentro. Marta começou a falar em Rolando Yepes, em como
Rolando Yepes desenhava.
— Maldita estância. Vou entrar no curso com quatro meses de atraso e
perder tudo o que sabia. Segundo Rolando isso é uma pena, porque este ano
não dá para jogar tempo fora.
Falava dos professores, das esperanças. Ele a seguia olhando seus braços,
um pouquinho o peito, onde a blusa se erguia de leve; mas olhava seus
braços e também a cintura fina que ainda era um pouco de menina.
— Seu Rolando deve ser uma besta — disse, antes de sair.
O ano não foi bom porque Marta não se recuperou na estância e quando a
trouxeram fez questão de frequentar a academia e não houve como impedi-
la. Teve uma bronquite uma semana depois, o dr. Roderich mandou chamar
uma enfermeira e Marta ficou presa à cama, na penumbra; Carlos María a
ouvia de longe gemendo mansamente, parecia um pardal ou um gatinho.
Foram cinco dias horríveis, até saber que ela se salvaria. Quando Carlos
María saía do escritório para se aproximar da sala de jantar, posto avançado
de onde se adivinhava o movimento no quarto de Marta, Rolando Yepes ia
sentar-se a seu lado em busca de uma dessas palavras que uma pessoa
inspira em outra para depois ouvi-las e se consolar. Ia todos os dias à casa
deles, passava horas na sala de jantar, e mamãe Hilaire permitia que ficasse,
servia-lhe café e docinhos, uma noite tentou convencê-lo a ficar, mas ele
recusou, para voltar no dia seguinte a partir do meio-dia.
Olhavam (sentados no sofá verde, onde havia exemplares da Life e
cigarros avulsos) as pessoas entrarem e saírem do quarto de Marta, liam as
notícias na fisionomia da enfermeira ou de mamãe Hilaire. Carlos María
teria querido estar só, mas Rolando era discreto e tímido, passava horas
calado fumando seu cachimbo, às vezes adquiria um ar de espera
informada, como se de repente a porta do quarto do fundo do corredor fosse
se abrir para que acontecesse um grande milagre. Naqueles momentos
Carlos María ficava contaminado pela tensão de Rolando, observava-o
admirado para em seguida recuar para seu rancor amedrontado, para a
presença do intruso na família. De vez em quando d. Elías se aproximava e
se sentava entre os dois, murmurando sua esperança em frases densas e
fáceis; Carlos María o escutava como quem aspira o perfume das colônias
ordinárias.
Um dia em que Rolando ficou ocupado com trabalhos práticos e não pôde
voltar, Carlos María ficou de dono do sofá e se estendeu confortavelmente,
relaxado e vitorioso. Seus pés estavam no lugar onde Rolando costumava
sentar-se, a cabeça apoiada no braço de veludo, fazendo círculos de fumaça
com uma destreza descuidada. Deixou-se estar assim durante uma hora,
talvez duas. A enfermeira entrava e saía do quarto de Marta, dirigindo-lhe
ao passar um gesto satisfeito, e ele desfrutava da certeza de sua melhora, de
que em breve ela poderia estar a seu lado. Em determinado momento —
descerravam as cortinas da sala de jantar, a atmosfera se impregnava de
xaropes opalinos — perguntou-se distraidamente por que sua alegria não
era maior e mais plena. Senhor do lugar, de novo ele e Marta. Bateu no
assento do sofá com os saltos dos sapatos, viu a fina coluna de poeira subir
como os gênios das Mil e uma noites. Teve a sensação de estar só e de
faltar-lhe alguma coisa, até que d. Elías chegou e os dois falaram da guerra,
da posição privilegiada de nossa pátria em meio ao caos. “Ser neutro é ser
superior a todos”, proclamava d. Elías de vez em quando. Foi o que disse
naquele momento, Carlos María respondeu com respeitoso assentimento,
com uma vaga felicidade, agora que era levado a pensar em outra coisa,
agora que o extraíam daquele sentimento de indefinida privação em que
passara a tarde.
A luz da convalescença já era dela; abria as mãos, palmas para cima sobre
os lençóis, e a aprisionava com avidez, brincando com a luz como com
meadas de lã. Permitiam que Carlos María olhasse para ela por um
momento, da porta, proibido de dizer-lhe uma só palavra; mas agora pôde
entrar, sentar-se num banquinho ao lado da cama, acariciar o braço
emagrecido da menina.
As primeiras palavras de Marta foram para perguntar-lhe por Rolando. Ele
sofreu ao responder com a verdade, contar-lhe a fiel presença de Rolando
na casa. Rolando não tardaria a chegar, mas enquanto isso havia o tempo de
antes, com Marta e ele no jardim. Quando Rolando voltava à voz de Marta,
em meio a uma lembrança ou a um projeto só dos dois, Carlos María sentia
uma espécie de tombo repentino, um leve giro da tampa facetada das
garrafas, para ver um jogo de imagens substituído no mesmo instante por
outro, sem relação com o anterior, abominavelmente diferente.
— Me desculpe — disse Marta de repente, com seu rosto devastado e seu
romantismo mantido pela dieta e pelo delicado abrigo de lã rosa. — Eu não
devia lhe falar dele. Eu sei…
— Você não sabe nada de nada. Por mim, pode continuar falando dele,
você é livre.
— Você foi tão bom, esse tempo todo…
— Ele também — disse Carlos María com heroísmo. Foi mais fácil do
que teria imaginado. Um heroísmo como o de antes, quando se atirava,
fuzilado, pronunciando as últimas memoráveis palavras.
Anunciaram Rolando, precedido de flores e de um pacote com jeito de
confeitaria de bairro. Carlos María se levantou para deixá-los a sós.
— Você é mesmo um tolinho — disse Marta com uma voz tão para ele,
tão do lado de antes, que Carlos María passou diante de Rolando como um
deus.
Depois o ano passou depressa. Levaram Marta para Córdoba, a casa ficou
vazia de mulheres até o fim dos cursos. Foi um belo tempo para Carlos
María. Os rapazes se reuniam a ele todas as tardes para estudar na sala
grande, faziam pausas na botânica e no reinado de Pepino, o Breve, para
ensaiar boogies ou discutir com elegância marcas de cigarros e automóveis.
Às vezes d. Elías chegava do escritório e ficava um momento com eles,
tratando-os de igual para igual com tanta cordialidade que os rapazes se
rendiam a ele na mesma hora. Era a ocasião em que d. Elías mandava trazer
a garrafa de cana seca e todos bebiam seus copinhos com ar de entendidos e
fumando. Coisa estranha, o Bebe Matti nunca mais falara de mulheres para
Carlos María. Uma noite foram ao Bajo com Días Alcorta, animaram-no a
provar o Avión e beberam três cervejas cada um. A mulher de Carlos María
era magra e compreensiva, deu-lhe conselhos e fez uma vaga promessa de
encontrá-lo uma tarde para concretizar uma ida para a cama. Saíram
enjoados e orgulhosos, disfarçando as duas coisas e principalmente o
orgulho. Carlos María pensou muitas vezes em Yaya, mas não em telefonar
para ela e levá-la a um hotel. Pensando-o, não o pensava. Certa expressão
do porteiro do cabaré, somada à de Yaya quando lhe dizia: “Como você
dança bem a milonga, filho”, detinham-no à beira do ridículo. Imaginava
problemas, cerimônias; que lhe pediam a identidade no hotel, ou que o
despachavam acompanhado de um segurança. Tudo isso na frente de Yaya,
ou para que d. Elías ficasse sabendo. Quando se decidiu a desistir, a esperar,
sentiu uma felicidade quase indigna. Como quando era criança e encontrava
o pretexto perfeito para não fazer alguma coisa que lhe causava repugnância
ou desprazer.
***
Elías Hilaire
Na primeira noite não houve efeito algum, dormiu profundamente até bem
tarde, e sem sonhos. Desde o despertar, ainda em dúvida quanto a sair da
cama para fazer ginástica ou continuar preguiçando um pouco, uma
angústia incontrolável apoiou os pés em seu estômago, uma sede e um
aperto o fizeram pular da cama. Em outros tempos sentia a mesma coisa
quando chegava à conclusão — sempre assim, um segundo antes de se
levantar — de que não teria média suficiente para se livrar de alguma
matéria, ou que mamãe Hilaire podia morrer. Ficou fazendo tempo na ducha
fria, recusando-se ao momento de enfrentar Marta e as canecas de café com
leite. Mas depois se portou com serenidade, brincou com ela sobre sua cara
de sono, o batom azul e o cabelo despenteado. Estava ganhando tempo para
olhar para ela, para encontrar os olhos de Marta, que agora,
incontestavelmente, eram os olhos Hilaire da infância. Não o magoava que
ela fosse sua irmã, nem que o segredo explicasse melhor as separações
atentas, os alertas incessantes de mamãe Hilaire. Era outra coisa, um surdo
sentimento sem palavras no qual d. Elías e mamãe Hilaire apareciam como
enormes aranhas dedicadas a um dever monstruoso e continuado, capaz de
obliterar o futuro para que o passado se mantivesse respeitável e intocado.
Mamãe Hilaire fora a pior, a encarnação da santidade mais abominável;
protegendo o erro de d. Elías, cobrindo com uma asa de galinha
absolvedora a criança confessada por aquele homem sem forças para evitar
sua vinda, fraco para mantê-la longe e ignorada. Marta Hilaire, sua irmã.
Com uma fraternidade já inegável no jeito de olhar, no desenho do queixo.
Sua irmã, e ele apaixonado por ela, abrasado de ciúme dela, cego diante de
Rolando, que repentinamente, e feito um semideus — daqueles aprendidos
no primeiro ano, que se transformavam e eram de tudo, sempre mais fortes
e mais belos —, repentinamente, como um semideus, tomava a dianteira da
competição, chegava a Marta por ter direito a isso, podia ganhá-la, não era
irmão dela, embora a amasse e merecesse menos.
Na tarde anterior, antes de encontrar a carta — que agora tinha na carteira,
como um segundo coração, seco e convulsionado —, sua fúria contra Marta
e Rolando se transformara em necessidade de luta. Não podia expulsar
Rolando e nem queria expulsá-lo. Impossível agredi-lo fisicamente, sua
culpa não era dessa ordem, tudo o que fosse punitivo deveria dar lugar a
uma máquina de vitória que não adquirisse tom de vingança. Eles não lhe
haviam feito nada; poderia ter em Rolando seu melhor amigo, só que… E
Marta ainda menos, ela menos ainda. Então planejara aproveitar seu
prestígio de regresso, sua herança do passado; criar em Marta a volta ao
jardim, ao chorão, a Buffalo Bill; sem isso, exatamente, mas de alguma
forma isso outra vez, o jardim e o chorão. Para deixar Rolando de fora,
impor-lhe sua condição intransponível de intruso e estrangeiro.
Então vira lucidamente — mesmo sem formulá-lo, como um
conhecimento inexprimível mas evidente — que só poderia ganhar Marta a
partir do plano pessoal, com o mesmo jogo que via Rolando tramar. Não
que o incomodasse, não exatamente que o incomodasse; guardava desde
muito antes uma ânsia de apertá-la contra si e cheirar seu cabelo e sua nuca;
embora sabe-se lá se isso era amor, recusava-se a classificar uma atração
que carecia de propósitos definidos — como talvez com Yaya, tanto tempo
antes, ou em alguns sonhos que o desalentavam por serem imprecisos. E
agora tudo virava retrocesso e renúncia, limitar-se a estar perto de Marta e ir
em frente como amigo, como companheiro de tanto viver e brigar e ser
felizes. Não mais o amor, não mais apertá-la contra si e cheirar seu cabelo e
seu protesto. Deixar que se fosse, com Rolando e seu caminho. Voltar ao
orgulho dos catorze anos, de antes de Rolando aparecer na casa, quando
Marta era um problema para seu orgulho masculino, um incômodo em cada
jantar, em cada viagem, em cada filme. Dar-se conta ao mesmo tempo —
passado um momento, quando o solilóquio parecia ter se esgotado,
satisfatório — de que era impossível, de que a ideia de Rolando com Marta
era como nunca aquela vespa enfurecida em seu punho; e ele uma
necessidade de espada fria a introduzir-se entre os dois, como nas lendas da
Távola Redonda; guardião da irmã, então, mesmo não sendo exatamente
isso, se algo semelhante a uma mentira o arrastava, queimando suas sestas e
suas noites, denunciando aquela tutoria resignada; algo como um impulso
para outra coisa, uma disparada de cavalo em chamas.
Organizou sua renúncia com minúcia de relojoeiro. Agora acreditava
curar-se isolando-se pouco a pouco, cedendo, na recordação da irmã, à
presença cada vez mais constante e visível de Rolando. Prometia para si
mesmo fazê-los felizes, revelar o segredo algum dia, depois que mamãe
Hilaire e d. Elías tivessem morrido, extrair a carta amarela da carteira numa
noite de aniversário, mostrá-la aos esposos na hora dos brindes, com a
palidez adequada e mais tarde as lágrimas, os brindes, a emoção de Marta
diante da revelação da fraternidade, o abraço de Rolando, definitivamente
parceiro. Construía seus sonhos em prolongado detalhe, deixando que se
escoassem as horas da sesta, estendido de costas. Um momento depois
fervia de raiva, exasperado por ter se deixado arrastar para uma filantropia
repugnante. A inconsistência de tanta fantasia tornou-o volátil e mal-
humorado, mamãe Hilaire já se queixava em voz alta e atribuía aquela
brusca rabugice de Carlos María às férias na estância. Ele respondeu com
aspereza uma ou duas vezes, até d. Elías chamá-lo de pirralho na frente de
Rolando. Ergueu-se pálido, prestes a gritar a verdade como uma cusparada.
Rolando olhava para ele penalizado, num convite a que se calasse, então
tudo se resumiu docemente a uma necessidade incontrolável de lágrimas,
num ir para o quarto sem olhar para ninguém e ceder durante horas inteiras
a uma amargura deliciosa cheia de mimos e frases superiores.
Depois disso ficou sigiloso e astuto. Entrava sem resistências numa
recaída do ciúme e percebia deliciado que para afastar Rolando de Marta
bastava mostrar-se inteligente, acumular pretextos, interrupções,
amabilidades repletas de encanto, intrometer-se no diálogo, ser três com
eles, sair junto com eles, ler os livros para eles e repartir os caramelos.
Conseguiu convencer Rolando a ir um domingo até o campo do Racing,
outro dia telefonou para Marta do centro convidando-a a ir assistir com ele
a uma comédia na sessão da tarde; visto que ela comentava que Rolando ia
estudar, avisou-a de que o filme sairia de cartaz no dia seguinte; Marta se
deixou convencer.
Quando os três saíam juntos, ela se sentava entre os dois no cinema e nos
bares, o hábito os deixava cheios de subentendidos e intimidades. Em casa,
Rolando já era o pretendente que vai jantar duas vezes por semana e adquire
um número cada vez maior de privilégios. Levava charutos para d. Elías e a
revista Home and Garden para mamãe Hilaire. Com exceção de Picasso, os
dois estavam de acordo com ele em tudo, e até o pai de Rolando aparecera
em jornada exploratória e trocara saudações com os Hilaire por ocasião do
primeiro dia do ano.
Um botão aqui, os pespontos… Sim, ela era filha de Luis Miguel Hilaire
com uma moça que havia morrido no parto. A carta de d. Elías (“me passe a
caixa das agulhas, não faça essa cara de palerma”) se dirigia a uma parenta
que adivinhara tudo e que se apresentara em defesa dos ditames da Igreja.
Foi fácil dar um jeito na questão do sobrenome, d. Elías era influente e era
preciso proteger Luis Miguel, candidato a senador por Buenos Aires.
— A coitada da minha irmã, que Deus a tenha em sua glória, aceitou
passar por mãe de Marta aos olhos das pessoas, e quando a gripe a levou,
mantivemos a mentira piedosa, ainda mais que Rosales havia permitido que
ela ficasse com o sobrenome, e o coitado morreu pouco depois… Pois saiba
que todos os parentes próximos conhecem a verdade e sempre estiveram de
acordo; como você vê, no fim Elías nem chegou a mandar essa carta. E um
dia desses vocês acabariam sabendo… Íamos deixar o assunto quieto, essas
coisas são tão penosas.
Ela se enredava nas explicações, confundindo-as com as linhas e as
bainhas, mas Carlos María já não a escutava. Marta é Hilaire… E de novo
sua prima; Hilaire, mas prima. Com todos os direitos recuperados, seu
longo sacrifício inútil, outra vez só e nu, na mesma situação de Rolando.
Agora (e foi saindo do quarto com sigilosa lentidão) podia conquistar
Marta, beijá-la depois do beijo dele. Dizer que se sacrificara ao longo de
todas aquelas semanas, repetia a parte do sacrifício para se convencer.
Porque Marta era Hilaire. No fim a liberdade o inundava como um extravio,
a perda de todo ponto de referência; agarrou-se ao corrimão para certificar-
se de que descia. Ouviu risadas na sala do piano, depois um acorde,
Rolando batucando o início de uma rumba. A porta estava entreaberta e ele
tinha todo o direito de abri-la de par em par, de ir ao encontro de Rolando e
Marta, de dizer simplesmente: “Sou eu, e venho para ficar”.
Lembrou-se de que não pedira desculpas a d. Elías; mas já estava se
jogando para trás quando se lembrou.
C
hegarei a Istambul às oito e meia da noite. O concerto de Nathan
Milstein começa às nove, mas não vai ser preciso assistir à
primeira parte; entro no fim do intervalo, depois de tomar um
banho e comer alguma coisa no Hilton. Para ir matando o tempo,
me diverte relembrar tudo o que está por trás desta viagem, por trás das
viagens dos dois últimos anos. Não é a primeira vez que registro por escrito
essas lembranças, mas sempre tenho o cuidado de rasgar os papéis ao
chegar ao destino. Sinto prazer em reler uma e outra vez minha maravilhosa
história, embora logo depois prefira apagar seus traços. Hoje a viagem me
parece interminável, as revistas são tediosas, a comissária de bordo tem cara
de boba, não dá nem para convidar outro passageiro para jogar cartas.
Escrevamos, então, para isolar-nos do rugido das turbinas. Agora que penso
nisso, eu também estava muito entediado na noite em que tive a ideia de
entrar no concerto de Ruggiero Ricci. Logo eu, que não suporto Paganini.
Mas estava tão entediado que entrei e fui me sentar num assento barato que
por milagre estava vago, já que as pessoas adoram Paganini e além disso
não dá para não escutar Ricci tocar os “Caprichos”. Era um concerto
excelente e a técnica de Ricci me deixou embasbacado, seu jeito
inconcebível de transformar o violino numa espécie de pássaro de fogo, de
foguete sideral, de quermesse enlouquecida. Lembro-me muito bem do
momento: as pessoas haviam ficado como que paralisadas com o fecho
esplendoroso de um dos caprichos, e Ricci, quase sem solução de
continuidade, já atacava o seguinte. Então pensei em minha tia, por uma
dessas absurdas distrações que nos atacam no mais profundo da atenção, e
no mesmo instante a segunda corda do violino arrebentou. Coisa muito
desagradável, porque Ricci foi obrigado a fazer uma saudação, sair do palco
e voltar com cara de poucos amigos, enquanto no público se perdia aquela
tensão que todo intérprete invoca e utiliza. O pianista atacou sua parte e
Ricci voltou a tocar o capricho. Mas eu havia ficado com uma sensação ao
mesmo tempo confusa e obstinada, uma espécie de problema não resolvido,
de elementos dissociados que tentavam se concatenar. Distraído, incapaz de
entrar novamente na música, analisei o sucedido até o momento em que
havia começado a me desconcentrar, e concluí que a culpa parecia ser de
minha tia, de que eu tivesse pensado em minha tia no meio de um capricho
de Paganini. No mesmo instante caiu a tampa do piano, com um estrondo
que provocou o horror da sala e o total deslocamento do concerto. Saí para
a rua muito perturbado e fui tomar um café, pensando que não tinha sorte
quando me ocorria divertir-me um pouco.
Devo ser muito ingênuo, mas agora sei que mesmo a ingenuidade pode ter
sua recompensa. Consultando a programação, verifiquei que Ruggiero Ricci
prosseguia sua turnê em Lyon. Fazendo um sacrifício, me instalei na
segunda classe de um trem que cheirava a mofo, não sem antes alegar
doença no instituto médico-legal onde trabalhava. Em Lyon comprei o
assento mais barato do teatro depois de um lanche ruim na estação, e por
via das dúvidas, principalmente por Ricci, só entrei no último momento, ou
seja, na hora de ele tocar Paganini. Minhas intenções eram puramente
científicas (mas será que isso é verdade? será que o plano já não estava
delineado em algum lugar?), e, como não queria prejudicar o artista, esperei
um breve intervalo entre dois caprichos para pensar em minha tia. Quase
sem acreditar, vi que Ricci examinava atentamente o arco do violino, se
inclinava como quem pede desculpas e saía do palco. Retirei-me
imediatamente da sala, temendo não conseguir deixar de lembrar-me outra
vez de minha tia. Do hotel, naquela mesma noite, escrevi a primeira das
mensagens anônimas que alguns concertistas famosos inventaram de
chamar de as cartas negras. É claro que Ricci não me respondeu, mas minha
carta previa não só a gargalhada zombeteira do destinatário como seu
próprio fim na cesta de papéis. No concerto seguinte — era em Grenoble —
calculei com precisão o momento de entrar na sala, e na metade do segundo
movimento de uma sonata de Schumann pensei em minha tia. As luzes da
sala se apagaram, houve uma confusão considerável e Ricci, um pouco
pálido, deve ter se lembrado de certo trecho de minha carta antes de
recomeçar a tocar; não sei se a sonata valia a pena porque eu já estava a
caminho do hotel.
O secretário dele me recebeu dois dias depois, e como não faço pouco de
ninguém aceitei uma pequena demonstração em particular, não sem deixar
claro que as condições especiais do teste poderiam influir no resultado.
Como Ricci se recusava a me ver, coisa que não deixei de lhe agradecer,
ficou acertado que ele permaneceria em seu quarto do hotel e que eu me
instalaria na antecâmara, juntamente com o secretário. Disfarçando a
ansiedade de todo noviço, sentei-me num sofá e fiquei um tempo ouvindo.
Depois toquei no ombro do secretário e pensei em minha tia. Do aposento
contíguo ouviu-se uma praga em excelente norte-americano e tive o tempo
exato de sair por uma porta antes de um furacão humano entrar pela outra
armada de um Stradivarius com uma corda pendurada.
Combinamos que seriam mil dólares mensais, depositados numa discreta
conta bancária que eu tinha a intenção de abrir com o produto da primeira
contribuição. O secretário, que levou o dinheiro até o hotel onde eu estava,
não disfarçou o fato de que faria todo o possível para contrariar o que
qualificou como odiosa maquinação. Optei pelo silêncio e por guardar o
dinheiro, e esperei a segunda contribuição. Quando dois meses se passaram
sem que o banco me notificasse o depósito, tomei o avião para Casablanca,
embora a viagem me custasse grande parte da primeira contribuição. Acho
que naquela noite meu triunfo ficou definitivamente comprovado, porque a
carta que escrevi para o secretário continha as especificações suficientes e
não há ninguém neste mundo bobo a esse ponto. Pude voltar para Paris e
dedicar-me conscienciosamente a Isaac Stern, que dava início à sua turnê
francesa. No mês seguinte fui a Londres e tive uma entrevista com o
empresário de Nathan Milstein e outra com o secretário de Arthur
Grumiaux. O dinheiro permitia que eu aperfeiçoasse minha técnica, e os
aviões, esses violinos do espaço, faziam-me economizar muito tempo; em
menos de seis meses minha lista passou a incluir Zino Francescatti, Yehudi
Menuhin, Ricardo Odnoposoff, Christian Ferras, Ivry Gitlis e Jascha
Heifetz. Fracassei em parte com Leonid Kogan e com os dois Oistrakh, que
me demonstraram que só estavam em condições de pagar em rublos, mas
por via das dúvidas acertamos que depositariam minhas parcelas em
Moscou e me enviariam os devidos comprovantes. Não perco a esperança,
se os negócios permitirem, de radicar-me durante algum tempo na União
Soviética para apreciar as belezas da música local.
Como é natural, considerando que o número de violinistas famosos é
muito limitado, fiz algumas experiências colaterais. O violoncelo reagiu de
imediato à lembrança de minha tia, mas o piano, a harpa e o violão se
mostraram indiferentes. Tive de dedicar-me exclusivamente aos arcos, e
comecei meu novo setor de clientes com Gregor Piatigorsky, Gaspar
Cassadó e Pierre Michelin. Depois de acertar minha combinação com Pierre
Fournier, fiz uma viagem de descanso ao festival de Prades, onde tive uma
conversa muito pouco agradável com Pablo Casals. Sempre respeitei a
velhice, mas pareceu-me penoso que o venerável mestre catalão insistisse
num desconto de vinte por cento, em último caso de quinze. Cedi dez por
cento em troca de sua palavra de honra de que não mencionaria o desconto
a nenhum colega, mas fui mal recompensado porque o mestre começou por
não dar concertos durante seis meses e, como seria previsível, não pagou
nem um centavo. Tive que tomar outro avião, ir a outro festival. O mestre
pagou. Essas coisas me davam muito desgosto.
Na verdade eu deveria dedicar-me ao repouso desde já, visto que minha
conta bancária cresce à razão de 17 900 dólares mensais, mas a má-fé de
meus clientes é infinita. É só se afastarem mais de dois mil quilômetros de
Paris, onde sabem que tenho meu centro de operações, que deixam de
enviar o montante concertado. Para pessoas que ganham tanto dinheiro, há
de se convir que é uma vergonha, porém nunca perdi tempo com
recriminações de ordem moral. Os Boeings foram feitos para outra coisa, e
tenho o cuidado de refrescar pessoalmente a memória dos refratários. Tenho
certeza de que Heifetz, por exemplo, terá bem presente certa noite no teatro
de Tel Aviv, e que Francescatti não se consola do final de seu último
concerto em Buenos Aires. No que lhes diz respeito, sei que fazem o
possível para se verem livres de suas obrigações, e nunca ri tanto como
quando tomei conhecimento do conselho de guerra que realizaram no ano
passado em Los Angeles, sob o pretexto do convite estapafúrdio de uma
herdeira californiana atingida de melomania megalômana. Os resultados
foram irrisórios porém imediatos: a polícia me interrogou em Paris, sem
grande convicção. Reconheci minha qualidade de aficionado, minha
predileção pelos instrumentos de arco, e a admiração para com os grandes
virtuoses que me leva a cruzar o mundo para assistir a seus concertos. No
fim me deixaram tranquilo, aconselhando-me, a bem de minha saúde, que
escolhesse outras diversões; prometi fazê-lo, e dias depois enviei nova carta
a meus clientes felicitando-os pela esperteza e aconselhando-os a efetuar
pontualmente o pagamento de suas obrigações. A essa altura eu já havia
comprado uma casa de campo em Andorra, e quando um agente
desconhecido deu cabo de meu apartamento de Paris com uma carga de
explosivo, festejei assistindo a um concerto extraordinário de Isaac Stern
em Bruxelas — levemente prejudicado quase no final — e enviando-lhe
umas poucas linhas na manhã seguinte. Como era previsível, Stern fez
circular a carta entre o resto da clientela, e tenho o prazer de reconhecer que
no decorrer do último ano quase todos eles se comportaram como
cavalheiros, inclusive no que diz respeito à indenização que exigi por danos
de guerra.
Apesar dos incômodos provocados pelos recalcitrantes, preciso admitir
que sou feliz; essa rebeldia ocasional me dá, inclusive, ocasião de ir
conhecendo o mundo, e sempre serei grato a Menuhin por um entardecer
maravilhoso na baía de Sydney. Acho que até meus fracassos contribuíram
para minha felicidade, porque se eu tivesse podido incluir os pianistas, que
são tantos, entre meus clientes, já não teria tido um segundo de descanso.
Mas, como falei, fracassei com eles e também com os maestros. Há
algumas semanas, em minha propriedade de Andorra, me distraí fazendo
uma série de experiências com a lembrança de minha tia, e confirmei que
seu poder só se exerce nas coisas que guardam alguma analogia — por
absurda que pareça — com os violinos. Se penso em minha tia enquanto
estou olhando uma andorinha voar, é infalível que ela dê um grande giro,
perca o rumo por um instante e depois, com um esforço, o recupere.
Também pensei em minha tia enquanto um artista rabiscava um croqui na
praça do povoado, com líricos vaivéns da mão. O lápis carvão virou pó
entre seus dedos e tive dificuldade para disfarçar o riso diante de sua
expressão estupefata. Porém, para lá dessas secretas afinidades… Enfim, o
caso é esse. No que diz respeito a pianos, nada a fazer.
Vantagens do narcisismo: acabam de anunciar que chegaremos dentro de
um quarto de hora, e afinal resulta que passei ótimos momentos escrevendo
estas páginas — que destruirei, como sempre, antes de aterrissarmos.
Lamento ter de me mostrar tão severo com Milstein, que é um artista
admirável, mas desta vez é preciso uma lição que semeie o espanto entre a
clientela. Sempre desconfiei que Milstein me considerava um golpista, e
que para ele meu poder não passava de efêmero resultado da sugestão.
Fiquei sabendo que ele tratou de convencer Grumiaux e os outros a rebelar-
se abertamente. No fundo eles se comportam como crianças e é preciso
tratá-los da mesma maneira, só que desta vez o castigo será exemplar. Estou
disposto a estragar o concerto de Milstein desde o começo; os outros
tomarão conhecimento com a mistura de alegria e horror própria de sua
agremiação, e tratarão de pôr o violino de molho, por assim dizer.
Já estamos chegando, o avião dá início à descida. Da cabine de comando
deve ser impressionante ver como a terra parece levantar-se
ameaçadoramente. Imagino que o piloto, com toda a sua experiência, deve
estar um pouco crispado, com as mãos aferradas ao manche. É mesmo, era
um chapéu cor-de-rosa com babados; com ele, minha tia ficava tão
(c. 1955)
Copyright © 1966 by Julio Cortázar
e herdeiros de Julio Cortázar
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
OCTAEDRO (1974)
Liliana chorando
Os passos nos rastros
Manuscrito encontrado num bolso
Verão
Ali, mas onde, como?
Lugar chamado Kindberg
As fases de Severo
Pescoço de gatinho preto
HISTÓRIAS (INESPERADAS)
Teoria do caranguejo
Ciao, Verona
Potássio em diminuição
Peripécias da água
Em Matilde
A fé no Terceiro Mundo
Sequências
TEXTOS COMPLEMENTARES
Alguns aspectos do conto — Julio Cortázar
Do conto breve e seus arredores — Julio Cortázar
Conto: introdução — Jaime Alazraki
Sobre o autor
Silvia
S
abe-se lá que fim teria uma coisa que nem começo teve, que se fez
pela metade e terminou sem contorno definido, esfumando-se à
beira de outra névoa; em todo caso, é preciso começar dizendo que
muitos argentinos passam parte do verão nos vales do Luberon e
que nós, os veteranos da região, ouvimos com frequência suas vozes
sonoras que parecem trazer consigo um espaço mais aberto, e junto com os
pais vêm as crianças e isso também é Silvia, os canteiros pisoteados,
almoços com bifes nos garfos e nas bochechas, choros terríveis seguidos de
reconciliações de pronunciado estilo italiano, o que chamam de férias em
família. Comigo não se metem porque uma justa fama de mal-educado me
protege; o filtro só se abre para dar passagem a Raúl e a Nora Mayer e,
naturalmente, a seus amigos Javier e Magda, o que inclui as crianças e
Silvia, o churrasco na casa de Raúl há uns quinze dias, uma coisa que nem
chegou a ter um começo e mesmo assim é, sobretudo, Silvia, essa ausência
que agora povoa minha casa de homem sozinho, roça meu travesseiro com
sua medusa de ouro, me obriga a escrever o que escrevo com uma absurda
esperança de conjuro, de doce golem de palavras. De qualquer modo, é
preciso incluir também Jean Borel, que ensina a literatura de nossas terras
numa universidade occitana, sua mulher Liliane e o minúsculo Renaud, em
quem dois anos de vida se amontoam em tumulto. Quanta gente para um
churrasquinho no jardim da casa de Raúl e Nora, sob um vasto pé de tília
que não parecia servir de calmante na hora das pugnas infantis e das
discussões literárias. Cheguei com garrafas de vinho e um sol que se deitava
nas colinas, Raúl e Nora tinham me convidado porque Jean Borel queria me
conhecer e sozinho não se animava; naqueles dias Javier e Magda também
estavam hospedados na casa, o jardim era um campo de batalha metade
sioux, metade gaulês, guerreiros emplumados se batiam sem trégua com
vozes de soprano e bolas de barro, Graciela e Lolita aliadas contra Álvaro, e
em meio ao fragor o pobre Renaud cambaleando com suas calçolas cheias
de algodão maternal e uma tendência a passar o tempo todo de um bando
para outro, traidor inocente e execrado do qual só Silvia se ocuparia. Sei
que estou amontoando nomes, mas a ordem e as genealogias também
demoraram a me alcançar, lembro que saí do carro com as garrafas debaixo
do braço e poucos metros depois vi surgir entre os arbustos a bandana de
Bisão Invencível, sua careta desconfiada diante do novo Cara-Pálida; a
batalha pelo forte e pelos reféns se travava em torno de uma pequena
barraca de campanha verde que parecia o quartel-general do Bisão
Invencível. Negligenciando culposamente uma ofensiva que talvez fosse
capital, Graciela largou suas munições pegajosas e terminou de limpar as
mãos em meu pescoço; depois se sentou indelevelmente em minhas pernas
e me explicou que Raúl e Nora estavam lá em cima com os outros adultos e
que já viriam, detalhes sem importância ao lado da rude batalha do jardim.
Graciela sempre se sentiu na obrigação de me explicar tudo, partindo do
princípio de que me considera um boboca. Por exemplo, que nessa tarde o
menininho dos Borel não fazia nenhuma diferença, você não vê que o
Renaud só tem dois anos, ele ainda faz cocô na calça, acabou de fazer, e eu
já ia avisar a mamãe porque o Renaud estava chorando, mas a Silvia levou
ele até o banheiro, lavou o bumbum e trocou a roupa dele, a Liliane nem
ficou sabendo porque, sabe como é, ela tem muito nojo e acaba dando umas
palmadas no Renaud e daí ele começa a chorar de novo, chateia o tempo
todo e não deixa a gente brincar.
— E os outros dois, os maiores?
— São os filhos do Javier e da Magda, não sabia, seu bobo? O Álvaro é o
Bisão Invencível, tem sete anos, é dois meses mais velho que eu e é o maior
de todos. A Lolita tem seis mas já brinca, ela é a prisioneira do Bisão
Invencível. Eu sou a Rainha do Bosque e a Lolita é minha amiga, então eu
preciso salvar ela, mas vamos continuar amanhã, porque já chamaram a
gente pra tomar banho. O Álvaro cortou o pé e a Silvia fez o curativo. Me
solte que eu preciso ir.
Ninguém a segurava, mas Graciela sempre tende a afirmar sua liberdade.
Eu me levantei para cumprimentar os Borel, que desciam da casa com Raúl
e Nora. Alguém, acho que Javier, servia o primeiro pastis; a conversa
começou ao cair da noite, a batalha mudou de natureza e de idade, virou um
estudo sorridente de homens que acabam de se conhecer; as crianças
estavam no banho, não havia gauleses nem sioux no jardim, Borel queria
saber por que eu não voltava para meu país, Raúl e Javier sorriam com
sorrisos compatriotas. As três mulheres estavam ocupadas com a mesa;
eram curiosamente parecidas, Nora e Magda unidas pelo sotaque portenho
enquanto o espanhol de Liliane vinha do outro lado dos Pireneus. Nós as
chamamos para beber o pastis, descobri que Liliane era mais morena que
Nora e Magda, mas a semelhança persistia, uma espécie de ritmo comum.
Agora se falava da poesia concreta, do grupo da revista Invenção; entre
mim e Borel surgia um terreno comum, Eric Dolphy, a segunda dose
iluminava os sorrisos entre Javier e Magda, os outros dois casais já viviam
essa época em que a conversa em grupo libera antagonismos, ventila
diferenças que a intimidade cala. Já era quase noite quando as crianças
começaram a aparecer, limpas e aborrecidas, primeiro as de Javier
discutindo sobre umas moedas, Álvaro obstinado e Lolita petulante, depois
Graciela de mãos dadas com Renaud, que já estava com o rosto sujo outra
vez. Reuniram-se perto da pequena barraca de campanha verde; nós
discutíamos Jean-Pierre Faye e Phillipe Sollers, a noite inventou o fogo do
churrasco até então pouco visível entre as árvores, manchou-se com os
reflexos dourados e cambiantes que tingiam o tronco das árvores e
afastavam os limites do jardim; acho que foi nesse momento que vi Silvia
pela primeira vez, eu estava sentado entre Borel e Raúl, e em volta da mesa
redonda sob o pé de tília se sucediam Javier, Magda e Liliane; Nora ia e
vinha com talheres e pratos. Era estranho eles não terem me apresentado a
Silvia, mas ela era muito jovem e talvez quisesse se manter à margem,
entendi o silêncio de Raúl ou de Nora, evidentemente Silvia estava naquela
idade difícil, se recusava a entrar no jogo dos adultos, preferia impor sua
autoridade ou prestígio entre as crianças agrupadas junto da barraca verde.
Eu não conseguia ver Silvia direito, o fogo iluminava violentamente um dos
lados da barraca e ela estava lá agachada ao lado de Renaud, limpando o
rosto dele com um lenço ou um pedaço de pano; vi suas coxas luzidias,
umas coxas leves e definidas ao mesmo tempo, como o estilo de Francis
Ponge do qual Borel estava me falando, as panturrilhas estavam na sombra,
como o torso e o rosto, mas o cabelo de repente brilhava com o esvoaçar
das chamas, um cabelo também de ouro velho, Silvia inteira parecia
matizada com tons de fogo, de bronze espesso; a minissaia revelava até o
alto das coxas, e Francis Ponge tinha sido culposamente ignorado pelos
jovens poetas franceses até que agora, com as experiências do grupo
TelQuel, foi reconhecido como um mestre; impossível perguntar quem era
Silvia, porque ela não estava entre nós, e além disso o fogo engana, talvez
seu corpo estivesse adiantado em relação a sua idade e os sioux ainda
fossem seu território natural. Raúl se interessava pela poesia de Jean
Tardieu, e tivemos de explicar para Javier quem ele era e o que escrevia;
quando Nora me trouxe o terceiro pastis não pude lhe perguntar de Silvia, a
discussão estava por demais animada e Borel bebia minhas palavras como
se fossem muito valiosas. Vi uma mesinha baixa ser levada para perto da
barraca, os preparativos para que as crianças jantassem à parte; Silvia não
estava mais lá, mas a sombra riscava a barraca e talvez ela tivesse ido
sentar-se mais longe ou estivesse passeando entre as árvores. Obrigado a
ventilar opiniões sobre o alcance das experiências de Jacques Roubaud,
quase não me surpreendeu esse meu interesse por Silvia, o fato de que o
brusco desaparecimento de Silvia ambiguamente me deixasse inquieto;
quando eu estava terminando de dizer a Raúl o que pensava de Roubaud, o
fogo foi outra vez fugazmente Silvia, eu a vi passar junto da tenda de mãos
dadas com Lolita e Álvaro; atrás deles vinham Graciela e Renaud pulando e
dançando num último avatar sioux; Renaud, é claro, caiu de boca no chão e
seu primeiro grito assustou Liliane e Borel. A voz de Graciela se elevou lá
do grupo: “Não foi nada, já passou!”, e os pais retomaram a conversa com a
desenvoltura que dá a monotonia cotidiana das bordoadas dos sioux; agora
se tratava de encontrar um sentido para as experiências aleatórias de
Xenakis, pelas quais Javier demonstrava um interesse que a Borel parecia
excessivo. Entre os ombros de Magda e de Nora eu via, ao longe, a silhueta
de Silvia, mais uma vez agachada ao lado de Renaud, mostrando algum
brinquedo para consolá-lo; o fogo desnudava suas pernas e seu perfil,
adivinhei um nariz fino e ansioso, os lábios de estátua arcaica (mas Borel
não tinha acabado de me perguntar algo sobre uma estatueta das Cíclades
pela qual me responsabilizava, e a referência de Javier a Xenakis não tinha
desviado o assunto para algo mais valioso?). Percebi que se havia algo que
eu queria saber nesse momento era Silvia, sabê-la de perto e sem os
prestígios do fogo, devolvê-la a uma provável mediocridade de mocinha
tímida ou confirmar aquela silhueta bonita e viva demais para que
permanecesse como mero espetáculo; quis dizer isso a Nora, com quem
tinha uma velha familiaridade, mas Nora estava arrumando a mesa e pondo
guardanapos de papel, não sem exigir de Raúl a compra imediata de algum
disco de Xenakis. Do território de Silvia, outra vez invisível, veio Graciela,
a gazelinha, a sabe-tudo; estendi-lhe o velho gancho do sorriso, as mãos que
a ajudaram a se instalar em meus joelhos; aproveitei suas apaixonantes
notícias sobre um escaravelho peludo para me desligar da conversa sem que
Borel me considerasse descortês, e assim que pude lhe perguntei em voz
baixa se Renaud tinha se machucado.
— Claro que não, seu bobo, não foi nada. Ele sempre cai, só tem dois
anos, você sabe. A Silvia já pôs água no galo.
— Quem é Silvia, Graciela?
Ela me olhou meio surpresa.
— Uma amiga nossa.
— Mas é filha de algum desses senhores?
— Você está louco — disse razoavelmente Graciela.— A Silvia é nossa
amiga. Não é verdade, mamãe, que a Silvia é nossa amiga?
Nora suspirou, pondo o último guardanapo ao lado de meu prato.
— Por que você não vai lá com as crianças de novo e deixa o Fernando
em paz? Se ela começa a te falar da Silvia, a coisa vai longe.
— Por quê, Nora?
— Porque desde que a inventaram eles têm nos atordoado com sua Silvia
— disse Javier.
— Nós não inventamos — disse Graciela, segurando meu rosto com as
duas mãos para me arrancar dos adultos. — Pode perguntar pra Lolita e pro
Álvaro, e vai ver.
— Mas quem é Silvia? — repeti.
Nora já estava longe para escutar, e Borel discutia de novo com Javier e
Raúl. Os olhos de Graciela estavam fixos nos meus, a boca fazia uma
espécie de beicinho, com uma expressão meio zombeteira, meio sabichona.
— Já falei, seu bobo, ela é nossa amiga. Ela brinca com a gente quando
quer, mas com os índios não, porque não gosta. Ela é bem grande, entende,
por isso cuida tanto do Renaud, que só tem dois anos e faz cocô na calça.
— Ela veio com o sr. Borel? — perguntei em voz baixa. — Ou com o
Javier e a Magda?
— Ela não veio com ninguém — disse Graciela. — Pergunte pra Lolita e
pro Álvaro, e vai ver. Pro Renaud não pergunte nada porque ele é
pequenininho e não entende. Deixa eu ir agora.
Raúl, que sempre parece estar ligado a um radar, interrompeu uma
reflexão sobre o letrismo para me fazer um gesto compassivo.
— A Nora avisou, se você der corda, eles vão enlouquecê-lo com sua
Silvia.
— Foi o Álvaro — disse Magda. — Meu filho é mitomaníaco e contagia
todo mundo.
Raúl e Magda continuavam me olhando, houve uma fração de segundo em
que eu poderia ter dito: “Não entendo”, para forçar as explicações, ou
diretamente: “Mas a Silvia está ali, acabei de vê-la”. Não acredito, agora
que tenho bastante tempo para pensar no assunto, que a intervenção
distraída de Borel me impediu de dizê-lo. Borel tinha acabado de me
perguntar alguma coisa sobre La casa verde; comecei a falar sem saber o
que estava dizendo, mas em todo caso já não me dirigia a Raúl e a Magda.
Vi Liliane se aproximar da mesa das crianças e fazer com que sentassem em
tamboretes e gavetas velhas; o fogo as iluminava como nas gravuras dos
romances de Héctor Malot ou de Dickens, os galhos da tília se cruzavam às
vezes entre um rosto e um braço levantado, ouviam-se risadas e protestos.
Eu falava de Fushía com Borel, me deixava levar correnteza abaixo nessa
balsa da memória onde Fushía estava tão terrivelmente vivo. Quando Nora
me trouxe um prato de carne, murmurei em seu ouvido: “Não entendi
direito essa história das crianças”.
— Pronto, você também caiu nessa — disse Nora, lançando um olhar
compassivo para os outros. — Ainda bem que depois elas vão dormir,
porque você é uma vítima nata, Fernando.
— Não dê bola pra elas — atravessou Raúl. — Dá pra ver que você não
tem prática, leva a gurizada a sério demais. É preciso ouvi-los como quem
ouve a chuva, meu chapa, ou vira loucura.
Talvez nesse momento eu tenha perdido o possível acesso ao mundo de
Silvia, jamais vou saber por que aceitei a fácil hipótese de uma brincadeira,
de que os amigos estavam me pregando uma peça (Borel não, Borel seguia
seu caminho, que agora levava a Macondo); eu via outra vez Silvia, que
acabava de surgir da sombra e se inclinava entre Graciela e Álvaro como se
fosse ajudá-los a cortar a carne ou, talvez, comer um bocado; a sombra de
Liliane que vinha sentar-se com a gente se interpôs, alguém me ofereceu
vinho; quando olhei de novo, o perfil de Silvia parecia estar aceso pelas
brasas, o cabelo lhe caía sobre um ombro, deslizava se fundindo na sombra
da cintura. Era tão bonita que aquela brincadeira de mau gosto me ofendeu,
e comecei a comer de cara para o prato, escutando de viés Borel, que me
convidava para uns colóquios universitários; se eu lhe disse que não iria foi
por culpa de Silvia, por sua involuntária cumplicidade na diversão trocista
de meus amigos. Naquela noite não voltei a ver Silvia; quando Nora se
aproximou da mesa das crianças com queijo e frutas, ela e Lolita tentaram
dar comida a Renaud, que já estava quase dormindo. Começamos a falar de
Onetti e de Felisberto, bebemos tanto vinho em homenagem a eles que um
segundo vento belicoso de sioux e de charruas envolveu o pé de tília;
trouxeram as crianças para que nos dessem boa-noite, Renaud no colo de
Liliane.
— Minha maçã veio bichada — Graciela me disse com enorme satisfação.
— Boa noite, Fernando, você é muito malvado.
— Por quê, meu amor?
— Porque não foi nenhuma vez na nossa mesa.
— É verdade, me desculpe. Mas vocês tinham a Silvia, não é mesmo?
— Claro, mas mesmo assim.
— Esse aí vai atrás dela — disse Raúl me olhando com um ar que devia
ser de piedade. — Vai lhe custar caro, espere só eles pegarem você, bem
acordados, com sua famosa Silvia, você vai se arrepender, meu irmão.
Graciela umedeceu meu queixo com um beijo que recendia fortemente a
iogurte e maçã. Bem mais tarde, no final de uma conversa na qual o sono
começava a substituir as opiniões, convidei-os para jantar em minha casa.
Vieram no sábado passado por volta das sete, em dois carros; Álvaro e
Lolita traziam uma pipa e com o pretexto de fazê-la voar logo acabaram
com meus crisântemos. Deixei que as mulheres cuidassem das bebidas,
compreendi que ninguém impediria Raúl de tomar a frente do churrasco;
levei os Borel e Magda para conhecer a casa, instalei-os na sala diante de
meu óleo de Julio Silva e bebi um pouco com eles, fingindo estar ali e
escutar o que diziam; pela janela se via a pipa ao vento, ouviam-se os gritos
de Lolita e de Álvaro. Quando Graciela apareceu com um ramo de amores-
perfeitos, provavelmente fabricado à custa de meu melhor canteiro, fui para
o jardim anoitecido e ajudei a pipa a subir mais. A sombra banhava as
colinas no fundo do vale e se adiantava entre as cerejeiras e os álamos, mas
sem Silvia, Álvaro não precisou de Silvia para empinar a pipa.
— Está rabeando bonito — falei, experimentando-a, fazendo-a ir e vir.
— É, mas tenha cuidado, às vezes ela mergulha de cabeça e esses álamos
são muito altos — preveniu-me Álvaro.
— Comigo ela nunca cai — disse Lolita, com ciúme, talvez, de minha
presença. — Você puxa demais a linha, não sabe fazer.
— Sabe mais que você — disse Álvaro, em rápida aliança masculina. —
Por que você não vai brincar com a Graciela, não vê que está atrapalhando?
Ficamos sozinhos, dando linha para a pipa. Esperei o momento em que
Álvaro me aceitasse, em que soubesse que eu era tão capaz quanto ele de
comandar o voo verde e vermelho que se esfumava cada vez mais na
penumbra.
— Por que não trouxeram a Silvia? — perguntei, puxando um pouco a
linha.
Ele me olhou de esguelha, com um ar meio surpreso, meio zombeteiro, e
puxou a linha das minhas mãos, me destituindo sutilmente.
— A Silvia vem quando quer —disse, recolhendo a linha.
— Bom, então hoje ela não veio.
— O que você sabe? Ela vem quando quer, já disse.
— Ah. E por que sua mãe falou que você inventou a Silvia?
— Olhe só como está rabeando — disse Álvaro. — Tchê, que pipa
incrível, é a melhor de todas.
— Por que você não responde, Álvaro?
— A mãe pensa que é invenção minha — disse Álvaro. — E por que você
não acredita nisso, hein?
Bruscamente, vi Graciela e Lolita a meu lado. Tinham escutado as últimas
frases, estavam ali me olhando fixo; Graciela revirava devagar um amor-
perfeito violeta entre os dedos.
— Porque não sou como eles — falei. — Eu a vi, sabem?
Lolita e Álvaro cruzaram um olhar demorado, e Graciela se aproximou e
pôs o amor-perfeito em minha mão. A linha da pipa tensionou de repente.
Álvaro deu mais linha, e a vimos sumir na sombra.
— Eles não acreditam porque são bobos — disse Graciela. — Me mostre
onde fica o banheiro, me leve pra fazer xixi.
Levei-a até a escada externa, mostrei-lhe o banheiro e perguntei se não se
perderia ao descer. Na porta do banheiro, com uma expressão em que havia
uma espécie de reconhecimento, Graciela sorriu para mim.
— Não, pode ir, a Silvia vai comigo.
— Ah, bom — falei, lutando contra sabe-se lá o quê, o absurdo ou o
pesadelo ou o retardo mental. — Então ela veio, afinal.
— Mas claro, seu bobo — disse Graciela. — Não está vendo ela ali?
A porta de meu quarto estava aberta, as pernas nuas de Silvia se
desenhavam sobre a colcha vermelha da cama. Graciela entrou no banheiro
e eu a ouvi fechar o trinco. Fui até o quarto, vi Silvia dormindo em minha
cama, o cabelo feito uma medusa de ouro sobre o travesseiro. Encostei a
porta atrás de mim, não sei como me aproximei, aqui há vazios e látegos,
uma água que escorre pelo rosto cegando e mordendo, um som como de
profundezas fragosas, um instante sem tempo, insuportavelmente belo. Não
sei se Silvia estava nua, para mim era como um álamo de bronze e de
sonho, acho que a vi nua, mas depois não, devo tê-la imaginado por baixo
da roupa, a linha das panturrilhas e das coxas a desenhava de lado sobre a
colcha vermelha, segui a curva suave da anca abandonada no avanço de
uma perna, a sombra da cintura sinuosa, os pequenos seios imperiosos e
loiros. “Silvia”, pensei, incapaz de qualquer palavra, “Silvia, Silvia, mas
então…” A voz de Graciela estalou através de duas portas como se gritasse
em meu ouvido: “Silvia, vem me buscar!”. Silvia abriu os olhos, sentou-se
na beirada da cama; estava com a mesma minissaia da primeira noite, uma
blusa decotada, sandália preta. Passou a meu lado sem me olhar e abriu a
porta. Quando saí, Graciela descia a escada correndo e Liliane, com Renaud
no colo, cruzava com ela a caminho do banheiro e do mercurocromo para o
machucado das sete e meia. Ajudei-a a consolá-lo e a fazer o curativo,
Borel subia inquieto com os berros do filho, me deu uma bronca sorridente
por minha ausência, descemos até a sala para mais um drinque, todo mundo
falava da pintura de Graham Sutherland, fantasmas desse tipo, teorias e
entusiasmos que se perdiam no ar com a fumaça do tabaco. Magda e Nora
reuniam as crianças para que comessem estrategicamente à parte; Borel me
deu seu endereço, insistindo para que lhe enviasse a prometida colaboração
para uma revista de Poitiers, disse que partiriam na manhã seguinte e que
iam levar Javier e Magda para visitar a região. “Silvia irá com eles”, pensei
obscuramente, e fui buscar uma caixa de frutas cristalizadas, o pretexto para
me aproximar da mesa das crianças, ficar ali por um momento. Não era
fácil lhes perguntar, comiam como lobos e me arrebataram os doces na
melhor tradição dos sioux e dos tehuelches. Não sei por que fiz a pergunta a
Lolita, limpando, de passagem, sua boca com o guardanapo.
— Sei lá — disse Lolita. — Pergunte pro Álvaro.
— E eu é que sei? — disse Álvaro, hesitante entre uma pera e um figo. —
Ela faz o que quer, então talvez vá com eles.
— Mas com quem ela veio?
— Com ninguém — disse Graciela, dando-me um de seus melhores
pontapés por debaixo da mesa. — Ela veio aqui e agora quem sabe, o
Álvaro e a Lolita vão voltar pra Argentina e com o Renaud você pode
imaginar que ela não vai ficar porque ele é muito pequeno, hoje de tarde ele
engoliu uma vespa morta, que nojo.
— Ela faz o que quer, como nós — disse Lolita.
Voltei para minha mesa, vi a noitada terminar numa névoa de conhaque e
de fumaça. Javier e Magda iam voltar para Buenos Aires (Álvaro e Lolita
iam voltar para Buenos Aires) e os Borel iriam, no próximo ano, para a
Itália (Renaud iria, no próximo ano, para a Itália).
— Nós, os mais velhos, ficamos aqui — disse Raúl. (Então Graciela ia
ficar, mas Silvia era os quatro, Silvia era quando os quatro estavam juntos e
eu sabia que nunca mais eles se encontrariam.)
Raúl e Nora continuam aqui, em nosso vale do Luberon, ontem à noite fui
visitá-los e conversamos de novo sob o pé de tília; Graciela me deu de
presente uma toalhinha que tinha acabado de bordar em ponto-cruz, eu
soube dos cumprimentos que Javier, Magda e os Borel tinham deixado para
mim. Comemos no jardim, Graciela se negou a ir cedo para a cama, brincou
comigo de adivinhação. Houve um momento em que ficamos sozinhos,
Graciela procurava a resposta à adivinha sobre a lua, não a encontrava e seu
orgulho sofria.
— E a Silvia? — perguntei, acariciando seu cabelo.
— Mas como você é bobo — disse Graciela. — Você achava que ela ia vir
esta noite só por minha causa?
— Ainda bem — disse Nora, saindo da sombra. — Ainda bem que ela não
vai vir só por sua causa, porque já estávamos por aqui com essa história.
— É a lua — disse Graciela. — Mas que adivinha mais boba, tchê.
A viagem
P
ode acontecer em La Rioja, numa província que se chame La Rioja,
em todo caso acontece de tarde, quase no começo da noite, embora
tenha começado antes no pátio de uma fazenda quando o homem
disse que a viagem é complicada mas que no fim irá descansar, que
afinal ele vai fazer isso porque o aconselharam, que vai para passar quinze
dias tranquilos em Mercedes. Sua mulher o acompanha até a cidade onde
tem de comprar as passagens, também lhe disseram que é melhor que
compre as passagens na estação da cidade e aproveite para conferir se os
horários não mudaram. Na fazenda, com a vida que eles levam, tem-se a
impressão de que os horários e tantas outras coisas na cidade devem mudar
com frequência, e muitas vezes isso é verdade. É melhor pegar o carro e
descer até a cidade, ainda que esteja meio em cima da hora para chegar a
tempo de pegar o primeiro trem em Chaves.
São mais de cinco horas quando chegam à estação e deixam o carro na
praça poeirenta, entre charretes e carroças carregadas de fardos ou galões;
não conversaram muito no carro, embora o homem tenha perguntado por
umas camisas e sua mulher tenha dito que a mala está pronta e que só falta
botar os papéis e algum livro na pasta.
— O Juárez sabia os horários — disse o homem. — Ele me explicou o
que eu tenho que fazer para viajar a Mercedes, disse que é melhor pegar as
passagens na cidade e confirmar as conexões dos trens.
— Sim, você já me contou — disse a mulher.
— Acho que da fazenda até Chaves tem pelo menos sessenta quilômetros
de carro. Parece que o trem que vai para Peúlco passa por Chaves às nove e
pouco.
— E você vai deixar o carro com o chefe da estação — disse a mulher,
meio perguntando, meio decidindo.
— Sim. O trem de Chaves chega depois da meia-noite a Peúlco, mas
parece que no hotel sempre tem quartos com banheiro. O chato é que não dá
para descansar por muito tempo porque o outro trem sai por volta das cinco
da manhã, temos que perguntar agora. Depois ainda tem muito chão pela
frente até chegar a Mercedes.
— Fica longe, sim.
Não há muita gente na estação, só alguns moradores do campo que
compram cigarros na banca ou esperam na plataforma. A bilheteria fica no
final da plataforma, quase no limite do pátio ferroviário. É uma sala com
um balcão sujo, paredes cheias de cartazes e mapas, e nos fundos duas
escrivaninhas e o cofre de ferro. Um homem em mangas de camisa atende
no balcão, uma moça maneja um aparelho telegráfico numa das
escrivaninhas. Já é quase noite mas não acenderam a luz, aproveitam até o
fim a claridade marrom que passa lentamente pela janela do fundo.
— Temos que voltar logo para a fazenda — diz o homem. — Falta pôr a
bagagem no carro e não sei se tenho gasolina suficiente.
— Compre as passagens e vamos embora — diz a mulher, que ficou um
pouco para trás.
— Sim. Me deixe pensar. Então eu vou primeiro até Peúlco. Não, quer
dizer, tenho que comprar uma passagem de onde o Juárez falou, não lembro
direito.
— Não lembra — diz a mulher, com aquele jeito de fazer uma pergunta
que nunca é totalmente uma pergunta.
— É sempre a mesma coisa com os nomes — diz ele com um sorriso
aborrecido. — Somem da cabeça justo na hora de dizê-los. E depois outra
passagem de Peúlco até Mercedes.
— Mas por que duas passagens diferentes — diz a mulher.
— O Juárez me explicou que são duas companhias, por isso preciso de
duas passagens, mas em qualquer estação vendem as duas, então dá na
mesma. Uma dessas coisas dos ingleses.
— Já não são mais ingleses — diz a mulher.
Um rapaz moreno entrou na bilheteria e está averiguando alguma coisa. A
mulher se aproxima e apoia um cotovelo no balcão, e ela é loira e tem um
rosto cansado e bonito meio perdido num estojo de cabelo dourado que
ilumina vagamente seu contorno. O bilheteiro a olha por um momento, mas
ela não diz nada, como que à espera de que o marido se aproxime para
comprar as passagens. Ninguém se cumprimenta na bilheteria, está tão
escuro que não parece necessário.
— Aqui neste mapa deve dar para ver — diz o homem, indo em direção à
parede da esquerda. — Olhe, deve ser isso. Nós estamos…
Sua mulher se aproxima e observa o dedo que hesita sobre o mapa
vertical, buscando um local onde pousar.
— Esta é a província — diz o homem — e nós estamos mais ou menos
aqui. Espere, é aqui. Não, deve ser mais ao sul. Eu tenho que ir para lá, a
direção é essa, veja. E agora estamos aqui, acho.
Dá um passo para trás e olha o mapa inteiro, olha-o demoradamente.
— É a província, não é?
— Parece — diz a mulher. — E você diz que estamos aqui.
— Aqui, claro. O caminho deve ser esse. Sessenta quilômetros até essa
estação, como disse o Juárez, o trem deve sair de lá. Não vejo alternativa.
— Bom, então compre as passagens — diz a mulher.
O homem olha mais um pouco para o mapa e se aproxima do bilheteiro.
Sua mulher o segue, apoia de novo o cotovelo no balcão como quem se
prepara para esperar muito tempo. O rapaz termina de falar com o bilheteiro
e vai consultar os horários na parede. Uma luz azul se acende na mesa da
telegrafista. O homem apanhou sua carteira de dinheiro e escolhe algumas
notas.
— Tenho que ir para…
Vira-se para a mulher, que está olhando um desenho no balcão, algo
parecido com um antebraço mal desenhado com tinta vermelha.
— Qual era a cidade para onde tenho que ir? O nome me fugiu. Não a
outra, estou falando da primeira. Eu vou de carro até a primeira.
A mulher ergue os olhos na direção do mapa. O homem faz um gesto de
impaciência porque o mapa está longe demais para que tenha alguma
serventia. O bilheteiro se acotovelou no balcão e espera sem dizer nada.
Seus óculos são verdes e pelo colarinho aberto da camisa brota um jorro de
pelos acobreados.
— Você falou Allende, acho — diz a mulher.
— Não, Allende não, sem chance.
— Eu não estava lá quando o Juárez lhe explicou a viagem.
— O Juárez me explicou os horários e as conexões, mas eu repeti os
nomes no carro para você.
— Não tem nenhuma estação chamada Allende — diz o bilheteiro.
— Claro que não tem — diz o homem. — Lá, para onde eu vou, é…
A mulher está olhando novamente o desenho do antebraço vermelho, que
não é um antebraço, agora tem certeza.
— Olhe, quero uma passagem de primeira para… Eu sei que preciso ir de
carro, fica ao norte da fazenda. Então você não se lembra?
— Vocês têm tempo — diz o bilheteiro. — Pensem com calma.
— Não tenho tanto tempo — diz o homem. — Preciso ir agora mesmo de
carro até… Preciso justamente de uma passagem de lá para a outra estação,
onde há uma baldeação para seguir até Allende. Agora o senhor me diz que
não é Allende. E você, como é que não se lembra?
Aproxima-se da mulher, faz a pergunta fitando-a com uma surpresa quase
escandalizada. Por um instante, faz menção de voltar ao mapa e procurar,
mas desiste e espera, um pouco inclinado sobre a mulher que passa e
repassa um dedo sobre o balcão.
— Vocês têm tempo — repete o bilheteiro.
— Então… — diz o homem. — Então você…
— Era alguma coisa parecida com Moragua — diz a mulher como se
perguntasse.
O homem olha para o mapa, mas vê que o bilheteiro move a cabeça
negativamente.
— Não é isso — diz o homem. — Não é possível que a gente não se
lembre, pois justo quando vínhamos…
— Acontece sempre — diz o bilheteiro. — A melhor coisa é se distrair e
mudar de assunto, e de repente, zás, o nome cai feito um passarinho, hoje
mesmo eu estava dizendo isso para um senhor que ia viajar para Ramallo.
— Ramallo — repete o homem. — Não, não é Ramallo. Mas quem sabe
se eu olhar a lista de estações…
— Estão ali — diz o bilheteiro, mostrando o horário colado na parede. —
Só que tem uma coisa, são umas trezentas. Tem muitas paradas, tem
estações de carga, mas cada uma tem seu próprio nome, né?
O homem se aproxima do horário e apoia o dedo no início da primeira
coluna. O bilheteiro espera, tira um cigarro de detrás da orelha e lambe a
ponta antes de acendê-lo, olhando para a mulher que continua apoiada no
balcão. Na penumbra, tem a impressão de que a mulher sorri, mas não dá
para ver direito.
— Acenda um pouco a luz, Juana — diz o bilheteiro, e a telegrafista estica
o braço até o interruptor da parede e uma lâmpada se acende no teto
amarelado. O homem chegou à metade da segunda coluna, seu dedo se
detém, volta para cima, desce outra vez, se afasta. Agora a mulher sorri
francamente, o bilheteiro a viu à luz da lâmpada e tem certeza, ele também
sorri sem saber por quê, até que o homem se vira bruscamente e volta para
o balcão. O rapaz moreno sentou-se num banco ao lado da porta e é mais
um ali, outro par de olhos passeando de um rosto para outro.
— Vou me atrasar — diz o homem. — Se pelo menos você se lembrasse,
os nomes me fogem da cabeça, sabe como estou.
— O Juárez tinha explicado tudo para você — diz a mulher.
— Esqueça o Juárez, estou perguntando a você.
— Você precisava pegar dois trens — diz a mulher. — Primeiro você ia de
carro até uma estação, lembro que disse que ia deixar o carro com o chefe.
— Isso não tem nada a ver.
— Todas as estações têm chefe — diz o bilheteiro.
O homem olha para ele, talvez sem escutá-lo. Está esperando que sua
mulher se lembre, de repente parece que tudo depende dela, de que ela se
lembre. Ele já não tem muito tempo, precisa voltar para a fazenda, apanhar
a bagagem e partir para o norte. De repente o cansaço é como esse nome
que não recorda, um vazio que pesa cada vez mais. Não viu a mulher sorrir,
só o bilheteiro viu. Ainda espera que ela se lembre, ajuda-a com sua própria
imobilidade, apoia as mãos no balcão, bem perto do dedo da mulher que
continua brincando com o desenho do antebraço vermelho e o percorre
suavemente agora que sabe que não é um antebraço.
— Tem razão — diz, olhando para o bilheteiro. — Quando a gente pensa
demais, as coisas somem da cabeça. Mas quem sabe você…
A mulher arredonda os lábios como se quisesse sorver alguma coisa.
— Quem sabe eu me lembro — diz. — No carro nós falamos que você ia
primeiro para… Não era Allende, né? Então era algo parecido com Allende.
Dê uma olhada de novo no a ou no h. Se quiser, eu vou ver.
— Não, não era isso. O Juárez me explicou qual era a melhor conexão…
Porque tem outro jeito de ir, mas então precisaria mudar de trem três vezes.
— É demais — diz o bilheteiro. — Duas mudanças e basta, com aquela
poeira toda que entra no vagão, sem contar o calor.
O homem faz um gesto de impaciência e dá as costas ao bilheteiro,
interpondo-se entre ele e a mulher. Vê meio de través o rapaz que olha para
eles lá do banco, e se vira mais um pouco para não ver nem o bilheteiro
nem o rapaz, para ficar completamente sozinho diante da mulher, que
levantou o dedo do desenho e olha para a unha esmaltada.
— Não me lembro — diz o homem em voz muito baixa. — Não me
lembro de nada, você sabe. Mas você sim, dê uma pensada. Vai acabar se
lembrando, tenho certeza.
A mulher arredonda os lábios de novo. Pisca duas, três vezes. A mão do
homem segura e aperta seu pulso. Ela olha para ele, agora sem piscar.
— Las Lomas — diz. — Acho que era Las Lomas.
— Não — diz o homem. — Não é possível que você não se lembre.
— Ramallo, então. Não, já falei isso antes. Se não é Allende, deve ser Las
Lomas. Se quiser, vou ver ali no mapa.
A mão solta o pulso, a mulher esfrega a marca na pele e assopra de leve.
O homem baixou a cabeça e respira com dificuldade.
— Também não existe uma estação Las Lomas — diz o bilheteiro.
A mulher olha para ele por sobre a cabeça do homem que se dobrou ainda
mais contra o balcão. Sem se apressar, como que tateando, o bilheteiro
apenas sorri.
— Peúlco — diz bruscamente o homem. — Agora me lembrei. Era
Peúlco, né?
— Pode ser — diz a mulher. — Talvez seja Peúlco, mas não me lembro
bem.
— Se você vai de carro até Peúlco, tem um bom chão pela frente — diz o
bilheteiro.
— Você não acha que era Peúlco? — insiste o homem.
— Não sei — diz a mulher. — Você se lembrava agora há pouco, eu não
prestei muita atenção. Talvez seja Peúlco.
— O Juárez disse Peúlco, tenho certeza. Da fazenda até a estação são uns
sessenta quilômetros.
— Muito mais que isso — diz o bilheteiro. — Não compensa ir de carro
até Peúlco. E quando estiver lá, vai para onde?
— Como assim, vou para onde?
— Estou dizendo isso porque Peúlco é só um entroncamento. Três casas
extraviadas e o hotel da estação. As pessoas vão até Peúlco só pra mudar de
trem. Agora, se o senhor tem algum negócio pra fazer lá, aí é diferente.
— Não pode ficar tão longe — diz a mulher. — O Juárez disse sessenta
quilômetros, então não pode ser Peúlco.
O homem demora a responder, a mão encostada na orelha como se
estivesse se ouvindo por dentro. O bilheteiro não desviou os olhos da
mulher e espera. Não tem certeza de que ela sorriu para ele ao falar.
— Sim, deve ser Peúlco — diz o homem. — Se fica tão longe é porque é
a segunda estação. Preciso comprar uma passagem até Peúlco e esperar o
outro trem. O senhor disse que era um entroncamento e que havia um hotel.
Então é Peúlco.
— Mas não fica a sessenta quilômetros — diz o bilheteiro.
— Claro que não — diz a mulher, endireitando-se e levantando um pouco
a voz. — Peúlco seria a segunda estação, mas o que meu marido não lembra
é da primeira, e essa sim, fica a sessenta quilômetros. O Juárez disse isso
para você, acho.
— Ah — diz o bilheteiro. — Bem, nesse caso o senhor teria que ir
primeiro até Chaves e de lá pegar o trem para Peúlco.
— Chaves — diz o homem. — Pode ser Chaves, claro.
— Daí de Chaves vai até Peúlco — diz a mulher, quase perguntando.
— É a única maneira de chegar lá saindo desta região — diz o bilheteiro.
— Está vendo — diz a mulher. — Se você tem certeza de que a segunda
estação é Peúlco…
— Você não se lembra? — diz o homem. — Agora tenho quase certeza,
mas quando você falou Las Lomas também pensei que podia ser essa.
— Eu não disse Las Lomas, eu disse Allende.
— Allende não é — diz o homem. — Você não disse Las Lomas?
— Pode ser, acho que no carro você falou Las Lomas.
— Não existe nenhuma estação Las Lomas — diz o bilheteiro.
— Então devo ter dito Allende, mas não tenho certeza. Deve ser Chaves e
Peúlco, como o senhor acha que é. Veja uma passagem de Chaves até
Peúlco, então.
— Claro — diz o bilheteiro, abrindo uma gaveta. — Mas de Peúlco…
Porque eu já disse que é só um entroncamento.
O homem mexe na carteira com um movimento rápido, mas as últimas
palavras detêm sua mão no ar. O bilheteiro se apoia na borda da gaveta
aberta e espera de novo.
— De Peúlco quero uma passagem para Moragua — diz o homem, com
uma voz que vai ficando para trás, que se parece com sua mão estendida no
ar com o dinheiro.
— Não tem nenhuma estação chamada Moragua — diz o bilheteiro.
— Era parecido com isso — diz o homem. — Você não se lembra?
— Sim, era parecido com isso, Moragua — diz a mulher.
— Há uma porção de estações com eme — diz o bilheteiro. — Quer dizer,
saindo de Peúlco. Lembra quanto durava a viagem, mais ou menos?
— A manhã toda — diz o homem. — Umas seis horas, talvez menos.
O bilheteiro olha um mapa preso por um vidro no extremo do balcão.
— Pode ser Malumbá, ou Mercedes, quem sabe — diz. — A essa
distância só vejo essas duas, talvez Amorimba. Amorimba tem dois emes,
quem sabe seja essa.
— Não — diz o homem. — Não é nenhuma dessas.
— Amorimba é um povoado pequeno, mas Mercedes e Malumbá são
cidades. Com eme não vejo nenhuma outra na região. Tem que ser uma
dessas, se o senhor for pegar o trem em Peúlco.
O homem olha para a mulher, amassando lentamente as notas na mão
ainda estendida, e a mulher arredonda os lábios e dá de ombros.
— Não sei, querido — diz. — Quem sabe seja Malumbá, não acha.
— Malumbá — repete o homem. — Então você acha que é Malumbá.
— Não é que eu ache isso. O moço disse que de Peúlco não tem outra
além dessa e de Mercedes. Talvez seja Mercedes, mas…
— Saindo de Peúlco só pode ser Mercedes ou Malumbá — diz o
bilheteiro.
— Está vendo — diz a mulher.
— É Mercedes — diz o homem. — Malumbá não me diz nada, mas
Mercedes… Eu vou para o Hotel Mundial, talvez o senhor possa me dizer
se fica em Mercedes.
— Fica sim — diz o rapaz sentado no banco. — O Mundial fica a duas
quadras da estação.
A mulher olha para ele, e o bilheteiro espera um momento antes de
aproximar os dedos da gaveta onde as passagens estão enfileiradas. O
homem se curva sobre o balcão para lhe entregar o dinheiro com mais
facilidade, e ao mesmo tempo vira a cabeça e olha para o rapaz.
— Obrigado — diz. — Muito obrigado, moço.
— É uma cadeia de hotéis — diz o bilheteiro. — Desculpe, mas em
Malumbá também tem um Mundial, se for o caso, e na certa em Amorimba
também, mas aí não tenho certeza.
— Então… — diz o homem.
— Arrisque ir, afinal, se não for Mercedes, o senhor ainda pode pegar
outro trem até Malumbá.
— Para mim parece que é mais Mercedes — diz o homem. — Não sei por
que tenho essa impressão. Você também não tem?
— Eu também, principalmente no começo.
— Como assim, no começo?
— Quando o moço lhe falou aquilo do hotel. Mas se em Malumbá
também tem um Hotel Mundial…
— É Mercedes — diz o homem. — Tenho certeza de que é Mercedes.
— Então compre as passagens — diz a mulher, dando de ombros.
— De Chaves até Peúlco, e de Peúlco até Mercedes — diz o bilheteiro.
O cabelo esconde o perfil da mulher, que está olhando de novo o desenho
vermelho no balcão, e o bilheteiro não pode ver sua boca. Com a mão de
unhas pintadas, ela esfrega lentamente o pulso.
— Sim — diz o homem depois de uma breve hesitação. — De Chaves até
Peúlco e de lá até Mercedes.
— Vai ter que se apressar — diz o bilheteiro, escolhendo um cartãozinho
azul e outro verde. — São mais de sessenta quilômetros até Chaves e o trem
passa às nove e cinco.
O homem põe o dinheiro em cima do balcão e o bilheteiro começa a dar o
troco, olhando a mulher esfregar lentamente o pulso. Não pode saber se ela
está sorrindo, e pouco lhe importa, mas mesmo assim gostaria de saber se
está sorrindo por trás de todo aquele cabelo dourado que lhe cai sobre a
boca.
— Ontem à noite choveu pesado lá nas bandas de Chaves — diz o rapaz.
— Melhor se apressar, senhor, as estradas devem estar enlameadas.
O homem guarda o troco e põe as passagens no bolso do paletó. A mulher
joga o cabelo para trás com dois dedos e olha para o bilheteiro. Tem os
lábios unidos como se sorvesse alguma coisa. O bilheteiro sorri para ela.
— Vamos — diz o homem. — Está em cima da hora.
— Se sair já, vai chegar a tempo — diz o rapaz. — Por via das dúvidas,
leve as correntes, deve estar ruim antes de Chaves.
O homem assente e acena vagamente na direção do bilheteiro. Quando
sai, a mulher começa a caminhar para a porta que se fecha sozinha.
— Vai ser uma pena se no fim ele estiver enganado, né? — diz o
bilheteiro, como se falasse com o rapaz.
Quase na porta a mulher vira a cabeça e olha para ele, mas a luz mal a
alcança e agora é difícil saber se ainda ri, se a batida da porta ao se fechar
foi ela quem deu ou se foi o vento que quase sempre se levanta ao cair da
noite.
Sestas
A
lgum dia, num tempo sem horizonte, iria se lembrar de tia Adela
ouvindo quase toda tarde aquele disco com as vozes e os coros, da
tristeza quando as vozes começavam a sair, uma mulher, um
homem e depois muitos juntos cantando uma coisa que não dava
para entender, a etiqueta verde com explicações para os adultos, Te lucis
ante terminum, Nunc dimittis, tia Lorenza dizia que era latim e que falava
de Deus e coisas assim, então Wanda se cansava de não entender, de ficar
triste como quando em sua casa Teresita punha o disco de Billie Holiday e o
ouviam fumando porque a mãe de Teresita estava trabalhando e o pai estava
fora cuidando dos negócios ou fazendo a sesta e então podiam fumar
sossegadas, mas ouvir Billie Holiday era uma tristeza bonita que dava
vontade de deitar e chorar de felicidade, era tão bom ficar no quarto de
Teresita com a janela fechada, com a fumaça, ouvindo Billie Holiday. Em
sua casa foi proibida de cantar essas canções porque Billie Holiday era
negra e tinha morrido de tanto usar drogas, tia María a obrigava a passar
mais uma hora no piano estudando arpejos, tia Ernestina vinha com o
discurso sobre a juventude de agora, Te lucis ante terminum ressoava na
sala onde tia Adela costurava iluminada por uma esfera de vidro cheia de
água que guardava (era bonito) toda a luz da lâmpada de costura. Ainda
bem que de noite Wanda dormia na mesma cama que tia Lorenza e que ali
não havia latim nem conferências sobre o tabaco e os degenerados da rua,
tia Lorenza apagava a luz depois de rezar e por um momento falavam de
qualquer coisa, quase sempre do cachorro Grock, e quando Wanda ia
dormir era tomada por um sentimento de reconciliação, de estar um pouco
mais protegida da tristeza da casa com o calor de tia Lorenza, que ressonava
suavemente, quase como Grock, quente e meio enovelada e ressonando
satisfeita como Grock no tapete da sala de jantar.
— Tia Lorenza, não me deixe mais sonhar com o homem da mão artificial
— suplicara Wanda na noite do pesadelo. — Por favor, tia Lorenza, por
favor.
Depois falou disso com Teresita e Teresita riu, mas não tinha graça e tia
Lorenza também não riu enquanto lhe enxugava as lágrimas, dava um copo
d’água para ela beber e a acalmava pouco a pouco, ajudando-a a afastar as
imagens, a mistura de lembranças do outro verão e do pesadelo, o homem
que era tão parecido com os do álbum do pai de Teresita, ou o beco sem
saída onde ao anoitecer o homem de preto a encurralara, aproximando-se
lentamente até parar e olhá-la com toda a lua cheia no rosto, os óculos de
aro metálico, a sombra do chapéu-coco ocultando sua testa, e então o
movimento do braço direito se levantando na direção dela, a boca de lábios
finos, o grito ou a corrida que a salvara do final, o copo d’água e as carícias
de tia Lorenza antes de um lento regresso amedrontado a um sonho que
duraria até tarde, o purgante de tia Ernestina, a sopa leve e os conselhos,
outra vez a casa e Nunc dimittis, mas no fim a permissão para ir brincar
com Teresita, embora essa garota não fosse de confiança, com a educação
que a mãe lhe dava, é capaz que até lhe ensinasse alguma coisa mas, enfim,
pior era ver aquela cara macilenta e um pouco de diversão não lhe faria mal,
antes as meninas bordavam na hora da sesta ou estudavam solfejo, mas essa
juventude de agora.
— Não são só loucas, são idiotas, também — disse Teresita, passando-lhe
um dos cigarros que roubava do pai. — Mas que tias as suas, menina. Então
elas te deram um purgante? Você já foi ou não? Tome, olhe o que a Chola
me emprestou, tem toda a moda do outono, mas antes veja as fotos do
Ringo, me diga se não é um amor, olhe só ele com essa camisa aberta. Tem
pelinhos, repare.
Depois quis saber mais, mas era difícil para Wanda continuar falando
disso agora que subitamente lhe voltava uma visão de fuga, de corrida
enlouquecida pelo beco, e isso não era o pesadelo mas devia ser quase o
final do pesadelo que esquecera ao acordar gritando. Talvez antes, no fim
do outro verão, pudesse ter falado com Teresita mas ficou quieta com medo
de que ela fosse fofocar com tia Ernestina, naquela época Teresita ainda ia a
sua casa e as tias lhe arrancavam coisas com torradas e doce de leite até que
brigaram com a mãe dela e não queriam mais receber Teresita embora às
vezes a deixassem ir à casa dela de tarde quando tinham visitas e queriam
sossego. Agora poderia ter contado tudo a Teresita mas já não valia a pena
porque o pesadelo era também como a outra coisa, essa coisa que talvez
tenha sido parte do pesadelo, tudo era tão parecido com o álbum do pai de
Teresita e nada parecia acabar de verdade, era como aquelas ruas no álbum
que se perdiam ao longe como nos pesadelos.
— Teresita, abra um pouco a janela, está quente demais com tudo
fechado.
— Não seja boba, depois minha mãe vai perceber que andamos fumando.
Tem um olfato de tigre, a Sardenta, nesta casa a gente tem que tomar
cuidado.
— Ah, tá, como se eles fossem te matar a pauladas.
— Claro, você volta pra sua casa e não tá nem aí. Continua a mesma
criancinha.
Mas Wanda não era mais uma criancinha embora Teresita ainda esfregasse
isso na cara dela porém cada vez menos desde a tarde em que também fazia
calor e elas falaram de certas coisas e depois Teresita lhe mostrou aquilo e
tudo ficou diferente mas Teresita ainda a chamava de criancinha quando se
irritava.
— Não sou nenhuma criancinha — disse Wanda, soltando fumaça pelo
nariz.
— Tá bom, tá bom, não fique assim. Você tem razão, está fazendo um
calor dos diabos. É melhor a gente tirar a roupa e preparar um vinho com
gelo. Vou dizer uma coisa, você sonhou aquilo por causa do álbum do meu
pai, e olhe que lá não tem nenhuma mão artificial, mas os sonhos, sabe
como é. Olhe como estão crescendo.
Não se notava grande coisa sob a blusa, mas nus eles ganhavam
importância e a tornavam mulher, mudavam sua cara. Wanda ficou com
vergonha de tirar o vestido e mostrar o peito onde mal despontavam. Um
dos sapatos de Teresita voou até a cama, outro se perdeu debaixo do sofá.
Mas claro que era como os homens do álbum do pai de Teresita, os homens
de preto que se repetiam em quase todas as lâminas, Teresita lhe mostrou o
álbum numa tarde de sesta em que seu pai saiu e a casa ficou tão sozinha e
calada quanto as salas e as casas do álbum. Rindo e se empurrando de puro
nervosismo elas foram para o andar de cima onde às vezes os pais de
Teresita as chamavam para tomar chá na biblioteca como gente grande, e
nesses dias não dava para fumar nem beber vinho no quarto de Teresita
porque a Sardenta logo percebia, por isso aproveitaram que a casa tinha
ficado só para elas e subiram gritando e se empurrando, como agora que
Teresita empurrava Wanda até fazê-la cair sentada no sofá azul e quase com
o mesmo gesto se agachava para tirar a calcinha e ficar nua diante de
Wanda, as duas se olhando com uma risada um pouco curta e esquisita até
que Teresita soltou uma gargalhada e perguntou se ela era boba e não sabia
que ali cresciam pelinhos como no peito do Ringo. “Mas eu também
tenho”, disse Wanda, “apareceram no verão passado.” Igual ao álbum, em
que todas as mulheres tinham, e muitos, em quase todas as lâminas elas iam
e vinham ou ficavam sentadas ou deitadas na grama e nas salas de espera
das estações (“são loucas”, opinava Teresita), e também como agora se
entreolhando com uns olhos enormes e sempre a lua cheia embora não se
visse na lâmina, tudo se passava em lugares onde havia lua cheia e as
mulheres andavam nuas pelas ruas e estações e se cruzavam como se não se
vissem e estivessem terrivelmente sós, e onde às vezes os senhores de terno
preto ou guarda-pó cinza as observavam ir e vir ou estudavam pedras
esquisitas com um microscópio e sem tirar o chapéu.
— Você tem razão — disse Wanda —, ele era muito parecido com os
homens do álbum, e também usava chapéu-coco e óculos, era como eles,
mas com a mão artificial, e olhe que da outra vez quando…
— Chega de mão artificial — disse Teresita. — Você vai ficar assim a
tarde inteira? Primeiro reclama do calor e depois eu que fico nua.
— Preciso ir ao banheiro.
— O purgante! Não, suas tias são mesmo um caso sério. Vá rápido, e na
volta traga mais gelo, olhe como o Ringo está me espiando, anjo querido.
Você gosta desta barriguinha, amoreco? Olhe bem pra ela, se esfregue
assim, assim, a Chola vai me matar quando eu devolver a foto toda
amassada.
No banheiro, Wanda esperou quanto pôde para não ter de voltar, estava
dolorida e com raiva por causa do purgante e depois também a Teresita no
sofá azul olhando para ela como se fosse uma menininha, caçoando como
da outra vez que lhe mostrou aquilo e Wanda não pôde impedir que seu
rosto ficasse afogueado, aquelas tardes em que tudo era diferente, primeiro
tia Adela permitindo que ela ficasse até mais tarde na casa de Teresita,
afinal ela fica aqui do lado e eu preciso receber a diretora e a secretária da
escola da María, com essa casa tão pequena é melhor você ir brincar com
sua amiga, mas cuidado na volta, venha direto e nada de ficar batendo perna
pelas ruas com a Teresita, ela gosta de sair por aí, eu a conheço, e depois
fumar uns cigarros novos que o pai de Teresita tinha esquecido numa gaveta
da escrivaninha, com filtro dourado e um cheiro estranho, e no fim Teresita
lhe mostrou aquilo, era difícil lembrar como foi que aconteceu, estavam
falando do álbum, ou talvez essa história do álbum tenha sido no começo do
verão, naquela tarde estavam mais agasalhadas e Wanda usava o pulôver
amarelo, então ainda não era verão, no fim não sabiam o que dizer,
olhavam-se e riam, quase sem dizer nada elas saíram para dar uma volta
pelas bandas da estação, evitando a esquina da casa de Wanda porque tia
Ernestina ficava de olho nelas mesmo quando estava com a diretora e a
secretária. Passearam um pouco pela plataforma da estação como se
estivessem esperando o trem, vendo passarem as máquinas que
estremeciam as plataformas e enchiam o céu de fumaça preta. Então, ou
talvez quando já estavam de volta e era hora de se separarem, Teresita lhe
disse meio de passagem que tivesse cuidado com isso, olha lá, e Wanda, que
tentava esquecer, ficou vermelha e Teresita riu e disse que ninguém podia
saber do lance dessa tarde, mas que as tias dela eram como a Sardenta e que
se ela se descuidasse qualquer dia a pegavam e então já viu. Riram outra
vez mas era verdade, tinha mesmo de ser tia Ernestina a surpreendê-la no
final da sesta, embora Wanda tivesse certeza de que ninguém entraria em
seu quarto àquela hora, todo mundo tinha ido dormir e no pátio se ouvia a
corrente do Grock e o zumbido das vespas furiosas de sol e de calor, ela mal
teve tempo de puxar o lençol até o pescoço e fingir que estava dormindo,
mas era tarde, porque tia Ernestina estava ao pé da cama e arrancara o
lençol de uma só vez sem dizer palavra, só olhando a calça do pijama
enrolada nas panturrilhas. Na casa de Teresita elas passavam a chave na
porta e olhe que a Sardenta proibia isso, mas tia María e tia Ernestina
falavam de incêndios e de crianças trancadas morrendo nas chamas, só que
agora não era disso que falavam tia Ernestina e tia Adela, primeiro tinham
se aproximado sem dizer nada e Wanda tentou fingir que não estava
entendendo nada até que tia Adela segurou sua mão e a torceu, e tia
Ernestina lhe deu o primeiro tapa, depois outro e mais outro, Wanda se
defendia chorando, a cara no travesseiro, gritando que não tinha feito nada
de errado, que só estava com coceira e que então, mas tia Adela tirou a
chinela e começou a lhe bater nas nádegas enquanto segurava suas pernas, e
falavam de depravada e na certa de Teresita e da juventude e da ingratidão e
das doenças e do piano e da reclusão, mas sobretudo da depravação e das
doenças, até que tia Lorenza se levantou assustada com os gritos e os
choros e de repente se fez a calma, só restou tia Lorenza olhando-a aflita,
sem acalmá-la nem acariciá-la, mas sempre tia Lorenza como agora que lhe
dava um copo d’água e a protegia do homem de preto, repetindo em seu
ouvido que ia dormir bem, que não ia ter aquele pesadelo de novo.
— Você comeu puchero demais, eu reparei. Puchero de noite é muito
pesado, que nem laranja. Vamos, já passou, agora durma, estou aqui, você
não vai mais sonhar.
— O que você está esperando pra tirar a roupa? Tem que ir ao banheiro de
novo? Você vai virar pelo avesso como uma luva, suas tias são loucas.
— Não está tão quente assim pra gente tirar a roupa — disse Wanda
naquela tarde, tirando o vestido.
— Foi você que começou com essa história de calor. Me dê o gelo e traga
os copos, ainda tem vinho doce mas ontem a Sardenta ficou olhando a
garrafa e fez uma cara… Ah, se eu conheço aquela cara. Ela não fala nada
mas faz aquela cara e sabe que eu sei. Ainda bem que o meu velho só pensa
nos negócios e está sempre picando a mula. É verdade, você já tem pelos,
mas poucos, ainda parece uma menina. Vou te mostrar uma coisa na
biblioteca se você jurar que…
Teresita tinha descoberto o álbum por acaso, a estante com fechadura, seu
pai guarda os livros científicos que não são coisa boa para sua idade, que
idiotas, tinha ficado só encostada e havia dicionários e um livro com a
lombada oculta, justamente para não ser notada, e também outros com
lâminas anatômicas que não eram como as do colégio, essas estavam
completamente terminadas, mas assim que pegou o álbum as pranchas de
anatomia deixaram de lhe interessar porque o álbum era como uma
fotonovela, mas tão estranha, as legendas, que pena, em francês, e mal dava
para entender algumas palavras soltas, la sérenité est sur le point de
basculer, sérenité quer dizer serenidade mas basculer vá saber, era uma
palavra estranha, bas quer dizer meia, les bas Dior da Sardenta, mas culer,
a meia do culer não quer dizer nada, e as mulheres das lâminas estavam
sempre nuas ou com saias e túnicas mas sem meias, talvez culer fosse outra
coisa e Wanda também pensou o mesmo quando Teresita lhe mostrou o
álbum e riram feito loucas, isso é que era bom com a Wanda nas tardes de
sesta quando as deixavam sozinhas em casa.
— Não está tão quente assim pra gente tirar a roupa — disse Wanda. —
Por que você é tão exagerada? Eu falei, é verdade, mas não queria dizer
isso.
— Então você não gosta de ficar como as mulheres das lâminas? —
brincou Teresita, esticando-se no sofá. — Olhe bem pra mim e diga se não
estou idêntica àquela onde tudo parece de vidro e ao longe se vê um homem
pequenininho vindo pela rua. Tire a calcinha, sua tonta, não vê que está
estragando o efeito?
— Não me lembro dessa lâmina — disse Wanda, apoiando indecisa os
dedos no elástico da calcinha. — Ah, é, acho que lembro, tinha uma
lâmpada no teto e no fundo um quadro azul com a lua cheia. É mesmo, era
tudo azul.
Vá saber por que na tarde do álbum elas se detiveram muito tempo nessa
lâmina embora houvesse outras mais excitantes e estranhas, por exemplo, a
de Orphée, que no dicionário queria dizer Orfeu, o pai da música que
desceu até os infernos, só que na lâmina não havia nenhum inferno, apenas
uma rua com casas de tijolos vermelhos, um pouco como no começo do
pesadelo, embora depois tudo tenha mudado e fosse outra vez o beco com o
homem da mão artificial, e por aquela rua com casas de tijolos vermelhos
Orfeu vinha nu, Teresita logo lhe mostrou, mas à primeira vista Wanda
pensou que fosse mais uma mulher nua até que Teresita caiu na risada e pôs
o dedo bem ali e Wanda viu que era um homem muito jovem, mas um
homem, e ficaram olhando e estudando Orfeu e se perguntando quem seria
a mulher de costas no jardim e por que estaria de costas com o zíper da saia
meio aberto como se aquilo fosse jeito de passear pelo jardim.
— É um enfeite, não um zíper — descobriu Wanda. — Dá a impressão,
mas se você olhar bem percebe que é um tipo de bainha que parece um
fecho. O que não dá pra entender é por que Orfeu está vindo pela rua e está
pelado e a mulher fica de costas no jardim atrás da parede, é estranhíssimo.
Orfeu parece uma mulher com essa pele tão branca e esses quadris. Se não
fosse por aquilo ali, é claro.
— Vamos procurar outra onde dê pra gente ver mais de perto — disse
Teresita. — Você já viu algum homem?
— Não, de que jeito? — disse Wanda. — Eu sei como é, mas como é que
você queria que eu tivesse visto? É como o dos bebês, mas maior, né?
Como o Grock, mas ele é um cachorro, não é a mesma coisa.
— A Chola diz que quando estão apaixonados ele cresce o triplo e é aí
que acontece a fecundação.
— Pra ter filhos? Mas fecundação é isso ou?
— Você é boba, menininha. Veja esta outra aqui, até parece a outra rua,
mas tem duas mulheres nuas. Por que esse infeliz pinta tantas mulheres?
Veja, até parece que elas passam uma pela outra mas nem se conhecem e
vai cada uma pro seu lado, estão completamente loucas, peladas em plena
rua e nenhum guarda pra repreender as duas, isso não acontece em lugar
nenhum. Veja esta outra, aqui tem um homem mas ele está vestido e se
escondendo numa casa, só dá pra ver o rosto e a mão dele. E essa mulher
vestida de ramos e folhas, vou te contar, são loucas mesmo.
— Você não vai mais sonhar — prometeu tia Lorenza, acariciando-a. —
Agora durma, vai ver que não vai mais sonhar.
— É verdade, você já tem pelos, mas poucos — disse Teresita. — É
estranho, ainda parece uma menina. Acenda meu cigarro. Venha.
— Não, não — disse Wanda, querendo se soltar. — O que está fazendo?
Não quero, me largue.
— Como você é boba. Olhe, venha ver, eu te mostro. Mas eu não fiz nada,
fique quieta e já vai ver.
De noite a mandaram para a cama sem deixar que as beijasse, o jantar
tinha sido como nas lâminas onde tudo era silêncio, só tia Lorenza a olhava
de vez em quando e lhe servia o jantar, de tarde ouvira de longe o disco de
tia Adela e as vozes chegavam até ela como se a estivessem acusando, Te
lucis ante terminum, já decidira se suicidar e lhe fazia bem chorar pensando
em tia Lorenza quando a encontrasse morta e todas se arrependessem, ela se
suicidaria pulando lá do alto do terraço no jardim, ou abrindo as veias com
a gilete da tia Ernestina, mas ainda não porque antes precisava escrever uma
carta de despedida para Teresita dizendo que a perdoava e outra para a
professora de geografia que lhe dera o atlas encadernado de presente, e
ainda bem que tia Ernestina e tia Adela não sabiam que Teresita e ela
tinham ido à estação para ver os trens passarem e que de tarde fumavam e
bebiam vinho, e principalmente que daquela vez ao cair da tarde quando
voltando da casa de Teresita em vez de atravessar a rua como elas
mandavam Wanda deu uma volta no quarteirão e o homem de preto se
aproximou para lhe perguntar as horas como no pesadelo, talvez fosse só o
pesadelo, ah, sim, meu Deus amado, bem ali na entrada do beco que
terminava no muro coberto de hera, e ela ainda também não tinha percebido
(mas talvez fosse apenas o pesadelo) que o homem escondia a mão no bolso
do terno preto até que começou a tirá-la devagarinho enquanto lhe
perguntava as horas e aquela mão parecia de cera cor-de-rosa com os dedos
duros e entrecerrados, que se enganchava no bolso do paletó e ia saindo
pouco a pouco e aos trancos, e então Wanda correu se afastando da entrada
do beco mas quase não se lembrava mais de ter corrido e de ter escapado do
homem que queria encurralá-la no fundo do beco, havia uma espécie de
vazio porque o terror da mão artificial e da boca de lábios finos fixava esse
momento e não havia antes nem depois como quando tia Lorenza lhe deu
um copo d’água para beber, no pesadelo não havia nem antes nem depois e
para piorar ela não podia contar para tia Lorenza que não era apenas um
sonho pois já não estava certa e tinha tanto medo de que soubessem e tudo
se misturava e Teresita e a única certeza era que tia Lorenza estava lá junto
dela na cama, abrigando-a nos braços e prometendo um sono tranquilo,
acariciando seu cabelo e prometendo.
— Não é verdade que você gosta? — disse Teresita. — Também dá pra
fazer assim, veja.
— Não, não, por favor — disse Wanda.
— Claro que sim, assim é melhor ainda, dá pra sentir em dobro, a Chola
faz assim e eu também, tá vendo como você gosta, não minta, se quiser se
deite aqui e faça você mesma, agora que já sabe.
— Durma, querida — tia Lorenza tinha dito —, você vai ver que não vai
mais sonhar.
Mas era Teresita quem se reclinava com os olhos semicerrados, como se
de repente estivesse muito cansada depois de ensinar a Wanda, e se parecia
com a mulher loira do sofá azul só que mais jovem e morena, e Wanda
pensava na outra mulher da lâmina que contemplava uma vela acesa
embora no aposento envidraçado houvesse uma lâmpada no teto, e a rua
com os postes de luz e o homem ao longe pareciam entrar no quarto, fazer
parte do quarto como quase sempre nessas lâminas, embora não tivessem
achado nenhuma delas tão estranha como a que se chamava damiselas de
Tongres, porque demoiselles em francês quer dizer damiselas e quando
Wanda via Teresita com a respiração ofegante como se estivesse muito
cansada era como se visse de novo a lâmina com as damiselas de Tongres,
que devia ser um lugar porque estava com maiúscula, se abraçando envoltas
em túnicas azuis e vermelhas mas nuas por debaixo das túnicas, e uma
estava com os seios de fora e acariciava a outra e as duas tinham boinas
pretas e o cabelo loiro e comprido, acariciava a outra passando os dedos
embaixo das costas como Teresita tinha feito, e o homem careca de guarda-
pó cinza era como o dr. Fontana quando tia Ernestina a levou lá e o doutor
depois de falar em segredo com tia Ernestina falou para ela tirar a roupa e
ela tinha treze anos e já começava a se desenvolver e por isso tia Ernestina a
levava, mas talvez não fosse só por isso porque o dr. Fontana começou a rir
e Wanda ouviu quando ele disse para tia Ernestina que essas coisas não
tinham tanta importância assim e que não era preciso exagerar, e depois a
auscultou e examinou seus olhos e estava usando um guarda-pó que parecia
o da lâmina só que era branco, e falou para ela se deitar na maca e a
apalpou lá embaixo e tia Ernestina estava lá mas tinha ido olhar pela janela
embora não desse para ver a rua porque a janela tinha umas cortininhas
brancas, até que o dr. Fontana a chamou e disse para não se preocupar e
Wanda se vestiu enquanto o doutor escrevia uma receita com um tônico e
um xarope para os brônquios, e na noite do pesadelo tinha sido um pouco
assim porque no começo o homem de preto era afável e sorridente como o
dr. Fontana e só queria saber as horas, mas depois vinha o beco como na
tarde em que ela deu a volta no quarteirão, e no fim não lhe restava outra
saída a não ser se suicidar com a gilete ou se jogando do terraço depois de
escrever para a professora e para Teresita.
— Você é idiota — disse Teresita. — Primeiro deixa a porta aberta feito
uma sonsa, depois não consegue nem disfarçar. Estou avisando, se suas tias
vierem com essa história pra Sardenta, porque com certeza vão botar a
culpa em mim, eu vou direto pro colégio interno, meu pai já me avisou.
— Beba mais um pouco — disse tia Lorenza. — Agora você vai dormir
até amanhã sem sonhar nada.
O pior era isso, não poder contar para tia Lorenza, explicar por que tinha
fugido de casa na tarde de tia Ernestina e tia Adela e caminhara por ruas e
mais ruas sem saber o que fazer, pensando que devia se suicidar logo, se
jogar debaixo de um trem, e olhando para todo lado pois talvez o homem
estivesse ali novamente e quando chegasse a um lugar solitário ele se
aproximaria para perguntar as horas, talvez as mulheres das lâminas
andassem nuas por essas ruas porque também haviam fugido de casa e
tinham medo desses homens de guarda-pó cinza ou de terno preto como o
homem do beco, mas nas lâminas havia muitas mulheres e ela, por sua vez,
agora andava sozinha pelas ruas, mas pelo menos não estava nua como as
outras e nenhuma delas vinha abraçá-la com uma túnica vermelha nem lhe
dizer para se deitar como tinham feito Teresita e o dr. Fontana.
— A Billie Holiday era negra e morreu de tanto usar drogas — disse
Teresita. — Tinha alucinações e essas coisas.
— O que é isso, alucinações?
— Não sei, uma coisa horrível, gritam e se contorcem. Sabe que você tem
razão? Está fazendo um calor dos diabos. Melhor a gente tirar a roupa.
— Não está tão quente assim pra gente tirar a roupa — disse Wanda.
— Você comeu puchero demais — disse tia Lorenza. — Puchero de noite
é pesado, que nem laranja.
— Também dá pra fazer assim, veja — disse Teresita.
Vá saber por que a lâmina de que ela mais se lembrava era a da rua
estreita com árvores de um lado e uma porta em primeiro plano na calçada
defronte, e ainda por cima no meio da rua a mesinha com uma lâmpada
acesa, e olhe que era pleno dia. “Chega dessa história de mão artificial”,
disse Teresita, “você vai ficar assim a tarde toda? Primeiro reclama do
calor, e depois eu que fico nua.” Na lâmina, ela se afastava arrastando pelo
chão uma túnica escura, e na porta em primeiro plano estava Teresita
olhando para a mesa com a lâmpada, sem perceber que no fundo o homem
de preto esperava Wanda, imóvel de um dos lados da rua. “Mas não somos
nós”, pensou Wanda, “são mulheres adultas que andam peladas pela rua,
não somos nós, é como o pesadelo, a gente pensa que está lá mas não está, e
a tia Lorenza não vai me deixar mais sonhar.” Se pudesse pedir à tia
Lorenza que a salvasse das ruas, que não a deixasse se jogar debaixo de um
trem, nem que o homem de preto que na lâmina esperava no fundo da rua
aparecesse ali de novo, agora que estava dando a volta no quarteirão
(“venha direto e nada de ficar batendo perna pelas ruas”, dissera tia Adela)
e o homem de preto se aproximava para lhe perguntar as horas e a
encurralava lentamente no beco sem janelas, cada vez mais encostada no
muro de hera, incapaz de gritar ou de suplicar ou de se defender como no
pesadelo, mas no pesadelo havia um vazio final porque tia Lorenza estava
lá acalmando-a e tudo se apagava com o sabor da água fresca e das carícias,
e a tarde do beco também terminava num vazio quando Wanda saiu
correndo sem olhar para trás até se enfiar em casa e trancar a porta e chamar
Grock para cuidar da entrada já que não podia contar a verdade para tia
Adela. Agora tudo era como antes de novo, mas no beco não havia mais
esse vazio, não dava para fugir nem para acordar, o homem de preto a
encurralava contra o muro e tia Lorenza não ia acalmá-la, estava sozinha
nesse anoitecer com o homem de preto que lhe perguntara as horas, que se
aproximava do muro e começava a tirar a mão do bolso, cada vez mais
perto de Wanda encostada na hera, e o homem de preto não perguntava
mais as horas, a mão de cera buscava algo nela, debaixo de sua saia, e a voz
do homem lhe dizia no ouvido fique quieta e não chore, que vamos fazer o
que a Teresita te ensinou.
Liliana chorando
A
inda bem que é o Ramos e não um outro médico, com ele sempre
existiu um pacto, eu sabia que quando chegasse a hora ele ia me
falar ou, mesmo sem falar tudo, pelo menos ia me dar a entender.
Foi difícil pra ele, coitado, quinze anos de amizade e noitadas de
pôquer e fins de semana no campo, o problema de sempre; mas é assim
mesmo, na hora da verdade, entre homens, isso vale mais que as mentiras
de consultório, coloridas como os comprimidos ou o líquido rosado que,
gota a gota, vai entrando em minhas veias.
Três ou quatro dias e ele não me diz nada, sei que vai cuidar para que não
aconteça aquilo que chamam de agonia, deixar o cachorro morrer
lentamente, para quê… posso confiar no Ramos, os últimos comprimidos
também serão verdes ou vermelhos, mas dentro deles vai ter outra coisa, o
grande sono que desde já lhe agradeço, enquanto ele fica aos pés da cama
me olhando, um pouco perdido porque a verdade o esgotou, pobre amigo.
Não diga nada à Liliana, para que fazê-la chorar antes da hora, não é
mesmo? Para o Alfredo sim, para o Alfredo pode contar, para que ele
arranje uma brecha no trabalho e tome conta da Liliana e da mamãe. Ei, e
diga para a enfermeira não me chatear quando eu estiver escrevendo, é a
única coisa que me faz esquecer a dor, além da sua eminente farmacopeia,
claro. Ah, e que me tragam café quando eu pedir, esta clínica leva as coisas
muito a sério.
É verdade que escrever às vezes me acalma, deve ser por isso que existe
tanta correspondência de condenados à morte, quem sabe… Eu até me
divirto imaginando por escrito umas coisas que de repente, só de pensar,
dão um nó na garganta, sem falar no canal lacrimal; nas palavras eu me vejo
como se fosse outra pessoa, consigo pensar em qualquer coisa, desde que a
escreva imediatamente, deformação profissional ou começo de
amolecimento do miolo. Só paro quando a Liliana chega, com os outros sou
menos simpático, como não querem que eu fale muito, deixo que eles
contem se está fazendo frio ou se o Nixon vai ganhar do McGovern, de
lápis na mão eu deixo que eles falem e até o Alfredo percebe isso e diz para
eu continuar, para fazer de conta que ele não está ali, trouxe um jornal e vai
ficar mais um tempinho. Mas minha mulher não merece isso, ela eu escuto
e lhe sorrio e minha dor diminui, aceito aquele beijo um pouquinho úmido
que volta várias vezes, embora a cada dia eu me canse mais que façam
minha barba e devo machucar sua boca, pobrezinha. Devo dizer que a
coragem da Liliana é meu maior consolo, se eu já me visse morto nos seus
olhos eu perderia o resto dessa força que me permite conversar com ela,
devolver alguns de seus beijos, continuar escrevendo assim que ela vai
embora e começa a rotina de injeções e palavrinhas simpáticas. Ninguém
ousa se meter com meu caderno, sei que posso guardá-lo debaixo do
travesseiro ou na mesa de cabeceira, é um capricho meu, deixem ele,
porque o dr. Ramos, claro, tem que deixar, coitadinho, assim ele se distrai.
Enfim, na segunda ou na terça-feira, e o cantinho no jazigo na quarta ou
na quinta. Em pleno verão, o cemitério da Chacarita vai estar um forno e os
rapazes vão penar, já estou vendo o Pincho com um daqueles paletós
cruzados com as ombreiras que tanto divertem o Acosta, que, por sua vez,
mesmo a contragosto terá que vestir um terno, o rei da jaqueta usando
paletó e gravata no meu cortejo, isso vai ser demais. E o Fernandito, o trio
completo, e o Ramos também, claro, até o fim, e o Alfredo levando a
Liliana e a mamãe pelo braço, chorando com elas. E será de verdade, sei
como gostam de mim, como vão sentir minha falta; não irão lá como
quando fomos ao enterro do gordo Tresa, o dever partidário e algumas
férias compartilhadas, dar logo os pêsames à família e se mandar de volta à
vida e ao esquecimento. Claro que vão estar com uma fome danada,
principalmente o Acosta, o mais comilão de todos; embora seja doloroso e
eles amaldiçoem esse absurdo que é morrer jovem e em plena carreira, tem
aquela reação que nós todos conhecemos, o prazer de entrar de novo no
metrô ou no carro, de tomar um banho e de comer com fome e vergonha ao
mesmo tempo, pois como negar a fome que vem depois da noite em claro,
do cheiro das flores do velório, dos cigarros intermináveis, das caminhadas
pela calçada?, uma espécie de desforra que sempre se sente nessas horas e à
qual eu nunca me neguei, pois seria um hipócrita. Gosto de pensar que o
Fernandito, o Pincho e o Acosta irão juntos a uma churrascaria, com certeza
irão juntos, pois também fizemos isso na vez do gordo Tresa, os amigos
precisam ficar juntos mais um pouco, beber um litro de vinho e detonar uns
miúdos; gente, parece que estou vendo, o Fernandito vai ser o primeiro a
contar uma piada e ela vai entalar na garganta dele junto com metade de um
chouriço, ele já arrependido, tarde demais, porém, e o Acosta olhando
atravessado para ele, mas o Pincho logo vai cair na risada, ele não consegue
se segurar, e então o Acosta, que é um anjo de pessoa, vai dizer que não tem
por que servir de exemplo para os rapazes e também vai rir, antes de
acender um cigarro. E vão ter longas conversas sobre mim, cada um vai se
lembrar de tanta coisa, da vida que foi juntando nós quatro, ainda que,
como sempre, cheia de buracos, dos momentos que nem todos
compartilhamos e que virão à lembrança do Acosta e do Pincho, dos tantos
anos e farras e paqueras, da turma. Vai ser difícil para eles se separarem
depois do almoço, pois aí, na hora de irem para casa, é que vai voltar o
outro, o último, o enterro definitivo. Para o Alfredo vai ser diferente, e não
por ele não ser da turma, ao contrário, mas o Alfredo vai ficar cuidando da
Liliana e da mamãe e isso nem o Acosta nem os outros podem fazer, a vida
vai criando vínculos especiais entre os amigos, todos eles sempre foram lá
em casa, mas o Alfredo é outro lance, aquela proximidade que sempre me
fez bem, seu prazer de ficar um bom tempo conversando com a mamãe
sobre plantas e remédios, sua satisfação em levar o Pocho ao zoológico ou
ao circo, o solteirão disponível, um pacotinho de petit-four e um sete e meio
quando a mamãe não estava bem, sua confiança tímida e clara com a
Liliana, o amigo dos amigos que agora vai ter que passar esses dois dias
engolindo as lágrimas, talvez levando o Pocho até sua chácara e voltando
logo para ficar com a mamãe e a Liliana até o final. No fim das contas, ele
vai ter que ser o homem da casa e arcar com todas as complicações, a
começar pela funerária, isso tinha que acontecer logo agora que o meu
velho anda lá pelo México ou pelo Panamá, vá saber se ele chega a tempo
de aguentar o sol das onze no Chacarita, coitadinho, de maneira que é o
Alfredo que vai levar a Liliana, pois acho que não vão deixar a mamãe ir, de
braço dado com a Liliana, sentindo-a tremer junto do seu próprio tremor,
murmurando para ela tudo o que eu devo ter murmurado para a mulher do
gordo Tresa, a inútil necessária retórica que não é consolo, nem mentira,
nem mesmo frases coerentes, mas um simples estar ali, o que já é muito.
Pra eles o pior também vai ser a volta, antes tem a cerimônia e as flores,
tem ainda o contato com aquela coisa inconcebível cheia de alças e
dourados, a parada diante do jazigo, a operação limpamente executada
pelos homens do ofício, mas depois vem o carro com chofer e,
principalmente, a casa, entrar de novo em casa sabendo que o dia vai se
estancar sem telefone nem clínica, sem a voz do Ramos prolongando a
esperança da Liliana, o Alfredo vai fazer café e lhe dizer que o Pocho está
contente lá na chácara, que ele gosta dos cavalinhos e brinca com os
peõezinhos, vai ter que cuidar da mamãe e da Liliana, mas o Alfredo
conhece bem cada canto da casa e na certa vai ficar em vigília no sofá do
meu escritório, bem ali onde um dia deitamos o Fernandito, vítima de um
pôquer no qual não tinha dado uma dentro, sem contar os cinco conhaques
compensatórios. Faz tantas semanas que a Liliana dorme sozinha que talvez
seja vencida pelo cansaço, o Alfredo não vai se esquecer de dar sedativos
para a Liliana e para a mamãe, a tia Zulema vai estar lá servindo camomila
e tília, a Liliana pouco a pouco vai se render ao sono em meio ao silêncio da
casa que o Alfredo vai ter fechado meticulosamente, antes de se jogar no
sofá e acender mais um daqueles charutos que ele não se atreve a fumar na
frente da mamãe, por causa da fumaça que a faz tossir.
Enfim, tem isso de bom, a Liliana e a mamãe não vão ficar tão sozinhas
ou naquela solidão ainda pior que é a parentada distante invadindo a casa de
luto; a tia Zulema, que sempre morou no andar de cima, vai estar lá, e
também o Alfredo, que esteve entre nós como se não estivesse, o amigo
com chave própria; nas primeiras horas talvez seja menos difícil sentir a
ausência incontornável que suportar um tropel de abraços e de coroas de
flores verbais, o Alfredo vai tratar de impor distâncias, o Ramos vai dar
uma passada para ver a mamãe e a Liliana, vai ajudá-las a dormir e deixar
uns comprimidos para a tia Zulema. Em algum momento só haverá o
silêncio da casa às escuras, só o relógio da igreja, uma buzina distante, pois
o bairro é tranquilo. É bom pensar que vai ser assim, que, rendendo-se
pouco a pouco a uma letargia sem imagens, a Liliana vai se espreguiçar
com aqueles seus gestos lentos de gata, uma das mãos perdida no
travesseiro úmido de lágrimas e água-de-colônia, a outra na boca, num
retorno à infância antes do sono. Imaginá-la assim faz tão bem, a Liliana
dormindo, a Liliana no fim do túnel negro, sentindo confusamente que o
hoje está cessando para se tornar ontem, que aquela luz nas cortininhas não
vai mais ser a mesma que batia em cheio no peito, enquanto a tia Zulema
abria as caixas de onde o preto ia saindo em forma de roupa e de véus se
misturando sobre a cama com um pranto exasperado, um último protesto,
inútil, contra o que ainda estava por vir. Agora a luz da janela ia chegar
antes de todo mundo, antes das lembranças dissolvidas no sono e que só
abririam caminho, confusamente, na última modorra. Sozinha, sabendo
estar de fato sozinha naquela cama e naquele quarto, naquele dia que
começava em outra direção, a Liliana poderia chorar abraçada ao
travesseiro sem que viessem acalmá-la, deixando-a esgotar o pranto até o
final, e só muito depois, com uma sonolência ardilosa segurando-a no
novelo dos lençóis, o vazio do dia começaria a se encher de café, de
cortinas abertas, da tia Zulema, da voz do Pocho telefonando lá da chácara
com notícias sobre os girassóis e os cavalos, um bagre pescado depois de
uma luta feroz, uma farpa na mão, mas nada sério, já tinham passado o
remédio do seu Contreras, que era o melhor para esse tipo de coisa. E o
Alfredo esperando na sala com o jornal na mão, dizendo a ela que a mamãe
tinha dormido bem e que o Ramos viria ao meio-dia, sugerindo que fossem
ver o Pocho de tarde, com aquele sol valia a pena dar um pulo lá na
chácara, e numa dessas podiam até levar a mamãe, o ar do campo lhe faria
bem, quem sabe passar o fim de semana na chácara, e por que não todos?,
junto com o Pocho, que ficaria muito contente de tê-los lá. Aceitar ou não
dava na mesma, todos sabiam disso e esperavam as respostas que as coisas
e o correr da manhã iam dando, entrar passivamente no almoço ou num
comentário sobre as greves dos operários têxteis, pedir mais café e atender
o telefone, que em algum momento tiveram que ligar, o telegrama do sogro
no exterior, um acidente estrondoso na esquina, gritos e buzinadas, a cidade
lá fora, duas e meia da tarde, ir com a mamãe e o Alfredo até a chácara
pois, de repente, aquela farpa na mão, com crianças nunca se sabe, o
Alfredo ao volante tranquilizando-as, para esse tipo de coisa o seu
Contreras era mais garantido do que um médico, as ruas de Ramos Mejía e
o sol como um xarope fervendo até o refúgio nos grandes quartos caiados, o
mate das cinco e o Pocho com seu bagre que começava a feder, mas tão
bonito, tão grande, e que luta pra tirá-lo do riacho, mamãe, quase que ele
corta a linha, juro, olha que dentes. Como estar folheando um álbum ou
vendo um filme, as imagens e as palavras, uma atrás da outra, preenchendo
o vazio, você vai ver o que é a costela de tira na brasa da Carmen, sim,
senhora, tão leve e tão gostosa, uma salada de alface e pronto, não precisa
de mais nada, com esse calor é melhor comer pouco, e traga o repelente
porque a essa hora os mosquitos. E o Alfredo ali calado, mas o Pocho, sua
mão dando uns tapinhas no Pocho, você, meu chapa, é o campeão da pesca,
vamos juntos amanhã cedinho e numa dessas, quem sabe?, me contaram
que um caboclo aí pescou um de dois quilos. Aqui debaixo do alpendre a
gente fica bem, a mamãe pode dormir um pouco na cadeira de balanço, se
quiser, o seu Contreras tinha razão, você não tem mais nada na mão, mostre
como é que você monta o cavalinho malhado, olha, mamãe, veja eu
galopando, por que não vem com a gente pescar amanhã?, eu ensino, você
vai ver, a sexta-feira com um sol vermelho e os bagrinhos, a corrida entre o
Pocho e o menino do seu Contreras, o puchero ao meio-dia e a mamãe
ajudando a debulhar devagarinho as espigas de milho, dando conselhos
sobre a filha da Carmen, que estava com uma tosse rebelde, a sesta nos
quartos nus com cheiro de verão, a escuridão nos lençóis um pouco ásperos,
o entardecer sob o alpendre e a fogueira contra os mosquitos, a proximidade
nunca manifesta do Alfredo, aquele jeito de estar lá e tomar conta do Pocho,
de cuidar que tudo fosse confortável, até o silêncio que sua voz sempre
rompia a tempo, sua mão oferecendo um copo de refresco, um lenço,
ligando o rádio para ouvir o noticiário, as greves e o Nixon, era de esperar,
que país…
O fim de semana e na mão do Pocho apenas um vestígio da farpa,
voltaram para Buenos Aires na segunda bem cedo para fugir do calor, o
Alfredo os deixou em casa pra ir buscar o sogro no aeroporto, o Ramos
também estava lá no Ezeiza, e o Fernandito, que ajudou naquelas horas do
encontro porque era bom que houvesse outros amigos na casa, o Acosta às
nove com sua filha, que podia brincar com o Pocho no andar da tia Zulema,
tudo ia ficando mais amortecido, voltar atrás, mas de outra forma, com a
Liliana se obrigando a pensar mais nos velhos do que nela, se controlando,
e o Alfredo entre eles com o Acosta e o Fernandito desviando os tiros livres
diretos, se revezando para ajudar a Liliana, para convencer o velho a
descansar depois de uma viagem daquelas, indo embora um por um até que,
ali, só o Alfredo e a tia Zulema, a casa quieta, a Liliana aceitando um
comprimido, deixando-se levar para a cama sem ter baqueado uma única
vez, dormindo quase no ato, como depois que se cumpre um dever até o
fim. De manhã era a correria do Pocho pela sala, o arrastar das pantufas do
velho, o primeiro telefonema, quase sempre a Clotilde ou o Ramos, a
mamãe se queixando do calor ou da umidade, falando do almoço com a tia
Zulema, às seis o Alfredo, às vezes o Pincho com a irmã ou o Acosta, para
que o Pocho brincasse com sua filha, os colegas do laboratório que pediam
a presença da Liliana, ela precisava voltar ao trabalho e não continuar
trancada em casa, que fizesse isso por eles, estavam com falta de químicos e
a Liliana era necessária, que viesse pelo menos meio expediente, até se
sentir mais animada; o Alfredo a levou da primeira vez, a Liliana não estava
com vontade de dirigir, depois não quis mais incomodar e pegou o carro, às
vezes saía de tarde com o Pocho e o levava ao zoológico ou ao cinema, no
laboratório agradeciam que ela desse uma mão com as novas vacinas, um
surto epidêmico no litoral, ficar trabalhando até tarde, tomando gosto pelo
trabalho, uma corrida em equipe contra o relógio, vinte caixas de ampolas
para Rosario, tem que ser feito, Liliana, menina, você foi demais. Ver o
verão ir embora em plena atividade, o Pocho no colégio e o Alfredo
reclamando, ensinam aritmética de outro jeito para essas crianças, ele me
faz cada pergunta que eu fico pasmo, e os velhos com o dominó, na nossa
época tudo era diferente, Alfredo, nos ensinavam caligrafia, e olhe a letra
desse menino, onde é que vamos parar. A recompensa silenciosa de ver a
Liliana perdida num sofá, um simples olhar por cima do jornal e vê-la
sorrir, cúmplice sem palavras, dando razão aos velhos, sorrindo de longe
para ele como uma menininha, quase. Mas pela primeira vez um sorriso de
verdade, vindo de dentro, como quando foram ao circo com o Pocho, ele
tinha ido melhor no colégio e então o levaram para tomar sorvete, para
passear no porto. Estavam chegando os dias mais frios, o Alfredo passava
menos seguido por lá porque havia uns problemas sindicais e ele tinha que
viajar para as províncias, às vezes o Acosta vinha com sua filha, e aos
domingos o Pincho ou o Fernandito, não importava mais, todo mundo tinha
tanta coisa para fazer e os dias eram curtos, a Liliana voltava tarde do
laboratório e dava uma mão para o Pocho, perdido nos decimais e na bacia
do Amazonas, e no fim, e sempre, o Alfredo, os presentinhos para os
velhos, aquela tranquilidade nunca manifestada de se sentar com ele perto
do fogo, já tarde, e falar em voz baixa dos problemas do país, da saúde da
mamãe, a mão do Alfredo apoiada no braço da Liliana, você se cansa
demais, não está com a cara boa, o sorriso agradecido negando, um dia
vamos até a chácara, esse frio não pode durar a vida toda, nada pode durar a
vida toda, embora a Liliana retirasse lentamente o braço e procurasse os
cigarros na mesinha, as palavras quase sem sentido, os olhos se encontrando
de outra maneira até que de novo a mão deslizando pelo braço, as cabeças
se juntando e o longo silêncio, o beijo no rosto.
Não havia nada a dizer, foi assim que aconteceu e não havia nada a dizer.
Inclinando-se para acender o cigarro que tremia entre seus dedos,
simplesmente esperando sem falar, talvez sabendo que não haveria palavras,
que a Liliana faria um esforço para tragar a fumaça e a soltaria com um
gemido, que cairia num choro sufocado desde outros tempos, sem afastar o
rosto do rosto do Alfredo, sem negar nada e chorando, calada, agora só para
ele, desde todo o passado que ele compreenderia. Inútil murmurar coisas tão
sabidas, a Liliana chorando era o final, a borda de onde começaria a viver
de outra forma. Se acalmá-la, se devolvê-la à tranquilidade fosse tão
simples quanto escrever, com as palavras se alinhando num caderno feito
segundos congelados, pequenos desenhos do tempo para ajudar a tarde
interminável a passar, se fosse só isso, mas vem a noite, e também o Ramos,
a cara inacreditável do Ramos olhando os exames recém-chegados,
procurando meu pulso, de repente outro, incapaz de disfarçar, arrancando os
lençóis pra me ver nu, apalpando-me o flanco, com uma ordem
incompreensível para a enfermeira, um lento, incrédulo reconhecimento que
assisto como se estivesse longe, quase achando graça, sabendo que não
pode ser, que o Ramos está enganado e que não é verdade, que só era
verdade o de antes, o prazo que ele não escondeu de mim, e a risada do
Ramos, sua forma de me apalpar como se não pudesse admitir aquilo, sua
esperança absurda, ninguém vai acreditar em mim, camarada, e eu me
esforçando para reconhecer que talvez seja isso mesmo, que numa dessas,
quem sabe, olhando para o Ramos que se endireita e ri novamente e dá
ordens com uma voz que eu nunca tinha ouvido nessa penumbra, nesse
torpor, tendo que me convencer aos poucos de que sim, que então vou ter
que pedir isso a ele, assim que a enfermeira sair vou ter que pedir que ele
espere um pouco, que espere que pelo menos seja dia antes de contar para a
Liliana, antes de arrancá-la desse sono em que pela primeira vez ela não
está mais sozinha, desses braços que a estreitam enquanto ela dorme.
J
orge Fraga tinha acabado de fazer quarenta anos quando resolveu
estudar a vida e a obra do poeta Claudio Romero.
A coisa nasceu de uma conversa num café, na qual Fraga e seus
amigos tiveram de admitir mais uma vez a incerteza que cercava a
pessoa de Romero. Autor de três livros apaixonadamente lidos e invejados,
que lhe deram uma fama efêmera nos anos posteriores ao Centenário, a
imagem de Romero se confundia com suas invenções, sofria com a falta de
uma crítica sistemática e até de uma iconografia satisfatória. Além de
artigos parcimoniosamente laudatórios nas revistas da época, e do livro
cometido por um entusiasmado professor de Santa Fe para quem o lirismo
supria as ideias, não se tentara o menor questionamento sobre a vida ou a
obra do poeta. Alguns causos, umas fotos desbotadas; o resto era lenda para
tertúlias e panegíricos em antologias de editores preguiçosos. Mas chamara
a atenção de Fraga o fato de muita gente continuar lendo os versos de
Romero com o mesmo entusiasmo com que lia os de Carriego ou os de
Alfonsina Storni. Ele mesmo os descobrira na época do ginásio, e apesar do
tom rasteiro e das imagens desgastadas pelos epígonos, os poemas do vate
platense tinham sido uma das experiências decisivas de sua juventude,
como Almafuerte ou Carlos de la Púa. Só mais tarde, quando já era
conhecido como crítico e ensaísta, ocorreu-lhe pensar seriamente na obra de
Romero, e não demorou a perceber que não se sabia quase nada de seu
sentido mais pessoal e, talvez, mais profundo. Diante de versos de outros
bons poetas do início do século, os de Claudio Romero se distinguiam por
uma qualidade especial, uma ressonância menos enfática que logo ganhava
a confiança dos jovens, fartos de tropos altissonantes e evocações
supérfluas. Quando falava dos poemas dele com alunos ou amigos, Fraga
chegava a se perguntar se, no fundo, não era o mistério que dava prestígio
àquela poesia de chaves obscuras, de intenções evasivas. Acabou se
irritando com a facilidade com que a ignorância favorece a admiração;
afinal, a poesia de Claudio Romero era elevada demais para que um melhor
conhecimento de sua gênese a rebaixasse. Ao sair de uma dessas reuniões
num café, em que se falara de Romero com a habitual vagueza admirativa,
ele se sentiu meio que obrigado a dar início a um trabalho sério sobre o
poeta. Também sentiu que não deveria se ater a um mero ensaio com
propósitos filológicos ou estilísticos, como quase todos os que havia escrito.
A ideia de uma biografia, no sentido mais elevado, se impôs a ele desde o
princípio: o homem, a terra e a obra deviam surgir de uma só vivência,
embora a tarefa parecesse impossível em tanta névoa do tempo. Finda a
etapa do fichamento, seria preciso alcançar a síntese, provocar o
inconcebível encontro do poeta e seu perseguidor; apenas esse contato
devolveria à obra de Romero seu sentido mais profundo.
Durante dois anos e meio reuniu material para o livro. A tarefa não era
difícil, mas prolixa e às vezes maçante. Incluiu viagens a Pergamino, Santa
Cruz e Mendoza, correspondência com bibliotecários e arquivistas, exame
de coleções de periódicos e revistas, cotejo de textos, estudos paralelos das
correntes literárias da época. No final de 1954, os elementos centrais do
livro estavam coligidos e avaliados, embora Fraga ainda não tivesse escrito
uma única palavra do texto.
Numa noite de setembro, enquanto inseria uma nova ficha na caixa de
papelão preto, ele se perguntou se estaria em condições de empreender a
tarefa. Não eram os obstáculos que o preocupavam; era, antes, o contrário
disso, a facilidade de se lançar a um campo suficientemente conhecido. Os
dados estavam lá, e nada de importante ainda sairia das gavetas ou das
memórias dos argentinos de sua época. Coligira notícias e fatos
aparentemente desconhecidos, que aperfeiçoariam a imagem de Claudio
Romero e de sua poesia. O único problema era não confundir o enfoque
central, as linhas de fuga e a composição do conjunto.
“Mas essa imagem, ela é clara o bastante para mim?”, perguntou-se Fraga,
fitando a brasa do cigarro. “As afinidades entre mim e Romero, nossa
preferência comum por certos valores estéticos e poéticos, isso que torna
fatal a escolha do tema pelo biógrafo, não me fará incorrer novamente numa
autobiografia disfarçada?”
Podia responder que não lhe fora dada nenhuma capacidade criadora, que
não era poeta, só um apreciador de poesia, e que suas faculdades se
afirmavam na crítica, na fruição que acompanha o conhecimento. Manter
uma atitude alerta, encarar a vigília ao mergulhar na obra do poeta, isso
bastaria para evitar toda transfusão indevida. Não tinha por que desconfiar
de sua simpatia por Claudio Romero e do fascínio por seus poemas. Como
nos bons equipamentos fotográficos, era preciso fazer a correção necessária
para que o sujeito ficasse perfeitamente enquadrado, sem que a sombra do
fotógrafo lhe pisasse os pés.
Agora que a primeira página em branco o esperava, como uma porta que,
de uma hora para outra, seria preciso começar a abrir, perguntou-se de novo
se seria capaz de escrever o livro tal como o havia imaginado. A biografia e
a crítica podiam derivar perigosamente para a facilidade ao serem dirigidas
para esse tipo de leitor que espera que um livro seja o equivalente ao
cinema ou a André Maurois. O problema consistia em não sacrificar à
satisfação erudita de um punhado de colegas aquele consumidor anônimo e
multitudinário que seus amigos socialistas chamavam de “povo”. Encontrar
o ângulo que permitisse escrever um livro de leitura apaixonante sem cair
em receitas de best-seller; ganhar simultaneamente o respeito do mundo
acadêmico e o entusiasmo do homem do povo que quer se entreter numa
poltrona no sábado à noite.
Era um pouco a hora de Fausto, o momento do pacto. Quase ao
amanhecer, o cigarro consumido, a taça de vinho na mão indecisa. O vinho,
como uma luva de tempo, tinha escrito Romero em algum lugar.
“Por que não?”, disse Fraga para si, acendendo outro cigarro. “Com tudo
o que sei sobre ele agora, seria tolice ficar num mero ensaio, numa edição
de trezentos exemplares. Juárez ou Riccardi podem fazer isso tão bem
quanto eu. Mas ninguém sabe nada sobre Susana Márquez.”
Quando Fraga voltou para Buenos Aires e leu as três cartas de Claudio
Romero a Susana, os fragmentos finais do mosaico pareceram se encaixar
abruptamente no lugar, revelando uma composição total inesperada, o
drama que a ignorância e a beatice da geração do poeta não tinham sequer
intuído. Em 1917, Romero publicou a série de poemas dedicados a Irene
Paz, entre os quais figurava a célebre “Ode a seu nome duplo”, que a crítica
proclamara como o mais belo poema de amor jamais escrito na Argentina.
Porém, um ano antes do lançamento do livro, outra mulher recebera essas
três cartas, onde imperava o tom que definia o melhor da poesia de Romero,
misto de exaltação e desprendimento, como de alguém que fosse ao mesmo
tempo motor e sujeito da ação, protagonista e coro. Antes de ler as cartas,
Fraga imaginara ali a usual correspondência amorosa, os espelhos face a
face isolando e petrificando seu reflexo, importante apenas para eles.
Contudo, descobria em cada parágrafo a reiteração do mundo de Romero, a
riqueza de uma visão totalizante do amor. Não só sua paixão por Susana
Márquez não o recortava do mundo, como em cada linha sentia-se pulsar
uma realidade que agigantava a amada, justificação e exigência de uma
poesia batalhando em plena vida.
A história, em si, era simples. Romero conhecera Susana num salão
literário decadente de La Plata, e o início de sua relação coincidiu com um
eclipse quase total do poeta, que seus tacanhos biógrafos não entendiam ou
atribuíam aos primeiros sinais da tuberculose que iria matá-lo dois anos
mais tarde. As notícias sobre Susana tinham passado despercebidas a todo
mundo, como convinha à sua imagem esmaecida, aos grandes olhos
assustados que olhavam fixamente da fotografia antiga. Professora
normalista sem cargo, filha única de pais velhos e pobres, sem amigos que
pudessem se interessar por ela, seu simultâneo eclipse das tertúlias
platenses coincidira com o período mais dramático da guerra europeia,
outros interesses públicos, novas vozes literárias. Fraga podia se considerar
sortudo por ter ouvido aquela alusão indiferente de um juiz de paz
provinciano; com esse fio entre os dedos, chegou a localizar a casa lúgubre
de Burzaco onde Romero e Susana tinham morado durante quase dois anos;
as cartas que Raquel Márquez lhe entregara eram do final desse período. A
primeira, datada em La Plata, se referia a uma correspondência anterior na
qual se tratara de seu casamento com Susana. O poeta confessava sua
angústia por sentir-se doente, e sua resistência a se casar com quem teria de
ser mais uma enfermeira que uma esposa. A segunda carta era admirável, a
paixão cedia terreno a uma consciência de uma pureza quase insuportável,
como se Romero lutasse para despertar em sua amante uma lucidez análoga
que tornasse menos penoso o rompimento necessário. Uma frase resumia
tudo: “Ninguém tem por que saber da nossa vida, e eu lhe ofereço a
liberdade com o silêncio. Livre, você será minha ainda mais, por toda a
eternidade. Se nos casássemos, eu me sentiria seu carrasco toda vez que
você entrasse no meu quarto com uma flor na mão”. E acrescentava,
duramente: “Não quero tossir na sua cara, não quero que você enxugue meu
suor. Você conheceu outro corpo, eu lhe dei outras rosas. Preciso da noite só
para mim, não deixarei que você me veja chorar”. A terceira carta era mais
serena, como se Susana tivesse começado a aceitar o sacrifício do poeta.
Dizia, em algum lugar: “Você insiste em dizer que eu a magnetizo, que a
obrigo a fazer minha vontade… Mas minha vontade é seu futuro, deixe que
eu semeie estas sementes que irão me consolar de uma morte estúpida”.
Na cronologia estabelecida por Fraga, a vida de Claudio Romero entrava,
a partir desse momento, numa fase monótona, de reclusão quase contínua
na casa de seus pais. Nenhum outro testemunho permitia supor que o poeta
e Susana Márquez tivessem se encontrado novamente, embora tampouco se
pudesse afirmar o contrário; no entanto, a melhor prova de que a renúncia
de Romero se consumara, e de que no fim Susana deve ter preferido a
liberdade a se condenar junto com o doente, foi a ascensão do novo e
resplandecente planeta no céu da poesia de Romero. Um ano depois dessa
correspondência e dessa renúncia, uma revista de Buenos Aires publicava a
“Ode a seu nome duplo” dedicada a Irene Paz. A saúde de Romero parecia
ter se restabelecido e o poema, que ele mesmo lera em alguns salões, de
repente lhe trouxe a glória que sua obra anterior preparara quase em
segredo. Como Byron, pôde dizer que certa manhã acordou para se
descobrir famoso, e não deixou de dizê-lo. Porém, ao contrário do que se
podia esperar, a paixão do poeta por Irene Paz não foi correspondida, e a
julgar por uma série de episódios mundanos contraditoriamente narrados ou
julgados pelos espirituosos da época, o prestígio pessoal do poeta decaiu
bruscamente, obrigando-o a se retrair outra vez na casa dos pais, afastado
de amigos e admiradores. Seu último livro de poemas datava dessa época.
Uma hemoptise brutal o surpreendeu em plena rua poucos meses depois, e
três semanas mais tarde Romero estava morto. Seu enterro reuniu um grupo
de escritores, mas pelo tom das orações fúnebres e das crônicas era evidente
que o mundo ao qual Irene Paz pertencia não esteve presente nem rendeu a
homenagem que caberia esperar nessas circunstâncias.
Não era difícil para Fraga compreender que a paixão de Romero por Irene
Paz deve ter agradado e escandalizado, na mesma medida, o mundo
aristocrático platense e portenho. Não conseguira ter uma ideia clara de
Irene; de sua beleza davam notícia as fotos de seus vinte anos, mas o resto
não passava de meras notas em colunas sociais. Herdeira fiel das tradições
dos Paz, era possível imaginar sua atitude em relação a Romero; deve tê-lo
encontrado em algum sarau que os seus ofereciam de tempos em tempos
para ouvir os que eram chamados, marcando as aspas com a voz, de
“artistas” e “poetas” do momento. Se a “Ode” a agradou, se a admirável
invocação inicial lhe mostrou, feito um relâmpago, a verdade de uma
paixão que a reivindicava a despeito de todos os obstáculos, talvez só
Romero pôde saber, e mesmo isso não era certo. Àquela altura, porém,
Fraga entendia que o problema não era mais esse, e que tinha perdido toda
importância. Claudio Romero era lúcido demais para imaginar, por um
instante que fosse, que sua paixão seria correspondida. A distância, as
barreiras de todo tipo, a inacessibilidade total de Irene, sequestrada na dupla
prisão da família e de si mesma, espelho fiel da casta, tornavam-na, desde o
início, inatingível. O tom da “Ode” era inequívoco e ia muito além das
corriqueiras imagens da poesia amorosa. Romero chamava a si mesmo de
“Ícaro de teus pés de mel” — imagem que lhe valera as caçoadas de um
aristarco da Caras y Caretas —, e o poema não era mais que um salto
supremo em busca do ideal impossível e por isso mais belo, a elevação
através dos versos num voo desesperado em direção ao sol que ia queimá-lo
e precipitá-lo na morte. Até mesmo a reclusão e o silêncio final do poeta se
assemelhavam, de forma pungente, às fases de uma queda, de um retorno
lamentável à terra que ousara abandonar por um sonho superior a suas
forças.
“Sim”, pensou Fraga, servindo-se de outra taça de vinho, “tudo coincide,
tudo se encaixa; agora só falta escrever.”
De manhã viu o fichário aberto, os papéis, e lhe foram mais alheios que as
sensações da noite. Lá embaixo, Ofelia estava ocupada telefonando para a
estação a fim de averiguar a conexão de trens. Ele chegou a Pilar por volta
das onze e meia, e foi direto para a quitanda. A filha de Susana o recebeu
com um curioso ar de ressentimento e adulação simultâneos, como o de um
cachorro depois de um pontapé. Fraga pediu que lhe desse cinco minutos, e
entrou de novo na sala empoeirada para sentar-se na mesma cadeira com
estofado branco. Não precisou falar muito porque a filha de Susana, depois
de enxugar algumas lágrimas, começou a aquiescer com a cabeça baixa,
inclinando-se cada vez mais para a frente.
— Sim, senhor, isso mesmo. Sim, senhor.
— Por que não me disse da primeira vez?
Era difícil explicar por que não lhe dissera da primeira vez. Sua mãe a
fizera jurar que nunca contaria certas coisas, e como depois ela se casou
com o suboficial de Balcarce, daí… Chegou a pensar em lhe escrever
quando começaram a falar tanto do livro sobre Romero, porque…
Olhava para ele perplexa, e de quando em quando uma lágrima escorria
até sua boca.
— E como o senhor soube? — disse depois.
— Não se preocupe com isso — disse Fraga. — Um dia, tudo se sabe.
— Mas o senhor escreveu tão diferente no livro. Eu li, sabe. Tenho ele e
tudo.
— A culpa de ele ser tão diferente é sua. Há outras cartas de Romero para
sua mãe. Você me entregou as que lhe convinham, as que mostravam um
Romero melhor e, de quebra, sua mãe. Preciso das outras, já. Me dê.
— É só uma — disse Raquel Márquez. — Mas a mamãe me fez jurar,
senhor.
— Se a guardou sem queimá-la é porque isso não lhe importava tanto. Me
dê. Eu a compro.
— Não é por isso que não a dou, sr. Fraga…
— Tome — disse Fraga, com grosseria. — Não vai ser vendendo
abóboras que você vai conseguir essa quantia.
Enquanto a via se inclinar sobre o armarinho de música, revirando os
papéis, pensou que o que sabia agora já sabia antes (de outra forma, talvez,
mas já sabia) no dia de sua primeira visita a Raquel Márquez. A verdade
não o pegava completamente de surpresa, e agora podia se julgar em
retrospecto e se perguntar, por exemplo, por que abreviara de tal maneira
sua primeira entrevista com a filha de Susana, por que aceitara as três cartas
de Romero como se fossem as únicas, sem insistir, sem oferecer nada em
troca, sem ir até o fundo do que Raquel sabia e calava. “É um absurdo”,
pensou. “Naquele momento eu não podia saber que Susana chegou a virar
prostituta por causa de Romero.” Mas então por que tinha abreviado
deliberadamente sua conversa com Raquel, dando-se por satisfeito com as
fotos e as três cartas? “Ah, é, eu sabia disso, não sei como, mas eu sabia, e
escrevi o livro sabendo disso, e talvez os leitores também saibam, e a crítica
saiba, e tudo isso seja uma imensa mentira na qual estamos inteiramente
metidos…” Mas era fácil vir com generalizações, aceitar apenas uma
parcela de culpa. Mentira, também: só havia um culpado, ele.
A leitura da carta foi uma mera sobreimpressão de palavras em algo que
Fraga já conhecia de outro ângulo e que a prova epistolar só podia reforçar
em caso de polêmica. Caída a máscara, um Claudio Romero quase feroz
aparecia nessas frases categóricas, de uma lógica irretorquível.
Condenando, de fato, Susana ao trabalho sujo que ela carregaria em seus
últimos anos, e ao qual se aludia explicitamente em duas passagens,
impunha-lhe para sempre o silêncio, a distância e o ódio, empurrava-a com
sarcasmos e ameaças para uma escarpa que ele mesmo deve ter preparado
em dois anos de lenta, minuciosa corrupção. O homem que se deleitara em
escrever, algumas semanas antes: “Preciso da noite só para mim, não
deixarei você me ver chorar”, agora arrematava um parágrafo com uma
alusão torpe cujo efeito devia prever malignamente, e acrescentava
recomendações e conselhos irônicos, ligeiras despedidas interrompidas por
ameaças explícitas caso Susana pretendesse vê-lo outra vez. Agora nada
mais disso surpreendia Fraga, mas ele ficou um bom tempo encostado na
janela do trem, com a carta na mão, como se alguma coisa dentro dele
lutasse para acordar de um pesadelo insuportavelmente lento. “E isso
explica o resto”, ouviu-se pensar. O resto era Irene Paz, a “Ode a seu nome
duplo”, o fracasso final de Claudio Romero. Sem provas nem motivos, mas
com uma certeza muito mais profunda do que a que podia emanar de uma
carta ou de um testemunho qualquer, os dois últimos anos da vida de
Romero se organizavam dia a dia na memória — para chamá-la de algum
nome — de quem, aos olhos dos passageiros do trem de Pilar, devia ser um
senhor que bebera um vermute a mais. Quando desceu na estação eram
quatro da tarde e começava a chover. A charrete que o levava para a chácara
estava fria e com cheiro de couro rançoso. Quanta sensatez habitara sob a
fronte altiva de Irene Paz, de que longa experiência aristocrática nascera a
recusa de seu mundo. Romero fora capaz de magnetizar uma pobre mulher,
mas não tinha as asas de Ícaro que seu poema pretendia. Irene, ou nem ela,
sua mãe ou seus irmãos tinham adivinhado no mesmo instante o intento do
arrivista, o salto grotesco do rastaquera que começa por negar sua origem,
matando-a se preciso (e esse crime se chamava Susana Márquez, uma
professora normalista). Para eles teria bastado um sorriso, recusar um
convite, ir até a fazenda, as armas afiadas do dinheiro e os criados
subservientes. Não se incomodaram sequer em comparecer ao enterro do
poeta.
Ofelia esperava na varanda. Fraga lhe disse que tinha de começar a
trabalhar. Quando se viu diante da página iniciada na noite anterior, com um
cigarro na boca e um cansaço enorme que abatia seus ombros, disse para si
que ninguém sabia de nada. Era como antes de escrever Vida, e ele
continuava sendo dono das chaves. Ele sorriu, apenas, e começou a escrever
sua conferência. Bem mais tarde percebeu que em algum momento da
viagem ele perdera a carta de Romero.
A
gora, enquanto escrevo isso, que para os outros poderia ser um
jogo de roleta ou uma corrida de cavalos, só que eu não estava
atrás de dinheiro, a certa altura comecei a sentir, a decidir que um
vidro de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro
com alguma felicidade, justamente aqui onde tudo acontece sob o signo da
mais implacável ruptura, no interior de um tempo subterrâneo que o trajeto
entre uma estação e outra desenha e delimita, assim, irremediavelmente lá
embaixo. Digo ruptura para entender melhor (teria de entender tantas coisas
desde que comecei a jogar esse jogo) essa esperança de uma convergência
que, talvez, me seria dada pelo reflexo de um vidro da janela. Ultrapassar a
ruptura que ninguém parece perceber, ainda que vá saber o que se passa na
cabeça dessa gente afobada que sobe e desce dos vagões do metrô, vá saber
o que procura, além do transporte, essa gente que sobe antes ou depois para
descer depois ou antes, que só se encontra no espaço do vagão onde tudo
está decidido de antemão, sem que ninguém possa saber se vamos sair
juntos, se eu vou descer antes daquele homem magro com um rolo de
papéis, se a velha de verde vai continuar até o final, se aquelas crianças vão
descer agora, é claro que vão descer porque já estão juntando seus cadernos
e réguas, se aproximam da porta rindo e brincando, enquanto lá no canto há
uma garota que se instala para permanecer, para ficar ainda muitas estações
no assento finalmente livre, e aquela outra garota é imprevisível, Ana era
imprevisível, mantinha-se bem reta no encosto do assento da janela, já
estava lá quando subi na estação Étienne Marcel e um negro deixou o
assento da frente e ninguém pareceu se interessar por ele e eu consegui,
com uma vaga desculpa, me esgueirar entre os joelhos dos dois passageiros
sentados nos assentos exteriores e fiquei diante de Ana, e quase de
imediato, porque tinha descido ao metrô para jogar mais uma vez o jogo,
procurei o perfil de Margrit no reflexo do vidro da janela e pensei que era
bonita, que eu gostava de seu cabelo preto com uma espécie de asa breve
penteada em diagonal à testa.
Não é verdade que o nome de Margrit ou o de Ana tenha me ocorrido
depois ou que isso seja agora uma forma de diferenciá-las na escrita, essas
coisas eram decididas instantaneamente pelo jogo, quer dizer, de maneira
nenhuma o reflexo no vidro da janela podia se chamar Ana, assim como
também não podia se chamar Margrit a garota sentada à minha frente sem
me olhar, com os olhos perdidos no tédio desse intervalo em que todo
mundo parece consultar um campo de visão que não é o circundante, com
exceção das crianças, que olham fixo e direto para as coisas até o dia que
lhes ensinam a se situar também nos interstícios, a olhar sem ver, com essa
ignorância civil de toda presença vizinha, todo contato sensível, cada um
instalado em sua bolha, alinhado entre parênteses, cuidando de manter o
mínimo ar livre entre joelhos e cotovelos alheios, refugiando-se no France-
Soir ou em livros de bolso, ainda que quase sempre como Ana, uns olhos se
situando no vazio entre o verdadeiramente observável, naquela distância
neutra e estúpida que ia de meu rosto até o do homem concentrado no
Figaro. Mas aí Margrit, e se tinha uma coisa que eu podia prever era que
Margrit em algum momento iria se virar, distraída, para a janela, e aí
Margrit iria ver meu reflexo, o cruzamento de olhares nas imagens daquele
vidro em que a escuridão do túnel põe seu azougue atenuado, sua pelúcia
roxa e movediça que dá aos rostos uma vida em outros planos, retira deles a
horrível máscara de giz das luzes municipais do vagão, e sobretudo, ah,
Margrit, sim, você não poderia negar, faz com que realmente olhem para
aquele outro rosto do vidro, porque durante o tempo instantâneo do olhar
duplo não há censura, meu reflexo no vidro não era o homem sentado
diante de Ana e que Ana não deveria olhar diretamente num vagão de
metrô, além disso quem estava olhando meu reflexo não era mais Ana, era
Margrit no momento em que Ana desviou rapidamente os olhos do homem
sentado diante dela porque não ficava bem que o olhasse, e ao se voltar para
o vidro da janela vira meu reflexo que esperava esse instante para sorrir de
leve, sem insolência nem esperança, quando o olhar de Margrit caísse como
um pássaro em seu olhar. Deve ter durado um segundo, talvez um pouco
mais, porque senti que Margrit havia notado esse sorriso que Ana
reprovava, se mais não fosse apenas pelo gesto de baixar a cabeça, de
examinar vagamente o fecho de sua bolsa de couro vermelho; e era quase
justo continuar sorrindo, ainda que Margrit já não olhasse para mim, porque
de alguma forma o gesto de Ana acusava meu sorriso, continuava a
percebê-lo sem que fosse preciso que ela ou Margrit me olhassem,
aplicadamente concentradas na meticulosa tarefa de conferir o fecho da
bolsa vermelha.
Como antes com Paula (com Ofelia) e com tantas outras que tinham se
concentrado na tarefa de verificar um fecho, um botão, o vinco de uma
revista, havia outra vez o poço onde a esperança se enredava com o medo
numa cãibra mortal de aranhas, onde o tempo começava a bater como um
segundo coração no pulso do jogo; desse momento em diante cada estação
do metrô era uma trama diferente do futuro, porque o jogo assim o decidira;
o olhar de Margrit e meu sorriso, o recuo instantâneo de Ana para
contemplar o fecho da bolsa eram a abertura de uma cerimônia que um belo
dia, contrário a qualquer razão, eu começara a celebrar, preferindo os piores
desencontros aos elos estúpidos de uma causalidade cotidiana. Explicá-lo
não é difícil, mas jogá-lo tem muito de combate às cegas, de trêmula
suspensão coloidal onde cada itinerário levantava uma árvore de percursos
imprevisíveis. Um mapa do metrô de Paris define, com seu esqueleto
mondrianesco, seus galhos vermelhos, amarelos, azuis e pretos, uma vasta
porém limitada superfície de subtendidos pseudópodes; e essa árvore está
viva vinte horas em cada vinte e quatro, uma seiva atormentada a percorre
com finalidades precisas, a que desce em Châtelet ou sobe em Vaugirard, a
que muda em Odéon para seguir até La Motte-Picquet, as duzentas,
trezentas, sabe-se lá quantas possibilidades de conexão para que cada célula
codificada e programada ingresse num setor da árvore e aflore em outro,
saia das Galeries Lafayette para entregar um pacote de toalhas ou uma
lâmpada num terceiro andar da Rue Gay-Lussac.
Minha regra do jogo era maniacamente simples, era bela, estúpida e
tirânica, se eu gostasse de uma mulher, se eu gostasse de uma mulher
sentada diante de mim, se eu gostasse de uma mulher sentada diante de
mim junto à janela, se seu reflexo na janela cruzasse o olhar com meu
reflexo da janela, se meu sorriso no reflexo da janela turvasse ou afagasse
ou repelisse o reflexo da mulher na janela, se Margrit me visse sorrir e
então Ana baixasse a cabeça e começasse a examinar aplicadamente o fecho
de sua bolsa vermelha, aí havia jogo, dava exatamente na mesma que o
sorriso fosse acatado ou respondido ou ignorado, o primeiro tempo da
cerimônia não ia além disso, um sorriso registrado por quem o havia
merecido. Então começava o combate no poço, as aranhas no estômago, a
espera com seu pêndulo de estação em estação. Lembro-me de como me
lembrei desse dia: agora eram Margrit e Ana, mas uma semana antes tinham
sido Paula e Ofelia, a moça loira tinha descido numa das piores estações,
Montparnasse-Bienvenue, que abre sua hidra malcheirosa às máximas
possibilidades de fracasso. Minha conexão era com a linha da Porte de
Vanves e quase no ato, no primeiro corredor, compreendi que Paula (que
Ofelia) pegaria o corredor que levava à conexão com a Mairie d’Issy.
Impossível fazer qualquer coisa, só olhá-la pela última vez no cruzamento
dos corredores, vê-la se afastar, descer uma escada. A regra do jogo era
essa, um sorriso no vidro da janela e o direito de seguir uma mulher e
esperar desesperadamente que sua conexão coincidisse com a decidida por
mim antes de cada viagem; e então — sempre, até agora — vê-la pegar
outro corredor e não poder segui-la, obrigado a voltar para o mundo lá de
cima e entrar num café e continuar vivendo até que, pouco a pouco, horas
ou dias ou semanas, outra vez a sede invocando a possibilidade de que um
dia tudo coincidisse, mulher e vidro de janela, sorriso aceito ou rejeitado,
conexão de trens e aí, finalmente, sim, aí o direito de me aproximar e dizer
a primeira palavra, densa de tempo estagnado, de interminável ronda no
fundo do poço entre as aranhas da cãibra.
Entrávamos agora na estação Saint-Sulpice, alguém a meu lado se
levantava e saía, Ana também ficava sozinha diante de mim, tinha parado
de olhar para a bolsa e uma ou duas vezes seus olhos me varreram
distraidamente antes de se perderem no anúncio das águas termais que se
repetia nos quatro cantos do vagão. Margrit não me olhara de novo na
janela, mas isso provava o contato, sua pulsação silenciosa; talvez Ana
fosse tímida ou simplesmente achasse absurdo aceitar o reflexo daquele
rosto que voltaria a sorrir para Margrit; além do mais, chegar a Saint-
Sulpice era importante, pois se ainda faltavam oito estações até o final do
trajeto na Porte d’Orléans, só três tinham conexões com outras linhas, e só
se Ana descesse numa dessas três eu ainda teria a possibilidade de coincidir
com ela; quando o trem começava a frear em Saint-Placide, olhei e olhei
para Margrit procurando os olhos que Ana continuava pousando
suavemente nas coisas do vagão, como se admitisse que Margrit não me
olharia mais, que era inútil esperar que voltasse a olhar para o reflexo que a
esperava para lhe sorrir.
Ela não desceu em Saint-Placide, eu soube disso antes que o trem
começasse a frear, o passageiro tem seus preparativos, sobretudo as
mulheres, que nervosamente verificam embrulhos, fecham o casaco ou
olham de lado ao se levantar, evitando joelhos naquele instante em que a
perda de velocidade trava e estonteia os corpos. Ana repassava vagamente
os anúncios da estação, o rosto de Margrit foi se apagando sob as luzes da
plataforma e não consegui saber se ela tinha voltado a me olhar; meu
reflexo tampouco teria sido visível naquela maré de neon e anúncios
fotográficos, de corpos entrando e saindo. Se Ana descesse em
Montparnasse-Bienvenue minhas possibilidades seriam mínimas; como não
me lembrar de Paula (de Ofelia) lá onde uma quádrupla conexão possível
debilitava qualquer previsão; e no entanto, no dia de Paula (de Ofelia) eu
estivera absurdamente certo de que iríamos coincidir, até o último momento
tinha andado a três metros daquela mulher lenta e loira, que parecia vestida
com folhas secas, e sua bifurcação à direita envolvera meu rosto como uma
chicotada. Por isso agora Margrit não, por isso o medo, de novo podia
ocorrer, abominavelmente, em Montparnasse-Bienvenue; a lembrança de
Paula (de Ofelia), as aranhas no poço contra a miúda confiança de que Ana
(de que Margrit)… Mas quem pode com essa ingenuidade que vai nos
deixando viver?, e quase de imediato me disse que talvez Ana (que talvez
Margrit) não descesse em Montparnasse-Bienvenue, mas talvez numa das
outras estações possíveis, que talvez não descesse nas intermediárias, onde
eu não poderia segui-la; que Ana (que Margrit) não desceria em
Montparnasse-Bienvenue (não desceu), que não desceria em Vavin, e não
desceu, que talvez descesse em Raspail, que era a primeira das duas últimas
possíveis; e quando não desceu e soube que só restava uma estação na qual
poderia segui-la, contra as três finais em que tudo dava na mesma, procurei
de novo os olhos de Margrit no vidro da janela, chamei-a, do fundo de um
silêncio e de uma imobilidade que talvez lhe chegassem como um apelo,
como um marulho, sorri com o sorriso que Ana não podia mais ignorar, que
Margrit tinha de admitir embora não olhasse meu reflexo fustigado pelas
meias-luzes do túnel ao desembocar em Denfert-Rochereau. Talvez o
primeiro tranco dos freios tenha estremecido a bolsa vermelha sobre as
coxas de Ana, talvez só o tédio a levasse a mover a mão até a mecha de
cabelo preto que lhe cruzava a testa; naqueles três, quatro segundos em que
o trem ficava parado na plataforma, as aranhas cravaram suas unhas na pele
do poço para mais uma vez me vencerem, de dentro; quando Ana se
levantou com uma única e limpa flexão de corpo, quando a vi de costas
entre dois passageiros, acho que ainda procurei, insensatamente, o rosto de
Margrit no ofuscante vidro de luzes e movimentos. Saí meio que sem
querer, sombra passiva daquele corpo que descia na plataforma, até
despertar para o que estava por vir, para a dupla escolha final se cumprindo
irrevogavelmente.
Acho que está claro, Ana (Margrit) ia pegar um caminho cotidiano ou
circunstancial, ao passo que eu, antes de subir naquele trem, já tinha
decidido que se alguém entrasse no jogo e descesse em Denfert-Rochereau,
minha conexão seria a linha Nation-Étoile, da mesma forma que se Ana
(que se Margrit) tivesse descido em Châtelet, eu só teria podido segui-la
caso pegasse a conexão Vincennes-Neuilly. No último tempo da cerimônia
o jogo estaria perdido se Ana (se Margrit) tomasse a conexão da Ligne de
Sceaux ou fosse direto para a rua; imediatamente, mesmo porque naquela
estação não havia os intermináveis corredores de outras vezes e as escadas
levavam rapidamente ao destino, a isso que nos meios de transporte
também se chamava de destino. Eu a via mover-se entre as pessoas, sua
bolsa vermelha como um pêndulo de brinquedo, levantando a cabeça em
busca dos letreiros indicadores, hesitando um instante até se orientar para a
esquerda; mas a esquerda era a saída que levava à rua.
Não sei como dizer, as aranhas mordiam demais, num primeiro momento
eu não fui desonesto, simplesmente a segui para depois, talvez, aceitar,
deixar que ela tomasse um dos rumos possíveis lá em cima; no meio da
escada compreendi que não, que talvez a única maneira de matá-las fosse
negar por uma vez a lei, o código. A cãibra que me crispara naquele
segundo em que Ana (em que Margrit) começava a subir a escada proibida
de repente dava lugar a uma lassidão sonolenta, a um golem de lentos
degraus; recusei-me a pensar, bastava saber que continuava a vê-la, que a
bolsa vermelha subia para a rua, que a cada passo o cabelo preto estremecia
em seus ombros. Já era noite e o ar estava gelado, com alguns flocos de
neve entre rajadas e chuvisqueiros; sei que Ana (que Margrit) não teve
medo quando me postei a seu lado e falei: “Não é possível que nos
separemos assim, antes mesmo de termos nos encontrado”.
No café, mais tarde, agora só Ana, enquanto o reflexo de Margrit dava
lugar a uma realidade de cinzano e de palavras, ela me disse que não estava
entendendo nada, que se chamava Marie-Claude, que meu sorriso no
reflexo a incomodara, que por um momento tinha pensado em se levantar e
mudar de lugar, que não me vira segui-la e que na rua não sentira medo,
contraditoriamente, me olhando nos olhos, bebendo seu cinzano, sorrindo
sem se envergonhar de sorrir, de ter aceitado quase de imediato minha
abordagem em plena rua. Naquele momento, de uma felicidade como
quando a gente boia sobre as ondas ou se abandona a um deslizar cheio de
álamos, não podia lhe dizer o que ela teria entendido como loucura ou
mania, o que de fato era, mas de outro modo, de outras margens da vida;
falei da mecha de seu cabelo, de sua bolsa vermelha, de seu jeito de olhar o
anúncio das termas, que eu não tinha sorrido para ela nem por dom-
juanismo nem por tédio mas sim para lhe dar uma flor que eu não possuía,
um sinal de que gostava dela, de que me fazia bem, de que viajar diante
dela, de que mais um cigarro e outro cinzano. Em nenhum momento fomos
enfáticos, conversamos como de algo já conhecido e aceito, olhando-nos
sem nos machucar, acho que Marie-Claude me deixava vir e estar em seu
presente talvez como Margrit tivesse respondido a meu sorriso no vidro se
não houvesse de permeio tanta norma prévia, tanto não deve responder se
falarem com você na rua ou se lhe oferecerem balas e quiserem levá-la ao
cinema, até que Marie-Claude, já liberta de meu sorriso para Margrit,
Marie-Claude na rua e no café pensou que era um sorriso bom, que o
desconhecido lá de baixo não tinha sorrido para Margrit a fim de sondar
outro terreno, e que minha maneira absurda de abordá-la tinha sido a única
compreensível, a única razão para dizer que sim, que podíamos tomar um
drinque e conversar num café.
Não lembro o que pude lhe contar de mim, talvez tudo fora o jogo, mas aí,
tão pouco, em algum momento rimos, alguém fez a primeira piada,
descobrimos que gostávamos do mesmo cigarro e de Catherine Deneuve,
ela deixou que a acompanhasse até a porta de sua casa, me estendeu a mão
com naturalidade e concordou com o mesmo café na mesma hora de terça-
feira. Peguei um táxi para voltar ao meu bairro, pela primeira vez em mim
mesmo como num incrível país estrangeiro, repetindo que sim, que Marie-
Claude, que Denfert-Rochereau, apertando as pálpebras para guardar
melhor seu cabelo preto, aquele jeito de inclinar a cabeça antes de falar, de
sorrir. Fomos pontuais e falamos sobre filmes, sobre trabalho, verificamos
diferenças ideológicas parciais, ela continuava me aceitando como se
maravilhosamente lhe bastasse aquele presente sem razões, sem
interrogação; não parecia nem mesmo perceber que qualquer imbecil a teria
considerado fácil ou boba; acatando até que eu não tentasse compartilhar o
mesmo banco no café, que no trecho da Rue Froidevaux não passasse o
braço por seu ombro no primeiro gesto de intimidade, que, sabendo que ela
era quase sozinha — uma irmã mais moça, muitas vezes ausente do
apartamento no quarto andar —, não lhe pedisse para subir. Se havia algo
que não podia imaginar eram as aranhas, tínhamos nos encontrado três ou
quatro vezes sem que elas mordessem, imóveis no poço e esperando até o
dia em que eu soube, como se não soubesse o tempo todo, mas terça-feira,
chegar ao café, imaginar que Marie-Claude já estaria lá ou vê-la entrar com
seus passos ágeis, sua morena recorrência que lutara inocentemente contra
as aranhas outra vez despertas, contra a transgressão do jogo que só ela
tinha podido defender apenas me estendendo uma breve, calorosa mão,
apenas com aquela mecha de cabelo que passeava por sua testa. Em algum
momento ela deve ter percebido, ficou me olhando calada, esperando; já me
era impossível não delatar o esforço para fazer durar a trégua, para não
admitir que voltavam pouco a pouco, apesar de Marie-Claude, contra
Marie-Claude, que não podia entender, que ficava me olhando calada,
esperando; beber e fumar e falar com ela, defendendo até o fim o doce
interregno sem aranhas, saber de sua vida simples e com horários e irmã
estudante e alergias, desejar tanto aquela mecha negra que penteava sua
testa, desejá-la como um término, como realmente a última estação do
último metrô da vida, e então o poço, a distância de minha cadeira até
aquele banco em que teríamos nos beijado, em que minha boca teria bebido
o primeiro perfume de Marie-Claude antes de levá-la abraçada até sua casa,
subir aquela escada e nos despir, por fim, de tanta roupa e tanta espera.
Então eu lhe disse, recordo o paredão do cemitério e que Marie-Claude se
apoiou nele e me deixou falar com o rosto perdido no musgo quente de seu
casaco, não sei se minha voz chegou a ela com todas as suas palavras, se ela
conseguiu entender; eu lhe disse tudo, cada detalhe do jogo, as
improbabilidades confirmadas desde tantas Paulas (desde tantas Ofelias)
perdidas no final de um corredor, as aranhas em cada final. Chorava, eu a
sentia tremer junto a mim, embora continuasse me abrigando, sustentando-
me com todo o seu corpo apoiado na parede dos mortos; não me perguntou
nada, não quis saber por que nem desde quando, não lhe ocorreu lutar
contra uma máquina montada por toda uma vida a contrapelo de si mesma,
da cidade e de seus códigos, apenas aquele choro ali como um animalzinho
ferido, resistindo sem forças ao triunfo do jogo, à dança exasperada das
aranhas no poço.
Na porta de sua casa eu lhe disse que nem tudo estava perdido, que
dependia de nós dois tentarmos um encontro legítimo; agora ela conhecia as
regras do jogo, talvez nos fossem favoráveis, já que não faríamos outra
coisa além de procurar um ao outro. Ela falou que poderia pedir quinze dias
de licença, viajar levando um livro para que o tempo fosse menos úmido e
hostil no mundo de baixo, passar de uma conexão a outra, me esperar lendo,
olhando os anúncios. Não quisemos pensar na improbabilidade, em que
talvez nos encontrássemos num trem mas que isso não bastava, pois dessa
vez não se poderia faltar ao preestabelecido; pedi a ela que não pensasse,
que deixasse correr o metrô, que jamais chorasse nessas duas semanas em
que eu a procurava; sem palavras, combinamos que se o prazo se encerrasse
sem que voltássemos a nos ver ou só nos vendo até que dois corredores
diferentes nos afastassem, já não teria sentido voltar ao café, à porta de sua
casa. Ao pé daquela escada de bairro que uma luz alaranjada estendia
docemente para o alto, para a imagem de Marie-Claude em seu
apartamento, entre seus móveis, nua e adormecida, beijei seus cabelos,
acariciei suas mãos; ela não buscou minha boca, foi se afastando e a vi de
costas, subindo outra das tantas escadas que a levavam sem que eu pudesse
segui-la; voltei a pé para casa, sem aranhas, vazio e lavado para a nova
espera; agora não podiam me fazer nada, o jogo ia recomeçar como tantas
outras vezes, mas somente com Marie-Claude, segunda-feira descendo na
estação Couronnes pela manhã, saindo na Max Dormoy em plena noite, na
terça-feira entrando na Crimée, na quarta na Philippe Auguste, a exata regra
do jogo, quinze estações nas quais quatro tinham conexões, e então na
primeira das quatro, sabendo que eu teria de seguir para a linha Sèvres-
Montreuil, como na segunda teria de pegar a conexão Clichy-Porte
Dauphine, cada itinerário escolhido sem nenhuma razão especial, pois não
podia haver nenhuma razão, Marie-Claude talvez tivesse subido perto de
sua casa, na Denfert-Rochereau ou na Corvisart, talvez estivesse mudando
na Pasteur para seguir até a Falguière, a árvore mondrianesca com todos os
seus galhos secos, o acaso das tentações vermelhas, azuis, brancas,
pontilhadas; a quinta, a sexta, o sábado. De qualquer plataforma, ver os
trens entrarem, os sete ou oito vagões, permitindo-me olhar enquanto
passavam cada vez mais lentos, correr até o final e subir num vagão sem
Marie-Claude, descer na estação seguinte e esperar outro trem, seguir até a
primeira estação para buscar outra linha, ver os vagões chegarem sem
Marie-Claude, deixar passar um trem ou dois, subir no terceiro, seguir até o
terminal, voltar a uma estação onde podia passar para outra linha, decidir
que só pegaria o quarto trem, deixar a busca de lado e subir para comer,
voltar pouco depois com um cigarro amargo e me sentar num banco até o
segundo, até o quinto trem. A segunda, a terça, a quarta, a quinta, sem
aranhas porque ainda estava esperando, porque ainda espero neste banco da
estação Chemin Vert, com esta caderneta na qual a mão escreve para
inventar um tempo que não seja apenas essa rajada interminável que me
lança para o sábado em que talvez tudo já tenha terminado, em que voltarei
sozinho e sentirei que elas acordam e mordem, suas pinças raivosas me
exigindo um novo jogo, outras Marie-Claudes, outras Paulas, a reiteração
depois de cada fracasso, o recomeço canceroso. Mas é quinta-feira, é a
estação Chemin Vert, lá fora a noite cai, ainda dá para imaginar qualquer
coisa, pode até não parecer tão inacreditável que no segundo trem, que no
quarto vagão, que Marie-Claude num assento do lado da janela, que ela
tenha me visto e se levante com um grito que ninguém a não ser eu pôde
ouvir, assim em plena cara, em plena corrida para pular no vagão lotado,
empurrando os passageiros indignados, sussurrando desculpas que ninguém
espera nem aceita, ficando de pé contra o duplo assento ocupado por pernas
e guarda-chuvas e pacotes, por Marie-Claude com seu casaco cinza contra a
janela, a mecha preta que o arranque brusco do trem agita de leve como
suas mãos trêmulas sobre as coxas num apelo que não tem nome, que é só
isso que vai acontecer agora. Não há necessidade de falar, não se poderia
dizer nada sobre esse muro impassível e desconfiado de rostos e guarda-
chuvas entre mim e Marie-Claude; restam três estações que fazem conexão
com outras linhas, Marie-Claude deverá escolher uma delas, percorrer a
plataforma, seguir por um dos corredores ou procurar a escada de saída,
indiferente a minha escolha, que desta vez não transgredirei. O trem entra
na estação Bastille e Marie-Claude continua lá, as pessoas descem e sobem,
alguém deixa livre o assento a seu lado, mas não me aproximo, não posso
me sentar ali, não posso tremer junto dela como ela deve estar tremendo.
Agora vêm a Ledru-Rollin e a Froidherbe-Chaligny, nessas estações sem
conexão Marie-Claude sabe que não posso segui-la e não se move, o jogo
tem de ser jogado na Reuilly-Diderot ou na Daumesnil; enquanto o trem
entra na Reuilly-Diderot afasto os olhos, não quero que saiba, não quero
que possa entender que não é ali. Quando o trem arranca vejo que ela não se
moveu, que nos resta uma última esperança, em Daumesnil há apenas uma
conexão e a saída para a rua, vermelho ou preto, sim ou não. Então nos
olhamos, Marie-Claude ergueu o rosto para me olhar diretamente, agarrado
à barra do assento sou aquilo que ela olha, algo tão pálido como o que estou
olhando, o rosto sem sangue de Marie-Claude, que aperta a bolsa vermelha,
que vai fazer o primeiro gesto para se levantar enquanto o trem entra na
estação Daumesnil.
Verão
A
o entardecer, Florencio desceu com a menina até a cabana,
seguindo o caminho cheio de buracos e pedras soltas que só
Mariano e Zulma se animavam a atravessar com o jipe. Zulma
abriu a porta para eles, e Florencio achou que os olhos dela
pareciam os de alguém que tinha andado descascando cebolas. Mariano
veio do outro quarto, disse que entrassem, mas Florencio só queria pedir
que cuidassem da menina até a manhã seguinte, porque precisava ir até o
litoral resolver um assunto urgente, e na cidade não havia ninguém a quem
pedir esse favor. Claro, disse Zulma, pode deixar, vamos arrumar uma cama
para ela aqui embaixo. Entre e tome alguma coisa, insistiu Mariano, só
cinco minutos, mas Florencio tinha deixado o carro na praça da cidade e
precisava seguir viagem imediatamente; agradeceu, deu um beijo na
filhinha, que já descobrira a pilha de revistas na bancada; quando a porta se
fechou, Zulma e Mariano trocaram um olhar quase interrogativo, como se
tudo tivesse acontecido rápido demais. Mariano deu de ombros e voltou
para sua oficina, onde estava colando uma poltrona velha; Zulma perguntou
à menina se ela estava com fome, sugeriu que brincasse com as revistas, na
despensa havia uma bola e uma rede de caçar borboletas; a menina
agradeceu e começou a olhar as revistas; Zulma a observou por um
momento, enquanto preparava alcachofras para a noite, e achou que podia
deixá-la brincando sozinha.
Agora entardecia cedo no Sul, não lhes restava mais que um mês antes de
voltar para a capital, de entrar na outra vida do inverno que, no fim das
contas, era uma só sobrevivência, ficar juntos à distância, amavelmente
amigos, respeitando e executando as múltiplas triviais delicadas cerimônias
habituais do casal, como agora que Mariano precisava de uma das bocas do
fogão para aquecer a lata de cola e Zulma tirava do fogo a panela de batatas
dizendo que terminaria de cozinhá-las depois, e Mariano agradecia porque a
poltrona já estava quase pronta e era melhor aplicar a cola de uma vez só,
mas claro, pode aquecê-la. A menina folheava as revistas no fundo do
grande cômodo que servia de cozinha e copa, Mariano foi buscar umas
balas para ela na despensa; já era hora de ir para o jardim tomar um
drinque, olhando a noite cair sobre as colinas; nunca havia ninguém no
caminho, a primeira casa da cidade mal se delineava na parte mais alta;
diante deles o sopé da montanha continuava descendo até o fundo do vale já
em penumbras. Pode servir, eu já volto, disse Zulma. Tudo se cumpria
ciclicamente, cada coisa em sua hora e uma hora para cada coisa, com
exceção da menina, que de repente desajustava de leve o esquema; um
banquinho e um copo de leite para ela, uma carícia no cabelo e elogios por
se portar tão bem. Os cigarros, as andorinhas se aglomerando sobre a
cabana; tudo ia se repetindo, se encaixando, a poltrona logo estaria seca,
colada como esse novo dia que nada tinha de novo. As insignificantes
diferenças eram a menina, naquela tarde, e às vezes, ao meio-dia, o carteiro
que os tirava da solidão por um momento, com uma carta para Mariano ou
para Zulma, que o destinatário recebia e guardava sem dizer uma só
palavra. Mais um mês de repetições previsíveis, parecendo ensaiadas, e o
jipe carregado até o topo os levaria de volta ao apartamento da capital, à
vida que só era outra nas formas, o grupo de Zulma ou os amigos artistas de
Mariano, as tardes de lojas para ela e as noites nos cafés para Mariano, um
ir e vir separadamente, embora sempre se encontrassem para o
cumprimento das cerimônias conectoras, o beijo matinal e os programas
neutros em comum, como agora que Mariano oferecia outra bebida e Zulma
a aceitava, com os olhos perdidos nas colinas mais distantes, já tingidas de
um violeta profundo.
O que você gostaria de jantar, pequena? O que a senhora quiser. Talvez ela
não goste de alcachofra, disse Mariano. Gosto sim, disse a menina, com
azeite e vinagre mas com pouco sal, porque queima. Riram, fariam um
vinagrete especial para ela. E ovos quentes, que tal? Com colherinha, disse
a menina. E pouco sal, porque queima, brincou Mariano. O sal queima
demais, disse a menina, dou purê sem sal pra minha boneca, hoje eu não
trouxe ela porque o papai estava com pressa e não deixou. Vai ser uma linda
noite, pensou Zulma em voz alta, olhe como o ar está transparente lá ao
norte. É, não vai fazer muito calor, disse Mariano, levando as poltronas para
a sala de baixo, acendendo as luzes junto do janelão que dava para o vale.
Maquinalmente, ligou também o rádio, o Nixon vai viajar pra Pequim, o
que me diz disso?, disse Mariano. Não existe mais religião, disse Zulma, e
soltaram uma gargalhada ao mesmo tempo. A menina estava dedicada às
revistas e tinha marcado as páginas das tirinhas como se planejasse lê-las
duas vezes.
A noite chegou entre o inseticida com que Mariano pulverizava o quarto
de cima e o aroma de uma cebola que Zulma cortava, cantarolando um
ritmo pop do rádio. No meio do jantar, a menina começou a cochilar sobre
seu ovo quente; caçoaram dela, animaram-na a terminar; Mariano já tinha
preparado a cama com um colchão de ar no canto mais afastado da cozinha,
de forma a não incomodá-la caso ficassem mais um pouco na sala de baixo,
ouvindo discos ou lendo. A menina comeu seu pêssego e admitiu que estava
com sono. Vá se deitar, meu amor, disse Zulma, já sabe que se quiser fazer
xixi é só subir, vamos deixar a luz da escada acesa. A menina beijou-os no
rosto, já caindo de sono, mas antes de se deitar escolheu uma revista e a pôs
debaixo do travesseiro. São incríveis, disse Mariano, que mundo
inatingível, e pensar que já foi o nosso, o de todos. Talvez não seja tão
diferente, disse Zulma, tirando a mesa, você também tem suas manias, o
frasco de água-de-colônia à esquerda e a gilete à direita, e eu, bem, melhor
nem falar. Mas não eram manias, pensou Mariano, eram mais uma resposta
à morte e ao nada, fixar as coisas e os tempos, estabelecer ritos e passagens
contra a desordem cheia de buracos e de manchas. Só que já não dizia isso
em voz alta, cada vez mais parecia ter menos necessidade de falar com
Zulma, e Zulma tampouco dizia qualquer coisa que pedisse uma troca de
ideias. Leve a cafeteira, já deixei as xícaras na bancada da lareira. Veja se
ainda tem açúcar no açucareiro, há um pacote novo na despensa. Não estou
achando o saca-rolhas, essa garrafa de aguardente parece boa, não acha?
Sim, linda cor. Já que você vai subir, traga o cigarro que deixei na cômoda.
Essa garrafa de aguardente é boa mesmo. Mas que calor, né? É, está
abafado, melhor não abrir as janelas, senão vai encher de mariposas e
mosquitos.
Quando Zulma ouviu o primeiro barulho, Mariano estava procurando nas
pilhas de discos uma sonata de Beethoven que ainda não ouvira naquele
verão. Ficou com a mão no ar, olhou para Zulma. Parecia um barulho na
escada de pedra do jardim, mas ninguém vinha à cabana a essa hora, nunca
vinha ninguém de noite. Da cozinha, acendeu a lâmpada que iluminava a
parte mais próxima do jardim, não viu nada e a apagou. Um cachorro atrás
de alguma coisa pra comer, disse Zulma. Era um som estranho, como se
alguém bufasse, disse Mariano. Uma enorme mancha branca açoitou o
janelão, Zulma deu um grito abafado, Mariano, de costas, se virou tarde
demais, o vidro só refletia os quadros e os móveis da sala. Não teve tempo
de perguntar, o bufido ressoou perto da parede que dava para o norte, um
relincho sufocado como o grito de Zulma, que estava com as mãos na boca,
colada à parede do fundo, olhando fixo para o janelão. É um cavalo, disse
Mariano, incrédulo, soa como um cavalo, ouvi os cascos, está galopando no
jardim. As crinas, os beiços que pareciam estar sangrando, uma enorme
cabeça branca roçava o janelão, o cavalo mal olhou para eles, a mancha
branca se apagou à direita, ouviram os cascos mais uma vez, um silêncio
brusco do lado da escada de pedra, o relincho, a corrida. Mas não há
cavalos por aqui, disse Mariano, que sem perceber tinha agarrado a garrafa
de aguardente pelo gargalo, pondo-a de novo sobre a bancada. Ele quer
entrar, disse Zulma, colada à parede do fundo. Mas não, que bobagem, deve
ter fugido de alguma chácara do vale e veio até a luz. Estou dizendo que ele
quer entrar, está com raiva e quer entrar. Cavalos não têm raiva, que eu
saiba, disse Mariano, acho que ele já foi embora, vou olhar da janela lá de
cima. Não, não, fique aqui, ainda posso ouvi-lo, está na escada do terraço,
está pisoteando as plantas, vai voltar, e se ele quebra o vidro e entra? Não
seja boba, como ele ia quebrar o vidro?, disse, baixinho, Mariano, quem
sabe se apagarmos as luzes ele se mande. Não sei, não sei, disse Zulma,
escorregando até se sentar na bancada, escute o relincho dele, está lá em
cima. Ouviram os cascos descendo a escada, o resfolegar irritado junto à
porta, Mariano teve a impressão de sentir a porta sendo pressionada,
repetidamente tocada, e Zulma correu até ele gritando, histérica. Afastou-a
sem violência, estendeu a mão para o interruptor; na penumbra (a luz da
cozinha, onde a menina dormia, ainda estava acesa) o relincho e os cascos
ficaram mais fortes, mas o cavalo já não estava diante da porta, dava para
ouvi-lo indo e vindo no jardim. Mariano foi correndo apagar a luz da
cozinha, sem sequer olhar para o canto onde tinham acomodado a menina;
voltou para abraçar Zulma, que soluçava, acariciou seu cabelo e seu rosto,
pedindo que ficasse quieta para poder ouvir melhor. No janelão, a cabeça do
cavalo se esfregou no grande vidro, sem muita força, a mancha branca
parecia transparente na escuridão; sentiram que o cavalo olhava para dentro
como se procurasse alguma coisa, mas mesmo sem poder vê-los ele
continuava lá, relinchando e resfolegando, com sacudidas bruscas de um
lado para outro. O corpo de Zulma escorregou dos braços de Mariano, que a
ajudou a sentar-se novamente na bancada, apoiando-a na parede. Não se
mexa, não diga nada, agora ele vai embora, você vai ver. Ele quer entrar,
disse Zulma, baixinho, sei que ele quer entrar, e se quebrar a janela… o que
vai acontecer se ele a quebrar dando coices? Psit, disse Mariano, fique
quieta, por favor. Ele vai entrar, murmurou Zulma. E não tenho nem uma
espingarda, disse Mariano, senão lhe meteria cinco balas na cabeça, filho da
puta. Ele não está mais ali, disse Zulma se levantando bruscamente, posso
ouvi-lo lá em cima, se ele vir a porta do terraço é capaz de entrar. Ela está
bem fechada, não tenha medo, pense que nessa escuridão ele não vai entrar
numa casa onde não poderia nem se mover, ele não é tão idiota. Ah, é, disse
Zulma, ele quer entrar, vai nos esmagar nas paredes, sei que ele quer entrar.
Psit, repetiu Mariano, que também achava isso, que não podia fazer outra
coisa senão esperar, com as costas encharcadas de suor. Mais uma vez os
cascos ressoaram nos ladrilhos da escada, e de repente o silêncio, os grilos
ao longe, um pássaro na nogueira do alto.
Sem acender a luz, agora que o janelão deixava entrar a vaga claridade da
noite, Mariano encheu um copo de aguardente e o segurou nos lábios de
Zulma, obrigando-a a beber ainda que os dentes batessem no copo e o
álcool derramasse na blusa; depois, no gargalo, bebeu um trago largo e foi
até a cozinha olhar a menina. Com as mãos debaixo do travesseiro como se
estivesse segurando a preciosa revista, ela inacreditavelmente dormia, não
tinha escutado nada, nem parecia estar ali, enquanto lá na sala o choro de
Zulma se entrecortava, vez por outra, num soluço abafado, quase um grito.
Já passou, já passou, disse Mariano, sentando-se junto dela e sacudindo-a
suavemente, foi só um susto. Ele vai voltar, disse Zulma com os olhos
pregados no janelão. Não, já deve estar longe, na certa ele se extraviou de
alguma tropa lá de baixo. Nenhum cavalo faz isso, disse Zulma, nenhum
cavalo quer entrar assim numa casa. Admito que é estranho, disse Mariano,
é melhor irmos dar uma olhada lá fora, estou com a lanterna aqui. Mas
Zulma tinha grudado na parede só de pensar em abrir a porta, de ir em
direção à sombra branca que podia estar próxima, esperando sob as árvores,
pronta para atacar. Olhe, se não tivermos certeza de que ele foi embora,
ninguém dorme esta noite, disse Mariano. Vamos lhe dar mais um
tempinho, enquanto isso você vai se deitar e eu lhe dou seu calmante; uma
dose extra, coitadinha, que você bem que merece.
Zulma acabou por aceitar, passivamente; sem acender as luzes, foram até
a escada e Mariano mostrou com a mão a menina adormecida, mas Zulma
mal olhou para ela, subia a escada tropeçando, Mariano teve de segurá-la ao
entrar no quarto porque ela quase foi de encontro ao batente. Da janela que
dava para o alpendre olharam a escada de pedra, o terraço mais alto do
jardim. Ele foi embora, está vendo?, disse Mariano ajeitando o travesseiro
de Zulma, vendo-a tirar a roupa com gestos mecânicos, o olhar fixo na
janela. Fez com que bebesse as gotas, passou água-de-colônia em seu
pescoço e nas mãos, levantou o lençol suavemente até os ombros de Zulma,
que tinha fechado os olhos e tremia. Enxugou sua face, esperou um pouco e
desceu para pegar a lanterna; encostou a porta da sala devagarinho e foi até
o terraço de baixo, de onde podia ver todo o lado da casa que dava para o
leste; a noite era idêntica a tantas outras do verão, os grilos cricrilavam ao
longe, uma rã deixava cair duas gotas alternadas de som. Sem necessidade
da lanterna, Mariano viu a moita de lilases pisoteada, as pegadas enormes
no canteiro de amores-perfeitos, o vaso derrubado ao pé da escada; então
não tinha sido uma alucinação, e, naturalmente, era melhor que não fosse;
de manhã ele iria com Florencio dar uma sondada nas chácaras do vale, não
dava para deixar ficar por isso mesmo assim tão fácil. Antes de entrar
levantou o vaso, foi até as primeiras árvores e escutou demoradamente os
grilos e a rã; quando olhou para a casa, Zulma estava na janela do quarto,
nua, imóvel.
A menina não tinha se mexido, Mariano subiu sem fazer barulho e
começou a fumar ao lado de Zulma. Está vendo, ele já foi embora, podemos
dormir tranquilos; amanhã a gente vê isso. Levou-a devagarinho até a cama,
tirou a roupa, deitou-se de costas, sempre fumando. Durma, está tudo bem,
foi só um susto absurdo. Passou a mão por seu cabelo, os dedos deslizaram
até o ombro, tocaram seus seios. Zulma se virou de lado, dando-lhe as
costas, sem falar nada; isso também era igual a tantas outras noites do
verão.
Devia ser difícil dormir, mas Mariano adormeceu bruscamente assim que
apagou o cigarro; a janela continuava aberta e com certeza os mosquitos
entrariam, mas o sono veio antes, sem imagens, o nada total do qual saiu,
em certo momento, acionada por um pânico indizível, a pressão dos dedos
de Zulma no ombro, o ofego. Antes de entender direito já estava escutando
a noite, o silêncio perfeito pontuado pelos grilos. Durma, Zulma, não foi
nada, você deve ter sonhado. Insistindo para que ela concordasse, para que
se deitasse de novo de costas para ele, agora que tinha retirado a mão de
repente e estava sentada, rígida, olhando para a porta fechada. Levantou-se
ao mesmo tempo que Zulma, incapaz de impedir que ela abrisse a porta e
fosse até o começo da escada, grudado nela e se perguntando vagamente se
não seria melhor dar-lhe um tapa, trazê-la para a cama à força, dominar, por
fim, tanta distância petrificada. Zulma parou no meio da escada, segurando
o corrimão. Você sabe por que a menina está aqui? Com uma voz que ainda
devia pertencer ao pesadelo. A menina? Mais dois degraus, já quase no
canto que se abria sobre a cozinha. Zulma, por favor. E a voz quebrada,
quase em falsete, ela está aqui pra deixá-lo entrar, estou dizendo que vai
deixá-lo entrar. Zulma, não me obrigue a fazer uma besteira. E a voz meio
triunfante, subindo ainda mais de tom, veja, olhe só, se não acredita em
mim, a cama vazia, a revista no chão. Com um impulso, Mariano se
adiantou a Zulma, deu um pulo até o interruptor. A menina olhou para eles,
seu pijama cor-de-rosa contra a porta que dava para a sala, a cara de sono.
O que está fazendo de pé a essa hora?, disse Mariano, enrolando um pano
de prato na cintura. A menina olhava Zulma nua, meio sonolenta e
envergonhada ela a olhava, como se quisesse voltar para a cama, quase
chorando. Me levantei pra fazer xixi, disse. E saiu para o jardim, quando
nós dissemos que subisse até o banheiro. A menina começou a fazer
beicinho, as mãos comicamente perdidas nos bolsos do pijama. Não é nada,
volte pra cama, disse Mariano, acariciando seu cabelo. Cobriu-a, pôs a
revista sob o travesseiro; a menina se virou para a parede, um dedo na boca
como que para se consolar. Suba, disse Mariano, está vendo que não
aconteceu nada, não fique aí feito uma sonâmbula. Viu-a dar dois passos
rumo à porta da sala, atravessou seu caminho, já estava bem assim, que
diabos. Mas você não percebe que ela abriu a porta pra ele? Deixe de
bobagem, Zulma. Vá lá ver se não é verdade, ou me deixe ir. A mão de
Mariano se fechou no antebraço que tremia. Suba já, empurrando-a até
levá-la ao pé da escada, olhando, ao passar, para a menina, que não tinha se
mexido, que já devia estar dormindo. No primeiro degrau Zulma gritou e
quis fugir, mas a escada era estreita e Mariano a empurrava com todo o
corpo, o pano de prato se soltou e caiu ao pé da escada, segurando-a pelos
ombros e puxando-a para cima levou-a até o patamar, atirou-a no quarto,
fechando a porta atrás de si. Ela vai deixá-lo entrar, repetia Zulma, a porta
está aberta e ele vai entrar. Vá se deitar, disse Mariano. Estou dizendo que a
porta está aberta. Não importa, disse Mariano, ele que entre se quiser, não
me importa lhufas que ele entre ou não entre. Segurou as mãos de Zulma,
que tentavam repeli-lo, empurrou-a de costas na cama, caíram juntos,
Zulma soluçando e implorando, impossibilitada de se mover sob o peso de
um corpo que a cercava cada vez mais, que a dobrava a uma vontade
murmurada boca a boca, com raiva, entre lágrimas e obscenidades. Não
quero, não quero, não quero nunca mais, não quero, mas já era tarde, sua
força e seu orgulho cedendo àquele peso arrasador que a devolvia ao
passado impossível, aos verões sem cartas e sem cavalos. Em algum
momento — começava a clarear — Mariano se vestiu em silêncio, desceu
até a cozinha; a menina dormia com o dedo na boca, a porta da sala estava
aberta. Zulma tinha razão, a menina abrira a porta, mas o cavalo não tinha
entrado na casa. A menos que sim, pensou, acendendo o primeiro cigarro e
fitando o gume azul das colinas, a menos que também nisso Zulma
estivesse com a razão e que o cavalo tivesse entrado na casa, mas como
saber, se não ouviram nada, se tudo estava em ordem, se o relógio
continuaria medindo a manhã e depois que Florencio viesse buscar a
menina, talvez lá pelo meio-dia, o carteiro viria assoviando lá de longe,
deixando sobre a mesa do jardim as cartas que ele ou Zulma apanhariam
sem dizer nada, um momento antes de decidir, de comum acordo, o que
convinha preparar para o almoço.
Ali, mas onde, como?
Um quadro de René Magritte representa um cachimbo, que ocupa
o centro da tela. Ao pé da pintura, seu título:
Isto não é um cachimbo.
Para Paco, que gostava de meus relatos.
(Dedicatória de Bestiário, 1951)
é ele, bruscamente: agora (antes de começar a escrever; o motivo de ter começado a escrever) ou
ontem, amanhã, não há nenhuma indicação prévia, ele está ou não está; não posso nem dizer que
vem, não há chegada nem partida; ele é como um puro presente que se manifesta ou não nesse
presente sujo, cheio de ecos de passado e de obrigações de futuro
Já não aconteceu, com você que me lê, aquilo que começa num sonho e
volta em muitos sonhos mas não é isso, não é só um sonho? Uma coisa que
está ali, mas onde, como?; uma coisa que acontece sonhando, claro, puro
sonho, mas depois também ali, de outra maneira, porque mole e cheio de
buracos, mas aí, enquanto você escova os dentes, no fundo da pia você
continua a vê-lo enquanto cospe a pasta de dentes ou mete a cara na água
fria, e já enfraquecendo, mas ainda preso ao pijama, à raiz da língua
enquanto você esquenta o café, ali, mas onde, como?, colado à manhã, com
seu silêncio no qual já entram os ruídos do dia, o noticiário no rádio que
ligamos porque estamos despertos e de pé e o mundo continua girando. Puta
merda, como é que pode, o que é aquilo que foi, que fomos num sonho, mas
é outra coisa, volta de vez em quando e está ali, mas onde, como está ali e
onde é ali? Por que Paco de novo esta noite, agora que escrevo neste mesmo
quarto, ao lado da mesma cama onde os lençóis marcam o vazio do meu
corpo? Com você também não acontece isso que me acontece com alguém
que morreu há trinta anos, que enterramos num meio-dia ensolarado na
Chacarita, levando o caixão nos ombros com os amigos do bar, com os
irmãos do Paco?
seu rosto pequeno e pálido, seu corpo compacto de jogador de pelota basca, seus olhos de água, seu
cabelo loiro penteado com brilhantina, dividido de lado, seu terno cinza, seus mocassins pretos,
quase sempre uma gravata azul, mas às vezes em mangas de camisa ou com um roupão de toalha
branco (quando me espera em seu quarto da rua Rivadavia, levantando-se com esforço para que eu
não note que está tão doente, sentando-se na beirada da cama envolto no roupão branco, me
pedindo o cigarro que lhe proibiram)
Já sei que não é possível escrever isto que estou escrevendo, na certa é
outra das formas que o dia tem para acabar com as frágeis operações do
sonho; agora vou trabalhar, vou me encontrar com tradutores e revisores na
conferência de Genebra, onde fico por quatro semanas, vou ler as notícias
do Chile, esse outro pesadelo que nenhuma pasta de dentes remove da boca;
então por que pular da cama para a máquina, da casa da rua Rivadavia em
Buenos Aires, onde acabo de estar com Paco, para esta máquina que não vai
me servir de nada agora que estou acordado e sei que se passaram trinta e
um anos desde aquela manhã de outubro, daquele nicho num columbário,
das pobres flores que quase ninguém levou, pois, cacete, quem ia se
importar com flores quando estávamos enterrando Paco? Vou lhe contar,
esses trinta e um anos nem importam tanto, muito pior é essa passagem do
sonho às palavras, o buraco entre o que ainda continua aqui, mas vai se
entregando cada vez mais aos gumes nítidos das coisas deste lado, à lâmina
das palavras que continuo escrevendo e que já não são isso que continua ali,
mas onde, como? E se continuo é porque não aguento mais, eu soube tantas
vezes que Paco está vivo ou que vai morrer, que ele está vivo de outra
forma que não a nossa de estarmos vivos ou de morrermos, que escrevendo
pelo menos luto contra o inapreensível, passo os dedos das palavras pelos
buracos dessa trama finíssima que ainda me amarrava lá no banheiro, na
torradeira, no primeiro cigarro, que ainda está ali, mas onde, como?; repetir,
reiterar, fórmulas de encantamento, certo, talvez você que me lê também
tente, às vezes, fixar com algum cântico o que está lhe escapando, talvez
repita estupidamente um verso infantil, aranhita visita, aranhita visita,
fechando os olhos para centrar a cena capital do sonho esfiapado,
renunciando aranhita, dando de ombros visita, o jornaleiro bate à porta, sua
mulher olha para você sorrindo e diz, Pedrito, as aranhas ficaram em seus
olhos, e tem tanta razão, você pensa, aranhita visita, claro que as teias de
aranha.
quando sonho com Alfredo, com outros mortos, pode ser qualquer uma de suas tantas imagens, das
opções do tempo e da vida; vejo Alfredo dirigindo seu Ford preto, jogando pôquer, casando com
Zulema, saindo comigo da Escola Normal Mariano Acosta para ir tomar um vermute no La Perla
do Once; depois, no fim, antes, qualquer dia ao longo de qualquer ano, mas Paco não, Paco é
somente o quarto despido e frio de sua casa, a cama de ferro, o roupão de toalha branco, e se nos
encontramos no café e ele está com seu terno cinza e a gravata azul, o rosto é o mesmo, a terrosa
máscara final, os silêncios de um cansaço irrefreável
Não vou perder mais tempo; se estou escrevendo é porque sei, ainda que
não possa explicar o que é isso que sei e mal consiga separar o grosso disso,
pôr de um lado os sonhos, do outro Paco, mas vai ser preciso fazer isso se
um dia, se agora mesmo, a qualquer momento, eu conseguir sondar mais
longe. Sei que sonho com Paco porque, é lógico, mortos não andam pela
rua e há um oceano de água e de tempo entre este hotel de Genebra e sua
casa na rua Rivadavia, entre sua casa na rua Rivadavia e ele morto há trinta
e um anos. Então é óbvio que Paco está vivo (de que forma inútil, horrível,
terei de dizer isso também para me aproximar, para ganhar um pouco de
terreno) enquanto durmo; é isso que se chama sonhar. De tempos em
tempos, podem se passar semanas e mesmo anos, volto a saber enquanto
durmo que ele está vivo e que vai morrer; não há nada de extraordinário em
sonhar com ele e vê-lo vivo, acontece com tantos outros nos sonhos de todo
mundo, às vezes também encontro minha avó viva em meus sonhos, ou
Alfredo vivo em meus sonhos, Alfredo, que foi um dos amigos de Paco e
morreu antes dele. Qualquer um sonha com seus mortos e os vê vivos, não é
por isso que escrevo; se escrevo é porque sei, embora não consiga explicar
o que sei. Veja, quando sonho com Alfredo, a pasta de dentes cumpre muito
bem sua tarefa; resta a melancolia, a recorrência de lembranças
envelhecidas, depois o dia começa sem Alfredo. Mas com Paco é como se
ele também acordasse comigo, pode se dar ao luxo de dissipar quase de
imediato as sequências vívidas da noite e continuar presente e fora do
sonho, desmentindo-o com uma força que nem Alfredo nem ninguém tem
assim em pleno dia, depois do banho e do jornal. Que lhe importa que eu
me lembre apenas do momento em que seu irmão Claudio veio me procurar
para me dizer que Paco estava muito doente, e que as cenas sucessivas, já
esgarçadas, mas ainda rigorosas e coerentes no esquecimento, um pouco
como o oco de meu corpo ainda marcado nos lençóis, se diluam como todos
os sonhos. O que sei, então, é que ter sonhado não é mais que uma parte de
algo diferente, uma espécie de superposição, uma zona outra, embora a
expressão seja incorreta, mas também é preciso superpor ou violar as
palavras se quero me aproximar, se espero, um dia, estar ali.
Grosseiramente, como o estou sentindo agora, Paco está vivo, embora vá
morrer, e se tem uma coisa que eu sei é que não há nada de sobrenatural
nisso; tenho lá minhas ideias sobre fantasmas, mas Paco não é um fantasma,
Paco é um homem, o homem que ele foi até trinta e um anos atrás, meu
colega de estudos, meu melhor amigo. Não foi preciso que voltasse para
meu lado várias vezes, bastou o primeiro sonho para que eu soubesse que
ele estava vivo além ou aquém do sonho, para que outra vez a tristeza me
tomasse, como nas noites da rua Rivadavia quando eu o via ceder terreno
diante de uma doença que estava comendo suas entranhas, consumindo-o
sem pressa, na mais perfeita tortura. Toda noite que voltei a sonhar com ele
foi a mesma coisa, variações do mesmo tema; não é a recorrência que
poderia me enganar, o que sei agora já era sabido da primeira vez, acho que
na Paris dos anos cinquenta, quinze anos depois de sua morte em Buenos
Aires. É verdade, naquela época tentei ser saudável, escovar melhor os
dentes; rejeitei você, Paco, embora alguma coisa em mim soubesse que
você não estava ali como Alfredo, como meus outros mortos; também
diante dos sonhos se pode ser um canalha, um covarde, e talvez você tenha
voltado por isso, não por vingança, mas para me provar que era inútil, que
você estava vivo e tão doente, que ia morrer, que numa noite qualquer
Claudio viria me procurar em sonhos para chorar no meu ombro, para me
dizer o Paco está mal, o que podemos fazer?, o Paco está muito mal.
seu rosto terroso e sem sol, sem nem mesmo a lua dos cafés do Once, a vida noctívaga dos
estudantes, um rosto triangular sem sangue, a água azul-celeste dos olhos, os lábios crestados pela
febre, o cheiro adocicado dos nefríticos, seu sorriso delicado, a voz reduzida ao mínimo, tendo de
respirar a cada frase, substituindo as palavras por um gesto ou um esgar de ironia
Veja, o que eu sei é isso, não é muito, mas muda tudo. Fico aborrecido
com as hipóteses espaçotemporais, as n dimensões, sem falar do jargão
ocultista, da vida astral e de Gustav Meyrink. Não vou sair por aí
procurando pois sei que sou incapaz de me iludir, ou talvez, na melhor das
hipóteses, eu não tenha capacidade para entrar em territórios diferentes.
Simplesmente estou aqui, e disposto, Paco, escrevendo o que mais uma vez
vivemos juntos enquanto eu dormia; se há uma coisa em que posso ajudá-lo
é saber que você não é apenas meu sonho que ali, mas onde, como?, que
você está ali vivo e sofrendo. Desse ali não posso dizer nada, a não ser que
me aparece sonhando e acordado, que é um ali inapreensível; porque
quando vejo você estou dormindo e não sei pensar, e quando penso estou
acordado, mas só consigo pensar; imagem ou ideia são sempre esse ali, mas
onde?, esse ali, mas como?
reler isto é baixar a cabeça, xingar de cara para um novo cigarro, questionar o sentido de estar
batendo nas teclas desta máquina, e para quem, pode me dizer?, para quem, que não vá dar de
ombros e catalogar rápido e pôr a etiqueta e passar para outra coisa, para outro conto?
Além do mais, Paco, por quê? Vou deixar para o fim, porém o mais difícil
é essa revolta, essa aversão pelo que está lhe acontecendo. Você deve
imaginar que não acredito que você esteja no inferno, iríamos nos divertir
muito se pudéssemos conversar sobre isso. Mas tem de haver um porquê,
não é verdade?, você mesmo deve se perguntar por que está vivo aí onde
está se vai morrer de novo, se Claudio terá de vir me procurar de novo, se,
como um momento atrás, vou subir a escada da rua Rivadavia para
encontrá-lo em seu quarto de enfermo, com esse rosto sem sangue e os
olhos meio aguados, sorrindo para mim com os lábios descorados e
ressequidos, me estendendo a mão que parece um papelzinho. E sua voz,
Paco, essa voz que conheci no final, articulando precariamente as poucas
palavras de um cumprimento ou de uma anedota. Claro que você não está
na casa da rua Rivadavia, e que eu em Genebra não subi a escada de sua
casa em Buenos Aires, essa é a parafernália do sonho, e como sempre, ao
acordar, as imagens se desenleiam e só você permanece deste lado, você
que não é um sonho, que esteve me esperando em tantos sonhos, mas como
quem marca um encontro num lugar neutro, uma estação ou um café, a
outra parafernália que esquecemos assim que começamos a andar.
como dizer isso, como continuar, estilhaçar a razão repetindo que não é só um sonho, que se eu o
vejo em sonhos como vejo qualquer um de meus mortos, ele é outra coisa, está lá, dentro e fora,
vivo, ainda que
o que vejo dele, o que ouço dele: a doença o cerca, fixa-o nessa última aparência que é minha
lembrança dele há trinta e um anos; está assim agora, é assim
Por que você vive se ficou doente outra vez, se vai morrer outra vez? E
quando morrer, Paco, o que vai acontecer entre nós dois? Vou saber que
você morreu, vou sonhar, já que o sonho é a única região onde posso vê-lo,
que o enterramos de novo? E depois disso, vou parar de sonhar, saberei que
você está realmente morto? Porque já faz muitos anos, Paco, que você está
vivo ali onde nos encontramos, mas com uma vida inútil e murcha, dessa
vez sua doença dura interminavelmente mais que da outra, passam-se
semanas ou meses, passa Paris ou Quito ou Genebra e então vem o Claudio
e me abraça, Claudio tão jovem, um gurizinho, chorando em silêncio no
meu ombro, me avisando que você está mal, que eu vá vê-lo, às vezes no
café, mas quase sempre é preciso subir a escada estreita daquela casa que já
demoliram, há um ano olhei do táxi aquela quadra da Rivadavia na altura
do Once e soube que a casa não estava mais lá ou que a haviam reformado,
que estão faltando a porta e a escada estreita que levava ao primeiro andar,
aos quartos de pé-direito alto e de gessos amarelos, passam-se semanas ou
meses e de novo sei que tenho de ir ver você, ou simplesmente o encontro
em qualquer lugar ou sei que você está em qualquer lugar, mesmo que eu
não o enxergue, e nada termina, nada começa nem termina enquanto durmo,
ou depois no escritório ou aqui escrevendo, você vivo para quê, você vivo
por quê, Paco, ali mas onde, meu amigo, onde e até quando?
apresentar provas de ar, montinhos de cinza como provas, seguros de buraco; com palavras, para
piorar, palavras incapazes de vertigem, etiquetas prévias à leitura, essa outra etiqueta final
noção de território contíguo, de quarto do lado; tempo do lado, e ao mesmo tempo nada disso, fácil
demais se refugiar no binário; como se tudo dependesse de mim, de uma simples chave que um
gesto ou um salto me dariam, e saber que não, que minha vida me encerra no que sou, bem no
limite, mas
tentar dizer isso de outra maneira, insistir: por esperança, procurando o laboratório da meia-noite,
uma alquimia impensável, uma transmutação
Não sirvo para ir mais longe, para tentar qualquer um dos caminhos que
os outros seguem em busca de seus mortos, a fé, ou os cogumelos, ou as
metafísicas. Sei que você não está morto, que as mesas de três pés são
inúteis; não vou consultar videntes porque eles também têm seus códigos,
iam me achar um louco. Só posso acreditar no que sei, seguir por minha
trilha como você pela sua, definhado e doente aí onde está, sem me
incomodar, sem me pedir nada mas se apoiando, de alguma forma, em mim,
que sei que você está vivo, nesse elo que o enlaça com essa zona à qual
você não pertence, mas que o sustenta, não se sabe por quê, não se sabe
para quê. E por isso, acho que há momentos em que lhe faço falta, e é então
que Claudio chega, ou quando de repente o encontro no café onde
jogávamos bilhar ou no quarto de cima onde púnhamos discos de Ravel e
líamos Federico e Rilke, e a alegria deslumbrada que me dá saber que você
está vivo é mais forte que a palidez de seu rosto e a fria debilidade de sua
mão; porque em pleno sonho não me engano, como me engana às vezes ver
Alfredo, ou Juan Carlos, a alegria não é essa terrível decepção de quem
acorda e compreende que sonhou, eu acordo com você e nada muda, a não
ser que deixo de vê-lo, sei que está vivo aí onde está, numa terra que é esta
terra e não uma esfera astral ou um limbo abominável; e a alegria perdura e
está aqui enquanto escrevo, e não contradiz a tristeza de tê-lo visto mais
uma vez tão mal, ainda é a esperança, Paco, se escrevo é porque espero,
mesmo que toda vez seja a mesma coisa, a escada que leva ao seu quarto, o
café onde, entre duas carambolas, você me dirá que esteve doente mas que
já está passando, mentindo para mim com um pobre sorriso; a esperança de
que um dia seja diferente, de que Claudio não precise vir me procurar nem
chorar abraçado a mim, pedindo-me que vá vê-lo.
nem que seja para estar perto dele outra vez quando ele morrer, como naquela noite de outubro, os
quatro amigos, a lâmpada fria suspensa do teto, a última injeção de coramina, o peito nu e gelado,
os olhos abertos que um de nós fechou chorando
E você que me lê vai pensar que estou inventando; pouco importa, faz
muito tempo que as pessoas põem na conta de minha imaginação o que vivi
de verdade, ou vice-versa. Olhe, eu nunca encontrei Paco na cidade que
mencionei uma vez, uma cidade com a qual sonho de quando em quando, e
que é como o recinto de uma morte infinitamente adiada, de buscas turvas e
encontros impossíveis. Nada seria mais natural que vê-lo lá, mas lá eu
nunca o encontrei e acho que nunca encontrarei. Ele tem seu próprio
território, gato em seu mundo recortado e preciso, a casa da rua Rivadavia,
o café do bilhar, alguma esquina do Once. Se eu o tivesse encontrado na
cidade dos arcos e do canal do norte, talvez o tivesse somado à maquinaria
das buscas, aos intermináveis quartos do hotel, aos elevadores que se
deslocam horizontalmente, ao pesadelo elástico que volta de tempos em
tempos; teria sido mais fácil explicar sua presença, imaginá-la parte desse
cenário que a teria empobrecido limando-a, incorporando-a a seus jogos
torpes. Mas Paco está na dele, gato solitário surgindo de sua própria zona,
sem misturas; os que vêm me procurar são só gente de sua família, é
Claudio ou seu pai, vez por outra seu irmão mais velho. Quando acordo,
depois de tê-lo encontrado em sua casa ou no café, vendo a morte em seus
olhos meio aguados, o resto se perde no fragor da vigília, só ele permanece
comigo enquanto escovo os dentes e escuto o noticiário antes de sair; não
mais sua imagem percebida com a cruel precisão lenticular do sonho (o
terno cinza, a gravata azul, os mocassins pretos), e sim a incerteza de que,
inconcebivelmente, ele continua lá e sofre.
nem mesmo esperança no absurdo, sabê-lo outra vez feliz, vê-lo num torneio de pelota, apaixonado
pelas garotas com as quais dançava no clube
pequena larva cinza, animula vagula blandula, macaquinho tremendo de frio sob as cobertas,
estendendo-me uma das mãos de manequim, para quê, por quê?
Não pude fazê-lo viver isso, mas mesmo assim escrevo para você que me
lê porque é uma forma de furar o cerco, de pedir que verifique se em si
mesmo também não há um desses gatos, desses mortos que você amou e
que estão naquele ali que já me exaspera nomear com palavras de papel.
Faço isso por Paco, para o caso de que isso ou qualquer outra coisa possa
adiantar de alguma coisa, ajude-o a sarar ou a morrer, a fazer com que
Claudio não volte a me procurar, ou apenas a sentir, finalmente, que foi
tudo um engano, que eu só sonho com Paco e que ele, sabe-se lá por quê, se
agarra um pouco mais aos meus tornozelos do que Alfredo, do que meus
outros mortos. É isso que você deve estar pensando, o que mais poderia
pensar?, a menos que isso também tenha lhe acontecido com alguém, mas
nunca ninguém me falou coisas desse tipo, e tampouco espero isso de você,
eu simplesmente tinha de dizer isso e esperar, dizer isso e me deitar de novo
e viver como qualquer um, fazendo o possível para esquecer que Paco
continua ali, que nada termina porque amanhã ou no ano que vem vou
acordar sabendo, como agora, que Paco continua vivo, que me chamou
porque esperava alguma coisa de mim, e que não posso ajudá-lo porque está
doente, porque está morrendo.
C
hamado Kindberg, para se traduzir ingenuamente por montanha
das crianças ou então para ser visto como a montanha gentil, a
montanha amável, de qualquer forma uma aldeia à qual chegam de
noite, do fundo de uma chuva que lava furiosamente essa cara
contra o para-brisa, um velho hotel com galerias profundas onde tudo está
pronto para que se esqueça o que continua lá fora batendo e arranhando, o
lugar, enfim, poder trocar de roupa, saber que se está tão bem, tão abrigado;
e a sopa na grande sopeira de prata, o vinho branco, partir o pão e dar o
primeiro pedaço para Lina, que o recebe na palma da mão como se fosse
uma homenagem, e é, e então sopra em cima dele, sabe-se lá por quê, mas é
tão bonito ver que a franja de Lina se levanta um pouco e treme, como se o
sopro devolvido pela mão e pelo pão fosse levantar a cortina de um
minúsculo teatro, quase como se a partir desse momento Marcelo pudesse
ver entrar em cena os pensamentos de Lina, as imagens e as lembranças de
Lina, que sorve sua sopa saborosa soprando, sempre sorrindo.
Mas não, sua testa lisa e infantil não se altera, a princípio é só a voz que
vai deixando cair pedaços de pessoa, compondo uma primeira aproximação
a Lina: chilena, por exemplo, e um tema cantarolado de Archie Shepp, as
unhas um pouco roídas mas muito limpas, em contraste com uma roupa suja
de pegar carona e de dormir em granjas ou em albergues da juventude. A
juventude, e Lina ri, sorvendo a sopa como uma ursinha, você com certeza
não pode imaginá-la: fósseis, veja bem, cadáveres vagando como naquele
filme de terror do Romero.
Marcelo está para lhe perguntar que Romero é esse, primeira notícia do tal
Romero, mas é melhor deixá-la falar, ele se diverte assistindo a essa
felicidade de comida quente, como antes seu contentamento no quarto com
a lareira à espera, crepitante, a bolha burguesa protetora de uma carteira de
dinheiro de viajante sem problemas, a chuva batendo lá fora na bolha como
naquela tarde no rosto branquíssimo de Lina à beira da estrada, na saída do
bosque no crepúsculo, que lugar para pegar carona, mas agora, pronto, mais
um pouco de sopa, ursinha, coma que você precisa se livrar de uma angina,
o cabelo ainda úmido mas a lareira já crepitando à espera lá no quarto com
a grande cama habsburgo, espelhos até o chão e mesinhas e lustre de
pingentes e cortinas e por favor, me diga, o que é que você estava fazendo
lá debaixo d’água, sua mãe ia lhe dar umas boas palmadas.
Cadáveres, repete Lina, melhor andar sozinha, é claro que quando chove,
mas tudo bem, o casaco é impermeável mesmo, só um pouco do cabelo e
das pernas, uma aspirina para prevenir, e pronto. E entre a cesta de pão
vazia e a nova cheinha que a ursinha já está saqueando, mas que manteiga
mais gostosa, e você, faz o quê, por que está viajando nesse carrão?, e você,
por quê?, ah, e você, é argentino? Dupla constatação de que o acaso faz as
coisas direito, a previsível lembrança de que, se oito quilômetros antes
Marcelo não tivesse parado para beber alguma coisa, a ursinha agora metida
em outro carro ou ainda no bosque, eu sou representante de materiais pré-
fabricados, é uma coisa que me obriga a viajar muito, mas dessa vez estou
passeando, entre dois compromissos. Ursinha atenta e quase séria, o que é
isso de pré-fabricados?, mas esse assunto é chato, claro, fazer o quê, não
pode lhe dizer que é domador de feras ou diretor de cinema ou Paul
McCartney: o sal. Esse jeito brusco de inseto ou de pássaro ainda que
ursinha franja dançante, o refrão recorrente de Archie Shepp, você tem os
discos, como assim?, ah bom. Percebendo, pensa Marcelo com ironia, que o
normal seria que ele não tivesse os discos de Archie Shepp, que idiotice,
pois na verdade ele os tem, é claro, e às vezes os ouve com Marlene em
Bruxelas e só não sabe vivê-los como Lina, que sem aviso cantarola um
trecho entre dois mordiscos, seu sorriso soma de free jazz e bocado de
gulache e ursinha molhada de pedir carona, nunca tive tanta sorte, você foi
bom. Bom e consequente, trauteia Marcelo em contra-ataque bandoneon,
mas a bola sai do campo, é outra geração, é uma ursinha Shepp, não é mais
tango, meu chapa.
Claro que ainda resta aquela coceira, quase uma cãibra agridoce, daquele
lance na chegada a Kindberg, o estacionamento do hotel no enorme hangar
vetusto, a velha iluminando o caminho com uma lanterna de época, Marcelo
mala e portfólio, Lina mochila e respingos, o convite para jantar aceito
antes de Kindberg, assim a gente conversa um pouco, a noite e a saraivada
da chuva, seguir em frente é má ideia, melhor pararmos em Kindberg e eu a
convido pra jantar, ah, sim, obrigada, que bacana, assim você seca a roupa,
é melhor ficar aqui até amanhã, vem chuva, vem chuva, a velha está na
gruta, ah, claro, disse Lina, e então o estacionamento, as retumbantes
arcadas góticas até a recepção, que quentinho esse hotel, que sorte, uma
gota d’água, a última na ponta da franja, a mochila pendurada ursinha girl-
scout com tiozinho, vou pedir os quartos assim você se enxuga um pouco
antes do jantar. E a coceira, quase uma cãibra, lá embaixo, Lina olhando
para ele toda franja, quartos?, que bobagem, peça só um. E ele sem olhá-la
mas a coceira agradesagradável, então é uma piranha, então é uma delícia,
então ursinha sopa lareira, então mais uma e que sorte, cara, ela é bem
bonita. Mas depois, vendo-a tirar da mochila o outro par de blue-jeans e o
pulôver preto, dando-lhe as costas falando que lareira, recende, fogo
perfumado, procurando aspirinas para ela no fundo da mala entre vitaminas
e desodorantes e after-shave e até onde você está pensando em ir, não sei,
tenho uma carta pra uns hippies de Copenhague, uns desenhos que a Cecilia
me deu lá em Santiago, me disse que são uns caras incríveis, o biombo de
cetim e Lina pendurando a roupa molhada, virando, indescritível, a mochila
sobre a mesa francisco-josé dourada e arabescos James Baldwin kleenex
botões óculos escuros caixas de papelão Pablo Neruda pacotinhos
higiênicos mapa da Alemanha, estou com fome, Marcelo, gosto do seu
nome soa bem e estou com fome, então vamos comer, que de chuveiro você
já teve o bastante, depois acaba de arrumar essa mochila, Lina levantando a
cabeça bruscamente, olhando para ele: eu nunca arrumo nada, pra quê?, a
mochila é como eu e esta viagem e a política, tudo misturado, tanto faz.
Fedelha, pensou Marcelo cãibra, quase coceira (dar aspirinas para ela na
hora do café, efeito mais rápido), mas ela se incomodava com essas
distâncias verbais, tipo você tão jovem e como é que pode viajar assim
sozinha, na metade da sopa, riu: a juventude, fósseis, veja bem, cadáveres
vagando como naquele filme do Romero. E o gulache, e pouco a pouco,
com o calor e a ursinha contente de novo e o vinho, a coceira no estômago
cedendo a uma espécie de alegria, de paz, que falasse bobagens, que
continuasse explicando sua visão de mundo, talvez um dia essa visão
também tivesse sido a sua, embora já não estivesse a fim de se lembrar, que
o olhasse lá do teatro de sua franja, de repente séria e preocupada e depois
bruscamente Shepp, dizendo tão bom estar assim, sentir-se seca e dentro da
bolha e uma vez em Avignon cinco horas esperando uma carona com um
vento que arrancava as telhas, vi um pássaro se chocar contra uma árvore,
caiu como um lenço, veja só: a pimenta, por favor.
Então (levavam embora a travessa vazia) você está pensando em continuar
assim desse jeito até a Dinamarca, mas tem um pouco de dinheiro, ou como
é? Claro que vou continuar, não vai comer a alface?, então passe pra mim,
ainda estou com fome, um jeito de dobrar as folhas com o garfo e mastigá-
las devagar cantarolando Shepp com, vez por outra, uma bolhinha prateada
plop nos lábios úmidos, boca bonita recortada terminando bem onde devia,
aqueles desenhos do Renascimento, Florença no outono com Marlene,
aquelas bocas que pederastas geniais tanto amaram, sinuosamente sensuais
sutis etc., o Riesling sessenta e quatro está subindo à sua cabeça, ouvindo-a
entre mordidelas e cantarolares não sei como terminei filosofia em
Santiago, queria ler muita coisa, é agora que preciso começar a ler.
Previsível, pobre ursinha tão contente com sua alface e seu plano de devorar
Espinosa em seis meses misturado com Allen Ginsberg e de novo Shepp:
quanto lugar-comum desfiaria até o café? (não esquecer de lhe dar a
aspirina, se me começa a espirrar vai ser um problema, fedelha com o
cabelo molhado a cara toda franja grudada a chuva a estapeá-la à beira do
caminho), mas em paralelo entre Shepp e o fim do gulache tudo parecia
estar girando pouco a pouco, mudando, eram as mesmas frases e Espinosa
ou Copenhague e ao mesmo tempo diferentes, Lina ali na frente partindo o
pão bebendo o vinho olhando-o contente, longe e perto ao mesmo tempo,
mudando com o giro da noite, embora longe e perto não fosse uma
explicação, outra coisa, algo assim como uma demonstração, Lina lhe
mostrando uma coisa que não era ela mesma, mas então o quê, quer me
dizer? E duas fatias finas do gruyère, por que não come, Marcelo, é uma
delícia, você não comeu nada, bobo, um senhor como você, porque é um
senhor, não?, e ali fumando mando mando mando sem comer nada, escute,
e mais um pouquinho de vinho, você vai querer, né?, porque este queijo,
pense, precisa de uma ajudinha pra descer, vai, coma um pouco: mais pão, é
incrível o que eu como de pão, sempre me vaticinaram gordura, isso que
você ouviu, é verdade que já tenho uma certa barriguinha, não parece, mas
é, juro, Shepp.
Inútil esperar que falasse qualquer coisa sensata, e por que esperar (porque
você é um senhor, né?), ursinha entre as flores da sobremesa olhando
deslumbrada e ao mesmo tempo com olhos calculistas o carrinho de rodas
cheio de tortas compotas suspiros, sim, tinham lhe vaticinado gordura, sic,
este com mais creme, e por que não gosta de Copenhague, Marcelo? Mas
Marcelo não tinha dito que não gostava de Copenhague, só é meio absurdo
isso de viajar em plena chuva e semanas e mochila para, o mais provável,
descobrir que os hippies já estavam lá na Califórnia, mas não percebe que
isso não importa, já disse que não os conheço, só estou levando pra eles uns
desenhos que a Cecilia e o Marcos me deram lá em Santiago e um
disquinho do Mothers of Invention, será que não tem um toca-discos aqui
pra eu mostrar pra você?, provavelmente tarde demais e Kindberg, veja,
ainda se fossem violinos gitanos, mas essas mães, cara, só a ideia, e Lina
rindo com muito creme e barriguinha sob o pulôver preto, os dois rindo ao
pensar nas mães uivando em Kindberg, a cara do hoteleiro e aquele calor
que havia algum tempo substituía a coceira no estômago, perguntando-se se
ela não daria uma de difícil, se no final a espada lendária na cama, em todo
caso o rolo do travesseiro e um de cada lado barreira moral espada
moderna, Shepp, pronto, começou a espirrar, tome a aspirina que já vão
trazer o café, vou pedir um conhaque, que ativa o salicílico, sei disso de
uma boa fonte. E na verdade ele não tinha dito que não gostava de
Copenhague, mas a ursinha parecia entender mais o tom de sua voz que as
palavras, como ele com aquela professora pela qual se apaixonou aos doze
anos, que importavam as palavras diante daquele arrulho, daquilo que
nascia da voz como um desejo de calor, de que o aconchegassem, e carícias
no cabelo, tantos anos depois a psicanálise: angústia, bah, nostalgia do útero
primordial, tudo, no fim das contas, desde o “vamos!” flutuava sobre as
águas, leia a Bíblia, cinquenta mil pesos para se curar das vertigens e agora
essa fedelha que parecia estar tirando pedaços dele mesmo, Shepp, mas
claro, se você engole a seco como é que ela não vai entalar na sua garganta,
boboca. E ela mexendo o café, de repente levantando uns olhos aplicados e
olhando-o com um respeito novo, claro que se começasse a caçoar dele ia
pagar em dobro, mas não, é verdade, Marcelo, gosto quando você fica tão
doutor e papai, não fique brabo, sempre digo o que não devia, não fique
brabo, mas eu não estou brabo, bobona, sim, você ficou meio brabo porque
eu o chamei de doutor e de papai, não era nesse sentido, mas justamente,
você parece tão legal quando me fala da aspirina, e veja que se lembrou de
procurá-la e de trazê-la, eu teria esquecido, Shepp, veja como me fazia
falta, e você é um pouco engraçado porque me olha tão doutor, não fique
brabo, Marcelo, que ótimo esse conhaque com o café, que bom pra dormir,
você sabe que. E sim, na estrada desde as sete da manhã, três carros e um
caminhão, muito bom, no conjunto, tirando a tempestade no final, mas
então Marcelo e Kindberg e o conhaque Shepp. E deixar a mão bem quieta,
palma para cima sobre a toalha cheia de migalhinhas quando ele a acariciou
de leve para lhe dizer que não, que não estava brabo, porque agora sabia
que era verdade, que ela ficara mesmo comovida com esse mínimo cuidado,
o comprimido que ele tinha tirado do bolso com instruções detalhadas,
muita água para não entalar na garganta, café e conhaque; de repente
amigos, mas de verdade, e o fogo devia estar aquecendo ainda mais o
quarto, a camareira já devia ter dobrado os lençóis, como sem dúvida
sempre em Kindberg, uma espécie de cerimônia antiga, de boas-vindas ao
viajante cansado, às ursinhas bobas que queriam se molhar até Copenhague,
e depois, mas o que importa depois, Marcelo?, já disse que não quero me
amarrar, nãoqueronãoquero, Copenhague é como um homem que a gente
encontra e larga (ah), um dia que passa, não acredito no futuro, na minha
família só falam do futuro, me enchem o saco com o futuro, e ele também o
tio Roberto transformado no tirano carinhoso para cuidar do Marcelito
órfão de pai e tão pequeninho ainda o coitado, é preciso pensar no amanhã,
meu filho, a aposentadoria ridícula do tio Roberto, que falta faz um governo
forte, a juventude de hoje só pensa em se divertir, caramba, já na minha
época, e a ursinha deixando a mão sobre a toalha e por que essa sugação
idiota, essa volta a uma Buenos Aires dos anos trinta ou quarenta, melhor
Copenhague, cara, melhor Copenhague e os hippies e a chuva à beira do
caminho, mas ele nunca tinha pedido carona, praticamente nunca, uma ou
duas vezes antes de entrar na universidade, depois já dava para se virar, pro
alfaiate, mas poderia ter pedido daquela vez que os rapazes planejavam
pegar juntos um veleiro que demorava três meses para ir até Rotterdam,
carga e escalas e uns seiscentos pesos no total, por aí, ajudando um pouco a
tripulação, se divertindo, claro que vamos, no Café Rubí do Once, claro que
vamos, Monito, é preciso juntar os seiscentos mangos, não era fácil, o
ordenado todo vai em cigarros e alguma mina, um dia não se viram mais,
não se falava mais no veleiro, é preciso pensar no dia de amanhã, meu filho,
Shepp. Ah, outra vez; venha, você precisa descansar, Lina. Sim, doutor, só
mais um minutinho, veja que ainda tenho um fundo de conhaque, tão
morno, prove, sim, veja como está morno. E alguma coisa que ele devia ter
dito sem querer ao lembrar o Rubí, porque de novo a Lina com aquele jeito
de adivinhar sua voz, o que sua voz realmente dizia, mais do que o que
estava dizendo, que era sempre idiota e aspirina e você tem que descansar
ou pra que ir a Copenhague, por exemplo, quando agora, com aquela
mãozinha branca e quente sob a sua, tudo podia se chamar Copenhague,
tudo poderia ter se chamado veleiro se seiscentos pesos, se tesão, se poesia.
E Lina olhando para ele e depois baixando rápido os olhos como se tudo
isso estivesse ali sobre a mesa, entre as migalhas, agora lixo do tempo,
como se ele tivesse falado de tudo isso em vez de ficar repetindo, venha,
vamos dormir, e Lina vibrava e se lembrava de uns cavalos (ou eram vacas,
ele mal ouvia o final da frase), uns cavalos atravessando o campo como se
alguma coisa os tivesse subitamente assustado: dois cavalos brancos e um
alazão, no sítio dos meus tios, você não sabe o que era galopar de tarde
contra o vento, voltar tarde e cansada e, claro, as broncas, sua moleca, já
vai, espere que eu logo termino esse golinho e já vou, agora mesmo,
olhando para ele com toda a franja ao vento como se a cavalo no sítio,
soprando no nariz porque o conhaque tão forte, precisava ser idiota para
arranjar problemas quando tinha sido ela no grande corredor negro, ela
pingando e contente e dois quartos, que bobagem, peça só um, assumindo,
claro, todo o sentido dessa economia, sabendo e quem sabe acostumada e
esperando isso no fim de cada etapa, mas e se no fim não fosse assim, já
que não parecia assim, se no fim surpresas, a espada no meio da cama, se
no fim bruscamente no sofá do canto, claro que então ele, um cavalheiro,
não esqueça o cachecol, nunca vi uma escada tão larga, com certeza foi um
palácio, havia condes que davam festas com candelabros e coisas assim, e
as portas, veja só essa porta, mas é a nossa, pintada com cervos e pastores,
não pode ser… E o fogo, as rubras salamandras fugidias e a cama aberta
branquíssima, enorme, e as cortinas sufocando as janelas, ah, que delícia,
que bom, Marcelo!, como vamos dormir?, espere pelo menos eu mostrar o
disco, tem uma capa linda, eles vão gostar, está aqui no fundo com as cartas
e os mapas, acho que não perdi, Shepp. Amanhã você me mostra, está se
resfriando de verdade, tire a roupa rápido, melhor eu apagar a luz, assim
vemos o fogo, ah, é mesmo, Marcelo, que brasas!, todos os gatos juntos,
olhe as chispas, está bom aqui no escuro, dá até pena de dormir, e ele
largando o paletó no encosto de uma poltrona, aproximando-se da ursinha
acocorada contra a lareira, tirando os sapatos junto dela, se agachando para
sentar-se diante do fogo, vendo o lume e as sombras correrem por seus
cabelos soltos, ajudando-a a tirar a blusa, procurando o fecho do sutiã, sua
boca já sobre o ombro nu, as mãos indo à caça entre as chispas, baixinha
ranhenta, ursinha boboca, em algum momento já nus de pé diante do fogo
se beijando, fria a cama e branca e de repente mais nada, um fogo total
correndo pela pele, a boca de Lina em seu cabelo, em seu peito, as mãos
pelas costas, os corpos se deixando levar e conhecer e só um gemido, uma
respiração ofegante e ter de lhe dizer porque isso ele tinha mesmo de dizer,
antes do fogo e do sonho tinha de dizer, Lina, você não está fazendo isso
por agradecimento, né?, e as mãos perdidas em suas costas subindo como
açoites em seu rosto, em sua garganta, apertando-o furiosas, inofensivas,
dulcíssimas e furiosas, pequeninas e raivosamente fincadas, quase um
soluço, um gemido de protesto e negação, uma raiva também na voz, como
você pode, como você pode, Marcelo?, e agora assim, então sim, tudo bem
assim, desculpe meu amor me desculpe eu tinha que dizer me desculpe
docinho me desculpe, as bocas, o outro fogo, as carícias de bordas rosadas,
a bolha que treme nos lábios, fases do conhecimento, silêncios em que tudo
é pele ou escorrer lento de cabelos, rajada de pálpebra, negação e demanda,
garrafa de água mineral bebida no gargalo, que vai passando por uma
mesma sede de uma boca a outra, terminando nos dedos que tenteiam na
mesinha de cabeceira, que acendem, há aquele gesto de cobrir o abajur com
uma cueca, com qualquer coisa, de dourar o ar para começar a olhar Lina de
costas, a ursinha de lado, a ursinha de bruços, a pele suave da Lina que lhe
pede um cigarro, sentada nos travesseiros, você é ossudo e peludíssimo,
Shepp, espere que vou cobri-lo um pouco se encontrar um cobertor, olhe ele
ali nos pés da cama, parece que as beiradas ficaram chamuscadas, como não
percebemos, Shepp?
Depois o fogo lento e baixo na lareira, neles, diminuindo e se dourando, a
água já bebida, os cigarros, os cursos universitários eram um nojo, eu me
entediava tanto, o melhor de tudo eu fui aprendendo nos cafés, lendo antes
do cinema, falando com Cecilia e Pirucho, e ele a ouvindo, o Rubí, tão
parecido com o Rubí de vinte anos atrás, Arlt e Rilke e Eliot e Borges, só
que Lina sim, ela sim em seu veleiro de carona, em suas singraduras de
Renault ou de Volkswagen, a ursinha entre folhas secas e chuva na franja,
mas por que outra vez tanto veleiro e tanto Rubí, ela que não os conhecia,
que nem tinha nascido ainda, chileninha fedelha vagabunda Copenhague,
por que desde o começo, desde a sopa e o vinho branco esse ir jogando na
cara sem saber tanta coisa passada e perdida, tanto cachorro enterrado, tanto
veleiro por seiscentos pesos, Lina olhando-o meio dormindo, deslizando
nos travesseiros com um suspiro de bicho satisfeito, procurando seu rosto
com as mãos, gosto de você, ossudo, você já leu todos os livros, Shepp,
quer dizer, com você a gente se sente bem, você está por dentro, tem essas
mãos grandes e fortes, tem vida por trás, você não é velho. De maneira que
a ursinha o sentia vivo apesar de, mais vivo que os de sua idade, os
cadáveres do filme de Romero e quem seria esse debaixo da franja onde o
pequeno teatro agora deslizava úmido para o sono, os olhos semicerrados
olhando para ele, tomá-la docemente mais uma vez, sentindo-a e deixando-
a ao mesmo tempo, ouvir seu ronronar meio de protesto, estou com sono,
Marcelo, assim não, sim meu amor, sim, seu corpo leve e duro, as coxas
rijas, o ataque devolvido duplicado sem trégua, não mais Marlene em
Bruxelas, as mulheres pausadas e seguras como ele, com todos os livros já
lidos, ela, a ursinha, seu jeito de receber sua força e de responder a ela, mas
depois, ainda à beira desse vento cheio de chuva e gritos, deslizando, por
sua vez, para a sonolência, perceber que isso também era veleiro e
Copenhague, sua cara afundada entre os seios de Lina era a cara do Rubí, as
primeiras noites adolescentes com Mabel ou Nélida no apartamento
emprestado do Monito, as rajadas furiosas e elásticas e, quase em seguida,
por que não vamos dar uma volta no centro?, me passe os bombons, se a
mamãe fica sabendo. Então nem mesmo assim, nem mesmo no amor se
abolia aquele espelho voltado para trás, o velho retrato de si mesmo jovem
que Lina punha à sua frente acariciando-o e Shepp e vamos dormir agora e
mais um pouquinho de água, por favor; como ter sido ela, a partir dela, em
cada coisa, insuportavelmente absurdo irreversível e no fim o sono entre as
últimas carícias murmuradas e todo o cabelo da ursinha varrendo-lhe o
rosto como se algo nela soubesse, como se quisesse apagá-lo para que
acordasse outra vez Marcelo, como acordou às nove e Lina no sofá se
penteava cantarolando, já vestida para outra estrada e outra chuva. Não
conversaram muito, foi um café da manhã rápido e havia sol, a muitos
quilômetros de Kindberg pararam para tomar outro café, Lina quatro torrões
de açúcar e a cara lavada, meio ausente, uma espécie de felicidade abstrata,
e então, sabe, não fique brabo, me diga que não vai ficar brabo, mas claro
que não, pode falar o que quiser, se precisar de alguma coisa, parando bem
no limite do lugar-comum porque a palavra estivera ali como as notas de
dinheiro em sua carteira esperando que as usassem, e já prestes a dizê-la
quando a mão de Lina tímida na sua, a franja cobrindo seus olhos e por fim
perguntar se podia continuar com ele mais um pouco, embora o itinerário já
não fosse o mesmo, e daí?, continuar mais um pouco com ele porque se
sentia tão bem, que durasse um pouquinho mais com esse sol, podemos
dormir num bosque, vou lhe mostrar o disco e os desenhos, só até de noite,
se você quiser, e sentir que sim, que queria, que não tinha nenhum motivo
para não querer, e afastar lentamente a mão e dizer que não, melhor não,
sabe, aqui você vai conseguir fácil, é um grande cruzamento, e a ursinha
acatando como se tivesse levado um tranco, distante, comendo de cabeça
baixa os torrões de açúcar, vendo-o pagar e se levantar e lhe trazer a
mochila e dar-lhe um beijo no cabelo e dar-lhe as costas e sumir numa
furiosa mudança de velocidades, cinquenta, oitenta, cento e dez, a rota
aberta para os representantes de materiais pré-fabricados, a rota sem
Copenhague e cheia apenas de veleiros apodrecidos nos acostamentos, de
empregos cada vez mais bem pagos, do burburinho portenho do Rubí, da
sombra do plátano solitário na curva, do tronco onde se incrustou a cento e
sessenta, com a cabeça enfiada no volante como Lina tinha abaixado a
cabeça porque as ursinhas a abaixam desse jeito para comer açúcar.
As fases de Severo
A Remedios Varo, in memoriam
T
udo parecia estar quieto, de algum modo congelado em seu próprio
movimento, seu cheiro e sua forma seguiam e mudavam com a
fumaça e a conversa em voz baixa entre cigarros e drinques. O
Bebe Pessoa já dera três palpites para San Isidro, a irmã de Severo
costurava as quatro moedas nas pontas do lenço para quando coubesse a
Severo o momento do sono. Não éramos muitos, mas de repente uma casa
fica pequena, entre duas frases se arma o cubo transparente de dois ou três
segundos de suspensão, e nessas horas alguns deviam sentir, como eu, que
tudo isso, por mais inevitável que fosse, nos doía por causa de Severo, da
mulher de Severo, dos amigos de tantos anos.
Chegamos por volta das onze da noite, eu, Ignacio, o Bebe Pessoa e meu
irmão Carlos. Éramos meio que da família, principalmente Ignacio, que
trabalhava no mesmo escritório que Severo, e entramos sem que reparassem
muito em nós. O filho mais velho de Severo nos pediu que entrássemos no
quarto, mas Ignacio disse que ficaríamos um pouco ali na copa; havia gente
por toda parte da casa, amigos ou parentes que também não queriam
incomodar e iam se sentando nos cantos ou se reuniam ao lado de uma
mesa ou de um aparador para conversar ou se olhar. De tempos em tempos
os filhos ou a irmã traziam café e copos de aguardente, e quase sempre
nesses momentos tudo se aquietava como se congelasse em seu próprio
movimento, e na lembrança começava a esvoaçar aquela frase idiota:
“Passou um anjo”, mas embora depois eu comentasse uma dobradinha do
Negro Acosta em Palermo, ou Ignacio acariciasse o cabelo crespo do filho
caçula de Severo, todos nós sentíamos, no fundo, que a imobilidade
perdurava, que parecíamos estar esperando coisas já acontecidas ou que
tudo o que podia acontecer talvez fosse outra coisa, ou nada, como nos
sonhos, embora estivéssemos acordados e de vez em quando, sem querer
escutar, ouvíssemos o choro da mulher de Severo, quase tímido, num canto
da sala onde os parentes mais próximos deviam estar lhe fazendo
companhia.
A gente vai se esquecendo da hora nessas situações, ou, como disse rindo
o Bebe Pessoa, acontece o contrário, e é a hora que se esquece da gente,
mas logo o irmão de Severo veio dizer que ia começar o suadouro, e
esmagamos as pontas dos cigarros e fomos entrando um por um no quarto,
onde cabíamos quase todos porque a família tinha tirado os móveis e só
restavam ali a cama e uma mesinha de cabeceira. Severo estava sentado na
cama, apoiado nos travesseiros, e a seus pés se via uma coberta de sarja
azul e uma toalha azul-clara. Não havia nenhuma necessidade de ficar
calado, e os irmãos de Severo nos convidavam com gestos cordiais (todos
são tão boa gente) a nos aproximar da cama, a rodear Severo, que estava
com as mãos cruzadas sobre os joelhos. Até o filho caçula, tão pequeno,
agora estava ao lado da cama olhando para o pai com cara de sono.
A fase do suor era desagradável porque no final era preciso trocar os
lençóis e o pijama, até os travesseiros iam ficando ensopados e pesavam
como enormes lágrimas. Ao contrário de outros que, segundo Ignacio,
tendiam a ficar impacientes, Severo ficava imóvel, nem olhava para nós, e
quase no mesmo instante o suor já estava cobrindo seu rosto e suas mãos.
Seus joelhos se recortavam como duas manchas escuras, e embora sua irmã
lhe enxugasse o tempo todo o suor do rosto, a transpiração brotava de novo
e caía sobre o lençol.
— E olhe que, no fundo, está indo muito bem — insistiu Ignacio, que
tinha ficado perto da porta. — Seria pior se ele se mexesse, os lençóis
grudam que dá medo.
— Papai é um homem tranquilo — disse o filho mais velho de Severo. —
Não é dos que dão trabalho.
— Já vai acabar — disse a mulher de Severo, que tinha entrado no final e
trazia um pijama limpo e um jogo de lençóis. Acho que todos nós, sem
exceção, a admiramos como nunca nesse momento, porque sabíamos que
um pouco antes estivera chorando e agora era capaz de cuidar do marido
com o semblante tranquilo e sossegado, até enérgico. Imagino que alguns
parentes disseram frases animadoras a Severo, eu já estava no saguão e a
filha caçula me oferecia uma xícara de café. Gostaria de ter puxado
conversa com ela para distraí-la, mas os outros já estavam entrando e
Manuelita é um pouco tímida, pode pensar que estou interessado nela, então
prefiro me manter neutro. Já o Bebe Pessoa é daqueles que vão e vêm pela
casa e entre as pessoas como se nada estivesse acontecendo, e ele, Ignacio e
o irmão de Severo já tinham formado um grupo com algumas primas e suas
amigas, falando em fazer um mate amargo que àquela hora cairia bem a um
punhado de gente pois ajuda o churrasco a descer. No fim, não foi possível,
num daqueles momentos em que todos nós estávamos imóveis (insisto em
que nada mudava, continuávamos falando ou gesticulando, mas era assim e
é preciso dizer isso de alguma forma e lhe dar uma razão ou um nome) o
irmão de Severo chegou com um lampião a gás e da porta nos preveniu que
ia começar a fase dos saltos. Ignacio bebeu o café de um gole só e disse que
naquela noite tudo parecia estar indo mais depressa; foi um dos que ficaram
perto da cama, com a mulher de Severo e o filho caçula, que ria porque a
mão direita de Severo oscilava como um metrônomo. Sua mulher o vestira
com um pijama branco e a cama estava outra vez impecável; sentimos o
cheiro da água-de-colônia e o Bebe fez um gesto de admiração para
Manuelita, que devia ter pensado naquilo. Severo deu o primeiro salto e
ficou sentado na beirada da cama olhando para a irmã, que o animava com
um sorriso um pouco idiota e protocolar. Qual a necessidade daquilo, pensei
eu, que prefiro as coisas limpas; e que podia importar a Severo que sua irmã
o animasse ou não? Os saltos se sucediam ritmadamente: sentado na beirada
da cama, sentado contra a cabeceira, sentado na beirada oposta, de pé no
meio da cama, de pé no chão entre Ignacio e o Bebe, de cócoras no chão
entre sua mulher e o irmão, sentado no canto da porta, de pé no meio do
quarto, sempre entre dois amigos ou parentes, caindo justamente nos vazios,
enquanto ninguém se movia e apenas os olhos o iam seguindo, sentado na
beirada da cama, de pé contra a cabeceira, de cócoras no meio da cama,
ajoelhado na beirada da cama, de pé entre Ignacio e Manuelita, de joelhos
entre mim e o filho caçula, sentado ao pé da cama. Quando a mulher de
Severo anunciou o fim da fase, todos começaram a falar ao mesmo tempo e
a cumprimentar Severo, que parecia alheio; não lembro quem o
acompanhou de volta à cama porque saímos ao mesmo tempo comentando
a fase e atrás de alguma coisa para acalmar a sede, e fui com o Bebe até o
pátio para respirarmos o ar da noite e bebermos duas cervejas no gargalo.
Na fase seguinte houve uma mudança, eu me lembro, porque segundo
Ignacio tinha de ser a dos relógios só que em vez disso ouvimos mais uma
vez a mulher de Severo chorando na sala e quase no ato veio o filho mais
velho nos dizer que as aleluias já estavam entrando. Entreolhamo-nos um
pouco admirados com o Bebe e Ignacio, mas não estava descartado que
pudesse haver mudanças e o Bebe disse o de sempre sobre a ordem dos
fatores e coisas do gênero; acho que ninguém estava gostando da mudança,
mas disfarçávamos ao entrar de novo formando um círculo ao redor da
cama de Severo, que a família havia colocado, como cabia, no centro do
quarto.
O irmão de Severo chegou por último com o lampião a gás, apagou o
lustre do teto e empurrou a mesinha de cabeceira até os pés da cama;
quando pôs o lampião na mesinha, ficamos calados e imóveis, olhando para
Severo, que tinha se erguido um pouco sobre os travesseiros e não parecia
estar cansado demais pelas fases anteriores. As aleluias começaram a entrar
pela porta, e as que já estavam nas paredes ou no teto se somaram às outras
e começaram a revolutear em torno do lampião. Com os olhos bem abertos,
Severo seguia o torvelinho acinzentado que aumentava cada vez mais, e
parecia concentrar todas as suas forças nessa contemplação sem pestanejos.
Uma das aleluias (era muito grande, acho que na verdade era uma falena,
mas nessa fase só se falava em aleluias e ninguém ali iria discutir seu nome)
se soltou das outras e voou para o rosto de Severo; vimos que ela grudava
em sua bochecha direita e que Severo fechava os olhos por um instante.
Uma atrás da outra, as traças abandonaram a lâmpada e voaram em torno de
Severo, grudando em seu cabelo, na boca e na testa até transformá-lo numa
enorme máscara trêmula em que apenas os olhos continuavam sendo os
dele, fitando obstinados o lampião a gás onde uma aleluia teimava em girar
procurando a entrada. Senti os dedos de Ignacio se cravando em meu
antebraço, e só então percebi que eu também tremia e estava com a mão
afundada no ombro do Bebe. Alguém gemeu, uma mulher, provavelmente
Manuelita, que não sabia se controlar como os demais, e nesse exato
momento a última traça voou até o rosto de Severo e se perdeu na massa
cinza. Todos gritamos ao mesmo tempo, abraçando-nos e batendo palmas,
enquanto o irmão de Severo corria a acender o lustre do teto; uma nuvem de
aleluias buscava desajeitadamente a saída, e Severo, outra vez a cara de
Severo, continuava olhando a lâmpada, inútil agora, movendo
cautelosamente a boca como se temesse se envenenar com a poeira de prata
que lhe cobria os lábios.
Não fiquei ali porque tinham de lavar Severo e alguém já estava falando
de uma garrafa de grapa na cozinha, além do que nesses casos sempre
surpreende como as bruscas recaídas na normalidade, por assim dizer,
distraem e até enganam. Segui Ignacio, que conhecia todos os cantos, e
entornamos a grapa com o Bebe e o filho mais velho de Severo. Meu irmão
Carlos tinha se jogado num banco e fumava com a cabeça baixa, respirando
forte; levei-lhe um copo e ele o bebeu de um trago. O Bebe Pessoa insistia
para que Manuelita tomasse um trago, e até lhe falava de cinema e de
corridas; eu mandava uma grapa atrás da outra sem querer pensar em nada,
até que não aguentei mais e procurei Ignacio, que parecia me esperar de
braços cruzados.
— Se a última aleluia tivesse escolhido… — comecei.
Ignacio fez um lento sinal negativo com a cabeça. Naturalmente, não era
preciso perguntar; pelo menos nesse momento não era preciso perguntar;
não sei se entendi direito, mas tive a sensação de um grande vazio, algo
como uma cripta vazia que em alguma parte da memória latejava
lentamente com um gotejar de infiltrações. Na negação de Ignacio (e de
longe me pareceu que o Bebe Pessoa também negava com a cabeça, e que
Manuelita nos olhava ansiosa, tímida demais para também negar) parecia
haver uma suspensão do juízo, um não querer seguir em frente; as coisas
eram assim em seu presente absoluto, conforme iam ocorrendo. Então
podíamos continuar, e quando a mulher de Severo entrou na cozinha para
avisar que Severo ia dizer os números, deixamos os copos pela metade e
nos apressamos, Manuelita entre mim e o Bebe, Ignacio atrás com meu
irmão Carlos, que sempre chega atrasado em toda parte.
Os parentes já estavam amontoados no quarto e não restava muito espaço
onde ficar. Eu tinha acabado de entrar (agora o lampião a gás ardia no chão,
ao lado da cama, mas o lustre continuava aceso) quando Severo se levantou,
pôs as mãos nos bolsos do pijama, e olhando para seu filho mais velho
disse: “6”, olhando para sua mulher disse: “20”, olhando para Ignacio disse:
“23”, com uma voz tranquila e vinda de baixo, sem se apressar. Para sua
irmã disse 16, para o filho caçula, 28, para outros parentes foi dizendo
números quase sempre altos, até que disse 2 para mim e percebi que o Bebe
me olhava de soslaio e apertava os lábios, esperando sua vez. Mas Severo
começou a dizer números para outros parentes e amigos, quase sempre
acima de 5 e sem repeti-los nenhuma vez. Quase no final, disse 14 para o
Bebe, e o Bebe abriu a boca e estremeceu como se uma ventania passasse
entre suas sobrancelhas, esfregou as mãos e depois sentiu vergonha e as
escondeu nos bolsos da calça justo quando Severo dizia 1 para uma mulher
de faces muito coradas, provavelmente uma parente distante que viera
sozinha e que não tinha falado com quase ninguém naquela noite, e de
repente Ignacio e o Bebe se olharam e Manuelita se encostou no batente da
porta, e me pareceu que tremia, que se continha para não gritar. Os demais
já não prestavam atenção em seus números, Severo os dizia da mesma
forma mas eles começavam a conversar, inclusive Manuelita quando se
recompôs e deu dois passos à frente e lhe coube o 9, ninguém mais se
preocupava e os números terminaram num oco 24 e num 12 que couberam a
um parente e a meu irmão Carlos; o próprio Severo parecia menos
concentrado e com o último número se jogou para trás e deixou que a
mulher o cobrisse, fechando os olhos como quem se desinteressa ou
esquece.
— Claro que é uma questão de tempo — Ignacio me disse quando saímos
do quarto. — Os números, por si só, não querem dizer nada, cara.
— Você acha? — perguntei, virando o copo que o Bebe tinha trazido para
mim.
— Mas claro, tchê — disse Ignacio. — Veja que do 1 ao 2 podem se
passar anos, uns dez ou vinte, numa dessas até mais.
— Com certeza — apoiou o Bebe. — Se eu fosse você, não ficaria aflito.
Fiquei pensando que ele tinha me trazido o copo sem que ninguém
pedisse, incomodando-se em ir até a cozinha com toda aquela gente. E a ele
coubera o 14, e a Ignacio o 23.
— Sem contar que tem o assunto dos relógios — disse meu irmão Carlos,
que se pusera a meu lado e apoiava a mão em meu ombro. — Não dá pra
entender isso direito, mas deve ter sua importância. Se cabe a você
atrasar…
— Vantagem adicional — disse o Bebe, pegando o copo vazio da minha
mão como se tivesse medo de que caísse no chão.
Estávamos no saguão ao lado do quarto, e por isso fomos os primeiros a
entrar quando o filho mais velho de Severo veio justamente nos dizer que a
fase dos relógios estava começando. Tive a impressão de que o rosto de
Severo emagrecera de repente, mas sua mulher tinha acabado de penteá-lo e
ele recendia de novo a água-de-colônia, o que sempre dá mais confiança.
Meu irmão, Ignacio e o Bebe me rodeavam, como se quisessem levantar
meu moral, mas em compensação ninguém cuidava da parente que tinha
tirado o 1 e que estava aos pés da cama com o rosto mais vermelho que
nunca, a boca e as pálpebras trêmulas. Sem sequer olhar para ela, Severo
disse ao filho caçula que adiantasse, o guri não entendeu e começou a rir,
até que sua mãe o pegou pelo braço e tirou seu relógio de pulso. Sabíamos
que era um gesto simbólico, bastava simplesmente adiantar ou atrasar os
ponteiros sem atentar para o número de horas ou minutos, já que ao sair do
quarto voltaríamos a acertar os relógios. Vários ali já deviam adiantar ou
atrasar, Severo dava as indicações quase automaticamente, sem interesse;
quando chegou minha vez de atrasar, meu irmão voltou a cravar os dedos
em meu ombro; dessa vez lhe agradeci, pensando, como o Bebe, que podia
ser uma vantagem adicional embora ninguém pudesse ter certeza disso;
também era a vez da parente de faces coradas atrasar, e a coitada enxugava
umas lágrimas de gratidão, talvez completamente inúteis, afinal, e ia para o
pátio ter um ataque de nervos entre os vasos; depois ouvimos alguma coisa,
lá da cozinha, entre novos copos de grapa e os cumprimentos de Ignacio e
de meu irmão.
— Em breve vai ser o sono — disse-nos Manuelita —, mamãe manda
dizer que se preparem.
Não havia muito o que preparar, voltamos para o quarto devagar,
arrastando o cansaço da noite; ia amanhecer logo, e era dia útil, havia um
emprego esperando por quase todos nós às nove ou às nove e meia; de
repente começava a fazer mais frio, a brisa gelada do pátio penetrando pelo
saguão, mas no quarto as luzes e as pessoas aqueciam o ar, quase não se
falava e bastava que se olhassem para ir conseguindo um lugar, postando-se
ao redor da cama depois de apagar os cigarros. A mulher de Severo estava
sentada na cama, ajeitando os travesseiros, mas se levantou e foi até a
cabeceira; Severo olhava para cima, ignorando-nos, olhava para o lustre
aceso sem piscar, com as mãos apoiadas no ventre, imóvel e indiferente
olhava sem piscar para o lustre aceso e então Manuelita se aproximou da
beirada da cama e todos nós vimos na mão dela o lenço com as moedas
amarradas nas quatro pontas. Só restava esperar, quase suando naquele ar
confinado e quente, sentindo agradecidos o aroma da água-de-colônia e
pensando no momento em que por fim poderíamos sair da casa e fumar
conversando na rua, discutindo ou não sobre aquela noite, provavelmente
não mas fumando até nos perdermos pelas esquinas. Quando as pálpebras
de Severo começaram a baixar lentamente, apagando-lhe pouco a pouco a
imagem do lustre aceso, senti perto da orelha a respiração sufocada do Bebe
Pessoa. Houve uma mudança brusca, um relaxamento, senti isso como se
não passássemos de um único corpo com incontáveis pernas e mãos e
cabeças relaxando de repente, compreendendo que era o fim, o sono de
Severo que começava, e o gesto de Manuelita ao se inclinar sobre o pai e
cobrir seu rosto com um lenço, dispondo as quatro pontas de maneira que o
sustentassem naturalmente, sem rugas nem espaços descobertos, era a
mesma coisa que aquele suspiro contido que envolvia todos nós, cobria
todos nós com o mesmo lenço.
— Agora ele vai dormir — disse a mulher de Severo. — Já está dormindo,
vejam.
Os irmãos de Severo tinham levado um dedo aos lábios, mas não era
preciso, ninguém diria nada, começávamos a nos mover na ponta dos pés,
apoiando-nos uns nos outros para sair sem fazer barulho. Alguns ainda
olhavam para trás, para o lenço no rosto de Severo, como se quisessem ter
certeza de que Severo estava adormecido. Senti um cabelo crespo e duro na
mão direita, era o filho caçula de Severo que um parente deixara perto dele
para que não falasse nem se mexesse, e que agora tinha vindo se encostar
em mim, brincando de andar na ponta dos pés e me olhando de baixo com
olhos interrogantes e cansados. Acariciei seu queixo, as faces, levando-o
junto a mim saí em direção ao saguão e ao pátio, entre Ignacio e o Bebe,
que já apanhavam os maços de cigarro; o cinza do amanhecer com um galo
ao fundo devolvia cada um à sua própria vida, ao futuro já instalado nesse
cinza e nesse frio, terrivelmente belo. Pensei que a mulher de Severo e
Manuelita (talvez os irmãos e o filho mais velho) continuavam lá dentro
velando o sono de Severo, mas nós já estávamos a caminho da rua, já
deixávamos para trás a cozinha e o pátio.
— Não vão mais brincar? — perguntou-me o filho de Severo, caindo de
sono mas com a obstinação de todos os garotos.
— Não, já é hora de dormir — disse-lhe. — Sua mãe vai pôr você na
cama, ande, vá pra dentro que está frio.
— Era uma brincadeira, né, Julio?
— Sim, meu chapa, era uma brincadeira. Agora vá dormir.
Ignacio, o Bebe, meu irmão e eu chegamos à primeira esquina, acendemos
outro cigarro sem falar muito. Os outros já estavam longe, alguns
continuavam em pé na porta da casa, consultando-se sobre bondes ou táxis;
nós conhecíamos bem o bairro, podíamos seguir juntos os primeiros
quarteirões, depois o Bebe e meu irmão virariam à esquerda, Ignacio
seguiria mais uns quarteirões, e eu subiria ao meu quarto e poria a chaleira
do mate para esquentar, pois nem valia a pena deitar por tão pouco tempo,
melhor pôr a pantufa e fumar e tomar mate, essas coisas que ajudam.
N
ão era a primeira vez, aliás, que isso acontecia com ele, mas de
qualquer modo era sempre Lucho quem tomava a iniciativa,
encostando a mão meio que por descuido para roçar a de uma
loira ou a de uma ruiva de seu agrado, aproveitando os vaivéns
nas curvas do metrô, e então por aí havia uma resposta, havia gancho, um
dedinho ficava preso um pouco antes da cara de aborrecimento ou
indignação, tudo dependia de tanta coisa, às vezes dava certo, fluía, o resto
entrava no jogo como iam entrando as estações nas janelas do vagão, mas
naquela tarde estava acontecendo de outra maneira, primeiro que Lucho
estava gelado e com o cabelo cheio de neve que derretera na estação e gotas
frias escorriam por dentro de seu cachecol, tinha subido no metrô na estação
da Rue du Bac sem pensar em nada, um corpo colado a tantos outros
esperando que em algum momento chegasse o aquecedor, o copo de
conhaque, a leitura do jornal antes de começar a estudar alemão entre as
sete e meia e as nove, o de sempre a não ser por aquela luvinha preta
agarrada na barra de apoio, entre montes de mãos e cotovelos e casacos
uma luvinha preta agarrada na barra metálica e ele com sua luva marrom
molhada firme na barra para não cair em cima da senhora dos pacotes e da
menina chorona, de repente a consciência de que um dedo pequenino
parecia estar montando a cavalo por sua luva, que aquilo surgia de uma
manga de pele de coelho meio gasta, a mulata parecia bem jovem e olhava
para baixo meio alheada, só mais um balanço entre o balanço de tantos
corpos apinhados; para Lucho aquilo parecera um desvio da regra bem
divertido, deixou a mão solta, sem responder, imaginando que a garota
estava distraída, que não percebia aquela leve cavalgada no cavalo molhado
e quieto. Gostaria de ter espaço suficiente para poder tirar o jornal do bolso
e ler as manchetes onde se falava de Biafra, de Israel e do Estudiantes de la
Plata, mas o jornal estava no bolso direito e para pegá-lo teria de soltar a
mão da barra, perdendo o apoio necessário nas curvas, de maneira que era
melhor se manter firme, abrindo um pequeno espaço precário entre
sobretudos e pacotes para que a menina ficasse menos triste e sua mãe não
continuasse falando com ela naquele tom de cobrador de impostos.
Quase não tinha olhado para a garota mulata. Então imaginou a vasta
cabeleira crespa sob o capuz do casaco e pensou criticamente que com o
calor do vagão ela podia muito bem ter jogado o capuz para trás, justo
quando o dedo acariciava de novo sua luva, primeiro um dedo e depois dois
subindo no cavalo úmido. A curva antes da Montparnasse-Bienvenue jogou
a menina em cima de Lucho, sua mão escorregou do cavalo para se segurar
na barra, tão pequena e tonta ao lado do grande cavalo que naturalmente
agora tentava lhe fazer cócegas com um focinho de dois dedos, sem forçar,
divertido e ainda distante e úmido. A moça pareceu perceber de repente
(mas sua distração, antes, também tivera algo de repentino e brusco) e
afastou um pouco mais a mão, olhando para Lucho do vão escuro formado
pelo capuz, observando depois sua própria mão, como se não concordasse
ou estudasse as distâncias da boa educação. Muita gente tinha descido na
Montparnasse-Bienvenue e Lucho agora podia pegar o jornal, só que em
vez de pegá-lo ficou estudando o comportamento da mãozinha enluvada
com uma atenção um pouco zombeteira, sem olhar para a garota, que estava
novamente com os olhos postos nos sapatos, agora bem visíveis no piso
sujo onde de repente faltavam a menina chorona e tanta gente que estava
descendo na estação Falguière. O tranco do arranque obrigou as duas luvas
a se crisparem na barra, separadas e agindo por conta própria, mas o trem
estava parado na estação Pasteur quando os dedos de Lucho procuraram a
luva preta, que não se retirou como da primeira vez e pareceu ao invés disso
se afrouxar na barra, tornar-se ainda menor e macia sob a pressão de dois,
de três dedos, da mão inteira que subia numa lenta posse delicada, sem
encostar muito, pegando e soltando ao mesmo tempo, e no vagão quase
vazio agora que se abriam as portas na estação Volontaires, a moça girando
pouco a pouco sobre um pé enfrentou Lucho sem levantar o rosto, como se
o olhasse ali da luvinha coberta pela mão inteira de Lucho, e quando
finalmente o olhou, os dois sacudidos por um solavanco entre a Volontaires
e a Vaugirard, seus grandes olhos metidos na sombra do capuz pareciam
estar ali esperando, fixos e sérios, sem o menor sorriso nem reprovação,
sem mais nada além de uma espera interminável que vagamente fez mal a
Lucho.
— É sempre assim — disse a moça. — Não se pode com elas.
— Ah — disse Lucho, aceitando o jogo mas se perguntando por que não
era divertido, por que não o sentia como um jogo, embora não pudesse ser
outra coisa, embora não houvesse nenhuma razão para imaginar que fosse
outra coisa.
— Não dá pra fazer nada — repetiu a garota. — Não entendem ou não
querem, vá saber, mas não dá pra fazer nada contra.
Estava falando com a luva, olhando para Lucho sem vê-lo ela estava
falando com a luvinha preta quase invisível sob a grande luva marrom.
— Comigo acontece a mesma coisa — disse Lucho. — São incorrigíveis,
é verdade.
— Não é a mesma coisa — disse a garota.
— Ah, é sim, você viu.
— Não vale a pena falar nisso — disse ela, baixando a cabeça. —
Desculpe, foi culpa minha.
Era o jogo, claro, mas por que não era divertido, por que não o sentia
como um jogo, embora não pudesse ser outra coisa, embora não houvesse
nenhuma razão para imaginar que fosse outra coisa?
— Digamos que a culpa foi delas — disse Lucho, afastando a mão para
marcar o plural, para denunciar as culpadas na barra, as enluvadas
silenciosas distantes quietas na barra.
— É diferente — disse a garota. — Pra você parece a mesma coisa, mas é
bem diferente.
— Bem, sempre tem uma que começa.
— É, sempre tem uma.
Era o jogo, não era mais preciso seguir as regras sem imaginar que
houvesse outra coisa, uma espécie de verdade ou de desespero. Por que se
fazer de bobo em vez de seguir a correnteza, se ela levava a isso?
— Tem razão — disse Lucho. — Alguma coisa tinha que ser feita, e não
deixar que elas…
— Não adianta nada — disse a garota.
— É verdade, é só a gente se distrair, e pronto.
— É — disse ela. — Embora você esteja falando isso só de brincadeira.
— Ah, não, falo tão sério como você. Olhe só pra elas.
A luva marrom brincava de roçar a luvinha preta imóvel, passava um dedo
por sua cintura, soltava-a, ia até o extremo da barra e ficava olhando para
ela, esperando. A garota abaixou ainda mais a cabeça e Lucho se perguntou
mais uma vez por que tudo aquilo não era divertido agora que não restava
outra coisa a não ser continuar jogando.
— Se fosse sério — disse a garota, mas não estava falando com ele, não
estava falando com ninguém no vagão quase vazio. — Se fosse sério, aí
quem sabe.
— É sério — disse Lucho — e realmente não dá pra fazer nada.
Agora ela o olhou de frente, como se acordasse; o metrô entrava na
estação Convention.
— As pessoas não conseguem entender — disse a garota. — E quando é
um homem, claro, logo imagina que…
Vulgar, naturalmente, e também tinha de se apressar porque só faltavam
três estações.
— Pior ainda se for uma mulher — estava dizendo a garota. — Já
aconteceu comigo, e isso porque fico de olho nelas desde que subo, o tempo
todo, mas sabe como é.
— Sem dúvida — concordou Lucho. — Chega um momento em que a
gente se distrai, é natural, e então elas aproveitam.
— Não fale por você — disse a garota. — Não é a mesma coisa.
Desculpe, a culpa foi minha, vou descer na Corentin Celton.
— Claro que teve culpa — caçoou Lucho. — Eu deveria ter descido na
Vaugirard, e veja, você me fez passar duas estações.
A curva os jogou contra a porta, as mãos escorregaram até se juntar no
extremo da barra. A garota continuava dizendo alguma coisa, desculpando-
se tolamente; Lucho sentiu outra vez os dedos da luva preta subindo em sua
mão, envolvendo-a. Quando ela a soltou bruscamente, murmurando uma
despedida confusa, só havia uma coisa a fazer, segui-la na plataforma da
estação, ficar a seu lado e buscar sua mão, que parecia perdida de cabeça
para baixo no final da manga, balançando a esmo.
— Não — disse a garota. — Por favor, não. Me deixe continuar sozinha.
— Claro — disse Lucho, sem soltar sua mão. — Mas não gosto que você
vá embora assim, agora. Se tivéssemos tido mais tempo no metrô…
— Para quê? De que adiantaria ter mais tempo?
— Quem sabe a gente acabasse encontrando alguma coisa juntos. Quer
dizer, alguma coisa a fazer.
— Mas você não entende — disse ela. — Você pensa que…
— Sei lá o que eu penso — disse Lucho com dignidade. — Sei lá se no
café da esquina o café é bom, nem se tem um café na esquina, pois quase
não conheço esse bairro.
— Tem um café — disse ela —, mas é ruim.
— Não negue que você sorriu.
— Não nego, mas o café é ruim.
— De qualquer forma, tem um café na esquina.
— Sim — disse ela, e dessa vez sorriu, olhando para ele. — Tem um café,
mas o café é ruim, e você acha que eu…
— Eu não acho nada — disse ele, e era uma maldita verdade.
— Obrigada — disse inacreditavelmente a garota. Respirava como se a
escada a cansasse, e Lucho teve a impressão de que tremia, mas de novo a
luva preta pequenina pendendo morna inofensiva ausente, outra vez a sentia
viver entre seus dedos, retorcer-se, apertar-se enroscar-se bulir estar bem
estar quente estar contente acariciante preta luva pequenina dedos dois três
quatro cinco um, dedos procurando dedos e luva em luva, preto em marrom,
dedo entre dedo, um entre um e três, dois entre dois e quatro. Isso
acontecia, balançava ali perto de seus joelhos, não dava para fazer nada, era
agradável e não dava para fazer nada, ou era desagradável mas não dava
para fazer nada da mesma forma, isso acontecia ali e não era Lucho quem
estava brincando com a mão que enfiava seus dedos entre os dele e se
enroscava e bulia, e também não era, de certa forma, a garota que ofegava
ao alcançar o alto da escada e erguia o rosto para a garoa como se quisesse
lavá-lo do ar parado e quente das galerias do metrô.
— Eu moro ali — disse a garota, mostrando uma janela alta entre tantas
janelas de tantos imóveis altos e iguais na calçada oposta. — Podíamos
fazer um nescafé, acho que é melhor que ir a um bar.
— Ah, é — disse Lucho, e agora eram seus dedos que iam se fechando
lentamente sobre a luva como quem aperta o pescoço de um gatinho preto.
O cômodo era bem grande e muito quente, com uma azaleia e uma
luminária de piso e discos de Nina Simone e uma cama bagunçada que a
garota, com vergonha e se desculpando, ajeitou com alguns puxões. Lucho
a ajudou a pôr xícaras e colheres na mesa perto da janela, fizeram um
nescafé forte e açucarado, ela se chamava Dina e ele Lucho. Contente,
parecendo aliviada, Dina falava da Martinica, de Nina Simone, às vezes
parecia quase núbil dentro daquele vestido liso cor de lacre, a minissaia lhe
caía bem, trabalhava num cartório, as fraturas de tornozelo eram dolorosas
mas esquiar em fevereiro na Haute Savoie, ah. Duas vezes ficou olhando
para ele, começou a dizer alguma coisa no mesmo tom da barra do metrô,
mas Lucho fez uma brincadeira, já decidido a dar um basta, a outra coisa,
inútil insistir, e ao mesmo tempo admitindo que Dina sofria, que talvez a
prejudicasse se renunciasse tão rápido à comédia, como se agora isso
tivesse alguma importância. E na terceira vez, quando Dina se inclinou para
pôr água quente em sua xícara, murmurando de novo que não era culpa sua,
que isso só acontecia de vez em quando, que ele já podia ver como tudo era
diferente agora, a água e a colherinha, a obediência de cada gesto, então
Lucho entendeu, e era diferente, era do outro lado, a barra valia, o jogo não
tinha sido um jogo, as fraturas de tornozelo e o esqui podiam ir para o
inferno agora que Dina falava de novo sem que ele a interrompesse ou a
fizesse se desviar, deixando-a, sentindo-a, quase esperando por ela,
acreditando porque era absurdo, a menos que fosse só porque Dina com sua
carinha triste, seus seios miúdos que desmentiam o trópico, simplesmente
porque Dina. Talvez fosse preciso me internar, dissera Dina sem exagero,
como um mero ponto de vista. Não dá pra viver assim, entenda, isso
acontece a qualquer momento, você é você, mas outras vezes. Outras vezes
o quê? Outras vezes palavrões, tapas na bunda, ir logo pra cama, menina,
pra que perder tempo. Mas aí. Aí o quê? Mas aí, Dina.
— Pensei que você tivesse entendido — disse Dina, de cara amarrada. —
Quando eu falo que talvez fosse preciso me internar.
— Bobagem. Mas eu, no começo…
— Eu sei. Como não pensaria isso, no começo? É bem isso, no começo
todo mundo se engana, é tão lógico. Tão lógico, tão lógico. E me internar
também seria lógico.
— Não, Dina.
— Claro que sim, porra. Me desculpe. Mas sim. Seria melhor que a outra
coisa, que tantas vezes. Ninfo não sei das quantas. Putinha, sapatão. No fim
das contas, seria bem melhor. Ou eu mesma devia cortá-las com uma
machadinha de picar carne. Mas eu não tenho machadinha — disse Dina,
sorrindo como para que a perdoasse mais uma vez, tão absurda ali reclinada
na poltrona, escorregando cansada, perdida, com a minissaia cada vez mais
para cima, esquecida de si mesma, olhando-as só pegar uma xícara, pôr o
nescafé, obedientes hipócritas atarefadas sapatões putinhas ninfo não sei
das quantas.
— Não diga bobagem — repetiu Lucho, perdido em algo que agora fazia
qualquer jogo, o do desejo, o da desconfiança, o da proteção. — Já sei que
não é normal, seria preciso encontrar as causas, seria preciso que. Em todo
caso, pra que ir tão longe? Estou falando da internação ou da machadinha.
— Quem sabe — disse ela. — Talvez seja preciso ir bem longe, até o fim.
Talvez seja a única maneira de sair dessa.
— O que quer dizer longe? — perguntou Lucho, cansado. — E qual é o
fim?
— Não sei, não sei de nada. Só tenho medo. Eu também ficaria
impaciente se alguém falasse assim comigo, mas tem dias que. Sim, dias. E
noites.
— Ah — disse Lucho, aproximando o fósforo do cigarro. — Porque de
noite também, claro.
— Sim.
— Mas não quando está sozinha.
— Também quando estou sozinha.
— Também quando está sozinha. Ah.
— Entenda, o que eu quero dizer é…
— Tudo bem — disse Lucho, tomando o café. — Está ótimo, bem quente.
Era disso que a gente precisava num dia como este.
— Obrigada — disse ela, simplesmente, e Lucho a fitou porque não tinha
pensado em agradecer nada, simplesmente sentia a recompensa daquele
momento de repouso, de que a barra tivesse por fim terminado.
— E olhe que não foi ruim nem desagradável — disse Dina, como se
adivinhasse. — Não ligo que você não acredite, mas pra mim não foi ruim
nem desagradável, pela primeira vez.
— Pela primeira vez o quê?
— Isso, não ter sido ruim nem desagradável.
— Que começassem a…?
— Sim, que começassem de novo, e que isso não fosse ruim nem
desagradável.
— Alguma vez a levaram presa por isso? — perguntou Lucho, baixando a
xícara até o pires com um movimento lento e deliberado, guiando sua mão
para que a xícara aterrissasse bem no centro do pires. É contagioso, tchê…
— Não, nunca, mas em compensação… Há outras coisas. Já disse, há os
que pensam que é de propósito, e eles também começam, como você. Ou se
enfurecem, como as mulheres, e aí preciso descer na primeira estação ou
sair correndo da loja ou do café.
— Não chore — disse Lucho. — Não vamos ganhar nada se você
começar a chorar.
— Não quero chorar — disse Dina. — Mas nunca tinha conseguido falar
com ninguém assim, depois de… Ninguém acredita em mim, ninguém
consegue acreditar em mim, você mesmo não acredita, só é gente boa e não
quer me magoar.
— Agora eu acredito em você — disse Lucho. — Há dois minutos eu era
como os outros. Talvez você devesse rir, em vez de chorar.
— Entenda — disse Dina, fechando os olhos. — Entenda que é inútil.
Você também não, mesmo que diga isso, mesmo que acredite. É idiota
demais.
— Já foi ver alguém?
— Sim, sabe como é, calmantes e mudança de ares. A gente se engana por
uns dias, pensa que…
— Sim — disse Lucho, passando os cigarros para ela. — Espere. Assim.
Vamos ver o que ela vai fazer.
A mão de Dina pegou o cigarro com o polegar e o indicador, e ao mesmo
tempo o anular e o mindinho tentaram se enroscar nos dedos de Lucho, que
mantinha o braço estendido, olhando fixo. Livre do cigarro, seus cinco
dedos desceram até cobrir a pequena mão morena, envolveram-na de leve,
começando uma lenta carícia que escorregou até deixá-la livre, tremendo no
ar; o cigarro caiu dentro da xícara. Bruscamente as mãos subiram até o
rosto de Dina, dobrada sobre a mesa, quebrando-se numa espécie de soluço
de vômito.
— Por favor — disse Lucho, levantando a xícara. — Por favor, não. Não
chore assim, isso tudo é tão absurdo.
— Não quero chorar — disse Dina. — Não devia chorar, pelo contrário,
mas entenda.
— Tome, vai lhe fazer bem, está quente; vou fazer outro pra mim, espere
eu lavar a xícara.
— Não, deixa que eu lavo.
Levantaram-se ao mesmo tempo e se esbarraram na borda da mesa. Lucho
deixou novamente a xícara suja sobre a toalha; as mãos pendiam bambas
contra os corpos; apenas os lábios se tocaram, Lucho olhando-a de frente e
Dina com os olhos fechados, as lágrimas.
— Talvez — murmurou Lucho —, talvez seja isso que devemos fazer, a
única coisa que podemos fazer, e então.
— Não, não, por favor — disse Dina, imóvel e sem abrir os olhos. —
Você não sabe o que… Não, melhor não, melhor não.
Lucho abraçara seus ombros, apertava-a devagar contra si, sentia a
respiração dela em sua boca, um hálito quente com cheiro de café e de pele
morena. Beijou-a bem na boca, afundando nela, buscando seus dentes, sua
língua; o corpo de Dina amolecia em seus braços, quarenta minutos antes
sua mão tinha acariciado a dele na barra de um assento de metrô, quarenta
minutos antes uma luva preta pequenina sobre uma luva marrom. Quase
não a sentia resistir, repetir a negativa na qual parece ter havido o princípio
de uma prevenção, mas tudo nela cedia, nos dois, agora os dedos de Dina
subiam lentamente pelas costas de Lucho, seu cabelo entrava em seus olhos,
seu cheiro era um cheiro sem palavras nem prevenções, a colcha azul em
seus corpos, os dedos obedientes procurando os fechos, espalhando roupas,
cumprindo as ordens, as suas e as de Dina sobre a pele, entre as coxas, as
mãos como as bocas e os joelhos e agora os ventres e as cinturas, uma
súplica murmurada, uma pressão resistida, um jogar-se para trás, um
movimento instantâneo para transferir da boca para os dedos e dos dedos
para os sexos aquela espuma quente que nivelava tudo, que num só
movimento unia seus corpos e os lançava no jogo. Quando acenderam
cigarros na escuridão (Lucho tinha tentado apagar a lâmpada e a lâmpada
caiu no chão com um barulho de vidros quebrados, Dina se levantou meio
horrorizada, negando-se à escuridão, falou de acender pelo menos uma vela
e de descer para comprar outra lâmpada, mas ele a abraçou de novo na
sombra e agora fumavam e se entreviam cada vez que tragavam a fumaça, e
se beijavam de novo), lá fora chovia sem parar, o quarto bem aquecido os
mantinha nus e lânguidos, tocando-se com mãos e cinturas e cabelos se
deixavam estar, trocavam carícias intermináveis, viam-se com um tato
repetido e úmido, cheiravam-se na sombra murmurando um deleite de
monossílabos e diástoles. Em algum momento as perguntas voltariam, as
afugentadas que a escuridão guardava nos cantos ou debaixo da cama, mas
quando Lucho quis saber, ela se atirou sobre ele com sua pele molhada e lhe
calou a boca com beijos e mordidinhas suaves, e só bem mais tarde, com
outros cigarros entre os dedos, contou a ele que morava sozinha, que
ninguém durava muito com ela, que era inútil, que era preciso acender uma
luz, que do trabalho para casa, que nunca tinha sido amada, que havia essa
doença, tudo como se no fundo aquilo não importasse ou fosse importante
demais para que as palavras adiantassem alguma coisa, ou talvez como se
tudo aquilo não fosse passar daquela noite e pudesse prescindir de
explicações, uma coisa que mal tinha começado na barra de um metrô, uma
coisa sobre a qual era preciso, antes de mais nada, acender uma luz.
— Tem uma vela em algum lugar — insistira monotonamente, rejeitando
suas carícias. — Já é tarde pra descer e comprar uma lâmpada. Deixe eu
procurar, deve estar em alguma gaveta. Me dê os fósforos. Não precisamos
ficar no escuro. Me dê os fósforos.
— Não a acenda, ainda — disse Lucho. — Está tão bom assim, sem nos
vermos.
— Não quero. Estamos bem assim, mas sabe como é, sabe como é. Às
vezes.
— Por favor — disse Lucho, apalpando o chão em busca do cigarro —,
tínhamos esquecido, por um momento… Por que você começou de novo?
Estávamos bem, assim.
— Me deixe procurar a vela — repetiu Dina.
— Vá procurá-la, tanto faz — disse Lucho, passando-lhe os fósforos. A
chama flutuou no ar parado do quarto, desenhando o corpo um pouco
menos negro que a escuridão, um brilho de olhos e de unhas, outra vez
trevas, o riscar de outro fósforo, escuridão, o riscar de outro fósforo, o
movimento brusco da chama se apagando no fundo do quarto, uma corrida
breve meio sufocada, o peso do corpo nu caindo atravessado sobre o seu,
machucando suas costelas, sua respiração ofegante. Abraçou-a com força,
beijando-a sem saber de que nem por que devia acalmá-la, murmurou-lhe
palavras de conforto, estendeu-a junto dele, debaixo dele, possuiu-a
docemente e quase sem desejo a partir de um longo cansaço, penetrou-a e a
remontou sentindo-a crispar-se e ceder e se abrir e agora, agora, isso, agora,
assim, isso, e a ressaca devolvendo-os a um descanso recostados olhando
para o nada, ouvindo a noite pulsar com um sangue de chuva lá fora, grande
ventre interminável da noite protegendo-os dos medos, de barras de metrô e
lâmpadas quebradas e fósforos que a mão de Dina não quis segurar, que
dobrou para baixo a fim de se queimar e de queimá-la, quase como um
acidente, porque no escuro o espaço e as posições mudam e a gente fica
desajeitado feito criança, mas depois o segundo fósforo esmagado entre
dois dedos, caranguejo raivoso queimando-se desde que se destrua a luz,
então Dina tratou de acender um último fósforo com a outra mão e foi pior,
não podia nem dizer para Lucho que a ouvia com um medo vago, um
cigarro sujo. Você não está vendo que elas não querem, de novo isso. De
novo o quê? Isso. De novo o quê? Não, nada, precisamos achar a vela. Vou
procurar, me dê os fósforos. Caíram ali naquele canto. Fique quieta, espere.
Não, não vá, por favor não vá. Me deixe, eu vou achá-los. Vamos juntos, é
melhor. Não, deixe, eu vou achá-los, me diga onde pode estar essa maldita
vela. Por ali, na prateleira, quem sabe se você acender um fósforo. Não vai
dar pra ver nada, me deixe ir. Afastando-a devagar, desatando as mãos que
abraçavam sua cintura, levantando-se pouco a pouco. O puxão no sexo o
fez gritar mais de surpresa que de dor, buscou como um látego o punho que
o amarrava a Dina, deitada de costas e gemendo, abriu seus dedos e a
repeliu com violência. Ouvia seu chamado, pedindo que voltasse, que isso
não ia acontecer de novo, que era culpa dele por ser tão teimoso.
Orientando-se para onde pensava ser o canto, agachou-se junto da coisa que
podia ser a mesa e apalpou procurando os fósforos, pensou ter encontrado
um mas era comprido demais, talvez um palito de dentes, e a caixa não
estava lá, as palmas das mãos percorriam o tapete velho, ele se arrastava de
joelhos sob a mesa; achou um fósforo, depois outro, mas não a caixa; contra
o assoalho o escuro parecia maior, cheirava a calabouço e a tempo. Sentiu
as garras correndo por suas costas, subindo até a nuca e o cabelo, levantou-
se de um salto repelindo Dina, que gritava com ele e dizia alguma coisa
sobre a luz no descanso da escada, abrir a porta e a luz da escada, mas claro,
como não pensaram nisso antes, onde ficava a porta, ali na frente, não podia
ser, pois a mesa ficava de lado, sob a janela, estou dizendo que é ali, então
vá você que sabe, vamos nós dois, não quero ficar sozinha agora, então me
solte, está me machucando, não consigo, estou dizendo que não consigo, me
solte ou vou bater em você, não, não, estou dizendo pra me soltar. O
empurrão o deixou sozinho diante de um arquejo, de alguma coisa que
tremia ali do lado, bem perto; esticando os braços, avançou procurando uma
parede, imaginando a porta; tocou em algo quente que se esquivou dele com
um grito, sua outra mão se fechou sobre a garganta de Dina como se
apertasse uma luva ou o pescoço de um gatinho preto, a queimação rasgou-
lhe a face e os lábios, roçou seu olho, ele se jogou para trás para se livrar
daquilo que continuava apertando a garganta de Dina, caiu de costas no
tapete, arrastou-se de lado sabendo o que ia acontecer, um vento quente
sobre ele, o emaranhado de unhas em seu ventre e suas costelas, eu disse, eu
disse que era impossível, que era pra você acender a vela, procure já a
porta, a porta. Arrastando-se longe da voz suspensa em algum ponto do ar
negro, num soluço de asfixia que se repetia e se repetia, encontrou a parede,
percorreu-a se levantando até perceber uma moldura, uma cortina, a outra
moldura, a maçaneta; um ar gelado se misturou com o sangue que enchia
seus lábios, apalpou procurando o interruptor, ouviu atrás de si a corrida e a
gritaria de Dina, o choque contra a porta entreaberta, devia ter entrado de
testa, de nariz na porta, que se fechava a suas costas justo quando apertava
o interruptor. O vizinho que espiava da porta da frente o olhou e com uma
exclamação sufocada se mandou para dentro e trancou a porta, Lucho nu no
patamar da escada o xingou e passou os dedos no rosto que estava ardendo
enquanto todo o resto era o frio do patamar, os passos que subiam correndo
do primeiro andar, abra pra mim, abra já, pelo amor de Deus, abra, já tem
luz, abra que já tem luz. Lá dentro o silêncio e uma espécie de espera, a
velha envolta no penhoar lilás olhando de baixo, um berro, sem-vergonha, a
esta hora, depravado, a polícia, são todos iguais, madame Roger, madame
Roger! “Não vai abrir pra mim”, pensou Lucho, sentando-se no primeiro
degrau, tirando o sangue da boca e dos olhos, “desmaiou com o golpe e está
lá no chão, não vai abrir, sempre a mesma coisa, que frio, que frio.”
Começou a bater na porta enquanto ouvia as vozes no apartamento da
frente, a correria da velha que descia chamando madame Roger, o edifício
que acordava nos andares de baixo, perguntas e rumores, um momento de
espera, nu e cheio de sangue, um louco furioso, madame Roger, abra pra
mim, Dina, abra pra mim, não importa que sempre tenha sido assim, abra
pra mim, nós éramos outra coisa, Dina, podíamos ter encontrado juntos, por
que você está aí no chão, o que foi que eu fiz, por que você foi de encontro
à porta, madame Roger, se abrisse pra mim encontraríamos a saída, você já
viu antes, viu como tudo estava indo tão bem, simplesmente acender a luz e
continuar procurando, nós dois, mas você não quer abrir pra mim, fica
chorando, miando como um gato machucado, e eu a ouço, eu a ouço, ouço
madame Roger, a polícia, e você, seu grande filho da puta, por que fica me
espiando aí dessa porta, abra pra mim, Dina, ainda podemos encontrar a
vela, vamos nos lavar, estou com frio, Dina, já estão vindo com um
cobertor, é típico, um homem pelado é enrolado num cobertor, vou ter que
dizer a eles que você está aí jogada, que tragam outro cobertor, que
arrombem a porta, que limpem seu rosto, que cuidem de você e a protejam
porque eu não estarei mais aqui, logo vão nos separar, você vai ver, vão nos
fazer descer separados e nos levar pra longe um do outro, que mão você vai
procurar, Dina, que rosto você vai arranhar agora enquanto a levam entre
todos eles e madame Roger.
Troca de luzes
N
aquelas quintas-feiras à noitinha quando Lemos me chamava depois do
ensaio na Rádio Belgrano e entre dois cinzanos os projetos de novas peças,
ter de escutá-los com muita vontade de ir para a rua e me esquecer do
radioteatro por dois ou três séculos, mas Lemos era o autor da moda e me
pagava bem para o pouco que eu tinha de fazer em seus programas, papéis meio
secundários e em geral antipáticos. Você tem a voz que convém, dizia amavelmente
Lemos, o ouvinte de rádio o ouve e o odeia, não precisa nem trair alguém ou matar a
mãe com estricnina, você abre a boca e pronto, meia Argentina já quer consumir sua
alma em fogo lento.
Luciana não, bem no dia em que nosso galã Jorge Fuentes no final de Rosas de
ignomínia recebia duas cestas de cartas de amor e um cordeirinho branco enviado
por uma fazendeira romântica lá das bandas de Tandil, o baixote do Mazza me
entregou o primeiro envelope lilás da Luciana. Acostumado ao nada em tantas de
suas formas, guardei-o no bolso antes de ir para o café (tínhamos uma semana de
folga depois do sucesso de Rosas e do começo de Pássaro na tempestade), e só no
segundo martíni com Juárez Celman e Olive me veio à lembrança a cor do envelope
e percebi que ainda não tinha lido a carta; não quis ler na frente deles porque os
entediados procuram assunto e um envelope lilás é uma mina de ouro, esperei até
chegar ao apartamento, onde a gata ao menos não prestava atenção nessas coisas,
dei-lhe o leite e sua cota de agradinhos, conheci Luciana.
Não preciso ver uma foto sua, dizia Luciana, não me importa que a Sintonía e a
Antena publiquem fotos de Míguez e de Jorge Fuentes mas nunca de você, não me
importa porque tenho sua voz, e também não me importa que digam que você é
antipático e vilão, não me importa que seus papéis enganem todo mundo, ao
contrário, porque fantasio que sou a única que sabe a verdade: você sofre quando
interpreta esses papéis, põe ali seu talento, mas sinto que não está lá de verdade,
como Míguez ou Raquelita Bailey, você é muito diferente do príncipe cruel de Rosas
de ignomínia. Pensando que odeiam o príncipe, odeiam você, as pessoas confundem,
e já percebi isso, com minha tia Poli e outras pessoas no ano passado, quando você
era Vassilis, o contrabandista assassino. Hoje à tarde me senti um pouco sozinha e
tive vontade de lhe dizer isso, talvez eu não tenha sido a única a dizê-lo e de alguma
forma é isso que desejo a você, que se saiba acompanhado apesar de tudo, mas ao
mesmo tempo gostaria de ser a única que sabe ver o outro lado de seus papéis e de
sua voz, que tem certeza de conhecê-lo de verdade e de admirá-lo mais do que
aqueles que têm os papéis fáceis. É como com Shakespeare, nunca falei para
ninguém, mas quando você representou o papel, gostei mais de Iago que de Otelo.
Não se sinta obrigado a me responder, dou meu endereço para o caso de você
realmente querer, mas se não o fizer eu também me sentirei feliz por ter escrito tudo
isso.
A noite caía, a letra era ligeira e fluida, a gata tinha adormecido depois de brincar
com o envelope lilás no almofadão do sofá. Desde a irreversível ausência de Bruna
já não se jantava em meu apartamento, as latas eram suficientes para a gata e para
mim, e para mim, especialmente, o conhaque e o cachimbo. Naqueles dias de folga
(depois teria de trabalhar o papel de Pássaro na tempestade), reli a carta de Luciana
sem intenção de respondê-la, porque nesse terreno um ator, ainda que só receba uma
carta a cada três anos, cara Luciana, respondo para você antes de ir ao cinema na
sexta-feira à noite, suas palavras me comovem, e esta não é uma frase de cortesia.
Claro que não era, escrevi como se essa mulher que eu imaginava meio miudinha e
triste e de cabelo castanho e olhos claros estivesse sentada ali e eu lhe dissesse que
suas palavras me comoviam. O resto ficou mais convencional, pois eu não sabia o
que lhe dizer depois da verdade, e foi só encheção de linguiça, duas ou três frases de
simpatia e gratidão, seu amigo Tito Balcárcel. Mas havia outra verdade no
postscriptum: Eu me alegro que tenha me dado seu endereço, seria triste não poder
lhe dizer o que sinto.
Ninguém gosta de confessar, quando a gente não trabalha acaba se entediando um
pouco, pelo menos alguém como eu. Quando jovem eu tinha muitas aventuras
sentimentais, nas horas vagas podia puxar a linha e quase sempre havia peixe, mas
depois veio a Bruna e isso durou quatro anos, aos trinta e cinco a vida em Buenos
Aires começa a desbotar e parece minguar, ao menos para alguém que vive sozinho
com uma gata e não é grande leitor nem amigo de longas caminhadas. Não que me
sinta velho, ao contrário; a impressão é que são os outros, as próprias coisas, que
envelhecem e enrugam; talvez por isso eu preferisse passar as tardes no apartamento,
ensaiar Pássaro na tempestade sozinho com a gata me olhando, me vingar desses
papéis ingratos levando-os à perfeição, tornando-os meus e não de Lemos,
transformando as frases mais simples num jogo de espelhos que multiplicava o lado
perigoso e fascinante do personagem. E assim na hora de ler o papel lá na rádio tudo
estava previsto, cada vírgula e cada inflexão de voz, calibrando os caminhos do ódio
(de novo era um desses personagens com alguns aspectos perdoáveis mas que pouco
a pouco caem na infâmia até um epílogo de perseguição à beira de um precipício e
queda final para grande satisfação dos radiouvintes). Ao encontrar entre um mate e
outro a carta de Luciana esquecida na estante das revistas e relê-la de puro tédio,
aconteceu-me vê-la de novo, sempre fui visual e invento com facilidade qualquer
coisa, no começo supus que Luciana era miudinha e da minha idade, ou por aí,
sobretudo com olhos claros e meio transparentes, e de novo a imaginei assim, voltei
a vê-la meio pensativa antes de me escrever cada frase, e depois se decidindo. De
uma coisa eu estava certo, Luciana não era mulher de rascunhos, com certeza tinha
hesitado antes de me escrever, mas depois, me escutando em Rosas de ignomínia, as
frases foram lhe surgindo, sentia-se que a carta era espontânea e ao mesmo tempo —
talvez por causa do papel lilás — me dava a sensação de um licor que dormiu por
muito tempo em seu frasco.
Até sua casa imaginei tão somente entrecerrando os olhos, sua casa devia ser
dessas com um pátio coberto ou, pelo menos, uma varanda com plantas, toda vez
que eu pensava em Luciana eu a via no mesmo lugar, a varanda deslocando
finalmente o pátio, uma varanda fechada com claraboias de vidros coloridos e
divisórias que deixavam passar a luz, acinzentando-a, Luciana sentada numa
poltrona de vime e me escrevendo você é muito diferente do príncipe cruel de Rosas
de ignomínia, levando a caneta à boca antes de prosseguir, ninguém sabe disso pois
você tem tanto talento que as pessoas o odeiam, o cabelo castanho como que envolto
por uma luz de fotografia antiga, aquele ar cinzento e ao mesmo tempo nítido da
varanda fechada, gostaria de ser a única a saber passar para o outro lado de seus
papéis e de sua voz.
Na véspera do primeiro episódio de Pássaro, tive de jantar com Lemos e os outros,
ensaiamos algumas cenas, dessas que Lemos chamava de chave e nós de chavão,
choque de temperamentos e ladainhas dramáticas, Raquelita Bailey muito bem no
papel de Josefina, a moça altaneira que lentamente eu envolveria em minha
consabida teia de maldades para as quais Lemos não tinha limites. Os outros caíam
como uma luva em seus papéis, enfim, uma diferença enorme entre essa e as dezoito
radionovelas que já tínhamos feito. Se me lembro do ensaio é porque o baixote do
Mazza me trouxe a segunda carta da Luciana e dessa vez tive vontade de lê-la
imediatamente e dei um pulo no banheiro enquanto Angelita e Jorge Fuentes
trocavam juras de amor eterno num baile do Gimnasia y Esgrima, esses cenários de
Lemos que desencadeavam o entusiasmo dos habitués e davam mais força às
identificações psicológicas com os personagens, pelo menos segundo Lemos e
Freud.
Aceitei seu singelo, lindo convite para conhecê-la numa confeitaria de Almagro.
Havia o detalhe monótono do reconhecimento, ela de vermelho e eu levando o jornal
dobrado em quatro, não podia ser de outro jeito e o resto era Luciana me escrevendo
de novo na varanda coberta, sozinha com sua mãe ou talvez seu pai, desde o começo
eu tinha visto um velho com ela numa casa para uma família maior e agora cheia de
vazios onde morava a melancolia da mãe por outra filha morta ou ausente, pois
talvez não fizesse muito tempo que a morte tinha passado pela casa, e se você não
quer ou não pode eu vou entender, não me cabe tomar a iniciativa mas também sei
— sublinhara isso sem ênfase — que alguém como você está acima de muitas
coisas. E acrescentava algo em que eu não havia pensado e adorei, você não me
conhece a não ser por aquela outra carta, já eu, faz três anos que vivo sua vida, sinto
como você é de verdade em cada novo personagem, eu o tiro do teatro e você é
sempre o mesmo para mim quando já não está com a máscara de seu papel. (Essa
segunda carta eu perdi, mas as frases eram assim, diziam isso; mas me lembro que a
primeira carta eu guardei dentro de um livro do Moravia que estava lendo, decerto
ainda está ali na biblioteca.)
Se tivesse contado isso para o Lemos, eu teria dado a ele uma ideia para outra
peça, é óbvio que o encontro acontecia depois de alguns vaivéns de suspense, e
então o rapaz descobria que Luciana era idêntica ao que havia imaginado, prova de
como o amor precede o amor e a visão a visão, teorias que sempre funcionavam bem
na Rádio Belgrano. Mas Luciana era uma mulher de mais de trinta anos, sem dúvida
muito bem vividos, bem menos miúda que a mulher das cartas na varanda, e com um
belo cabelo preto que parecia viver por conta própria quando ela mexia a cabeça. Do
rosto de Luciana, afora os olhos claros e a tristeza, eu não fizera uma imagem exata;
os que agora me receberam sorrindo eram castanhos e nem um pouco tristes sob
aquele cabelo balançante. Achei simpático que gostasse de uísque, pelo lado de
Lemos quase todos os encontros românticos começavam com chá (e com Bruna
tinha sido café com leite num vagão de trem). Não se desculpou pelo convite, e eu,
que às vezes exagero na encenação, porque no fundo não acredito muito em nada do
que me acontece, me senti muito à vontade e dessa vez o uísque não era falsificado.
Na verdade, ambos nos sentimos muito bem e foi como se tivessem nos apresentado
por acaso e sem segundas intenções, como começam as boas relações em que
ninguém tem nada a exibir ou dissimular; era lógico que se falasse principalmente de
mim, porque eu era o conhecido e ela apenas duas cartas e Luciana, por isso sem
parecer vaidoso deixei que ela se lembrasse de mim em tantas novelas radiofônicas,
aquela em que me torturavam até a morte, a dos operários soterrados na mina, e em
mais alguns papéis. Pouco a pouco eu ia ajustando seu rosto e sua voz, libertando-
me com dificuldade das cartas, da varanda fechada e da poltrona de vime; antes de
nos despedirmos eu soube que ela morava num apartamento térreo bem pequeno e
com sua tia Poli, que lá pelos anos trinta tinha tocado piano em Pergamino. Luciana
também fazia seus ajustes, como sempre nessas relações de cabra-cega, quase no
final ela disse que tinha me imaginado mais alto, de cabelo crespo e olhos cinzentos;
o lance do cabelo crespo me surpreendeu porque em nenhum de meus papéis eu me
sentira com cabelo crespo, mas talvez sua ideia fosse uma espécie de soma, um
amontoado de todas as canalhices e traições das peças de Lemos. Comentei isso de
brincadeira e Luciana disse que não, ela vira os personagens tal como Lemos os
pintava mas ao mesmo tempo era capaz de ignorá-los, de ficar perfeitamente só
comigo, com minha voz e sabe-se lá por que com uma imagem de alguém mais alto,
de alguém de cabelo crespo.
Se Bruna ainda fizesse parte de minha vida, acho que não teria me apaixonado por
Luciana; sua ausência ainda era muito presente, um vazio no ar que Luciana
começou a preencher sem saber, provavelmente sem esperar por isso. Para ela, ao
contrário, tudo foi mais rápido, foi só passar de minha voz para aquele outro Tito
Balcárcel de cabelo liso e com uma personalidade menos marcante que os monstros
de Lemos; todas essas operações duraram só um mês, deram-se em dois encontros
em cafés, um terceiro em meu apartamento, a gata aceitou o perfume e a pele de
Luciana, dormiu em sua saia, não pareceu de acordo com um anoitecer em que de
repente sentiu que estava sobrando, em que teve de pular no chão miando. Tia Poli
foi morar em Pergamino com uma irmã, sua missão estava cumprida e na mesma
semana Luciana se mudou para minha casa; quando a ajudei a preparar suas coisas
me doeu a falta da varanda coberta, da luz acinzentada, sabia que não iria encontrá-
las, e no entanto parecia haver uma espécie de carência, de imperfeição. Na tarde da
mudança, tia Poli me contou docemente a modesta saga da família, a infância de
Luciana, o namorado tragado para sempre por uma oferta de frigoríficos de Chicago,
o casamento com um hoteleiro da praça Primera Junta e o rompimento havia seis
anos, coisas que eu já soubera por Luciana, mas de outra maneira, como se ela não
tivesse falado verdadeiramente de si mesma agora que parecia começar a viver por
conta de outro presente, meu corpo contra o seu, os pires de leite para a gata, o
cinema a todo momento, o amor.
Lembro que foi mais ou menos na época de Sangue nas espigas que pedi a Luciana
que clareasse o cabelo. No começo ela achou que era um capricho de ator, se quiser
eu compro uma peruca, disse rindo, aliás você ficaria ótimo com uma de cabelo
crespo. Mas quando insisti alguns dias depois, ela disse que tudo bem, que para ela
dava na mesma cabelo preto ou castanho, foi quase como se percebesse que em mim
essa mudança não tinha nada a ver com minhas manias de ator mas com outras
coisas, uma varanda coberta, uma poltrona de vime. Não precisei pedir de novo,
gostei que fizesse isso por mim e lhe disse isso muitas vezes, enquanto fazíamos
amor, enquanto eu me perdia em seu cabelo e seus seios e me deixava escorregar
com ela para outro longo sonho boca a boca. (Talvez na manhã seguinte, ou foi antes
de ir às compras, não está muito claro para mim, apanhei seu cabelo com as mãos e
o amarrei na nuca, garanti que ficava melhor assim. Ela se olhou no espelho e não
disse nada, mas senti que não tinha concordado e que tinha razão, não era mulher de
prender o cabelo, impossível negar que ficava melhor quando ela usava cabelo solto
antes de clareá-lo, mas não lhe disse nada porque gostava de vê-la assim, vê-la
melhor que naquela tarde quando entrou pela primeira vez na confeitaria.)
Nunca gostei de me ouvir atuando, fazia meu trabalho e pronto, os colegas
estranhavam essa falta de vaidade, que neles era tão visível; deviam pensar, talvez
com razão, que a natureza de meus papéis não me animava muito a recordá-los, e
por isso Lemos me olhou levantando as sobrancelhas quando lhe pedi os discos de
arquivo de Rosas de ignomínia, me perguntou para que os queria e eu respondi
qualquer coisa, problemas de dicção que me interessava superar ou algo parecido.
Quando cheguei com o álbum de discos, Luciana também se surpreendeu um pouco,
porque eu nunca falava com ela de meu trabalho, era ela que vez por outra me
contava suas impressões, que me escutava durante a tarde com a gata na saia. Repeti
o que tinha dito a Lemos, mas em vez de escutar as gravações em outro quarto, levei
o toca-discos para a sala e pedi a Luciana que ficasse um pouco ali comigo, eu
mesmo preparei o chá e ajeitei as luzes para que ela ficasse confortável. Por que está
mudando a luminária de lugar, disse Luciana, está boa aí. Ficava boa como objeto,
mas lançava uma luz crua e quente sobre o sofá onde Luciana se sentava, era melhor
que só a penumbra da tarde lhe chegasse pela janela, uma luz um pouco cinzenta que
envolvia seu cabelo, suas mãos ocupadas com o chá. Você me mima demais, disse
Luciana, tudo pra mim e você aí num canto sem ao menos se sentar.
Claro que pus apenas algumas passagens de Rosas, o tempo de duas xícaras de chá,
de um cigarro. Me fazia bem olhar para Luciana atenta ao drama, levantando às
vezes a cabeça quando reconhecia minha voz e sorrindo como se não se importasse
em saber que o miserável cunhado da pobre Carmencita começava suas intrigas para
ficar com a fortuna dos Pardo, e que a tarefa sinistra continuaria ao longo de muitos
episódios, até o inevitável triunfo do amor e da justiça, segundo Lemos. Ali em meu
canto (tinha aceitado uma xícara de chá a seu lado mas depois voltara ao fundo da
sala como se de lá desse para ouvir melhor) eu me sentia bem, reencontrava por um
momento algo que me estivera faltando; gostaria que tudo aquilo se prolongasse, que
a luz do anoitecer continuasse se parecendo com a da varanda coberta. Isso não era
possível, claro, e desliguei o toca-discos e fomos juntos até a sacada depois que
Luciana devolveu a luminária a seu lugar porque de fato ficava ruim ali onde eu a
pusera. Valeu de alguma coisa se ouvir?, perguntou, acariciando minha mão. Sim,
muito, falei de problemas de respiração, de vogais, de qualquer coisa que ela
aceitava com respeito; a única coisa que eu não disse foi que naquele momento
perfeito só tinha faltado a poltrona de vime e talvez também ela ter ficado triste,
como alguém que olha para o vazio antes de continuar o parágrafo de uma carta.
Estávamos chegando ao final de Sangue nas espigas, mais três semanas e me
dariam férias. Ao voltar da rádio eu encontrava Luciana lendo ou brincando com a
gata na poltrona que eu lhe dera de presente de aniversário junto com a mesa de
vime com que fazia jogo. Não têm nada a ver com este ambiente, dissera Luciana
entre divertida e perplexa, mas se lhe agradam também me agradam, é um jogo lindo
e muito confortável. Você vai ficar melhor nela se precisar escrever cartas, disse-lhe.
Sim, admitiu Luciana, justamente estou em falta com a tia Poli, coitadinha. Como de
tarde havia pouca luz na poltrona (acho que ela não tinha notado que eu trocara o
foco da luminária), acabou pondo a mesa e a poltrona perto da janela para fazer tricô
ou olhar as revistas, e talvez tenha sido num daqueles dias do outono, ou um pouco
depois, que uma tarde passei muito tempo a seu lado, beijei-a longamente e lhe disse
que nunca a amara tanto como naquele momento, tal como a estava vendo, como
gostaria de vê-la para sempre. Ela não disse nada, suas mãos andavam por meu
cabelo me despenteando, sua cabeça se inclinou sobre meu ombro e ela ficou quieta,
meio ausente. Por que esperar outra coisa de Luciana, assim à beira do entardecer?
Ela era como os envelopes lilás, como as frases simples, quase tímidas de suas
cartas. A partir de agora me seria difícil imaginar que a conhecera numa confeitaria,
que seu cabelo preto solto ondulara como um chicote no momento de me
cumprimentar, de vencer a primeira confusão do encontro. Na memória de meu
amor havia a varanda coberta, a silhueta de uma poltrona de vime distanciando-a da
imagem mais alta e vital que de manhã andava pela casa ou brincava com a gata,
aquela imagem que ao entardecer retornaria uma e outra vez ao que eu amara, ao
que me fazia amá-la tanto.
Quem sabe dizer isso para ela. Não tive tempo, acho que hesitei porque preferia
guardá-la assim, a plenitude era tão grande que eu não queria pensar em seu silêncio
vago, numa distração que ainda não vira nela, numa forma de me olhar, por
momentos, como se procurasse alguma coisa, um adejo de olhar logo devolvido ao
imediato, à gata ou a um livro. Isso também fazia parte de minha maneira de preferi-
la, era o clima melancólico da varanda coberta, dos envelopes lilás. Sei que em
algum despertar na noite alta, olhando-a dormir encostada em mim, senti que havia
chegado o tempo de lhe dizer isso, de torná-la definitivamente minha por uma
aceitação total de minha lenta teia apaixonada. Não fiz isso porque Luciana estava
dormindo, porque Luciana estava acordada, porque nessa terça iríamos ao cinema,
porque estávamos procurando um carro para as férias, porque a vida vinha em
flashes antes e depois dos entardeceres em que a luz cinzenta parecia condensar sua
perfeição na pausa da poltrona de vime. Que me falasse tão pouco agora, que às
vezes me olhasse de novo como quem procura alguma coisa perdida, me faziam
adiar aquela obscura necessidade de lhe confiar a verdade, de lhe explicar, por fim, o
cabelo castanho, a luz da varanda. Não tive tempo, um acaso de alteração de
horários me levou ao centro num fim de semana, eu a vi sair de um hotel, não a
reconheci ao reconhecê-la, não compreendi ao compreender que ela saía segurando
o braço de um homem mais alto que eu, um homem que se inclinava um pouco para
beijá-la na orelha, para esfregar o cabelo crespo no cabelo castanho de Luciana.
Ventos alísios
V
á saber quem teve essa ideia, talvez Vera na noite de seu aniversário
quando Mauricio insistia para que abrissem outra garrafa de champanhe e
entre uma taça e outra dançavam na sala pegajosa de fumaça de charuto e
de meia-noite, ou talvez Mauricio naquele momento em que Blues in
Thirds lhes trazia de tão longe a lembrança dos primeiros tempos, dos primeiros
discos quando os aniversários eram mais que uma cerimônia cadenciosa e
recorrente. Como um jogo, falar enquanto dançavam, cúmplices sorridentes na
modorra paulatina do álcool e da fumaça, dizer-se e por que não?, pois, no fim das
contas, já que podiam fazer isso e lá seria verão, tinham olhado juntos e indiferentes
o prospecto da agência de viagens, e de repente a ideia, Mauricio ou Vera,
simplesmente telefonar, ir para o aeroporto, experimentar se o jogo valia a pena,
essas coisas se fazem de uma vez ou não, no fim das contas o quê?, na pior das
hipóteses voltar com a mesma ironia amável que os devolvera ao fim de tantas
viagens tediosas, mas agora experimentar de outra forma, jogar o jogo, fazer um
balanço, decidir.
Porque dessa vez (e aí estava a novidade, a ideia que ocorrera a Mauricio mas que
podia muito bem ter nascido de uma reflexão casual de Vera, vinte anos de vida em
comum, a simbiose mental, as frases começadas por um e completadas do outro
extremo da mesa ou de outro telefone), dessa vez podia ser diferente, só era preciso
codificá-lo, divertir-se com o absurdo total de partir em aviões diferentes e chegar ao
hotel como desconhecidos, deixar que o acaso os apresentasse no restaurante ou na
praia depois de um ou dois dias, misturar-se com as novas relações do veraneio,
tratar-se cortesmente, aludir a profissões e famílias na roda dos coquetéis, entre
tantas outras profissões e outras vidas que estariam buscando, como eles, o contato
ligeiro das férias. Não ia chamar a atenção de ninguém a coincidência do
sobrenome, pois era um sobrenome comum, seria muito divertido graduar o lento
conhecimento mútuo, ritmando-o com o dos outros hóspedes, distrair-se com as
pessoas, cada um por si, favorecer o acaso dos encontros e de quando em quando se
ver a sós e se olhar como agora enquanto dançavam Blues in Thirds e por momentos
paravam para levantar as taças de champanhe e as tocavam suavemente no ritmo
exato da música, corteses e educados e cansados, uma e meia já, entre tanta fumaça
e o perfume que Mauricio quisera pôr nesta noite no cabelo de Vera, perguntando-se
se não teria se enganado de perfume, se Vera levantaria um pouco o nariz e
aprovaria, a difícil e rara aprovação de Vera.
Sempre tinham feito amor no final de seus aniversários, esperando com amável
displicência a partida dos últimos amigos, e dessa vez que não havia ninguém, que
não tinham convidado ninguém pois estar com as pessoas os entediava mais que
ficar sozinhos, dançaram até o fim do disco e continuaram abraçados, olhando-se
numa bruma de sonolência, saíram da sala mantendo, ainda, um ritmo imaginário,
perdidos e quase felizes e descalços sobre o tapete do quarto, demoraram-se num
lento desnudar-se na beirada da cama, ajudando-se e se misturando e beijos e botões
e outra vez o encontro com as inevitáveis preferências, o ajuste de cada um na luz do
abajur que os condenava à repetição de imagens cansadas, de murmúrios sabidos, o
lento afundar na modorra insatisfeita depois da repetição das fórmulas que voltavam
às palavras e aos corpos como um dever necessário, quase terno.
No dia seguinte era domingo e chuva, tomaram o café da manhã na cama e
decidiram seriamente; agora seria preciso estabelecer as regras, determinar cada fase
da viagem para que não se tornasse só mais uma viagem e sobretudo mais um
regresso. Fixaram-nas contando nos dedos: iriam separados, um, ficariam em
quartos diferentes sem que nada os impedisse de aproveitar o verão, dois, não
haveria as censuras e olhares que conheciam bem, três, um encontro sem
testemunhas permitiria que trocassem impressões e soubessem se valia a pena,
quatro, o resto era rotina, voltariam no mesmo avião pois os outros já não
importariam (ou sim, mas isso seria visto conforme o artigo quatro), cinco. O que ia
acontecer depois não estava numerado, entrava numa zona ao mesmo tempo
decidida e incerta, soma aleatória em que tudo podia acontecer e da qual não se
devia falar. Os aviões para Nairóbi saíam às quintas e aos sábados, Mauricio foi no
primeiro depois de um almoço no qual comeram salmão por via das dúvidas,
trocando brindes e talismãs de presente, não se esqueça da quinina, lembre que você
sempre esquece em casa o creme de barbear e as sandálias.
Divertido chegar a Mombasa, uma hora de táxi, e que a levassem ao Trade Winds,
a um bangalô na praia com macacos cabriolando nos coqueiros e sorridentes rostos
africanos, ver Mauricio de longe, já se sentindo em casa, jogando na areia com um
casal e um velho de costeletas vermelhas. A hora dos coquetéis os aproximou na
varanda aberta sobre o mar, falava-se de caracóis e recifes, Mauricio entrou com
uma mulher e dois homens jovens, em algum momento quis saber de onde Vera
tinha vindo e explicou que ele vinha da França e era geólogo, Vera pareceu gostar
que Mauricio fosse geólogo e respondeu às perguntas dos outros turistas, a pediatria
que de quando em quando lhe pedia alguns dias de descanso para que não caísse em
depressão, o velho das costeletas vermelhas era um diplomata aposentado, sua
esposa se vestia como se tivesse vinte anos mas não lhe caía tão mal num lugar onde
quase todo mundo parecia um filme colorido, garçons e macacos incluídos e até o
nome Trade Winds que lembrava Conrad e Somerset Maugham, os coquetéis
servidos em cocos, as camisas soltas, a praia por onde se podia passear depois do
jantar sob uma lua tão inclemente que as nuvens projetavam suas sombras moventes
sobre a areia para espanto das pessoas esmagadas por céus sujos e brumosos.
Os últimos serão os primeiros, pensou Vera quando Mauricio disse que tinham lhe
dado um quarto na parte mais moderna do hotel, confortável mas sem a graça dos
bangalôs na praia. De noite se jogava cartas, o dia era um diálogo interminável de
sol e sombra, mar e refúgio sob as palmeiras, redescobrir o corpo pálido e cansado a
cada chicotada das ondas, ir até os recifes de canoa para mergulhar com máscaras e
ver os corais azuis e vermelhos, os peixes inocentemente próximos. Sobre o
encontro com duas estrelas-do-mar, uma com pintas vermelhas e a outra cheia de
triângulos roxos, muito se falou no segundo dia, ou talvez tenha sido no terceiro, o
tempo escorria como o mar morno sobre a pele, Vera nadava com Sandro, que tinha
surgido entre dois coquetéis e dizia estar farto de Verona e de carros, o inglês das
costeletas vermelhas estava com insolação e o médico viria de Mombasa para vê-lo,
as lagostas eram incrivelmente enormes em sua última morada de maionese e
rodelas de limão, as férias. De Anna só se vira um sorriso distante e um pouco
distanciador, na quarta noite veio beber no bar e levou seu copo à varanda onde os
veteranos de três dias a receberam com informações e conselhos, havia ouriços
perigosos na zona norte, não podia de maneira nenhuma passear de canoa sem
chapéu e sem alguma coisa para cobrir os ombros, o coitado do inglês estava
pagando caro por isso e os negros se esqueciam de prevenir os turistas porque para
eles, claro, e Anna agradecendo sem ênfase, bebendo devagar seu martíni, quase
demonstrando que tinha vindo para ficar sozinha de alguma Copenhague ou
Estocolmo necessitada de esquecimento. Quase sem pensar, Vera decidiu que
Mauricio e Anna, certamente Mauricio e Anna antes de vinte e quatro horas, estava
jogando pingue-pongue com Sandro quando os viu caminhar até o mar e se deitar na
areia, Sandro brincava sobre Anna, que não lhe parecia muito comunicativa, as
neblinas nórdicas, ganhava facilmente as partidas mas o cavalheiro italiano de vez
em quando cedia alguns pontos e Vera percebia e agradecia em silêncio, vinte e um a
dezoito, não tinha ido tão mal, fazia progressos, questão de se dedicar.
Em algum momento antes do sono Mauricio pensou que, afinal de contas, estavam
indo bem, era quase cômico pensar que Vera estava dormindo a cem metros de seu
quarto, no invejável bangalô acariciado por palmeiras, que sorte a sua, menina.
Tinham se encontrado numa excursão às ilhas próximas e se divertiram muito
nadando e brincando com os demais; Anna estava com os ombros queimados e Vera
lhe deu um creme infalível, você sabe que um médico de crianças acaba sabendo
tudo sobre cremes, retorno vacilante do inglês, protegido por um roupão azul-
celeste, de noite o rádio falando de Yomo Kenyatta e dos problemas tribais, alguém
sabia muito sobre os massais e os entreteve ao longo de vários drinques com lendas
e leões, Karen Blixen e a autenticidade dos amuletos de pele de elefante, puro
náilon, e assim era tudo nesses países. Vera não sabia se era quarta ou quinta-feira,
quando Sandro a acompanhou ao bangalô depois de um longo passeio pela praia
onde tinham se beijado como essa praia e essa lua pediam, ela o deixou entrar assim
que ele apoiou a mão em seu ombro, deixou-se amar a noite toda, ouviu coisas
estranhas, aprendeu coisas diferentes, dormiu lentamente, saboreando cada minuto
do longo silêncio sob um mosquiteiro quase inconcebível. Para Mauricio foi na hora
da sesta, depois de um almoço em que seus joelhos tinham encontrado as coxas de
Anna, acompanhá-la até seu andar, murmurar um até logo diante da porta, ver como
Anna demorava a mão no trinco, entrar com ela, perder-se num prazer que só os
liberou de noite, quando alguns já se perguntavam se não estariam doentes e Vera
dava um sorriso dúbio entre dois tragos, queimando a língua com uma mistura de
Campari e rum queniano que Sandro batia no bar para espanto de Moto e de Nikuku,
esses europeus vão acabar todos loucos.
O código marcava sábado às sete da noite, Vera aproveitou um encontro sem
testemunhas na praia e mostrou à distância um palmeiral propício. Abraçaram-se
com um velho carinho, rindo como crianças, acatando o artigo quatro, boa gente.
Havia uma solidão suave de areias e galhos secos, cigarros e aquele bronzeado do
quinto ou sexto dia em que os olhos começam a brilhar como novos, em que falar é
uma festa. Estamos indo muito bem, disse Mauricio quase de imediato, e Vera sim,
claro que estamos indo bem, dá pra ver isso na sua cara e no seu cabelo, por que no
cabelo?, porque está brilhando de outro jeito, é o sal, boba, pode ser, mas o sal
costuma emplastrar a pilosidade, a risada não os deixava falar, era bom não falar
enquanto riam e se olhavam, um último sol se deitando veloz, o trópico, olhe bem e
verá o raio verde lendário, já tentei lá da minha sacada e não vi nada, ah, claro, o
senhor tem uma sacada, sim senhora, uma sacada, mas você desfruta de um bangalô
pra ukuleles e orgias. Resvalando sem esforço, com outro cigarro, sério, é
maravilhoso, tem uma forma que. Assim será, se você diz. E a sua, fale. Não gosto
que diga a sua, parece uma distribuição de prêmios. É. Bem, mas assim não, não
Anna. Ah, que voz mais açucarada, você diz Anna como se chupasse cada letra.
Cada letra não, mas. Porco. E você, então. Em geral não sou eu quem chupa,
embora. Já imaginava isso, esses italianos vêm todos do decamerão. Um momento,
não estamos em terapia de grupo, Mauricio. Desculpe, não é ciúme, com que
direito? Ah, good boy. Então sim? Então sim, perfeito, lentamente
interminavelmente perfeito. Fico feliz por você, não quero que as coisas não sejam
boas pra você como são pra mim. Não sei como você está se saindo, mas o artigo
quatro manda que. De acordo, embora não seja fácil transformá-lo em palavras,
Anna é uma onda, uma estrela-do-mar. A vermelha ou a roxa? Todas juntas, um rio
dourado, os corais cor-de-rosa. Este homem é um poeta escandinavo. E você uma
libertina veneziana. Não é de Veneza, de Verona. Tanto faz, sempre se pensa em
Shakespeare. Tem razão, não tinha pensado nisso. Enfim, estamos nessa, é verdade.
Estamos nessa, Mauricio, e ainda temos cinco dias. Cinco noites, principalmente,
aproveite-as bem. Acho que sim, ele me prometeu iniciações que chama de artifícios
para se chegar à realidade. Depois você vai me mostrar, espero. Em detalhes,
imagine, e você vai me contar do seu rio de ouro e dos corais azuis. Corais cor-de-
rosa, minha pequena. Enfim, você viu que não estamos perdendo tempo. Veremos,
mas de qualquer modo não perdemos o presente e, por falar nisso, não é bom que a
gente fique muito tempo no artigo quatro. Outro mergulho antes do uísque? Do
uísque, que grosseria, pra mim dão Carpano misturado com gim e angostura. Ah,
desculpe. Não é nada, os refinamentos levam tempo, vamos atrás do raio verde,
numa dessas, quem sabe?
Sexta-feira, dia de Robinson, alguém lembrou entre dois tragos, e se falou um
pouco de ilhas e naufrágios, houve um breve e violento aguaceiro quente que
prateou as palmeiras e trouxe, mais tarde, um novo rumor de pássaros, as migrações,
o velho marinheiro e seu albatroz, era gente que sabia viver, cada uísque vinha com
sua cota de folclore, de velhas canções das Hébridas ou de Guadalupe, no final do
dia Vera e Mauricio pensaram a mesma coisa, o hotel merecia seu nome, era a hora
dos ventos alísios para eles, Anna a doadora de vertigens esquecidas, Sandro o
fazedor de máquinas sutis, ventos alísios devolvendo-os a outros tempos sem
costumes, quando também tinham tido um tempo assim, invenções e
deslumbramentos no mar dos lençóis, só que agora, só que agora não mais, e por
isso, por isso os alísios que soprariam ainda até terça-feira, exatamente até o final do
interregno que era outra vez o passado remoto, uma viagem instantânea às fontes
aflorando outra vez, banhando-os de uma delícia presente, mas já conhecida, um dia
conhecida antes dos códigos, de Blues in Thirds.
Não tocaram no assunto na hora de se encontrar no Boeing de Nairóbi, enquanto
acendiam juntos o primeiro cigarro do retorno. Olhar-se como antes os enchia de
algo para o qual não havia palavras e que os dois calaram entre tragos e histórias do
Trade Winds, de alguma forma era preciso guardar o Trade Winds, os alísios tinham
de continuar empurrando-os, a boa e velha querida navegação a vela voltando para
destruir as hélices, para acabar com o sujo lento petróleo de cada dia contaminando
as taças de champanhe do aniversário, a esperança de cada noite. Ventos alísios de
Anna e de Sandro, continuar a bebê-los em plena cara enquanto se olhavam entre
duas baforadas de fumaça, por que Mauricio agora se Sandro continuava sempre
ali?, sua pele e seu cabelo e sua voz afinando o rosto de Mauricio como o riso rouco
de Anna em pleno amor inundava esse sorriso que em Vera valia amavelmente como
uma ausência. Não havia artigo seis, mas podiam inventá-lo sem palavras, era muito
natural que em algum momento ele convidasse Anna para tomar outro uísque e que
ela, aceitando com um carinho na bochecha, dissesse que sim, dissesse sim, Sandro,
seria tão bom tomarmos outro uísque para perdermos o medo de altura, brincar
assim a viagem toda, já que não havia necessidade de códigos para decidir que
Sandro se ofereceria no aeroporto para acompanhar Anna até sua casa, que Anna
aceitaria com o singelo acatamento dos deveres cavalheirescos, que já na casa fosse
a vez dela de procurar as chaves na bolsa e convidar Sandro a tomar outro drinque, e
o fizesse deixar a mala no saguão e lhe mostrasse o caminho da sala, desculpando-se
pelas marcas de pó e pelo ar parado, abrindo as cortinas e trazendo gelo enquanto
Sandro examinava com um ar apreciativo as pilhas de discos e a gravura de
Friedlander. Já passava de onze da noite, beberam as taças da amizade e Anna trouxe
uma lata de patê e bolachas, Sandro a ajudou a fazer canapés e nem chegaram a
prová-los, as mãos e as bocas se buscavam, jogar-se na cama e desnudar-se já
enlaçados, buscar-se entre fitas e panos, arrancar as últimas roupas e descobrir a
cama, abaixar as luzes e possuir-se lentamente, buscando e murmurando, sobretudo
esperando e murmurando-se a esperança.
Não se sabe quando voltaram os drinques e os cigarros, os travesseiros para sentar-
se na cama e fumar sob a luz do abajur no chão. Quase não se olhavam, as palavras
iam até a parede e voltavam num lento jogo de bola para cegos, e ela a primeira a
perguntar, como se para si mesma, o que seria de Vera e de Mauricio depois do
Trade Winds, o que seria deles depois do regresso.
— Já devem ter percebido — disse ele. — Já devem ter entendido e depois disso
não poderão fazer mais nada.
— Sempre se pode fazer alguma coisa — disse ela —, Vera não vai deixar assim,
bastava vê-la.
— Mauricio também não — disse ele —, eu mal o conheci, mas era bem evidente.
Nenhum dos dois vai deixar assim e é quase fácil imaginar o que vão fazer.
— Sim, é fácil, parece que estou vendo.
— Não devem ter dormido, como nós, e agora devem estar conversando devagar,
sem se olhar. Já não terão nada a dizer um ao outro, acho que Mauricio é quem vai
abrir a gaveta e pegar o frasco azul. Assim, veja, um frasco azul como este.
— Vera irá contá-las e dividi-las — disse ela. — As coisas práticas sempre cabiam
a ela, fará isso muito bem. Dezesseis pra cada um, nem mesmo o problema de um
número ímpar.
— Vão tomá-las de duas em duas, com uísque e ao mesmo tempo, sem se apressar.
— Devem ser um pouco amargas — disse ela.
— Mauricio dirá que não, mais para ácidas.
— Sim, pode ser que sejam ácidas. E depois vão apagar a luz, não se sabe por quê.
— Nunca se sabe por quê, mas a verdade é que vão apagar a luz e se abraçar. Isso é
certo, sei que vão se abraçar.
— No escuro — disse ela procurando o interruptor. — Assim, não é?
— Assim — disse ele.
Segunda vez
N
ós só ficávamos à espera deles, cada um tinha sua data e sua hora, mas
claro, sem pressa, fumando devagar, de vez em quando o negro López
trazia café e então parávamos de trabalhar e comentávamos as novidades,
quase sempre a mesma coisa, a visita do chefe, as mudanças lá de cima, os
desempenhos em San Isidro. Eles, claro, não podiam saber que os estávamos
esperando, o que se diz esperar, essas coisas tinham de acontecer sem alarde, ajam
com tranquilidade, palavras do chefe, de vez em quando repetidas, por via das
dúvidas, vão piano piano, enfim, era fácil, se alguma coisa desse errado não iam nos
cobrar, os responsáveis estavam lá em cima e o chefe era a lei, fiquem calmos,
rapazes, se der algum rolo aqui eu dou a cara pra bater, a única coisa que peço é que
não se enganem de pessoa, primeiro a averiguação pra não pisar na bola e depois
tudo bem, vão em frente.
Para ser franco, eles não davam trabalho, o chefe tinha escolhido escritórios
funcionais para que não ficassem amontoados, e nós os recebíamos um por um,
como se deve, com todo o tempo necessário. Que educados que somos, gente, o
chefe dizia sem parar, e era verdade, tudo tão sincronizado, que IBM, que nada, aqui
se trabalhava com vaselina, necas de pressa nem de passem adiante. Tínhamos
tempo para os cafezinhos e para os prognósticos do domingo, e o chefe era o
primeiro a vir buscar os palpites, que para isso o magro Bianchetti era propriamente
um oráculo. Então todo dia era a mesma coisa, chegávamos com os jornais, o negro
López trazia o primeiro café e logo começavam a aparecer para o trâmite. A
convocatória dizia isso, trâmite que lhe diz respeito, nós só aqui esperando. Agora,
isso sim, ainda que venha em papel amarelo, uma convocatória sempre tem um ar
sério; por isso María Elena a olhara muitas vezes em sua casa, o selo verde rodeando
a assinatura ilegível e as indicações de data e local. No ônibus, tirou-a novamente da
bolsa e deu corda no relógio, por garantia. Convocavam-na para ir a um escritório da
rua Maza, era estranho que ali houvesse um ministério, mas sua irmã tinha dito que
estavam instalando escritórios em toda parte porque os ministérios já estavam
pequenos, e assim que desceu do ônibus ela viu que devia ser verdade, o bairro era
qualquer nota, com casas de três ou quatro andares e principalmente com muito
comércio varejista, e até algumas das poucas árvores que ainda restavam na região.
“Pelo menos uma bandeira deve ter”, pensou María Elena ao se aproximar da
quadra na altura do 700, talvez fosse como as embaixadas que ficavam nos bairros
residenciais mas se distinguiam de longe pelo pano colorido em alguma sacada.
Embora o número estivesse bem clarinho na convocatória, ficou surpresa ao não ver
a bandeira nacional, e por um momento permaneceu na esquina (era muito cedo,
podia fazer hora), e sem nenhum motivo perguntou na banca de jornais se a Direção
ficava naquela quadra.
— Claro que sim — disse o homem —, ali na metade da quadra, mas antes, por
que não fica um pouquinho aqui pra me fazer companhia? Olhe como estou sozinho.
— Na volta — sorriu-lhe María Elena e saiu sem pressa, consultando outra vez o
papel amarelo. Quase não havia tráfego nem gente, um gato diante de um armazém e
uma gorda com uma menininha saindo de um saguão. Os poucos carros estavam
estacionados na altura da Direção, quase todos com alguém ao volante lendo o jornal
ou fumando. A entrada era estreita como todas naquela quadra, com um saguão de
maiólicas e a escada ao fundo; a placa na porta parecia apenas a de um médico ou a
de um dentista, suja e com um papel colado na parte de baixo para cobrir algumas
inscrições. Era esquisito não ter elevador, um terceiro andar e ter de subir a pé
depois daquele papel tão sério com carimbo verde, a assinatura e tudo mais.
A porta do terceiro andar estava fechada e não se via nem campainha nem placa.
María Elena tocou na maçaneta e a porta se abriu sem ruído; a fumaça do tabaco a
alcançou antes das maiólicas esverdeadas do corredor e dos bancos dos dois lados
com as pessoas sentadas. Não eram muitos, mas com aquela fumaça e o corredor tão
estreito pareciam tocar-se com os joelhos, as duas senhoras idosas, o senhor calvo e
o rapaz da gravata verde. Com certeza tinham estado conversando para matar o
tempo, bem quando abriu a porta María Elena pegou um final de frase de uma das
senhoras, mas todos, como sempre, ficaram quietos de repente vendo quem chegava
por último, e também como sempre e se sentindo uma sonsa María Elena corou e
mal lhe saiu a voz para dizer bom dia e ficar parada ao lado da porta, até que o rapaz
lhe fez um sinal mostrando o banco vazio a seu lado. Justo quando se sentava,
agradecendo-lhe, a porta do outro extremo do corredor se entreabriu para deixar sair
um homem de cabelo vermelho que abriu caminho entre os joelhos dos outros sem
se incomodar em pedir licença. O empregado manteve a porta aberta com um pé,
esperando, até que uma das duas senhoras se levantou com dificuldade e se
desculpando passou entre María Elena e o senhor calvo; a porta de saída e a do
escritório se fecharam quase ao mesmo tempo, e os que permaneceram ali
começaram a conversar de novo, esticando-se um pouco nos bancos que rangiam.
Cada um tinha seu assunto, como sempre, o senhor calvo a lentidão dos trâmites,
se isso é assim da primeira vez, o que se pode esperar, me diga, mais de meia hora e,
no fim, pra quê?, só umas quatro perguntas e tchau, pelo menos é o que imagino.
— Não é bem assim — disse o rapaz da gravata verde —, é minha segunda vez
aqui e eu garanto que não é tão rápido, entre eles copiarem tudo à máquina e de
repente a gente não se lembrar bem de uma data, coisas assim, acaba durando
bastante.
O senhor calvo e a senhora idosa o ouviam com interesse, porque para eles era
evidentemente a primeira vez, bem como para María Elena, embora ela não se
sentisse no direito de entrar na conversa. O senhor calvo queria saber quanto tempo
se passava entre a primeira e a segunda convocatória, e o rapaz explicou que, no
caso dele, tinha sido coisa de três dias. Mas por que duas convocatórias?, quis
perguntar María Elena, e outra vez sentiu as cores lhe subindo às faces e esperou que
alguém falasse com ela e lhe desse confiança, que a deixasse participar, não ser mais
a última. A senhora idosa tinha apanhado um frasquinho que parecia de sais e o
cheirava, suspirando. É capaz que tanta fumaça a estivesse deixando indisposta,
então o rapaz se ofereceu para apagar o cigarro e o senhor calvo disse que claro, que
esse corredor era uma vergonha, melhor que apagassem os cigarros se ela se sentia
mal, mas a senhora disse que não, só um pouco de cansaço que logo ia passar, na
casa dela o marido e os filhos fumavam o tempo todo, eu quase nem percebo mais.
María Elena, que também sentira vontade de pegar um cigarro, viu que os homens
apagavam os seus, que o rapaz o esmagava com a sola do sapato, sempre se fuma
demais quando é preciso esperar, da outra vez tinha sido pior, porque havia sete ou
oito pessoas antes dele, e no final não se via mais nada no corredor, de tanta fumaça.
— A vida é uma sala de espera — disse o senhor calvo, pisando no cigarro com
muito cuidado e olhando para as mãos como se não soubesse mais o que fazer com
elas, e a senhora idosa suspirou um assentimento de muitos anos e guardou o
frasquinho justamente quando a porta do fundo era aberta e a outra senhora saía com
aquele ar que todos invejavam, o bom-dia quase compassivo ao chegar à porta de
saída. Mas então não demorava tanto, pensou María Elena; três pessoas antes dela,
vamos dizer, três quartos de hora, claro que de repente o trâmite podia ser mais
demorado com alguns, o rapaz já estivera ali uma primeira vez e tinha dito isso. Mas
quando o senhor calvo entrou no escritório, María Elena se animou a perguntar para
se sentir mais segura, e o rapaz ficou pensando e depois disse que da primeira vez
alguns tinham demorado muito e outros menos, nunca dava pra saber. A senhora
idosa observou que a outra senhora havia saído quase na mesma hora, mas o senhor
de cabelo vermelho tinha demorado uma eternidade.
— Ainda bem que agora somos poucos — disse María Elena —, esses lugares são
deprimentes.
— É preciso levar as coisas com filosofia — disse o rapaz —, não se esqueça que
você vai ter que voltar, então é melhor ficar tranquila. Quando eu vim da primeira
vez não tinha ninguém pra conversar, éramos um monte de gente mas não sei, não
havia simpatia, hoje desde que eu cheguei o tempo está passando depressa porque
tem essa troca de ideias.
María Elena gostava de continuar conversando com o rapaz e com a senhora, quase
não sentiu o tempo passar até que o senhor calvo saiu e a senhora se levantou com
uma rapidez que não se esperaria em sua idade, a coitada queria acabar rápido com
os trâmites.
— Bem, agora nós — disse o rapaz. — Você se importa se eu der uma pitada? Não
aguento mais, mas a senhora parecia tão indisposta…
— Também estou com vontade de fumar.
Aceitou o cigarro que ele lhe oferecia e disseram seus nomes, onde trabalhavam,
sentiam-se bem em trocar impressões e esquecer o corredor, o silêncio que por
momentos parecia excessivo, como se as ruas e as pessoas tivessem ficado muito
longe. María Elena também tinha vivido em Floresta, mas quando era pequena,
agora morava lá pelos lados do Constitución. Carlos não gostava desse bairro,
preferia o oeste, um ar melhor, as árvores. Seu ideal seria morar em Villa del Parque,
quando se casasse talvez alugasse um apartamento por lá, seu futuro sogro
prometera ajudá-lo, era um senhor com muitas relações e numa dessas ele conseguia
alguma coisa.
— Não sei por quê, mas algo me diz que vou morar a vida toda no Constitución —
disse María Elena. — Não é tão ruim, afinal. E se algum dia…
Viu a porta do fundo se abrir e olhou, quase surpresa, o rapaz que sorria para ela ao
se levantar, veja só como conversando o tempo passou, a senhora os cumprimentava
amavelmente, parecia tão contente de ir embora, todo mundo tinha um ar mais
jovem e mais ágil ao sair, como se lhes tivessem tirado um peso dos ombros, o
trâmite finalizado, uma diligência a menos e lá fora a rua, os cafés onde talvez
entrassem para tomar um trago ou um chá, para sentir-se realmente do outro lado da
sala de espera e dos formulários. Agora o tempo ia se tornar mais longo para María
Elena, ali sozinha, ainda que, se tudo continuasse assim, Carlos sairia bem rápido,
mas numa dessas podia demorar mais que os outros porque era a segunda vez e
sabe-se lá que trâmites teria.
Quase não entendeu, de início, quando viu a porta se abrir e o empregado olhou
para ela e fez um gesto com a cabeça para que entrasse. Pensou que então era assim,
que Carlos teria de ficar mais um pouco preenchendo papéis e que, enquanto isso, se
ocupariam dela. Cumprimentou o funcionário e entrou no escritório; mal havia
passado pela porta quando outro funcionário lhe mostrou uma cadeira diante de uma
escrivaninha preta. Havia vários funcionários no escritório, só homens, mas não viu
Carlos. Do outro lado da escrivaninha, um funcionário com cara de doente olhava
uma planilha; sem levantar os olhos, estendeu a mão e María Elena demorou a
entender que estava lhe pedindo a convocatória, de repente entendeu e a procurou,
um pouco perdida, murmurando desculpas, tirou duas ou três coisas da bolsa até
encontrar o papel amarelo.
— Vá preenchendo isto — disse o funcionário, passando-lhe o formulário. — Em
maiúsculas, bem clarinho.
Eram as bobagens de sempre, nome e sobrenome, idade, sexo, domicílio. Entre
duas palavras, María Elena teve a sensação de que algo a incomodava, algo que não
estava totalmente claro. Não na planilha, onde era fácil preencher as lacunas; algo lá
fora, algo que faltava ou não estava no lugar. Parou de escrever e deu uma olhada
em redor, nas outras mesas com os funcionários trabalhando ou conversando, nas
paredes com cartazes e fotos, nas duas janelas, na porta por onde havia entrado, a
única porta do escritório. Profissão, e ao lado a linha pontilhada; preencheu a lacuna
automaticamente. A única porta do escritório, mas Carlos não estava ali.
Antiguidade no emprego. Em maiúsculas, bem clarinho.
Quando assinou ao pé da página, o funcionário a fitava como se ela tivesse
demorado demais para preencher a planilha. Estudou o papel por um momento, não
viu falhas e o guardou numa pasta. O resto foram perguntas, algumas inúteis, porque
ela já as respondera na planilha, mas também sobre a família, as mudanças de
domicílio nos últimos anos, os seguros, se viajava com frequência e para onde, se
tinha tirado passaporte ou pensava em tirar. Ninguém parecia estar muito
preocupado com as respostas, de qualquer forma o funcionário não as anotava. De
repente, disse a María Elena que ela podia ir embora e que voltasse três dias depois,
às onze horas; não precisava de convocatória por escrito, mas que não fosse se
esquecer.
— Sim, senhor — disse María Elena se levantando —, então na quinta às onze.
— Passe bem — disse o funcionário, sem olhar para ela.
No corredor não havia ninguém, e percorrê-lo foi como para todos os outros, a
mesma pressa, o suspiro de alívio, a vontade de chegar à rua e deixar tudo aquilo
para trás. María Elena abriu a porta da saída e quando começou a descer a escada
pensou em Carlos novamente, era estranho que Carlos não tivesse saído, como os
outros. Era estranho porque o escritório só tinha uma porta, claro que de repente ela
não olhou direito porque não era possível uma coisa dessas, o funcionário tinha
aberto a porta para ela entrar e Carlos não havia cruzado com ela, não saíra,
primeiro, como todos os outros, o homem de cabelo vermelho, as senhoras, todos
menos Carlos.
O sol se estilhaçava na calçada, era o ruído e o ar da rua; María Elena deu alguns
passos e ficou parada ao lado de uma árvore, num lugar onde não havia carros
estacionados. Olhou para a porta da casa, disse a si mesma que ia esperar um pouco
para ver Carlos sair. Não era possível que Carlos não saísse, todos tinham saído ao
terminar o trâmite. Pensou que talvez ele estivesse demorando por ser o único que
viera pela segunda vez; vá saber, talvez seja isso. Era muito estranho não tê-lo visto
no escritório, mas quem sabe houvesse uma porta disfarçada pelos cartazes, alguma
coisa que lhe escapara, mas era estranho mesmo assim, pois todo mundo saíra pelo
corredor, como ela, todos os que tinham vindo pela primeira vez haviam saído pelo
corredor.
Antes de ir embora (tinha esperado um pouco, mas não podia continuar assim),
pensou que na quinta teria de voltar. É capaz que as coisas mudassem, então, e que a
fizessem sair pelo outro lado, embora não soubesse por onde nem por quê. Ela não,
claro, mas nós sim, nós sabíamos, nós estaríamos esperando por ela e pelos outros,
fumando devagarinho e conversando enquanto o negro López preparava mais um
dos tantos cafés da manhã.
Era como levantar lentamente um papel-carbono e ver sob ele a cópia exata do dia
precedente, o almoço com os pais de Lilian e o sr. Guzzi especialista em caracóis, a
sesta longa e quente, o chá contigo, que não aparecias muito mas a essa hora era o
ritual, as torradas no terraço, a noite pouco a pouco, você quase sentia pena de te ver
assim com o rabo entre as pernas, mas tampouco queria quebrar o ritual, aquele
encontro vespertino onde quer que estivessem, o chá antes de ir fazer suas coisas.
Era óbvio e patético que não soubesses defender-te, pobre Roberto, que estivesses
cachorrinho passando a manteiga e o mel, procurando o próprio rabo cachorrinho
torvelinho engolindo torradas entre frases também meio engolidas, chá novamente,
novamente cigarro.
Raquete de tênis, bochechas cor de tomate, bronze por todo lado, Lilian te
procurando para ir ver aquele filme antes do jantar. Você ficou contente quando
foram, estavas realmente perdido e não encontravas teu lugar, era preciso deixar-te
vir à tona do lado de Lilian, lançados a esse para você quase incompreensível
intercâmbio de monossílabos, gargalhadas e empurrões da nova onda que nenhuma
gramática esclareceria e que era a própria vida rindo mais uma vez da gramática.
Você se sentia bem assim sozinha, mas de repente uma espécie de tristeza, esse
silêncio civilizado, um filme que só eles veriam. Vestiu uma calça e uma blusa que
sempre gostava de usar, e desceu pela beira-mar parando nas lojas e na banquinha,
comprando uma revista e cigarros. A farmácia da cidade tinha um anúncio de neon
que lembrava um pagode tartamudo, e sob aquela incrível coifa verde e vermelha a
salinha com cheiro de ervas medicinais, a velha Delcasse e a empregada jovenzinha,
que realmente te metia medo, embora só tivesses falado da velha Delcasse. Havia
dois clientes enrugados e tagarelas que precisavam de aspirinas e de comprimidos
para o estômago, que pagavam mas demoravam a sair, olhando as vitrines e fazendo
durar um minuto um pouco menos tedioso que os outros em suas casas. Você lhes
deu as costas sabendo que o local era tão pequeno que ninguém perderia uma
palavra, e depois de concordar com a velha Delcasse em que o tempo estava uma
maravilha, pediu-lhe um frasco de álcool como quem concede um último prazo aos
dois clientes que já não tinham mais nada a fazer ali, e quando o frasco chegou e os
velhos continuavam contemplando as vitrines com alimentos para crianças, você
baixou a voz o mais que pôde, preciso de algo pro meu filho que ele não se anima a
comprar, sim, exatamente, não sei se vêm em caixas, mas em todo caso me dê uma
porção, depois ele mesmo dá um jeito nisso. Engraçado, não é?
Agora que tinha dito isso, você mesma podia responder que sim, que era
engraçado, e quase soltar a risada na cara da velha Delcasse, sua voz de papagaio
empalhado explicando, sob o diploma amarelo entre as vitrines, vêm em
envelopezinhos individuais e também em caixas de doze e de vinte e quatro. Um dos
clientes tinha ficado olhando como se não acreditasse, e o outro, uma velha metida
numa miopia e numa saia até o chão, retrocedia passo a passo dizendo boa noite, e a
balconista mais jovem, divertidíssima, boa noite, sra. de Pardo, a velha Delcasse
finalmente engolindo saliva e antes de se virar murmurando enfim, é difícil pra você,
por que não me disse pra ir aos fundos da loja, e você te imaginando na mesma
situação e tendo pena de ti mesmo porque com certeza não terias te animado a pedir
para a velha Delcasse que te levasse aos fundos da loja, um homem e coisas assim.
Não, disse ou pensou (nunca soube bem, e dava na mesma), não vejo por que devia
fazer segredo ou drama por uma caixa de preservativos, se a tivesse pedido nos
fundos da loja teria me traído, teria sido tua cúmplice, talvez daqui a algumas
semanas teria de repeti-lo, e isso não, Roberto, uma vez tudo bem, agora cada um na
sua, realmente nunca mais vou te ver pelado, filhinho, desta vez foi a última, sim, a
caixa de doze, senhora.
— Você os deixou completamente gelados — disse a funcionária jovem, morrendo
de rir pensando nos clientes.
— Eu notei — você disse, pegando o dinheiro —, não é coisa que se faça,
realmente.
Antes de se vestir para o jantar deixou o pacote sobre tua cama, e quando voltaste do
cinema correndo porque já era tarde viste o volume branco sobre o travesseiro e
ficaste de todas as cores e o abriste, então Denise, mamãe, me deixa entrar, mamãe,
encontrei o que tu. Decotada, muito jovem em sua roupa branca, recebeu-te olhando-
te pelo espelho, do fundo de algo distante e diferente.
— Sim, e agora te vira sozinho, neném, não posso fazer mais nada por vocês.
Já fazia muito tempo que haviam combinado que não te chamaria mais de neném,
entendeste que cobrava, que te fazia devolver o dinheiro. Não soubeste em que pé
parar, foste até a janela, depois te aproximaste de Denise e a pegaste pelos ombros,
te colaste às suas costas beijando-a no pescoço, muitas vezes e úmido e neném,
enquanto você terminava de arrumar o cabelo e procurava o perfume. Quando sentiu
o calor da lágrima na pele, deu um giro completo e te empurrou suavemente para
trás, rindo sem que se ouvisse sua voz, um riso lento de cinema mudo.
— Está ficando tarde, bobo, tu sabes que a Úrsula não gosta de esperar na mesa. O
filme era bom?
Repelir a ideia embora fosse cada vez mais difícil na hora da sonolência, meia-noite
e um mosquito aliado ao súcubo para não deixá-la escorregar no sono. Acendendo o
abajur, bebeu um longo gole de água, deitou-se de costas de novo; o calor era
insuportável, mas na gruta estaria fresco, quase à beira do sono você a imaginava
com sua areia branca, agora realmente súcubo inclinado sobre Lilian de costas com
os olhos muito abertos e úmidos enquanto tu lhe beijavas os seios e balbuciavas
palavras sem sentido, mas naturalmente não tinhas sido capaz de fazer as coisas
direito e quando te desses conta seria tarde, o súcubo gostaria de intervir sem
incomodá-los, simplesmente ajudar para que não fizessem bobagem, outra vez o
velho hábito, conhecer tão bem teu corpo de bruços, buscando acesso entre gemidos
e beijos, voltar a olhar de perto tuas coxas e as costas, repetir as fórmulas diante dos
tombos ou da gripe, relaxa o corpo, não vai doer, um menino grande não chora por
causa de uma injeção de nada, vamos. E outra vez o abajur, a água, continuar lendo a
revista idiota, só dormiria mais tarde, depois que voltasses na ponta dos pés e você te
ouvisse no banho, o estrado do colchão rangendo de leve, o murmúrio de alguém
que fala em sonhos ou que fala consigo tentando dormir.
A água estava mais fria mas você gostou de sua chicotada amarga, nadou até o
espigão sem se deter, de lá viu os que chapinhavam no raso, você fumando ao sol
sem muita vontade de entrar. Boiou para descansar, e já de volta cruzou com Lilian,
que nadava devagar, concentrada no estilo, e que lhe disse o “oi” que parecia sua
máxima concessão à gente grande. Já tu te levantaste de um salto e envolveste
Denise na toalha, arrumaste um lugar para ela do lado bom do vento.
— Não vais gostar, está gelada.
— Imaginei, estás todo arrepiado. Espera, esse isqueiro não funciona, tenho outro
aqui. Te trago um nescafé quentinho?
De bruços, as abelhas do sol começando a zumbir sobre a pele, a luva sedosa da
areia, uma espécie de interregno. Trouxeste o café e lhe perguntaste se voltavam
mesmo no domingo ou se preferia ficar mais. Não, pra quê, já começava a refrescar.
— Melhor — disseste, olhando para longe. — Voltamos e fim, a praia é boa por
quinze dias, depois chateia.
Esperaste, claro, mas não foi assim, só sua mão veio acariciar teus cabelos, apenas.
— Diz alguma coisa, Denise, não fica assim, me…
— Shhh, se alguém tem de dizer algo és tu, não me transforma numa mãe-aranha.
— Não, mamãe, é que…
— Não temos mais nada a dizer, sabes que fiz isso pela Lilian e não por ti. Já que
te sentes homem, aprende a te conduzir sozinho agora. Se o neném tiver dor de
garganta, já sabe onde estão as pastilhas.
A mão que acariciara teu cabelo deslizou por teu ombro e caiu na areia. Você
marcara duramente cada palavra, mas a mão fora a mão invariável de Denise, a
pomba que afugentava as dores, dispensadora de cócegas e carícias entre algodões e
água oxigenada. Isso também precisava parar, mais cedo ou mais tarde, soubeste
disso como um golpe surdo, o limite final tinha de chegar numa noite ou numa
manhã qualquer. Tinhas feito os primeiros gestos da distância, trancar-se no
banheiro, trocar de roupa sozinho, gastar longas horas na rua, mas era você quem
faria chegar o limite final, num momento que talvez fosse agora, essa última carícia
em tuas costas. Se o neném tiver dor de garganta, ele já sabe onde estão as pastilhas.
— Não te preocupes, Denise — disseste obscuramente, a boca meio coberta de
areia —, não te preocupes com a Lilian. Ela não quis, sabes?, no fim ela não quis. É
boba essa menina, o que querias?
Você se levantou, enchendo os olhos de areia com a brusca sacudida. Viste, entre
lágrimas, que sua boca tremia.
— Já te disse que chega, estás me ouvindo? Chega, chega!
— Mamãe…
Mas te deu as costas e cobriu o rosto com o chapéu de palha. O íncubo, a insônia, a
velha Delcasse, era para rir. O limite final, que limite, que final? Ainda é possível
que um dia a porta do banheiro não esteja trancada e que você entre e te surpreenda
nu e ensaboado e de repente confuso. Ou ao contrário, que a fiques olhando lá da
porta quando você sair do chuveiro, como durante tantos anos tinham se olhado e
brincado enquanto se enxugavam e se vestiam. Qual era o limite, qual era realmente
o limite?
— Oi — disse Lilian, sentando-se entre os dois.
Em nome de Boby
C
ompletou oito anos ontem, nós lhe fizemos uma linda festa e Boby ficou
contente com o trem de corda, a bola de futebol e o bolo com velinhas.
Minha irmã teve medo de que bem por esses dias ele chegasse da escola
com notas baixas, mas aconteceu o oposto disso, ele foi melhor em
aritmética e leitura, e não havia motivo para lhe cortar os brinquedos, ao contrário.
Dissemos que convidasse os amigos, e ele trouxe Beto e Juanita; veio também Mario
Panzani, mas ficou pouco tempo porque o pai estava doente. Minha irmã deixou que
brincassem no pátio até de noite e Boby estreou a bola, embora nós duas tivéssemos
medo de que estragassem nossas plantas com seu entusiasmo. Quando chegou a hora
da laranjada e do bolo com velinhas cantamos em coro o parabéns e demos muita
risada, porque todo mundo estava contente, principalmente Boby e minha irmã; eu,
claro, não deixei de vigiar Boby, e olhe que pensei estar perdendo tempo, vigiando o
quê?, se não havia o que vigiar; mas mesmo assim vigiando Boby quando ele estava
distraído, procurando nele aquele olhar que minha irmã parece não perceber e que
me faz tão mal.
Naquele dia, só uma vez ele a olhou assim, justamente quando minha irmã acendia
as velinhas, apenas um segundo antes de baixar os olhos e dizer, como o menino
bem-educado que é: “Muito bonito o bolo, mamãe”, e Juanita também o aprovou, e
Mario Panzani. Eu tinha levado a faca comprida para que Boby cortasse o bolo, e
principalmente nesse momento eu o vigiei da outra ponta da mesa, mas Boby estava
tão contente com o bolo que mal olhou para minha irmã e se concentrou na tarefa de
cortar as fatias bem iguaizinhas e reparti-las. “Primeiro pra você, mamãe”, disse
Boby dando-lhe uma fatia, e depois para Juanita e para mim, porque primeiro as
damas. Aí foram até o pátio para continuar brincando, menos Mario Panzani, que
estava com o pai doente, mas antes Boby disse de novo para minha irmã que o bolo
estava uma delícia, e veio correndo em minha direção e pulou no meu pescoço para
me dar um de seus beijos úmidos. “Que trenzinho lindo, tia”, e de noite subiu em
meus joelhos para me confiar o grande segredo: “Agora tenho oito anos, sabe, tia?”.
Fomos nos deitar muito tarde, mas era sábado e Boby podia ficar de papo para o ar
como nós até bem entrada a manhã. Fui a última a ir para a cama e antes cuidei de
arrumar a copa e pôr as cadeiras no lugar, as crianças tinham brincado de batalha
naval e de outros jogos que sempre deixam a casa de pernas para o ar. Guardei a faca
comprida e antes de me deitar vi que minha irmã já estava dormindo como um anjo;
fui até o quartinho de Boby e o olhei, estava de bruços, como gostava de ficar desde
pequenino, e tinha jogado o lençol no chão e estava com uma perna para fora da
cama, mas estava dormindo bem, com a cara enfiada no travesseiro. Se eu tivesse
tido um filho também o deixaria dormir assim, mas para que pensar nessas coisas…
Fui me deitar e não quis ler, e talvez tenha feito mal porque o sono não vinha e
acontecia o que sempre acontece comigo nessa hora em que se perde a vontade e as
ideias saltam por toda parte e parecem verdadeiras, de repente tudo o que se pensa é
verdadeiro e quase sempre horrível e não há jeito de tirar aquilo de cima da gente
nem rezando. Bebi água com açúcar e esperei, contando a partir de trezentos de trás
para a frente, que é mais difícil e faz o sono vir; justo quando eu estava quase
dormindo fiquei em dúvida, sem saber se tinha guardado a faca ou se ela ainda
estava na mesa. Era bobagem, pois tinha arrumado cada coisa e me lembrava de ter
posto a faca na última gaveta de madeira do aparador, mas, ainda assim… Levantei-
me e, claro, ela estava lá na gaveta misturada aos outros talheres de trinchar. Não sei
por que me deu vontade de guardá-la em meu quarto, até a peguei por um momento,
mas aí já era demais, me olhei no espelho e fiz uma careta. Na hora, também não
gostei muito daquilo, e então me servi um copinho de anis, embora fosse uma
imprudência com meu fígado, e o tomei na cama, aos golinhos, para ir em busca do
sono; vez por outra ouvia o ronco de minha irmã, e Boby, como sempre, falava ou
gemia.
Assim que caí no sono tudo voltou de repente, a primeira vez que Boby tinha
perguntado para minha irmã por que ela era má com ele, e minha irmã, que é uma
santa, todo mundo diz isso, ficou olhando para ele como se fosse brincadeira e até
riu, mas eu, que estava ali preparando o mate, me lembro de que Boby não riu, ao
contrário, parecia aflito e queria saber, naquela época já devia ter sete anos e sempre
fazia perguntas estranhas, como todas as crianças, lembro do dia em que me
perguntou por que as árvores eram diferentes de nós, e daí eu lhe perguntei o porquê
e Boby disse: “Mas, tia, elas se agasalham no verão e se desagasalham no inverno”,
e eu fiquei de boca aberta porque, realmente, aquele menino… todas são assim, mas
enfim. E agora minha irmã o olhava com estranhamento, ela que nunca tinha sido
má com ele, e lhe disse isso, só severa, às vezes, quando ele se portava mal ou estava
doente e era preciso fazer coisas que não o agradavam, a mãe de Juanita ou a de
Mario Panzani também eram severas com seus filhos quando necessário, mas Boby
continuava olhando tristemente para ela e por fim explicou que não era de dia, que
ela era má de noite, quando ele estava dormindo, e nós duas ficamos atônitas e acho
que fui eu quem começou a lhe explicar que ninguém tem culpa pelo que acontece
nos sonhos, que deve ter sido um pesadelo, só isso, que ele não tinha por que se
preocupar. Naquele dia Boby não insistiu, ele sempre aceitava nossas explicações e
não era uma criança difícil, mas alguns dias depois amanheceu chorando, aos gritos,
e quando fui até sua cama ele me abraçou e não quis falar nada, só chorava sem
parar, na certa outro pesadelo, até que na mesa ao meio-dia ele se lembrou de
repente e perguntou de novo para minha irmã por que, quando ele estava dormindo,
ela era tão má com ele. Dessa vez minha irmã o levou a sério, disse que ele já era
bem grandinho para que não distinguisse as coisas e que se continuasse insistindo
nisso ia avisar o dr. Kaplan, pois talvez ele estivesse com lombrigas ou apendicite e
seria preciso fazer alguma coisa. Senti que Boby ia cair no choro e me apressei a lhe
explicar novamente a história dos pesadelos, ele precisava entender que ninguém o
amava tanto como sua mãe, nem mesmo eu o amava tanto, e Boby escutava bem
sério, enxugando uma lágrima, e disse que claro, que ele sabia, desceu da cadeira
para ir beijar minha irmã, que não sabia o que fazer, e depois ficou pensativo
olhando para o ar, e de tarde fui procurá-lo no pátio e pedi que contasse tudo para
mim, que era sua tia, ele podia contar tudo para mim e também para sua mãe, e se
não quisesse dizer para ela que dissesse para mim. Dava para sentir que ele não
queria falar, era muito difícil para ele, mas por fim ele disse alguma coisa sobre
como de noite tudo era diferente, falou de uns panos pretos, que não conseguia soltar
as mãos nem os pés, assim qualquer um tem pesadelos, mas era uma pena que Boby
os tivesse justo com minha irmã, que tantos sacrifícios tinha feito por ele, eu lhe
disse isso, e repeti, e claro, ele concordava, claro que sim.
Logo depois disso minha irmã teve pleurite e coube a mim cuidar de tudo, Boby
não me dava trabalho porque mesmo sendo pequeno ele se virava quase sozinho,
lembro que entrava para ver minha irmã e ficava ao lado da cama sem falar,
esperando que ela lhe sorrisse ou acariciasse seu cabelo, e depois ia brincar
quietinho no pátio ou ler na sala; nem precisei lhe dizer para não tocar piano, o que
ele gostava muito de fazer, naqueles dias. A primeira vez que o vi triste contei a ele
que sua mãe já estava melhor e que no dia seguinte ia se levantar um pouco para
tomar sol. Boby fez um gesto estranho e me olhou de viés; não sei, a ideia me veio
de repente e lhe perguntei se estava tendo pesadelos de novo. Ele começou a chorar
bem baixinho, escondendo o rosto, depois disse que sim, e perguntou por que sua
mãe era assim com ele; dessa vez percebi que ele tinha medo, quando abaixei suas
mãos para lhe secar o rosto vi seu medo, e não foi fácil eu me fazer de indiferente e
explicar mais uma vez que não passavam de sonhos. “Não diga nada para ela”, pedi,
“veja, ela ainda está frágil e vai se impressionar.” Boby assentiu calado, confiava
tanto em mim, só que mais tarde cheguei a pensar que ele tinha tomado aquilo ao pé
da letra, pois nem mesmo quando minha irmã estava convalescendo lhe falou sobre
isso novamente, eu o adivinhava, certas manhãs, quando o via sair de seu quarto
com uma expressão perdida, e também porque ficava o tempo todo comigo, me
rondando na cozinha. Uma ou duas vezes eu não aguentei e falei com ele no pátio ou
quando lhe dava banho, e era sempre a mesma coisa, ele fazendo um esforço para
não chorar, engolindo as palavras, por que sua mãe era daquele jeito com ele de
noite, mas não conseguia ir além disso, chorava demais. Eu não queria que minha
irmã soubesse, pois tinha ficado mal da pleurite e era capaz que isso a afetasse
demais, expliquei de novo a Boby que entendia muito bem, já para mim ele podia
contar qualquer coisa, logo veria que quando crescesse mais um pouco ia parar de
ter esses pesadelos; melhor não comer tanto pão de noite, eu ia perguntar ao dr.
Kaplan se não seria conveniente ele tomar algum laxante para dormir sem sonhos
ruins. Não perguntei nada, claro, era difícil falar de uma coisa assim com o dr.
Kaplan, que tinha tanta clientela e não podia ficar perdendo tempo. Não sei se fiz
bem, mas aos poucos Boby deixou de me preocupar tanto, à vezes eu o via, de
manhã, com aquele ar um pouco perdido, e dizia para mim mesma que talvez de
novo, e então esperava que ele viesse me fazer confidências, mas Boby começava a
desenhar ou ia para a escola sem me dizer nada e voltava contente e cada dia mais
forte e saudável e com as melhores notas.
A última vez foi quando houve a onda de calor de fevereiro, minha irmã já estava
curada e levávamos a vida de sempre. Não sei se ela percebia, mas eu não queria lhe
dizer nada, pois a conheço e sei que é muito sensível, principalmente quando se trata
de Boby. Lembro bem de quando Boby era pequenininho e minha irmã ainda estava
sob o baque do divórcio, coisas assim, de como era difícil para ela suportar o choro
de Boby ou alguma travessura dele, e eu tinha de levá-lo ao pátio e esperar que tudo
se acalmasse, é para isso que as tias servem. Acho até que minha irmã não percebia
que às vezes Boby se levantava como se estivesse voltando de uma longa viagem,
com uma expressão perdida que durava até o café com leite, e quando ficávamos
sozinhas eu sempre esperava que ela dissesse alguma coisa, mas nada; e não achava
bom recordar algo que devia fazê-la sofrer, chegava a imaginar que Boby talvez
fosse lhe perguntar de novo por que ela era tão má com ele, mas Boby também devia
pensar que não tinha esse direito, ou algo assim, talvez ele se lembrasse de meu
pedido e pensasse que nunca mais deveria falar sobre isso com minha irmã. Às vezes
me vinha a ideia de que era eu quem estava inventando, com certeza Boby já não
sonhava nada de ruim com sua mãe, senão teria contado para mim imediatamente,
para se consolar; mas depois eu via aquela carinha dele de algumas manhãs e ficava
preocupada de novo. Ainda bem que minha irmã não notava nada, nem mesmo da
primeira vez que Boby a olhou assim, eu estava passando roupa e ele, da porta da
copa, olhou para minha irmã e, sei lá, como se pode explicar uma coisa dessas?, só
que o ferro quase furou minha camisola azul, eu a tirei bem a tempo e Boby ainda
estava olhando daquele jeito para minha irmã, que preparava a massa para fazer
empanadas. Quando lhe perguntei o que queria, só para dizer alguma coisa, ele teve
um sobressalto e respondeu que nada, que estava muito quente lá fora para jogar
bola. Não sei em que tom eu lhe fiz a pergunta, mas ele repetiu a explicação como se
quisesse me convencer e foi desenhar na sala. Minha irmã disse que Boby estava
muito sujo e que ia lhe dar um banho naquela mesma tarde, grande como era e ainda
se esquecia de lavar as orelhas e os pés. No fim fui eu quem lhe deu banho, porque
minha irmã ainda ficava cansada à tarde, e enquanto eu o ensaboava na banheira e
ele brincava com o pato de plástico que nunca quis abandonar, me animei a lhe
perguntar se estava dormindo melhor nesses dias.
— Mais ou menos — ele disse, depois de um momento dedicado a fazer o pato
nadar.
— Como assim, mais ou menos? Você sonha ou não sonha com coisas feias?
— Na outra noite sim — disse Boby, mergulhando o pato e mantendo-o debaixo
d’água.
— E você contou pra mamãe?
— Não, pra ela não. Pra ela…
Não me deu tempo para nada, ensaboado e tudo ele se jogou em cima de mim e me
abraçou chorando, tremendo, molhando-me toda enquanto eu tentava afastá-lo e seu
corpo escorregava entre meus dedos, até que ele mesmo se deixou cair sentado na
banheira e cobriu o rosto com as mãos, chorando aos gritos. Minha irmã veio
correndo e pensou que Boby tivesse escorregado e se machucado, mas ele disse que
não com a cabeça, parou de chorar com um esforço que enrugava sua cara, levantou-
se na banheira para que víssemos que não tinha acontecido nada com ele, negando-
se a falar, nu e ensaboado e tão sozinho em seu choro contido que nem minha irmã
nem eu conseguimos acalmá-lo, mesmo vindo com toalhas e carícias e promessas.
Depois disso, sempre procurei dar confiança a Boby sem que ele percebesse que eu
queria fazê-lo falar, só que as semanas foram passando e ele não quis me dizer nada,
mas quando pressentia algo em meu semblante já ia saindo ou me abraçava para me
pedir balas ou permissão para ir à esquina com Juanita e Mario Panzani. Para minha
irmã ele não pedia nada, era muito atencioso com ela, que no fundo continuava com
a saúde bastante frágil e não se preocupava muito em cuidar dele, porque eu sempre
chegava primeiro e Boby aceitava qualquer coisa de mim, até o mais desagradável,
quando necessário, de maneira que minha irmã não conseguia perceber aquilo que
eu tinha visto logo de cara, aquele jeito de olhá-la por instantes, de ficar na porta
antes de entrar olhando para ela, até que eu percebia e ele baixava rápido a vista ou
saía correndo ou dava uma cambalhota. O lance da faca foi por acaso, eu estava
trocando o papel do armário da copa e tinha tirado todos os talheres; não percebi que
Boby havia entrado até que me virei para cortar outra tira de papel e o vi olhando
para a faca mais comprida. Em seguida ele se distraiu ou não quis que eu notasse,
mas aquele jeito de olhar eu já conhecia, e sei lá, é bobagem pensar nessas coisas,
mas senti uma espécie de frio, quase um vento gelado naquela copa tão quente. Não
fui capaz de lhe dizer nada, mas de noite pensei que Boby tinha deixado de
perguntar para minha irmã por que ela era má com ele, só olhava às vezes para ela
da maneira que olhara para a faca comprida, com aquele olhar diferente. Deve ter
sido por acaso, claro, mas não gostei quando, na semana seguinte, novamente o vi
com a mesma cara, justo quando eu estava cortando pão com a faca comprida e
minha irmã explicava a Boby que já era hora de ele aprender a engraxar os sapatos
sozinho. “Sim, mamãe”, disse Boby, atento apenas ao que eu estava fazendo com o
pão, acompanhando com os olhos cada movimento da faca e se balançando um
pouco na cadeira quase como se ele mesmo estivesse cortando o pão; talvez
estivesse pensando nos sapatos e se movesse como se os estivesse lustrando, com
certeza minha irmã imaginou isso, porque Boby era tão obediente e tão bonzinho.
De noite pensei se não devia falar com minha irmã, mas o que iria lhe dizer, se não
estava acontecendo nada e Boby tirava as melhores notas da classe e coisas assim, só
que eu não conseguia dormir porque de repente tudo se juntava de novo, era como
uma massa que ia crescendo e daí o medo, impossível saber de quê, pois Boby e
minha irmã já estavam dormindo e de vez em quando dava para ouvi-los se mexer
ou suspirar, dormiam tão bem, muito melhor que eu, ali pensando a noite inteira. E
claro, no fim procurei Boby no jardim depois que o vi olhar outra vez daquele jeito
para minha irmã, pedi que me ajudasse a transplantar umas mudas e falamos de um
monte de coisas e ele me contou que Juanita tinha uma irmã que estava namorando.
— Claro, ela já é grande — eu lhe disse. — Olhe, vá buscar a faca comprida da
cozinha pra cortar essas ráfias.
Ele saiu correndo, como sempre, pois ninguém era mais prestativo comigo que ele,
e fiquei olhando a casa para vê-lo voltar, pensando que, na verdade, devia ter
perguntado dos sonhos antes de pedir a faca, para ter certeza. Quando ele voltou
caminhando, bem devagar, vi que tinha escolhido uma das facas menores, embora eu
tivesse deixado a maior bem à vista, pois queria ter certeza de que a veria assim que
abrisse a gaveta do armário.
— Essa não serve — disse a ele. Eu mal conseguia falar, era uma estupidez com
alguém tão pequenino e inocente como Boby, mas nem olhar em seus olhos eu
conseguia. Só senti o tranco quando ele se atirou em meus braços soltando a faca e
se agarrou em mim, se agarrou com muita força, soluçando. Acho que nesse
momento vi algo que deve ter sido seu último pesadelo, não podia lhe perguntar,
mas acho que vi o que ele sonhou na última vez, antes de parar de ter os pesadelos e,
por outro lado, passar a olhar assim para minha irmã, a olhar assim para a faca
comprida.
Apocalipse de Solentiname
D esde jovem fui tentado pela ideia de reescrever textos literários que me
comoveram, mas cuja fatura me parecia inferior a suas possibilidades internas;
acho que alguns relatos de Horacio Quiroga levaram essa tentação a um limite que
se resolveu, como era preferível, em silêncio e abandono. O que eu tentasse fazer
por amor só poderia ser recebido como um insolente pedantismo; conformei-me em
lamentar sozinho que certos textos me parecessem inferiores ao que alguma coisa
neles e em mim inutilmente havia exigido.
O acaso e um maço de velhos papéis me dão hoje uma abertura análoga a esse
desejo não realizado, mas nesse caso a tentação é legítima, já que se trata de um
texto meu, um conto longo intitulado “A barca”. Na última página do rascunho
encontro esta nota: “Que ruim! Escrevi-o em Veneza em 1954; dez anos depois o
releio, e me agrada, e é tão ruim”.
O texto e a anotação estavam esquecidos; mais doze anos se somaram aos dez
primeiros, e agora, ao reler estas páginas, eu concordo com minha nota, só gostaria
de saber melhor por que o conto me parecia e me parece ruim, e por que me
agradava e me agrada.
O que se segue é uma tentativa de mostrar a mim mesmo que o texto de “A barca”
está mal escrito porque é falso, porque passa ao largo de uma verdade que, na
época, não fui capaz de apreender, e que agora me é evidente. Reescrevê-lo seria
cansativo, e, de alguma forma pouco clara, desleal, quase como se fosse o conto de
outro autor e eu incorresse no pedantismo que assinalei no começo. Em
compensação, posso deixá-lo tal como nasceu, e ao mesmo tempo mostrar o que
consigo ver nele agora. É aí que Dora entra em cena.
Se Dora tivesse pensado em Pirandello, desde o início teria vindo procurar o
autor para reprovar-lhe a ignorância ou sua persistente hipocrisia. Mas sou eu
quem vai agora até ela para que finalmente ponha as cartas na mesa. Dora não
pode saber quem é o autor do conto, e suas críticas se dirigem apenas ao que
acontece nele visto de dentro, lá onde ela existe; mas o fato de essa continuação ser
um texto e ela um personagem de sua escrita não muda em nada seu direito,
igualmente textual, de se rebelar perante uma crônica que considera insuficiente ou
insidiosa.
Assim, hoje a voz de Dora interrompe de vez em quando o texto original, que, com
exceção das correções de puro detalhe e da eliminação de breves trechos repetitivos,
é o mesmo que escrevi à mão na Pensione dei Dogi em 1954. O leitor encontrará
nele tudo o que me parece ruim como escritura e a Dora ruim como conteúdo, e que
possivelmente seja, mais uma vez, o efeito recíproco de uma mesma causa.
O turismo brinca com seus adeptos, insere-os numa temporalidade enganosa, faz
com que na França saiam de um bolso o resto de moedas inglesas, que na Holanda
se busque inutilmente um sabor que só Poitiers pode dar. Para Valentina o pequeno
bar romano da via Quattro Fontane se reduzia a Adriano, ao sabor de uma taça de
martíni pegajoso e à cara de Adriano lhe pedindo desculpas por empurrá-la contra o
balcão. Quase não se lembrava se Dora estava com ela naquela manhã, com certeza
sim, porque estavam “fazendo” Roma juntas, organizando uma camaradagem
iniciada tolamente como tantas outras na Cook e na American Express.
Claro que eu estava. Desde o começo finge que não me vê, me reduz a uma figurante, às vezes conveniente, às
vezes inconveniente.
Mesmo assim, aquele bar perto da Piazza Barberini era Adriano, outro viajante,
outro desocupado circulando como todo turista circula nas cidades, fantasma entre
homens que vão e vêm do trabalho, têm famílias, falam a mesma língua e sabem o
que está acontecendo naquele momento e não na arqueologia do Guia Azul.
De Adriano, os olhos, o cabelo, a roupa logo se apagavam; só restava sua boca
grande e sensível, os lábios que tremiam um pouco depois de ter falado, enquanto
escutava. “Ele escuta com a boca”, pensou Valentina quando, do primeiro diálogo,
surgiu o convite para beber o famoso coquetel do bar, que Adriano recomendava e
que Beppo, agitando-o numa fulguração de cromos, proclamava ser a joia de Roma,
o Tirreno metido numa taça com todos os seus tritões e hipocampos. Naquele dia,
Dora e Valentina acharam Adriano simpático;
Hum.
Naquela tarde ele a beijou, em seu hotel da via Nazionale, depois que Valentina
telefonou a Dora para lhe dizer que não iria com ela às termas de Caracalla.
Desperdiçar assim uma ligação!
Até então Adriano não tinha se apaixonado por suas amantes; alguma coisa o
levava a possuí-las rápido demais para que se pudesse criar a aura, a necessária zona
de mistério e desejo, para organizar a caçada mental que um dia poderia se chamar
de amor. Com Valentina fora igual, mas nos dias de separação, naqueles últimos
entardeceres de Roma e da viagem a Florença, alguma coisa diferente havia se
deflagrado em Adriano. Sem surpresa, sem humildade, quase sem assombro, viu-a
surgir na penumbra dourada de Orsanmichele, brotando do tabernáculo de Orcagna
como se uma das inumeráveis figurinhas de pedra se desprendesse do monumento
para vir a seu encontro. Talvez só então tenha compreendido que estava se
apaixonando por ela. Ou talvez depois, no hotel, quando Valentina chorou abraçada
a ele, sem lhe dar motivos, deixando-se levar como uma menina que se abandona a
uma necessidade longamente contida e encontra alívio misturado com vergonha,
com reprovação.
No imediato e exterior, Valentina chorava pela precariedade do encontro. Adriano
seguiria seu caminho alguns dias mais tarde; não voltariam a se encontrar porque o
episódio se encaixava num calendário vulgar de férias, numa moldura de hotéis e
coquetéis e frases rituais. Só os corpos sairiam saciados, como sempre, por um
momento teriam a satisfação do cachorro que termina de mastigar e se deita ao sol
com um grunhido de satisfação. Em si o encontro era perfeito, corpos feitos para
apertar-se, enlaçar-se, retardar ou provocar o gozo. Mas quando olhava para Adriano
sentado à beira da cama (e ele a olhava com sua boca de lábios grossos) Valentina
sentia que o rito acabava de se cumprir sem um conteúdo real, que os instrumentos
da paixão estavam ocos, que o espírito não os habitava. Ela levara tudo isso com
indiferença e até de modo favorável em outros lances do momento, mas dessa vez
tentara segurar Adriano, prolongar o momento de se vestir e de sair, esses gestos que
de alguma forma já anunciavam uma despedida.
Aqui se quis dizer algo sem dizê-lo, sem entender nada além de um rumor incerto. Valentina também tinha me
olhado assim enquanto tomávamos banho e nos vestíamos em Roma, antes de Adriano; eu também tinha
sentido que essas rupturas na continuidade lhe faziam mal, lançavam-na para o futuro. Da primeira vez
cometi o erro de insinuar isso, de me aproximar e acariciar seu cabelo e lhe propor que pedíssemos bebidas e
ficássemos olhando o entardecer da janela. Sua resposta foi seca, não tinha vindo do Uruguai para morar
num hotel. Pensei simplesmente que continuava desconfiando de mim, que atribuía um sentido preciso a esse
esboço de carícia, assim como eu havia entendido mal seu primeiro olhar na agência de viagens. Valentina
olhava, sem saber exatamente por quê; éramos os outros que cedíamos a esse interrogar obscuro que tinha
algo de acosso, mas um acosso que não nos dizia respeito.
Dora os esperava num dos cafés da Signoria, tinha acabado de descobrir Donatello
e o explicou com demasiada ênfase, como se seu entusiasmo lhe servisse de manta
de viagem e a ajudasse a disfarçar alguma irritação.
— Claro que iremos ver as estátuas — disse Valentina —, mas hoje à tarde não
podemos entrar nos museus, faz muito sol pra ficar indo a museus.
— Não vão ficar tanto tempo aqui pra sacrificar tudo isso pelo sol.
Adriano fez um gesto vago, esperou as palavras de Valentina. Tinha dificuldade em
saber o que Dora representava para Valentina, se a viagem das duas já estava
definida e não admitiria mudanças. Dora voltava a Donatello, multiplicava as
referências inúteis que se fazem na ausência das obras; Valentina olhava a torre de
Signoria, procurava mecanicamente os cigarros.
Acho que aconteceu exatamente assim, e que pela primeira vez Adriano sofreu de verdade, teve medo de que
eu representasse a viagem sagrada, a cultura como dever, as reservas de trens e hotéis. Mas se alguém tivesse
lhe perguntado sobre outra solução possível, só poderia ter pensado em algo parecido junto a Valentina, sem
um termo preciso.
No dia seguinte foram aos Uffizi. Como que se furtando à necessidade de uma
decisão, Valentina se aferrava obstinadamente à presença de Dora para não deixar
brechas a Adriano. Só num momento fugaz, quando Dora se atrasou olhando um
retrato, ele pôde falar com ela de perto.
— Você vem hoje à tarde?
— Sim — disse Valentina sem olhá-lo —, às quatro.
— Eu te amo muito — murmurou Adriano, roçando seus ombros com dedos quase
tímidos. — Valentina, eu te amo muito.
Um grupo de turistas norte-americanos entrava, precedido pela voz nasal do guia.
Separaram-nos suas caras vaziamente ávidas, falsamente interessadas na pintura que
esqueceriam uma hora depois entre spaghetti e vinho dos Castelli Romani. Dora
também estava vindo, folheando seu guia, perdida porque os números do catálogo
não coincidiam com os quadros pendurados.
De propósito, claro. Deixá-los falar, marcar encontro, fartar-se. Não ele, isso eu já sabia, mas ela. Tampouco
se fartar, antes voltar ao perpétuo impulso da fuga que talvez a devolvesse a minha maneira de acompanhá-la
sem amolações, de simplesmente esperar a seu lado, embora isso de nada adiantasse.
— Sim, você me ama — disse ela. — Mas é como se você também tivesse medo
de alguma coisa, não de me amar, mas… Não medo, talvez, está mais pra ansiedade.
Você se preocupa com o que vem pela frente.
— Não sei o que vem pela frente, não faço a menor ideia. Como ter medo de tanto
vazio? Meu medo é você, é um medo concreto, aqui e agora. Você não me ama
como eu a amo, Valentina, ou me ama de outra maneira, limitada ou contida, sei lá
por que motivos.
Valentina o escutava fechando os olhos. Devagar, concordando com o que ele
acabara de dizer, entrevia algo por trás, algo que a princípio não passava de um oco,
de uma inquietação. Sentia-se venturosa demais naquele momento para tolerar que a
menor falha se imiscuísse na hora perfeita e pura na qual ambos tinham se amado
sem outro pensamento que o de não querer pensar. Mas tampouco dava para impedir
as palavras de Adriano. Media de repente a fragilidade dessa situação turística sob
um teto emprestado, entre lençóis alheios, ameaçados por guias ferroviários,
itinerários que levavam a vidas diferentes, a razões desconhecidas e provavelmente
antagônicas, como sempre.
— Você não me ama tanto como eu — repetiu Adriano, rancoroso. — Eu sirvo a
você, sirvo como uma faca ou um garçom, só isso.
— Por favor — disse Valentina. — Je t’en prie.
Tão difícil perceber por que já não eram felizes há tão poucos instantes de algo que
tinha sido como a felicidade.
— Sei muito bem que terei que voltar — disse Valentina, sem retirar os dedos do
rosto ansioso de Adriano. — Meu filho, meu trabalho, tantas obrigações. Meu filho é
muito pequeno, muito indefeso.
— Eu também tenho que voltar — disse Adriano, desviando os olhos. — Eu
também tenho meu trabalho, mil coisas.
— Você está vendo.
— Não, não estou. Como quer que eu veja? Se você me obriga a considerar isso
como um episódio de viagem, tira tudo dele e o esmaga como a um inseto. Eu te
amo, Valentina. Amar é mais que recordar ou se preparar pra recordar.
— Não é pra mim que você tem que dizer isso. Não, não é pra mim. Tenho medo
do tempo, do tempo da morte, do seu disfarce horrível. Você não percebe que nos
amamos contra o tempo, que é preciso negar o tempo?
— Sim — disse Adriano, deixando-se cair de costas junto dela —, e acontece que
depois de amanhã você vai pra Bolonha, e eu um dia depois pra Lucca.
— Cale-se.
— Por quê? Seu tempo é o de Cook, ainda que você queira enchê-lo de metafísica.
Já o meu, quem decide é meu capricho, meu prazer, os horários de trem que prefiro
ou descarto.
— Está vendo — murmurou Valentina. — Está vendo que temos que nos render às
evidências. O que mais resta?
— Vir comigo. Deixe sua famosa excursão, deixe Dora, que fala do que não sabe.
Vamos embora juntos.
Alude a meus entusiasmos pictóricos, não vamos discutir se tem razão. Em todo caso, os dois se falam diante
de seus respectivos espelhos, um perfeito diálogo de best-seller para encher duas páginas com nada em
particular. Que sim, que não, que o tempo… Tudo era tão claro para mim, Valentina piuma al vento, a neura e
a deprê e à noite uma dose dupla de valium, o velho, velho quadro de nossa jovem, jovem época. Uma aposta
comigo mesma (nesse momento, me lembro bem): de dois males, Valentina escolheria o menor, eu. Comigo
nenhum problema (se me escolhesse); no final da viagem adeus querida, foi tão doce e tão bonito, adeus,
adeus. Já Adriano… Nós duas tínhamos sentido a mesma coisa: com a boca de Adriano não se brincava.
Aqueles lábios… (Pensar que ela lhes permitia que conhecessem cada canto de sua pele; há coisas que me
superam, claro que é uma questão de libido, we know we know we know).
No entanto, era mais fácil beijá-lo, ceder à sua força, deslizar suavemente sob a
onda do corpo que a abraçava; era mais fácil se entregar do que negar esse
assentimento que ele, outra vez perdido no prazer, já esquecia.
Valentina foi a primeira a se levantar. A água da ducha a fustigou longamente.
Pondo um roupão de banho, voltou para o quarto, onde Adriano continuava na cama,
meio levantado e lhe sorrindo como se estivesse num sarcófago etrusco, fumando
demoradamente.
— Quero ver como anoitece lá da sacada.
Às margens do Arno, o hotel recebia as últimas luzes. Ainda não se haviam
acendido as lâmpadas na Ponte Vecchio, e o rio era uma faixa cor de violeta com
franjas mais claras, sobrevoado por pequenos morcegos que caçavam insetos
invisíveis; mais acima, rangiam as tesouras das andorinhas. Valentina se deitou na
cadeira de balanço, respirou um ar já fresco. Um doce cansaço a ganhava, poderia
dormir, talvez tenha dormido por alguns instantes. Mas nesse interregno de
abandono continuava pensando em Adriano, em Adriano e no tempo, as palavras
monótonas voltavam como bordões de uma canção boba, o tempo é a morte, um
disfarce da morte, o tempo é a morte. Olhava o céu, as andorinhas que jogavam seus
jogos límpidos, chilreando brevemente como se esmigalhassem a louça azul
profundo do crepúsculo. E Adriano também era a morte.
Curioso. De repente se toca o fundo a partir de tanta premissa falsa. Talvez seja sempre assim (pensar nisso
outro dia, em outros contextos). É espantoso que seres tão afastados de sua própria verdade (Valentina mais
que Adriano, é verdade) se acertem por momentos; claro que não percebem, e é melhor assim, o que vem
depois é prova disso. (Quero dizer que é melhor para mim, pensando bem.)
Levantou-se, rígida. Adriano também era a morte. Ela tinha pensado isso? Adriano
também era a morte. Não fazia o menor sentido, tinha misturado palavras como num
refrão infantil, e aparecia esse absurdo. Deitou-se novamente, relaxando, e olhou
outra vez para as andorinhas. Talvez não fosse tão absurdo; de qualquer forma, ter
pensado isso só era válido como uma metáfora, pois renunciar a Adriano acabaria
matando algo dentro dela, arrancando-a de uma parte momentânea de si mesma,
deixando-a a sós com uma Valentina diferente, Valentina sem Adriano, sem o amor
de Adriano, se é que era amor esse balbucio de tão poucos dias, se nela mesma era
amor essa entrega furiosa a um corpo que a inundava e a devolvia meio exausta ao
abandono do entardecer. Então sim, visto assim, então Adriano era a morte. Tudo o
que se possui é a morte porque anuncia o despossuir, organiza o vazio vindouro.
Refrões infantis, tiroliro lá, tiroliro cá, mas ela não conseguia renunciar a seu
itinerário, ficar com Adriano. Cúmplice da morte, então, o deixaria ir para Lucca só
porque isso era inevitável a curto ou a longo prazo, lá ao longe Buenos Aires e seu
filho eram como andorinhas sobre o Arno, chilreando fracamente, reclamando no
anoitecer que crescia como um vinho negro.
— Vou ficar — murmurou Valentina. — Amo você, amo você. Vou ficar e um dia
o levarei comigo.
Sabia bem que não ia ser assim, que Adriano não mudaria sua vida por ela, Osorno
por Buenos Aires.
Como podia saber? Tudo aponta na direção contrária; é Valentina que jamais trocará Buenos Aires por
Osorno, sua vida estabelecida, suas rotinas rio-platenses. No fundo, não acredito que ela pensasse isso que a
fazem pensar; também é verdade que a covardia tende a projetar nos outros a própria responsabilidade etc.
Dora gostava de conversar antes de dormir, e passou meia hora com notícias sobre
Fiésole e o Piazzale Michelangelo. Valentina a escutava meio distante, perdida num
rumor interno que não podia confundir com uma meditação. A andorinha estava
morta, morrera em pleno voo. Um anúncio, uma intimação. Como se numa
sonolência estranhamente lúcida, Adriano e a andorinha começaram a se confundir
nela, transformando-se num desejo quase feroz de fuga, de arrebatamento. Não
sentia culpa por nada, mas sentia a culpa em si, a andorinha como uma culpa
golpeando surdamente a seus pés.
Em poucas palavras, ela disse a Dora que ia mudar de planos, que seguiria
diretamente para Veneza.
— Você me encontrará lá, de qualquer forma. Só estarei me adiantando alguns
dias, na verdade prefiro ficar sozinha por alguns dias.
Dora não pareceu muito surpresa. Pena que Valentina fosse perder Ravenna,
Ferrara. De qualquer forma, entendia que preferisse ir direto e sozinha para Veneza;
melhor ver bem uma cidade do que mal duas ou três… Valentina já não a ouvia,
perdida em sua fuga mental, na corrida que devia afastá-la do presente, de uma
sacada sobre o Arno.
Aqui quase sempre se acerta partindo do erro; é irônico e divertido. Aceito isso de que eu não estava muito
surpresa e que observei o lip service necessário para tranquilizar Valentina. O que não se sabe é que minha
falta de surpresa tinha outras fontes, a voz e o rosto de Valentina me contando o episódio da sacada, tão
desproporcional, a menos que o sentisse como ela o sentia, um anúncio fora de toda lógica, e por isso
irresistível. E também uma deliciosa, cruel suspeita de que Valentina estava confundindo as razões de seu
medo, me confundindo com Adriano. Sua distância cortês naquela noite, sua maneira veloz de se assear e se
deitar sem me dar a menor oportunidade de compartilhar o espelho do banheiro, os ritos da ducha, le temps
d’un sein nu/ entre deux chemises. Adriano, sim, digamos que sim, que Adriano. Mas por que essa maneira de
se deitar me dando as costas, tapando o rosto com um braço para me sugerir que apagasse a luz quanto antes,
que a deixasse dormir sem mais palavras, sem sequer um beijo leve de boa-noite entre amigas de viagem?
No trem, pensou melhor no assunto, mas o medo persistia. De que estava fugindo?
Não era fácil aceitar as soluções da prudência, elogiar-se por ter rompido o laço a
tempo. O enigma do medo permanecia, como se Adriano, o pobre Adriano, fosse o
diabo, como se a tentação de se apaixonar de verdade por ele fosse a sacada aberta
sobre o vazio, o convite para o salto irrefreável.
Valentina pensou vagamente que estava fugindo mais de si mesma que de Adriano.
Até a prontidão com que se entregara a ele em Roma provava sua resistência a toda
seriedade, a todo recomeço fundamental. O fundamental tinha ficado do outro lado
do mar, feito em pedaços para sempre, e agora era o tempo da aventura sem amarras,
como outras antes e durante a viagem, a aceitação de circunstâncias sem análise
moral nem lógica, a companhia episódica de Dora como resultado de um balcão na
agência de viagens, Adriano em outro balcão, o tempo de um coquetel ou de uma
cidade, momentos e prazeres tão esmaecidos como o mobiliário dos quartos de hotel
que vão sendo deixados para trás.
Companhia episódica, sim. Mas quero crer que há mais do que isso numa referência que pelo menos me
equipara a Adriano como dois lados de um triângulo no qual o terceiro é um balcão.
Os primeiros dias em Veneza foram cinzentos e quase frios, mas no terceiro logo
cedo o sol explodiu e o calor veio rápido, derramando-se com os turistas que saíam
entusiasmados dos hotéis e enchiam a Piazza San Marco e a Merceria numa alegre
desordem de cores e línguas.
Valentina gostou de se deixar levar pela compassada serpente que subia a Merceria
rumo ao Rialto. Cada canto, a Ponte dei Baretieri, San Salvatore, o escuro recinto
postal da Fondamenta dei Tedeschi a recebiam com aquela calma impessoal que
Veneza reserva a seus turistas, tão diferente da expectativa convulsa de Nápoles ou
da ampla entrega dos panoramas de Roma. Recolhida, sempre secreta, Veneza
brincava mais uma vez de esconder seu verdadeiro rosto, sorrindo impessoalmente à
espera de que no dia e na hora propícios sua vontade de se mostrar de verdade para o
bom viajante o recompensasse por sua fidelidade. Do Rialto, Valentina olhou os
esplendores do Grande Canal, e ficou admirada com a distância inesperada entre ela
e aquele luxo de águas e gôndolas. Entrou nas ruelas que de campo em campo a
levavam a igrejas e museus, saiu nos embarcadouros onde se podia ver as fachadas
dos grandes palácios corroídos por um tempo plúmbeo e esverdeado. Via tudo,
admirava tudo, mas sabendo que suas reações eram convencionais e quase forçadas,
como o elogio repetido para as fotos que vão nos mostrando nos álbuns de família.
Alguma coisa — sangue, ansiedade ou apenas vontade de viver — parecia ter ficado
para trás. Valentina de repente odiou a lembrança de Adriano, repugnou-a a
petulância de Adriano, que cometera o erro de se apaixonar por ela. Sua ausência o
tornava ainda mais odioso, pois seu erro era daqueles que só se castigam ou se
perdoam pessoalmente. Veneza
A opção já feita, faz-se Valentina pensar como bem se quer, mas outras opções são possíveis caso se leve em
consideração que ela optou por ir sozinha a Veneza. Termos exagerados, como ódio e repugnância, aplicam-
se realmente a Adriano? Uma mera mudança de prisma, e não é em Adriano que Valentina pensa enquanto
vaga por Veneza. Por isso minha amável infidelidade florentina era necessária, era preciso continuar
projetando Adriano no centro de uma ação que talvez assim, talvez até o final da viagem, me devolvesse
àquele começo no qual eu havia esperado como ainda era capaz de esperar.
Às quatro, com o sol ainda alto, a gôndola atracou diante da San Marco. Como da
primeira vez, Dino ofereceu o antebraço para que Valentina se apoiasse, e ficou à
espera, olhando-a nos olhos.
— Arrivederci — disse Valentina, e saiu andando.
— Hoje à noite estarei lá — disse Dino, apontando para o atracadouro. — Às dez.
Valentina foi direto para o hotel e pediu um banho quente. Nada podia ser mais
importante que isso, tirar o cheiro de suor de Dino, a contaminação daquele suor,
daquela saliva que a manchavam. Com um gemido de prazer deslizou na banheira
fumegante, e por um bom tempo foi incapaz de estender a mão para a barra de
sabonete verde. Depois, aplicadamente, no ritmo de seu pensamento que voltava
pouco a pouco, começou a se lavar.
A lembrança não era penosa. Tudo o que tivera de sórdido como preparação
parecia se apagar diante da própria coisa. Tinha sido enganada, atraída para uma
armadilha estúpida, mas era inteligente demais para não compreender que ela
mesma tecera a rede. Nesse emaranhado confuso de lembranças, sentia repulsa
sobretudo por Rosa, a figura evasiva da cúmplice que agora, à luz do ocorrido, era
difícil de acreditar que fosse irmã de Dino. Sua escrava, ou melhor, sua amante
complacente por necessidade, para mantê-lo ainda mais um pouco.
Alongou-se no banheiro, dolorida. Dino se portara como o que era, exigindo
raivosamente seu prazer sem considerações de qualquer espécie. Ele a possuíra
como um animal, várias vezes, exigindo-lhe torpezas que não teriam sido como
foram se ele tivesse tido o mínimo de gentileza. E Valentina não lamentava isso,
nem lamentava o cheiro rançoso da cama desarrumada, o arquejo de cão de Dino, a
vaga tentativa de reconciliação posterior (porque Dino tinha medo, já media as
possíveis consequências por abusar de uma estrangeira). Na verdade, não lamentava
nada que não fosse a falta de graça da aventura. E talvez nem isso lamentasse, a
brutalidade estivera lá como o alho nos guisados populares, o requisito indispensável
e saboroso.
Achava divertido, meio histericamente,
Mas não, nenhuma histeria. Só eu podia ver aqui a expressão de Valentina na noite em que lhe contei a
história de minha condiscípula Nancy no Marrocos, uma situação equivalente mas muito mais degradante,
com seu violador islamicamente frustrado ao ver que Nancy estava em pleno período menstrual, e obrigando-
a com bofetadas e chicotadas a lhe ceder a outra via. (Não achei o que procurava ao lhe contar isso, mas vi
nela uns olhos meio de loba, apenas um instante antes de rejeitar o assunto e de buscar, como sempre, o
pretexto do cansaço e do sono.) Talvez se Adriano tivesse procedido como Dino, sem o alho e o suor, hábil e
belo. Talvez se eu, em vez de deixá-la cair no sono…
***
Falou-se de Venice by night, mas Dora estava vencida pelas belas-artes e foi para o
hotel, depois de dar duas voltas na praça. Valentina cumpriu o ritual de beber um
vinho do Porto no Florian, e esperou dar dez horas. Misturada com as pessoas que
tomavam sorvete e tiravam fotos com flash, espiou o embarcadouro. Só havia duas
gôndolas desse lado, com os lampiões acesos. Dino estava no molhe, junto a uma
pértiga. Esperando.
“Ele acredita mesmo que eu vou lá”, pensou, quase surpresa. Um casal com ar
inglês se aproximava do gondoleiro, Valentina viu-o tirar o chapéu e oferecer a
gôndola. Os outros embarcaram quase de imediato; o lampiãozinho tremia na noite
da laguna.
Vagamente inquieta, Valentina voltou ao hotel.
A luz da manhã a lavou dos pesadelos, mas não eliminou a sensação de náusea, o
aperto na boca do estômago. Dora a esperava no salão para o café da manhã, e
Valentina estava se servindo de chá quando um garçom foi até a mesa.
— O gondoleiro da signorina está lá fora.
— Gondoleiro? Não pedi nenhuma gôndola.
— O homem descreveu a signorina.
Dora a fitava, curiosa, e Valentina se sentiu bruscamente nua. Fez um esforço para
beber um gole de chá, e se levantou depois de uma breve hesitação. Achando graça,
Dora pensou que seria divertido olhar a cena da janela. Viu o gondoleiro, viu
Valentina indo a seu encontro, o cumprimento meio sem jeito mas decidido do
homem. Valentina falava com ele quase sem gesticular, mas Dora viu que ela
levantava a mão como se implorasse — claro que não podia ser isso — por alguma
coisa que o outro se negava a conceder. Depois foi ele quem falou, movendo os
braços à italiana. Valentina parecia esperar que ele fosse embora, mas o outro
insistia, e Dora ficou ali tempo suficiente para ver como Valentina olhava, por fim,
seu relógio de pulso e fazia um gesto de assentimento.
— Tinha me esquecido completamente — explicou ao voltar —, mas um
gondoleiro não esquece seus clientes. E você, não vai sair?
— Vou, claro — disse Dora. — Todos eles são bonitões como os que vemos no
cinema?
— Todos, claro — disse Valentina sem sorrir. A ousadia de Dino a deixara tão
estupefata que lhe era difícil manter o controle. Por um momento ficou inquieta com
a ideia de que Dora ia sugerir se somar ao passeio; tão lógico e tão Dora. “Mas essa
seria justamente a solução”, disse para si. “Por mais bruto que ele seja, não vai se
animar a armar um escândalo. Dá pra ver que é histérico, mas não é bobo.”
Dora não disse nada, embora lhe sorrisse com uma amabilidade que Valentina
achou um pouco repugnante. Sem saber bem por quê, não lhe propôs que pegassem
a gôndola juntas. Era extraordinário como nessas semanas ela fazia todas as coisas
importantes sem saber por quê.
Tu parles, ma fille. O que parecia inacreditável se consolidou em simples evidência assim que me deixaram de
fora do passeiozinho. Claro que isso não podia ser importante, era só um parêntese de consolo barato e
enérgico sem o menor risco futuro. Mas era a recorrência em baixo nível da mesma comprovação: Adriano ou
um gondoleiro, e eu outra vez a outsider. Tudo isso valia outra xícara de chá e se perguntar se ainda não
havia algo a ser feito para aperfeiçoar a pequena relojoaria que já pusera para funcionar — oh, com toda a
inocência — antes de eu ir embora de Florença.
Dino a levou pelo Grande Canal até depois do Rialto, escolhendo amavelmente o
percurso mais extenso. Na altura do Palácio Valmarana, entraram pelo rio dei Santi
Apostoli, e Valentina, olhando obstinada para a frente, viu chegarem novamente,
uma depois da outra, as pequenas pontes pretas formigantes. Era difícil se convencer
de que estava de novo nessa gôndola, com as costas apoiadas na vetusta almofada
vermelha. Um fio de água corria por todo o fundo; água do canal, água de Veneza.
Os famosos carnavais. O doge se casava com o mar. Os famosos palácios e
carnavais de Veneza. Vim procurá-la porque você não foi me procurar ontem à
noite. Quero levá-la na gôndola. O doge se casava com o mar. Com um frescor
perfeito. Frescor. E agora a estava levando na gôndola, soltando de vez em quando
um grito meio melancólico, meio ríspido, antes de pegar um canal interior. Ao longe,
ainda bem longe, Valentina avistou a franja aberta e verde. Outra vez a Fondamenta
Nuove. Era previsível, os quatro degraus mofados, reconhecia o lugar. Agora ele ia
assobiar e Rosa apareceria na janela.
Lírico e óbvio. Faltam os papéis de Aspern, o barão Corvo e Tadzio, o belo Tadzio e a peste. Também falta um
certo telefonema para um hotel perto do Teatro La Fenice, embora não seja culpa de ninguém (estou falando
da ausência do detalhe, não do telefonema).
Quando desceu para o jantar, Dora a esperava com a notícia de (embora não tivesse
certeza) ter visto Adriano entre os turistas da Piazza.
— Bem de longe, sob um dos arcos, sabe. Acho que era ele, por causa daquele
terno claro um pouco justo. Talvez tenha chegado hoje de tarde… Perseguindo você,
imagino.
— Ora, vamos.
— Por que não? Este não era o itinerário dele.
— Mas você também não tem certeza de que era ele — disse Valentina com
hostilidade. A notícia não a deixara muito abalada, mas punha para andar a
maquinaria lamentável das ideias. “Outra vez isso”, pensou. “Outra vez.” Ia
encontrá-lo, com certeza, em Veneza parece que se vive dentro de uma garrafa, todo
mundo acaba se reconhecendo na Piazza ou no Rialto. Fugir de novo, mas por quê?
Estava farta de fugir do nada, de não saber do que estava fugindo e se realmente
estava fugindo ou se fazia o mesmo que as pombas ali ao alcance de seus olhos, as
pombas que fingiam se furtar ao assalto envaidecido dos machos, e que no fim
consentiam suavemente, num rebuliço plúmbeo de penas.
— Vamos tomar café no Florian — sugeriu Dora. — Talvez a gente o encontre lá,
é um rapaz bacana.
Viram-no quase no mesmo instante, estava de costas para a praça sob os arcos da
galeria, absorto na contemplação de uns horrorosos cristais de Murano. Quando o
cumprimento de Dora o fez virar-se, sua surpresa foi tão mínima, tão civil, que
Valentina ficou aliviada. Nada de teatro, pelo menos. Adriano cumprimentou Dora
com sua cortesia distante, e apertou a mão de Valentina.
— Nossa, o mundo é pequeno mesmo. Ninguém escapa do Guia Azul, mais dia,
menos dia.
— A gente não, pelo menos.
— Nem dos sorvetes de Veneza. Posso convidá-las?
Quase em seguida Dora monopolizou a conversa. Tinha em sua conta duas ou três
cidades a mais que eles, e naturalmente tentava atropelá-los com o catálogo de tudo
o que tinham perdido. Valentina queria que seus assuntos não tivessem fim ou que
Adriano finalmente se decidisse a olhá-la de frente, a lhe fazer a pior das críticas, os
olhos que se cravam na cara com algo que sempre é mais que uma acusação ou uma
crítica. Mas ele tomava aplicadamente seu sorvete ou fumava com a cabeça um
pouco inclinada — sua bela cabeça sul-americana —, atento a cada palavra de Dora.
Só Valentina podia medir o leve tremor dos dedos que apertavam o cigarro.
Eu também, minha querida, eu também. E isso não me agradava nem um pouco, porque aquela calma
escondia algo que até agora não me parecera muito violento, aquela mola tensa como que à espera do gatilho
que o libertaria. Tão diferente de seu tom quase glacial e matter of fact ao telefone. Por enquanto eu ficava
fora do jogo, não podia fazer nada para que as coisas acontecessem como esperava. Prevenir Valentina…
Mas era mostrar tudo para ela, voltar à Roma daquelas noites em que ela escorregou, afastando-se, deixando-
me livres o chuveiro e o sabonete, deitando-se de costas para mim, murmurando que tinha tanto sono, que já
estava meio adormecida.
Para lá do Teatro Malibran, ruelas sem comércio, com fileiras de portas sempre
fechadas, uma ou outra criança malvestida brincando nas soleiras, chegaram à rua do
Fumo e viram já bem próximo o brilho da laguna. Desembocava-se bruscamente,
saindo da penumbra cinzenta, numa orla ofuscante de sol, povoada de operários e
vendedores ambulantes. Alguns cafés de má aparência grudavam como lapas nas
bilheterias flutuantes de onde saíam os vaporettos para Burano e para o cemitério.
Valentina logo viu o cemitério, lembrava-se da explicação de Dino. A pequena ilha,
seu paralelogramo cercado, até onde a vista alcançava, por uma muralha
avermelhada. As copas das árvores funerárias despontavam como um festão escuro.
Dava para ver claramente o molhe de desembarque, mas naquele momento a ilha
não parecia conter nada além dos mortos; nem uma barca, ninguém nos degraus de
mármore do molhe. E tudo ardia secamente sob o sol das onze.
Indecisa, Valentina foi andando para a direita. Adriano a seguia rispidamente,
quase sem olhar ao redor. Atravessaram uma ponte baixa sob a qual um dos canais
interiores se comunicava com a laguna. O calor era palpável, suas moscas invisíveis
na cara. Aí veio outra ponte de pedra branca, e Valentina parou no alto do arco,
apoiando-se na amurada, olhando para o interior da cidade. Se era preciso conversar
em algum lugar, que fosse este, tão neutro, tão pouco interessante, com o cemitério
às costas e o canal que adentrava profundamente em Veneza, separando margens
sem graça, quase desertas.
— Fui embora — disse Valentina — porque aquilo não fazia sentido. Me deixe
falar. Fui embora porque, de um jeito ou de outro, um dos dois tinha que ir, e você
está dificultando as coisas, pois sabe de sobra que um dos dois tinha que ir embora.
Qual a diferença, se era só questão de tempo? Uma semana antes ou depois…
— Pra você não faz diferença — disse Adriano. — Pra você tanto faz como tanto
fez.
— Se eu conseguisse explicar… Mas vamos ficar nas palavras. Por que você me
seguiu? Qual o sentido disso tudo?
Se ela fez tais perguntas, pelo menos eu sei que não me imaginou envolvida com a presença de Adriano em
Veneza. Por trás, claro, a amargura de sempre: essa tendência a me ignorar, a nem ao menos desconfiar que
havia uma terceira mão embaralhando as cartas.
— Eu sei que não faz nenhum sentido — disse Adriano. — Mas é assim, só isso.
— Não devia ter vindo.
— E você não devia ter ido embora daquele jeito, me abandonando como…
— Não use as grandes palavras, por favor. Como você pode chamar de abandono
uma coisa que, afinal, era apenas normal? A volta ao normal, se preferir.
— Tudo é tão normal pra você — disse ele com raiva. Seus lábios tremiam, e
apertou as mãos na amurada como se quisesse se acalmar ao contato branco e
indiferente da pedra.
Valentina olhava o fundo do canal, vendo o avanço de uma gôndola maior que as
comuns, ainda imprecisa, à distância. Temia encontrar os olhos de Adriano e seu
único desejo era que ele fosse embora, que a cobrisse de insultos, se preciso, e
depois partisse. Mas Adriano continuava lá, na perfeita voluptuosidade de seu
sofrimento, prolongando o que pensaram que seria uma explicação e não passava de
dois monólogos.
— É absurdo — murmurou por fim Valentina, sem parar de olhar para a gôndola
que se aproximava pouco a pouco. — Por que eu tenho que ser como você? Não
ficou bem claro que eu não queria mais vê-lo?
— No fundo você me ama — disse Adriano, grotescamente. — Não é possível que
não me ame.
— Por que não é possível?
— Porque você é diferente de tantas outras. Não se entregou como uma qualquer,
como uma histérica que não sabe o que fazer numa viagem.
— Você acha que eu me entreguei, mas eu poderia dizer que foi você que se
entregou. As velhas ideias sobre as mulheres, quando…
Etc.
Mas não ganhamos nada com isso, Adriano, tudo é tão inútil. Ou você me deixa
sozinha hoje mesmo, agora mesmo, ou vou embora de Veneza.
— Irei atrás de você — disse ele, quase com petulância.
— Vamos cair os dois no ridículo. Não seria melhor que…?
Cada palavra dessa fala sem sentido lhe era penosa até a náusea. Fachada de
diálogo, demão de tinta sob a qual se estancava algo inútil e apodrecido como as
águas do canal. No meio da pergunta, Valentina começou a notar que a gôndola era
diferente das outras. Mais larga, como uma barcaça, com quatro remadores de pé
sobre os travessões, onde uma coisa parecia se elevar como um catafalco negro e
dourado. Mas era um catafalco, e os remadores estavam de preto, sem os alegres
chapéus de palha. A barca chegara ao molhe junto do qual se estendia um edifício
pesado e mortiço. Havia um embarcadouro diante do que parecia ser uma capela. “O
hospital”, pensou. “A capela do hospital.” Havia gente saindo, um homem levando
coroas de flores que atirou distraidamente na barca da morte. Outros já apareciam
com o caixão, e teve início a manobra do embarque. O próprio Adriano parecia
absorvido pelo claro horror daquilo que estava acontecendo sob o sol da manhã, na
Veneza que não era interessante, aonde os turistas não deviam ir. Valentina ouviu-o
murmurar alguma coisa, ou talvez fosse um soluço contido, mas não conseguia tirar
os olhos da barca, dos quatro remadores que esperavam com os remos cravados para
que os outros pudessem enfiar o féretro no nicho de cortinas pretas. Na proa, via-se
um volume brilhante em vez do adorno dentado e familiar das gôndolas. Parecia
uma enorme coruja de prata, uma carranca com algo de vivo, mas quando a gôndola
avançou pelo canal (a família do morto estava no molhe, e dois rapazes apoiavam
uma idosa) viu-se que a coruja era uma esfera e uma cruz prateadas, a única coisa
clara e brilhante em toda a barca. Avançava na direção deles, ia passar sob a ponte,
exatamente sob seus pés. Bastaria um salto para cair sobre a proa, sobre o caixão. A
ponte parecia se mover ligeiramente em direção à barca (“Então você não vai vir
comigo?”), tão fixo Valentina olhava a gôndola que os remadores moviam
lentamente.
— Não, não vou. Me deixe sozinha, me deixe em paz.
Não podia dizer outra coisa, entre tantas que poderia ter dito ou calado, agora que
sentia o tremor do braço de Adriano contra o seu, escutava-o repetir a pergunta e
respirar com esforço, como se ofegasse. Mas tampouco podia olhar outra coisa
senão a barca cada vez mais próxima da ponte. Ia passar debaixo da ponte, quase
contra eles, sairia pelo outro lado para a laguna aberta e cruzaria como um lento
peixe negro a ilha dos mortos, levando outro caixão, amontoando outro morto na
cidade silenciosa por trás das muralhas vermelhas.
Quase não se surpreendeu ao ver que um dos remadores era Dino,
Terá sido verdade, não se está abusando de um acaso gratuito demais? Impossível saber agora, como também
impossível saber por que Adriano não reprovava sua aventura barata. Acho que o fez, que esse diálogo de
puros nadas que a cena final deixa subentendido não foi real, o que nascia de outros fatos e levava a algo que
sem ele parece extremamente inconcebível, por ser horrível. Vá saber, talvez ele tenha se calado sobre o que
sabia para não me delatar; sim, mas que importância teria sua delação se quase em seguida…? Valentina,
Valentina, Valentina, que delícia que você tivesse me censurado, me insultado, que estivesse lá me injuriando,
que fosse você gritando comigo, o consolo de voltar a vê-la, Valentina, de sentir suas bofetadas, sua saliva em
meu rosto… (Um comprimido inteiro, dessa vez… Já, já, filhinha.)
I
magino, Jacobo, que naquela noite você devia estar com muito frio, e
que a chuva persistente de Wiesbaden se somou a isso para que você se
decidisse a entrar no Zagreb. Talvez a fome tenha sido o principal
motivo, você havia trabalhado o dia todo e já era hora de ir jantar em
algum lugar tranquilo e quieto; se faltavam outras qualidades ao Zagreb,
pelo menos essas duas ele reunia, e você, acho que dando de ombros como
quem não dá muita bola, resolveu jantar lá. Pelo menos havia mesas
sobrando na penumbra do salão vagamente balcânico, e foi muito bom
poder pendurar o impermeável encharcado no velho cabide e procurar
aquele canto onde a vela verde da mesa movia suavemente as sombras e
deixava entrever talheres antigos e uma taça muito alta onde a luz se
refugiava como um pássaro.
Primeiro foi aquela sensação de sempre num restaurante vazio, algo entre
o incômodo e o alívio; por sua aparência, não devia ser ruim, mas a
ausência de clientes a essa hora dava o que pensar. Numa cidade estrangeira
essas meditações não duram muito, o que é que a gente sabe de seus hábitos
e horários?, o que conta é o calor, o cardápio onde se propõem surpresas ou
reencontros, a mulher diminuta de olhos grandes e cabelo preto que pareceu
chegar do nada, desenhando-se de repente junto da toalha branca, um leve
sorriso fixo à espera. Pensou que, na rotina da cidade, talvez já fosse muito
tarde, mas quase não teve tempo de levantar um olhar de interrogação
turística; uma mão pequena e pálida pousava um guardanapo e punha em
ordem o saleiro fora do compasso. Você, é lógico, pediu espetinho de carne
com cebola e pimentão vermelho, e um vinho encorpado e com um buquê
que não tinha nada de ocidental; como eu em outros tempos, você gostava
de fugir das refeições do hotel, onde o medo de ser típico ou exótico demais
se resolve em insipidez, e até pediu o pão preto que talvez não combinasse
com o espetinho, mas que a mulher trouxe no mesmo instante. Só então,
fumando um primeiro cigarro, olhou com alguma atenção o enclave
transilvânico que o protegia da chuva e de uma cidade alemã não
excessivamente interessante. O silêncio, as ausências e a luz difusa das
velas já eram quase seus amigos, de qualquer forma o distanciavam do resto
e o deixavam agradavelmente só com seu cigarro e seu cansaço.
A mão que vertia o vinho na taça alta estava coberta de pelos, e você
levou um sobressaltado segundo para romper a absurda cadeia lógica e
compreender que a mulher pálida não estava mais a seu lado e que em seu
lugar um garçom bronzeado e silencioso o convidava a provar o vinho com
um gesto no qual parecia haver uma espera automática. É raro alguém achar
o vinho ruim, e o garçom terminou de encher a taça como se a interrupção
não passasse de uma parte mínima da cerimônia. Quase ao mesmo tempo,
outro garçom curiosamente parecido com o primeiro (mas os trajes típicos,
as costeletas pretas, os uniformizavam) pôs a bandeja fumegante na mesa e
retirou com um gesto rápido a carne do espetinho. As poucas palavras
necessárias tinham sido trocadas no alemão ruim previsível no comensal e
nos que o serviam; mais uma vez era cercado pela calma na penumbra da
sala e do cansaço, porém agora se ouvia com mais força o tamborilar da
chuva na rua. Isso também cessou logo depois e você, virando-se um pouco,
percebeu que a porta de entrada tinha sido aberta para dar passagem a outro
comensal, uma mulher que devia ser míope, não só pela grossura das lentes,
mas pela segurança insensata com que avançou entre as mesas até sentar-se
no canto oposto da sala, mal iluminado por uma ou duas velas que
estremeceram à sua passagem e confundiram sua figura incerta com os
móveis e as paredes e o espesso cortinado vermelho do fundo, lá onde o
restaurante parecia se juntar ao resto de uma casa imprevisível.
Enquanto comia, divertiu-o vagamente que a turista inglesa (não podia ser
outra coisa, com aquele impermeável e uma mostra da blusa entre púrpura e
tomate) se concentrasse, com toda a sua miopia, num cardápio que devia
lhe escapar por completo, e que a mulher dos grandes olhos negros ficasse
no terceiro ângulo da sala, onde havia um balcão com espelhos e guirlandas
de flores secas, esperando que a turista acabasse de não entender nada para
se aproximar. Os garçons tinham se situado atrás do balcão, dos lados da
mulher, e também esperavam, com os braços cruzados, tão parecidos entre
eles que o reflexo de suas costas no azougue envelhecido tinha algo de
falso, como uma quadruplicação difícil e enganosa. Todos eles olhavam
para a turista inglesa, que não parecia notar a passagem do tempo e
continuava com o rosto colado no cardápio. Ainda houve uma espera
enquanto você pegava outro cigarro, e a mulher acabou se aproximando de
sua mesa para perguntar se queria alguma sopa, talvez um queijo de ovelha
à grega, avançava nas perguntas a cada negativa cortês, os queijos eram
muito bons, mas então quem sabe uns doces da região. Você só queria um
café à turca porque o prato tinha sido bem servido e você estava começando
a ficar com sono. A mulher pareceu indecisa, como se lhe desse a
oportunidade de mudar de opinião e decidir pedir a tábua de queijos, e
quando você não fez isso repetiu mecanicamente café à turca e você disse
sim, café à turca, e a mulher pareceu respirar de modo curto e rápido,
levantou a mão para os garçons e foi para a mesa da turista inglesa.
O café demorou a chegar, ao contrário do rápido começo do jantar, e você
teve tempo de fumar outro cigarro e de terminar lentamente a garrafa de
vinho, enquanto se divertia vendo a turista inglesa passear um olhar de
lentes grossas por toda a sala, sem se deter em nada, particularmente. Havia
nela algo de desajeitado ou tímido, levou um bom tempo em vagos
movimentos até se decidir a tirar o impermeável brilhante de chuva e
pendurá-lo no cabide mais próximo; claro que ao sentar-se novamente deve
ter molhado o traseiro, mas isso não parecia preocupá-la enquanto
terminava sua incerta observação da sala e permanecia bem quieta olhando
para a toalha. Os garçons tinham ocupado novamente seus postos atrás do
balcão, e a mulher aguardava junto à janelinha da cozinha; os três olhavam
para a turista inglesa como se esperassem algo, que ela chamasse para
completar um pedido ou talvez mudá-lo ou ir embora, olhavam-na de uma
forma que lhe pareceu intensa demais, injustificada, de qualquer modo. De
você tinham deixado de se ocupar, os dois garçons estavam outra vez de
braços cruzados e a mulher mantinha a cabeça um pouco baixa e o longo
cabelo liso cobria seus olhos, mas talvez fosse a que mais fixamente olhasse
para a turista, e isso lhe pareceu desagradável e descortês, embora a pobre
cegueta míope não pudesse perceber nada, agora que remexia em sua bolsa
e tirava alguma coisa que não dava para ver na penumbra, mas que se
identificou pelo barulho que a cegueta fez ao se assoar. Um dos garçons lhe
levou o prato (parecia gulache) e voltou imediatamente a seu posto de
sentinela; a dupla mania de cruzarem os braços assim que terminavam seu
trabalho poderia ser divertida, mas de alguma forma não o era, nem
tampouco que a mulher se posicionasse no canto mais afastado do balcão e
de lá seguisse com uma atenção concentrada a operação de beber o café que
você levava a cabo com toda a lentidão exigida por sua boa qualidade e seu
aroma. O centro de atenção parecia ter mudado bruscamente, porque os dois
garçons também o olhavam beber o café, e antes que o terminasse a mulher
se aproximou para lhe perguntar se queria outro, e você aceitou quase
perplexo porque nisso tudo, que não era nada, alguma coisa lhe escapava,
algo que você gostaria de entender melhor. A turista inglesa, por exemplo,
por que de repente os garçons pareciam ter tanta pressa para que a turista
terminasse de comer e fosse embora, e para tal lhe tiravam o prato ainda
com o último bocado e lhe punham o cardápio aberto diante do rosto e um
deles saía com o prato vazio enquanto o outro esperava como se a instasse a
se decidir?
Como acontece tantas vezes, você não poderia precisar o momento em
que pensou ter entendido; no xadrez e no amor também existem esses
momentos em que a névoa se esgarça, e então se completam as jogadas ou
os atos que um segundo antes seriam inconcebíveis. Sem sequer uma ideia
articulável, farejou o perigo, disse para si que por mais atrasada que a
turista inglesa estivesse em seu jantar, era preciso ficar ali fumando e
bebendo até que a cegueta indefesa resolvesse se enfronhar em sua bolha de
plástico e se mandasse outra vez para a rua. Como você sempre gostou de
esporte e do absurdo, achou divertido levar assim algo que, no nível do
estômago, estava longe de sê-lo; acenou chamando e pediu outro café e um
cálice de barack, que era o aconselhável para o enclave. Ainda tinha três
cigarros e achou que bastariam até a turista inglesa se decidir por alguma
sobremesa balcânica; claro que não ia tomar café, dava para ver em seus
óculos e na blusa; também não ia pedir chá, porque certas coisas não se
fazem fora da pátria. Com um pouco de sorte, pagaria a conta e sairia dali a
uns quinze minutos.
Serviram-lhe o café mas não o barack, a mulher pôs os olhos para fora da
brenha de cabelo para adotar a expressão que convinha à demora; estavam
procurando uma garrafa nova na adega, o senhor teria a bondade de esperar
uns minutinhos. A voz articulava claramente as palavras, embora
estivessem mal pronunciadas, mas você percebeu que a mulher se mantinha
atenta à outra mesa, onde um dos garçons apresentava a conta com um
gesto de robô, estendendo o braço e permanecendo imóvel dentro de uma
perfeita descortesia respeitosa. Como se finalmente entendesse, a turista
tinha começado a remexer na bolsa, tudo nela era desajeitado,
provavelmente encontrava um pente ou um espelho em vez do dinheiro, que
por fim deve ter assomado à superfície porque o garçom se afastou
bruscamente da mesa no momento em que a mulher chegava à sua com o
cálice de barack. Você também não soube muito bem por que lhe pediu
simultaneamente a conta, agora que tinha certeza de que a turista ia sair
antes e que podia muito bem se dedicar a saborear o barack e fumar o
último cigarro. Talvez a ideia de ficar de novo sozinho na sala, que tinha
sido tão agradável quando chegou e agora era diferente, coisas como a
imagem dupla dos garçons atrás do balcão e da mulher que parecia hesitar
diante do pedido, como se fosse uma insolência se apressar desse jeito, e
depois lhe dava as costas e voltava ao balcão até fechar mais uma vez o trio
e a espera. Afinal de contas, devia ser deprimente trabalhar num restaurante
tão vazio, tão distante da luz e do ar puro; aquela gente começava a
definhar, sua palidez e seus gestos mecânicos eram a única resposta
possível à repetição de tantas noites intermináveis. E a turista tateava em
torno de seu impermeável, voltava até a mesa como se pensasse ter
esquecido alguma coisa, olhava debaixo da cadeira, e então você se
levantou lentamente, incapaz de permanecer mais um segundo que fosse, e
no meio do caminho topou com um dos garçons, que lhe estendeu a
bandejinha de prata na qual você pôs uma nota sem olhar a conta. O golpe
de vento coincidiu com o gesto do garçom procurando troco nos bolsos do
colete vermelho, mas você sabia que a turista tinha acabado de abrir a porta
e não esperou mais, levantou a mão numa despedida que abarcava o garçom
e os que continuavam olhando para ele lá do balcão, e calculando
exatamente a distância, ao passar apanhou seu impermeável e foi para a rua,
onde já chovia. Só aí respirou de verdade, como se até então e sem perceber
estivesse contendo a respiração; só aí sentiu, de verdade, medo e alívio ao
mesmo tempo.
A turista estava a poucos metros, andando lentamente na direção de seu
hotel, e você a seguiu com o vago receio de que bruscamente se lembrasse
de ter esquecido alguma outra coisa e lhe ocorresse voltar ao restaurante.
Não se tratava mais de entender nada, tudo era um simples bloco, uma
evidência sem razões: ele a salvara e precisava se assegurar de que não
voltaria, de que a desajeitada cegueta enfiada em sua bolha úmida chegaria
com uma total e feliz inconsciência ao abrigo de seu hotel, a um quarto
onde ninguém olharia para ela como a tinham olhado.
Quando dobrou a esquina, mesmo sem ter motivo para se apressar,
perguntou-se se não seria melhor segui-la de perto para ter certeza de que
ela não daria a volta na quadra com seu errático desajeitamento míope;
apressou-a a chegar à esquina e viu a ruazinha mal iluminada e vazia. Os
dois longos muros de pedra só mostravam um portão ao longe, aonde a
turista não conseguira chegar; só um sapo exaltado pela chuva atravessava,
aos pulos, de uma calçada à outra.
Por um momento, foi a raiva, como aquela estúpida podia…? Depois
encostou num dos muros e esperou, mas era quase como se estivesse à
espera de si mesmo, de algo que devia se abrir e funcionar profundamente
para que tudo aquilo fizesse sentido. O sapo tinha achado um buraco ao pé
do muro e também esperava, talvez algum inseto aninhado no buraco ou
uma passagem para entrar num jardim. Nunca soube quanto tempo
permaneceu ali, nem por que voltou para a rua do restaurante. As vitrines
estavam escuras, mas a porta estreita continuava entreaberta; quase nem
estranhou que a mulher estivesse lá, como se o esperasse sem surpresa.
— Achamos que o senhor ia voltar — disse. — Já viu que não tinha por
que ir embora tão depressa.
Abriu um pouco mais a porta e se pôs de lado; agora teria sido fácil lhe
dar as costas e ir embora sem sequer responder, mas a rua com os muros e o
sapo era uma espécie de desmentido a tudo o que havia imaginado, a tudo o
que acreditara ser uma obrigação inexplicável. De alguma forma, para ele
tanto fazia entrar como ir embora, ainda que sentisse a crispação que o
lançava para trás; entrou antes de conseguir decidir, naquele nível em que
nada havia sido decidido naquela noite, e ouviu o atrito da porta e o ferrolho
a suas costas. Os dois garçons estavam muito próximos, e só restavam
algumas poucas velas acesas na sala.
— Venha — disse, de algum canto, a voz da mulher —, já está tudo
pronto.
Sua própria voz lhe soou distante, como se tivesse vindo do outro lado do
espelho do balcão.
— Não estou entendendo — conseguiu dizer —, ela estava lá e, de
repente…
Um dos garçons riu, apenas um início de riso seco.
— Ah, ela é assim mesmo — disse a mulher, aproximando-se de frente.
— Fez o que pôde pra evitá-lo, sempre tenta, a coitada. Mas eles não têm
força, só conseguem fazer algumas coisas e sempre as fazem mal, é tão
diferente de como a gente os imagina.
Sentiu os dois garçons a seu lado, o roçar de seus coletes no impermeável.
— Chega a dar pena — disse a mulher —, já são duas vezes que ela vem e
precisa ir embora porque nada lhe sai bem. Nunca nada lhe saiu bem, basta
olhar pra ela.
— Mas ela…
— Jenny — disse a mulher. — É a única coisa que pudemos saber dela
quando a conhecemos, conseguiu dizer que se chamava Jenny, a menos que
estivesse nomeando outra, depois foram só gritos, é absurdo que gritem
tanto.
Você olhou para eles sem falar nada, sabendo que até olhá-los era inútil, e
eu tive tanta pena de você, Jacobo, como eu podia saber que você ia pensar
o que pensou de mim e que ia tentar me proteger, eu que estava lá para isso
mesmo, para conseguir que o deixassem ir embora. A distância era muita,
eram muitas as impossibilidades entre mim e você; tínhamos jogado o
mesmo jogo mas você ainda estava vivo e não havia maneira de fazê-lo
compreender. A partir de agora ia ser diferente se você quisesse, a partir de
agora seríamos dois para vir nas noites de chuva, talvez assim se saísse
melhor, ou pelo menos seria isso, seríamos dois nas noites de chuva.
As faces da medalha
Àquela que um dia o lerá, já tarde, como sempre
O
s escritórios do CERN davam para um corredor sombrio, e Javier
gostava de sair de sua sala para ir e vir fumando um cigarro,
imaginando Mireille atrás da porta da esquerda. Era a quarta vez
em três anos que ia a Genebra para um trabalho temporário, e a cada
regresso Mireille o cumprimentava cordialmente, convidava-o para tomar o
chá das cinco com outros dois engenheiros, uma secretária e um datilógrafo
poeta e iugoslavo. Gostávamos do pequeno ritual por não ser diário e,
portanto, mecânico; a cada três ou quatro dias, quando nos encontrávamos
num elevador ou no corredor, Mireille o convidava para se reunir com seus
colegas na hora do chá que improvisavam sobre sua escrivaninha. Talvez
ela achasse Javier simpático porque ele não disfarçava seu tédio e sua
vontade de terminar o contrato e voltar para Londres. Era difícil saber por
que o contratavam, de qualquer forma os colegas de Mireille se
surpreendiam com seu desprezo pelo trabalho e com a música leve do
transistor japonês com que acompanhava seus cálculos e seus desenhos.
Nada parecia nos aproximar naquela época, Mireille ficava horas a fio em
sua escrivaninha e era inútil que Javier tentasse cabalas absurdas para vê-la
sair depois de trinta e três idas e vindas pelo corredor; mas se ela saísse,
eles só trocariam um par de frases qualquer sem que Mireille imaginasse
que ele zanzava por ali com a esperança de vê-la sair, assim como ele
zanzava de brincadeira, para ver se, antes de trinta e três, Mireille ou, mais
uma vez, fracasso. A gente quase não se conhecia, no CERN quase
ninguém se conhece de verdade, a obrigação de conviver tantas horas por
semana fabrica teias de amizade ou inimizade que qualquer vento de férias
ou de demissão manda às favas. Brincamos disso durante aquelas duas
semanas que a cada ano retornavam, mas para Javier o retorno a Londres
era também Eillen e uma degradação lenta e irrefreável de algo que um dia
tivera a graça do desejo e do gozo, Eillen gata trepada num barrilete,
saltadora com vara sobre o tédio e a rotina. Com ela tinha vivido um safári
em plena cidade, Eillen o acompanhara para caçar antílopes em Hampstead
Heath, tudo se acelerara como nos filmes mudos até uma última corrida de
amor na Dinamarca, ou tinha sido na Romênia, de repente as diferenças
sempre conhecidas e negadas, as cartas que mudam de posição no baralho e
modificam as sortes, Eillen preferindo o cinema aos concertos ou vice-
versa, Javier indo procurar discos sozinho porque Eillen tinha de lavar o
cabelo, ela que só o lavava quando realmente não tinha mais nada para
fazer, protestando contra a higiene e por favor enxágue meu rosto que estou
com xampu nos olhos. O primeiro contrato do CERN chegara quando já
não havia mais nada a dizer, salvo que o apartamento de Earl’s Court
continuava lá com suas rotinas matinais, o amor como a sopa ou o Times,
como tia Rosa e seus aniversários na casa de campo de Bath, as contas de
gás. Tudo isso era agora um vazio obscuro, um presente passado de
contraditórias recorrências, preenchia o ir e vir de Javier pelo corredor dos
escritórios, vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete, talvez antes de trinta a
porta e Mireille e oi, Mireille que estava indo fazer xixi ou averiguar um
dado com o estatístico inglês de costeletas brancas, Mireille morena e
calada, blusa até o pescoço onde algo devia pulsar devagar, um passarinho
com uma vida sem muitos altos e baixos, uma mãe distante, algum amor
infeliz e sem sequelas, Mireille já meio solteirona, meio funcionária, mas às
vezes assobiando um tema de Mahler no elevador, vestida sem capricho,
quase sempre em tons escuros ou de terninho, uma idade alinhada demais,
uma discrição muito sisuda.
Só um dos dois escreve isso, mas dá na mesma, é como se o
escrevêssemos juntos, só que agora nunca mais estaremos juntos, Mireille
vai continuar em sua casinha nos arrabaldes genebrinos, Javier vai viajar
pelo mundo e voltar para seu apartamento em Londres com a obstinação da
mosca que pousa cem vezes num braço, em Eillen. Nós o escrevemos como
uma medalha é ao mesmo tempo seu anverso e seu reverso, que não se
encontrarão jamais, que só se viram alguma vez no duplo jogo de espelhos
da vida. Nunca poderemos saber de verdade qual dos dois é mais sensível a
essa maneira de não estar que tem o outro para ambos. Cada um por seu
turno, Mireille às vezes chora enquanto ouve determinado quinteto de
Brahms, sozinha ao entardecer em sua sala de vigas escuras e móveis
rústicos, aonde por instantes chega o perfume das rosas do jardim. Javier
não sabe chorar, suas lágrimas preferem se condensar em pesadelos que o
acordam brutalmente junto de Eillen, dos quais ele se livra bebendo
conhaque e escrevendo textos que não contêm forçosamente os pesadelos
mas às vezes sim, às vezes ele os entorna em palavras inúteis e por um
momento é o senhor, o que decide o que será dito ou o que irá escorregar
pouco a pouco no falso esquecimento de um novo dia.
À nossa maneira, nós dois sabemos que houve um erro, um equívoco
estancável mas que nenhum de nós foi capaz de estancar. Estamos certos de
nunca termos nos julgado, de simplesmente termos aceitado que as coisas
aconteciam assim e que não era possível fazer mais do que fizemos. Não sei
se pensamos, na ocasião, em forças como o orgulho, a renúncia, a decepção,
se só Mireille ou só Javier pensaram nelas, enquanto o outro as aceitava
como algo fatal, submetendo-se a um sistema que os abarcava e os
submetia; agora é muito fácil falar que tudo pode ter dependido de uma
rebeldia instantânea, de acender o abajur ao lado da cama quando Mireille
se negava, de guardar Javier a seu lado a noite toda quando ele já estava
procurando as roupas para se vestir novamente; é muito fácil jogar a culpa
na delicadeza, na impossibilidade de ser brutal ou obstinado ou generoso.
Isso não teria acontecido assim entre seres mais simples ou mais ignorantes,
talvez uma bofetada ou um insulto tivessem contido a benevolência e o
caminho justo que o decoro cortesmente nos vetou. Nosso respeito vinha de
uma maneira de viver que nos aproximou como as faces da medalha; nós
aceitamos isso, cada qual por seu lado, Mireille num silêncio de distância e
renúncia, Javier murmurando para ela sua esperança, já ridícula, calando-se,
por fim, no meio de uma frase, no meio de uma última carta. E no fim das
contas só nos restava, só nos resta a tarefa lúgubre de continuar sendo
dignos, de continuar vivendo com a vã esperança de que o esquecimento
jamais nos esqueça.
Nunca vamos falar nisso, a imaginação hoje nos reúne tão inutilmente
como, então, a realidade. Nunca vamos procurar juntos a culpa ou a
responsabilidade ou o talvez não inimaginável recomeço. Só há em Javier
um sentimento de castigo, mas o que quer dizer castigo quando se ama e se
deseja, que atavismo grotesco se desencadeia lá onde a felicidade estava
esperando, por que antes e depois este presente Eillen ou María Elena ou
Doris no qual um passado Mireille cravará até o fim sua faca de silêncio e
de desprezo? De silêncio, apenas, embora ele pense em desprezo a cada
náusea de lembrança, porque não há desprezo em Mireille, silêncio sim, e
tristeza, dizer-se que ela ou ele mas também ela e ele, dizer-se que nem todo
homem se completa na hora do amor e nem toda mulher sabe encontrar nele
um homem. Restam as mediações, os últimos recursos, o convite de Javier
para viajarem juntos, passarem duas semanas em qualquer canto distante
para quebrar o feitiço, variar a fórmula, se encontrarem, por fim, de outra
maneira, sem toalhas nem esperas nem compromissos. Mireille disse que
sim, que mais adiante, que ele lhe telefonasse de Londres, talvez pudesse
pedir duas semanas de licença. Estavam se despedindo na estação
ferroviária, ela voltou de trem para a cabana porque o carro estava
enguiçado. Javier não podia mais beijá-la na boca, mas lhe deu um abraço
apertado, pediu novamente que aceitasse fazer a viagem, olhou-a até
incomodá-la, até que ela baixou os olhos e repetiu que sim, que ia dar tudo
certo, que ele fosse tranquilo para Londres, que ia acabar dando tudo certo.
Com as crianças também falamos assim antes de levá-las ao médico ou de
lhes fazer coisas que doem, Mireille, de sua face da medalha já não
esperaria nada, não acreditaria em mais nada, simplesmente voltaria para a
cabana e para os discos, sem sequer imaginar outra maneira de correr em
direção ao que não tinham alcançado. Quando ele lhe telefonou de Londres
sugerindo a costa dálmata, dando datas e indicações com uma minúcia que
mal escondia o medo de uma negativa, Mireille respondeu que lhe
escreveria. De sua face da medalha Javier só pôde dizer que sim, que ficaria
esperando, como se de alguma forma já soubesse que a carta seria breve e
gentil e não, inútil recomeçar algo perdido, melhor sermos apenas amigos;
em somente oito linhas um abraço de Mireille. Cada qual em sua face,
incapazes de derrubar a medalha com um empurrão, Javier escreveu uma
carta que pretendera mostrar o único caminho que lhes restava por inventar
juntos, o único que não estivesse já traçado por outros, pelo uso e pelos
acatamentos, que não passasse forçosamente por uma escada ou por um
elevador para chegar a um quarto ou a um hotel, que não exigisse que ele
tirasse a roupa no mesmo momento em que ela tirava a roupa; mas sua carta
não passava de um lenço molhado, não conseguiu nem terminá-la e a
assinou no meio de uma frase, enterrou-a no envelope sem ao menos lê-la.
De Mireille não houve resposta, as ofertas de trabalho em Genebra foram
gentilmente recusadas, a medalha está ali entre nós, vivemos longe um do
outro e nunca mais nos escreveremos, Mireille em sua casinha nos
arredores, Javier viajando pelo mundo e voltando para seu apartamento com
a obstinação da mosca que pousa cem vezes num braço. Em algum
entardecer, Mireille chorou enquanto ouvia determinado quinteto de
Brahms, mas Javier não sabe chorar, só tem pesadelos, dos quais se livra
escrevendo textos que tentam ser como os pesadelos, ali onde ninguém tem
seu nome verdadeiro mas talvez sua verdade, ali onde não há medalhas de
lado com verso e reverso nem degraus consagrados que é preciso galgar;
mas, claro, são apenas textos.
D
esembarcaram Jiménez assim que a noite caiu e aceitando todos
os riscos de que a enseada estivesse tão perto do porto. Usaram a
lancha elétrica, claro, capaz de deslizar silenciosa como uma
arraia e se perder novamente na distância enquanto Jiménez
permanecia um momento no matagal esperando que seus olhos se
acostumassem, que cada sentido voltasse a se ajustar ao ar quente e aos
rumores de terra adentro. Dois dias antes tinha sido a peste do asfalto
quente e das frituras cidadãs, o desinfetante mal disfarçado no lobby do
Atlantic, os remendos quase patéticos do bourbon com que todos eles
tentavam tapar a lembrança do rum; agora, embora crispado e em guarda e
mal se permitindo pensar, invadia-o um cheiro de Oriente, o solitário e
inconfundível pio da ave noturna que talvez lhe desse as boas-vindas,
melhor pensar naquilo como um conjuro.
No começo York achou uma insensatez que Jiménez desembarcasse tão
perto de Santiago, era contra todos os princípios; por isso mesmo, e porque
Jiménez conhecia o terreno como ninguém, York aceitou o risco e arrumou
a lancha elétrica. A questão era não sujar os sapatos, chegar ao hotel com a
aparência do turista provinciano que percorre seu país; uma vez lá, Alfonso
se encarregaria de instalá-lo, o resto era coisa de poucas horas, a carga de
plástico no local combinado e o regresso à costa onde a lancha e Alonso
estariam à espera; o controle remoto estava a bordo e uma vez em alto-mar
o reverberar da explosão e as primeiras labaredas na fábrica os despediria
com todas as honras. Por enquanto era preciso subir até o motel pela velha
trilha, abandonada desde que tinham construído a nova estrada mais ao
norte, descansando um pouco antes do último trecho para que ninguém
percebesse o peso da mala quando Jiménez se encontrasse com Alfonso e
este a pegasse com o gesto do amigo, evitando o carregador solícito e
levando Jiménez até um dos quartos bem localizados do motel. Era a parte
mais perigosa do negócio, mas o único acesso possível era pelos jardins do
motel; com sorte, com Alfonso, podia dar tudo certo.
Naturalmente, não havia ninguém na trilha invadida pelo mato e pelo
desuso, apenas o cheiro de Oriente e o lamento do pássaro que por um
momento irritou Jiménez, como se seus nervos precisassem de um pretexto
para relaxar um pouco, para que ele aceitasse a contragosto que estava lá
indefeso, sem uma pistola no bolso porque York fora categórico em relação
a isso, ou a missão se cumpria ou fracassava mas nos dois casos uma pistola
era inútil e, ao contrário, podia até estragar tudo. York tinha sua ideia do
caráter dos cubanos e Jiménez a conhecia e o xingava por dentro enquanto
subia pela trilha e as luzes das poucas casas e do motel iam se abrindo como
olhos amarelos entre as últimas moitas. Mas não valia a pena xingar, tudo
seguia according to schedule, como diria o bicha do York, e Alfonso no
jardim do motel gritando porra, cara, onde você deixou o carro, os dois
empregados olhando e escutando, estou esperando você há quinze minutos,
sim, mas nos atrasamos e o carro prosseguiu com uma companheira que
está indo pra casa da família, me deixou lá na curva, ora, você sempre tão
cavalheiro, não encha, Alfonso, é agradável caminhar por aqui, a mala
mudando de mão com uma leveza perfeita, os músculos tensos mas o gesto
como de pluma, ande, vamos buscar sua chave e depois beber alguma coisa,
como estão a Choli e as crianças?, meio tristes, velho, queriam vir, mas sabe
como é, a escola e o trabalho, dessa vez não deu, azar.
A ducha rápida, verificar se a porta fechava direito, a mala aberta sobre a
outra cama e o embrulho verde na gaveta da cômoda, entre camisas e
jornais. No balcão, Alfonso já tinha pedido extrassecos com muito gelo,
fumaram falando de Camagüey e da última luta de Stevenson, o piano
parecia vir de longe embora a pianista estivesse logo ali no final do balcão,
tocando com muita suavidade uma habanera e depois algo de Chopin,
passando por um danzón e uma velha balada de cinema, algo que nos bons
tempos Irene Dunne havia cantado. Tomaram outro rum e Alfonso disse que
voltaria de manhã para levá-lo para um giro e lhe mostrar os bairros novos,
tinha tanta coisa para ver em Santiago, trabalhava-se duro para cumprir os
planos e superá-los, as microbrigadas eram do caralho, Almeida viria
inaugurar duas fábricas, numa dessas até Fidel aparecia por lá, os
companheiros estavam se dando uma mão daquelas, de dar gosto.
— O pessoal de Santiago não dorme — disse o barman, e eles riram
aprovando, restava pouca gente no salão e já haviam reservado uma mesa
perto da janela para Jiménez. Alfonso se despediu depois de repetir o lance
do encontro pela manhã; esticando bem as pernas, Jiménez começou a
estudar o cardápio. Um cansaço que não era apenas do corpo o obrigava a
vigiar cada movimento seu. Tudo ali era calmo e cordial e plácido e
Chopin, que agora voltava naquele prelúdio que a pianista tocava muito
lentamente, mas Jiménez sentia a ameaça como uma emboscada, a menor
falha e aquelas caras sorridentes se tornariam máscaras de ódio. Conhecia
essas sensações e sabia como controlá-las; pediu um mojito para ganhar
tempo e deixou que o aconselhassem sobre a comida, naquela noite era
melhor peixe que carne. O salão estava quase vazio, no balcão um casal
jovem e um pouco adiante um homem que parecia estrangeiro e que bebia
sem olhar para o copo, os olhos perdidos na pianista que repetia o tema de
Irene Dunne, agora Jiménez reconhecia “Smoke Gets in Your Eyes”, a
Havana daquela época, o piano voltava a Chopin, um dos estudos que
Jiménez também tinha tocado quando estudava piano, ainda jovem, antes
do grande pânico, um estudo lento e melancólico que o fez lembrar da sala
de casa, da avó falecida, e quase forçosamente da imagem de seu irmão que
tinha ficado lá apesar da maldição paterna, Robertico morto como um
imbecil em Girón em vez de ajudar na reconquista da verdadeira liberdade.
Quase surpreso, comeu com vontade, saboreando o que sua memória não
havia esquecido, admitindo ironicamente que era a única coisa boa em
comparação com a comida esponjosa que engoliam do outro lado. Não
estava com sono e gostava da música, a pianista era uma mulher ainda
jovem e bonita, parecia tocar para si mesma sem jamais olhar para o balcão
onde o homem com um ar de estrangeiro seguia o jogo de suas mãos e
mandava outro rum e outro cigarro. Depois do café, Jiménez pensou que
seria duro esperar a hora no quarto, e se aproximou do balcão para tomar
mais um trago. O barman estava com vontade de conversar, mas fazia isso
respeitando a pianista, quase um murmúrio, como se entendesse que o
estrangeiro e Jiménez gostavam daquela música, agora era uma das valsas,
a melodia simples em que Chopin pusera uma espécie de chuva lenta, de
talco ou flores secas num álbum. O barman não ligava para o estrangeiro,
talvez ele não falasse bem espanhol ou fosse um homem de silêncio, agora
o salão estava se apagando e era preciso ir dormir, mas a pianista
continuava tocando uma melodia cubana que Jiménez foi deixando para trás
enquanto acendia outro cigarro e com um boa-noite circular ia até a porta e
entrava no que o esperava mais além, às quatro em ponto sincronizadas em
seu relógio e no da lancha.
Antes de entrar no quarto acostumou os olhos à penumbra do jardim, para
ter certeza do que Alfonso lhe explicara, a picada a uns cem metros, a
bifurcação para a estrada nova, atravessá-la com cuidado e seguir para o
oeste. Do motel ele só via a zona sombria onde a picada começava, mas era
útil detectar as luzes no fundo e duas ou três à esquerda, para ter uma noção
das distâncias. A zona da fábrica começava a setecentos metros a oeste, ao
lado do terceiro poste de cimento encontraria o buraco por onde franquear o
alambrado. Era estranho, em princípio, que as sentinelas estivessem daquele
lado, faziam uma ronda a cada quinze minutos mas depois preferiam ficar
conversando do outro lado, onde havia luz e café; em todo caso, não
importava mais sujar a roupa, era preciso se arrastar entre os arbustos até o
lugar que Alfonso lhe descrevera em detalhes. A volta ia ser fácil sem o
embrulho verde, sem todas aquelas caras que o haviam rodeado até agora.
Deitou-se na cama quase de imediato e apagou a luz para fumar tranquilo;
ia até dormir um pouco para relaxar o corpo, tinha o hábito de acordar a
tempo. Mas antes se assegurou de que a porta fechava bem por dentro e de
que suas coisas estavam como as deixara. Cantarolou a valsinha que se
cravara em sua memória, misturando o passado e o presente, fez um esforço
para deixá-la ir embora, trocá-la por “Smoke Gets in Your Eyes”, mas a
valsinha voltava, ou o prelúdio, e foi adormecendo sem conseguir se livrar
deles, ainda vendo as mãos tão brancas da pianista, sua cabeça inclinada
como a atenta ouvinte de si mesma. A ave noturna cantava outra vez em
alguma brenha ou no palmeiral do norte.
Foi acordado por algo que era mais escuro que a escuridão do quarto, mais
escuro e pesado, vagamente aos pés da cama. Estivera sonhando com
Phyllis e com o festival de música pop, com luzes e sons tão intensos que
abrir os olhos foi como cair num puro espaço sem barreiras, num poço
cheio de nada, e ao mesmo tempo seu estômago lhe disse que não era
assim, que uma parte disso era diferente, tinha outra consistência e outro
negror. Buscou o interruptor com um tapa; o estrangeiro do balcão estava
sentado ao pé da cama olhando para ele sem pressa, como se até aquele
momento estivesse velando seu sono.
Fazer alguma coisa, pensar alguma coisa era igualmente inconcebível.
Vísceras, o horror puro, um silêncio interminável e talvez instantâneo, a
ponte dupla dos olhos. A pistola, o primeiro pensamento inútil; se ao menos
a pistola. Um ofego voltando a fazer o tempo entrar, rechaço da última
possibilidade de que isso ainda fosse o sonho em que Phyllis, em que a
música e as luzes e os drinques.
— Sim, é assim — disse o estrangeiro, e Jiménez pareceu sentir na pele o
sotaque carregado, a prova de que não era dali, como, antes, alguma coisa
na cabeça e nos ombros quando o vira pela primeira vez no balcão.
Levantando-se alguns centímetros, buscando pelo menos alguma
igualdade de altura, desvantagem total de posição, a única coisa possível era
a surpresa, mas também isso seria pura perda, derrotado por antecipação;
seus músculos não responderiam, faltaria a alavanca das pernas para a
investida desesperada, e o outro sabia disso, estava quieto e parecia
relaxado ao pé da cama. Quando Jiménez o viu pegar um charuto e
desperdiçar a outra mão afundando-a no bolso da calça para procurar os
fósforos, soube que seria perda de tempo se lançar sobre ele; havia desprezo
demais em sua maneira de não lhe fazer caso, de não estar na defensiva. E
uma coisa ainda pior, suas próprias precauções, a porta fechada à chave, o
ferrolho corrido.
— Quem é você? — ouviu-se perguntar de forma absurda, num estado
que não podia ser nem o sono nem a vigília.
— Que importa? — disse o estrangeiro.
— Mas Alfonso…
Viu-se observado por algo que parecia ter um tempo à parte, uma
distância oca. A chama do fósforo se refletiu numas pupilas dilatadas, cor
de avelã. O estrangeiro apagou o fósforo e olhou as mãos por um momento.
— Pobre Alfonso — disse. — Pobre, pobre Alfonso.
Não havia pena em suas palavras, só uma espécie de comprovação
desinteressada.
— Mas quem diabos é você? — gritou Jiménez, sabendo que isso era a
histeria, a perda do último controle.
— Ah, alguém que anda por aí — disse o estrangeiro. — Sempre me
aproximo quando tocam minha música, principalmente aqui, sabe? Gosto
de ouvi-la quando a tocam aqui, nesses pianinhos pobres. No meu tempo
era diferente, sempre tive que ouvi-la longe da minha terra. Por isso gosto
de me aproximar, é como uma reconciliação, uma justiça.
Cerrando os dentes, para assim dominar o tremor que o ganhava de cima
abaixo, Jiménez conseguiu pensar que a única coisa de bom senso era
decidir que o homem estava louco. Não importava mais como ele tinha
entrado, como sabia, porque é claro que ele sabia, mas estava louco e essa
era a única vantagem possível. Ganhar tempo, então, dar-lhe corda,
perguntar-lhe pelo piano, pela música.
— Toca bem — disse o estrangeiro —, mas claro, só o que você ouviu, as
coisas fáceis. Hoje à noite gostaria que tivesse tocado o que chamam de
revolucionário, gostaria muito mesmo. Mas ela não consegue, coitadinha,
não tem dedos pra isso. Pra isso fazem falta dedos como estes.
As mãos levantadas na altura dos ombros, mostrou a Jiménez os dedos
separados, longos e tensos. Jiménez conseguiu vê-los por um segundo antes
de somente senti-los na garganta.
Cuba, 1976
A noite de Mantequilla
E
ram essas as ideias que ocorriam a Peralta, ele não dava maiores
explicações a ninguém, mas dessa vez se abriu um pouco mais e
disse que era como a história da carta roubada, de início Estévez
não entendeu e ficou olhando para ele à espera de mais; Peralta deu
de ombros como quem renuncia a alguma coisa e lhe entregou o ingresso
para a luta, Estévez viu um número 3 bem grande, em vermelho sobre
fundo amarelo, e embaixo 235; mas já antes, como não vê-lo com aquelas
letras que saltavam à vista, MONZÓN vs. NÁPOLES? O outro ingresso vai
ser entregue pro Walter, disse Peralta. Você deve estar lá antes do início das
lutas (nunca repetia instruções, e Estévez ouviu, gravando cada frase) e o
Walter deve chegar no meio da primeira preliminar, o lugar dele é à sua
direita. Cuidado com os espertinhos de última hora que buscam um lugar
melhor, diga-lhe alguma coisa em espanhol pra ter certeza. Ele vai com uma
dessas bolsas usadas por hippies, e vai colocá-la entre os dois se for uma
tábua, ou no chão se forem cadeiras. Só converse com ele sobre as lutas, e
preste bem atenção ao redor, na certa haverá mexicanos ou argentinos,
marque bem todos eles pra hora em que você for pôr o pacote na bolsa. O
Walter sabe que a bolsa tem que estar aberta?, perguntou Estévez. Sim,
disse Peralta como se espantasse uma mosca da lapela, só espere até o final,
quando ninguém mais se distrai. Com o Monzón é difícil se distrair, disse
Estévez. Com o Mantequilla também não, disse Peralta. Nada de conversa,
lembre-se. O Walter vai sair primeiro, e você deixe as pessoas irem saindo e
vá pela outra porta.
Voltou a pensar naquilo tudo como uma revisão final enquanto o metrô o
levava até La Défense entre passageiros que pela pinta também iam ver a
luta, homens em grupos de três ou quatro, franceses marcados pela surra
dupla de Monzón em Bouttier, em busca de uma revanche vicária ou, quem
sabe, secretamente já conquistados. Que genial a ideia de Peralta, dar-lhe
essa missão, que por vir dele devia ser crítica, e ao mesmo tempo deixá-lo
ver de cima uma luta que parecia para milionários. Já entendera a alusão à
carta roubada, quem pensaria que ele e Walter poderiam se encontrar no
boxe, na verdade não era uma questão de encontro, porque isso podia ter
acontecido em mil cantos de Paris, mas da responsabilidade de Peralta, que
media devagar cada coisa. Para os que porventura seguissem Walter ou o
seguissem, um cinema ou um café ou uma casa eram lugares possíveis para
um encontro, mas essa luta valia como uma obrigação para qualquer um
que tivesse dinheiro suficiente, e se os seguissem até lá iam ter uma baita de
uma decepção diante do toldo de circo montado por Alain Delon; ali
ninguém podia entrar sem o papelzinho amarelo, e os ingressos estavam
esgotados já havia uma semana, todos os jornais diziam isso. Mas, ainda a
favor de Peralta, se o estavam seguindo até lá ou seguindo Walter,
impossível vê-los juntos nem na entrada nem na saída, dois torcedores entre
os milhares e milhares que surgiam como baforadas de fumaça do metrô e
dos ônibus, apertando-se à medida que o caminho se tornava um só e a hora
se aproximava.
Vivo, o Alain Delon: um toldo de circo montado num terreno baldio ao
qual se chegava depois de cruzar uma passarela e seguir uns caminhos
improvisados com tábuas. Tinha chovido na noite anterior e as pessoas não
se afastavam das tábuas, já desde a saída do metrô se orientando pelas setas
enormes que indicavam o caminho certo e MONZÓN-NÁPOLES em cores
vivas. Vivo, o Alain Delon, capaz de meter suas próprias setas no território
sagrado do metrô, embora lhe custasse dinheiro. Estévez não gostava do
sujeito, daquela maneira prepotente de organizar o campeonato mundial por
conta própria, montar um toldo e toca a cobrar adiantado sabe-se lá quanta
grana, mas era preciso reconhecer, ele dava alguma coisa em troca, não
estamos falando só de Monzón e de Mantequilla, mas também das setas
coloridas no metrô, daquela maneira de receber como um senhor, indicando
o caminho para a torcida que poderia armar uma confusão nas saídas e nos
terrenos baldios cheios de poças.
Estévez chegou como devia, com o toldo com metade da lotação, e antes
de mostrar o ingresso ficou olhando por um momento os caminhões da
polícia e os trailers enormes, iluminados por fora mas com cortinas escuras
nas janelas, que se comunicavam com o toldo por galerias cobertas como se
levassem a um jato. Os boxeadores estão lá, pensou Estévez, o trailer
branco e mais novo com certeza é o do Carlitos, esse eles não misturam
com os outros. Nápoles devia ter seu trailer do outro lado do toldo, a coisa
era científica e ao mesmo tempo pura improvisação, muita lona e trailers
em cima de um terreno baldio. É assim que se faz grana, pensou Estévez,
precisa ter a ideia e ter colhões, tchê.
A fila dele, a quinta a partir da área do ringside, era um tabuão com os
números marcados em tamanho grande, ali a cortesia de Alain Delon
parecia ter acabado, porque afora as cadeiras do ringside o resto era de
circo e de circo ruim, meras tábuas, ainda que, é verdade, com umas
recepcionistas de minissaia que já de cara apagavam qualquer reclamação.
Estévez verificou por conta própria o 235, embora a garota sorrisse lhe
mostrando o número como se ele não soubesse ler, e se sentou para folhear
o jornal que depois lhe serviria de almofada. Walter ficaria à sua direita, e
por isso Estévez levava o pacote com o dinheiro e os papéis no bolso
esquerdo do paletó; quando chegasse a hora poderia pegá-lo com a mão
direita, e levando-o imediatamente até os joelhos ele o faria escorregar até a
bolsa aberta a seu lado.
A espera lhe parecia longa, dava tempo de pensar em Marisa e no guri,
que deviam estar acabando de jantar, o guri já meio dormindo e Marisa
vendo TV. Talvez estivesse passando a luta e ela assistisse, mas ele não ia
lhe contar que tinha estado lá, pelo menos agora não podia, quem sabe um
dia, quando as coisas estivessem mais calmas. Abriu o jornal sem vontade
(Marisa vendo a luta, era hilário pensar que não poderia lhe dizer nada,
apesar da vontade que tinha de lhe contar, sobretudo se ela fizesse algum
comentário sobre Monzón ou Nápoles), entre as notícias do Vietnã e as
notícias policiais o toldo ia se enchendo, atrás dele um grupo de franceses
discutia as chances de Nápoles, à sua esquerda acabava de se instalar um
sujeito janota que primeiro observou longamente e com uma espécie de
horror o tabuão onde iam se macular suas perfeitas calças azuis. Um pouco
abaixo havia casais e grupos de amigos, entre eles três que falavam com um
sotaque que podia ser mexicano; embora Estévez não fosse um especialista
em sotaques, os fãs de Mantequilla deviam abundar nesta noite em que o
desafiante almejava, nada mais nada menos, a coroa de Monzón. Além do
assento de Walter ainda havia algumas clareiras, mas as pessoas se
aglomeravam nas entradas do circo e as garotas tinham de se desdobrar para
instalar todo mundo. Estévez achava a iluminação do ringue forte demais e
a música pop demais, mas agora que estava começando a primeira
preliminar o público não perdia tempo com críticas e seguia com vontade
uma luta ruim, só de golpes às cegas e no corpo a corpo; quando Walter se
sentou a seu lado, Estévez chegava à conclusão de que esse não era um
autêntico público de boxe, pelo menos não em volta dele; engoliam
qualquer coisa por esnobismo, só para ver Monzón ou Nápoles.
— Com licença — disse Walter, se acomodando entre Estévez e uma
gorda que seguia a luta semiabraçada a seu marido também gordo e com um
ar de entendido.
— Se acomode — disse Estévez. — Não é fácil, esses franceses calculam
sempre pra gente magra.
Walter riu enquanto Estévez suavemente abria espaço à esquerda para não
ofender o homem das calças azuis; no fim sobrou espaço para que Walter
passasse a bolsa de pano azul dos joelhos para a tábua. Já estavam na
segunda preliminar, que também era ruim, as pessoas se divertiam
principalmente com o que acontecia fora do ringue, a chegada de um
compacto grupo de mexicanos com chapéus de charro, mas vestidos de
acordo com o que deviam ser, uns bacanas capazes de fretar um avião para
vir do México torcer por Mantequilla, sujeitos baixotes e largos, de traseiros
salientes e caras à la Pancho Villa, quase típicos demais, enquanto lançavam
os chapéus ao ar como se Nápoles já estivesse no ringue, gritando e
discutindo antes de se incrustar nos assentos do ringside. Alain Delon devia
ter previsto tudo, porque os alto-falantes cuspiram só ali uma espécie de
corrido que os mexicanos não deram a impressão de conhecer bem. Estévez
e Walter se olharam, irônicos, e nesse mesmo momento, pela entrada mais
distante, desembocou um monte de gente liderada por cinco ou seis
mulheres mais largas que altas, com pulôveres brancos e gritos de
“Argentina, Argentina!”, enquanto os de trás levantavam uma enorme
bandeira nacional e o grupo abria caminho em meio a recepcionistas e
poltronas, decidido a avançar até a beira do ringue onde certamente não
estavam seus lugares. Entre gritos delirantes, acabaram formando uma fila
que as recepcionistas levaram, com a ajuda de alguns gorilas sorridentes e
muitas explicações, para os tabuões semivazios, e Estévez viu que as
mulheres exibiam um MONZÓN preto nas costas do pulôver. Tudo isso
alegrava consideravelmente um público a quem pouco importava a
nacionalidade dos pugilistas, já que não eram franceses, e agora a terceira
luta transcorria dura e parelha, embora Alain Delon não parecesse ter
gastado muito dinheiro com bagrinhos quando os dois tubarões deviam
estar prontos em seus trailers e eram a única coisa que importava àquelas
pessoas.
Houve uma espécie de mudança instantânea no ar, alguma coisa subiu à
garganta de Estévez; dos alto-falantes vinha um tango tocado por uma
orquestra que bem podia ser a de Pugliese. Só então Walter o olhou em
cheio e com simpatia, e Estévez se perguntou se seria um compatriota.
Quase não tinham trocado palavras, além de um ou outro comentário ligado
a alguma ação no ringue, talvez uruguaio ou chileno, mas nada de
perguntas, Peralta tinha sido bem claro, gente que se encontra no boxe e
quer o acaso que os dois falem espanhol, pare de contar.
— Bem, agora sim — disse Estévez. Todo mundo se levantava, apesar dos
protestos e dos assovios, à esquerda um bulício clamoroso e os chapéus de
charro voando entre ovações, Mantequilla subia no ringue, que de repente
parecia se iluminar ainda mais, as pessoas agora olhavam para a direita,
onde não acontecia nada, os aplausos cediam a um murmúrio de expectativa
e de seus assentos Walter e Estévez não conseguiam ver o acesso ao outro
lado do ringue, o quase silêncio e de repente o clamor como único sinal, o
roupão branco bruscamente se recortando contra as cordas, Monzón de
costas falando com os seus, Nápoles indo em sua direção; um quase aceno
entre flashes e o árbitro esperando que baixassem o microfone, as pessoas
que voltavam a se sentar um pouco, um último chapéu de charro indo parar
bem longe, devolvido em outra direção só de sacanagem, bumerangue
tardio na indiferença porque agora as apresentações e os cumprimentos,
Georges Carpentier, Nino Benvenuti, um campeão francês, Jean-Claude
Bouttier, fotos e aplausos e o ringue se esvaziando aos poucos, o hino
mexicano com mais chapéus e por fim a bandeira argentina se desfraldando
para esperar o hino, Estévez e Walter sem se levantar, embora Estévez
sentisse, mas não dava para estragar tudo a essa altura, em todo caso isso
lhe servia para saber que não tinha compatriotas perto demais, o grupo da
bandeira cantava o final do hino e o pano azul e branco se agitava de uma
forma que obrigou os gorilas a correr para aquele lado, por garantia, a voz
anunciando os nomes e os pesos, assistentes para fora.
— Qual é seu palpite? — perguntou Estévez. Estava nervoso,
infantilmente emocionado agora que as luvas se tocavam no cumprimento
inicial e Monzón, de frente, armava aquela guarda que não parecia uma
defesa, os braços longos e magros, a silhueta quase frágil diante de
Mantequilla, mais baixo e parrudo, já dando dois golpes de advertência.
— Sempre gostei dos desafiantes — disse Walter, e atrás um francês
explicando que Monzón ia se beneficiar com a diferença de estatura, golpes
estudados, Monzón entrando e saindo sem esforço, round quase
obrigatoriamente parelho. Pois então ele gostava dos desafiantes, então não
era argentino, pois então; mas o sotaque, um uruguaio escarrado, ia
perguntar ao Peralta, que com certeza não responderia. Em todo caso não
devia estar havia muito tempo na França pois o gordo abraçado a sua
mulher comentava algo com ele e Walter respondia de forma tão
incompreensível que o gordo fazia um gesto de desânimo e começava a
falar com alguém que estava mais abaixo. Nápoles pega pesado, pensou
Estévez inquieto, tinha visto Monzón se jogar para trás duas vezes e a
réplica chegava um pouco tarde, talvez tivesse sentido os golpes. Era como
se Mantequilla compreendesse que sua única chance estava na pegada,
boxear Monzón não lhe serviria como sempre lhe servira, sua maravilhosa
velocidade encontrava uma espécie de vazio, um torso que girava e lhe
escapava enquanto o campeão chegava uma, duas vezes à cara e o francês
de trás repetia ansioso está vendo, está vendo como os braços o ajudam?,
talvez o segundo round fosse de Nápoles, as pessoas estavam caladas, cada
grito nascia isolado e parecia ser mal recebido, no terceiro round
Mantequilla saiu com tudo e então o previsto, pensou Estévez, agora vão
ver a que veio, Monzón contra as cordas, um salgueiro se vergando, o um-
dois de açoite, o clinch fulminante para sair das cordas, um pega mão a mão
até o final do round, os mexicanos trepados nos assentos e os de trás
vociferando protestos ou se levantando, por sua vez, para ver.
— Linda luta, tchê — disse Estévez —, assim vale a pena.
— Aham.
Pegaram cigarros ao mesmo tempo, trocaram-nos sorrindo, o isqueiro de
Walter chegou antes. Estévez olhou seu perfil por um instante, depois o viu
de frente, não era o caso de olhar muito, Walter tinha o cabelo grisalho mas
parecia bem jovem, de jeans e polo marrom. Estudante, engenheiro?
Fugindo de lá como tantos outros, entrando na luta, com amigos mortos em
Montevidéu ou Buenos Aires, quem sabe Santiago, teria de perguntar a
Peralta, ainda que, no fim das contas, certamente não voltaria a ver Walter,
cada um por seu lado se lembraria de um dia em que tinham se encontrado
na noite de Mantequilla que estava mandando ver no quinto round, agora
com o público de pé e delirante, os argentinos e os mexicanos varridos por
uma enorme onda francesa que via a luta mais que os lutadores, que espiava
as reações, o jogo de pernas, no fim Estévez percebia que quase todos
entendiam muito bem da coisa, só um ou outro comemorando idiotamente
um golpe chamativo e sem efeito, enquanto se perdia o que estava
acontecendo de fato naquele ringue onde Monzón entrava e saía
aproveitando uma velocidade que a partir daquele momento deixava cada
vez mais distante a de Mantequilla, cansado, zonzo, batendo-se com tudo
diante do salgueiro de braços longos que outra vez se balançava nas cordas
para entrar de novo em cima e embaixo, seco e preciso. Quando o gongo
soou, Estévez olhou para Walter, que apanhava mais uma vez os cigarros.
— Bem, é isso — disse Walter, lhe estendendo o maço. — Se não dá, não
dá.
Era difícil conversar em meio à gritaria, o público sabia que o próximo
round podia ser decisivo, os torcedores de Nápoles o animavam quase como
se o despedissem, pensou Estévez, com uma simpatia que já não era contra
sua vontade, agora que Monzón buscava a luta e a encontrava e ao longo de
vinte intermináveis segundos batendo na cara e no corpo enquanto
Mantequilla tentava o clinch como quem se atira na água, fechando os
olhos. Não vai aguentar mais, pensou Estévez, e com esforço tirou a vista
do ringue para olhar a bolsa de pano no tabuão, teria de fazer o lance bem
na hora do descanso, quando todos se sentassem, exatamente naquele
momento, porque depois iriam se levantar e de novo a bolsa sozinha no
tabuão, duas esquerdas seguidas na cara de Nápoles, que buscava o clinch
mais uma vez, Monzón fora de alcance, só esperando para voltar com um
gancho exatíssimo em plena cara, agora as pernas, era preciso mirar
sobretudo as pernas, Estévez especialista nisso via Mantequilla pesado,
jogando-se para a frente sem aquele ajuste tão dele, enquanto os pés de
Monzón escorregavam de lado ou para trás, a cadência perfeita para que
essa última direita acertasse com tudo em pleno estômago, muitos não
ouviram o gongo em meio àquele alarido histérico, mas Walter e Estévez
sim, Walter se sentou primeiro, levantando a bolsa sem olhar para ela, e
Estévez, seguindo-o mais devagar, fez o pacote deslizar numa fração de
segundos e levantou novamente a mão vazia para gesticular seu entusiasmo
nas fuças do sujeito de calças azuis, que não parecia estar muito por dentro
do que estava acontecendo.
— Isso é que é um campeão — disse-lhe Estévez sem forçar a voz, porque
de qualquer forma o outro não o escutaria em meio ao alarido. — Carlitos,
porra.
Olhou para Walter, que fumava tranquilo, o homem começava a se
conformar, que se há de fazer, se não dá, não dá. Todo mundo de pé à
espera do sino do sétimo round, um brusco silêncio incrédulo e depois o
alarido unânime ao ver a toalha na lona, Nápoles sempre no seu canto e
Monzón avançando com as luvas no alto, mais campeão que nunca,
acenando antes de se perder no turbilhão dos abraços e dos flashes. Era um
final sem beleza, mas indiscutível, Mantequilla desistia para não ser a
punching-ball de Monzón, toda esperança perdida agora que se levantava
para se aproximar do vencedor e levantar as luvas até seu rosto, quase uma
carícia, enquanto Monzón punha as suas nos ombros e outra vez se
afastavam, agora sim para sempre, pensou Estévez, agora para nunca mais
se encontrarem num ringue.
— Foi uma bela luta — disse para Walter, que pendurava a bolsa no
ombro e movia os pés como se estivesse com cãibra.
— Podia ter durado mais — disse Walter —, com certeza os segundos de
Nápoles não o deixaram sair.
— Pra quê? Você viu como ele estava acabado, tchê, ele é muito bom
boxeador pra não perceber isso.
— Sim, mas quando se é como ele, é preciso se jogar inteiro, enfim, nunca
se sabe.
— Com Monzón sim — disse Estévez, e se lembrou das ordens de
Peralta, estendeu a mão cordialmente. — Bem, foi um prazer.
— Igualmente. Até logo.
— Tchau.
Viu-o sair por seu lado, seguindo o gordo que discutia com a mulher, aos
gritos, e ficou atrás do sujeito das calças azuis, que não tinha pressa; pouco
a pouco foram derivando para a esquerda para sair do meio das tábuas. Os
franceses de trás discutiam sobre técnicas, mas Estévez achou divertido ver
que uma das mulheres abraçava seu amigo ou seu marido, gritando sabe-se
lá o que em seu ouvido, abraçava-o e o beijava na boca e no pescoço. A
menos que o sujeito seja um idiota, pensou Estévez, ele tem de perceber que
ela está beijando Monzón. O pacote já não pesava no bolso do paletó, era
como se pudesse respirar melhor, se interessar pelo que estava acontecendo,
a moça agarrada ao sujeito, os mexicanos saindo com os chapéus que de
repente pareciam menores, a bandeira argentina meio arriada mas ainda se
agitando, os dois italianos gordos se olhando com um ar de entendidos, e
um deles dizendo quase solene, gliel’a messo in culo, e o outro
concordando com uma síntese tão perfeita, as portas abarrotadas, uma saída
lenta e cansativa e os caminhos de tábuas até a passarela na noite fria e
chuviscando, no fim a passarela rangendo sob um peso crítico, Peralta e
Chaves fumando apoiados na grade, sem fazer nenhum gesto porque sabiam
que Estévez ia vê-los e que disfarçaria sua surpresa, que se aproximaria
como se aproximou, pegando ele também um cigarro.
— Acabou com ele — informou Estévez.
— Eu sei — disse Peralta —, eu estava lá.
Estévez o olhou surpreso, mas eles se viraram ao mesmo tempo e
desceram a passarela entre as pessoas que já começavam a se dispersar.
Soube que devia segui-los e os viu sair da avenida que levava ao metrô e
entrar numa rua mais escura, Chaves se virou apenas uma vez, para se
assegurar de que não os perdera de vista, depois foram direto para o carro
de Chaves e entraram sem pressa, mas sem perder tempo. Estévez entrou
atrás com Peralta, o carro arrancou em direção ao sul.
— Então você estava lá — disse Estévez. — Não sabia que gostava de
boxe.
— Não dou a mínima — disse Peralta —, embora o Monzón valha a grana
que custa. Fui pra olhar você de longe, por via das dúvidas, não era o caso
de você estar sozinho, pois, numa dessas.
— Bem, você viu. Sabe, o coitado do Walter estava torcendo pro Nápoles.
— Não era o Walter — disse Peralta.
O carro seguia para o sul, Estévez sentiu confusamente que por esse
caminho não chegariam à zona da Bastilha, sentiu isso como se já tivesse
ficado para trás, pois o resto era uma explosão em plena cara, Monzón
batendo nele e não em Mantequilla. Não conseguiu nem abrir a boca, ficou
olhando Peralta e esperando.
— Era tarde demais para preveni-lo — disse Peralta. — Pena que você
saiu de casa tão cedo, quando ligamos a Marisa nos disse que você já tinha
saído e que não ia voltar.
— Estava com vontade de caminhar um pouco antes de pegar o metrô —
disse Estévez. — Mas e aí, me conte.
— Foi tudo por água abaixo — disse Peralta. — O Walter telefonou
quando chegou a Orly hoje de manhã, dissemos o que ele tinha que fazer,
ele nos confirmou que tinha recebido o ingresso pra luta, estava tudo nos
conformes. Combinamos que ele me ligaria do esconderijo do Lucho antes
de sair, só por segurança. Às sete e meia ele ainda não tinha ligado,
telefonamos pra Geneviève e ela ligou de volta pra avisar que o Walter não
tinha chegado até o Lucho.
— Estavam esperando ele na saída do Orly — disse a voz de Chaves.
— Mas então quem era aquele que…? — começou Estévez, e deixou a
frase no ar, de repente entendia e era o suor gelado lhe brotando do pescoço,
deslizando por debaixo da camisa, aquele aperto no estômago.
— Tiveram sete horas pra tirar informações dele — disse Peralta. — A
prova, o sujeito conhecia cada detalhe do que devia fazer com você. Já sabe
como eles trabalham, nem o Walter conseguiu aguentar.
— Amanhã ou depois de amanhã vão encontrá-lo em algum terreno baldio
— disse, quase com tédio, a voz de Chaves.
— Que lhe importa isso agora? — disse Peralta. — Antes de vir pra luta
dei um jeito pra que se mandassem dos esconderijos. Sabe, eu ainda tinha
alguma esperança quando entrei naquele circo de merda, mas ele já tinha
chegado e não havia mais nada a fazer.
— Mas então — disse Estévez —, quando ele foi embora com a grana…
— Eu o segui, claro.
— Mas antes, se você já sabia…
— Nada a fazer — repetiu Peralta. — Perdido por perdido, o sujeito teria
nos enfrentado ali mesmo e teriam levado todos nós em cana, você sabe que
eles têm as costas quentes.
— E o que aconteceu?
— Outros três o esperavam lá fora, um deles tinha um passe ou algo
parecido, e num piscar de olhos já estavam num carro do estacionamento
pra turma do Delon e o pessoal da grana, com tiras por todo lado. Então eu
voltei pra passarela onde o Chaves estava nos esperando, e foi isso. Anotei
a placa do carro, claro, mas não vai servir pra porra nenhuma.
— Estamos saindo de Paris — disse Estévez.
— Sim, vamos para um lugar tranquilo. Agora, já deve ter percebido, o
problema é você.
— Por que eu?
— Porque agora o sujeito conhece você e vão acabar por encontrá-lo. Não
há mais esconderijos depois do lance com o Walter.
— Preciso ir, então — disse Estévez. Pensou em Marisa e no guri, como
levá-los, como deixá-los sozinhos, tudo se misturava com as árvores de um
começo de bosque, o zumbido nos ouvidos como se a multidão ainda
estivesse gritando o nome de Monzón, aquele instante em que houve uma
espécie de pausa de incredulidade e a toalha caindo no meio do ringue, a
noite de Mantequilla, pobre velho. E o sujeito estivera a favor de
Mantequilla, agora que pensava nisso era estranho que tivesse ficado do
lado do perdedor, devia ter ficado com Monzón, levar a grana como
Monzón, como alguém que dá as costas e vai embora com tudo, e pra piorar
caçoando do vencido, do pobre sujeito com a cara quebrada ou com a mão
estendida dizendo-lhe bem, foi um prazer. O carro freava entre as árvores e
Chaves desligou o motor. No escuro, ardeu o fósforo de outro cigarro,
Peralta.
— Preciso ir, então — repetiu Estévez. — Pra Bélgica, se concordar, está
lá aquele que você sabe.
— Você ficaria seguro se chegasse lá — disse Peralta —, mas já viu o que
houve com o Walter, eles têm muita gente em toda parte e muita influência.
— Eu eles não pegam.
— Como o Walter, quem iria pegá-lo e fazê-lo abrir o bico? Você sabe
mais coisas do que o Walter sabia, isso é ruim.
— Eu eles não pegam — repetiu Estévez. — Olhe, só tenho que pensar na
Marisa e no guri, agora que tudo se lascou não posso deixá-los aqui, vão se
vingar nela. Num dia eu ajeito tudo e levo eles comigo pra Bélgica, vejo
aquele que você sabe quem e sigo sozinho pra outro canto.
— Um dia é tempo demais — disse Chavez, virando-se no assento. Os
olhos se acostumavam com a escuridão, Estévez viu sua silhueta e o rosto
de Peralta ao levar o cigarro à boca e tragar.
— Está bem, irei quanto antes — disse Estévez.
— Agora mesmo — disse Peralta, sacando o revólver.
1. Este conto foi incluído no catálogo de uma exposição do pintor venezuelano Jacobo Borges.
Propos de mes Parents:
— Pauvre Léopold!
Maman:
— Coeur trop impressionnable…
Tout petit, Léopold était déjà singulier.
Ses jeux n’étaient pas naturels.
À la mort du voisin Jacquelin, tombé d’un prunier,
il a fallu prendre des précautions. Léopold grimpait
dans les branches les plus mignonnes de l’arbre fatal…
À douze années, il circulait imprudemment sur
les terrasses et donnait tout son bien.
Il recueillait les insectes morts dans le jardin
et les alignait dans des boîtes de coquillages
ornées de glaces intérieures.
Il écrivait sur des papiers:
Petit scarabée — mort.
Mante religieuse — morte.
Papillon — mort.
Mouche — morte…
Il accrochait des banderoles aux arbres du jardin.
Et l’on voyait les papiers blancs se balancer
au moindre souffle du vent sur les parterres de fleurs.
Papa disait:
— Étudiant inégal…
Coeur aventureux, tumultueux et faible.
Incompris de ses principaux camarades
et de Messieurs les Maîtres. Marqué du destin.
……………………………………………………………
Papa et Maman:
— Pauvre Léopold!
MAURICE FOURRÉ
La Nuit du Rose-Hôtel
I.
A
gora que está ficando velho, descobre que não é fácil matá-la.
Ser uma hidra é fácil, matá-la não, pois, ainda que para matar a
hidra se deva cortar suas numerosas cabeças (de sete a nove,
conforme os autores ou bestiários consultáveis), é preciso deixar
pelo menos uma, já que a hidra é o próprio Lucas e o que ele quer é sair da
hidra mas ficar em Lucas, passar do poli ao unicéfalo. Aí que eu quero ver,
diz Lucas invejando Hércules, que nunca teve tais problemas com a hidra e
que depois de lhe desferir um golpe limpo de espada a deixou como uma
vistosa fonte da qual brotavam sete ou nove jogos de sangue. Uma coisa é
matar a hidra, outra ser essa hidra que um dia foi apenas Lucas e quer voltar
a ser assim. Por exemplo, você dá uma cortada na cabeça que coleciona
discos, outra na que invariavelmente põe o cachimbo do lado esquerdo da
escrivaninha e o copo com os marca-textos à direita e um pouco atrás. E
então tratamos de avaliar os resultados.
Hum, algum ganho houve, duas cabeças a menos deixam um tanto em
crise as restantes, que ficam pensando, e pensando, agitadas, em face do
funesto acontecimento. Ou seja: pelo menos por um momento deixa de ser
obsessiva aquela necessidade urgente de completar a série de madrigais de
Gesualdo, príncipe de Venosa (faltam a Lucas dois discos da série, parece
que estão esgotados e não serão reeditados, e isso macula a presença dos
outros discos. Que morra com um corte certeiro a cabeça que assim pensa e
deseja e remói). E também é inquietantemente inusitado descobrir, ao
buscar o cachimbo, que ele não está no lugar. Vamos aproveitar essa
vontade de desordem e tascar um corte nessa cabeça amiga do
confinamento, da poltrona de leitura ao lado da lâmpada, do scotch às seis e
meia com dois cubinhos de gelo e pouca soda, dos livros e revistas
empilhados por ordem de prioridade.
Mas é muito difícil matar a hidra e voltar a Lucas, ele já sente isso na
metade da cruenta batalha. Para começar, ele a descreve numa folha de
papel que pegou na segunda gaveta da direita da escrivaninha, quando na
verdade tem papel à vista por toda parte, mas não senhor, o ritual é esse e
não vamos nem falar da luminária extensível italiana quatro posições cem
watts colocada como um guindaste sobre uma obra em construção e
delicadissimamente equilibrada para que o feixe de luz etc. Corte fulgurante
nessa cabeça escriba egípcio sentado. Uma a menos, ufa… Lucas está se
aproximando de si mesmo, a coisa está ficando boa.
Nunca saberá quantas cabeças falta cortar porque o telefone toca e é
Claudine falando em ir cor-ren-do ao cinema onde está passando um filme
de Woody Allen. Pelo visto Lucas não cortou as cabeças na ordem
ontológica adequada, pois sua primeira reação é não, de jeito nenhum,
Claudine ferve feito um caranguejinho lá do outro lado, Woody Allen
Woody Allen, e Lucas, calma, menina, devagar com o andor, não pense que
eu posso descer assim dessa pugna esguichante de plasma e fator Rh só
porque você tem um acesso de Woody Woody, entenda que há valores e
valores. Quando, do outro lado da linha, largam no gancho o Annapurna em
forma de fone, Lucas compreende que teria sido melhor se tivesse matado
primeiro a cabeça que ordena, acata e hierarquiza o tempo, quem sabe assim
tudo se distendesse de repente e então cachimbo Claudine marca-textos
Gesualdo em sequências diferentes, e Woody Allen, claro. Agora é tarde,
não mais Claudine, nem sequer mais palavras para continuar contando a
batalha, pois não há batalha, que cabeça cortar se sempre restará uma mais
autoritária, é hora de pôr em dia a correspondência atrasada, daqui a dez
minutos o scotch com seus gelinhos e sua sodinha, é tão evidente que elas
cresceram de novo, que de nada adiantou cortá-las. No espelho do banheiro
Lucas vê a hidra completa com suas bocas de sorrisos brilhantes, todos os
dentes à mostra. Sete cabeças, uma para cada década; como se não bastasse,
a suspeita de que ainda podem lhe crescer mais duas para satisfazer certas
autoridades em matéria hídrica, isso se tiver saúde.
C
omo a Tota lhe pediu para descer e comprar uma caixa de fósforos,
Lucas sai de pijama porque a canícula impera na metrópole, e
aparece no café do gordo Muzzio onde antes de comprar os
fósforos resolve tomar um aperitivo com soda. Está na metade
desse nobre digestivo quando entra seu amigo Juárez, também de pijama, e
ao vê-lo desata a contar que sua irmã está com otite aguda e o farmacêutico
não quer lhe vender as gotas sedativas porque a receita não apareceu e as
gotas são uma espécie de alucinógeno que já eletrocutou mais de quatro
hippies do bairro. Você ele conhece bem e vai lhe vender, venha logo, a
Rosita está se contorcendo tanto de dor que eu não consigo nem olhar pra
ela.
Lucas paga, esquece de comprar os fósforos e vai com Juárez até a
farmácia onde o velho Olivetti diz que de jeito nenhum, nada disso, que vão
noutro lugar, e nesse momento sua senhora sai lá dos fundos com uma
kodak na mão e você, sr. Lucas, com certeza sabe como pôr o filme, é o
aniversário da menina e imagine que bem agora esse rolo resolveu acabar,
acabar. É que eu preciso levar fósforos pra Tota, diz Lucas antes que Juárez
pise no seu pé e então Lucas se apressa a carregar a kodak ao sacar que o
velho Olivetti vai lhe retribuir com as gotas ominosas, Juárez se desmancha
em agradecimentos e sai aos palavrões enquanto a senhora agarra Lucas e o
mete toda contente na festa de aniversário, você não vai embora sem provar
o bolo de manteiga que a dona Luisa fez, feliz aniversário, diz Lucas para a
menina que lhe responde com um borborigmo através da quinta fatia de
bolo. Todos cantam o rap verde tuiú e mais um brinde com laranjada, mas a
senhora tem uma cervejinha bem gelada para o sr. Lucas que além do mais
vai tirar as fotos porque lá ninguém tem muita prática, e Lucas olha o
passarinho, esta com flash e esta no pátio porque a menina quer que o
pintassilgo também apareça, ela quer.
— Bem — diz Lucas —, preciso ir embora porque acontece que a Tota…
Frase eternamente inconclusa, pois na farmácia já prorrompem gritos e
todo tipo de instruções e de contraordens, Lucas corre para ver e aproveitar
para dar no pé, e topa com o setor masculino da família Salinsky e no meio
o velho Salinsky que caiu da cadeira e o trouxeram porque moram ali do
lado e não é o caso de incomodar o doutor se ele não tiver fraturado o
cóccix ou coisa pior. O baixote Salinsky, que é muito chegado a Lucas, o
segura pelo pijama e diz que o velho é duro mas que o cimento do pátio é
pior, razão pela qual não daria pra excluir uma fratura fatal, ainda mais que
o velho ficou verde e não consegue nem coçar o traseiro, como é seu
costume. Esse detalhe contraditório não escapou ao velho Olivetti, que põe
sua senhora ao telefone e em menos de quatro minutos há uma ambulância e
dois maqueiros, Lucas ajuda a levantar o velho que não se sabe por que
passou os braços em volta de seu pescoço ignorando completamente seus
filhos, e quando Lucas vai sair da ambulância os maqueiros fecham a porta
na cara dele porque estão discutindo o Boca vs. River do domingo e não é o
caso de se distrair com parentescos, e o fato é que Lucas vai parar no chão
com o arranque supersônico e o velho Salinsky lá da maca foda-se, pirralho,
agora você vai saber como dói.
No hospital que fica na outra ponta do novelo Lucas tem de explicar o que
aconteceu, mas isso é algo que leva tempo num nosocômio e o senhor é da
família, não, na verdade não, mas então o quê, espere que vou lhe explicar o
que aconteceu, tudo bem, mas mostre seus documentos, é que estou de
pijama, doutor, seu pijama tem dois bolsos, certo, mas acontece que a Tota,
não vá me dizer que esse velho se chama Tota, o que eu quero dizer é que
eu tinha que comprar uma caixa de fósforos pra Tota e nisso aparece o
Juárez e. Está bem, suspira o médico, abaixe a cueca do velho, Morgada, o
senhor pode ir. Vou ficar até que a família chegue e me dê dinheiro para um
táxi, diz Lucas, não posso pegar o ônibus desse jeito. Depende, diz o
médico, agora usam indumentárias de alta fantasia, a moda é tão versátil,
tire uma chapa dele em decúbito dorsal, Morgada.
Quando os Salinsky desembocam de um táxi, Lucas lhes dá as notícias e o
baixinho lhe entrega a grana exata mas lhe agradece durante cinco minutos
pela solidariedade e pelo companheirismo, de repente não há mais táxi em
nenhum lugar e Lucas que não aguenta mais sai andando rua abaixo, mas é
estranho andar de pijama fora do bairro, nunca tinha pensado que é como
andar pelado, e ainda por cima nem um miserável de um ônibus até que
finalmente aparece o 128 e Lucas de pé entre duas moças que olham para
ele estupefatas, depois uma velha que de seu assento vai subindo os olhos
pelas listras de seu pijama como se medisse o grau de decência dessa
vestimenta que mal disfarça as protuberâncias, a parada na Santa Fe com a
Canning não chega nunca e com razão, porque Lucas pegou o ônibus que
vai para Saavedra, então é descer e esperar numa espécie de pastinho com
duas arvorezinhas e um pente quebrado, a Tota deve estar feito uma pantera
numa máquina de lavar, uma hora e meia minha mãe do céu e quando é que
essa porra de ônibus vai chegar.
Talvez não chegue nunca, diz Lucas para si, com uma espécie de sinistra
iluminação, talvez isso seja algo como o afastamento de Almotásim, pensa
Lucas culto. Quase não vê chegar a velhinha desdentada que se aproxima
um pouco para perguntar se ele por acaso não tem um fósforo.
D
o meu passaporte gosto das páginas das renovações e dos
carimbos de vistos redondos / triangulares / verdes / quadrados /
pretos / ovais / vermelhos; da minha imagem de Buenos Aires a
balsa sobre o Riachuelo, a praça Irlanda, os jardins da Agronomia,
alguns cafés que talvez não existam mais, uma cama num apartamento na
Maipú quase esquina com a Córdoba, o cheiro e o silêncio do porto à meia-
noite no verão, as árvores da praça Lavalle.
Do país guardo o cheiro dos canais de irrigação mendocinos, os álamos de
Uspallata, o violeta profundo da serra de Velasco em La Rioja, as estrelas
chaquenhas em Pampa de Guanacos indo de Salta a Misiones num trem de
1942, um cavalo que montei em Saladillo, o gosto do cinzano com gim
Gordon no Boston da calle Florida, o cheiro levemente alérgico das
poltronas do Colón, a plateia alta do Luna Park com Carlos Beulchi e Mario
Díaz, algumas leiterias da madrugada, a feiura da praça Once, a leitura de
Sur nos anos docemente ingênuos, as edições de Claridad a cinquenta
centavos, com Roberto Arlt e Castelnuovo, e também alguns pátios, claro, e
sombras que eu calo, e mortos.
N
ão é pelo lado das efemérides, não é bem assim, nem Fangio nem
Monzón ou coisas do gênero. Quando ele era menino, claro, Firpo
contava mais que San Martín, e Justo Suárez mais que Sarmiento,
mas depois a vida foi baixando a crista da história militar e
desportiva, veio um tempo de dessacralização e autocrítica, só aqui e ali
restaram pedacinhos de insígnias e “Febo asoma”.
Acha engraçado cada vez que pega alguns, que pega a si mesmo todo
ufano e argentino até a morte, porque sua argentinidade é, por sorte, outra
coisa, mas dentro dessa outra coisa às vezes boiam pedacinhos de louros
(“que sejam eternos os”) e então Lucas em plena King’s Road ou no quebra-
mar de Havana ouve sua voz entre vozes de amigos dizendo coisas tais
como ninguém sabe o que é carne se não conhece a costela de ripa
argentina, nem doce que supere o doce de leite nem coquetel que se
compare ao Demaría que servem no La Fragata (ainda, leitor?) ou no Saint
James (ainda, Susana?).
Naturalmente, seus amigos reagem venezuelana ou guatemaltecamente
indignados, e nos minutos seguintes há um superpatrioteirismo
gastronômico ou botânico ou agropecuário ou ciclístico que vou te contar.
Nessas ocasiões Lucas age como um cachorro pequeno e deixa que os
grandes se engalfinhem, enquanto ele se repreende mentalmente, mas não
muito, afinal me diga de onde vêm as melhores bolsas de crocodilo e os
melhores sapatos de couro de cobra.
Lucas, seu patiotismo
E
m tempos que já vão longe, Lucas ia muito a concertos e dá-lhe
Chopin, Zoltán Kodály, Pucciverdi, sem contar Brahms e
Beethoven e até Ottorino Respighi em temporadas fracas.
Agora ele não vai mais e se vira com os discos e o rádio ou
assobiando lembranças, Menuhin e Friedrich Gulda e Marian Anderson,
coisas um pouco paleolíticas nestes tempos acelerados, mas a verdade é que
nos concertos as coisas iam de mal a pior até que houve um acordo de
cavalheiros entre Lucas, que parou de ir, e os lanterninhas e parte do
público, que pararam de expulsá-lo a pontapés. A que se devia tão
espasmódica discordância? Se você lhe perguntar, Lucas se lembra de
algumas coisas, por exemplo, daquela noite no Colón quando um pianista na
hora do bis se lançou com as mãos armadas de Khatchaturian sobre um
teclado completamente indefeso, ocasião que o público aproveitou para se
permitir uma crise de histeria cuja magnitude correspondia exatamente ao
estrondo obtido pelo artista nos paroxismos finais, e lá está Lucas
procurando alguma coisa no chão entre as fileiras e apalpando por todo
canto.
— Perdeu alguma coisa, senhor? — inquiriu a senhora entre cujos
tornozelos proliferavam os dedos de Lucas.
— A música, senhora — disse Lucas, apenas um segundo antes que o
senador Poliyatti lhe mandasse o primeiro pontapé na bunda.
Também houve o sarau de lieder em que uma dama aproveitava
delicadamente os pianíssimos de Lotte Lehmann para emitir uma tosse
digna das trombetas de um templo tibetano, razão pela qual em algum
momento se ouviu a voz de Lucas, dizendo: “Se as vacas tossissem,
tossiriam como esta senhora”, diagnóstico que determinou a intervenção
patriótica do dr. Chucho Beláustegui e Lucas levado de arrasto com a cara
no chão até sua libertação final no meio-fio da calçada da rua Libertad.
É difícil tomar gosto por concertos quando acontecem coisas assim,
melhor ficar at home.
J
ekyll sabe muito bem quem é Hyde, mas o conhecimento não é
recíproco. Lucas acha que quase todo mundo compartilha a ignorância
de Hyde, o que ajuda a cidade do homem a manter sua ordem. Ele
mesmo opta habitualmente por uma versão unívoca, apenas Lucas,
mas só por motivos de higiene pragmática. Esta planta é esta planta, Dorita
= Dorita, e assim por diante. Só que ele não se ilude e sabe-se lá o que esta
planta é em outro contexto, e de Dorita nem se fala, porque…
Nos jogos eróticos Lucas logo encontrou um dos primeiros refratantes,
obliterantes ou polarizadores do suposto princípio de identidade. Ali de
repente A não é A, ou A é não A. Regiões de extrema delícia às nove e
quarenta serão de desagrado às dez e meia, sabores que exaltam o delírio
incitariam ao vômito se fossem propostos em cima de uma toalha de mesa.
Isto (já) não é isto, porque eu (já) não sou eu (o outro eu).
Quem muda ali, numa cama ou no cosmos: o perfume ou quem o sente? A
relação objetiva-subjetiva não interessa a Lucas; tanto num caso como no
outro, termos definidos escapam à sua definição, Dorita A não é Dorita A,
ou Lucas B não é Lucas B. E partindo de uma instantânea relação A = B, ou
B = A, a fissão da crosta do real se dá em cadeia. Talvez quando as papilas
de A roçam prazerosamente as mucosas de B, tudo está deslizando para
outra coisa e joga outro jogo e calcina os dicionários. O tempo de um
gemido, claro, mas Hyde e Jekyll se olham cara a cara numa relação A → B
/ B → A. Não era de se jogar fora aquela canção de jazz dos anos quarenta,
Doctor Hekyll and Mister Jyde…
N
a Berlitz onde o contratam meio que de pena, o diretor que é de
Astorga lhe adverte que nada de argentinismos nem de
galicismos, aqui se ensina o idioma vernáculo, porra, no primeiro
tchê que eu pegar você já pode ir se mandando. É só ensiná-los a
falar com fluência e nada de culteranismos, pois o que os franceses vêm
aprender aqui é a não fazer papelão na fronteira e nas tabernas. Vernáculo e
prático, meta isso em seus, digamos, miolos.
Lucas, perplexo, vai procurar sem demora textos que correspondam a tão
ilustre critério, e quando inaugura sua aula diante de uma dúzia de
parisienses ávidos de olé e de uma tortilla de seis ovos, por favor, entrega-
lhes umas folhinhas onde reproduziu um trecho de um artigo do El País de
17 de setembro de 1978, veja que moderno, e que a seu ver deve ser a
quintessência do vernáculo e do prático porque trata de touradas e os
franceses não pensam em outra coisa a não ser em correr para as arenas
assim que estiverem com o diploma no bolso, razão pela qual este
vocabulário lhes será extremamente útil na hora do primeiro terço, das
bandarilhas e tudo o mais. O texto diz o seguinte, a saber:
O belo galache, de porte médio, mas garboso, muito bem equipado e astifino, casteado, que era
nobre, continuava entregue aos voos da muleta, que o mestre salmantino manejava com
desenvoltura e autoridade. Relaxada a figura, trançava a muleta em volteios e cada um deles era o
domínio absoluto pelo qual o touro tinha de seguir um semicírculo em torno do destro, e o remate,
limpo e preciso, para deixar a fera à distância adequada. Houve passes naturais insuperáveis e
passes de peito grandiosos, e ajudados por cima e por baixo a duas mãos, e passes com assinatura,
mas não sairá da retina o passe natural ligado com o de peito, e o desenho deste, com saída pelo
ombro contrário, talvez os volteios de capa mais perfeitos que El Viti já fez.2
N
cidadãos veem a vida no campo como Rousseau via o bom
selvagem, eu me solidarizo como nunca com: a) Max Jacob, que,
respondendo a um convite para passar o fim de semana no campo,
disse entre estupefato e apavorado: “O campo, aquele lugar onde
os frangos passeiam crus?”; b) o dr. Johnson, que, no meio de uma excursão
ao parque de Greenwich, expressou energicamente sua preferência por Fleet
Street; c) Baudelaire, que levou o amor pelo artificial à própria noção de
paraíso.
Uma paisagem, um passeio no bosque, um mergulho numa cachoeira, uma
trilha entre as pedras só podem nos preencher esteticamente se o regresso a
casa ou ao hotel estiver garantido, e o banho lustral, o jantar e o vinho, a
conversa depois do jantar, o livro ou os papéis, o erotismo que tudo resume
e recomeça. Desconfio dos admiradores da natureza que vez por outra
descem do carro para contemplar o panorama e dar cinco ou seis saltos entre
os penhascos; quanto aos outros, esses boy-scouts vitalícios que costumam
vagamundear sob enormes mochilas e barbas desmedidas, suas reações são
principalmente monossilábicas ou exclamativas; tudo parece consistir em
ficar várias vezes abobalhados diante de uma colina ou de um pôr do sol,
que são as coisas mais repetitivas que se pode imaginar.
Os civilizados mentem quando caem em arroubos bucólicos; se faltar o
scotch on the rocks às sete e meia da noite vão amaldiçoar o minuto em que
deixaram sua casa para vir padecer mutucas, insolações e espinhos; quanto
aos mais próximos da natureza, são tão estúpidos quanto ela. Um livro, uma
comédia, uma sonata não necessitam de regresso nem de banho; é aí que
atingimos nosso ponto mais alto, que somos o máximo que podemos ser. O
que o intelectual ou o artista que se refugia no campo procura é
tranquilidade, alface fresca e ar puro; cercado por todos os lados de
natureza, ele lê ou pinta ou escreve na luz perfeita de um quarto bem
orientado; se sai para passear ou dá uma espiada nos animais ou nas nuvens
é porque se cansou de seu trabalho ou de seu ócio. Não acredite, tchê, na
contemplação absorta de uma tulipa se o contemplador é um intelectual. O
que há ali é tulipa + distração, ou tulipa + meditação (quase nunca sobre a
tulipa). Nunca vai encontrar um cenário natural que resista por mais de
cinco minutos a uma contemplação obstinada, em compensação sentirá o
tempo ser abolido na leitura de Teócrito ou de Keats, sobretudo nos trechos
onde aparecem cenários naturais. Sim, Max Jacob tinha razão: frangos,
melhor cozidos.
T
chê, tudo bem que seus irmãos já me azucrinaram até não-mais-
poder, mas agora que eu estava te esperando com tanta vontade de
dar uma volta você chega pingando e com essa cara meio de
chumbo, meio de guarda-chuva virado que eu já conheço bem.
Assim não dá pra gente se entender, você sabe. Que tipo de passeio vai ser
esse se basta eu te olhar pra saber que com você eu vou me encharcar até a
alma, que vou ficar com água pelo pescoço e que os cafés vão ter cheiro de
umidade e que quase com certeza vai haver uma mosca no copo de vinho?
Parece até que marcar um encontro com você não adianta nada, e olhe que
eu preparei isso bem devagar, primeiro pondo de escanteio seus irmãos, que
como sempre fazem o possível pra me chatear, pra ir minando minha
vontade de que você apareça e me traga um pouco de ar fresco, um
momento de esquinas ensolaradas e parques com crianças e piões. Um por
um, sem contemplações, fui ignorando-os para que não viessem jogar tudo
nas minhas costas como é do estilo deles, abusar do telefone, das cartas
urgentes, da mania que eles têm de aparecer às oito da manhã e se plantar ali
pra todo o sempre. Nunca fui grosseiro com eles, até me controlei para tratá-
los com gentileza, simplesmente fingindo que não percebia suas pressões, a
extorsão permanente que me infligem de todos os ângulos, como se te
invejassem, quisessem te depreciar de antemão pra acabar com minha
vontade de te ver chegar, de sair com você. Já sabemos, a família, mas agora
acontece que em vez de ficar do meu lado, você também se dobra a eles e
não me dá tempo pra nada, nem pra me resignar e contemporizar, aparece
assim, esguichando água, uma água cinzenta de tempestade e de frio, uma
esmagadora negação do que eu tanto esperava enquanto me safava pouco a
pouco dos seus irmãos e tentava guardar forças e alegria, ter os bolsos
cheios de moedas, planejar itinerários, batata frita naquele restaurante
debaixo das árvores onde é tão gostoso almoçar entre pássaros e meninas e
o velho Clemente que recomenda o melhor provolone e às vezes toca
acordeom e canta.
Desculpe se eu te jogo na cara que você é um nojo, agora preciso me
convencer de que isso é coisa de família, de que você não é diferente, mas
sempre achei que você fosse a exceção, aquele momento em que tudo o que
oprime se detém pra entrada do leve, da espuma da conversa e da virada das
esquinas; veja só, acaba que é pior, você aparece como o avesso da minha
esperança, cinicamente bate à minha janela e fica ali esperando que eu calce
as galochas, que pegue a capa e o guarda-chuva. Você é cúmplice dos
outros, eu que tantas vezes achei que você era diferente e te amei por isso, e
lá vão três ou quatro vezes que você me apronta a mesma coisa, de que
adianta vez por outra corresponder ao meu desejo se no fim é isso, ver você
aí com mechas sobre os olhos, os dedos jorrando uma água cinzenta,
olhando pra mim sem dizer nada. No fim é quase melhor com teus irmãos,
pelo menos lutar contra eles me faz passar o tempo, tudo anda melhor
quando se defende a liberdade e a esperança; mas você, você não me dá
nada além desse vazio de ficar em casa, de saber que tudo transpira
hostilidade, que a noite vai chegar como um trem atrasado numa plataforma
cheia de vento, que só vai chegar depois de muitos chimarrões, de muitos
noticiários, com teu irmão segunda-feira esperando atrás da porta a hora em
que o despertador vai me deixar de novo cara a cara com ele, que é o pior,
grudado em você mas você novamente tão longe dele, atrás da terça-feira e
da quarta etc.
enhoras, senhoritas etc. Para mim é uma honra etc. Neste recinto ilustrado
por etc. Permitam que neste momento eu etc. Não posso entrar no assunto
—S
sem antes etc.
Antes de mais nada, gostaria de definir com a maior
exatidão possível o sentido e o alcance do tema. Há
algo de temerário em toda referência ao futuro quando
a mera noção de presente se apresenta como incerta e flutuante, quando o
contínuo espaço-tempo no qual somos fenômenos de um instante que
regressa ao nada no próprio ato de concebê-lo é mais uma hipótese de
trabalho que uma certeza verificável. Mas sem cair num regressionalismo
que põe em questão as mais elementares operações do espírito, façamos um
esforço para admitir a realidade de um presente e até mesmo de uma história
que nos situa coletivamente com garantias suficientes para projetar seus
elementos estáveis e sobretudo seus fatores dinâmicos buscando uma visão
do futuro de Honduras no concerto das democracias latino-americanas. No
imenso cenário continental (gesto da mão abarcando toda a sala), um
pequeno país como Honduras (gesto da mão abarcando a superfície da
mesa) representa apenas uma das tésseras multicoloridas que compõem o
grande mosaico. Este fragmento (apalpando a mesa com mais atenção e
olhando-a com a expressão de quem vê uma coisa pela primeira vez) é
estranhamente concreto e evasivo ao mesmo tempo, como todas as
expressões da matéria. O que é isso que estou tocando? Madeira, claro, e em
seu conjunto um objeto volumoso situado entre mim e os senhores, algo que
de algum modo nos separa com seu seco e maldito corte de mogno. Uma
mesa! Mas o que é isso? Nota-se claramente que aqui embaixo, entre esses
quatro pés, há uma zona hostil e ainda mais insidiosa que as partes sólidas;
um paralelepípedo de ar, como um aquário de medusas transparentes que
conspiram contra nós, enquanto aqui em cima (passa a mão como se
quisesse se convencer) tudo continua plano e escorregadio e absolutamente
espião japonês. Como vamos nos entender, separados por tantos obstáculos?
Se essa senhora sonolenta extraordinariamente parecida com uma toupeira
com indigestão quisesse se enfiar debaixo da mesa e nos explicar o
resultado de suas explorações, talvez pudéssemos anular a barreira que me
força a dirigir-me aos senhores como se estivesse me afastando do cais de
Southampton a bordo do Queen Mary, navio no qual sempre tive esperança
de viajar, e com um lenço ensopado de lágrimas e lavanda Yardley agitasse
a única mensagem ainda possível para as plateias lugubremente amontoadas
no cais. Hiato mais detestável que qualquer outro, por que a comissão
diretora interpôs aqui esta mesa, que parece um obsceno cachalote? É inútil,
senhor, que se ofereça para retirá-la, pois um problema não resolvido volta
pela via do inconsciente, como tão bem demonstrou Marie Bonaparte em
sua análise do caso de madame Lefèvre, que assassinou a nora a bordo de
um automóvel. Agradeço sua boa vontade e seus músculos dispostos à ação,
mas acho imprescindível que nos adentremos na natureza desse dromedário
indescritível, e não vejo outra solução a não ser nos pegarmos corpo a
corpo, vocês do seu lado e eu do meu, com essa censura lígnea que se
retorce lentamente em seu abominável cenotáfio. Fora, objeto obscurantista!
Ele não sai, evidentemente. Um machado, um machado! Não se abala
minimamente, tem o agitado ar de imobilidade das piores maquinações do
negativismo que se insere sorrateiro nas fábricas da imaginação para não
deixar que ela ascenda sem um lastro de mortalidade em direção às nuvens,
que seriam sua verdadeira pátria se a gravidade, essa mesa onímoda e
ubíqua, não pesasse tanto nos coletes de todos vocês, e na fivela de meu
cinto e até nos cílios dessa belezura que da quinta fileira não faz outra coisa
senão me implorar que a introduza, sem mais delongas, em Honduras.
Percebo sinais de impaciência, os funcionários estão furiosos, haverá
renúncias na comissão diretora, desde já prevejo um corte no orçamento
para atividades culturais; entramos na entropia, a palavra é como uma
andorinha caindo numa sopeira de tapioca, ninguém mais sabe o que está
acontecendo e é justamente isso que pretende essa mesa filha da puta, ficar
sozinha numa sala vazia enquanto todos nós choramos ou nos pegamos a
tapas nas escadas de saída. Você vencerá, basilisco repugnante? Que
ninguém finja ignorar essa presença que tinge de irrealidade qualquer
comunicação, qualquer semântica. Observem-na pregada entre nós, entre
nós de cada lado dessa horrenda muralha com o ar que impera num asilo de
idiotas quando um diretor progressista pretende apresentar a música de
Stockhausen. Ah, pensávamos ser livres, em algum lugar a presidenta do
ateneu deixou pronto um buquê de rosas que me seria entregue pela filha
caçula do secretário enquanto vocês restabeleceriam com aplausos
fragorosos a congelada circulação de seus traseiros. Mas nada disso vai
acontecer por culpa dessa concreção abominável que ignorávamos, que ao
entrar víamos como uma coisa muito óbvia até que um toque casual de
minha mão a revelou bruscamente em sua agressiva hostilidade, ali de
tocaia. Como pudemos imaginar uma liberdade inexistente, sentar-nos aqui
quando nada era concebível, nada era possível sem antes nos livrarmos
desta mesa? Molécula viscosa de um gigantesco enigma, aglutinante
testemunha das piores servidões! A simples ideia de Honduras soa como um
balão estourado no auge de uma festa infantil. Quem agora pode conceber
Honduras, será que essa palavra tem algum sentido enquanto estivermos de
um lado e do outro deste rio de fogo negro? E eu ia fazer uma conferência!
E vocês se dispunham a ouvi-la! Não, é demais, ao menos tenhamos a
coragem de acordar ou no mínimo de admitir que queremos acordar e que a
única coisa que pode nos salvar é a quase insuportável coragem de passar a
mão sobre essa indiferente obscenidade geométrica, enquanto dizemos
todos juntos: Tem um metro e vinte de largura por dois e quarenta de
comprimento, mais ou menos, é de carvalho maciço, ou de mogno, ou de
pinho envernizado. Mas algum dia iremos concluir, saberemos o que é isso?
Não acredito, será inútil.
Aqui, por exemplo, algo que parece um nó da madeira… A senhora
acredita que é um nó da madeira? E aqui, o que chamávamos de pé, o que
significa essa precipitação em ângulo reto, esse vômito fossilizado em
direção ao chão? E o chão, essa segurança sob nossos passos, o que esconde
debaixo do parquê encerado?
omo a clínica onde meu amigo Lucas se internou é uma clínica cinco
estrelas, os-doentes-sempre-têm-razão, e dizer não quando eles pedem
C
coisas absurdas é um problema sério para as enfermeiras, uma
mais fofa que a outra, e quase sempre dizendo sim, pelos motivos
precedentes.
Não é possível, naturalmente, atender ao pedido do gordo do
quarto 12, que em plena cirrose hepática pede a cada três horas uma garrafa
de gim, mas em compensação com que prazer, com que satisfação as
meninas dizem sim, como não, claro, quando Lucas, que foi para o corredor
enquanto arejavam seu quarto e descobriu um buquê de margaridas na sala
de espera, pede quase tímido que o deixem levar uma margarida para seu
quarto a fim de alegrar o ambiente.
Depois de pousar a flor na mesinha de cabeceira, Lucas toca a campainha
e pede um copo com água para dar a sua margarida uma postura mais
adequada. Assim que trazem o copo e instalam a flor, Lucas observa que a
mesinha de cabeceira está abarrotada de frascos, revistas, cigarros e cartões-
postais, de modo que talvez pudesse ser instalada outra mesinha ao pé da
cama, localização que lhe permitiria desfrutar da presença da margarida sem
ter de deslocar o pescoço para distingui-la entre os diferentes objetos que
proliferam na mesinha de cabeceira.
A enfermeira logo traz o solicitado e põe o copo com a margarida no
ângulo visual mais favorável, o que Lucas agradece, fazendo-a notar, de
passagem, que como muitos amigos vêm visitá-lo e as cadeiras são muito
poucas, nada melhor que aproveitar a presença da mesa para acrescentar
duas ou três poltroninhas confortáveis e criar um ambiente mais propício à
conversação.
Assim que as enfermeiras aparecem com as poltronas, Lucas lhes diz que
se sente imensamente grato aos amigos que lhe fazem tanta companhia
nesse momento complicado, motivo pelo qual a mesa serviria perfeitamente,
depois da colocação de uma toalhinha, para apoiar duas ou três garrafas de
uísque e meia dúzia de copos, se possível daqueles de cristal bisotado, sem
contar uma térmica com gelo e umas garrafas de soda.
As meninas se dispersam em busca desses utensílios e os dispõem
artisticamente sobre a mesa, ocasião em que Lucas se permite assinalar que
a presença de copos e garrafas desvirtua consideravelmente a eficácia
estética da margarida, bastante perdida no conjunto, mas que a solução é
muito simples, pois o que de fato está faltando nesse quarto é um armário
para acomodar a roupa e os sapatos, toscamente amontoados num móvel no
corredor, e então bastará pôr o copo com a margarida no alto do armário
para que a flor domine o ambiente e lhe dê esse encanto um pouco secreto
que é a chave de toda boa convalescença.
Atribuladas com os acontecimentos mas fiéis às normas da clínica, as
meninas empurram com dificuldade um armário enorme sobre o qual acaba
de se pousar a margarida, como um olho ligeiramente estupefato mas
repleto de dourada benevolência. As enfermeiras sobem no armário para
acrescentar um pouco de água fresca ao copo, e então Lucas fecha os olhos
e diz que agora tudo está perfeito e que vai tentar dormir um pouco. Assim
que elas fecham a porta ele se levanta, tira a margarida do copo e a joga pela
janela, pois não é uma flor que lhe agrade particularmente.
2. No original: “El galache, precioso, terciado, mas con trapío, muy bien armado y astifino, encastado, que era noble, seguía
entregado a los vuelos de la muleta, que el maestro salmantino manejaba con soltura y mando. Relajada la figura, trenzaba los
muletazos, y cada uno de ellos era el dominio absoluto por el que tenía que seguir el toro un semicírculo en torno al diestro, y el
remate, limpio y preciso, para dejar a la fiera en la distancia adecuada. Hubo naturales inmejorables y de pecho grandiosos, y
ayudados por alto y por bajo a dos manos, y pases de la firma, pero no se nos irá de la retina un natural ligado con el de pecho, y
el dibujo de éste, con salida por el hombro contrario, quizá los más acabados muletazos que haya dado nunca El Viti”. (N. T.)
II.
E
m algum lugar deve existir um depósito de lixo onde estão
amontoadas as explicações.
Só uma coisa é inquietante nesse preciso panorama: o que vai
acontecer no dia em que alguém conseguir explicar também o
depósito de lixo.
O copiloto silencioso
C
uriosa conexão entre uma história e uma hipótese separadas por
muitos anos e uma remota distância; algo que agora pode ser um
fato exato, mas que não tomou forma até o acaso de uma conversa
em Paris vinte anos antes, numa estrada solitária da província de
Córdoba, na Argentina.
A história foi contada por Aldo Franceschini, a hipótese foi proposta por
mim, e as duas ocorreram num ateliê de pintura da rua Paul Valéry entre
goles de vinho, tabaco, e aquele prazer de falar sobre coisas da nossa terra
sem os meritórios suspiros folclóricos de tantos outros argentinos que
andam por aí sem que se saiba bem por quê. Acho que começou com os
irmãos Gálvez e os álamos de Uspallata; em todo caso, mencionei
Mendoza, e Aldo que é de lá se achegou com tudo e quando vimos ele já
estava vindo de carro de Mendoza para Buenos Aires, cruzava Córdoba em
plena noite e de repente ficava no meio da estrada sem gasolina ou sem
água para o radiador. Sua história pode caber nestas palavras:
— Era uma noite muito escura num lugar completamente deserto, e não
dava pra fazer nada a não ser esperar que algum carro passasse e nos tirasse
do apuro. Naquela época, era raro que em trechos tão longos não se
levassem latas com gasolina e água de reposição; na pior das hipóteses
quem passasse poderia nos levar, minha mulher e eu, até o hotel da primeira
cidade que tivesse um hotel. Ficamos na escuridão, com o carro bem
estacionado no acostamento, fumando e esperando. Lá pela uma da manhã
vimos um carro que descia para Buenos Aires se aproximar, e comecei a
fazer sinais com a lanterna no meio da estrada.
“Há coisas que não dá pra entender nem confirmar no momento, mas
antes que o carro parasse eu senti que o motorista não queria parar, que
naquele carro que vinha a toda a velocidade parecia haver um desejo de
seguir em frente mesmo se me vissem caído na estrada com a cabeça
quebrada. Tive que sair pro lado no último instante porque a má vontade da
freada o levou quarenta metros à frente; corri para alcançá-lo e me
aproximei da janela do lado do volante. Apaguei a lanterna porque o reflexo
do painel era suficiente para recortar o rosto do homem que estava
dirigindo. Expliquei rapidamente o que estava acontecendo e pedi ajuda, e
aí já estava sentindo um aperto no estômago, pois a verdade é que comecei
a ficar com medo enquanto me aproximava do carro, um medo sem motivo,
considerando que, naquela escuridão e naquele lugar, o motorista é que
devia estar mais inquieto. Enquanto explicava a situação, eu olhava para
dentro do carro, atrás não tinha ninguém, mas no outro banco dianteiro
havia algo sentado. Digo algo por falta de palavra melhor e porque tudo
começou e acabou com tal rapidez que a única coisa realmente definida era
um medo como eu nunca tinha sentido. Juro que quando o motorista
acelerou bruscamente o motor, enquanto dizia ‘Não temos gasolina’, e
arrancou ao mesmo tempo, senti uma espécie de alívio. Voltei pro meu
carro; não ia conseguir explicar pra minha mulher o que tinha acontecido,
mas mesmo assim expliquei e ela entendeu aquele absurdo como se o que
nos ameaçava lá naquele carro também a tivesse atingido a tanta distância e
sem ver o que eu tinha visto.
“Agora você vai me perguntar o que é que eu vi, e eu também não sei. Ao
lado de quem dirigia havia algo sentado, como já disse, uma forma preta
que não fazia o menor movimento nem virava o rosto para mim. No fim das
contas, não havia nada que me impedisse de acender a lanterna para
iluminar os dois passageiros, mas me diga, por que meu braço foi incapaz
desse gesto, por que tudo durou apenas alguns segundos, por que quase dei
graças a Deus quando o carro arrancou pra sumir na distância, e
principalmente, por que diabos eu não lamentei passar a noite em pleno
campo até que ao amanhecer um caminhoneiro nos deu uma mão e até uns
goles de grapa?
“O que eu nunca vou entender é aquilo tudo que antecedeu o que consegui
ver, que, aliás, não foi quase nada. É como se eu já estivesse com medo
quando percebi que os ocupantes do carro não queriam parar, que faziam
isso forçados, só pra não me atropelar; mas isso não explica nada, pois
afinal ninguém gosta de ser parado no meio da noite e naquela solidão. Até
me convenci de que a coisa só começou quando eu estava falando com o
motorista, mas é possível que algo já tivesse me atingido por outra via,
enquanto eu me aproximava do carro, uma atmosfera, se quiser chamar
assim. Não consigo entender de outra forma o fato de ter ficado gelado
enquanto trocava essas palavras com o homem do volante, e que o
vislumbre do outro, no qual meu espanto se concentrou no mesmo instante,
fosse a verdadeira razão daquilo tudo. Mas daí a entender… Era um
monstro, um aleijão horripilante que levavam no meio da noite para que
ninguém visse? Um doente com a cara deformada ou cheia de pústulas, um
anormal que irradiava uma força maligna, uma aura insuportável? Não sei,
não sei. Mas nunca na minha vida eu tive tanto medo, meu irmão.”
Como eu trouxe comigo trinta e oito anos de lembranças argentinas bem
empilhadas, a história de Aldo deu um clique em algum lugar e a IBM se
agitou por um instante e no fim me caiu a ficha com a hipótese, talvez com
a explicação. Lembrei até que tinham me falado daquilo num café portenho,
um medo puramente mental como estar no cinema vendo Vampyr; tantos
anos depois esse medo se entendia com o de Aldo, e como sempre esse
entendimento dava toda a sua força à hipótese.
— O que estava do lado do motorista naquela noite era um morto — falei.
— É curioso que você nunca tenha ouvido falar do negócio de transporte de
cadáveres nos anos trinta e quarenta, em especial de tuberculosos que
morriam nos sanatórios de Córdoba e que a família queria enterrar em
Buenos Aires. Uma questão de taxas federais ou algo do gênero tornava
caríssimo o traslado do cadáver; então surgiu a ideia de maquiar um pouco
o morto, sentá-lo ao lado do motorista de um carro, e fazer o trecho de
Córdoba a Buenos Aires em plena noite para chegar à capital antes do
amanhecer. Quando me falaram desse assunto senti quase a mesma coisa
que você; depois tentei imaginar a falta de imaginação dos sujeitos que
ganhavam a vida desse jeito, e não consegui. Você pode se imaginar num
carro com um morto colado no seu ombro, correndo a cento e vinte na plena
solidão dos pampas? Cinco ou seis horas em que podia acontecer tanta
coisa, porque um cadáver não é um ente tão rígido como se imagina, e um
vivo não pode ser tão paquiderme como também somos tentados a pensar.
Corolário mais amável enquanto tomamos outro vinhozinho: pelo menos
dois dos que estavam nesse negócio depois viraram ases do volante nesses
ralis em estradas. Pensando bem, é curioso que essa conversa tenha
começado com os irmãos Gálvez, não creio que tenham feito esse trabalho,
mas disputaram corridas com outros que fizeram. Também é verdade que
nessas corridas de loucos sempre se andava com um morto bem colado no
corpo.
O
deiam tanto a tia Angustias que aproveitam até as férias para lhe
demonstrar isso. Mal a família sai rumo a diversos destinos
turísticos, e um dilúvio de cartões-postais em Agfacolor, em
Kodachrome, até em branco e preto se não houver outros à mão,
mas todos, sem exceção, recobertos de insultos. De Rosario, de San Andrés
de Giles, de Chivilcoy, da esquina da Chacabuco com a Moreno, os
carteiros cinco ou seis vezes por dia praguejando, tia Angustias feliz. Ela
nunca sai de casa, gosta de ficar no pátio, passa os dias recebendo os
cartões-postais e está adorando.
Modelos de cartões: “Saúde, asquerosa, que um raio te parta, Gustavo”.
“Cuspo no teu tricô, Josefina.” “Que o gato seque teus gerânios com mijo,
tua irmãzinha.” E assim por diante.
Tia Angustias se levanta cedo para receber os carteiros e dar as gorjetas.
Lê os cartões, admira as fotografias e lê os cumprimentos de novo. De
noite, apanha seu álbum de recordações e ali vai pondo, cuidadosamente, a
colheita do dia, de modo que se possa ver as vistas mas também os
cumprimentos. “Meus anjos, coitadinhos, quantos postais me mandam”,
pensa tia Angustias, “este com a vaquinha, este com a igreja, aqui o lago
Traful, aqui o buquê de flores”, olhando um a um enternecida e espetando
alfinetes em cada postal, que eles não me inventem de cair do álbum, mas,
aí sim, espetando-os sempre nas assinaturas, vá saber por quê.
Um pequeno paraíso
A
s formas da felicidade são muito variadas, e não se deve estranhar
que os habitantes do país governado pelo general Orangu se
considerem felizes a partir do dia em que têm o sangue cheio de
peixinhos de ouro.
Os peixinhos não são realmente de ouro, são apenas dourados, mas basta
vê-los para que seus saltos resplandecentes se traduzam no mesmo instante
numa urgente ansiedade de posse. O governo sabia disso muito bem quando
um naturalista capturou os primeiros exemplares, que se reproduziram
velozmente num cultivo favorável. Tecnicamente conhecido como Z-8, o
peixinho de ouro é extremamente pequeno, a tal ponto que se fosse possível
imaginar uma galinha do tamanho de uma mosca, o peixinho de ouro teria o
tamanho dessa galinha. Por isso é muito simples incorporá-lo à corrente
sanguínea dos habitantes na época em que completam dezoito anos; a lei
estabelece essa idade e o procedimento técnico correspondente.
É, pois, com ansiedade que cada jovem do país aguarda o dia em que terá
permissão para ingressar num dos centros de implantação, e sua família o
cerca com a alegria que sempre acompanha as grandes cerimônias. Uma
veia do braço é conectada a um tubo que desce de um frasco transparente
cheio de soro fisiológico, no qual, no momento certo, são introduzidos vinte
peixinhos de ouro. A família e o beneficiário podem admirar
demoradamente as cintilações e as evoluções dos peixinhos de ouro no
frasco de vidro, até que eles são, um atrás do outro, absorvidos pelo tubo,
descem imóveis e talvez um pouco atordoados como outras tantas gotas de
luz, e desaparecem na veia. Meia hora mais tarde o cidadão já possui seu
número completo de peixinhos de ouro e se retira para comemorar
demoradamente seu acesso à felicidade.
Pensando bem, os habitantes são felizes mais por imaginação que por
contato direto com a realidade. Embora já não possam vê-los, cada um
deles sabe que os peixinhos de ouro percorrem a grande árvore de suas
artérias e suas veias, e antes de dormir eles têm a impressão de assistir na
concavidade de suas pálpebras ao ir e vir das centelhas reluzentes, mais
douradas que nunca contra o fundo vermelho dos rios e dos arroios por
onde deslizam. O que mais os fascina é saber que os vinte peixinhos de
ouro não demoram a se multiplicar, e assim os imaginam inumeráveis e
radiantes por toda parte, deslizando sob a testa, chegando às extremidades
dos dedos, concentrando-se nas grandes artérias femorais, na jugular, ou
escorregando agilíssimos por zonas mais estreitas e secretas. A passagem
periódica pelo coração é a imagem mais deliciosa dessa visão interior, pois
lá os peixinhos de ouro encontram tobogãs, lagos e cascatas para seus jogos
e assembleias, e certamente é nesse grande porto rumoroso que se
reconhecem, que se escolhem e acasalam. Quando os moços e moças se
apaixonam, estão convencidos de que também em seus corações algum
peixinho de ouro encontrou seu par. Até mesmo certas comichões incitantes
são imediatamente atribuídas ao acoplamento dos peixinhos de ouro nas
áreas em questão. Os ritmos essenciais da vida se correspondem, assim, por
fora e por dentro; seria difícil imaginar uma felicidade mais harmoniosa.
O único obstáculo a esse quadro é que periodicamente morre um ou outro
peixinho de ouro. Longevos, chega porém o dia em que um deles perece e
seu corpo, arrastado pelo fluxo sanguíneo, acaba obstruindo a passagem de
uma artéria para uma veia ou de uma veia para um vaso. Os habitantes
conhecem os sintomas, aliás muito simples: a respiração se torna difícil e às
vezes sentem vertigens. Nesse caso, utilizam uma das ampolas injetáveis
que todos armazenam em casa. Em poucos minutos o produto desintegra o
corpo do peixinho morto e a respiração volta ao normal. Conforme as
previsões do governo, cada habitante deve utilizar duas ou três ampolas por
mês, porque os peixinhos de ouro se reproduziram enormemente e seu
índice de mortalidade tende a aumentar com o tempo.
O governo do general Orangu fixou o preço de cada ampola num valor
equivalente a vinte dólares, o que supõe um aporte anual de vários milhões;
se para os observadores estrangeiros isso equivale a um imposto pesado, os
habitantes nunca entenderam dessa forma, pois cada ampola traz de volta a
felicidade e é justo que paguem por ela. Quando se trata de famílias sem
recursos, o que é muito comum, o governo fornece as ampolas a prestação,
cobrando, logicamente, o dobro do preço à vista. Se mesmo assim há quem
careça de ampolas, resta o expediente de recorrer a um próspero mercado
negro que o governo, compreensivo e bondoso, deixa florescer para maior
felicidade de seu povo e de alguns coronéis. Que importa a miséria, afinal,
quando se sabe que cada um tem seus peixinhos de ouro, e que logo chegará
o dia em que uma nova geração também os receberá e haverá festas e
haverá cantos e haverá danças?
Vida de artistos
Quando as crianças se iniciam na língua espanhola, o princípio geral das desinências em “o” e “a”
lhes parece tão lógico que o aplicam sem hesitar e com muitíssima razão às exceções, e assim,
enquanto a Beba é idiota, o Toto é idioto, uma águia e uma gaivota formam seu lar com um águio e
um gaivoto, e quase não há galeoto que não tenha sido agrilhoado ao remo por causa de uma
galeota. Acho isso tão justo que continuo convencido de que atividades como as de turista, artista,
contratista, passadista e escapista deveriam formar sua desinência conforme o sexo de seus
praticantes. Em uma civilização decididamente androcrática como a da América Latina, cabe falar
de artistos em geral, e de artistos e artistas em particular. Quanto às vidas a seguir, são modestas
mas exemplares, e ficarei furioso com quem afirmar o contrário.
Nessa orquestra, um dos fagotistas não podia tocar seu instrumento sem que
lhe ocorresse o estranho fenômeno de ser absorvido e instantaneamente
expelido pelo outro extremo, com tal rapidez que o estupefato músico de
repente se descobria do outro lado do fagote e tinha de dar a volta a toda a
velocidade e continuar tocando, não sem que o maestro o desacreditasse
com horrorosas referências pessoais.
Uma noite em que executavam a Sinfonia da boneca, de Alberto
Williams, o fagotista atacado de absorção de repente se viu do outro lado do
instrumento, dessa vez com o grave inconveniente de que aquele ponto do
espaço estava ocupado pelo clarinetista Perkins Virasoro, que em
decorrência da colisão foi projetado sobre os contrabaixos e se levantou
visivelmente furioso e pronunciando palavras que ninguém jamais ouviu na
boca de uma boneca; pelo menos essa foi a opinião das senhoras assinantes
e do bombeiro de plantão na sala, pai de várias crianças.
QUINTESSÊNCIAS
Texturologias
D
os seis trabalhos críticos citados, dá-se apenas uma breve síntese
dos respectivos enfoques.
O que é um polígrafo?
M
eu xará Casares nunca vai deixar de me assombrar. Em vista do
que segue, eu me dispunha a dar a este capítulo o título de
“Poligrafia”, mas uma espécie de instinto canino me levou à
página 840 do pterodáctilo ideológico, e então zás: por um lado
um polígrafo é, na segunda acepção, “o escritor que trata de matérias
diferentes”, mas em compensação a poligrafia é exclusivamente a arte de
escrever de modo que só possa decifrar o escrito quem conhecer
previamente o código, e também a arte de decifrar escritos desse tipo. De
modo que “poligrafia” não pode ser o título de meu capítulo, que trata nada
menos que do dr. Samuel Johnson.
Em 1756, aos quarenta e sete anos e segundo informações do obstinado
Boswell, o dr. Johnson começou a colaborar em The Literary Magazine, or
Universal Review. Ao longo de quinze números mensais, foram publicados
os seguintes ensaios dele: “Introdução à situação política da Grã-Bretanha”,
“Observações sobre a lei das milícias”, “Observações sobre os tratados de
Sua Majestade Britânica com a imperatriz da Rússia e o landgrave de Hesse
Cassel”, “Observações sobre a situação atual” e “Memórias de Frederico
III, rei da Prússia”. Nesse mesmo ano e nos primeiros meses de 1757,
Johnson resenhou os seguintes livros:
História da Royal Society, de Birch.
Diário da Gray’s-Inn, de Murphy.
Ensaio sobre as obras e o gênio de Pope, de Warton.
Tradução de Políbio, de Hampton.
Memórias da corte de Augusto, de Blackwell.
História natural de Aleppo, de Russel.
Argumentos de Sir Isaac Newton para provar a existência da divindade.
História das ilhas de Scilly, de Borlase.
Os experimentos de branqueamento de Holmes.
Moral cristã, de Browne.
Destilação da água do mar, ventiladores nos barcos e correção do gosto ruim do leite, de Hales.
Ensaio sobre as águas, de Lucas.
Catálogo dos bispos escoceses, de Keith.
História da Jamaica, de Browne.
Atas de filosofia, volume XLIX.
Tradução das memórias de Sully, de Mrs. Lennox.
Miscelâneas, de Elizabeth Harrison.
Mapa e relatório sobre as colônias da América, de Evans.
Carta sobre o caso do almirante Byng.
Chamamento ao povo a propósito do almirante Byng.
Viagem de oito dias, e ensaio sobre o chá, de Hanway.
O cadete, tratado militar.
Outros detalhes relativos ao caso do almirante Byng, por um cavalheiro de Oxford.
Conduta do Ministério em relação à guerra atual, imparcialmente analisada.
Livre exame da natureza e a origem do mal.
Em pouco mais de um ano, cinco ensaios e vinte e cinco resenhas de um
homem cujo principal defeito, segundo ele mesmo e seus críticos, era a
indolência… O célebre Dicionário de Johnson foi concluído em três anos, e
há provas de que o autor trabalhou praticamente sozinho nessa tarefa
gigantesca. Garrick, o ator, celebra num poema que Johnson “tenha vencido
quarenta franceses”, alusão aos integrantes da Academia Francesa que
trabalhavam corporativamente no dicionário de sua língua.
Tenho grande simpatia pelos polígrafos que agitam a vara de pescar em
todas as direções, alegando ao mesmo tempo estar meio sonolentos como o
dr. Johnson, e que descobrem como fazer um trabalho extenuante sobre
temas como o chá, a correção do gosto ruim do leite e a corte de Augusto,
para não falar dos bispos escoceses. No fim das contas, é o que estou
fazendo neste livro, mas a indolência do dr. Johnson me parece uma fúria de
trabalho tão inconcebível que meus melhores esforços não passam de vagos
espreguiçamentos de sesta numa rede paraguaia. Quando penso que há
romancistas argentinos que produzem um livro a cada dez anos, e no
intervalo convencem jornalistas e senhoras de que estão esgotados por seu
trabalho interior…
Observações ferroviárias
Famílias
alvez os moluscos não sejam neuróticos, mas daí para cima basta olhar
direito; de minha parte, vi galinhas neuróticas, minhocas neuróticas, cães
T
incalculavelmente neuróticos; há árvores e flores que a psiquiatria
do futuro tratará psicossomaticamente porque já hoje suas formas e
cores nos parecem francamente mórbidas. Ninguém há de
estranhar, então, minha indiferença quando fui tomar uma ducha e
me ouvi dizer mentalmente com visível prazer vindicativo: Now shut up,
distasteful Adbekunkus.
Enquanto me ensaboava, a advertência se repetiu ritmadamente e sem a
menor análise consciente de minha parte, quase como se fizesse parte da
espuma do banho. Só no final, entre a água-de-colônia e a roupa de baixo, é
que me interessei por mim mesmo e daí por Adbekunkus, a quem eu tinha
ordenado calar a boca com tanta insistência ao longo de meia hora. Restou-
me uma boa noite de insônia para me interrogar sobre essa leve
manifestação neurótica, esse surto inofensivo mas insistente que continuava
como uma resistência ao sono; comecei a me perguntar onde podia estar
falando sem parar esse Adbekunkus para que alguma coisa em mim que o
ouvia exigisse peremptoriamente e em inglês que ele se calasse.
Descartei a hipótese fantástica, fácil demais: não havia nada nem ninguém
chamado Adbekunkus, dotado de facilidade elocutória e enfadonha. Em
nenhum momento duvidei que se tratasse de um nome próprio; às vezes, a
gente vê até a maiúscula de certos sons compostos. Sei que sou bastante
dotado para a invenção de palavras que parecem desprovidas de sentido ou
que realmente o são até que eu o infundo à minha maneira, mas acho que
nunca suscitei um nome tão desagradável, tão grotesco e tão abominável
como o de Adbekunkus. Nome de demônio inferior, de triste subalterno, um
dos tantos que os grimórios invocam; nome desagradável como seu dono:
distasteful Adbekunkus. Mas ficar no mero sentimento não levava a nenhum
lugar; tampouco, é verdade, a análise analógica, os ecos mnemônicos, todos
os recursos associativos. Acabei aceitando que Adbekunkus não estava
ligado a nenhum elemento consciente; o lance neurótico parecia estar
justamente na imposição do silêncio a algo, a alguém que era um perfeito
vazio. Quantas vezes um nome surgido de uma distração qualquer acaba
suscitando uma imagem animal ou humana; dessa vez não, agora era
necessário que Adbekunkus se calasse, mas ele jamais se calaria, porque
jamais tinha falado ou gritado. Como lutar contra essa concreção de vazio?
Adormeci um pouco como ele, oco e ausente.
Amor 77
P
essoas dignas de crédito advertiram que o autor destas informações
conhece de forma quase doentia o sistema de transportes
subterrâneos da cidade de Paris, e que sua tendência a voltar ao
assunto revela recônditos no mínimo inquietantes. Porém, como
calar as notícias sobre o restaurante que circula no metrô e provoca
comentários contraditórios nos mais diversos meios? Nenhuma publicidade
frenética o divulgou entre a possível clientela; as autoridades guardam um
silêncio talvez incômodo, e só a lenta mancha de óleo da vox populi abre
passagem a tantos metros de profundidade. Não é possível que uma
inovação como essa se limite ao perímetro privilegiado de uma urbe que
pensa que tudo é permitido; é justo e até mesmo necessário que o México, a
Suécia, a Uganda e a Argentina se inteirem inter alia de uma experiência
que vai muito além da gastronomia.
A ideia deve ter partido do Maxim’s, já que esse templo da comida
ganhou a concessão do vagão-restaurante, inaugurado quase
silenciosamente em meados do ano em curso. A decoração e o equipamento
parecem ter repetido sem imaginação especial a atmosfera de qualquer
restaurante ferroviário, só que neste se come infinitamente melhor, ainda
que a um preço também infinitamente, detalhes que por si só bastam para
selecionar a clientela. Não falta quem pergunte com perplexidade qual a
razão de promover um empreendimento tão refinado no contexto de um
meio de transporte tão cafona como o metrô; outros, dentre os quais se
conta este autor, guardam o silêncio consternado que tal questão merece,
pois a resposta está obviamente contida na pergunta. Nesses cumes da
civilização ocidental, pouco interessa agora a passagem monótona de um
Rolls-Royce para um restaurante de luxo, entre galões e reverências, porém
é fácil imaginar a arrepiante delícia que é descer as escadas sujas do metrô e
pôr o bilhete na ranhura do mecanismo que permite o acesso às plataformas
invadidas pelo número, o suor e o cansaço das multidões que saem de
fábricas e escritórios para voltar a suas casas, e esperar entre boinas, gorros
e casaquinhos de qualidade duvidosa a chegada do trem no qual apareça um
vagão que os viajantes vulgares só poderão contemplar no breve instante
em que ele parar. O deleite, por sinal, vai muito além dessa primeira e
insólita experiência, como se explicará em seguida.
A ideia motriz de tão brilhante iniciativa tem antecedentes ao longo da
história, das expedições de Messalina a Suburra até os passeios hipócritas
de Harun al-Raschid pelas ruelas de Bagdá, sem falar do gosto inato, em
toda aristocracia autêntica, por contatos clandestinos com a pior ralé e a
canção norte-americana “Let’s Go Slumming”. Forçada por sua condição a
circular em automóveis particulares, aviões e trens de luxo, a grande
burguesia parisiense por fim descobre algo que até agora consistia em
escadas que se perdem nas profundezas e que só se enfrentam em raras
ocasiões e com acentuada repugnância. Numa época em que os operários
franceses tendem a renunciar às reivindicações que tanta fama lhes deram
na história de nosso século, desde que possam pôr as mãos no volante de
um carro próprio e se plantar diante de uma tela de TV em suas escassas
horas de folga, quem é que vai se escandalizar com uma burguesia
endinheirada que vira as costas para coisas que ameaçam se tornar comuns
e procura, com uma ironia que seus intelectuais não deixarão de apontar,
um terreno que aparentemente proporciona a máxima proximidade com o
proletariado e que ao mesmo tempo o distancia muito mais que na vulgar
superfície urbana? É inútil dizer que os concessionários do restaurante e a
própria clientela seriam os primeiros a rejeitar, indignados, um propósito
que de algum modo poderia parecer irônico; afinal de contas, basta reunir o
dinheiro necessário para entrar no restaurante e ser servido como qualquer
cliente, e sabe-se muito bem que muitos dos mendigos que dormem nos
bancos do metrô têm imensas fortunas, bem como os ciganos e os dirigentes
de esquerda.
A administração do restaurante concorda, naturalmente, com tais
retificações, mas nem por isso deixou de tomar as medidas que sua refinada
clientela tacitamente exige, já que o dinheiro não é a única senha de acesso
a um lugar baseado na decência, nos bons modos e no uso imprescindível
de desodorantes. Podemos até afirmar que essa forçosa seleção acabou
sendo o principal problema dos responsáveis pelo restaurante, e que não foi
nada simples encontrar uma solução ao mesmo tempo natural e estrita. Já se
sabe que as plataformas do metrô são comuns a todos, e que entre os vagões
da segunda e o da primeira classe não existe discriminação importante,
tanto que os fiscais costumam descuidar de suas verificações e nas horas de
movimento o vagão da primeira classe fica lotado sem que ninguém pense
em discutir se os passageiros têm ou não direito de ocupá-lo. Por
conseguinte, encaminhar os clientes do restaurante de modo a lhes permitir
um fácil acesso apresenta dificuldades que até agora parecem ter sido
superadas, embora os responsáveis quase nunca disfarcem a inquietação
que os invade no momento em que o trem para em cada estação. O método,
em linhas gerais, consiste em manter as portas fechadas enquanto o público
entra e sai dos vagões comuns, e abri-las quando faltam apenas alguns
segundos para a partida; para tal fim, o vagão-restaurante possui um
anúncio sonoro especial que indica o momento de abrir a porta para que
entrem ou saiam comensais. Essa operação deve ser realizada sem
obstruções de qualquer espécie, razão pela qual os guardas do restaurante
agem em sincronia com os da estação, formando em poucos instantes uma
fila dupla que enquadra os clientes e ao mesmo tempo impede que algum
intruso, um turista inocente ou um malvado provocador político consiga se
imiscuir no vagão-restaurante.
Naturalmente, graças à publicidade privada do estabelecimento, os
clientes são informados de que devem esperar o trem em determinado setor
da plataforma, setor que muda a cada quinze dias para despistar os
passageiros comuns, e que tem como código secreto um dos cartazes de
propaganda de queijo, detergente ou água mineral fixados nas paredes da
plataforma. Embora o sistema seja caro, a administração preferiu informar
essas alterações por meio de um boletim confidencial em vez de pôr uma
seta ou outra indicação precisa no lugar necessário, já que muitos jovens
desocupados ou os vagabundos que usam o metrô como hotel não
demorariam a se concentrar ali, nem que fosse só para admirar de perto a
brilhante cenografia do vagão-restaurante que, sem dúvida, despertaria seus
mais baixos apetites.
O boletim informativo contém outras indicações igualmente necessárias
para a clientela; de fato, é preciso que ela conheça a linha pela qual o
restaurante circulará nas horas do almoço e do jantar, e que essa linha mude
cotidianamente a fim de multiplicar as experiências agradáveis dos
comensais. Existe, assim, um calendário definido, que acompanha a
indicação das especialidades que o cozinheiro-chefe oferece em cada
quinzena, e embora a mudança diária multiplique as dificuldades da
administração em matéria de embarque e desembarque, ela evita que a
atenção dos passageiros comuns se concentre, talvez perigosamente, nos
dois períodos gastronômicos da jornada. Ninguém que não tenha recebido o
boletim pode saber se o restaurante percorrerá as estações que vão da
Mairie de Montreuil à Porte de Sèvres, ou se o fará na linha que une o
Château de Vincennes à Porte de Neuilly; ao prazer que representa para a
clientela visitar diversos trechos da rede do metrô e apreciar as diferenças
nem sempre inexistentes entre as estações, soma-se um importante
elemento de segurança diante das imprevisíveis reações que poderia causar
uma reiteração diária do vagão-restaurante em estações onde se dá uma
reiteração parecida de passageiros.
Aqueles que comeram ao longo de qualquer dos itinerários coincidem em
afirmar que ao prazer de uma mesa refinada se soma uma agradável e às
vezes útil experiência sociológica. Instalados de maneira a desfrutar de uma
vista direta pelas janelas que dão para a plataforma, os clientes têm a
oportunidade de presenciar em múltiplas formas, densidades e ritmos o
espetáculo de um povo laborioso que se encaminha para suas ocupações ou
que no fim da jornada se prepara para um bem merecido descanso, muitas
vezes dormindo em pé e antecipadamente nas plataformas. Para favorecer a
espontaneidade dessas observações, os boletins da administração
recomendam à clientela não concentrar excessivamente o olhar nas
plataformas, pois é preferível que só o façam entre um bocado e outro ou
nos intervalos de suas conversas; é evidente que um excesso de curiosidade
científica poderia provocar alguma reação intempestiva e decerto injusta
por parte de pessoas pouco versadas culturalmente para compreender a
invejável latitude mental das democracias modernas. Convém evitar
particularmente um exame ocular prolongado quando predominam na
plataforma grupos de operários ou de estudantes; a observação pode se dar
sem riscos no caso de pessoas que por sua idade ou sua vestimenta mostram
um grau mais elevado de relação possível com os comensais, e chegam até
a cumprimentá-los e a mostrar que sua presença no trem é um motivo de
orgulho nacional ou um sintoma positivo de progresso.
Nas últimas semanas, em que o conhecimento público desse novo serviço
chegou a quase todos os setores urbanos, nota-se um emprego maior de
forças policiais nas estações visitadas pelo vagão-restaurante, o que prova o
interesse dos órgãos oficiais pela manutenção de tão interessante inovação.
A polícia se mostra particularmente ativa no momento do desembarque dos
comensais, sobretudo quando se trata de pessoas isoladas ou de casais;
nesse caso, uma vez transposta a dupla linha de orientação traçada pelos
funcionários do metrô e do restaurante, um número variável de policiais
armados acompanha gentilmente os clientes até a saída do metrô, onde em
geral seu automóvel os espera, pois a clientela tem o bom cuidado de
organizar em detalhes suas agradáveis incursões gastronômicas. Essas
precauções são totalmente compreensíveis; em tempos em que a violência
mais irresponsável e injustificada transforma o metrô de Nova York, e às
vezes o de Paris, numa selva, a prudente precaução das autoridades merece
todos os elogios não só dos clientes do restaurante, mas dos passageiros em
geral, que, sem dúvida, agradecerão por não serem arrastados por manobras
suspeitas de provocadores ou de doentes mentais, quase sempre socialistas
ou comunistas, quando não anarquistas, e a lista continua e é mais longa
que esperança de pobre.
D
epois dos cinquenta anos começamos a morrer pouco a pouco em
outras mortes. Os grandes magos, os xamãs da juventude partem
sucessivamente. Às vezes já nem pensávamos tanto neles, tinham
ficado para trás na história; other voices, other rooms nos
chamavam. De alguma forma estavam sempre lá, mas como os quadros que
não se olham mais como no começo, os poemas que só perfumam
vagamente a memória.
Então — cada um deve ter suas sombras queridas, seus grandes
intercessores — chega o dia em que o primeiro deles invade horrivelmente
os jornais e o rádio. Talvez demoremos a perceber que nossa morte também
começou nesse dia; eu soube disso na noite em que, no meio de um jantar,
alguém comentou com indiferença uma notícia da televisão, Jean Cocteau
tinha acabado de morrer em Milly-la-Fôret, e um pedaço de mim também
caía morto sobre a toalha de mesa, entre as frases convencionais.
Os outros foram na sequência, sempre da mesma forma, o rádio ou os
jornais, Louis Armstrong, Pablo Picasso, Stravinsky, Duke Ellington, e
ontem à noite, enquanto eu tossia num hospital de Havana, ontem à noite na
voz de um amigo que me trazia até a cama o rumor do mundo lá de fora,
Charles Chaplin. Vou sair deste hospital. Vou sair curado, isso é certo, mas
pela sexta vez um pouco menos vivo.
Diálogo de ruptura
Para ler a duas vozes,
o que é impossível, claro.
–N
ão é tanto que a gente não saiba mais
— Sim, principalmente isso, não encontrar
— Mas quem sabe a gente tenha procurado isso desde o
dia em que
— Talvez não, e no entanto toda manhã em que
— Pura ilusão, chega a hora em que a gente se olha como
— Quem sabe, eu ainda
— Não basta querer, se ainda por cima nem existe prova de
— Está vendo, de nada vale essa certeza que
— Certo, agora cada um exige uma evidência diante da
— Como se beijar fosse passar um atestado, como se olhar
— Debaixo da roupa já não espera essa pele que
— Isso não é o pior, penso às vezes; tem outra coisa, as palavras quando
— Ou o silêncio, que então valia como
— A gente mal sabia abrir a janela
— E aquele jeito de virar o travesseiro procurando
— Como uma linguagem de perfumes úmidos que
— Você gritava sem parar enquanto eu
— Caíamos na mesma avalanche cega até
— Eu esperava ouvir aquilo que sempre
— E brincar de dormir entre os lençóis emaranhados e às vezes
— Daí xingamos entre carícias o despertador que
— Mas era doce levantar e disputar a
— E o primeiro, ensopado, dono da toalha seca
— O café e as torradas, a lista de compras, e aquilo
— Exatamente igual, só que em vez
— Como querer contar um sonho que depois de
— Passar o lápis sobre uma silhueta, repetir de memória algo tão
— Sabendo ao mesmo tempo como
— Ah, sim, mas esperando quase um encontro com
— Um pouco mais de geleia e de
— Obrigado, não tenho
Caçador de crepúsculos
S
e eu fosse cineasta, iria me dedicar a caçar crepúsculos. Já pensei
em tudo, menos no capital necessário para o safári, porque um
crepúsculo não se deixa caçar assim sem mais, quer dizer, às vezes
no começo é uma coisinha de nada, e assim que a gente o abandona
ele revela todas as suas plumas, ou ao contrário, é um esbanjamento
cromático e de repente nos parece um papagaio ensaboado, e nos dois casos
se supõe uma câmera com um bom filme colorido, despesas de viagem e
pernoites adiantados, vigilância do céu e escolha do horizonte mais
propício, coisas nada baratas. Em todo caso, acho que se eu fosse cineasta
daria um jeito de caçar crepúsculos, na verdade um único crepúsculo, mas
para chegar ao crepúsculo definitivo precisaria filmar quarenta ou
cinquenta, porque se fosse cineasta teria as mesmas exigências que tenho
com a palavra, as mulheres ou a geopolítica.
Só que não sou e me consolo imaginando o crepúsculo já caçado,
dormindo em sua longuíssima espiral enlatada. Meu plano: não apenas a
caça, mas também a restituição do crepúsculo a meus semelhantes que
pouco sabem dele, quer dizer, a gente da cidade que vê o sol se pôr, quando
vê, por detrás do edifício dos correios, dos apartamentos em frente ou num
sub-horizonte de antenas de TV e postes de luz. O filme seria mudo, ou
com uma banda sonora que registrasse apenas os sons contemporâneos do
crepúsculo filmado, provavelmente algum latido de cachorro ou zumbidos
de moscas, com sorte um sininho de ovelha ou uma onda se quebrando,
caso o crepúsculo fosse marinho.
Por experiência e relógio de pulso, sei que um bom crepúsculo não dura
mais de vinte minutos entre o clímax e o anticlímax, duas coisas que eu
eliminaria para deixar apenas seu lento jogo interno, seu caleidoscópio de
mutações imperceptíveis; teríamos um desses filmes que chamam de
documentário e que passam antes da Brigitte Bardot enquanto a gente vai se
acomodando e olha para a tela como se ainda estivesse no ônibus ou no
metrô. Meu filme teria uma legenda impressa (talvez uma voz em off) mais
ou menos assim: “O que se verá é o crepúsculo do dia 7 de junho de 1976,
filmado em X com filme M e com câmera fixa, sem interrupção durante Z
minutos. Informamos aos espectadores que além do crepúsculo não
acontece absolutamente nada, por isso recomendamos que ajam como se
estivessem em casa e façam o que lhes der na veneta; por exemplo, olhar o
crepúsculo, dar-lhe as costas, falar com os outros, passear etc. Lamentamos
não poder sugerir que fumem, o que é sempre muito bom na hora do
crepúsculo, mas as condições medievais das salas de cinema exigem, como
se sabe, a proibição desse excelente hábito. Em compensação, não é
proibido tomar um bom gole da garrafinha de bolso que o distribuidor do
filme vende no foyer”.
Impossível prever o destino de meu filme; as pessoas vão ao cinema para
esquecer de si mesmas, e um crepúsculo sugere justamente o contrário,
talvez essa seja a hora em que nos vemos um pouco mais nus, pelo menos
comigo isso acontece, e é penoso e útil; talvez os outros também
aproveitem, nunca se sabe.
F
oi só começar e, pronto. Primeira linha que leio deste texto e já
quebro a cara porque não posso aceitar que o Gago esteja
apaixonado pela Lil; de fato, eu só soube disso várias linhas adiante,
mas aqui o tempo é outro, você por exemplo que começa a ler esta
página fica sabendo que não estou de acordo e assim descobre de antemão
que o Gago se apaixonou pela Lil, mas as coisas não são bem assim: você
ainda não estava aqui (e o texto também não) quando o Gago já era meu
amante; eu também não estou aqui porque por enquanto o assunto do texto
não é esse e eu não tenho nada a ver com o que vai acontecer quando o
Gago for ao cine Libertad para ver um filme do Bergman e entre dois
flashes de publicidade barata descobrir as pernas da Lil entre as suas e
exatamente como o Stendhal descreve começar uma fulgurante cristalização
(o Stendhal pensa que é progressiva, mas o Gago). Em outras palavras, eu
rejeito este texto onde alguém escreve que eu rejeito este texto; sinto-me
capturado, vexado, traído porque nem sequer sou eu quem diz isso, e sim
alguém que me manipula e me regula e me coagula, e eu diria que ainda por
cima zomba de mim, está escrito com todas as letras: eu diria que ainda por
cima zomba de mim.
Também zomba de você (que começa a ler esta página, como está escrito
lá em cima) e, como se não bastasse, da Lil, que ignora não só que o Gago é
meu amante, mas também que o Gago não entende nada de mulheres ainda
que no cine Libertad etc. Como posso aceitar que na saída já estejam
falando do Bergman e da Liv Ullmann (os dois leram as memórias da Liv e
claro, assunto para uísque e grande fraternização estético-libidinosa, o
drama da atriz mãe que quer ser mãe sem deixar de ser atriz com o
Bergman por trás na maioria das vezes grande filho da puta no plano
paternal e marital): tudo isso vai até as oito e quinze quando a Lil diz vou
pra casa, mamãe está meio doente, o Gago eu te levo, meu carro está
estacionado na praça Lavalle, e a Lil tudo bem, o senhor me fez beber
demais, o Gago com licença, a Lil é claro, a firmeza morna do antebraço nu
(diz assim, dois adjetivos, dois substantivos tal e qual) e eu tenho que
aceitar que entrem no Ford que tem, entre outras qualidades, a de ser meu,
que o Gago leve a Lil até San Isidro gastando minha gasolina, com o preço
que está, que a Lil lhe apresente a mãe artrítica mas versada no Francis
Bacon, uísque de novo e agora é uma pena que tenha que fazer todo o
caminho de volta até o centro, a Lil, vou pensar em você e a viagem vai ser
curta, o Gago, vou anotar aqui o telefone, a Lil, ah, obrigada, Gago.
É óbvio que eu não posso concordar de jeito nenhum com coisas que
pretendem modificar a realidade profunda; ainda acredito que o Gago não
foi ao cinema nem conheceu a Lil, embora o texto tente me convencer e,
portanto, me desesperar. Tenho que aceitar um texto simplesmente porque
ele diz que tenho que aceitar um texto? Posso, por outro lado, me inclinar
diante do que uma parte de mim mesmo considera de uma pérfida
ambiguidade (porque talvez sim; talvez o cinema), mas pelo menos as
frases seguintes levam o Gago ao centro onde deixa o carro mal estacionado
como sempre, sobe até meu apartamento sabendo que estou à sua espera no
final deste parágrafo já longo demais como toda espera do Gago, e depois
de tomar banho e vestir o roupão laranja que lhe dei de aniversário vem se
recostar no divã onde estou lendo com alívio e amor que o Gago vem se
recostar no divã onde estou lendo com alívio e amor, perfumado e insidioso
é o Chivas Regal e o tabaco loiro da meia-noite, seu cabelo cacheado onde
afundo suavemente a mão para provocar um primeiro gemido sonolento,
sem a Lil nem o Bergman (que delícia ler exatamente isto, sem a Lil nem o
Bergman) até o momento em que começarei devagarinho a afrouxar o cinto
do roupão laranja, minha mão descerá pelo peito liso e morno de Gago,
andará na espessura do seu ventre procurando o primeiro espasmo, já
enlaçados derivaremos para o quarto e cairemos juntos na cama, procurarei
sua garganta onde tão docemente gosto de mordiscá-lo e ele murmurará só
um instante, murmurará espere um instante que preciso telefonar. Para a Lil,
of course, cheguei bem, obrigado, silêncio, então nos vemos amanhã às
onze, silêncio, às onze e meia, combinado, silêncio, claro pra almoçar
bobinha, silêncio, disse bobinha, silêncio, por que isso de senhor, silêncio,
não sei mas é como se nos conhecêssemos há muito tempo, silêncio, você é
um tesouro, silêncio, e eu visto o roupão de novo e volto pra sala e pro
Chivas Regal, pelo menos me resta isso, o texto diz que pelo menos me
resta isso, que eu visto o roupão de novo e volto pra sala e pro Chivas Regal
enquanto o Gago continua no telefone com a Lil, inútil reler pra ter certeza,
diz bem isso, que eu volto pra sala e pro Chivas Regal enquanto o Gago
continua no telefone com a Lil.
A direção do olhar
Para John Barth
O escudo já não reflete o sol; sua lâmina apagada, que não parece de
bronze, contém a imagem do ferreiro que termina a descrição de uma
batalha, parece assiná-la em seu ponto mais intenso com a figura do herói
rodeado de inimigos, passando a espada pelo peito do mais próximo e
erguendo, para se defender, o escudo ensanguentado no qual pouco se
consegue ver entre o fogo e a cólera e a vertigem, a menos que essa imagem
nua seja a da mulher, que seja seu corpo o que se rende sem esforço à lenta
carícia do adolescente que pousou sua lança à beira de um manancial.
3. que, para quem não sabe, é farinha de grão-de-bico moída bem fina, e que misturada com açúcar fazia as delícias das crianças
argentinas do meu tempo. Há quem sustente que o gofio era feito com farinha de milho, mas só o dicionário da academia
espanhola proclama isso, e nesses casos, sabe como é. O gofio é um pó pardacento e vem nuns saquinhos de papel que as crianças
levam à boca com resultados que tendem a culminar em sufocação. Quando eu cursava o quarto ano em Banfield (Ferrocarril del
Sud), comíamos tanto gofio nos recreios que, de trinta alunos, só vinte e dois chegaram ao fim do curso. As professoras,
apavoradas, nos aconselhavam a respirar antes de ingerir o gofio, mas as crianças, juro, que luta. Finda essa explicação dos
méritos e deméritos de tão nutritiva substância, o leitor deverá subir à parte superior da página para se inteirar de que ninguém
III.
Q
uando era menino, ele a ouviu num disco crepitante cuja sofrida
baquelita não aguentava mais o peso dos pickups com diafragma
de mica e uma tremenda agulha de aço, a voz de Sir Harry Lauder
parecia vir de muito longe e era bem isso, tinha entrado no disco
pelas brumas da Escócia e agora saía no verão ofuscante do pampa
argentino. A canção era mecânica e rotineira, uma mãe se despedia do filho
que partia para longe e Sir Harry era uma mãe pouco sentimental embora
sua voz metálica (quase todas eram assim depois do processo de gravação)
ainda destilasse uma melancolia que já na época o menino Lucas começava
a frequentar em demasia.
Vinte anos depois, o rádio lhe trouxe um pedaço da canção na voz da
grande Ethel Waters. A dura, irresistível mão do passado o empurrou para a
rua, meteu-o na Casa Iriberri, e nessa noite ele ouviu o disco e acho que
chorou por muitas coisas, sozinho em seu quarto e bêbado de autopiedade e
de grapa de Catamarca, que é sabidamente lacrimogênea. Chorou sem saber
muito bem por que chorava, que obscuro apelo o chamava nessa balada que
agora, agora sim, adquiria todo o seu sentido, sua beleza brega. Na mesma
voz de quem havia tomado Buenos Aires de assalto com sua versão de
“Stormy Weather”, a velha canção voltava a uma provável origem sulina,
resgatada da trivialidade music hall com que Sir Harry a cantara. No fim, vá
saber se essa balada era da Escócia ou do Mississippi, em todo caso agora
ela se enchia de negritude desde as primeiras palavras:
So you’re going to leave the old home, Jim,
To-day you’re going away,
You’re going among the city folks to dwell…
Claro, dr. Freud, a aranha e tudo o mais. Mas a música é uma terra de
ninguém onde pouco importa que Turandot seja frígida ou Sigfried ariano
puro, os complexos e os mitos se resolvem em melodia, e daí só conta uma
voz murmurando as palavras da tribo, a recorrência do que somos, do que
vamos ser:
N
os apartamentos de hoje, como se sabe, o convidado vai ao
banheiro e os outros continuam falando de Biafra e de Michel
Foucault, mas alguma coisa paira no ar como se todo mundo
quisesse esquecer que tem ouvidos e ao mesmo tempo as orelhas
se orientassem para o lugar sagrado que naturalmente em nossa sociedade
encolhida fica apenas a três metros do lugar onde se desenrolam essas
conversas de alto nível, e é certo que apesar do esforço do convidado para
não manifestar suas atividades, e o dos interlocutores para ativar o volume
do diálogo, em algum momento irá reverberar um desses sons surdos que se
deixam ouvir nas circunstâncias menos indicadas, ou, na melhor das
hipóteses, o som patético de um papel higiênico de qualidade ordinária
quando se rasga um pedaço do rolo rosa ou verde.
Se o convidado que vai ao banheiro é Lucas, seu horror só é comparável à
intensidade da cólica que o obrigou a se trancar no ominoso reduto. Nesse
horror não há neuroses nem complexos, mas a certeza de um
comportamento intestinal recorrente, ou seja, de que tudo começará muito
bem, suave e silenciosamente, mas já perto do final, guardando a mesma
relação da pólvora com os perdigotos num cartucho de caça, uma detonação
daquelas horrorosas fará tremer as escovas de dentes em seus suportes e
agitará a cortina de plástico do chuveiro.
Lucas não pode fazer nada para evitar; já tentou todos os métodos, tais
como se inclinar até tocar o chão com a cabeça, jogar-se para trás a ponto
de os pés tocarem a parede em frente, ficar de lado e até mesmo, recurso
supremo, segurar as nádegas e separá-las o máximo possível para aumentar
o diâmetro do conduto tempestuoso. É inútil a multiplicação de
silenciadores tais como jogar sobre as coxas todas as toalhas ao alcance e
até os roupões de banho dos donos da casa; quase sempre, no final do que
poderia ter sido uma agradável transferência, o peido final prorrompe
tumultuoso.
Quando é a vez de outra pessoa ir ao banheiro, Lucas treme por ele, pois
tem certeza de que de um segundo para outro irá ressoar o primeiro halali
da ignomínia; espanta-o um pouco que ninguém pareça se preocupar muito
com essas coisas, embora seja óbvio que ninguém está desatento ao que está
acontecendo, e até tentam disfarçar com batidas de colherinhas nas xícaras
e arrastamentos de poltronas totalmente imotivados. Quando não acontece
nada, Lucas fica feliz e pede imediatamente outro conhaque, de modo que
acaba se traindo e todo mundo percebe que ele esteve tenso e angustiado
enquanto a sra. de Broggi satisfazia suas necessidades. Que diferente, pensa
Lucas, da simplicidade das crianças que aparecem no auge da reunião e
anunciam: Mamãe, quero fazer cocô. Que bem-aventurado, pensa Lucas em
seguida, o poeta anônimo que compôs aquela quadrinha onde se proclama
que não há prazer mais excelente/ que cagar bem lentamente/ nem prazer
mais delicado/ que depois de ter cagado. Para se elevar a tais alturas, esse
senhor devia estar livre de qualquer risco de ventosidade intempestiva ou
tempestuosa, a menos que o banheiro da casa ficasse no andar de cima ou
fosse aquela casinha de chapas de zinco separada do barraco por uma boa
distância.
Já instalado no terreno poético, Lucas se lembra de um verso de Dante no
qual os condenados avevan dal cul fatto trombetta, e com essa remissão
mental à mais alta cultura se considera um tanto desculpado pelas
meditações que pouco têm a ver com o que o dr. Berenstein está dizendo a
propósito da lei de aluguéis.
A malta é grande e variada, mas sabe-se lá por que ele agora foi pensar
especialmente nos Cedrón, e pensar nos Cedrón significa uma tal
quantidade de coisas que ele não sabe por onde começar. A única vantagem
de Lucas é que ele não conhece todos os Cedrón, só três, mas vá saber se no
fim isso é mesmo uma vantagem. Ele ouviu dizer que os irmãos são em
modesto número de seis ou nove, em todo caso ele conhece três deles e se
prepare que o bicho vai pegar.
Esses três Cedrón são o músico Tata (que na partida de nascimento foi
registrado como Juan, e aliás que absurdo que em espanhol essa certidão se
chame partida quando é justamente o contrário), Jorge, o cineasta, e
Alberto, o pintor. Lidar com eles em separado já é um caso sério, mas
quando eles resolvem se juntar e convidam você pra comer empanadas,
então são propriamente a morte em três tomos.
Da chegada, nem te conto, lá da rua já se ouve uma espécie de fragor num
dos andares mais altos, e se você cruza com um dos vizinhos parisienses vê
na cara deles essa palidez cadavérica de quem assiste a um fenômeno que
ultrapassa todos os parâmetros dessa gente estrita e amortecida. Nenhuma
necessidade de averiguar em que andar estão os Cedrón, porque o barulho
guia a gente pelas escadas até uma das portas que parece menos porta que
as outras e que além disso dá a impressão de estar incandescente devido ao
que acontece lá dentro, a tal ponto que não convém bater nela muito
seguido senão os nós dos dedos acabam virando carvão. Claro que em geral
a porta está entreaberta porque os Cedrón entram e saem o tempo todo e
também, pra que fechar uma porta quando ela propicia uma ventilação tão
boa com a escada.
O que acontece ao entrar torna impossível qualquer descrição coerente,
pois assim que se cruza a soleira uma menina segura seus joelhos e enche
sua capa de saliva, e ao mesmo tempo um guri que estava em cima da
estante de livros do saguão se atira em seu pescoço como um camicase, de
modo que se você teve a peregrina ideia de chegar com uma garrafa de
vinho tinto, o resultado imediato é uma vistosa poça no tapete. Isso não
preocupa ninguém, é claro, porque nesse mesmo instante surgem de
diferentes cômodos as mulheres dos Cedrón, e enquanto uma delas tira as
crianças de cima de você outras absorvem o malogrado borgonha com uns
panos que provavelmente datam do tempo das cruzadas. Nesse meio-tempo,
Jorge já lhe contou em detalhes dois ou três romances que pretende levar às
telas, Alberto contém outros dois garotos armados de arcos e flechas e, o
que é pior, dotados de singular pontaria, e Tata vem da cozinha com um
avental que em seus primórdios conheceu o branco e que o envolve
majestosamente dos sovacos pra baixo, deixando-o surpreendentemente
parecido com Marco Antonio ou com um desses sujeitos que vegetam no
Louvre ou trabalham como estátuas nos parques. A grande notícia
proclamada em uníssono por dez ou doze vozes é que tem empanada, em
cuja elaboração intervêm a mulher de Tata e Tata himself, mas cuja receita
foi consideravelmente melhorada por Alberto, o qual opina que deixar Tata
e sua mulher sozinhos na cozinha só pode levar à pior das catástrofes.
Quanto a Jorge, que não por acaso se recusa a ficar atrás nessa parada, já
produziu generosas quantidades de vinho e todo mundo, uma vez resolvidas
essas preliminares tumultuadas, se instala na cama, no chão ou onde quer
que não tenha uma criança chorando ou fazendo xixi, o que vem a ser o
mesmo em alturas diferentes.
Uma noite com os Cedrón e suas abnegadas senhoras (digo abnegadas
porque se eu fosse mulher, e ainda por cima mulher de um dos Cedrón, já
há muito tempo a faca do pão teria dado um fim voluntário a meus
sofrimentos; mas elas não só não sofrem como são ainda piores que os
Cedrón, o que me deixa exultante pois é bom que alguém chova no
molhado de vez em quando e acho que elas fazem isso o tempo todo), uma
noite com os Cedrón é uma espécie de resumo sul-americano que explica e
justifica a estupefata admiração com que os europeus veem sua música, sua
literatura, sua pintura e seu cinema ou teatro. Agora que penso nisso,
lembro de uma coisa que me contaram os Quilapayún, que são uns
cronópios tão enlouquecidos como os Cedrón, mas todos músicos, e não dá
pra saber se isso é melhor ou pior. Durante uma turnê pela Alemanha (a
Oriental, mas acho que nesse caso tanto faz), os Quilas resolveram fazer um
churrasco ao ar livre e à moda chilena, mas pra surpresa geral descobriram
que naquele país não se pode fazer piquenique no bosque sem permissão
das autoridades. A permissão não foi difícil, devo reconhecer, e na polícia
levaram isso tão a sério que na hora de acender a fogueira e dispor os
animaizinhos em suas respectivas grelhas, apareceu um caminhão do corpo
de bombeiros, corpo que se espalhou pelas adjacências do bosque e passou
cinco horas cuidando pra que o fogo não fosse se propagar pelos veneráveis
abetos wagnerianos e outros vegetais que abundam nos bosques teutônicos.
Se não me falha a memória, vários desses bombeiros acabaram se
empanturrando, como corresponde ao prestígio da corporação, e naquele dia
houve uma confraternização pouco frequente entre fardados e civis. É
verdade que a farda dos bombeiros é a menos filha da puta de todas as
fardas, e que no dia em que, com a ajuda de milhões de Quilapayún e de
Cedrón, jogarmos no lixo todas as fardas sul-americanas, só vão se salvar as
dos bombeiros, e até inventaremos modelos mais vistosos pra que os
rapazes fiquem contentes enquanto apagam incêndios ou salvam pobres
garotas ultrajadas que decidiram se jogar no rio por falta de coisa melhor.
Nesse meio-tempo, as empanadas diminuem numa velocidade digna dos
que se olham com um ódio feroz porque este sete e o outro só cinco e de
repente termina o vaivém de travessas e algum infeliz sugere um café como
se isso fosse alimento. Quem sempre parece ter menos interesse são as
crianças, cujo número continuará sendo um enigma pra Lucas, pois mal
uma delas desaparece atrás de uma cama ou no corredor, outras duas
irrompem de um armário ou escorregam pelo tronco de um fícus até caírem
sentadas em plena travessa de empanadas. Esses infantes fingem um certo
desprezo por tão nobre produto argentino, com o pretexto de que suas
respectivas mães já os alimentaram precavidamente meia hora antes, mas a
julgar pela forma como as empanadas desaparecem é preciso admitir que
são um elemento importante no metabolismo infantil, e que se Herodes
estivesse lá naquela noite as coisas seriam diferentes e em vez de doze
empanadas Lucas poderia ter comido dezessete, ainda que com os
intervalos necessários pra molhar a goela com um par de litros de vinho
que, como se sabe, assenta a proteína.
Por cima, por baixo e entre as empanadas se espalha um clamor de
declarações, perguntas, protestos, gargalhadas e demonstrações gerais de
alegria e carinho que criam uma atmosfera diante da qual um conselho de
guerra dos tehuelches ou dos mapuches pareceria o velório de um professor
de direito da avenida Quintana. De vez em quando se ouvem batidas no
teto, no chão e nas duas paredes contíguas, e quase sempre é Tata (locatário
do apartamento) quem informa que são apenas os vizinhos, razão pela qual
não é preciso ter a menor preocupação. Que já seja uma hora da manhã não
constitui um agravante, de maneira nenhuma, nem que às duas da manhã a
gente desça a escada de quatro em quatro cantando que te abrás en las
paradas/ con cafishos milongueros. Já houve tempo suficiente pra resolver
a maioria dos problemas do planeta, combinamos de sacanear um punhado
de gente que merece, e como!, as cadernetinhas se encheram de telefones e
endereços e de encontros marcados em cafés e em outros apartamentos, e
amanhã os Cedrón vão se dispersar porque Alberto volta pra Roma, Tata sai
com seu quarteto pra cantar em Poitiers, e Jorge se manda sabe-se lá pra
onde mas sempre com o fotômetro na mão, e tente segurá-lo. Não é inútil
acrescentar que Lucas volta pra casa com a sensação de carregar nos
ombros uma espécie de abóbora cheia de moscas, Boeings 707 e vários
solos superpostos de Max Roach. Mas que importa a ressaca se lá embaixo
tem algo quentinho que devem ser as empanadas, e entre embaixo e em
cima tem outra coisa ainda mais quentinha, um coração que repete que
caras foda, que caras foda, que grandes fodidos, que insubstituíveis fodidos,
puta que os pariu.
L
ucas na engraxataria perto da Plaza de Mayo, passe graxa preta no
esquerdo e amarela no direito. O quê? Preta aqui e amarela aqui.
Mas senhor. Aqui você passa a preta, garoto, e agora chega porque
preciso me concentrar nas notícias do turfe.
Coisas assim nunca são fáceis, parece pouco mas é quase como Copérnico
e Galileu, essas sacudidas fortes na figueira que deixam todo mundo
olhando pro teto. Dessa vez, por exemplo, tem o espertinho da vez que lá do
fundo da engraxataria fala para o do lado que os bichas não sabem mais o
que inventar, tchê, então Lucas se desliga da possível barbada no quarto
páreo (jóquei Paladino) e quase docemente consulta o engraxate: o que você
acha, dou o pontapé na bunda com o amarelo ou com o preto?
O engraxate já não sabe a que sapato se dedicar, terminou o preto e não se
decide, realmente não se decide a começar o outro. Amarelo, reflete Lucas
em voz alta, e isso ao mesmo tempo é uma ordem, melhor com o amarelo
que é uma cor dinâmica e ousada, o que está esperando? Sim senhor agora
mesmo. O do fundo começou a se levantar para vir investigar esse lance do
pontapé, mas o deputado Poliyatti, que não à toa é presidente do clube
Unione e Benevolenza, manifesta sua experimentada elocução, senhores,
não façam onda, já chega as isóbaras que temos, é incrível o que se sua
nesta urbe, o incidente é nímio e gosto não se discute, e considerem que a
delegacia fica aí defronte e os tiras andam hiperestésicos depois da última
estudantina ou juvenília, como dizemos aqueles que já deixaram para trás as
borrascas da primeira etapa da existência. Isso, doutor, aprova um dos
lambe-botas do deputado, aqui não se permitem as vias de fato. Ele me
insultou, diz o do fundo, eu me referia aos veados em geral. Pior ainda, diz
Lucas, em todo caso vou estar lá na esquina nos próximos quinze minutos.
Que graça, diz o do fundo, bem na frente da delegacia. Claro, diz Lucas, ou
será que além de bicha você pensa que eu sou imbecil. Senhores, proclama
o deputado Poliyatti, este episódio já pertence à história, não há lugar para
um duelo, por favor não me obriguem a apelar para meus foros e coisas
assim. Isso, doutor, diz o lambe-botas.
E assim Lucas vai para a rua e seus sapatos brilham qual girassol à direita
e Oscar Peterson à esquerda. Ninguém vem procurá-lo no prazo dos quinze
minutos, o que lhe dá um não desprezível alívio, que ele festeja no ato com
uma cerveja e um cigarro de tabaco negro, a fim de manter a simetria
cromática.
S
eria fácil demais comprar a torta na confeitaria “Los dos Chinos”;
até Gladis iria notar, apesar de ela ser um tanto míope, e Lucas
pondera que vale a pena passar metade do dia preparando
pessoalmente um presente cuja destinatária merece isso e muito
mais, mas pelo menos isso. Desde cedo ele já percorre o bairro comprando
farinha flor de trigo e açúcar de cana, depois lê atentamente a receita da
torta Cinco Estrelas, obra-prima de dona Gertrudis, a mãe de todas as boas
mesas, e a cozinha de seu apartamento em pouco tempo se transforma numa
espécie de laboratório do dr. Mabuse. Os amigos que passam para vê-lo a
fim de discutir os prognósticos hípicos não demoram a ir embora ao sentir
os primeiros sintomas de asfixia, pois Lucas peneira, coa, mistura e polvilha
os diversos e delicados ingredientes com tanta paixão que o ar tende a se
tornar impróprio para suas funções usuais.
Lucas tem experiência no assunto e além disso a torta é para Gladis, o que
significa várias camadas de massa folhada (não é fácil fazer uma boa massa
folhada), entre as quais vão se dispondo refinadas geleias, amêndoas
laminadas da Venezuela, coco ralado mas não só ralado e sim moído até a
desintegração atômica num almofariz de obsidiana; a isso se acrescenta a
decoração externa, modulada na paleta de Raúl Soldi mas com arabescos
consideravelmente inspirados em Jackson Pollock, exceto na parte mais
austera, dedicada à inscrição, SOMENTE PARA TI, cujo relevo quase
assustador é garantido por cerejas e tangerinas em calda que Lucas compõe
em Baskerville corpo catorze, o que dá uma nota quase solene à dedicatória.
Para Lucas, levar a torta Cinco Estrelas numa travessa ou num prato é de
uma vulgaridade digna de banquete no Jockey Club, de maneira que a
instala com delicadeza numa bandeja de papelão branco cujo tamanho
excede um pouco o da torta. Na hora da festa, ele põe seu terno listrado e
atravessa o saguão repleto de convidados levando a bandeja com a torta na
mão direita, façanha por si só notável, enquanto com a esquerda
amavelmente afasta maravilhados parentes e um punhado de penetras que
na mesma hora juram preferir morrer como heróis a ter de renunciar à
degustação do esplêndido presente. Por isso, atrás de Lucas logo se forma
uma espécie de cortejo repleto de gritos, aplausos e borborigmos de saliva
propiciatória, e a entrada de todos no salão não fica muito longe de uma
versão provincial de Aída. Entendendo a gravidade do momento, os pais de
Gladis juntam as mãos num gesto muito conhecido mas nem sempre bem-
visto, e a homenageada deixa uma conversa repentinamente insignificante
para se adiantar com todos os dentes na primeira fila e os olhos fitando o
teto. Feliz, satisfeito, sentindo que tantas horas de trabalho culminam em
algo que se aproxima da apoteose, Lucas arrisca o gesto final da Grande
Obra: sua mão se eleva no ofertório da torta, depois a inclina perigosamente
diante da ansiedade pública e a joga na cara de Gladis. Tudo isso só leva
mais tempo do que o que Lucas demora para reconhecer a textura do
empedrado da rua, envolto em tal chuva de pontapés que deixariam o
dilúvio no chinelo.
C
omeça quase sempre do mesmo jeito, uma notável concordância
política em um monte de coisas e grande confiança recíproca, mas
em algum momento os militantes não literários irão se dirigir
amavelmente aos militantes literários e levantar pela arquienésima
vez a questão da mensagem, do conteúdo inteligível para o maior número
de leitores (ou auditores ou espectadores, mas sobretudo de leitores, ah,
sim).
Nessas ocasiões Lucas tende a ficar calado, pois seus livrinhos falam
vistosamente por ele, mas como às vezes o agridem mais ou menos
fraternalmente e já se sabe que não há lambada pior que a de um irmão,
Lucas faz cara de purgante e se esforça para dizer coisas como as seguintes,
a saber:
— Companheiros, a questão jamais será levantada
por escritores que entendam e vivam sua tarefa
como as carrancas de proa, que se adiantam
ao fluxo da nau, recebendo
todo o vento e o sal das espumas. Ponto.
E direi, em confiança,
que seria mesmo um luxo
se desse pra frear o fluxo
de uma nau enquanto avança. (Isso aqui ficou supimpa.)
Mas há leis científicas que negam
a possibilidade de tão contraditório esforço,
e há outra coisa, simples e grave:
não se conhecem limites para a imaginação
que não sejam os do verbo,
a linguagem e a invenção são inimigas fraternas
e dessa luta nasce a literatura,
o dialético encontro da musa com o escriba,
o indizível buscando sua palavra,
a palavra se negando a dizê-lo
até que lhe torcemos o pescoço
e o escriba e a musa se conciliam
nesse estranho instante que mais tarde
chamaremos de Vallejo ou Maiakóvski.
U
ma vez Lucas foi operado de apendicite e, como o cirurgião era
um porco, o corte infeccionou e a coisa ia de mal a pior porque
além da supuração em radiante tecnicolor Lucas se sentia mais
acabado que um figo seco. Nesse momento entram Dora e
Celestino e lhe dizem vamos agora mesmo pra Londres, venha passar uma
semana, não posso, geme Lucas, acontece que, bah, eu troco os curativos,
diz Dora, no caminho compramos água oxigenada e curativos, e no fim eles
pegam o trem e o ferry e Lucas se sente morrer porque embora o corte não
doa absolutamente nada, pois não tem nem três centímetros, mesmo assim
ele imagina o que está acontecendo debaixo da calça e da cueca, e quando
finalmente chegam ao hotel e ele vai olhar acontece que não tem nem mais
nem menos supuração que na clínica, e então Celestino diz está vendo, em
compensação aqui você vai ter a pintura de Turner, Laurence Olivier e os
steak and kidney pies que são a alegria da minha vida.
No dia seguinte, depois de caminhar quilômetros Lucas está perfeitamente
curado, Dora ainda lhe põe dois ou três curativos pelo puro prazer de lhe
puxar os pelos, e desde esse dia Lucas considera que descobriu a
traumatoterapia que, como se vê, consiste em fazer exatamente o contrário
do que mandam Esculápio, Hipócrates e o dr. Fleming.
Em numerosas ocasiões Lucas, que tem bom coração, pôs seu método em
prática, com resultados surpreendentes na família e entre os amigos. Por
exemplo, quando sua tia Angustias pegou um resfriado em tamanho natural
e passava dias e noites espirrando com o nariz cada vez mais parecido com
o de um ornitorrinco, Lucas se fantasiou de Frankenstein e a esperou atrás
de uma porta com um sorriso cadavérico. Depois de proferir um grito
horripilante, tia Angustias caiu desmaiada sobre as almofadas que Lucas
precavidamente preparara, e quando os parentes a acordaram do desmaio a
tia estava tão ocupada contando o que tinha acontecido que não se lembrava
de espirrar, sem contar que durante várias horas ela e o resto da família só
pensavam em correr atrás de Lucas munidos de paus e correntes de
bicicleta. Quando o dr. Feta restabeleceu a paz e todos se reuniram para
comentar os acontecimentos e tomar uma cerveja, Lucas comentou
distraído que a tia estava perfeitamente curada do resfriado, ao que, e com a
falta de lógica habitual nesses casos, a tia respondeu que essa não era uma
boa razão para que seu sobrinho se portasse como um filho da puta.
Coisas como essa desanimam Lucas, mas vez por outra ele aplica em si
mesmo ou testa nos outros seu infalível sistema, e então, quando don
Crespo anuncia que não está bom do fígado, diagnóstico sempre
acompanhado da mão segurando as entranhas e os olhos como a santa
Teresa de Bernini, Lucas providencia que sua mãe faça o guisado de
repolho com salsichas e banha de porco que don Crespo ama quase mais
que jogar na loteca, e na altura do terceiro prato já se vê que o doente volta
a se interessar pela vida e seus alegres jogos, e depois disso Lucas o
convida para comemorar com a grapa catamarquenha que assenta a gordura.
Quando a família se dá conta dessas coisas há uma tentativa de
linchamento, mas no fundo começam a respeitar a traumatoterapia, que eles
chamam de toterapia ou traumatota, para eles tanto faz.
C
om a mesma estufada satisfação de uma galinha, de quando em
quando Lucas bota um soneto. Que ninguém estranhe: ovo e
soneto se parecem no que têm de rigoroso, de acabado, de terso,
de fragilmente duro. Efêmeros, incalculáveis, o tempo e algo
como a fatalidade os reiteram, idênticos e monótonos e perfeitos.
Assim, durante boa parte de sua vida Lucas botou algumas dúzias de
sonetos, todos excelentes e alguns decididamente geniais. Embora a forma
rigorosa e cerrada não deixe muito espaço para inovações, seu estro (na
primeira e também na segunda acepção) tentou verter vinho novo em odre
velho, apurando as aliterações e os ritmos, sem falar dessa velha maníaca, a
rima, que o levou a fazer coisas tão extenuantes como emparelhar Drácula
com mácula. Mas já faz tempo que Lucas se cansou de operar internamente
no soneto e decidiu enriquecê-lo em sua própria estrutura, coisa
aparentemente demencial, dada a inflexibilidade quitinosa desse caranguejo
de catorze patas.
Assim nasceu o “Zipper Sonnet”, título que revela uma culposa
indulgência para com as infiltrações anglo-saxãs em nossa literatura, mas
que Lucas esgrimiu depois de considerar que o termo “fecho ecler” era
penetrantemente estúpido, e que “fecho-relâmpago” não melhorava a
situação. O leitor já deve ter entendido que esse soneto pode e deve ser lido
como quem sobe e desce um “zíper”, o que já é bom, mas que além disso a
leitura de baixo para cima não dá exatamente na mesma que a de cima para
baixo, resultado óbvio como intenção, mas difícil como escritura.
Surpreende um pouco Lucas que qualquer uma das duas leituras dá (ou
em todo caso lhe dá) uma impressão de naturalidade, de é óbvio, de mas é
claro, de elementary my dear Watson, quando, para falar a verdade, a
fabricação do soneto lhe tomou um tempão. Como causalidade e
temporalidade são onímodas em qualquer discurso quando se quer
comunicar um significado complexo, por exemplo, o conteúdo de um
quarteto, sua leitura de ponta-cabeça perde toda coerência, ainda que crie
imagens ou relações novas, já que falham os nexos sintáticos e as passagens
que a lógica do discurso exige até nas associações mais ilógicas. Para fazer
pontes e passagens, a inspiração precisou funcionar de maneira pendular,
deixando o desenvolvimento do poema ir e vir à razão de dois ou no
máximo três versos, testando-os assim que saíam da pena (Lucas bota os
sonetos com uma pena, outra semelhança com a galinha) para ver se depois
de ter descido a escada era possível subir sem tropeços nefandos. O hic é
que catorze degraus são muitos degraus, e este “Zipper Sonnet” tem, em
todo caso, o mérito de uma perseverança maníaca, cem vezes interrompida
por palavrões e desalentos e bolas de papel no cesto pluf.
Mas por fim, hosana, eis aqui o “Zipper Sonnet” que só espera do leitor,
além de admiração, que estabeleça mental e respiratoriamente a pontuação,
já que se esta figurasse com seus sinais não haveria modo de passar pelos
degraus sem tropeçar feio.
ZIPPER SONNET
de arriba abajo o bien de abajo arriba
este camino lleva hacia sí mismo
simulacro de cima ante el abismo
árbol que se levanta o se derriba
ZIPPER SONNET
de cima abaixo ou já de baixo acima
este caminho é o mesmo em seu tropismo
simulacro de cimo frente ao abismo
árvore que ora alteia ora declina
“Como você verá”, Haroldo lhe escrevia, “não é realmente uma versão: é
antes uma ‘contraversão’ muito cheia de licenças. Como não consegui uma
rima consoante adequada para acima (arriba), alterei a convenção legalista
do soneto e estabeleci uma rima toante, reforçada pela quase homofonia dos
sons nasais m e n (aciMA e DecliNA). Para justificar-me (preparar um
álibi) repeti o procedimento infrator nos pontos correspondentes da segunda
estrofe (escamoteação viciosa, transtrocada por uma pseudossimetria
também perversa).”
A esta altura da carta, Lucas começou a pensar que suas fadigas
zipperianas eram pouca coisa ao lado daquelas de quem se impusera a
tarefa de refazer lusitanamente uma escada de degraus castelhanos.
Turgimão veterano, ele estava em condições de avaliar a montagem operada
por Haroldo; um belo jogo poético inicial se potencializava e agora, coisa
igualmente bela, Lucas podia saborear seu soneto sem o inevitável desgaste
que significa ser o autor e tender, portanto e insensatamente, à modéstia e à
autocrítica. Nunca pensaria em publicar seu soneto com notas, mas em
compensação adorou reproduzir as de Haroldo, que de alguma forma
parafraseavam suas próprias dificuldades na hora de escrevê-lo.
“Nos tercetos”, continuava Haroldo, “deixo firmada (confessada e
atestada) minha infelix culpa dragomânica (N.B.: dragomaníaca). O
‘antagonista’ de seu soneto é agora explicitamente um ‘contraventor’; o
‘obstinado hacedor de la poesía’, um re-fator contumaz (sem perda da
conotação forense…) desta poesia (deste poema, do ‘Zipper Sonnet’).
Último registro do échec impuni: braço (brazo) rimando imperfeitamente
com abaixo (abajo) nos versos terminais dos dois tercetos. Há também um
adjetivo ‘migratório’: alterna, que salta do primeiro verso de sua segunda
estrofe (‘alterna imagen’) para insinuar-se no último de meu segundo
terceto, ‘alterno braço’ (o gesto do tradutor como outridade irredenta e
duplicidade irrisória?).”
No balanço final desse sutil trabalho de Aracne, acrescentava Haroldo: “A
métrica, a autonomia dos sintagmas, a zip-leitura ao contrário, porém,
ficaram a salvo sobre as ruínas do vencido (embora não convencido)
traditraduttore; que assim, ‘derridianamente’, por não poder ultrapassá-las,
difere suas diferenças (différences)…”.
Lucas também havia diferido suas diferenças, porque se um soneto é em si
mesmo uma relojoaria que só excepcionalmente consegue dar a hora exata
da poesia, um zippersonnet exige, por um lado, o decurso temporal
corrente, e por outro, a conta ao contrário, que lançarão respectivamente
uma garrafa ao mar e um foguete ao espaço. Agora, com a biópsia operada
por Haroldo de Campos em sua carta, podia-se ter uma ideia da máquina;
agora se podia publicar o duplo zipper argentino-brasileiro sem cair no
pedantismo. Animado, otimista, mishkinianamente idiota como sempre,
Lucas começou a sonhar com outro zipper sonnet cuja dupla leitura fosse
uma contradição recíproca e ao mesmo tempo a fundação de uma terceira
leitura possível. Talvez consiga escrevê-lo; por enquanto o balanço é uma
chuva de bolas de papel, copos vazios e cinzeiros cheios. Mas é de coisas
assim que se alimenta a poesia, e um dia desses quem sabe alguém lhe diz,
ou diz a um terceiro, que vai retomar essa esperança para novamente
deleitar, contentar Violante.
À
s vezes suspeita neles uma estratégia concêntrica de leopardos
que se aproximassem paulatinamente de um centro, de uma besta
trêmula e à espreita, a razão do sonho. Mas acorda antes que os
leopardos cheguem a sua presa e só lhe resta o cheiro de selva e
de fome e de unhas. Com isso, apenas, ele tem de imaginar a besta, e não é
possível. Compreende que a caçada pode durar muitos outros sonhos, mas
lhe escapa o motivo dessa sigilosa demora, dessa aproximação sem fim. O
sonho não tem um propósito, e a besta não é esse propósito? Qual o sentido
de esconder repetidamente seu possível nome: sexo, mãe, altura, incesto,
gagueira, sodomia? Por quê, se o sonho é para isso, para finalmente lhe
mostrar a besta? Mas não, então o sonho é para que os leopardos continuem
sua espiral interminável e só lhe deixem um vislumbre de clareira na selva,
uma forma acocorada, um cheiro se estancando. Sua ineficácia é um
castigo, talvez uma antecipação do inferno; nunca saberá se a besta vai
despedaçar os leopardos, se vai levantar rugindo as agulhas de tricô da tia
que lhe fez aquela estranha carícia enquanto lhe lavava as coxas, uma tarde
na casa de campo, lá pelos anos vinte.
U
ma vertigem, uma brusca irrealidade. É então que a outra, a
ignorada, a dissimulada realidade pula como um sapo em plena
cara, digamos em plena rua (mas que rua?), certa manhã de
agosto em Marselha. Devagar, Lucas, vamos por partes, assim
não dá para contar nada coerente. Claro que. Coerente. Bom, tudo bem, mas
vamos tentar puxar o fio pela ponta do novelo, acontece que normalmente
se entra nos hospitais como doente, mas também é possível chegar lá na
qualidade de acompanhante, e foi isso que aconteceu com você há três dias,
mais precisamente na madrugada de anteontem, quando uma ambulância
trouxe Sandra e você com ela, você com a mão dela na sua, você vendo-a
em coma e delirando, você com o tempo exato de meter numa bolsa quatro
ou cinco coisas todas equivocadas ou inúteis, você só com a roupa do
corpo, que é tão pouca em agosto na Provença, calça e camisa e alpargatas,
você resolvendo em uma hora o hospital e a ambulância e Sandra se
negando e médico com injeção de calmante, de repente os amigos de sua
cidadezinha nas colinas ajudando o pessoal da maca a pôr Sandra na
ambulância, vagos acertos para amanhã, telefones, votos de melhoras, a
dupla porta branca se fechando cápsula ou cripta e Sandra na maca
delirando suavemente e você aos solavancos em pé ao lado dela porque a
ambulância tem de descer por um caminho de cascalho para chegar à
estrada, meia-noite com Sandra e dois enfermeiros e uma luz que já é de
hospital, tubos e frascos e cheiro de ambulância perdida em plena noite nas
colinas até chegar à autopista, bufar como quem toma impulso e se mandar
à toda com o duplo som de sua sirene, o mesmo som tantas vezes ouvido de
fora de uma ambulância e sempre com o mesmo aperto no estômago, a
mesma repulsa.
Claro que você conhecia o trajeto mas Marselha enorme e o hospital na
periferia, duas noites sem dormir não ajudam a entender as curvas nem os
acessos, a ambulância caixa branca sem janelas, só Sandra e os enfermeiros
e você quase duas horas até uma entrada, papelada, assinaturas, cama,
médico residente, cheque para a ambulância, gorjetas, tudo numa névoa
quase agradável, um torpor amigo agora que Sandra dorme e você também
vai dormir, a enfermeira trouxe uma poltrona extensível, que só de ver já
preludia os sonhos que nela se terão, nem horizontais nem verticais, sonhos
de trajetória oblíqua, de rins castigados, de pés pendurados no ar. Mas
Sandra dorme e então está tudo bem, Lucas fuma outro cigarro e
surpreendentemente a poltrona lhe parece quase confortável e já estamos na
manhã de anteontem, quarto 303 com uma grande janela que dá para serras
distantes e estacionamentos demasiado próximos onde operários de
movimentos lentos se deslocam entre tubos e caminhões e lixos, o
necessário para levantar o ânimo de Sandra e de Lucas.
Está tudo muito bem porque Sandra acorda aliviada e mais lúcida, brinca
com Lucas e vêm os residentes e o professor e as enfermeiras e acontece
tudo o que tem de acontecer num hospital de manhã, a esperança de sair
dali logo para voltar às colinas e ao descanso, iogurte e água mineral,
termômetro no bumbum, pressão arterial, mais papéis para assinar na
administração e é aí que Lucas, que desceu para assinar esses papéis e se
perde na volta e não encontra os corredores nem o elevador, parece ter a
primeira e ainda fraca sensação de sapo em plena cara, não dura nada
porque está tudo bem, Sandra não se moveu da cama e lhe pede que vá
comprar cigarros (bom sinal) e telefonar para os amigos para que saibam
como está tudo bem e como Sandra vai voltar rapidíssimo com Lucas para
as colinas e para a calma, e Lucas diz que sim meu amor, como não, mesmo
sabendo que esse lance de voltar rápido não vai ser nada rápido, procura o
dinheiro que por sorte se lembrou de trazer, anota os telefones e então
Sandra lhe diz que estão sem pasta de dentes (bom sinal) e sem toalhas
porque nos hospitais franceses você tem de trazer sua toalha e seu sabonete
e às vezes seus talheres, então Lucas faz uma lista de compras higiênicas e
acrescenta uma muda de camisa para ele e outra cueca e para Sandra uma
camisola e uma sandália porque naturalmente levaram Sandra descalça para
a ambulância e quem é que vai lembrar de coisas assim à meia-noite quando
já estão há dois dias sem dormir.
Dessa vez Lucas acerta na primeira tentativa o caminho até a saída, que
não é tão difícil, elevador para o térreo, uma passagem provisória de chapas
de compensado e chão de terra (estão modernizando o hospital e é preciso
seguir as setas que marcam os corredores embora às vezes não as marquem
ou marquem de duas maneiras), depois uma passagem compridíssima mas
esta de verdade, digamos a passagem titular com infinitas salas e escritórios
a cada lado, consultórios e radiologia, macas com maqueiros e doentes ou
só maqueiros ou só doentes, uma curva à esquerda e outra passagem com
tudo que já foi descrito e muito mais, um corredor estreito que dá num
cruzamento e por fim o corredor final que conduz à saída. São dez horas da
manhã e Lucas meio sonâmbulo pergunta para a senhora de Informações
onde conseguir os artigos da lista e a senhora lhe diz que ele tem de sair do
hospital pela direita ou pela esquerda, tanto faz, no fim chega-se aos centros
comerciais e claro, nada fica muito perto porque o hospital é enorme e
funciona num bairro excêntrico, qualificação que Lucas acharia perfeita se
não estivesse tão sonado, tão atordoado, tão atarantado, tão ainda no outro
contexto lá das colinas, de maneira que lá vai Lucas com seus chinelos e
sua camisa amarrotada pelos dedos da noite na poltrona de suposto repouso,
pega o rumo errado e acaba em outra ala do hospital, retorna pelas ruas
internas e finalmente dá com a porta de saída, até aí tudo bem, mesmo que
de quando em quando um pouco o sapo em plena cara, mas ele se agarra ao
fio mental que o une a Sandra lá em cima naquela ala já invisível e lhe faz
bem pensar que Sandra está um pouco melhor, que vai levar uma camisola
para ela (se encontrar) e pasta de dentes e sandália. Rua abaixo seguindo o
muro cascalhoso do hospital que lembra o de um cemitério, um calor que
espantou todo mundo, não há ninguém, só os carros tirando uma fina dele
ao passar porque a rua é estreita, sem árvores nem sombra, a hora zenital
tão louvada pelo poeta e que esmaga Lucas um pouco desanimado e
perdido, esperando ver por fim um supermercado ou pelo menos dois ou
três bazares, mas nada, mais de meio quilômetro para no fim depois de uma
guinada descobrir que Mamon não morreu, posto de gasolina o que já é
alguma coisa, loja (fechada) e mais abaixo o supermercado com velhas
carregadas de cestas saindo e entrando e carrinhos e estacionamentos cheios
de carros. Ali Lucas divaga pelas diferentes seções, encontra sabonete e
pasta de dentes mas falta todo o resto, não pode voltar sem a toalha e a
camisola de Sandra, pergunta à moça do caixa que o aconselha a pegar a
direita e depois a esquerda (não é exatamente a esquerda, mas quase) e a
avenida Michelet onde há um grande supermercado com toalhas e coisas do
gênero. Tudo parece um pesadelo porque Lucas está caindo de cansaço e
faz um calor terrível e não é uma área de táxis e cada nova indicação o
afasta mais e mais do hospital. Venceremos, diz Lucas enxugando o rosto, é
verdade que tudo é um pesadelo, Sandra minha ursinha, mas venceremos,
você vai ver, vai ter sua toalha e a camisola e a sandália, puta que os pariu.
Duas ou três vezes ele para e enxuga o rosto, esse suor não é natural,
parece quase medo, um absurdo desamparo no meio (ou no final) de uma
populosa urbe, a segunda da França, é como um sapo caindo de repente
entre seus olhos, já não sabe onde está realmente (está em Marselha, mas
onde, e esse onde tampouco é o lugar onde ele está), tudo soa ridículo e
absurdo e meio-dia em ponto, então uma senhora lhe diz ah, o
supermercado, vá por ali, depois vire à direita e vai dar no bulevar, em
frente está Le Corbusier e depois o supermercado, claro que sim, camisolas
com certeza, a minha por exemplo, de nada, lembre primeiro por ali e
depois vire.
Seus chinelos estão ardendo, a calça toda grudenta, sem falar da cueca,
que parece ter se tornado subcutânea, primeiro vá por ali e depois vire e, de
golpe, a Cité Radieuse, de golpe e contragolpe está diante de um bulevar
arborizado e ali em frente o célebre edifício Le Corbusier que vinte anos
antes ele visitou entre duas etapas de uma viagem pelo sul, só que na época
não havia nenhum supermercado atrás do edifício radiante e atrás de Lucas
não havia vinte anos a mais. Mas nada disso importa de verdade, porque o
edifício radiante está tão estropiado e tão pouco radiante como na primeira
vez que o viu. Não é isso que importa agora que está passando sob o ventre
do imenso animal de concreto para se aproximar das camisolas e das
toalhas. Não é isso, mas de qualquer modo é assim que acontece, justo no
único lugar que Lucas conhece nessa periferia marselhesa onde sem saber
como, espécie de paraquedista lançado às duas da manhã num território
desconhecido, num hospital labirinto, num avanço sem fim ao longo de
instruções e de ruas vazias de homens, pedestre solitário entre automóveis
feito bólidos indiferentes, e lá debaixo do ventre e das patas de concreto da
única coisa que conhece e reconhece no desconhecido, é ali que o sapo lhe
cai de verdade em plena cara, uma vertigem, uma brusca irrealidade, e é aí
que a outra, a ignorada, a dissimulada realidade se abre por um segundo
como um corte no magma que o circunda, Lucas vê dói treme cheira a
verdade, estar perdido e suando longe dos pilares, dos apoios, do conhecido,
do familiar, da casa nas colinas, das coisas na cozinha, das rotinas
deliciosas, longe até de Sandra que está tão perto mas onde porque agora
ele terá de perguntar novamente para voltar, jamais vai encontrar um táxi
nessa região hostil e Sandra não é Sandra, é um animalzinho dolorido numa
cama de hospital mas sim, exatamente, essa é Sandra, esse suor e essa
angústia são o suor e a angústia, Sandra é isso ali perto da incerteza e dos
vômitos, e a realidade última, o corte na mentira é estar perdido em
Marselha com Sandra doente e não a felicidade com Sandra na casa das
colinas.
Claro que essa realidade não vai durar, felizmente, claro que Lucas e
Sandra vão sair do hospital, que Lucas vai esquecer esse momento em que
sozinho e perdido se vê no absurdo de não estar nem sozinho nem perdido e
no entanto, e no entanto. Pensa vagamente (sente-se melhor, começa a
zombar dessas puerilidades) num conto lido há séculos, a história de uma
falsa banda de música num cinema de Buenos Aires. Deve haver algo
parecido entre o sujeito que imaginou esse conto e ele, vá saber o quê, em
todo caso Lucas dá de ombros (verdade, ele faz isso) e acaba encontrando a
camisola e a sandália, pena que não tem alpargatas para ele, coisa insólita e
até escandalosa justo no meio-dia de uma cidade do Midi.
T
odo mundo sabe que a Terra está separada dos outros astros por
uma quantidade variável de anos-luz. O que poucos sabem (na
verdade, só eu) é que Margarita está separada de mim por uma
quantidade considerável de anos-caracol.
A princípio pensei que se tratasse de anos-tartaruga, mas tive de
abandonar essa unidade de medida demasiado favorável. Por menos que
uma tartaruga caminhe, eu acabaria chegando em Margarita, já Osvaldo,
meu caracol preferido, não me dá a menor esperança. Sabe-se lá quando
iniciou a caminhada que o foi distanciando imperceptivelmente de meu
sapato esquerdo, depois que o orientei com extrema precisão para o rumo
que o levaria até Margarita. Repleto de alface fresca, cuidado e mimado
amorosamente, seu primeiro avanço foi promissor, e pensei, esperançoso,
que antes que o pinheiro do pátio ultrapassasse a altura do telhado, os
chifres prateados de Osvaldo entrariam no campo visual de Margarita
levando minha simpática mensagem; nesse meio-tempo, eu podia ser feliz
daqui imaginando sua alegria ao vê-lo chegar, a agitação de suas tranças e
de seus braços.
Talvez os anos-luz sejam todos iguais, mas não os anos-caracol, e Osvaldo
deixou de merecer minha confiança. Não que ele pare, pois pude verificar
por seu rastro argentado que ele prossegue em sua marcha e se mantém no
rumo certo, ainda que para ele isso signifique subir e descer incontáveis
paredes ou atravessar integralmente uma fábrica de cabelos de anjo. Mas
não é fácil comprovar essa meritória exatidão, e já fui detido duas vezes por
guardas enfurecidos a quem tive de contar as piores mentiras, já que a
verdade teria me valido uma chuva de socos. O triste é que Margarita,
sentada em sua poltrona de veludo cor-de-rosa, está à minha espera lá do
outro lado da cidade. Se em vez de Osvaldo eu tivesse lançado mão dos
anos-luz, já teríamos netos; mas quando se ama longa e docemente, quando
se quer chegar no final de uma paulatina esperança, é mais lógico escolher
os anos-caracol. É difícil demais decidir, no fim das contas, quais são as
vantagens e quais os inconvenientes dessas opções.
Completamos esta edição de Um tal
Lucas com os onze textos que aparecem
na sequência, publicados no volume
Papeles inesperados (Alfaguara, 2009).
(N. E.)
Um tal lucas (inesperado)
Hospital Blues
São como corvos, a gente não consegue nem se internar tranquilo num
hospital porque três horas depois lá estão eles perguntando se pode ser, se
não estão incomodando, em duas palavras, instalando-se por um bom
tempo. Eles vêm juntos, claro, porque Calac sem Polanco é como Polanco
sem Calac, e me trazem o jornal da tarde com o ar de quem fez um grande
sacrifício.
— É claro que não deve ser contagioso — diz Polanco, dando a impressão
de achar exatamente o contrário. — Melhor não te dar a mão, porque a
gente vem do âmbito ecológico com germes nocivos de todo tipo, e é
preciso pensar na sua situação.
— Mas fumar é conveniente — diz Calac, sentando-se na melhor cadeira
—, isso enfraquece o micróbio.
Sou grato a eles, claro, mas estou com febre (de Malta, parece) e cruzo os
dedos para que vão embora quanto antes.
— Está com cãibra nas mãos? — diz Calac. — Pode ser um sintoma útil
pro doutor.
Descruzo os dedos e vejo meu maço de cigarros entrar num ciclo de
diminuição acelerada.
— O hospital tem suas vantagens — afirma Polanco —, você relaxa das
tensões da vida, e essas fofinhas que circulam pelo corredor cuidam de você
e te dizem que está tudo bem, o que outros não se animariam a dizer, porque
numa dessas, vá saber.
— No seu caso, não tem problema — diz Calac, olhando duro para
Polanco. — Já fizeram o diagnóstico?
— Mais ou menos — digo. — Parece que tenho um vírus que anda por
toda parte, razão pela qual (sublinhado) muita tranquilidade, silêncio
(sublinhadíssimo), repouso, sono e ar puro.
— Pra tudo isso não há nada melhor que os amigos — diz Polanco —,
levantam seu ânimo e refrescam sua alma, uma vez um cachorro me
mordeu e, por via das dúvidas, fiquei dez dias no Instituto Pasteur, e olhe
só, o ambiente de lá era tão favorável que a turma do Café Toscano vinha
me ver, um dia até trouxeram um violão.
— E permitiam isso? — murmuro, horrorizado.
— No começo sim, mas depois o chefe da ala apareceu e disse que era da
opinião que eles também deviam fazer o tratamento antirrábico, e com isso
a frequência caiu bastante. As pessoas não entendem a joie de vivre, sabe
como é.
— Dá pra ver que aqui é diferente — admite Calac —, há mais cultura,
veja este lavatório e a prateleirinha debaixo do espelho. São detalhes, mas
expressam uma visão de mundo.
“Deve ser a febre”, penso.
— E como está indo com as enfermeiras, quer dizer, as nurses? — diz
Polanco.
— Nádega demais — respondo —, pois até agora essa é justamente a
única parte minha que elas colonizaram pra me crivar de antibióticos.
— Minha mãe do céu — diz Polanco. — Mas você não sabia que os
antibióticos são a pior ilusão da nossa época? Você vai ficar sem flora
intestinal e sem glóbulos vermelhos, vai se desidratar, arrisca ter
descalcificação molar, o ouvido se ressente, há transtornos vegetativos, o
metabolismo falha, e no fim…
— O que você achou da goleada do Racing? — diz Calac, rápido,
enquanto Polanco esfrega o tornozelo onde evidentemente acabam de lhe
desferir um pontapé como prólogo à mudança de assunto.
— Não pude ver o jogo — digo —, TV e rádio são proibidos aqui.
— Nesse caso — diz Calac, me olhando inquieto —, imagino que você
passe o tempo escrevendo.
— Sim.
— Ah. Então é melhor a gente ir embora.
— Não seja por isso… — apoia Polanco, já na porta.
— Fiquem mais um pouco — minto, como um vendedor de tapetes.
— É melhor você descansar — dizem os tártaros ao mesmo tempo, e até
fecham a porta ao desaparecer. Levo um tempo para superar a estupefação
de uma saída de cena dessas, e então entendo. A ideia de saberem que estou
escrevendo alguma coisa os deixa fora de si, obriga-os a tomar distância,
até que vão perdendo pouco a pouco o medo e recuperam a desenvoltura
que, entre outras coisas, os ajudou a ir embora com meus únicos cigarros.
Fico triste no crepúsculo do hospital. Afinal, por que eles ficam tão
inquietos? Nunca os tratei mal, que eu saiba. Ao contrário, tem muita gente
que os estima e se diverte com eles por meu intermédio. Por acaso eu os
mostrei, ainda agora, sob uma luz desfavorável? Voltem, tchê, tragam jornal
e cigarros. Voltem um dia desses, eu estarei melhor e podemos ficar de papo
até a enfermeira expulsá-los. Voltem, rapazes.
OBSERVAÇÕES INQUIETANTES
A ciência médica faz maravilhas nos hospitais, e está próximo o dia em que
terá derrotado definitivamente os variados germes, micróbios e vírus que
nos obrigam a nos asilar em suas brancas salas protetoras. A única coisa
que a ciência jamais conseguirá vencer são as migalhas de pão.
Eu as chamo de migalhas porque gosto da palavra, mas na verdade as
perigosas são as crostinhas ou casquinhas, aquilo que todo pão bem-nascido
dissemina em torno de si assim que o pegamos com fins de deglutição. Sem
que a gente perceba, parece haver silenciosas explosões na superfície do
pão, e quando pensamos que já o comemos acontece de as migalhas terem
saltado para os locais menos previsíveis, e lá estão, invencíveis e sigilosas,
prontas para o pior.
A gente exaure a imaginação tentando averiguar o que está acontecendo.
Depois de almoçar na cama, bem sentado, com as colchas e os lençóis
perfeitamente esticados, a bandeja sobre os joelhos como uma proteção
suplementar, como é possível que nesse instante em que suspiramos
satisfeitos e nos dispomos a acender um cigarro, uma migalha se incruste
dolorosamente bem ali onde as costas mudam de nome? Incrédulos,
pensamos que é uma reação alérgica, um inseto capaz de burlar a higiene do
hospital, qualquer coisa menos uma migalha; mas quando levantamos os
lençóis e a região martirizada, toda dúvida se desvanece: a migalha está lá,
convicta e confessa, a menos que tenha grudado com todos os seus dentes
em nossa pele mais sensível e tenhamos de arrancá-la com as unhas.
Fiz o teste: depois de me levantar indignado, estendi a cama em todo o seu
comprimento e procedi a uma minuciosa sucessão de sacudidas e sopros até
ter certeza de que o lençol ficou tão impoluto quanto uma banquisa polar.
Novamente deitado, chega o agradável momento de abrir o romance que
estou lendo e acender o cigarro, que combina tão bem com o crepúsculo.
Transcorre um momento de perfeita paz, o hospital começa a dormir como
um grande dragão bondoso; então, em plena panturrilha, uma fisgada
pequenina, mas não menos devastadora. Pulo da cama com raiva e olho;
olho sem necessidade, pois já sei que está ali, microscópica e perversa.
Sempre estarão ali, apesar de Pasteur, do dr. Fleming e dos potentes
aspiradores que engolem tudo; tudo, claro, menos ela. Ah, se pudéssemos
dizer: o pão nosso de cada dia nos dai hoje, mas ficai com as migalhas!
OS DIÁLOGOS IMPOSSÍVEIS
Como a clínica onde meu amigo Lucas se internou é uma clínica cinco
estrelas, os-doentes-sempre-têm-razão, e dizer não quando eles pedem
coisas absurdas é um problema sério para as enfermeiras, uma mais fofa
que a outra, e quase sempre dizendo sim, pelos motivos precedentes.
Não é possível, naturalmente, atender ao pedido do gordo do quarto 12,
que em plena cirrose hepática pede a cada três horas uma garrafa de gim,
mas em compensação com que prazer, com que satisfação as meninas
dizem sim, como não, claro, quando Lucas, que foi para o corredor
enquanto arejavam seu quarto e descobriu um buquê de margaridas na sala
de espera, pede quase tímido que o deixem levar uma margarida para seu
quarto a fim de alegrar o ambiente.
Depois de pousar a flor na mesinha de cabeceira, Lucas toca a campainha
e pede um copo com água para dar a sua margarida uma postura mais
adequada. Assim que trazem o copo e instalam a flor, Lucas observa que a
mesinha de cabeceira está abarrotada de frascos, revistas, cigarros e cartões-
postais, de modo que talvez pudesse ser instalada outra mesinha ao pé da
cama, localização que lhe permitiria desfrutar da presença da margarida
sem ter de deslocar o pescoço para distingui-la entre os diferentes objetos
que proliferam na mesinha de cabeceira.
A enfermeira logo traz o solicitado e põe o copo com a margarida no
ângulo visual mais favorável, o que Lucas agradece, fazendo-a notar, de
passagem, que como muitos amigos vêm visitá-lo e as cadeiras são muito
poucas, nada melhor que aproveitar a presença da mesa para acrescentar
duas ou três poltroninhas confortáveis e criar um ambiente mais propício à
conversação.
Assim que as enfermeiras aparecem com as poltronas, Lucas lhes diz que
se sente imensamente grato aos amigos que lhe fazem tanta companhia
nesse momento complicado, motivo pelo qual a mesa serviria
perfeitamente, depois da colocação de uma toalhinha, para apoiar duas ou
três garrafas de uísque e meia dúzia de copos, se possível daqueles de
cristal bisotado, sem contar uma térmica com gelo e umas garrafas de soda.
As meninas se dispersam em busca desses utensílios e os dispõem
artisticamente sobre a mesa, ocasião em que Lucas se permite assinalar que
a presença de copos e garrafas desvirtua consideravelmente a eficácia
estética da margarida, bastante perdida no conjunto, mas que a solução é
muito simples, pois o que de fato está faltando nesse quarto é um armário
para acomodar a roupa e os sapatos, toscamente amontoados num móvel no
corredor, e então bastará pôr o copo com a margarida no alto do armário
para que a flor domine o ambiente e lhe dê esse encanto um pouco secreto
que é a chave de toda boa convalescença.
Atribuladas com os acontecimentos mas fiéis às normas da clínica, as
meninas empurram com dificuldade um armário enorme sobre o qual acaba
de se pousar a margarida, como um olho ligeiramente estupefato mas
repleto de dourada benevolência. As enfermeiras sobem no armário para
acrescentar um pouco de água fresca ao copo, e então Lucas fecha os olhos
e diz que agora tudo está perfeito e que vai tentar dormir um pouco. Assim
que elas fecham a porta ele se levanta, tira a margarida do copo e a joga
pela janela, pois não é uma flor que lhe agrade particularmente.
I
lustríssimo senhor:
Tenho a honra de comunicar-lhe que, tendo vencido o prazo para o
pagamento do aluguel do apartamento ocupado pelo senhor, e não
obstante os sete avisos sucessivos que ficaram sem resposta de sua
parte, cabe-me a obrigação de intimar o pagamento do supracitado aluguel
mais a multa de 5% fixada por lei, sendo o prazo final a quinta-feira do dia
16 de março de 1977. Em caso de não comparecimento ou comunicação
epistolar, ser-me-á necessário apelar para o procedimento de despejo
judicial, com as custas a seu encargo.
Atenciosamente,
Rufino Bustos
P.S.: Ontem à noite me cresceu outro dedo em cada pé.
H
élène Cixous me ensina que azar vem de az-zahr, dado ou jogo
de dados em árabe (século XII). Assim, Un coup de dés jamais ne
abolira le hasard regressa a si mesmo, os dados não abolirão os
dados, o azar nada pode contra o acaso
o acaso é mais forte que si mesmo,
hasarder, ou seja, ousar (por que não, então, hazar?): o acaso se torna
ativo, move a si mesmo com sua própria e terrível força,
não pode ser impedido, impele-se, hazar é ousar por si mesmo e a partir
de si mesmo, sem poder se abolir, e como toute pensée emet un coup de dés,
todo pensar haza, impele o pensado inabolivelmente, fênix.
Resumo provisório da dinâmica humana: sou, logo hazo,
e hazo porque sou,
e só sou hazando.
O
s textos escritos por Lucas sempre foram esplêndidos,
obviamente, por isso desde o começo o apavoraram as erratas que
neles se sigilosavam não apenas para macular uma efusão
transparente mas também para mudar, na maioria das vezes, seu
sentido, de maneira que os motetes de Palestrina se metamorfoseavam em
matetes da Palestina e assim por diante.
O horror de Lucas foi motivo de insônia para mais de quatro revisores de
provas, sem falar dos palavrões de muitos linotipistas abnegados a quem
chegavam originais cheios de cuidado aqui, atenção, attenti al piatto, aqui
onde se diz porra leia-se porra, caralho, observações neuróticas que às
vezes são como um livro paralelo, em geral mais interessante que o
contratado por um editor à beira da hidrofobia.
Tudo é inútil (pensamento que Lucas pensou seriamente em transformar
no título de um livro) porque as erratas, como se sabe, têm vida própria, e é
justamente essa idiossincrasia que levou Lucas a estudá-las de lupa em
punho e a se perguntar, numa noite de iluminação, se o mistério de sua
sigilosância não consistiria nisso, em não serem palavras como as outras,
mas algo que invade certas palavras, um vírus da língua, a CIA do idioma, a
transnacional da semântica. Daí à verdade só havia um sapo (um passo) e
Lucas riscou sapo porque aquilo não era, de maneira nenhuma, um sapo, e
sim uma coisa ainda mais sinistra. Em primeiro lugar, era um equívoco se
engalfinhar com as pobres palavras atacadas pelo vírus e, de passagem,
contra o nobre tipógrafo que se rendia ao contágio. Como ninguém
percebeu que o inimigo, como um cavalo de Troia, morava na própria
cidadela do idioma, e que sua guarida era a palavra que, numa brilhante
aplicação das teorias do chevalier Dupin, passeava sob a vista e a paciência
de suas vítimas contextuais? A ficha de Lucas caiu quando ele olhou mais
uma vez (porque tinha acabado de escrevê-la com um rancor indizível) a
palavra errata. De repente ele viu pelo menos duas coisas, e olhe que estava
cegoderaiva. Viu que na palavra havia uma rata, que a errata era a rata da
língua, e que sua manobra mais genial consistia precisamente em ser a
primeira errata a partir da qual podia sair em atitude de aberta depredação
sem que ninguém notasse. A segunda coisa era a prova de um mecanismo
duplo de defesa, e ao mesmo tempo de uma necessidade de confissão
dissimulada (outra vez Poe); o que se poderia ler ali era ergo rata,
conclusão cartesiana + estruturalista de uma intuição profunda: Escrevo,
ergo rata. Nota dez.
— Taradas — disse Lucas, em síntese brilhante. Daí à ação não havia
mais que um sapo. Se erratas eram palavras invadidas por ratas, gruyères
disformes onde o roedor passeia impune, só cabia o ataque como melhor
defesa, e isso antes de mais nada no manuscrito original onde o inimigo
encontrava suas primeiras vitaminas, os aminoácidos, o magnésio e o
feldspato necessários para seu metabolismo. Munido de um frasco de DDT,
nosso Lucas polvilhou as páginas recém-tiradas da Smith-Corona elétrica,
pondo montinhos de pó letal sobre cada pisada de bola (de rata, agora se
descobria que o velho lugar-comum era mais uma prova da presença
onímoda do adversário).
Como Lucas é um ás, no (essa vírgula pode ser outra errata) cometimento
de equívocos na máquina, não lhe sobrou grande coisa do pó, mas em
compensação ele pôde desfrutar do vistoso espetáculo de uma mesa
recoberta de páginas, sobre as quais havia um monte de vulcõezinhos
amarelos que ele deixou ali a noite toda por garantia. De manhã esses
vulcõezinhos estavam idênticos, e seu único resultado parecia ser uma
pobre traça morta em cima da palavra elegia, que se situava entre três
vulcõezinhos bem topetudos. Quanto às erratas, nada a fazer: cada uma em
seu lugar, e um lagar para cada uma.
Espirrando de raiva e de DDT, nosso Lucas foi até a casa do mané Pedotti,
que era uma luz para o artesanato, e lhe encomendou cinquenta armadilhas
em miniatura, que o mané fabricou com a ajuda de um joalheiro japonês e
que custaram os olhos da cara. Assim que as apanhou, mais ou menos oito
meses mais tarde, Lucas pôs suas últimas páginas na mesa e com a ajuda de
uma lupa e de uma pinça de sobrancelhas cortou microfatias de queijo
tandil e montou as armadilhas ao lado de cada errata. Pode-se dizer que
naquela noite ele não dormiu, em parte pelo estado de nervos e também
porque passou a noite dançando com uma garota da Martinica num arrasta-
pé suburbano, a fim de desanuviar o ambiente caseiro para que o silêncio e
as trevas se tornassem coadjuvantes na tarefa lustral. Às nove, depois de
agasalhar bem a garota porque ela era propensa a resfriados, voltou para
casa e encontrou as cinquenta armadilhas tão abertas como no começo,
exceto uma, que tinha se fechado assim do nada.
Desde esse dia Lucas avança numa teoria segundo a qual as ratas não
moram nem comem nas erratas, mas se alojam do lado daquele que escreve
ou compõe, a partir do qual executam saídas e retiradas fulminantes, o que
permite que escolham os melhores bocados, reduzam a pó as pobres
palavras preferidas e voltem num pé lá, noutro cá a seu local de origem.
Nesse caso, cabe se perguntar se moram nos dez dedos, nos olhos ou, o que
é pior, na massa cinzenta do escriba. Claro que essa teoria, por mais
alucinante que pareça, deixa Lucas perfeitamente frio, pois ele tem a
impressão de que outros já a enunciaram, mudando só o vocabulário,
complexos, Édipo, castração, Jung, ato fajuto etc. Anda, vai pôr DDT
nessas coisas, depois você me conta.
I
sso tudo lhe vem de um amigo que a cada dez palavras se detém
bruscamente e fica examinando o que Lucas disse e começa a virar as
palavras e as frases como se fossem luvas, atividade repugnante para
Lucas, mas fazer o quê, se de repente o outro começa a lhe tirar coisas
como coelhos da cartola. Se não é um anagrama é um palíndromo ou uma
rima interna ou um duplo sentido, afinal Lucas nem bem diz um bom-dia e
lá está o outro se espraiando, e quando a gente percebe é um e o vento levou
em três tomos, melhor ficar quieto e deixar, mais um cafezinho e coisas do
gênero.
O sujeito não perde uma, e conta a Lucas que para ele as palavras não
passam de um começo, da faceta de um poliedro vertiginoso, e se Lucas
tenta detê-lo com um dos sorrisos sardônicos que sempre lhe valeram o
horror dos interlocutores do Café Rubí, seu amigo se vira e diz olhe, o que é
que eu posso fazer contra esses biombos que parecem tão pequenos aí na
sala, você está olhando para o biombo com seu desenho de arrozais e um
camponês montado num búfalo, pensa que os biombos são como as
pálpebras das casas, essas imagens vistosas, e nisso a sra. de Cinamomo se
aproxima dele e o desdobra uma vez e duas vezes e depois três vezes, e o
biombo se engrandece e os arrozais se apequenam porque agora há um rio,
como é que você ia imaginar que nesse biombo havia um rio e de repente
uma cidade com pessoas indo e vindo, casinhas com gente tomando chá e
gueixas como borboletas, a menos que sejam borboletas de quimono. Isso
sempre me aconteceu em relação às palavras, desde que eu era um garoto
piá guri menino criança (chega, interfere Lucas, já entendi que você está
falando da infância), mas isso não é nada, meu chapa, as letras já me
tiravam do sério, as siglas ou as iniciais, era só eu olhar para elas e boing,
do outro lado, supersonicamente, coisas e coisas e mais coisas enquanto
minha tia me beliscava e, porra, como eu lembro bem dela falando: Mas
este guri deve ser idiota, no meio da palavra fica aí que nem um tonto,
tomando alhos por bugalhos. Minhas iniciais, olhessa, um dia eu as escrevi
no caderno de aritmética porque a professora queria ordem e progresso nas
lições, e quando eu vejo J. C., paf, o satori, vejo Jesus Cristo e em cima
dele (ou atrás, por respeito) Jean Cocteau. Não parece nada de mais, mas
são coisas que marcam, e como se não bastasse quarenta anos depois lá
estou eu em San Francisco de papo com uma amiga entre uma e outra
viagem, dessas que a moral condena, e eu lhe conto essa história e ela se
cobre com o lençol porque é tomada por uma espécie de arrepio e me
pergunta se além das duas iniciais eu não tenho outro nome de batismo e eu
digo que sim, que tenho vergonha dele porque é horrível, mas que além de
Julio eu me chamo Florencio, e então ela solta uma dessas gargalhadas que
acabam com todos os objetos da mesinha de cabeceira e diz:
— Jesus Fucking Christ!
É compreensível que, depois disso, Lucas aluda à Cabala com pavoroso
respeito.
m tudo que tem a ver com o sono, Lucas se mostra muito prudente. Quando
o dr. Feta proclama que para ele não há nada melhor que um cochilo, Lucas
E
aprova educadamente, e quando a garota do seu coração se enrola
como uma lagartinha e lhe diz que não seja malvado e a deixe
dormir mais um pouco em vez de começar de novo a aula de
geografia íntima, ele suspira resignado e a cobre depois de lhe dar
uma palmadinha ali onde a garota até que gosta.
O fato é que, no fundo, Lucas desconfia do chamado sono reparador,
porque nele o reparo não é grande coisa. Em geral, antes de ir para a cama
ele está em forma, nada lhe dói, respira como um puma, e se não fosse por
estar com sono (é esse o contratempo) ficaria a noite toda ouvindo discos ou
lendo poesia, que são duas coisas ótimas para a noite. No fim ele vai para a
cama, fazer o que se seus olhos estão se fechando com uma fúria
implacável, e ele dorme de uma sentada até as oito e meia, hora em que
misteriosamente sempre costuma acordar.
Quando junta as primeiras ideias que abrem passagem, penosamente,
entre bocejos e grunhidos, Lucas costuma descobrir que alguma coisa
começou a doer, ou a coçar, às vezes é um dilúvio de espirros, um soluço de
urso ou uma tosse de bomba lacrimogênea. Na melhor das hipóteses ele está
cansadíssimo e a ideia de escovar os dentes lhe parece mais angustiante que
uma tese sobre Amado Nervo. Percebeu pouco a pouco que o sono é uma
coisa terrivelmente cansativa, e no dia em que um homem sábio lhe disse
que o organismo perde muitas de suas defesas em prol de Morfeu, nosso
Lucas bramou de entusiasmo porque a biologia lhe estava referendando a
cinestesia, se é que cabe a perífrase.
Pelo menos nisso Lucas é sério. Ele tem medo de dormir porque tem
medo do que vai encontrar ao acordar, e cada vez que se deita é como se
estivesse numa plataforma se despedindo de si mesmo. O novo encontro
matinal tem a abominável qualidade de quase todos os reencontros: Lucas 1
descobre que Lucas 2 respira mal, ao assoar o nariz sente uma dor terrível e
o espelho lhe revela a irrupção noturna de uma espinha enorme.
Convenhamos: estava tão bem na noite anterior e agora, aproveitando-se
dessa espécie de renúncia de oito horas, sua tomada de ar aparece coroada
por esse gloriúnculo que o faz ver o sol e l’altre stelle, pois como tem de
assoar o nariz o tempo todo because esse resfriado matinal, nem te conto
como dói.
As anginas, a gripe, as enxaquecas maléficas, a constipação, a diarreia, os
eczemas se anunciam com o canto do galo, animal de merda, e agora é tarde
para parar sua carruagem, o sono mais uma vez foi sua fábrica e seu
cúmplice, agora o dia começa, ou seja, as aspirinas e o bismuto e os anti-
histamínicos. Quase que dá vontade de ir dormir de novo, já que muitos
poetas decretaram que no sono aguarda o esquecimento, mas Lucas sabe
que Hipnos é irmão de Tânatos e então prepara um café bem preto e um
bom par de ovos fritos orvalhados com espirros e palavrões, pensando que
outro poeta disse que a vida é uma cebola e que é preciso descascá-la
chorando.
O
utro dia instalei uma fábrica de furacões na costa da Flórida, que
convém por tantas razões, e aí já pus para funcionar os helicoides
turbinantes, os lança-rajadas de nêutrons comprimidos e os
turbilhonadores de suspensão coloidal, tudo ao mesmo tempo,
para ter uma ideia de conjunto da performance.
Foi fácil acompanhar, pelo rádio e pela TV, o percurso de meu furacão (e
o reivindico expressamente porque nunca faltam outros que podem ser
qualificados de espontâneos), e o bicho pegou porque meu furacão entrou
no Caribe a duzentos quilômetros por hora, destruiu uma dúzia de ilhotas,
todas as palmeiras da Jamaica, virou inexplicavelmente para o leste e se
perdeu pelas bandas de Trinidad arrebatando os instrumentos de numerosas
steel bands que participavam de um festival adventista, tudo isso entre
outros estragos que me impressiona um pouco detalhar porque eu gosto
mesmo é do furacão em si, mas não do preço que ele cobra para ser um
furacão de verdade e se posicionar no alto do ranking homologado pelo
British Weather Board.
A sra. de Cinamomo, aliás, veio me repreender, pois andara ouvindo as
notícias e lá se falava disso com termos tirados do mais baixo
sentimentalismo radiofônico, tais como destruição, devastação, pessoas
desabrigadas, vacas arremessadas para o alto de coqueiros e outros
epifenômenos sem nenhuma gravitação científica. Chamei a atenção da sra.
de Cinamomo para o fato de que, em termos relativos, ela era muito mais
nociva e devastadora com seu marido e suas filhas que eu com meu belo
furacão impessoal e objetivo, ao que ela respondeu me chamando de Átila,
patronímico que não me agradou nem um pouco, vá saber por quê, já que
na verdade soa bastante bem. Átila, Atilunha, Atilucho, Atilíssimo, Atilão,
Atilango, veja todas essas variantes tão bonitas.
Claro que não sou vingativo, mas da próxima vez vou dirigir os helicoides
turbinantes para que deem um susto na sra. de Cinamomo. Ela não vai
gostar nada que sua dentadura postiça apareça num milharal da Guatemala,
ou que sua peruca ruiva vá parar no Capitólio de Washington; claro que
esse ato de justiça não poderá se efetivar sem outros deslocamentos
irritantes, talvez, mas porra, tudo sempre tem um preço.
T
oda repatriação, em princípio, é agradável, pois pátria e repatriado
combinam naturalmente. Porém, se você for repatriado sem
consulta prévia, vai ficar satisfeito? E aqui se abre uma dúvida,
pois nem sempre repatriador e repatriado estão de acordo, e uma
repatriação forçada poderia, ao provocar um contato brusco com a pátria,
criar um sentimento antipatriótico e até mesmo apátrida no repatriado, pois
repatriar oficialmente quem estava longe da pátria às vezes suscita uma
reação que em outras circunstâncias não se traduziria num antipatriotismo
que parece estar nas antípodas dessa relação entre a pátria e o repatriado e
que deveria uni-los para sempre sob a forma de patriotismo.
Deve ser por isso, pensa Lucas, que em alguns indivíduos acabe por se
manifestar um patriotismo que assume, para surpresa geral, a forma de um
sentimento de antirrepatriação, o que perturba esses patriotas que nunca
imaginaram ser expatriados, muito menos repatriados. Quando a
antirrepatriação chega ao nível ofensivo da contrarrepatriação, o que já
ocorreu algumas vezes, a pátria não sabe o que fazer por intermédio de seus
patrióticos gestores, e há palidez e angústia em mais de quatro consulados e
um triste agitar de passaportes vencidos e de outras notas de compra e
venda. Nessas ocasiões, os expatriados bem que gostariam de expor o que
consideram ser um ponto de vista genuinamente patriótico, mas os cônsules
da pátria, eles mesmos patriotas em alto grau, como lhes é exigido com
razão e abundantes decretos, acabam por suspirar, abatidos. O expatriado
que tem conflitos com a repatriação faz a mesma coisa, e os escritórios
consulares parecem uma praia cheia de focas ofegantes. Nada disso
importa, há quem pense que um dia poderemos ir e vir como bem
entendermos, e que a palavra repatriação (quer dizer, a palavra expatriação
e sua forçosa contraparte) irá murchar no dicionário perto de palavras como
paracrese, perucho e ectima.
CALCULADORA ELETRÔNICA
No R
roubou o salário do pai
No T
dormiu com sua irmã
No Z
conseguiu seu diploma.
L
ucas não deve ser convidado para nada, mas a sra. de Cinamomo
desconhece esse detalhe e grande bufê com convivas seletos na
sexta-feira a partir das dezoito horas. Quando Calac vê Lucas
chegar, só agarra Polanco pelas lapelas e minha mãe, está vendo
isso?, várias senhoras se perguntam por que aqueles dois estão rindo desse
jeito, o deputado Poliyatti desconfia que é uma boa piada suja e se
incorpora, e há aquele momento idiota mas jamais superado em que oh, sr.
Lucas, que prazer, o prazer é meu, senhora, a sobrinha que está de
aniversário parabéns pra você, tudo isso no salão de prosápia com uísque e
acepipes especialmente preparados na confeitaria La nueva Mao Tsé-Tung.
Demora para contar, mas na real acontece rápido, os hóspedes se sentaram
para ouvir a menina que vai tocar piano, só que Lucas. Acomode-se, por
favor. Não, diz Lucas, eu não me sento, jamais, numa cadeira Luís XV. Que
curioso, diz a sra. de Cinamomo, que gastou rios de dinheiro nessas coisas
de quatro pés, e por quê, sr. Lucas? Porque sou argentino e sou deste século,
e não vejo por que me sentar numa cadeira francesa e de uma época
obsoleta, se me trouxerem o banco da cozinha ou um caixote de querosene,
vou ficar muito bem. Para um aniversário com bufê e piano é um tanto
desconcertante, mas todos sabem que há artistas que, e coisa e tal, de
maneira que um ríctus apropriado e claro, tome esse tamborete que foi do
coronel Olazábal. Só tem três pés, mas é muito confortável, acredite.
Nesse meio-tempo, a menina no clarão de lua e Beethoven de mal a pior.
Q
uando Alana e Osíris me olham não posso reclamar do menor
fingimento, da menor falsidade. Eles me olham de frente, Alana
sua luz azul e Osíris seu raio verde. Também olham assim um
para o outro, Alana acariciando o dorso negro de Osíris, que
ergue o focinho do pires de leite e mia satisfeito, mulher e gato se
conhecendo em planos que me escapam, que minhas carícias não
conseguem atravessar. Faz tempo que desisti de qualquer domínio sobre
Osíris, somos bons amigos a uma distância intransponível; mas Alana é
minha mulher e a distância entre nós é outra, algo que ela não parece sentir,
mas que se interpõe em minha felicidade quando Alana me olha, quando me
olha de frente como Osíris e sorri para mim ou fala comigo sem a menor
reserva, dando-se em cada gesto e em cada coisa como se dá no amor, ali
onde todo o seu corpo é como seus olhos, uma entrega absoluta, uma
reciprocidade ininterrupta.
É estranho; embora eu tenha desistido de entrar com tudo no reino de
Osíris, meu amor por Alana não aceita essa simplicidade de coisa
concluída, de casal para sempre, de vida sem segredos. Por trás daqueles
olhos azuis há mais, no fundo das palavras e dos gemidos e dos silêncios se
anima outro reino, respira outra Alana. Nunca disse isso a ela, amo-a
demais para trincar essa superfície de felicidade pela qual já deslizaram
tantos dias, tantos anos. Do meu jeito, teimo em compreender, em
descobrir; observo-a, mas sem espioná-la; sigo-a, mas sem desconfiança;
amo uma maravilhosa estátua mutilada, um texto não terminado, um
fragmento de céu inscrito na janela da vida.
Houve um tempo em que a música me pareceu o caminho que me levaria
verdadeiramente a Alana; vendo-a ouvir nossos discos de Bartók, de Duke
Ellington, de Gal Costa, uma transparência paulatina me afundava nela, a
música a desnudava de uma forma diferente, tornava-a cada vez mais
Alana, pois Alana não podia ser apenas essa mulher que sempre me olhou
de frente sem me esconder nada. Contra Alana, além de Alana eu a
procurava para amá-la melhor; e se no começo a música me deixou entrever
outras Alanas, chegou o dia em que, diante de uma gravura de Rembrandt,
eu a vi mudar ainda mais, como se um jogo de nuvens no céu alterasse
bruscamente as luzes e sombras de uma paisagem. Senti que a pintura a
levava para além de si mesma, para aquele único espectador que podia
medir a metamorfose instantânea nunca repetida, a entrevisão de Alana em
Alana. Intermediários involuntários, Keith Jarrett, Beethoven e Aníbal
Troilo tinham me ajudado a me aproximar, mas diante de um quadro ou de
uma gravura Alana se despojava ainda mais disso que acreditava ser, por
um momento entrava num mundo imaginário para, sem saber, sair de si
mesma, indo de uma pintura a outra, comentando-as ou se calando, jogo de
cartas que cada nova contemplação embaralhava para aquele que, sigiloso e
atento, um pouco atrás ou levando-a pelo braço, via se sucederem rainhas e
ases, ouros e paus, Alana.
Que se podia fazer com Osíris? Dar-lhe seu leite, deixá-lo em seu novelo
negro confortável e ronronante; mas Alana eu podia trazer a essa galeria,
como fiz ontem, uma vez mais ir a um teatro de espelho e de câmaras
escuras, de imagens tensas na tela diante daquela outra imagem de alegres
jeans e blusa vermelha que depois de esmagar o cigarro na entrada ia de
quadro em quadro, parando exatamente à distância que seu olhar requeria,
virando-se para mim de tanto em tanto para comentar ou comparar. Jamais
descobriria que eu não estava ali por causa dos quadros, que um pouco atrás
ou de lado meu modo de olhar não tinha nada a ver com o dela. Jamais
perceberia que seu passo lento e reflexivo de quadro em quadro a
transformava até me forçar a fechar os olhos e lutar para não apertá-la nos
braços e levá-la ao delírio, à loucura de sair correndo no meio da rua.
Desenvolta, leve em sua naturalidade de prazer e descoberta, suas paradas e
suas demoras se inscreviam num tempo diferente do meu, alheio à crispada
espera de minha sede.
Até então tudo tinha sido um aviso difuso, Alana na música, Alana diante
de Rembrandt. Mas agora minha esperança começava a se cumprir de
forma quase insuportável; desde nossa chegada, Alana se entregara às
pinturas com uma inocência atroz de camaleão, passando de um estado a
outro sem saber que um espectador oculto espreitava, em sua atitude, na
inclinação de sua cabeça, no movimento de suas mãos ou de seus lábios, o
cromatismo interior que a percorria até mostrá-la outra, ali onde a outra era
sempre Alana se somando a Alana, as cartas se amontoando até completar o
baralho. A seu lado, avançando pouco a pouco ao longo das paredes da
galeria, eu a via se entregar a cada pintura, meus olhos multiplicavam um
triângulo fulminante que se estendia dela ao quadro e do quadro a mim
mesmo para voltar a ela e apreender a mudança, a auréola diferente que a
envolvia um momento para depois ceder a uma aura nova, a uma tonalidade
que a expunha à verdadeira, à última nudez. Impossível prever até onde se
repetiria essa osmose, quantas novas Alanas me levariam, por fim, à síntese
da qual nós dois sairíamos satisfeitos, ela sem saber disso e acendendo mais
um cigarro antes de me pedir que a levasse para um drinque, eu sabendo
que minha longa busca chegara ao fim e que meu amor abarcaria desde
agora o visível e o invisível, aceitaria o olhar límpido de Alana sem
incertezas de portas fechadas, de passagens proibidas.
Diante de um barco solitário e de um primeiro plano de rochas negras, eu
a vi permanecer imóvel por um longo tempo; um ondular imperceptível das
mãos parecia fazê-la nadar no ar, buscar o mar aberto, uma fuga de
horizontes. Eu já não conseguia achar estranho que aquela outra pintura em
que uma grade de pontas agudas vedava o acesso às árvores limítrofes a
fizesse retroceder como se procurasse um ponto de mira, de repente era a
repulsa, a recusa de um limite inaceitável. Pássaros, monstros marinhos,
janelas se dando ao silêncio ou deixando entrar um simulacro da morte,
cada nova pintura deixava Alana arrasada, despojando-a de sua cor anterior,
arrancando dela as modulações da liberdade, do voo, dos grandes espaços,
afirmando sua negativa diante da noite e do nada, sua ansiedade solar, seu
impulso quase terrível de fênix. Permaneci atrás, sabendo que não
conseguiria suportar seu olhar, sua surpresa interrogativa quando visse em
meu rosto o deslumbramento da confirmação, porque isso também era eu,
isso era meu projeto Alana, minha vida Alana, isso tinha sido desejado por
mim e refreado por um presente de cidade e parcimônia, isso agora por fim
Alana, por fim Alana e eu desde agora, desde agora mesmo. Gostaria de tê-
la nua em meus braços, amá-la de tal forma que tudo ficasse claro, tudo
ficasse dito para sempre entre nós, e que dessa interminável noite de amor,
para nós que já conhecíamos tantas, nascesse a primeira alvorada da vida.
Chegávamos ao fim da galeria, eu me aproximei da porta de saída ainda
escondendo o rosto, esperando que o ar e as luzes da rua me fizessem voltar
ao que Alana conhecia de mim. Vi-a parar diante de um quadro que outros
visitantes me haviam ocultado, ficar longamente imóvel olhando a pintura
de uma janela e um gato. Uma última transformação fez dela uma lenta
estátua nitidamente separada dos demais, de mim, que me aproximava
indeciso procurando seus olhos perdidos na tela. Vi que o gato era idêntico
a Osíris, e que olhava ao longe para alguma coisa que a parede da janela
não nos deixava ver. Imóvel em sua contemplação, parecia menos imóvel
que a imobilidade de Alana. Senti, de alguma forma, que o triângulo se
rompera; quando Alana virou a cabeça para mim o triângulo não existia
mais, ela tinha ido ao quadro mas não estava de volta, continuava do lado
do gato olhando além da janela onde ninguém podia ver o que eles viam, o
que só Alana e Osíris viam cada vez que me olhavam de frente.
N
aquela época era difícil saber. A gente vai ao cinema ou ao teatro
e vive sua noite sem pensar nos que já cumpriram o mesmo ritual,
escolhendo o local e a hora, vestindo-se e telefonando e fila onze
ou cinco, o escuro e a música, a terra de ninguém e de todos ali
onde todos são ninguém, o homem ou a mulher em sua poltrona, talvez uma
palavra para se desculpar por chegar tarde, um comentário à meia-voz que
alguém recolhe ou ignora, quase sempre o silêncio, os olhares se
derramando na cena ou na tela, fugindo do contíguo, do que está deste lado.
Realmente era difícil saber, em que pese a publicidade, as filas
intermináveis, os cartazes e as críticas, que éramos tantos os que amávamos
a Glenda.
Durou três ou quatro anos, e seria arriscado afirmar que o núcleo se
formou a partir de Irazusta ou de Diana Rivero, eles mesmos ignoravam
como, em algum momento, bebendo com os amigos depois do cinema, se
disseram ou se calaram coisas que de repente haveriam de criar a aliança, o
que depois todos nós chamamos de núcleo, e os mais jovens, de clube. De
clube ele não tinha nada, nós simplesmente amávamos Glenda Garson e
isso bastava para nos destacar dos que só a admiravam. Como eles, nós
admirávamos a Glenda e também Anouk, Marilina, Annie, Silvana e, por
que não?, Marcello, Yves, Vittorio e Dirk, mas só nós amávamos tanto a
Glenda, e o núcleo se definiu por isso e a partir disso, era algo que só nós
sabíamos e que confiávamos àqueles que, no decorrer das conversas, foram
mostrando, pouco a pouco, que também amavam a Glenda.
A partir de Diana ou de Irazusta o núcleo foi se ampliando lentamente: no
ano de O fogo da neve devíamos ser só seis ou sete, quando estrearam O
uso da elegância o núcleo se ampliou e sentimos que crescia de maneira
quase insuportável e que estávamos ameaçados de imitação esnobe ou de
sentimentalismo sazonal. Os primeiros, Irazusta e Diana, e mais uns dois ou
três, decidimos cerrar fileiras, não admitir sem provas, sem o teste
disfarçado pelos uísques e os alardes de erudição (tão de Buenos Aires, tão
de Londres e do México esses testes de meia-noite). Na hora da estreia de
Os frágeis retornos, tivemos de admitir, melancolicamente triunfantes, que
éramos muitos os que amávamos a Glenda. Os reencontros nos cinemas, os
olhares na saída, aquele ar meio perdido das mulheres e o dolorido silêncio
dos homens nos identificavam melhor que uma insígnia ou uma senha.
Mecânicas não investigáveis nos levaram a um mesmo café do centro, as
mesas isoladas começaram a se aproximar, houve o delicado costume de
pedir o mesmo coquetel para deixar de lado toda escaramuça inútil e, por
fim, nos olhar nos olhos, ali onde ainda se animava a última imagem da
Glenda na última cena do último filme.
Vinte, talvez trinta, nunca soubemos quantos chegamos a ser, porque às
vezes a Glenda durava meses numa sala ou estava ao mesmo tempo em
duas ou em quatro, e também houve aquele momento extraordinário em que
ela entrou em cena para representar a jovem assassina de Os delirantes, e
seu sucesso rompeu os diques e criou entusiasmos momentâneos que jamais
aceitamos. E na época já nos conhecíamos, muitos de nós se visitavam para
falar da Glenda. Desde o início Irazusta pareceu exercer um mandato tácito
que nunca havia pedido, e Diana Rivero jogava o lento xadrez de
confirmações e recusas que nos assegurava uma autenticidade total, sem
riscos de infiltrados ou de bocós. O que tinha começado como uma
associação livre alcançava agora uma estrutura de clã, e às interrogações
superficiais do princípio se sucediam as perguntas concretas, a sequência do
tropeção em O uso da elegância, a réplica final de O fogo da neve, a
segunda cena erótica de Os frágeis retornos. Amávamos tanto a Glenda que
não podíamos tolerar os neófitos, as tumultuosas lésbicas, os eruditos da
estética. Até mesmo (nunca saberemos como) deu-se por decidido que
iríamos ao café às sextas-feiras, quando passassem no centro um filme da
Glenda, e que nas reestreias em cinemas de bairro deixaríamos passar uma
semana antes de nos reunir, para dar a todos o tempo necessário; como num
regulamento rigoroso, as obrigações se definiam sem equívocos, não acatá-
las seria provocar o sorriso de desprezo de Irazusta ou aquele olhar
amavelmente horrível com que Diana Rivero denunciava a traição e o
castigo. Naquela época as reuniões eram somente Glenda, sua deslumbrante
ubiquidade em cada um de nós, e não sabíamos de discrepâncias ou reparos.
Só pouco a pouco, a princípio com um sentimento de culpa, alguns se
atreveram a introduzir críticas parciais, o desconcerto ou a decepção diante
de uma sequência menos feliz, as quedas no convencional ou no previsível.
Sabíamos que a Glenda não era responsável pelos desfalecimentos que às
vezes turvavam a esplêndida cristaleria de O açoite ou o final de Nunca se
sabe por quê. Conhecíamos outros trabalhos de seus diretores, a origem dos
enredos e dos roteiros, com eles éramos implacáveis, pois começávamos a
sentir que nosso carinho pela Glenda ia além do mero território artístico e
que só ela se salvava do que os demais faziam imperfeitamente. Diana foi a
primeira a falar em missão, fez isso com seu jeito tangencial de não afirmar
o que realmente lhe importava, e vimos nela uma alegria de uísque duplo,
de sorriso saciado, quando admitimos com franqueza que era verdade, que
não podíamos ficar só naquilo, o cinema e o café e amar tanto a Glenda.
Naquele momento também não foram ditas palavras claras, não nos eram
necessárias. Só o que contava era a felicidade da Glenda em cada um de
nós, e essa felicidade só podia vir da perfeição. De repente, os erros, as
falhas se tornaram insuportáveis; não podíamos aceitar que Nunca se sabe
por quê terminasse daquela forma ou que O fogo da neve incluísse aquela
sequência infame da partida de pôquer (na qual a Glenda não atuava, mas
que, de algum modo, a manchava como um vômito, aquele gesto de Nancy
Phillips e a inadmissível chegada do filho arrependido). Como quase
sempre, coube a Irazusta definir com clareza a missão que nos esperava, e
naquela noite voltamos para casa como que esmagados pela
responsabilidade que tínhamos acabado de reconhecer e de assumir, e
entrevendo, ao mesmo tempo, a felicidade de um futuro sem mácula, de
Glenda sem erros nem traições.
Instintivamente, o núcleo cerrou fileiras, a tarefa não admitia uma
pluralidade desfocada. Irazusta falou do laboratório quando já estava
instalado numa quinta de Recife de Lobos. Dividimos equanimemente as
tarefas entre os que deveriam procurar todas as cópias de Os frágeis
retornos, escolhido por sua relativamente escassa imperfeição. Não ocorreu
a ninguém pensar em problemas de dinheiro, Irazusta tinha sido sócio de
Howard Hughes no negócio das minas de estanho de Pichincha, um
mecanismo extremamente simples punha em nossas mãos o poder
necessário, os jatos e as alianças e as propinas. Não tivemos sequer um
escritório, o computador de Hagar Loss programou as tarefas e as etapas.
Dois meses depois da frase de Diana Rivero, o laboratório esteve em
condições de substituir em Os frágeis retornos a sequência ineficaz dos
pássaros por outra que devolvia à Glenda o ritmo perfeito e o sentido exato
de sua ação dramática. O filme já tinha alguns anos e sua reposição nos
circuitos internacionais não provocou a menor surpresa: a memória joga
com seus depositários e os faz aceitar suas próprias permutações e
variantes, talvez a própria Glenda não tivesse percebido a mudança e sim,
porque isso nós todos percebemos, a maravilha de uma perfeita
coincidência com uma lembrança limpa de escórias, exatamente idêntica ao
desejo.
A missão se cumpria sem descanso, tão logo assegurada a eficácia do
laboratório completamos o resgate de O fogo da neve e de O prisma; os
outros filmes entraram em processo exatamente no ritmo previsto pelo
pessoal de Hagar Loss e do laboratório. Tivemos problemas com O uso da
elegância, porque gente dos emirados petroleiros guardava cópias para seu
prazer pessoal, e foram necessárias manobras e ajudas excepcionais para
roubá-las (não temos por que usar outra palavra) e substituí-las sem que os
usuários percebessem. O laboratório trabalhava num nível de perfeição que
no começo nos pareceu inatingível, embora não nos atrevêssemos a dizer
isso para Irazusta; curiosamente, a mais hesitante tinha sido Diana, mas
quando Irazusta nos mostrou Nunca se sabe por quê e assistimos ao
verdadeiro final, vimos que a Glenda, em vez de voltar para a casa de
Romano, dirigia seu carro para o penhasco e nos destroçava com sua
esplêndida, necessária queda na torrente, soubemos que a perfeição podia
ser deste mundo e que agora era da Glenda para sempre, da Glenda para nós
para sempre.
O mais difícil era, naturalmente, decidir as mudanças, os cortes, as
modificações de montagem e de ritmo, nossas diferentes maneiras de sentir
a Glenda provocavam árduos embates que só se aplacavam depois de
longas análises e, em alguns casos, por imposição de uma maioria do
núcleo. Mas ainda que alguns de nós, derrotados, assistíssemos à nova
versão com amargura por não ser totalmente adequada aos nossos sonhos,
acho que ninguém se decepcionou com o trabalho realizado; amávamos
tanto a Glenda que os resultados eram sempre justificáveis, muitas vezes
além do previsto. Houve, além do mais, poucas objeções: a carta de um
leitor do inevitável Times, espantado porque três sequências de O fogo da
neve se deram numa ordem que ele acreditava lembrar diferente, e também
um artigo do crítico do La Opinión, que protestava por um suposto corte em
O prisma, imaginando razões de puritanismo burocrático. Em todo caso,
várias disposições foram tomadas para evitar possíveis sequelas; não deu
muito trabalho, as pessoas são frívolas e esquecem ou aceitam ou estão à
caça do novo, o mundo do cinema é fugidio como a atualidade histórica,
exceto para nós, que amamos tanto a Glenda.
Mais perigosas eram, no fundo, as polêmicas no núcleo, o risco de um
cisma ou de uma diáspora. Embora nos sentíssemos mais que nunca unidos
pela missão, houve noites em que se levantaram vozes analíticas
contagiadas de filosofia política, que em pleno trabalho discutiam questões
morais, perguntavam se não estaríamos nos entregando a uma galeria de
espelhos onanistas, a esculpir insensatamente uma loucura barroca numa
presa de marfim ou num grão de arroz. Não era fácil lhes dar as costas,
porque o núcleo só conseguira cumprir sua obra como um coração ou um
avião cumprem a sua, ritmando uma coerência perfeita. Não era fácil ouvir
uma crítica que nos acusava de escapismo, que suspeitava de um
esbanjamento de forças desviadas de uma realidade mais premente, mais
necessitada de ajuda nos tempos em que vivíamos. No entanto, não foi
preciso esmagar secamente uma heresia mal esboçada, até seus
protagonistas se limitavam a um reparo parcial, eles e nós amávamos tanto
a Glenda que acima e além das discrepâncias éticas ou históricas imperava
o sentimento que sempre nos uniria, a certeza de que o aperfeiçoamento da
Glenda nos aperfeiçoava e aperfeiçoava o mundo. Tivemos até mesmo a
esplêndida recompensa de que um dos filósofos restabelecesse o equilíbrio
depois de superar esse período de escrúpulos fúteis; ouvimos de sua boca
que toda obra parcial é também história, que uma coisa tão imensa como a
invenção da imprensa tinha nascido do mais individual e parcelado dos
desejos, o de repetir e perpetuar um nome de mulher.
Chegamos assim ao dia em que tivemos as provas de que a imagem da
Glenda se projetava agora sem a menor fraqueza; as telas do mundo a
vertiam tal como ela mesma — tínhamos certeza disso — gostaria de ser
vertida, e talvez por isso não ficamos muito espantados ao saber pela
imprensa que ela tinha acabado de anunciar que se aposentava do cinema e
do teatro. A involuntária, maravilhosa contribuição da Glenda à nossa obra
não podia ser coincidência nem milagre, alguma coisa nela simplesmente
tinha acatado, sem saber, nosso carinho anônimo, do fundo de seu ser vinha
a única resposta que nos podia dar, o ato de amor que nos abrangia numa
última entrega, aquela que os profanos só entenderiam como ausência.
Vivemos a felicidade do sétimo dia, do descanso depois da criação; agora
podíamos ver cada obra da Glenda sem a ameaça espreitante de um amanhã
novamente infestado de erros e inabilidades; agora nos reuníamos com uma
leveza de anjos ou de pássaros, num presente absoluto que talvez se
parecesse com a eternidade.
Sim, mas já dissera um poeta, sob os mesmos céus da Glenda, que a
eternidade está apaixonada pelas obras do tempo, e coube a Diana saber
disso e nos dar a notícia um ano mais tarde. Comum e humano: a Glenda
anunciava seu regresso às telas de cinema, os motivos de sempre, a
frustração do profissional de mãos vazias, um personagem sob medida, uma
filmagem iminente. Ninguém esqueceria essa noite no café, justo depois de
ter visto O uso da elegância, que voltava às salas do centro. Quase não foi
preciso que Irazusta dissesse o que todos nós vivíamos como uma saliva
amarga de injustiça e rebeldia. Amávamos tanto a Glenda que nosso
desânimo não a atingia, que culpa tinha ela de ser atriz e de ser a Glenda?, o
horror estava na máquina quebrada, na realidade de cifras e prestígios e
Oscars entrando como uma fissura disfarçada na esfera de nosso céu tão
arduamente conquistado. Quando Diana apoiou a mão no braço de Irazusta
e disse: “Sim, é a única coisa que nos resta fazer”, ela falava por todos, nem
era necessário nos consultar. Nunca o núcleo teve uma força tão terrível,
nunca precisou de menos palavras para pô-la em marcha. Separamo-nos
destruídos, já vivendo o que iria acontecer numa data que apenas um de nós
conheceria de antemão. Estávamos certos de que não voltaríamos a nos
encontrar no café, de que cada um esconderia, a partir de agora, a solitária
perfeição de nosso reino. Sabíamos que Irazusta faria o que fosse preciso,
nada mais simples para alguém como ele. Nem sequer nos despedimos
como de costume, com a leve certeza de voltarmos a nos ver depois do
cinema, numa das noites de Os frágeis retornos ou de O açoite. Foi mais
um virar as costas, dar a desculpa de que era tarde, que era preciso ir
embora; saímos separados, cada um levando seu desejo de esquecer até que
tudo estivesse consumado, e sabendo que não seria assim, que ainda
precisaríamos abrir, uma manhã qualquer, o jornal e ler a notícia, as
estúpidas frases de consternação profissional. Nunca falaríamos disso com
ninguém, iríamos nos evitar cortesmente nas salas e na rua; seria a única
maneira de o núcleo manter sua fidelidade, guardar no silêncio a obra
realizada. Amávamos tanto a Glenda que lhe ofereceríamos uma última
perfeição inviolável. Na altura intangível em que a havíamos exaltado, nós
a preservaríamos da queda, seus fiéis poderiam continuar adorando-a sem
menoscabo; não se desce vivo de uma cruz.
C
hegamos às duas da tarde ao bangalô, e meia hora depois, fiel ao
combinado por telefone, o jovem gerente aparece com as chaves,
liga a geladeira e nos mostra como funcionam a calefação e o ar-
condicionado. Está acertado que vamos ficar dez dias, já pagamos
adiantado. Abrimos as malas e tiramos o necessário para a praia; vamos nos
instalar ao cair da tarde, a vista do Caribe tremeluzindo ao pé da colina é
tentadora demais. Descemos a trilha escarpada e descobrimos, até, um
atalho entre os arbustos que nos faz encurtar caminho; há apenas cem
metros entre os bangalôs da colina e o mar.
Amizades: uma gata mansa e pidona, outra preta mais selvagem, mas
igualmente faminta. Aqui os pássaros nos vêm quase nas mãos e as
lagartixas verdes sobem nas mesas à caça de moscas. De longe, rodeia-nos
uma grinalda de balidos de cabra, cinco vacas e um terneiro pastam no
ponto mais alto da colina e mugem de forma adequada. Também ouvimos
os cães das cabanas no fundo do vale; hoje à noite as duas gatas na certa
vão se somar ao concerto.
A praia, um deserto, segundo critérios europeus. Uns poucos moços
nadam e brincam, corpos negros ou cor de canela dançam na areia. Ao
longe uma família — metropolitanos ou alemães, tristemente brancos e
loiros — organiza toalhas, óleos de bronzear e bolsas. Deixamos as horas
passarem na água ou na areia, incapazes de outra coisa, prolongando os
rituais dos cremes e dos cigarros. Ainda não sentimos as lembranças se
instalando, aquela necessidade de inventariar o passado que cresce com a
solidão e o tédio. É justamente o contrário: bloquear toda referência às
semanas precedentes, os encontros em Delft, a noite na granja de Erik. Se
isso volta, nós afugentamos como a uma baforada de fumaça, o movimento
ligeiro da mão limpando novamente o ar.
Duas moças descem pela trilha da colina e escolhem um local distante,
sombra de coqueiros. Deduzimos que são nossas vizinhas de bangalô e as
imaginamos em secretarias ou em jardins de infância em Detroit, Nebraska.
Vemos as duas entrarem juntas no mar, afastar-se esportivamente, voltar
devagar, saboreando a água morna e transparente, beleza que se torna puro
clichê quando é descrita, a eterna questão dos cartões-postais. Há dois
veleiros no horizonte, de Saint-Pierre sai uma lancha com uma esquiadora
náutica que, meritoriamente, se recompõe de cada queda, que são muitas.
Ao anoitecer — voltamos à praia depois da sesta, o dia declina entre
grandes nuvens brancas —, dizemo-nos que este Natal corresponderá
perfeitamente ao nosso desejo: solidão, certeza de que ninguém conhece
nosso paradeiro, estar a salvo de possíveis dificuldades e, ao mesmo tempo,
das estúpidas reuniões de fim de ano e das lembranças condicionadas, a
agradável liberdade de abrir algumas latas de conserva e preparar um
ponche de rum branco, xarope de cana e limões verdes. Jantamos na
varanda, separada por um tabique de bambus do terraço simétrico onde, já
tarde, ouvimos de novo as vozes apenas murmurantes. Somos uma
maravilha recíproca como vizinhos, respeitamo-nos de forma quase
exagerada. Se as moças da praia são mesmo hóspedes do bangalô, talvez
estejam se perguntando se as duas pessoas que elas viram na areia são as
que estão hospedadas na outra ala. A civilização tem suas vantagens,
reconhecemos isso entre dois tragos: nem gritos, nem transistores, nem
cantorias vulgares. Ah, que fiquem ali os dez dias, em vez de serem
substituídas por um casal com crianças. Cristo acaba de nascer de novo;
nós, de nossa parte, podemos dormir.
Levantar com o sol, suco de goiaba e café na caneca. A noite foi longa, com
rajadas de chuva confessadamente tropical, dilúvios bruscos que se
interrompem, bruscamente arrependidos. Os cães latiram de todos os
quadrantes, mesmo sem lua; rãs e pássaros, ruídos que o ouvido citadino
não consegue definir, mas que talvez expliquem os sonhos que agora
recordamos com os primeiros cigarros. Aegri somnia. De onde vem a
referência? Charles Nodier, ou Nerval, às vezes não conseguimos resistir a
esse passado de bibliotecas que outras vocações quase apagaram. Contamo-
nos os sonhos em que larvas, ameaças incertas, e não bem-vindas mas
previsíveis exumações tecem suas teias de aranha ou nos fazem tecê-las.
Nada surpreende depois de Delft (mas resolvemos não evocar as
lembranças imediatas, depois teremos tempo, como sempre. Curiosamente,
não nos afeta pensar em Michael, no poço da granja de Erik, coisas já
encerradas; quase nunca falamos delas ou das precedentes, embora
saibamos que podem voltar à palavra sem nos prejudicar, afinal o prazer e a
delícia vieram delas, e a noite da granja valeu o preço que estamos pagando,
mas ao mesmo tempo sentimos que tudo ainda está próximo demais, os
detalhes, Michael nu sob a lua, coisas que gostaríamos de evitar fora dos
inevitáveis sonhos; melhor esse bloqueio, então, other voices, other rooms:
a literatura e os aviões, que drogas formidáveis).
O mar das nove da manhã leva as últimas babas da noite, o sol e o sal e a
areia banham a pele com um tato quente. Quando vemos as moças descendo
pela trilha nos lembramos ao mesmo tempo, nos olhamos. Só tínhamos feito
um comentário, quase à beira do sono na noite alta: em algum momento as
vozes do outro lado do bangalô tinham passado do sussurro a algumas
frases claramente audíveis, embora seu sentido nos escapasse. Mas não foi
o sentido que nos atraiu naquela troca de palavras que cessou quase de
imediato para voltar ao murmúrio monótono, discreto, e sim o fato de uma
das vozes ser de homem.
Na hora da sesta, chega até nós mais uma vez o rumor abafado do diálogo
na outra varanda. Sem saber por quê, teimamos em fazer coincidir as duas
moças da praia com as vozes do bangalô, e agora que nada faz pensar num
homem perto delas, a lembrança da noite passada se esfuma para somar-se
aos outros rumores que nos inquietaram, os cães, as bruscas rajadas de
vento e chuva, os rangidos no teto. Gente da cidade, gente facilmente
impressionável fora dos ruídos próprios, das chuvas bem-educadas.
Ademais, que nos importa o que acontece no bangalô do lado? Se estamos
aqui é porque precisamos nos distanciar do outro, dos outros. Não é fácil,
claro, deixar de lado hábitos, reflexos condicionados; sem dizer nada,
prestamos atenção no que se filtra abafadamente pelo tabique, no diálogo
que imaginamos plácido e anódino, mero ronronar rotineiro. Impossível
reconhecer palavras, inclusive vozes, com registros tão parecidos que, por
momentos, se pensaria num monólogo apenas entrecortado. Elas também
devem nos ouvir assim, mas naturalmente não nos ouvem; para isso
deveriam se calar, para isso deveriam estar aqui por motivos semelhantes
aos nossos, dissimuladamente vigilantes como a gata preta que espreita um
lagarto na varanda. Mas elas não têm o menor interesse em nós: melhor
para elas. As duas vozes se alternam, cessam, recomeçam. E não há
nenhuma voz de homem, mesmo falando bem baixo nós a reconheceríamos.
Como sempre no trópico, a noite cai bruscamente, o bangalô está mal
iluminado, mas não nos importamos; quase não cozinhamos, a única coisa
quente é o café. Não temos nada a nos dizer, talvez por isso nos distraia
ouvir o murmúrio das moças, sem admitir abertamente estamos à espreita
da voz do homem, mesmo sabendo que nenhum carro subiu a colina e que
os outros bangalôs continuam vazios. Nós nos embalamos nas cadeiras de
balanço, fumamos no escuro; não há mosquitos, os murmúrios surgem de
vazios de silêncio, se calam, regressam. Se elas pudessem nos imaginar, não
gostariam de nós: não porque as espiamos, mas porque com certeza nos
veriam como duas aranhas-caranguejeiras na escuridão. No fim das contas,
não nos desagrada que a outra ala do bangalô esteja ocupada. Estávamos em
busca de solidão, mas agora pensamos no que seria a noite aqui se
realmente não houvesse ninguém do outro lado; impossível negarmos que a
granja, que Michael ainda estão muito perto. Ter de falar, de se olhar, pegar
mais uma vez o baralho ou os dados. Melhor assim, nas redes, ouvindo os
murmúrios um pouco felinos até a hora de dormir.
Até a hora de dormir, mas aqui as noites não trazem o que esperávamos,
terra de ninguém na qual finalmente — ou por um tempo, não dá para
querer mais que o possível — estaríamos a salvo de tudo o que começa
depois das janelas. Em nosso caso, a bobeira também não é o ponto forte;
nunca chegamos a um destino sem prever o próximo ou os próximos. Às
vezes poderia parecer que brincamos de nos encurralar, como agora, numa
ilha insignificante onde qualquer um é facilmente localizável; mas isso faz
parte de um xadrez infinitamente mais complexo, no qual o movimento
modesto de um peão oculta jogadas maiores. A célebre história da carta
roubada é objetivamente absurda. Objetivamente; por baixo corre a
verdade, e os porto-riquenhos que durante anos cultivaram marijuana em
suas sacadas nova-iorquinas ou em pleno Central Park sabiam mais sobre
isso que muitos policiais. Em todo caso, controlamos as possibilidades
imediatas, barcos e aviões: Venezuela e Trinidad estão a um passo, duas
opções entre seis ou sete; nossos passaportes são dos que passam sem
problemas nos aeroportos. Essa colina inocente, esse bangalô para turistas
pequeno-burgueses: belos dados viciados que sempre soubemos utilizar no
momento devido. Delft está muito longe, a granja de Erik começa a
retroceder na memória, a se apagar, como também irão se apagando o poço
e Michael fugindo sob a lua, Michael tão branco e nu sob a lua.
Vão embora, às oito da manhã chega um táxi para pegá-las, o chofer negro
ri e brinca descendo as malas, as bolsas de praia, grandes chapéus de palha,
raquetes de tênis. Da varanda se avista a trilha, o táxi branco; elas não
podem nos distinguir entre as plantas, nem sequer olham em nossa direção.
A praia está povoada de filhos de pescadores que jogam bola antes do
banho, mas hoje nos parece ainda mais vazia, agora que elas não vão mais
descer. Na volta, fazemos um rodeio sem pensar, e passamos diante da outra
ala do bangalô, que sempre tínhamos evitado. Agora tudo está realmente
abandonado, exceto nossa ala. Sondamos a porta, ela se abre sem ruído, as
moças deixaram a chave por dentro, sem dúvida em conformidade com o
gerente que, mais tarde, virá ou não virá limpar o bangalô. Já não nos
surpreende que as coisas fiquem expostas ao capricho de qualquer um,
como os copos e os talheres do restaurante; vemos lençóis amarrotados,
toalhas úmidas, frascos vazios, inseticidas, garrafas de coca-cola e copos,
revistas em inglês, sabonetinhos. Tudo está tão só, tão largado. Há um
cheiro de água-de-colônia, um cheiro jovem. Dormiam ali, na grande cama
de lençóis com flores amarelas. As duas. E se falavam, se falavam antes de
dormir. Se falavam tanto antes de dormir.
A sesta é pesada, interminável, pois não temos vontade de ir à praia até
que o sol baixe. Fazendo café ou lavando os pratos, nos flagramos no
mesmo gesto de prestar atenção, o ouvido tenso na direção do tabique.
Deveríamos rir, mas não. Agora não, agora que por fim e realmente temos a
solidão tão buscada e necessária, agora não rimos.
Preparar o jantar leva tempo, complicamos as coisas mais simples de
propósito, para que tudo dure e a noite se feche sobre a colina antes de
termos terminado de comer. De quando em quando, nos pegamos olhando
de novo para o tabique, esperando o que já está tão longe, um murmúrio
que agora deve continuar num avião ou na cabine de um barco. O gerente
não veio, sabemos que o bangalô está aberto e vazio, que ainda recende a
colônia e a pele jovem. Bruscamente o calor aumenta, o silêncio o acentua,
ou a digestão, ou o tédio, porque continuamos imóveis nas cadeiras de
balanço, só nos embalando na escuridão, fumando e esperando. Não vamos
confessar isso, claro, mas sabemos que estamos esperando. Os sons da noite
crescem pouco a pouco, fiéis ao ritmo das coisas e dos astros; como se os
próprios pássaros e as próprias rãs noturnas tivessem tomado posição e
começado seu canto no mesmo instante. Também o coro de cães (um
horizonte de cães, impossível não lembrar do poema), e no mato o amor das
gatas lacerando o ar. Falta só o murmúrio das duas vozes no bangalô do
lado, e isso sim é silêncio, o silêncio. Todo o resto desliza nos ouvidos, que
absurdamente se concentram no tabique, como que à espera. Nem mesmo
nos falamos, com receio de esconder com nossas vozes o impossível
murmúrio. Já é bem tarde, mas não temos sono, o calor continua
aumentando na sala, sem que pensemos em abrir as duas portas. Só o que
fazemos é fumar e esperar o inesperado; nem sequer nos é dado brincar,
como no início, com a ideia de que as moças poderiam nos imaginar como
caranguejeiras à espreita; não estão mais lá para atribuirmos a elas nossa
própria imaginação, transformá-las em espelhos do que acontece na
escuridão, disso que insuportavelmente não acontece.
Porque não podemos nos mentir, cada rangido das cadeiras de balanço
substitui um diálogo, mas ao mesmo tempo o mantém vivo. Agora sabemos
que era tudo inútil, a fuga, a viagem, a esperança de ainda encontrar um
vazio escuro sem testemunhas, um refúgio propício ao recomeço (porque o
arrependimento não condiz com nossa natureza, o que fizemos está feito e
iremos recomeçar assim que nos saibamos a salvo de represálias). É como
se de repente toda a veteranice do passado cessasse de atuar, nos
abandonasse como os deuses abandonam Antonio no poema de Kaváfis. Se
ainda pensamos na estratégia que garantiu nossa chegada à ilha, se
imaginamos por um momento todos os horários possíveis, os telefones
eficazes em outros portos e cidades, fazemos isso com a mesma indiferença
abstrata com que frequentemente citamos poemas jogando as infinitas
carambolas da associação mental. O pior é que não sabemos por quê, a
mudança se operou desde a chegada, desde os primeiros murmúrios do
outro lado do tabique que imaginávamos ser uma simples barreira, também
abstrata, para a solidão e o repouso. Que outra voz inesperada por um
momento se somasse aos sussurros não tinha por que ser nada além de um
enigma banal de verão. O mistério do quarto ao lado como o de Mary
Celeste, alimento frívolo de sestas e caminhadas. Nem sequer lhe damos
importância especial, jamais o mencionamos; sabemos apenas que já é
impossível deixar de prestar atenção, de orientar para o tabique qualquer
atividade, qualquer repouso.
Talvez por isso, na noite alta em que fingimos dormir, não nos surpreende
muito a tosse breve, seca, que vem do outro bangalô, seu tom
inconfundivelmente masculino. Quase nem é uma tosse, é mais um sinal
involuntário, ao mesmo tempo discreto e penetrante como eram os
murmúrios das moças, mas agora sim sinal, agora sim uma intimação
depois de tanta conversa alheia. Nós nos levantamos sem falar, o silêncio
caiu de novo na sala, só um dos cães late ao longe sem parar. Esperamos um
tempo sem medida possível; o visitante do bangalô também se cala, talvez
também espere ou tenha ido dormir entre as flores amarelas dos lençóis.
Não importa, agora há um acordo que não tem nada a ver com a vontade, há
um termo que prescinde de forma e de fórmulas; em algum momento
vamos nos aproximar sem nos consultar, sem sequer tentar nos olhar no
escuro. Não precisamos nos olhar, sabemos que estamos pensando em
Michael, em como Michael também voltou à granja de Erik, voltou sem
nenhuma razão aparente porque para ele a granja já estava vazia como o
bangalô do lado, voltou como o visitante das moças voltou, como Michael e
os outros voltando como as moscas, voltando sem saber que são esperados,
que dessa vez vêm para um encontro diferente.
Na hora de dormir tínhamos vestido, como sempre, as camisolas; agora as
deixamos cair como manchas brancas e gelatinosas no chão, nuas vamos até
a porta e saímos para o jardim. Só é preciso bordejar a cerca viva que
prolonga a divisão das duas alas do bangalô; a porta continua fechada, mas
sabemos que não está, que basta tocar na maçaneta. Não há luz lá dentro
quando entramos juntas; é a primeira vez em muito tempo que nos
apoiamos uma na outra para andar.
II.
Aqui é preciso dizer que não tive a menor ajuda deles, muito pelo contrário;
esperar ou procurar por ajuda teria sido insensato. Eles estão aí e nem ao
menos sabem que sua história escrita começa neste exato parágrafo. De
minha parte, não gostaria de delatá-los, e em todo caso não vou mencionar
os poucos nomes de que tomei conhecimento naquelas semanas em que
entrei no seu mundo; se fiz tudo isso, se escrevo esse relatório, acho que
tive bons motivos, quis ajudar os portenhos sempre afligidos pelos
problemas do transporte. Agora nem isso importa mais, agora tenho medo,
agora não me animo a descer lá, mas é injusto ter de viajar lenta e
desconfortavelmente de bonde quando se está a dois passos do metrô que
todo mundo pega porque não tem medo. Sou bastante honesto para
reconhecer que se eles forem expulsos — sem escândalo, claro, sem que
ninguém se dê conta inteiramente —, vou me sentir mais tranquilo. E não
porque minha vida tenha se sentido ameaçada quando eu estava lá embaixo,
mas também não me senti seguro um instante sequer enquanto avançava em
minha pesquisa de tantas noites (ali tudo acontece de noite, nada mais falso
e teatral que os raios de sol que irrompem das claraboias entre duas
estações, ou rolam até a metade das escadas de acesso às estações); é bem
possível que alguma coisa tenha acabado por me delatar, e que eles já
saibam por que passo tantas horas no metrô, assim como eu os distingo
imediatamente entre a multidão espremida nas estações. São tão pálidos,
agem com uma eficiência tão evidente; são tão pálidos e estão tão tristes,
quase todos estão muito tristes.
***
Passei uma hora no café sem me decidir a pisar de novo no primeiro degrau
da escada, a ficar ali no meio das pessoas que sobem e descem, ignorando
os que me olham de soslaio sem entender por que não me decido a me
mover numa zona onde todos se movem. Acho quase impensável ter levado
a termo a análise de seus métodos gerais e não ser capaz de dar o passo
final que me permitirá a revelação de suas identidades e de seus propósitos.
Recuso-me a aceitar que o medo me dê esse aperto no peito; talvez me
decida, talvez seja melhor me apoiar no corrimão da escada e gritar o que
sei de seu plano, o que penso saber sobre o Primeiro (vou falar, mesmo que
Montesano não goste que eu refute sua pesquisa), e principalmente as
consequências de tudo isso para a população de Buenos Aires. Até agora
continuei escrevendo no café, a tranquilidade de estar na superfície e num
lugar neutro me enche de uma calma que eu não tinha quando desci até o
quiosque. Sinto que, de algum modo, vou descer de novo, que vou me
obrigar, passo após passo, a descer a escada, mas por enquanto será melhor
terminar meu relatório para mandá-lo ao prefeito ou ao delegado de polícia,
com uma cópia para Montesano, e depois vou pagar o café e com certeza
descerei, tenho certeza disso, embora ainda não saiba como vou fazer, de
onde vou tirar forças para descer degrau por degrau agora que me
conhecem, agora que por fim acabaram por me conhecer, mas não importa
mais, antes de descer estarei com o rascunho pronto, vou dizer senhor
prefeito ou senhor delegado, há alguém lá embaixo que caminha, alguém
que anda pelas plataformas e, quando ninguém percebe, quando só eu
consigo saber e escutar, se fecha numa cabine mal iluminada e abre a bolsa.
Então chora, primeiro chora um pouco e depois, senhor prefeito, diz: “Mas
o canário, você cuida dele, né? Você vai lhe dar o alpiste toda manhã, e o
pedacinho de baunilha?”.
Recortes de jornal
Embora não ache necessário dizer, o primeiro recorte é real e o
segundo imaginário.
escultor mora na rua Riquet, o que não me parece uma boa ideia, mas
O em Paris não dá para escolher muito quando se é ao mesmo tempo
argentino e escultor, duas maneiras habituais de se morar com dificuldade
nesta cidade. Na verdade, nós mal nos conhecemos, só de recortes de tempo
que já abrangem vinte anos; quando ele me telefonou para falar de um livro
com reproduções de seus trabalhos mais recentes e me pediu um texto que
pudesse acompanhá-las, eu lhe disse o que sempre convém dizer nesses
casos, ou seja, que ele me mostrasse suas esculturas e depois, veríamos, ou
melhor, veríamos, e depois.
De noite fui ao seu apartamento e no começo houve café e dribles
amáveis, nós dois sentíamos o que inevitavelmente se sente quando alguém
mostra sua obra a outro e chega aquele momento quase sempre temível em
que as fogueiras se acenderão ou será preciso admitir, tapando com
palavras, que a lenha estava molhada e fazia mais fumaça que calor. Já
antes, por telefone, ele tinha comentado comigo seus trabalhos, uma série
de pequenas esculturas cujo tema era a violência em todas as latitudes
políticas e geográficas, mostrando o homem como lobo do homem.
Sabíamos alguma coisa sobre isso, mais uma vez dois argentinos deixando
subir a maré das lembranças, a acumulação cotidiana do espanto através de
telegramas, cartas, silêncios repentinos. Enquanto conversávamos, ele ia
desocupando uma mesa; me acomodou numa poltrona propícia e começou a
trazer as esculturas, dispunha-as sob uma luz bem pensada, me deixava
olhá-las devagar e depois as girava pouco a pouco; quase não
conversávamos agora, elas tinham a palavra e essa palavra continuava
sendo a nossa. Uma após a outra, até completar uma dezena ou algo assim,
pequenas e filiformes, de argila ou de gesso, nascendo de arames ou de
garrafas pacientemente envolvidas pelo trabalho dos dedos e da espátula,
crescendo a partir de latas vazias e de objetos que só a confidência do
escultor me deixava conhecer por sob corpos e cabeças, braços e mãos. Já
era tarde da noite, da rua vinha apenas um barulho de caminhões pesados,
uma sirene de ambulância.
Gostei que no trabalho do escultor não houvesse nada de sistemático ou
muito explicativo, que cada peça contivesse um pouco de enigma e que às
vezes fosse preciso olhar demoradamente para compreender a modalidade
que nela assumia a violência; as esculturas me pareceram ingênuas e sutis,
em todo caso sem sensacionalismo nem chantagem sentimental. Até a
tortura, essa forma última em que a violência se cumpre no horror da
imobilidade e do isolamento, não tinha sido mostrada com a duvidosa
minúcia de tantos cartazes e textos e filmes que voltavam à minha memória
também duvidosa, muito pronta também para guardar imagens e devolvê-
las para sabe-se lá que obscura complacência. Pensei que se escrevesse o
texto que o escultor me pedira, se eu escrever o texto que você me pediu,
disse a ele, vai ser um texto como essas peças, jamais me deixarei levar pela
facilidade por demais abundante nesse terreno.
— Isso é com você, Noemí — disse ele. — Eu sei que não é fácil, temos
tanto sangue nas lembranças que às vezes a gente se sente culpado de lhe
impor limites, de manipulá-lo para que não nos inunde totalmente.
— Diz isso pra mim? Olhe este recorte, eu conheço a mulher que o assina
e que estava sabendo de algumas coisas por informações de amigos.
Aconteceu há três anos, mas podia ter sido ontem à noite ou pode estar
acontecendo bem agora em Buenos Aires ou em Montevidéu. Justamente
antes de vir pra sua casa abri a carta de um amigo e encontrei o recorte. Me
dê mais um café enquanto o lê, na verdade não é preciso que você o leia
depois do que me mostrou, mas sei lá, vou me sentir melhor se você
também ler.
O que ele leu era isto:
A que subscreve, Laura Beatriz Bonaparte Bruschtein, domiciliada em Atoyac, número 26,
distrito 10, Colonia Cuauhtémoc, México 5, DF, deseja comunicar à opinião pública o seguinte
testemunho:
1. Aída Leonora Bruschtein Bonaparte, nascida em 21 de maio de 1951 em Buenos Aires,
Argentina, profissão professora de alfabetização.
Fato: Às dez horas da manhã do dia 24 de dezembro de 1975 foi sequestrada por pessoal do
Exército argentino (Batalhão 601) em seu local de trabalho, na Favela de Monte Chingolo, próxima
da Capital Federal.
No dia anterior esse local havia sido palco de uma batalha que deixara um saldo de mais de cem
mortos, inclusive pessoas do lugar. Minha filha, depois de sequestrada, foi levada à guarnição
militar Batalhão 601.
Lá foi brutalmente torturada, bem como outras mulheres. As que sobreviveram foram fuziladas
naquela mesma noite de Natal. Entre elas estava minha filha.
O sepultamento dos mortos em combate e dos civis sequestrados, como é o caso de minha filha,
demorou cerca de cinco dias. Todos os corpos, inclusive o dela, foram trasladados com
escavadeiras do batalhão à delegacia de Lanús, e dali ao cemitério de Avellaneda, onde foram
enterrados numa vala comum.
Tango da volta
Le hasard meurtrier se dresse au coin de la première rue. Au
retour l’heure-couteau attend.
MARCEL BÉLANGER, “Nu et noir”
Clone
T
udo parece girar em torno de Gesualdo, se ele tinha o direito de
fazer o que fez ou se ele se vingou em sua mulher de alguma coisa
que devia ter vingado em si mesmo. Entre dois ensaios, descendo
ao bar do hotel para descansar um pouco, Paola discute com Lucho
e Roberto, os outros jogam canastra ou sobem para seus quartos. Ele teve
motivo, insiste Roberto, naquela época ou agora é a mesma coisa, a mulher
o enganava e ele a matou, um tango a mais, Paolita. Sua trama de macho,
diz Paola, os tangos, claro, mas agora há mulheres que também compõem
tangos, e já não se canta sempre a mesma coisa. Teria que ir mais fundo
nisso, insinua Lucho, o tímido, não é tão fácil saber por que se trai e por que
se mata. Lá no Chile pode ser, diz Roberto, vocês são tão refinados, mas pra
nós, de La Rioja, é na base do facão. Eles riem, Paola quer um gim-tônica, é
fato que seria preciso procurar mais atrás, mais embaixo, Gesualdo pegou a
mulher na cama com outro homem e os matou ou mandou matar, essa é a
notícia policial ou o flash do meio-dia, o resto (mas certamente no resto se
esconde a verdadeira notícia) é preciso pesquisar, e isso não é fácil, depois
de quatro séculos. Há muita bibliografia sobre Gesualdo, lembra Lucho, se
você tem tanto interesse, averigue isso quando voltarmos a Roma, em
março. Boa ideia, concorda Paola, mas o que temos de ver é se vamos
voltar a Roma.
Roberto olha para ela sem falar, Lucho abaixa a cabeça e depois chama o
garçom para pedir mais drinques. Está falando do Sandro?, diz Roberto,
quando vê que Paola se perdeu de novo em Gesualdo ou na mosca que voa
perto do teto. Não concretamente, diz Paola, mas você há de convir que as
coisas não andam fáceis. Vai passar, diz Lucho, é puro capricho e birra ao
mesmo tempo, o Sandro não vai além disso. É, admite Roberto, mas nesse
meio-tempo é o grupo quem paga o pato, ensaiamos mal, e pouco, e no final
isso vai ser notado. É verdade, diz Lucho, cantamos tensos, temos medo de
pisar na bola. Já pisamos na bola em Caracas, diz Paola, ainda bem que lá
as pessoas quase não conhecem Gesualdo, acharam que a patinada do
Mario foi outra audácia harmônica. Ruim mesmo vai ser se uma coisa
dessas nos acontece com um Monteverdi, resmunga Roberto, esse eles
conhecem de cor, tchê.
Não deixava de ser muito incomum que o único casal estável do conjunto
fosse o de Franca e Mario. De longe, olhando Mario conversar com Sandro
diante de uma partitura e duas cervejas, Paola disse a si mesma que as
alianças efêmeras, os casais de um fugaz momento feliz, raramente
aconteciam dentro do grupo, talvez algum fim de semana de Karen com
Lucho (ou de Karen com Lily, pois Karen, já se sabia, e Lily talvez por pura
bondade, ou para saber como era aquilo, mas também de Lily com Sandro,
latitude generosa de Karen e de Lily, afinal de contas). Sim, era preciso
reconhecer que o único casal estável e que merecia esse nome era o de
Franca e Mario, com aliança no dedo e tudo o mais. Quanto a ela mesma,
um dia se permitira, em Bergamo, um quarto de hotel, ainda por cima cheio
de cortinados e de rendas, com Roberto numa cama que parecia um cisne,
rápido interlúdio sem manhã, tão amigos como sempre, lances assim entre
dois concertos, quase entre dois madrigais, Karen e Lucho, Karen e Lily,
Sandro e Lily. E todos muito amigos, porque, de fato, os verdadeiros casais
se completavam no final das turnês, em Buenos Aires e Montevidéu, lá os
esperavam mulheres e maridos e crianças e casas e cachorros até a nova
turnê, uma vida de marinheiros com os inevitáveis parênteses de
marinheiros, nada importante, gente moderna. Até que. Pois agora alguma
coisa tinha mudado desde. Não consigo pensar, diz Paola, só me saem
pedaços soltos de coisas. Estamos todos muito tensos, damn it. De repente
assim, olhar de outra maneira Mario e Sandro discutindo música, como se
no fundo ela imaginasse outra discussão. Mas não, não falavam disso,
justamente disso era certo que não falavam. Enfim, restava o fato de que o
único casal verdadeiro era o de Mario e Franca, ainda que, naturalmente,
não fosse isso que Mario e Sandro estavam discutindo. Mas, quem sabe, no
fundo, sempre no fundo.
Os três iriam à praia de Ipanema, de noite o grupo vai cantar no Rio e é
preciso aproveitar. Franca gosta de passear com Lucho, têm a mesma forma
de ver as coisas, como se mal tocassem nelas com os dedos dos olhos, eles
se divertem muito. Roberto se colará a eles no último minuto, uma pena,
porque vê tudo de um jeito sério e quer plateia, vão deixá-lo à sombra lendo
o Times e irão jogar bola na areia, nadar e conversar, enquanto Roberto se
perde num devaneio onde Sandro aparece de novo, aquela paulatina perda
de contato de Sandro com o grupo, sua sorrateira teimosia que está fazendo
tanto mal a todos. Agora Franca vai lançar a bola branca e vermelha, Lucho
vai pular para apanhá-la, vão rir como bobos a cada lance, é difícil se
concentrar no Times, é difícil manter a coesão quando um diretor musical
perde contato com o que está acontecendo com Sandro e não por culpa de
Franca, claro que não é culpa dela, como também não é culpa de Franca que
agora a bola caia entre os copos dos que tomam cerveja sob um guarda-sol
e seja preciso ir correndo pedir desculpas. Dobrando o Times, Roberto vai
se lembrar da conversa que teve com Paola e com Lucho lá no bar; se o
Mario não se decide a fazer alguma coisa, se não diz pro Sandro que a
Franca jamais vai entrar em outro jogo senão no seu, tudo vai acabar indo
por água abaixo, o Sandro não só está dirigindo mal os ensaios como até
canta mal, perde aquela concentração que concentrava, por sua vez, o grupo
e lhe dava unidade e o colorido tonal tão comentado pelos críticos. Bola na
água, corrida dupla, Lucho primeiro, Franca se atirando de cabeça numa
onda. Sim, o Mario tem que perceber (é impossível que ainda não tenha
percebido), o grupo acabará indo irremediavelmente por água abaixo se o
Mario não decidir cortar o mal pela raiz. Mas onde começar a cortar, o que
é preciso cortar se nada aconteceu, se ninguém pode dizer que alguma coisa
aconteceu?
Começam a desconfiar, eu sei, mas o que vou fazer se isso é como uma
doença, se não posso olhá-la, indicar-lhe uma entrada sem que, novamente,
essa dor e essa delícia ao mesmo tempo, sem que tudo estremeça e deslize
como areia, um vento no cenário, um rio sob meus pés. Ah, se outro de nós
dirigisse, se a Karen ou o Roberto dirigissem pra que eu pudesse me diluir
no conjunto, simples tenor entre as outras vozes, talvez então, talvez por
fim. Ele está sempre assim agora, como você vê, diz Paola, lá está ele
sonhando acordado, no meio do mais espinhoso dos Gesualdos, quando é
preciso medir no milímetro pra coisa não desandar, bem agora ele parece
estar no ar, caralho. Pequena, diz Lucho, as mulheres de bem não falam
caralho. Mas com que pretexto fazer a mudança, falar com a Karen ou com
o Roberto, sem contar que não é certo que vão aceitar, eu os dirijo já há
bastante tempo e isso não se muda assim de repente, técnica à parte. Ontem
à noite foi tão difícil, cheguei a pensar que um deles ia me dizer isso no
intervalo, dá pra ver que não aguentam mais. No fundo você tem razão de
praguejar, diz Lucho. No fundo sim, mas é idiota, diz Paola, o Sandro é o
mais músico de todos nós, sem ele não seríamos o que somos. O que fomos,
murmura Lucho.
Quase uma mania, Gesualdo. Pois eles o amavam, claro, e cantar seus às
vezes quase incantáveis madrigais demandava um esforço que se
prolongava no estudo dos textos, procurando a melhor forma de aliar os
poemas à melodia, como o príncipe de Venosa fez, à sua maneira obscura e
genial. Cada voz, cada tom devia encontrar aquele centro esquivo do qual
surgiria a realidade do madrigal, e não uma das tantas versões mecânicas
que às vezes escutavam em discos para comparar, para aprender, para ser
um pouco Gesualdo, príncipe assassino, senhor da música.
Nessa época estouravam as polêmicas, quase sempre Roberto e Paola,
Lucho mais moderado, mas acertando o alvo, cada um com seu jeito de
sentir Gesualdo, a dificuldade de se curvar a outra versão, mesmo que só se
afastasse minimamente do desejado. Roberto tinha razão, o clone ia se
desagregando e todo dia apareciam mais os indivíduos com suas
discrepâncias, suas resistências, e no fim Sandro, como sempre, decidia a
parada, ninguém questionava sua maneira de sentir Gesualdo, a não ser
Karen e, às vezes, Mario, nos ensaios eram sempre eles que sugeriam
mudanças e encontravam falhas, Karen quase venenosamente contra Sandro
(um velho amor fracassado, teoria de Paola) e Mario resplandecente de
comparações, exemplos e jurisprudências musicais. Como numa modulação
ascendente, os conflitos duravam horas até a negociação ou o acordo
momentâneo. Cada madrigal de Gesualdo que acrescentavam ao repertório
era um novo confronto, talvez o regresso à noite em que o príncipe
desembainhou a adaga olhando os amantes nus e adormecidos.
Lily e Roberto escutando Sandro e Lucho, seus jogos de inteligência
depois de dois scotchs. Fala-se de Britten e de Webern e, no fim, sempre do
príncipe de Venosa, hoje é um acento que devia ser mais marcado em “O
voi, troppo felici” (Sandro), ou deixar que a melodia flua em toda a sua
ambiguidade gesualdesca (Lucho). Que sim, que não, que nesta sim,
pingue-pongue pelo prazer dos lances de efeito, das respostas ferinas. Você
vai ver quando formos ensaiar (Sandro), talvez não seja uma boa prova
(Lucho), queria saber por quê, e Lucho saturado, abrindo a boca para dizer
o que Roberto e Lily também diriam, se Roberto não se metesse,
misericordioso, esmagando as palavras de Lucho, propondo outra rodada e
Lily sim, os outros claro, com bastante gelo.
Procurou-o depois do concerto, não que as coisas tivessem ido mal, mas
novamente aquela tensão como uma ameaça latente de perigo, de erro,
Karen e Paola cantando sem ânimo, Lily pálida, Franca quase sem olhá-lo,
os homens concentrados e ao mesmo tempo meio ausentes; ele mesmo com
problemas na voz, dirigindo com frieza, mas se atemorizando à medida que
avançavam no programa, um público hondurenho entusiasmado que não
bastava para tirar aquele gosto ruim da boca, por isso procurou Lucho
depois do concerto e lá no bar do hotel com Karen, Mario, Roberto e Lily,
bebendo quase sem conversar, esperando o sono entre histórias maçantes,
Karen e Mario logo foram embora, mas Lucho não parecia querer se afastar
de Lily e de Roberto, e foi preciso ficar a contragosto, com a saideira se
prolongando no silêncio. No fim das contas, é melhor que voltemos a ser de
novo os da outra noite, disse Sandro, enfrentando a parada, estava
procurando você pra repetir o que já tinha dito. Ah, disse Lucho, mas eu
respondo o que já lhe respondi. Roberto e Lily outra vez na defesa, há
outras opções, tchê, por que insistir só com Lucho? Como quiserem, pra
mim tanto faz, disse Sandro, bebendo o uísque de um trago, conversem
entre vocês, quando decidirem me digam. Meu voto é pro Lucho. O meu é
pro Mario, disse Lucho. Não se trata de votar agora, que droga (Roberto
exasperado e Lily, mas claro). Concordo, temos tempo, o próximo concerto
é em Buenos Aires, daqui a duas semanas. Vou dar um pulo em La Rioja
pra ver minha velha (Roberto, e Lily, eu preciso comprar uma bolsa). Você
me procura pra me dizer isso, disse Lucho, tudo bem, mas uma coisa dessas
precisa de explicações, aqui cada um tem sua teoria e você também, claro,
está na hora de pô-las sobre a mesa. De qualquer forma, esta noite não,
decretou Roberto (e Lily, obviamente, estou caindo de sono, e Sandro
pálido, olhando sem ver o copo vazio).
Foi assim como estou lhe contando, gritei isso bem na cara dele, e veja só o
que ele me respondeu, aquele grande… Psit, pequena, diz Roberto, cornudo
é um palavrão, se você disser isso lá no meu pedaço, vai causar uma
hecatombe. Não quis dizer isso, Paola meio que se arrepende, ninguém sabe
se eles estão indo pra cama, e afinal o que importa se eles estão dormindo
juntos ou se eles se olham como se estivessem na cama em pleno concerto,
o assunto é outro. Aí você está sendo injusta, diz Roberto, quem olha, quem
cai, quem vai como mariposa pra lâmpada, esse idiota infecto é o Sandro,
ninguém pode censurar a Franca por ter lhe devolvido essa espécie de
ventosa que ele aplica cada vez que a vê pela frente. Mas o Mario, insiste
Paola, como ele aguenta? Imagino que confia nela, diz Roberto, e ele está
mesmo apaixonado por ela, sem necessidade de ventosas nem de caras
lânguidas. Digamos que sim, aceita Paola, mas por que ele se recusa a nos
dirigir quando o Sandro é o primeiro a concordar, quando o próprio Lucho
pediu e todos nós lhe pedimos?
Viram-nos sair juntos do hotel, Mario levava Franca pelo braço, Lucho e
Roberto, lá do bar, podiam seguir os dois lentamente se afastando
abraçados, a mão de Franca rodeando a cintura de Mario, que virava um
pouco a cabeça para falar com ela. Entraram num táxi, o tráfego do centro
os meteu em sua lenta serpente.
— Não estou entendendo, cara — disse Roberto a Lucho —, juro que não
estou entendendo nada.
— Diz isso pra mim, camarada?
— Nunca foi tão claro como nesta manhã, tudo saltava à vista porque é de
vista que se trata, desse disfarce inútil do Sandro, que se lembra tarde
demais de disfarçar, o grande imbecil, e ela exatamente o contrário, pela
primeira vez cantando pra ele e apenas pra ele.
— A Karen me chamou a atenção pra isso, você tem razão, dessa vez ela
olhava pra ele, era ela que o queimava com os olhos, e o que esses olhos
podem, quando querem…
— E assim, sabe como é — disse Roberto —, por um lado, o pior
desajuste que tivemos desde que começamos, e a seis horas do concerto, e
que concerto, aqui eles não perdoam, você sabe. Isso por um lado, que é a
própria prova de que a coisa está feita, é uma coisa que você sente com o
sangue ou com a próstata, eu sempre soube disso.
— Quase as mesmas palavras da Karen e da Paola, tirando a próstata —
disse Lucho. — Eu devo ser menos sexy que vocês, mas dessa vez também
é transparente pra mim.
— Por outro lado, você tem o Mario aí, tão contente, indo com ela fazer
compras ou tomar uns tragos, o casamento perfeito.
— Não é possível que ele não saiba.
— E que a deixe fazer esses paparicos de putona ordinária.
— Ora, Roberto.
— Mas que droga, chileno, me deixe desabafar, pelo menos.
— Faz bem — disse Lucho —, precisamos disso antes do concerto.
— O concerto — disse Roberto. — Eu me pergunto se…
Eles se olharam e, como era de esperar, deram de ombros e pegaram os
cigarros.
Quando chega a hora, acho natural escrever como se fosse um ditado; por
isso, de quando em quando me imponho regras estritas, à maneira de
variação de algo que acabaria se tornando monótono. Neste conto, a
“trama” consistiu em ajustar uma narração ainda inexistente ao molde da
Oferenda musical, de Johann Sebastian Bach.
Sabe-se que o tema dessa série de variações em forma de cânone e fuga
foi dada a Bach por Frederico, o Grande, e que, depois de improvisar em
sua presença uma fuga baseada nesse tema — ingrato e espinhoso —, o
mestre escreveu a Oferenda musical em que o tema real é tratado de uma
forma mais diversa e complexa. Bach não indicou os instrumentos que
deveriam ser utilizados, salvo no Trio sonata para flauta, violino e cravo;
com o passar do tempo, até a ordem das partes passou a depender da
vontade dos músicos encarregados de executar a obra. Nesse caso, vali-me
da orquestração de Millicent Silver para oito instrumentos contemporâneos
de Bach, que permite acompanhar em todos os detalhes a elaboração de
cada passagem, e que foi gravada pelo London Harpsichord Ensemble no
disco Saga XID 5237.
Escolhida essa versão (ou depois de ser escolhido por ela, pois ao ouvi-la
me veio a ideia de um conto que se dobrasse a seu desenvolvimento), deixei
o tempo passar; nada pode ser apressado na escrita, e o aparente
esquecimento, a distração, os sonhos e os acasos tecem,
imperceptivelmente, sua futura tapeçaria. Viajei para uma praia levando a
fotocópia da capa do disco no qual Frederick Youens analisa os elementos
da Oferenda musical; imaginei, vagamente, um conto que logo me pareceu
intelectual demais. A regra do jogo era ameaçadora: oito instrumentos
deviam ser representados por oito personagens, oito desenhos sonoros
respondendo, alternando-se ou se opondo deviam encontrar sua correlação
em sentimentos, condutas e relações de oito pessoas. Imaginar um duplo
literário do London Harpsichord Ensemble me pareceu uma bobagem, na
medida em que um violinista ou um flautista não se dobram, na vida
privada, aos temas musicais que executam; mas, ao mesmo tempo, a noção
de corpo, de conjunto, tinha de existir, de alguma forma, desde o princípio,
uma vez que a pequena extensão de um conto não permitiria a integração
eficaz de oito pessoas que não tivessem tido relação ou contato prévios à
narração. Uma conversa casual me trouxe a lembrança de Carlo Gesualdo,
madrigalista genial e assassino de sua mulher; tudo se condensou num
segundo, e os oito instrumentos foram vistos como integrantes de um
conjunto vocal; assim, desde a primeira frase existiria a coesão de um
grupo, todos eles se conheceriam e se amariam e se odiariam desde antes; e
além disso, claro, cantariam os madrigais de Gesualdo, noblesse oblige.
Imaginar uma ação dramática nesse contexto não era difícil; dobrá-la aos
sucessivos movimentos da Oferenda musical continha o desafio, quer dizer,
o prazer que o escritor se propusera, antes de mais nada.
Houve, assim, a imprescindível cozinha literária; a teia de aranha das
profundezas devia se mostrar, na hora certa, como acontece quase sempre.
Para começar, a distribuição instrumental de Millicent Silver encontrou sua
equivalência em oito cantores cujo registro vocal guardava uma relação
analógica com os instrumentos. Isso deu:
Flauta: Sandro, tenor.
Violino: Lucho, tenor.
Oboé: Franca, soprano.
Corne-inglês: Karen, mezzo soprano.
Viola: Paola, contralto.
Violoncelo: Roberto, barítono.
Fagote: Mario, baixo.
Cravo: Lily, soprano.
1. Largo
2. Allegro
3. Andante
4. Allegro
a) Fagote e violoncelo
b) Viola e fagote
c) Viola e violoncelo
d) Viola e fagote
Como esta nota já está quase tão extensa quanto o conto, não tenho
escrúpulos em estendê-la mais um pouco. Minha ignorância em matéria de
conjuntos vocais é total, e os profissionais do gênero encontrarão aqui
grande motivo de regozijo. De fato, quase tudo o que conheço sobre música
e músicos me vem da capa dos discos, que leio com o máximo cuidado e
proveito. Isso vale também para as referências a Gesualdo, cujos madrigais
há muito tempo me acompanham. Que ele matou a mulher é certo; o resto,
outras possíveis consonâncias com meu texto, seria preciso perguntar para
Mario.
Graffiti
A Antoni Tàpies
T
antas coisas que começam e talvez acabem como um jogo, imagino
que você achou divertido encontrar o desenho ao lado do seu,
atribuiu isso ao acaso ou a um capricho, e só na segunda vez você
percebeu que era intencional e então olhou para ele devagar, até
voltou, mais tarde, para olhá-lo de novo, tomando as precauções de sempre:
a rua em seu momento mais solitário, nenhum camburão nas esquinas
próximas, aproximar-se com indiferença e nunca olhar os graffiti de frente,
só da outra calçada ou de viés, fingindo interesse na vitrine do lado, indo
embora depressa.
Seu próprio jogo começara por tédio, não era, na verdade, um protesto
contra o estado de coisas na cidade, o toque de recolher, a proibição
ameaçadora de colar cartazes ou escrever nos muros. Você simplesmente
achava divertido fazer desenhos com giz colorido (não gostava do termo
graffiti, tão de crítico de arte), de quando em quando vir vê-los e até, com
um pouco de sorte, observar a chegada do caminhão municipal e os insultos
inúteis dos funcionários ao apagar os desenhos. Pouco lhes importava que
não fossem desenhos políticos, a proibição abrangia qualquer coisa, se
alguma criança tivesse se atrevido a desenhar uma casa ou um cachorro,
eles os teriam apagado do mesmo jeito, entre palavrões e ameaças. Na
cidade, já não se sabia bem de que lado estava, verdadeiramente, o medo;
talvez por isso você achasse divertido dominar o seu e de tempos em
tempos escolher o lugar e a hora apropriados para fazer um desenho.
Nunca tinha corrido perigo porque sabia escolher bem, e no tempo que
transcorria até os caminhões de limpeza chegarem parecia se abrir para
você uma espécie de espaço mais limpo, onde quase cabia a esperança.
Olhando seu desenho de longe, você podia ver as pessoas que davam uma
olhada nele ao passar, ninguém parava, claro, mas ninguém deixava de
olhar o desenho, às vezes uma rápida composição abstrata em duas cores,
um perfil de pássaro ou duas figuras enlaçadas. Só uma vez você escreveu
uma frase, com giz preto: Dói também em mim. Não durou duas horas, e
dessa vez a polícia em pessoa sumiu com ela. Depois você continuou a
fazer apenas desenhos.
Quando o outro apareceu ao lado do seu você quase teve medo, de repente
o perigo era dobrado, alguém se animava, como você, a se divertir à beira
da prisão ou coisa pior, e esse alguém, ainda por cima, era uma mulher.
Você mesmo não podia prová-lo, havia algo diferente e melhor que as
provas mais cabais: um traço, uma predileção por gizes de cores quentes,
uma aura. Como você andava só, talvez tenha imaginado isso por
compensação; admirou-a, teve medo dela, esperou que fosse a única vez,
quase se delatou quando ela voltou a desenhar ao lado de outro desenho
seu, uma vontade de rir, de ficar ali na frente como se os policiais fossem
cegos ou idiotas.
Começou um tempo diferente, mais sigiloso, mais bonito e ameaçador ao
mesmo tempo. Negligenciando seu emprego, você saía a qualquer hora na
esperança de surpreendê-la, escolheu para seus desenhos aquelas ruas que
você podia percorrer num só itinerário rápido; voltou ao alvorecer, ao
anoitecer, às três da manhã. Foi uma época de contradição insuportável, a
decepção de encontrar um novo desenho dela junto a algum dos seus e a rua
vazia, e a de não encontrar nada e sentir a rua ainda mais vazia. Certa noite,
você viu o primeiro desenho dela sozinho; ela o fizera com giz vermelho e
azul numa porta de garagem, aproveitando a textura das madeiras
carcomidas e das cabeças dos pregos. Era bem ela, mais que nunca, o traço,
as cores, mas você também sentiu que aquele desenho valia como um apelo
ou uma interrogação, uma forma de chamá-lo. Voltou ao alvorecer, depois
que as patrulhas se dispersaram em sua drenagem surda, e no resto da porta
você desenhou uma paisagem rápida com velas e quebra-mares; se não se
olhasse bem, daria para dizer que era um jogo de linhas ao acaso, mas ela
saberia vê-lo. Naquela noite você escapou por pouco de uma dupla de
policiais, tinha bebido um gim atrás do outro em seu apartamento e lhe
falou, disse tudo o que lhe vinha à boca como outro desenho sonoro, outro
porto com velas, imaginou-a morena e silenciosa, escolheu seus lábios e os
seios, amou-a um pouco.
Quase em seguida pensou que ela buscaria uma resposta, que voltaria ao
seu desenho como agora você voltava aos dela, e embora o perigo fosse
cada vez maior depois dos atentados no mercado, você se atreveu a se
aproximar da garagem, a rondar a quadra, a tomar cervejas intermináveis no
café da esquina. Era absurdo, porque ela não ia parar depois de ver seu
desenho, qualquer uma das mulheres que iam e vinham podia ser ela. No
amanhecer do segundo dia você escolheu um paredão cinza e desenhou um
triângulo branco rodeado de manchas como folhas de carvalho; lá do café
da esquina você podia ver o paredão (já tinham limpado a porta da garagem
e uma patrulha ia e vinha, enfurecida), ao anoitecer você se afastou um
pouco, mas escolhendo diferentes pontos de mira, deslocando-se de um
lugar para outro, comprando pequenas coisas nas lojas para não chamar
muito a atenção. Já era noite fechada quando você ouviu a sirene e os faróis
varreram seus olhos. Havia uma aglomeração confusa junto do paredão,
você correu, indo contra qualquer bom senso, e só foi ajudado pelo acaso de
um carro que dobrava a esquina e que freou ao ver o camburão, seu volume
o protegeu e você viu a luta, cabelos pretos puxados por mãos enluvadas,
pontapés e gritos, a visão entrecortada de umas calças azuis antes que a
jogassem no carro e a levassem.
Muito depois (era horrível tremer assim, era horrível pensar que isso
estava acontecendo por causa de seu desenho no paredão cinza), você se
misturou com outras pessoas e conseguiu ver um esboço em azul, os traços
de um laranja que era como seu nome ou sua boca, ela ali naquele desenho
truncado que os policiais tinham borrado antes de levá-la; tinha sobrado o
suficiente para você entender que ela tentara responder ao seu triângulo
com outra figura, um círculo, ou quem sabe uma espiral, uma forma cheia e
bela, algo como um sim ou um sempre ou um agora.
Você sabia disso muito bem, teria tempo de sobra para imaginar os
detalhes do que devia estar acontecendo no quartel central; na cidade, essas
coisas transpiravam pouco a pouco, as pessoas estavam por dentro do
destino dos prisioneiros, e se às vezes voltavam a ver um ou outro, teriam
preferido não vê-los, e que, tal como a maioria, se perdessem nesse silêncio
que ninguém se atrevia a romper. Você sabia disso de sobra, nessa noite o
gim não o ajudaria senão a roer as unhas, a pisotear os gizes coloridos antes
de se perder na bebedeira e no choro.
Sim, mas os dias passavam e você já não sabia viver de outro jeito.
Largou de novo o trabalho para ficar dando voltas pelas ruas, olhando
furtivamente as paredes e portas onde ela e você tinham desenhado. Tudo
limpo, tudo claro; nada, nem mesmo uma flor desenhada pela inocência de
um colegial que rouba um giz na sala de aula e não resiste ao prazer de usá-
lo. Você também não pôde resistir, e um mês depois se levantou ao
amanhecer e voltou à rua da garagem. Não havia patrulhas, as paredes
estavam perfeitamente limpas; cauteloso, um gato o fitou de um pórtico
quando você pegou os gizes e, no mesmo lugar, lá onde ela tinha deixado
seu desenho, encheu as paredes com um grito verde, uma labareda vermelha
de reconhecimento e amor, envolveu seu desenho com um óvalo que era
também sua boca e a dela e a esperança. Passos na esquina o lançaram
numa corrida abafada até o refúgio de uma pilha de caixotes vazios; um
bêbado trôpego se aproximou cantarolando, quis chutar o gato e caiu de
bruços aos pés do desenho. Você foi embora devagar, seguro, agora, e com
o primeiro sol dormiu como há muito tempo não dormia.
Naquela mesma manhã você olhou de longe: ainda não tinha sido
apagado. Voltou ao meio-dia: quase inconcebivelmente, continuava lá. A
agitação nos subúrbios (você tinha ouvido o noticiário) afastava as
patrulhas urbanas de sua rotina; ao anoitecer, você o viu de novo, como
tanta gente o tinha visto no decorrer do dia. Esperou até as três da manhã
para voltar, a rua estava vazia e escura. De longe, você descobriu o outro
desenho, só você poderia tê-lo distinguido, tão pequeno, no alto e à
esquerda do seu. Aproximou-se com um misto de sede e horror, viu o óvalo
laranja e as manchas roxas de onde parecia saltar um rosto inchado, um
olho pendurado, uma boca esmurrada. Eu sei, eu sei, mas que outra coisa
poderia ter desenhado para você? Que mensagem faria sentido agora? Tinha
de me despedir de você de alguma forma, e ao mesmo tempo lhe pedir que
continuasse. Tinha de lhe deixar alguma coisa antes de voltar para meu
refúgio, onde já não há nenhum espelho, só um buraco para me esconder até
o fim na mais completa escuridão, lembrando de tanta coisa e às vezes,
assim como tinha imaginado sua vida, imaginando que você estava fazendo
outros desenhos, que saía de noite para fazer outros desenhos.
C
onto histórias para mim mesmo quando durmo sozinho, quando a
cama parece maior do que é, e mais fria, mas também as conto
quando Niágara está lá e dorme antes de mim, enrola-se como um
caracolzinho e dorme entre murmúrios contentes, quase como se
ela também estivesse contando uma história para si mesma. Mais de uma
vez eu quis acordá-la para saber como é sua história (ela só murmura já
adormecida, e isso não é, de maneira nenhuma, uma história), mas Niágara
sempre volta do trabalho tão cansada que não seria justo nem gentil acordá-
la assim que ela dorme e parece satisfeita, perdida em seu caracolzinho
perfumado e murmurante, de maneira que a deixo dormir e conto histórias
para mim, como nos dias em que ela trabalha de noite e eu durmo sozinho
nessa cama subitamente enorme.
As histórias que me conto são sobre qualquer coisa, mas quase sempre
comigo no papel central, uma espécie de Walter Mitty portenho que se
imagina em situações anômalas ou estúpidas ou de um intenso dramatismo
muito trabalhado, para que aquele que acompanha a história se divirta com
o melodrama ou a cafonice ou o humor que deliberadamente lhe dá quem a
conta. Porque Walter Mitty também costuma ter seu lado Jekyll e Hyde,
naturalmente a literatura anglo-saxã fez estragos em seu inconsciente e suas
histórias nascem quase sempre muito livrescas e como que compostas para
um prelo igualmente imaginário. De manhã, a mera ideia de escrever as
histórias que me conto antes de dormir me parece inconcebível, além do
que um homem tem de ter seus luxos secretos, suas discretas
extravagâncias, coisas que os outros aproveitariam até a última migalha. E
há também a superstição, não é de hoje que me digo que se escrevesse
qualquer uma dessas histórias que conto para mim mesmo essa história
seria a última, por um motivo que me escapa, mas que talvez tenha a ver
com noções de transgressão ou castigo; então não, é impossível me
imaginar esperando o sono ao lado de Niágara ou sozinho, mas sem poder
me contar uma história, tendo de ficar contando carneirinhos como um
bobo, ou pior, tendo de recordar minhas jornadas cotidianas tão pouco
memoráveis.
Tudo depende do humor do momento, pois eu nunca pensaria em escolher
determinado tipo de história, assim que apago ou apagamos a luz e entro
nessa segunda e bela camada de negror que as pálpebras me trazem, a
história está ali, um começo quase sempre incitante de história, pode ser
uma rua vazia com um carro que vem de muito longe, ou a cara de Marcelo
Macías ao saber que foi promovido, coisa até este momento impensável,
dada sua incompetência, ou simplesmente uma palavra ou um som que se
repetem cinco ou dez vezes e dos quais começa a sair uma primeira imagem
da história. Às vezes me espanta que depois de um episódio que eu poderia
classificar de burocrático, na noite seguinte a história seja erótica ou
esportiva; tenho imaginação, sem dúvida, embora isso só se note antes de
eu ir dormir, mas um repertório tão imprevistamente variado e rico não
deixa de me surpreender. Dilia, por exemplo, por que Dilia tinha de
aparecer nessa história, e justamente nessa história, se Dilia não era uma
mulher que se prestasse, de alguma forma, à semelhante história? Por que
Dilia?
Mas já faz muito tempo que decidi não me perguntar por que Dilia ou o
Transiberiano ou Muhammad Ali ou qualquer um dos cenários onde as
histórias que me conto se situam. Se me lembro de Dilia nesse momento já
fora da história é por outras coisas que também estiveram e estão fora, por
algo que já não é a história, e talvez por isso me obrigue a fazer o que não
gostaria ou não poderia fazer com as histórias que me conto. Naquela
história (sozinho na cama, Niágara só voltaria do hospital às oito da
manhã), desenrolava-se uma paisagem de montanha e uma estrada de dar
medo, que obrigavam a dirigir com cuidado, os faróis varrendo as sempre
possíveis armadilhas visuais de cada curva, sozinho e à meia-noite naquele
caminhão enorme difícil de dirigir numa estradinha à beira do precipício.
Ser caminhoneiro sempre me pareceu um trabalho invejável, porque o
imagino como uma das formas mais simples da liberdade, ir de um lado
para outro num caminhão que é ao mesmo tempo uma casa com seu
colchão para passar a noite numa estrada arborizada, uma lâmpada para ler
e latas de comida e cerveja, um radinho de pilha para ouvir jazz num
silêncio perfeito, e além do mais aquele sentimento de se saber ignorado
pelo resto do mundo, ninguém tem consciência se pegamos essa estrada e
não outra, tantas possibilidades e cidades e aventuras passageiras, até
mesmo assaltos e acidentes, nos quais sempre se leva a melhor, como cabe a
Walter Mitty.
Já me perguntei por que caminhoneiro e não piloto de avião ou capitão de
transatlântico, sabendo, ao mesmo tempo, que isso tem a ver com meu lado
simples e rasteiro, que preciso esconder cada vez mais durante o dia; ser
caminhoneiro é a gente que fala com os caminhoneiros, os lugares por onde
se move um caminhoneiro, de maneira que quando eu me conto uma
história de liberdade é frequente que comece com esse caminhão que
percorre o pampa ou uma paisagem imaginária como a de agora, os Andes
ou as Montanhas Rochosas, em todo caso naquela noite uma estrada difícil,
pela qual eu subia quando avistei a frágil silhueta loira de Dilia ao pé das
rochas violentamente arrancadas do nada pelo feixe de luz dos faróis, as
encostas arroxeadas que tornavam ainda menor e mais abandonada a
imagem de Dilia me fazendo o gesto dos que pedem ajuda, depois de tanto
andar a pé com uma mochila nas costas.
Se ser caminhoneiro é uma história que já me contei muitas vezes, não era
obrigatório encontrar mulheres me pedindo que as levasse, como Dilia
estava fazendo, mas é claro que eu também dera um jeito de essas histórias
quase sempre culminarem numa fantasia em que a noite, o caminhão e a
solidão eram os acessórios perfeitos para uma breve felicidade de fim de
etapa. Às vezes não, às vezes era apenas uma avalanche da qual nem sei
como conseguia escapar, ou os freios que falhavam na descida para que
tudo terminasse num turbilhão de visões cambiantes que me obrigavam a
abrir os olhos e me negar a prosseguir, ir atrás do sono ou da cintura quente
de Niágara, aliviado por ter escapado do pior. Quando a história punha uma
mulher à beira da estrada, essa mulher era sempre uma desconhecida, os
caprichos das histórias que optavam por uma ruiva ou uma mulata, vistas,
talvez, num filme ou numa foto de revista e esquecidas na superfície do dia
até que a história as trazia para mim sem que eu as reconhecesse. Então, ver
Dilia foi, mais que uma surpresa, quase um escândalo, porque Dilia não
tinha nada a fazer naquela estrada e, de certo modo, estava estragando a
história com seu gesto meio implorador, meio intimidante. Dilia e Alfonso
são amigos que eu e Niágara vemos de vez em quando, vivem em órbitas
diferentes e só nos aproxima uma fidelidade dos tempos universitários, a
estima por assuntos e gostos comuns, jantar de vez em quando na casa deles
ou aqui, segui-los de longe em sua vida de casal com um bebê e bastante
dinheiro. Mas que diabos Dilia tinha de fazer ali quando a história estava
acontecendo de tal forma que qualquer moça imaginária sim, mas não Dilia,
porque se uma coisa estava clara na história é que dessa vez eu ia encontrar
uma moça na estrada e daí aconteceriam algumas das muitas coisas que
podem acontecer quando se chega à planície e se faz uma parada depois da
longa tensão da travessia; tudo tão claro desde a primeira imagem, a janta
com outros caminhoneiros na taberna da cidade antes da montanha, uma
história nem um pouco original, mas sempre grata por suas variantes e suas
incógnitas, só que agora a incógnita era diferente, era Dilia, que não fazia
nenhum sentido nessa curva do caminho.
Pode ser que, se Niágara estivesse lá murmurando e arfando docemente
em seu sono, eu tivesse preferido não levar Dilia, apagar Dilia, o caminhão
e a história com só abrir os olhos e dizer a Niágara: “É estranho, quase
dormi com uma mulher, e era a Dilia”, para que talvez Niágara abrisse, por
sua vez, os olhos e me desse um beijo no rosto me chamando de bobo ou
pondo Freud na dança ou me perguntando se algum dia eu já sentira desejo
por Dilia, para me ouvir dizer a verdade, ou seja, que nunca na vida, mas aí
outra vez Freud ou algo parecido. Mas, como me sentia tão só dentro da
história, tão só como o que era, um caminhoneiro em plena travessia da
serra à meia-noite, não fui capaz de passar ao largo: freei devagar, abri a
portinhola e deixei Dilia subir, ela só murmurou um “obrigada” de cansaço
e soneira e se estirou no assento com seu saco de viagem aos pés.
As regras do jogo são cumpridas desde o primeiro momento nas histórias
que me conto. Dilia era Dilia, mas na história eu era um caminhoneiro e
apenas isso para Dilia, jamais pensaria em perguntar a ela o que estava
fazendo ali no meio da noite ou em chamá-la pelo nome. Acho que o
excepcional nessa história era que aquela moça contivesse a pessoa de
Dilia, seu cabelo liso e loiro, os olhos claros e suas pernas que evocavam,
quase convencionalmente, as de uma potranquinha, longas demais para sua
altura; fora isso, a história a tratava como outra qualquer, sem nome nem
relação anterior, um perfeito encontro do acaso. Trocamos duas ou três
frases, passei-lhe um cigarro e acendi outro, começamos a descer a encosta
como um caminhão pesado deve descê-la, enquanto Dilia se estirava ainda
mais, fumando em meio a um abandono e uma sonolência que a
restauravam de tantas horas de marcha, e talvez de medo, na montanha.
Pensei que ela logo dormiria e que era agradável imaginá-la assim até a
planície lá embaixo, pensei que talvez fosse gentil convidá-la a ir para o
fundo do caminhão e se esticar numa cama de verdade, mas jamais, numa
história, as coisas me deixaram fazer isso, porque qualquer uma das moças
teria me olhado com aquela expressão meio amarga, meio desesperada de
quem imagina as intenções imediatas e quase sempre procura o trinco da
porta, a fuga necessária. Tanto nas histórias como na suposta realidade de
qualquer caminhoneiro as coisas não podiam acontecer desse jeito, era
preciso conversar, fumar, fazer amizade, conseguir, com isso tudo, a
aceitação quase sempre silenciosa de uma parada num bosque ou num
refúgio, a aquiescência para o que viria depois, mas que não era mais
amargura nem raiva, simplesmente compartilhar o que já estava sendo
compartilhado desde o papo, os cigarros e a primeira garrafa de cerveja
bebida no gargalo entre duas curvas.
Deixei que dormisse, a história tinha esse desenrolar que sempre me
agradou nas histórias que me conto, a descrição minuciosa de cada coisa e
de cada ato, um filme lentíssimo para um gozo que vai progressivamente
subindo pelo corpo e pelas palavras e pelos silêncios. Ainda me perguntei
por que Dilia nessa noite, mas logo parei de questionar, agora me parecia
tão natural que Dilia estivesse ali cochilando a meu lado, aceitando de vez
em quando outro cigarro ou murmurando uma explicação sobre o motivo de
estar em plena montanha, que a história habilmente embolava entre bocejos
e frases truncadas, já que nada poderia explicar que Dilia estivesse ali
naquele fim de mundo à meia-noite. Em algum momento ela parou de falar
e me olhou sorrindo, aquele sorriso de garota que Alfonso chamava de
cativante, e eu lhe disse meu nome de caminhoneiro, sempre Oscar em
qualquer uma das histórias, e ela disse Dilia e acrescentou, como sempre
acrescentava, que era um nome idiota por causa de uma tia leitora de
romances açucarados e, quase inacreditavelmente eu pensei que não me
reconhecia, que na história eu era Oscar e ela não me reconhecia.
Depois veio tudo isso que as histórias me contam, mas que eu não consigo
contar como elas, apenas fragmentos incertos, ilações talvez falsas, o farol
iluminando a mesinha dobrável no fundo do caminhão estacionado entre as
árvores de um refúgio, o chiado dos ovos fritos, Dilia me olhando depois do
queijo e do doce como se fosse dizer alguma coisa e decidindo que não
diria nada, que não precisava explicar nada para descer do caminhão e
desaparecer sob as árvores, eu facilitando as coisas para ela com o café
quase pronto, já, e até um copinho de grapa, os olhos de Dilia que iam se
fechando entre um gole e uma frase, meu jeito descuidado de levar a
lâmpada até o tamborete ao lado do colchão, pôr mais uma coberta caso
esfriasse mais tarde, dizer que eu iria lá na frente para fechar bem as portas,
por via das dúvidas, nesses trechos desertos nunca se sabe, e ela baixando a
vista e dizendo sabe, não vá ficar dormindo lá no assento, seria idiota, e eu
lhe dando as costas para que não visse minha cara, na qual quem sabe
houvesse um vago espanto pelo que Dilia estava me dizendo, ainda que, é
claro, isso sempre acontecesse assim, de uma forma ou de outra, às vezes a
indiazinha falava em dormir no chão, ou a cigana se refugiava na cabine e
era preciso pegá-la pela cintura e desviá-la para dentro, levá-la para a cama
mesmo que chorasse ou se debatesse, mas Dilia não, Dilia indo lentamente
da mesa para a cama com a mão já buscando o zíper do jeans, esses gestos
que eu podia ver na história mesmo que estivesse de costas e entrando na
cabine para lhe dar tempo, para me dizer que sim, que tudo seria como tinha
de ser mais uma vez, uma sequência ininterrupta e perfumada, o lentíssimo
travelling que ia da silhueta imóvel sob os faróis na curva da montanha até
Dilia, agora quase invisível sob as cobertas de lã, e então o corte de sempre,
apagar a lâmpada para que só restasse o difuso cinza da noite entrando pela
janela traseira com um ou outro lamento de pássaro próximo.
Dessa vez a história durou interminavelmente porque nem Dilia nem eu
queríamos que acabasse, há histórias que eu gostaria de prolongar, mas que
a menina japonesa ou a fria condescendente turista norueguesa não deixam,
e apesar de ser eu quem decide na história, chega uma hora em que já não
tenho forças e nem mesmo vontade de fazer durar um lance que depois do
prazer começa a escorregar para a insignificância, lá onde seria preciso
inventar alternativas ou incidentes inesperados para que a história
continuasse viva em vez de ir me levando para o sono com um último beijo
distraído ou um resto de choro quase inútil. Mas Dilia não queria que a
história terminasse, desde seu primeiro gesto, quando deslizei para junto
dela e em vez do esperado senti que me buscava, desde a primeira carícia
dupla eu soube que a história só estava começando, que a noite da história
seria tão longa quanto a da noite em que eu estava contando a história para
mim mesmo. Só que agora não resta nada além disto, palavras falando da
história; palavras como fósforos, gemidos, cigarros, risos, súplicas e
demandas, café ao amanhecer e um sono de águas pesadas, de serenos e de
retornos e de abandonos, com uma primeira língua tímida de sol
atravessando a janela para lamber as costas de Dilia jogada sobre mim, para
me ofuscar enquanto eu a estreitava para senti-la se abrir mais uma vez
entre gritos e carícias.
A história termina aí, sem despedidas convencionais, na primeira
cidadezinha da estrada, como se tivesse sido quase inevitável, da história
passei para o sono sem mais nada além do peso do corpo de Dilia
dormindo, por sua vez, sobre mim, depois de um último murmúrio, quando
acordei Niágara falava comigo sobre o café da manhã e sobre um
compromisso que tínhamos de tarde. Sei que estive a ponto de lhe contar e
que alguma coisa me fez recuar, uma coisa que talvez ainda fosse a mão de
Dilia me fazendo voltar para a noite e me proibindo as palavras que teriam
maculado tudo. Sim, tinha dormido muito bem; claro, às seis nos
encontraríamos na esquina da praça para ir ver os Marini.
Por aqueles dias soubemos por Alfonso que a mãe de Dilia estava muito
doente e que Dilia viajaria a Necochea para lhe fazer companhia, Alfonso
tinha de cuidar do bebê, que dava muito trabalho, quem sabe fôssemos
visitá-los quando Dilia voltasse. A enferma morreu alguns dias depois e
Dilia não quis ver ninguém por dois meses; fomos jantar, levando um
conhaque e um chocalho para o bebê, e tudo já estava bem, Dilia
finalizando um pato com laranja e Alfonso com a mesa pronta para jogar
canastra. O jantar transcorreu amavelmente, como devia ser, porque
Alfonso e Dilia são pessoas que sabem viver e começaram falando do mais
penoso, esgotar logo o assunto da mãe de Dilia, depois foi como puxar
suavemente uma cortina para voltar ao presente imediato, aos nossos jogos
de sempre, às chaves e códigos do humor com os quais se tornava tão
agradável passar a noite. Já era tarde e conhaque quando Dilia mencionou
uma viagem a San Juan, a necessidade de esquecer os últimos dias de sua
mãe e os problemas com aqueles parentes que complicam tudo. Tive a
impressão de que falava para Alfonso, embora Alfonso já devesse conhecer
a história, porque sorria amavelmente enquanto nos servia outro conhaque,
o enguiço do carro em plena serra, a noite vazia e uma espera interminável
à beira da estrada em que cada pássaro noturno era uma ameaça, retorno
inevitável de tantos fantasmas da infância, luzes de um caminhão, o medo
de que o caminhoneiro também tivesse medo e passasse ao largo, o
ofuscamento dos faróis cravando-a contra o despenhadeiro, e então o ruído
maravilhoso dos freios, a cabine aquecida, a descida entre diálogos quase
desnecessários, mas que tanto a ajudavam a se sentir melhor.
— Ela ficou traumatizada — disse Alfonso. — Você já me contou,
querida, e a cada vez conheço mais detalhes desse resgate, do seu são Jorge
de macacão salvando-a do malvado dragão da noite.
— Não é fácil esquecê-lo — disse Dilia —, é uma coisa que volta sempre,
não sei por quê.
Ela talvez não, Dilia talvez não soubesse por quê, mas eu sim, tive de
virar o conhaque de uma vez e me servir de novo enquanto Alfonso
levantava as sobrancelhas, surpreso com uma brusquidão que não
reconhecia em mim. Já suas piadas eram mais que previsíveis, dizer para
Dilia que um dia contasse de vez toda essa história, conhecia de sobra a
primeira parte, mas certamente havia uma segunda, estava tão na cara, tão
de caminhão na noite, tão de tudo que é tão nesta vida.
Fui até o banheiro e fiquei lá um tempo, tentando não me olhar no
espelho, não encontrar também ali e horrivelmente aquilo que eu tinha sido
enquanto me contava a história e que agora sentia de novo, mas aqui, agora,
esta noite, isso que começava lentamente a ganhar meu corpo, isso que eu
jamais teria imaginado ser possível ao longo de tantos anos de Dilia e
Alfonso, de nosso par de amigos de festas e cinemas e beijos no rosto.
Agora era o outro, era Dilia depois, novamente o desejo, mas deste lado, a
voz de Dilia me chegando lá da sala, as risadas de Dilia e de Niágara, que
deviam estar caçoando de Alfonso por seu ciúme estereotipado. Já era tarde,
ainda bebemos conhaque e fizemos um último café, lá de cima chegou o
choro do bebê e Dilia subiu correndo e o trouxe no colo, está todo molhado
esse porquinho, vou trocá-lo no banheiro, Alfonso adorando porque isso lhe
dava mais meia hora para discutir com Niágara as possibilidades de Vilas
contra Borg, outro conhaque, guria, afinal já estamos todos bem curtidos.
Eu não, eu fui ao banheiro para fazer companhia a Dilia, que tinha posto o
filho sobre uma mesinha e procurava coisas num armário. E era como se de
algum modo ela já soubesse quando eu disse Dilia, conheço essa segunda
parte, quando eu disse já sei que não pode ser mas olha, eu a conheço, e
Dilia me deu as costas para começar a tirar a roupa do bebê e eu a vi se
inclinar não só para soltar os alfinetes de gancho e tirar a fralda, mas como
se de repente a oprimisse um peso do qual tinha de se livrar, do qual já
estava se livrando quando se virou me olhando nos olhos e disse sim, é
verdade, e não tem nenhuma importância, mas é verdade, eu dormi com o
caminhoneiro, pode dizer para o Alfonso, se quiser, de qualquer modo ele já
está convencido disso à sua maneira, não acredita, mas tem convicção.
Era assim, nem eu diria nada nem ela entenderia por que estava me
dizendo isso, por que para mim, que não lhe perguntara nada e, entretanto,
tinha dito aquilo que ela não podia entender deste lado da história. Senti
meus olhos como dedos descendo por sua boca, seu pescoço, procurando os
seios que a blusa preta desenhava como minhas mãos os tinham desenhado
a noite toda, a história toda. O desejo era um salto à espreita, um direito
absoluto de me aproximar e procurar seus seios sob a blusa e envolvê-la
num primeiro abraço. Eu a vi se virar, inclinar-se outra vez, mas agora leve,
liberada do silêncio; tirou a fralda com agilidade, o cheiro de um bebê que
tinha feito xixi e cocô me chegou junto com os murmúrios de Dilia
acalmando-o para que não chorasse, vi suas mãos que procuravam o
algodão e o metiam entre as pernas levantadas do bebê, vi suas mãos
limpando o bebê em vez de virem até mim como tinham vindo no escuro
daquele caminhão que tantas vezes me valeu nas histórias que me conto.
Anel de Moebius
In memoriam J.M. e R.A.
Impossível explicar. Afasta-se aos poucos daquela zona onde as
coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome sólido e
imutável. Cada vez mais afundava na região líquida, quieta e
insondável, onde pairavam névoas vagas e frescas como as da
madrugada.
CLARICE LISPECTOR, Perto do coração selvagem
P
or que não?, talvez bastasse fazer a proposta, como ela faria mais
tarde com afinco, e seria vista, seria sentida com a mesma nitidez
com que ela se via e se sentia pedalando bosque adentro na manhã
ainda fresca, seguindo trilhas envoltas na penumbra das
samambaias, em algum lugar da Dordonha que mais tarde os jornais e o
rádio encheriam de uma efêmera e infame celebridade até o rápido
esquecimento, o silêncio vegetal dessa meia-luz perpétua por onde Janet
passava como uma mancha loira, um tilintar metálico (seu cantil mal
ajustado ao quadro de alumínio), o cabelo comprido oferecido ao ar que seu
corpo rompia e alterava, leve carranca de proa afundando os pés no macio
ceder alternado dos pedais, recebendo na blusa a mão da brisa lhe
enrijecendo os seios, dupla carícia dentro do duplo desfile de troncos e
samambaias num verde translúcido de túnel, um cheiro de cogumelos e
cascas e musgos, as férias.
E também o outro bosque, embora fosse o mesmo bosque, mas não para Robert, rejeitado nas
granjas, sujo de uma noite de bruços sobre um colchão ruim de folhas secas, esfregando o rosto
sobre um raio de sol filtrado pelos cedros, perguntando-se vagamente se valia a pena ficar na
região ou entrar nas planícies onde talvez o esperasse um jarro de leite e um pouco de trabalho
antes de voltar aos grandes caminhos ou se perder de novo em bosques sem nome, o mesmo
bosque sempre com fome e aquela raiva inútil que lhe torcia a boca.
Só dava para fazer uma coisa nesses casos, pouco frequentes mas sempre
prováveis, dizer bonjour e ir embora sem muita pressa. Janet disse bonjour
e empurrou a bicicleta para dar meia-volta; seu pé se soltava do chão para
dar o primeiro impulso no pedal quando Robert lhe cortou a passagem e
segurou o guidão com a mão de unhas pretas. Tudo era claríssimo e confuso
ao mesmo tempo, a bicicleta caindo e o primeiro grito de pânico e protesto,
os pés procurando um apoio inútil no ar, a força dos braços que a
seguravam, o passo quase corrido entre as tábuas quebradas do hangar, um
cheiro ao mesmo tempo jovem e selvagem de couro e de suor, uma barba
escura de três dias, uma boca queimando-lhe a garganta.
Nunca quis lhe fazer mal, nunca fizera mal a ninguém para possuir o pouco que lhe fora dado nos
previsíveis reformatórios, só era assim, vinte e cinco anos e era assim, tudo lento, como quando
tinha de escrever seu nome, Robert, letra por letra, e depois o sobrenome ainda mais lento, e ao
mesmo tempo rápido, como o gesto que às vezes lhe valia uma garrafa de leite ou uma calça posta
para secar no gramado do jardim, tudo podia ser lento e instantâneo ao mesmo tempo, uma decisão
seguida do desejo de que tudo durasse bastante, que aquela garota não se debatesse loucamente, já
que ele não queria lhe fazer mal, que ela entendesse a impossibilidade de fugir e de ser socorrida e
se submetesse mansamente, e até que não se submetesse, só se deixasse levar como ele se deixava
levar deitando-a sobre a palha e gritando em seu ouvido que se calasse, que não fosse idiota, que
esperasse enquanto ele procurava botões e fechos sem encontrar nada além de convulsões de
resistência, rajadas de palavras em outra língua, gritos, gritos que alguém ia acabar ouvindo.
Como não lutar se ele não entendia, se as palavras que gostaria de lhe
dizer em seu idioma brotavam em pedaços, mesclavam-se a seus balbucios
e beijos e ele não conseguia entender que não se tratava disso, que por mais
horrível que fosse o que estava tentando lhe fazer, o que lhe faria, não era
isso, como lhe explicar que até então nunca, que Fanny Hill, que pelo
menos esperasse, que tinha creme facial na mala, que não poderia ser assim,
não poderia ser sem aquilo que tinha visto nos olhos da amiga, a náusea de
algo insuportável, foi horrível, Janet, foi tão horrível. Sentiu a saia ceder, a
mão que corria sob a calcinha e a arrancava, contraiu-se com um último
acesso de angústia e lutou para explicar, para detê-lo bem no limite para que
isso fosse diferente, sentiu-o contra ela e a investida entre as coxas
entreabertas, uma dor cortante que crescia até o vermelho e o fogo, uivou
mais de horror que de sofrimento, como se isso não pudesse ser tudo,
apenas o começo da tortura, sentiu as mãos dele em seu rosto tapando-lhe a
boca e deslizando para baixo, a segunda investida contra a qual já não dava
para lutar, contra a qual já não havia gritos nem ar nem lágrimas.
Sumido nela num brusco final de luta, acolhido agora sem a desesperada resistência que precisara
vencer empalando-a repetidamente até chegar ao fundo e sentir toda a sua pele contra a dela, o
gozo veio como um açoite e se inundou num balbucio agradecido, num cego abraço interminável.
Afastando o rosto do oco do ombro de Janet, procurou seus olhos para lhe dizer, para agradecer por
ter se calado no final; não podia imaginar outros motivos para aquela resistência selvagem, para
aquele debater-se que o obrigara a forçá-la sem dó, mas agora também não entendia direito essa
entrega, o repentino silêncio. Janet estava olhando para ele, uma de suas pernas tinha resvalado
suavemente para fora. Robert começou a se afastar, a sair dela, olhando-a nos olhos. Compreendeu
que Janet não o via.
De outro modo, talvez desde o começo, em todo caso não mais ali,
movida para uma espécie de diafaneidade, um meio translúcido no qual
nada tinha corpo e onde isso que era ela não se situava em pensamentos ou
objetos, ser vento sendo Janet ou Janet sendo vento ou água ou espaço, mas
sempre claro, o silêncio era luz, ou o contrário, ou as duas coisas, o tempo
estava iluminado e isso era ser Janet, algo sem sustentação, sem a mínima
sombra de lembrança que interrompesse e fixasse esse decurso como que
entre cristais, bolha dentro de uma massa de acrílico, órbita de peixe
transparente num ilimitado aquário luminoso.
O filho de um lenhador encontrou a bicicleta na trilha e entreviu, através dos tabuões do hangar, o
corpo caído de costas. Os policiais verificaram que o assassino não tinha tocado nem na mala nem
na bolsa de Janet.
Derivar no imóvel, sem antes nem depois, um agora hialino sem contato
nem referências, um estado no qual continente e conteúdo não se
diferenciavam, uma água fluindo na água, até que sem transição era o
ímpeto, um violento rush projetando-a, tirando-a sem que nada pudesse
apreender a mudança, só o rush vertiginoso na horizontal ou vertical de um
espaço estremecido em sua velocidade. Por vezes saía do informe para
aceder a uma rigorosa fixidez igualmente separada de toda referência e, no
entanto, tangível, e houve o momento em que Janet deixou de ser água da
água ou vento do vento, pela primeira vez sentiu, sentiu-se encerrada e
limitada, cubo de um cubo, imóvel cubidade. Nesse estado cubo fora do
translúcido e do tempestuoso, algo como uma duração se instalava, não um
antes ou um depois, mas um agora mais tangível, um começo de tempo
reduzido a um presente denso e manifesto, cubo no tempo. Se pudesse
escolher, teria escolhido o estado cubo sem saber por quê, talvez porque nas
mudanças contínuas era a única condição onde nada mudava, como se ali se
estivesse dentro de determinados limites, na certeza de uma cubidade
constante, de um presente que insinuava uma presença, quase uma
tangibilidade, um presente que continha algo que talvez fosse tempo, talvez
um espaço imóvel onde todo deslocamento parecia estar traçado. Mas o
estado cubo podia ceder às outras vertigens e antes e depois ou durante
estava-se em outro meio, era-se novamente um deslizamento fragoroso num
oceano de cristais ou de rochas diáfanas, um fluir sem direção para o nada,
uma sucção de tornado com torvelinhos, algo como escorregar na folhagem
toda de uma selva, sustentada de folha em folha por um pairar de baba do
diabo e agora — agora sem antes, um agora seco e dado ali — talvez outra
vez o estado cubo cercando e detendo, limites no agora e no ali, que, de
alguma forma, era repouso.
O processo foi aberto em Poitiers no final de julho de 1956. Robert foi defendido por Maître
Rolland; o júri não acatou as circunstâncias atenuantes derivadas de uma orfandade precoce, dos
reformatórios e do desemprego. O acusado ouviu a sentença de morte com um tranquilo estupor, os
aplausos de um público entre o qual se contavam não poucos turistas britânicos.
Q
uerida Glenda, esta carta não será enviada a você pelas vias
habituais, porque nada entre nós pode ser enviado assim,
passando pelos ritos sociais dos envelopes e do correio. Vai ser
mais como se eu a pusesse numa garrafa e a lançasse às águas da
baía de San Francisco, em cujas margens está a casa de onde lhe escrevo;
como se eu a atasse ao pescoço de uma das gaivotas que passam feito
vergastadas de sombra diante de minha janela e obscurecem, por instantes,
o teclado desta máquina. Mas é uma carta, em todo caso, dirigida a você, a
Glenda Jackson em algum lugar do mundo, que provavelmente vai
continuar sendo Londres; como muitas cartas, como muitos relatos, também
há mensagens que são garrafas ao mar e entram nesses lentos, prodigiosos
sea-changes que Shakespeare burilou em A tempestade e que amigos
inconsoláveis inscreveriam, tanto tempo depois, na lápide sob a qual dorme
o coração de Percy Bysshe Shelley, no cemitério de Caio Cestio, em Roma.
É assim, imagino, que se dão as comunicações profundas, lentas garrafas
vagando em lentos mares, tal como lentamente esta carta abrirá caminho
procurando por você com seu verdadeiro nome, não mais a Glenda Garson,
que também era você, mas que o pudor e o carinho mudaram sem mudá-la,
exatamente como você muda sem mudar de um filme para outro. Escrevo
para essa mulher que respira sob tantas máscaras, inclusive a que eu
inventei para não ofendê-la, e lhe escrevo também porque agora você se
comunicou comigo, eu sob minhas máscaras de escritor; por isso ganhamos
o direito de nos falarmos assim, agora que sem a menor possibilidade
imaginável acaba de me chegar sua resposta, sua própria garrafa ao mar se
quebrando nos rochedos desta baía para me encher de um prazer sob o qual
pulsa uma espécie de medo, um medo que não amansa o prazer, que o torna
pânico, situando-o fora de toda carne e de todo tempo, como você e eu sem
dúvida quisemos, cada qual à sua maneira.
Não é fácil lhe escrever isso porque você não sabe nada de Glenda
Garson, mas ao mesmo tempo as coisas acontecem como se eu tivesse de
lhe explicar inutilmente algo que, de algum modo, é a razão de sua resposta;
tudo parece acontecer em planos diferentes, numa duplicação que torna
absurdo qualquer procedimento usual de contato; estamos escrevendo ou
atuando para terceiros, não para nós, e por isso esta carta toma a forma de
um texto que será lido por terceiros, talvez nunca por você, ou talvez por
você mas só em algum dia longínquo, da mesma forma que sua resposta já
foi conhecida por terceiros enquanto eu acabo de recebê-la, há apenas três
dias, e por um mero acaso de viagem. Acho que se as coisas acontecem
assim, de nada adiantaria tentar um contato direto; acho que a única
possibilidade de lhe dizer isso é dirigindo-o mais uma vez aos que irão lê-lo
como literatura, um relato dentro de outro, uma coda para algo que parecia
destinado a terminar com aquele fecho perfeito, definitivo que, a meu ver,
os bons relatos devem ter. E se rompo com a norma, se estou, à minha
maneira, lhe escrevendo essa mensagem, é você, que talvez jamais vá lê-la,
que está me obrigando, que talvez esteja me pedindo que lhe escreva isso.
Então conheça o que você não poderia conhecer, mas conhece. Há
exatamente duas semanas Guillermo Schavelson, meu editor no México, me
entregou os primeiros exemplares de um livro de contos que escrevi nos
últimos tempos e que leva o título de um deles, Amamos tanto Glenda.
Contos em espanhol, claro, e que só serão traduzidos para outras línguas
nos próximos anos, contos que esta semana começam a circular só no
México e que você não pôde ler em Londres, onde, aliás, quase não me
leem, muito menos em espanhol. Preciso lhe falar de um deles, sentindo, ao
mesmo tempo, e aqui reside o horror ambíguo que há nisso tudo, a
inutilidade de fazê-lo porque você, de um modo que só o próprio conto
pode insinuar, já o conhece; contra todas as razões, contra a própria razão, a
resposta que acabo de receber prova isso e me obriga a fazer o que estou
fazendo diante do absurdo, se é que isso é absurdo, Glenda, e eu acho que
não, ainda que nem você nem eu possamos saber o que é.
Você vai se lembrar, então, embora não possa se lembrar de algo que
nunca leu, de algo cujas páginas ainda têm a umidade da tinta da impressão,
que nesse conto se fala de um grupo de amigos de Buenos Aires que
compartilham, numa furtiva fraternidade de clube, o carinho e a admiração
que sentem por você, por essa atriz que o conto chama de Glenda Garson,
mas cuja carreira teatral e cinematográfica está indicada com clareza
suficiente para que qualquer um que mereça possa reconhecê-la. O conto é
muito simples: os amigos amam tanto Glenda que não podem tolerar o
escândalo de alguns de seus filmes estarem abaixo da perfeição que todo
grande amor postula e necessita, nem que a mediocridade de certos
diretores embace o que sem dúvida você teria buscado enquanto filmava.
Como toda narração que propõe uma catarse, que culmina num sacrifício
lustral, essa se permite transgredir a verossimilhança em busca de uma
verdade mais profunda, mais conclusiva; o clube, então, faz o que é
necessário para se apropriar das cópias dos filmes menos perfeitos, e os
modifica ali onde uma mera supressão ou uma mudança quase
imperceptível na montagem irão reparar as imperdoáveis falhas originais.
Imagino que você, como eles, não se preocupa com as desprezíveis
impossibilidades práticas de uma operação que o conto descreve sem
detalhes maçantes; simplesmente a fidelidade e o dinheiro cumprem seu
papel, e um dia o clube pode dar por terminada a tarefa e entrar no sétimo
dia da felicidade. Acima de tudo da felicidade, porque nesse momento você
anuncia que vai se aposentar do teatro e do cinema, encerrando e
aperfeiçoando, sem saber, um trabalho que a reiteração e o tempo acabariam
por macular.
Sem saber… Ah, eu sou o autor do conto, Glenda, mas agora já não posso
afirmar o que me parecia tão claro ao escrevê-lo. Agora recebi sua resposta,
e uma coisa que não tem nada a ver com a razão me obriga a reconhecer
que essa retirada de Glenda era meio estranha, quase forçada, assim, bem
no final da tarefa do ignoto e distante clube. Mas continuo lhe contando o
conto mesmo que agora seu final me pareça horrível, já que tenho de contá-
lo a você, e é impossível não fazê-lo porque está no conto, porque no
México todo mundo já sabe disso há dez dias e sobretudo porque você
também já sabe. Simplesmente, um ano mais tarde Glenda Garson decide
voltar ao cinema, e os amigos do clube leem a notícia com a esmagadora
certeza de que já não lhes será possível repetir um processo que sentem
encerrado, definitivo. Só lhes resta uma forma de defender a perfeição, o
ápice de uma felicidade arduamente alcançada: Glenda Garson não
conseguirá fazer o filme anunciado, o clube fará o que for preciso e de uma
vez por todas.
Tudo isso, como você pode ver, é um conto dentro de um livro, com
alguns toques de fantástico ou de insólito, e coincide com a atmosfera dos
outros contos daquele volume que meu editor me entregou na véspera de
minha partida do México. O fato de o livro trazer esse título se deve
simplesmente a que nenhum dos outros contos tinha, para mim, essa
ressonância um pouco nostálgica e apaixonada que seu nome e sua imagem
despertam em minha vida desde que, uma tarde, no Aldwych Theater de
Londres, eu a vi fustigar com o sedoso látego de seus cabelos o torso nu do
marquês de Sade; impossível saber, quando escolhi esse título para o livro,
que de alguma forma estava separando o conto do resto e pondo toda a sua
carga na capa, tal como agora em seu último filme, que acabo de ver, três
dias atrás, aqui em San Francisco, alguém escolheu um título, Hopscotch,
alguém que sabe que essa palavra se traduz por Rayuela em espanhol. As
garrafas chegaram a seu destino, Glenda, mas o mar no qual ficaram à
deriva não é o mar dos navios e dos albatrozes.
Tudo aconteceu num segundo, pensei ironicamente que tinha vindo a San
Francisco para dar um curso a estudantes de Berkeley e que íamos nos
divertir com a coincidência do título desse filme com o do romance que
seria um dos temas do trabalho. Então, Glenda, eu vi a fotografia da
protagonista e pela primeira vez tive medo. Ter chegado do México
trazendo um livro anunciado com seu nome e encontrar seu nome num
filme anunciado com o título de um de meus livros já valia como uma bela
jogada do destino, que tantas vezes me deparou jogadas como essa; mas
isso não era tudo, isso não era nada até que a garrafa se espatifou na
escuridão da sala e eu soube a resposta, digo resposta porque não posso
nem quero acreditar que seja uma vingança.
Não é uma vingança, e sim um apelo à margem de tudo o que é
admissível, um convite à viagem que só se pode fazer em territórios fora de
qualquer território. O filme, que, diga-se de passagem, é irrelevante, se
baseia numa novela de espionagem que não tem nada a ver com você ou
comigo, Glenda, e justamente por isso senti que por trás dessa trama, um
tanto tola, confortável e comodamente vulgar, se escondia outra coisa, outra
coisa inimaginável, considerando que você não podia ter nada para me
dizer, mas ao mesmo tempo sim, porque agora você era Glenda Jackson e,
se tinha aceitado fazer um filme com esse título, eu não podia deixar de
sentir que fizera isso como Glenda Garson, dos umbrais daquela história na
qual eu a havia chamado dessa forma. E o fato de o filme não ter nada a ver
com isso, de ser uma comédia de espionagem apenas divertida, me forçava
a pensar no óbvio, nessas cifras ou escritas secretas que, numa página de
um jornal qualquer ou de um livro previamente combinados, remetem às
palavras que irão transmitir a mensagem para quem conhecer a chave. E era
assim, Glenda, era exatamente assim. Preciso provar isso, quando a autora
da mensagem está além de toda prova? Se digo isso é para os terceiros que
vão ler meu conto e ver seu filme, para leitores e espectadores que serão as
pontes ingênuas de nossas mensagens: um conto que acaba de ser editado,
um filme que acaba de sair, e agora esta carta que, quase indizivelmente, os
contém e os encerra.
Abreviarei um resumo que pouco nos interessa agora. No filme, você ama
um espião que começou a escrever um livro chamado Hopscotch a fim de
denunciar os negócios sujos da CIA, do FBI e da KGB, simpáticos
escritórios para os quais trabalhou e que agora se empenham em eliminá-lo.
Com uma lealdade que se alimenta de ternura, você o ajudará a forjar o
acidente que irá dá-lo por morto perante seus inimigos; a paz e a segurança
os esperam, depois, em algum canto do mundo. Seu amigo publica
Hopscotch, que, embora não seja meu romance, forçosamente deverá se
chamar Rayuela quando algum editor de best-sellers o publicar em
espanhol. Uma imagem do final do filme mostra exemplares do livro numa
vitrine, tal como a edição de meu romance deve ter estado em algumas
vitrines norte-americanas quando a Pantheon Books o editou, anos atrás. No
conto que acaba de sair no México eu a matei simbolicamente, Glenda
Jackson, e nesse filme você colabora na eliminação igualmente simbólica
do autor de Hopscotch. Você, como sempre, é jovem e bela no filme, e seu
amigo é velho e escritor como eu. Com meus companheiros do clube,
entendi que só no desaparecimento de Glenda Garson se fixaria para sempre
a perfeição de nosso amor; você soube, também, que seu amor exigia o
desaparecimento para se realizar em segurança. Agora, no fim disso que
escrevi com o vago horror de uma coisa igualmente vaga, sei de sobra que
não há vingança em sua mensagem, só uma incalculavelmente bela
simetria, que o personagem de meu conto acaba de se reunir com o
personagem de seu filme porque você assim o quis, porque só esse duplo
simulacro de morte por amor podia aproximá-los. Ali, naquele território
fora de toda bússola, você e eu estamos nos olhando, Glenda, enquanto eu
aqui termino esta carta e você, em algum lugar, acho que em Londres, se
maquia para entrar em cena ou estuda o papel para seu próximo filme.
Berkeley, Califórnia, 29 de setembro de 1980
Fim de etapa
A Sheridan Le Fanu, por certas casas
A Antoni Taulé, por certas mesas
T
alvez tenha parado ali porque o sol já estava alto e o prazer
mecânico de dirigir o carro nas primeiras horas da manhã dava
lugar à sonolência, à sede. Para Diana, esse povoado de nome
anódino era outra pequena marca no mapa da província, longe da
cidade na qual dormiria essa noite, e a praça que as copas dos plátanos
protegiam do calor da estrada era como um parêntese no qual entrou com
um suspiro de alívio, freando ao lado do café onde as mesas se espalhavam
sob as árvores.
O garçom lhe trouxe um licor de anis com gelo e perguntou se queria
almoçar mais tarde, sem pressa, pois serviam até as duas horas. Diana disse
que ia dar uma volta pelo povoado e depois voltaria. “Não tem muita coisa
pra ver”, informou o garçom. Ela gostaria de responder que também não
tinha muita vontade de olhar, mas, em vez disso, pediu azeitonas pretas e
bebeu de modo quase brusco o copo alto onde o licor de anis se irisava.
Sentia na pele um frescor de sombra, alguns fregueses jogavam baralho,
dois meninos com um cachorro, uma velha na banca de jornais, tudo
parecia fora do tempo, se alongando no mormaço do verão. Parece fora do
tempo, pensou ao olhar para a mão de um dos jogadores, que segurava
longamente a carta no ar antes de soltá-la na mesa com uma chicotada de
triunfo. Isso que ela já não tinha vontade de fazer, prolongar qualquer coisa
bela, sentir-se viver verdadeiramente nessa demora deliciosa que um dia a
sustentara no tremor do tempo. “Curioso que viver possa se tornar pura
aceitação”, pensou, olhando para o cachorro que ofegava no chão, “até
mesmo essa aceitação de não aceitar nada, de ir embora quase antes de
chegar, de matar tudo o que ainda não é capaz de me matar.” Deixava o
cigarro entre os lábios, sabendo que acabaria por queimá-los e que teria de
arrancá-lo e esmagá-lo como tinha feito naquela época em que perdeu todos
os motivos para preencher o presente com alguma coisa além de cigarros,
do cômodo talão de cheques e do carro prestativo. “Perdido”, repetiu, “tão
bonito o tema do Duke Ellington e eu nem me lembro dele, duas vezes
perdido, moça, e a moça perdida, também, aos quarenta já é apenas uma
forma de chorar dentro de uma palavra.”
Sentir-se de repente tão idiota exigia que ela pagasse e fosse dar uma volta
pelo povoado, fosse ao encontro de coisas que já não viriam sozinhas ao
desejo e à imaginação. Ver as coisas como quem é visto por elas, ali aquela
loja de antiguidades sem interesse, agora a fachada vetusta do museu de
belas-artes. Anunciavam uma exposição individual, não fazia ideia de quem
era o artista de nome quase impronunciável. Diana comprou um ingresso e
entrou na primeira sala de uma modesta casa de cômodos contíguos,
laboriosamente transformada por vereadores provincianos. Haviam lhe
dado um folheto que continha vagas referências a uma carreira artística
sobretudo regional, excertos de críticas, os elogios de sempre; largou-o
sobre um aparador e olhou os quadros, num primeiro momento pensou que
fossem fotografias e chamou sua atenção o tamanho, era pouco frequente
ver ampliações coloridas tão grandes. Interessou-se realmente quando
reconheceu a matéria, a perfeição maníaca do detalhe; de súbito ocorreu o
contrário, a impressão de estar vendo quadros baseados em fotografias, algo
que ia e vinha entre os dois, e ainda que as salas estivessem bem
iluminadas, a indecisão perdurava diante dessas telas que talvez fossem
pinturas de fotografias ou resultados de uma obsessão realista que levava o
pintor a um limite perigoso ou ambíguo.
Na primeira sala havia quatro ou cinco pinturas que repetiam o tema de
uma mesa nua ou com um mínimo de objetos, violentamente iluminada por
uma luz solar rasante. Em algumas telas se acrescentava uma cadeira, em
outras a mesa não tinha nenhuma companhia a não ser sua sombra alongada
no chão açoitado pela luz lateral. Quando entrou na segunda sala viu algo
novo, uma figura humana numa pintura que unia um interior com uma
ampla saída para jardins meio difusos; a figura, de costas, agora estava
distante da casa onde a inevitável mesa se repetia em primeiro plano,
equidistante entre o personagem pintado e Diana. Não demorou muito a
perceber ou imaginar que a casa era sempre a mesma, agora se acrescentava
a longa galeria esverdeada de outro quadro onde a silhueta de costas olhava
para uma porta-balcão distante. Curiosamente, a silhueta do personagem era
menos intensa que as mesas vazias, tinha algo de visitante ocasional que
passeasse sem muito motivo por uma vasta casa abandonada. E depois
havia o silêncio, não só porque Diana parecia ser a única presença no
pequeno museu, mas porque das pinturas emanava uma solidão que a
escura silhueta masculina só fazia aprofundar. “Há alguma coisa na luz”,
pensou Diana, “nessa luz que entra como uma matéria sólida e achata as
coisas.” Mas a cor também estava repleta de silêncio, os fundos
profundamente negros, a brutalidade dos contrastes que dava às sombras
uma qualidade de panos fúnebres, de lentos pálios de catafalco.
Ao entrar na segunda sala descobriu, surpresa, que além de outra série de
quadros com mesas nuas e o personagem de costas, havia algumas telas
com temas diferentes, um telefone solitário, um par de figuras. Olhava para
elas, claro, mas um pouco como se não as enxergasse, a sequência da casa
com as mesas solitárias tinha tanta força que o resto das pinturas se
transformava num adorno supérfluo, quase como se fossem quadros
decorativos pendurados nas paredes da casa pintada e não no museu. Achou
engraçado se descobrir tão hipnotizável, sentir o prazer um pouco
entorpecido de ceder à imaginação, aos demônios fáceis do calor do meio-
dia. Voltou à primeira sala porque não estava certa de se lembrar bem de
uma das pinturas que vira, descobriu que na mesa que pensava estar nua
havia um jarro com pincéis. Entretanto, a mesa vazia estava no quadro
pendurado na parede oposta, e Diana tentou, por um momento, conhecer
melhor o fundo da tela, a porta aberta atrás da qual se adivinhava outro
aposento, parte de uma lareira ou de uma segunda porta. Ficava cada vez
mais evidente que todos os cômodos correspondiam a uma mesma casa,
como a hipertrofia de um autorretrato no qual o artista tivesse tido a
elegância de se abstrair, a menos que estivesse representado na silhueta
negra (com uma longa capa num dos quadros), dando obstinadamente as
costas para o outro visitante, para a intrusa que, por sua vez, tinha pagado
para entrar na casa e passear por suas salas nuas.
Voltou à segunda sala e foi até a porta entreaberta que se comunicava com
a seguinte. Uma voz amável e um pouco tímida a fez virar-se; um vigilante
uniformizado — com aquele calor, coitado — vinha lhe dizer que o museu
ia fechar ao meio-dia mas que reabriria às três e meia.
— Falta muita coisa pra ver? — perguntou Diana, que sentia de repente o
cansaço dos museus, a náusea dos olhos que consumiram imagens em
demasia.
— Não, a última sala, senhorita. Só tem um quadro lá, dizem que o artista
quis que ele ficasse sozinho. Quer vê-lo antes de ir embora? Posso esperar
um pouco.
Era idiota não aceitar, Diana sabia disso quando disse que não e os dois
trocaram gracejos sobre os almoços que esfriam se a gente não chega a
tempo. “Não precisa pagar outro ingresso se voltar”, disse o vigilante,
“agora eu já a conheço.” Na rua, ofuscada pela luz zenital, perguntou-se que
diabos estava lhe acontecendo, era absurdo ter se interessado a tal ponto
pelo hiper-realismo ou o que quer que fosse desse pintor desconhecido, e de
repente deixar de lado o último quadro, que talvez fosse o melhor. Mas não,
o artista quis isolá-lo dos outros e isso talvez indicasse que era muito
diferente, outra forma ou outro tempo de trabalho, por que interromper
assim uma sequência que se prolongava nela como um todo, incluindo-a
num espaço sem fissuras? Melhor não ter entrado na última sala, não ter
cedido à obsessão do turista meticuloso, à mania infeliz de querer abarcar
os museus até o final.
Viu ao longe o café da praça e pensou que era hora de almoçar; estava
sem fome, mas sempre tinha sido assim em suas viagens com Orlando, para
Orlando o meio-dia era o momento crucial, a cerimônia do almoço
sacralizando de alguma forma a passagem da manhã para a tarde, e Orlando
naturalmente teria se negado a seguir andando pelo povoado quando o café
estava ali a dois passos. Mas Diana estava sem fome e pensar em Orlando
lhe doía cada vez menos; sair andando para longe do café não era
desobedecer ou trair rituais. Podia continuar se lembrando, insubmissa, de
tantas coisas, abandonar-se ao acaso da caminhada e a uma vaga evocação
de algum outro verão com Orlando nas montanhas, de uma praia que talvez
voltasse para exorcizar a brasa do sol nas costas e na nuca, Orlando naquela
praia batida pelo vento e pelo sal enquanto Diana ia se perdendo nas ruelas
sem nome e sem gente, rente aos muros de pedra cinza, olhando
distraidamente algum raro pórtico aberto, um pressentimento de pátios
internos, de bocais de água fresca, glicínias, gatos adormecidos nos
ladrilhos. Mais uma vez a sensação de não estar percorrendo um povoado,
mas de ser percorrida por ele, as pedras do caminho resvalando para trás
como uma fita em movimento, um estar ali enquanto as coisas fluem e se
perdem às suas costas, uma vida ou um povoado anônimo. Agora vinha
uma pequena praça com dois bancos raquíticos, outra ruela se abrindo para
os campos limítrofes, jardins com cercas não muito convictas, a solidão
total do meio-dia, sua crueldade de matador de sombras, de paralisador do
tempo. O jardim meio abandonado não tinha árvores, deixava que os olhos
corressem livremente até a ampla porta aberta da velha casa. Sem acreditar,
e ao mesmo tempo sem negar, Diana entreviu na penumbra uma galeria
idêntica à de um dos quadros do museu, teve a sensação de abordar o
quadro pelo outro lado, de fora da casa, sem estar incluída como
espectadora num de seus cômodos. Se havia alguma coisa estranha nesse
momento era a falta de estranheza num reconhecimento que a levava a
entrar no jardim sem hesitações, a se aproximar da porta da casa, e por que
não se afinal tinha comprado seu ingresso, se não havia ninguém que se
opusesse a sua presença no jardim ou a que cruzasse a dupla porta aberta?, e
depois a percorrer a galeria que se abria para a primeira sala vazia onde a
janela deixava entrar a cólera amarela da luz se esboroando na parede
lateral, recortando uma mesa vazia e uma cadeira sozinha.
Nem temor nem surpresa, o próprio recurso fácil de apelar para o acaso
tinha resvalado por Diana sem encontrar apoio, para que se amofinar com
hipóteses ou explicações quando outra porta já se abria à esquerda e, num
aposento com altas lareiras, a mesa inevitável se desdobrava numa longa
sombra minuciosa? Diana olhou sem interesse a pequena toalha branca e os
três copos, as repetições se tornavam monótonas, o embate da luz cortando
a penumbra. A única coisa diferente era a porta do fundo, o fato de estar
fechada em vez de entreaberta introduzia algo inesperado num percurso que
se realizava com tanta suavidade. Quase sem se deter, disse para si que a
porta estava fechada simplesmente porque ela não tinha entrado na última
sala do museu, e que olhar por trás dessa porta seria como voltar lá para
completar a visita. Tudo geométrico demais, ao fim e ao cabo, tudo
impensável e ao mesmo tempo como previsto, sentir medo ou espanto
parecia tão incongruente como começar a assoviar ou a perguntar aos gritos
se havia alguém em casa.
Nem sequer uma exceção na única diferença, a porta cedeu ao toque de
sua mão e foi de novo como antes, o jato de luz amarela se estilhaçando na
parede, a mesa que parecia mais nua que as outras, sua projeção alongada e
grotesca, como se alguém tivesse violentamente arrancado dela uma pasta
preta para jogá-la no chão, e por que não vê-la de outra maneira, como um
corpo rígido de quatro pés que acabasse de ser despojado de suas roupas ali
caídas numa mancha negrusca? Bastava olhar as paredes e a janela para
encontrar o mesmo teatro vazio, dessa vez até sem outra porta que
prolongasse a casa para novos aposentos. Embora tivesse visto a cadeira
junto à mesa, não a incluíra em seu primeiro reconhecimento, mas agora a
somava ao já sabido, tantas mesas com ou sem cadeiras em tantos cômodos
semelhantes. Vagamente decepcionada, aproximou-se da mesa e se sentou,
começou a fumar um cigarro, a brincar com a fumaça que subia no jato de
luz horizontal, desenhando a si mesma como se quisesse se opor a essa
vontade de vazio de todos os cômodos, de todos os quadros, do mesmo
modo que uma breve risada em algum lugar às costas de Diana cortou por
um instante o silêncio, ainda que talvez fosse apenas um breve chamado de
pássaro lá fora, um jogo de madeiras secas; era inútil, claro, voltar a olhar o
cômodo precedente, onde os três copos sobre a mesa lançavam suas
sombras tênues na parede, inútil apertar o passo, fugir sem pânico, mas sem
olhar para trás.
Na ruazinha, um menino lhe perguntou a hora e Diana pensou que deveria
se apressar se quisesse almoçar, mas o garçom parecia estar esperando por
ela sob os plátanos e lhe fez um gesto de boas-vindas indicando o local
mais fresco. Não fazia sentido comer, mas no mundo de Diana quase
sempre se comera assim, seja porque Orlando dizia que era hora de fazê-lo,
seja porque não restava outro remédio entre dois afazeres. Pediu um prato e
vinho branco, esperou demais para um lugar tão vazio; mesmo antes de
tomar o café e de pagar sabia que ia voltar ao museu, que o que nela havia
de pior a obrigava a conferir aquilo que teria sido preferível assumir sem
análise, quase sem curiosidade, e que se não o fizesse iria lamentar no final
da etapa, quando tudo se tornasse corriqueiro como sempre, os museus e os
hotéis e o inventário do passado. E ainda que no fundo nada estivesse claro,
sua inteligência repousaria nela como uma cadela saciada assim que
verificasse a total simetria das coisas, que o quadro pendurado na última
sala do museu representava obedientemente o último cômodo da casa; até
mesmo o resto também poderia entrar na ordem se falasse com o guarda
para preencher os vazios, afinal havia muitos artistas que copiavam
exatamente seus modelos, muitas mesas deste mundo tinham acabado no
Louvre ou no Metropolitan duplicando realidades tornadas pó e
esquecimento.
Atravessou sem pressa as duas primeiras salas (havia um casal na segunda
conversando em voz baixa, embora até esse momento fossem os únicos
visitantes da tarde). Diana parou diante de dois ou três dos quadros, e pela
primeira vez o ângulo da luz também a atingiu como uma impossibilidade
que não quisera reconhecer na sala vazia. Viu o casal regressar à saída, e
esperou ficar sozinha antes de ir para a porta da última sala. O quadro
estava na parede da esquerda, era preciso avançar até o centro para ver
direito a representação da mesa e da cadeira onde estava sentada uma
mulher. Como o personagem de costas em alguns dos outros quadros, a
mulher vestia preto, mas tinha três quartos do rosto virado, e o cabelo
castanho lhe caía até os ombros do lado invisível do perfil. Não havia nada
que a distinguisse muito do anterior, integrava-se à pintura como o homem
que passeava em outras telas, era parte de uma sequência, uma figura a mais
dentro da mesma vontade estética. E ao mesmo tempo havia alguma coisa
ali que talvez explicasse porque o quadro estava sozinho na última sala, das
semelhanças aparentes surgia agora outro sentimento, uma progressiva
convicção de que essa mulher não só se diferenciava do outro personagem
pelo sexo, mas que sua atitude, o braço esquerdo pendendo ao longo do
corpo, a leve inclinação do torso que descarregava seu peso sobre o
cotovelo invisível apoiado na mesa, estavam dizendo outra coisa a Diana,
estavam lhe mostrando um abandono que ia além do ensimesmamento ou
da modorra. Aquela mulher estava morta, seu cabelo e seu braço pendendo,
sua imobilidade inexplicavelmente mais intensa que a fixação das coisas e
dos seres nos outros quadros: a morte aí como uma culminação do silêncio,
da solidão da casa e de seus personagens, de cada uma das mesas e das
sombras e das galerias.
Sem saber como, viu-se outra vez na rua, na praça, entrou no carro e foi
para a estrada ardente. Tinha pisado fundo no acelerador, mas pouco a
pouco foi baixando a velocidade e só começou a pensar quando o cigarro
queimou seus lábios, era absurdo pensar quando havia tantas fitas com a
música que Orlando tinha amado e esquecido e que ela costumava ouvir de
vez em quando, aceitando se atormentar com a invasão de lembranças
preferíveis à solidão, à vaga imagem do assento vazio a seu lado. A cidade
estava a uma hora de distância, como tudo parecia estar a horas ou a séculos
de distância, o esquecimento, por exemplo, ou o longo banho quente que
tomaria no hotel, os uísques no bar, o jornal da tarde. Tudo simétrico como
sempre para ela, uma nova etapa se dando como uma réplica da anterior, o
hotel que completaria um número par de hotéis ou abriria o ímpar que a
etapa seguinte remataria; como as camas, os postos de gasolina, as catedrais
ou as semanas. E a mesma coisa devia ter acontecido no museu, onde a
repetição se dava de uma forma maníaca, coisa por coisa, mesa por mesa,
até a ruptura final insuportável, a exceção que num segundo fizera explodir
esse perfeito acordo de algo que já não cabia em nada, nem na razão nem na
loucura. Porque o pior era buscar algo razoável nisso que desde o começo
tinha tido um quê de delírio, de repetição idiota, e ao mesmo tempo sentir
uma espécie de náusea que só ao se consumar totalmente lhe devolveria
uma conformidade razoável, poria essa loucura do lado bom de sua vida e o
alinharia com as outras simetrias, com as outras etapas. Mas então não
podia ser, alguma coisa ali tinha escapado, e não era possível seguir em
frente e aceitar isso, todo o seu corpo se estendia para trás como se
resistisse ao avanço, se restava algo a fazer era dar meia-volta e regressar,
convencer-se com todas as provas da razão de que isso era bobagem, que a
casa não existia, ou que sim, que a casa estava ali mas que no museu só
havia uma mostra de desenhos abstratos ou de pinturas históricas, algo que
ela não se dera ao incômodo de ver. A fuga era uma forma suja de aceitar o
inaceitável, de infringir tarde demais a única vida imaginável, a pálida
aquiescência cotidiana à saída do sol ou às notícias do rádio. Viu se
aproximar um refúgio vazio à direita, deu uma volta completa e entrou de
novo na estrada, pisando fundo até que as primeiras granjas em torno do
povoado voltaram ao seu encontro. Deixou para trás a praça, lembrou que
pegando à esquerda chegaria a um espaço onde poderia deixar o carro,
seguiu a pé pela primeira ruazinha vazia, ouviu uma cigarra cantar no alto
de um plátano, o jardim abandonado estava lá, a grande porta continuava
aberta.
Por que se demorar nos dois primeiros cômodos onde a luz rasante não
perdera intensidade, verificar que as mesas continuavam lá, que talvez ela
mesma tivesse fechado a porta do terceiro aposento ao sair? Sabia que
bastava empurrá-la, entrar sem obstáculos e ver direto a mesa e a cadeira.
Sentar-se outra vez para fumar um cigarro (a cinza do outro se acumulava
copiosamente num canto da mesa, devia ter jogado a bituca na rua),
apoiando-se de lado para evitar o embate direto da luz da janela. Procurou o
isqueiro na bolsa, olhou a primeira espiral de fumaça se enroscando na luz.
Se a leve risada tinha sido, afinal, um canto de pássaro, lá fora nenhum
pássaro cantava agora. Mas ainda lhe restavam muitos cigarros por fumar,
podia se apoiar na mesa e deixar que seu olhar se perdesse na escuridão da
parede do fundo. Podia ir embora quando quisesse, claro, e também podia
ficar ali; talvez fosse bonito ver se a luz do sol iria subir pela parede,
alongando cada vez mais a sombra de seu corpo, da mesa e da cadeira, ou
se continuaria assim, sem mudar nada, a luz imóvel como todo o resto,
como ela e como a fumaça, imóveis.
Segunda viagem
Q
uem me apresentou a Ciclón Molina foi o baixinho Juárez uma
noite depois das lutas, logo depois Juárez foi para Córdoba a
trabalho, mas eu continuei me encontrando de vez em quando
com Ciclón naquele café da Maipú, 500, que não existe mais,
quase sempre aos sábados depois do boxe. É possível que tenhamos falado
de Mario Pradás desde a primeira vez, Juárez tinha sido um dos torcedores
mais fanáticos de Mario, mas não tanto como Ciclón, porque Ciclón foi
sparring de Mario quando se preparava para a viagem aos Estados Unidos e
lembrava muita coisa de Mario, seu jeito de bater, suas famosas agachadas
até o chão, sua formidável esquerda, sua coragem tranquila. Todos nós
tínhamos acompanhado a carreira de Mario, era raro nos encontrarmos no
café depois do boxe sem que alguém, em algum momento, se lembrasse de
Mario, e aí sempre havia um silêncio na mesa, os rapazes fumavam calados,
depois vinham as evocações, os detalhes, às vezes umas polêmicas sobre
datas, adversários e performances. Aí Ciclón tinha mais a dizer que os
outros, porque tinha sido sparring de Mario Pradás e também o tratara como
amigo, nunca se esquecia de que Mario tinha conseguido para ele a primeira
preliminar no Luna Park, numa época em que o ringue estava mais cheio de
candidatos que um elevador de ministério.
— Perdi por pontos — dizia Ciclón nessas ocasiões, e todos ríamos,
parecia engraçado que tivesse retribuído tão mal o favor que Mario lhe
fazia. Mas Ciclón não ficava chateado conosco, principalmente comigo,
depois que Juárez lhe disse que eu não perdia nenhuma luta e que era uma
enciclopédia nesse lance de campeões mundiais desde os tempos de Jack
Johnson. Talvez por isso, Ciclón gostava de me encontrar sozinho no café
nas noites de sábado, conversávamos demoradamente sobre coisas do
esporte. Ele gostava de se informar sobre os tempos de Firpo, para ele tudo
aquilo era mitologia, que ele degustava como uma criança, Gibbons e
Tunney, Carpentier, eu ia lhe contando aos poucos, com aquele gosto de
trazer lembranças à tona, tudo o que não podia interessar a minha mulher
nem a minha menina, sabe como é. E também tinha outra coisa, Ciclón
continuava lutando em preliminares, ganhava ou perdia mais ou menos
parelho, sem escalar posições, era daqueles que o público conhecia sem se
entusiasmar, só uma ou outra voz animando-o um pouco na modorra das
lutas secundárias. Não havia nada a fazer e ele sabia disso, não era um
nocauteador, carecia de técnica numa época em que havia muitos pesos
leves que sabiam tudo; sem lhe dizer, é claro, eu o chamava de boxeador
decente, o sujeito que ganha algum dinheiro lutando o melhor possível, sem
mudar muito de ânimo quando ganhava ou perdia; como os pianistas de bar
ou os cantores secundários de uma ópera, sabe, fazendo sua parte meio
distraídos, nunca percebi nenhuma mudança nele depois de uma luta, ele ia
até o café se não estivesse muito machucado, tomávamos umas cervejas e
ele esperava e recebia os comentários com um sorriso manso, dava-me sua
versão da coisa do ponto de vista do ringue, às vezes tão diferente do meu
ali de baixo, e nos alegrávamos ou ficávamos calados, conforme o caso, as
cervejas eram para comemorar ou consolar, um bom sujeito, o Ciclón, um
bom amigo. E logo com ele isso tinha de acontecer?, ora, é uma dessas
coisas em que a gente acredita e não acredita, isso que talvez tenha
acontecido com Ciclón e que ele mesmo nunca entendeu, isso que começou
sem aviso depois de uma luta perdida por pontos e um empate que passou
raspando, no outono de um ano que não lembro bem qual foi, já faz tanto
tempo.
O que sei é que antes que isso começasse nós tínhamos voltado a falar de
Mario Pradás, e Ciclón me ganhava longe quando falávamos de Mario, dele
sim ele sabia mais que todo mundo, e olha que não pôde acompanhá-los aos
Estados Unidos para a luta pelo campeonato mundial, o treinador só tinha
escolhido um sparring porque lá os havia de sobra, e então coube a José
Catalano ir, mas o próprio Ciclón estava a par de tudo por intermédio de
outros amigos e dos jornais, de cada luta ganha por Mario e do que
aconteceu depois, aquilo que nenhum de nós conseguia esquecer, mas que
para Ciclón era ainda pior, uma espécie de amargura que dava para sentir
em sua voz e em seus olhos quando ele se lembrava.
— Tony Giardello — dizia. — Tony Giardello, filho da puta.
Eu nunca o ouvira xingar os que ganhavam dele, pelo menos nunca os
xingava dessa maneira, como se tivessem ofendido sua mãe. Não entrava
em sua cabeça que Giardello pudesse ter vencido Mario Pradás, e pela
forma com que ele se informara da luta, de cada detalhe que reunira lendo e
ouvindo outras pessoas, sentia-se que no fundo ele não aceitava a derrota,
procurava, sem dizer nada, alguma explicação que a mudasse em sua
memória, e sobretudo que mudasse o outro lance, o que tinha acontecido
depois, quando Mario não conseguiu se recompor de um nocaute que em
dez segundos virou sua vida de cabeça para baixo e o levou a uma queda
incontornável, a duas ou três lutas ganhas com dificuldade ou empatadas
contra sujeitos que antes não teriam aguentado nem quatro rounds, e por
fim ao abandono e à morte em poucos meses, sua morte de cão depois de
uma crise que nem os médicos entenderam, nas bandas de Mendoza, onde
ele não tinha nem fãs nem amigos.
— Tony Giardello — dizia Ciclón, olhando a cerveja. — Que filho da
puta.
Só uma vez me animei a lhe dizer que ninguém tinha duvidado da forma
com que Giardello ganhou de Mario, e que a melhor prova disso era que
dois anos depois ele continuava sendo campeão mundial e que defendera o
título mais três vezes. Ciclón me ouviu sem dizer nada, mas nunca repeti o
comentário, e devo dizer que ele também não insistiu no xingamento, como
se caísse em si. Estou um pouco perdido no tempo, mas deve ter sido nessa
época que houve aquela luta — preliminar, na falta de coisa melhor naquela
noite — com o canhoto Aguinaga, e que Ciclón, depois de lutar como
sempre nos primeiros três rounds, entrou no quarto como se estivesse
andando de bicicleta e em quarenta segundos deixou o canhoto pendurado
nas cordas. Nessa noite pensei que iria encontrá-lo no café, mas decerto ele
foi comemorar com outros amigos ou foi para o ninho (estava casado com
uma guria de Luján e gostava muito dela), de maneira que fiquei sem os
comentários. Claro que depois disso eu não podia achar estranho que o
pessoal do Luna Park lhe arrumasse uma luta principal com Rogelio
Coggio, que vinha de Santa Fe com muita fama, e embora eu temesse o pior
para Ciclón, fui torcer por ele, e juro que quase não pude acreditar no que
aconteceu, quer dizer, no começo não aconteceu nada e Coggio estava
ganhando com vantagem a partir do quarto round, o lance do canhoto
começava a me parecer um mero acaso, quando Ciclón começou a atacar
quase sem baixar a guarda desde o início, de repente Coggio se pendurou
nele como se ele fosse um cabide, as pessoas de pé não estavam entendendo
nada e aí Ciclón com um jab direto o pôs na lona por oito segundos e quase
em seguida o pôs para dormir com um gancho que deve ter sido ouvido até
na Plaza de Mayo. Nem te conto, como se dizia então.
Naquela noite, Ciclón chegou ao café com o bando de puxa-sacos que
sempre se amontoam junto dos vencedores, mas depois de comemorar um
pouco e de tirar fotos com eles, veio até minha mesa e se sentou, como se
quisesse que o deixassem em paz. Não parecia cansado, embora Coggio
tivesse arrebentado uma sobrancelha dele, mas o que achei mais estranho
foi que me olhava diferente, quase como se me perguntasse ou se
perguntasse alguma coisa; de vez em quando friccionava o pulso direito e
voltava a me olhar de um jeito estranho. O que posso dizer, eu estava tão
assustado depois do que tinha visto que preferi esperar que ele falasse
primeiro, se bem que no fim tive de dar a ele minha versão da coisa toda e
acho que Ciclón percebeu muito bem que eu não conseguia acreditar
naquilo, o canhoto e Coggio em menos de dois meses e daquele jeito, fiquei
sem palavras.
Eu me lembro, o café ia se esvaziando, mas o dono, depois de descer a
porta metálica, deixava que ficássemos quanto nos desse na telha. Ciclón
bebeu outra cerveja quase de um só trago e friccionou de novo o pulso
machucado.
— Deve ser o Alesio — disse —, a gente não se dá conta, mas com
certeza são os conselhos do Alesio.
Dizia isso como quem tapa um buraco, sem convicção. Eu não estava
sabendo que ele tinha trocado de treinador, então achei, é claro, que a coisa
podia vir daí, mas hoje, quando penso nisso de novo, percebo que também
não estava convencido. Claro que alguém como Alesio podia fazer muito
por Ciclón, mas essa pegada de nocaute não podia aparecer por milagre.
Ciclón olhava para as mãos, friccionava o pulso.
— Não sei o que está acontecendo comigo — disse como se sentisse
vergonha. — Acontece de repente, foi assim nas duas vezes, meu chapa.
— Seu treino é fenomenal — disse a ele —, dá pra ver claramente a
diferença.
— Pode ser, mas assim de repente… É um bruxo, o Alesio?
— Continue batendo — disse, brincando, para tirá-lo daquela espécie de
ausência em que parecia estar —, acho que ninguém mais segura você,
Ciclón.
E foi bem assim, depois da luta com o Gato Fernández ninguém duvidou
que o caminho estava aberto, o mesmo caminho de Mario Pradás dois anos
antes, um navio, duas ou três lutas de preparação, o desafio pelo
campeonato mundial. Foram tempos difíceis para mim, eu teria dado
qualquer coisa para acompanhar Ciclón, mas não podia sair de Buenos
Aires. Estive com ele o máximo possível, nos víamos bastante no café,
ainda que agora Alesio cuidasse dele e controlasse sua cerveja e outras
coisas. A última vez foi depois da luta com o Gato; não esqueço que Ciclón
me procurou entre a gentarada do café e me pediu que fôssemos caminhar
um pouco pelo porto. Entrou no carro e não deixou Alesio ir conosco,
descemos numa das docas e demos uma volta olhando os navios. Desde o
começo, eu tinha intuído que Ciclón queria me dizer alguma coisa; falei-lhe
da luta, de como o Gato trapaceara até o final, era de novo como tapar
buracos porque Ciclón me olhava sem ouvir direito, assentindo e se
calando, o Gato, pois é, o Gato não é nada fácil.
— No começo você me deu um susto — falei. — Você leva um tempo pra
se aquecer, isso é perigoso.
— Eu sei, porra. O Alesio sempre fica uma fera, pensa que faço isso de
propósito ou só de fanfarrice.
— É mau, cara, assim acabam passando na sua frente. E agora…
— Sim — disse Ciclón, sentando-se num rolo de corda —, agora é o Tony
Giardello.
— É isso mesmo, compadre.
— Quer o quê?, o Alesio tem razão, você também tem razão. Não
conseguem entender, percebe? Eu mesmo não entendo por que tenho de
esperar.
— Esperar o quê?
— Sei lá, o que vier — disse Ciclón, e desviou o rosto.
Você não vai acreditar, mas embora aquilo não tenha me pegado tão de
surpresa, fiquei meio sem graça, mas Ciclón não me deu tempo de retrucar,
me olhava fixo nos olhos como se quisesse se decidir.
— Percebe? —disse. — Não posso falar muito nem com o Alesio nem
com ninguém porque teria de quebrar a cara deles, não gosto que achem
que sou louco.
Repeti o velho gesto que se faz quando você não pode fazer outra coisa,
pus a mão em seu ombro e o apertei.
— Não entendo porra nenhuma — falei —, mas lhe agradeço, Ciclón.
— Pelo menos você e eu podemos conversar — disse Ciclón. — Como na
noite do Coggio, lembra? Você percebeu, você me disse: “Continue assim”.
— Bem, não sei o que posso ter percebido, só sei que estava indo tudo
bem e então eu lhe disse, não devo ter sido o único.
Ele me olhou como se quisesse que eu sentisse que não era só isso, depois
começou a rir. Nós dois rimos, distendendo os nervos.
— Me dê um cigarro — disse Ciclón —, só agora, que o Alesio não está
me vigiando como se eu fosse um bebê.
Fumamos de cara para o rio, para o vento úmido daquela meia-noite de
verão.
— Pois é, é isso — disse Ciclón, como se agora não lhe custasse tanto
falar. — Eu não posso fazer nada, tenho que lutar esperando que chegue
esse momento. De repente me nocauteiam a frio, juro que me dá medo.
— Você demora a se aquecer, é isso.
— Não — disse Ciclón —, você sabe muito bem que não é isso. Me dê
mais um cigarro.
Esperei sem saber o quê, e ele fumava olhando o rio, o cansaço da luta
pesava sobre ele pouco a pouco, seria preciso voltar ao centro. Era difícil
para mim dizer qualquer palavra, juro, mas depois disso eu tinha de
perguntar, não podíamos ficar assim porque ia ser pior, Ciclón tinha me
trazido até o porto para me dizer alguma coisa e, olhe, não podíamos ficar
assim.
— Não estou entendendo direito — falei —, mas talvez eu tenha pensado
como você, porque de outra forma não dá pra entender o que está
acontecendo.
— O que está acontecendo você já sabe — disse Ciclón. — O que quer
que eu pense?, me diga.
— Não sei — falei com dificuldade.
— É sempre assim, começa num intervalo, eu não percebo nada, o Alesio
grita não sei o quê na minha orelha, soa o gongo e quando eu saio é como
se mal tivesse começado, não consigo explicar, mas é bem diferente. Se não
fosse pelo fato do outro ser o mesmo, o canhoto ou o Gato, eu ia achar que
estou sonhando ou coisa parecida, depois não sei bem o que acontece, dura
muito pouco.
— Para o outro, você quer dizer — intercalei de brincadeira.
— Sim, mas eu também, quando levantam meu braço já não sinto nada,
estou de volta e não compreendo, tenho que me convencer pouco a pouco.
— Pode ser — disse, sem saber o que dizer —, pode ser que seja algo
assim, vá saber. O fato é que você tem que ir até o fim, não tem que se
torturar atrás de explicações. No fundo, acho que o que te deixa assim é
aquilo que você quer, e isso é ótimo, não precisa ficar remoendo.
— Sim — disse Ciclón —, deve ser isto, o que eu quero.
— Embora você não esteja convencido disso.
— Nem você, porque não se anima a acreditar.
— Deixe disso, Ciclón. O que você quer é nocautear o Tony Giardello,
isso está claro, acho.
— Está claro, mas…
— E tenho pra mim que você não quer fazer isso apenas por você.
— Hã, hã.
— E aí você se sente melhor, algo assim.
Caminhávamos de volta para o carro. Tive a impressão de que Ciclón
aceitava, com seu silêncio, aquilo que estivera amarrando nossa língua o
tempo todo. Afinal, esse era um outro modo de dizer a coisa sem entrar
numa de horror, se é que você me entende. Ciclón me deixou no ponto de
ônibus; dirigia devagar, meio dormindo no volante. É capaz que lhe
acontecesse alguma coisa antes que chegasse em casa; fiquei apreensivo,
mas no dia seguinte vi as fotos de uma reportagem que tinham feito sobre
ele pela manhã. Falava dos projetos, claro, da viagem ao Norte, da grande
noite se aproximando devagar.
Já lhe disse que não pude acompanhar Ciclón, mas a turma e eu reuníamos
informações e não perdíamos nenhum detalhe. Tinha sido assim também
quando Mario Pradás viajou, primeiro as notícias sobre o treino em Nova
Jersey, a luta com Grossmann, o descanso em Miami, um cartão-postal de
Mario para a Gráfico falando da pesca de tubarões ou algo assim, depois a
luta com Atkins, o contrato para o campeonato mundial, a crítica ianque
cada vez mais entusiasta e no fim (veja se não é triste, digo no fim e isso é
tão certo, caralho) a noite com Giardello, nós pendurados no rádio, cinco
rounds equilibrados, o sexto de Mario, o sétimo empatado, quase na saída
do oitavo a voz do locutor como se estivesse se afogando, repetindo a
contagem dos segundos, gritando que Mario se levantava, caía de novo, a
nova contagem até o fim, Mario nocauteado, depois as fotos, que eram
como viver novamente tanta desgraça, Mario em seu canto e Giardello
pondo-lhe uma luva na cabeça, o fim, vou te contar, o fim de tudo aquilo
que tínhamos sonhado com Mario, de Mario. Como eu estranharia que mais
de um jornalista portenho falasse da viagem de Ciclón com subentendidos
de revanche simbólica, como a chamavam? O campeão continuava lá
esperando adversários e acabando com todos, era como se Ciclón pisasse
sobre os rastros da outra viagem e tivesse de passar pelas mesmas coisas,
pelas barreiras que os ianques levantavam para qualquer um que buscasse o
caminho do campeonato, ainda mais se não fosse do país. Cada vez que eu
lia essas matérias pensava que se Ciclón tivesse estado comigo teríamos
comentado tudo simplesmente nos olhando, entendendo-os de uma forma
muito diferente dos outros. Mas Ciclón também devia estar pensando nisso
sem precisar ler os jornais, cada dia que passava devia ser para ele como a
repetição de algo que lhe daria um aperto no estômago, sem querer falar
com ninguém como falara comigo, e olhe que nem tínhamos falado grande
coisa. No quarto round, quando ele se livrou do primeiro peso-mosca, um
tal de Doc Pinter, mandei-lhe um telegrama de alegria e ele me respondeu
com outro: Vamos em frente, um abraço. Depois veio a luta com Tommy
Bard, que tinha aguentado os quinze rounds com Giardello no ano anterior,
Ciclón o nocauteou no sétimo, nem vou contar do delírio em Buenos Aires,
você era bem piá e não vai conseguir se lembrar, teve gente que não foi
trabalhar, teve confusão nas fábricas, acho que não sobrou cerveja em
nenhum lugar. A torcida estava muito segura de que a nova luta já era dada
como ganha, e tinham razão, porque Gunner Williams só aguentou quatro
rounds com Ciclón. Agora ia começar o pior, a espera desesperadora até 12
de abril, a última semana nos reunia toda noite no café da Maipú com
jornais e fotos e prognósticos, mas no dia da luta fiquei sozinho em casa,
depois haveria tempo para comemorar com a turma, agora Ciclón e eu
tínhamos de estar lado a lado pelo rádio, por algo que me fechava a
garganta e me obrigava a beber e a fumar e a dizer idiotices para Ciclón,
falando com ele lá da poltrona, lá da cozinha; dando voltas como um cão e
pensando no que Ciclón talvez estivesse pensando enquanto enfaixavam
suas mãos, enquanto anunciavam os pesos, enquanto um locutor repetia
tantas coisas que sabíamos de cor, a lembrança de Mario Pradás, voltando
para todos desde aquela outra noite que não podia se repetir, que nunca
tínhamos aceitado e que queríamos apagar, como se apagam as coisas mais
amargas entornando o copo.
Você sabe muito bem o que aconteceu, nem preciso dizer, os três
primeiros rounds com Giardello mais rápido e mais técnico que nunca, o
quarto com Ciclón aceitando a luta mão a mão e deixando-o em apuros no
final do round, o quinto com todo o estádio de pé e o locutor que não
conseguia dizer o que estava acontecendo no centro do ringue, impossível
acompanhar a mudança de golpes senão gritando palavras soltas, e quase na
metade do round o direto de Giardello, Ciclón se desviando para o lado sem
ver chegar o gancho que o deixou de costas durante toda a contagem, a voz
do locutor chorando e gritando, o barulho de um copo se estilhaçando na
parede antes que a garrafa destruísse a frente do meu rádio, Ciclón
nocauteado, a segunda viagem idêntica à primeira, os comprimidos para
dormir, sei lá, as quatro da manhã no banco de alguma praça. Puta que o
pariu, cara.
Certo, não há o que comentar, você dirá que é a lei do ringue e outras
merdas, é que você não conheceu Ciclón, por que iria se afligir com isso?
Aqui nós choramos, sabe, fomos tantos os que choramos sozinhos ou com a
turma, e muitos pensaram e disseram que no fundo tinha sido melhor assim,
porque Ciclón nunca aceitaria a derrota e era melhor que acabasse daquele
jeito, oito horas em coma no hospital e fim. Eu lembro, escreveram numa
revista que ele tinha sido o único que não ficara sabendo de nada, que
beleza, não?, filhos da puta. Não vou lhe contar do enterro quando o
trouxeram, depois de Gardel foi o maior que já se viu em Buenos Aires. Eu
me afastei da turma do café porque me sentia melhor sozinho, não sei
quanto tempo se passou até que eu encontrasse, por um mero acaso, Alesio
no hipódromo. Alesio estava em pleno trabalho com Carlos Vigo, você
conhece a carreira desse guri, mas quando fomos tomar uma cerveja ele se
lembrou de como eu era amigo de Ciclón e me disse, me disse de um jeito
estranho, me olhando como se não soubesse muito bem se devia dizer
aquilo ou se o estava dizendo porque depois queria me dizer outra coisa,
alguma coisa que estava mexendo com ele. Alesio tinha fama de calado, e
eu pensando de novo em Ciclón preferia fumar um cigarro atrás do outro e
pedir mais cerveja, deixar o tempo passar sentindo que estava do lado de
alguém que tinha sido um bom amigo de Ciclón e tinha feito tudo o que
podia por ele.
— Ele gostava muito de você — disse-lhe uma hora, porque sentia assim
e era justo lhe dizer, embora ele já soubesse. — Sempre que me falava de
você antes da viagem era como se você fosse pai dele. Lembro de uma noite
em que saímos juntos, uma hora ele me pediu um cigarro e depois falou:
“Só agora que o Alesio não está aqui, porque ele cuida de mim como se eu
fosse um bebê”.
Alesio baixou a cabeça, ficou pensando.
— Pois é — disse-me —, ele era um rapaz direito, nunca tive problemas
com ele, dava umas escapadas por aí mas logo voltava, calado, sempre me
dava razão, e olhe que eu sou um chato, todo mundo diz isso.
— Ciclón, porra.
Nunca vou esquecer de quando Alesio ergueu o rosto e me olhou como se
tivesse decidido algo de repente, como se um momento longamente
esperado tivesse chegado para ele.
— Não me importa o que você pensa — disse, marcando cada palavra
com seu sotaque onde a Itália não tinha morrido totalmente. — Conto pra
você porque foi amigo dele. Só peço uma coisa, se acha que estou maluco
vá embora sem responder, eu sei que, de qualquer maneira, você nunca vai
dizer nada.
Fiquei olhando para ele, e de repente era de novo uma noite no porto, um
vento úmido que molhava o rosto de Ciclón e o meu.
— Levaram-no pro hospital, você sabe, e lhe fizeram uma trepanação
porque o médico disse que era muito grave mas que ele podia ser salvo.
Veja que não foi só o murro, mas o golpe na nuca, o modo como ele bateu
na lona, eu vi isso muito claramente e ouvi o barulho, apesar dos gritos eu
ouvi o barulho, cara.
— Você acha mesmo que ele teria sido salvo?
— Sei lá, afinal, já vi nocautes piores na minha vida. O fato é que às duas
da manhã ele já tinha sido operado e eu estava no corredor esperando, não
nos deixavam vê-lo, éramos dois ou três argentinos e alguns ianques, pouco
a pouco fui ficando sozinho com um ou outro do hospital. Por volta das
cinco um sujeito veio me procurar, eu não pesco muito o inglês mas entendi
que não havia mais nada a fazer. Parecia assustado, era um enfermeiro
velho, um negro. Quando vi Ciclón…
Pensei que ele não fosse falar mais, sua boca tremia, bebeu derramando
cerveja na camisa.
— Nunca vi nada igual, irmão. Era como se ele tivesse sido torturado,
como se alguém quisesse ter se vingado dele, não sei do quê. Não consigo
explicar, parecia estar vazio, como se tivesse sido sugado, como se lhe
faltasse todo o sangue, perdoe o que lhe digo mas não sei como dizer isso,
era como se ele tivesse desejado sair de si mesmo, arrancar-se de si mesmo,
entende? Como uma bexiga murcha, um fantoche rasgado, mas rasgado por
quem, para quê? Bem, pode ir, se quiser, não me deixe continuar falando.
Quando pus a mão em seu ombro, lembrei que com Ciclón também, na
noite do porto, minha mão também no ombro de Ciclón.
— Você que sabe — falei. — Nem você nem eu podemos entender, sei lá,
talvez sim, mas não poderíamos acreditar. O que eu sei é que não foi o
Giardello que matou o Ciclón. O Giardello pode dormir tranquilo porque
não foi ele, Alesio.
Claro que eu não entendia, e você também não, pela cara que está
fazendo.
— Essas coisas acontecem — disse Alesio. — Claro que o Giardello não
teve culpa, cara, nem precisa me dizer.
— Eu sei, mas você me confiou o que viu lá, e é justo que eu lhe
agradeça. Agradeço tanto que vou lhe dizer mais uma coisa antes de ir
embora. Por mais que a gente tenha pena do Ciclón, deve ter outro que a
mereça mais que ele, Alesio.
Acredite, há outro de quem eu sinto pena em dobro, mas para que
continuar, não é?, nem Alesio entendeu nem você entende agora. E eu, bem,
sei lá o que eu entendi, só estou lhe contando isso porque, numa dessas,
nunca se sabe, a verdade é que não sei por que estou lhe contando isso,
talvez porque já estou velho e falo demais.
Satarsa
Adán y raza, azar y nada.
C
oisas assim para encontrar o rumo, como agora esse atar a rata,
outro palíndromo rasteiro e pegajoso, Lozano sempre foi louco por
esses jogos, que ele não parece ver como tal, pois para ele tudo se
apresenta à maneira de um espelho que mente e diz a verdade ao
mesmo tempo, diz a verdade para Lozano porque lhe mostra sua orelha
direita à direita, mas ao mesmo tempo mente porque Laura e qualquer um
que o olhe verá a orelha direita como a orelha esquerda de Lozano, ainda
que simultaneamente a definam como sua orelha direita; simplesmente a
veem à esquerda, coisa que nenhum espelho pode fazer, incapaz dessa
correção mental, e por isso o espelho diz a Lozano uma verdade e uma
mentira, e isso há muito tempo o faz pensar como se estivesse diante de um
espelho; se atar a rata não dá mais que isso, as variantes merecem reflexão,
e então Lozano olha para o chão e deixa que as palavras joguem sozinhas
enquanto ele as espera como os caçadores de Calagasta esperam as ratas
gigantes para caçá-las vivas.
Pode continuar assim durante horas, ainda que nesse momento a questão
concreta das ratas não lhe deixe muito tempo para se perder nas possíveis
variantes. O fato de tudo isso ser deliberadamente insano não o surpreende,
às vezes dá de ombros como se quisesse se livrar de alguma coisa que não
consegue explicar, já se acostumou a conversar com Laura sobre a questão
das ratas como se isso fosse a coisa mais natural do mundo, e de fato é, por
que não seria normal caçar ratas gigantes em Calagasta, sair com o mulato
Illa e com Yarará para caçar as ratas? Nessa mesma tarde terão de se
aproximar de novo das colinas do norte, pois logo haverá um novo
embarque de ratas e é preciso aproveitá-lo ao máximo, as pessoas de
Calagasta sabem disso e têm dado batidas no monte, embora não se
aproximem das colinas, e as ratas também sabem, claro, e é cada vez mais
difícil campeá-las e, principalmente, capturá-las vivas.
Por tudo isso, Lozano não acha nem um pouco absurdo que as pessoas de
Calagasta vivam agora quase que exclusivamente da captura das ratas
gigantes, e é na hora em que prepara uns laços de couro muito fino que lhe
vem o palíndromo de atar a rata e ele fica com um laço quieto na mão,
olhando Laura cozinhar cantarolando, e pensa que o palíndromo mente e
diz a verdade, como todo espelho, claro que é preciso atar a rata porque é a
única maneira de mantê-la viva até engaiolá-la(s) e dá-las a Porsena, que
carrega as gaiolas no caminhão que toda quinta-feira sai para o litoral onde
o navio aguarda. Mas também é uma mentira porque ninguém jamais atou
uma rata gigante a não ser metaforicamente, sujeitando-a pelo pescoço com
uma forquilha e enlaçando-a até metê-la na gaiola, sempre com as mãos
bem longe da boca sanguinolenta e das garras como vidros estapeando o ar.
Ninguém jamais atará uma rata, menos ainda depois da última lua em que
Illa, Yarará e os outros sentiram que as ratas desenvolviam novas
estratégias, tornavam-se mais perigosas por ficarem invisíveis e entocadas
em refúgios que antes não utilizavam, e que caçá-las vai ficar cada vez mais
difícil, agora que as ratas os conhecem e até os desafiam.
— Mais três ou quatro meses — Lozano diz a Laura, que está pondo os
pratos na mesa sob o alpendre do rancho. — Depois poderemos atravessar
pro outro lado, as coisas parecem estar mais calmas.
— Pode ser — diz Laura —, em todo caso, é melhor não pensar nisso,
quantas vezes já não aconteceu de estarmos equivocados?
— É. Mas não vamos ficar aqui caçando ratas pra sempre.
— É melhor que passarmos pro outro lado na hora errada e virarmos as
ratas que eles caçam.
Lozano ri, faz outro laço. É verdade que não estão tão mal, Porsena paga à
vista pelas ratas e todo mundo vive disso, enquanto for possível caçá-las
haverá comida em Calagasta, a companhia dinamarquesa que manda os
barcos à costa precisa cada vez mais de ratas para Copenhague, Porsena
acha que eles as usam para experimentos genéticos nos laboratórios. Que
sirvam pelo menos pra isso, diz às vezes Laura.
Do berço que Lozano fabricou com um caixote de cerveja vem o primeiro
protesto de Laurita. O cronômetro, como Lozano a chama, a choramingação
no exato segundo em que Laura está terminando de preparar a comida e de
fazer a mamadeira. Com Laurita quase não precisam de relógio, ela dá a
hora melhor que o bip bip do rádio, diz Laura rindo, pegando-a no colo e
lhe mostrando a mamadeira, Laurita sorridente e olhos verdes, o coto
batendo na palma da mão esquerda como num arremedo de tambor, o
diminuto antebraço rosado que termina numa lisa semiesfera de pele; o dr.
Fuentes (que não é doutor, mas em Calagasta tanto faz) fez um trabalho
perfeito e quase não há marca de cicatriz, como se Laurita nunca tivesse
tido mão ali, a mão que as ratas comeram quando as pessoas de Calagasta
começaram a caçá-las em troca do dinheiro que os dinamarqueses pagavam
e as ratas se retiraram, até que um dia houve um contra-ataque, a raivosa
invasão noturna seguida de fugas vertiginosas, a guerra aberta, e muita
gente desistiu de caçá-las para apenas se defender com armadilhas e
escopetas, e boa parte voltou a plantar mandioca ou trabalhar em outras
cidades da montanha. Mas vários outros continuaram a caçá-las, Porsena
pagava à vista e o caminhão saía toda quinta-feira para o litoral, Lozano foi
a primeiro a lhe dizer que continuaria caçando ratas, disse isso ali mesmo
no rancho enquanto Porsena olhava a rata que Lozano tinha matado a
pontapés e Laura corria com Laurita para o dr. Fuentes e já não era possível
fazer nada, só cortar o que restava pendurado e conseguir aquela cicatriz
perfeita para que Laurita inventasse seu tamborzinho, sua brincadeira
silenciosa.
O mulato Illa não liga que Lozano brinque tanto com as palavras, cada um é
louco à sua maneira, pensa o mulato, mas gosta menos que Lozano se deixe
levar demais e daí queira que as coisas se ajustem a seus jogos, que ele e
Yarará e Laura o sigam nesse caminho como o seguiram em tantas outras
coisas nesses anos todos, desde a fuga pelas quebradas do Norte depois dos
massacres. Naqueles anos, pensa Illa, nem sabemos mais se foram semanas
ou anos, tudo era verde e contínuo, a selva com seu tempo próprio, sem sóis
nem estrelas, e depois as quebradas, um tempo avermelhado, tempo de
pedra e torrentes e fome, sobretudo fome, querer contar os dias ou as
semanas era como ter mais fome ainda, então os quatro tinham seguido,
primeiro os cinco, mas Ríos se matou num despenhadeiro e Laura quase
morreu de frio na montanha, já estava de seis meses e se cansava rápido,
tiveram de ficar não se sabe quanto tempo abrigando-a com fogueiras de
capim seco até que conseguiu caminhar, às vezes o mulato Illa volta a ver
Lozano levando Laura nos braços e Laura não querendo, dizendo que já
está bem, que pode andar, e seguir para o Norte, até a noite em que os
quatro viram as luzinhas de Calagasta e souberam que por enquanto tudo
ficaria bem, que nessa noite comeriam em algum rancho ainda que depois
os denunciassem e o primeiro helicóptero chegasse para matá-los. Mas não
os denunciaram, ali nem sequer se conheciam os possíveis motivos para
denunciá-los, ali todo mundo morria de fome como eles, até que alguém
descobriu as ratas gigantes perto das colinas e Porsena teve a ideia de
mandar uma amostra para o litoral.
— Atar a rata não é nada mais que atar a rata — diz Lozano. — Não tem
nenhum vigor, pois não vai lhe ensinar nada de novo, além do que ninguém
pode atar uma rata. Você fica como no começo, isso é que é foda com os
palíndromos.
— Ahn, ahn — diz o mulato Illa.
— Mas se você pensa no plural, tudo muda. Atar as ratas não é a mesma
coisa que atar a rata.
— Não parece muito diferente.
— Porque já não vale como palíndromo — diz Lozano. — É só pôr no
plural e muda tudo, surge uma coisa nova, já não é o espelho ou é um
espelho diferente que mostra uma coisa que você não conhecia.
— O que tem de novo?
— Tem que atar as ratas lhe dá Satarsa rata.
— Satarsa?
— É um nome, mas todos os nomes isolam e definem. Agora você sabe
que tem uma rata que se chama Satarsa. Todas devem ter nomes,
certamente, mas agora tem uma que se chama Satarsa.
— E o que você ganha sabendo isso?
— Também não sei, mas continuo. Ontem à noite pensei em inverter a
coisa, desatar em vez de atar. E quando pensei nisso vi a palavra desatarlas
ao contrário e dava sal, rata, sed. Coisas novas, veja, o sal e a sede.
— Não tão novas — diz Yarará, que escuta de longe —, sem contar que
andam sempre juntas.
— Pode ser — diz Lozano —, mas mostram um caminho, talvez seja a
única maneira de acabar com elas.
— Não vamos acabar com elas tão rápido — ri Illa —, do que vamos
viver se acabarem?
Laura traz o primeiro mate e espera, apoiando-se um pouco no ombro de
Lozano. O mulato Illa volta a pensar que Lozano brinca demais com as
palavras, que vai acabar passando dos limites e tudo irá por água abaixo.
Lozano também pensa nisso enquanto prepara os laços de couro, e quando
fica sozinho com Laura e Laurita toca no assunto, fala com as duas como se
Laurita pudesse entender, e Laura gosta que ele inclua sua filha, que os três
estejam mais juntos quando Lozano lhes fala de Satarsa ou de como salgar a
água para acabar com as ratas.
— Para realmente atá-las — ri Lozano. — Veja se não é curioso, o
primeiro palíndromo que conheci na vida também falava de atar alguém,
não se sabe quem, mas talvez já fosse Satarsa. Li isso num conto onde havia
muitos palíndromos, mas só me lembro desse.
— Você me contou isso uma vez lá em Mendoza, acho, não lembro
direito.
— Átale, demoníaco Caín, o me delata — diz cadenciadamente Lozano,
quase salmodiando para Laurita, que ri no berço e brinca com seu poncho
branco.
Laura assente, é verdade que já estão querendo atar alguém nesse
palíndromo, mas para atá-lo tem de se pedir isso a ninguém menos que
Caim, e ainda por cima chamando-o de demoníaco.
— Bah — diz Lozano —, a convenção de sempre, a boa consciência se
arrastando na história desde o início, Abel o bom e Caim o mal, como nos
velhos filmes de caubói.
— O mocinho e o bandido — lembra Laura, quase nostálgica.
— Claro que se o inventor desse palíndromo se chamasse Baudelaire,
demoníaco não seria negativo, mas o contrário. Lembra?
— Um pouco — diz Laura. — Raça de Abel, dorme, bebe e come, Deus
te sorri comprazido.
— Raça de Caim, rasteja e morre miseravelmente no lodo.
— Sim, e numa parte diz alguma coisa como raça de Abel, tua carniça
adubará o solo fumegante, e depois diz raça de Caim, arrasta tua família
desesperada ao longo dos caminhos, algo assim.
— Até que as ratas devorem teus filhos — diz Lozano, quase sem voz.
Laura afunda o rosto nas mãos, já faz tanto tempo que aprendeu a chorar
em silêncio, sabe que Lozano não vai tentar consolá-la, Laurita sim, que
acha o gesto divertido e ri até que Laura abaixa as mãos e lhe faz uma
careta cúmplice. Já está chegando a hora do mate.
Yarará acha que o mulato Illa tem razão, e que de repente a maluquice de
Lozano vai acabar com essa trégua na qual pelo menos estão a salvo, pelo
menos vivem com a gente de Calagasta e permanecem ali porque não se
pode fazer outra coisa, esperando que o tempo diminua um pouco as
lembranças do outro lado e que também os do outro lado comecem a
esquecer que não conseguiram capturá-los, que em algum lugar perdido eles
estão vivos e por isso são culpados, e por isso com a cabeça a prêmio,
inclusive a do pobre Ruiz, despencado de um barranco há tanto tempo.
— É só não ir na onda dele — pensa Illa em voz alta. — Eu não sei, pra
mim ele sempre é o chefe, ele tem isso, entende, não sei o quê, mas ele tem
e pra mim isso basta.
— A educação fodeu com ele — diz Yarará. — Passa o tempo todo
pensando ou lendo, isso é ruim.
— Pode ser. Não sei se é isso, Laura também fez faculdade e veja, nem dá
pra perceber. Não acho que seja a educação, o que o deixa louco é estarmos
metidos nessa enrascada, e o que aconteceu com a Laurita, coitada da
guriazinha.
— Vingança — diz Yarará. — O que ele quer é vingança.
— Todos nós queremos nos vingar, uns dos milicos, outros das ratas, é
difícil manter a cabeça fria.
Ocorre a Illa que a loucura de Lozano não muda nada, que as ratas
continuam lá e que é difícil caçá-las, que as pessoas de Calagasta não se
animam a ir longe demais porque se lembram das histórias, do esqueleto do
velho Millán ou da mão de Laurita. Mas eles também estão loucos,
principalmente Porsena, com o caminhão e as gaiolas, e os da costa e os
dinamarqueses estão ainda mais loucos gastando dinheiro em ratas sabe-se
lá para quê. Isso não pode durar muito, há maluquices que se cortam de
repente e então vai ser de novo a fome, a mandioca quando houver, as
crianças morrendo com a barriga inchada. Por isso é melhor estar loucos,
afinal.
— Melhor estar loucos — diz Illa, e Yarará o olha surpreso e depois ri,
quase assentindo.
— O lance é não entrar na dele quando ele começar com Satarsa e o sal e
essas coisas, e no fim não muda nada, ele é sempre o melhor caçador.
— Oitenta e duas ratas — diz Illa. — Bateu o recorde do Juan López, que
estava em setenta e oito.
— Não me faça passar vergonha — diz Yarará —, eu aqui só com minhas
trinta e cinco.
— Veja — diz Illa —, veja que ele é sempre o chefe, de um jeito ou de
outro.
Nunca se sabe direito como as notícias chegam, de repente tem alguém que
sabe de alguma coisa no armazém do turco Adab, quase nunca indica a
fonte, mas as pessoas vivem tão isoladas que as notícias chegam como uma
lufada do vento do oeste, o único capaz de trazer um pouco de frescor e às
vezes de chuva. Tão raro como as notícias, tão breve como a água que
talvez vá salvar as lavouras sempre amarelas, sempre enfermas. Uma
notícia ajuda a ir levando, mesmo que seja má.
Laura fica sabendo pela mulher de Adab, volta ao rancho e fala em voz
baixa como se Laurita pudesse compreender, passa outro chimarrão para
Lozano, que o toma devagar, olhando para o chão onde um bicho preto
avança devagar em direção ao fogão. Esticando um pouco a perna, esmaga
o bicho e termina o chimarrão, devolve-o a Laura sem olhá-la, de mano a
mano, como tantas vezes, como tantas coisas.
— Precisamos ir embora — diz Lozano. — Se for verdade, logo estarão
aqui.
— Mas pra onde?
— Não sei, e aqui ninguém vai saber, também, vivem como se fossem os
primeiros ou os últimos homens. Pro litoral de caminhão, acho, Porsena
deve concordar.
— Parece piada — diz Yarará, que enrola um cigarro com movimentos
lentos de oleiro. — Ir embora com as gaiolas das ratas, imagine. E depois?
— Depois não é problema — diz Lozano. — Mas vai ser preciso dinheiro
pra esse depois. O litoral não é Calagasta, vamos ter de pagar pra que nos
abram caminho pro Norte.
— Pagar — diz Yarará. — A que ponto chegamos, ter que trocar ratas
pela liberdade.
— Pior são eles que trocam a liberdade por ratas — diz Lozano.
De seu canto, onde teima em consertar uma bota sem conserto, Illa ri
como se tossisse. Outro jogo de palavras, mas às vezes Lozano acerta no
alvo e então quase parece ter razão com sua mania de ficar virando as luvas
do avesso, de ver tudo a partir da outra ponta. A cabala do pobre, disse um
dia Lozano.
— O problema é a guria — diz Yarará. — Não podemos nos meter no
monte com ela.
— Com certeza — diz Lozano —, mas no litoral podemos encontrar
algum pesqueiro que nos deixe mais acima, é questão de sorte e de dinheiro.
Laura lhe estende um chimarrão e espera, mas ninguém diz nada.
— Acho que vocês dois deviam ir embora agora — diz Laura sem olhar
para ninguém. — Lozano e eu veremos o que fazer, não tem por que se
demorarem mais, vão já pra montanha.
Yarará acende um cigarro e enche a cara de fumaça. O tabaco de
Calagasta não é bom, enche os olhos de lágrimas e dá tosse em todo mundo.
— Você já viu algum dia uma mulher mais louca? — diz a Illa.
— Não, tchê. Claro que talvez queira se livrar da gente.
— Vão à merda — diz Laura, dando as costas para eles, recusando-se a
chorar.
— Podemos conseguir dinheiro suficiente — diz Lozano. — Se caçarmos
muitas ratas.
— Se caçarmos.
— É possível — insiste Lozano. — O negócio é começar hoje mesmo, ir
já procurá-las. Porsena nos dará o dinheiro e nos deixará viajar no
caminhão.
— Concordo — diz Yarará —, mas entre falar e fazer… sabe como é.
Laura espera, olha os lábios de Lozano como se assim pudesse não ver
seus olhos cravados na lonjura vazia.
— Vamos ter que ir de novo até as cavernas — diz Lozano. — Não falar
nada pra ninguém, levar todas as gaiolas na carroça do índio tape Guzmán.
Se dissermos alguma coisa, eles vão vir com a história do velho Millán e
não vão querer que a gente vá, você sabe como nos querem bem. Mas o
velho também não lhes disse nada daquela vez e foi por conta própria.
— Mau exemplo — diz Yarará.
— Porque ele foi sozinho, porque se deu mal, pelo que você quiser. Nós
somos três e não somos velhos. Se as encurralarmos na caverna, pois eu
acho que é uma caverna só, não muitas, nós as fumigamos até fazê-las sair.
Laura vai cortar aquele couro de vaca pra envolvermos bem as pernas
acima das botas. E com o dinheiro podemos seguir pro Norte.
— Por garantia, vamos levar todos os cartuchos — Illa diz para Laura. —
Se seu marido tiver razão, vai haver ratas de sobra pra encher dez gaiolas, e
as outras que apodreçam tomando chumbo, porra.
— O velho Millán também tinha levado a escopeta — diz Yarará. — Mas
claro, ele era velho e estava sozinho.
Pega a faca, testando-a com o dedo, vai dependurar o couro de vaca e
começa a cortá-lo em tiras regulares. Vai fazer isso melhor que Laura, as
mulheres não sabem lidar com facas.
Aproveitar que a brenha raleia, que há dez metros em que é quase pasto, um
vazio que dá para franquear rastejando de lado, as velhas técnicas, rolar e
rolar até se meter em outra pastagem cerrada, levantar a cabeça
bruscamente para abarcar tudo num segundo e se esconder de novo, a
luzinha do rancho e as silhuetas se movendo, o reflexo instantâneo de um
fuzil, a voz que dá ordens aos gritos, o tiroteio contra a carroça que grita e
uiva na brenha. Lozano não olha para o lado nem para trás, ali há somente
silêncio, há Illa e Yarará mortos ou talvez como ele, ainda deslizando entre
as moitas e procurando um refúgio, abrindo picada com o aríete do corpo,
queimando a cara entre os espinheiros, cegas e ensanguentadas toupeiras se
afastando das ratas, porque agora sim são as ratas, Lozano as avista antes de
sumir de novo no mato, da carroça chegam os guinchos cada vez mais
raivosos mas as outras ratas não estão lá, as outras ratas lhe fecham o
caminho entre o mato e o rancho, e embora a luz do rancho continue acesa,
Lozano sabe que Laura e Laurita não estão mais lá, ou estão mas já não são
Laura e Laurita agora que as ratas chegaram ao rancho e tiveram todo o
tempo necessário para fazer o que devem ter feito, para esperá-lo como o
estão esperando entre o rancho e a carroça, atirando uma rajada atrás da
outra, mandando e obedecendo e atirando agora que já não tem sentido
chegar ao rancho, e no entanto mais um metro, outro tombo que enche suas
mãos de espinhos ardentes, a cabeça despontando para olhar, para ver
Satarsa, saber que esse que grita instruções é Satarsa e todos os outros são
Satarsa, e se levantar e mandar a inútil saraivada de chumbo contra Satarsa,
que bruscamente gira em sua direção e tapa a cara com as mãos e cai para
trás, atingido pelo chumbo que acertou seus olhos, arrebentou sua boca, e
Lozano atirando o outro cartucho contra o que aponta a metralhadora para
ele, e o estampido macio da escopeta abafado pela crepitação da rajada, o
mato sendo esmagado sob o peso de Lozano, caído de boca entre os
espinhos que afundam em seu rosto, nos olhos abertos.
A escola de noite
D
e Nito eu não sei mais nada nem quero saber. Tantos anos e tantas
coisas se passaram, talvez ele ainda esteja lá, talvez tenha morrido
ou ande pelo exterior. Melhor não pensar nele, só que às vezes
sonho com os anos trinta em Buenos Aires, os tempos da escola
normal e, claro, de repente eis Nito e eu naquela noite em que entramos na
escola, depois não me lembro direito desses sonhos, mas sempre parece
restar alguma coisa de Nito pairando no ar, faço o possível para esquecer,
melhor que vá se apagando novamente até outro sonho, embora não haja
nada a fazer, de tempos em tempos é assim, de tempos em tempos tudo
volta como agora.
A ideia de entrar de noite na escola anormal (nós a chamávamos assim de
sacanagem, e por outros motivos mais concretos) foi de Nito, e me lembro
muito bem que foi no La Perla do Once, enquanto tomávamos um cinzano
com bitter. Meu primeiro comentário consistiu em dizer que ele era um
doido varrido, mas, apezardiço — na época escrevíamos assim,
desortografando o idioma por algum desejo de vingança que também devia
ter algo a ver com a escola —, Nito teimou na ideia e lá veio de novo com a
história de escola de noite, seria tão bacana irmos explorá-la, mas explorar
o quê, se ela é supermanjada pela gente, Nito, mas mesmo assim eu gostava
da ideia, só questionava para brigar um pouco, deixava que ele fosse
acumulando pontos pouco a pouco.
A certa altura comecei, com elegância, a maneirar, porque eu também não
achava a escola tão manjada assim, embora já estivéssemos há seis anos e
meio sob seu jugo, quatro para nos formar normalistas e quase três para a
licenciatura em letras, aguentando matérias tão inacreditáveis como sistema
nervoso, dietética e literatura espanhola, esta última a mais incrível de
todas, pois no terceiro trimestre ainda não tínhamos saído, nem sairíamos,
do Conde Lucanor. Talvez por isso, por essa forma de perdermos tempo, a
escola era meio estranha para Nito e para mim, tínhamos a impressão de
que lhe faltava alguma coisa que gostaríamos de conhecer melhor. Não sei,
acho que havia outra coisa, também, pelo menos para mim a escola não era
tão normal como seu nome pretendia, sei que Nito também pensava assim e
ele me disse isso na hora de nossa primeira aliança, nos dias remotos de um
primeiro ano cheio de timidez, cadernos e compassos. Depois desses anos
todos já não falávamos nisso, mas naquela manhã no La Perla tive a
sensação de que era daí que vinha o projeto de Nito, e que era por isso que
ele ia me ganhando pouco a pouco; como se antes de acabar o ano e de dar
as costas à escola para sempre, nós ainda tivéssemos de acertar contas com
ela, entender de uma vez por todas coisas que nos haviam escapado, aquele
desconforto que Nito e eu às vezes sentíamos nos pátios ou nas escadas, e
eu, particularmente, toda manhã ao ver as grades da entrada, um friozinho
na barriga desde o primeiro dia, ao passar por aquela grade pontiaguda atrás
da qual se abria o peristilo solene e começavam os corredores com sua cor
amarelada e a escada dupla.
— Por falar em grade, o lance é esperar até a meia-noite — dissera Nito
—, e subir por ali onde eu vi duas pontas dobradas, é só pôr um poncho que
dá e sobra.
— Facílimo — eu tinha dito —, e bem na hora a polícia aparece na
esquina ou alguma velha lá da frente dá o primeiro grito.
— Você tem ido muito ao cinema, Toto. Quando é que viu alguém ali a
essa hora? O músculo dorme, meu chapa.
Aos poucos eu ia me deixando tentar, com certeza era bobagem minha e
não ia acontecer nada nem fora nem dentro, a escola seria a mesma escola
da manhã, um pouco frankenstein na escuridão, vá lá, mas só isso, o que
podia haver lá de noite afora carteiras e quadros-negros e algum gato
procurando ratos?, que isso com certeza havia. Mas lá veio Nito de novo
com essa história do poncho e da lanterna, sem dizer que nos entediávamos
bastante naquela época em que tantas garotas ainda eram trancadas a sete
chaves marca papai e mamãe, tempos forçosamente muito austeros, não
gostávamos muito de bailes nem de futebol, de dia líamos como loucos,
mas de noite nós dois — às vezes junto com Fernández López, que morreu
tão jovem — saíamos zanzando e conhecíamos Buenos Aires e os livros de
Castelnuovo e os cafés do Bajo e do Dock Sur, no fim das contas não
parecia tão ilógico que também quiséssemos entrar na escola de noite, seria
completar algo incompleto, algo para guardar em segredo e de manhã olhar
os rapazes e esnobá-los, pobres moços, presos ao horário e ao Conde
Lucanor das oito ao meio-dia.
Nito estava decidido, se eu não quisesse ir junto ele ia pular sozinho num
sábado à noite, explicou que tinha escolhido o sábado porque se alguma
coisa não desse certo e ele ficasse trancado, teria tempo para encontrar
alguma outra saída. Fazia anos que essa ideia o rondava, talvez desde o
primeiro dia, quando a escola ainda era um mundo desconhecido e nós, os
piás do primeiro ano, ficávamos nos pátios de baixo, perto da sala de aula,
feito uns frangotes. Pouco a pouco fomos avançando por corredores e
escadas até termos uma ideia da enorme caixa de sapatos amarela com suas
colunas, seus mármores e aquele cheiro de sabão misturado ao barulho dos
recreios e ao ronronar das horas de aula, mas a familiaridade não nos
privara por completo daquilo que a escola tinha de território diferente,
apesar da rotina, dos colegas, da matemática. Nito se lembrava de pesadelos
onde coisas instantaneamente apagadas por um despertar violento tinham se
passado em galerias da escola, na sala de aula do terceiro ano, nas escadas
de mármore; sempre de noite, claro, sempre ele sozinho na escola
petrificada pela noite, e isso Nito não conseguia esquecer pela manhã, entre
centenas de garotos e de ruídos. Já eu nunca tinha sonhado com a escola,
mas também me pegava pensando em como ela seria com lua cheia, os
pátios de baixo, as galerias altas, imaginava uma claridade de mercúrio nos
pátios vazios, a sombra implacável das colunas. Às vezes avistava Nito em
algum recreio, afastado dos outros e olhando para o alto, onde os parapeitos
das galerias deixavam ver corpos truncados, cabeças e torsos passando de
um lado para outro, mais abaixo calças e sapatos que nem sempre pareciam
pertencer ao mesmo aluno. Se acontecia de eu subir sozinho a grande
escada de mármore quando todos já estavam na classe, eu me sentia meio
abandonado, subia ou descia de dois em dois degraus, e acho que por isso
mesmo alguns dias depois voltava a pedir licença para sair da sala e repetir
algum itinerário, com um ar de quem vai atrás de uma caixa de giz ou do
banheiro. Era como no cinema, o prazer de um suspense idiota, e foi por
isso, acho, que me defendi tão mal do projeto de Nito, de sua ideia de
enfrentar a escola; eu nunca pensaria em entrarmos lá de noite, mas Nito
tinha pensado pelos dois, e tudo bem, merecíamos esse segundo cinzano,
que não tomamos porque não tínhamos dinheiro suficiente.
Os preparativos foram simples, consegui uma lanterna e Nito me esperou
no Once com o volume de um poncho debaixo do braço; começava a fazer
calor naquele fim de semana, mas não havia muita gente na praça,
dobramos a rua Urquiza quase sem falar e quando já estávamos na quadra
da escola olhei para trás e Nito tinha razão, nem um gato que nos visse por
ali. Só então percebi que havia lua, não tínhamos planejado isso e não sei se
gostamos, embora tivesse o lado bom de percorrer as galerias sem usar a
lanterna.
Demos a volta na quadra para ficar mais seguros, falando do diretor que
morava na casa pegada à escola e que se comunicava com ela por um
corredor no alto, para que pudesse chegar direto a seu escritório. Os
porteiros não moravam lá e tínhamos certeza de que não havia nenhum
vigia noturno, o que haveria para ele cuidar nessa escola em que nada era
valioso, o esqueleto meio quebrado, os mapas rasgados, a secretaria com
duas ou três máquinas de escrever que pareciam pterodáctilos. Nito achou
que podia haver alguma coisa de valor no escritório do diretor, e uma vez
nós o vimos fechá-lo à chave ao ir dar sua aula de matemática, e isso com a
escola lotada de gente, ou talvez justamente por isso. Nem Nito, nem eu,
nem ninguém gostávamos do diretor, mais conhecido como Rengo, não por
ser severo com a gente e de nos encher de advertências e expulsões por
qualquer coisa, e mais por algo em sua cara de pássaro embalsamado, seu
jeito de chegar sem ninguém perceber e de aparecer numa sala de aula
como se a sentença tivesse sido pronunciada de antemão. Um ou dois
professores amigos (o de música, que nos contava histórias picantes, o de
sistema nervoso, que percebia a idiotice de ensinar isso num curso de letras)
nos haviam dito que o Rengo era não só um solteirão convicto e confesso,
como também hasteava uma misoginia agressiva, razão pela qual não
tínhamos tido nem uma professora na escola. Mas justo naquele ano o
ministério devia tê-lo feito compreender que tudo tinha seu limite, porque
nos mandaram a srta. Maggi, que ensinava química orgânica aos do curso
de ciências. A coitada sempre chegava à escola com um ar meio assustado,
Nito e eu imaginávamos a cara do Rengo quando se encontrava com ela na
sala dos professores. Coitada da srta. Maggi, ali entre centenas de homens,
ensinando a fórmula da glicerina para os broncos do sétimo ano de ciências.
— Agora — disse Nito.
Quase enfiei a mão numa ponta, mas consegui pular direito, a primeira
coisa era se agachar para o caso de alguém resolver olhar pelas janelas da
casa da frente, e se arrastar até encontrar uma proteção ilustre, a base do
busto de Van Gelderen, holandês e fundador da escola. Quando chegamos
ao peristilo, estávamos um pouco abalados pela escalada e tivemos um
ataque de riso nervoso, Nito deixou o poncho escondido ao pé de uma
coluna e viramos à direita seguindo o corredor que levava ao primeiro
cotovelo onde nascia a escada. O cheiro de escola se multiplicava com o
calor, era estranho ver as salas de aula fechadas, e fomos sondar uma das
portas; naturalmente, os porteiros galegos não as tinham fechado à chave, e
entramos por um momento na sala onde seis anos antes tínhamos iniciado
os estudos.
— Eu sentava ali.
— E eu atrás, não lembro se ali ou mais à direita.
— Olhe, deixaram um globo terrestre.
— Lembra do Gazzano, que nunca achava a África?
Ficamos com vontade de pegar o giz e deixar uns desenhos na lousa, mas
Nito advertiu que não tínhamos vindo para brincar, ou que brincar seria uma
forma de admitir que o silêncio nos cercava demais. Voltamos ao corredor e
fomos para a escada; de longe pareceu vir um eco de música, reverberando
de leve na caixa da escada; também ouvimos uma freada de bonde, depois
mais nada. Dava para subir sem necessidade da lanterna, o mármore parecia
receber diretamente a luz da lua, embora o andar de cima o isolasse dela.
Nito parou no meio da escada para me oferecer um cigarro e acender outro;
sempre escolhia os momentos mais absurdos para começar a fumar.
Lá de cima olhamos o pátio do andar térreo, quadrado como quase tudo na
escola, incluídos os cursos. Seguimos pelo corredor que o circundava,
entramos numa das salas de aula e chegamos ao primeiro cotovelo onde
ficava o laboratório; esse sim os galegos tinham fechado à chave, como se
alguém pudesse vir roubar as provetas trincadas e o microscópio da época
de Galileu. Do segundo corredor vimos que o luar caía em cheio sobre o
corredor oposto onde estavam a secretaria, a sala dos professores e o
escritório do Rengo. O primeiro a se atirar no chão fui eu, e Nito um
segundo depois, porque tínhamos visto as luzes na sala dos professores ao
mesmo tempo.
— Puta merda, tem alguém ali.
— Vamos dar no pé, Nito.
— Espere, talvez os galegos tenham deixado a luz acesa.
Não sei quanto tempo se passou, mas agora percebíamos que a música
vinha de lá, parecia tão distante quanto a escada, mas sentíamos que vinha
do corredor defronte, uma música como de orquestra de câmara com todos
os instrumentos em surdina. Era tão improvável que nos esquecemos do
medo, ou ele de nós, e de repente parecia haver um motivo para estarmos
ali, não era só puro romantismo de Nito. Olhamos um para o outro sem
falar, e ele começou a se mover engatinhando e colado ao parapeito até
chegar ao cotovelo do terceiro corredor. O cheiro de xixi das latrinas ao
lado tinha sido, como sempre, mais forte que os esforços combinados dos
galegos e da creolina. Quando nos arrastamos até ficar lado a lado com as
portas de nossa classe, Nito se virou e fez um sinal para que eu chegasse
mais perto:
— Vamos ver?
Concordei, já que ser louco parecia ser a única coisa razoável naquele
momento, e avançamos de gatinhas, cada vez mais delatados pela lua.
Quase me arrependi quando Nito se levantou, fatalista, a menos de cinco
metros do último corredor onde as portas levemente entreabertas da
secretaria e da sala dos professores deixavam a luz passar. A música tinha
aumentado bruscamente, ou a distância era menor; ouvimos rumor de
vozes, risos, copos brindando. O primeiro que vimos foi Raguzzi, um do
sétimo ano de ciências, campeão de atletismo e grande filho da puta, desses
que abriam caminho à força de músculos e compadrices. Estava de costas
para nós, quase colado à porta, mas de repente se afastou e a luz veio como
um açoite cortado por sombras oscilantes, um ritmo de maxixe e dois casais
que passavam dançando. Gómez, que eu não conhecia direito, dançava com
uma moça de verde, e o outro podia ser Kurchin, do quinto ano de letras,
um menininho com cara de porco e de óculos, que agarrava um mulherão
de cabelo preto com um vestido comprido e colar de pérolas. Tudo isso
acontecia ali, estávamos vendo e ouvindo, mas é claro que não era possível,
era quase impossível que sentíssemos uma mão se apoiando devagarinho
em nossos ombros, sem forçar.
— Vochês não chão convidados — disse o galego Manolo —, mas já que
estchão aqui vão entrando e não se facham de doidos.
O duplo empurrão quase nos jogou em cima de outro casal que dançava,
freamos de repente e pela primeira vez vimos o grupo inteiro, uns oito ou
dez, a vitrola com o baixinho Larrañaga cuidando dos discos, a mesa
transformada em bar, as luzes baixas, os rostos que começavam a nos
reconhecer sem surpresa, todos deviam pensar que tínhamos sido
convidados e até Larrañaga nos fez um gesto de boas-vindas. Como sempre,
Nito foi o mais rápido, em três passos já estava numa das paredes laterais e
eu me juntei a ele, colados na parede como baratas começamos a ver de
verdade, a aceitar o que estava acontecendo ali. Com as luzes e as pessoas,
a sala dos professores parecia ter o dobro do tamanho, havia cortinas verdes
que eu nunca imaginei que existissem, quando passava de manhã pelo
corredor e dava uma olhada na sala para ver se Migoya, nosso terror da aula
de lógica, já havia chegado. Tudo tinha uma espécie de ar de clube, de coisa
organizada para as noites de sábado, os copos e os cinzeiros, a vitrola e as
lâmpadas que iluminavam apenas o necessário, abrindo zonas de penumbra
que ampliavam a sala.
Sei lá quanto tempo demorei para aplicar um pouco da lógica que Migoya
nos ensinava ao que estava acontecendo, mas Nito era sempre mais rápido,
só uma olhada foi suficiente para ele identificar os condiscípulos e o
professor Iriarte, perceber que as mulheres eram rapazes fantasiados,
Perrone e Macías e outro do sétimo ano de ciências, não se lembrava do
nome. Havia dois ou três com máscaras, um deles vestido de havaiana e
agradando, a julgar pelos meneios que lhe fazia, a Iriarte. O galego
Fernando cuidava do bar, quase todo mundo tinha um copo na mão, agora
vinha um tango pela orquestra de Lomuto, formavam-se casais, os rapazes
que sobravam começavam a dançar entre si, e não fiquei muito surpreso
quando Nito me pegou pela cintura e me empurrou lá para o meio.
— Se ficarmos parados aqui vai dar confusão — ele me disse. — Não pise
nos meus pés, desgraçado.
— Não sei dançar — falei, embora ele dançasse pior que eu. Estávamos
na metade do tango, e Nito olhava de quando em quando para a porta
entreaberta, fora me levando devagar para aproveitar a primeira
oportunidade, mas percebeu que o galego Manolo ainda estava lá, voltamos
para o centro e até tentamos trocar uns gracejos com Kurchin e Gómez, que
dançavam juntos. Ninguém percebeu que estava se abrindo a dupla porta
que se comunicava com a antessala do escritório do Rengo, mas o baixinho
Larrañaga parou o disco repentinamente e ficamos olhando, senti que o
braço de Nito tremia em minha cintura antes de repentinamente me soltar.
Sou tão lento para tudo, Nito já tinha percebido quando comecei a
descobrir que as duas mulheres paradas nas portas de mãos dadas eram o
Rengo e a srta. Maggi. A fantasia do Rengo era tão exagerada que dois ou
três aplaudiram timidamente, mas depois só houve um silêncio de sopa
gelada, algo como um vazio no tempo. Eu tinha visto travestis nos cabarés
do Bajo, mas nunca uma coisa assim, a peruca ruiva, os cílios de cinco
centímetros, os seios de borracha tremendo sob uma blusa cor de salmão, a
saia pregueada e os saltos altos como pernas de pau. Levava os braços
cheios de pulseiras, e eram braços depilados e branqueados, os anéis
pareciam passear por seus dedos ondulantes, agora tinha soltado a mão da
srta. Maggi e com um gesto de infinita maricagem se inclinava para
apresentá-la e lhe dar passagem. Nito estava se perguntando por que a srta.
Maggi continuava se parecendo consigo mesma apesar da peruca loira, do
cabelo puxado para trás, da silhueta apertada num longo vestido branco. O
rosto estava maquiado de leve, talvez as sobrancelhas um pouco mais
desenhadas, mas era a cara da srta. Maggi e não a torta de frutas do Rengo
com aquele rímel e o ruge e a franja ruiva. Os dois avançaram
cumprimentando com uma certa frieza quase condescendente, o Rengo nos
lançou um olhar talvez surpreso, mas que pareceu se transformar em
aceitação distraída, como se alguém já o tivesse prevenido.
— Ele não percebeu, cara — eu disse para Nito, o mais baixo que pude.
— Até parece — disse Nito —, você acha que ele não vê que estamos
vestidos feito uns jecas neste ambiente?
Ele tinha razão, tínhamos posto umas calças velhas por causa da grade, eu
estava em mangas de camisa e Nito usava um pulôver leve com uma manga
meio furada no cotovelo. Mas o Rengo já estava pedindo que lhe dessem
uma bebidinha não muito forte, pedia isso para o galego Fernando com uns
gestos de puta caprichosa, enquanto a srta. Maggi reclamava um uísque
mais seco que a voz com que o pedia ao galego. Começava outro tango e
todo mundo se largou a dançar, nós os primeiros, de puro pânico, e os
recém-chegados junto com os demais, a srta. Maggi conduzindo o Rengo
com um simples jogo de cintura. Nito teria gostado de se aproximar de
Kurchin para tentar tirar alguma coisa dele, com Kurchin tínhamos mais
conversa que com os outros, mas era difícil nesse momento em que os pares
se cruzavam sem se tocar e nunca havia espaço livre por muito tempo. As
portas que davam para a sala de espera do Rengo continuavam abertas, e
quando nos aproximamos, numa das voltas, Nito viu que a porta do
escritório também estava aberta e que havia gente lá dentro conversando e
bebendo. De longe reconhecemos Fiori, um chato do sexto ano de letras,
fantasiado de militar, e talvez aquela morena de cabelo caído no rosto e
quadris sinuosos fosse Moreira, um do quinto ano de letras que tinha fama
de ser aquilo que eu falei.
Fiori veio até nós antes que pudéssemos nos esquivar, com o uniforme ele
parecia muito maior e Nito pensou ter visto uns fios brancos no cabelo bem
alisado, decerto tinha posto talco para ficar mais boa-pinta.
— Novos, né? — disse Fiori. — Já passaram pela oftalmologia?
Devíamos ter a resposta escrita na cara e Fiori ficou nos olhando por um
momento, nós nos sentíamos cada vez mais como recrutas diante de um
tenente valentão.
— Por ali — disse Fiori, mostrando com a mandíbula uma porta lateral
entreaberta. — Na próxima reunião me tragam o comprovante.
— Sim, senhor — disse Nito, me empurrando aos trancos. Eu gostaria de
lhe reprovar o sim senhor tão lacaio, mas Moreira (agora sim, agora era
certo que era Moreira) se juntou a nós antes de chegarmos à porta e pegou
minha mão.
— Venha dançar no outro cômodo, loiro, aqui são tão chatos…
— Depois — Nito disse por mim. — Já voltamos.
— Ai, todos me deixando sozinha esta noite.
Passei primeiro, não sei por que me esgueirando em vez de abrir
totalmente a porta. Mas a essa altura os porquês nos faltavam, Nito que me
seguia calado olhava o longo saguão em penumbra e era outra vez qualquer
um dos pesadelos que ele tinha com a escola, ali onde nunca havia um
porquê, onde só se podia seguir em frente e o único porquê possível era
uma ordem de Fiori, aquele cretino vestido de milico que de repente se
juntava com todo o resto e nos dava uma ordem, o equivalente a toda uma
ordem que devíamos cumprir, um oficial mandando e toca pedir
explicações. Mas isso não era um pesadelo, eu estava do lado dele e os
pesadelos não se sonham a dois.
— Vamos dar no pé, Nito — falei na metade do saguão. — Tem de haver
alguma saída, assim não dá.
— É, mas espere, alguma coisa me diz que estamos sendo espiados.
— Não tem ninguém, Nito.
— Por isso mesmo, babaca.
— Mas, Nito, espere um pouco, vamos parar aqui. Preciso entender o que
está acontecendo, você não percebe que…
— Olhe — disse Nito, e era verdade, a porta por onde tínhamos passado
agora estava aberta de par em par e o uniforme de Fiori se recortava
claramente. Não havia nenhuma razão para obedecer ao Fiori, era só voltar
e afastá-lo com um empurrão, como tantas vezes nos empurrávamos de
brincadeira ou a sério nos recreios. Também não havia nenhuma razão para
seguir em frente até ver duas portas fechadas, uma lateral e outra de frente,
e que Nito se metesse por uma delas e percebesse tarde demais que eu não
estava com ele, que estupidamente tinha escolhido a outra porta por erro ou
só de raiva. Impossível dar meia-volta e sair para me procurar, a luz lilás da
sala e as caras olhando para ele o fixavam de repente naquilo que abarcou
de um relance, a sala com um aquário enorme no meio erguendo seu cubo
transparente até o teto, mal deixando lugar para que os que, colados aos
vidros, olhavam a água esverdeada, os peixes deslizando lentamente, tudo
num silêncio que era como outro aquário exterior, um presente petrificado
com homens e mulheres (que eram homens e que eram mulheres) grudados
nos vidros, e Nito dizendo agora, voltar para trás agora, Toto, seu imbecil,
onde você se meteu, babaca, querendo dar meia-volta e fugir, mas do quê,
se não estava acontecendo nada, se ia ficando imóvel como eles vendo-os
olhar os peixes e reconhecendo Mutis, Chancha Delucía, outros do sexto
ano de letras, perguntando-se por que eram eles e não outros, como já se
perguntara por que uns tipos como Raguzzi e Fiori e Moreira, por que
justamente os que não eram nossos amigos de manhã, os estranhos e os
merdas, por que eles e não Láinez ou Delich ou qualquer um dos colegas de
papos ou de vagabundagens ou de projetos, por que então Toto e ele entre
aqueles outros, ainda que fosse culpa deles por se meterem de noite na
escola e essa culpa os juntasse com todos aqueles que de dia não
aguentavam, os piores filhos da puta da escola, sem falar do Rengo e do
puxa-saco do Iriarte e até da srta. Maggi, também lá, quem diria, mas ela
também, ela a única mulher de verdade entre tantos maricas e desgraçados.
Então um cachorro latiu, não era um latido forte, mas rompeu o silêncio e
todos se viraram para o fundo invisível da sala, da bruma lilás Nito viu sair
Caletti, do quinto ano de ciências, com os braços no alto vinha lá do fundo
meio que se esgueirando entre os outros, segurando no alto um cãozinho
branco que latia de novo, debatendo-se, as patas amarradas com uma fita
vermelha, e da fita vermelha pendia uma espécie de pedaço de chumbo,
algo que o afundou lentamente no aquário onde Caletti o jogara com um
único impulso, Nito viu o cão descendo lentamente entre convulsões,
tentando soltar as patas e voltar à superfície, viu quando começou a se
afogar com a boca aberta e soltando bolhas, mas antes que se afogasse os
peixes já o mordiam, arrancando-lhe tiras de pele, tingindo a água de
vermelho, a nuvem cada vez mais densa em torno do cão que ainda se
agitava entre a massa fervilhante de peixes e de sangue.
Eu não podia ver isso tudo porque atrás da porta que acho que se fechou
sozinha só havia um breu, fiquei paralisado sem saber o que fazer, lá de trás
não se via nada, mas então Nito, onde estava Nito? Dar um passo à frente
nessa escuridão ou ficar plantado ali era o mesmo espanto, de repente sentir
o cheiro, um cheiro de desinfetante, de hospital, de operação de apendicite,
quase sem perceber que os olhos iam se acostumando às trevas e que não
eram trevas, lá no fundo havia uma ou duas luzinhas, uma verde e depois
uma amarela, a silhueta de um armário e de uma poltrona, outra silhueta
que se deslocava vagamente avançando desde outro fundo mais profundo.
— Venha, filhinho — disse a voz. — Venha até aqui, não tenha medo.
Não sei como consegui me mexer, o ar e o chão pareciam o mesmo tapete
esponjoso, a poltrona com braços cromados e os aparelhos de cristal e as
luzinhas; a peruca loira e alisada e o vestido branco da srta. Maggi
fosforesciam vagamente. Uma das mãos me pegou pelo ombro e me
empurrou para a frente, a outra mão encostou na minha nuca e me obrigou a
sentar na poltrona, senti na testa o frio de um vidro enquanto a srta. Maggi
ajustava minha cabeça entre dois suportes. Quase rente aos olhos vi brilhar
uma esfera esbranquiçada com um pequeno ponto vermelho no meio, e
senti o toque dos joelhos da srta. Maggi, que se sentava na poltrona do lado
oposto da armação de vidros. Começou a manipular alavancas e rodas,
ajustou ainda mais minha cabeça, a luz ia mudando para o verde e voltava
ao branco, o ponto vermelho crescia e se deslocava para um lado e para o
outro, com que me restava de visão para cima eu podia ver uma espécie de
halo no cabelo loiro da srta. Maggi, nossos rostos estavam separados apenas
pelo vidro com as luzes e algum tubo por onde ela devia estar me olhando.
— Fique quietinho e foque no ponto vermelho — disse a srta. Maggi. —
Consegue vê-lo bem?
— Sim, mas…
— Não fale nada, fique quieto, assim. Agora me diga quando deixar de
ver o ponto vermelho.
Sei lá se eu o via ou não, fiquei calado enquanto ela continuava me
olhando do outro lado, de repente eu percebia que, além da luz central,
estava vendo os olhos da srta. Maggi através do vidro do aparelho, ela tinha
os olhos castanhos e acima continuava ondulando o reflexo incerto da
peruca loira. Passou-se um momento interminavelmente breve, ouvia-se
uma espécie de arquejo, pensei que fosse eu, pensei qualquer coisa
enquanto as luzes mudavam pouco a pouco, iam se concentrando num
triângulo avermelhado com bordas lilás, mas talvez não fosse eu que
respirava ruidosamente.
— Ainda está vendo a luz vermelha?
— Não, não a vejo, mas acho que…
— Não se mexa, não fale. Olhe bem, agora.
Um hálito me chegava do outro lado, um perfume quente em baforadas, o
triângulo começava a se transformar numa série de riscas paralelas, brancas
e azuis, meu queixo preso no suporte de borracha estava doendo, gostaria
de poder levantar a cabeça e me livrar dessa gaiola na qual me sentia
amarrado, a carícia entre as coxas me pareceu chegar de muito longe, a mão
que subia entre minhas pernas e procurava um a um os botões da calça,
entrava dois dedos, terminava de me desabotoar e procurava algo que não
se deixava agarrar, reduzido a um nada lastimoso, até que os dedos o
envolveram e suavemente o tiraram para fora da calça, acariciando-o
devagar enquanto as luzes se tornavam cada vez mais brancas e o centro
vermelho aparecia de novo. Devo ter tentado me safar, porque senti a dor no
alto da cabeça e no queixo, era impossível sair da gaiola ajustada ou talvez
fechada por trás, o perfume voltava com o arquejo, as luzes dançavam em
meus olhos, tudo ia e voltava como a mão da srta. Maggi me enchendo de
um lento abandono interminável.
— Abandone-se — a voz chegava junto com o arquejo, era o próprio
arquejo falando comigo —, goze, menininho, você tem que me dar ao
menos algumas gotas para as análises, agora, assim, assim.
Senti o toque de um recipiente ali onde tudo era prazer e fuga, a mão
segurou e deslizou e apertou com suavidade, quase nem percebi que diante
dos olhos não havia senão o vidro escuro e que o tempo passava, agora a
srta. Maggi estava atrás de mim e soltava as correias de minha cabeça. Uma
chicotada de luz amarela me atingia enquanto eu me levantava e me
abotoava, uma porta no fundo e a srta. Maggi me mostrando a saída, me
olhando sem expressão, uma cara lisa e saciada, a peruca violentamente
iluminada pela luz amarela. Outro teria se atirado em cima dela ali mesmo,
abraçando-a agora que não havia nenhum motivo para abraçá-la ou beijá-la
ou lhe bater, outro como Fiori, ou Raguzzi, mas talvez ninguém tivesse feito
isso e a porta tivesse se fechado para ele como para mim, às minhas costas
com uma batida seca, me deixando em outra passagem que girava à
distância e se perdia em sua própria curva, numa solidão onde faltava Nito,
onde senti a ausência do Nito como algo insuportável e corri até o cotovelo
e quando vi a única porta me joguei contra ela e estava fechada à chave,
bati nela e ouvi minha batida como um grito, encostei na porta
escorregando pouco a pouco até ficar de joelhos, talvez fosse fraqueza, a
tontura depois da srta. Maggi. Do outro lado da porta me chegaram a
gritaria e as risadas.
Porque ali se ria e se gritava alto, alguém tinha empurrado Nito para fazê-
lo avançar entre o aquário e a parede da esquerda por onde todos se moviam
procurando a saída, Caletti mostrando o caminho com os braços para cima
como havia mostrado o cachorro ao entrar, os outros seguindo-o entre
guinchos e empurrões, Nito com alguém atrás que também o empurrava
chamando-o de tonto e de moloide, não tinha terminado de passar pela porta
e a brincadeira já havia começado, reconheceu o Rengo que entrava pelo
outro lado com os olhos vendados e amparado pelo galego Fernando e por
Raguzzi, que o protegiam de um tropeço ou de um golpe, os demais já
estavam se escondendo atrás das poltronas, num armário, debaixo de uma
cama, Kurchin tinha trepado numa cadeira e de lá para o alto de uma
estante, enquanto os outros se esparramavam na sala enorme e esperavam
os movimentos do Rengo para fugir dele na ponta dos pés ou chamando-o
com vozes em falsete para enganá-lo, o Rengo rebolava e soltava uns
gritinhos com os braços esticados, tentando capturar alguém, Nito teve de
fugir para uma parede e depois se esconder atrás de uma mesa com jarras de
flores e livros, e quando o Rengo alcançou o baixinho Larrañaga com um
guincho de triunfo, os demais saíram dos esconderijos aplaudindo e o
Rengo tirou a venda e a pôs em Larrañaga, fez isso asperamente e
pressionando os olhos do baixinho apesar de seus protestos, condenando-o a
ser o que teria de procurá-los, a ser a cabra-cega amarrada com a mesma
força impiedosa com que tinham amarrado as patas do cãozinho branco. E
outra vez a dispersão entre risadas e cochichos, o professor Iriarte dando
saltos, Fiori procurando um lugar para se esconder sem perder a calma
fanfarrona, Raguzzi estufando o peito e gritando a dois metros do baixinho
Larrañaga, que arremetia e não encontrava nada além de ar, Raguzzi de um
salto fora de seu alcance e gritando Me Tarzan, you Jane, otário!, o
baixinho perplexo dando voltas e procurando no vazio, a srta. Maggi que
reaparecia para abraçar o Rengo e rir de Larrañaga, os dois com gritinhos
de medo quando o baixinho se jogou na direção deles e escaparam por um
triz de suas mãos estendidas, Nito pulando para trás e vendo como o
baixinho agarrava Kurchin pelos cabelos a um descuido dele, o alarido de
Kurchin e de Larrañaga tirando a venda, mas sem soltar a presa, os aplausos
e os gritos, de repente silêncio porque o Rengo levantava a mão e Fiori se
plantava a seu lado em posição de sentido e dava uma ordem que ninguém
entendeu, mas não importava, nem o uniforme de Fiori nem a própria
ordem, ninguém se movia, nem mesmo Kurchin, com os olhos cheios de
lágrimas porque Larrañaga estava quase lhe arrancando os cabelos,
segurando-o ali, sem soltá-lo.
— Pula — ordenou o Rengo. — Agora pula sela. Ande.
Larrañaga não entendia, mas Fiori mostrou-o para Kurchin com um gesto
seco, e então o baixinho o puxou pelos cabelos obrigando-o a se abaixar
cada vez mais, os outros já estavam formando uma fila, as mulheres com
gritinhos e arregaçando as saias, Perrone primeiro e depois o professor
Iriarte, Moreira se fazendo de melindrosa, Caletti e Chancha Delucía, uma
fila que chegava até o fundo da sala e Larrañaga segurando Kurchin
agachado e soltando-o de repente quando o Rengo fez um gesto e Fiori
ordenou “Pular sem bater!”, Perrone na dianteira e atrás a fila toda,
começaram a pular apoiando as mãos nas costas de Kurchin, arqueado
como um porquinho, pulavam na ordem mas gritando “Pula!”, gritando
“Pula sela!”, cada vez que passavam por cima de Kurchin e refaziam a fila
do outro lado, davam a volta na sala e começavam de novo, Nito quase no
final pulando o mais leve que podia para não esmagar Kurchin, depois
Macías se deixando cair como um saco, ouvindo o Rengo que berrava
“Pular e bater!”, e toda a fila passou de novo por cima de Kurchin, mas
agora tentando chutá-lo e bater nele enquanto saltavam, já tinham desfeito a
fila e rodeavam Kurchin, com as mãos abertas batiam em sua cabeça, nas
costas, Nito tinha levantado o braço quando viu Raguzzi largando o
primeiro pontapé no traseiro de Kurchin, que se contraiu e gritou, Perrone e
Mutis chutavam suas pernas enquanto as mulheres maltratavam as costas de
Kurchin, que uivava e queria se levantar e fugir, mas Fiori se aproximava e
o segurava pelo pescoço, gritando “Pula, pula sela, bater e bater!”, algumas
mãos agora eram punhos caindo sobre os flancos e a cabeça de Kurchin,
que clamava pedindo perdão sem conseguir escapar de Fiori, da chuva de
pontapés e murros que o cercava. Quando o Rengo e a srta. Maggi gritaram
uma ordem ao mesmo tempo, Fiori soltou Kurchin, que caiu de lado, com a
boca sangrando, do fundo da sala veio correndo o galego Manolo e o
levantou como se fosse um saco, levou-o enquanto todos aplaudiam
raivosamente e Fiori se aproximava do Rengo e da srta. Maggi como se os
consultasse.
Nito tinha recuado até ficar na borda do círculo que começava a se
desfazer sem entusiasmo, como se quisesse continuar a brincadeira ou
começar outras, dali ele viu como o Rengo mostrava com o dedo o
professor Iriarte, e Fiori, que se aproximava e falava com ele, depois uma
ordem seca e todos começaram a se formar em quadrado, em coluna por
quatro, as mulheres atrás e Raguzzi como comandante do pelotão, olhando
furioso para Nito, que custava a encontrar um lugar qualquer na segunda
fila. Vi tudo isso claramente, enquanto o galego Fernando me trazia pelo
braço depois de ter me encontrado atrás da porta fechada e de abri-la para
me fazer entrar com um empurrão, vi como o Rengo e a srta. Maggi se
instalavam num sofá encostado na parede, os outros que completavam o
quadro com Fiori e Raguzzi na frente, com Nito pálido entre os dois da
segunda fila, e o professor Iriarte que se dirigia ao quadro como numa sala
de aula, depois de um cumprimento cerimonioso ao Rengo e à srta. Maggi,
eu me perdendo como podia entre as loucas do fundo, que me olhavam
rindo e cochichando até que o professor Iriarte pigarreou e se fez um
silêncio que não sei quanto durou.
— Procederemos à enunciação do decálogo — disse o professor Iriarte. —
Primeira profissão de fé.
Eu olhava para Nito como se ele pudesse me ajudar, com uma esperança
idiota de que me apontasse uma saída, uma porta qualquer para fugirmos,
mas Nito não parecia perceber que eu estava ali atrás, olhava fixo o ar como
todos, imóvel como todos agora.
Monotonamente, quase sílaba por sílaba, o quadro enunciou:
— Da ordem emana a força, e da força emana a ordem.
— Corolário! — ordenou Iriarte.
— Obedecer para mandar, e mandar para obedecer — recitou o quadro.
Era inútil esperar que Nito se virasse, acho até que vi seus lábios se
movendo como se fizesse o eco do que os outros recitavam. Encostei-me na
parede, um painel de madeira que rangeu, e uma das loucas, acho que
Moreira, me olhou alarmada. “Segunda profissão de fé”, estava ordenando
Iriarte quando senti que aquilo não era um painel, mas uma porta, e que
cedia pouco a pouco enquanto eu ia me deixando resvalar numa vertigem
quase agradável. “Ai, mas o que é que você tem, meu lindo?”, conseguiu
cochichar Moreira, e agora o quadro enunciava uma frase que não entendi,
girando de lado passei para o outro lado e fechei a porta, senti a pressão das
mãos de Moreira e de Macías tentando abri-la e abaixei o trinco, que
brilhava maravilhosamente na penumbra, comecei a correr por uma galeria,
uma esquina, duas peças vazias e às escuras, e depois delas outro corredor
que levava diretamente ao corredor sobre o pátio no lado oposto à sala dos
professores. Lembro pouco disso tudo, eu não era mais que minha própria
fuga, algo que corria na sombra tentando não fazer barulho, deslizando
sobre os ladrilhos até chegar à escada de mármore, descê-la de três em três
degraus e me sentir impelido por essa quase queda até as colunas do
peristilo onde estavam o poncho e também os braços abertos do galego
Manolo me cortando a passagem. Já disse, eu me lembro pouco disso tudo,
talvez eu tenha metido a cabeça bem no estômago dele ou o tenha
derrubado com um chute na barriga, o poncho enroscou numa das pontas da
grade, mas mesmo assim eu subi e pulei, na calçada havia um cinza de
amanhecer e um velho andando devagar, o cinza sujo da alvorada e o velho
que ficou me olhando com uma cara de peixe morto, a boca aberta para um
grito que não conseguiu gritar.
Durante todo o domingo eu não me movi de casa, por sorte a família me
conhecia e ninguém fez perguntas que eu não iria responder, ao meio-dia
telefonei para a casa de Nito mas a mãe me disse que ele não estava, de
tarde soube que Nito tinha voltado mas que já estava fora outra vez, e
quando liguei às dez da noite um irmão dele me disse que não sabia onde
ele estava. Surpreendeu-me que não tivesse vindo me buscar, e quando
cheguei à escola na segunda-feira fiquei ainda mais surpreso ao encontrá-lo
na entrada, ele que batia todos os recordes em matéria de chegar atrasado.
Estava falando com Delich, mas se afastou dele e veio me encontrar,
estendeu-me a mão e eu a apertei, embora aquilo fosse estranho, era tão
estranho que nos déssemos a mão ao chegar à escola. Mas que importava se
aquele outro lance já vinha aos borbotões, nos cinco minutos que faltavam
para o sinal tínhamos tanta coisa a dizer, mas então o que você fez, como
fugiu?, o galego cortou meu caminho e então, sim, eu sei, estava me
dizendo Nito, não se agite tanto, Toto, me deixe falar um pouco. Cara, mas
é que… Sim, claro, não é pra menos. Pra menos, Nito, está me gozando ou
o quê? Temos que subir agora mesmo e denunciar o Rengo. Espere, espere,
não seja tão esquentado, Toto.
E isso prosseguia, como dois monólogos, cada um por seu lado, de
alguma forma eu começava a perceber que alguma coisa não estava
andando, que Nito parecia estar com a cabeça em outro lugar. Moreira
passou e cumprimentou com uma piscadela, de longe vi Chancha Delucía
entrar correndo, Raguzzi com seu paletó esporte, todos os filhos da puta
iam chegando misturados aos amigos, com Llanes e Alermi, que também
dizia oi, você viu como o River ganhou?, o que é que eu te disse, guri, e
Nito me olhando e repetindo aqui não, agora não, Toto, na saída vamos
conversar no café. Mas veja, veja, Nito, veja Kurchin com a cabeça
enfaixada, eu não posso ficar quieto, vamos subir juntos, Nito, ou eu vou
sozinho, juro que vou sozinho agora mesmo. Não, disse Nito, e parecia
haver uma outra voz nessa única palavra, você não vai subir agora, Toto,
primeiro vamos conversar, você e eu.
Era ele, claro, mas de repente foi como se eu não o conhecesse. Tinha dito
não para mim como poderia me dizer Fiori, que agora chegava assobiando,
à paisana, naturalmente, e cumprimentava com um sorriso presunçoso que
eu nunca tinha visto nele antes. De repente tive a impressão de que tudo se
condensou nisso, no não de Nito, no sorriso inimaginável de Fiori; e vinha
novamente o medo daquela fuga na noite, das escadas mais voadas que
descidas, dos braços abertos do galego Manolo entre as colunas.
— Mas por que eu não subo? — disse eu, absurdamente. — Por que não
vou lá denunciar o Rengo, Iriarte, todo mundo?
— Porque é perigoso — disse Nito. — Não podemos conversar aqui
agora, mas no café eu explico tudo pra você. Eu fiquei lá mais tempo que
você, né?
— Mas no fim você também fugiu — falei, com uma espécie de
esperança, procurando-o como se ele não estivesse ali na minha frente.
— Não, não precisei fugir, Toto. É por isso que eu digo pra você não falar
nada agora.
— E por que eu tenho que ligar pro que você diz? — gritei, acho que a
ponto de chorar, de bater nele, de abraçá-lo.
— Porque é conveniente pra você — disse a outra voz de Nito. — Porque
você não é tão idiota que não perceba que se abrir a boca vai pagar um
preço alto por isso. Agora você não pode entender e precisa entrar na classe.
Mas eu repito, se disser uma só palavra vai se arrepender por toda a vida, se
ficar vivo.
Estava brincando, claro, ele não podia estar me dizendo aquilo, mas era a
voz, a maneira como ele falava, aquela convicção, aqueles lábios cerrados.
Como Raguzzi, como Fiori, aquela convicção e aqueles lábios cerrados.
Nunca saberei sobre o que os professores falaram naquele dia, o tempo todo
senti nas costas os olhos de Nito cravados em mim. E Nito também não
acompanhava as aulas, que lhe importavam as aulas agora, essas cortinas de
fumaça do Rengo e da srta. Maggi para que o outro lance, o que realmente
importava, fosse se cumprindo pouco a pouco, assim como pouco a pouco
foram se anunciando para ele as profissões de fé do decálogo, uma atrás da
outra, tudo isso que um dia nasceria da obediência ao decálogo, do
cumprimento futuro do decálogo, tudo isso que tinha aprendido e prometido
e jurado naquela noite e que um dia iria cumprir, para o bem da pátria,
quando chegasse a hora e o Rengo e a srta. Maggi ordenassem que
começasse a se cumprir.
Fora de hora
E
u não tinha nenhum motivo especial para me lembrar disso tudo, e
embora gostasse de escrever sazonalmente e alguns amigos
aprovassem meus versos ou meus contos, às vezes eu me
perguntava se essas lembranças da infância mereciam ser escritas,
se não nasciam de uma ingênua tendência para acreditar que as coisas
tinham sido mais reais quando as punha em palavras para fixá-las do meu
jeito, para tê-las ali como as gravatas no armário ou o corpo de Felisa à
noite, algo que não poderia ser vivido de novo mas que se fazia mais
presente, como se na mera lembrança se abrisse caminho para uma terceira
dimensão, uma quase sempre amarga, mas tão almejada, contiguidade.
Nunca soube bem por quê, mas de vez em quando eu voltava a coisas que
os outros tinham aprendido a esquecer para não se arrastar na vida com
tanto tempo sobre os ombros. Tinha certeza de que entre meus amigos havia
poucos que se lembrassem de seus amigos de infância como eu me
lembrava de Doro, mas quando eu escrevia sobre Doro quase nunca era ele
que me levava a escrever, e sim outra coisa, uma coisa em que Doro era
apenas um pretexto para a imagem de sua irmã mais velha, a imagem de
Sara naquela época em que Doro e eu brincávamos no pátio ou
desenhávamos na sala da casa de Doro.
Éramos tão inseparáveis naquela época da sexta série, dos doze ou treze
anos, que eu não conseguia me ver escrevendo sozinho sobre Doro, nem me
aceitar do lado de fora da página escrevendo sobre Doro. Vê-lo era me ver
simultaneamente como Aníbal com Doro, e eu não poderia recordar nada de
Doro se ao mesmo tempo não sentisse que Aníbal também estava lá naquele
momento, que era Aníbal que tinha chutado aquela bola que quebrou um
vidro da casa de Doro numa tarde de verão, o susto e a vontade de se
esconder ou de negar, a chegada de Sara chamando-os de bandidos e
mandando-os brincar no campinho da esquina. E com tudo isso vinha
também Banfield, claro, porque tudo tinha acontecido lá, nem Doro nem
Aníbal poderiam se imaginar em outra cidade que não fosse Banfield, onde
as casas e os campos eram, na época, maiores que o mundo.
Uma cidadezinha, Banfield, com suas ruas de terra e a estação do
Ferrocarril Sud, seus terrenos baldios que no verão ferviam de gafanhotos
multicoloridos na hora da sesta, e que de noite parecia se encolher,
temerosa, em torno dos poucos postes de luz das esquinas, com um ou outro
apito dos guardas-noturnos a cavalo e o halo vertiginoso dos insetos
voadores em torno de cada poste. E a tão pouca distância das casas de Doro
e de Aníbal, que a rua para eles era como um outro corredor, algo que
continuava a mantê-los unidos de dia ou de noite, no campinho jogando
futebol em plena sesta ou sob a luz do poste da esquina, vendo como os
sapos e as pererecas ficavam em roda para comer os insetos embriagados de
tanto dar voltas em torno da luz amarela. E o verão, sempre, o verão das
férias, a liberdade das brincadeiras, o tempo só deles, para eles, sem horário
nem sinal para entrar na sala de aula, o cheiro do verão no ar quente das
tardes e das noites, nas caras suadas depois de ganhar ou perder ou brigar
ou correr, de rir e às vezes de chorar, mas sempre juntos, sempre livres,
donos de seu mundo de pipas e bolas e esquinas e calçadas.
De Sara lhe restavam poucas imagens, mas cada uma delas se recortava
como um vitral na hora do sol mais alto, com azuis e vermelhos e verdes
penetrando no espaço a ponto de magoá-lo, às vezes Aníbal via
principalmente seu cabelo loiro caindo nos ombros como uma carícia que
ele gostaria de sentir em seu rosto, às vezes sua pele tão branca, porque
Sara quase nunca tomava sol, envolvida com os trabalhos da casa, a mãe
doente e Doro, que voltava toda tarde com a roupa suja, os joelhos
machucados, os tênis enlameados. Nunca soube a idade de Sara naquela
época, só que já era uma mocinha, uma jovem mãe de seu irmão que ficava
ainda mais criança quando ela falava com ele, quando passava a mão por
sua cabeça antes de mandá-lo comprar alguma coisa ou de pedir aos dois
que não gritassem tanto no pátio. Aníbal a cumprimentava, tímido,
estendendo-lhe a mão, e Sara a apertava amavelmente, quase sem olhá-lo
mas aceitando-o como a outra metade de Doro que aparecia quase todo dia
para ler ou brincar. Às cinco ela os chamava para lhes dar café com leite e
biscoitos, sempre na mesinha do pátio ou na sala sombria; Aníbal só tinha
visto a mãe de Doro umas duas ou três vezes, de sua cadeira de rodas ela
dizia docemente seu oi, meninos, seu tenham cuidado com os carros,
embora houvesse tão poucos carros em Banfield e eles sorrissem seguros de
seus dribles na rua, de sua invulnerabilidade de jogadores de futebol e de
corredores. Doro nunca falava da mãe, quase sempre na cama ou escutando
rádio na sala, a casa era o pátio e Sara, às vezes algum tio de visita que lhes
perguntava o que tinham estudado na escola e lhes dava cinquenta centavos
de presente. E para Aníbal sempre era verão, dos invernos ele quase não
tinha lembranças, sua casa se tornava um claustro cinzento e neblinoso
onde só os livros contavam, a família com suas coisas e as coisas fixas em
seus buracos, as galinhas que ele tinha de tratar, as doenças com longas
dietas e chá e só às vezes Doro, porque Doro não gostava de ficar muito
numa casa onde não os deixavam brincar como na dele.
Foi durante uma bronquite de quinze dias que Aníbal começou a sentir a
ausência de Sara, quando Doro vinha visitá-lo perguntava por ela e Doro
respondia distraído que estava bem, a única coisa que lhe interessava era se
nessa semana iam poder brincar na rua de novo. Aníbal queria saber mais
de Sara, mas não se animava a perguntar muito, Doro ia achar uma idiotice
ele se preocupar com alguém que não brincava como eles, que estava tão
longe de tudo o que eles faziam e pensavam. Quando pôde voltar à casa de
Doro, ainda um pouco debilitado, Sara lhe estendeu a mão e perguntou
como estava passando, não devia jogar bola para não se cansar, melhor que
desenhassem ou lessem na sala; sua voz era grave, falava como sempre
falava com Doro, afetuosa mas distante, a irmã mais velha atenta e quase
severa. Naquela noite, antes de dormir Aníbal sentiu alguma coisa lhe subir
aos olhos, o travesseiro se transformar em Sara, uma necessidade de abraçá-
la com força e chorar com o rosto colado a Sara, ao cabelo de Sara,
querendo que ela estivesse ali e lhe trouxesse os remédios e olhasse o
termômetro sentada aos pés da cama. Quando sua mãe veio de manhã para
friccionar seu peito com algo que cheirava a álcool e mentol, Aníbal fechou
os olhos e aí foi a mão de Sara levantando seu pijama, acariciando-o de
leve, curando-o.
Deve ter sido nas últimas férias antes de entrar no colégio nacional, sem
Doro porque Doro iria para a escola normal, mas os dois tinham prometido
continuar se vendo todos os dias mesmo que fossem para escolas diferentes,
que importava se de tarde continuariam brincando como sempre, sem saber
que não, que em algum dia de fevereiro ou março brincariam pela última
vez no pátio da casa de Doro porque a família de Aníbal estava se mudando
para Buenos Aires e só poderiam se ver nos fins de semana, amargando a
raiva por uma separação que os adultos lhes impunham, como tantas outras
coisas, sem se preocupar com eles, sem consultá-los.
De repente tudo andava depressa, mudava como eles com as primeiras
calças compridas, quando Doro falou que Sara ia se casar no começo de
março, falou como se isso não fosse importante e Aníbal não fez nenhum
comentário, passaram-se dias antes que ele se animasse a perguntar a Doro
se Sara ia continuar morando com ele depois de casada, mas você é idiota,
como eles ficariam aqui?, o cara tem muita grana e vai levá-la pra Buenos
Aires, ele tem outra casa em Tandil e eu vou ficar com a mamãe e a tia
Faustina, que vai cuidar dela.
Nesse último sábado das férias viu o noivo chegar em seu carro, viu-o de
azul e gordo, de óculos, descendo do carro com um saquinho de doces e um
buquê de açucenas. Em sua casa o chamavam para que começasse a
embalar suas coisas, a mudança seria na segunda e ele ainda não tinha feito
nada. Teve vontade de ir à casa de Doro sem saber por quê, só estar lá, mas
sua mãe o obrigou a empacotar seus livros, o globo terrestre, as coleções de
bichos. Tinham dito que ele teria um quarto grande só para ele com vista
para a rua, tinham dito que poderia ir a pé para o colégio. Tudo era
novidade, tudo ia começar de outro jeito, tudo girava lentamente, e agora
Sara devia estar sentada na sala com o gordo do terno azul, tomando chá
com os doces que ele tinha trazido, tão longe do pátio, tão longe de Doro e
dele, sem nunca mais chamá-los para o café com leite sob as glicínias.
E
sperar, diziam todos, é preciso esperar porque em casos como esse
nunca se sabe, o dr. Raimondi também, é preciso esperar, de
repente acontece uma reação, ainda mais na idade da Mecha, é
preciso esperar, sr. Botto, sim, doutor, mas já se passaram duas
semanas e ela não acorda, duas semanas que está como morta, doutor, eu
sei, d. Luisa, é um estado de coma clássico, não podemos fazer nada a não
ser esperar. Lauro também esperava, toda vez que voltava da faculdade
ficava um pouco na rua antes de abrir a porta, pensava hoje sim, hoje vou
encontrá-la acordada, deve ter aberto os olhos e vai estar conversando com
a mamãe, não é possível que isso dure tanto, não é possível que vá morrer
aos vinte anos, com certeza ela está sentada na cama conversando com a
mamãe, mas tinha de continuar esperando, sempre na mesma, filhinho, o
doutor vai voltar de tarde, todos dizem que não dá pra fazer nada. Venha
comer alguma coisa, meu amigo, sua mãe vai ficar com a Mecha, você tem
que se alimentar, não se esqueça das provas, de passagem a gente vê o
noticiário. Mas tudo era de passagem ali onde a única coisa que durava sem
se alterar era Mecha, a única coisa exatamente igual dia após dia era Mecha,
o peso do corpo de Mecha naquela cama, Mecha magrinha e leve, dançarina
de rock e tenista, ali derrubada e derrubando todos há semanas, um
processo viral complicado, estado comatoso, sr. Botto, impossível fazer um
prognóstico, d. Luisa, só lhe dar suporte e lhe dar todas as chances, nessa
idade há tanta força, tanta vontade de viver. Mas é que ela não pode ajudar,
doutor, não entende nada, parece estar, ai, perdão, meu Deus, nem sei mais
o que digo.
Lauro tampouco acreditava nisso totalmente, parecia mais uma peça de
Mecha, que sempre lhe pregava as piores peças, vestida de fantasma na
escada, escondendo um espanador no fundo da cama, os dois rindo tanto,
inventando armadilhas entre eles, brincando de continuar sendo crianças.
Processo viral complexo, a súbita apagada uma tarde, depois da febre e das
dores, e de repente o silêncio, a pele cinzenta, a respiração distante e
tranquila. A única coisa tranquila ali entre médicos e aparelhos e exames e
consultas, até que pouco a pouco a brincadeira de mau gosto de Mecha
ficou mais forte, dominando todos de hora em hora, os gritos desesperados
de d. Luisa depois cedendo a um choro quase oculto, a uma angústia de
cozinha e de banheiro, as imprecações paternas divididas pela hora dos
noticiários e da olhada no jornal, a raiva incrédula de Lauro interrompida
pelas idas à faculdade, as aulas, as reuniões, aquela lufada de esperança
toda vez que voltava do centro, você me paga, Mecha, isso não se faz,
infeliz, um dia vou te cobrar isso, você vai ver. A única tranquila ali, além
da enfermeira tricotando; o cachorro tinha sido mandado para a casa de um
tio, o dr. Raimondi não vinha mais com os colegas, passava à noitinha e não
se demorava, ele também parecia sentir o peso do corpo de Mecha que a
cada dia os derrubava mais um pouco, acostumando-os a esperar, única
coisa que se podia fazer.
Lauro voltou tarde na noite seguinte, e o sr. Botto lhe fez uma pergunta
quase evasiva sem tirar o olho da TV, em pleno comentário da Copa.
“Numa reunião com amigos”, disse Lauro, procurando alguma coisa para
fazer um sanduíche. “Esse gol foi uma beleza”, disse o sr. Botto, “ainda
bem que retransmitem a partida pra gente ver melhor essas jogadas
campeãs.” Lauro não parecia interessado no gol, comia olhando para o
chão. “Você deve saber o que está fazendo, rapaz”, disse o sr. Botto sem
tirar os olhos da bola, “mas tenha cuidado.” Lauro levantou a vista e o
olhou quase surpreso, era a primeira vez que seu pai se deixava levar por
um comentário tão pessoal. “Não se preocupe, meu velho”, disse-lhe,
levantando-se para cortar qualquer diálogo.
A enfermeira tinha baixado a luz do abajur e quase não dava para ver
Mecha. No sofá, d. Luisa tirou as mãos do rosto e Lauro deu-lhe um beijo
na testa.
— Continua na mesma — disse d. Luisa. — Continua assim o tempo
todo, filho. Veja, veja como sua boca treme, coitadinha, o que será que ela
está vendo, meu Deus, como é possível que isso dure tanto, tanto, que
isso…
— Mamãe.
— Mas não é possível, Lauro, ninguém percebe como eu, ninguém
entende que ela está o tempo todo dentro de um pesadelo, e que não
acorda…
— Eu sei, mamãe, eu também percebo. Se fosse possível fazer alguma
coisa, o Raimondi teria feito. Você não pode ajudá-la ficando aqui, tem que
ir dormir, tomar um calmante e dormir.
Ajudou-a a se levantar e a acompanhou até a porta. “O que foi isso,
Lauro?”, parando bruscamente. “Nada, mamãe, uns tiros lá longe, sabe
como é.” Mas o que d. Luisa sabia realmente, para que falar mais? Enfim,
já era tarde, depois de deixá-la em seu quarto teria de descer até o armazém
e de lá telefonar para Lucero.
Não encontrou a jaqueta azul que gostava de vestir à noite, andou olhando
nos armários do corredor para ver se sua mãe a teria pendurado ali, no fim
vestiu um paletó qualquer porque fazia frio. Antes de sair entrou por um
momento no quarto de Mecha, quase antes de vê-la na penumbra sentiu o
pesadelo, o tremor das mãos, o habitante secreto deslizando sob a pele. Lá
fora as sirenes de novo, deveria sair só mais tarde, mas aí o armazém estaria
fechado e ele não conseguiria telefonar. Sob as pálpebras, os olhos de
Mecha giravam como se tentassem abrir caminho, olhá-lo, virar para o seu
lado. Acariciou-lhe a testa com um dedo, tinha medo de tocá-la, de
contribuir para o pesadelo com qualquer estímulo de fora. Os olhos
continuavam girando nas órbitas e Lauro se afastou, não sabia por que
estava cada vez com mais medo, a ideia de que Mecha pudesse levantar as
pálpebras e olhá-lo o fez recuar. Se seu pai tivesse ido dormir poderia
telefonar da sala baixando a voz, mas o sr. Botto continuava escutando os
comentários do jogo. “Sim, disso eles falam bastante”, pensou Lauro.
Levantaria cedo e ligaria para Lucero antes de ir para a faculdade. De longe,
viu a enfermeira que saía do quarto levando alguma coisa brilhante, uma
seringa ou uma colher.
2 DE FEVEREIRO, 1982
Às vezes, quando vai me dando uma espécie de coceira de conto, uma
convocação sigilosa e crescente que pouco a pouco me aproxima,
resmungando, desta Olympia Traveller de Luxe
(de luxe a coitada não tem nada, mas em compensação tem travelleado pelos sete profundos mares
azuis aguentando todos os golpes diretos ou indiretos que pode receber uma máquina de escrever
portátil enfiada numa mala entre calças, garrafas de rum e livros),
assim, às vezes, quando a noite cai e ponho uma folha em branco no
cilindro e acendo um Gitane e me chamo de idiota,
(para que um conto, afinal, por que não abrir um livro de outro contista, ou ouvir um de meus
discos?),
mas às vezes, quando já não consigo fazer outra coisa senão começar um
conto como gostaria de começar este, é justamente aí que eu gostaria de ser
Adolfo Bioy Casares.
Gostaria de ser Bioy porque sempre o admirei como escritor e o estimei
como pessoa, embora nossas respectivas timidezes não nos ajudassem a
fazer amizade, além de outras razões de peso, entre elas um oceano
prematura e literalmente estendido entre os dois. Fazendo bem as contas,
acho que Bioy e eu só nos vimos três vezes na vida. A primeira num
banquete da Câmara Argentina do Livro, a que tive de comparecer porque
nos anos quarenta eu era o gerente dessa associação, já o motivo dele sei lá
qual foi, no decorrer do qual nos apresentamos por cima de uma travessa de
ravióli, sorrimos com simpatia e nossa conversa se limitou a um pedido
dele, em determinado momento, para que eu lhe passasse o saleiro. Da
segunda vez, Bioy veio a minha casa em Paris e tirou umas fotos minhas
cujos motivos me escapam, ao contrário dos bons momentos que passamos
conversando, acho que sobre Conrad. A última vez foi simétrica e em
Buenos Aires, fui jantar na casa dele e naquela noite falamos
principalmente de vampiros. Em nenhuma das três ocasiões falamos de
Anabel, é claro, mas não é por isso que agora eu queria ser Bioy, e sim
porque eu queria muito poder escrever sobre Anabel como ele teria feito se
a tivesse conhecido e tivesse escrito um conto sobre ela. Nesse caso, Bioy
teria falado de Anabel como eu serei incapaz de fazer, mostrando-a de
perto, profundamente, e ao mesmo tempo mantendo aquela distância,
aquele desprendimento que ele decide pôr (não consigo pensar que não seja
uma decisão) entre alguns de seus personagens e o narrador. Para mim vai
ser impossível, e não por eu ter conhecido Anabel, já que quando invento
personagens tampouco consigo me distanciar deles, embora isso às vezes
me pareça tão necessário como o é ao pintor que se afasta do cavalete para
abraçar melhor a totalidade de sua imagem e saber onde deve dar as
pinceladas decisivas. Para mim vai ser impossível porque sinto que Anabel
vai me invadir já de cara, como quando a conheci em Buenos Aires no final
dos anos quarenta, e mesmo que seja incapaz de imaginar este conto — se
ainda estiver viva, se ainda anda por aí, velha como eu —, de qualquer
modo ela vai fazer tudo o que for preciso para me impedir que eu o escreva
como gostaria, quer dizer, um pouco como Bioy saberia escrevê-lo se
tivesse conhecido Anabel.
3 DE FEVEREIRO
Por isso estas notas evasivas, estas voltas do cão ao redor do tronco? Se
Bioy pudesse lê-las iria se divertir bastante, e só para me irritar reuniria
numa citação literária as referências de tempo, lugar e nome que, segundo
ele, as justificariam. E assim, em seu inglês perfeito,
It was many and many years ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of Annabel Lee —
4 DE FEVEREIRO
Curioso que ontem não consegui continuar escrevendo (refiro-me à história
do caixeiro-viajante), talvez justo por ter sentido a tentação de fazê-lo e, de
repente, lá estava Anabel, seu jeito de contá-la para mim. Como falar de
Anabel sem imitá-la, quer dizer, sem falseá-la? Sei que é inútil, que se eu
entrar nessa terei de me submeter à sua lei, e que me falta o jogo de cintura
e a noção de distância de Bioy para me manter afastado e marcar pontos
sem dar muito as caras. Por isso jogo estupidamente com a ideia de escrever
tudo que não é verdadeiramente o conto (de escrever tudo que não seria
Anabel, claro), e por isso o luxo de Poe e as andanças em círculos, como
agora essa vontade de traduzir este trecho de Jacques Derrida que encontrei
ontem à noite em La Vérité en peinture, e que não tem absolutamente nada
a ver com toda essa história, mas que ao mesmo tempo pode ser aplicado a
ela numa inexplicável relação analógica, como essas pedras semipreciosas
cujas facetas revelam paisagens identificáveis, castelos ou cidades ou
montanhas reconhecíveis. O trecho é de difícil compreensão, como é
costume chez Derrida, e o traduzo sem maiores cuidados (ele também
escreve assim, só que parece que o cuidado dele é maior):
não (me) resta quase nada: nem a coisa, nem sua existência, nem a minha, nem o puro objeto nem
o puro sujeito, nenhum interesse de nenhuma natureza por nada. E no entanto, amo: não, ainda é
demais, ainda é se interessar indubitavelmente pela existência. Não amo, mas me comprazo com o
que não me interessa, pelo menos com isso que é indiferente que eu ame ou não. Esse prazer que
eu tomo, eu não o tomo, prefiro devolvê-lo, eu devolvo o que tomo, recebo o que devolvo, não
tomo o que recebo. E no entanto, eu o dou para mim. Posso dizer que o dou para mim? É tão
universalmente subjetivo — na pretensão de meu julgamento e do senso comum — que só pode vir
de um puro fora. Inassimilável. Em última instância, esse prazer que me dou ou ao qual, antes, me
dou, pelo qual me dou, eu nem sequer o experimento, se experimentar quer dizer sentir:
fenomenalmente, empiricamente, no espaço e no tempo de minha existência interessada ou
interessante. Prazer cuja experiência é impossível. Não o tomo, não o recebo, não o devolvo, não o
dou, não o dou a mim jamais porque eu (eu, sujeito existente) jamais tenho acesso ao belo como
tal. Como existo, jamais tenho prazer puro.
Derrida está falando de alguém que enfrenta algo que lhe parece belo, e
daí surge tudo isso; eu enfrento um nada, que é este conto não escrito, uma
lacuna de conto, um ardil de conto, e, de uma forma que me seria
impossível compreender, sinto que isso é Anabel, quer dizer, que Anabel
existe ainda que não exista conto. E o prazer reside nisso, ainda que não
seja um prazer e se pareça com algo como uma sede de sal, como um desejo
de renunciar a toda escritura enquanto escrevo (entre tantas outras coisas
porque não sou Bioy e nunca conseguirei falar de Anabel como penso que
deveria fazê-lo).
DE NOITE
Releio a passagem de Derrida, verifico que não tem nada a ver com meu
estado de espírito ou mesmo com minhas intenções; a analogia existe de
outra maneira, digamos que ela está entre a noção de beleza que essa
passagem propõe e meu sentimento de Anabel; nos dois casos há uma
rejeição a todo acesso, a toda ponte, e se quem fala na passagem de Derrida
jamais tem ingresso no belo como tal, eu, que falo em meu nome (erro que
Bioy nunca teria cometido), dolorosamente sei que jamais tive e jamais
terei acesso a Anabel como Anabel, e que escrever agora um conto sobre
ela, um conto de alguma maneira dela, é impossível. E assim, no final da
analogia volto a sentir seu princípio, o início da passagem de Derrida que li
ontem à noite e me caiu como um prolongamento exasperante do que estava
sentindo aqui diante da Olympia, diante da ausência do conto, diante da
nostalgia da eficácia de Bioy. Bem no princípio: “Não (me) resta quase
nada: nem a coisa, nem sua existência, nem a minha, nem o puro objeto
nem o puro sujeito, nenhum interesse de nenhuma natureza por nada”. O
mesmo enfrentamento desesperado contra um nada se desdobrando numa
série de subnadas, de negativas do discurso; porque hoje, depois de tantos
anos, não me resta nem Anabel, nem a existência de Anabel, nem minha
existência com relação à dela, nem o puro objeto de Anabel, nem meu puro
sujeito de então diante de Anabel no quarto da rua Reconquista, nem
nenhum interesse de nenhuma natureza por nada, já que tudo isso foi se
consumando many and many years ago, num país que hoje é meu fantasma
ou eu o dele, num tempo que hoje é como a cinza desses Gitanes se
acumulando dia após dia até que madame Perrin venha limpar meu
apartamento.
6 DE FEVEREIRO
Essa foto de Anabel, usada como marcador em nada menos que um
romance de Onetti e que reapareceu por mera ação da gravidade numa
mudança de dois anos atrás, tirar uma braçada de livros velhos da estante e
ver surgir a foto, custar a reconhecer Anabel.
Acho que se parece bastante com ela, embora seu penteado me pareça
estranho, quando ela veio pela primeira vez ao meu escritório estava de
cabelo preso, lembro, por pura condensação de sensações, que eu estava
metido até o pescoço na tradução de uma patente industrial. De todos os
trabalhos que me cabia aceitar, e na verdade eu tinha de aceitar todos desde
que fossem traduções, os piores eram as patentes, era preciso passar horas
vertendo a explicação detalhada de um aperfeiçoamento numa máquina de
costura elétrica ou nas turbinas dos barcos, e é claro que eu não entendia
absolutamente nada da explicação e quase nada do vocabulário técnico, de
modo que avançava palavra a palavra tomando cuidado para não pular uma
linha, mas sem a menor ideia do que poderia ser uma árvore helicoidal
hidrovibrante que respondia magneticamente aos sensores 1, 1’ e 1”
(Desenho 14). Certo de que Anabel tinha batido à porta e de que eu não a
ouvira, quando levantei os olhos ela estava ao lado de minha escrivaninha, e
o que mais se via dela era a bolsa de plástico brilhante e uns sapatos que
não tinham nada a ver com as onze da manhã de um dia útil em Buenos
Aires.
DE TARDE
8 DE FEVEREIRO
O pior é que eu me canso de reler para encontrar um dos fios da meada,
além do mais isto não é o conto, de maneira que então Anabel entrou
naquela manhã em meu escritório da San Martín, quase esquina com a
Corrientes, e me lembro mais da bolsa de plástico e dos sapatos de
plataforma de cortiça que de sua cara naquele dia (é verdade que as caras da
primeira vez não têm nada a ver com a que está esperando no tempo e no
hábito). Eu trabalhava na velha escrivaninha, que tinha herdado um ano
antes junto com toda a velharia do escritório e que ainda não me sentia com
ânimo de renovar, e estava chegando a uma parte especialmente abstrusa da
patente, avançando frase a frase rodeado de dicionários técnicos e com uma
sensação de estar enganando Marval e O’Donnell, que me pagavam as
traduções. Anabel foi como a entrada perturbadora de uma gata siamesa
numa sala de computadores, e daria para dizer que ela sabia disso, pois me
olhou quase com pena antes de me dizer que sua amiga Marucha tinha lhe
dado meu endereço. Pedi a ela que se sentasse, e só para fazer farol
continuei traduzindo uma frase na qual uma calandra de calibre
intermediário estabelecia uma misteriosa confraternização com um cárter
antimagnético blindado X2. Então ela pegou um cigarro suave e eu um
forte, e embora o nome de Marucha me bastasse para que tudo estivesse
claro, mesmo assim a deixei falar.
9 DE FEVEREIRO
Relutância em construir um diálogo que teria mais de invenção que de outra
coisa. Lembro-me sobretudo dos clichês de Anabel, de seu modo de me
chamar alternadamente de “jovem” e de “senhor”, de dizer “vamos supor”,
ou soltar um “ah, vou te contar”. De fumar também por clichê, soltando a
fumaça de uma só vez quase antes de tê-la tragado. Trazia uma carta de um
tal de William para mim, datada em Tampico um mês antes, que lhe traduzi
em voz alta antes de escrevê-la, como logo me pediu, “para o caso de eu me
esquecer de alguma coisa”, disse Anabel, pegando cinco pesos para me
pagar. Disse a ela que não valia a pena, meu ex-sócio tinha fixado essa
tarifa absurda nos tempos em que trabalhava sozinho e começara a traduzir
para as moças do Bajo as cartas de seus marinheiros e o que elas lhes
respondiam. Eu tinha dito a ele: “Por que cobra tão pouco? ou mais ou nada
seria melhor, afinal não é seu trabalho, você faz isso por bondade”. Ele me
explicou que já estava velho demais para resistir ao desejo de ir para a cama
de vez em quando com alguma delas, e que por isso aceitava traduzir as
cartas para tê-las mais ao alcance, mas que se não lhes tivesse cobrado esse
valor simbólico todas elas teriam se transformado numas Mme. de Sevigné,
e aí nem pensar. Depois meu sócio foi embora do país e eu herdei a
mercadoria, mantendo-a nos mesmos moldes por inércia. Tudo ia muito
bem, Marucha e as outras (na época havia quatro) me juraram que não
dariam a dica para mais ninguém, e a média era de duas por mês, com a
carta para ler em espanhol e a carta para escrever em inglês (mais raramente
em francês). Então, pelo visto Marucha se esqueceu daquele juramento, e
balançando sua absurda bolsa de plástico reluzente, Anabel entrou.
10 DE FEVEREIRO
Aqueles tempos: o peronismo me ensurdecendo com tanto alto-falante no
centro, o porteiro galego chegando ao meu escritório com uma foto de Evita
e me pedindo de forma nada amável que eu tivesse a gentileza de fixá-la na
parede (trazia os quatro percevejos para que não houvesse desculpas).
Walter Gieseking dava uma série admirável de recitais no Colón, e José
María Gatica caía como um saco de batatas num ringue dos Estados
Unidos. Em minhas horas livres eu traduzia Vida e cartas de John Keats, de
Lord Houghton; nas horas ainda mais livres eu passava bons momentos no
La Fragata, quase na frente de meu escritório, com amigos advogados que
também gostavam de um coquetel Demaría bem batido. Às vezes Susana —
11 DE FEVEREIRO
Nessa manhã eu soube, então, que o cargueiro de William tinha estado uma
semana em Buenos Aires e que agora chegava a primeira carta de William,
de Tampico, acompanhando o clássico embrulho com os presentes
prometidos, calcinhas de náilon, uma pulseira fosforescente e um
frasquinho de perfume. Nunca havia muitas diferenças nas cartas dos
amigos das meninas e em seus presentes, elas pediam principalmente
roupas de náilon, que nessa época era difícil de conseguir em Buenos Aires,
e eles mandavam os presentes com mensagens quase sempre românticas,
nas quais de repente irrompiam referências tão concretas que eu achava
complicado traduzi-las em voz alta para as meninas que, naturalmente, me
ditavam cartas ou me davam rascunhos cheios de saudade, noites de dança e
pedidos de meias de náilon e de blusas cor de tango. Com Anabel também
era assim, mal acabei de traduzir a carta de William e ela começou a me
ditar a resposta, mas eu conhecia a clientela e lhe pedi que apenas me
indicasse os assuntos, que mais tarde eu cuidaria da redação. Anabel ficou
me olhando, surpresa.
— É o sentimento — disse. — Tem que pôr muito sentimento.
— Claro, fique tranquila e me diga o que devo responder.
Foi a lista insignificante de sempre, aviso de recebimento, ela estava bem,
mas cansada, quando William ia voltar, que lhe mandasse pelo menos um
cartão-postal de cada porto, que dissesse para um tal de Perry que não se
esquecesse de mandar a foto que tinha tirado deles dois juntos na costeira.
Ah, e que dissesse que o lance da Dolly continuava na mesma.
— Se você não me explicar um pouco isso… — comecei.
— Só diga isso, que o lance da Dolly continua na mesma. E no fim diga
pra ele, bem, você sabe, que seja com sentimento, se é que você me
entende.
— Claro, não se preocupe.
Ficou de passar no dia seguinte e quando veio assinar a carta depois de
olhá-la por um momento, dava para ver que ela era capaz de entender
muitas palavras, detinha-se longamente em um ou outro parágrafo, depois
assinou e me mostrou um papelzinho onde William tinha anotado datas e
portos. Decidimos que seria melhor mandar a carta para Oakland, e a essa
altura o gelo já havia sido quebrado e Anabel aceitava o primeiro cigarro e
me olhava escrever o envelope, apoiada na borda da escrivaninha e
cantarolando alguma coisa. Uma semana depois me trouxe um rascunho
para que eu escrevesse a William com urgência, parecia ansiosa e me pediu
que lhe escrevesse a carta imediatamente, mas eu estava atolado em
certidões de nascimento italianas e prometi que iria escrevê-la naquela
tarde, assinar por ela e despachá-la ao sair do escritório. Ela me olhou, meio
hesitante, mas depois disse tudo bem e saiu. Na manhã seguinte, apareceu
às onze e meia para ter certeza de que eu havia mandado a carta. Foi aí que
a beijei pela primeira vez e combinamos que eu iria à casa dela depois do
trabalho.
12 DE FEVEREIRO
Não que naquela época eu gostasse particularmente das meninas do Bajo,
eu me movia no mundinho acomodado de uma relação estável com alguém
que vou chamar de Susana e qualificarei de cinesióloga, só que às vezes
esse mundo ficava pequeno demais, confortável demais para mim, então
surgia uma espécie de urgência de submersão, uma volta aos tempos
adolescentes com caminhadas solitárias pelos bairros do sul, bebidas e
escolhas caprichosas, breves interlúdios, talvez mais estéticos que eróticos,
um pouco como a escrita deste parágrafo que releio e que deveria riscar,
mas que vou guardar porque era assim que as coisas aconteciam, isso que
chamei de submersão, esse acanalhamento objetivamente desnecessário, já
que Susana, já que T.S. Eliot, já que Wilhelm Backhaus, e mesmo assim,
mesmo assim…
13 DE FEVEREIRO
Ontem fiquei fulo comigo mesmo, é engraçado pensar nisso agora. Em todo
caso, desde o começo eu já sabia, Anabel não vai me deixar escrever o
conto porque, em primeiro lugar, não vai ser um conto, depois porque
Anabel vai fazer (como então fez sem saber, coitadinha) tudo o que puder
para me deixar sozinho na frente de um espelho. É só eu reler este diário
para sentir que ela não passa de uma catalisadora que tenta me arrastar para
o fundo mesmo de cada página que por isso não escrevo, para o centro do
espelho onde gostaria de vê-la mas onde só aparece um tradutor
juramentado devidamente formado, com sua Susana previsível e até
cacofônica, suassusana, por que não a chamei de Amalia ou de Berta?
Problemas de escrita, não é qualquer nome que se presta a… (Vai
continuar?)
DE NOITE
16 DE FEVEREIRO
Inocência de Anabel, como o desenho que ela fez um dia no escritório,
quando a deixei esperando por conta de uma tradução urgente, e que deve
estar perdido dentro de algum livro até que talvez apareça, como a foto
dela, numa mudança ou numa releitura. Desenho com casinhas suburbanas
e duas ou três galinhas ciscando na calçada. Mas quem fala de inocência? É
fácil tachar Anabel por essa ignorância que parecia fazê-la escorregar de
uma coisa para outra; de repente, por baixo, tantas vezes tangível no olhar
ou nas decisões, a entrevisão de algo que me escapava, disso que a própria
Anabel chamava um pouco dramaticamente de “a vida”, e que para mim era
um território proibido que só a imaginação ou Roberto Arlt podiam me dar
vicariamente. (Estou me lembrando de Hardoy, um advogado amigo, que às
vezes se metia em turvos episódios suburbanos por mera nostalgia de algo
que no fundo sabia ser impossível, e de onde voltava sem ter realmente
participado, mera testemunha, como eu sou testemunha de Anabel. Sim, os
verdadeiros inocentes éramos os de gravata e três idiomas; em todo caso,
Hardoy, como bom advogado, apreciava sua função de testemunha
presencial, via isso quase como uma missão. Mas não é ele, sou eu que
gostaria de escrever este conto sobre Anabel.)
17 DE FEVEREIRO
Não vou chamar de intimidade, para isso teria de ter sido capaz de dar a
Anabel o que ela me dava com tanta naturalidade, fazê-la subir até minha
casa, por exemplo, criar uma paridade aceitável, mesmo que continuasse a
ter com ela uma relação tarifada entre cliente regular e mulher da vida.
Naquela época, não pensei, como penso agora, que Anabel nunca me
censurou por mantê-la rigorosamente à margem; talvez lhe parecesse a
regra do jogo, algo que não excluía uma amizade suficiente para encher de
risos e brincadeiras os vazios fora da cama, que são sempre os piores.
Minha vida absolutamente não interessava a Anabel, suas raras perguntas
eram do tipo: “Você teve um cachorrinho quando era criança?”, ou:
“Sempre cortou o cabelo assim tão curto?”. Eu já estava bem a par do lance
de Dolly e Marucha, de qualquer coisa na vida de Anabel, já ela continuava
sem saber e sem se importar que eu tivesse uma irmã ou um primo, barítono
este último. Marucha eu conhecia de antes, por causa das cartas, e às vezes
me encontrava com ela e com Anabel no café de Cochabamba para tomar
cerveja (importada). Por uma das cartas a William eu ficara sabendo das
broncas entre Marucha e Dolly, mas o que vou chamar de caso do
frasquinho só ficou sério bem depois, no começo era para rir de tamanha
inocência (já falei da inocência de Anabel? É chato reler este diário que está
me ajudando cada vez menos a escrever o conto), porque Anabel, que era
unha e carne com Marucha, tinha contado a William que Dolly continuava
tirando clientes de Marucha, caras de grana e até um que era filho de um
delegado, como no tango, tornava a vida dela impossível no negócio da
Chempe e se aproveitava, visivelmente, do fato de Marucha estar perdendo
um pouco de cabelo, de seus problemas com os incisivos e que na cama etc.
Marucha chorava tudo isso para Anabel, para mim menos, talvez por não
ter tanta confiança em mim, eu era o tradutor e tchau, diz que você é um
fenômeno, contava-me Anabel, que você interpreta tudo tão bem para ela, o
cozinheiro daquele navio francês até lhe manda mais presentinhos que
antes, Marucha acha que deve ser pelo sentimento que você põe nas cartas.
— E pra você não mandam mais?
— Não, tchê. Na certa você é muquirana quando escreve, de puro ciúme.
Dizia coisas assim, e ríamos bastante. E foi rindo também que ela me
contou a história do frasquinho que já havia aparecido uma ou duas vezes
no temário para as cartas a William sem que eu fizesse perguntas, porque
deixar que ela viesse sozinha era um de meus prazeres. Lembro que me
contou isso em seu quarto, enquanto abríamos uma garrafa de uísque para
um merecido drinque.
— Juro, eu fiquei pasma. Ele sempre me pareceu um pouco lelé, talvez
porque não entendo muito a fala dele, e olhe que no fim ele sempre se faz
entender. Claro, você não o conhece, se visse os olhos dele, como um gato
amarelo, nele fica bem porque ele é um sujeito boa-pinta, quando sai veste
uns ternos que, vou te contar, aqui nunca vemos produtos assim, sintéticos,
entende?
— Mas o que foi que ele disse?
— Que quando voltar vai me trazer um frasquinho. Desenhou-o num
guardanapo e em cima pôs uma caveira e dois ossos cruzados. Entendeu
agora?
— Entendi, mas não entendo por quê. Você falou da Dolly pra ele?
— Claro, na noite em que ele veio me procurar quando o navio chegou, a
Marucha estava comigo, chorava e devolvia a comida, tive que segurá-la
pra que não fosse direto cortar a cara da Dolly. Foi justo aí que eu soube
que a Dolly tinha lhe tirado o velho das quintas-feiras, vá saber o que essa
filha da puta falou pra ele da Marucha, talvez o lance do cabelo, que numa
dessas era alguma coisa contagiosa. William e eu demos fernet pra ela e a
fizemos se deitar aqui nesta cama, ela dormiu e então pudemos sair pra
dançar. Eu contei toda a história da Dolly pra ele, com certeza ele entendeu,
porque isso sem dúvida, ele entende tudo o que eu digo, me crava aqueles
olhos amarelos e eu só preciso repetir algumas coisas pra ele.
— Espere um pouco, melhor tomarmos outro scotch, esta tarde tudo foi
duplo — falei lhe dando um croque, e rimos porque o primeiro já tinha sido
bem servidinho. — E o que você fez?
— Você acha que eu sou tão sonsa assim? Claro que não, ora, eu rasguei o
guardanapo em pedacinhos pra que ele entendesse. Mas ele teimando com o
frasquinho, que ia mandá-lo pra mim pra que a Marucha o pusesse num
aperitivo. In a drink, disse. Desenhou um policial em outro guardanapo e
depois o riscou com um X, isso queria dizer que não iam suspeitar de nada.
— Perfeito — falei —, esse ianque acha que os médicos forenses daqui
são uns broncos. Você fez bem, pequena, ainda mais que o tal frasquinho ia
passar pelas suas mãos.
— Isso.
(Não me lembro, como poderia me lembrar desse diálogo? Mas foi assim,
eu o escrevo escutando-o, ou o invento copiando-o, ou o copio inventando-
o. Perguntar-se de passagem se não será isso a literatura.)
19 DE FEVEREIRO
Mas às vezes não é assim, e sim uma coisa muito mais sutil. Às vezes,
entra-se num sistema de paralelas, de simetrias, e quem sabe por isso há
momentos e frases e eventos que se fixam para sempre numa memória que
não tem muitos méritos (a minha, em todo caso), já que se esquece de tanta
coisa mais importante.
Não, nem sempre há invenção ou cópia. Ontem à noite pensei que devia
continuar escrevendo tudo isso sobre Anabel, que talvez isso me levasse ao
conto como verdade última, e de repente eis outra vez o quarto na
Reconquista, o calor de fevereiro ou março, o sujeito de Rioja com os
discos de Alberto Castillo do outro lado do corredor, aquele cara não
terminava nunca de se despedir de seu famoso pampa, até Anabel estava
ficando cheia daquilo, e olhe que ela levanta a música, adióóós pááámpa
mííía, e Anabel sentada nua na cama e se lembrando de seu pampa lá nas
bandas de Trenque Lauquen. Mas que confusão que esse cara arma por
causa do pampa, Anabel desdenhosa acendendo um cigarro, tanta amolação
por uma bosta daquela cheia de vacas. Mas, Anabel, pensei que você fosse
mais patriota, filhinha. Uma bosta de uma chatice, tchê, acho que se eu não
viesse para Buenos Aires ia acabar me jogando num valão. Pouco a pouco
as lembranças confirmatórias, e de repente, como se ela precisasse me
contar, a história do caixeiro-viajante, ela nem tinha começado, quase,
quando senti que eu já conhecia essa história, que já tinham me contado
isso. Fui deixando que falasse do jeito que ela precisava falar (às vezes o
frasquinho, agora o viajante), mas de algum modo eu não estava ali com
ela, o que estava me contando me vinha de outras vozes, outros lugares,
com o perdão de Capote, me vinha de uma sala de refeições no poeirento
Bolívar, aquele povoado pampeano onde eu tinha morado dois anos, já tão
longínquos, daquela reunião de amigos e visitantes onde se falava
principalmente de mulheres, disso que os rapazes da época chamavam de
mulherões e que andavam tão raras na vida dos solteiros provincianos.
Como me lembro bem daquela noite de verão, junto com a sobremesa e o
café com grapa coisas de outros tempos voltavam ao careca Rosatti, era um
homem que apreciávamos pelo humor e pela generosidade, o mesmo
homem que, depois de um conto meio picante de Flores Díez ou do gordo
Salas, se largava a nos contar de uma cabocla já não muito jovem que ele
visitava em seu rancho lá dos lados de Casbas, onde ela vivia de umas
galinhas e de uma pensão de viúva, criando na miséria uma filha de treze
anos.
Rosatti vendia carros novos e usados, ia até o rancho da viúva quando se
dava bem em alguns de seus giros, levava alguns presentes e se deitava com
a viúva até o dia seguinte. Ela tinha se apegado a ele, preparava-lhe bons
mates, fritava-lhe empanadas e, segundo Rosatti, não era nada ruim de
cama. Mandavam a Chola dormir num galpãozinho onde em outros tempos
o finado guardava uma charrete já vendida; era uma menina calada, de
olhos ariscos, que sumia de vista assim que Rosatti chegava e na hora do
jantar se sentava com a cabeça baixa e quase não falava. Às vezes ele
levava um brinquedo ou balas, que ela recebia com um “obrigada, senhor”
quase forçado. Na tarde em que Rosatti apareceu com mais presentes que de
costume porque naquela manhã tinha vendido um Plymouth e estava
contente, a viúva agarrou a Chola pelo ombro e lhe disse que aprendesse a
agradecer direito ao sr. Carlos, que não fosse tão chucra. Rosatti, rindo,
desculpou-a porque conhecia seu temperamento, mas nesse segundo de
confusão da menina a viu pela primeira vez, viu seus olhos enegrecidos e os
catorze anos que começavam a levantar sua blusinha de algodão. Naquela
noite na cama sentiu as diferenças e a viúva também deve tê-las sentido,
porque chorou e disse que ele já não gostava dela como antes, que
certamente ia se esquecer dela pois já não se entregava como no começo.
Os detalhes do arranjo nós nunca soubemos, em algum momento a viúva foi
buscar a Chola e a trouxe para o rancho aos trancos. Ela mesma lhe
arrancou a roupa enquanto Rosatti a esperava na cama, e como a garota
gritava e se debatia desesperada, a mãe segurou suas pernas e a manteve
assim até o final. Lembro que Rosatti abaixou um pouco a cabeça e disse,
entre envergonhado e desafiante: “Como chorava…”. Nenhum de nós fez o
menor comentário, o silêncio denso durou até que o gordo Salas soltou uma
das suas e todos nós, principalmente Rosatti, começamos a falar de outras
coisas.
Eu também não comentei absolutamente nada com Anabel. Que podia
dizer? Que já conhecia todos os detalhes, salvo que havia pelo menos vinte
anos entre as duas histórias, e que o caixeiro-viajante de Trenque Lauquen
não era o mesmo homem, nem Anabel a mesma mulher? Que tudo era mais
ou menos assim com as Anabel deste mundo, salvo que às vezes se
chamavam Chola?
23 DE FEVEREIRO
Os clientes de Anabel, vagas referências com algum nome ou alguma
história. Encontros casuais nos cafés do Bajo, fixação de um rosto, de uma
voz. Claro que nada disso me importava, imagino que nesse tipo de relações
compartilhadas ninguém se sente um cliente como os outros, mas além
disso eu podia me saber seguro de meus privilégios, primeiro pelo lance das
cartas, e também por mim mesmo, alguma coisa que agradava Anabel e que
dava, acho, mais espaço para mim que para os outros, tardes inteiras no
quarto, no cinema, a milonga e algo que talvez fosse carinho, em todo caso
vontade de rir por qualquer coisa, generosidade nada fingida no jeito de
Anabel buscar e dar o gozo. Impossível que fosse assim com os outros, os
clientes, e por isso não me importava com eles (a ideia era que Anabel não
me importava, mas por que hoje me lembro disso tudo?), embora no fundo
tivesse preferido ser o único, viver assim com Anabel e, de outro lado, com
Susana, claro. Mas Anabel tinha de ganhar a vida e vez por outra me
chegava algum indício concreto, como cruzar na esquina com o gordo —
nunca soube nem perguntei seu nome, ela o chamava só de gordo — e ficar
vendo-o entrar na casa, imaginá-lo refazendo meu próprio itinerário dessa
tarde, degrau por degrau até a galeria e o quarto de Anabel e tudo o mais.
Lembro que fui beber um uísque no La Fragata e que li todas as notícias
internacionais do La Razón, mas no fundo eu sentia o gordo com Anabel,
era idiota, mas eu o sentia como se estivesse em minha própria cama,
usando-a sem ter direito.
Talvez por isso eu não tenha sido muito amável com Anabel quando ela
apareceu no escritório alguns dias depois. De todas as minhas clientes
epistolares (a palavra volta a aparecer de uma forma bastante curiosa, hein,
Sigmund?) eu conhecia os caprichos e os humores na hora em que me
davam ou me ditavam uma carta, e fiquei impassível quando Anabel quase
gritou escreva agora mesmo pro William me trazer o frasquinho, aquela
cadela filha da puta não merece viver. Du calme, falei (entendia bastante
bem o francês), que história é essa de ficar assim antes do vermute? Mas
Anabel estava enfurecida e o prólogo da carta foi que Dolly tinha voltado a
tirar um cliente com carro da Marucha e andava dizendo lá na Chempe que
fizera isso para salvá-lo da sífilis. Acendi um cigarro como bandeira de
capitulação e escrevi a carta onde absurdamente era preciso falar mais uma
vez do frasquinho e de umas sandálias prateadas trinta e seis e meio (no
máximo trinta e sete). Tive de calcular a conversão em cinco ou cinco e
meio para não causar problemas a William, e a carta ficou muito curta e
prática, sem nada do sentimento que Anabel normalmente pedia, ainda que
agora o fizesse bem menos, por motivos óbvios. (Como ela imaginava o
que eu podia dizer a William nas despedidas? Já não me exigia que lesse as
cartas para ela, logo ia embora me pedindo que as despachasse, não podia
saber que eu continuava fiel a seu estilo e que falava para William de
saudades e de carinho, não por excesso de bondade, mas porque precisava
prever as respostas e os presentes, e no fundo isso devia ser o barômetro
mais seguro para Anabel.)
Naquela tarde pensei com calma e antes de despachar a carta acrescentei
uma folha separada na qual me apresentava sucintamente a William como o
tradutor de Anabel, e lhe pedia que viesse me ver assim que desembarcasse
e, sobretudo, antes de se encontrar com Anabel. Quando o vi entrar, duas
semanas depois, seus olhos amarelos me impressionaram mais que o ar,
entre agressivo e acanhado, do marinheiro em terra. Não jogamos muita
conversa fora, eu disse que estava a par do assunto do frasquinho mas que
as coisas não eram tão terríveis como Anabel pensava. Virtuosamente,
mostrei-me preocupado com a segurança de Anabel, que, caso a coisa
pegasse fogo, não poderia se mandar num navio, como ele iria fazer três
dias mais tarde.
— Bem, ela me pediu — disse William sem se alterar. — Tenho pena da
Marucha, e é a melhor forma de ajeitar as coisas.
O conteúdo do frasquinho, se lhe dermos crédito, não deixava o menor
vestígio, e isso, curiosamente, parecia suprimir qualquer noção de
culpabilidade em William. Senti o perigo e comecei meu trabalho sem
forçar a mão. No fundo os rolos com Dolly não estavam nem melhor nem
pior que em sua última viagem, claro que Marucha estava cada vez mais
saturada e isso recaía sobre a pobre Anabel. Eu me interessava pelo assunto
porque era o tradutor de todas aquelas meninas e as conhecia bem etc.
Peguei o uísque depois de pendurar uma placa de ausente e fechar o
escritório à chave, e comecei a beber e a fumar com William. Já de cara eu
o avaliei, primário e sentimentaloide e perigoso. O fato de eu ser o tradutor
das frases românticas de Anabel parecia me dar um prestígio quase
confessional, no segundo uísque eu soube que ele estava realmente
apaixonado por Anabel e que queria tirá-la da vida, levá-la para os States
em um par de anos, quando resolvesse, disse, uns assuntos pendentes.
Impossível não ficar do seu lado, aprovar cavalheirescamente suas
intenções e me apoiar nelas para insistir que o negócio do frasquinho era a
pior coisa que ele podia fazer a Anabel. Começou a ver por esse ângulo,
mas não me escondeu que Anabel não perdoaria sua falha, iria chamá-lo de
frouxo e de filho da puta, e esse era o tipo de coisa que ele não podia aceitar
nem mesmo de Anabel.
Tomando como exemplo o gesto de servir mais uísque em seu copo,
sugeri um plano em que eu seria seu aliado. Ele daria, é claro, o frasquinho
a Anabel, mas cheio de chá ou de coca-cola; eu, por minha vez, iria mantê-
lo a par das novidades com o sistema das folhinhas separadas, para que as
cartas de Anabel guardassem tudo o que era apenas deles dois, e certamente
o problema entre Dolly e Marucha se resolveria pelo cansaço. Se isso não
acontecesse — era preciso ceder em algo diante daqueles olhos amarelos
que iam ficando cada vez mais fixos —, eu lhe escreveria para que
mandasse ou trouxesse o frasquinho verdadeiro, e quanto a Anabel, tinha
certeza de que ela entenderia, se fosse o caso, quando eu me declarasse
responsável pelo engano para o bem de todos etc.
— O.k. — disse William. Era a primeira vez que ele dizia isso, e me
pareceu menos idiota que quando o ouvia de meus amigos. Na porta, demo-
nos as mãos, ele me olhou amarelo e demorado, e disse: “Obrigado pelas
cartas”. Disse isso no plural, quer dizer, estava pensando também nas cartas
de Anabel e não só na simples folha separada. Por que essa gratidão fazia
que eu me sentisse tão mal, por que ao ficar sozinho tomei outro uísque
antes de fechar o escritório e sair para almoçar?
26 DE FEVEREIRO
Escritores que aprecio souberam ironizar amavelmente a linguagem de
alguém como Anabel. Divertem-me muito, é claro, mas no fundo essas
facilidades da cultura me parecem um pouco canalhas, eu também poderia
repetir muitas frases de Anabel ou do porteiro galego, e de repente até vou
acabar fazendo isso se, por fim, escrever esse conto, não há nada mais fácil.
Mas naquela época eu me dedicava mais a comparar mentalmente a fala de
Anabel e de Susana, que as desnudava mais profundamente que minhas
mãos, revelava o aberto e o fechado nelas, o estreito e o largo, o tamanho de
suas sombras na vida. Nunca ouvi a palavra “democracia” dita por Anabel,
que, aliás, a ouvia ou lia vinte vezes por dia, em compensação Susana a
usava por qualquer motivo e sempre com a mesma boa consciência de
proprietária. Em matérias íntimas, Susana podia aludir a seu sexo, enquanto
Anabel dizia xoxota ou parpaiola, palavra que sempre me fascinou pelo
que tem de marola e de párpado. E se estou assim há dez minutos porque
não me decido a continuar com o que falta (e que não é muito e não
corresponde muito ao que eu vagamente esperava escrever), ou seja, que a
semana inteira eu não soube nada de Anabel, como era previsível, já que
devia estar o tempo todo com William, mas num final de semana ela
apareceu com, é claro, parte dos presentes de náilon que William tinha
trazido para ela, e uma bolsa nova de pele não sei do que lá do Alasca que,
nessa estação, só de olhar fazia o calor aumentar. Veio para me dizer que
William tinha acabado de partir, o que não era novidade para mim, e que
tinha lhe trazido a coisa (curiosamente, evitava chamá-la de frasquinho),
que já estava nas mãos de Marucha.
Eu não tinha nenhuma razão para me inquietar agora, mas era bom dar
uma de preocupado, saber se Marucha tinha plena consciência da
barbaridade que isso significava etc., e Anabel me explicou que a fizera
jurar por sua santa mãe e pela Virgem de Luján que só se Dolly voltasse a
etc. De passagem, interessou-se em saber o que eu achava da bolsa e das
meias de náilon, e combinamos de nos encontrar em sua casa na outra
semana, porque ela andava muito ocupada depois de tanto full time com
William. Já estava indo embora, quando se lembrou:
— Ele é tão bom, sabe? Já pensou quanto essa bolsa deve ter lhe custado?
Eu não queria falar nada de você pra ele, mas ele me falava o tempo todo
das cartas, disse que você consegue lhe transmitir meu sentimento com
exatidão.
— Ah — comentei, sem saber bem porque a coisa me descia meio
atravessada.
— Olhe, tem fecho duplo de segurança e tudo o mais. No fim eu disse pra
ele que você me conhecia bem e que por isso interpretava as cartas pra
mim, em todo caso por que ele ligaria pra isso se nem viu você?
— Claro, por que ligaria? — consegui dizer.
— Ele me prometeu que na próxima viagem vai trazer uma vitrola com
rádio e tudo o mais, daí sim, e vamos calar a boca do riojano do adiós
pampa mía se você me comprar uns discos do Canaro e do D’Arienzo.
Ela ainda estava saindo quando Susana me telefonou, pelo visto tinha
acabado de entrar num de seus surtos de nomadismo e me convidava para ir
com ela em seu carro até Necochea. Topei ir no final de semana, e me
sobraram três dias em que não fiz nada além de pensar, sentindo pouco a
pouco uma coisa estranha me subir até a boca do estômago (o estômago tem
boca?). Primeiro: William não tinha falado a Anabel de seus planos de
casamento, era quase óbvio que o deslize involuntário de Anabel lhe caíra
como um tapa na cara (e o fato de ter disfarçado isso era o mais
inquietante). Ou seja, que…
Inútil dizer a mim mesmo que a essa altura eu estava me deixando levar
por deduções tipo Dickson Carr ou Ellery Queen, e que, afinal, um sujeito
como William não tinha por que perder o sono pelo fato de eu ser mais um
entre os clientes de Anabel. Só que eu senti, ao mesmo tempo, que não era
bem assim, que justamente um sujeito como William podia ter reagido de
forma diferente, com aquela mistura de sentimentalismo e garras de felino
que eu tinha sacado nele desde o início. Pois, além disso, agora vinha o
segundo lance: sabedor de que eu fazia algo mais além de traduzir as cartas
para Anabel, por que ele não subiu para me dizer isso, para o bem ou para o
mal? Não podia esquecer que ele tinha confiado em mim e até me
admirado, que de algum modo se confessara com alguém que, entretanto, se
mijava de rir de tamanha ingenuidade, e isso William devia ter sentido, e
como!, naquele momento em que Anabel deu com a língua nos dentes. Era
tão fácil imaginar William derrubando-a com um soco e vindo direto até
meu escritório para fazer a mesma coisa comigo. Nem uma coisa nem
outra, porém, e isso…
E isso o quê?, disse para mim mesmo como quem toma um Equanil, pois
afinal seu navio já estava longe e tudo se reduzia a hipóteses; o tempo e as
ondas de Necochea as apagariam aos poucos; além do mais, Susana estava
lendo Aldous Huxley, o que daria assunto para conversas bastante
diferentes, felizmente. Eu também comprei livros novos no caminho para
casa, lembro que era algo de Borges e/ou de Bioy.
27 DE FEVEREIRO
Embora quase ninguém se lembre mais, ainda me comove a forma com que
Spandrell espera e recebe a morte em Contraponto. Nos anos quarenta, esse
episódio não poderia tocar tão profundamente os leitores argentinos; hoje
sim, mas justo quando já não se lembram dele. Eu continuo sendo fiel a
Spandrell (nunca reli o romance nem o tenho aqui à mão), e ainda que os
detalhes tenham se apagado, parece que estou vendo novamente a cena em
que ele ouve a gravação de seu quarteto preferido de Beethoven, sabendo
que o comando fascista se aproxima de sua casa para assassiná-lo, e dando
a essa escolha final um peso que torna seus assassinos ainda mais
desprezíveis. Susana também tinha ficado comovida com esse episódio,
embora seus motivos não me parecessem exatamente os meus nem, talvez,
os de Huxley; ainda estávamos discutindo no terraço do hotel quando
passou um jornaleiro e comprei o La Razón, e na página 8 vi polícia
investiga morte misteriosa, vi uma foto irreconhecível de Dolly, mas com
seu nome completo e suas atividades notoriamente públicas, transportada
com urgência para o Hospital Ramos Mejía faleceu duas horas mais tarde,
vítima de um veneno poderoso. Vamos voltar hoje de noite, falei para
Susana, aqui não para de chuviscar. Ela ficou histérica, me chamou de
déspota. Ele se vingou, eu pensava, deixando-a falar, sentindo a cãibra que
me subia das virilhas até o estômago, aquele filho da puta se vingou, o que
ele não deve estar se divertindo lá no navio, nem chá nem coca-cola, e
aquela imbecil da Marucha que vai abrir o bico em dez minutos. Como
rajadas de medo entre cada frase enfurecida de Susana, o uísque duplo, a
cãibra, a mala, puta merda ela vai abrir o bico, vai soltar a língua assim que
lhe derem uns tapas na cara.
Mas Marucha não abriu o bico, na tarde seguinte havia um papelzinho de
Anabel debaixo da porta do escritório, nos vemos às sete no café do Negro,
estava bem tranquila e com a bolsa de pele, nem lhe passara pela cabeça
que Marucha podia metê-la em alguma confusão. Jura é jura, não tem erro,
ela me dizia, com uma calma que eu teria achado admirável se não estivesse
com tanta vontade de enchê-la de tapas. A confissão de Marucha ocupava
meia página do jornal, e era exatamente isso que Anabel estava lendo
quando cheguei ao café. O jornalista não ia além das generalidades próprias
do ofício, a mulher declarou ter procurado um veneno de efeito fulminante
que derramou num copo de bebida, ou seja, no cinzano que Dolly bebia aos
litros. A rivalidade entre as duas mulheres tinha atingido seu ponto
culminante, acrescentava o consciencioso repórter, e seu trágico desenlace
etc.
Não acho estranho ter esquecido quase todos os detalhes desse encontro
com Anabel. Vejo-a sorrir para mim, isso sim, ouço-a dizer que os
advogados provariam que Marucha era uma vítima e que ela sairia em
menos de um ano; o que guardo dessa tarde é principalmente um
sentimento de total absurdo, algo impossível de dizer aqui, percebi que
naquele momento Anabel era como um anjo pairando acima da realidade,
certa de que Marucha tinha tido razão (e era verdade, mas não dessa forma)
e que não ia acontecer nada de grave com ninguém. Ela me falava disso
tudo e era como se estivesse me contando uma radionovela, alheia a si
mesma e sobretudo a mim, às cartas, sobretudo às cartas que me punham
sem mais nem mais no mesmo barco com William e com ela. Me dizia tudo
isso como se fosse uma radionovela, daquela distância incalculável entre
nós dois, entre seu mundo e meu terror que procurava cigarros e outro
uísque, e claro, claro que sim, Marucha é de confiança, claro que não vai
abrir o bico.
Porque se eu estava certo de alguma coisa nesse momento era de que não
podia dizer nada para o anjo. Como diabos fazê-la entender que William
não ia se conformar com isso agora, que certamente iria escrever para
completar sua vingança, para denunciar Anabel e, de quebra, me meter no
rolo como acobertador. Ela ficaria me olhando meio perdida, talvez me
mostrasse a bolsa como uma prova de boa-fé, ele que me deu de presente,
como pode pensar que faria uma coisa dessas, e por aí vai.
Não sei de que falamos depois, voltei ao meu apartamento para pensar, e
no dia seguinte acertei com um colega para que tomasse conta do escritório
por um par de meses; embora Anabel não conhecesse meu apartamento, por
via das dúvidas me mudei para um que Susana tinha acabado de alugar em
Belgrano, e não me movi desse salubre bairro para evitar um encontro
casual com Anabel no centro. Hardoy, que era de minha total confiança,
dedicou-se prazerosamente a espioná-la, banhando-se na atmosfera daquilo
que ele chamava de bas-fond. Tantas precauções se mostraram inúteis, mas
serviram para que eu dormisse um pouco melhor, para ler um monte de
livros e descobrir novas facetas e até encantos inesperados em Susana,
convencida, a coitada, de que eu estava fazendo uma cura de repouso e
passeando por toda parte em seu carro. Um mês e meio depois o navio de
William chegou, e naquela mesma noite eu soube por Hardoy que Anabel se
encontrara com ele e que tinham ficado até as três da manhã dançando
numa milonga de Palermo. A única coisa lógica seria eu sentir alívio, mas
acho que não senti, foi mais como se Dickson Carr e Ellery Queen fossem
uma bela de uma bosta e a inteligência ainda pior que a bosta, em
comparação com aquela milonga na qual o anjo se encontrou com o outro
anjo (per modo di dire, claro), para, de passagem entre um tango e outro,
me cuspir em plena cara, os dois na deles cuspindo em mim sem me ver,
sem saber de mim e sobretudo sem dar a mínima para mim, como quem
cospe no chão sem ao menos olhá-lo. Sua lei e seu mundo de anjos, com
Marucha e, de algum modo, também com Dolly, e eu deste outro lado com
a cãibra e o valium e Susana, com Hardoy que continuava a me falar da
milonga sem perceber que eu tinha apanhado o lenço, que enquanto o
escutava e agradecia sua amistosa vigilância estava passando o lenço para
secar, de algum modo, a cuspida bem no meio da cara.
28 DE FEVEREIRO
Restam alguns detalhes menores: quando voltei ao escritório, já tinha tudo
pensado para explicar convincentemente minha ausência a Anabel;
conhecia de sobra sua falta de curiosidade, ela aceitaria qualquer coisa e já
devia andar com alguma outra carta para traduzir, a menos que, nesse meio-
tempo, tivesse arrumado outro tradutor. Mas Anabel nunca mais veio ao
escritório, quem sabe fosse uma promessa feita a William com juras e
Virgem de Luján, ou talvez só estivesse realmente magoada com minha
ausência, ou talvez a Chempe a mantivesse muito ocupada. No começo,
acho que esperei por ela vagamente, não sei se gostaria de vê-la entrando,
mas no fundo me magoava que ela estivesse me apagando com tanta
facilidade, quem iria traduzir suas cartas melhor que eu, quem poderia
conhecer William ou ela melhor que eu? Duas ou três vezes, no meio de
uma patente ou de uma certidão de nascimento, fiquei com as mãos no ar,
esperando que a porta se abrisse e Anabel entrasse de sapato novo, mas
depois chamavam educadamente e era só uma fatura consular ou um
testamento. De minha parte, continuei evitando os lugares onde poderia
encontrá-la de tarde ou de noite. Hardoy também não a viu mais, e nesses
meses surgiu a oportunidade de vir para a Europa por um tempo, e no fim
fui ficando, fui me acostumando até agora, até os cabelos brancos, essa
diabete que me encurrala no apartamento, essas lembranças. A verdade é
que eu queria ter escrito sobre isso tudo, fazer um conto sobre Anabel e
aquela época, talvez, depois de escrevê-lo, isso ajudasse a me sentir melhor,
a deixar tudo em ordem, mas já não acredito que vá fazê-lo, tem este
caderno cheio de retalhos soltos, essa vontade de começar a completá-los,
de preencher os buracos e contar outras coisas de Anabel, mas só o que mal
e mal consigo dizer é que eu queria demais escrever esse conto sobre
Anabel, e no fim é só mais uma página no caderno, mais um dia sem
começar o conto. O pior é que não estou convencido de que nunca poderei
fazê-lo, porque, entre outras coisas, não sou capaz de escrever sobre
Anabel, e de nada me vale ir juntando pedaços que definitivamente não são
de Anabel, são meus, quase como se Anabel estivesse querendo escrever
um conto e se lembrasse de mim, de como nunca a levei em minha casa,
dos dois meses em que o pânico me tirou de sua vida, de tudo isso que
agora volta, embora Anabel com certeza pouco tenha se importado com isso
e só eu me lembre de algo que é tão pouco, mas que não para de voltar de
lá, daquilo que talvez devesse ter sido de outra maneira, como eu e como
quase tudo lá e aqui. Pensando bem, como Derrida está certo quando diz,
quando me diz: Não (me) resta quase nada: nem a coisa, nem sua
existência, nem a minha, nem o puro objeto nem o puro sujeito, nenhum
interesse de nenhuma natureza por nada. Nenhum interesse, realmente,
porque procurar Anabel no fundo do tempo é sempre cair de novo em mim
mesmo, e é tão triste escrever sobre mim mesmo quando quero continuar
imaginando que escrevo sobre Anabel.
Em reconhecimento de sua relevância
na obra de Julio Cortázar, completamos
esta edição com os sete textos na
sequência, publicados no volume
Papeles inesperados (Alfaguara), 2009.
(N. E.)
Teoria do caranguejo11
T
inham erguido a casa no limite da selva, orientada para o sul a fim
de evitar que a umidade dos ventos de março se somasse ao calor
que a sombra das árvores pouco atenuava.
Quando Winnie estava chegando
Deixou o parágrafo inconcluso, afastou a máquina de escrever e acendeu o
cachimbo. Winnie. O problema, como sempre, era Winnie. Assim que se
ocupava dela a fluidez se coagulava numa espécie de
Suspirando, apagou numa espécie de, porque detestava as facilidades do
idioma, e pensou que não poderia continuar trabalhando agora, só depois do
jantar; logo as crianças iam chegar da escola e ele teria de cuidar dos
banhos, preparar a comida e ajudá-los com suas
Por que no meio de uma enumeração tão simples havia uma espécie de
lacuna, uma impossibilidade de continuar? Achava isso incompreensível,
pois já escrevera passagens muito mais difíceis, compostas sem nenhum
esforço, como se, de algum modo, já estivessem preparadas para incidir na
linguagem. Naturalmente, nesses casos era melhor
Soltando o lápis, disse para si que tudo se tornava abstrato demais; os
naturalmente os nesses casos, a velha tendência para fugir de situações
definidas. Tinha a impressão de se afastar cada vez mais das fontes, de
organizar quebra-cabeças de palavras que, por sua vez
Fechou o caderno bruscamente e foi até a varanda.
Impossível deixar essa palavra, varanda.
Ciao, Verona12
— Tu n’a pas su me conquérir — prononça
Vally, lentement. — Tu n’a eu ni la force,
ni la patience, ni le courage de vaincre
mon repliement hostile vis-à-vis de
l’être qui veut me dominer.
— Je ne l’ignore point, Vally. Je ne formule
pas le plus légère reproche, la plus légère
plainte. Je te garde l’inexprimable
reconnaissance de m’avoir inspiré cet
amour que je n’ai point su te faire partager.
F
oi em Boston e num hotel, com comprimidos. Lamia Maraini, trinta
e quatro anos. Ninguém se surpreendeu muito, algumas mulheres
choraram em cidades distantes, a que morava em Boston foi a um
nightclub naquela noite e curtiu horrores (falou assim para uma
amiga mexicana). Entre os poucos papéis da mala havia cartões-postais só
com os primeiros nomes, e uma longa carta romântica datada de meses
antes mas quase nem lida, quase intocada no amplo envelope azul. Não sei,
Lamia — uma caligrafia redonda e caprichada, um pouco lenta mas que
vem, evidentemente, de alguém que não fazia rascunhos —, não sei se vou
lhe mandar esta carta, já faz tanto tempo que seu silêncio me prova que
você não lê nada, e eu nunca aprendi a enviar bilhetes breves que talvez
despertassem uma vontade de resposta, duas linhas ou um desses desenhos
com flechas e rãzinhas que você me mandou uma vez de Ischia, de
Manágua, descansos de viagem ou formas de preencher uma hora de tédio
com uma pequena gentileza um pouco irônica.
Veja, eu mal começo a falar com você e já dá para sentir — você vai sentir
mais do que eu e vai deixar de lado esta carta com um mau humor de gata
que não acordou direito — que não vou conseguir ser breve, que quando
começo a falar há uma espécie de tempo abolido, e eis novamente o
escritório do CERN e os papos demorados que nos salvavam da bruma
burocrática, dos papéis meio empoeirados sobre nossas escrivaninhas,
urgente, tradução imediata, o prazer de ignorar um mundo ao qual nunca
pertencemos realmente, a esperança de inventarmos outro para nós, sem
pressa, mas tenso e crispado e cheio de turbilhões e de festas inesperadas.
Falo por mim, claro, você nunca o encarou dessa forma, mas como eu podia
saber disso na época, Lamia, como podia adivinhar que ao falar comigo era
como se você estivesse se penteando ou se maquiando, sempre sozinha,
sempre voltada para dentro de si mesma, eu seu espelho Mireille, seu eco
Mireille, até o dia em que se abrisse a porta do fim de seu contrato e você se
jogasse na vida rua afora, pisasse fundo no acelerador de seu Porsche que a
levaria a outros lances, ao que você agora deve estar vivendo, sem me
imaginar aqui lhe escrevendo.
Digamos que eu fale com você para que esta carta preencha uma hora
vazia, o intervalo para um café, que você vai erguer os olhos entre uma
frase e outra para olhar as pessoas passando, para apreciar as panturrilhas
que uma saia vermelha e umas botas de couro macio delimitam de maneira
impecável. Onde você está, Lamia, em que praia, em que cama, em que
lobby de hotel irá alcançá-la esta carta que entregarei a um funcionário
indiferente para que ponha os selos e me indique o custo da remessa sem
me olhar, sem nada além de repetir os gestos rotineiros? Tudo é impreciso,
possível e improvável: que você a leia, que ela não chegue, que ela chegue
e você não a leia, entregue a jogos mais estritos; ou que a leia entre dois
goles de vinho, entre duas respostas a essas perguntas que sempre irão lhe
fazer aquelas que vivem a inenarrável sorte de compartilhar com você uma
mesa ou uma reunião de amigos; sim, um acaso de instantes ou de humores,
o envelope que desponta em sua bolsa e que você decide abrir porque está
entediada, ou que enfia entre um pente e uma lixa de unhas, entre moedas
soltas e pedaços de papel com endereços ou bilhetes. E se você a lê, pois
não suporto que você não a leia, nem que seja só para interrompê-la com
um gesto aborrecido, se a lê até aqui, até esta palavra aqui que se aferra a
seus olhos, que tenta guardar seu olhar no que vem a seguir, se você a lê,
Lamia, que importância pode ter para você o que eu quero dizer, não só que
eu a amo, porque isso você já sabe desde sempre e para você tanto faz e não
é nenhuma novidade, realmente não é novidade para você aí onde estiver,
amando outra ou só olhando o rio de mulheres que o vento da rua aproxima
de sua mesa e corre em lentas bordejadas, entregando-lhe por um instante
suas singraduras e suas máscaras de proa, as regatas multicoloridas que uma
delas vencerá sem saber quando você se levantar e a seguir, quando a tornar
única na multidão do entardecer, quando abordá-la no exato momento, no
portal exato onde seu sorriso, sua pergunta, seu jeito de oferecer a chave da
noite sejam exatamente falcão, festim, saciedade.
Digamos então que vou lhe falar de Javier para diverti-la um pouco. Eu
não me divirto, e lhe ofereço isso como mais uma das tantas libações que
verti a seus pés (você comprou, afinal, aqueles sapatos da Gregsson que
tinha visto na Vogue e que dizia, brincando, desejar mais que os lábios de
Anouk Aimée?). Não, não me divirto, mas ao mesmo tempo preciso falar
dele como quem torna e retorna com a língua a um pedacinho de carne
preso entre os dentes; sinto falta de falar dele porque desde Verona há nele
algo de súcubo (de íncubo? Você sempre me corrigiu e, como vê, continuo
na dúvida), e então, o exorcismo, expulsá-lo de mim como ele também
tentou me expulsar naquele texto que você achou tão engraçado quando leu
o último livro dele lá no México, seu cartão-postal que demorei a entender
porque você brincava com cada palavra, emaranhava as sílabas e escrevia
em semicírculos que se secionavam misturando pedaços de sentido,
descarrilando o olhar. É curioso, Lamia, mas de algum modo esse texto do
Javier é real, ele conseguiu transformá-lo num relato literário e lhe dar um
título um pouco numismático e publicá-lo como pura ficção, mas as coisas
aconteceram assim, pelo menos as coisas externas, que para Javier foram as
mais importantes, e às vezes para mim. Seu erro mais estúpido — entre
tantíssimos outros — foi acreditar que seu texto nos incluía e de algum
modo nos resumia; ele acreditou nisso por ser escritor e por ser vaidoso, o
que talvez seja a mesma coisa, que as frases em que falava dele e de mim
usando o plural completavam uma visão de conjunto e me concediam a
parte que me cabia, o ângulo visual que eu teria o direito de reivindicar
nesse texto. A vantagem de não ser escritora é que agora vou lhe falar dele
em primeira pessoa, de forma honesta, simples e epistolar; e não vou
guardar nenhuma cópia, Lamia, e ninguém poderá mandar um cartão-postal
a Javier com uma gozação irônica sobre isso. Pois já é hora de ver as coisas
como elas são, para ele seu texto continha a verdade, e era isso, mas só para
ele mesmo. É muito fácil falar das faces da moeda e se considerar incapaz
de ir de uma para a outra, passar do eu para um plural literário que
pretendia me incluir. Às vezes sim, não vou negar, não estou dizendo tudo
isso com ressentimento, Javier, pode crer que não (Lamia me perdoará essa
brusca substituição de correspondente, na manhã dos fatos e de seus
motivos e de suas não explicações, quem sabe eu não esteja escrevendo
para você, pobre amigo molhado de impossível), mas era preciso que a
outra face da moeda tivesse sua verdadeira voz, que mostrasse você tal
como um homem é quando o tiram de sua cômoda rotina, quando o despem
de seus panos e de seus mitos e máscaras.
Além do mais, eu lhe devo um esclarecimento, Lamia, embora não vá lhe
passar despercebido que não é a você, mas a Javier, que devo isso, e você
tem razão, obviamente. Se leu bem o texto dele (às vezes uma crueldade
instantânea faz que você sobreponha a irrisão à razão, e nada nem ninguém
a faria mudar essa visão demoníaca que é então a sua), deve ter visto que, à
sua maneira, ele se envergonha de ter escrito isso, são coisas que pode
deixar de dizer mas sobre as quais, no fundo, preferiria calar. É claro que
para ele também era um exorcismo, teve de sofrer, como imagino que
sofreu ao escrevê-lo, confiando numa libertação, num efeito de sangria. Por
isso, quando resolveu me mandar o texto, muito antes de publicá-lo junto
com outros relatos imaginários, ele acrescentou uma carta onde confessava
justamente isso que você achou intolerável. Ele também, Lamia, ele
também. Copio suas palavras: “Eu sei, Mireille, é obsceno escrever estas
coisas, dá-las aos bisbilhoteiros. Você quer o quê?, tem os que vão às igrejas
se confessar, tem os que escrevem cartas intermináveis, e tem também os
que fingem urdir um romance ou um conto com seus sucessos pessoais.
Quer o quê?, o amor pede rua, pede vento, não sabe morrer na solidão. Por
trás deste triste espetáculo de palavras treme indizivelmente a esperança de
que você me leia, de que eu não esteja totalmente morto em sua memória”.
Já viu o tipo de homem, Lamia; não estou lhe mostrando nenhuma
novidade, porque para você todos são iguais, e nisso você se engana, mas
infelizmente ele entra justo no molde de desprezo que você lhes demarcou
para sempre.
Não esqueço a careta que você fez no dia em que falei que tinha pena de
Javier; era exatamente meio-dia, bebíamos martínis no bar da estação, você
ia para Marselha e tinha acabado de me passar uma lista de coisas
esquecidas, uma transação bancária, telefonemas, a recorrente herança das
pequenas servidões que você talvez inventasse, em parte, para me deixar ao
menos uma esmola. Já lhe disse que tinha pena de Javier, que tinha
respondido com duas linhas amáveis à carta quase histérica que ele me
mandara de Londres, que iria vê-lo três semanas depois num plano de
turismo amistoso. Você não caçoou diretamente, mas a escolha de Verona
encheu seus olhos de faíscas, riu entre dois goles, evitou as clássicas
citações, claro, e foi embora sem me deixar saber o que pensava; talvez seu
beijo tenha sido mais longo que das outras vezes, sua mão se fechou em
meu braço por um momento. Nem consegui lhe dizer que nada podia
acontecer que me fizesse mudar, gostaria de ter lhe dito isso só por mim,
uma vez que você já se afastava de novo atrás de uma de suas presas, eu
percebia isso em seu jeito de olhar o relógio, de contar, a partir desse
instante, o tempo que a separava do encontro. Você não vai acreditar, mas
nos dias que se seguiram pensei pouco em você, sua ausência se tornava
cada vez mais tangível e eu quase não tinha necessidade de vê-la, sem você
o escritório era definitivamente seu território, seu lápis imperioso a um lado
de sua mesa, a capa da máquina cobrindo o teclado que eu gostava tanto de
ver quando seus dedos dançavam, envoltos na fumaça de seu Chesterfield;
não precisava pensar em você, as coisas eram você, você não tinha partido.
Pouco a pouco a sombra de Javier voltava a entrar como ele tantas vezes
entrara no escritório, a pretexto de fazer alguma consulta, para se demorar
de pé junto de minha mesa, e no fim me convidando para um concerto ou
um passeio no final de semana. Inimiga da improvisação e da desordem,
você me conhece, escrevi a ele dizendo que eu cuidaria da reserva do hotel,
de organizar os horários; ele me agradeceu, lá de Londres, chegou a Verona
meia hora antes de mim naquela manhã de maio, bebeu no bar do hotel
enquanto me esperava, mal me deu um abraço antes de pegar minha mala e
dizer que não estava acreditando, de rir feito uma criança, de me
acompanhar até meu quarto e descobrir que ficava na frente do dele, só um
pouco mais no fundo do corredor amortecido com estuques e cortinados
marrons, o mesmo Hotel Accademia de outra viagem minha, a certeza da
tranquilidade e do bom atendimento. Ele não disse nada, claro, olhou as
duas portas e não disse nada. Outro teria me reprovado a crueldade dessa
vizinhança, ou perguntado se era mera coincidência no mecanismo do hotel.
Era, sem dúvida, mas também era verdade que eu não tinha pedido
expressamente que nos alojassem em andares diferentes, difícil dizer isso a
um gerente italiano, e além disso parecia um jeito de as coisas serem
límpidas e claras, um encontro de amigos que se querem bem.
Percebo que tudo isso se esfuma numa linearidade perfeitamente falsa,
como todas as linearidades, e que só pode ter sentido se entre seus olhos
(continuam azuis, continuam refletindo outras cores e se enchendo de
brilhos dourados, de bruscas e terríveis fugas verdes para voltar, com um
simples adejo das pálpebras, à água-marinha que me confronta, para
sempre, sua negativa, sua rejeição?), se entre seus olhos e esta página se
interpusesse uma lupa capaz de lhe mostrar alguns dos infinitos pontos que
compõem a decisão de nos encontrarmos em Verona e passarmos uma
semana em dois quartos, separados apenas por um corredor e por duas
impossibilidades. Quero então lhe dizer que se respondi à carta de Javier, se
o encontrei em Verona, esses atos se deram no contexto de uma admissão
tácita do passado, de tudo o que você conheceu até o ponto-final do texto de
Javier. Não ria, mas esse encontro se baseava numa espécie de ordem do
dia, minha vontade de falar, de lhe dizer a verdade, de talvez encontrar um
terreno comum onde fosse possível o contentamento, um modo de seguir
andando juntos, como uma vez em Genebra. Não ria, mas em minha
aceitação havia carinho e respeito, havia o Javier das tardes em minha
cabana, das noites de concerto, o homem que tinha sido meu amigo de
vagabundagens, de Schumann e de Marguerite Yourcenar (não ria, Lamia,
eram praias de encontro e de prazer, ali sim seria possível essa proximidade
que ele acabou destruindo com seu comportamento desastrado de urso no
cio); e quando lhe expus a ordem do dia, quando aceitei um reencontro em
Verona para lhe dizer o que ele já deveria ter adivinhado há muito tempo,
sua alegria me fez bem, achei que talvez estivesse se abrindo para nós um
terreno comum onde os jogos fossem possíveis novamente, e enquanto
descia para me encontrar com ele no bar e depois irmos para a rua sob o
chuvisco do meio-dia eu me senti a mesma de antes, livre das lembranças
que nos maculavam, do embaraço infinito das duas noites em Genebra, e
ele também parecia estar recém-lavado de sua própria miséria, esperando-
me com planos de passeios, e a esperança de encontrar em Verona os
melhores spaghettis da Itália, capelas e pontes e papos que espantassem os
fantasmas.
Vejo, como poderia deixar de ver?, seu sorriso meio maligno, meio
compassivo, imagino você dando de ombros e talvez mostrando minha carta
para essa que está bebendo ou fumando a seu lado, trégua amável numa
sesta de travesseiros e murmúrios. Eu me exponho a seu desprezo ou à sua
pena, mas naquele momento ele era como um porto, depois de você em
Genebra. Sua mão em meu braço (“está bem abrigada, a chuva não está te
chateando?”) me guiava ao acaso por uma cidade que eu conhecia melhor
que ele, até que em determinado momento lhe mostrei o caminho, descemos
até a Piazza delle Erbe e aí foram o vermelho e o ocre, o debate sobre o
gótico, deixar-se levar pela cidade e suas vitrines, e discordar sobre as
tumbas dos Escalígeros, ele sim, eu não, a deriva deliciosa por ruazinhas,
sem destino preciso, o primeiro almoço lá onde certa vez eu comera
mariscos e onde agora não os encontraria, mas que importava isso se o
vinho era bom e a penumbra nos deixava falar, deixava que nos olhássemos
sem a dupla humilhação dos últimos olhares em Genebra? Ele me pareceu o
de sempre, doce e ao mesmo tempo um pouco brusco, a barba mais curta e
os olhos mais cansados, as mãos ossudas amassando um cigarro antes de
acendê-lo, a voz na qual havia também um jeito de me olhar, uma carícia
que seus dedos já não podiam levar até meu rosto. Parecia haver uma espera
tácita e necessária, um lento interregno que enchíamos de anedotas,
trabalhos e viagens, relato de vidas separadas correndo por países distantes,
Eillen evocada de passagem, porque ele sempre tinha sido leal comigo e
tampouco agora se calava sobre sua pequena história sem saída. Estávamos
nos sentindo bem enquanto tomávamos o café e a grapa (você sabe que sou
perita em grapa e ele aceitou minha sugestão e a aprovou com um gesto
infantil, passando timidamente um dedo em meu nariz e recolhendo a mão
como se eu fosse reprová-lo); aí nós já tínhamos comparado planos e
preferências, eu iria guiá-lo por palácios e igrejas e ele também precisava de
um guarda-chuva e de lenços, e também queria meu conselho para comprar
meias, pois já se sabe que na Itália. Amigos, sim, derivando outra vez,
procurando San Zeno e atravessando nossa primeira ponte com um sol
inesperado que tremia, frio e hesitante, nas colinas.
Quando voltamos ao hotel com planos de passeio noturno e jantar
suntuoso, brincando de ser turistas e de ter, finalmente, um longo tempo
sem escritórios nem obrigações, Javier me convidou para um drinque em
seu quarto e eu transformei sua cama num divã enquanto ele abria uma
garrafa de conhaque e se sentava na única poltrona para me mostrar livros
ingleses. Sentíamos a tarde passar sem pressa, falávamos de Verona, os
silêncios se abriam, necessários e belos como essas pausas numa música,
que também são música; estávamos bem, conseguíamos nos olhar. Em
algum momento eu teria de falar, tínhamos vindo a Verona sobretudo por
isso, mas ele não fazia perguntas, infantilmente espantado por me ver ali,
por me sentir tão próxima de novo, sentada em sua cama em posição de
ioga. Eu disse a ele, vamos esperar até amanhã e a gente conversa; ele
baixou a cabeça e disse sim, disse não se preocupe, temos tempo, deixe eu
ficar assim, estou tão bem. Por isso tudo foi bom voltar para o meu quarto
ao anoitecer, me perder por um bom tempo no chuveiro e olhar os telhados
e as colinas. Não pense que sou mais ingênua do que sou, aquela tarde tinha
sido o que Javier, inexplicavelmente entusiasta do boxe, chamaria de
primeiro round de estudo, a cortesia sigilosa dos que buscam ou temem os
flancos perigosos, o brusco ataque frontal, mas por trás da sensatez se
escondia muito passado sujo; agora só esperávamos, cada um na sua, cada
um no seu canto.
O dia seguinte veio depois de caminhar com frio e brincando, chianti e
mariscos, o rio Adige transbordando e gente cantando pelas praças. Ah,
Lamia, é difícil escrever frases legíveis quando o que eu quero reconstruir
para você — por que para você, alheia e sarcástica — já contém o final e o
final não passa de palavras misturadas e confusas, ciao, por exemplo, esse
jeito de cumprimentar ou se despedir indistintamente, ou botão, cachimbo,
rejeição, cinema soviético, último copo de uísque, insônia, palavras que me
dizem tudo mas que é preciso alisar, conectar com outras para que você
entenda, para que o discurso se estenda na página como as coisas se
estenderam no tempo daqueles dias. Botão, por exemplo, levei uma camisa
de Javier ao meu quarto para pregar um botão, ou cachimbo, veja, no dia
seguinte, depois de zanzarmos pelo mercado da Piazza delle Erbe,
aconteceu de ele me olhar com uma cara lisa e nova, me olhava assim como
os boxeadores devem se olhar no primeiro round, talvez convencido de que
tudo estava bem daquele jeito e que tudo continuaria sem alterações nessa
nova forma de nos olharmos e de andarmos juntos, e depois abriu um
grande sorriso misterioso e me disse que já estava sabendo, que tinha me
visto procurar na bolsa quando conversávamos em seu quarto, meu gesto
um pouco desolado ao descobrir que tinha deixado o cachimbo em
Genebra, o prazer de minhas tardes junto do fogo na cabana quando
ouvíamos Brahms, minha cômica enternecedora bela semelhança com
George Sand, meu gosto pelo tabaco holandês que ele detestava, fumante de
misturas escocesas, e assim não dava, era absolutamente necessário que
naquela tarde acendêssemos ao mesmo tempo nossos cachimbos, no quarto
dele ou no meu, e ele já tinha olhado as vitrines enquanto passeávamos e
sabia onde devíamos ir para que eu escolhesse o cachimbo que ele ia me dar
de presente, o pacote de tabaco horrível que era só mais uma de minhas
aberrações, sentir que era tão feliz me dizendo isso, brincando comigo para
que eu me comovesse e aceitasse seu presente, e então nós dois
sopesássemos demoradamente os cachimbos até encontrar a justa medida e
a justa cor. Voltamos a nos acomodar em seu quarto, os pequenos rituais se
repetiram ritmadamente, fumamos nos olhando com um ar apreciativo, cada
qual seu tabaco, mas uma mesma fumaça enchendo pouco a pouco o ar
enquanto ele se calava e sua mão vinha até meu joelho por um segundo e aí
sim, aí era hora de eu dizer o que ele já sabia, meio sem jeito, mas enfim,
dizer-lhe isso, pôr em palavras e pausas aquilo que ele devia saber de
alguma forma, mesmo pensando que nunca soubera de nada. Cale-se,
Lamia, cale essa palavra de troça que sinto vir a sua boca como uma bolha
ácida, não me deixe assim tão sozinha nessa hora em que baixei a cabeça e
ele compreendeu e pôs o pequeno abajur no chão para que só o fogo de
nossos cachimbos ardesse alternadamente quando, mesmo sem eu nomeá-
la, tudo nomeava você, meu cachimbo, minha voz meio queimada de
aflição, a simples e horrível definição do que sou perante quem me escutava
com os olhos fechados, talvez um pouco pálido, embora eu sempre tenha
achado a palidez um mero recurso de escritores românticos.
Dele eu só esperava aceitação e depois, talvez, que me dissesse que estava
bem, que não tinha nada a dizer e nada a fazer diante disso. Pode rir
triunfante, pode dar à sua perversa sapiência o curso que ela lhe pede agora.
Porque não foi assim que aconteceu, claro, só sua mão apertando meu
joelho de novo como uma aceitação dolorosa, mas depois vieram as
palavras enquanto eu me deixava escorregar na cama e me agarrava ao
último resto de silêncio que ele destruía com seu solilóquio apagado. Já em
Genebra, em outro contexto, eu o ouvira defender uma causa perdida, me
pedir que fosse dele porque depois, porque nada podia estar dito nem ser
verdade antes, porque a verdade começaria do outro lado, no final da
viagem dos corpos, de sua linguagem diferente. Agora era outra coisa,
agora ele sabia (mas ele já sabia, mesmo sem saber realmente, seu corpo
junto ao meu já sabia e essa era minha falta, minha mentira por omissão,
meu deixar que ele chegasse duas vezes nu à minha nua entrega para que
tudo isso terminasse em frio e vergonha de amanhecer entre lençóis inúteis),
agora ele já sabia por mim e não aceitava, levantava-se abruptamente e me
abraçava forte para beijar-me o pescoço e os cabelos, não importa que seja
assim, Mireille, não sei se é verdade a esse ponto ou apenas um fio de
navalha, um caminhar por um telhado de duas águas, talvez você queira me
libertar de minha própria culpa, de ter tido você nos braços e somente o
nada, o encontro impossível. Como lhe dizer que não, que talvez sim, como
lhe explicar e me explicar minha repulsa mais profunda apenas fingindo
timidez e espera, algo assim como um corpo de virgem contraído pelos
pavores de tanto atavismo (não ria, pantera de musgo, que me resta fazer
senão alinhar estas palavras?), e ao mesmo tempo lhe dizer que minha
repulsa não tem remédio, que jamais seu desejo abriria caminho em algo
que lhe era alheio, que só poderia ter sido seu ou de outra, seu ou de quem
quer que viesse até mim com um abraço de perfeita simetria, de seios contra
seios, de sexo fundo contra sexo fundo, de dedos buscando num espelho, de
bocas repetindo uma dupla e alternada sucção interminável.
Mas são tão estúpidos, Lamia, agora você pode cair na gargalhada que lhe
queima a garganta, que se pode esperar ou fazer diante de alguém que recua
sem recuar, que acata a impossibilidade e ao mesmo tempo se rebela em
vão? Eu sei, você está chamando isso de esperança, se estivesse comigo me
olharia, irônica, e perguntaria entre duas baforadas de Chesterfield se,
apesar de tudo, eu esperava de mim uma espécie de mutação, aquilo que ele
chamou de caminhar sobre um telhado de duas águas e então escorregar por
um instante para o seu lado; se ainda esperava, apesar de tantos anos de
confirmação solitária, uma margem suficiente para dar-me e dar uma
felicidade fogo de palha. O que posso lhe dizer? Que sim, talvez, que
naquele momento eu talvez tenha esperado, que ele estava lá para isso
mesmo, para que eu o esperasse, mas que para esperá-lo tinha de acontecer
outra coisa, uma recusa total da amizade e da cortesia e Verona by night e a
ponte Risorgimento, que sua mão pulasse de meu joelho para os meus seios,
afundasse entre minhas coxas, arrancasse minha roupa aos safanões, mas
ele, em contraste, era o emblema perfeito do respeito, seu desejo se
embalava em fumaça e palavras, naquele olhar de cachorro bonzinho, de
mansa esperança desesperada, e só me pedir para ir além, me pedir como o
cavalheiro que era, implorar para que eu desse o salto para trás do qual
poderia nascer, por fim, a alegria, que nesse mesmo instante me despisse e
me rendesse, ali naquela cama e naquele instante, que fosse sua pois só
assim saberíamos o que estava por vir, a margem oposta do verdadeiro
encontro. E não, Lamia, então não, se naquele instante eu não era capaz de
saber o que aconteceria se suas mãos e sua boca caíssem sobre mim como o
violador sobre sua presa, não seria eu a fazer o primeiro gesto da entrega,
minha mão não desceria até o fecho de minha calça, até o fecho do sutiã.
Minha negativa foi ouvida do fundo de um silêncio onde tudo parecia
afundar, a luz e os rostos e o tempo, ele acariciou de leve minha bochecha e
baixou a cabeça, disse que compreendia, que mais uma vez a culpa era dele,
desse seu jeito inevitável de pôr tudo a perder, outro conhaque, talvez, ir
para a rua como uma forma de esquecimento ou de recomeço Verona, de
recomeço pacto. Senti tanta pena dele, Lamia, nunca tinha sentido menos
desejo por ele, e por isso podia ter pena e ficar do lado dele e me olhar
pelos olhos dele e me odiar e me compadecer dele, vamos para a rua, Javier,
vamos aproveitar a última luz, admirar a improvável sacada de Julieta, falar
de Shakespeare, temos tanta coisa para conversar, na falta de música, vamos
trocar Brahms por um Campari nos cafezinhos do centro, ou então vamos
comprar seu guarda-chuva, suas meias, é tão divertido comprar meias em
Verona.
Pois é, pois é, são tão estúpidos, Lamia, passam ao lado da luz como
toupeiras. Agora que relembro, que reconstruo nosso diálogo com essa
precisão que o inferno me deu em forma de memória, sei que ele deixou
passar tudo que era importante, que o coitado estava tão desarmado tão
desfeito tão desolado que não pensou na única coisa que ainda podia fazer,
deixar-me cara a cara comigo mesma, obrigar-me ao escrutínio que em
outros planos fazemos diariamente diante de nosso espelho, arrancar-me as
máscaras do convencional (isso que você sempre criticou em mim, Lamia),
do medo de mim mesma e do que pode vir a acontecer, a aceitação dos
valores de mamãe e papai (“ah, pelo menos você sabe que eles e o
catecismo ditam seu comportamento”, outra vez você, é claro), e assim sem
lástima, como a forma mais extrema e mais bela da lástima ir me levando
ao grito e ao pranto, deixar-me nua sem precisar tirar minha roupa,
convidando-me para dar o salto, para a implosão e a vertigem, tirando-me a
máscara Mireille mulher para que ele e eu víssemos, por fim, a verdadeira
face da mulher Mireille, e então decidir, só que não mais segundo as regras
do jogo, dizer-lhe vá embora daqui agora mesmo ou sentir que tínhamos
tantos dias pela frente para mergulhar um no outro, para beber-nos e
acariciar-nos, os sexos e as bocas e cada poro e cada brincadeira e cada
espasmo e cada sonho enovelado e murmurante, aquele outro lado no qual
ele não era capaz de me lançar. O que teríamos perdido, o que teríamos
ganhado? A roleta da cama, ali onde eu continuava sentada, o vermelho ou
o negro, o amor de frente e de costas, o caminho dos dedos e das línguas, os
cheiros de marés e cabelos suados, as linguagens infindáveis da pele. Tudo
o que enumero sem conhecer realmente, Lamia, tudo o que você nunca quis
me dar e que eu não soube buscar em outras, varrida e destroçada pelas
antigas inépcias da juventude, a estúpida iniciação forçada num verão
interiorano, a reiterada decepção diante dessa ferida incurável na memória,
o medo de ceder ao desejo descoberto uma tarde na galeria de Lausanne, a
paralisia de toda vontade quando só se podia fazer uma coisa, dizer sim à
pulsão que me golpeava com sua onda verde diante daquela garota que
tomava chá no terraço, ir até ela e olhá-la, ir até ela e pôr a mão em seu
ombro e lhe dizer como você faz, Lamia, dizer simplesmente: desejo você,
venha.
Mas não, são estúpidos, Lamia, nessa hora em que ele poderia me abrir
como uma caixa com flores à espera, como a garrafa onde o vinho dorme,
mais uma vez ele se encolheu, submisso e cortês, entendendo (entendendo o
que não bastava entender, o que era preciso forçar com uma esplêndida
maré de injúrias e de beijos, não estou falando de sedução sexual, não estou
falando de carícias eróticas, você sabe muito bem), entendendo e ficando só
nesse entendimento, cachorro molhado, toupeira inane que só seria capaz de
voltar a escrever, algum dia, aquilo que não soube viver, como já havia feito
depois de Genebra, para seu especial deleite de fêmea de fêmeas, você
plenamente senhora de si mesma olhando para nós e rindo, impossível amor
meu triunfando mais uma vez sem saber num quarto de hotel em Verona,
cidade da Itália.
Assim escrito parece difícil, improvável, mas depois passamos bem
aquela tarde, éramos isso, não é?, e de noite houve a descoberta de uma
trattoria numa ruazinha, as pessoas amáveis e risonhas na hora da difícil
escolha entre lasagne e tortellini; posso lhe dizer que também houve um
concerto de árias de ópera onde discutimos vozes e estilos, um ônibus que
nos levou a uma cidadezinha próxima onde nos perdemos. Já era o quarto
dia, depois de uma viagem até Vicenza para visitar o teatro olímpico do
Palladio, e lá fui procurar uma bolsa e Javier me ajudou e no fim ele
escolheu por mim, me chamando de Hamlet de barraca de feira, e eu falei
que nunca conseguia me decidir rápido, e ele só me olhou, falávamos de
compras mas ele me olhou e não disse nada, escolheu por mim,
praticamente mandando a vendedora embrulhar a bolsa sem me dar mais
tempo para hesitações, e eu falei que ele estava me violando, falei bem
assim, Lamia, falei sem pensar e ele me olhou de novo e então entendi e
quis que ele esquecesse, era tão inútil e tão a sua cara dizer uma coisa
dessas, agradeci a ele por ter me tirado daquela loja que tinha um cheiro
apodrecido de couro, no dia seguinte fomos até Mântua ver os Giulio
Romano do Palácio do Chá, um almoço e outros Camparis, os jantares na
volta a Verona, os boas-noites cansados e sonolentos no corredor onde ele
me acompanhava até a porta de meu quarto e lá me dava um beijo ligeiro e
me agradecia, e voltava a seu quarto quase parede com parede, insônia com
insônia, sabe-se lá que consolos bastardos entre dois cigarros e a ressaca do
conhaque.
Não tinha acontecido nada que me desse o direito de voltar antes para
Genebra, embora nada mais tivesse sentido, já que o pacto parecia um barco
fazendo água, uma dupla comédia lamentavelmente amável na qual ríamos
de verdade, às vezes ficávamos contentes, às vezes distantemente juntos, de
braço dado por ruelas e pontes. Ele também devia querer voltar a Londres,
pois o balanço já estava feito e não nos dava o menor pretexto para um
encontro em outra Verona do futuro, embora talvez fôssemos falar disso
agora que éramos bons amigos, como pode ver, Lamia, talvez fosse
Amsterdam dentro de cinco meses ou Barcelona na primavera com todos os
Gaudí e os Joan Miró para irmos ver juntos. Mas não fizemos nada, nenhum
dos dois avançou a menor alusão ao futuro, e nos mantivemos, cortesmente,
naquele presente de pizza e vinhos e palácios, e veio o último dia, depois de
cachimbos e passeios e daquela tarde em que nos perdemos numa
cidadezinha próxima, e tivemos de andar duas horas por trilhas entre
bosques procurando um restaurante e um ponto de ônibus. As meias eram
esplêndidas, escolhidas por mim para que Javier não reincidisse em suas
tendências espalhafatosas, que lhe caíam tão mal, e o guarda-chuva serviu
para nos proteger do chuvisco rural e andamos sob o frio do anoitecer
cheirando a camurça molhada e a cigarros, amigos em Verona até a noite
em que ele pegaria seu trem às onze horas e eu ficaria no hotel até a manhã
seguinte. Na véspera Javier tinha sonhado comigo, mas não me disse nada,
só soube de seu sonho dois meses depois, quando me escreveu a Genebra e
me contou, quando me enviou aquela última carta que não respondi, como
você também não me responderá a esta, dentro da justa simetria necessária
que parece ser o código do inferno. Gentil como sempre, quer dizer,
estúpido como sempre, não me falou do sonho do último dia, que devia
estar lhe roendo o estômago, um surdo caranguejo mordendo-o enquanto
comíamos as delícias do último almoço na trattoria preferida. Acho que
nada teria mudado se naquele dia Javier tivesse me falado do sonho, quem
sabe sim, quem sabe eu acabaria lhe entregando meu corpo ressecado, como
uma esmola ou um resgate, só para que ele não fosse embora com a boca
amarga de pesadelo, com o sorriso fixo de quem tem de se mostrar cortês
até o último minuto e não macular o pacto de Verona com mais uma
tentativa inútil. Ah, Lamia, ontem à noite reli estas páginas porque lhe
escrevo fragmentariamente, passam dias e nuvens na cabana enquanto estou
lhe escrevendo este diário de improvável leitura, e então sou eu quem as
relê e isso significa me ver de outra maneira, enfrentar um espelho que me
mostra fria e decidida diante de uma tardia esperança impossível. Nunca o
traí, Lamia, nunca lhe dei uma máscara para beijar, mas agora sei que o
sonho dele de algum modo continha Genebra, o fato de eu não ter sido
capaz de lhe dizer a verdade quando seu desejo era mais forte que seu
instinto (words, words, words?), quando lhe cedi duas vezes meu corpo
para nada, para ouvi-lo chorar com a cara afundada em meu cabelo. Vou lhe
dizer, não era traição, era simplesmente a impossibilidade de lhe falar
naquele terreno, e também a vaga esperança de que talvez encontrássemos
algum contentamento, alguma harmonia, que talvez mais tarde outra
maneira de viver teria início, sem mutações espetaculares, sem conversão
aconselhável, então eu simplesmente poderia lhe dizer a verdade e confiar
que ele entenderia, que me amasse assim, que me aceitasse num futuro onde
talvez haveria Brahms e viagens e até prazer, por que não também prazer?
Veja, seu desconcerto impotente, seu duplo fiasco iria aparecer no sonho de
Verona agora que ele sabia de minha interminável inútil esperança de você,
de minha antagonista semelhante, de meu duplo cara a cara e boca a boca,
do amor que talvez você esteja dando à sua presa da vez aí onde estes
papéis lhe tenham chegado.
Quer ouvir o sonho? Vou contá-lo com as palavras dele, não vou copiá-las
de sua carta, mas de minha memória, onde giram como uma mosca
insuportável e voltam, e voltam. É ele quem conta: estávamos numa cama,
deitados em cima do cobertor e vestidos, era evidente que não tínhamos
feito amor, mas o tom trivial de Mireille me desconcertava, suas alusões
quase frívolas ao longo silêncio que houvera entre nós durante meses. Em
algum momento perguntei se ela não tinha lido minha carta enviada de
Londres bem depois do último encontro, do último desencontro em
Genebra. Sua resposta já era o pesadelo: não, não a lera (e não se importava
com isso, obviamente); claro que a carta tinha chegado, pois no escritório
lhe disseram que passasse para apanhá-la, uma carta registrada num
envelope alongado, mas ela não desceu para pegá-la, provavelmente ainda
estava lá. E enquanto me dizia isso com tranquila indiferença, a delícia de
ter me encontrado outra vez com ela, de estar deitado a seu lado sobre o
cobertor roxo ou vermelho começava a se confundir com o desconcerto
diante de sua maneira de falar comigo, seu displicente reconhecimento de
uma carta não buscada, não lida.
Enfim, um sonho, com os cortes arbitrários dessas montagens em que tudo
oscila sem motivo aparente, tesouras manipuladas por macacos mentais, e
de repente estávamos em Verona, no presente e em San Zeno, mas era uma
igreja à moda espanhola, um vasto pastiche com enormes esculturas
grotescas nos portais que atravessávamos para percorrer as naves, e sem
transição estávamos outra vez numa cama, mas agora na própria igreja,
atrás de um altar gigantesco ou talvez numa sacristia. Deitados na diagonal,
sem sapatos, Mireille num abandono satisfeito que não tinha nada a ver
comigo. E então mulheres embuçadas surgiam por uma porta estreita e nos
olhavam sem dizer nada, e se entreolhavam como se não acreditassem, e
nesse instante eu compreendia o sacrilégio de estar lá numa cama, queria
dizer isso a Mireille e quando ia fazê-lo dava de cara com seu rosto,
percebia que ela não só sabia como era ela quem tinha orquestrado o
sacrilégio, sua maneira de me olhar e de sorrir eram a prova de que fizera
isso deliberadamente, que assistia com um gozo inominável a descoberta
das mulheres, o alarme que já deviam ter dado. Só restava o frio horror do
pesadelo, chegar ao fundo do poço e medir a traição, a armadilha final.
Quase desnecessário que as mulheres fizessem sinais de cumplicidade a
Mireille, que ela risse e se levantasse da cama, caminhasse sem sapatos até
se reunir com elas e se perder atrás da porta. O resto, como sempre, era
embaraço e ridículo, eu tentando encontrar e calçar os sapatos, acho que o
paletó também, um energúmeno vociferando (o prefeito ou algo parecido),
gritando que eu tinha sido convidado para ir à cidade, mas que depois disso
era melhor nem aparecer na festa do clube porque ia ser mal recebido. Na
hora de acordar, surgiam ao mesmo tempo a necessidade raivosa de me
defender e também a outra coisa, única que me importava, o sentimento
indizível da traição, depois do qual nada mais restava a não ser aquele grito
de fera ferida que me arrancou do sonho.
Talvez eu faça mal em lhe contar isso que eu só soube muito tempo
depois, Lamia, mas talvez fosse necessário, outra carta do baralho, sei lá. O
último dia em Verona começou aprazivelmente com um longo passeio e um
almoço cheio de caprichos e gracejos, veio a tarde e nos instalamos no
quarto de Javier para os últimos cachimbos e uma renovada discussão sobre
Marguerite Yourcenar, eu estava contente, pode crer, por fim éramos
amigos e o pacto se cumpria, falamos de Ingmar Bergman e aí sim, acho
que me deixei levar por algo que você apreciaria infinitamente e em algum
momento (é curioso como isso me ficou na memória, embora Javier tenha
claramente disfarçado algo que devia atingi-lo como um tapa no meio da
cara) disse o que pensava de um ator norte-americano com o qual Liv
Ullmann iria para a cama em não sei qual dos filmes de Bergman, e me
escapou e falei, sei que fiz um gesto de nojo e o chamei de besta peluda,
disse as palavras que descreviam o macho diante da loira transparência de
Liv Ullmann e como, como, me diga como, Lamia, como ela permitia que
aquele fauno untado de pelos a montasse, me diga como era possível
suportá-lo, e Javier ouviu e um cigarro, sim, o relato de outros filmes de
Bergman, Vergonha, claro, e sobretudo O sétimo selo, a volta ao diálogo
agora sem pelos, o escolho mal transposto, eu iria descansar um pouco em
meu quarto e nos encontraríamos para a última ceia (já está escrito, você já
deve ter sorrido, vamos deixar assim) antes que ele fosse à estação para seu
trem das onze.
Aqui há uma lacuna, Lamia, não sei bem do que estávamos falando,
anoitecera e as lâmpadas brincavam com os halos da fumaça. Só me lembro
de gestos e movimentos, sei que estávamos um pouco distantes, como
sempre antes de uma despedida, sei também que não tínhamos falado sobre
um novo encontro, que isso esperava o último instante, se é que realmente
esperava. Então Javier me viu levantar para voltar a meu quarto e veio até
mim, me abraçou enquanto afundava a cara em meu ombro e beijava meu
cabelo, me apertava com dureza e era um murmúrio de súplica, as palavras
e os beijos numa só súplica, não podia evitar, não podia não me amar, não
podia me deixar ir embora assim novamente. Era mais forte que ele, pela
segunda vez rompia o pacto e destruía tudo, se é que esse tudo ainda tinha
algum sentido, não podia aceitar que eu o rejeitasse como o estava
rejeitando, sem lhe dizer nada mas congelando sob suas mãos, congelando-
me Liv Ullmann, sentindo-o tremer como tremem os cachorros molhados,
como os homens quando suas carícias apodrecem sobre uma pele que os
ignora. Não tive pena dele como tenho agora, enquanto lhe escrevo, pobre
Javier, pobre cachorro molhado, podíamos ter sido amigos, podíamos
Amsterdam ou Barcelona ou uma vez mais os quintetos de Brahms na
cabana, e você precisava estragar tudo de novo entre balbucios de uma
esperança já ignóbil, deixando sua saliva em meu cabelo, a marca de seus
dedos nas costas.
Quase esqueço que estou escrevendo para você, Lamia, continuo vendo
seu rosto mesmo sem querer olhá-lo, mas quando abri minha porta vi que
não tinha me seguido naqueles poucos passos, que estava imóvel na
moldura de sua porta, pobre estátua de si mesmo, espectador do castelo de
cartas caindo numa chuva de traças.
Já sei o que você gostaria de me perguntar, o que fiz quando fiquei
sozinha. Fui ao cinema, querida, depois de uma indispensável ducha fui ao
cinema, na falta de coisa melhor para fazer, e passei diante da porta de
Javier e desci as escadas e fui ao cinema ver um filme soviético, esse foi
meu último passeio dentro do pacto de Verona, um filme com caçadores na
zona boreal, heroísmo e abnegação e, por sorte, nada, mas absolutamente
nada de amor, Lamia, duas horas de belas paisagens e tundras geladas e
gente cheia de excelentes sentimentos. Voltei ao hotel às oito da noite, não
tinha fome, não tinha nada, encontrei um bilhete de Javier sob minha porta,
impossível ir embora assim, estava no bar esperando a hora do trem, juro
que não vou dizer uma só palavra que possa chateá-la, mas venha, Mireille,
não posso ir embora desse jeito. E eu desci, claro, e não era um espetáculo
bonito ele ali com a mala debaixo da mesa e um segundo ou terceiro uísque
na mão, puxou uma poltrona para mim e estava bem tranquilo e sorria e
quis saber o que eu tinha feito e eu contei do filme soviético, que ele já vira
em Londres, um bom assunto para quinze minutos de cultura estética e
política, um par de cigarros e outro trago. Dei a ele todo o tempo
necessário, mas ainda faltava mais de uma hora antes de ir para a estação,
eu disse que estava cansada e ia dormir. Não falamos de outro encontro, não
falamos de nada que eu hoje consiga lembrar, ele se levantou para me dar
um abraço e nos beijamos no rosto, deixou que eu fosse sozinha até a
escada mas ainda ouvi sua voz, só meu nome, como quem lança uma
garrafa ao mar. Eu me virei e disse ciao.
Dois meses depois chegou a carta dele que não respondi, é curioso pensar
agora que em seu sonho de Verona havia uma carta que eu nem sequer
havia lido. Dá na mesma, no fim das contas, claro que a li e que me doeu,
era outra vez a tentativa inútil, o longo uivo do cão diante da lua, respondê-
la teria aberto outro interregno, outra Verona e outro ciao. Sabe, uma noite
o telefone da cabana tocou, na hora que, em outros tempos, ele me ligava de
Londres. Mas eu soube pelo som que era uma chamada de longa distância,
disse o “alô” ritual, repeti, você sabe o que a gente sente quando alguém
escuta e se cala do outro lado da linha, é como uma respiração presente, um
contato físico, mas sei lá, talvez a gente escute a própria respiração, do
outro lado desligaram, ninguém ligou de novo. Ninguém ligou de novo,
nem você, só me ligam para nada, há tantos amigos em Genebra, tantos
motivos idiotas para ligar.
E se no fim o autor desta carta fosse Javier, Lamia? De brincadeira, por
resgate, por um último patetismo miserável, prevendo que você não a lerá,
que não tem nada a ver com ela, que a moeda lhe é indiferente, motivo
apenas para um sorriso irônico. Quem pode dizer isso, Lamia? Nem você
nem eu, e ele também não vai dizer, ele tampouco. Parece haver um ciao
triplo em tudo isso, cada qual voltará a seus jogos particulares, ele com
Eileen na fria rotina londrina, você com sua presa da vez e eu ouvindo
Brahms perto de um fogo que não substitui nada, que é só um fogo, a cinza
que avança, que vejo como neve entre as brasas, no anoitecer de minha
cabana a sós.
Paris, 1977
Potássio em diminuição13
É claro que ninguém dá importância a isso, a não ser d. Fulvia,
principalmente porque aos sábados há uma enormidade de trabalho e
meio bairro quer que lhes aviem as receitas, vendam pasta de dente e
remédio para calos, sem falar nas crianças machucadas e nos que vêm pedir
que lhes tirem um cisco do olho ou lhes deem uma injeção de antibiótico,
de modo que, se realmente há uma diminuição do potássio na farmácia do
seu Jaime, isso não é coisa que ele ou sua principal funcionária percebam
com suficiente clareza. Mesmo assim, d. Fulvia cisma com o tal do
potássio, justo quando duas freiras entram em busca de algodão e de
bicarbonato de sódio e uma senhora meio descabelada teima em percorrer a
prateleira inteira de cremes de beleza, dá para ver que seu Jaime não está lá
para perder tempo e d. Fulvia, consideravelmente aflita, se retira para os
fundos e se pergunta se isso acontece em todas as farmácias, se os
farmacêuticos e suas principais funcionárias também são insensíveis à
diminuição do potássio.
O problema é que o potássio continua diminuindo na farmácia e já são
onze e meia, de modo que o fechamento do comércio a partir do meio-dia
tornará impossível qualquer tentativa de restabelecer o equilíbrio. D. Fulvia
se anima a voltar à carga e dizer isso para seu Jaime, que a observa como se
ela fosse uma iguana e não só a manda calar-se mas também que suba às
estantes dos colagogos para descer o tubo de Chofitol que uma senhora de
ar cadavérico pede com paixão e receita médica. Parece mentira, pensa d.
Fulvia, encarapitada numa escada meio tempestuosa, ou não estão
percebendo a situação ou não se importam porra nenhuma, com o perdão da
Virgem Santa.
Assim chega o meio-dia e em toda parte se ouve o ruído das cortinas
metálicas guilhotinando a semana, ou seja, o corpo dos dias úteis fica
estendido em plena rua e a cabeça do sábado e do domingo rola para dentro
das lojas e das casas, e assim d. Fulvia tem de ir para a cozinha preparar o
almoço do seu Jaime, que não à toa é seu marido, tudo isso depois de varrer
a farmácia, segundo as disposições municipais, mas dessa vez a diminuição
do potássio a perturba de tal maneira que ela só consegue dizer para a
funcionária principal algo como “não fique tão aflita, quem sabe tudo se
ajeita”, frase que a funcionária registra com uma indisfarçável tendência de
rir na cara dela antes de tirar o avental e se despedir até segunda-feira.
Parece que todos são do contra, pensa d. Fulvia, não querem entender, por
que eu insisto nisso?, me diga. Mas ninguém diz nada porque seu Jaime está
diante de um cinzano com fernet e nem precisa olhar para ele para saber
que não está nem aí para o potássio se aos sábados tem polenta com
passarinhos e uma garrafa de nebiolo.
“Teria que consultar a lista das farmácias de plantão”, pensa d. Fulvia,
mexendo a polenta que já está na etapa tumultuosa do plop, e não dá para se
descuidar porque isso sempre acaba lá no teto, “talvez a gente encontre
alguma com potássio sobrando e então seria só uma questão de se entender
com os colegas.” Resolve dizer isso para seu Jaime, mas antes que consiga
proferir a primeira palavra lhe cai em cima um “traga o salame pra eu ir
fazendo uma boquinha”, vocábulos que a atropelam e a empurram faca e
prato raso e rodelinhas, pois seu Jaime gosta dele cortado bem fininho.
Desanimada, d. Fulvia senta-se à mesa e descasca uma fatia de salame e a
passeia por cima da língua antes de mordê-la, e por fim a impele para o
processo mastigatório com a ajuda de um pão com manteiga. “Foi uma boa
manhã”, diz seu Jaime, imerso na seção de futebol do jornal. “É, mas”,
interjeiciona d. Fulvia, sem passar disso porque a polenta exige ingresso
imediato na travessa e todos os cuidados conexos, ainda que cada vez lhe
pareça mais imprescindível dizer isso a seu Jaime, mas e daí, é
imprescindível sim, mas e daí, a seu Jaime mas sim, querido, aqui está a
salada. Vão me matar de angústia, pensa d. Fulvia, na segunda-feira às nove
da manhã não sei o que vai acontecer quando abrirmos, cada vez tem menos
potássio, isso é certeza, precisamos fazer alguma coisa antes. O problema é
que tudo fica ali como os pratos vazios ou o primeiro bocejo do seu Jaime,
no fundo a vida é isso, pensa d. Fulvia, a gente vai até um limite e então
nada, claro que o mais provável é isso, que não aconteça nada, mas tem o
potássio, está diminuindo e eles ainda com as balas de goma e o laxante pra
menina, não dá pra continuar aceitando que não aceitem, que subam nas
estantes e leiam as receitas como se o potássio não tivesse diminuído,
conversando com os clientes sempre loquazes nas farmácias porque se
sentem meio como no médico, o cheiro do eucalipto lhes dá confiança, e os
aventais brancos, e os frascos coloridos. Tem pêssego, diz d. Fulvia, se
quiser descasco um pra você, mas antes a gente teria que. Traga um bom
café à italiana, corta seu Jaime, que já está diante da TV porque a partida
começa às vinte em ponto.
Então vai chegar a segunda-feira às nove, diz consigo d. Fulvia moendo o
café, eu mesma vou levantar a cortina metálica e serei a primeira a ver a rua
lá de dentro, estarei lá pra receber a semana em plena cara, lá na porta
vendo a filha dos Romani chegando ou o gordo do açougue que toda
segunda-feira amanhece com indigestão e precisa de algo pra assentar os
raviólis do domingo, a funcionária principal começará a explicar à srta.
Grossi ou a qualquer outra senhorita que a pílula não é de brincadeira, seu
Jaime aparecerá com um jaleco engomado e dirá, como sempre, mais uma
semaninha pela frente e cinquenta e duas que fazem o ano, frase que sempre
deixa a principal funcionária exultante, repetição exata de toda segunda-
feira às nove horas, salvo pelo potássio, porque com certeza esta segunda
não será como as outras, mas quem se importa com isso?, e então, então
tudo pode ser bem diferente, pensa d. Fulvia, secando uma lágrima e
coando o café, acho que finalmente vou conseguir dizer pra ele, mas e daí, a
questão é que eu não entendo o que preciso dizer, não entendo a diminuição
do potássio, simplesmente não entendo o potássio, não entendo por que não
entendo que talvez isso não seja importante, não entendo que tudo isso caia
só em cima de mim, que me faça tanto mal, aqui sozinha, aqui com o café
que vai esfriar se eu não me apresso. Cabrera meteu um gol de bate-pronto,
diz seu Jaime, que sujeito formidável, tchê.
Peripécias da água14
B
asta conhecê-la um pouco para entender que a água está cansada
de ser um líquido. A prova é que assim que surge uma
oportunidade, ela se transforma em gelo ou em vapor, mas isso
também não a satisfaz; o vapor se perde em divagações absurdas e
o gelo é desajeitado e tosco, planta-se onde pode e em geral só serve para
dar vivacidade aos pinguins e aos gins-tônicas. Por isso a água escolhe
delicadamente a neve, que a alenta em sua mais secreta esperança, a de
fixar para si mesma as formas de tudo o que não é água, as casas, os prados,
as montanhas, as árvores.
Acho que devíamos ajudar a neve em sua reiterada mas efêmera batalha, e
que para isso seria necessário escolher uma árvore nevada, um esqueleto
negro sobre cujos braços incontáveis vem se estabelecer a branca réplica
perfeita. Não é fácil, mas se prevendo a nevada serrássemos o tronco de
forma que o tronco se mantivesse de pé, sem saber que já está morto, como
o mandarim memoravelmente decapitado por um carrasco sutil, bastaria
esperar que a neve repetisse a árvore em todos os seus detalhes e então
retirá-la para um lado sem a menor sacudida, num leve e perfeito
deslocamento.
Não creio que a gravidade desmanchasse o alvo castelo de cartas, tudo
aconteceria como numa suspensão do vulgar e do rotineiro; num tempo
indefinível, uma árvore de neve sustentaria o sonho realizado da água.
Talvez coubesse a um pássaro destruí-la, ou o primeiro sol da manhã a
empurrasse para o nada com um dedo morno. São experiências que
deveríamos tentar para que a água fique contente e volte a nos encher de
jarras e de copos com aquela alegria ofegante que por ora guarda apenas
para as crianças e os pardais.
Em Matilde
À
s vezes as pessoas não entendem esse jeito de Matilde falar, mas
para mim é muito clara.
— O escritório vem às nove — ela me diz — e por isso às oito e
meia meu apartamento sai e a escada me escorrega rápido porque
com os problemas do transporte não é fácil que o escritório chegue a tempo.
O ônibus, por exemplo, quase sempre o ar está vazio na esquina, a rua passa
logo porque eu a ajudo puxando-a pra trás com os sapatos; por isso o tempo
não tem que me esperar, sempre chego primeiro. No fim, o café da manhã
entra na fila pra que o ônibus abra a boca, dá pra ver que ele gosta de nos
saborear até o fim. Como no escritório, com aquela língua quadrada que vai
subindo os bocados até o segundo e o terceiro andar.
— Ah — digo eu, que sou tão eloquente.
— Claro — diz Matilde —, os livros de contabilidade são o pior, quando
percebo já saíram da gaveta, a caneta pula na minha mão e os números se
apressam a ficar debaixo dela, por mais devagar que eu escreva sempre
estão lá e a caneta nunca escapa deles. Vou lhe contar, tudo isso me cansa
bastante, de maneira que sempre acabo deixando que o elevador me pegue
(e juro que não sou a única, muito pelo contrário), e vou com pressa até a
noite, que às vezes está muito longe e não quer vir. Ainda bem que no café
da esquina sempre tem algum sanduíche que quer se jogar na minha mão,
isso me dá forças pra não pensar que depois eu vou ser o sanduíche do
ônibus. Quando a sala da minha casa termina de me embrulhar e a roupa vai
pros cabides e gavetas pra dar lugar ao roupão de veludo que há tanto
tempo deve estar me esperando, coitado, descubro que o jantar está dizendo
alguma coisa ao meu marido que se deixou capturar pelo sofá e pelas
notícias que saem como bandos de abutres do jornal. Em todo caso, o arroz
ou a carne tomaram a dianteira e não é mais preciso deixar que entrem nas
caçarolas, até que os pratos decidem se apoderar de tudo, embora pouco
lhes dure porque a comida sempre acaba subindo nas nossas bocas, que
nesse meio-tempo se esvaziaram das palavras atraídas pelos ouvidos.
— É uma jornada e tanto — digo.
Matilde assente; ela é tão boa que o assentimento não tem nenhuma
dificuldade em habitá-la, de ser feliz enquanto está em Matilde.
A fé no Terceiro Mundo
À
À
bomba instalada no caminhão começam a inflar o templo
enquanto os índios das redondezas os contemplam de longe e um
tanto estupefatos, porque o templo que no início parecia uma
bexiga amassada começa a se levantar, a se arredondar, a se
estufar, no alto aparecem três janelinhas de plástico colorido que vêm a ser
os vitrais do templo, e por fim salta uma cruz no lugar mais alto e pronto,
plop, hosana, soa a buzina do caminhão na falta de sino, os índios se
aproximam assombrados e respeitosos e o padre Duncan os incita a entrar
enquanto o padre Luis e o padre Heriberto os empurram assim que o padre
Heriberto instala a mesinha do altar e dois ou três enfeites com muitas cores
que, portanto, devem ser extremamente santos, e o padre Duncan canta um
cântico que os índios acham sumamente parecido com os balidos de suas
cabras quando um puma anda por perto, e tudo isso acontece dentro de uma
atmosfera sumamente mística e de uma nuvem de mosquitos atraídos pela
novidade do templo, e dura até que um indiozinho entediado começa a
brincar com a parede do templo, quer dizer, crava-lhe um ferro só para ver
como é que aquilo se infla e obtém exatamente o contrário, o templo se
desinfla precipitadamente e na confusão todo mundo se amontoa
procurando a saída e o templo os envolve, esmaga-os, abriga-os sem
machucá-los, claro, mas criando uma confusão nem um pouco propícia à
doutrina, principalmente quando os índios têm a grande oportunidade de
escutar a chuva de putas merdas e de caralhos que os padres Heriberto e
Luis distribuem enquanto se debatem sob o templo procurando a saída.
Sequências
P
arou de ler o relato no ponto em que um personagem parava de ler o
relato no lugar onde um personagem parava de ler e se dirigia à casa
onde alguém que o esperava tinha começado a ler um relato para
matar o tempo e chegava ao lugar onde um personagem parava de
ler e se dirigia à casa onde alguém que o esperava começara a ler um relato
para matar o tempo.
11. Triunfo, Madri, n. 418, 6 de junho de 1970.
12. El País (Babelia), Madri, 3 de novembro de 2007.
13. Unomásuno, México, 8 de dezembro de 1980.
14. Unomásuno, México, 11 de abril de 1981.
Alguns aspectos do conto1
Julio Cortázar
Conto: introdução6
Jaime Alazraki
Para concluir:
No meu caso, a suspeita de outra ordem mais secreta e menos comunicável, e a fecunda descoberta
de Alfred Jarry, para quem o verdadeiro estudo da realidade não residia nas leis, e sim nas exceções
a essas leis, foram alguns dos princípios orientadores da minha busca pessoal por uma literatura à
margem de todo realismo demasiado ingênuo.17
Motivado por essa conclusão, Borges encontra a rota que leva ao universo
de sua ficção: “Admitamos o que todos os realistas admitem: o caráter
alucinatório do mundo. Façamos o que nenhum idealista fez: busquemos
irrealidades que confirmem esse caráter”.21 Borges encontra essas
irrealidades não no âmbito do sobrenatural ou do maravilhoso, mas nos
símbolos e sistemas que definem nossa realidade, em filosofias e teologias
que de alguma maneira constituem a medula de nossa cultura. Daí as
inumeráveis referências em seus contos a autores e livros, a teorias e
doutrinas, e daí sua constante insistência em que tudo o que ele escreveu já
estava escrito. Em 1946, Borges publicou em Los Anales de Buenos Aires,
no mesmo número em que apareceu o primeiro conto de Cortázar, um
fragmento do livro de Schopenhauer, Parerga und Paralipomena, que
levava como título “Fantasia metafísica” e insertava a seguinte nota, na qual
seu estilo é facilmente reconhecível:
Se concordarmos em considerar a filosofia como um ramo da literatura fantástica (o mais vasto, já
que sua matéria é o universo; o mais dramático, já que nós mesmos somos o tema de suas
revelações), é preciso reconhecer que nem Wells nem Kafka, nem os egípcios das Mil e uma noites
jamais urdiram uma ideia mais assombrosa que a deste tratado.22
Já em seus contos é possível detectar uma prosa que sem maiores rupturas
e solavancos alcança a agilidade e a precisão de uma linguagem purgada de
lastro retórico e livre “dessas múmias de ataduras hispânicas” que
transformaram o espanhol em museu, quando não em mausoléu: “Nós
somos forçados”, escreve em um ensaio dedicado a esse problema,
a criar uma linguagem que primeiro deixe para trás dom Ramiro e outras múmias de ataduras
hispânicas, que volte a descobrir o espanhol que originou Quevedo ou Cervantes e que nos deu
Martín Fierro e Recuerdos de provincia, que saiba inventar, que saiba abrir a porta para ir brincar,
que saiba matar a torto e a direito, como toda linguagem realmente viva, e sobretudo que por fim se
liberte do journalese e do translatese, para que essa liquidação geral de inópias e facilidades nos
leve algum dia a um estilo nascido de uma lenta e árdua meditação da nossa realidade e nossa
palavra.29
Dessa tensão entre duas forças opostas — uma que nasce do plano
temporal, outra que o nega; uma que esgota o espaço na geometria, outra
que o transcende — deriva o que se poderia definir como a espinha dorsal
de sua ficção neofantástica. Um plano apresenta a versão realista e natural
dos fatos narrativos e um segundo plano transmite, com idêntica
naturalidade, uma versão sobrenatural desses mesmos fatos. A narrativa se
apoia com idêntica certeza tanto na dimensão histórica como na dimensão
fantástica: uma e outra proporcionam os trilhos parelhos pelos quais o relato
desliza para um destino que não é nem o fantástico puro nem o histórico-
realista, mas apenas um interstício por meio do qual o escritor se assoma a
suas entrevisões, que, em última análise, são o verdadeiro destino para o
qual o conto se encaminha. A mendiga que o personagem de “Distante”
encontra no centro de uma ponte em Budapeste, os ruídos que expulsam os
dois irmãos de “Casa tomada”, os coelhos que o narrador de “Carta a uma
senhorita em Paris” vomita, o tigre que passeia tranquilamente pelos
cômodos de uma casa de classe média em “Bestiário”, o personagem morto
porém mais vivo que os vivos em “Cartas de mamãe”, o sonhador que se
transforma num sonho de seu próprio sonho em “A noite de barriga para
cima”, o leitor que entra na ficção que está lendo para nela morrer em
“Continuidade dos parques” são alguns exemplos memoráveis desse
intercâmbio em que o código realista cede a um código que já não responde
às nossas categorias ordinárias de tempo e espaço. Nesses contos, busca-se
o reverso de nossa realidade fenomenal, uma ordem escandalosamente em
conflito com a ordem construída por nosso pensamento lógico. O hábito nos
acostumou a chamar essas incoerências de narrativas fantásticas, mas o fato
fantástico nesses contos não se propõe, como se propunha no século XIX, a
assaltar e aterrorizar o leitor. Desde o começo mesmo do relato, a escala
realista se justapõe à escala fantástica, cada uma governada por uma chave
distinta, como em qualquer partitura em que a música é o resultado da
coordenação de suas claves. No primeiro parágrafo de “Axolotes”, lê-se:
“Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotes. Ia vê-los no
aquário do Jardin des Plantes e passava horas olhando para eles, observando
sua imobilidade, seus obscuros movimentos. Agora sou um axolote”. Nesse
conto, como em quase toda a ficção neofantástica, não há um processo
gradual de apresentação da realidade para enfim abrir nela uma fissura de
irrealidade. Em contraste com a narrativa fantástica do século XIX, em que
o texto se move do familiar e natural ao não familiar e sobrenatural, como
uma viagem através de um território conhecido que gradativamente conduz
a um território desconhecido e assombroso, o escritor do neofantástico
outorga igual validade e verossimilhança às duas ordens, e sem nenhuma
dificuldade se move com igual liberdade e tranquilidade em ambas. Essa
atitude imparcial é, em si mesma, uma profissão de fé. O suposto, o não
expressado, declara que o nível fantástico é tão real como o nível realista, e
que ambos gozam do mesmo direito à cidadania dentro da narrativa. Se um
deles produz no leitor um sentimento irreal ou surreal (que
convencionalmente chamamos de “fantástico”), é porque em nossa vida
diária procedemos com noções lógicas semelhantes às que governam o
código realista da narrativa.
O escritor neofantástico, por outro lado, ignora essas distinções e se
aproxima dos dois níveis com o mesmo sentimento de realidade (ou de
irrealidade, se assim se preferir). O leitor percebe, no entanto, que o axolote
de Cortázar é uma metáfora (uma metáfora, e não um símbolo, é preciso
insistir) que comunica sentidos incomunicáveis por meio das
conceitualizações a que nos obrigam a linguagem e nossa compreensão
lógica da realidade, uma metáfora que procura expressar mensagens
inexprimíveis por meio do código realista. Esta metáfora (coelhos, tigre,
ruídos, mendiga, axolotes etc.) provê uma estrutura capaz de novos
referentes, mesmo quando as referências às quais alude não possam ser
estabelecidas de imediato; ou, utilizando a terminologia cunhada por I. A.
Richards, os veículos com que essas metáforas nos confrontam apontam
para teores não formulados, inéditos. Sabemos que se trata de veículos
metafóricos porque sugerem sentidos que excedem sua acepção literal, mas
cabe ao leitor perceber esses sentidos e definir o teor significado na
metáfora.
Quando perguntaram a Cortázar sobre os sentidos implícitos nas
metáforas de seus contos, ele respondeu: “Eu sei tanto quanto o leitor”. A
resposta não é um subterfúgio. Uma outra vez, sobre isso, ele disse: “[…] a
grande maioria dos meus contos foi escrita — como dizê-lo? —
independentemente da minha vontade, por cima ou por baixo da minha
consciência, como se eu não fosse mais que um meio pelo qual passava e se
manifestava uma força alheia”.32 E podemos acreditar nele: algumas das
histórias nasceram como sonhos ou pesadelos. Cortázar explica:
Muitos dos meus contos fantásticos nasceram em um território onírico, e eu tive a sorte de, em
alguns casos, o censor da consciência não ter sido impiedoso, me permitindo registrar com palavras
o conteúdo dos meus sonhos… Pode-se dizer que o fantástico neles contido vem de regiões
arquetípicas que de uma ou outra maneira todos nós compartilhamos, e que no ato de ler esses
contos o leitor é testemunha ou descobre algo de si mesmo. Comprovei muitas vezes esse
fenômeno com um velho conto meu chamado “Casa tomada”, que eu sonhei com todos os detalhes
que figuram no texto e que escrevi assim que pulei da cama, ainda envolto na terrível náusea de seu
desfecho.33
1. Publicado originalmente em Julio Cortázar, Valise de cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. Tradução de Davi Arrigucci
Jr.
2. Publicado originalmente em Julio Cortázar, Valise de cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. Tradução de Davi Arrigucci
Jr.
3. Novela, em português. (N. T.)
4. Respectivamente, de Edgar Allan Poe; Katherine Mansfield; Jorge Luis Borges; Ernest Hemingway. (N. T.)
5. Referência à anedota de Chuang Tzu, filósofo chinês do século III a.C., incluída por Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e
Adolfo Bioy Casares na sua famosa Antología de la literatura fantástica (Buenos Aires: Sudamericana, 1940), p. 240. A anedota é
a seguinte: “Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar, ignorava se era Tzu que havia sonhado que era uma
borboleta ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu”. (N. T.)
6. Publicado originalmente em Jaime Alazraki, Hacia Cortázar: Aproximaciones a su obra. Barcelona: Anthropos, 1994. (Col.
Contemporáneos, Literatura y Teoria Literária.) Tradução de Livia Deorsola.
7. C. G. Bjurström, “Entretien”, La Quinzaine Littéraire, Paris, p. 16, 1-31 ago. 1970.
8. Ver Haydee Flesca, Antología de la literatura fantástica argentina (Buenos Aires: Kapelusz, 1970), v. I.
9. Rita Guibert, Siete voces. Cidade do México: Novaro, 1974, p. 127.
10. Luis Harss, “Julio Cortázar, o la cachetada metafísica”. In: Id., Los nuestros. Buenos Aires: Sudamericana, 1968, p. 264.
11. Julio Cortázar, La vuelta al día en ochenta mundos. Cidade do México: Siglo XXI, 1967, p. 94. Sobre esse aspecto das
narrativas curtas de Cortázar, veja nosso ensaio “Dos soluciones estilísticas para el tema del compadre en Borges y Cortázar”, em
Jaime Alazraki, La prosa narrativa de J. L. Borges. 3. ed. Madri: Gredos, 1983, pp. 302-22.
12. Julio Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, p. 514 deste volume. Publicado originalmente em Id., Valise de cronópio. 2. ed.
São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 148.
13. C. G. Bjurström, op. cit., p. 16.
14. Julio Cortázar, “The Present State of Fiction in Latin America”. In: J. ALAZRAKI E IVAR IVASK (Orgs.), The Final Island:
The Fiction of Julio Cortázar. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1978, pp. 28-30.
15. Para uma definição do fantástico, ver Roger Caillois, Imágenes, imágenes… (Buenos Aires: Sudamericana, 1970); Louis Vax,
L’Art et la littérature fantastique (Paris: PUF, 1960); e Peter Pensoldt, The Supernatural in Literature (Nova York: Humanities
Press, 1965).
16. Ver nosso artigo “Cortázar: Entre el surrealismo y la literatura fantástica”, El Urogallo, Madri, V. VI, n. 35-36, pp. 103-7, nov.
dez. 1975, ou em sua versão em inglês, “The Fantastic as Surrealist Metaphors in Cortázar’s Short Ficción”, Dada/Surrealism,
Nova York, n. 5, pp. 28-33, 1975.
17. Julio Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, p. 514 deste volume. Publicado originalmente em: Id., Valise de cronópio, op. cit.,
p. 148.
18. Veja Claude Lévi-Strauss, Arte, lenguaje, etnología. Cidade do México: Siglo XXI, 1968, p. 132.
19. Jorge Luis Borges, Otras inquisiciones. 5. ed. Madri: Alianza, 1985, p. 156.
20. Ernest Cassier, Language and Myth. Nova York: Dover, 1953, pp. 7-8.
21. Jorge Luis Borges, op. cit., p. 156.
22. Arthur Schopenhauer, “Fantasía metafísica”, Los Anales de Buenos Aires, ANO I, N. 11, P. 54, DEZ. 1946.
23. Luis Harss, op. cit., p. 288.
24. Julio Cortázar, “Irracionalismo y eficacia”, Realidad, n. 6, p. 253, set.-dez. 1949.
25. Id., “Muerte de Antonin Artaud”, Sur, n. 163, p. 80, maio 1948.
26. Ibid.
27. Julio Cortázar, O jogo da amarelinha. Trad. de Eric Nepomuceno. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 416.
28. Luis Harss, op. cit., pp. 285-6.
29. Julio Cortázar, La vuelta al día en ochenta mundos, op. cit., p. 100.
30. Luis Harss, op. cit., p. 268.
31. Ibid., p. 299.
32. Julio Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, p. 518 deste volume. Publicado originalmente em: Id., Valise de cronópio, op. cit.,
p. 154.
33. Id., “The Present State of Fiction in Latin America”, op. cit., p. 30.
34. Heinz Politzer, Franz Kafka: Parable and Paradox. Ithaca: Cornell University Press, 1966, pp. 17, 21.
35. Ibid., p. 22.
36. Ibid., p. 15.
37. Veja Juan José Sebreli, Buenos Aires, vida cotidiana y alienación (Buenos Aires: Siglo Veinte, 1965), p. 104; e David Viñas,
Literatura argentina y realidad política: De Sarmiento a Cortázar (Buenos Aires: Siglo Veinte, 1970), p. 119. Em maior ou menor
grau, essa tese encontrou eco em uma boa parte dos comentaristas do conto.
38. Jean L. Andreu, “Pour Une Lecture de ‘Casa tomada’ de Julio Cortázar”, Caravelle: Cahiers du Monde Hispanique et Luso-
Brésilien, n. 10, pp. 62-3, 1968.
39. Ibid., p. 63.
40. Ibid.
41. Julio Cortázar, Cuentos. Seleção e prólogo de Antón Arrufat. Havana: Casa de las Américas, 1964, p. XVI.
42. Ernest Cassirer, The Problem of Knowledge: Philosophy, Science, and History since Hegel. New Haven: Yale University
Press, 1950, pp. 71-3.
Sobre o autor
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
"A verdade, a triste ou bela verdade, é que cada vez gosto menos de
romances, da arte romanesca tal como é praticada nestes tempos. O que
estou escrevendo agora será (se algum dia eu terminar) algo assim como um
antirromance, uma tentativa de romper os moldes em que esse gênero está
petrificado", escreveu Julio Cortázar numa carta de 1959, quando iniciava a
escrita do que viria a ser O jogo da amarelinha. Publicado em 1963, o
relato de amor entre um intelectual argentino no exílio, Horacio Oliveira, e
uma misteriosa uruguaia, a Maga, ao acaso das ruas e das pontes de Paris, é
um marco da literatura do século vinte. A nova edição brasileira traz uma
seleção de cartas do autor sobre a escrita e a recepção de O jogo da
amarelinha, tradução de Eric Nepomuceno, projeto gráfico de Richard
McGuire e textos de Haroldo de Campos, Mario Vargas Llosa, Julio Ortega
e Davi Arrigucci Jr.
No fim dos anos 1980, Cacaso — mais conhecido por sua produção como
poeta, ensaísta e letrista — fez uma breve incursão nos contos, publicando
"Inclusive… aliás…" e "Buziguim" na revista Novos Estudos Cebrap, em
1986 e 1987. Neste e-book gratuito, o leitor vai conhecer estes dois contos e
outros seis, todos inéditos em livro e recolhidos pela primeira vez pelo
poeta e pesquisador Mariano Marovatto dos cadernos de um dos nomes
incontornáveis da geração mimeógrafo.
O que é uma democracia e para que serve uma constituição? Quais são as
atribuições de cada uma das três esferas de poder e como garantir que elas
se mantenham em harmonia? Como funcionam as eleições e qual a
importância das fake news nesse cenário?
Em Política é para todos, a advogada e apresentadora Gabriela Prioli
responde a essas e outras questões imprescindíveis para a compreensão do
funcionamento da política — sobretudo a brasileira —, mas que muitas
pessoas têm receio ou vergonha de perguntar. Com a linguagem
descomplicada que fez dela uma das personalidades mais populares do país,
a autora mostra como cada um de nós pode se engajar para construir a
sociedade que queremos, debatendo os assuntos relevantes com opiniões
próprias e argumentos racionais.