Filosofia Do Direito

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FILOSOFIA DO DIREITO

Filosofia
Josemar Soares
do Direito
Josemar Soares

Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico


ISBN 978-85-387-6260-7
www.iesde.com.br
facebook.com/iesdebrasil
9 788538 762607 58437
Filosofia do Direito

Josemar Soares

IESDE BRASIL S/A


2019
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S654f Soares, Josemar
Filosofia do Direito / Josemar Soares. - [2. ed.]. - Curitiba [PR] :
IESDE Brasil, 2019.
214 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6260-7

1. Direito - Filosofia. I. Título.

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Josemar Soares
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com perío-
do sanduíche para pesquisas em universidades na Alemanha (Humboldt), França (Poitiers) e Itália
(Padova). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e em Educação
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bacharel em Filosofia e Direito. Professor nos
cursos de graduação em Direito, no mestrado e doutorado em Ciência Jurídica, pela Univali, e nos
cursos de graduação e pós-graduação da Antonio Meneghetti Faculdade (AMF). Atua há mais de
20 anos como consultor empresarial, auxiliando instituições a realizarem suas metas por meio da
formação de lideranças. É diretor da Kritérion Consultoria, especializada no desenvolvimento de
pessoas e projetos empresariais por meio de metodologia filosófica e humanista.
Sumário

Apresentação 9

1 Introdução ao pensamento filosófico 11


1.1 A passagem do mito à Filosofia e a admiração ao saber 12
1.2 Os poetas Homero e Hesíodo 14
1.3 Filosofia e política na Grécia Antiga 26
1.4 A Justiça como questão filosófica 27
1.5 As principais disciplinas da Filosofia 31
1.6 A Filosofia do Direito 33

2 Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 37


2.1 Ésquilo 38
2.2 Sófocles 40
2.3 Eurípides 46
2.4 Conclusões sobre a tragédia 47
2.5 A comédia de Aristófanes 48

3 Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 53


3.1 A Escola Jônica 54
3.2 Os pluralistas 56
3.3 A Escola Atomística 58
3.4 A Escola Pitagórica 59
3.5 A Escola Eleata 60
3.6 Heráclito de Éfeso 62
3.7 Os sofistas 65

4 A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão 71


4.1 Sócrates e a importância do autoconhecimento 71
4.2 A justiça como paideia em Platão 75
5 Justiça em Aristóteles 85
5.1 Justiça e ética 86
5.2 Justiça na polis: a política 92

6 Helenismo e Idade Média 99


6.1 O pensamento filosófico no período helenístico 99
6.2 O epicurismo 100
6.3 O estoicismo 101
6.4 O ceticismo e o ecletismo 102
6.5 A Filosofia romana e o declínio da Filosofia antiga 103
6.6 Santo Agostinho 104
6.7 Tomás de Aquino 106
6.8 Duns Scott 109
6.9 Guilherme de Ockham 110

7 A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo 117


7.1 Francis Bacon 117
7.2 René Descartes 119
7.3 Espinoza 121
7.4 A filosofia iluminista 124

8 A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 129


8.1 Thomas Hobbes 129
8.2 John Locke 133
8.3 Montesquieu 137
8.4 Rousseau 139

9 Liberdade interna e externa em Kant 147


9.1 A crítica kantiana – juízos a priori e a posteriori, analíticos e sintéticos 147
9.2 O pensamento político e jurídico de Kant 150
9.3 Os imperativos categóricos na metafísica dos costumes 152
9.4 Ética e Direito 154
9.5 O Estado 155
9.6 A justiça para Kant 156
10 Direito e Política na Dialética de Hegel 159
10.1 A Fenomenologia do Espírito 159
10.2 As linhas fundamentais da Filosofia do Direito 163
10.3 A família 166
10.4 A sociedade civil 167
10.5 O Estado 168
10.6 Visão geral sobre a Filosofia do Direito e o sistema hegeliano 169

11 O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos


existencialistas 175
11.1 Karl Marx 175
11.2 A filosofia de Marx 176
11.3 Søren Kierkegaard 178
11.4 Friedrich Nietzsche 180
11.5 Edmund Husserl 182
11.6 Justiça como intersubjetividade 184
11.7 Martin Heidegger 186

12 Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 191


12.1 Max Scheler 191
12.2 Carl Schmitt 193
12.3 Hans Kelsen 194
12.4 John Rawls 196
12.5 Habermas 198
12.6 Miguel Reale 200

Gabarito 207
Apresentação

Quem somos nós? Por que existimos? Por que nos organizamos em sociedade? Como deve
se pautar a sociedade? Qual é o papel do Direito na sociedade? Essas e tantas outras indagações
vêm sendo propostas pelos mais importantes pensadores desde o nascimento da Filosofia, na
Grécia Antiga. Dos pré-socráticos aos contemporâneos, as questões da Ética e do Direito sempre
estiveram presentes, ajudando a iluminar o caminho dos indivíduos que buscam critérios para agir
e viver melhor, conduzindo com excelência a própria existência.

Mas, para viver melhor, além de compreender com mais funcionalidade o Direito, verificando
quando as regras e instituições contribuem para o desenvolvimento e quando precisam ser atualizadas,
é necessário antes aprofundamento ontológico (o que é o real) e epistemológico (como o homem
conhece o real). Precisamos saber quem somos e o que é a realidade, para então começarmos a tomar
decisões assertivas no cotidiano.

Buscar o real significa encontrar a dimensão do ser aqui e agora. Cada um de nós, enquanto
indivíduo, tem uma lógica de base que nos atualiza a todo instante, sempre indicando as passagens
existenciais e práticas que produzem crescimento e satisfação.

A Filosofia, quando utilizada com profundidade, é prática e visceral; vai no âmago de todas
as questões que impactam nossa existência. Como devo me relacionar com os outros? Como devo
conduzir meus pensamentos e emoções? Como devo interagir com as instituições? Como posso
auxiliar o Direito a ser mais humanista e promotor de desenvolvimento? Para tudo isso, a Filosofia
pode oferecer respostas adequadas, porque ela ensina o ser humano a pensar o real, separando
aquilo que é essencial do que é acidental em cada situação. A Filosofia diz constantemente: busque
o real (a ontologia), aprenda a identificar o real (epistemologia) e então poderá decidir com
funcionalidade para si (ética) e para os outros (Direito).

A proposta desta obra é apresentar as concepções de Justiça na história da Filosofia, desde


suas origens na mitologia até os pensadores contemporâneos. O diferencial é que cada autor, cada
passagem, é aprofundado com reflexões existenciais, que ajudam o leitor a trazer os argumentos
apresentados para os dias de hoje. A Filosofia, em sua busca incessante por respostas, traz intuições
atemporais, que podem ser utilizadas com inteligência em qualquer contexto e período histórico.

Da Grécia Antiga aos dias de hoje, a cada capítulo deste livro, você terá a oportunidade de
conhecer os principais argumentos dos filósofos acerca da Justiça e do Direito.

Trata-se de uma obra que interessa não somente às lideranças organizacionais, mas também
àqueles que buscam uma compreensão mais profunda sobre a posição do homem na sociedade e
o papel das organizações da sociedade civil e do Estado na criação de uma sociedade livre, justa e
igualitária.

Boa leitura!
1
Introdução ao pensamento filosófico

Esta obra pretende apresentar fundamentos da Filosofia que depois podem ser utilizados de
modo muito prático no dia a dia, da esfera econômica dos negócios ao cuidado com o corpo, da arte
de cultivar amizades e relações superiores ao amor pelo conhecimento. Com a Filosofia, podemos
entender melhor nossa posição no cosmos, na vida em geral, percebendo que cada indivíduo nasce
com um potencial a expandir e, à medida que evolui, constrói o próprio projeto. O homem é parte
de uma grande sinfonia que estrutura toda a realidade.
Uma orientação prática importante na leitura deste livro é que, a cada capítulo, o leitor busque
indagar a si mesmo o que pode mudar na própria vida a partir daqueles argumentos, quais aspectos
abandonar, quais ações começar a implementar. Com isso, não apenas se estuda Filosofia, mas vive-
-se a Filosofia.
A Filosofia do Direito é uma parte da Filosofia. Assim, para entender adequadamente o
movimento dos pensadores que articularam conceitos e ideias referentes a categorias como justiça,
ética, direito, Estado, é importante esboçar algumas considerações preliminares acerca da Filosofia,
para depois ser possível entrar com mais segurança no terreno da Filosofia do Direito.
Algumas indagações são essenciais: o que é Filosofia? A Filosofia é uma ciência? Qual é a sua
função? Qual é o método que utiliza para analisar seus conteúdos? Como a Filosofia pode contribuir
com o Direito? Essas são questões que tentaremos responder neste primeiro capítulo.
Veremos, no decorrer dos capítulos, que os filósofos possuem visões muitas vezes até opostas
em relação à mesma matéria, o que poderia ser uma desvantagem à Filosofia, sob a argumentação de
que ela não é exata e nem é capaz de ter unanimidade naquilo que se propõe a responder. Contudo, é
justamente a partir dessa dialética contínua entre os pensadores que a humanidade foi aperfeiçoando
sua capacidade de compreensão de si e do mundo.
Primeiro, para entendermos adequadamente o que seria a Filosofia, é preciso vê-la em sua
totalidade de movimento, ou seja, em todo o seu percurso, sem se ater a este ou aquele filósofo.
Talvez a melhor maneira de compreender esse conceito seja voltando justamente ao momento de sua
criação, no tempo dos filósofos pré-socráticos na Grécia Antiga, pois, como veremos, a tônica que
gerou a Filosofia foi a mesma que atravessou os séculos: a Filosofia como admiração/amor ao saber.
Nossa pesquisa pretende apresentar a concepção de justiça na história da Filosofia, de forma que
o princípio originário da Filosofia não se torna aqui tão fundamental. Partiremos do fato de que, mesmo
em povos anteriores já tendo sido despertado o pensamento acerca da verdade e a busca pela explicação
da estruturação do universo e da vida em geral, é somente com os gregos que a pesquisa pela verdade
recebe seus maiores contornos racionais, isto é, um estudo que diga como, de onde e por que as coisas
são como são. Essa forma de pensar é criação própria dos gregos (HIRSCHBERGER, 1969). Nas culturas
anteriores aos gregos, como os egípcios, os indianos e os povos da antiga Mesopotâmia, o pensamento
12 Filosofia do Direito

e a verdade não eram refletidos e construídos pelo indivíduo comum, membro da comunidade, mas
por sentenças irrefutáveis proferidas pelos grandes sacerdotes religiosos. Os gregos, por outro lado,
trouxeram o estudo da verdade para a dimensão humana, para dentro da vida humana, incluída aqui
a vida política.
Contudo, a passagem do pensamento religioso para o filosófico se dá também na passagem
do mito à Filosofia. Antes da Filosofia, eram os mitos que traziam os grandes ensinamentos morais
e de conhecimento, de forma que entender essa mudança é entender o nascimento da racionalidade
filosófica.

1.1 A passagem do mito à Filosofia e a admiração ao saber


Precisar o limiar transitório entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico é uma tarefa
difícil. De fato, conforme atesta Aristóteles no primeiro livro da Metafísica, os mitos gregos já eram
um modo de identificar o mundo racionalmente.
Sobre essa questão, Muñoz (2008) salienta:
[...] a fronteira entre o pensamento mítico e o pensamento racional nunca foi
inteiramente clara. Muitos procuraram indicar que as explicações dos primeiros
“cientistas” eram o prosseguimento, se não em termos de conteúdo, ao menos
de forma, das explicações oferecidas pelos mitos. As aspas são necessárias, pois
suas investigações diferem daquelas produzidas pela comunidade científica
de nossos dias por um aspecto crucial: não havia uma pesquisa experimental
sistemática e, em muitos casos, sequer rudimentar. Se as fronteiras entre o
pensamento racional e o pensamento mítico que o precedeu não são nítidas,
havendo inúmeros pontos de continuidade entre ambos, isso não significa,
porém, que não haja ruptura entre eles. O pensamento racional, aplicado
para oferecer explicações sobre o funcionamento da comunidade política e
do cosmo, é algo totalmente novo, ainda que sob alguns aspectos avance as
características do pensamento mitológico que o precedeu. A originalidade desse
novo pensamento [...] é algo fundamentalmente grego, inexistente até então.
(MUÑOZ, 2008, p. 57)

Entre os fatores que favoreceram os gregos a serem os protagonistas dessa importante


passagem, destacamos que eles não possuíam um sistema religioso absolutamente definido, baseado
em um livro de revelações ou com dogmas essenciais que somente eram dominados pela classe
sacerdotal. Os principais escritos que fundamentavam sua religião eram os de Homero e Hesíodo,
de onde extraíram seus modelos de vida, matéria de reflexão e estímulo à fantasia.
Ademais, conforme assevera Reale (1993), existem características que diferenciam os poemas
homéricos daqueles que estão nas origens dos vários povos; nessas obras já se manifestam algumas das
características do espírito grego que criaram a Filosofia. Os poemas gregos se estruturam segundo o
sentido da harmonia, da eurritmia e da proporção, do limite e da medida, uma constante da filosofia
grega que erigirá a medida e o limite até mesmo em princípios metafisicamente determinantes.
A arte da motivação também é uma constante, no sentido de que as ações, os acontecimentos,
ocorrem porque tiveram um motivo, uma causa que lhes deu origem. Não relatamos somente uma cadeia
Introdução ao pensamento filosófico 13

de fatos, mas buscamos em nível fantástico-poético as suas razões, buscamos determinar pelo mito a
relação entre causa e efeito. Pelos mitos buscamos, por exemplo, explicar a passagem das estações, os
fenômenos naturais, bem como os sucessos e insucessos humanos. Outra característica é o retrato da
realidade em sua totalidade de forma mítica. A posição do homem no universo estava presente no mito
e será assunto marcante do pensamento filosófico, dessa vez sob bases puramente racionais.
Considerado todo esse contexto favorável, a passagem do mito à Filosofia, operada por Tales de
Mileto, é marcada pela substituição da crença nas explicações dos relatos míticos pela compreensão
racional do homem e do mundo que o rodeia. Os mitos já eram explicações do homem e do mundo
baseadas em um profundo saber, contudo suas explicações das causas que geravam todos os efeitos
no mundo baseavam-se na crença em um modelo que representava aquela situação.
A Filosofia, avançando nessa estrada já aberta, apresentou de modo nítido desde seu nascimento
as seguintes características: quanto ao conteúdo, busca explicar a totalidade das coisas, toda a realidade;
quanto ao método, busca uma explicação puramente racional da totalidade, o que vale para a Filosofia
é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos; por fim, o escopo da Filosofia, seu caráter é
puramente teórico, ou seja, contemplativo, visa simplesmente à busca da verdade por si mesma, por isso
é livre, não está vinculada a qualquer utilização pragmática, apesar de que suas conclusões influenciam
todo o mundo prático (REALE, 1993).
Buscar as explicações de modo racional não significa que a Filosofia dissocie-se por completo
do divino, posto que, por meio dela, é possível alcançar a dimensão do divino racionalmente.
Conforme Aristóteles (2002), “pode-se chamar a filosofia de ‘divina’, pois além de levar o homem a
conhecer Deus, possui as mesmas características que deve possuir a própria ciência que Deus possui,
a desinteressada, livre, total contemplação da verdade”.
Constatamos, portanto, que a busca da explicação do mundo por meio do logos é o que há de
revolucionário no nascimento da Filosofia, e quem pela primeira vez buscou conhecer a realidade
desse modo, sendo, portanto, o primeiro filósofo, foi Tales de Mileto, o qual concluiu que a água é
o elemento essencial de todas as coisas da natureza.
A Filosofia é uma atividade tanto teórica quanto prática, tanto especulativa quanto existencial.
É teórica porque busca a verdade, a determinação das causas dos fenômenos, mas também
essencialmente prática porque é dela que podemos extrair conceitos, ideias, orientações sobre como
viver, como se relacionar com os outros, como interagir na sociedade, como exercer a dimensão
política, como defender e construir os próprios direitos. O fato de se dizer que a Filosofia é atividade
de busca pela verdade de modo desinteressado não quer dizer que ela pretenda ser inútil, mera
reflexão teórica, e sim que busca a verdade se desprovendo de todo tipo de estereótipo, preconceito e
modos inadequados de se pensar e viver. A busca desinteressada pela verdade quer dizer isto: buscar
a verdade acima de todas as coisas, tendo a coragem de transcender cada modelo de pensar e viver
que o sujeito identifica como não mais essencial para uma existência ordenada, feliz, satisfatória.
A Filosofia nasce da perplexidade. Portanto, são justamente os grandes questionamentos
que suscitam o progresso filosófico, a íntima necessidade de penetrar cada vez mais a essência do
problema, conforme explica Reale (2002):
14 Filosofia do Direito

A Filosofia, por ser a expressão mais alta da amizade pela sabedoria, tende a
não se contentar com uma resposta, enquanto esta não atinja a essência, a razão
última de um dado “campo” de problemas. Há certa verdade, portanto, quando
se diz que a Filosofia é a ciência das causas primeiras ou das razões últimas:
trata-se, porém, mais de uma inclinação ou orientação perene para a verdade
última, do que a posse da verdade plena. (REALE, 2002)

Essa paixão pela verdade se torna uma incansável busca por encontrar as causas primeiras
de todas as coisas, aquelas causas que respondem os grandes questionamentos e ainda geram todos
os outros.
A necessidade de responder com maior perfeição é aquilo que gera o caminho histórico
percorrido pela Filosofia. A história nos coloca novas interrogações, seja por determinados eventos,
mudanças culturais, avanços das ciências, seja por mudanças de concepções das próprias pessoas, e
todo esse universo influencia o exercício do pensar filosófico, exigindo do filósofo novas respostas,
novas indagações. Podemos nos arriscar a dizer que enquanto o homem não conhecer com plenitude
a verdade última das coisas, a Filosofia prosseguirá sua marcha histórica.
A história da Filosofia tem o grande valor de mostrar que esta não pode se
estiolar em um sistema cerrado, onde tudo já esteja pensado, muitas vezes
antecipadamente resolvido. Quando um filósofo chega ao ponto de não ter mais
dúvidas, passa a ser a história acabada das suas ideias, o que não quer dizer que
não gere a Filosofia nos espíritos uma serenidade fecunda, apesar da incessante
pesquisa. (REALE, 2002. p. 8-9)

Esse é o grande mérito da história da Filosofia: apresentar o panorama geral da estupefação


diante do saber, da necessidade existencial, talvez até metafísica, de o homem conhecer, chegar mais
próximo da verdade última das coisas, inclusive aquilo que é idêntico, útil e funcional.
Acompanhar o percurso histórico, o que nos ocupa aproximadamente 28 séculos de esforço
intelectual em busca da verdade e do que é justo, adequado, de direito, ajuda-nos ainda a pensar
melhor quais são as nossas grandes questões contemporâneas, em suas diversas esferas sociais,
econômicas, políticas, culturais, jurídicas etc.
Talvez nenhuma frase seja tão ilustrativa para essa condição humana como aquela empregada
por Aristóteles para abrir a obra que, para ele, era dedicada ao conhecimento do saber supremo: a
Metafísica. “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber” (ARISTÓTELES, 2002).

1.2 Os poetas Homero e Hesíodo


Homero é certamente o maior nome da literatura grega. As duas epopeias que a sua autoria
são creditadas, Ilíada e Odisseia1, repercutiram na formação do espírito grego como nenhum outro
autor tão longe alcançou. A Ilíada imortalizou-se como, possivelmente, a mais impressionante

1 A discussão sobre se Homero de fato escreveu ambas as epopeias já alcança mais de um século. Entre os eruditos
surgem as mais diversas opiniões, desde aqueles que afirmam que Homero sequer existiu até que as epopeias seriam
compilações de autores posteriores de versos passados oralmente de geração a geração; outros afirmam que ele
existiu, sim, mas que apenas escreveu ou compilou uma das poesias, já que ambas contêm construções e estilos
literários diferentes; por fim, existem aqueles que creditam a real autoria de ambas as epopeias ao poeta Homero. Para
este trabalho, tais questões não chegam a ser de vital importância, pois o essencial aqui é captar a influência dessas
epopeias no espírito grego, como auxiliaram nas construções dos conceitos de ética, justiça, direito etc.
Introdução ao pensamento filosófico 15

guerra já retratada literariamente. A força com que o autor apresenta os emocionantes combates,
as inesperadas e precisas intervenções divinas, os dramas dos heróis envolvidos, as grandes questões
que movimentam ambos os exércitos combatentes (gregos e troianos), tudo isso a torna uma obra
de caráter único na literatura universal.
Figura 1 – Estátua de Homero

itechno/Shutterstock.

A Ilíada apresenta a narração da célebre Guerra de Troia2. Páris, príncipe troiano, rapta Helena,
esposa de Menelau, famoso monarca grego, e leva-a para suas terras. Decidido a recuperar sua esposa,
Menelau pede auxílio ao seu irmão Agamemnon. Em pouco tempo, a raiva que se apossa de Menelau
toma conta de todo o povo grego e os grandes chefes e guerreiros de todos os reinos são convocados
a participar da guerra contra os troianos. Entre esses ilustres guerreiros estão, além de Menelau e
Agamemnon, o enorme e forte Ajax, o sábio e velho Nestor, o astuto e protegido dos deuses Ulisses e
o célebre personagem principal da obra, Aquiles, filho da deusa Tétis.
A Ilíada inicia-se já no nono ano de combates, no famoso episódio da discussão entre
Agamemnon e Aquiles, que resultou na retirada do segundo do campo de batalha. São 24 cantos,
que terminam com os funerais de Heitor, o troiano que matou Pátroclo, melhor amigo de Aquiles,
morto por este por vingança. A violência final de Aquiles é a explosão de sua ira, tema central de
toda a obra. Aquiles estava fora das batalhas, foi apenas quando seu amigo morreu que violentamente
retornou aos campos e vingou Pátroclo.
Já a Odisseia narra as proezas de Ulisses em seu retorno após a Guerra de Troia. Ulisses comete
um grande erro, devido à soberba, ao declarar não necessitar da ajuda dos deuses, o que irritou

2 Aqui também os estudiosos se dividem. Seria a Guerra de Troia apenas uma construção literária, uma epopeia
elaborada para enaltecer o povo grego? Ou poderia de fato ter acontecido? Algumas descobertas arqueológicas desde o
século passado alimentam a discussão, abrindo a possibilidade de as famosas muralhas de Troia se localizarem no que
hoje é território turco.
16 Filosofia do Direito

profundamente Posêidon, o deus dos mares. Diante disso, o deus decide causar o maior número
possível de problemas ao herói, atrasando seu retorno em dez anos. Entre as aventuras enfrentadas
por Ulisses e sua tripulação estão a ilha do Ciclope, gigante de um olho só, a ilha de Circe, a feiticeira
que transforma todos em animais, as belíssimas sereias, que com seus cantos irresistíveis atraem
todos os marinheiros à morte, o célebre estreito dos monstros de Posêidon, Cila e Caríbdes, entre
outros problemas que envolvem fenômenos naturais. Ao término da saga, Ulisses ainda precisa
enfrentar os pretendentes de sua esposa, Penélope, que tentavam forçar o casamento com ela para
se apossarem do trono.
Expomos o resumo geral das obras. Agora, apresentaremos algumas análises de como esses
versos influenciam a Filosofia e o Direito.
Para Schüler (2004), a Ilíada foi produzida numa época em que o homem ainda não havia
tomado completamente consciência de si mesmo, de forma que mais lhe impressionam as façanhas de
heróis e deuses, no campo externo, que os dilemas psicológicos que aterrorizam a dimensão interna
do indivíduo. Para esse autor, seria um período histórico em que o homem ainda se maravilhava
com o mundo que o rodeava, entusiasmava-se por participar dele3.
Isso não significa que contornos psicológicos e pessoais não estejam presentes na obra. Por
exemplo, a epopeia se inicia e termina com a ira de Aquiles, a emoção que lhe impulsiona e dá
a tônica dos relatos. A arrogância de Agamemnon nos primeiros cantos desperta preocupação
e resistência em seus próprios aliados, ao verem como ele facilmente entrou em contenda com
Aquiles, fazendo com que este último se retirasse do combate. Até mesmo os deuses, como já é
frequente nas lendas gregas, não escapam de questões psicológicas, opiniões e preferências que por
vezes os aproximam dos humanos. Logo no início, Apolo, o deus Sol, lança epidemia aos gregos,
devido à rejeição de Agamemnon em devolver sua escrava Criseida, filha de Criseis, sacerdote de
Apolo. Depois, vendo Aquiles, seu filho, sendo humilhado perante os gregos, Tétis implora a Zeus
que dê a vitória aos troianos, até que se arrependam e peçam perdão a Aquiles. Também por várias
vezes, Atena é enviada ao campo de batalha e aconselha um ou outro guerreiro. Logo no Canto II,
inclusive, vemos Zeus com dificuldades para dormir diante das reflexões que lhe vinham à mente,
provocadas pelo inesperado pedido de Tétis.
Contudo, é na Odisseia que vemos sinais mais evidentes dos dilemas humanos, vestígios
de aspectos psicológicos que circundam aquela obra; na Ilíada, não obstante, ainda se presencia
sobretudo o fascínio do homem pela descoberta de si mesmo e do mundo. Na Ilíada não se pensa em
limites para a ação heroica, mas na vontade e no ato de conquistar por inteiro esse mundo. É nesse
cenário que surge a figura do herói, a clássica imagem da poesia homérica. Em um primeiro momento,
como Schüler observou, é importante notar que, no proêmio, o objeto principal da narração da
Ilíada, a causa primeira da história heroica, é a ira de Aquiles, e somente secundariamente aparece

3 Sintaticamente o objeto (ira, o herói, Ílion) precede o sujeito. A atenção, tanto do poeta como do ouvinte, está presa
no objeto. O objeto mantém o sujeito oculto. Vive-se num período em que o homem ainda não tomou inteira consciência
de si mesmo: entusiasma-se pelo grande espetáculo do mundo, é fascinado pelas obras dos deuses e dos heróis, sente
prazer em nomear o mundo rico que se desdobra diante de seus olhos e não se apercebe de si. Não lhe ocorrem suas
dúvidas, dores ou conflitos pessoais. Não olha para dentro de si mesmo. O mundo o absorve inteiro. Na cultura em que
o homem só tem olhos e ouvidos para o mundo e para o outro, nasce a epopeia com as estupendas façanhas dos heróis
e deuses.
Introdução ao pensamento filosófico 17

como causa a vontade de Zeus. O homem ainda não havia olhado para dentro de si completamente,
de forma que seus limites não estavam completamente estruturados. Não tão dependente de Zeus,
o homem aparecia a si mesmo como ilimitado, e nisso consistia a façanha heroica. O significado
de colocar a causa principal do ciclo da Ilíada na ira humana, e não na vontade divina, revela que o
destino, ainda que existente na cultura helênica, não absorvia de modo integral o homem, de forma
que suas ações e seus resultados eram responsabilidades suas.
Também se situa aqui o episódio do Canto II, em que Zeus envia um sonho a Agamemnon,
na forma do confiável Nestor, no qual este aconselha o herói a invadir imediatamente Troia, pois
aí teria a vitória. Porém Agamemnon, após uma breve exaltação, deu-se conta da falsidade da
mensagem, que na verdade tratava-se de uma armadilha. Zeus preferia Aquiles a Agamemnon, e o
chefe dos gregos era consciente disso. Os deuses, sim, interferem, mas os humanos são livres para
aceitar ou mudar seus destinos.
Na exaltação do herói, encontramos ainda outra característica marcante da poesia homérica,
em especial a Ilíada: a presença do destino. Contudo a ideia homérica de destino não se confunde
com um ciclo fechado, em que a vida do indivíduo está previamente estabelecida. Para Homero,
o destino, as moiras4, assemelha-se a uma ordem superior à que não somente os humanos, mas
inclusive os deuses submetem-se. É por isso que tanto na Ilíada como na Odisseia, nem os deuses
podem criar o destino por suas próprias vontades, mas agem e criam caminhos. Na ideia de destino
dos gregos está aberta a responsabilidade do indivíduo, da livre escolha, o homem pode criar uma
nova via dentro do cenário predeterminado pelo destino, que não é, portanto, um roteiro inflexível.
Esse destino possui relação com a ordem das coisas, e aqueles que adentram seus mistérios são, de
fato, os homens mais corajosos, heroicos e sábios5.
Nesse sentido, os poemas homéricos não estão situados tanto no conhecimento do homem a
si mesmo, mas no desvelar de seu espírito impetuoso e heroico. A Homero não interessam tanto os
dilemas que afetam a vida humana, embora reconheça que existam, mas a necessidade de estender
o domínio do homem nesse mundo que serve de palco e cenário para conquistas. É por isso que a
figura que se glorifica é a do herói, que não pode temer o destino nem enfrentar a ordem natural das
coisas, mas adentrá-la e ali criar a história. Homero cria um mundo limitado, mas que permite atitudes
ilimitadas nesse círculo, ainda que o homem não possa tudo fazer, pode, dentro do seu possível, ter
atitudes heroicas. Homero “louva e exalta o que no mundo é digno de elogio e de louvor. Assim como
os heróis de Homero reclamam, já em vida, a devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a
estima que tem direito, assim todo o autêntico feito heroico é sedento de honra” (JAEGER, 2003, p. 68).
Como se vê, Homero enaltece e louva a atitude heroica, porque esta é digna de honra, de forma que o
herói passa a constituir o ideal de homem para o grego em geral. As palavras de Homero ecoaram por

4 Na mitologia grega, eram as três Parcas, divindades do mundo dos mortos, governado por Hades, que fiavam
o destino dos homens e a qualquer momento poderiam extinguir a vida de qualquer mortal, bastando para isso que
cortassem determinado fio.
5 A preocupação com o destino e com a ordem imanente do universo inspiraria vários fenômenos sociais e religiosos
no mundo grego, como as famosas sentenças do Oráculo de Delfos, a religião dos Mistérios de Elêusis e a seita órfica.
Era comum a compreensão de que havia uma ordem natural, da qual nem homens nem deuses poderiam escapar.
O espírito grego aspirava a compreender essa realidade. Relembremos, também, que tanto Platão como Aristóteles
situavam a máxima felicidade na contemplação da realidade, no pleno entendimento do mundo.
18 Filosofia do Direito

toda a história helênica, transformando-o em um educador de toda a Grécia, e a educação homérica


baseava-se justamente na educação do herói, de sua honra e coragem, da sua nobreza de espírito ao
deixar-se guiar pelas virtudes e atitudes de louvor, que somente o homem ativo e criador é capaz de
realizar, ao contrário do herói passivo, que somente deixa viver, conforme foi citado anteriormente.
Jaeger, ao comentar a proposta pedagógica de Homero, assinala que “os mitos e as lendas heroicas
constituem um tesouro inesgotável de exemplos e modelos da nação, que neles bebe o seu pensamento,
ideais e normas para a vida” (JAEGER, 2003, p. 68).
Esse ideal de herói se tornaria, posteriormente, uma espécie de lei para o cidadão grego, pois
a poesia e o mito, antes mesmo da lei, foram as primeiras manifestações da educação. Antes de o
polis: cidade- membro da polis obedecer ao Direito, ele já havia se habituado a cultivar-se no ideal de homem
estado na Grécia
Antiga. difundido pela poesia homérica, que tem na ira de Aquiles sua mais alta representação.
A Ilíada celebra a glória da maior aristeia da guerra de Troia, o triunfo de
Aquiles sobre o poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heroica votada
à morte se mistura com a submissão do homem ao destino e às necessidades da
sua própria ação. É o triunfo do herói, não a sua ruína, que pertence à autêntica
aristeia. (JAEGER, 2003, p. 75)

Nessa ação ousada e deliberada de colocar a própria vida em risco para elevar-se à glória
heroica consiste toda a força educadora da Ilíada. Os gregos não viam em Aquiles um herói comum,
realizador de grandes feitos, mas que perece no ato de tentar mais uma ação, mas o mais nobre
dos heróis, aquele que é capaz de antecipadamente saber que o maior dos feitos exige também o
maior dos sacrifícios. É essa moral, centrada essencialmente na figura heroica, no Aquiles da Ilíada
homérica, que consolidará historicamente o ideal de homem da cultura grega. A moral homérica não
estava preocupada com o cidadão comum, desejoso tão somente de uma vida prazerosa e tranquila,
como teria sido a vida de Aquiles, mas com o herói, capaz de entregar a própria vida pelo ato heroico,
de estar sempre pronto a arriscar sua existência desde que seja em prol de uma causa nobre.
O heroísmo e o destino do herói ligado à morte6 revelam ainda outro traço marcante de Homero,
que influenciaria o pensamento grego em geral: a ideia de uma lei superior e universal. Há um ritmo
uniforme, permanente, em que todo o movimento se realiza por ação própria, e nisso entram as ações
de homens e deuses, heróis e não heróis. Trata-se de uma lei maior que governa a vida em geral e que
se situa no limiar da Moral e da Ética. Homero preenche seus poemas com temas morais e naturalistas,
descreve não somente as lutas, mas também a natureza, o cenário dos episódios, e a passagem dos
tempos, demonstrando que além das façanhas humanas existe um limite imposto por uma lei universal.
Dentro desse limite situa-se a Ética, como ciência que estuda a conduta humana.

6 Contudo, há uma passagem importante na Odisseia, de um diálogo entre Ulisses e a psykhé de Aquiles no mundo
dos mortos. Nesse trecho, constante no Canto XI, a sombra de Aquiles declara, quase em um alento de saudade, que as
honras e lembranças dos grandes feitos só possuem validade entre os vivos, e tudo não passaria de sombras entre os
mortos. Por esse pensamento, qualquer vida, ainda que miserável, poderia ser entendida como superior à morte. Seria
preferível uma vida longa e sem glórias a um reinado no mundo dos mortos. Tal interpretação modificaria a visão de um
Aquiles resoluto por uma vida trágica. (ASSUNÇÃO, 2003).
Introdução ao pensamento filosófico 19

Para Homero, como para os gregos em geral, as últimas fronteiras da Ética não
são convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por
esse amplo sentido da realidade, em relação ao qual todo “realismo” aparece
como irreal, que se baseia a força ilimitada da epopeia homérica. (JAEGER,
2003, p. 78)

Há uma ligação do humano com o divino que permeia os poemas homéricos, tanto nas
inúmeras interferências dos deuses na Guerra de Troia como nas inspirações provocadas por
Atena na viagem de Ulisses. Homero não está preocupado em invadir o mundo interior de suas
personagens, explorando suas emoções, mas sim as ações, os movimentos do mundo exterior que
constituem a realização heroica. Cada ação, mesmo a cólera de Aquiles, tem dois lados: um humano,
a motivação psicológica da personagem, e outro divino, que em geral se baseia em vontades dos
deuses ou na causa primeira de tudo, a vontade de Zeus, o deus supremo. Há, portanto, uma ordem
estável, que na Ilíada chega inclusive a ser descrita na forma de concílios entre os deuses, que, ainda
que em alguns momentos se revele conflituosa entre as próprias figuras divinas, demonstra como
além do protagonista existe sempre outra ordem a julgar e decidir o futuro.
Também a Odisseia é repleta delas. Toda a saga de Ulisses é permeada tanto pelo dilema
psicológico, a sua soberba contra os deuses, como pela vontade divina, de Posêidon, em prejudicar
o herói. Contudo, nesse limiar do humano com o divino, existe uma ordem que supera inclusive tal
ligação. Por exemplo, mesmo Posêidon desejando aniquilar Ulisses por sua soberba, assim não pode
fazê-lo, pois o destino do herói já estava traçado, já estava determinado que ele deveria retornar à sua
terra natal. Nesse contexto, Posêidon poderia apenas causar-lhe mais problemas e atrasar sua viagem.
Tal situação poderia parecer ao leitor contraditória, pois para que Posêidon provocaria tantos
problemas se Ulisses estava destinado a triunfar? Porém, somente quando alcançou o limite de
seu sofrimento existencial, Ulisses compreendeu que era sua soberba quem lhe provocava tantos
problemas. Ao realizar a passagem de humildade tornou-se novo homem, mais preparado para
os novos desafios. Há uma justiça superior em Homero, que liga o humano ao divino e inclusive
apresenta consequências além dessa dimensão. Tal justiça surge ainda em sua mais profunda acepção,
aquela em que a Ética se preocupa com a formação do homem.
É nesse sentido espiritual, que inclusive antecipa muitas ideias da filosofia grega em geral,
que se encontra a ideia de justiça em Homero. A justiça homérica está estabelecida em um patamar arete: na poesia

elevado em que se liga o humano ao divino, nos limites éticos da ação humana que, embora motivada homérica, é a virtude
heroica, a excelência
a expandir-se ao infinito e à arete do herói, chega sempre a um momento em que a ordem natural e na realização de
atos corajosos e
superior das coisas, a lei universal, põe um fim. A ação ética não pode ser separada do movimento vitoriosos.

natural do universo, da fluidez do mundo exterior. O homem grego cultuado por Homero é aquele
que, dentro desse cenário aparentemente limitado, é capaz de, por meio das virtudes do herói,
realizar e construir uma vida sublime. A justiça está nesse agir ético, é uma concepção de justiça que
se define a partir de um ideal de homem formado pelo cultivo das virtudes do herói, tendo a coragem
20 Filosofia do Direito

como cerne. Nesse sentido, a justiça é uma virtude interna, e sua prática não é uma obediência às leis,
mas o ato de se guiar pelas virtudes éticas do herói e do ideal de homem grego, do homem nobre.
Depois de Homero, houve outro grande poeta que influenciou bastante a formação do ideal
grego de homem justo e ético: Hesíodo. Contudo, havia diferenças marcantes entre os dois. Hesíodo
vivia em um tempo que não era tão dourado quanto o de Homero. Se em Homero era essencial
cantar as façanhas dos heróis, em Hesíodo era mais importante cantar mensagens que ajudassem
o povo agricultor e trabalhador a levar uma vida mais digna. Em Hesíodo se vê o segundo grande
educador, agora não dos heróis e nobres, mas do povo e dos cidadãos comuns. O ideal de heroísmo
trazido por Homero persiste, mas agora não revelado apenas nas lutas e guerras grandiosas, mas
também no árduo trabalho cotidiano.
Figura 2 – Retrato de Hesíodo

Georgios Kollidas/Shutterstock.

De Hesíodo nos chegaram duas poesias: a Teogonia e Os trabalhos e os dias. A primeira narra,
em forma de mitos, a origem genealógica dos deuses, desde os deuses primordiais, que participaram
da criação do universo, segundo a visão religiosa da Grécia Antiga, e depois as gerações seguintes de
deuses, até os deuses olímpicos, como Zeus, Posêidon, Hades, Hera, Atena, entre outros. Também
apresenta a lenda que dá origem aos humanos: o roubo do fogo sagrado por Prometeu e a criação
de Pandora, a primeira mulher.
Já Os trabalhos e os dias possui conotação bastante diversa. Aqui, é o próprio poeta, falando
em primeira pessoa, com o dom da palavra e da verdade inspirado pelas musas7, que procura dizer
algumas verdades ao seu irmão Perses, com quem o poeta discute alguns bens a serem distribuídos
em sucessão. Hesíodo procura demonstrar ao seu irmão como Zeus deseja a justiça e pune os

7 Na mitologia grega, as musas eram as nove filhas da união de Zeus com Mnemósina, que personifica a memória.
Nasceram logo após a grande vitória dos deuses olímpicos contra os titãs, para justamente cantar as enormes façanhas
dos vencedores. “As musas são apenas as cantoras divinas, cujos coros e hinos alegram o coração dos Imortais, já
que sua função era presidir ao pensamento sob todas as suas formas: sabedoria, eloquência, persuasão, história,
matemática, astronomia. Para Hesíodo, são as musas que acompanham os reis e ditam-lhes as palavras de persuasão,
capazes de serenar as querelas e restabelecer a paz entre os homens. (BRANDÃO, 1997, p. 150-151)
Introdução ao pensamento filosófico 21

injustos, de como a justiça está pautada na medida, e a hýbris (excesso) é aquilo que os deuses não
aceitam. O poeta também fala a seu irmão do valor do trabalho, que representa a vitória pessoal
dentro de um caminho honesto. Tudo isso traz o poeta por meio de relatos míticos: as duas lutas,
Prometeu e Pandora e o mito das cinco raças.
É, portanto, em Os trabalhos e os dias que concentraremos os nossos estudos, sobretudo na
importância que o poeta dedicou às categorias justiça e trabalho e em como elas se entrelaçam numa
conotação pedagógica para seu povo.
Em Hesíodo revela-se a segunda fonte de cultura: o valor do trabalho. O título
de Os Trabalhos e os Dias dado pela posterioridade ao poema rústico didático de
Hesíodo, exprime isso perfeitamente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas
em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e seus adversários. Também a luta
silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o
seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do
Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe
acima de tudo o apreço pelo trabalho. A vida despreocupada da classe senhorial
em Homero não deve induzir-nos em erro: a Grécia exige dos seus habitantes
uma vida de trabalho. (JAEGER, 2003, p. 85)

Hesíodo centra seus esforços na formação do cidadão comum, o cidadão de seu tempo, ligado
a uma época ainda agrária da história helênica. A região grega não possui um solo rico, os benefícios
que podem ser tirados dele somente surgem se arrancados mediante o trabalho árduo, uma verdadeira
luta do homem com a natureza. Hesíodo narra a “idade do ferro”, um período distante dos tempos
dourados, que em sua passagem cronológica teve como resultado a “subversão do direito, da moral e da
felicidade humana nos duros tempos atuais” (JAEGER, 2003, p. 87). A passagem da história das cinco
idades do mundo, que Hesíodo narra em Os trabalhos e os dias, revela esse sentimento pessimista que
tem na idade do ferro seu ápice8. Existiram cinco raças de humanos: a raça de ouro, a raça de prata, a
raça de bronze, a raça dos heróis e a raça de ferro. Cada raça possui uma vida mais breve e mais sofrida,
mais abalada pelas misérias do mundo do que a raça anterior (na ordem apresentada).
Ainda assim, esses camponeses a quem Hesíodo se dirigia de modo algum devem ser
confundidos com sujeitos incultos. Na Grécia hesiódica, em particular na Beócia, região onde vivia
o poeta, ainda não existiam as grandes metrópoles. As cidades eram ainda bastante rurais, o que
não impediu que a população já cultivasse o espírito político, ético e jurídico. Na região da Beócia,
os cidadãos reuniam-se em grande número nas cidades para discutir as questões políticas e impedir
a opressão das classes mais elevadas da sociedade. Exemplo disso está no poema de Hesíodo em

8 Um rápido resumo das cinco raças é importante também para compreender a diferença de “eras” que Hesíodo via na
sua era, em comparação àquela narrada por Homero. A primeira raça é a de ouro, nela os homens viviam com os deuses,
e por isso não conheciam miséria nem dor. A segunda raça é a de prata, bastante inferior à primeira, pois aqui os homens
vivem 100 anos como crianças junto às mães, e logo quando alcançam a adolescência morrem porque não conseguem
conter a louca hýbris dentro de si, o excesso provocado pelas paixões arrebatadoras. A terceira raça é a de bronze,
dedicada às práticas de guerra e à violência; trabalham o bronze na confecção de armas, e vivem e morrem lutando; a
quarta raça é a dos heróis, dos semideuses, que perecem como heróis mas depois suas almas habitam tranquilas a Ilha
dos Bem-Aventurados; aqui se situam os heróis da Ilíada, por exemplo, e por isso a poesia homérica situa-se nessa era;
por fim, a quinta raça é a do ferro, aquela em que vive Hesíodo, quando os homens são obrigados a trabalhar durante
toda a vida para não morrerem de fome e miséria. (HESÍODO, 1996, p. 79-80).
22 Filosofia do Direito

que o autor critica severamente o seu irmão Perses, que entregava a vida à preguiça, à inveja e às
reclamações9.
Em outra passagem, não menos incisiva, o poeta denuncia os corruptos juízes de seu tempo,
utilizando-se de uma fábula, a do gavião e do rouxinol. Essa fábula abre a seção de seu texto intitulada
A justiça:
Agora uma fábula falo aos reis mesmo que isso saibam. Assim disse o gavião
ao rouxinol de colorido colo no muito alto das nuvens levando-o cravado nas
garras; ele miserável varado todo por recurvadas garras gemia enquanto o outro
prepotente ia lhe dizendo: “Desafortunado, o que gritas? Tem a ti um bem mais
forte; tu irás por onde eu te levar, mesmo sendo bom cantor; alimento, se quiser,
de ti farei ou até te soltarei. Insensato quem com mais fortes queira medir-se,
de vitória é privado e sofre, além de penas, vexame. (HESÍODO, 2002, p. 39-40)

Essa é uma crítica feroz de Hesíodo, que, ao se tornar porta-voz de seu tempo, denuncia a
opressão que vivia grande parte da população diante daqueles que mantinham os poderes políticos
e econômicos. A denúncia é pontual, direta aos corruptos. Tal crítica não pode ser resumida a uma
classe da comunidade, mas a todos aqueles indivíduos que detêm mais poder e representação, sejam
posições sociais, jurídicas, econômicas, políticas, e por essa vantagem se aproveitam da vida dos
demais indivíduos e brincam com ela, tal como o gavião brinca com o rouxinol. Outra mensagem
importante nessa citação é que Hesíodo aconselha a não se medir com aqueles considerados mais
fortes, pois, assim como o rouxinol nada pode fazer com o gavião, um homem comum só tem a
perder se decidir enfrentar alguém de maior poder e influência social. Hesíodo reprova o caminho
dos conflitos e das intrigas e aconselha a todos a percorrerem o caminho do trabalho, que é mais
digno, honesto, e os frutos são merecidos, pois são conquistados pelo próprio esforço e mérito, além
de não exigir se medir com indivíduos mais poderosos.
Percebemos, então, como a ética de Hesíodo distancia-se da ética homérica por tentar situá-
-la em um plano mais terreno, material, diferente da grandiosidade da Ilíada e da Odisseia, que
buscam um ideal elevado de homem, talvez difícil de ser alcançado. O ideal de Hesíodo relaciona-se
diretamente à situação histórica de seu povo, tem efeitos práticos imediatos, é a luta cotidiana contra
o solo, contra a natureza, contra a opressão, é a luta dos cidadãos comuns pela aplicação do Direito.
Nesse sentido, Hesíodo diferencia-se ainda mais de Homero, sua poesia abandona a objetividade
da epopeia e encarna o ideal de seu povo, passando a defender o Direito e atacar a injustiça em
primeira pessoa.
Em Hesíodo introduz-se pela primeira vez o ideal que serve como ponto de
cristalização a todos esses elementos e adquire uma elaboração poética em
forma de epopeia: a ideia do Direito. A propósito da luta pelos próprios Direitos,
contra as usurpações do seu irmão e a venalidade dos nobres, expande-se no
mais pessoal dos seus poemas, “Os Erga”, uma fé apaixonada pelo Direito. A
grande novidade dessa obra está em o poeta falar na primeira pessoa. Abandona
a tradicional objetividade da epopeia e torna-se porta-voz de uma doutrina que
maldiz a injustiça e bendiz o direito. É o enlace imediato do poema com a disputa

9 Vejamos um trecho de Hesíodo: “trabalha, ó Perses, divina progênie, para que a fome te deteste e te queira a bem
coroada e veneranda Deméter, enchendo-te de alimentos o celeiro; pois a fome é sempre do ocioso companheira; deuses
e homens se irritam com quem ocioso vive”. (HESÍODO, 2002, p. 45)
Introdução ao pensamento filosófico 23

jurídica sustentada contra o seu irmão Perses, que justifica essa ousada inovação.
Fala com Perses e dirige a ele admoestações. Procura convencê-lo de mil maneiras
de que Zeus ampara a justiça, ainda que os juízes da Terra a espezinhem, e de que
os bens mal adquiridos nunca prosperam. (JAEGER, 2003, p. 91)

Tal como o poeta da Ilíada e da Odisseia, Hesíodo também concebe o Direito e a Justiça como
bens divinos, relacionados a Zeus, e as injustiças terrenas como meros fatos existenciais humanos.
Hesíodo se põe como interlocutor das musas, e não como o autor propriamente dito, de forma que
em várias partes de seu poema há prodigiosas preces a Zeus e argumentos tentando convencer Perses
da condição divina da Justiça, por ser esta obra do senhor do Olimpo.
O fato de se pôr ainda em primeira pessoa revela esse caráter apelativo, de compreender Os
trabalhos e os dias não somente como poema didático, mas também como clamores de todo um povo
por justiça. A veemência com que Hesíodo maldiz a injustiça e as condutas de Perses corroboram
essa ideia.
Àqueles que a forasteiros e nativos dão sentenças retas, em nada se apartando
do que é justo, para eles a cidade cresce e nela floresce o povo; sobre esta terra
está a paz nutriz de jovens e a eles não destina penosa guerra o longevidente
Zeus: nem a homens equânimes a fome acompanha nem a desgraça: em festins
desfrutam dos campos cultivados; a terra lhes traz muito alimento; nos montes,
o carvalho no topo traz bálanos e em seu meio, abelhas; [...] Àqueles que se
ocupam do mau excesso, de obras más, a eles a Justiça destina o Cronida, Zeus
longevidente. Amiúde pega a cidade toda por um único homem mau que se
extravia e que maquina desatinos. Para eles do céu envia o Cronida grande
pesar: fome e peste juntas, e assim consomem-se os povos [...]. (HESÍODO,
2002, p. 39-41)

Um governante corrupto, portanto, atrai sozinho toda a desgraça para o seu povo, pois pratica
atos injustos que são odiados por Zeus. Hesíodo pontua aqui a responsabilidade maior dos líderes,
que, por representarem interesses de toda uma população, não devem pensar somente em si mesmos,
mas na coletividade, pois o fracasso deles é também fracasso de muitas outras pessoas. Hesíodo
lamenta ter nascido em um momento histórico em que vigora unicamente o direito do mais forte,
e não a justiça em seu sentido pleno e divino.
Essa passagem também pode ser transportada para a esfera jurídica da contemporaneidade,
como crítica aos juízes que não exercem suas profissões com a devida ética que deles se espera. Em
muitos casos impera o direito do mais forte, dos juízes que, comandando o Direito, fazem da Justiça
um instrumento para alcançar seus interesses e satisfações. O gavião não está preocupado com a
vida e o destino do rouxinol, assim como muitos juízes não se interessam pela vida das partes que
chegam até ele querendo resolver um conflito. Essa atitude autoritária reduz o Direito a um simples
instrumento, longe de sua antiga acepção divina e nobre que tanto foi sustentada por Homero
ao enaltecer as virtudes do herói. Salienta-se, porém, que o objetivo de Hesíodo é pedagógico, é
demonstrar a fraqueza do Direito de seu tempo, ensinando aos indivíduos comuns como interagir
no processo judicial e tentando romper com o autoritarismo dos juízes e senhores do poder. Ao
mesmo tempo que critica os poderosos senhores corruptos, orienta o cidadão a não travar essa
guerra, a seguir sua vida trabalhando arduamente dia a dia.
24 Filosofia do Direito

Ainda na temática Justiça, Hesíodo trabalha a questão do Direito na ideia de um processo.


Nesse sentido, a luta divina dos heróis em Homero converte-se na luta pelo Direito em Hesíodo,
representada na forma do processo. Porém a luta divina em Hesíodo é diferente daquela em Homero,
no que concerne à participação dos deuses nos grandes eventos. Se na Ilíada e na Odisseia os deuses
faziam intervenções no decorrer da história, favorecendo esse ou aquele personagem, Hesíodo se
limita a rogar a Zeus para que se faça a justiça, pois sua condição humana, pertencente à raça de
ferro, não lhe garante acesso a esse nível de conhecimento, o das ações e intenções divinas. Os heróis
podiam recorrer e pedir auxílio aos deuses, os homens da raça de ferro, não, por se situarem em
uma posição inferior, se comparada à das raças anteriores.
Entretanto, a ação judicial também pode ser compreendida como um conflito divino. Ainda
que de fato um processo não receba dos deuses a mesma atenção que merece uma epopeia, a ação
judicial envolve a aplicação humana da Justiça, ou seja, a aplicação daquilo que deseja Zeus para os
humanos. A poesia desenvolve-se na história de um processo resultante de uma herança, em que
Perses, após subornar o juiz, consegue contrair para si mais da metade dos bens a que tinha direito.
Hesíodo desfere severas críticas a Perses, devido à sua cobiça, assinalando ainda que o único caminho
aceitável para a obtenção de riquezas é pelo trabalho. “O trabalho é, de fato, uma necessidade dura para
o Homem, mas uma necessidade. E quem por meio dele provê sua modesta subsistência recebe bênçãos
maiores do que aquele que cobiça injustamente os bens alheios” (JAEGER, 2003, p. 93). O trabalho
não constitui por si só uma benção, mas seus resultados consentem realização e paz. Ainda que árduo
e cansativo, é somente o trabalho que possibilita ao homem conquistar seus bens sem ferir a justiça
divina implementada por Zeus. Esse caráter aparentemente contraditório, de sofrimento de um lado
e tranquilidade de outro, revela-se em Hesíodo também de forma religiosa e mítica, por meio do mito
de Prometeu. Para Hesíodo, o sofrimento advindo do labor não pode ser algo natural ao homem, pois
a dor e o sofrimento não condizem com a natureza divina nem com a ordem das coisas. Sendo assim,
o trabalho e o sofrimento só podem ter surgido em algum dado momento da história da humanidade.
Hesíodo aplica a forma “causal” de pensar, própria da Teogonia, à história de
Prometeu, nos Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e
os sofrimentos devem ter aparecido algum dia no mundo. Não podem ter feito
parte, desde a origem, da ordem divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-
-lhes que encara do ponto de vista moral. Como castigo, Zeus criou a primeira
mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora
saíram os demônios da doença, da velhice, e outros males mil que hoje povoam
a Terra e mar. (JAEGER, 2003, p. 85)

Como se percebe, o sofrimento provocado pelo trabalho advém desse fato anterior cometido,
que possui também relação com o mundo jurídico – o roubo do fogo sagrado cometido por Prometeu.
É devido a esse espírito religioso que o trabalho recebe a conotação de ser exaltado; para o homem
comum, trabalhar não significa somente o árduo esforço de se livrar de uma vida preguiçosa e
desviante, mas também vivenciar a humildade dos mortais perante os deuses do Olimpo. Aqui
clareia-se ainda mais o ideal pedagógico da poesia hesiódica. O primeiro mito narrado nos Erga, a
narração das cinco idades do mundo, com suas cinco raças, demonstra o processo de degeneração do
Introdução ao pensamento filosófico 25

homem através dos tempos, passando de uma raça feliz e sem a necessidade de recorrer ao trabalho
até a raça de ferro, a humanidade do período em que vive Hesíodo. Esse mito depois é seguido pelo
mito de Prometeu, que narra o início do trabalho e do sofrimento do homem.
Como síntese, então, Hesíodo vê o trabalho como uma condição sofrida e árdua aos humanos,
mas que é a única via aberta pelos deuses à riqueza justa. Concluindo essa análise, temos o final da
primeira parte da obra:

Não faças maus ganhos, maus ganhos granjeiam desgraça.


Ama a quem te ama e frequenta quem te frequenta;
Dá a quem te dá e a quem não te dá, não dês.
Ao que dá se dá e ao que não dá, não se dá.
Doar é bom, roubar é mau e doador de morte;
Pois o homem que dá de bom grado, mesmo doando muito,
Alegra-se com o que tem e em seu ânimo se compraz.
Confiando na impudência, quem para si próprio furta,
Mesmo sendo pouco, deste se enrijece o coração,
Pois se um pouco sobre um pouco puseres
E repetidamente o fizeres logo grande ficará.
Quem acrescenta ao que já tem ardente fome afastará;
O armazenado em caso desassossego ao homem não traz;
Melhor é o de casa, o de fora danoso é.
Bom é pegar do que se tem; para o ânimo é provação
Precisar do que não há; convido-te a nisto pensar!
[...]
Facilmente imensa fortuna forneceria Zeus a muitos:
Quanto maior for o cuidado de muitos, maior o ganho.
Se nas entranhas riqueza desejar teu ânimo,
Assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha.
(HESÍODO, 2002, p. 49-51)

Segundo o autor, aquele que enriquece pelo próprio esforço é agraciado por Zeus, e aquele
que procura enriquecer com base na injustiça é desgraçado pelo senhor dos deuses.
Quadro 1 – Distinções entre Homero e Hesíodo

Homero Hesíodo
• Viveu em uma época de glórias do povo grego • Época menos afortunada para a sociedade
• Exaltava façanhas dos heróis grega

• Educador dos heróis e nobres • Mensagens para ajudar o povo agricultor e


trabalhador a levar uma vida mais digna
• Heroísmo provém de lutas e guerras
grandiosas • Educador do povo e do cidadão comum
• Heroísmo provém de guerras, mas também do
árduo trabalho cotidiano
Fonte: Elaborado pelo autor.

No quadro apresentado, podemos notar como as mudanças sociais entre as épocas vividas
por Homero e Hesíodo influenciaram sua produção literária, alterando o alvo de suas obras e,
principalmente, o ideal de herói a ser perseguido pela população.
26 Filosofia do Direito

1.3 Filosofia e política na Grécia Antiga


A admiração pelo saber tornou-se maior, sobretudo, com os gregos antigos, que viviam um
período de profunda busca pelo saber. Da Teologia à Política, passando pelas várias artes e ciências, tudo
era objeto de grandes investigações e reflexões. Fervilhava o espírito crítico, reflexivo e investigador da
natureza no mundo grego. Esse momento, talvez único na história humana, surge juntamente com a
figura do homem político. O fato de tanto a Filosofia como a Política terem nascido no mesmo período
e no mesmo lugar merece algumas reflexões, pois ajuda a demonstrar que, no fundo, os gregos viviam
uma época de liberdade de pensamento.
O primeiro pensador a empregar o termo filosofia foi Pitágoras, que juntou as palavras philos
(amor) e sophia (saber), ou seja, o amor ao saber, à sabedoria. “O termo é deveras expressivo. Os
primeiros filósofos gregos não concordaram em ser chamados sábios, por terem consciência do
muito que ignoravam. Preferiam ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja, filósofos”
(REALE, 2002, p. 5).
O historiador Diôgenes Laêrtios, que viveu a antiguidade helenista, mostra que para os gregos
a sabedoria era considerada algo supremo, e que somente os deuses eram capazes de possuí-la em
sua completude. Os homens nunca conseguiriam alcançar o completo entendimento do mundo, das
coisas, do universo, da vida, dos deuses ou de si mesmos (LAÊRTIOS, 1987, p. 15). Contudo, isso
não era desmotivador, pois a exigência de aprender, aliada à humildade de reconhecer que pouco
se sabe, era a força que impulsionava aqueles pensadores ao desconhecido, a tentar chegar cada vez
mais próximo da sabedoria. Essa noção de humildade e necessidade de conhecer nasceu da incrível
estupefação que os pensadores sentiam diante das maravilhas que a natureza apresentava.
Não por acaso, essa estupefação conduzia os filósofos a pesquisarem a Matemática, a
Ética, a Teologia, a Astronomia, a Música, e tantas outras matérias do conhecimento. O completo
entendimento de todo esse universo que nos rodeia é possível somente aos deuses, de forma que
buscarmos avançar cada vez mais nesse anseio é também trilhar um caminho divino.
Na Metafísica, Aristóteles afirma que a “Filosofia era a admiração pelo saber, e por isso
mesmo aqueles que amavam os mitos eram filósofos, porque nutriam nos mitos essa admiração pelo
saber” (ARISTÓTELES, 2002). Os mitos não eram, para os gregos, apenas um conjunto de crenças,
aspectos culturais e religiosos de um povo, eram manifestações do íntimo humano na tentativa de
explicar os fenômenos naturais, sociais, o cosmos, os deuses. Portanto os mitos também exprimiam
a admiração ao saber e, por isso, é imprescindível que partamos deles para depois explorarmos a
história do pensamento filosófico.
Para compreendermos o percurso histórico da Filosofia do Direito, acompanhando a
construção de conceitos como Direito, Justiça, liberdade, cidadania, Ética, igualdade, é importante
partir do momento que lançou as bases para a formação da racionalidade ocidental: o mundo
grego. Foi na Grécia que surgiram os primeiros filósofos do Ocidente, que influenciam inclusive
os pensadores contemporâneos.
Os primeiros filósofos foram os chamados pré-socráticos, que se tornaram célebres por
realizarem grandiosas argumentações sobre a ordem e o princípio das coisas, pela tentativa de
Introdução ao pensamento filosófico 27

explicar a natureza, a existência humana, e mesmo questões divinas e transcendentais. É com os


pré-socráticos que a Ontologia se origina.
Antes, é importante compreender os movimentos que influenciaram a criação do pensamento
filosófico e contribuíram enormemente para isso, pois os pré-socráticos não poderiam conceber
seus grandes conceitos sem a influência dos poetas, em especial Homero e Hesíodo. Depois houve
outros poetas que também foram importantes, como Tirteu, Arquíloco, Alceu, Safo e inclusive o
grande Sólon, que também foi célebre político ateniense10.
Para compreendermos a origem da filosofia grega, é preciso, além de recorrer aos poetas,
buscar também entender o processo cultural e político enfrentado pelos gregos, conforme vimos
durante a explicação das obras dos poetas. Não há como separar: a filosofia grega, em sua forma
racional e sistemática mais bem acabada, surge juntamente com as cidades-Estado.
O filósofo surge junto com o político. As culturas anteriores possuíam a figura do político e
suas organizações político-jurídicas, mas não eram analisadas sistematicamente e racionalmente tal
como faziam os gregos. A Política como ciência, que concebia as formas de organização social, de
governo, do problema da validade e da imposição das leis, de quem e como deve governar, tudo isso
é criação grega. Não há entre os hebreus, egípcios, chineses ou indianos um estudo tão sistemático
da Política como aquele realizado por Aristóteles, nem uma preocupação da união indissolúvel entre
política e educação como faz Platão na República.
Os gregos se atreveram a trazer o conceito de Justiça para o âmbito público, social, do cidadão
da polis, situação impensável no mundo anterior, que remetia a uma divindade transcendente toda a
problemática da verdade e da Justiça, de forma que o homem, como adorador dos deuses, existia para
praticá-la e aperfeiçoá-la no mundo terreno, sem contudo ter poder para contestá-la ou mesmo modificá-
-la. No mesmo período e no mesmo lugar nasceram a Filosofia e a Ciência Política. Vejamos agora como
se dá esse processo e a que ponto o político contribui com o surgimento do pensamento filosófico.

1.4 A Justiça como questão filosófica


Com a explosão do comércio marítimo e a expansão dos domínios gregos, a vida pública
tornou-se progressivamente mais importante, com as discussões políticas e jurídicas ocupando
grandes centros de debate da polis. O novo cenário ampliou os horizontes dos gregos e foi propício
para o surgimento de novas ideias e discussões sobre questões éticas, jurídicas e políticas. Embora
a esfera religiosa jamais tenha deixado de influenciar a sociedade grega, vivia-se um momento em
que o homem cada vez mais ousava contrair para si diversos assuntos.
Entre essas ideias ousadas está a alta estima tanto pelos poetas como depois também pelos
filósofos acerca dos conceitos de Direito e Justiça e a atribuição da importância dessas categorias para
a organização da comunidade. A grande novidade trazida pelos gregos está no fato de conceber a
comunidade como uma organização essencialmente humana, tendo suas concepções e determinações
político-jurídicas como materialização da vontade de seus próprios cidadãos.

10 Para maiores informações sobre esses outros poetas, é interessante observar o capítulo dedicado a eles na Paideia,
de Jaeger, e também a obra de Donaldo Schüler, Literatura Grega (SCHÜLER, 1985).
28 Filosofia do Direito

Ainda que nos séculos seguintes a administração do Direito permanecesse nas mãos dos
nobres, que controlavam leis não escritas e aplicadas a toda a população, a nova concepção humanista
de Direito permitiu aos cidadãos em geral contestar esse abuso político por parte dos magistrados.
A oposição entre nobres e cidadãos livres acabou gerando o movimento de positivação dos direitos,
em que as leis passaram de não escritas a escritas, de forma que poderiam valer igualmente para
todos. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (JAEGER, 2003, p. 134).
Nesse processo, os grandes porta-vozes da violência causada pelos magistrados foram justamente
os poetas, em particular Hesíodo. A luta pela diké seria então a luta pela aplicação do Direito, o
que envolveria, inclusive, a luta de classes. “Hoje, como outrora, podem continuar a ser os nobres,
e não os homens do povo, os juízes. Mas estão submetidos no futuro, nas suas decisões, às normas
estabelecidas na diké” (JAEGER, 2003, p. 134). Contudo, inclusive antes de Hesíodo, a vontade de
conceber a Justiça como uma fonte indispensável para a organização social já se via nos poemas
homéricos.
Homero representa ainda o início desse longo processo que é a passagem do Direito de sua
condição essencialmente divina para uma construção humana. Em Homero, o Direito é designado
com o termo themis, um “compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores.
Etimologicamente significa ‘lei’” (JAEGER, 2003, p. 134). A themis era concedida por Zeus aos reis
nos tempos homéricos. Tão antigo quanto o conceito de themis é também o de diké.
O conceito de diké não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual
e é tão velho quanto themis. Dizia-se das partes contenciosas que “dão e recebem
diké”. Assim se compendiava numa só palavra a decisão e o cumprimento da
pena. O culpado “dá diké”, o que equivale originariamente a uma indenização,
ou compensação. O lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, “recebe
diké”. O juiz “reparte diké”. Assim, o significado fundamental de diké equivale
aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa ao mesmo tempo,
concretamente, o processo, a decisão e a pena. (JAEGER, 2003, p. 134-135)

Nesse sentido, enquanto a themis está relacionada à autoridade da lei, à sua validade e
aplicabilidade a todos os cidadãos, a diké se refere à sua própria aplicação. Na themis observa-se
muito mais um princípio primeiro da fundamentação jurídica, da qual provém a legitimidade para
imposição da lei, enquanto na diké vemos o próprio movimento de realização do Direito e, por
isso, abrange na mesma palavra as ideias de processo, sentença e pena. Ademais, a aproximação
da diké a uma ideia de equidade, em que o Direito se reparte de forma justa a todos os cidadãos,
tornou-se o fundamento principal para as lutas de todos em nome de seus direitos. Como cada um
tem parte nessa ideia de Justiça, possui também o direito de lutar por seu direito. Dessa forma, a
hybris: violação diké representa também o direito de cada cidadão a lutar contra a hybris, que por sua vez equivale
dos limites que o
homem deve manter à ação contrária ao Direito.
na relação consigo
Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por
e com os outros, a
perda do equilíbrio isso, significa o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se
nas ações. poderá apoiar quem for prejudicado pela hybris – palavra cujo significado
original corresponde à ação contrária ao Direito. Enquanto themis refere-se
principalmente à autoridade do Direito, à sua legalidade e à sua validade, diké
significa o cumprimento da Justiça. Assim se compreende que a palavra diké
se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em
Introdução ao pensamento filosófico 29

que se batia pela consecução do Direito a uma classe que até então o recebera
apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à diké tornou-se
de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente. (JAEGER,
2003, p. 135)

Na diké o cidadão encontrava o fundamento para poder reclamar a Justiça, o que significa
enfrentar o próprio Direito estabelecido naquele momento. O Direito dessa forma já não era algo
consolidado como uma manifestação divina, que não podia ser contestado pelo cidadão comum, mas
um movimento formado, também, pela luta pelo Direito11. Como síntese, o Direito entre os gregos
tornou-se um processo de formação, o homem desenvolvia-se ao mesmo tempo que desenvolvia
a ideia de Direito.
A igualdade é o conteúdo principal da diké, o objetivo de se dar a cada um o que é seu, uma
prerrogativa de fazer todos os cidadãos livres iguais perante o Direito. A partir daí a igualdade
ocuparia sempre lugar central nas discussões jurídicas e políticas, chegando a influenciar os grandes
filósofos Platão e Aristóteles: “A exigência de um Direito igualitário constitui a mais alta meta para
os tempos antigos” (JAEGER, 2003, p. 136).
Nessa nova concepção de Direito, os nobres tiveram que também se submeter à igualdade
de todos. Essa igualdade, contudo, não poderia ser resumida em uma igualdade de todos perante
a lei, mas sim da própria acepção de Direito. O Direito assemelha-se a uma medida para decidir as
questões entre o “‘meu’ e o ‘teu’” (JAEGER, 2003, p. 136), de tal forma que se possa fixar o Direito,
atribuindo a cada um o que é seu. Essa mudança, visando a uma igualdade jurídica e política,
operou-se ao mesmo tempo em que se delimitava, na esfera econômica, a fixação de medidas e pesos
para o intercâmbio de mercadorias. Assim como a economia fixava a medida e o peso, o Direito
fixava as normas. Logo, trata-se de um movimento amplo no qual o que se apresenta é a própria
formação do povo grego, um desenvolvimento cultural sem o qual seria impensável o surgimento,
por exemplo, da democracia, que para ser instituída depende do princípio de que todos são iguais
perante a lei. “Procurava-se uma ‘medida’ justa para a atribuição do Direito e foi na exigência de
igualdade, implícita no conceito de diké, que se encontrou essa medida” (JAEGER, 2003, p. 136).
A delimitação de medidas foi essencial para a construção do Direito, não somente no sentido
positivo, da produção e aplicação de normas, mas também na própria esfera moral, na delimitação
e fixação de condutas que não poderiam ser praticadas. Desde os tempos primitivos encontram-se
na literatura e na mitologia menções a delitos, como o assassínio, o adultério, o furto e o rapto.12
Essa delimitação de condutas, de limites às ações humanas, inclusive anteriores à fixação de normas,
provém de um conceito ligado à ideia de diké, o termo díkayosine, que não possui uma tradução
moderna equivalente. A dikayosine representa a medida abstrata, mas amplamente efetiva, que
constituía o conteúdo essencial das primeiras leis escritas.

11 Percebe-se já entre os gregos o fundamento principal para a luta pelo Direito como condição para a existência do
próprio Direito, antecipando em muitos séculos a concepção do Direito como luta, de Jhering.
12 Ésquilo narra em Prometeu Acorrentado a história do furto do fogo dos deuses por Prometeu, que o entregou aos
mortais, assim como na Ode a Deméter vemos o relato do rapto de Perséfone por Hades, e inclusive a conclusão do
Direito como uma medida justa, em que a vítima permaneceria metade do ano na Terra e a outra metade no mundo dos
mortos, gerando as quatro estações. Percebe-se como as noções de medida e delimitação já estavam desde sempre
presentes na mentalidade grega.
30 Filosofia do Direito

O novo termo proveio da progressiva intensificação do sentimento da Justiça


e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa arete.
Originariamente, as aretai eram tipos de excelência que se possuíam ou não.
Nos tempos em que a arete de um homem equivalia à sua coragem, colocava-
-se no centro esse elemento ético, e todas as outras excelências que um homem
possuísse se subordinavam a ele, e deviam pôr ao seu serviço. A nova dikayosine
era mais objetiva. Tornou-se a arete por excelência, desde o instante em que se
julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação escrita
do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações,
ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como
mais tarde a “virtude cristã” consistiria na obediência às ordens do divino.
(JAEGER, 2003, p. 137-138)

A dikayosine, nesse sentido, era a expressão positiva e mesmo ética de um ideal de homem,
de um elevado tipo de homem dotado de certas virtudes, tal como o guerreiro antigo que deveria
guiar-se pela coragem. As leis do Estado não seriam obedecidas simplesmente por sua autoridade
coercitiva, mas por serem a expressão desse sentimento de Justiça, dessa fixação do justo e do
injusto ao qual o homem grego se submetia. As leis escritas refletiam os costumes, que por sua
vez representavam esse critério criado em um processo histórico e espiritual da Justiça como uma
virtude. Nessa perspectiva, o Direito era resultado da Justiça, da medida e do critério que delimita
o justo e o injusto, e seguir o Direito significaria viver conforme esse ideal virtuoso de homem.
Delineia-se aqui o essencial papel que cumpre o ideal de formação de homem na cultura grega, em
que mesmo o Direito deveria ser utilizado para a formação do homem, do cidadão, do membro da
polis. Com a Justiça sendo inserida como virtude central da polis, abandonou-se a concepção anterior
da valentia como arete máxima, advinda da sociedade espartana, voltada principalmente às guerras,
mas surgiu a necessidade de cultivar um novo tipo de homem, aquele relacionado essencialmente
às atividades públicas, sejam elas jurídicas, políticas, artísticas ou intelectuais em geral. Não era
mais a guerra o centro das disposições de vontade do homem grego, mas a cultura e a organização
social. “O conceito de Justiça, tida como a forma de arete que engloba e satisfaz todas as exigências
do perfeito cidadão, supera naturalmente todas as formas anteriores” (JAEGER, 2003, p. 139).
A Justiça como virtude cardeal, que resume todas as demais, tal como afirmariam
posteriormente Platão e Aristóteles, apresenta essa nova forma de pensar criada pelo homem grego,
derivada do crescimento tanto econômico como cultural da polis. Desse processo advém todo o valor
de o homem grego sentir-se parte de seu Estado; seu sentimento pátrio estava em viver conforme
aquelas virtudes preceituadas por ele e inseridas no espírito da constituição. Também por esse
motivo, o Estado deveria promover a educação a todos os jovens, com ensino público, porque
somente assim teria a certeza de que a juventude seria formada dentro do seu ideal de homem,
conforme as virtudes que determinavam o conteúdo de sua constituição. O ensino público não
existia simplesmente por ser uma obrigação estatal, mas por essa necessidade pedagógica (JAEGER,
2003, p. 141). É por essa razão que Platão e Aristóteles afirmam que cada Estado, pela lei, expressa e
interioriza nos seus cidadãos o seu ideal de homem. Para os gregos, como vemos, a legislação possuía
por conteúdo sua mais elevada condição. Sua existência não estava apenas na regulamentação da
sociedade, mas essencialmente na educação, no cultivo de seu tipo ideal de homem.
Introdução ao pensamento filosófico 31

A herança de normas jurídicas e morais do povo grego encontrou na lei a sua


forma mais universal e permanente. Platão culminou a sua obra, de Filosofia
Pedagógica com a sua conversão em legislador, na última e maior das suas obras;
e Aristóteles conclui a Ética com o apelo a um legislador que lhe realize o ideal.
A lei é também uma introdução à Filosofia, na medida em que, entre os Gregos,
a sua criação era obra de uma personalidade superior. Com razão, o legislador
era considerado educador de seu povo, e é característico do pensamento grego
que ele seja frequentemente colocado ao lado do poeta, e as determinações da lei
junto das máximas da sabedoria poética. Ambas as atividades são estreitamente
afins. (JAEGER, 2003, p. 143)

Ética e Direito entrelaçam-se a tal maneira que quase passam a entender-se como sinônimos.
Pela Ética, o Estado tinha a garantia à educação de seu Direito, de suas leis; e pelas leis, pelo Direito,
o Estado garantia também a formação do seu ideal de homem, cultivado naquelas virtudes que
sua Ética consagrou. Nessa comunidade ética, o cidadão vivia conforme a vida política, cívica,
em que ele próprio existia no Estado e participava do bem comum, dos interesses gerais da polis.
Essa existência pública e política imprimia no espírito do cidadão um dever ético de realizar e
viver também para a evolução do Estado, da comunidade. Como o Estado lhe concedia inúmeros
direitos, oriundos da antiga diké e do seu princípio da igualdade, entre eles a educação pública,
era seu dever contribuir com o crescimento do Estado. Dessa necessidade resultou o crescimento
intelectual, profissional e espiritual do homem grego. Em sentido prático, isso inclui a grande
transformação na sociedade grega, a passagem da antiga sociedade rural dos tempos hesiódicos a
uma polis urbana, voltada essencialmente aos interesses citadinos. A habilitação profissional não
era apenas dever por ser o trabalho uma atividade que desenvolve a si próprio, mas também para
contribuir com a polis. Se o cidadão recebia a educação, sentia-se no dever de tornar-se cada vez
mais um melhor profissional. O Estado é a essência do cidadão grego para onde dirigem todas
as suas atividades espirituais. Para esse modelo de homem, fazer parte do Estado era sentimento
de felicidade, de viver conforme o ethos.
É um cosmos legal segundo esse velho modelo helênico – onde o Estado seria o
próprio espírito e a cultura espiritual visaria o Estado como seu fim último – o
que Platão esboça nas Leis. Ali ele define como oposta ao saber especializado
dos homens de ofícios, negociantes, merceeiros, armadores, a essência de toda a
verdadeira educação ou paideia, a qual é educação na arete que enche o homem
do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e
obedecer, sobre o fundamento da Justiça. (JAEGER, 2003, p. 146-147)

A educação política, ou ainda a techné política, não pode ser ensinada como se faz com o techné: ofício,
habilidade, arte,
ensino das profissões especializadas em uma atividade, porque nesses casos exige-se sobretudo a ciência aplicada.

parte técnica, enquanto na arte política não basta o caráter técnico, os saberes teóricos e práticos, mas
a educação do ethos, da arete. Não se pode medir o cidadão pelo seu conhecimento, mas pelo seu
caráter, pelo cultivo que fez das virtudes e da educação político-humanista concedida pelo Estado.

1.5 As principais disciplinas da Filosofia


Após estudarmos o surgimento da Filosofia, é importante apresentá-la de forma geral em suas
principais disciplinas, que depois se aprofundam e fundamentam as grandes discussões sobre a verdade,
32 Filosofia do Direito

o conhecimento, a justiça, entre outras categorias fundamentais. Esse estudo introdutório é essencial
para compreendermos os pensamentos elaborados pelos filósofos que ainda serão abordados.
A Filosofia pode ser dividida em três grandes disciplinas, partindo destas todas as demais
áreas do conhecimento filosófico e, por conseguinte, também todo o conhecimento científico, dada
sua vinculação genealógica com a Filosofia. Essas três grandes áreas são a Ontologia, a Epistemologia
e a Ética.
A Ontologia13, o estudo do ser, pode ser entendida como o estudo que busca conhecer o ser e
seus modos. É a disciplina da Filosofia que pretende identificar as essências dos seres e seus acidentes,
aquilo que especifica qualquer coisa, individuando-a ante as demais, bem como os acidentes, os
elementos que qualificam essa substância individuada. Trata-se da mais abstrata, porém mais
profunda das áreas da Filosofia, pois estuda os elementos que constituem toda a realidade. Por
tal motivo, a Ontologia ocupa-se também do estudo das causas dos fenômenos, até encontrar um
princípio primeiro, de onde partem todos os demais, sendo chamada, assim, de Filosofia Perene. Com
a Ontologia, entra-se no estudo da causalidade, sendo o ser humano um efeito de uma vasta lógica
que se origina no Ser. A natureza humana é conferida pelo Ser, de tal modo que o aprofundamento
dos estudos ontológicos facilita a compreensão da própria natureza humana.
Outra grande área de estudo da Filosofia é a Teoria do Conhecimento14, também chamada de
Epistemologia15 e de Gnoseologia16, que se ocupa do modo de conhecimento do homem e de como
esse conhecimento poderá ou não ser considerado verdadeiro, científico (episteme), caracterizando-se
na segunda situação meramente como uma opinião (doxa). Busca encontrar a evidência que ateste a
veracidade de um conhecimento, pressuposto essencial para se fazer Filosofia ou ciência. Dentro da
Epistemologia, estudamos o limite do conhecimento humano e quais instrumentos o homem utiliza
para conhecer o real.
Além da compreensão de que o homem existe (Ontologia) e conhece (Teoria do Conhecimento),
a Filosofia também compreende a Ética17, a qual enfrenta o problema de qual comportamento se deve
adotar. A Ética é a doutrina da Filosofia que, centrada no próprio homem enquanto indivíduo e enquanto
sociedade e na sua conduta, pressupondo a orientação da conduta humana a um padrão ideal, tem em
vista simplesmente o agir ideal ou o alcance de uma finalidade maior. A Ética é a dimensão filosófica que
estuda como agir, como viver, como orientar a própria existência rumo à felicidade.
O homem deve aprimorar seus modos de contatar (Epistemologia) a realidade (Ontologia)
e a partir daí discernir as ações adequadas a cada momento (Ética). A Ética é certamente uma das
áreas que mais desperta interesse na Filosofia, tendo em vista sua conotação essencialmente prática,
de ação diária, mas ela somente alcança máximo significado e funcionalidade quando é coordenada
em harmonia com a Epistemologia e a Ontologia. Se o sujeito não capta a partir da realidade o que
é melhor para ele a cada instante, como poderá agir de modo funcional para si?

13 Palavra composta pelas raízes gregas ontos, genitivo do particípio presente do verbo ser, e logos, ciência, estudo.
14 Termo comumente usado na língua portuguesa, francesa (théorie de la connaisance) e alemã (Erkennthistheorie).
15 Do grego episteme (conhecimento, ciência) e logos. Esse termo é mais utilizado pelos filósofos ingleses.
16 Do grego gnosis (conhecimento) e logos. Termo mais usado na língua italiana.
17 Do grego ethos, costume.
Introdução ao pensamento filosófico 33

A Filosofia Prática, ramo em que se encontra a Ética, compreende ainda a Filosofia Política,
parte da Filosofia que orienta e organiza a vida do homem em sociedade, e a Filosofia do Direito,
que toma para si a investigação sobre os fundamentos da Justiça e do Direito, a legitimidade das
normas jurídicas e a relação entre o Direito e os indivíduos e instituições.

1.6 A Filosofia do Direito


Sendo o Direito uma realidade social, presente em qualquer sociedade e cultura, não pode a
Filosofia prescindir de analisar esse importante fenômeno18. A Filosofia do Direito não é disciplina
jurídica, mas a aplicação da Filosofia ao campo jurídico. Miguel Reale delimita muito bem a diferença
entre a pesquisa jurídica e a pesquisa filosófica do Direito:
Enquanto que o jurista constrói a sua ciência partindo de certos pressupostos,
que são fornecidos pela lei e pelos códigos, o filósofo do Direito converte em
problema o que para o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo.
Quando o advogado invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente
tranquilo, porque a lei constitui ponto de partida seguro para o seu trabalho
profissional; da mesma forma, quando um juiz prolata a sua sentença e a apoia
cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar cumprindo sua missão
de ciência e de humanidade, porquanto assenta a sua convicção em pontos ou em
cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do Direito,
ao contrário, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por
que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o
juiz a não se revoltar contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está
apreciando, uma vez convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça
da lei vigente? Por que obriga a lei? Como obriga? Quais os limites lógicos da
obrigatoriedade legal? (REALE, 2002)

A Filosofia do Direito, portanto, tem a missão de examinar criticamente o Direito, analisar


as temáticas jurídicas não do ponto de vista legal ou jurisprudencial, mas do universal, do próprio
conhecimento. A Filosofia Jurídica busca encontrar a verdade no Direito, aqueles princípios primeiros
que depois dão fundamento a todas as construções jurídicas. Pode-se dizer que o filósofo vê o Direito
de cima, de uma certa distância, ou seja, ele não está condicionado a interpretar o fenômeno jurídico
a partir das categorias que o próprio ordenamento jurídico de cada país estabelece, é antes um atento
observador, que racionalmente e cautelosamente percebe as incoerências e formula os fundamentos
capazes de contribuir com a evolução da estruturação do Direito.
O Direito examina e formula suas leis, suas normas jurídicas, mas a Filosofia examina esse
exercício, busca o conceito de Direito, contextualizando sua função ao movimento social e cultural
da humanidade. A Filosofia tem prerrogativa para afirmar se uma lei é justa ou injusta, porque
sua crítica não parte de um dado posto, mas do universal. Ela entende o Direito como um enorme
processo histórico, que se adequa de modo diferente a cada espaço e tempo. O direito positivo,
o direito natural, o ordenamento jurídico, a necessidade, a função, o surgimento e o conceito do
Direito, tudo isso é temática da Filosofia do Direito.

18 “O Direito é realidade universal. Onde quer que exista o homem, aí existe o Direito como expressão de vida e de
convivência. É exatamente por ser o Direito fenômeno universal que é ele suscetível de indagação filosófica.” (REALE, 2002)
34 Filosofia do Direito

Ademais, a ciência que dá fundamento ao Direito, a Ética, é disciplina essencial ao pensamento


filosófico. O agir humano sempre foi objeto de discussão da Filosofia. Como deve agir o homem?
Quais critérios determinam um agir correto? Há leis que regulam a existência? Qual é a finalidade
da ação humana?
Desde Sócrates não há mais como separar o Direito da Ética. A Ética está acima das normas
e leis jurídicas, é o exame das ações humanas e tem prerrogativa para analisar o Direito, porque
estuda a natureza humana e tenta formular princípios para que o indivíduo se desenvolva e se realize
tendo em vista essa natureza humana. Com efeito, o Direito deve prestar atenção à Ética, pois ambos
trabalham com o agir humano e todas as consequências que advêm disso para a sociedade.

Considerações finais
A Filosofia nasce como necessidade humana de compreender a si e ao mundo, de certa
forma decorrência da própria condição racional do homem. A partir da Filosofia, a humanidade
espera se aproximar das respostas àquelas perguntas mais centrais: quem somos? De onde viemos?
Qual é o nosso papel na existência? Por que vivemos em sociedade? O que devemos construir
em nossas vidas?
A inquietação filosófica já é percebida nas religiões, nas mitologias, porque também o
pensamento mítico é uma tentativa de explicar a realidade. Não sem motivo, os primeiros filósofos,
na Grécia antiga, foram bastante influenciados pelos mitos.
A mitologia grega tinha nos poetas Homero e Hesíodo dois dos grandes pilares. Em ambos
notamos profunda preocupação com a formação humana, em como ajudar o indivíduo a realizar
uma existência superior. Homero trabalha a virtude heroica, a capacidade de transcender a própria
condição atual fazendo exteriorizar as potencialidades que cada pessoa carrega dentro de si. Homero
instiga o homem a se tornar herói, responsável pela própria existência. Já Hesíodo reforça o trabalho
como elaboração do mundo, capacidade de domínio de si e da própria condição existencial. Trabalhar
é exercer ato virtuoso.
Em ambos percebemos respeito por certa ordem cosmológica, de certa forma divina, que se
o homem compreende e respeita, vive melhor. A realidade é anterior ao homem, somos partes do
mundo e devemos compreendê-lo para viver melhor. Entender a si e ao mundo é o pontapé inicial
da Filosofia.

Ampliando seus conhecimentos


• HOMERO. A Ilíada. Trad. de Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
Narrativa mais celebrada da mitologia grega, conta as façanhas de Aquiles e outros heróis
gregos e troianos na guerra mais famosa de toda a literatura ocidental. O poeta Homero
não apenas descreve os acontecimentos, mas busca encontrar as causas dos eventos, as
motivações que impelem humanos e deuses a agirem de determinada forma. É uma
homenagem às ações heroicas e vencedoras, estímulo para nossas realizações diárias.
Introdução ao pensamento filosófico 35

• HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo:
Iluminuras, 1989.
Obra repleta de sabedoria moral, que enaltece a virtude do trabalho, de conquistar com
os próprios méritos aquilo que se deseja. O poeta apresenta um mundo no qual as ações
são recompensadas positivamente sem ter em vista as motivações e finalidades de nossas
escolhas. As ações justas levam a uma vida interior mais plena, e as ações injustas conduzem
a dor, sofrimento, dificuldades múltiplas. É preciso conquistar com a própria inteligência
e suor cada meta de nossas existências.

• ODISSEIA. Direção de Andrei Konchalovsky. EUA/Inglaterra/Itália/Turquia/Alemanha/


Malta: Alpha Filmes, 1997. 1 fita de vídeo (173 min.), VHS, son., color.
Filme que traz a história do retorno de Odisseu (Ulisses) para sua casa, enfrentando inúmeras
problemáticas com deuses, monstros e humanos. Cada passagem é um aprendizado moral,
existencial, de como lidar com as questões internas, com as questões afetivas. Além disso,
há várias cenas práticas de como liderar equipes vencedoras. Exemplo de como utilizar a
mitologia para pedagogia contemporânea.

Atividades
1. Em Homero, todos os personagens recebem contornos heroicos, no sentido de que uma
vida ativa, ainda que de riscos, é mais válida que a vida passiva. Transporte essa questão para
os dias de hoje, refletindo sobre a necessidade de uma postura mais ativa para conquistar
protagonismo existencial/profissional/social, explicando o papel da coragem na construção
da própria carreira.

2. Por que o mito pode ser entendido já como uma transição ao pensamento filosófico?
Apresente alguns pontos de convergência entre mitologia e filosofia.

3. Hesíodo apresenta o trabalho como condição existencial de realização humana. Reflita acerca
do valor do trabalho como transformação do mundo e da construção da própria dignidade.

4. Apresente de que modo o operador social (jurídico, empresarial, político etc.) pode utilizar
as áreas da Ontologia, da Epistemologia e da Ética no seu cotidiano para obtenção de
melhores resultados.

Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. de Marcelo Perine. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e
comentários de Giovanni Reale. São Paulo: Loyola, 2002. v. 2.

ASSUNÇÃO, Teodoro Rennó. Ulisses e Aquiles repensando a Morte (Odisseia, XI, 478-491). Kriterion: Revista
de Filosofia, Belo Horizonte, v. 44, n. 107, jun./2003.
36 Filosofia do Direito

BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. v. 2.

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução, introdução e comentários de Mary de C. N. Lafer. São Paulo:
Iluminuras, 2002.

HIRSCHBERGER, Johannes. História da Filosofia na Antiguidade. 2. ed. Trad. de Alexandre Correia. São
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JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. Trad. de Artur M. Parreira. São Paulo:
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LAÊRTIOS, Diogenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2. ed. Trad. de Mário da G. Kuri. Brasília:
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MUÑOZ, Alberto Alonso. O nascimento da Filosofia. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto (coord.). Curso
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REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Trad. de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993.

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SCHÜLER, Donaldo. Literatura Grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

SCHÜLER, Donaldo. A Construção da Ilíada: uma análise de sua elaboração. 2. ed. Porto Alegre: LP&M, 2004.
2
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

No primeiro capítulo, vimos que a dimensão filosófica estava presente em todo o espírito
grego, desde a mitologia até as grandes obras literárias. Naquele momento, demos atenção maior aos
dois mais célebres poetas, Homero e Hesíodo. Neste capítulo, aprofundaremos o impacto filosófico
em outra manifestação artística, o teatro, em suas duas principais vertentes: a tragédia e a comédia.
No teatro grego, os personagens escolhem seus caminhos existenciais, e seus acertos e erros
são julgados conforme a perspectiva da felicidade e da infelicidade colhida com as ações. Muitas
vezes uma figura divina era usada para fazer essa análise das condutas humanas. As tragédias são
os dramas em que, a partir do sofrimento, do suspense, da dor revelada ao longo da trama, busca-se
fazer catarse, purificação interior, argumento que será melhor desenvolvido adiante. Já nas comédias,
prevalece o cômico como forma de autoconhecimento: na caricatura, no riso diante das situações
apresentadas, a plateia vê a si mesma imersa naquela realidade. Seja pela dor, seja pelo riso, o objetivo
é, a partir das histórias e personagens, responsabilizar o público por suas escolhas existenciais.
Assim, a tragédia faz da ideia do destino humano e do seu respectivo curso o princípio de
toda sua construção, com todas as inevitáveis ascensões e quedas. O gênero trágico educa o homem
justamente ao representar os tipos de vícios e erros que as pessoas cometem, a consequência de tais
atitudes na vida do personagem e daqueles que o circundam. Nas tragédias, invariavelmente notamos
a dor, demonstrando que, para fazer determinadas passagens na vida, o sofrimento torna-se uma
importante condição. A dor pode ser o resultado de escolhas existenciais equivocadas, mas também
a purificação, porque o processo de formação exige sempre certa dose de sofrimento físico e mental.
Por sua vez, as comédias não se utilizavam exclusivamente da mitologia para reproduzir sua
mensagem, mas tendiam a focar na realidade cotidiana. Os antigos a denominaram “espelho da
vida” (JAEGER, 2003, p. 416), pelo modo como se retratava a natureza humana e suas fraquezas,
pois com sua representação exagerada e cômica da realidade também atuavam como uma forma
de educação do seu espectador.
Quadro 1 – Características dos gêneros teatrais da Grécia Antiga

Gênero Características Principais autores


• Sofrimento físico e mental como forma de purificação
Tragédia • Uso de mitos para representar a vida na polis Ésquilo, Sófocles e Eurípides
• Evidencia o caminho para o desenvolvimento humano

• Representação da realidade cotidiana


• Uso de personagens comuns na sociedade
Comédia Aristófanes
• Reflete a natureza humana e suas fraquezas de modo
cômico
Fonte: Elaborado pelo autor.
38 Filosofia do Direito

Portanto, neste capítulo, propomos analisar as principais obras da tríade dos grandes
tragediógrafos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, bem como do comediógrafo Aristófanes.
A partir desses célebres autores, poderemos colher conteúdos valiosos tanto para a história da
filosofia como para aplicações jurídicas, econômicas, políticas e sociais aos dias atuais.

2.1 Ésquilo
Já de início, destacamos que, no mundo grego, o teatro não integrava apenas o mundo lúdico,
mas era também parte do sagrado, do pedagógico, do político. A palavra teatro, analisada em sua
origem etimológica, significa “o lugar onde deus escorre”, “como deus corre e se manifesta”, “como
deus se faz diante do povo” (MENEGHETTI, 2007, p. 7). Disso já podemos inferir que as encenações
teatrais possuíam um espírito pedagógico aliado à experiência religiosa, tratando-se do modo pelo
qual o divino se revelava ao humano. Isso ocorria não somente na dimensão da perfeição estética,
como manifestação artística que era, mas também como forma de levar os espectadores a uma
profunda reflexão sobre a conduta humana.
Característica que marcava as tragédias era a representação do mito como forma de expor os
temas vividos na polis, ponto de partida de seu ideal de formação humana. Desse modo, os mitos
não eram utilizados tanto como manifestação religiosa, mas muito mais como instrumentos de
pedagogia. As ações dos humanos, heróis e deuses eram representadas para fazer transparecer ao
público dilemas e questões existenciais, sociais, políticas e jurídicas que eles mesmos viviam. O foco
era a responsabilização da plateia diante do próprio destino. As histórias tentavam demonstrar que
determinada ação gerava tal consequência, ou seja, que o nosso futuro é efeito das escolhas atuais.
É a responsabilização por fazer o presente com o máximo vigor e inteligência.
Neste meio temos Ésquilo, autor de tragédias que nasceu e cresceu no período dos governos
tirânicos em Atenas. Viu a queda destes e a ascensão do novo governo ateniense, instituído pela
reforma de Sólon. Essa experiência do nascimento da democracia ateniense e a vitória grega na
Guerra Médica tiveram marcante influência no modo como ele construía suas peças. Conforme
Jaeger (2003), essas vivências são os sólidos vínculos com que Ésquilo unia a sua fé no Direito às
realidades da nova ordem. O Direito, para Ésquilo, era atemporal, uma ordem cósmica que envolvia a
todos, humanos, deuses, animais, toda a realidade, a lógica que estrutura a própria realidade, gerando
efeitos precisos a partir das escolhas individuais de cada ente (seja ele humano, herói ou divindade).
Desse modo, o autor enaltece o ideal do homem heroico, mas contextualizado com a realidade
urbana de sua época. Trata-se do retrato do homem que somente pode se realizar enquanto cidadão
ao exercer suas atividades na polis (JAEGER, 2003). Nesse escopo, ao representar as figuras dos
cantos heroicos, Ésquilo não as retrata do modo como haviam se consagrado nas épicas homéricas,
mas utiliza-as como um fundo vazio, pelo qual expunha as ideias que deles se formavam. Como
resultado, por exemplo, o Zeus de Prometeu Acorrentado representa a figura do moderno tirano, e o
Agamemnon, na tragédia de mesmo nome, comporta-se de modo totalmente diverso do retratado
por Homero (LESKY, 1995).
Ésquilo utilizava-se de uma estrutura trilógica em suas tragédias, pois desse modo podia
simbolizar um dos mais intrincados problemas refletidos em sua produção – a transmissão das
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 39

maldições familiares. Assim, o autor conseguia retratar o destino de um mesmo herói em uma série
de fases, como em Prometeu Acorrentado, Libertado e Portador do Fogo, ou de gerações, como na
Oréstia (LESKY, 1996).
“O problema do drama em Ésquilo não é o Homem, mas sim o destino. O homem é o portador
do destino, os homens não são os verdadeiros atores, mas sim as forças sobre-humanas” (JAEGER,
2003, p. 301). É precisamente na contínua intromissão dos deuses e do destino que a mão do poeta
se revela. A divindade é sagrada e justa, sua ordem é eterna e inviolável, em contraposição, pela
cegueira do homem, que persiste em errar, este incorre no castigo. “A ideia esquiliana de destino
está totalmente compreendida na tensão entre a fé na justiça inviolável, na ordem do mundo, e a
emoção resultante da crueldade demoníaca e da perfídia de Ate” (JAEGER, 2003, p. 305). Devido a
Ate1, o homem é levado ao desprezo da ordem e ao sacrifício necessário para restaurá-la.
O ideal trágico em Ésquilo pode ser muito bem retratado pela análise da trilogia de Prometeu2,
mais especificamente da única obra que nos foi legada completamente, Prometeu Acorrentado
(JAEGER, 2003, p. 309). Essa é a tragédia de um gênio; enquanto nas demais obras o trágico vem
de fora (uma ação provocada por forças maiores), em Prometeu a origem é no próprio personagem,
sua natureza e sua ação. Prometeu, assim, diz: “Eu havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu
crime! Eu o quis, conscientemente, não o nego!” (ÉSQUILO, 1998, p. 119).
Ao contrário do prevaricador castigado pelo crime de roubar o fogo dos deuses retratado
por Hesíodo, Ésquilo representou nessa façanha de Prometeu o símbolo sensível da cultura, do
desenvolvimento humano. Celebra-se nessa peça o herói devido aos benefícios que trouxe à
humanidade, ajudando-a no seu esforço para progredir enquanto indivíduos e enquanto civilização.
O fogo, nesse sentido, significa a capacidade de conhecer, desvelar o mundo e utilizar-se da própria
razão para desenvolver-se.
Quando o coro de Prometeu diz que só pelo caminho da dor se chega ao mais elevado
conhecimento, atinge-se o fundamento do pensamento teológico de Ésquilo. Esse espírito encontra-
-se em todas as suas obras, e essa é a maior conclusão que se pode chegar acerca do autor. Conforme
Lesky: “Agindo, o homem cai em culpa, toda culpa encontra sua expiação no sofrimento, e o
sofrimento leva o homem à compreensão e ao conhecimento. Esse é o caminho do divino através
do mundo, tal como Ésquilo o viu” (LESKY, 1996, p. 119).
Assim, pode-se dizer que é pela força da dor que o coração do homem experimenta a
passagem ao triunfo divino. O homem trágico expande sua harmonia oculta com o ser e ergue-se,
por sua capacidade de sofrimento e por sua força vital, a um grau superior de humanidade, ou seja,
possibilita-se a ele, por intermédio desses instantes, a realização das passagens essenciais ao seu
desenvolvimento próprio.
A função da experiência da dor na tragédia é promover a catarse, que em grego indica
purificação. É o ato de, pela dor emocional, pelo arrebatamento interno das paixões e sentimentos,
trazer à consciência algo que incomoda, que machuca profundamente. A partir da conscientização

1 Ate personificava a ruína enviada pelos deuses (ROMILLY, 1998, p. 59).


2 Titã que na mitologia grega roubou o fogo dos deuses e o levou até os homens em um ato de amor à humanidade
da qual ele próprio havia sido o criador.
40 Filosofia do Direito

dos próprios dilemas a pessoa sofre dor, mas com isto passa a ter condição de mudar a condução de
sua existência para que esta se torne mais serena e feliz. A catarse busca facilitar o autoconhecimento.
A obra de Ésquilo visa à profunda autorresponsabilização diante do próprio futuro existencial,
observada a própria dimensão divina. Em Ésquilo, há uma ordem superior que condiciona a
existência humana, de tal forma que a pessoa não é inteiramente livre para viver da maneira que
preferir, porque algumas escolhas podem ser incoerentes com a lógica que estrutura nosso corpo,
nossa sociedade. Ésquilo ensina que há algo de sacro em nossa vida, por isto não podemos ser
irresponsáveis com aquilo que pensamos, com aquilo que comemos, com aquilo que fazemos, com o
modo de selecionar nossas amizades, nossas relações, nossos trabalhos, porque nem tudo é aceitável
diante de nossa base ontológica. Ésquilo recomenda a humildade diante do cosmo. O planeta já
estava aqui quando nascemos, a sociedade com suas regras, idem, de tal modo que devemos entender
toda essa complexidade e sermos muito sérios em nossas decisões. A frustração, ensina Ésquilo, é
sempre, em algum grau, resultado de uma infantilidade do sujeito, tal como confessou o próprio
Prometeu, porque sabia o que deveria fazer ou que não deveria fazer, mas sua consciência optou de
outro modo. A cada derrota, a cada dia não perfeito, devemos revisar as escolhas feitas e identificar
quando fomos superficiais, infantis, não seguimos a intuição de nossa dimensão divina. Ou isto,
ou viveremos de tempos em tempos em sofrimento, porque já existe uma estrutura ontológica no
mundo – o problema está na nossa consciência e em suas escolhas existenciais. Para Ésquilo, a dor
pode ser evitada, desde que sigamos nossa dimensão ontológica.

2.2 Sófocles
“Sófocles é considerado, tanto pelos antigos quanto pelos atuais pensadores, como o apogeu do
drama grego devido ao rigor da sua forma artística e à sua luminosa objetividade” (JAEGER, 2003,
p. 317). Característica marcante de suas tragédias é a representação das grandes questões que geram
a crise do ser humano. As paixões mais violentas, os sentimentos mais ternos, as crises familiares
que cruzam gerações, a dificuldade de lidar com os instintos, com as emoções e, sobretudo, o perigo
de não conhecer a si mesmo são profundamente semelhantes à atualidade, motivo que justifica a
constância de suas peças nos repertórios de representações artísticas.
Com Sófocles, pela primeira vez, as personagens evidenciam a existência de um condicionamento
inconsciente ao erro já dentro da pessoa, de uma estrutura que coage o sujeito a repetidamente selecionar
o que não é funcional para a própria vida, colhendo sempre a dor e a frustração. O trágico em Sófocles
é a impossibilidade de o homem evitar a dor. Já não há mais o protagonismo da concepção religiosa
do mundo, e a face do destino agora volta-se a este aspecto: a dor do homem em sua existência por
estar sempre sendo dirigido por uma dimensão inconsciente, de tal modo que, por mais que pense,
raciocine, acaba invariavelmente decidindo contra a própria vida.
Postos esses elementos, torna-se possível uma análise mais cuidadosa de duas célebres obras
do autor: Édipo Rei e Antígona, componentes da trilogia tebana, junto da tragédia Édipo em Colono.
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 41

Édipo Rei é a primeira peça da trilogia sobre a tragédia na linhagem dos Labdácidas3.
Contextualizando a obra na mitologia grega, primeiro há de se considerar a maldição lançada
sobre Laio, ponto de partida de toda a intencionalidade que carrega as desgraças em sua família.
Sua origem foi o encantamento que Laio teve por Crísipo, filho do rei Pélops. Apaixonado, raptou
Crísipo enquanto se hospedava na residência de Pélops, sendo por isso amaldiçoado pelo rei, que
desejou que Laio morresse sem deixar descendentes.
Posteriormente, Laio casa-se com Jocasta e torna-se rei de Tebas. Em consulta a um oráculo,
descobre que, como castigo por sua paixão antinatural, se tivesse um filho, este o mataria. Jocasta
engravida, e Laio, temeroso de seu futuro, ordena que tão logo o bebê nasça deveria ser assassinado.
Recém-nascido, o infante é deixado preso pelos pés em uma árvore, mas é salvo por pastores e levado
a Corinto, onde é adotado pelo rei Pólibo. Deu-se o nome de Édipo ao bebê, que quer dizer “pés
inchados”, alusão aos ferimentos decorrentes da tentativa de assassinato (MENEGHETTI, 2006).
Certo dia, Édipo é insultado por um ébrio, que o chama de filho adotivo. Ao procurar o
oráculo de Apolo, descobre que mataria seu pai e se casaria com sua mãe. Para evitar o cumprimento
da profecia, abandona o lar e foge para o caminho oposto a Corinto, Tebas. No trajeto, encontra-
-se com um carro distinto, no qual vinha um homem idoso seguido por seus criados. O senil grita
insolentemente para que Édipo deixe o caminho livre, e Édipo, absolutamente irado, mata o senhor
e seus servos, seguindo seu rumo.
A cidade de Tebas estava temerosa, pois a Esfinge4 encontrava-se em uma rocha no caminho
para a cidade. Édipo resolve o enigma do monstro, que em seguida se mata. Ao ser liberta do mal
que a afligia, Tebas o coroa rei e concede Jocasta como esposa (KURY, 2004). Esses fatos não são
reproduzidos na peça, que se inicia com Édipo já coroado governante de Tebas, contudo são de
essencial importância para a compreensão do desvelar do enredo.
Em suma, Édipo Rei reflete o modo como Édipo, por mais que se fizesse de desentendido
do assunto, descobre que, ao assassinar a distinta pessoa no caminho para Tebas, assim como ao
assumir o trono, casando-se com a rainha Jocasta, nada mais fizera do que tornar aquelas predições
que o fizeram mudar-se de Corinto uma realidade.
No início da peça, Tebas está sendo assolada por uma forte seca. Ordenada a consulta ao
oráculo, tem-se a notícia de que para purificar a cidade seria necessário desterrar ou sacar a vida do
culpado da morte de Laio. Tomado pela ânsia de descobrir quem é o assassino e recuperar a ordem
da cidade, Édipo ordenou que lhe trouxessem o sábio Tirésias para que este revelasse a verdade ao
rei. Após muito pressionar o sábio ancião, Édipo ouve que o assassino é ele próprio, levando-o a
repreender Tirésias por tais palavras, entendendo-se acusado injustamente.
Anunciado seu triste fim, Édipo ordena que retirem de sua presença o sábio, porém, logo na
saída, novamente lhe é lançada a dúvida sobre sua linhagem. Édipo, transtornado, passa a acusar

3 Relativo à geração oriunda de Lábdaco, genitor de Laio.


4 Monstro metade homem, metade animal, que se encontrava sentado em uma rocha no caminho para Tebas e
propunha enigmas aos passantes que se dirigiam até a cidade; aqueles que não conseguissem resolver seus enigmas
eram devorados. A Édipo foi proposto o seguinte: “qual é o animal que de manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e
ao entardecer três?”. O príncipe responde que é o homem, pois “na infância se arrasta sobre pés e mãos, na idade adulta
anda e na velhice recorre ao auxílio de um bastão”.
42 Filosofia do Direito

todos, até que, ao ouvir as palavras do pastor que havia sido encarregado de matá-lo quando recém-
-nascido, a verdade torna-se tão clara que o rei não mais podia desviar seus olhos dela. Édipo começa
a sentir culpa pelo que fez e a fazer-se de vítima do destino. Jocasta, constatando que Édipo havia
descoberto toda a verdade que ela escondia, suicida-se, e Édipo, ao saber que sua mãe e esposa sacou
a própria vida, escolhe não mais enxergar, cegando-se (SOFÓCLES, 2004). Ele decide, então, que deve
ser expulso da cidade. Antígona, sua filha, acompanha seu pai, tornando-se sua guia e cuidadora.
A análise dessa obra se concentrará no seu aspecto existencial. Isso significa que, ao analisar o
que o texto revela, levaremos em conta principalmente os elementos que são de extrema importância
para a vida atual, para o ser que se manifesta aqui e agora, posto que, conforme já mencionamos, a
intemporalidade de suas tragédias é uma das principais marcas de Sófocles.
Característica marcante em toda a peça é a presença da culpa, que circunda as principais
personagens. A ideia de maldição presente na obra, muito mais do que o reflexo dos anseios divinos,
expõe um projeto equivocado, que tem sua causa primordial na situação de Laio, mas que é renovado
por todo personagem em um dado momento, produzindo, assim, todo seu efeito devastador na
vida de cada sujeito.
Enquanto a culpa imperava em todas as personagens da obra, o espírito de impunidade para
consigo próprio era evidente, tendo como grande marca a sentença “eu não sabia”. Tirésias, quando
destaca que a realidade por trás da situação poderia atingir o governante de Tebas, recebe ofensas
à sua integridade e à sua qualificação como sábio – essa é a manifestação da defesa de Édipo à sua
própria situação.
Tirésias é o verdadeiro exemplo do sábio conselheiro na obra: apesar de ter ciência de toda
a situação que envolvia a cidade de Tebas, apenas elucida a existência do problema. Porém, ante a
ignorância de Édipo e ciente do risco que correria ao revelar a verdade, percebendo que Édipo estava
a fugir de sua responsabilidade, colocando a culpa nos outros e utilizando-se de sua autoridade
para reafirmar-se, o sábio se retira, deixando o governante permanecer em dúvida e preservando
sua própria vida.
Quando, no final, todas as revelações são feitas, a chamada peripécia5, Édipo depara-se com
o fatídico destino do qual buscara evadir-se – de fato havia assassinado seu próprio pai e se casado
com sua mãe. Jocasta, personagem que durante toda a peça estava ciente da realidade, ao perceber
que havia perdido o controle sobre a situação de domínio de seu filho e esposo, é levada pela culpa
a cometer suicídio.
Édipo, demonstrando que apesar de todo o ocorrido não decidiu responsabilizar-se pela
culpa que possuía, ao cegar-se nada mais faz do que tentar voltar à ignorância da realidade. O ato
de deixar de ver, nesse sentido, simboliza a fuga da realidade, da dura verdade recém-apresentada
ao governante. Ironicamente, após todos esses fatos, Édipo sai de Tebas acompanhado de Antígona,
deixa de ser filho de Jocasta para tornar-se filho, dependente, de sua própria filha, demonstrando
que o ciclo de infantilidade é mantido na personagem.

5 Definição formulada por Aristóteles na Arte Poética.


Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 43

Há de se considerar o quanto Édipo representa uma boa parte de todo ser humano. Aquela
parte que, por mais que esteja diante de um grande problema ou de uma grande verdade, prefere
ignorar tal situação, fazer-se de inocente para não ter de enfrentar a realidade, por falta de coragem
e também por ser mais cômodo assegurar-se em uma figura materna que o mantenha sob seu
controle e regimento. Para ele, enfrentar a vida e buscar dentro de si um critério para sua conduta
é um desafio quase impossível. Se Prometeu ao menos expressava conscientemente que optou por
um caminho, Édipo prefere fazer o papel da vítima.
Édipo Rei nos revela que diante de uma realidade superior e anterior, que é a intencionalidade
ao erro, representada pela ideia de “maldição”, infelizmente aquele que é capacitado a não se deixar
influenciar por esse ciclo destrutivo acaba decidindo mantê-lo, sem ter coragem de enfrentar e
superar tal situação, sofrendo as consequências dessa triste escolha, deixando, assim, a grandeza
da própria vida.
Enquanto o Prometeu de Ésquilo, a partir da experiência da dor, alcança o conhecimento,
ou seja, transcende a dor para se aproximar da verdade, o Édipo de Sófocles acaba por mergulhar
sempre mais no sofrimento, sem conseguir transformar a própria vida.
Édipo foi conduzido por uma dimensão inconsciente, uma programação anterior que o
encaminhava àquelas escolhas existenciais erradas. Não sem razão, parte da abordagem do célebre
psicanalista Sigmund Freud nasce justamente do impacto com as grandes tragédias gregas, que a
todo momento ilustram personagens falindo porque não tomam consciência das informações, dos
impulsos que correm dentro de si. Em síntese, Sófocles primeiro argumenta que Édipo, sim, foi
conduzido por intencionalidade inconsciente a gerar a própria desgraça a partir do assassinato do
pai e do casamento com a mãe, mas que em dado momento ele começou a ter consciência disso
e ainda assim decidiu não enfrentar a realidade, não mudar o curso dos acontecimentos, decidiu
ser “cego”, tal como fisicamente o faz ao final da peça. Assim é a tragédia individual cotidiana, que
primeiro erra por inconsciência, mas depois por consciência opta por ser cego e permanecer no erro.
A continuação da tragédia é Édipo em Colono, na qual Antígona faz o papel maternal para seu
moribundo pai. Passemos à obra que finaliza a trilogia, centrada na frustração pessoal de Antígona,
herdeira dessa série de intencionalidades destrutivas.
Já Antígona ocorre cronologicamente após um evento que não é trabalhado por Sófocles: o
episódio dos sete reis contra Tebas. Após Édipo abandonar Tebas, seus filhos, Etéocles e Polinice,
passam a disputar o trono da polis. Ambos haviam firmado o acordo de se revezarem no poder, porém
Etéocles, ao assumir o trono, decide não mais compartilhá-lo com o irmão. Polinice abandona, então,
a cidade-Estado e mobiliza o exército de seis reis contra sua terra natal. Ambos os irmãos morrem
na batalha, um transpassando sua lança contra o outro. Ao final, Tebas sai vitoriosa, e Creonte, tio
dos falecidos guerreiros, torna-se o governante (ÉSQUILO, 2007).
Logo após tomar posse do trono, Creonte profere o célebre édito que dá princípio à tragédia:
Etéocles, que morreu lutando pela cidade, deveria ser sepultado com todos os ritos a que tinha
direito; Polinice, por outro lado, por ter atacado a pátria, deveria permanecer insepulto, servindo
de alimento às aves e aos cães. Àqueles que descumprissem o comando do soberano de Tebas seria
imposta a morte (SÓFOCLES, 2006).
44 Filosofia do Direito

Antígona, desconsiderando a ordem de seu tio, decide dar os devidos ritos e enterrar seu
irmão, incitando sua irmã Ismênia a acompanhá-la, a qual, temerosa da ameaça imposta aos
descumpridores do decreto, não a segue. Mesmo sem apoio, Antígona executa seu plano e enterra
seu irmão. Os guardas responsáveis por vigiar o corpo encontram-no enterrado, informam a
Creonte o ocorrido e o desenterram. Antígona, então, reitera sua conduta, é surpreendida pelos
guardiões e entregue a Creonte.
O governante de Tebas condena sua sobrinha a ser encerrada viva dentro de uma caverna,
porém o que ele não sabia era o preço que pagaria por tal atitude. Contrariando a tudo e a todos para
dar cumprimento ao seu decreto, supostamente em nome da cidade e dos deuses, Creonte estava
infringindo na realidade os anseios das divindades. Tirésias, o velho sábio, surge trazendo a triste
revelação ao tirano que insistiu em manter sua atitude equivocada.
Buscando evitar a fúria divina, Creonte vai dar o funeral devido a Polinice, porém já era
tarde. Inconformada com o decreto do tio, Antígona se enforca com um pano de linho fino. Hémon,
filho de Creonte e noivo de Antígona, pranteando sobre o cadáver da amada e prometida esposa,
suicida-se com sua própria espada e morre ao lado de Antígona. Informada da morte de seu filho,
Eurídice, esposa de Creonte, também acaba com sua própria vida. O tirano, desiludido com todas as
desgraças que o vitimaram, termina a peça a lamentar todos os eventos que ocorreram (SÓFOCLES,
2006). Muitas interpretações foram formuladas sobre essa obra. Nesse momento, propomo-nos a
seguir a linha de análise já adotada ao tratar sobre a obra Édipo Rei, concentrando-nos no aspecto
existencial e na relação da peça com a ideia de justiça.
A interpretação mais comum da obra vê no conflito entre Antígona e Creonte o embate
entre o direito natural e o direito positivo, entre o direito dos deuses, da tradição, e a ordem da
cidade (ROSENFIELD, 2002). Nesse sentido, Antígona, ao guardar as antigas tradições, buscando
enterrar seu irmão, estava resguardando o mandamento anterior e superior às leis da cidade. Esse
seria o Direito natural, representado na peça como sendo o Direito dos deuses. Creonte, por sua
vez, estaria defendendo o direito positivo, ou seja, o Direito criado pelos homens para reger suas
próprias relações. Nessa interpretação, Creonte estaria buscando defender a cidade e sua honra ao
proferir seu édito.
A defesa dessas teses é percebida em variados trechos da própria obra. Antígona, quando
apresentada a seu tio e inquirida por este a explicar o porquê de descumprir o decreto, diz que
não foi Zeus quem o proclamou, nem a justiça que estabeleceu tal regulamento aos homens, e,
por não considerar que as ordens de Creonte tivessem o poder de superar a ordem das leis não
escritas, sempre vivas e de origem imemorial, é que teria agido de tal modo (SÓFOCLES, 2006).
Creonte, por sua vez, sempre que tratava sobre sua decisão, referia-se a ela como uma medida
em favor da cidade e da sociedade tebana. Mencionava sua decisão como um prêmio ao irmão que
bravamente sacrificou-se pela guarda de Tebas e um castigo a Polinice, considerado traidor e, por
isso, condenado ao eterno sofrimento.
A atrocidade da decisão de Creonte para os gregos era enorme, pois tinha como pano de
fundo a relação destes com o outro mundo. Conforme Coulanges (1999), para a religião grega, a
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 45

libação: ato de
passagem da morte somente era dada com o enterro e as libações. A alma que não tivesse sepultura borrifar um líquido
não teria morada, seria errante. Portanto, ao condenar Polinice a permanecer sem um digno enterro em intenção de uma
divindade
e com seu corpo entregue à ação do tempo e das feras, Creonte na realidade estava condenando
a alma daquele ao sofrimento eterno, impedindo-o de fazer sua passagem ao mundo dos mortos.
Além desse importante significado, a leitura de Antígona nos traz outra questão. Baseando-se
na relação que as personagens tinham entre si e toda a evolução trágica na família de Lábdaco, não
podemos considerar que a obra concentrava-se tão somente nesse aspecto. Há de se relevar que,
conforme tratou Rosenfield, “Creonte desejava livrar-se da geração de Édipo, pois com a morte de
Etéocles e de Polinice, restavam somente Antígona e Ismênia como portadoras da maldição dos
labdácidas” (ROSENFIELD, 2000, p. 45).
Ademais, Antígona estava prometida a casar-se com seu filho Hémon e, portanto, a assumir o
poder de Tebas. Com a morte de seus irmãos, ela era a filha epicler, ou seja, todos os filhos oriundos
dessa relação pertenceriam à geração de Édipo. Pode-se dizer, portanto, que Creonte encontra no
decreto um modo perfeito de atingir Antígona. O édito do tirano não foi elaborado principalmente
para prevenir que qualquer cidadão enterrasse Polinice, mas, em vez disso, direcionava-se a Antígona,
pois ele já sabia que ela iria descumprir a ordem e que, desse modo, ele teria legitimidade para poder
sacar sua vida, purificando sua geração sem que lhe incorresse culpa alguma.
Nesse sentido, Rosenfield (2000) expõe que é estranha a veemência de Creonte, normalmente
tão pacato. Parece que o decreto do tirano foi, na realidade, elaborado para incitar Antígona à
transgressão fatal, protegendo seu filho de um casamento “maldito”. Reforça-se esse argumento ao se
considerar que a proibição do enterro de Polinice era um ato que já extrapolava a práxis em relação
aos criminosos de guerra – deixar os corpos destes fora dos muros da cidade para que seus familiares,
às escondidas, os recolhessem e os sepultassem sem um túmulo glorioso (ROSENFIELD, 2002).
Antígona, por sua vez, por meio do seu sacrifício, seu martírio, mais do que lutar pela justiça,
por um digno enterro a seu irmão, encontrava na afronta a Creonte, mesmo com a perda de sua
vida, um modo de atingir o poderio dele e derrubar o injusto decreto. Demonstra-se a importância
de um desígnio subjetivo para barrar um ato objetivo indevido, o ímpeto de Antígona contra um
decreto descabido.
Ao final, constata-se que esses personagens apenas deram continuidade ao destino maldito já
anteriormente programado. Pensando estar procedendo livremente, apenas se entregaram ao destino
e à desgraça, sem agir em conformidade com aquilo que os conduziria ao melhor de si, acabaram
sendo apenas agentes do destino fatídico que já se demonstrava presente. Assim como em Édipo Rei,
os personagens de Antígona, por própria opção, acabam dando continuidade à maldição familiar.
Daí que é essencial cada pessoa investigar aquilo que corre dentro de si, aquelas informações
oriundas dos ambientes nos quais fomos formados, e identificar o que é funcional a mim e o que está
programando futuros erros. Todos temos uma dimensão inconsciente, mas continuar inconsciente é
uma decisão voluntária, que depois tem seu preço a pagar, um preço que pode ser uma dificuldade de
relação, uma perda de negócio, uma frustração profissional, uma angústia, uma doença psicossomática
ou qualquer outra dificuldade existencial. Sófocles não culpa a família enquanto instituição abstrata
46 Filosofia do Direito

pela tragédia, mas responsabiliza cada membro que, mesmo tomando contato com esta realidade,
decide permanecer nela.

2.3 Eurípides
Eurípides é o último dos grandes tragediógrafos gregos, do período em que Atenas já havia
alcançado seu apogeu e começava a entrar em declínio. Inclusive, é na tragédia de Eurípides que
começa a ser denunciada a “crise do tempo” (JAEGER, 2003, p. 386). O autor viveu na época
posterior à sofística (filósofos muito voltados aos debates sociais e políticos, que estudaremos em
outro capítulo), motivo pelo qual notamos a impregnação da ideia desses pensadores e de sua arte
retórica em suas peças. Além disso, é nessa época que ocorre a migração da Filosofia da Jônia
para Atenas, quando as ideias dos filósofos chamados pré-socráticos oxigenavam o pensamento da
metrópole crescente e também influenciavam o autor. Os chamados pré-socráticos serão objeto de
estudo de nosso próximo capítulo.
Para Eurípides, a poesia conserva ainda o antigo papel de guia da conduta humana. Porém,
além disso, ela abre o caminho ao novo modo de pensar que estava fervilhando naquela época.
Assim, com o autor há a retomada dos problemas dos dramas de Ésquilo, a relação do homem com
o divino, contudo, sob um ponto de vista totalmente diverso, baseado na racionalidade do homem
ateniense de sua época. O espaço das tramas agora é o mundo citadino, das relações sociais e dos
envolvimentos cotidianos. Não são mais os deuses em discussão, os heróis, nem mesmo as grandes
famílias aristocráticas, como os labdácidas da trilogia analisada em Sófocles, mas a vida do cidadão
comum. Sim, os mitos continuam sendo os instrumentos, com seus personagens divinos e heroicos,
mas com a finalidade não tanto de apontar uma ordem cósmica, um destino inexorável, mas, sim,
tribulações e dilemas existenciais comuns das pessoas.
Podemos exemplificar as passagens dadas pelo pensador ao trabalharmos com uma de suas
tragédias: Medeia (EURÍPIDES, 2007). Essa é a história da esposa que, ao ser trocada por outra
mulher, faz de tudo para se vingar de seu ex-marido, o herói Jasão, levando-o ao sofrimento. Sem
se importar com o que fosse necessário para alcançar tal intento, Medeia meticulosamente planeja
a morte da futura esposa de Jasão, filha do rei de Corinto. Ao final, para garantir a completude de
sua vingança, ela saca a vida de seus próprios filhos, produzindo em seu ex-marido a almejada dor.
Nessa tragédia, é possível encontrar a discussão sobre vários aspectos da vida em sociedade.
Discutem-se as relações sexuais e toda a problemática da psicologia feminina. Por serem as mulheres
de Atenas demasiado “toscas e oprimidas demais ou cultas demais” (JAEGER, 2003, p. 399), o poeta
escolheu a bárbara Medeia para mostrar esse modelo feminino, livre das limitações da moral grega.
Além disso, em Medeia discute-se a posição social do homem e da mulher, a relação entre eles e o
costume do casamento. Portanto, utilizando-se do mito como pano de fundo, Eurípides demonstra
os problemas da burguesia ateniense. Eurípedes não explica a tragédia de Medeia devido a um
destino traçado pelos deuses, a uma ordem cósmica ou a uma intencionalidade amaldiçoada que
atravessa gerações familiares, mas como uma frustração existencial própria, um desconhecimento
diante da própria psicologia, da própria administração das paixões, que depois desagua em catástrofe
também para outros (o ex-marido, a outra esposa, os próprios filhos). Ésquilo ensina a cuidar de
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 47

si, a olhar para como alimentamos nossos pensamentos, perceber quais emoções recebem nosso
reforço, porque depois isso se torna história concreta no exterior. As tragédias externas nascem
primeiro dentro da pessoa, que por superficialidade decide não a evitar.
Eurípides retrata com profundidade o mundo subjetivo dos seus personagens, reflete a
descoberta dessa realidade na época em que a civilização helênica vivia em seu auge. Considerado
esse universo, o homem em Eurípides é forçado a reconhecer sua absoluta carência de liberdade
(LESKY, 1996). Encontra-se na tragédia Hécuba: “Nenhum mortal é livre: ou é escravo do dinheiro,
ou do seu destino, ou então é a massa que governa o Estado ou são as limitações da lei que o impedem
de viver segundo seu arbítrio” (EURÍPIDES, 2008).
Eurípides aborda sempre uma subjetividade que depois apresenta dificuldades de ser
exteriorizada no mundo, porque ela é contrária às instituições, aos costumes ou às vontades alheias.
Medeia tem dificuldade em mediar a própria subjetividade diante das opções existenciais diversas
feitas por Jasão e, então, procurar impor a própria subjetividade ao outro, o que, invariavelmente,
tende a produzir problemas para si e para o outro. Eurípedes, portanto, é o poeta que busca ensinar
cada um a conhecer e mediar a própria subjetividade no mundo, na relação com os outros e com as
instituições. Aquele que não for competente nessa área acabará colidindo com as estruturas afetivas,
sociais, culturais, econômicas e jurídicas que organizam a sociedade. Não pode o operador social
querer impor a própria subjetividade ao cliente, ao Estado, às regras do mercado; ele deve dominar
a própria subjetividade e a partir dela aprender a mediá-la em funcionalidade com os outros. Isso
não significa abandonar a própria subjetividade, a própria individualidade, mas, sim, administrá-la
em sucesso próprio na relação com o mundo.

2.4 Conclusões sobre a tragédia


Pelo que foi até aqui apresentado, podemos dizer que as tragédias, por meio de suas
representações dos conflitos, resultados insatisfatórios, quedas e crises humanas, buscam evidenciar,
pelo trágico, o caminho para o desenvolvimento humano e as suas dificuldades.
É importante destacar como essas obras expunham que essas relações conflituosas pessoais,
com o tempo, se não sanadas, geram um determinado estilo de vida. Passam anos, e o indivíduo
segue o mesmo modelo, de tal modo que depois começam a aparecer tal como se fossem a identidade
da pessoa, ela é quem ela é porque vive determinados estereótipos familiares e sociais. As pessoas vão
escondendo essas situações-problemas, fazendo de conta que não veem, tal como Édipo fez. Quando
há um grande problema, não assumem que ele existe, simplesmente fogem da situação. Assim, deixam
ao governo ou às organizações o papel de tomar conta dessas dimensões, livrando-se da necessidade
de se responsabilizar pela vida. Mais uma vez, como Édipo, nunca tomam responsabilidade total,
sempre procurando um culpado para punir pela suposta falta. Porém, conforme ensinam as tragédias,
uma hora a ignorância dessas questões existenciais não basta. Quando o trágico se evidencia na vida,
há que se resolver o problema a partir dos instrumentos jurídicos, morais e políticos disponíveis.
O operador social que não começar a tomar consciência das informações inconscientes que
correm dentro de si poderá, a qualquer momento, vir a se envolver em situações prejudicais aos
seus negócios e à sua vida em geral. Se há uma programação direcionada a um tipo de falência, a
48 Filosofia do Direito

um tipo de escolha equivocada de relação, a um tipo de autossabotagem em um momento decisivo


para a vida, é preciso tomar consciência dela e superá-la, abandoná-la definitivamente, do contrário
a realidade histórica é inexorável. As tragédias falam muito em destino, porque, de fato, analisando
a história humana, em geral os eventos e as biografias parecem terminar em caos, em dificuldade,
em existência sofrida. Isso não é natural da vida, é o resultado de escolhas equivocadas contra si.
O conhecimento da programação inconsciente ao fracasso hoje possui grande repercussão
com a difusão das abordagens psicológicas. O processo de autoconhecimento na terapia é, em
grande parte, uma trazida à superfície dessas realidades inconscientes que, invisíveis aos nossos
olhos, condicionam nossas seleções e nossas vidas. A necessidade de um destino trágico não vem da
realidade, da grande vida, mas desta programação inconsciente que precisamos conhecer e superar.
Por fim, destacamos a importância do sofrimento como condição para a passagem existencial,
tal como Ésquilo retratava. Para algumas pessoas, determinadas passagens somente poderão ser
alcançadas pela mais profunda dor, posto que diante dela torna-se necessário que o indivíduo perceba
o quão distante está da melhor atitude em relação à sua vida. Essas questões o Direito não alcança,
estas dependem da decisão da pessoa, posto que o Direito se preza à regulação da conduta da pessoa
em relação aos demais somente nas situações de exteriorização dessa problemática em que o sistema
poderá atuar. Em outras palavras, quando o Direito é invocado a agir, a problemática existencial já
foi deflagrada, e o Direito tende a atacar sempre a consequência externa dos erros internos.

2.5 A comédia de Aristófanes


Não é à toa que os gregos denominaram a comédia como “espelho da vida”, uma vez que nela
se pensava na natureza humana e nas suas fraquezas. A comédia é justamente um espelho no qual se
reflete de modo jocoso a conduta dos homens, e, nesse sentido, nenhum outro gênero de arte ou de
literatura pode se comparar a ela. Por meio da efemeridade de suas representações, demonstram-se
certos aspectos eternos do homem que escapam às demais formas de manifestação artística.
Os temas abordados pelas comédias abrangiam toda a dimensão da polis – por tal motivo,
eram temas políticos6. Conforme Jaeger (2003, p. 415): “A comédia visa as realidades do seu tempo
mais do que qualquer outra arte”. Aristófanes não censurava somente aos indivíduos ou a uma
específica atividade política, preocupava-se com a orientação da conduta do Estado e do povo.
Por seu modo de operar, a comédia converteu-se em uma das grandes forças educacionais
de seu tempo. Aristófanes não lutava contra o Estado enquanto organização da sociedade, mas
sim em prol deste, contra os detentores do poder, que utilizavam mecanismos políticos e jurídicos
para benefício próprio em detrimento do bem comum. A comédia não possuía nenhum plano
político organizado, porém contribuía para esmiuçar esse ambiente e impor limites ao poder dos
governantes.
Vivenciando o conflito protagonizado pela nova educação em detrimento do modelo anterior,
Aristófanes, em duas obras, satiriza os protagonistas dessas mudanças no modo de pensar do povo

6 Este termo não deve ser entendido em sua atual concepção, relativo estritamente às deliberações públicas e atividades
legislativas; para os gregos a política abarca o complexo que estes entendiam como sendo de domínio público, todos os
problemas que afetavam o indivíduo e a comunidade.
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 49

ático. Em Os Comilões, ataca a sofística e o seu modo de ensino. Em As Nuvens, dirige suas críticas
à figura de Sócrates, representante em Atenas de outra classe de novos pensadores, os filósofos.
Ao lutar por esse ideal, Aristófanes tem Eurípides como seu inimigo. O autor projeta em
Eurípides toda a corrupção moral que vivia seu tempo. Este, que era tido pelos atenienses como
uma figura divina, é utilizado para simbolizar a passagem crítica dada pelo povo de Atenas.
Na comédia Lisístrata7, as mulheres de Atenas, Esparta, Corinto e Tebas, cansadas das tensões
da guerra e de estarem longe de seus maridos, que batalhavam entre si na Guerra do Peloponeso,
sob a liderança da ateniense Lisístrata, propõem-se a pôr um fim na guerra e alcançar a paz. Para
tanto, o grupo de mulheres se utilizaria da sedução de seus maridos conjugada com a abstinência
sexual. Todas as mulheres das polis envolvidas na guerra firmam o pacto de vestirem as melhores e
mais provocantes roupas, usarem os melhores perfumes e agirem da maneira mais sensual possível
enquanto seus maridos estivessem por perto, sem, porém, entregarem-se a eles. Ao final, tomados
pelo desejo por suas mulheres, sem mais poderem se concentrar na batalha, os homens rendem-
-se à revolução das mulheres e juntos firmam a paz, pondo fim, pelo menos na comédia, à guerra.
Foi nesta passagem, em que se mostrou a íntima conexão da polis com o destino espiritual e
a responsabilidade do espírito criador ante a totalidade do povo, que a comédia, com Aristófanes,
atingiu o ponto culminante da sua missão educacional. Neste caso, de modo lúdico, fazendo rir,
aparentemente com ingenuidade, Aristófanes ensina que o ser humano é inteligente e pode resolver
os próprios problemas, desde que esteja disponível a colher a solução. É, em certo sentido, uma crítica
às tragédias, demonstrando que estas não são obrigatórias e ocorrem por infantilidade humana
quando não são feitas propostas para solucionar as próprias dificuldades.
A comédia, portanto, tem um modo particular de retratar a realidade e pela representação
humorística revela o comportamento humano de um jeito que nem mesmo as tragédias ou epopeias
conseguiram. Essa arte demonstra um refinamento epistemológico, pois não só concebe o que de
fato existe, suas causas, variáveis, limitações e efeitos, como, pela maturidade da interpretação, o
autor ainda consegue fazer uma sátira que possibilita a evidência da situação.
Em um primeiro momento, essa atitude pode ser chocante, parecer uma inferiorização, por
ser jocosa, mas no fundo traz, de maneira particular e direta, como tem se construído a realidade.
Além disso, se não fosse desse modo, aquele que é ironizado resistiria em admitir a veracidade do que
é retratado. Um perfeito exemplo encontra-se na própria comédia Lisístrata, que com profundidade
discute o tema da justiça proporcional e universal. Nesta comédia, as mulheres tomam o poder da
cidade depois de vencerem as eleições disfarçadas de homens. Já no governo, revelam-se e mudam
as legislações, determinando inclusive quais mulheres teriam direito a escolher os homens que lhes
agradassem, por exemplo. É a ideia de justiça distributiva, que tenta dar os devidos direitos, na ótica
daquele povo, aos cidadãos.
Este assunto é de grande importância nas organizações quando, na aplicação de qualquer tipo
de regramento, formal ou informal, surge o problema do tratamento justo daqueles que lá trabalham.
Ao mesmo tempo, todos merecem ser tratados como iguais, enquanto pertencentes àquele grupo,

7 Também chamada de A Revolução das Mulheres (ARISTÓFANES, 1977).


50 Filosofia do Direito

todavia existem momentos em que são diferentes, especialmente no tocante às competências que
cada um possui, de modo que a simples igualdade se tornaria injusta com a parte que se destaca.
A comédia na perspectiva da formação cultural grega é um elemento de grande valor. Tem uma
responsabilidade muito grande em fazer ironia, apresentar de modo cômico uma responsabilidade de
amplitude cultural, institucional e jurídica. Pela comédia relativizam-se condutas, comportamentos,
instituições e legislações. Às vezes com um tipo de ironia refinada, responsável, é possível até mesmo
trazer algumas questões em que a princípio nem se poderia tocar, consideradas como verdadeiras e
indiscutíveis, possibilitando pela sutileza do seu retrato a mudança dessa realidade.
Desse modo, a comédia se apresenta como um modo inteligente de relativizar alguns aspectos
e comportamentos, colocando-os em xeque, possibilitando ao indivíduo e à própria sociedade, por
intermédio dela, repensar-se e compor-se em direção à realização humana.
Quando o sujeito ri de uma situação externa, faz de modo sincero e sem travas, sem
concorrentes. Depois pode, com inteligência, perceber por que riu, identificar que ali estavam
situações que ele vive, que ele conhece, e em muitas vezes é irresponsável. A comédia, de modo
leve, inteligente, estimula a revisão crítica de si mesmo, é um modo criativo de colocar em discussão
as instituições, os costumes, as estruturas sociais. O riso é condição de alegria, é proveniente da
própria vida, é, portanto, um instrumento valioso no autoconhecimento e na análise da sociedade.
As divergências políticas, culturais, não precisam ser agressivas, raivosas, podem ser leves sem
perder a profundidade.

Considerações finais
As tragédias e comédias oferecem enorme conteúdo pedagógico, porque o poder de catarse, de
fazer autoconhecimento pela experiência emocional, possibilita a condição de o espectador e leitor
tomar contato consigo mesmo enquanto aproveita as histórias que se passam diante de si. Da dor
provocada pelas tragédias até o cômico das comédias, quando a pessoa sofre ou ri de um personagem
ou uma situação em dado momento se dá conta de estar conhecendo a si mesmo, porque se aquele
contexto provoca emoção é porque aquelas informações existem também dentro de si.
O operador social, do empresário ao jurista, pode aproveitar muito desse instrumento. O
teatro, a literatura, o cinema, as manifestações artísticas em geral podem ser instrumentos de
autoconhecimento, das dimensões emocionais e afetivas que existem dentro de cada um. A partir
delas, a pessoa pode aprender a decidir melhor tanto na sua vida pessoal como profissional.

Ampliando seus conhecimentos


• ARISTÓFANES. A Revolução das Mulheres. 1. ed. Trad. de Mário da G. Kury. Rio de Janeiro:
Expresso Zahar, 2014.
Comédia sobre mulheres de Atenas que, já cansadas da incompetência dos homens no
governo da Cidade, organizam uma forma de assumir o poder. A história relata esses
acontecimentos e como elas lidam com problemas políticos e sociais nos cargos de poder.
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias 51

De modo cômico, é uma profunda discussão sobre direitos e deveres, política, sociedade,
com temáticas que tocam diretamente a realidade contemporânea.

• ÉDIPO Rei. Direção: Pier Paolo Pasolini. Itália, Marrocos: Arco Film, 1967. (119 min),
son. color.
O filme começa com cenas contemporâneas antes de se deslocar para o cenário na Grécia
Antiga, tentando apresentar a atemporalidade da história de Édipo, de como seus contornos
psicológicos e existenciais afetam pessoas e sociedades de épocas e lugares distintos. Obra
fundamental para compreender a complexidade das relações afetivas humanas, de como
os laços psicológicos construídos na família depois condicionam relações nas demais
instituições da sociedade.

• IFIGÊNIA. Direção: Michael Cacoyannis. Roteiro: Mihalis Kakogiannis. Grécia: Greek


Film Center, 1977. (127 min.), son., p&b.
Filme que apresenta famosa cena enfrentada pelos gregos no caminho para Troia. Uma
série de acontecimentos faz com que eles despertem a fúria divina, somente aplacada se o
chefe Agamemnon oferecer em sacrifício a própria filha, Ifigênia. História de personagens
fortes, na qual se discute a relação entre o indivíduo e a sociedade e como um líder deve
aprender a sacrificar comportamentos, relações e hábitos para alcançar projetos maiores.

Atividades
1. Considerando a realidade contemporânea e os aspectos estudados sobre a tragédia em
Sófocles, especialmente a respeito do decreto de Creonte, é possível dizer que por trás dos
problemas jurídicos há sempre outro conflito, que não se evidencia na questão jurídica?

2. Creonte, com a intenção de livrar Tebas da maldição que assolava a família real e também
proteger seu filho da relação com Antígona, publica seu édito e a condena à morte. Porém,
apesar dessas intenções, as atitudes de Creonte acabam também produzindo a tragédia em
sua própria família. Baseando-se nos estudos deste capítulo, responda qual foi o erro de
Creonte que o levou à perdição.

3. A tragédia Antígona estimula seu leitor à reflexão sobre o conflito entre as dimensões
superiores, anteriores e divinas e as questões da realidade e dos interesses terrenos, na relação
entre o aqui e o agora. Transpondo tais ideias à atualidade, qual paralelo pode ser feito?

4. Baseado nos estudos da concepção de tragédia em Ésquilo, ligada ao desenvolvimento por


intermédio do sofrimento, qual relação pode ser feita com o desenvolvimento do indivíduo?

5. Conforme visto, as comédias possibilitam um diferenciado tipo de formação aos seus


espectadores: elas conseguem lidar com dimensões que não eram alcançadas nem pelas
epopeias, nem pelas tragédias. Qual é o diferencial da formação pelas comédias? Com
52 Filosofia do Direito

base nesse conceito, que relação pode-se fazer com a vida contemporânea, nas relações
pessoais e profissionais?

Referências
ARISTÓFANES. Lisístrata. Trad. de Millôr Fernandes. São Paulo: Abril, 1977.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 17. ed. Trad. de Antonio P. de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro,
2005. p. 258.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. 8. ed. Trad. de Jonas C. Leite e Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1999.

ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. 19. ed. Trad. de J. B. M. e Souza. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 119.

ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. Trad. de Mário da G. Kury. 6.ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003.

ÉSQUILO. Os Sete Contra Tebas. Trad. de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007.

ÉSQUILO. Hécuba. 864. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPEDES. Os Persas, Electra, Hécuba. 6. ed. Trad. de
Mário da G. Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. Trad. de Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

LESKY, Albin. História da Literatura Grega. Trad. de Manuel Losa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

LESKY, Albin. A Tragédia Grega. 3. ed. Trad. de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São
Paulo: Perspectiva, 1996.

MENEGHETTI, Antonio. Psicotea. Recanto Maestro: Ontopsicologica Editrice, 2006.

ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Trad. de Ivo Martinazzo. Brasília: UnB, 1998.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. O segredo dos poetas trágicos. In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr
(org.). Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 158.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Antígona – de Sófocles a Hölderlin: por uma filosofia “trágica” da literatura.
Porto Alegre: L&PM, 2000.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Sófocles & Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Trad. de Mario da Gama Kury.
11. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SÓFOCLES. Antígona. Trad. de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2006.


3
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

Neste capítulo, vamos explorar os pré-socráticos, os quais a história da Filosofia traz


como os primeiros pensadores da filosofia ocidental. A expressão pré-socráticos é de uso recente,
popularizada sobretudo ao longo dos últimos séculos como forma de reunir em um mesmo grupo
todos os pensadores anteriores a Sócrates ou contemporâneos dele. Ao longo da história grega, estes
pensadores eram muitas vezes chamados de físicos, porque em geral sua filosofia era uma tentativa
de explicar a physis, termo grego para natureza, ou seja, uma filosofia que tenta explicar o que é
o mundo, o que é a realidade que nos abrange. Já Sócrates não focará sua filosofia no mundo, na
natureza, mas no próprio homem, ou, mais especificamente, na racionalidade humana.
Isso não significa, contudo, que os chamados pré-socráticos não viessem a se interessar também
pela dimensão humana. Veremos mais adiante que eles deixaram contribuições valiosas também para
a compreensão do homem e sua realidade. No entanto, para eles, o homem era parte de uma grande
dimensão cosmológica, e é estudando essa dimensão que se poderia entender a realidade humana.
Para além das várias escolas de pensamento que existiram no período dos pré-socráticos (e eles
divergem bastante entre si), há uma ideia que os reunia e os diferenciava dos poetas e dos tragediógrafos
e comediógrafos: a necessidade de explicar o mundo a partir de uma causa que possa ser justificada
racionalmente, sem necessidade de recorrer a metáforas ou alegorias míticas, a busca por princípios
que expliquem por que as coisas são como são. Por isso, a physis (natureza) é fundamental para esses
pensadores: não se trata mais de explicar de forma mítica, mas de forma investigativa.
Os pré-socráticos não formavam um bloco único, uma mesma linha de pensamento, mas
várias segmentações que a história da Filosofia chamou de escolas, como a Escola Jônica, a Eleática e
a Pitagórica. Ainda assim, todas elas continham o mesmo fundamento, um pensamento cosmológico
e ligado à natureza, com as concepções baseadas no kósmos (universo) e na physis. As questões
políticas, éticas e jurídicas eram incluídas nesse centro de pesquisas cosmológicas, e não em partes
externas, que merecessem análises particulares.
Essa concentração em uma pesquisa cosmológica gerou histórias como aquela narrada por
Platão no Teeteto, em que alguém ri do filósofo Tales de Mileto porque este, distraído com as coisas
do céu, esquece-se das coisas do mundo e cai num buraco. Essa imagem não pode ser vista como
verdadeira, porque vários pensadores pré-socráticos foram legisladores e políticos em seus tempos.
Anaximandro de Mileto interveio fortemente nos meios sociais, e Parmênides de Eleia, inclusive,
deu leis à sua cidade. Os pré-socráticos não eram alienados da polis, apenas situavam-na dentro de
uma ordem maior e preestabelecida, o cosmos.
[...] é importante verificar que o que é comum ao pensamento pré-socrático é a
preocupação com a vida humana mais concreta, inserida, no entanto, dentro de
uma ordem cosmológica (kósmos) maior que a própria ordem da cidade (polis),
e isso vem revelado não somente pela atuação concreta desses filósofos em
assuntos políticos e legislativos, mas especialmente pela linguagem que utilizam,
54 Filosofia do Direito

carregada que está de metáforas jurídicas, aforismos e significações extraídas da


vida política, da vida cívica, da vida em comum. (BITTAR, 1999, p. 74)

Os pré-socráticos utilizavam-se frequentemente do termo diké para exprimirem seus significados


de justiça, palavra que vem do verbo deíknymi, que significa pedir justiça ou ser acusado dela, e refere-
-se à própria ação da justiça. Vejamos as principais diferenças entre Sócrates e os pré-socráticos:

3.1 A Escola Jônica


Na Escola Jônica encontram-se os primeiros fragmentos acerca de um conceito de justiça
na história da Filosofia. O iniciador dessa escola foi Tales de Mileto (624 a.C. - 546 a.C.), que disse
que a água é o princípio de todas as coisas. Essa tentativa de encontrar uma explicação além da
simples observação sensível fundamenta a passagem do pensamento mítico para o pensamento
racional. Os pré-socráticos, assim como Homero e Hesíodo, pensam o mundo como uma ordem
preconcebida. Embora os mitos já contivessem elementos de racionalidade, e inclusive Hesíodo
mencionasse o oceano como origem das coisas, é somente com Tales que isso se modifica de uma
exposição mítica para um esforço explicador, que tenta encontrar na natureza um porquê de ela ser
o princípio primeiro de todas as coisas. Tales de Mileto fundamentou isso ao observar que todas as
coisas continham água e que a vida frutifica-se a partir do úmido.
Princípio não é certamente um termo de Tales (que parece ter sido forjado por
seu discípulo, Anaximandro), mas é sem dúvida o termo que, melhor do que
qualquer outro, indica o pensamento de que a água é origem de tudo. Pois bem,
o princípio-água não tem absolutamente mais nada a ver com o caos hesiodiano,
nem com qualquer princípio mítico. É, como diz Aristóteles, ‘aquilo de que
derivam originariamente e em que se dissolvem por último todos os seres’, é
‘uma realidade que permanece idêntica na transformação das suas afecções’,
vale dizer, uma realidade ‘que continua a existir intransformada’, mesmo através
do processo gerador de tudo. Portanto, é a) fonte ou origem das coisas; b) foz
ou termo último das coisas, c) permanente sustento (substância, diremos um
termo posterior) das coisas. Em suma, o ‘princípio’ é aquilo do qual as coisas
vêm, aquilo que são pelo que são, aquilo no qual terminam. Tal princípio foi
denominado com propriedade por esses primeiros filósofos (senão pelo próprio
Tales) de physis, palavra que não significa ‘natureza’ no sentido moderno do
termo, mas realidade primeira, originária e fundamental; significa, como foi
bem assinalado, ‘o que é primário, fundamental e persistente, em oposição ao
que é secundário, derivado e transitório’. (REALE, 1993, p. 52-53)

Como Tales de Mileto notabilizou-se também por seus conhecimentos em astronomia,


geometria e meteorologia, entende-se que a água aqui evocada é justamente a água em sentido
material, como princípio elementar da natureza.
Contudo, é com o seguidor de Tales, Anaximandro de Mileto (610 a.C. - 546 a.C.), que o
termo justiça finalmente surge na Filosofia. Anaximandro identifica o princípio de todas as coisas
não na água, mas no indefinido, no ilimitado, aquilo que ele chamou de ápeiron.
Sobre o significado de ápeiron para Anaximandro, temos a explicação de Reale:
Digamos logo que ápeiron é só imperfeitamente traduzido por infinito e ilimitado,
porque contém algo mais que os dois termos portugueses não translatam.
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 55

Ápeiron significa o que é privado de peras, isto é, de limites e determinações


não só externas, mas também internas. No primeiro sentido, ápeiron indica
o infinito espacial, infinito em grandeza, isto é, o infinito quantitativo; no
segundo, ao invés, o indefinido quanto à qualidade, portanto, o indeterminado
qualitativo. O infinito anaximandriano devia ter, pelo menos implicitamente,
essas duas valências: de fato, enquanto gera e abraça infinitos universos, deve ser
espacialmente infinito, e, enquanto não é determinável como a água, o ar etc., é
qualitativamente indeterminado. (REALE, 1993, p. 52-53)

Em um de seus fragmentos encontra-se: “Princípio dos seres [...] ele disse que era o ilimitado
[...]. Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o
necessário; pois, concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo
a ordenação do tempo”1.
O ápeiron é essa lei permanente que governa o cosmos, na perspectiva de que os contrários se
complementam formando uma ordem, uma regularidade, uma certeza e, por consequência, justiça
(BITTAR, 2009). O pensamento de Anaximandro orienta-se no sentido de que há uma justiça no
cosmos que se sustenta em uma espécie de equilíbrio pendular, em que o excesso de um lado exige
ação contrária para restabelecer o equilíbrio original. Por isso o crime não é uma ação que destrói
a ordem, mas uma ação que apenas alarga seu excesso. Para reconstruir o equilíbrio pendular, é
necessária a pena, o castigo, momento em que surge a diké (justiça).
O raciocínio de Anaximandro é particularmente provocante para os dias atuais, pois, em
nossa sociedade, tendemos a atacar e culpar partes do corpo social pelos fracassos gerais. O povo
culpa os políticos pela inércia e improbidade, que por sua vez culpam os empresários por muitas
vezes não lembrarem do social, que também colocam a culpa nos legisladores que criam normas
muitas vezes burocratizantes que dificultam o dinamismo das operações comerciais. Os acadêmicos
e cientistas teorizam e condenam a todos pelas escolhas erradas e também são atacados por todos
por pensarem em demasia e pouco agirem. Em situação ainda mais dramática estão aqueles que
vivem à margem da sociedade, que são sempre vistos como vítimas ou criminosos. Isso tudo é trazido
apenas a título de exemplo. Ora, Anaximandro não retira nada desse equilíbrio pendular, todos os
excessos já fazem parte da ordem, de forma que não adianta culpar aquele movimento contrário
ou a ineficiência daquela parte, pois somos todos partes de um mesmo corpo: a sociedade. Se a
sociedade não está em estado de funcionalidade, não é porque aquela classe ou grupo provocou, mas
porque também nós não fizemos nossa parte, logo também somos responsáveis pelo fracasso. Logo
se vê que Anaximandro pensa o Direito e a justiça muito além dos decretos legislativos e sentenças
dos juízes; as leis e os tribunais são partes do movimento da justiça, e não a diké por completa. A
reflexão de Bittar vem nesse sentido:
Não há separação, portanto, entre a ordem dos fenômenos causais-naturais e
a ordem dos fenômenos ético-sociais; tudo indica que há uma transposição
efetiva da noção de culpa-responsabilidade das relações ético-jurídicas para a
esfera das relações físico-naturais, na medida em que o fragmento revela uma
interconexão mais do que lógica, revela uma implicação ético-jurídica ao nível
do físico natural, a ponto de o kósmos vir-se a revelar a base desse movimento,

1 Fragmento extraído da Física de Símplicio. Os Pensadores


56 Filosofia do Direito

onde o mecanismo da causa-e-efeito funciona como instrumento do equilíbrio


geral das coisas entre si. (BITTAR, 2009, p. 77)

Depois de Anaximandro, a Escola Jônica continuou com Anaxímenes de Mileto (585 a.C. - 523 a.C.),
que identificou como princípio de todas as coisas o ar. O avanço que trouxe Anaxímenes foi no sentido
de acrescentar ao estudo da arché a forma de como se originam desse princípio primeiro todas as demais
coisas, que para esse filósofo se dava nos processos de rarefação e condensação. O ar, quando esquenta,
dilata-se e dá origem ao fogo; quando esfria, contrai-se e dá origem à água e depois à terra. Importante
ainda esclarecer que Anaxímenes concebe seu pensamento partindo não somente do aprendizado com os
predecessores da Escola Jônica, mas também com a prática empírica, pois percebeu que inclusive o homem
vive devido ao movimento de entrada e saída de ar, por exemplo. Além do mais, ao atribuir ao princípio
uma condição determinada, às vezes visível e às vezes invisível, conseguiu inclusive se distanciar de seu
mestre Anaximandro.
Da água de Tales para o ápeiron de Anaximandro e, por fim, para o ar em Anaxímenes: a
busca por um princípio originário, por meio de exames racionais, é a grande contribuição da Escola
Jônica. Os jônicos trouxeram a ideia de ordem no mundo, em que todas as dimensões coexistem em
equilíbrio pendular. A necessidade de explicação talvez seja o argumento principal para demonstrar a
passagem que os filósofos jônicos fizeram em relação aos poetas. Os jônicos foram ainda os primeiros
a pensarem na arché, termo que identifica o princípio, a causa que dá origem ao fenômeno, à coisa.
Investigar a arché é investigar onde inicia, onde está a origem de cada situação, é buscar a causa, sem
se contentar com observações dos efeitos. Também o operador social deve se acostumar a buscar
as causas dos eventos que lhe dizem respeito: quando acerta, por que acertou? E quando erra, por
que errou? Isso é treinar a racionalidade para saber colher a motivação original, a causa de cada
sucesso e insucesso.

3.2 Os pluralistas
Não podemos constituir os filósofos pluralistas como uma escola, pois não houve um contato
entre eles como de mestre e discípulo, tal como ocorria nas demais escolas filosóficas do período. Os
dois maiores nomes dessa linha de pensamento, Anaxágoras de Clazómenas (499 a.C. - 428 a.C.) e
Empédocles de Agrigento (490 a.C. - 430 a.C.), possuíam em comum somente o fato de conceberem a
causa de todas as coisas não em um único princípio, como água, ar etc., mas em uma pluralidade deles.
Empédocles foi o primeiro a identificar conjuntamente a água, a terra, o ar e o fogo como os
quatro elementos da natureza e daí construiu seu pensamento. Esse filósofo dizia que todas as coisas
se formavam a partir da junção ou separação desses elementos, ou seja, pela amizade ou pelo ódio,
e que, portanto, tudo continha esses quatro. Isso significa que a diferença entre todas as coisas se
daria justamente na diferença quantitativa entre os elementos. Para Empédocles, a própria ideia de
elemento indica ser este um dado original, que não pode ser modificado qualitativamente, como
pensavam os jônicos.
A questão do amor e do ódio como é concebida por Empédocles pode ser percebida também
nas dimensões sociais, políticas, jurídicas, econômicas etc. A família se gera pela união e se corrompe
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 57

pela separação; isso também vale para a sociedade. Um contrato também se gera pela união, pela
convergência de interesses, e se corrompe pela ausência deles. Contudo, deve-se ter o cuidado de
não conceber o amor como polo positivo e o ódio, como negativo, assim como corrupção aqui não
necessariamente tem a ideia de corrupção como quebra de princípios, valores etc. Sem a corrupção,
não há quebra da imobilidade, não há movimento. A semente, para tornar-se árvore completa, precisa
negar sua condição inicial, ou seja, precisa haver uma corrupção na sua forma de semente. Nesse
exemplo, a corrupção gera algo positivo, uma árvore. Da mesma forma, uma sociedade em crise
precisa corromper seu sistema atual e adotar novos métodos ou persistirá no erro. O essencial de
se extrair de Empédocles é que a mudança das coisas acontece quando os elementos se tornam um
todo unitário ou deixam de ser esse todo. Nesse sentido, vemos que muitas associações, empresas,
organizações sociais em geral não são reuniões verdadeiras de elementos, mas apenas manutenção de
uma imagem; muitas vezes não existe ali uma união de interesses entre os membros, pois há divergência
de objetivos, ideias, ambições, e nesse caso talvez a corrupção seja uma tendência inevitável. O líder
deve ser este ponto de união, o centro capaz de fazer convergir todas as partes ao todo, mover cada
membro, cada recurso, ao escopo de gerar o bem comum, o benefício da instituição. Assim deve
proceder qualquer responsável por equipe de trabalho, por setor, por empresa, ou instituições em
geral (políticas, sociais etc.).
Já Anaxágoras coloca a pluralidade em princípios múltiplos que ele chamou de homeomerias,
os elementos básicos da natureza, que seriam sementes nas quais estariam já inclusas materialmente
todas as qualidades que depois formariam todos os seres. Anaxágoras trabalha também a ideia
de inteligência (Nous), ou espírito, que, para alguns estudiosos, seria a força que agiria unindo
ou separando as coisas e formando os seres. Para o filósofo, todas as coisas participam de tudo, e
apenas a inteligência é capaz de agir sem receber algo dos outros seres, conforme se esclarece no
fragmento de Anaxágoras:
E visto as porções do grande e do pequeno serem iguais em número, assim
também todas as coisas estariam contidas em tudo. Nem é possível haver nada
de isolado, mas todas as coisas têm uma parte no todo. Como o mínimo não
pode existir, nada se pode dividir nem formar por si, mas, tal como inicialmente,
também agora tem de estar tudo junto. Em todas as coisas há um grande número
de ingredientes, iguais em número nas coisas maiores e nas mais pequenas, que
estão a separar-se. Em todas as coisas há uma porção de tudo, exceto Espírito;
e há algumas em que também existe Espírito. (ANÁXAGORAS, 1994, p. 385)

Há controvérsias entre os estudiosos se a inteligência como apresenta Anaxágoras poderia ser


entendida como alguma forma divina ou mesmo metafísica, como alguma noção filosófica inicial
de uma causa primeira transcendental (Deus). Já outros comentadores em geral preferem entender
a inteligência como uma forma material, ainda que invisível. Como sabemos, por tê-lo encontrado
outras vezes nos pensadores precedentes, o horizonte especulativo dos pré-socráticos ignora as
duas categorias de matéria e espírito, e a introdução dessas como cânones hermenêuticos comporta
uma fatal inflexão do pensamento daqueles filósofos. Justamente por isso, foi observado que com
Anaxágoras “o pensamento do divino se afina, mas não consegue separar-se dos seus pressupostos
naturalistas” (REALE, 1993, p. 148-149).
58 Filosofia do Direito

3.3 A Escola Atomística


A Escola Atomística inicia-se com Leucipo de Abdera (século V a.C.) e consegue seu
ápice com Demócrito de Abdera (460 a.C. - 370 a.C.). Esses filósofos, assim como Anaxágoras e
Empédocles, também situavam o princípio de todas as coisas na pluralidade, em contraposição ao
monismo dos jônicos. Na Escola Atomística, os átomos são o princípio de toda a physis, a origem
de todo o mundo material.
Mas devemos esclarecer ainda um ponto fundamental. Aos ouvidos modernos
a palavra “átomo” evoca inevitavelmente os significados que o termo adquiriu
na moderna ciência, de Galileu à física contemporânea. Pois bem, é preciso
despojar a palavra átomo desses significados, se quisermos descobrir o sentido
ontológico originário segundo o qual entenderam os filósofos de Abdera. O
átomo dos abderianos traz em si o selo típico do pensar helênico: é átomo-
-forma, é átomo que se diferencia dos outros átomos pela figura, ordem e
posição, é átomo eideticamente pensado e representado. (REALE, 1993, p. 154)

Como percebemos, os átomos constituem uma estrutura intrínseca ao ser, pela figura, ordem
e posição. Com esse pensamento concilia-se a multiplicidade na unidade, isto é, um princípio, o
átomo, mas existente em uma multiplicidade, constitui o elemento que dá fundamento a todas as
coisas. Nesse sentido, os atomistas conseguem explicar a diversidade da existência ao mesmo tempo
em que não necessitam recorrer a variados elementos.
A Escola Atomística é considerada, cronologicamente, um momento já de transição
entre o pensamento cosmológico e o pensamento socrático, pois Demócrito inclusive teria sido
contemporâneo de Sócrates. Por isso, a filosofia de Demócrito é repleta de fragmentos que elucidam
também um teor ético, político e jurídico. Em geral, as sentenças de Demócrito defendem uma ética
do dever, como se retrata na frase seguinte: “Abstém-te da culpa não por medo, mas porque se deve”
(REALE, 2003, p. 70). Observa-se também o fragmento em que Demócrito ressalta a necessidade de
se realizar e, sobretudo, realizar obras lícitas e justas: “Os homens não se tornam felizes pelos dotes
físicos nem pelas riquezas, mas pela retidão e pela prudência” (REALE, 2003, p. 70).
As contribuições de Demócrito, portanto, alcançam inclusive o campo da Filosofia Moral, da
Ética, da Política e do Direito. Ademais, como se percebe na última sentença, Demócrito possuía
problemas inclusive com condição existencial, ressaltada nas expressões utilizadas, como “boa
vontade” e “atormenta-se a si mesmo”, no sentido de que viver uma vida sem justiça tende a ser dor
e sofrimento para a própria pessoa, porque aqui a justiça não é entendida em sentido meramente
convencional, de respeito às normas sociais, mas de obediência a uma ordem superior cosmológica
que sustenta também a dimensão humana.
Esses comentários demonstram como Demócrito era um homem consciente de seu tempo
e que sua filosofia não era dirigida somente às questões cosmológicas, mas também ao aspecto
humano, e seu pensamento muito bem poderia ser apresentado como uma forma de pedagogia.
Retomando a questão cosmológica, Demócrito entendia todas as coisas como uma relação
harmônica entre o átomo e o vazio. Nesse sentido, o átomo deve ser entendido como o cheio, o
completo e inteiro. Ou seja, há uma ordem que envolve o preenchimento dos seres, e é justamente
essa relação que fundamenta suas sentenças éticas e jurídicas. Uma das mais célebres frases de
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 59

Demócrito é: “Ceder à lei, ao chefe e ao mais sábio é pôr-se em seu lugar”. Tudo possui um lugar
determinado, uma certa posição, e o indivíduo deve ouvir aquele que é mais sábio que ele. Na
sociedade contemporânea, a pedagogia atomística pode ser identificada em toda organização,
Estado ou qualquer espaço que se regulamente por meio de uma hierarquia que defenda uma
meritocracia, ou seja, um sistema formado por indivíduos, por átomos, e cada átomo em seu
lugar, sendo que os indivíduos mais preparados ocupam lugares determinados, e os indivíduos
que ainda estão em formação devem ouvir os superiores.

3.4 A Escola Pitagórica


Os pitagóricos foram um célebre grupo de filósofos que se notabilizaram por carregar as
mesmas ideias, baseadas na concepção de que o número é o princípio de todas as coisas. O grande
iniciador dessa escola foi Pitágoras de Samos (571/570 a.C. - 500/490 a.C.), figura complexa que
contribuiu enormemente com a Matemática, criou uma seita religiosa, influenciou a construção
da filosofia posterior e realizou ainda estudos em diversas áreas do conhecimento. Os pitagóricos
foram mentes que, da Astronomia à Música, da Matemática à Cosmologia, da Política ao Direito,
tentaram entender o princípio que se situa além da aparência e que dá fundamento a todas as coisas.
Para entender melhor o número como princípio, observa-se a citação de Giovanni Reale
(1993, p. 81):
Os números são todos agrupáveis em duas espécies, pares e ímpares (sendo que o
um é exceção, enquanto capaz de gerar tanto o par como o ímpar: acrescentando
o um a um número par gera-se o ímpar, enquanto acrescentando-o a um ímpar
gera-se o par, o que demonstra que ele traz em si a capacidade geradora tanto
de pares como de ímpares e por isso participa de ambas as naturezas). E porque,
como sabemos, cada coisa é redutível a um número, cada uma é expressão de
números pares ou ímpares.

Para os pitagóricos, o cosmos se constitui de uma dualidade: pluralidade dos existentes e


unidade dos números. Ou seja, os números são a essência de todas as coisas, e os existentes, nos quais
se incluem tanto as coisas em geral como o homem, são resultados de uma certa proporcionalidade
numérica. Por meio de raciocínios, observações e cálculos, os pitagóricos compreenderam que em
tudo existe uma proporcionalidade, uma espécie de razão que governa a existência em geral. Dessa
forma, esses filósofos calcularam medidas no espaço, observaram planetas, analisaram a música e,
entre outras experiências, encontraram fundamento para sua filosofia.
Reale (1993, p. 81) apresenta o método de observação utilizado pelos pitagóricos:
Em primeiro lugar, os pitagóricos notaram como a música (que cultivavam
como meio de purificação) era traduzível por número e por determinações
numéricas; a diversidade dos sons que produzem os martelos a bater sobre
a bigorna depende da diferença do seu peso; a diversidade dos sons de um
instrumento de cordas depende da diferença do comprimento de cordas; e, em
geral, eles descobriram as relações harmônicas de oitava, quinta e de quarta e
as leis matemáticas que as governam. E ao estudar diferentes fenômenos do
cosmo, também neste âmbito, notaram a incidência determinante do número:
são precisas leis numéricas que determinam o ano, as estações, os dias etc.; são
60 Filosofia do Direito

precisas leis numéricas que regulam os tempos de incubação do feto, os ciclos


de desenvolvimento e os diferentes fenômenos da vida.

Os pitagóricos utilizaram-se também da simbologia numérica para retratar suas ideias, como
quando diziam que o número 3 representava a igualdade, pois era a soma dos dois componentes
anteriores, ou que o número 4 seria a essência do ser, pois tanto pelo somatório como pela multiplicação
das díades encontramos o mesmo algarismo. Por fim, o número 10 é a máxima perfeição, já que contém
a soma de todos os anteriores (1, 2, 3, e 4).
Com isso, os pitagóricos demonstram que em tudo existe simetria, harmonia, proporcionalidade.
Não somente a estética grega recebeu suas contribuições, mas, sobretudo, o Renascimento. A ideia
de belo como proporcionalidade, simetria perfeita, refletiu-se nas mais geniais obras do período
renascentista, como as de Leonardo da Vinci, Rafael de Sanzio, Michelangelo, entre outros.
Cretella Junior também traz algumas das contribuições de Pitágoras para o Direito, ao afirmar
que é nele que Aristóteles se fundamentou para construir sua classificação de justiça em distributiva,
corretiva e comutativa, e observou toda a complexa questão geométrica para fundamentar seu critério
de justiça, de que Dante Alighieri formulou seu conceito de Direito como proporção (proportio), e de
que Beccaria argumentou a necessidade de uma proporcionalidade entre o delito e a pena.
Existe uma medida perfeita, que inserida em harmonia constitui beleza estética e também
justiça, e essa é a grande contribuição pitagórica. A inserção da proporcionalidade como fundamento
de verdade, de critério e inclusive de estética, do belo, retratando a harmonia simétrica como aspecto
divino, ressoará em todas as dimensões da vida humana. Trata-se de um certo tipo de proporção, de
medida perfeita que devemos cultivar a todo momento, uma simetria na qual qualquer atividade,
qualquer ofício se realiza como se fosse uma obra de arte. A mesma harmonia matemática que cria
a beleza da arte é a que sustenta um exame justo do Direito. Há sempre uma medida perfeita a ser
atingida, uma decisão ideal a ser tomada.
Na política, é impossível se pensar a problemática democrática sem a questão numérica.
O mundo contemporâneo perdeu a ideia de harmonia, transformando tudo em uma ditadura
da maioria. Não se adquire o melhor produto, não se cultua a arte mais bela e viva, mas aquele
produto que a maioria compra, aquela arte que a maioria consome, ainda que sem qualquer critério
objetivo. No Direito, na moda, na ciência, na arte, no mercado, em tudo vale a lógica democrática
da violência do número, na qual não há qualquer proporcionalidade, e sem proporcionalidade
não há nem o belo, nem o verdadeiro, nem o justo. O belo é proporção entre os elementos que
compõem uma pintura, uma música; o justo é proporção na ação; a saúde é proporção no corpo;
a riqueza é uma proporção na utilização do dinheiro etc. Em todos os momentos da vida, há uma
proporção, um ponto perfeito. Há o momento de proporção ao lazer e ao trabalho, ao estudo e à
atividade física, viver é aprender a ser proporcional a cada momento.

3.5 A Escola Eleata


Com o pensamento eleático, que se inicia com Xenófanes de Cólofon (570 a.C. - 475 a.C.),
segue e alcança sua maior importância com Parmênides de Eleia (530 a.C. - 460 a.C.) e recebe ainda
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 61

contribuições posteriores do discípulo Zenão de Eleia (490 a.C. - 430 a.C.), a Filosofia finalmente
elabora aquilo que podemos chamar de metafísica. Afirma-se que os eleatas, em especial Parmênides,
criaram a disciplina da Ontologia2. A revolução provocada pelo poema de Parmênides intitulado
Sobre a natureza, primeiro tratado filosófico em versos e do qual restam alguns fragmentos, está
justamente no fato de o autor ter declarado que toda compreensão sensível, todo exame humano
a partir da existência corpórea, situa-se apenas na doxa, na opinião, e ainda que esta possa conter
traços de verdade, consegue ver apenas partes do ser, jamais este em sua totalidade. O ser em
sua completude e perfeição somente é encontrado pela via racional da aletheia, da verdade,
que se encontra apenas no puro pensamento, em uma dimensão afastada da insegurança e da
instabilidade das compreensões humanas. O caminho da verdade leva o homem até a verdade do ser.
Em Parmênides, encontramos pela primeira vez a contraposição entre opinião e verdade, questão
que será problematizada metaforicamente por Platão em sua alegoria da caverna. O pensamento
de Parmênides advém de Xenófanes, que era contrário à tradição politeísta dos gregos, os quais
sempre cultuaram deuses antropomorfos, ou seja, que possuem não somente aparência humana,
mas também virtudes e defeitos humanos.
É por isso que Parmênides sustentava que o ser possui algumas propriedades que o distinguem
das simples aparências e fenômenos. O ser é eterno, imutável, perfeito, incorruptível, pleno, único,
uno e imóvel. A simbologia do ser é o círculo, por ele ser perfeito, uno, sem início nem fim; no círculo
tudo é unidade plena e perfeita. A Ontologia de Parmênides – representada na sua máxima: “o ser
é, e o não ser não é” – influenciou decisivamente a filosofia posterior, pois as metafísicas platônica
e aristotélica somente podem ser concebidas com a influência parmenidiana, bem como a filosofia
cristã medieval de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino apenas podem construir seus sistemas
a partir da ideia de um único ser completo e perfeito e demonstrado também rigorosamente e
logicamente, portanto ontologicamente. É praticamente impensável qualquer discussão filosófica
posterior sem o conceito ontológico de ser, pois continuaremos nele, seja na escolástica medieval,
no idealismo alemão ou nos existencialistas.
Sobre a importância de Parmênides para a história da Filosofia, vejamos o que assinala
Reale (1993):
A diferença entre esse ser e o princípio dos jônicos é evidente. Como o princípio dos
jônicos, o ser parmenidiano é ingênito e incorruptível, mas não é ‘princípio’ porque
não há, para Parmênides, ‘principiado’. E não há, porque o ser, ademais de ingênito
e incorruptível, é inalterável e imóvel, enquanto o princípio dos jônicos gerava
todas as coisas justamente alterando-se e movendo-se. E enfim não há princípio,
porque o ser é absolutamente igual, indiferenciado e indiferenciável, enquanto o
princípio dos jônicos gerava as coisas diferenciando-se e transformando-se. Assim
o ser parmenidiano permanece numa posição ambígua: ele não é mais princípio
nem cosmo, e no entanto não é ainda diferente do ser do princípio naturalista e do
cosmo. (REALE, 1993, p. 111)

O homem não pode exprimir o não ser, pois este simplesmente não é, logo não faz qualquer
realidade, não há contato com a realidade humana. Essa discussão conduziria a Ontologia ao ser

2 A palavra Ontologia é formada pelos vocábulos onto, que deriva do verbo einai (ser), e logia, que vem de logos,
portanto, o “estudo do ser”.
62 Filosofia do Direito

metafísico defendido por Platão, Aristóteles e os filósofos medievais. Para Parmênides, a problemática
humana é aquela do pensar, porque o pensar deve estar conexo ao ser, e desse modo alcança o real,
o verdadeiro. Quando o pensar está fora do ser, colhe apenas as aparências, as falsas impressões.
Perguntemo-nos agora, antes de percorrer as outras duas vias, o que é esse “ser”
parmenidiano. É claro que não se trata de ser imaterial, como alguns pretenderam:
o caráter de esfera e expressões como “todo cheio de ser” e semelhantes, o dizem
de modo muito eloquente. Mas não é o caso de insistir em sua materialidade:
estamos ainda aquém da descoberta de tais categorias. Todavia é claro que o ser
parmenidiano é o ser do cosmo, imobilizado e em grande parte purificado, mas
ainda claramente reconhecível: é, por paradoxal que isso possa soar, o ser do
cosmo sem o cosmo. (REALE, 1993, p. 111)

A categoria justiça aparece em Parmênides obviamente ligada ao ser. Existe uma justiça
a priori: que é
logicamente
a priori, que é perfeita. Não pode haver um relativismo na questão da justiça, pois todo relativismo
anterior à está nas questões sensíveis da compreensão humana, jamais na verdade perene do ser. Logo, há uma
experiência e dela
independe. medida de justiça que, se aplicada, somente pode resultar em verdade. Bittar chega a afirmar que a
justiça é uma exigência lógica no poema de Parmênides.
Sobre Parmênides, diversas reflexões são possíveis, mas nos ateremos a algumas apenas.
Percebe-se que ele é repleto de intuição filosófica e teológica, uma intuição que é capaz de afirmar,
categoricamente, que toda empiria não passa de simples compreensão humana, parte da verdade
apenas, jamais a verdade em sua integridade. O fato de um pensador como Parmênides confiar na
intuição contra a experiência empírica pode parecer ousado nos nossos dias, o que certamente deveria
servir para reflexão. O quanto há de verdade no que experimentamos, sabemos, vivenciamos? Que
realidade metafísica existe além daquele fenômeno? Para o jurista, qual é a verdade que se esconde
atrás do argumento apresentado pela outra parte? Em muitos casos, para além de um raciocínio
aparentemente lógico e consistente existe apenas um dilema, que precisa ser resolvido.
Por fim, poder-se-ia tratar da necessidade de um critério ontológico, de um critério natural e
racional que está ligado ao ser, e não das contingências históricas. A filosofia de Parmênides é exposta
como intuição direta ao ser, tal como deveria ser todo o processo de conhecimento. Parmênides nos
estimula a entender que o ser é e o não ser não é, ou seja, ou estamos no real, ou nossa mente está
colhendo o real aqui e agora ou estamos fora do real. O que há de real em meus pensamentos, em
minhas obsessões, fantasias? Quando o meu pensar é coerente com o mundo e quando não é? Esta
é praticamente toda a existência humana, porque o empresário, para vencer, precisa pensar o real
aqui e agora, saber o que deve ser feito em seus negócios, o jurista deve colher o real da sociedade,
do contrário suas ações não serão funcionais às pessoas.

3.6 Heráclito de Éfeso


Por fim, nossa jornada pelos pré-socráticos termina em Heráclito de Éfeso (535 a.C. - 475 a.C.).
Embora em geral insiramos Heráclito junto aos pensadores jônicos, por ele afirmar que o princípio de
todas as coisas é o fogo, ou seja, um elemento material, esse filósofo não constitui uma continuação
propriamente dita desde Tales de Mileto, pois, como veremos a seguir, o fogo heracliteano possui
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 63

posição na Filosofia bastante diferente dos elementos materiais dos jônicos. Muito melhor é entender
Heráclito como um filósofo singular, que concebeu sua própria forma de pensar.
Heráclito é sempre lembrado pela célebre frase que diz que um homem não pode banhar-se
duas vezes no mesmo rio, ou seja, em tudo há uma fluidez universal, que renova todo instante, de
forma que não existe repetição, tudo é novidade.
O sentido é claro: o rio é aparentemente sempre o mesmo, mas na realidade é
feito de águas sempre novas, que se acrescentam e se dispersam; por isso à mesma
água do rio não se pode descer duas vezes, justamente porque, quando se desce
a segunda vez, já é outra a água que se encontra; e porque nós mesmo mudamos,
no momento em que completamos a imersão no rio, tornamo-nos diferentes do
momento em que nos movemos para mergulhar, como sempre diferentes são
as águas que nos banham: assim Heráclito pode dizer, do seu ponto de vista,
que entramos e não entramos no rio. E pode também dizer que somos e não
somos, porque, para ser o que somos em dado momento, devemos não ser mais
aquilo que éramos no precedente momento, assim como, para continuar a ser,
deveremos logo não ser mais aquilo que somos nesse momento. E isso vale,
segundo Heráclito, para todas as coisas, sem exceção. (REALE, 1993, p. 64)

Hoje já não sou a mesma pessoa de ontem, pois renasço a cada instante: tal doutrina contrapõe-
-se à unidade imóvel de Parmênides, sustentada nas propriedades do ser. Para Heráclito, o ser não
pode ser eterno, somente o vir-a-ser.
na medida em que um certo estado de vir-a-ser permanente define de modo
definitivo a qualidade das coisas. E, não fossem essas coisas, sequer justiça
haveriam de ter conhecido os homens, na medida em que desta unidade plural,
é deste vir-a-ser onde a essência de tudo é estar o tempo todo em constante
movimento, revela aos homens o que é cada coisa, e nesta ordenação (onde
os contrários se encontram em luta, e as coisas empíricas não encontram
permanência), lhes faz conhecer justiça (“Nome de justiça não teriam sabido, se
não fossem estas (coisas)”). (BITTAR, 2009, p. 78)

Para Heráclito convergem os diversos pensamentos. Nele encontramos a unidade originária


do ser de Parmênides, no momento em que ele admite existir uma verdade além dos fenômenos
transitórios, como também resolvida a pluralidade de Empédocles e os demais, no constante
movimento das aparências, além das questões materiais já trazidas pelos monistas jônicos. É nisso que
Heráclito situa a importância e a simbologia do fogo. O fogo é fluidez, movimento eterno e constante3.
Importante aclarar que Heráclito não defende o relativismo, já que diversas vezes afirma a
necessidade de se encontrar a unidade originária. O ponto em que esse filósofo enfrenta os eleatas
é na imobilidade do ser. Para Heráclito, aceitar a imobilidade seria aceitar que existem dias iguais,
e seria forçado a rejeitar a fluidez constante da vida.
Do mesmo modo que afasta o relativismo, Heráclito ataca as convenções sociais quando
afirma que para os deuses tudo é justo, embora os homens tomem somente uma parte delas como
justas e o restante como injusto. A sociedade cria convenções, regras sociais que se tornam critérios.
A metáfora heraclitiana para isso é forte: ele argumenta que a justiça está na luta, na guerra. É a luta

3 O filósofo Martin Heidegger escreveu obra em que detalha de modo reflexivo as várias facetas do pensamento de
Heráclito (2002).
64 Filosofia do Direito

que exige movimento, realização, e por isso é justiça. A luta perturba o ciclo das coisas, a discórdia
obriga mudanças, novidades. Compreender a guerra como justiça, e não a paz, certamente não
condiz com as convenções e os estereótipos geralmente aceitos, mesmo na Grécia Antiga.
Também se encontra em Heráclito a harmonia já introduzida pelos pitagóricos. Ele diz que nesse
movimento eterno exige-se uma harmonia dos contrários, utilizando o arco e a lira como símbolos.
Esses instrumentos somente funcionam com perfeição se sintonizados em máxima harmonia. Da
mesma forma, o movimento fluido e eterno deve acontecer perpassando os contrários, da guerra à paz,
do justo ao injusto, da doença à saúde etc. Aqui encontra-se sua ideia de justiça, que seria a harmonia
entre os contrários em eterno movimento. A justiça nasce do movimento, da luta, da criação, um ponto
harmônico que surge de uma ordem maior. Por isso que ele afirma que os homens devem defender a
lei tal como fazem com as muralhas. As leis, ainda que convenções, são necessárias porque sustentam
a ordem política, social e jurídica da polis, e disso advém sua importância.
O devir é, pois, um contínuo conflito dos contrários que se alternam, é uma
perene luta de um contra o outro, é uma guerra perpétua. Mas, dado que as
coisas só têm realidade [...] no perene devir, então, por consequência necessária,
a guerra se revela como o fundamento da realidade das coisas. [...] se as coisas
só têm realidade enquanto devêm, e se o devir é dado pelos opostos que se
contrastam e, contrastando-se, pacificam-se em superior harmonia, então é
claro que na síntese dos opostos está o princípio que explica toda a realidade, e
é evidente, por consequência, que exatamente nisso consiste Deus ou o Divino
[...]. E isso significa, justamente, que Deus é a harmonia dos contrários, a
unidade dos opostos. (REALE, 2000, p. 65-67)

Por fim, o pensamento de Heráclito antecede Sócrates por anunciar a importância do


autoconhecimento ao assinalar que todos os homens nasceram com essa dádiva e que nela devem
investir. Em Heráclito encontramos já raízes antropológicas que serão reforçadas com os sofistas e
finalmente com Sócrates.
Os reflexos de Heráclito na vida contemporânea são vários. Viver tudo em fluidez, em eterno
renovar-se, viver cada instante infinito como perene novidade deveria ser a lógica existencial de todo
indivíduo. É o movimento constante, a vida de realizações e lutas que afastam o homem da angústia
e do sofrimento existencial. Também importante é aplicar à vida a compreensão de Heráclito da
existência de duas dimensões de vida, uma em que vivemos conforme as convenções e outra em que
vivemos conforme a fluidez do vir-a-ser. Temos que defender tanto as muralhas da cidade como
nossa fluidez existencial. O empresário deve tanto observar as normas jurídicas, sociais e políticas,
incrementar a sociedade, como também viver para si, fazer de seu trabalho a sua obra de arte.
Aquilo que fizemos ontem pode não ser o funcional para hoje, e aquilo que fazemos hoje
pode não ser o funcional de amanhã. Para cada circunstância há novidade, há uma nova lógica a ser
colhida. Muitos líderes vivem de parasitismo do próprio sucesso, estagnam nas conquistas porque
estão satisfeitos com as vitórias que conquistaram no passado. Isto depois gera regressão existencial
e profissional. Após cada jornada bem realizada deve-se centrar sobre si mesmo e pontuar o que
precisa ser feito em seguida. “Um negócio foi fechado, e agora? O que farei? Fiz uma bela viagem de
férias a lugar novo, e agora? O que implementarei em meus trabalhos? Aprendi bastante com o estudo
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 65

de um curso ou livro, e agora?” É preciso colher a fluidez perene da vida instante a instante, porque
seguindo este vir-a-ser contínuo encontra-se a alegria de viver em sintonia com a lógica da vida.
Com isso encerra-se a exposição da filosofia dos pré-socráticos. Ainda que essas escolas e
filósofos tenham divergências de ideias, todos mantêm uma mesma linha fundamental, a de pensar
o mundo e todas as coisas em um viés cosmológico, buscando a ordem que estabelece o princípio e
a causa de cada ser. Nos próximos capítulos veremos como essas questões continuarão a ser o cerne
de toda a história da Filosofia e que impacto terão nas teorias da justiça de outros pensadores. Ainda
que a categoria justiça pareça não ser o centro das discussões dos pré-socráticos, certamente foi
amplamente debatida por eles, tendo em vista que vários desses pensadores eram personalidades
influentes nos meios políticos de seu tempo.
Contudo, o crescimento da vida social na polis ampliou ainda mais os debates, fazendo com
que cada vez mais as pessoas se sentissem capazes de adentrar reflexões nesse viés. Essa mudança de
paradigma resultou no primeiro grande embate da história da Filosofia: o surgimento dos sofistas,
filósofos que se atreveram a pôr em xeque toda a argumentação cósmica dos pré-socráticos. Os
sofistas arriscaram-se a declarar falsa toda ordem, toda concepção a priori de justiça, ser, cosmos
etc. É o nascimento do relativismo e da subjetividade na Filosofia.

3.7 Os sofistas
Durante séculos, o termo sophisté acompanhou o significado de sábio, como palavra
derivada da expressão sophos, a mesma que originou o termo filósofo. Contudo, com o crescimento
da polis, a sophisté passou de sábio a uma utilização mais técnica e específica, a de professor.
Por isso, quando surgem os sofistas, estes são considerados os professores, os indivíduos que
ensinam diversas técnicas e ofícios a todo aquele que pagar pelo serviço. Os sofistas diziam-se
dominar uma série de técnicas, da Medicina à Astronomia, da arte política aos temas jurídicos, e
principalmente a arte retórica. O objetivo da sofística não era desvendar o cosmos como tentavam
os pré-socráticos, mas ensinar aos homens as situações cotidianas e úteis da vida em geral. Uma
revolução importantíssima, uma vez que os sofistas retiram o cosmos do centro das discussões
filosóficas e ali inserem o homem. Por isso a história da Filosofia geralmente aceita o surgimento
dos sofistas como a transição do período cosmológico para o período antropológico.
O fato de os sofistas venderem qualquer tipo de ensinamento a todo aquele que pagasse por tais
serviços implicaria em duas críticas ferozes iniciadas por Sócrates e repetidas incansavelmente por
Platão e Aristóteles: primeiro, o fato de vender ensinamentos, conhecimento, o que contrariava todo
o costume corrente. E segundo porque ensinavam qualquer coisa e diziam possuir conhecimentos
sobre qualquer coisa, o que, segundo os opositores, era uma falácia, pois muitas vezes ensinavam
técnicas nas quais não possuíam grande domínio. A questão é que para os sofistas esses argumentos
não eram muito importantes, uma vez que esses pensadores se consideravam amorais, isto é,
despreocupados de qualquer moral ou regra convencionalmente aceita.
Para os sofistas, a lei e as organizações políticas não são naturais ao homem, mas artifícios que
este construiu para viver melhor. Os animais receberam garras e outras armas para se defenderem,
66 Filosofia do Direito

e o homem foi dotado pelos deuses com inteligência, o que facilita uma vida social e coletiva,
ampliando os ganhos a todos. Não obstante, isso significa que qualquer lei é antes lei humana, ou
seja, está exposta aos mais variados erros e defeitos. Logo, uma lei nem sempre será obrigatoriamente
boa ou eficaz. Com isso, os sofistas proclamavam-se livres de qualquer convenção, e essa nova
concepção humanista resultaria ainda em outro ponto amplamente divergente: sendo a sociedade
criação humana, e esta inclusive pode conter defeitos, não é natural ao homem tudo viver para o
bem comum. O natural seria, então, viver para si mesmo, conforme seus próprios interesses.
Esta última ideia fundamenta o fato de eles venderem ensinamentos e técnicas. Ora, os
sofistas eram professores, e o que melhor sabiam fazer era ensinar aos homens novas técnicas e
conhecimentos, tornando-os pessoas mais preparadas. Para os sofistas, todos os homens foram
dotados de competências, saberes, mas somente alguns os desenvolveram, pela prática e pelo estudo,
que são justamente os políticos e todos aqueles que estão à frente da sociedade. Logo, para os sofistas,
ensinar os homens comuns era justamente ensinar-lhes a desenvolver esse potencial que já possuíam.
Nesse sentido, contribuíram também com a democracia:
Respondendo a uma necessidade da democracia grega é que os sofistas
tiveram seu aparecimento; o preparo dos jovens, a dinamização dos auditórios,
o fornecimento de técnica aos pretendentes de funções públicas notáveis, o
fornecimento de instrumentos oratórios e retóricos para o cuidado das próprias
causas e dos próprios negócios (“o cuidado adequado de seus negócios pessoais,
para poder administrar melhor sua própria casa e família, e também dos
negócios do Estado, para se tornar poder real na cidade, quer como orador,
quer como homem de ação: Protágoras), tudo isso favoreceu a eclosão do
movimento que se pulverizou por toda a Grécia. Por isso, são importantes os
sofistas, sobretudo, por terem relevado a técnica para a dominação do discurso
assemblear e pela rediscussão da dimensão do homem como ponto de partida
para as especulações humanas. (BITTAR, 2009, p. 93)

A utilização e o ensino do discurso oratório e retórico foi bastante importante para o


desenvolvimento da arte política e da prática judiciária, pois vivia-se um momento em que os
grandes debates eram resolvidos na argumentação. A inserção da retórica como matéria relevante
para a vida política certamente alcança mesmo os dias atuais, uma vez que hoje a capacidade de
encadear logicamente o discurso e despertar paixões no ouvinte é a base para o êxito em qualquer
discussão. Para o mundo contemporâneo, em que a comunicação é ferramenta fundamental para
qualquer dimensão da vida, retornar aos sofistas pode trazer contribuições importantes, uma vez
que eles foram os primeiros a utilizar dessa prática por dinheiro, sem o pudor habitual. Os sofistas
retiraram o caráter pejorativo do dinheiro tornando-o inclusive emblema de crescimento e maior
preparo. Contudo, mesmo para o homem de hoje, isso ainda não se tornou uma questão básica, pois
muitos permanecem vendo o dinheiro como uma condição não essencial, e inclusive imoral, como
se o acúmulo dele significasse práticas ilícitas ou pelo menos não aceitas socialmente.
Os sofistas defendem o relativismo, afirmando que está no homem, e não na natureza, a
verdade de todas as coisas, conforme a célebre sentença de um dos seus principais representantes,
Protágoras de Abdera: “O homem é a medida de todas coisas, das que são porque são, e das que não
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 67

são porque não são”. Importante aclarar o sentido dessa frase. Para os sofistas, em especial Protágoras,
toda lei e convenção exigida socialmente foram formuladas por alguém, o que significa que estão
sujeitas aos mais variados defeitos e que, inclusive, podem ser modificadas com o tempo. No fundo,
a validade daquela lei fundamenta-se apenas na vontade humana. Se levarmos em consideração que
em geral aceita-se como justiça a obediência às leis, principalmente em um período histórico como
o grego, em que o servir ao bem comum era não somente um dever, mas uma razão de existir, esse
raciocínio pode causar revoluções importantes na história do pensamento jurídico.
Ademais, há outras inferências que se deduzem da interpretação dessa sentença de Protágoras.
A primeira é que ele traz o centro da Filosofia para a dimensão humana, em contraposição ao
pensamento cosmológico dos pré-socráticos em geral. Isto é, o fundamento da existência humana
e da verdade não está no cosmos, seja este o fogo, a água, os números, as homeomerias, os átomos
etc., mas no próprio homem. Nesse sentido, é uma mudança radical de foco. Uma segunda inferência
resulta do exposto no parágrafo anterior. Ora, se o homem é a medida, isso significa que é inútil
buscar a verdade em questões cosmológicas, divinas. Protágoras não era ateu, mas outros sofistas
posteriores a ele utilizaram essa frase como argumento contra a existência de deuses. Por fim, uma
terceira inferência, e talvez a mais importante, ainda que seja a mais alvo de discussão por parte
dos estudiosos: para uma parcela de pesquisadores, em especial Gomperz, o homem-medida de
Protágoras não seria o homem individual, mas o homem como espécie, o homem em geral. Ou
seja, o critério não está no relativismo individual, na minha ou na sua opinião, mas naquilo que é
favorável ou não ao ser do homem.
Podemos reforçar essa interpretação com uma passagem de um diálogo de Platão, o Protágoras,
no qual se articula um diálogo fictício entre este sofista e Sócrates. Nessa obra, ao ser questionado se
existiriam coisas boas, absolutamente boas, más e absolutamente más, Protágoras afirmou que sim,
tomando como exemplo que há coisas, como alimentos, remédios, por exemplo, que são boas ou
nocivas ao homem, mas não o são para os outros animais; há coisas que não são boas para nenhum
animal, mas o são para as plantas; e, por fim, há inclusive coisas que são boas para as raízes, mas não
para os brotos, na mesma planta. Como se vê nessa afirmação, Protágoras não discute a posição do
homem individual, mas do homem como espécie. Nesse fundo utilitarista vislumbra-se um aspecto
de sua filosofia em que ele aceita a existência de coisas absolutamente boas e absolutamente más ao
homem, ou seja, que reforçam ou prejudicam o homem, seja qual indivíduo for.
Com isso, a noção de justiça é relativizada, na medida em que seu conceito é
igualado ao conceito de lei; o que é justo senão o que está na lei? O que está na
lei é o que está dito pelo legislador, e é esse o começo, o meio e o fim de toda
justiça. Nesse sentido, se a lei é relativa, se se esvai com o tempo, se é modificada
ou substituída por outra posterior, então com ela se encaminha também a
justiça. Em outras palavras, a mesma inconstância da legalidade (o que é justo
hoje poderá não ser amanhã). Nada do que se pode dizer absoluto (imutável,
perene, eterno, incontestável...) é aceito pela sofística. Está aberto campo para o
relativismo da Justiça. (BITTAR, 2009, p. 96)

Sem a sofística não haveria a crítica às regras convencionais, àquilo que é considerado moralmente
aceito pela sociedade. Também é importante compreender que os sofistas não necessariamente são
68 Filosofia do Direito

contrários a todo e qualquer conceito, ou seja, que tudo seria simplesmente relativismo. O que eles
argumentavam é que a organização humana é fundada em princípios convencionais e mutáveis. Tudo
aquilo que entendemos como justo, correto, na verdade advém de uma lei, moral, crença etc., que
pode vir a ser modificada em um momento qualquer. Compreender a lei e a moral como mutáveis,
condições não absolutas, expostas às mais variadas contingências, certamente confere ao indivíduo
um grau maior de liberdade para agir e pensar.
Dos sofistas colhemos várias contribuições aos nossos tempos, a começar pelo relativismo
moral quanto às instituições, porque estas são passageiras, voláteis. A moral estabelecida pela cultura
de hoje diverge da de ontem e divergirá daquela de amanhã. Isso não significa que os valores culturais
sejam insignificantes, porque eles fazem civilização, facilitam as relações sociais, a ordenação da
vida em comunidade, e sim que não são absolutos.
Além disso, os sofistas enfatizam o valor da palavra, da retórica, da linguagem. Sobretudo
no mundo moderno é preciso aprimorar a capacidade de comunicação, porque da coordenação de
equipe ao marketing, da venda ao cliente ao discurso político, tudo passa pela capacidade de expressar
ideias, convencer o outro. E aqui também retorna o relativismo, porque para convencer o outro é
preciso ir ao mundo do outro, saber como ele pensa, como vive, para facilitar a comunicação da
mensagem. Muitas empresas possuem excelentes produtos, serviços, mas depois sentem dificuldade
de acompanhar a concorrência porque não conseguem levar a própria obra ao público em uma
linguagem que faça este sentir a necessidade de adquirir o seu produto ou serviço. A comunicação
deve criar desejo, necessidade, vontade no outro. É pela comunicação que podemos levar nossas
ideias ao mundo e assim fazer civilização.

Considerações finais
Com os pensadores pré-socráticos, a filosofia consolida seu período cosmológico, no qual
o principal objetivo era entender a realidade que nos rodeia. Apesar de termos estudado várias
abordagens diferentes (jônicos, eleatas, atomistas etc.), todas elas carregam em comum a busca por
princípios primeiros que expliquem a realidade.
Com os pré-socráticos observamos a incessante procura por entender do que é feita a
realidade, o que é este mundo que se posiciona diante de nossas experiências. É certo que já havia
neles a preocupação ética, sobre como o homem deve agir diante dos outros e do mundo, mas ela
ainda estava em uma dimensão secundária.
Já os sofistas trazem a problemática humana para o centro das discussões. Para eles, o homem
é um ser político, que precisa aprender a se relacionar com os demais, saber se posicionar nas
questões sociais, saber interagir e conquistar seu espaço de protagonismo.
Para melhor visualizarmos o que foi estudado até agora, segue a trajetória filosófica até
Sócrates, de forma visual e mapeada:
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 69

Figura 1 – Trajetória filosófica

1 Escola Jônica

Pluralistas 2

3 Escola Atomística

Legenda:
Escola Pitagórica 4 1. (624-546 a.C.) Tales de Mileto, (610-546 a.C.)
Anaximandro e (585-523 a.C.) Anaxímenes

2. (499-428 a.C.) Anaxágoras de Clazômenas e


(490-430 a.C.) Empédocles de Agrigento
5 Escola Eleática
3. (séc. V a.C.) Leucipo de Abdera e (460-370 a.C.)
Demócrito de Abdera

4. (571/570-500-490 a.C.) Pitágoras de Samos


Heráclito de Éfeso 6
5. (570-475 a.C.) Xenófanes de Colofon, (530-460 a.C.)
Parmênides de Eleia e (490-430 a.C.) Zenão de Eleia

7 Sofistas 6. (535-475 a.C.)

7. (séc. V-IV a.C.)

Fonte: Elaborada pelo autor.

Ampliando seus conhecimentos


• A BATALHA dos Três Reinos. Direção de John Woo. China/Coreia do Sul/Hong Kong:
Beijing Film Studio; China Film Group; Lion Rock Productions, 2008. DVD (280
min.), son., color.
História épica, muito famosa na cultura chinesa, sobre três reinos em guerra. Importante
acompanhar os movimentos dos personagens principais, de como se comunicam, de
como impactam os ambientes, de como aprendem a interpretar os sinais da natureza para
tomarem suas decisões. Para vencer a guerra, precisam dominar do movimento dos ventos
à previsão do clima. Além disso, o filme é repleto de belas cenas poéticas em danças, música
e diálogos. O ser humano pode viver melhor se compreender a natureza, o mundo no qual
está inserido, tal como já ensinavam os filósofos pré-socráticos.

• OBRIGADO por fumar. Direção de Jason Reitman. Estados Unidos: Room 9 Entertainment;
ContentFilm, 2005. DVD (92 min.), son., color.
Filme para acompanhar a contribuição dos sofistas para a filosofia. Nessa história, vemos um
profissional ligado à indústria do tabaco utilizando de todos os argumentos e instrumentos
retóricos disponíveis para melhorar a imagem de seu produto junto ao grande público. Obra
70 Filosofia do Direito

para compreender como o poder retórico, a capacidade de comunicação, é um instrumento


poderoso nas articulações profissionais, políticas, econômicas.

Atividades
1. Existe certa relação entre proporção e música em Pitágoras. Faça um comentário sobre a
importância da proporção na arte e como isso pode contribuir com um apelo estético em
qualquer atividade cotidiana.

2. Em várias partes deste material, comentamos sobre o valor da harmonia para os pré-
-socráticos, a partir das ideias de Pitágoras, Parmênides, Heráclito, entre outros. Para você, o
que viria a ser harmonia entre os opostos, e como a união proporcional dos contrários pode
contribuir com a vida em geral?

3. Apresente as principais contribuições dos sofistas para a vida política de seu período.

4. Escolha um dos filósofos pré-socráticos e comente-o, trazendo para a atualidade, assinalando


como as ideias desse pensador podem ajudar em sua prática diária.

Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. In: NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da filosofia na época da tragédia e


pessimismo. 2. ed. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Trad. de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993. p. 52-53. v. 1.

REALE, Giovanni. História da Filosofia: filosofia pagã antiga. v. 1. São Paulo: Paulus, 2003.

REALE, Miguel. Experiência e Cultura. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000.

SOUZA, José Cavalcante de (org.). Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova
Cultural, 1996. (Coleção Os pensadores)
4
A formação do homem e da
sociedade grega em Sócrates e Platão

Neste capítulo, estudaremos dois dos pensadores mais importantes de toda a história da Filosofia:
Sócrates e seu discípulo Platão. Sócrates é a mente que protagoniza uma passagem tão importante no
pensamento filosófico que acaba dividindo essa forma de conhecimento entre os pensadores anteriores
e posteriores à sua vida. Platão criou um sistema filosófico que refletia tanto sobre as mais complexas
questões do mundo como também sobre a conduta humana, seja em seu aspecto individual como
social, como seu mestre, apresentando uma importante concepção de justiça.

4.1 Sócrates e a importância do autoconhecimento


Sócrates difere-se dos filósofos anteriores por não procurar explicar a physis. Para ele, o
filósofo deve se concentrar no homem e nos problemas que o circundam (REALE, 2002). Essa visão
o caracteriza como um filósofo do período antropológico, no qual a preocupação maior é resolver as
questões da existência humana, procurando o modo adequado pelo qual o homem pode conhecer
a realidade em que se encontra e agir de maneira apropriada. Isso não significa dizer que Sócrates
não tenha estudado as questões relativas ao cosmos, mas que para ele era mais importante resolver
a questão da vida do homem e do seu conhecimento antes de tentar desvendar o universo.
Figura 1 – Estátua de Sócrates em Atenas, Grécia
Dimitrios/Shutterstock.
72 Filosofia do Direito

Ao mesmo tempo, o pensamento de Sócrates difere daquele dos sofistas, primeiros


representantes da nova fase do pensamento antigo, pois consegue tratar de maneira adequada a
natureza (essência) do homem, algo que o extremo relativismo da citada corrente tornava impossível.
A alma (psyche) para Sócrates “coincide com a nossa consciência pensante e operante, com a
nossa razão e com a sede da nossa atividade pensante e eticamente operante. Em poucas palavras:
para Sócrates a alma é o eu consciente, é a personalidade intelectual e moral” (REALE, 2002, p. 259).
Desse modo, tem-se um núcleo por meio do qual emana a verdade e a realidade que já é
constituída anteriormente ao homem. Essa forma de entender a alma é completamente diversa
daquela retratada pelos poetas e pelos filósofos anteriores e torna-se o guia para toda a filosofia do
pensador ateniense. Nesse sentido, temos a célebre frase de Cícero que diz que Sócrates “trouxe a
Filosofia do céu para a terra” (ABBAGNANO, 1999, p. 75).
Conforme assinala Aristóteles, “Sócrates ocupava-se de questões éticas, e não da natureza
em sua totalidade; buscava o universal no âmbito da própria conduta ética” (ARISTÓTELES, 2002,
p. 35). Essa passagem tem um significado profundo, posto que há uma alteração no conceito de
saber, o qual se aproxima muito mais das questões da existência humana. Sócrates traz a ética como
estudo do agir humano para o centro das investigações filosóficas.
Sócrates encontrava-se sempre nos locais públicos, onde a maior parte dos cidadãos atenienses
passava seu dia, dialogando com eles, provocando-os ao conhecimento.
Essa filosofia não é um simples processo teórico de pensamento e compreensão da realidade,
mas principalmente de educação do homem. Sócrates exige que o homem, no lugar de somente
se preocupar com os ganhos, preocupe-se também com a alma. Entendemos com essa concepção
que os ganhos não possuem sentido algum na situação em que toda essa bonança não esteja em
conformidade com o princípio interior daquele indivíduo. O homem deve cuidar de sua alma,
porque é a partir dela que poderá colher todas as demais coisas. Definindo mais concretamente esse
cuidado da alma, Sócrates manifesta como um cuidado por meio do conhecimento da ação ética
adequada (phronesis) e da verdade (aletheia) (PLATÃO, 1993).
Nesse sentido, há que se considerar que a cultura grega já dava muita importância à saúde do
corpo, ao valor da ginástica. Considerava-se o cuidado do próprio corpo uma dimensão de beleza,
que refletia nas demais questões da vida. Contudo, Sócrates é inovador ao trazer mais do que a
importância do cuidado com a saúde, mas também o cuidado com o mundo interior. A alma para
Sócrates é o que há de divino no homem.
Assim Sócrates define sua atividade no diálogo de Platão, Apologia de Sócrates:
Nada mais faço do que andar pelas ruas a persuadir-vos, jovens ou velhos, a
cuidardes mais da alma que do corpo e das riquezas, de modo a que vos torneis
homens excelentes. E nada mais peço do que sustentar que a excelência não vem
das riquezas, mas, pelo contrário, da excelência vem as riquezas e todos os outros
bens, tanto aos homens particulares como ao estado. (PLATÃO, 1993, p. 85-86)

Essa parte divina surge da consciência cultivada, que depois será o critério para identificar
o que é adequado, justo. Pela consciência cultivada podemos ter o critério que já está na alma,
mas que precisa nascer por meio de um processo de desvelamento de si mesmo, de seus conceitos,
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão 73

preconceitos, ideias e máximas. Conforme Jaeger (1995, p. 529): “Sócrates, tanto em Platão como nos
outros socráticos, sempre coloca na palavra ‘alma’ uma ênfase surpreendente, uma paixão insinuante
e como que um juramento. Antes dele, nenhum sábio grego pronunciou assim essa palavra”.
Compreendida a importância da psyche para Sócrates, para podermos considerar a concepção
socrática da justiça, precisamos tratar de uma ideia central em seu pensamento: o autoconhecimento.
A missão que Sócrates põe diante de si é a de ensinar os homens a conhecerem a si mesmos e a
cuidarem da própria alma.
Para defender a importância dessa concepção, Sócrates adota a advertência inscrita no
oráculo de Delfos, a qual dizia ‘‘conhece-te a ti mesmo”1. Sendo a alma o “eu consciente, ou seja, a
personalidade intelectual e moral do homem” (REALE, 2003, p. 95), é de suma importância conhecê-
-la, cultivá-la, pois, mais do que salvaguardar a sanidade da pessoa, ela é a própria fonte de todo
conhecimento que conduz o homem ao desenvolvimento e à excelência.
O homem, tanto no aspecto moral quanto no intelectivo, é capaz de alcançar a plenitude e
está destinado pela sua natureza a isso. As virtudes (aretai) física e espiritual são exatamente essas
excelências que o homem já possui, porém precisa conhecê-las, despertá-las. Todo erro é fruto de
ignorância, enquanto toda virtude é conhecimento.
A atitude essencial ao autoconhecimento é o reconhecimento da própria ignorância, que é a
origem da célebre frase de Sócrates: “só sei que nada sei” (PLATÃO, 1993). Sábio, portanto, é aquele que
não se ilude crendo saber e reconhece a própria ignorância, pois só quem sabe que não sabe procura
saber, enquanto os que creem estar na posse de um certo saber não são capazes da investigação, não
se preocupam consigo mesmos e permanecem irremediavelmente afastados da verdade e da virtude
(ABBAGNANO, 1999, p. 76).
O meio de promover nos outros o conhecimento da própria ignorância, condição essencial para
a pesquisa, é a ironia, o método de interrogação que tem por objetivo revelar ao homem sua ignorância,
“abandoná-lo à dúvida e à inquietação para o obrigar à pesquisa” (ABBAGNANO, 1999, p. 76).
Conforme explana Reale (2002, p. 311):
Sob as diferentes máscaras que Sócrates assumia eram visíveis os traços da
máscara principal, a do não saber e da ignorância: pode-se mesmo dizer que, no
fundo, as máscaras policrômicas da ironia socrática não são mais que variantes
dessa principal e, com um multiforme jogo de dissoluções, sempre remetiam a ela.

Com esse recurso, Sócrates demonstrava ao seu confrontante o quanto a “verdade” que este
expunha era falha ou incompleta. Pela sequência de questionamentos e pela atitude de desconhecimento,
Sócrates conduzia o interlocutor à compreensão de que este se encontrava enganado, todavia sem
agredir diretamente aquela pessoa.
No mundo contemporâneo, é essencial saber criticar alguém sem ser agressivo. Especialmente
no âmbito das organizações, qualquer questão mínima pode tornar-se motivo para disputas. Nesse
sentido, o líder necessita ter um tipo de maestria, de habilidade para mostrar ao outro que este se
encontra equivocado, sem ofendê-lo. Não sem razão, a busca pelo aprimoramento na capacidade

1 Gnoûte autos em grego, ou nosce te ipsum em latim. (BITTAR; ALMEIDA, 2009, p. 101).
74 Filosofia do Direito

de fornecer feedbacks objetivos é hoje bastante presente no mundo corporativo. A ironia socrática é
um método que procura alcançar esse objetivo, levando o próprio defensor a compreender as falhas
de seu pensamento e reformulá-lo ao escopo original da organização.
Esse sistema de ensino adotado por Sócrates é chamado de maiêutica. Não é o mestre que
ensina ao aluno, mas o aluno que se depara com uma realidade que já possuía dentro de si e que é
exposta ao mundo, evidenciada. Por isso, o termo maiêutica, que pode ser traduzido como “parto
de ideia”, fazendo uma analogia com a profissão exercida pela mãe do filósofo. Sócrates põe-se
como parteiro, porém não é ele quem dá à luz o conhecimento, quem o faz é aquele que se propôs a
aprender na dinâmica dialética com o mestre. Platão ajuda o discípulo a trazer para fora a evidência
do real que possui dentro de si, em sua própria natureza.
Nesse ponto, a paideia socrática diferencia-se daquela exercida pelos sofistas, com os quais
Sócrates por diversas vezes se confrontou, buscando comprovar a eles que não eram sábios como
imaginavam. Platão (1993) reafirma esse conceito no prólogo do Protágoras, em que diz: “os sofistas
são varejistas de alimentos da alma, mas não conhecem nem os alimentos nem a alma e, portanto,
não sabem se fazem bem ou não; enquanto Sócrates é claramente representado como aquele que
conhece esses alimentos e conhece a alma, e é apresentado como ‘médico da alma’” (PLATÃO, 1993).
Há que se assinalar a importância da atitude de conhecer-se e cultivar a própria inteligência
como o maior bem que possui, pois é por meio dela que este poderá conservar sua trajetória de
sucesso e desenvolvimento, bem como a capacidade de manter um juízo proporcional, justo, sobre
os fatos que surgem na vida. Sem uma alma sã, não há como falar em sucesso. Ademais, nessa busca
essencial se faz reconhecer, humildemente, o quanto que se é desconhecedor da realidade, tanto
externa quanto interna. Somente com esse reconhecimento o indivíduo está apto a partir pela busca
de conhecer-se realmente e com isso desenvolver-se, alcançando um padrão de excelência em tudo
o que faz em sua vida. A cada jornada deve a pessoa verificar em quais áreas ainda não possui o
conhecimento esperado, em quais competências ainda se vê como insuficiente e, então, buscar as
soluções, seja em cursos, consultorias, estudos, viagens etc.
O profissional da área jurídica possui a maiêutica como um instrumento metodológico para
ultrapassar o que está aí dado, percebido, concebido. Um juiz procura verificar o que está por detrás
daquele comentário, a relação entre a legislação e o pedido. A radicalidade da maiêutica serve como
guia para os imediatismos e as ortodoxias de pensamento e de conduta. Conhecer os principais
trilhos, os principais hábitos de comportamento e de pensamento é indispensável para conseguir
a atualização à novidade de si mesmo no aqui e agora das situações apresentadas, por meio da
identificação de desejos, objetivos e necessidades substanciais e circunstanciais.
Sócrates morreu aos 70 anos de idade, condenado pela própria cidade de Atenas, palco de
seus ensinamentos. O processo que respondeu possuía como fundamentação duas acusações: a
de não honrar aos deuses da cidade, introduzindo novas e estranhas práticas religiosas, e também
de corromper a juventude. Julgado, condenaram-no por uma diferença de aproximados 60 votos
de um corpo de 501 membros (COPLESTON, 1994).
Conforme nos foi legado por Platão, em suas obras A Apologia de Sócrates e Críton, Sócrates
estava ciente de seu destino e o aceitou, morreu pela mesma motivação que o fizera viver e provocar
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão 75

os cidadãos atenienses, o apelo pelo conhecimento, pela Filosofia. Relata-se no Críton que Sócrates
negou-se a aceitar o auxílio de seus discípulos para fugir do cárcere e escapar da morte (PLATÃO, 1993).
Essa atitude de Sócrates, condenado a ingerir cicuta, demonstra seu profundo respeito pela
justiça, respeito que o levou a obedecer à lei, mesmo sendo esta injusta, ou pelo menos aplicada
de maneira equivocada e demasiadamente extensiva naquela situação. Sócrates durante toda sua
vida manifestou ser um mal menor ser vítima de uma injustiça do que praticá-la, convicção que
foi reafirmada com sua posição diante de sua condenação. Desse modo, o julgamento de Sócrates
representa também uma forma de paideia que nos atenta para a importância de obedecermos às
leis do Estado, ainda que não sejam as ideais, trabalhando, contudo, caso sejam estas más ou mal
elaboradas, para que sejam devidamente corrigidas e que tenham sua efetiva aplicação garantida.
Complementando, Bittar e Almeida (2009) destacam que o ato de descumprimento da sentença
imposta pela cidade representaria a Sócrates a derrogação de um princípio básico do governo das
leis, a eficácia. Comprometida a eficácia, reinaria a desordem social, posto que cada um cumpriria
ou descumpriria as leis a seu bel prazer. Ao indivíduo esclarecido caberia ao máximo a elaboração da
crítica à legislação, contudo esse juízo moral não seria suficiente para se recusar a obedecê-la.
Demonstra-se, assim, que a sua submissão à sentença condenatória não somente representa
a confirmação de seus ensinamentos, mas também a revitalização dos valores que foram base para
a construção da polis ateniense. A atitude desprendida de Sócrates deu maior força ao princípio do
respeito às leis da cidade. A morte de Sócrates, por esses ideais, representa sua última lição deixada
à civilização, que se consubstancia no respeito à lei como garantia da segurança social.

4.2 A justiça como paideia em Platão


Platão, o mais célebre dos discípulos de Sócrates, é o principal pensador que deu continuidade
à revolução iniciada pelo seu mestre no pensamento humano. Junto de Aristóteles, representa o auge
do pensamento humanista grego. Não é à toa que em seu quadro A Escola de Atenas, Rafael Sanzio
representa ambos com especial destaque ao centro, cada um carregando uma de suas principais
obras. Sócrates, junto do Timeu, aponta ao céu, símbolo que identifica a concepção do mundo
inteligível em sua teoria, ao passo que Aristóteles, apontando ao chão, carrega a Ética a Nicômaco.
Figura 2 – Estátua de Platão em Atenas, Grécia
vangelis aragiannis/Shutterstock.
76 Filosofia do Direito

Assim como seu mestre, Platão seguia a tradição de transmissão oral de ideias e ensinamentos
e entendia que o conhecimento, devendo ser passado oralmente, não poderia ser reproduzido pela
escrita – esta serviria somente como modo de se lembrar dos ensinamentos obtidos. Conforme
Jaeger (1995):

“o que caracterizava Platão era o fato de lhe interessar mais expor a


Filosofia e a sua essência através do movimento vivo da dialética do que
sob a forma de um sistema dogmático acabado”. (JAEGER, 1995, p. 585)

Por esse motivo, consideramos que as principais doutrinas do pensamento do filósofo nunca
foram escritas, conforme reflete Reale (2002) acerca das chamadas “doutrinas não escritas”. Apesar
disso, Platão deixou uma vasta produção intelectual, a qual se encontra conservada até a atualidade.
Sócrates é o personagem principal da maioria dos seus diálogos, os quais são identificados
pela temática trabalhada em quatro principais grupos: os diálogos do período socrático, no qual
a influência de seu mestre ainda era marcante, exemplificada com diálogos como a Apologia de
Sócrates, o Críton e o Protágoras; o período de transição, em que Platão começa a apresentar suas
próprias concepções em obras como o Górgias e o Menon; o período da maturidade de Platão, em
que ele já apresenta suas próprias ideias, como o faz em O Banquete, Fédon, A República e no Fedro;
e o quarto e último período, o das obras da sua velhice, com os diálogos chamados lógicos, tais como
Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, além do Timeu e As Leis (COPLESTON, 1994, p. 151-152).
O pensador ateniense não se contenta em saber contemplar a essência das coisas por meio da
Filosofia, mas queria também criar o bem, dando continuidade à proposta iniciada por Sócrates de
formação da alma. Nesse escopo, a obra escrita de Platão produz dois grandes sistemas educacionais,
apresentados em A República e em As Leis.
É assim que Platão assume a herança de Sócrates e se encarrega da direção da
luta crítica com as grandes potências educadoras do seu tempo e com a tradição
histórica do seu povo; com a sofística e a retórica, o Estado e a legislação, a
Matemática e a Astronomia, a ginástica e a Medicina, a poesia e a música.
Sócrates apontara a meta e estabelecera a norma para o conhecimento do bem.
Platão procura encontrar o caminho que conduz a essa meta, ao colocar o
problema da essência do saber. (JAEGER, 2003, p. 590)

Em A República, principal obra que analisaremos neste momento, encontra-se presente de


modo mais definido a concepção platônica de ética, justiça e da melhor forma de organização da
cidade. A obra é composta por 10 livros, nos quais mais do que se concentrar somente nas questões
morais e políticas, o autor faz uma profunda reflexão sobre a teoria do conhecimento e da educação,
assim como sobre as questões que conduzem o homem não somente a viver bem, mas também
a encontrar sua parte divina, o que possui de mais precioso dentro de si. Nos dizeres de Jaeger:
“A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates mover todo o Estado” (JAEGER,
2003, p. 752).
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão 77

Logo no primeiro livro da obra, Platão reflete sobre o significado da justiça e sua contraposição
à injustiça. Para tanto, cria um conflito entre Sócrates e o sofista Trasímaco. Inicia-se a discussão
com a concepção de Simônides: “é justo restituir a cada um o que se lhe deve”. Porém essa concepção
é insuficiente para definir justiça, até porque o homem justo não retribuirá com maldade ao homem
mau. Há de se fazer uma análise mais profunda sobre essa questão, considerando a pessoa a quem
essa relação se dirige. O sofista, então, traz a concepção de que o justo é o que é mais conveniente
ao mais forte. Desse modo, cada Estado, na pessoa do seu governante, promulga as leis que disporão
sobre o que é ou deixa de ser justo para esse governo, fixando-se conforme sua conveniência e
castigando os seus transgressores (PLATÃO, 2001). Trasímaco considera que o interesse próprio
do detentor do poder é justo para com os súditos.
Sócrates ergue-se contra a concepção do sofista, afirmando que a arte do governo não se
destina somente a garantir a conveniência do mais forte. Liderar, governar, acima de tudo é uma
atitude de guiar os seus coordenados rumo ao que é vantajoso a esse grupo. É nesse ponto que se
começa a apresentar a concepção aristocrática de Platão, ou seja, que o melhor deve ser o governante.
Conforme Platão (2001), “é desde já evidente que nenhuma arte nem governo proporciona o que
é útil a si mesmo, mas, como dissemos há pouco, proporciona e prescreve o que é ao súbdito, pois
tem por alvo a conveniência deste, que é o mais fraco, e não a do mais forte” (PLATÃO, 2001, p. 37).
Portanto considera-se que nenhuma arte, nem mesmo a de governar, possui como finalidade
o benefício único daquele que a exerce. A política não visa ao benefício do governante, mas sim
dos governados, trazendo consigo o desenvolvimento daquele que governa, para que siga em
condições de conduzir aos seus. Essa parte possui íntima relação com a concepção de liderança. O
líder, acima de tudo, faz do seu próprio egoísmo algo útil aos demais, por isso é ele quem conduz
aqueles que o acompanham, levando-os a um estágio de desenvolvimento nesse processo. Assim
também deverá ser o governante. Concluindo, “o maior dos castigos é ser governado por quem é
pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos” (PLATÃO, 2001, p. 38).
Platão considera que há uma virtude (areté) própria a tudo aquilo que está encarregado de
uma função. Sendo a justiça uma virtude da alma, e a injustiça um defeito, conclui que a alma justa
e o homem justo viverão bem, enquanto o injusto viverá mal. O homem virtuoso é feliz e venturoso,
já quem não possui virtude alguma é o contrário, “o justo é feliz, ao passo que o injusto é desgraçado”
(PLATÃO, 2001, p. 50).
Insatisfeitos com apenas a diferenciação entre justo e injusto, Glauco e Adimanto interpelam
Sócrates para que este lhes explane de modo mais claro o que é a justiça, questionam-no se a
justiça é um bem que se deva buscar por si próprio ou apenas um meio que acarreta determinada
utilidade. Platão então escreve que a justiça é um bem que deve ser buscado por si mesmo, tem de
ser inerente à alma humana, uma espécie de saúde espiritual do homem. Para comprovar tal ideia,
leva o Sócrates de sua obra a idealizar uma cidade, que seria fundada, desde o início, buscando por
meio dela encontrar o que é o justo e qual é sua finalidade.
Destaca-se o fato de que o Estado, apesar de presente no título da obra, não é o seu principal
objeto de estudo, mas, sim, é utilizado como um meio para um fim. Assim, Platão, ao descrever a
cidade ideal, não busca tratar somente das questões legislativas e da organização política da cidade,
78 Filosofia do Direito

tal como atualmente teríamos na constituição de um Estado ou até mesmo no contrato social de uma
sociedade empresária. Trata sobre toda a organização social, a divisão das classes e, principalmente,
qual será a paideia, o modelo de formação que norteará a fundação dessa cidade para, após refletir
sobre essas questões, encontrar a virtude nessa cidade e, a partir disso, definir o que é a justiça e
sua relação com a alma.
A sociedade platônica seria baseada essencialmente em três classes: a primeira compreenderia
os agricultores e artesãos; a segunda, os guerreiros, guardiões da cidade; e a terceira seria composta
pelos filósofos. Parte-se do pressuposto de que cada um deve exercer o que sabe fazer melhor, pois
cada homem não nasce semelhante aos outros, mas com diferenças naturais, apto a fazer trabalhos
diferentes. Os guardiões do Estado devem ser dotados, antes de tudo, de uma índole apropriada. O
guardião deve ser como um cão de boa raça, dotado ao mesmo tempo de mansidão e de ousadia,
deve ser forte e ágil no físico, irascível2, valente e amante do saber na alma, portanto necessita de
uma educação especial, o que é desnecessário na primeira classe, posto que as profissões usuais são
fáceis de aprender (REALE, 2002).
A formação dos guerreiros se daria pela ginástica e pela música. Trata-se, conforme diz Reale, da
própria paideia helênica, porém reformulada pelo pensador ateniense. “A poesia da qual se alimentará
a alma dos jovens no Estado perfeito deverá ser purificada de tudo o que é falso, sobretudo no que diz
respeito às narrações em torno aos Deuses” (REALE, 2002, p. 246). São propostas reformas na música
e na ginástica, com foco sempre em possibilitar a formação do guerreiro na devida proporcionalidade.
A música e a ginástica complementarmente exercem um papel de educação para a alma. A educação
musical forma e robustece a parte racional da alma; a educação física, por meio do corpo, a parte
irascível da alma. O produto da união de ambas é a harmonia perfeita (REALE, 2003).
Concluindo, considera Jaeger (2003): “Platão entende que a primeira coisa a fazer é formar
espiritualmente o Homem na sua plenitude, entregando-lhe em seguida o cuidado de velar
pessoalmente pelo seu corpo”.
Ao terminar de constituir sua cidade, Platão conclui, no livro III, estar apto a procurar pela
justiça dentro dela. Nesse ponto, são apresentadas as quatro principais virtudes que se encontrariam
na cidade, as chamadas virtudes cardeais: a sabedoria (sophia), a coragem (andreía), ou fortaleza de
ânimo, a temperança (sophrosyne) e a justiça (dikaiosine). Conforme Copleston (1994), a sabedoria
é a virtude da parte racional da alma, a coragem é a relativa à parte irascível ou veemente da alma,
a temperança consiste na união das partes veementes e apetitivas abaixo do governo da razão, o
controle das paixões. A justiça é somente determinada mais adiante, após a apreciação dessas três
virtudes. Contudo Platão já conclui no diálogo que o Estado perfeito deverá necessariamente ter
as quatro virtudes.
O Estado possui a sabedoria porque tem um bom conselho, “a ponderação, é evidente que é
uma espécie de ciência. Efetivamente, não é pela ignorância, mas pela ciência, que se delibera bem”
(PLATÃO, 2001, p. 176). Assim, o Estado é sábio pela classe de seus governantes (REALE, 1994).

2 Na filosofia platônica, irascibilidade é uma das faculdades da alma, trata-se da capacidade de indignar-se e lutar
por aquilo que a razão julga justo. (ABBAGNANO, 2003, p. 425).
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão 79

Além disso, a cidade é corajosa “numa de suas partes, pelo fato de aí armazenar energia tal
que preservará através de todas as vicissitudes a sua opinião sobre as coisas a temer, que são tais e
quais as que o legislador proclamar na educação” (PLATÃO, 2001, p. 178). Trata-se da capacidade de
conservar com constância a opinião reta em matéria de coisas perigosas ou não, sem se deixar vencer
pelos prazeres ou pelas dores, pelos medos ou pelas paixões. É a virtude sobretudo dos guerreiros.
A temperança é uma espécie de ordenação capaz de dominar prazeres e desejos, ou seja, a
capacidade de submeter a parte pior à parte melhor. O Estado temperante é aquele no qual os mais
fracos estão de acordo com os mais fortes, e os inferiores, em plena harmonia com os superiores,
de modo que as paixões destes estejam acima do bom juízo dos mais bem capacitados.
Nessas três virtudes, transpondo-as para a realidade empresarial, podemos identificar uma
essencial importância para a boa condução do negócio. Sabedoria é uma disposição essencial, pois o
líder, ou o corpo de líderes que conduz a organização, necessita possuir um tipo de ponderação que
possibilite definir os devidos rumos da instituição que coordena e daqueles que fazem parte dela.
Além disso, a temperança é uma virtude importantíssima a toda a organização, desde os mais
altos cargos até os mais básicos. O controle das pulsões do organismo, dos prazeres mais básicos,
é trivial para o desempenho da atividade profissional vencedora. Quando se trata das dimensões
afetivas, torna-se mais importante ainda um tipo de formação para preparar o indivíduo a viver as
situações com o outro, tanto de interesse, ligação, aproximação, quanto de repulsa. Grandes conflitos
têm origem na falta de temperança, no despreparo de alguns líderes para medir as consequências e
evitar os excessos que determinadas ações provocam. Uma questão afetiva mal administrada dentro
de uma organização pode significar a diminuição ou até mesmo a paralisação de todo um setor.
Mais ainda, se tais questões surtem efeito na atividade racional do líder, podem representar a perda
para toda a organização. Um profundo trabalho para aprender a lidar com essas questões é muito
importante na atualidade.
Tem-se ainda a coragem, tão valorizada na cultura grega, elevada em seus cantos heroicos
e defendida pelos filósofos, a qual é de elementar importância à dinâmica empresarial. Tanto na
perspectiva de se enfrentar o mercado econômico, saber vencer a concorrência, fornecendo o
melhor produto ou serviço pelo preço mais acessível, quanto na perspectiva individual, existencial,
é essencial a coragem de investir-se e aprofundar-se no próprio conhecimento e na mudança de
comportamento, o que significa inclusive a necessidade de ceifar alguns hábitos e relações que não
proporcionam resultados adequados.
Além da necessidade do reconhecimento do quanto se é ignorante como um pressuposto
necessário ao autoconhecimento, do modo como propusera Sócrates, outra disposição essencial
àquele que se propõe a aprofundar-se no conhecimento de si próprio indubitavelmente é a coragem
– coragem para proceder a investigação da própria realidade de maneira responsável, mantendo-se
sempre centrado no seu principal escopo. Não é à toa que a coragem é a primeira virtude, pois sem
ela não se pode falar em um homem sábio, temperante, ou ainda justo.
Por último, reservamos a questão da justiça, a quarta das virtudes que se encontram na
cidade ideal. Para Platão, justiça constitui-se em cada um desempenhar a tarefa que lhe cabe, dentro
da sistemática ética e ontológica arquitetada na República: “Isso significa que essa virtude é cada
80 Filosofia do Direito

um exercer aquela tarefa que foi preparado para executar da melhor maneira, diferentemente dos
demais, relativa à sua própria constituição natural” (SOARES, 2003, p. 24). Em uma situação como
essa, em que todos cumprem sua função desse modo e guardam aquilo que é seu, estaremos diante
da justiça platônica.
Destacamos que essa ideia de exercer a sua tarefa é muito mais ligada à perspectiva dos
resultados do que aos gostos da pessoa, pois, sem saber, tal indivíduo pode ter especiais habilidades
em determinada área em que nunca havia sido provocado a desenvolver-se. Com isso, reforça-se
uma vez mais a importância do autoconhecimento e da profunda formação, de modo que auxiliem o
indivíduo a encontrar seu devido lugar, onde exercerá a tarefa que lhe incumbe, seja de gerenciamento,
seja de execução ou qualquer outro tipo de serviço, da melhor maneira.
A questão da justiça não diz respeito somente à realidade externa do indivíduo, mas também
ao próprio indivíduo, pois, ao praticá-la, valoriza sua melhor parte, de modo a alcançar um tipo de
paz, de realização, de felicidade no exercício dessa atividade.
Relativamente às mulheres da cidade, Platão cria no diálogo uma nova indagação dos irmãos
Glauco e Adimanto sobre qual seria a situação delas na cidade ideal. Sócrates, interpelado, responde
que o Estado deve ter todas as coisas em comum; nessa perspectiva, as mulheres, especialmente
as da classe guerreira, podem ter o mesmo tipo de formação que os homens e exercer as mesmas
atividades que eles. Valoriza-se, desse modo, a imagem feminina, tratando sobre a igualdade de
oportunidades a ambos os sexos, respeitadas suas diferenças. Na situação de uma mulher ser muito
superior em determinado Estado, pode-se dizer, inclusive, que sem problema algum ela poderia ser
a governante indicada para essa sociedade.
Além disso, indagado sobre quem deve comandar a cidade, Sócrates apresenta com clareza
que essa função seria do filósofo, aquele que possui uma formação diferenciada para tanto. Mais
do que o estudo da ginástica e da música, o filósofo, utilizando-se de outros conhecimentos, ainda
é o melhor governante.
Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam
reis e soberanos Filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder
político com a Filosofia, enquanto as numerosas naturezas que atualmente
seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas
forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon,
para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso
será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos.
(PLATÃO, 2001, p. 251)

Destaca-se que, quando Platão (2000) fala em filósofo, considera-se que este possui como
exemplo seu próprio mestre, Sócrates. Prova disso é sua referência do Górgias, de que Sócrates teria
sido o maior estadista de seu tempo.
Finalizando este tópico, trataremos sobre a famosa passagem de O mito da caverna, encontrada
no livro VII da obra em estudo. Nessa narrativa, o filósofo apresenta a situação de um grupo de
homens que vivia em uma caverna subterrânea que se abre para a luz por uma comprida galeria.
Tais homens se encontram lá aprisionados desde a infância e só lhes é permitido olhar para a
frente. Elucida-se a situação de que um dos prisioneiros é posto em liberdade e, ao sair para a
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão 81

luz, surpreende-se com a realidade com que se depara. Lembrando-se de sua morada anterior, da
consciência das coisas que tinha lá, considera-se feliz pela mudança e lamenta seus antigos irmãos
de cativeiro. Na situação em que retornasse ao interior da caverna e se pusesse a revelar tal situação
aos outros cativos, cairia no ridículo. Conclui-se a narrativa, destacando que se “esse homem tentasse
libertar um deles, ele próprio estaria correndo o risco de ser morto pelos aprisionados” (JAEGER,
2003, p. 885-886).
Nessa alegoria, Platão representa sua Teoria do Conhecimento. A caverna corresponde ao
mundo visível, o sol é o fogo cuja luz se projeta dentro dela. A ascensão para o alto e a contemplação
do mundo superior é o símbolo do caminho da alma em direção ao mundo das ideias.
Para a interpretação desse relato, devemos considerar a relação entre o mundo das ideias, das
formas, o mundo inteligível, com o mundo das sombras, o mundo sensível. Para Platão, existem
essas duas realidades: vivemos no mundo sensível, e tudo o que existe aqui é cópia do modelo
anterior e perfeito existente no mundo inteligível, no mundo das ideias. Se existimos enquanto seres
humanos, deve haver um modelo de ser humano ideal naquela realidade, modelo que o indivíduo
busca alcançar, rompendo as barreiras impostas pelas imperfeições do mundo sensível.
No mito da caverna, o indivíduo consegue libertar-se das amarras que o prendiam ao mundo
sensível, o que lhe possibilita apreender a realidade eterna e imutável do mundo inteligível. Essa
profunda passagem pode ser considerada em dois aspectos: primeiro, no aspecto existencial, posto
que, nessa situação, o indivíduo realiza o seu ideal enquanto ser humano, aproximando-se da ideia
do bem, somente encontrada no mundo inteligível. Por outro lado, nessa passagem há também a
abertura epistemológica, pois passa-se a identificar a realidade pelo modo como ela é, de maneira
exata. Este é o conhecimento, a episteme, sem se condicionar às questões do mundo sensível, do
mundo da opinião (doxa). Esta é a realização da paideia platônica no mito, o conhecimento da ideia
do bem, medida das medidas, o qual se torna aberto à realização na vida prática.
Devemos superar a aparência de conhecimento, que é a apreensão de sua superfície, e alcançar
a essência, a ideia, da coisa em si.
Demonstra-se assim que não se pode fazer ciência ou querer agir da maneira adequada
sem antes fazer essa passagem retratada na alegoria, o que atesta a importância dessas concepções
inclusive para o homem contemporâneo. Portanto o governante, para que esteja capacitado a guiar
seu povo e seu Estado à plenitude, deve ter realizado essa passagem, de modo que esteja apto a
captar as essências, identificar o que realmente acontece na vida, podendo assim agir do modo
mais adequado e justo.
É necessária a superação da realidade na qual o homem vive aprisionado desde a infância,
o universo de concepções acerca de si próprio e do mundo à sua volta precisa ser posto em xeque
para verificar se de fato é conhecimento verdadeiro, episteme, ou se trata-se de mera opinião, doxa,
não reversível à realidade.
O encontro com o mundo do modo como ele verdadeiramente é, não como aparenta ser,
abre a possibilidade da efetiva atuação nessa realidade e sua construção de modo que a organização
82 Filosofia do Direito

cresça e se desenvolva, gerando lucro para ela própria, bem como o desenvolvimento dos liderados,
funcionários, colaboradores e de toda a sociedade.
Constata-se, portanto, que, tal como Sócrates, Platão também se preocupa com a formação
da alma do homem, representando-a na formação do Estado ideal. Para tanto, a paideia é essencial,
uma formação que prepare o homem fisicamente e intelectualmente para que, por meio desses
elementos, possa vir a conhecer-se e, a partir disso, conhecer a realidade em que se encontra, agindo
de modo adequado, sendo esta a realização da justiça platônica.

Considerações finais
Sócrates traz para a história da filosofia a paixão pela educação humana. Mais do que
articulador de conceitos, Sócrates buscava auxiliar o homem a conhecer a si mesmo, a partir da
própria alma.
Em Sócrates, se vê a convicção de que cada indivíduo já possui dentro de si o princípio do
conhecimento, a capacidade de acessar o real, que é a alma. Desse modo, o papel da filosofia não é
simplesmente transmitir conteúdos, mas ajudar a pessoa a conhecer a si mesma e a cuidar da própria
alma, porque desse modo será capaz de conhecer o real a partir de si mesmo.
Platão prossegue a estrada iniciada pelo mestre Sócrates, desenvolvendo um sistema filosófico
que articula conceitos ontológicos, epistemológicos e éticos sempre em torno da ideia de alma. É
conhecendo a alma humana que se pode abordar com segurança questões sociais e políticas, porque
a comunidade é também extensão da alma humana.
Para Platão e Sócrates, as grandes dificuldades humanas são internas, mas também a grande
oportunidade de recuperação do acesso à verdade é interna, na alma. A partir da alma, a partir do
autoconhecimento, é possível entender o direito, a sociedade e o mundo em geral.

Ampliando seus conhecimentos


• SÓCRATES. Direção de Roberto Rossellini. Itália: Versátil, 1971. DVD (120 min), son., color.
Obra importante para acompanhar a história do mais famoso filósofo, cuja biografia se
mistura com o próprio pensamento. As ações de Sócrates são também parte do núcleo do
seu legado para a história do pensamento. Neste filme, vemos a emoção e o drama dos
conflitos enfrentados pelo protagonista em seus dias finais.

• INTELIGÊNCIA artificial. Direção de Steven Spielberg; Stanley Kubrick. Estados Unidos:


Amblin Entertainment; Stanley Kubrick Productions, 2001. DVD (141 min), son., color.
Um robô é programado para ocupar o espaço sentimental de um filho falecido no coração
da mãe. A partir daí se desenrola história de autodescoberta do protagonista em um mundo
que ele mesmo tem dificuldade de compreender. Os personagens que representam robôs
ajudam a entender o posicionamento platônico de que temos dificuldade para sair das
sombras da caverna que habitamos desde a infância. Tal como o robô, temos que lutar
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão 83

contra a programação que também sofremos existencialmente e que dificulta nossa


capacidade de acesso à verdade.

Atividades
1. Considerando o que foi estudado sobre as concepções da filosofia socrática e da sua
valorização do conceito da alma humana, a busca por conhecê-la e por torná-la realidade
efetiva, discorra sobre a importância do autoconhecimento para o exercício da liderança
funcional na contemporaneidade.

2. Conforme foi visto, Sócrates propunha-se não a ensinar seus pares, mas sim a incentivá-los a
encontrar um conhecimento que o pensador entendia já ser existente, porém ignorado. Desse
modo, utilizava-se da ironia como modo de levar o interlocutor a compreender seu estado de
ignorância e, caso optasse, a buscar conhecer qual é a episteme, a verdade relacionada àquele
fato em discussão. Qual é a importância desse recurso na vivência empresarial, especialmente
em relação à formação de um corpo de colaboradores que torne possível o desenvolvimento
de todo o grupo?

3. Platão, em sua República, propôs-se a, muito mais do que tratar sobre a melhor forma de se
organizar uma sociedade, discorrer sobre o modo como o homem, vivendo em sociedade,
poderia desenvolver-se e alcançar sua excelência. Transpondo tal concepção à atualidade.
Qual é a importância de um modelo de formação, especialmente de uma formação
humanista?

4. Entre as principais virtudes retratadas por Platão encontra-se a temperança, a qual se


refere à disposição de autocontrole dos impulsos e das pulsões do indivíduo, o controle das
paixões humanas. Qual é a importância do cultivo dessa virtude dentro de uma organização
empresarial?

5. Em A República, Platão expõe sua clássica concepção de justiça, que trata-se de “cada um
fazer o que sabe fazer da melhor maneira”. Qual é a relação entre essa concepção de justiça e
a administração de pessoas dentro de uma empresa?

Referências
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Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 425.

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84 Filosofia do Direito

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SOARES, Josemar Sidinei. Os pressupostos filosóficos da ideia justiça na história da filosofia: contribuições
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Itajaí – UNIVALI, Itajaí, 2003.
5
Justiça em Aristóteles

Seguindo o processo de análise da fundamentação do conceito de justiça na Grécia Clássica,


chegamos ao momento de tratar sobre o mais influente expoente do pensamento grego, representado
pelo filósofo Aristóteles de Estagira1, discípulo de Platão, mas que no decorrer de sua trajetória conquistou
cada vez mais autonomia intelectual, criando um sistema filosófico que atravessou a história.
Aristóteles distinguiu as ciências em três grandes ramos: as ciências teoréticas, que buscam
o saber por si mesmo; as ciências práticas, que buscam o saber para alcançar a perfeição moral;
e as ciências poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em vista do fazer, da produção de
determinados objetos.
Nas ciências teoréticas encontram-se, entre outras, as pesquisas metafísicas de Aristóteles,
aqueles estudos reunidos na obra conhecida por Metafísica e que enfrentam o problema do ser, de
como identificar a causa primeira das coisas. Cada fenômeno, cada objeto, cada evento é efeito, é
consequência de algo anterior, de modo que para entender qualquer ente (um homem, um cavalo,
uma guerra, um negócio empresarial, um problema jurídico etc.) devemos buscar as causas, as
informações que originaram aquela situação.
Aristóteles divide a ética e a política como ciências separadas, sendo a primeira o estudo da
ação moral individual, visando à felicidade (eudaimonia), e a segunda, a pesquisa da ação diante
da vida política, da vida comunitária, que pretende o bem comum. O Direito, em Aristóteles,
movimenta-se entre as duas ciências, porque regulamenta tanto as relações entre indivíduos como
a organização social e política das cidades. No entanto, a política deve ser vista como continuação da
Ética, ou seja, a vida em comum deve ser estudada depois que o pesquisador compreende o que é o
ser humano, como deve agir, como deve viver, como pode alcançar a própria felicidade. A formação
política depende da formação existencial do indivíduo.
A ética e a política são divididas enquanto estudos separados, mas impossíveis de serem
dissociadas na prática, porque ambas remetem ao estudo de como deve o homem viver, diante da
própria natureza e das relações com seus semelhantes.
Temos, assim, a primeira lição acerca do pensamento aristotélico: não há como tratar das
questões da sociedade, do Direito, dos problemas das relações entre os indivíduos sem antes se ter
uma ideia da vida humana e de qual é sua finalidade. Necessitamos primeiro entender a vida humana

1 Aristóteles nasceu em Estagira, na região da Macedônia, em 384/383 a.C. Foi para Atenas aperfeiçoar sua formação,
estudando na Academia de Platão por cerca de 20 anos. Depois, fundou sua própria escola, o Liceu. Com a morte de
Alexandre Magno, retirou-se de Atenas, evitando os movimentos contra os macedônios que movimentavam a cidade,
indo para a Calcídia. Morreu em 322 a.C, poucos meses após exilar-se. (REALE, 1994). Aristóteles pode ser considerado
o mais influente porque suas obras exerceram impacto seja na Idade Média, seja na Modernidade. Aristóteles se debruça
sobre tantos argumentos filosóficos (lógica, metafísica, ética, política etc.) que acabará por ser objeto de discussão
de quase todos os grandes filósofos posteriores. De certo modo, cada grande filósofo depois terá que dialogar com
Aristóteles, seja para seguir ou contradizer.
86 Filosofia do Direito

e para onde ela naturalmente tende para depois falar na reunião dos seres humanos em organizações
sociais, assim como na criação do Estado como regulador das relações humanas.
Ao investigarmos o pensamento aristotélico, tratamos justamente do pilar sobre o qual foi
fundada toda a racionalidade ocidental. Os estudos do filósofo culminaram com o nascimento ou
a sistematização das mais variadas áreas do conhecimento humano. No âmbito da Filosofia Política
e da Filosofia Jurídica, as concepções de Aristóteles são o suporte pelo qual se constituiu toda a
noção de bem e de justiça.

5.1 Justiça e ética


Para compreendermos a posição da justiça no pensamento aristotélico, devemos considerar
a ordem do mundo no seu sistema filosófico, retratada principalmente em sua obra Metafísica.
Entre as questões que o autor se dedica a resolver, temos de levar em conta a concepção das quatro
causas que regem todos os fenômenos no mundo: a causa material, a causa formal, a causa eficiente
e a causa final. A causa material é a matéria e o substrato, a parte que constitui o corpo; a formal
é sua substância e a essência, aquilo que é o princípio do movimento; a causa eficiente versa sobre
o princípio do movimento, sobre o que o originou; por fim, a causa final representa o thelos, a
finalidade para aquele corpo e o seu bem. Assim, a causa final é a mais importante, pois é a primeira
a ser lançada e a última a ser alcançada (ARISTÓTELES, 2002).
Figura 1 – As quatro causas que regem todos os fenômenos

Causa material → Causa formal → Causa eficiente → Causa final

Fonte: Elaborada pelo autor.

Todas as questões do pensamento aristotélico são vinculadas a essa concepção, de modo


que qualquer ação e qualquer conhecimento no mundo devem ser buscados tendo como objetivo
uma ideia de finalidade. Postos esses elementos, podemos partir para a análise das obras relativas
à ética e à política de Aristóteles, procurando, nessa pesquisa, identificar a fundamentação da ideia
de justiça neste pensador.
Para tratar das questões da ética, será utilizado o mais célebre tratado escrito por Aristóteles
sobre a matéria, Ética a Nicômaco (Etica Nicomachea), que é um verdadeiro compêndio sobre a
existência humana. Nos dez livros da obra, são analisadas as principais questões às quais é necessário
nos atentarmos quando nos propomos a viver bem (ARISTÓTELES, 1992).
Sobre o pensamento de Aristóteles, não há como falarmos na estruturação de uma sociedade
sem ter firmada uma profunda concepção do ideal da vida humana. A ação humana deve ter
necessariamente como objetivo um fim maior, um fim que é buscado em todas as coisas. Assim,
considera o filósofo que se para cada ação há alguma finalidade que desejamos por si mesma,
evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens (ARISTÓTELES, 1992).
Essa espécie de bem é a felicidade, pois todos a buscam, mesmo que divirjam acerca da
concepção de felicidade que buscam. A felicidade é comumente classificada em três modos: a vida
prazerosa, a vida política e a vida contemplativa. Aos primeiros, a felicidade confunde-se com uma
Justiça em Aristóteles 87

vida agradável e com a honra, no reconhecimento da nobreza do caráter, enquanto o verdadeiro


ideal de conduta é a vida contemplativa, que é o modelo de vida baseado nas virtudes, no qual o
homem pode contemplar a verdade e nisso ter o prazer em si próprio, sendo, por tal motivo, a vida
mais feliz (ARISTÓTELES, 1992).
Alcançado tal entendimento surge a necessidade de considerar o modo de se alcançar essa
finalidade, como tornar-se, de fato, feliz. Essa passagem somente é feita por meio das virtudes.
Demonstra-se assim que a felicidade aristotélica terminantemente não é relacionada a um estado
no qual se alcança e se permanece, mas é contínua, vive-se feliz enquanto age-se e raciocina-se de
modo virtuoso.
A felicidade necessita não somente das virtudes, mas também dos bens exteriores, pois é
impossível praticar ações nobres sem os devidos meios. Portanto, ao falarmos em ética, trataremos não
somente dessas disposições de formação humana, mas também daqueles bens externos que devemos
obter para que possamos viver bem. Nesse sentido, consideram-se questões como a amizade, a riqueza
e o poder político na obra. Conclui-se, assim, que felizes são aqueles que agem em conformidade com
a virtude perfeita e estão suficientemente providos de bens exteriores, entendendo-os como tudo o que
é externo a nós e que nos auxilia em nosso desenvolvimento (ARISTÓTELES, 1992).
As virtudes podem ser divididas em duas categorias: éticas e dianoéticas, também chamadas
de morais e intelectuais. As primeiras referem-se às ações, paixões e emoções, por isso chamadas de
éticas (REALE, 1994). As virtudes intelectuais, por outro lado, referem-se às disposições de espírito
louváveis. Para se viver bem não basta somente saber agir adequadamente, o caminho de evolução
humana pressupõe também o desenvolvimento intelectual.
As virtudes éticas são adquiridas pelo hábito, pelo seu reiterado exercício deliberado. Não
é à toa que Aristóteles chega a dizer que os hábitos são “uma segunda natureza”2, posto que após
realizados repetidas vezes se tornam ações automáticas, porém os hábitos podem ser tanto bons
quanto ruins. Assim, deve-se saber cultivar os bons hábitos e deixar de praticar aqueles que são
ruins ou não funcionais ao projeto ao qual o indivíduo se propõe. Conforme destaca Bittar (2003),
ética (ethiké) já é um termo derivado exatamente de hábito (ethos).
Consoante ao exposto, na realidade atual é de extrema importância esse tipo de cultivo da própria
vida. Se a pessoa propõe-se a viver bem, construir uma boa carreira, ser reconhecida e ter a certeza
de que tem posto o melhor de si naquilo que faz e tem sido recompensada por isso, os bons hábitos
são um ótimo atalho para que o indivíduo aprenda a como agir nas situações que surgem diante de si.
Porém a simples previsão de que o critério para a conduta humana é a virtude não é suficiente
para se clarificar o modo de agir virtuosamente. Para Aristóteles (1992), o critério da conduta,
a virtude, é a medida, também conhecida como meio-termo, entre o excesso e a falta do que é
conveniente, tanto nas ações quanto nas emoções. Desse modo, há que se considerar que se erra
por muitos modos, mas age-se corretamente somente de um modo. Como exemplo de virtudes,
podemos elencar a coragem, a temperança e a liberalidade.

2 Acerca do hábito, diz Aristóteles na Arte Retórica: “Os hábitos são igualmente agradáveis, porque o habitual é já como
que uma segunda natureza. O hábito assemelha-se de algum modo à natureza: ‘muitas vezes não está longe de sempre’. A
natureza tem por objeto o que acontece sempre; o hábito, o que acontece muitas vezes” (ARISTÓTELES, 2005, p. 70).
88 Filosofia do Direito

As virtudes intelectuais referem-se às disposições da alma (psyche)3. Essas virtudes, segundo


Aristóteles, são adquiridas, em sua maioria, pelo estudo. O livro VI da Ética é dedicado inteiramente
a tratar sobre essas formas de conhecimento, as quais para o pensador são: a arte (techné); o
conhecimento científico (episteme); a sabedoria prática (phrónesis) (REALE, 1994); a razão intuitiva
(noûs); e a sabedoria filosófica (sophia) (BITTAR, 2003). Próximo à sabedoria prática tem-se, ainda,
a sabedoria política e a sabedoria jurídica (ARISTÓTELES, 1992).
Ademais, para Aristóteles, a boa conduta pode ser identificada por intermédio da reta-razão,
ou seja, a exatidão racional que torna capaz a identificação e a classificação do módulo ideal de se
agir. Reforça-se, assim, a importância da formação intelectual do indivíduo para que possa agir bem.
Dessa ideia de reta-razão, entramos em outra questão essencial para entender o objeto da ética
aristotélica, a questão da voluntariedade das ações humanas. A alma possui duas partes: uma parte
racional e outra irracional – esta última se refere às paixões humanas. Conforme dissemos, a virtude
se relaciona com paixões e ações, porém somente àquelas voluntárias, àquelas relativas à alma racional.
As involuntárias recebem perdão ou às vezes inspiram compaixão.4 O ato racional, outrossim, é o ato
deliberado e, por conseguinte, constitui-se de uma opção consciente do sujeito tendo em vista um fim
específico (BITTAR, 2003). Portanto, as virtudes, por serem disposições ideais da conduta humana,
dependem da voluntariedade do indivíduo para serem praticadas (PHILIPPE, 2002).
Todos os seres humanos nascem já tendentes à felicidade, conforme dito, e também ao
conhecimento, como exposto na Metafísica, porém dotada dessa potência, dessa possibilidade, somente
se a pessoa decidir agir de modo adequado é que poderá agir de modo virtuoso. Nisso tem-se, por
conseguinte, a responsabilização do indivíduo por como sua vida se encontra e como deveria estar.
Por meio dessas considerações, podemos partir para a análise de questões mais específicas
da ética. A partir do livro III, Aristóteles passa a tratar das virtudes em espécie, principiando pela
coragem, que é a virtude daquele que sabe agir quando é devido e não agir quando não é devido,
e pela temperança, que se refere ao controle deliberado das próprias paixões. O livro IV trata
especialmente da virtude da liberalidade, que é a capacidade de o indivíduo saber ganhar, guardar
e gastar dinheiro. A ética, por se referir também à capacidade de adquirir bens que auxiliem na
construção do indivíduo, também considera a importância do dinheiro, critério de liberdade àquele
que pretende viver bem.
O livro V da obra é inteiramente dedicado a tratar da justiça, virtude que é considerada por
Aristóteles como a mais importante. Ciente de que a justiça é uma virtude e que as virtudes são
os meios-termos, o filósofo propõe-se, então, a identificar qual espécie de meio-termo é a justiça.
Para iniciar essa discussão, Aristóteles fixa um conceito de homem justo, contrapondo-o ao
homem injusto. Nesse raciocínio, diz Aristóteles (1992) que o homem justo é aquele que é conforme
a lei e correto, ao passo que o homem injusto é exatamente o contrário, ilegal e iníquo.

3 Para Aristóteles existem três tipos de alma. A alma vegetativa é a mais comum das espécies, trata-se da causa e o
princípio do corpo vivente, é a alma geradora de um ser semelhante àquele que a possui; após tem-se a alma sensitiva,
suas faculdades são potências aptas para captar o objeto sensível; a última é a alma racional, a qual capta a forma
inteligível, possível de ser conhecida e entendida, somente possuída pelos seres humanos (ARISTÓTELES, 2003).
4 Contudo isso não isenta quem pratica tais atos involuntários de sua responsabilidade, dado que a temperança é
justamente a virtude daquele que sabe controlar suas paixões.
Justiça em Aristóteles 89

Dessa concepção, Aristóteles passa a tratar da justiça legal, considerando a importância das
leis, posto que estas almejam a vantagem de todos, tendo em vista as diferenças entre as classes que
habitam na cidade. A lei justa procura preservar a felicidade e os elementos que a compõem em
uma sociedade em relação a todos. Disso, conclui Aristóteles (1992) que a justiça é, de fato, a virtude
completa – não é uma virtude absoluta, mas, por ser praticada também em relação ao próximo, é
superior às demais.
Portanto pode-se considerar a justiça como a maior das virtudes justamente pelo fato de que,
por intermédio dela, pode-se beneficiar as pessoas que vivem conosco. Assim, o pior dos homens é
aquele que exerce sua deficiência moral em relação a si mesmo e aos demais, ao passo que o melhor
dos homens, contrariamente, faz da sua virtude não só motivo de construção pessoal, mas com seu
desenvolvimento individual auxilia a todos que o circundam.
O indivíduo que escolhe conhecer-se, construir-se, desenvolver-se, tendo como base a ação
virtuosa, será aquele que estará apto a auxiliar os demais, pois sua vida é evidência do seu mérito,
da capacidade que possui de agir corretamente. Contrariamente, aquele que ainda não possui tal
senso, quando busca preocupar-se com os demais, sem haver se construído adequadamente, corre o
risco de, ao mesmo tempo em que não trabalha favoravelmente ao seu desenvolvimento, prejudicar
o outro por ainda estar incapacitado para auxiliá-lo.
Considerada a supremacia da justiça ante as demais virtudes, e que esta é o ponto de equidade
entre o excesso e a falta, Aristóteles divide-a em duas categorias, das quais o meio-termo da justiça
operará de maneira diversa. Uma se manifesta nas distribuições em geral, por exemplo na distribuição
de funções ou de dinheiro, é a justiça distributiva. A outra desempenha uma função corretiva, por isso
é chamada de justiça corretiva. Esta se subdivide na parte que trata das transações voluntárias, em
que ambas as partes agem voluntariamente, representadas especialmente pelas relações contratuais.
Já as transações involuntárias referem-se à superposição de uma vontade sobre a outra, algumas
clandestinas e outras violentas: clandestinas quando é agredido o patrimônio ou o direito de outrem,
como quando ocorre o furto, e violentas quando essa agressão atinge a própria integridade da pessoa,
como nos casos de agressão, sequestro e homicídio.
A justiça considera uma relação entre dois elementos ao mínimo, sendo o justo o ponto
equânime entre esses pontos, não obrigatoriamente a metade, mas sim a devida proporcionalidade.
Essa igualdade será observada de dois modos diversos, relativamente àquelas espécies de justiça
anteriormente elencadas. O justo, na justiça distributiva, é uma proporção que tem como base o
mérito, segue uma proporção geométrica, sendo essa forma também chamada de justiça geométrica
(ARISTÓTELES, 1992). Marcantemente as questões de Direito Público devem ser praticadas tendo-
-se em vista essa modalidade de justiça. A outra espécie, a justiça corretiva, por sua vez, é a busca
pela retomada da proporção que foi agredida. Essa justiça refere-se à situação de desigualdade entre
as partes que deve ser corrigida, pautando-se, assim, em uma proporção aritmética. Nesse sentido,
agredida a lei, o juiz busca reverter a relação de desigualdade ocorrida, com a retribuição pecuniária
ou com a aplicação de uma pena. Assim, explica Aristóteles, o juiz restabelece a igualdade, como se
com uma linha dividida em dois segmentos iguais subtraísse a parte que faz com que o segmento
maior exceda a metade, acrescentando-o ao segmento menor. O igual é o meio-termo entre a linha
90 Filosofia do Direito

maior e a menor, de acordo com essa proporção aritmética. “Esta é a origem da palavra díkaion
(= justo); ela quer dizer dikha (= dividida ao meio), como se se devesse entender esta última palavra
no sentido de díkaion; e um dikastés (= juiz) é aquele que divide ao meio (dikhastés)” (ARISTÓTELES,
1992, p. 98).
Conforme se nota, essa última concepção de justiça refere-se ao aspecto judicial da ideia de
justiça. No momento em que a dimensão ética não basta, que a conjugação entre os desígnios de
ambos os indivíduos passa a ser desproporcional e ambas as partes não conseguem chegar a um
consenso que restabeleça a relação original, surge a necessidade de se levar essa questão ao juiz,
para que este possa exercer a jurisdição5, retornando a proporção originalmente entre as partes.
Elemento essencial para se procurar um órgão judicial é a necessidade, o que se chama
atualmente de pretensão resistida. Ou seja, somente quando as partes não conseguem obter um
consenso é que surge a necessidade de se buscar um terceiro que possa retomar a igualdade. Destaca-
-se ainda que, atualmente, ante a morosidade do Poder Judiciário para julgar as questões que lhes
são apresentadas, tem-se recorrido a meios alternativos para buscar esse retorno à devida proporção,
tais como os meios de mediação e também os tribunais arbitrais.
Finalizando as questões da justiça, destacamos a concepção de equidade para Aristóteles.
O equitativo é uma correção da justiça legal. Quando a lei vigente não prevê uma determinada
situação ou a trata de maneira muito limitada, para que se possa realizar a justiça, torna-se necessário
recorrer ao princípio de equidade, corrigindo a falta presente na legislação, “dizendo o que o próprio
legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso
em questão” (ARISTÓTELES, 1992, p. 109).
Para o exercício de sua função, o juiz tem como uma de suas prerrogativas a possibilidade
de recorrer a juízos de equidade, quando a situação o pedir, pela ausência de previsão legal ou pela
limitação da lei. Na atualidade, no Estado brasileiro, nenhum juiz pode furtar-se de julgar uma
situação que lhe é provocada, se tiverem cumpridos os pressupostos para a recepção do processo.
Nesse sentido, o art. 4.º do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, a Lei de Introdução às
Normas de Direito Brasileiro, dispõe que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo
com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (BRASIL, 1942). Demonstra-se, assim,
que na busca pela realização da justiça, o ordenamento jurídico pátrio recepciona a concepção
aristotélica de equidade.
Ademais, em uma realidade como a atual, em que as concepções da sociedade se alteram
muito rapidamente, cada vez mais novas situações vêm sendo apresentadas aos juízes e tribunais, de
modo que é essencial ao jurista uma profunda formação técnica e existencial para que possa operar
um juízo equânime, justo, cumprindo a sua finalidade na ordem social. Nesse sentido, as atuais
campanhas por maior celeridade nos órgãos judiciários, apesar de serem importantes, carregam
consigo um alto risco, o da perda do profundo discernimento da realidade a que se busca aplicar o
Direito, por abrir mão da precisão da apuração dos fatos em favor da duração menor dos processos. É
importante que se reorganize a lógica do Poder Judiciário, de modo que se possa atender de maneira

5 Do latim iurisdictio, ou seja, dizer o direito, dizer qual parte possui o direito.
Justiça em Aristóteles 91

mais adequada aos anseios da sociedade brasileira, porém o modo mais adequado para operar essa
passagem não é somente por meio da simplificação dos ritos processuais. Não se pode perder o
valor da formação do jurista. Este, por ser uma liderança social, também precisa de uma profunda
formação ética para que possa auxiliar a sociedade no seu desenvolvimento.
Por fim, há que se considerar também, relativamente às concepções de justiça, a importância
da amizade na sua construção, posto que, conforme manifesta o estagirita6, “considera-se que a mais
autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa” (ARISTÓTELES, 1992, p. 154).
As questões relativas à amizade são tratadas nos livros VIII e IX da Etica Nicomachea. O fato
de Aristóteles dedicar ao tema dois livros da obra, dividida em 10, demonstra a importância das
relações interpessoais para a construção do indivíduo e para que este possa viver em felicidade. A
amizade é dividida em três espécies: uma pautada no prazer, outra no interesse e, ainda, o modelo
ideal de amizade. As duas primeiras formas são menos válidas, apesar de possuírem sua própria
utilidade, porém só a terceira forma de amizade é autêntica, somente nela o homem ama ao outro
por aquilo que ele é e auxilia-o a desenvolver-se, a realizar suas potencialidades. Nessa situação,
a amizade é ligada à virtude, sendo a verdadeira forma de amizade o laço que o homem virtuoso
estabelece com outro homem virtuoso por causa da própria virtude (REALE, 1994).
A amizade é essencial ao desenvolvimento do homem virtuoso e na manutenção deste no
devido foco. Conforme tratamos anteriormente, se a justiça é a virtude porque pode ser praticada
em relação ao indivíduo e ao próximo, a amizade é a relação pela qual um indivíduo procura agir
com justiça em relação ao outro justamente por buscar o melhor de seu amigo.
Aliás, talvez não seja coincidência que a amizade seja a virtude que realize a passagem da
ética à política, porque a amizade é representada pelo termo grego philia, que também serve para
relação entre amantes e entre familiares e para identificar a existência de vínculo afetivo em geral
entre pessoas. Quando se fala em política, inicia-se o argumento do corpo social, das instituições, da
necessidade de atender ao bem comum em consonância com os objetivos singulares dos membros.
Portanto, é a partir de vínculos inteligentes de relações que é possível construir instituições sólidas e
funcionais ao humano. Aquele que não é funcional a si e ao amigo terá dificuldades de ser funcional
ao corpo da sociedade.
Em síntese, a ética aristotélica orienta a pessoa a se guiar pelos hábitos virtuosos, identificando
momento a momento qual é o critério, qual é a medida adequada da ação. Qual é a proporção que devo
aplicar ao estudo? Qual é a medida das relações? Qual é a atitude adequada em relação ao dinheiro?
Em cada aspecto da vida há uma proporção, uma medida que se encontrada e aplicada gera a satisfação
de viver, o prazer da existência. O organismo tem uma medida para a refeição, uma medida para as
atividades físicas, o intelecto tem uma medida para os estudos, nós temos uma medida para o lazer,
e assim por diante. Mais do que equilíbrio, Aristóteles ensina a encontrar a medida, que pode ser
maior ou menor tendo em vista a pessoa e as circunstâncias. Cada pessoa é única e precisa encontrar
o próprio critério interior, que faz Eudaimonia.

6 Habitante de Estagira, pátria de Aristóteles.


92 Filosofia do Direito

Essas são as principais considerações a serem feitas na relação entre a ética e a justiça. Então,
vamos adentrar a política aristotélica.

5.2 Justiça na polis: a política


Compreendidos os aspectos da ética, pode-se partir para a análise da finalidade da existência
humana e da justiça no âmbito da cidade. Essa necessidade encontra-se, inclusive, expressa na
própria Ética a Nicômaco, no final do seu livro X, em que o filósofo demonstra a importância do
preparo existencial e do conhecimento para que se possa exercer de fato a liderança de uma sociedade
(ARISTÓTELES, 1992). O homem verdadeiramente político é aquele que estudou a virtude acima
de todas as coisas, posto que ele deseja tornar os cidadãos homens bons e obedientes às leis.
Destaca-se que o termo política em Aristóteles se refere a todas as questões relativas à
vida em sociedade. Assim, para o filósofo, a política possui um conceito mais amplo do que o
atualmente consagrado. Sempre que nos referirmos ao termo política, estaremos baseados nessa
concepção aristotélica.
Para analisar as questões relativas à organização do Estado, Aristóteles organiza sua Política,
composta por oito livros, de modo a tratar no primeiro livro acerca das questões da família, embrião
da organização social. No segundo capítulo reflete sobre as doutrinas dos filósofos predecessores, as
constituições já existentes e as obras dos legisladores. Após essa reflexão, parte para a explicitação
de sua teoria política nos livros III, IV e VI. No livro V trata da teoria das revoluções que alteram a
ordem dos governos. O livro VII faz uma relação entre a vida na cidade e o ideal de vida ética, assim
como trata de questões importantes a se considerar quando se constitui uma cidade, e o livro VIII,
por fim, trata da educação dos jovens e o seu preparo para a vida política.
Aristóteles, contrariamente a Platão, constrói sua política tendo como base a realidade histórica
e também toda a construção teórica feita acerca da vida em sociedade. Assim, em vez de idealizar
um Estado perfeito, propõe-se a classificar os modelos de governo existentes e determinar de que
forma estes poderiam ser bem organizados para que, seja qual for o modelo de governo adotado,
este possibilite aos seus indivíduos alcançar o ideal de felicidade. Os governos são analisados de
modo que todos possam ser exercidos em sua plenitude.
No início da Política, Aristóteles (1992) já declara que o homem é um animal político, portanto
o ser humano já nasce sociável, tendente a essa forma de convívio por ser muito mais fácil a este viver
bem e realizar-se dentro de uma estrutura social, na qual cada um exerce sua determinada função e
todos se auxiliam para que se tenha o desenvolvimento almejado. O ser humano somente não estaria
nesta condição em duas possibilidades: se fosse uma besta, ou um ser sobre-humano, um deus.
Inicialmente, Aristóteles reflete sobre a estrutura familiar, por ser esta já uma forma de
organização política. Acerca da família, o filósofo discorre especialmente sobre quatro questões: as
relações entre marido e mulher, pais e filhos, senhor e servos, e, ainda, sobre a ciência econômica e
a arte de obter riquezas (REALE, 1994).
O livro III da obra em questão é dedicado à definição do conceito de cidade e de cidadão,
assim como à análise da finalidade da vida em sociedade e das formas pelas quais as sociedades
Justiça em Aristóteles 93

organizam seus governos. Nesse escopo, inicia pela investigação do conceito de cidadão, o qual,
considerando que cada forma de governo terá sua própria definição e a limitação da extensão aos
demais, verifica que, essencialmente, é aquele que pode exercer as funções de juiz ou magistrado,
entendendo-se por estes os funcionários da administração da polis, tal como os agentes públicos
na atualidade (BITTAR, 2003).
Dado o conceito de cidadão, surge a questão: as virtudes do homem de bem são as mesmas
que as do bom cidadão? Na apreciação dessa questão, Aristóteles considera que, como a comunidade
é o regime político, a virtude do cidadão deve necessariamente ser relativa ao regime ao qual se está
submetido, inexistindo, portanto, uma única virtude do bom cidadão. Por outro lado, o homem
bom é chamado assim por agir em conformidade com a ética. Desse modo, torna-se claro que é
possível ser um bom cidadão até mesmo sem possuir a virtude da qualidade do homem de bem
(ARISTÓTELES, 1998). Esses conceitos somente seriam os mesmos no Estado perfeito, em que as
virtudes dos cidadãos refletiriam os ditames da boa conduta humana.
Apesar disso, existem determinadas virtudes que são essenciais ao exercício da cidadania;
especialmente no tocante ao comando, é essencial que se possua a prudência ou sabedoria prática.
Àqueles que são governados, além da capacidade de reconhecer a autoridade dos homens livres,
importa a sabedoria ao aconselhar o seu senhor, sendo também esta parte da arte de saber bem
servir a um líder (ARISTÓTELES, 1998).
Assim, apesar da íntima relação entre a ética e a política, cada uma dessas ciências disciplina
o indivíduo de maneira diversa. Enquanto a ética orienta o indivíduo para que este saiba conduzir
bem sua vida e, consequentemente, vir a realizar-se, a política busca preparar os cidadãos para que
exerçam devidamente suas funções dentro da estrutura do Estado. Apesar de ambas as virtudes não
serem as mesmas, não se está negando por intermédio dessa afirmação a conduta ética, mas sim
consignando-se que não bastará simplesmente a virtude para que o Estado possa estar organizado
e venha a gerir bem a vida de seus cidadãos.
Sobre esse tema, refletindo-se acerca da atualidade, há de se considerar essa cisão.
Considerando-se que a vida política não se restringe somente ao Estado, mas também a qualquer
estrutura organizacional, há de se ter em vista essa duplicidade de valores quando o indivíduo
conduzir sua própria vida. Necessita-se que ele saiba ser um bom cidadão, conheça as regras que
deve cumprir e saiba agir do modo como se espera, porém isso não basta para que esse indivíduo
venha a realizar seus desígnios mais profundos, o que somente pode ser alcançado na situação
em que esse indivíduo também se atente à sua conduta e ao seu desenvolvimento. Se ele apenas se
preocupasse com a sua construção ética, em detrimento da estruturação na organização em que
se encontra, certamente acabaria dispensado de sua função ou preterido em seu espaço, por não
trabalhar em favor da manutenção ou do desenvolvimento dessa estrutura externa.
A finalidade do Estado, tal como a ética, é a felicidade na vida. As pessoas vivem em conjunto e
criam instituições com esse intuito, porém a Ciência Política é maior do que a ética: apesar de o bem
(agathos) do indivíduo e o do Estado serem da mesma natureza, o bem do Estado é mais importante,
mais belo, mais perfeito e mais divino, posto que possibilita a todo o conjunto de individualidades
o alcance de suas finalidades.
94 Filosofia do Direito

A busca pelo bem comum decorre da aspiração de cada ser humano a ser feliz, de querer
realizar as próprias potencialidades em harmonia com seus semelhantes. Portanto, a realização do
bem-estar coletivo deve estar sempre em harmonia com as aspirações individuais.
Logo em seguida, Aristóteles passa a analisar as formas de governo, também chamadas pelo
filósofo de constituições, as quais são divididas em três modelos ideais e três modelos corrompidos.
Os governos ideais exercem seu poder em favor da sociedade, e os modelos corrompidos, apenas
ao interesse dos governantes. Essa divisão tríplice considera, ainda, o número de governantes. O
governo de um só é chamado de monarquia se opera em favor da sociedade ou de tirania se visa
somente ao poderio do próprio governante. O governo será aristocrático se um grupo de poucas
pessoas, composto somente pelos melhores, governa7. Sua degeneração é a oligarquia, que é o
governo dos mais ricos. Por fim, tem-se o regime ao qual se dá o nome de regime constitucional,
que é o governo de um grande número de indivíduos, o qual apresenta características atinentes
à oligarquia e à democracia, sendo um termo intermediário entre estas. Sua corrupção seria a
própria democracia, entendida como o governo dos pobres e tendo em vista seus próprios interesses
(ARISTÓTELES, 1998).
Na sua apreciação dessas formas de governo, Aristóteles não somente as trata na perspectiva
de formas ideais ou corrompidas, mas também analisando o modo pelo qual cada forma de
governo poderia ser exercida de maneira mais próxima à excelência, classificando as subespécies
de constituições que eram formadas dentro de cada uma dessas categorias. Ademais, apesar de
demonstrar preferência pelo regime dos melhores, expõe que o governo ideal deve ser relativo à
própria cidade, de modo que os cidadãos mais destacados possam dirigi-la. Se houver apenas um
que é superior a todos, recomendável seria constituir-se um governo monárquico, e caso houvesse
mais de um homem valoroso, preferir-se-ia uma aristocracia ou um governo constitucional. A forma
de governo leva em conta, ainda, as questões relativas à geografia, ao clima e à população em que
se encontra. Aristóteles considera que a educação e os hábitos que tornam um homem virtuoso
serão geralmente os mesmos que fazem o político ou rei, razão pela qual reflete sobre a educação
na cidade no livro VIII.
Tratando sobre a quem se deveria dar a soberania, aos governantes ou às leis, Aristóteles
(1992) entende ser melhor que a lei governe. Os homens se corrompem e se entregam às paixões,
já as leis são “a razão liberta do desejo”. Desse modo, deve-se buscar formular as leis de modo que
regulem as situações humanas, sem ter de se depender do ânimo do governante para tanto.
A justiça política é em parte natural e em parte legal, ou seja, parte relativa ao direito natural,
parte ao direito positivo. Naturais são “as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não
dependem de as aceitarmos ou não”, e legal é “[...] aquilo que a princípio pode ser determinado
indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente”
(ARISTÓTELES, 1992, p. 103).
Dentro dessa estrutura, Aristóteles discrimina a existência de três partes em todos os governos.
Uma dessas partes relaciona-se com a deliberação sobre assuntos que dizem respeito à comunidade;

7 Daí seu nome: aristos significa o melhor, enquanto cratos significa poder.
Justiça em Aristóteles 95

a segunda refere-se às magistraturas; a terceira, ao exercício da justiça. Apesar de serem divididas


em três partes, na filosofia Aristotélica, não há uma profunda ruptura entre essas funções, o que
somente será feito mais tarde, baseando-se nas ideias do filósofo francês Montesquieu.
Feitas essas considerações, concluindo-se esse ponto, há que se considerar a relação entre
justiça e igualdade. A justiça é um meio-termo dentro da cidade que considera os iguais como
iguais e os desiguais como desiguais. É desse modo que o princípio de justiça distributiva pode ser
realizado no âmbito do Estado.
Não há como buscar uma igualdade simples em uma estrutura governamental – esse princípio
fulmina completamente a responsabilidade do indivíduo para com sua vida e, além disso, acaba
sendo injusto para uma das partes. Por isso, para querer tratar todos como iguais, deve-se trabalhar
primeiro a extinção das desigualdades.
Desse modo, reforça-se a característica da lei e da justiça política como disciplina do mínimo
social. Por mais que se busque, por meio delas, disciplinar a vida do indivíduo e de seus convivas,
de modo que todos possam desenvolver-se, não são elas que garantirão seu desenvolvimento. Caso
o indivíduo transpasse a necessidade de guiar-se pelas leis, por já possuir um módulo de conduta
correto, não mais se necessitaria exigir dele os rigores desta, pois sua própria conduta já seria
conforme o que a realidade pede. Ou, ainda, como manifesta mais a frente Aristóteles (1992), a
alternativa seria todos obedecerem voluntariamente a tal homem ou a tal grupo, pois seriam os
mais adequados governantes.
Porém como isso não é possível e, por mais que o indivíduo se desenvolva e esteja acima
da média, este ainda vive em meio à sociedade, e os demais cobrarão dele o cumprimento dessas
normas, reforça-se a questão das virtudes do bom cidadão e do homem de bem. Necessário se faz
calcular a conduta de modo a se cumprir o que lhe é socialmente exigido, por mais que se esteja
além dessa relação, sem perder nesse processo o foco no próprio desenvolvimento.

Considerações finais
Conforme foi visto neste capítulo, Aristóteles trabalha a questão da justiça dentro da ética e da
política. Tanto a ética quanto a política visam a conduzir o indivíduo à realização de sua finalidade,
a felicidade na vida, a qual é construída pelo desenvolvimento das virtudes, tanto morais quanto
intelectuais, por meio dos hábitos e do estudo. A ética procura disciplinar o indivíduo para que
por si consiga alcançar tal finalidade. A política, diversamente, busca que todos aqueles que vivem
dentro da cidade possam alcançar a felicidade.
Nesse sentido, para Aristóteles, a justiça é a medida, o meio-termo, a relação de proporcionalidade
do indivíduo para consigo próprio e para com os demais. Esse meio-termo poderá ter como relação
uma proporção geométrica, quando tratar-se das distribuições, sendo uma proporção que tem como
base o mérito, chamada, portanto, de justiça distributiva ou justiça geométrica; ou em uma proporção
aritmética nas relações dos indivíduos entre si em que um beneficie-se com o prejuízo do outro na
justiça distributiva ou justiça aritmética, em que se busca a retomada da proporção que foi agredida.
Essa justiça refere-se à situação de desigualdade entre as partes que deve ser reposta, pautando-se,
96 Filosofia do Direito

assim, em uma proporção aritmética. Nesse sentido, agredida a lei, o juiz busca reaver a relação de
desigualdade ocorrida com a retribuição pecuniária ou com a aplicação de uma pena.
Aristóteles coloca a educação do indivíduo como elemento central de sua filosofia política.
A dimensão ética de Aristóteles tem seu foco em identificar elementos que permitiriam o
desenvolvimento de uma vida feliz e realizadora, conforme a essência de cada sujeito. Eudaimonia
(felicidade) é justamente isto, encontrar sua medida natural e aplicá-la a cada momento conforme
a lógica das circunstâncias. Aristóteles não doutrina a vivência a partir de uma matriz religiosa
ou dogmática, mas com base em observações empíricas, em argumentações sobre economia,
amizade, prazeres, que identifiquem nos resultados práticos a funcionalidade ou não dos hábitos
para cada indivíduo.
Depois, este ser humano que aprende a viver com funcionalidade na própria existência pode
se tornar também instrumento de pedagogia e evolução para o outro, para o seu semelhante na
família, na cidade, nas instituições em geral.
Eudaimonia (felicidade) passa pelo intelecto colher o que deve ser feito e depois a ação realizar
aquela intuição historicamente, de tal modo que isto se torne hábito virtuoso, um modo de viver
sempre em expansão. A felicidade não está no reconhecimento externo, mas na fidelidade diária a
esta medida interior, e a fidelidade se verifica pelos frutos, pela coragem da vontade de aplicar aqui
e agora aquilo que o intelecto colheu como necessidade ontológica.

Ampliando seus conhecimentos


• O NOME da Rosa. Direção de Jean-Jacques Annaud. França: Cristaldifilm; France 3
Cinéma; Les Films Ariane; Neue Constantin Film; Zweites Deutsches Fernsehen, 1986.
(130 min), son., color., 35 mm.
A história se passa na Idade Média, mas gira em torno da preservação da obra aristotélica.
O pensamento de Aristóteles se presencia em vários momentos da trama, seja na atitude
lógica e metódica do protagonista, seja na importância que o aristotelismo representava
na Idade Média.

• ALEXANDRE. Direção de Oliver Stone. Estados Unidos: Warner Bros.; Intermedia Films;
Pacifica Film; Egmond Film & Television; France 3 Cinéma; IMF Internationale Medien
und Film GmbH & Co. 3. Produktions KG; Pathé Renn Productions; WR Universal Group,
2004. (175 min), son., color., 35 mm.
Filme sobre Alexandre, o Grande, que foi pupilo de Aristóteles. Traz as conquistas e
os episódios marcantes da história de um dos maiores conquistadores já existentes. A
cena inicial traz Aristóteles instruindo o futuro grande rei. Filme para demonstrar como
lideranças históricas tiveram mestres eruditos como formadores.
Justiça em Aristóteles 97

Atividades
1. Conforme visto neste capítulo, ao tratarmos sobre a ética, especialmente no pensamento
aristotélico, estamos tratando da ciência que busca possibilitar ao homem que viva bem.
Considerando-se que na atualidade fala-se muito em crise ética, crise dos valores, qual é a
importância da concepção de ética apresentada por Aristóteles?

2. A ética aristotélica propõe-se a disciplinar a conduta humana pelo cultivo das virtudes,
que se dividem em virtudes éticas (morais) e virtudes dianoéticas (intelectuais). Acerca das
virtudes éticas, discorra sobre sua importância na atualidade.

3. Qual é a importância da concepção de justiça corretiva voluntária para a atualidade?

4. Consideradas as reflexões feitas por Aristóteles com relação às virtudes do bom cidadão em
contraposição ao homem de bem, discorra sobre a importância dessa relação dúplice no
mundo contemporâneo.

5. A partir do que foi estudado, responda: qual é a relação existente entre as ideias de justiça e ética?

Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da G. Kury. Brasília:
UnB, 1992.

ARISTÓTELES. Política. Edição Bilíngue. Trad. de António C. Amaral; Carlos de C. Gomes. Lisboa: Veja, 1998.

ARISTÓTELES. Metafísica. v. 2. Trad. de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002.

ARISTÓTELES. Arte Retórica. 17. ed. Trad. de Antônio P. de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 17. ed. Trad. de Antônio P. de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

ARISTÓTELES. De Anima. Prólogo, traducción y notas de Alfredo Llanos. Buenos Aires: Leviatan, 2003.

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica. Leitura e interpretação do pensamento aristotélico.


Barueri: Manole, 2003. p. 1019.

BITTAR, Eduardo C. B A Justiça em Aristóteles. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Diário Oficial da União. Poder Executivo, Brasília,
DF. 4 set. 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657.htm. Acesso em: 12
maio 2019.

PHILIPPE, Marie-Dominique. Introdução à Filosofia de Aristóteles. Trad. de Gabriel Hibon. São Paulo: Paulus,
2002.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. Trad. de Henrique C. de L. Vaz e
Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994. 2 v.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 8. ed. v. 1. São Paulo:
Paulus, 2003.
6
Helenismo e Idade Média

Neste capítulo, trataremos sobre dois momentos da história da Filosofia. Primeiro, estudaremos
o pensamento filosófico da época helenística, iniciada com as conquistas de Alexandre Magno. Essa
linha de pensamento se estende até o período da dominação romana, acompanhando-o na época
do apogeu desse império. É a época em que a Grécia vive já sob a dominação de povos estrangeiros,
não possui total soberania intelectual em seu próprio território, de tal modo que os filósofos já não
discursam em praças públicas, mas em lugares privados, exclusivos a seus discípulos.
Em seguida, tendo em vista a cristianização do Império Romano e a fundamentação filosófica
apologética dessa nova manifestação religiosa, apresentaremos os conceitos de Direito e justiça na
Filosofia cristã, que marca o período da Idade Média.
Assim procedendo, daremos encerramento à verificação dos conceitos de justiça no mundo
clássico e introduziremos ainda a ideia de justiça durante todo o medievo, preparando-nos para
iniciar a análise do novo modo de pensamento proveniente da modernidade.

6.1 O pensamento filosófico no período helenístico


Com a tomada da Grécia pelos macedônios e as expedições alexandrinas, há uma grande
mudança no espírito do mundo grego. Politicamente, a maior consequência das conquistas alexandrinas
foi o desmoronamento da importância da polis. O conceito de helênico torna-se helenístico, referindo-
-se à nova cultura oriunda da mistura das concepções gregas com as dos demais povos conquistados.
Além disso, o conceito de cidadão em seu sentido clássico é alterado para a ideia de súdito. A
vida nos Estados se desenvolve independentemente do querer dos seus habitantes. Isso influencia
a Filosofia, que deixa de preocupar-se com a formação total do cidadão para preocupar-se com a
boa vida do indivíduo (REALE, 1983). Os gregos não separavam o homem da cidade e o indivíduo
do cidadão, é com a helenização que se opera a separação destes conceitos. As concepções morais
a partir de então passam a considerar a perspectiva do indivíduo1, afastando-se da preocupação de
teorizar o governo da sociedade (ABBAGNANO, 1999). Como o homem grego vive sob a dominação
de estrangeiros, suas divagações filosóficas se voltam à existência em geral, mais do que a questões
políticas. No entanto, essas correntes filosóficas acabam por influenciar pensadores romanos, e estes,
sim, adaptam os pensamentos helenísticos à dimensão política do mundo romano. É o caso, em
especial, do estoicismo, que exerceu profundo impacto na sistematização do direito romano clássico.

1 Na Grécia Clássica inexistia o conceito de indivíduo, muito menos o de pessoa. O homem grego, ao mesmo tempo
que existia, era cidadão. Não há como separar ambos, conforme evidenciavam o pensamento de Platão e Aristóteles.
Com o afastamento dos homens da vida política durante a helenização, passa a existir o conceito de indivíduo, o
homem descobre a si independente de considerar-se cidadão. Por sua vez, o conceito de pessoa somente passará a
existir durante o Império Romano, quando a separação entre a res publica e a res privata existe de modo tão marcante
que marca a separação entre a pessoa e o cidadão.
100 Filosofia do Direito

As principais correntes do pensamento no período helenístico que trabalharemos aqui são o


epicurismo, o estoicismo, o ceticismo e o ecletismo.

6.2 O epicurismo
O epicurismo, fundado por Epicuro2, é a primeira das grandes escolas filosóficas que se erguem
no período helenístico. Suas principais ideias podem ser resumidas nas seguintes proposições: a)
pela inteligência do homem pode-se conhecer a realidade perfeitamente; b) nas dimensões do real
existe espaço para a felicidade do homem; c) a felicidade é a falta de dor e perturbação; d) para
atingir essa felicidade e essa paz, o homem só precisa de si mesmo; e) não lhe servem absolutamente
a cidade, as instituições, a nobreza, as riquezas, todas as coisas, nem mesmo os deuses. Nesse sentido,
o homem é perfeitamente “autárquico”3 (REALE, 2003).
Assim, há a concentração no homem, proporcionando a este, pela análise do mundo em que
vive, libertar-se das paixões que o condicionam para poder viver.
Epicuro divide a Filosofia em Lógica, Física e Ética. A primeira elaboraria os cânones segundo
os quais reconhecemos a verdade, a segunda se encarregaria de estudar a constituição do real, e a
terceira, a finalidade do homem, que também para esta escola filosófica é a felicidade.
Epicuro afirma que a sensação “colhe o ser” de modo infalível e nunca pode falhar, trata-se
do critério de identificação da realidade. É objetiva e verdadeira, porque é produzida pela própria
estrutura da realidade4 e, incapaz de retirar ou acrescentar em si mesma alguma coisa, sendo, por
esse motivo, um critério objetivo (REALE, 2003). Além das sensações, as antecipações, também
chamadas de prolepses ou pré-noções, representações mentais das coisas, memórias daquilo que já
se mostrou no exterior, também são formas de conhecimento. Por último há a afecção, que considera
os sentimentos de prazer e dor também como critérios, constituindo-se como bases para a distinção
do bem e do mal (CAROTENUTO, 2009).
Em Epicuro vemos determinada Filosofia da natureza, porque o conhecimento do mundo se
inicia pelas sensações do corpo, pelo contato do corpo com os objetos externos. O conhecimento
do real se inicia pela percepção (sensação) corpórea da realidade. A partir da fruição da natureza o
homem alcança o prazer, que seria o máximo bem.
A característica comum entre esses três critérios de conhecimento é a evidência (enargeia),
que é o fim necessário a se ter presente. O erro, se ocorre, não está na sensação, mas na opinião
(doxa) que é formulada a partir dos dados da sensação (CAROTENUTO, 2009).
Para o epicurismo, o homem, para viver bem, deve buscar o prazer. “A felicidade consiste
apenas no prazer estável ou negativo, ‘no não sofrer e no não agitar-se’ e é, portanto, definida como
ataraxia (ausência de perturbação) e aponia (ausência de dor)” (ABBAGNANO, 1999, p. 31).

2 Epicuro nasceu em Samos, em 341 a.C. Fundou sua escola em Atenas, provavelmente entre 307/306 a.C, e esta
recebeu o nome de Jardim (Képos) por dar suas aulas não como uma palestra, símbolo da Grécia Clássica, mas em um
prédio com um jardim nos subúrbios de Atenas. Epicuro morreu em Atenas, em 271 ou 270 a.C.
3 Autárquico: da fusão entre autos e cratos, ou seja, relacionado à capacidade do homem guiar-se por si próprio.
4 Para os epicuristas, o mundo e também o homem eram reduzidos a um mero agrupamento de átomos.
Helenismo e Idade Média 101

Viver em ataraxia seria desvincular-se do ciclo de dores que arrebatam a alma por meio das
paixões e dos afetos. O verdadeiro prazer seria o domínio dos prazeres parciais. Prazeres parciais
seriam a satisfação da alimentação, do conforto, do sexo, da amizade etc. São todos prazeres
importantes, mas parciais, porque nenhum deles pode conferir a satisfação integral, máxima da
existência. Além disso, são parciais porque, embora prazeres, podem se tornar dependências se o
sujeito não dominá-los, e deste modo de prazer podem ser convertidos em dor.
O prazer é máximo bem, mas deve ser vivido com inteligência, com sabedoria, sem dependência.
Ataraxia é o autodomínio mental e corporal sobre os prazeres. A filosofia de Epicuro está em constante
diálogo com a natureza, pois dela provém o prazer para o homem, mas depois este deve aprender a
dominar os prazeres e vivê-los com inteligência ataráxica.

6.3 O estoicismo
Outra importante escola filosófica nascida no século IV a.C é o estoicismo, fundada por Zenão5.
Divide-se este período em três diversas fases: a primeira é oriunda da tríade ateniense Zenão, Cleanto
de Assos e Crísipo de Solis. A segunda refere-se ao período entre os séculos II e I a.C, em que ocorreram
infiltrações ecléticas na doutrina. A terceira é o período da Estoá romana, ou Nova Estoá.
Os estoicistas também aceitavam a tripartição acadêmica da Filosofia, nos mesmos moldes
dos epicuristas. Sua teoria do conhecimento também é similar à epicurista, porém a sensação por
si só não é o conhecimento. Para tanto, faz-se necessário um “assentir”, um consentimento, uma
aprovação do logos que está em nossa alma (CAROTENUTO, 2009). “O assentimento constitui o
juízo, o qual se define precisamente a sensação” (ABBAGNANO, 1999, p. 28).
Tal corrente partilha o conceito de que a liberdade do indivíduo consiste em poder ser “causa de
si”, dos próprios atos e movimentos, ser autodeterminado. Nesse sentido, a ética para eles é a doutrina
do uso da razão com o fim de estabelecer a correlação entre a natureza e o homem, que busca viver
bem por meio das virtudes, as quais não são o meio-termo, como defendido por Aristóteles. Para
eles, é a partir dos deveres que o indivíduo age bem. O dever em si não é o bem, porém, quando há
a escolha deliberada e repetida pela prática do dever, há a realização do ato virtuoso. “O sábio sabe
agir bem, é virtuoso; o estulto, faz tudo mal, de maneira viciosa” (ABBAGNANO, 1999, p. 22). A
virtude é o único bem; os males e os seus contrários, que não são virtudes, devem ser indiferenciados
(adiaphora). Bem é aquilo que conserva e incrementa o ser, o logos; o mal, contrariamente, é o que
o danifica e o diminui.
As paixões para os estoicos são erros da razão, ou consequência deles, de modo que devem ser
evitadas. Essa é a apatia estoica, o tolhimento, a ausência de toda paixão. A felicidade, portanto, é a
apatia e a impassibilidade. Apatia aqui não entendida em um sentido moderno de melancolia, mas de
capacidade de controlar todas as paixões, continuar sendo causa de si mesmo momento a momento.

5 Zenão, por ser oriundo da Ilha de Chipre, não possuía direito a adquirir um prédio em Atenas, de modo que ele
ministrava suas aulas num pórtico (em grego stoá), razão pela qual deu-se o nome de Estoá ou Pórtico à sua escola.
102 Filosofia do Direito

Os estoicos consideravam a existência de uma lei que se inspira na razão divina, que é a lei
natural da comunidade humana, lei essa superior àquelas reconhecidas pelos diferentes povos da
Terra e considerada perfeita.
Essa ideia de lei superior, provinda da própria estrutura da realidade, que alguns estoicos
romanos considerariam como o logos, exerceu influência importante no Direito romano clássico,
porque foi base para raciocínios de Direito natural. Muitas das formulações clássicas do Direito
romano, como não lesar ninguém, por exemplo, são preceitos advindos dos raciocínios filosóficos
estoicos. Se há um logos que é anterior a cada indivíduo e cada povo, uma racionalidade que permeia
a própria realidade, então este logos indicaria que alguns comportamentos humanos devem ser
regulamentados por serem decorrentes da própria natureza das coisas.
O estoicismo apresenta complexa cosmologia na qual Deus, universo e razão (logos) se tornam
termos bastante próximos. O universo inteiro é presença divina, regido pelo logos, que governa o
destino de todas as coisas. O logos, que é invisível, governa as coisas visíveis (humanos, animais,
planetas, toda a matéria). O homem está dentro dessa ordem, esta regida pelo logos, e daí se extrai
que viver de acordo com a razão seria o máximo esplendor de viver, uma existência em consonância
com a própria estrutura da realidade. Pela racionalidade, o homem pode transcender a matéria e se
aproximar do logos divino que governa toda a realidade.
O logos, portanto, governa o mundo físico, mas também está na base da espécie humana,
de tal modo que existiriam comportamentos mais adequados e outros não ao logos divino. Aqui,
há base para a formulação de um Direito natural baseado em uma natureza das coisas, a partir da
noção de logos.

6.4 O ceticismo e o ecletismo


O ceticismo é a corrente filosófica divulgada por Pirro de Élida. A palavra ceticismo vem
de skepsis, que quer dizer observação, reflexão, indagação. O objetivo do ceticismo é alcançar a
felicidade como ataraxia. Para essa corrente, o alcance desse estado se opera pela indagação, que
põe em evidência a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considera igualmente
falazes e se abstém de aceitar alguma (CAROTENUTO, 2009).
Para os céticos a felicidade é encontrada através da renúncia consciente a
pronunciar-se, renúncia devida à impossibilidade de se afirmar algo de positivo
sobre a realidade, seguido da ataraxia, da ausência de turbamento, a tranquilidade
interior. O homem deve permanecer adóxastos, sem opinião, ou seja, deve abster-
-se de julgar. Esta abstenção de juízo será posteriormente designada com o termo
epoché, de derivação estóica, entendendo-se por este a necessidade de não dar
assentimento, ou seja, de suspender o juízo. (CAROTENUTO, 2006, p. 31)

Outro movimento nascido nessa época, mais especificamente no século II a.C, é o denominado
ecletismo6, que visava a reunir e difundir o melhor de cada uma das escolas. Sua principal marca é
a introdução da concepção de probabilidade. Conforme a assertiva de Fílon de Larissa, há que se
distinguir o verdadeiro do falso; todavia, sem um critério que leve à verdade, à certeza, somente

6 Termo oriundo do grego ek-léghein, escolher e reunir, tomando de várias partes.


Helenismo e Idade Média 103

com aparências que conduzem à probabilidade, não se chega à percepção certa da verdade objetiva,
mas tão somente à evidência do provável e do verossímil que se não são o próprio verdadeiro, são
o que dele mais se aproxima.
Tal consideração, posteriormente reafirmada por Cícero, comprova o estado
em que se encontrava a filosofia no período helenístico. Apesar da divulgação
de diversas escolas filosóficas que buscavam guiar o indivíduo a viver bem
em meio à realidade material, estas, contudo, não consideravam a existência
de uma ordem cósmica maior. Há, neste sentido, a perda do conceito de ser,
estudado pela Metafísica, de onde parte o problema de se encontrar um critério
que afirme toda a existência humana, bem como a organização da sociedade.
(REALE, 1998, p. 276)7

A seguir, analisaremos a continuidade dessas formas de pensamento na Filosofia romana.

6.5 A Filosofia romana e o declínio da Filosofia antiga


Roma, ao conquistar a Grécia, acabou por assimilar sua cultura. Ao fazê-lo, naturalmente,
não deixaria de também adotar a tradição de conhecimento da realidade herdada do mundo grego:
a Filosofia. Nesse sentido, tem-se uma profunda influência, especialmente da Filosofia estoica no
mundo romano, a qual influenciou toda a teoria geral do Direito romano e de suas fontes.
Cícero, importante orador, político e intelectual romano, é exemplo de ponte entre a Filosofia
grega e a cultura romana, porque, a partir do conhecimento do pensamento de Platão e outros filósofos
gregos, produziu enorme influência no modo romano de lidar com a moral, com o direito, com a vida
em geral. Assim, sua importância não é tanto teorética, mas, sim, por essa passagem que o filósofo e
jurista realiza. Cícero opera a fusão eclética das várias correntes do mundo grego que pôde conhecer,
repropondo-as em termos latinos (REALE, 2003).
Além desse papel de divulgação das concepções teóricas helênicas, Cícero também opera
uma profunda fundamentação da concepção de Direito, com base no pensamento grego. Ele e os
demais pensadores romanos, apesar da influência estoica, muito ligados ao movimento ecletista nas
questões de Direito, passaram a utilizar muito mais as obras deixadas por Aristóteles, já que este foi
o único que declaradamente analisou o Direito e suas fontes (VILLEY, 2006).
A fundamentação da ideia de justiça para os romanos é marcantemente aristotélica: jus suum
cuique tribuere, o Direito como dar a cada um a parte que lhe é devida. Villey (2006) declara que o
sucesso do direito romano, enquanto organização lógica, é devido à fundamentação em Aristóteles.
A influência de toda as correntes analisadas entrou em declínio após a morte de Marco
Aurélio, imperador romano e último grande filósofo estoico. Nesse clima de crise, sem uma
concepção filosófica que orientasse o indivíduo criteriosamente, há, com o passar do tempo, a
adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano. A partir desse momento, ao
se tornar institucional a concepção religiosa, surgem movimentos filosóficos que buscam dar
suporte a essa nova forma de encarar a realidade.

7 Por mais que os estóicos se aproximassem desta concepção ontológica que fundava a realidade com a concepção
de logos, a razão ordenadora da natureza, não souberam bem conceituá-la, pois sua maior preocupação era a ética, o que
fez com que esta corrente de pensamento chegasse a diversas questões que não conseguia solucionar. Cf. REALE, p. 276.
104 Filosofia do Direito

Desprovidos de um critério, as pessoas passam a depender de uma concepção de fé e de


religiosidade para buscar, orientar sua conduta e conduzir bem sua vida. Seguindo essa linha, a
Filosofia passa a estar atrelada à religião, e estará junto desta durante todo o período que compreende
a chamada Filosofia medieval.

6.6 Santo Agostinho


O mundo romano foi também o cenário em que surgiu Santo Agostinho, talvez o primeiro
grande filósofo cristão, responsável por iniciar o processo de absorção da Filosofia pela Teologia,
que atravessaria toda a Idade Média. É difícil separar o pensamento de Agostinho das contingências
históricas, uma vez que um de seus principais objetivos era justamente defender a fé cristã e a supremacia
de seu Deus diante das invasões bárbaras e do conflito com outras religiões e doutrinas, o que não
significa que Agostinho também não havia estudado tais doutrinas8. Agostinho foi educado nas artes
da gramática e da retórica e iniciado na Filosofia na leitura dos clássicos gregos e romanos. Cícero
influenciou seu pensamento na perspectiva de que existe uma lei universal que governa inclusive a vida
humana, mas nenhum outro pensador o inspirou tanto como Platão. A obra máxima de Agostinho, A
Cidade de Deus, certamente nasce de um enorme trabalho de estudo da República platônica. Agostinho
também pretendia construir uma cidade perfeita, tal como o Estado ideal do filósofo grego, mas, nesse
momento, uma cidade perfeita governada a partir das leis perfeitas de Deus.
Para Agostinho, “a única verdadeira Justiça e o único verdadeiro Direito são divinos” (VILLEY,
2006, p. 80). Pode-se dizer que a grande inovação agostiniana é justamente o ato de reclamar para
o campo teológico a verdade maior de toda discussão ética, política e jurídica. O pensamento
teológico ocupa o centro dos argumentos, diferente do período grego, que era predominantemente
cosmológico, e a preponderância de Deus se articula inclusive nas questões políticas e jurídicas.
Figura 1 – Mudança de concepção de acordo com Santo Agostinho

Ênfase cosmológica → Ênfase teológica

Fonte: Elaborada pelo autor.

Em A Cidade de Deus, a relação entre o humano e o divino se revela já na coexistência de


duas cidades, a “cidade de Deus” e a “cidade dos homens” – esta última é aquela que surge em nossa
vida terrena. Agostinho a analisa tendo em vista a imagem do Império Romano, por contingência
histórica, mas ela se aplica a todos os períodos da existência humana. Na “cidade dos homens”,
os “destinos parecem frágeis, provisórios, seus bens enganosos, sua justiça falsa; sem dúvida ela
não merece muito apego de nosso coração” (VILLEY, 2006, p. 82). Já a “cidade de Deus” deve ser
a verdadeira pátria dos cristãos. A “cidade de Deus” não é uma contingência histórica, mas uma
“realidade mística, é a comunidade dos santos; mas ela se encarna historicamente nos grupos

8 A biografia de Santo Agostinho é importante para entender a sua construção como intelectual e defensor das ideias
cristãs. Agostinho não nasceu cristão, mas converteu-se, após estudar diversas religiões e doutrinas. Além disso, o
fato de ter se convertido não significa que tenha renegado aquelas ideias anteriores, pois, como é sabido, Platão seguiu
exercendo enorme influência em suas obras.
Helenismo e Idade Média 105

humanos cujos chefes são Abel, Noé, Abraão e os reis justos de Israel, e, enfim, na Igreja cristã. Ela
tem justiça, suas leis próprias” (VILLEY, 2006, p. 83).
A relação com Platão torna-se mais evidente nessa questão. O paralelo das duas cidades é muito
semelhante à problemática platônica da República, quando o filósofo grego apresenta o mundo das
ideias como aquele em que a verdade se revela e todo o restante é visto apenas como sombras. A “cidade
dos homens” não passa de sombra e falsidade diante da verdade da “cidade de Deus”
Contudo, Santo Agostinho não declara a invalidade das leis terrenas nem da justiça que
impera na “cidade dos homens”. Conforme Villey:
Enquanto dure a história, enquanto realizemos nossa “peregrinação terrestre”
e enquanto o joio não tiver sido separado da boa semente, é da essência das
duas cidades elas coexistirem, estarem mescladas, imbricadas. E a própria
cidade terrena tem, na história, sua razão de ser; é obra, como todas as coisas,
da providência divina e cumpre certa função em nosso caminho para a salvação.
Por isso o Estado, as leis, o direito de nossas cidades humanas históricas – cujo
valor é questionado e que é preciso confrontar com os da cidade celeste – serão
tratados por Santo Agostinho do ponto de vista de nossa salvação. (VILLEY,
2006, p. 82)

Embora de fato várias vezes Agostinho ataque as leis romanas, bem como toda lei pagã,
apresentando como elas contrariam as leis divinas e ainda assinalando a relevante possibilidade de
uma lei humana ser contraditória em relação às leis de Deus, não se pode dizer que ele permite a
simples transgressão à ordem jurídica histórica vigente. Agostinho teve formação clássica greco-
-romana, e suas leituras de Platão, Aristóteles e Cícero lhe permitiram vislumbrar a importância da
obediência às leis vigentes, pois não é possível tentar construir uma ordem social se antes não se
estabelece a ordem interior no indivíduo.
Para Agostinho, cada atividade tende a uma paz, que não precisa ser obrigatoriamente a paz
perfeita, aquela ligada à justiça divina. O estabelecimento da segurança e da ordem social na cidade
dos homens já é alguma manifestação de paz, o que requer a obediência às leis profanas.
Porém talvez mais razoável ainda seja outro argumento para se justificar a obediência às leis
injustas dos homens. Para Agostinho, tudo que acontece na história do mundo é vontade divina, é obra
de Deus, e nisso incluem-se os reinados tirânicos e os períodos de guerras e fome. Em cada evento
histórico há uma ação divina, ainda que seus desígnios sejam misteriosos, de forma que devemos
obedecer às leis instituídas pelas contingências históricas, por mais injustas que elas pareçam, já que
ali também presencia-se a vontade de Deus. Por isso, os cristãos obedecem a César, porque “obedecer
às leis de César, o cristão sabe que também é curvar-se ante a lei eterna” (VILLEY, 2006, p. 92).
Não obstante, Agostinho prescreve aos cristãos a obediência às leis profanas apenas como
obediência a essa máxima maior advinda de Deus, e não a obediência às leis em si. Ou seja, Agostinho
anuncia a fraqueza e a injustiça que nelas imperam, de forma que os cristãos devem apenas usá-
-las, sem nelas colocarem qualquer fruição, qualquer valor. O cristão não obedece às leis humanas
por valor, mas por dever. A obediência às leis positivas é apenas parte de um processo que busca,
no fim, a própria extinção das leis positivas para que se vislumbre apenas toda a perfeição das leis
divinas. A essas leis divinas Agostinho encontra suas fontes na justiça cristã, na Bíblia, e aqui ele cria
106 Filosofia do Direito

sua inovação na história da Filosofia, pois, conforme afirma Villey, não aparecem nesse momento
vestígios de influências platônicas e aristotélicas.
As leis divinas aparecem em três formas. A primeira e mais importante é a lei natural, que
nasce do fato de que Deus fez todos os homens à sua imagem e semelhança, de forma que desde o
Gênese o homem possui essa condição intrínseca de conhecer o justo. Essa lei natural é representada
pela ordem natural imposta por Deus, e desde o pecado original o homem passou a contrariá-la.
A segunda forma da lei é a lei de Moisés, a justiça da Torá, que, por ser uma lei concebida
por Deus e entregue aos humanos, tem revelada sua condição justa por toda a eternidade. Por
fim, a terceira forma da lei é a lei de Cristo, que posteriormente tornou-se a lei dos cristãos e que
está anunciada nos Evangelhos. Nesse sentido, é por meio do Evangelho que o cristão encontra o
autêntico Direito, ou seja, o direito agostiniano revela-se, inicialmente, pela fé, que na sua visão é
o princípio do conhecimento. Agostinho não reduz a importância da razão para entendimento da
verdade, mas afirma ser a fé preponderante. Esse raciocínio se alastraria por toda a Idade Média,
modificando a forma de se pensar o verdadeiro e o justo. A justiça e a verdade já não estão no
campo da racionalidade humana, como acontecia entre os gregos, mas na obediência a Deus e na
fé. Somente Deus possui a verdade e a Justiça, e o homem somente participa quando Deus assim o
concede, conferindo a este, por gratuidade, momentos de “iluminação divina”.

6.7 Tomás de Aquino


Tomás de Aquino9 é considerado o maior filósofo da escolástica10, e seu pensamento possui
uma marcante influência do pensamento de Aristóteles. Utilizando-se das concepções do estagirita,
ou como ele próprio chamava, do Filósofo, São Tomás fundamenta a fé cristã em profundas bases
racionais. Para o pensador, a teologia não substitui a Filosofia, pois a finalidade da Teologia é dar
acesso às verdades necessárias à salvação, enquanto a Filosofia investiga as coisas como objetos
independentes de pesquisa, e nisso diferem os métodos de análise de ambas formas de conhecimento
(BOEHNER, 1970). Nem o saber teológico suplanta o saber filosófico, nem a fé substitui a razão,
estes são na realidade dois modos de se alcançar uma realidade que é una, ambos procedem de uma
mesma fonte de verdade (COPLESTON, 1994).
Os homens são dotados de razão, essa é uma de suas características. Assim, deixar de utilizar
essa força, mesmo que em nome de uma luz superior, seria deixar de lado uma exigência primordial
e natural. Ademais, Tomás tinha a convicção de que, apesar da dependência de Deus no ser e no agir,
o homem e o mundo gozam de relativa autonomia, sobre a qual deve-se refletir com os instrumentos
da razão pura, para que, a partir dela, possa agir bem e, por conseguinte, corresponder aos anseios do

9 Tomás de Aquino nasceu no castelo de Roccasecca, no ano de 1224, próximo a Nápoles. Começou sua formação
aos cinco anos, na abadia beneditina de Monte Cassino. Lecionou em diversas universidades europeias, período no
qual, enquanto peregrinava pelas universidades, escrevia suas principais obras. Faleceu em 7 de março de 1274. Cf.
COPLESTON, 1994.
10 Expressão designada para caracterizar a Filosofia cristã da Idade Média. O termo indicava nos primeiros séculos
da Idade Média aquele que ensinava as artes liberais, isto é, as que constituíam o trívio (gramática, lógica ou dialética,
e retórica) e o quadrívio (geometria, aritmética, astronomia e música). Mais tarde passou a chamar-se também ao
professor ou teólogo, dando, por conseguinte, nome ao movimento que caracteriza todo o pensamento do medievo.
Cf. ABBAGNANO, 1999.
Helenismo e Idade Média 107

Divino que ordena o mundo (BOEHNER, 2000). Tomás de Aquino, seguindo a tradição aristotélica,
apresenta o mundo como metafisicamente ordenado, mas aqui a partir da ideia de que o próprio
ato de ser é originalmente de Deus, que depois ocorre de modo derivado também por participação
pelas criaturas. (AQUINO, 1996).
Embasado na ordem metafísica do mundo, Tomás propõe cinco vias ou caminhos pelos quais se
comprova a existência de Deus, nos quais tudo se unifica e adquire luz e coerência. Deus é o primeiro
na ordem ontológica do mundo, porém não na ordem psicológica, em que o divino deve ser alcançado
por caminhos a posteriori, partindo dos efeitos e do mundo (COPLESTON, 1994). Esses argumentos
são apresentados tanto em sua obra Summa contra Gentiles quanto na Summa Theologica.
As cinco vias da prova são as seguintes:
a. O argumento do primeiro motor – trata-se do princípio da efetividade, ou seja, da relação
entre causa e efeito, das mutações neste mundo. Uma coisa não pode ser levada em ato
se não for efetuada por um ser que já é em ato11, portanto é impossível que, sob o mesmo
aspecto e ao mesmo tempo, um ente seja origem e sujeito de mutação, tudo que muda deve
ser movido por outros. Esse caminho da mudança chega ao primeiro motor. Esse imutável
é o que todos chamam Deus (AQUINO, 1997).
b. O caminho da primeira causa eficiente – considerando que o mundo é ligado à relação
entre causas eficientes, não se pode chegar até o infinito. Por isso, se não houver uma causa
primeira entre as causas intermediárias, estas não existirão, bem como não haverá causa
última, mas, se fosse possível ir ao infinito, não haveria causa primeira. Portanto é necessário
admitir uma causa eficiente, à qual todos dão o nome de Deus (BOEHNER, 1970).
c. O argumento do existente necessário – admite-se a existência de um ente que tenha em
si mesmo a sua própria necessidade, não a recebendo de qualquer outro, mas que causa
em outras coisas a sua necessidade. Este é Deus (BOEHNER, 2000).
d. O caminho dos graus do Ser – o quarto elemento refere-se à gradação que existe entre as
coisas, considerando entes mais e outros menos bons, verdadeiros, nobres e semelhantes.
Existe algo que é nobre, bom em grau máximo, consequentemente, algo que, em grau
máximo, é ser, já que o que é máximo na verdade é máximo também no ser. Aquilo que
é para todos os entes a causa do seu ser, de sua bondade e de outra perfeição, é Deus
(REALE, 2003).
e. O caminho do finalismo – dessa causa deriva o governo do mundo. Todas as coisas,
tal como dissera Aristóteles, visam a uma finalidade. Considerando a caracterização da
existência e sua teleologia, considera-se um ordenador, dotado de conhecimento, o qual
encontra-se em condições de dar ser aos entes, ele é quem opera a finalidade das coisas
existentes (REALE, 2003).

Postas essas considerações acerca da ordenação do mundo metafisicamente é que decorrem


as disposições sobre a conduta humana para o filósofo. Destacamos que Tomás de Aquino, em

11 Pela expressão “em ato” nos referimos àquilo que está acontecendo agora. Para algo mudar “em ato”, isto é, agora,
este algo precisa ser modificado por outro ser. A pedra se desloca em ato porque o vento empurrou, o projeto é construído
porque o ser humano o fez etc.
108 Filosofia do Direito

momento algum, trata do gênero humano em sentido lato, sem considerá-lo especificamente, mas
mantendo sua relação com o plano divino. Nesse sentido, partindo dessa ordenação do mundo é
que o pensador refletirá sobre as questões a respeito da conduta humana.
Tomás de Aquino retoma as concepções de justiça particular e geral, distributiva e corretiva
já apresentadas por Aristóteles, estudadas no capítulo anterior. Além disso, acrescendo a visão cristã
medieval de mundo, concebe na ordem do mundo a existência de quatro leis hierarquicamente
estruturadas.
Definindo a justiça, segundo a tradição peripatética, como uma virtude que se adquire pelo
hábito, para Tomás de Aquino este só pode ser especificado pelo seu objeto formal, que é o Direito.
O verdadeiro objeto da justiça, portanto, só pode ser o Direito, sendo a própria coisa justa, ou seja,
o estabelecimento de uma igualdade entre as partes (BARROS, 2007).
O tomismo considera a existência de quatro leis que regem o universo. Enquanto as virtudes
incumbem a regulação da vida interna, as leis visam a nortear a existência externa. Nesse sentido,
pode-se considerar a atuação das leis eterna (lex aeterna), natural (lex naturalis), humana (lex
humana), e, acima dessas três, a lei divina (lex divina) (REALE, 2003).
A lei eterna é própria de Deus, de sua racionalidade, apenas poucos homens, os bem-aventurados,
poderiam conhecê-la. Esta é o critério de ordem para a lei natural e humana: ela rege o universo por
intermédio da sabedoria divina. A lei natural é ponto de referência para a vida dos homens e dos animais,
sendo que os humanos devem orientar-se por ela nas suas relações familiares e sociais, inclusive em
dispor de propriedade. As construções e institucionalizações das leis feitas pelos homens constituem
as leis humanas, que são disposições particulares, as quais são descobertas pela própria razão humana.
Por fim, a lei divina é a própria lei revelada por Deus, dirige todas as coisas para o seu fim. É o plano da
Providência conhecido unicamente por Deus e pelos bem-aventurados (VILLEY, 2005).
São Tomás não concebia a necessidade das leis positivas humanas por causa do pecado,
como outros escolásticos pensavam, mas como remédio para os vícios do homem em estado de
corrupção. Ela é necessária pela própria natureza do homem, sociável e naturalmente destinado à
ordem política. A origem dessa lei procederá da autoridade presente, por natureza, em todo grupo
político humano. Toda lei humana deriva da lei natural, seja por via de conclusão (aplicação a
circunstâncias históricas de um processo tirado da natureza) ou de determinação (adição aos dados
vagos da ciência do direito natural, para servir aos fins da natureza). Assim, o Direito é ao mesmo
tempo fruto da razão e da vontade – da razão por captar algo que naturalmente já é, e voluntária
por ser produto de um Poder Legislativo (VILLEY, 2006).
Sobre a autoridade da lei humana, o pensador de Aquino segue a visão aristotélica da raiz da
lei humana ligada à lei natural, apesar de possuir autoridade condicional a uma específica situação
de vivência de um povo em dado momento histórico. Cessada sua necessidade, há de se revogá-la
(BARROS, 2007).
Feitas essas considerações acerca do pensamento tomista, há que se considerar que sua
principal contribuição para a Filosofia do Direito medieval é a cooperação para o renascimento
Helenismo e Idade Média 109

das instituições antigas. Em Direito Público, a Filosofia de São Tomás preparou o terreno para a
reconquista da autonomia do Estado perante a Igreja, restaurando uma teoria profana da soberania.
O poder dos reis não proviria de uma sagração ou da autorização da Igreja, mas sim do direito
natural. Em direito privado, segue as concepções aristotélicas, assim como o legado da tradição
romana, a favor do retorno ao dominium, à propriedade privada (VILLEY, 2005).
Após o que foi tratado neste tópico, constata-se que a doutrina, ao passo que ressuscitou o
método e as fontes da Filosofia e do Direito antigo, incorporou-as às concepções da Igreja cristã.
Mais do que fundamentar a fé nas concepções mais profundas da racionalidade humana, Tomás é
agente operador de uma essencial passagem racional na Filosofia e no Direito, propondo-se, pela
base religiosa, a superar os modelos clássicos dos quais partiam como modelo.

6.8 Duns Scott


Duns Scott, que em seu tempo era chamado de Doctor Subtilis pela profundidade de sua
doutrina, resultado de longos estudos e trabalhos nos dois principais centros de sua época, Oxford
e Paris, exerceu grande influência na construção do pensamento moderno, devido à sua defesa de
distinção e de separação entre Filosofia e Teologia. Duns Scott era contrário à doutrina tomista,
alegando que a Filosofia possui metodologia própria, não assimilável pela Teologia; era contrário
também a Santo Agostinho, que havia proposto a absorção da Filosofia pela Teologia.
A Filosofia se ocupa do ente enquanto tal e de tudo o que é redutível a ele
ou dele dedutível. Já a Teologia, ao contrário, trata dos articula fidei ou
objetos de fé. A Filosofia segue o procedimento demonstrativo, a Teologia
o procedimento persuasivo. A Filosofia se detém na “lógica natural”,
a Teologia move-se na “lógica do sobrenatural”. A Filosofia se ocupa do
geral ou universal, porque é obrigada a seguir “pro statu isto”, o itinerário
cognoscitivo da abstração, enquanto a Teologia aprofunda e sistematiza
tudo o que Deus se dignou nos revelar sobre a sua natureza pessoal e o nosso
destino. A Filosofia é essencialmente especulativa, porque visa a conhecer
por conhecer, ao passo que a Teologia é tendencialmente prática, porque
nos põe a par de certas verdades para nos induzir a agir mais corretamente.
(REALE, 2003, p. 598-599)

Para Duns Scott, a literatura pagã, e nisso inclui-se a Filosofia grega, deve servir somente
de instrumento auxiliar à busca pela verdade, que se encontraria na Sagrada Escritura, pois a “fé
governa a razão, que não passa de uma servidora” (VILLEY, 2006, p. 202).
O raciocínio de Duns Scott chegou ao ponto de criticar toda a tradição escolástica, ao afirmar
que inferir a existência de uma ordem natural e que ela seria obra de Deus seria um crime contra a
própria figura de Deus, subordinando-o a uma razão humana e intelectualista. Deus, como princípio
criador de todas as coisas, não necessitaria de uma ordem, porque isso seria já uma limitação de
seu poder. A razão não pode limitar Deus, porque inclusive a razão é obra de Deus. Interessante
notar que essa inversão pode ser aplicada inclusive à moral cristã, pois o preceito “não matarás”,
por exemplo, não seria uma regra universal, já que Deus poderia ter escolhido outros preceitos.
110 Filosofia do Direito

Outra contribuição fundamental de Duns Scott à Filosofia é a sua crítica à generalização


do ser defendida por Aristóteles e São Tomás de Aquino. O Deus da Sagrada Escritura não é um
deus abstrato e impessoal, como afirmam os filósofos, mas um Deus que dialoga com os fiéis, que
envia seu filho, Cristo, para salvar a humanidade, que compartilha momentos de angústia com os
cristãos. Deus ama a cada indivíduo em sua singularidade, e não como generalidade, universalidade.
A mesma linha de raciocínio o leva a defender a supremacia da vontade por sobre a inteligência,
ou seja, os atos não necessitam obedecer a uma razão preestabelecida. Isso significa que o homem
deve amar a Deus por opção, por vontade, e não por exercício racional. Perceba como Duns Scott
sempre argumenta tendo em vista uma relação próxima e personalizada entre Deus e o homem, na
perspectiva de que cada homem é um ser único e irrepetível, diferentemente da doutrina aristotélica-
-tomista, que pendia mais para o lado da generalização, da universalização do ser.
A reviravolta provocada por Duns Scott certamente repercutiu no âmbito da Filosofia
do Direito. Se toda ordem existente acontece porque Deus quis, e não por uma ordem natural,
significa que os preceitos sagrados, bem como as leis em geral, não devem ser obedecidos por
seus aspectos naturais, mas por terem sido criados ou permitidos por Deus, o que acarretou
influências na formação do positivismo jurídico. Isso não significa que devemos inferir que Duns
Scott rejeita a existência do Direito natural, mas que simplesmente não existem leis naturais que
sejam válidas por si mesmas, já que, por outro lado, essa “ordem do mundo” é criação de Deus,
de forma que poderíamos entendê-la como uma ordem que serviria posteriormente de Direito
natural. Ou seja, serviria como Direito natural na medida em que representa vontade divina, e
não por ser ordem em si mesma.
O pensamento franciscano de Duns Scott exerceu influência maior em outro franciscano
famoso, Guilherme de Ockham, responsável pela formação do conceito de Direito subjetivo. Scott
e Ockham foram responsáveis pela transição do pensamento medieval ao pensamento moderno,
por meio da separação do pensamento filosófico do teológico e, por consequência, liberando o
pensamento científico.

6.9 Guilherme de Ockham


Guilherme de Ockham foi outro franciscano que prosseguiu no caminho aberto por Duns
Scott contra a Filosofia tomista. A diferença é que Ockham foi um profundo conhecedor de
Aristóteles, em especial de sua dialética.
Ockham também critica os filósofos que colocam no universal, nas generalidades, a essência
da coisa, como se além de cada indivíduo existisse o “homem”, o ser do homem. O argumento de
Ockham não se posiciona somente no sentido de que deve haver uma singularidade divina em cada
indivíduo, a ecceidade de Duns Scott, mas do ponto de vista eminentemente lógico, pois, para ele, as
palavras, tais como as classificações, não passam de signos que tentam representar a coisa, de forma
que o ser do homem é o próprio homem, e não o entendimento genérico da ideia de homem, pois
o “animal ou o homem – e tampouco a animalidade, a humanidade – não são coisas, não são seres”
Helenismo e Idade Média 111

(VILLEY, 2006, p. 259). Ockham inaugura o nominalismo na Filosofia, defendendo que os nomes,
os signos, não podem identificar a essência do ser.12
O nominalismo desencadearia o corte entre Filosofia e fé; na primeira encontra-se o domínio
da razão e da criação, enquanto somente na fé encontra-se o acesso ao conhecimento de Deus. As
questões dos signos, que substituíram os universais, são do âmbito da Filosofia, e não da fé. Isso
influenciou inclusive o desenvolvimento das ciências modernas, uma vez que já nem à Filosofia nem
à ciência cabe analisar os “universais”, ou as “naturezas”, mas as coisas dispostas individualmente,
como Deus as criou13.
O nominalismo influenciou ainda o âmbito jurídico. Com a negação dos “universais” e
das “naturezas”, Ockham argumenta também a inexistência de um direito natural. A escolástica
construiu suas ideias de Direito ancoradas na observação da natureza, pois esta representaria a
ordem divina e a vontade de Deus. Ockham, por outro lado, centralizou sua discussão na figura do
indivíduo, não na natureza.
O nominalismo [...] habitua a pensar todas as coisas a partir do indivíduo: o
indivíduo (não mais a relação entre vários indivíduos) torna-se o centro de
interesse da ciência do Direito; o esforço da ciência jurídica tenderá doravante
a descrever as qualidades jurídicas do indivíduo; a extensão de suas faculdades,
de seus direitos individuais. E, quanto às normas jurídicas, não podendo
mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava ler na Natureza, será
preciso buscar origem exclusivamente nas vontades positivas dos indivíduos:
o positivismo jurídico é filho do nominalismo. Todas as características
essenciais do pensamento jurídico moderno já estão contidas em potência no
nominalismo. (VILLEY, 2006, p. 233)

Em Ockham encontram-se raízes do positivismo jurídico, que somente viria a se desenvolver


séculos depois. Esse filósofo é contrário a interpretações místicas e extensivas da Sagrada Escritura,
alegando que a leitura deve se limitar ao texto. O mesmo sentido de hermenêutica deveria ser aplicado
aos textos legais. Para Ockham, portanto, tanto o direito humano como o direito divino eram direitos
positivos, pois inclusive os preceitos de Deus, encontrados na Sagrada Escritura, somente poderiam
ser interpretados à luz do próprio texto. Tais preceitos morais, ainda, não deveriam ser obedecidos
por serem regras atemporais e eternas emitidas por Deus, mas leis temporais. Não deve o homem
obedecer os Dez Mandamentos devido a um suposto conteúdo eterno, como se aqueles preceitos
representassem uma espécie de Direito natural advinda de uma ordem natural, mas simplesmente
por serem ordens de Deus. Ou seja, obedece-se pelo dever de obedecer, e não pelo conteúdo.

12 “A metafísica de Ockham transporta para o mundo da linguagem e do pensamento, para o universo conceitual, o que
pertencia, para os tomistas, ao mundo do ‘ser’: os gêneros, as ‘formas comuns’ e as relações. Estes agora são apenas
conceitos, instrumentos, etapas no caminho do conhecimento de uma realidade exclusivamente singular, apenas um
começo de conhecimento nebuloso dos indivíduos. Universais e relações são apenas instrumentos de pensamento. No
real e na ‘natureza’ real não existe nada acima dos indivíduos: não existem universais, estruturas, direito natural”.
13 Tal doutrina se tornaria célebre por meio dos estudiosos como a “navalha de Ockham”, na qual o filósofo defende
o corte de qualquer imagem mediadora entre o objeto e o sujeito, por serem meros artifícios linguísticos, signos, e não
coisas em si. “De forma análoga, Ockham elimina do processo cognoscitivo humano todas e quaisquer ‘espécies’ ou
imagens mediadoras entre o objeto conhecido e o sujeito conhecente. Além de não termos experiência alguma de tais
imagens, estas se revelam como desnecessárias para explicar satisfatoriamente o ato da percepção sensível do objeto,
bem como o do seu conhecimento intelectual”.
112 Filosofia do Direito

Se quisesse, Deus poderia inclusive ordenar o ódio entre os homens, pois não haveria limitação ao
seu poder.
“A decisão de seguir a Filosofia franciscana centrada no indivíduo de Duns Scott repercute
ainda em Ockham na sua exposição acerca do jus, que ele toma emprestado do direito romano e da
potestas, o poder, que constituem o cerne de sua definição de direito subjetivo”, conforme elucida
Villey (2006). Ockham explica que toda lei é formulada a partir da vontade de um legislador, ou seja,
toda lei surge de uma vontade individual, o que a determina como essencialmente humana. As leis
humanas não são manifestações de uma ordem natural, de forma que o indivíduo pode livremente
exercer sua condição de liberdade contra as legislações em geral. O mesmo motivo o conduz a aceitar
até críticas a regras impostas por papas.
Toda a ordem social é outorga e distribuição de liberdades, estas essenciais à vida
moral cristã do indivíduo. E não há mais nada além disso. Os direitos subjetivos
dos indivíduos preencheram o vazio resultante da perda do direito natural.
A ordem social aparece agora constituída não por uma rede de proporções
entre os objetos partilhados entre as pessoas, mas por um sistema, por um lado,
de poderes subordinados uns aos outros e, por outro, de leis provenientes dos
poderes. (VILLEY, 2006, p. 287)

Sem Direito natural, as análises jurídicas se resumiriam aos textos legislativos, mas com a
ascensão do Direito subjetivo abre-se nova oportunidade ao indivíduo de contestar injustiças e
autoritarismos. O indivíduo conquista a liberdade de poder questionar as ordens vigentes.
A ideia de um Direito subjetivo em Ockham é importante para se compreender a passagem
à Filosofia moderna. Aqui já não se tem o mundo centrado em Deus, em que até a ordem jurídica
emana da ordem divina, e ao homem cabe apenas obedecê-la, mas uma ordem fundada conforme
a vontade e o poder humano, conforme o direito humano. Em Ockham, o indivíduo – e aqui
também os indivíduos comuns, aqueles pouco letrados de seu tempo recebem essa condição – é
retomado como centro das discussões filosóficas e jurídicas. As ordens estabelecidas podem ser
abusivas, de forma que cada indivíduo tem a possibilidade de contestá-las, exercendo sua liberdade
de utilizar-se do Direito subjetivo. A transição de uma ordem fundada em Deus para uma ordem
fundada no homem finalmente representa a chegada ao período moderno da Filosofia. Os avanços
das descobertas científicas de mentes como Copérnico, Galilei e Kepler e as teorias racionalistas
de Bacon e Descartes são prosseguimentos dessa abertura iniciada por Duns Scott e sedimentada
por Ockham.
Os franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham são ainda mais importantes para os
dias atuais, pois qualquer regime democrático somente pode se desenvolver e se solidificar se cada
indivíduo cultivar essa capacidade de liberdade de saber como e por que criticar a ordem jurídica
vigente. Conceber qualquer sistema como obrigatoriamente correto e infalível é sempre uma
ameaça à liberdade individual, abrindo perigo para a criação de regimes autoritários. A limitação de
reeleições e a construção de um sistema eleitoral que se baseia no sufrágio universal é também uma
limitação ao poder estatal. Toda ordem jurídica está exposta ao erro e à injustiça – assim entendem
Agostinho, Scott, Ockham e vários outros pensadores medievais. Ainda que a vontade divina seja
perfeita, as leis humanas são imperfeitas e factíveis de injustiça, de forma que somente colocando
Helenismo e Idade Média 113

no indivíduo o direito e o dever de contestá-la, por meio do exercício da liberdade, torna-se possível
impedir o autoritarismo político e jurídico. Por fim, talvez ainda mais importante que isso seja o
fato de que mesmo em um período em que o centro de tudo está na Teologia, é no indivíduo que
se encerra, ou seja, a passagem ao período histórico seguinte se dá justamente na descoberta do
valor individual de cada homem na construção de um mundo mais justo e funcional ao humano.

Considerações finais
Tanto o pensamento helenista, com suas variadas correntes, quanto o pensamento medieval
ajudam a demonstrar ao homem que o mundo possui uma lógica, regras anteriores, uma lógica
inteligente que permeia a constituição biológica, as relações interpessoais e comunitárias. O homem
é efeito dessa lógica e se compreendê-la, segui-la, vive melhor, com mais satisfação.
Portanto a dimensão teológica da Filosofia medieval auxilia o homem contemporâneo a se
situar enquanto projeto do Ser, indivíduo causado que possui uma estrada existencial a percorrer e
que, quando a realiza, ajuda também a sociedade.

Ampliando seus conhecimentos


• IRMÃO Sol, irmã Lua. Direção de Franco Zeffirelli. Reino Unido; Itália: Euro International
Film (EIA); Vic Films Productions, 1972. (126 min), son., color., 35 mm.
História de São Francisco de Assis, um dos teólogos mais célebres e influentes na Idade Média.
Grande parte da Filosofia medieval posterior é influenciada pela mensagem franciscana.
Filme para mergulhar mais no ambiente medieval e compreender a importância da fé e
sua relação com a razão nos discursos teológicos e filosóficos.

• GIORDANO Bruno. Direção de Giuliano Montaldo. Itália; França: Compagnia


Cinematografica Champion; Les Films Concordia, 1973. (115 min), son., color., 33 mm.
História de um dos pensadores mais polêmicos da transição da Idade Média para a
Modernidade. Acompanhar o pensamento e a biografia de Giordano Bruno ajuda a
entender a complexidade do mundo medieval, de como várias concepções teológicas e
cosmológicas disputavam espaço. Filme para compreender melhor a relação intrincada
entre Igreja, nobreza e intelectuais na Idade Média.

Atividades
1. Os filósofos helenistas, na busca pela orientação da conduta humana em direção à
felicidade, propuseram variadas formas de como alcançar tal concepção, identificando-a
com o afastamento dos problemas ou das preocupações (epicuristas), com a ausência de
prazer (estoicistas) ou com a renúncia à busca pelo conhecimento e a vivência em ataraxia
114 Filosofia do Direito

(ceticistas). Com base nessas concepções, identifique as relações entre essas concepções
de vida e do Direito.

2. Para Santo Agostinho, nenhuma lei humana é justa e perfeita, pois a verdade e a justiça
pertencem somente a Deus. Ainda assim, há necessidade de obedecer às leis humanas. Reflita
sobre a importância desse pensamento agostiniano para os dias atuais, tendo em vista a ideia
de dupla moral, ou seja, saber utilizar o sistema vigente para construir algo maior.

3. Tomás de Aquino, refletindo sobre as questões do Direito, opera a divisão das leis existentes
no universo entre as eternas, naturais, humanas e divinas. Especialmente as considerações
acerca da relação entre Direito natural e positivo são muito célebres na teoria tomista. Com
base nessas concepções, analise a relação da distinção entre ambas e sua importância para o
pensamento jurídico.

4. Duns Scott e Guilherme de Ockham desenvolvem a importância da subjetividade dentro da


ordem jurídica. O poder de liberdade do indivíduo, de inclusive poder contestar as ordens
vigentes, é essencial para qualquer regime democrático. Apresente reflexões acerca dessa
temática, tendo em vista o mundo contemporâneo.

Referências
ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. 5. ed. Trad. de Armando S. Carvalho. Lisboa: Editorial Presença,
1999. 3 v.

ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Trad. de António B. Coelho, Francisco de Souza e Manuel
Patrício. Lisboa: Presença, 1999. 2 v.

AQUINO, Santo Tomás de. Do reino ou do governo dos príncipes ao Rei de Chipre. Escritos Políticos. Trad.
de Francisco B. de S. Neto. Petrópolis: Vozes, 1997. (Clássicos do Pensamento Político).

AQUINO, Santo Tomás de. Questões sobre a lei na Suma de Teologia. Escritos políticos. Trad. de Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1997. (Clássicos do Pensamento Político).

AQUINO, Santo Tomás de. O ente e a essência. Trad. de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
(Os Pensadores).

AQUINO, Santo Tomás de. Súmula contra os gentios. Trad. de Luiz J. Baraúna. São Paulo: Nova Cultural,
1996. (Os Pensadores).

BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In: PISSARRA, Maria
Constança Peres; FABBRINI, Ricardo Nascimento (coord.). Direito e Filosofia: a noção de Justiça na História
da Filosofia. São Paulo: Atlas, 2007.

CAROTENUTO, Margherita. História sobre as teorias do conhecimento. Recanto Maestro: Ontopsicologica


Editora, 2009.

COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 1: Grecia y Roma. Trad. de Juan M. G. de la Mora. Barcelona:
Ariel, 1994.

COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 2: de San Augustín a Escoto. Trad. de Juan C. G. Borrón.
3. ed. Barcelona: Ariel, 1994.
Helenismo e Idade Média 115

OEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa.
Trad. de Raimundo Vier O. F. M. Rio de Janeiro: Vozes, 1970.

REALE, Giovanni. História da Filosofia antiga III. Os Sistemas da Era Helenística. Trad. de Marcelo Perine.
São Paulo: Loyola, 1998. 3. v.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 8. ed. São Paulo:
Paulus, 2003.

VILLEY, Michel. A Formação do pensamento jurídico moderno. Trad. de Claudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
7
A fundação do pensamento moderno:
do racionalismo ao Iluminismo

Neste capítulo, trataremos sobre a revolução no pensamento ocorrida no período compreendido


entre o final da Idade Média e início da Modernidade. Essa passagem ocorre com o surgimento do
racionalismo filosófico e com a estruturação do pensamento científico moderno (desde Copérnico,
Galileu, Kepler, entre outros) por meio da busca por uma metodologia de pesquisa que visa a não
mais identificar uma causa primeira nos fenômenos, mas a descrever, de forma mais completa
possível, o fenômeno, observando e analisando as suas múltiplas variáveis. Por fim, apresentaremos o
pensamento iluminista, o qual revolucionou a Europa moderna, com marcante influência no mundo
político-jurídico.
Desse modo, apresentaremos neste capítulo algumas das principais figuras que protagonizaram
essa revolução, como Francis Bacon, René Descartes e Baruch de Spinoza. O número de autores
filosóficos e pesquisadores científicos que foram determinantes nesse processo é amplo, mas aqui
daremos enfoque naqueles filósofos que impactaram as épocas posteriores. Na parte final do capítulo,
trataremos de alguns aspectos do pensamento iluminista.

7.1 Francis Bacon


A transição da racionalidade medieval para a racionalidade moderna, já iniciada pelos
franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham, prossegue no pensamento de Francis Bacon, filósofo,
político e jurista do século XVII.
Bacon baseia-se na separação entre ciência e Filosofia para refundar o pensamento científico,
partindo da divisão das ciências, suas classificações, até a possibilidade de elaboração de uma
enciclopédia das ciências, que exigiria a contribuição de inúmeros intelectuais, pois um único
estudioso não poderia reunir todo o conhecimento científico, que deveria ser desenvolvido com
base no recolhimento de materiais e experiências. A filosofia de Bacon, portanto, foi fundamental
para o desenvolvimento da ciência empírica.
A subdivisão do saber inicia-se segundo as faculdades da alma: memória, fantasia e razão,
sendo a História a ciência da memória; a poesia a ciência da fantasia; e a Filosofia a ciência da
razão. Observa-se que essa tendência enciclopédica influenciará o Iluminismo, no movimento
dos enciclopedistas. De qualquer forma, embora conceda valor à História e à poesia, dedica maior
atenção à Filosofia, que, segundo ele, se entendida profundamente, conduz a Deus, por isso, a
Filosofia possui um tríplice objeto: a natureza, Deus e o homem (ROVIGHI, 2000).
É nesse sentido que Bacon fala de teologia natural e teologia revelada, sendo a primeira
obra da Filosofia e a segunda, da religião. O que lhe interessa é a teologia natural. O fundamento
da Filosofia está na “filosofia primeira”, que trata das condições transcendentes de todos os objetos,
118 Filosofia do Direito

como unidade e multiplicidade, igual e diferente etc. Contudo, depois de tentar aplicar essa filosofia
primeira às questões físicas, encontrará muitas dificuldades, motivo que o levará a focar-se nas
questões empíricas. Um exemplo dessas dificuldades é a assertiva, baseada na filosofia primeira, de
que o semelhante atrai o semelhante. Bacon viu que o ferro não atrai o ferro. Dessa forma centrou sua
filosofia da natureza na investigação das causas e a produção dos efeitos, em uma parte especulativa e
uma parte operativa. Dividiu ainda a investigação das causas em física e metafísica. Não obstante, sua
metafísica é bastante distinta da metafísica aristotélica, pois, embora Bacon admita a existência de
uma finalidade no mundo, não é possível aos humanos conhecê-la, de forma que é mais importante
entender o “como” que o “porquê” das coisas. Para ele, seria impossível conhecer a essência das coisas.
Nesse ponto, percebe-se que, mesmo criticando os pensadores predecessores, Bacon não se separa
completamente de uma metafísica, pois sua física medieval ainda procura descobrir a essência das
coisas, o que a torna bastante semelhante ao estudo metafísico (ROVIGHI, 2000).
A crítica baconiana aos antigos, e aqui ele insere tanto os gregos como os medievais, ocorre
na concentração dos estudos em uma natureza metafísica ou em uma natureza divina. Para Bacon,
nenhum homem é capaz de obter todo esse conhecimento, de forma que é mais necessário estudar
a própria natureza desse mundo, ou seja, suas coisas sensíveis.
Bacon pensou um novo método para conduzir o raciocínio, baseado na indução, que deveria
partir das observações segundo a experiência e disso avançar gradualmente e sem interrupção até
os axiomas mais gerais. Nesse sentido, concebeu o método que contribuiu enormemente com as
ciências empíricas, pois defendeu a observação dos fenômenos, suas tabulações, catalogações, análises
e hipóteses. Os comentadores dividem-se em relação à influência de Bacon para o nascimento da
ciência moderna: alguns o consideram o antecipador da ciência experimental, outros não concordam,
afirmando que suas concepções são muito diferentes daquelas dos cientistas posteriores. É inegável,
contudo, que seu pensamento baseado no método indutivo participará da revolução científica, até
porque, como assinala Villey, o Novum Organum pode ser considerado a base para a lógica e a moral
do mundo moderno.
A mesma lógica Bacon aplicou ao campo jurídico ao defender que o Direito deve se basear
nos fatos, não em interpretações, e estas devem se limitar a interpretações restritivas, ou seja, do
próprio texto legal. Não cabe à doutrina criar concepções jurídicas novas. Nesse sentido, Bacon
contribui com o desenvolvimento de uma Filosofia Jurídica positivista (VILLEY, 2005).
Contribuição também importante dada por Bacon à Filosofia Política e Jurídica é que
esta “deveria concentrar-se no que fazem os homens, e não no que deveriam fazer” (WHITE,
1996, p. 351). Para Bacon, o fim do Direito não seria o justo, mas o útil. Em outras palavras,
não se aplica o Direito conforme um conceito de Justiça derivado de alguma corrente filosófica,
mas conforme a própria sociedade, pois este Direito deve trazer benefícios ao aqui e agora. Em
síntese, o diferencial baconiano se dá no ousado enfrentamento aos clássicos. A coragem de
rebater os argumentos metafísicos e confrontar a lógica clássica repercutiu entre os modernos na
reformulação do pensamento científico e filosófico, não mais tão preocupado com causas finais
e transcendentes, mas com a própria natureza sensível.
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo 119

7.2 René Descartes


O estudo do pensamento de René Descartes1 é de extrema importância para a Filosofia do
Direito, posto que, apesar de o autor não ter escrito obras específicas sobre Filosofia Política ou
Jurídica, com ele opera-se a passagem da Filosofia e do Direito à Modernidade, de modo que os
autores posteriores ao pensador não se dissociarão de sua concepção de método como base para a
construção do conhecimento humano. Descartes representa, de fato, a reestruturação do modo de
raciocínio europeu, esforçando-se em construir um novo modelo, sem se contentar com o que já
existia (REALE, 2003). Por esse motivo, o filósofo Bertrand Russel chama Descartes de o “fundador
da filosofia moderna” (REALE, 2003, p. 348).
Para Descartes, as concepções de método, física e metafísica estão estreitamente entrelaçadas
e são solidariamente interfuncionais. Ele parte de uma realidade metafísica, que será apreciada por
meio do método adequado, para então poder alcançar a realidade física.
Quanto às concepções de metafísica, destaca-se que para o filósofo ela era encarada de uma
forma mecanicista. O fundamento do sistema metafísico cartesiano é buscado na identidade entre
matéria e espaço. Portanto a metafísica diz de que é feito e como é feito o mundo. Conforme diz
Descartes (1999) em Regras para a orientação do espírito, a metafísica ocupa-se de “apenas objetos
dos quais nosso espírito parece ser capaz de adquirir cognição certa e indubitável”. A metafísica
prescreve ao cientista o que ele deve buscar, que problemas são ou não relevantes e a que tipo de
leis ele deve chegar.
Por conseguinte, para alcançar tal objetivo, faz-se necessário um método para buscar a verdade.
Descartes (2000) trata acerca da importância do método na célebre obra Discurso do método, que
introduziu três ensaios científicos do pensador: a Dioptrique, o Metéores e a Géométrie. Nas palavras
de Reale e Antiseri: “o Discurso do método tornou-se a ‘magna charta’ da nova filosofia” (REALE,
2003, p. 353), pois essa nova proposta metodológica representa a superação do pensamento grego,
especialmente da lógica e epistemologia aristotélica, substituindo-a pela primazia do método moderno.
Nessa obra, Descartes propõe-se a utilizar-se do seu próprio exemplo para apresentar um
método que discipline a mente para identificar a realidade de maneira correta. Conforme ele próprio
diz: “Assim, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deveria seguir para bem
conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira procurei conduzir a minha” (DESCARTES,
2000, p. 32, tradução livre).
O objetivo é encontrar um método pelo qual o ser humano possa, de fato, agir com a
racionalidade disciplinada na identificação da realidade, um método que, compreendendo as
vantagens da lógica, da geometria e da álgebra, fosse isento dos seus defeitos. Disso Descartes
fixou quatro preceitos essenciais: nunca aceitar algo como verdadeiro sem que o conhecesse como
tal; dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e

1 Nascido em 31 de março de 1598, em La Haye Turena, filho de Joachim Descartes, conselheiro do parlamento
da Bretanha, e de Jeanne Brochard. Em 1605 inicia seus estudos no colégio jesuíta de La Flèche, onde permanece até
1613, dedicando-se ao estudo da Gramática (4 anos), Retórica (2 anos) e Filosofia (3 anos). Estudou na Universitè de
Poitiers, sendo nomeado em novembro de 1616 bacharel e licenciado em Direito. Posteriormente retira-se da França,
residindo na Holanda e também em Frankfurt, na Alemanha. Morre em Estocolmo, na Suécia, em 11 de fevereiro de 1650
(COPLESTON, 1999).
120 Filosofia do Direito

necessário para resolvê-las; conduzir ordenadamente os pensamentos, começando pelos objetos


mais simples e fáceis de conhecer, para chegar ao conhecimento dos mais compostos; fazer para
cada caso enumerações tão completas e revisões tão gerais que se tivesse a certeza de nada ter
omitido (DESCARTES, 2000).
Na quarta parte da obra em questão, Descartes passa à apreciação do método que encontrou,
apresentando as bases filosóficas, marcantemente metafísicas, para a afirmação da sua forma de
conhecer a realidade. Logo no início, apresenta a primeira evidência que fundava a existência
humana e sua capacidade de conhecer: “penso, logo existo” (DESCARTES, 2000, p. 66). Essa assertiva
é considerada o primeiro princípio da filosofia cartesiana: se ao homem é dada a capacidade de
pensar, de conhecer, para que possa fazê-lo ele obrigatoriamente deve antes ser, tendo-se esta como
a primeira base de verdade que possibilite ao homem conhecer a realidade (DESCARTES, 2000).
tábula rasa: fazer de O filósofo francês ambicionava construir uma Filosofia nova, que fizesse “tábula rasa” da
algo uma folha de
papel em branco. antiga e a substituísse; uma Filosofia completa, que resolveria primeiro os problemas da existência de
Deus, da imortalidade da alma e da essência dos seres; em suma, um sistema total que se revestisse
da forma de uma “ciência universal” (VILLEY, 2005, p. 600).
Em relação ao Direito, o pensador acusa a Ciência Jurídica, baseada nas lições dos escolásticos,
a contentar-se somente com resultados prováveis, ou seja, nadar no obscuro, no duvidoso, no
discutível. Partindo-se de premissas incertas para a construção dos seus silogismos, logicamente
as consequências desse raciocínio seriam incertas. Descartes, contudo, ambicionava uma maior
exatidão: construir uma Filosofia precisa, certa como a Matemática (VILLEY, 2005).
No pensamento cartesiano, a ciência progredirá por inferências, providas de uma evidência
interna para a mente humana, por via da dedução. O único meio de se chegar seguramente à
verdade é apegar-se à ordem, que procede sem falhas dos primeiros conhecimentos inatos a suas
consequências lógicas, sem jamais pular um elo do raciocínio, precavendo-se contra a “precipitação”.
Sua crítica à ordem metódica das filosofias antigas ou medievais é pelo fato de estas não realizarem
progressos, mas ficarem girando em torno de si mesmas em controvérsias estéreis (VILLEY, 2005).
Estabelecida a ordem sobre a base sólida de princípios inatos, como o supracitado cogito ergo
sum, por deduções sucessivas, partindo da prova da existência de Deus e da imortalidade da alma
do homem, Descartes vai ao conhecimento da realidade. Constata-se que suas deduções se originam
de princípios considerados evidentes por si próprios; por meio da intuição são postuladas hipóteses
que buscam encontrar de baixo para cima o encadeamento das causas e dos efeitos. Assim, a ciência
aparece como um sistema perfeitamente axiomático, que demonstra as consequências a partir de
princípios (VILLEY, 2005).
Conforme Villey (2005), grande parte do direito moderno adotará essa nova perspectiva,
e essa é a maior influência do pensamento cartesiano sobre a Filosofia Jurídica. Por mais que o
autor não tenha se dedicado a tratar exaustivamente sobre essa parte da Filosofia, seu método
de organização do raciocínio influenciou de modo marcante as concepções jurídicas posteriores,
reforçando-se que Descartes, como pai da ciência moderna, também exerce considerável influência
na formação moderna da Filosofia do Direito.
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo 121

A concepção metafísica de Descartes (1992), exposta especialmente nas Meditações metafísicas,


faz da alma e do corpo, do pensamento e da matéria, duas espécies de seres separados. Esse dualismo
representa o fim da filosofia clássica do Direito natural – derrubada a noção aristotélico-tomista
de natureza, há o fim, por conseguinte, da concepção jusnaturalista ligada a essa racionalidade. A
metafísica cartesiana cinde a noção unitária em dois universos separados: de um lado, o pensamento,
e de outro, a matéria; de um lado, a ideia, e do outro, os fatos. Assim, passam a existir duas saídas:
a primeira é situar o Direito ao lado da alma, no pensamento.2 A outra via seria pensar o Direito
sob a rubrica da matéria3. Assim, pode-se concluir que, além de excluir o antigo Direito natural
clássico, a metafísica cartesiana impõe ao pensamento jurídico moderno suas duas novas direções:
racionalismo e naturalismo.
Ressaltamos, por fim, que os ingleses não acolheram o cartesianismo, preferindo a experiência
às ideias inatas (VILLEY, 2005). Agindo assim, construíram do experimentalismo um Direito
muito mais baseado nos costumes e no conjunto de decisões já existentes para a formulação de
suas decisões, tal como é o atual Direito anglo-saxão nos sistemas britânico e americano, o sistema
chamado de common law4, em contraposição ao sistema do Direito romano-germânico, também
chamado de civil law, que tem por marca a obediência aos enunciados normativos elaborados pelo
Estado, com uma base racionalista marcante como princípio de toda a ordem do Direito.
Com Descartes podemos aprender que a organização da própria mente, dos pensamentos que
circulam na consciência, é questão decisiva para atingir o real momento a momento. A dificuldade
do homem de entender a realidade está no próprio homem, nos vícios mentais que carrega no
procedimento de pensar sobre si, sobre os outros e sobre o mundo em geral. A partir da organização
do próprio mundo interior é possível compreender melhor os objetos de estudo.

7.3 Espinoza
Baruch de Espinoza iniciou seus escritos filosóficos publicando obras com comentários ao
pensamento de Descartes e da escolástica medieval. Na sua obra Cogitata metaphysica expõe tanto
a metafísica geral (o ente e suas propriedades) como a metafísica especial, que estuda Deus, por
exemplo. Mas Espinoza discorda dos medievais em relação a Deus, afirmando que em Deus não há
intelecto e vontade. Segundo Rovighi, para Espinoza, “a afirmação de que todo ente é verdadeiro
significa que todo ente corresponde a uma ideia divina, e a afirmação de que todo ente é bom significa

2 “Consistirá nas regras que a mente forja ou que o pensamento humano inclui; sua fonte estará no pensamento
humano; será preciso extraí-lo, por uma série de deduções, dos princípios racionais que seriam descobertos no fundo
da consciência do homem, adotando então o Direito a forma de um sistema dedutivo de regras. É a via do racionalismo,
que tantos juristas modernos, sobretudo na Europa continental percorreram”. (VILLEY, 2005, p. 606.)
3 “Fazer dele um produto das paixões animais do corpo, das forças dos indivíduos, e depois da força dos grupos ou do
Estado; aplicar a ele os métodos das ciências da natureza física; situá-lo do lado dos fatos, regidos por leis mecânicas,
objetivamente determinadas [...] É a corrente do naturalismo, como às vezes se diz (já que a expressão direito natural,
que também conviria, ficou com o partido oposto). O fracasso dessa doutrina consiste em imergir o Direito nos ‘fatos’
objetivos que são o apanágio das ciências modernas da natureza. O que tampouco bastaria” (VILLEY, 2005, p. 607).
4 “O sistema da common law é um sistema de Direito elaborado na Inglaterra, principalmente pela ação dos Tribunais
Reais de Justiça, depois da conquista normanda. A família da common law compreende, além do direito inglês, que está
na sua origem, e salvo certas exceções, os direitos de todos os países de língua inglesa. Além dos países de língua
inglesa, a influência da common law foi considerável na maior parte dos países, senão em todos, que politicamente
estiveram ou estão associados à Inglaterra” (DAVID, 2002, p. 353).
122 Filosofia do Direito

que ente é querido por Deus” (ROVIGHI, 1999, p. 180). Ora, algo querido implica necessariamente
que houve uma vontade posta. Além disso, para ele o ente não pode ser bom, porque a propriedade
de bom está ligada aos desejos e às opiniões humanas, não ao conhecimento.
Para Espinoza, o bem é sempre relativo, bem e mal dependem da ação humana somente. Não
há, portanto, um bem objetivo. A polêmica se expande para o campo das virtudes, porque, segundo
ele, um bem sempre levaria posteriormente a um mal; o prazer levaria à tristeza, por exemplo; a busca
por honras e riquezas é insaciável, e por isso causa dor. Logo, todos esses bens terrenos não passariam
de bens incertos. “Aliás, vendo-se melhor, prazeres, riquezas e honras são mala certa, enquanto o
absoluto é um bem certo, já que a busca daqueles gera litígios, tristeza, temor, enquanto o amor por
uma realidade eterna e infinita sola laetitia pascit animum” (ROVIGHI, 1999, p. 181). Nesse sentido,
apesar de questionar a validade dos bens terrenos, percebe-se que Espinoza credita a possibilidade de
um bem absoluto, ainda que ponha em dúvida a possibilidade de se alcançá-lo. A questão se resolve
assim: existe essa realidade superior, contudo em geral o homem apenas consegue imaginá-la, de
forma que tal ideia somente se tornará realidade quando o espírito da nossa humanidade entrar
em união com toda a natureza. Essa explicativa é importante, porque a obra jurídica de Espinoza, a
Ética, começa justamente com considerações acerca de Deus. O conhecimento deve ser emendado
para que entre em harmonia com essa união com a natureza.
Também é importante esclarecer que Espinoza não defende a utilização de algum método
específico, tal como fizeram Bacon e Descartes. Isso porque, segundo ele, qualquer metodologia,
para ser utilizada, deveria antes ser justificada por outro argumento, outra metodologia, e assim se
guiaria até o infinito. É válido, portanto, para solucionar essa problemática, aceitar a ideia de um
ente perfeito, anterior a qualquer outra coisa. Também por isso a Ética inicia-se por Deus. Por fim,
então, cabe falar da Ética espinoziana, a ética como ordem geométrica. Apesar do nome, não é,
contudo, uma ordem matemática, tal como a de Descartes, porque Espinoza preferiu o procedimento
sintético, diferente do procedimento analítico de Descartes. Dividida em cinco partes, trata de
Deus, do espírito humano, das paixões, da força das paixões, e da potência do intelecto. As paixões
aprisionam o homem, e o intelecto o liberta.
Já foi dito que, para Espinoza, Deus é o ente perfeito, portanto a única substância. Nesse
sentido, sendo Deus a causa primeira de todas as outras coisas, não pode ele ser coagido a nada,
pois toda ordem deriva de Deus. Sendo assim, não existe uma finalidade na natureza, isto é, algum
raciocínio dedutivo que implique na natureza uma ordem buscando algum fim, porque esse fim
seria divino, e desse modo poderia ser de qualquer forma.
Também a felicidade humana existe nessa perspectiva divina, por meio do conhecimento das
virtudes. Segundo Rovighi, Espinoza:
[...] ensina-nos que nossa suprema felicidade e bem-aventurança consiste no
conhecimento de Deus, ao qual nos encaminhamos com o exercício da virtude,
de modo que a bem-aventurança não é um prêmio concedido por Deus a quem
se submete a servi-lo, mas aquele serviço divino que é a virtude já é felicidade e
suma liberdade. (ROVIGHI, 1999, p. 194)
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo 123

Percebe-se aqui uma contraposição à escolástica. Não há necessidade de se submeter a Deus,


mas apenas viver conforme as virtudes, isso já basta para a felicidade humana. É importante notar
mais uma vez que Espinoza não se preocupa com finalidades e vontades.
Contudo a questão das paixões é empecilho para essa aproximação a Deus. “Ora, as paixões
são realidades como as outras, determinadas pelas eternas e imutáveis leis da natureza, portanto
não devem ser desprezadas ou deploradas, mas descritas e estudadas como se se tratassem de linhas,
planos e sólidos, ou seja, de entidades geométricas” (ROVIGHI, 1999, p. 195). A paixão seria uma
potência do corpo que aumenta ou reduz a capacidade de ação do homem. As paixões indicam
também uma tendência, porque a tendência é aquilo que existe no homem com perseverança
do próprio ser. Quando a tendência fundamental se relaciona ao próprio espírito humano, à sua
essência, é vontade, e quando provém tanto do corpo como do espírito, é impulso, desejo. As paixões
são sempre advindas do corpo. “O impulso é, portanto, uma consequência da natureza do sujeito,
não da bondade do objeto, e por isso bom é aquilo que satisfaz o impulso, não o impulso que tende
ao bem” (ROVIGHI, 1999, p. 196).
Apesar disso, as paixões são também um caminho para a liberdade, uma vez que obrigam a
aplicação de força contrária, em um raciocínio geométrico. Exemplo disso é o ódio: se alguém nos
odeia, é resultado de alguma causa nossa, sem importar aqui qual seja ela; se retribuímos esse ódio
com mais ódio, a tendência é que esse ódio aumente, mas se retribuirmos com amor, a outra parte
somente poderá retribuir com amor. Além do raciocínio geométrico, é importante notar novamente
a relativização espinoziana de ideias como ódio e amor, bem e mal. Ora, todas essas paixões são
impulsos, causas não livres que atingem o homem. Por isso, Espinoza reforçará na parte da Ética
dedicada às virtudes que elas não podem ser suprimidas, porque são realidades humanas. Conhecer
as paixões, não as suprimir e agir objetivando as virtudes, é aquilo que o filósofo chamará de razão,
a condição ética especial que conduz o homem ao conhecimento de Deus.
As coisas mundanas são porque são, e não porque devem ser, isto é, são porque Deus assim
as pôs. Nessa condição, é notório que a alegria produz aumento de capacidade, por exemplo, e que
a tristeza, ao contrário, reduz. É aqui que o homem se dá conta de que a alegria é um bem natural
da humanidade e que viver conforme ela produz uma condição mais divina. A aproximação a Deus
se dá pelo conhecimento, pelo gosto de viver e querer viver conforme os valores espirituais, aqueles
que nos conduzem acima das paixões.
Espinoza, portanto, insere dificuldades existenciais no núcleo das divagações racionalistas.
O homem quer alcançar Deus, a verdade, mas tem ímpetos internos, paixões, que podem dificultar
esse acesso, quando não compreendidos, não harmonizados à integridade de seu próprio ser. O
conhecimento de si mesmo, das próprias paixões, das próprias tendências, unido à decisão consciente
de mudar quando a atitude não é virtuosa, é condição indispensável para uma vida feliz.
A racionalidade que une a matemática, ou a ciência, às questões éticas, preocupadas, sobretudo,
com valores morais, conduzirá o homem moderno ao movimento iluminista.
124 Filosofia do Direito

7.4 A filosofia iluminista


O Iluminismo foi o movimento nascido na Modernidade da Europa, de profunda importância
para o Direito até a atualidade. Marca maior desse movimento são os dois mais importantes eventos
políticos da época, ambos sob inspiração dos filósofos iluministas. Tratam-se, respectivamente,
da Independência dos Estados Unidos da América, em 1776, e da Revolução Francesa, em 1789.5
O movimento iluminista caracterizou-se pela libertação da mente humana de sua servidão
espiritual. Para tanto, propunha o uso crítico despreconceituoso da razão voltada para a libertação
em relação aos dogmas metafísicos, aos preconceitos morais, às superstições religiosas, às relações
desumanas entre os homens, às tiranias políticas. O lema dessa corrente de pensamento era: “tem a
coragem de servir-te de tua própria inteligência”. Era nesse espírito que se buscava pela orientação
racional a boa conduta individual e social (REALE, 2003).
Immanuel Kant (2005), o qual terá seu pensamento analisado mais adiante, em sua “Resposta
à pergunta: que é esclarecimento?” (Aufklärung6), diz o seguinte:
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual
ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado
dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas
na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem.
Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o
lema do esclarecimento. (Aufklärung)

A filosofia iluminista foi hegemônica no século XVIII, influenciando toda a Europa,


caracterizando-se como um movimento no qual a base está na razão humana. A razão dos
iluministas se explicita como defesa do conhecimento científico e da técnica enquanto
instrumentos de transformação do mundo e de melhoria progressiva das condições espirituais
e materiais da humanidade.
Os iluministas, por meio da fé na infinita possibilidade de progresso das “luzes” da razão,
acreditam na infinita possibilidade de progresso do homem, ligando-o à sua capacidade de conhecer.
Na possível eliminação de todos os elementos irracionais que corrompem o homem e a sociedade,
dessa eliminação, por intermédio da afirmação da razão, nascerá para os homens um estado de
felicidade e de bonança (ADORNO; GREGORY, 1998).
Os ideais iluministas tomaram força dentro da emergente burguesia que ganhava espaço
e poder com o desenvolvimento econômico europeu. A partir da luta pela razão e do progresso,
essa classe iniciou a luta pela liberdade de publicação e de propaganda, criticando os institutos que

5 “As declarações de direitos norte-americanas, juntamente com a declaração francesa de 1789, representaram a
emancipação histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais ele sempre se submeteu: a família, o clã, o
estamento, as organizações religiosas. É preciso reconhecer que o terreno, nesse campo, fora preparado mais de dois
séculos antes, de um lado pela reforma protestante, que enfatizou a importância decisiva da consciência individual em
matéria de moral e religião; de outro lado pela cultura da personalidade de exceção, do herói que forja sozinho o seu
próprio destino e os destinos do seu povo, como se viu sobretudo na Itália renascentista” (COMPARATO, 2005, p. 52).
6 O termo alemão Aufklärung é o correlato germânico do Iluminismo francês; e sua tradução mais precisa é aquela
apresentada no texto, como esclarecimento.
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo 125

protegiam a cultura da aristocracia europeia, em que os iluministas se sentiam estranhos e a qual


buscavam derrubá-la (ADORNO; GREGORY, 1998).
Os filósofos iluministas, propagadores de uma religião e moralidade laicas, estabelecem
a razão como fundamento das normas jurídicas e das concepções do Estado. Tal como se fala
da religião natural e da moral natural, fala-se também do Direito natural. Natural no sentido de
racional, não sobrenatural. O ideal jusnaturalista iluminista busca um Direito em conformidade
com a razão. Conforme assinala Montesquieu (2000): “As leis, em seu significado mais extenso,
são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (MONTESQUIEU, 2000). Embora
livres das cadeias da religião, os homens devem estar sujeitos ao domínio da justiça, pois as leis do
Direito são objetivas e não modificáveis, à semelhança das leis da Matemática, conforme acentua
Montesquieu nas Cartas persas.
Com base nas ideias jusnaturalistas dos iluministas é que se elaborou a doutrina dos direitos
do homem e do cidadão que encontra seu maior resplendor na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789, elaborada pela Assembleia Constituinte francesa, especificando os princípios
herdados do espírito da Revolução Francesa.7 Os direitos do homem e do cidadão que a assembleia
considerou naturais foram: a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão. A lei é igual para todos e estabelece limites precisos ao poder executivo, a fim de proteger
a liberdade pessoal, de opinião, de religião e de palavra. A lei é expressão da vontade geral, feita
como concurso dos cidadãos ou por meio dos representantes de todos os cidadãos. Destaca-se que
nesse meio o direito de propriedade é afirmado como “sagrado e inviolável”8.
A herança iluminista não somente se faz presente na construção do Direito, mas também
pode ser vista na vida quotidiana. Primeiro, esse espírito de servir-se da própria consciência, sair
da menoridade do conhecimento em busca da condução da vida por meio da razão, é essencial no
competitivo mundo dos negócios da atualidade. A capacidade de saber deparar-se com os fenômenos
e, racionalmente, ser capaz de resolvê-los de modo criativo é uma premissa ao homem de sucesso
na contemporaneidade.
Além disso, o profundo respeito pelo ser humano dos iluministas traz a responsabilidade do
líder e de seus colaboradores no desenvolvimento humano. Considerando a busca pela igualdade
um princípio, a igualdade de direitos não será alcançada somente pela valorização da liberdade
humana. Outros valores ideais, como a dignidade humana, a fraternidade e o respeito às diferenças
entre as pessoas, também devem ser potencializados para que a civilização humana como um todo
se desenvolva.

7 “Na Revolução Francesa [...] todo o ímpeto do movimento político tendeu ao futuro e representou uma tentativa de
mudança radical das condições de vida em sociedade. O que se quis foi apagar completamente o passado e recomeçar
a história do marco zero – reinício muito bem simbolizado pela mudança de calendário” (COMPARATO, 2005, p. 51).
8 A referida Carta possui marcante inspiração, ainda, na Declaração dos Direitos da Virgínia, cuja Seção 1 diz: “Todos
os homens são por natureza igualmente livres e independentes, tendo certos direito inatos, dos quais, quando entram
em um estado de sociedade, não podem, através de nenhum pacto, privar ou despojar sua posteridade, ou seja, o gozo
da vida e liberdade, com os meios de adquirir e possuir propriedade e buscar a obtenção da felicidade e segurança”;
(UNITED STATES OF AMERICA, 1776) [tradução livre].
126 Filosofia do Direito

Portanto, para que isso se torne possível, faz-se necessário que o líder da contemporaneidade,
seja qual for sua área de atuação, responsabilize-se por tornar, no exercício de sua liderança, esses
valores uma realidade concreta.
O Iluminismo coloca a busca por autonomia política, intelectual, social, mas, sobretudo,
existencial no centro das reflexões filosóficas. O homem não quer ser apenas instrumento das
instituições, alguém fadado a viver um percurso de acordo com as regras e vontades sociais
estabelecidas na comunidade em que nasceu. O homem quer mais, quer escrever a própria história,
moldar o mundo à sua vontade. Para isto é preciso renascer, mudar a si mesmo, construir a própria
autonomia. A revolução somente pode ser funcional se o sujeito é consciente de si, é responsável,
assume a tarefa de conduzir a si e aos outros com dignidade e sucesso momento a momento, do
contrário haverá sempre o risco de a revolução se tornar mera nova onda de violência. O Iluminismo
escancara a busca do sujeito moderno por liberdade, por querer expressar a si mesmo diante do
mundo, mas isso exige o preço, a formação de si, a mudança de hábitos, a decisão radical de não
mais depender de ninguém, de nenhuma instituição, a decisão radical de que conduzirá a vida com
a própria inteligência, sendo autor dos próprios sucessos e fracassos, saboreando as vitórias com o
próprio suor conquistadas e pagando existencialmente pelos erros cometidos, mas com a sinceridade
de que é senhor de si mesmo.

Considerações finais
Com a Filosofia moderna, adentramos a Filosofia da consciência, das discussões de como
a consciência pode acessar a realidade e de quais são os limites da possibilidade de alcance da
consciência.
Desse modo, a Filosofia moderna se abre em duas grandes abordagens: a racionalista
e a empirista. A primeira se situa na intelectualidade humana, nas abstrações, em um método
organizado de estruturar os raciocínios, a capacidade de compreender o real. Já o empirismo confia
mais na experiência externa, na capacidade de, a partir daquilo que nossos sentidos externos captam,
construir o conhecimento.
Em qualquer campo de atuação da vida, é necessário que aprimoremos nossa capacidade de
acessar o real, organizando nossos pensamentos, verificando quando eles são favoráveis aos nossos
projetos e quando são contrários, bem como aprendendo com nossas experiências aquilo que amplia
nossa visão de mundo.

Ampliando seus conhecimentos


• ENIGMA de Kaspar Hauser. Direção de Werner Herzog. Alemanha: Zweites Deutsches
Fernsehen (ZDF); Werner Herzog Filmproduktion; Filmverlag der Autoren, 1974. (110
min), son., color., 35 mm.
Um jovem é encontrado preso aos 18 anos de idade e, então, é libertado. Desde então, passa
a ser educado nos costumes sociais, mas com imensa dificuldade. Filme para discutir as
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo 127

várias abordagens da Filosofia moderna, se o conhecimento se apreende por racionalismo,


por empirismo, entre outras vertentes.

• O SHOW de Truman. Direção de Peter Weir. Estados Unidos: Paramount Pictures; Scott
Rudin Productions, 1998. (103 min), son., color., 35 mm.
Sobre sociedade racionalizada comandada por experiências de imagem e publicidade, na
qual a realidade e a ficção se misturam. Filme para abordar a dificuldade da racionalidade
de atingir o real, abordando com intensidade a dificuldade da Filosofia moderna de auxiliar
o ser humano a conhecer a verdade.

Atividades
1. Francis Bacon defendeu uma Filosofia empírica, baseada na análise das coisas sensíveis,
em oposição a uma explicação metafísica. A procura pela coisa posta repercutiu no Direito
influenciando um Direito positivista, preocupado sobretudo com os fatos. Com base nisso,
comente a relação entre empirismo científico e positivismo jurídico, lembrando também
que Bacon se preocupa mais com o útil do que com o justo, ou seja, um Direito mais voltado
à praticidade do aqui e agora do que com concepções filosóficas.

2. Considerando a proposta de ordenação racional de René Descartes, qual é a sua importância


para o pensamento jurídico na contemporaneidade?

3. Espinoza afirma que as paixões são naturais ao homem e que não adianta suprimi-las, mas
conhecê-las objetivamente. Relacione a problemática das paixões na visão de Espinoza aos
dias atuais: o homem tenta, de fato, conhecer objetivamente as paixões? Como se vive a paixão
na atualidade: suprimindo-a, vivendo-a ou buscando conhecê-la objetivamente? Qual é a sua
visão acerca desse tema, tão essencial para qualquer ramo da vida?

4. Com base nas concepções iluministas, especialmente na ideia de conduta racional humana,
reflita sobre suas influências na contemporaneidade.

Referências
ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. v. 2. Roma-Bari: Laterza, 1998.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

COPLESTON, Frederick. Historia de la filosofía 4: de Descartes a Leibniz. v. 4. Barcelona: Ariel, 1999.

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3. ed. Trad. de Hermínio A. Carvalho. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. p. 279.

DESCARTES, René. Méditations métaphysiques. Paris: Flammarion, 1992.

DESCARTES, René. Discours de la méthode. Paris: Flammarion, 2000.


128 Filosofia do Direito

DESCARTES, René. Regras para a orientação do espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é “esclarecimento”? (aufklärung). In: KANT, Immanuel. Textos
seletos. 3. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 2005.

MONTESQUIEU. O Espírito das leis. Trad. de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. 6. ed. v. 2. São Paulo:
Paulus, 2003.

ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. Trad. de Marcos Bagno
e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 1999.

ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. 2. ed. Trad. de Marcos
Bagno e Silvana Cabucci Leite. São Paulo: Loyola, 2000.

UNITED STATES OF AMERICA. The Virginia Declaration of Rights. Disponível em: www.usconstitution.
net/vdeclar.html. Acesso em: 18 abr. 2019. (Tradução livre).

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. de Claudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

WHITE, Howard B. Francis Bacon [1561-1626]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (org.). Historia de la
Filosofía Política. Cidade do México: Fondo de Cultura Ecónomica, 1996.
8
A fundamentação do estado moderno:
os filósofos contratualistas

Continuando a análise das escolas de pensamento que mais influenciaram a Filosofia do


Direito na transição para o Período Moderno, trataremos neste capítulo de um grupo de pensadores
que se destacam por serem os fundamentadores da nova concepção de sociedade, de Estado e de
Direito que surgia.
Apesar das divergências entre suas concepções particulares, eles têm em comum a ideia de
que em algum tempo no passado os homens, que se encontravam em um estado de naturalidade, no
qual viviam individualmente, perceberam que seria mais vantajoso compartilhar a companhia dos
outros homens, estipulando-se então um contrato no qual as partes envolvidas instituíam direitos e
deveres entre si, bem como passavam a organizar politicamente sua convivência recíproca. Por essa
razão, tais pensadores foram chamados de contratualistas, porque buscavam identificar a razão de
os homens viverem em sociedade. Para eles, essa passagem de uma vida natural a uma comunitária
se dava por intermédio de um pacto, de um contrato social.
Neste capítulo, estudaremos o pensamento dos principais representantes dessa corrente:
Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau.

8.1 Thomas Hobbes


Thomas Hobbes1 é o pensador que inaugura a abordagem contratualista. Ele teve a oportunidade
de entrar em contato com as principais mentes que protagonizaram a revolução científica e filosófica
em seu tempo, influenciado pelo pensamento de Francis Bacon, René Descartes e também pela Física
de Galileu Galilei (REALE, 2003).
Nesse período, a Inglaterra encontrava-se conturbada por um conflito civil entre os
representantes do anglicanismo, religião da monarquia, compostos principalmente pela burguesia,
e a minoria católica. Esse contexto de instabilidade levou Hobbes a compor sua teoria da formação
do Estado e do nascimento dos direitos humanos de uma maneira diversa daquela tratada pela
Antiguidade Clássica, conforme veremos ao tratar sobre suas obras Leviatã ou matéria, Forma e
poder de uma República Eclesiástica e Civil e do cidadão.
Hobbes (2002) considera os homens como naturalmente iguais. Embora existam diferenças
de força ou inteligência entre os seres humanos, elas não são suficientes para garantir a supremacia

1 Thomas Hobbes nasceu em Malmesbury, Inglaterra, em 1588. Aprendeu muito cedo o grego e o latim. Seu amor às
obras clássicas o levou a produzir diversas traduções de obras gregas e latinas. Após ter concluído seus estudos superiores
em Oxford, a partir de 1608 tornou-se preceptor junto à poderosa casa de Cavendish, conde de Devonshire. Foi também
preceptor de Carlos Stuart (futuro rei Carlos II), no período em que a corte estava no exílio em Paris, após a tomada do poder
por Oliver Cromwell. Com a retomada do poder da dinastia dos Stuart, obteve uma pensão por parte de Carlos II, podendo
dedicar-se aos seus estudos. Morreu aos 91 anos de idade, em dezembro de 1679 (REALE; ANTISERI, 2003).
130 Filosofia do Direito

de uns sobre outros. Até o mais fraco dos homens tem meios de matar o mais forte, o que atesta essa
igualdade de natureza, portanto a diferença entre um e outro não é fundamento suficiente para que
um deles possa aspirar benefício em detrimento dos demais.
Da igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de se atingir os
próprios fins e, se dois homens desejam a mesma coisa impossível de ser gozada por ambos, eles
tornam-se inimigos. No caminho para o seu fim, esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro.
Disso colhe-se que todos vivem com receio uns dos outros.
Nesse raciocínio, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros, concluindo-
-se que: “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos
em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que
é de todos contra todos os homens” (HOBBES, 2002, p. 109). Por guerra não se entende somente a
batalha ou o ato de lutar, mas o lapso temporal durante o qual a disposição para tanto é suficientemente
conhecida. Por isso, afirma-se que a humanidade se encontra em guerra constante.2
Hobbes chama esse período de estado de natureza, no qual, apesar de todos os homens serem
iguais e livres, eles não dotam de meios para se proteger contra os outros indivíduos, vivendo em guerra
ou na iminência desta. Nesse estado o homem é o lobo do próprio homem (homo homini lupus)3.
No estado de guerra, nada pode ser injusto, pois “onde não há poder comum não há lei, e
onde não há lei não há injustiça” (HOBBES, 2002, p. 109). Além disso, inexistem a propriedade
e o domínio das coisas, só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, apenas
enquanto for capaz de conservar. Assim, o medo da morte e o desejo das coisas necessárias a uma
vida confortável, conseguidas por meio do trabalho, levam o homem a tender para a paz, sendo a
busca por esta uma lei da natureza. Considera-se lei natural, pois a razão sugere adequadas normas
de paz, em torno das quais se pode chegar a um acordo (ROVIGHI, 1999). Além dessa, outras 18
leis de natureza são apresentadas, as quais são naturais pois foram inscritas por meio da experiência
humana, estreitamente ligadas à conservação e à defesa da vida.
Nesse contexto, conclui-se que o Direito de Natureza (Jus Naturale) é a liberdade que cada
homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua
própria natureza (sua vida) e de tudo aquilo que o seu julgar e sua razão lhe indiquem como meios
adequados para o alcance desse fim (HOBBES, 2003). Por sua vez a liberdade é vista como a ausência
de impedimentos externos que tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quiser.
A Lei de Natureza (Lex Naturalis), por sua vez, é o preceito ou regra geral estabelecida
pela razão que proíbe um homem de fazer tudo o que possa destruir sua vida, priva-o dos meios
necessários para preservá-la ou omite aquilo que ela pensa ser melhor para preservar a vida. Essa

2 “O estado de guerra, assim, é a identidade última do estado de natureza. A guerra, de fato, não é apenas o desencadear-
-se das armas, o combate efetivo, mas também a conhecida disposição para tanto, ou a falta de uma garantia certa
do contrário. A falta de segurança acarretada pelo estado de natureza e o fracasso de toda estratégia implementada
pelos indivíduos para alcançá-la não podem deixar de ser registrados; as exigências da paz e da cooperação surgem
espontaneamente nas mentes de muitos homens à medida que a crueldade da sua condição se manifesta aos seus
olhos” (PICCINI, 2005, p. 128).
3 “Para ser imparcial, ambos os ditos são certos – que o homem é um deus para o homem, e que o homem é o lobo do
homem. O primeiro é verdade, se compararmos os cidadãos entre si; e o segundo, se cotejarmos as cidades” (HOBBES,
2002, p. 3).
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 131

lei natural possui um caráter estritamente moral, não jurídico, dada a inexistência de qualquer força
que a fixe, dê validade e coercibilidade (VILLEY, 2005).
Hobbes destaca que o medo de viver nesse contexto inseguro e desfavorável leva os homens a
abandonarem o estado de natureza. Buscando a legitimação das leis naturais que os impelem à paz,
os homens dispõem racionalmente, pela criação, de um ente superior a eles, produto da manifestação
voluntária de todos, entregando-se à onipotência do soberano, que se tornaria o detentor de todos
os direitos. Por esse pacto institui-se a república4, que dá fim ao estado de natureza, garantindo a
segurança para as pessoas e para os bens e, portanto, alcançando a paz com o fim das guerras civis.5
Esse contrato seria mais do que consentimento ou concórdia, mas uma verdadeira unidade de
todos, em uma só e mesma pessoa, o Leviatã. Considera o filósofo que seria como se cada homem
dissesse: “Autorizo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta
assembleia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de uma
maneira semelhante todas as suas ações” (HOBBES, 2002, p. 147).
A transferência do direito de se governar significa uma transferência de forças e poderes
(strenghts and powers), o que representa na realidade a renúncia desses indivíduos ao poder de
resistência contra o soberano (PICCINI, 2005). Por concentrar desse modo os poderes de cada
homem, Hobbes define esse Leviatã como o “Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal,
a nossa paz e defesa” (HOBBES, 2002, p. 147). Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo,
o Leviatã dispõe de tamanho poder e força que o terror por ele inspirado subjuga as vontades de
todos os homens a ele submetidos. Destaca-se que, para a manutenção do sistema, o príncipe pode
tudo para com seus súditos, ele se encontra fora das limitações do pacto, razão pela qual contra ele
não há injury, a agressão ao Direito (VILLEY, 2005).
Considerada a formação da República, após a instituição do poder soberano, os homens
deverão autorizar todos os atos e decisões de seu representante, tal como se fossem seus próprios
atos e decisões, requisito essencial para viverem em paz uns com os outros e protegidos dos demais
homens, impossibilitando aos súditos se levantarem contra o poder do soberano, o qual será ilimitado
para garantir a finalidade de sua constituição, a paz entre os homens.6
Hobbes diferencia três espécies de governo. Quando o grupo é representado por somente um
homem, é uma monarquia; quando uma assembleia atua em nome de todos os que se uniram ao
pacto, trata-se de uma democracia; quando apenas parte participa da assembleia, estamos diante
da aristocracia.

4 No original o autor utiliza o termo Commonwealth, que pode ser traduzido como “bem estar público, bem geral,
utilizado como sinônimo de República ou Estado.”
5 “A segurança é o fim pelo qual nos submetemos uns aos outros, e por isso, na falta dela, supõe-se que ninguém
se tenha submetido a coisa alguma, nem haja renunciado a seu direito sobre todas as coisas, antes que se tomem
precauções quanto à sua segurança” (HOBBES, 2002, p. 103).
6 “De modo que parece bem claro ao meu entendimento, tanto com base na razão como nas Escrituras, que o poder
soberano, quer resida num homem, como numa monarquia, quer numa assembleia, como nas repúblicas populares e
aristocráticas, é o maior que possivelmente se imaginam os homens capazes de criar. E, embora seja possível imaginar
muitas más consequências de um poder tão ilimitado, ainda assim as consequências da falta dele, isto é, a guerra
perpétua de todos os homens com os seus semelhantes são muito piores” (HOBBES, 2003, p. 177).
132 Filosofia do Direito

Considerada a formação da República no pensamento hobbesiano, passaremos à análise das


concepções do pensador acerca do Direito, marcantemente contrárias ao pensamento aristotélico
e tomista, os quais são combatidos até as últimas consequências.
Influenciado por Bacon, Hobbes não busca mais as causas, mas as potências do mundo,
chegando por esse procedimento à hipótese do estado de natureza. O homem não é mais considerado
social “por natureza” o animal político, mas contrariamente é “naturalmente livre”. Assim fazendo,
Hobbes limita o Direito à lei moral, que é a lei natural para ele. O Direito não é mais uma coisa
distribuída ao sujeito pela organização política, mas um atributo essencial, uma qualidade do sujeito.
Esse é o significado de direito subjetivo em Thomas Hobbes.
Como no pensamento hobbesiano o Direito passa a existir somente quando os homens
firmam o pacto para instituição da República, altera-se também a concepção das fontes do Direito.
A lei passa a ser a fonte suprema do Direito, visto que o direito natural não é a fonte do Direito em
si, mas da conduta moral dos indivíduos. Essa consideração evidencia a importância do direito
subjetivo para Hobbes, posto que o Estado é resultado desse direito.
Após a constituição do soberano, o direito subjetivo continuará atuante na vida social como
liberdade natural, que subsiste no corpo político e que nele poderá, de fato, tornar-se realidade. Os
cidadãos, ao estabelecerem o pacto social, cedem seus direitos naturais, recebendo em troca direitos
civis (VILLEY, 2005).
Hobbes acredita que os homens são instintivamente dirigidos pela vontade de bem-estar
momentâneo, desconsiderando, assim, a existência de uma causa final para a vida humana. Por esse
motivo, atribui ao Direito a finalidade de respeitar o prazer do indivíduo. O Direito, desse modo,
é a vontade do homem voltado para o prazer, e não mais uma fonte que dita regras de conduta. O
Direito (jus) é a liberdade que a lei nos permite usufruir, por esse caráter a lei (lex) é a obrigação que
nos priva da liberdade que nos foi dada pela natureza.7 Conforme conclui Villey (2005) o homem
estabelece regras de direito a partir da própria vontade, visando a resolver questões circunstanciais,
não pretendo a partir delas definir regras imutáveis.
Hobbes divide a justiça em duas espécies, a comutativa e a distributiva – a primeira segue
uma proporção aritmética, e a segunda, uma proporção geométrica. Todavia, para o filósofo inglês,
justiça comutativa é a justiça do contratante, é o cumprimento dos pactos (pacta sunt servanda).
Justiça distributiva, por sua vez, é a justiça de um árbitro, o ato de definir o que é justo, sendo mais
próprio chamá-la de equidade, a qual é considerada uma lei de natureza.
Pelo exposto, constata-se que Hobbes, ao considerar o estado de natureza do homem como
o estado do homo homini lupus, procura demonstrar que a vontade dos indivíduos de garantir
suas vidas e sua segurança os levou a fundar a República, extinguindo-se o estado de natureza. A
República (Commonwealth) e o Direito estão fundados no interesse do homem em viver bem, o que
caracteriza consagração da instituição do direito subjetivo, o direito relativo ao indivíduo e que se

7 “A lei civil é para todo súdito constituída por aquelas regras que a república lhe impõe, oralmente ou por escrito,
ou por outro sinal suficiente da sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal, isto é, do que é
contrário à regra” (HOBBES, 2003, p. 226, grifo do original). Reforça-se assim que a lei não é mais produto de um direito
natural, mas produto do Estado, tendo em vista o regramento da conduta de sua sociedade e a garantia ao indivíduo do
exercício de sua liberdade. (HOBBES, 2003).
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 133

põe como uma faculdade, que pode ou não ser utilizada por ele, dependendo de sua conveniência.
Assim, o Direito em Hobbes não tem como valor primordial a justiça em sentido absoluto, mas o
que é justo na questão dos interesses do próprio indivíduo.

8.2 John Locke


O filósofo inglês John Locke8, célebre por sua epistemologia empirista, dedica-se também a
tratar sobre a organização das sociedades humanas e o nascimento do Estado, o que faz em sua obra
Dois tratados sobre o governo. No livro, suas concepções são apresentadas mais especificamente no
Segundo tratado sobre o governo, posto que o primeiro tratado se dedica principalmente a refutar
as teses absolutistas de Robert Filmer, presentes na obra O Patriarca.
John Locke também considera a existência de um estado de natureza antecedente à vida
em sociedade, partindo disso para explicar o princípio das sociedades humanas e a consequente
instituição do Estado. Locke, contudo, não entende que esse estado natural é a verdadeira “guerra
de todos contra todos”, mas sim uma perfeita liberdade dos indivíduos para regularem suas ações
e disporem de posses e pessoas do modo como julgarem acertado, sem pedir licença ou depender
da vontade de qualquer outro homem, limitados somente pela lei da natureza (GOLDWIN, 1996).
Os limites a essa ampla liberdade estão consignados na obrigação de preservar-se, bem como de,
o quanto possível for, preservar o resto da humanidade. “Quanto a essa última obrigação destaca
Locke: ‘[...] e não pode, a não ser que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou prejudicar a vida
ou o que favorece a preservação da vida, liberdade, saúde, integridade ou bens de outrem’” (LOCKE,
2001, p. 384).
Para que todos os homens sejam impedidos de agredir o direito alheio, prejudicando uns aos
outros e deixando de observar a lei de natureza, cada um tem a responsabilidade da execução dessa
lei, depositado em suas mãos o direito de punir os transgressores dela em tal grau que baste para
impedir sua violação. Conforme Locke: “todo homem tem o direito de punir o transgressor e de
ser o executor da lei de natureza” (LOCKE, 2001). Nesse ínterim, a decisão pela vida em sociedade
ocorre devido a um motivo, a vantagem do convívio social, o qual supre as limitações do indivíduo
que conduz por si sua vida9 (LOCKE, 2001).
Constatamos, assim, a diferença entre as concepções do estado de natureza de Locke com as
de Hobbes. Essa diferença torna-se explícita no capítulo 3 do Segundo tratado, no qual o filósofo
diferencia o estado de natureza do estado de guerra. Este último é considerado como fruto da

8 John Locke nasceu em Wrington, próximo a Bristol, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford, onde conseguiu o
título de Master of Arts em 1658 e onde ensinou, na qualidade de tutor, grego e retórica, tornando-se censor da filosofia
moral. Estudou Medicina, Anatomia, Fisiologia e Física, além de Teologia. Foi nomeado membro da Royal Society de
Londres. Acusado de traição, se retira para Oxford refugiando-se com o Conde de Shaftesbury, contudo, com o sucesso
da Revolução Gloriosa e a tomada do trono por Guilherme de Orange, instituindo-se o regime parlamentarista, retorna a
Londres, colhendo as glórias do triunfo da teoria que tanto defendera. Morreu no castelo de Oates, em Essex, no ano de
1704 (REALE, 2003).
9 Sintetizando esse ponto, Locke utiliza-se da seguinte conclusão de Hooker: “Dado que não somos capazes de nos
prover por nós mesmos de uma quantidade conveniente das coisas necessárias para viver a vida que nossa natureza
deseja, uma vida adequada à dignidade do homem, somos naturalmente induzidos, a fim de suprir esses defeitos e
imperfeições que portamos quando vivemos isolados e somente por nossos próprios meios, a buscar a comunhão e a
associação com outros. Foi por essa razão que os homens começaram a reunir-se em sociedades políticas” (HOOKER
apud LOCKE, 2001, p. 394).
134 Filosofia do Direito

tentativa de alguém impor aos demais o poder absoluto, atitude que é entendida como uma
declaração de intenções contra a vida do próximo que se tenta subjugar. Submeter-se a tal poderio
significa tornar-se escravo, deixar de ter sua liberdade. A quem tentar submeter os demais, abre-se
a possibilidade de inclusive matá-lo, pois mais vale proteger a liberdade do que manter-se vivo, mas
escravo de outrem.10
Portanto o que Hobbes entende por estado de natureza aproxima-se do que Locke entende
por estado de guerra, o que não é o estado normal da espécie humana em suas origens, mas um
desvio que deve ser coibido tanto quanto for possível, razão pela qual é concedido aos homens o
poder de serem executores da lei de natureza, bem como, para evitar o risco do estado de guerra,
instituírem a sociedade civil.
No pensamento de Locke, um direito fundamental é o direito de propriedade. Embora a
Terra e tudo o que há nela seja naturalmente comuns a todos os homens, o filósofo considera a
existência de um modo pelo qual o homem se apropria de parte das coisas dela provenientes em
benefício de si próprio. Para tanto, parte-se da consideração de que cada homem tem uma própria
propriedade em sua pessoa11, o que faz com que o trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos sejam
também propriamente seus. Destarte, qualquer coisa que for retirada do estado natural por meio do
acréscimo do trabalho humano transforma-se de um bem universal em uma propriedade particular
(MORAES, 2007). Concluindo: “O trabalho que tive em retirar essas coisas do estado comum em
que estavam fixou minha propriedade sobre elas” (LOCKE, 2001, p. 410).
Essa consideração é válida tanto relativamente à coleta de frutas, à caça ou à criação de
animais quanto à própria terra. A função da propriedade é garantir o usufruto dos bens que a vida
concede conforme sua conveniência ao indivíduo, sendo por esse motivo um direito natural. Por essa
característica, a expansão da propriedade é lícita, tanto quanto for necessária ao proprietário, contanto
que não prejudique ninguém nessa expansão. Para Locke (2001), o exagero nos limites de uso da
propriedade não se encontra na extensão das posses que o homem possui, mas no perecimento inútil
de qualquer parte delas. Isso significa que, no pensamento do autor, não é reprovável a expansão da
propriedade, o lucro, mas censura-se o excesso na aquisição de bens que chegue a um ponto em que
o ganho excedente acabe perecendo. Quem incorresse nessa situação de desperdício se encontraria
em franca violação à lei natural, devendo se responsabilizar por tal ato.
No pensamento de Locke, essa regra natural vigeria até a atualidade se os homens não
tivessem inventado o dinheiro, pois o acúmulo de bens perecíveis em excesso traz o risco de perder
inutilmente grande parte desses bens, tornando desvantajosa a ampliação da propriedade. Todavia,
com a instituição do dinheiro, os homens obtiveram um instrumento durável que poderia ser
guardado sem se estragar. Tornou-se possível, assim, pelo consentimento dos homens, a troca do
dinheiro, como bem não perecível, por aqueles bens que são verdadeiramente úteis, mas perecíveis.

10 Diferindo os dois estados, considera Locke: “Quando homens vivem juntos segundo a razão e sem um superior
comum sobre a terra com autoridade para julgar entre eles, manifesta-se propriamente o estado de natureza. Mas a
força, ou um propósito declarado de força sobre a pessoa de outrem, quando não haja um superior comum sobre a Terra
ao qual apelar em busca de assistência, constitui o estado de guerra” (LOCKE, 2001, p. 399).
11 Pois o domínio de si próprio é requisito essencial para se poder falar na liberdade do homem.
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 135

A invenção do dinheiro possibilitou ao homem continuar a expansão de suas propriedades


sem incorrer no perecimento inútil dos bens que possui. O valor atribuído a esse dinheiro é fruto
do consentimento entre os homens, já o valor das coisas que podem ser adquiridas pelo dinheiro
é dado pelo trabalho daqueles que as produziram. Portanto o trabalho humano, além de assegurar
a aquisição originária da propriedade no estado natural, também é o elemento que qualifica esse
bem, tornando-se possível conceder-lhe um valor maior para sua obtenção.
Para Locke, a lei natural somente pode ser conhecida por intermédio da razão, de modo que
os que ainda não atingiram o seu uso não podem se considerar sob a égide de tal lei. Nesse sentido,
o termo lei pode ser entendido como a limitação quanto à direção de um agente livre e inteligente
rumo a seu interesse adequado, sem prescrever além daquilo que é para o bem geral de todos que
a ela estão sujeitos. Se estes pudessem ser mais felizes sem a lei, esta desapareceria por si mesma,
sendo coisa inútil. A finalidade da lei não é abolir ou restringir, mas conservar e ampliar a liberdade.
A lei é o dispositivo que auxilia o indivíduo para que este possa agir bem, com uma função que
pode ser chamada de pedagógica.
Contudo, apesar da plena liberdade de que goza no estado de natureza, o homem possui
uma tendência natural à busca da vida em sociedade. Os primeiros indícios dessa tendência são
encontrados na sociedade conjugal, da qual nasce também a relação entre pais e filhos, partindo
dessa sociedade denominada família também a relação entre senhor e servidor. No entanto, essas
formas de grupamento estavam longe de constituir a forma plena da vida social, chamada sociedade
política ou civil. Esta última somente existirá se cada um de seus membros renunciar a seu poder
natural, colocando-o nas mãos do corpo político em todos os casos que não o impeçam de apelar
à proteção da lei por essa sociedade estabelecida. “Aqueles que estão unidos em um corpo único
e têm uma lei estabelecida comum e uma judicatura à qual apelar, com autoridade para decidir
sobre as controvérsias entre eles e punir os infratores, estão em sociedade civil uns com os outros”
(LOCKE, 2001, p. 458-459).
Com a instituição da sociedade civil há a formação de um povo, “um corpo político sob um
único governo supremo, ou então quando qualquer um se junta e se incorpora a qualquer governo já
formado” (LOCKE, 2001, p. 460). O Estado seria o governo soberano que existiria para a regulação
da vida de determinado povo que pactuou sua criação para cumprir essa finalidade.
A vida na sociedade civil pressupõe mecanismos de regulação social por intermédio da lei,
do exercício do poder político, bem como de órgãos que possibilitem a discussão do conteúdo e da
aplicabilidade dessas leis, além de autoridade para punir aqueles que romperem as normas desse
grande pacto. Nesse sentido, a monarquia absoluta é considerada incompatível com a sociedade
civil, sem poder ser, de modo algum, uma forma de governo civil.
Os motivos que levam o homem a instituir o governo civil são a mútua conservação de suas
vidas, liberdades e bens. O indivíduo tem toda a liberdade do mundo no estado natural, todavia
corre o risco de ser sobreposto por outro indivíduo livre. Assim, as pessoas, unindo-se em um
corpo, conseguem garantir entre si a preservação dos seus bens mais valiosos (LOCKE, 2001).
Nisso há também uma alteração no tocante ao direito de propriedade, uma vez que as leis passam
a regulamentar o direito de propriedade e a posse da terra por meio de suas legislações, ocorrendo
136 Filosofia do Direito

inclusive a mudança no critério pelo qual se considera adquirida a propriedade, bem como os
requisitos necessários para mantê-la.12
Se um estado natural carece de uma lei estabelecida, positivada, de juízes conhecidos e
imparciais, com autoridade para solucionar as diferenças de acordo com a lei, bem como de um
poder para apoiar e sustentar a sentença desses juízes e dar a ela a devida execução, os indivíduos
obtêm tudo isso ao constituírem o Estado e, por intermédio deste, fundarem o Direito e os órgãos
que possuam a competência de criar, interpretar e aplicar esse Direito, sempre tendo em vista os
fins da sociedade (GOLDWIN, 1996).
Nesse raciocínio, pode-se considerar a diferença entre a liberdade natural, própria do estado
de natureza, e a liberdade no estado, aquela garantida pela sociedade. A primeira consiste em “estar
livre de qualquer poder superior sobre a Terra e em não estar submetido à vontade ou à autoridade
legislativa do homem, mas ter por regra apenas lei da natureza” (LOCKE, 2001, p. 401). Essa liberdade
plena possui seus riscos, razão pela qual busca-se a vida social, em que a liberdade se traduz em:
“não estar submetido a nenhum outro Poder Legislativo senão àquele estabelecido no corpo político
mediante consentimento, nem sob domínio de qualquer vontade ou sob a restrição de qualquer lei
afora as que promulgar o Legislativo, segundo o encargo a este confiado” (LOCKE, 2001, p. 402).
Para a atuação do Estado, Locke considera três principais formas de governo: a democracia,
movida por sufrágios, na qual a comunidade tem todo o poder e pode utilizá-lo para fazer
periodicamente leis destinadas à própria comunidade, executadas por funcionários por ela nomeados;
a oligarquia, em que o poder de legislar encontra-se com alguns homens escolhidos, seus herdeiros e
sucessores; e a monarquia, poder posto nas mãos de um único homem (MERLO, 2005). Esta última
forma pode se estender aos herdeiros do soberano – monarquia hereditária – ou ficar restrita ao
rei apenas durante sua vida, voltando o poder à comunidade após sua morte – monarquia eletiva
(LOCKE, 2001).
Em seguida, o autor considera a existência de quatro espécies de poder dentro do Estado. A
primeira e maior delas é o Poder Legislativo, dotado do poder político13. Apesar de ser o maior dos
poderes do Estado, encontra-se limitado por toda a sociedade civil, o que garante que sua supremacia
ante aos demais poderes não se torne motivo para se constituir qualquer espécie de despotismo14.
Se o Poder Legislativo abusa do poder que lhe foi concedido, “o poder soberano retorna ao povo,
que se torna autoridade legislativa, investida de todas as condições, de toda a legitimidade e de toda
autoridade para decidir constituir novo governo e restabelecer a normalidade nas estruturas sociais”
(BITTAR, 2008, p. 189).

12 Destaca-se que no Direito brasileiro a propriedade, regulada pelo Código Civil, é considerada adquirida, quando
referente a bens móveis, por meio da tradição, da simples transferência entre pessoas, enquanto que a aquisição da
propriedade imóvel se dará precipuamente por meio do registro do título de transferência de propriedade no Cartório de
Registro de Imóveis, conforme disciplinam os artigos. 1.267 e 1.245, respectivamente (BRASIL, 2002).
13 “Considero, portanto, que o poder político é o direito de editar leis com pena de morte e, consequentemente, todas as
penas menores, com vistas a regular e preservar a propriedade, e empregar a força do Estado na execução de tais bens e
na defesa da sociedade política contra os danos externos, observando tão somente o bem público” (LOCKE, 2001, p. 381).
14 “Embora numa comunidade constituída, assentada sobre suas próprias bases e agindo de acordo com sua própria
natureza, ou seja, para a preservação da comunidade, não possa haver mais de um único poder supremo, que é o
Legislativo, o qual todos os demais são e devem ser subordinados, sendo ele apenas um poder fiduciário que entra e
ação para agir com vistas a certos fins, cabe ainda ao povo o poder supremo para remover ou alterar o Legislativo, quando
julgar que este age contrariamente à confiança neste depositada” (LOCKE, 2001, p. 518).
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 137

Além do Legislativo, existem ainda os poderes Executivo, Federativo e de Prerrogativa,


compostos na realidade pela mesma pessoa, apesar de exercerem funções diversas. Basicamente, o
Poder Executivo responsabiliza-se pelo cumprimento das leis redigidas pelo Legislativo. O Poder
Federativo regula a relação entre o Estado que representa e os demais, referindo-se ao chefe de Estado
na atualidade. O Poder de Prerrogativa não é nada mais do que a discricionariedade concedida ao
Executivo de, em situação em que não haja tempo para aguardar a edição de uma lei, decidir com
prudência tendo em vista a boa condução da sociedade.15
Pelo que foi exposto neste capítulo, constata-se que, no pensamento de Locke, mais do que
garantir a segurança do indivíduo, o pacto social reforça ao máximo a liberdade já possuída pelo
homem no estado de natureza. Ao criar um ente que organiza a vida social, desobriga o homem
a cuidar da execução da lei natural em relação aos demais, que se concentra no seu próprio
desenvolvimento enquanto indivíduo e no aprimoramento das relações sociais que estabelece.
O problema relativo à propriedade não é tão somente o seu acúmulo nas mãos de alguns, mas
a efetiva utilização desses bens por aquelas pessoas que os possuem. A posse de muitos bens não
é algo essencialmente condenável, o que é reprovável é o fato de o proprietário, seja um indivíduo,
seja uma organização, preocupar-se somente em adquirir bens ou lucrar, sem utilizar esse plus
adquirido, uma vez que com essa conduta se incorre no histórico problema existente em nossa
sociedade com relação às questões fundiárias, bem como, no âmbito empresarial, nos problemas
das empresas que, apesar de obterem altos lucros, não tornam esses ganhos motivo de crescimento
aos seus funcionários e à sociedade em que se encontram.

8.3 Montesquieu
O filósofo e cientista francês Montesquieu16 realiza em sua obra O Espírito das Leis uma
investigação acerca da constituição do Estado e do modo pelo qual este se estrutura para regular a
si próprio e à sociedade que o instituiu.
Montesquieu parte da consideração de que as leis são as relações necessárias derivadas da
natureza das coisas. Assim, todos os serem têm suas leis. A divindade, o mundo material, as inteligências
superiores aos homens, os homens, os animais, todos possuem suas leis. Desse modo, o homem
também é governado por leis invariáveis, contudo, como ser inteligente, viola incessantemente essas
leis e transforma aquelas que ele mesmo estabeleceu (MONTESQUIEU, 2000).
O homem deve saber orientar a si mesmo, mas é um ser limitado, sujeito à ignorância e ao
erro. Com o objetivo de ordenar a conduta humana, as religiões buscaram chamá-lo por meio de
suas leis, porém estas dependem da crença para serem efetivas. Os filósofos, pela moral, tinham
como meta disciplinar racionalmente a conduta humana, todavia, para tornar tal módulo de conduta

15 Destaca-se que Locke silencia acerca da existência de um Poder Judiciário, contudo considerando-se seu sistema
de pensamento e a temporariedade das Câmaras Legislativas, convocadas somente quando precisem se manifestar,
enquanto que o Executivo encontra-se em permanente atividade, pode-se inferir que o poder de julgar estaria dentre as
atribuições do Poder Executivo, instituindo os juízes doutos e imparciais, tal como o autor se manifestou anteriormente.
16 Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu, nasceu em 1689, nas proximidades de Bordeaux. Foi conselheiro
do Parlamento de Bordeaux e colaborador da Academia de Ciências local. Elaborou estudos sobre diversas áreas do
conhecimento. Suas principais obras são O Espírito das Leis e Cartas Persas. Nesta última, satiriza toda a organização
social da Europa de sua época.
138 Filosofia do Direito

real, é preciso haver adesão voluntária do indivíduo. Por fim, os legisladores fizeram o homem voltar
aos seus deveres com as leis políticas e civis, dotadas da coercibilidade necessária para obrigar o
indivíduo a agir devidamente.
Considerada essa busca pela ordenação da conduta humana, fazendo-o retornar à ordem
preexistente na natureza, propõe-se ao pensador identificar o espírito das leis, entendendo-o como
a consideração de todas as questões que devem ser levadas em conta quando, em um Estado, parte-
-se à produção legislativa, de modo que possa assim devolver o indivíduo ao seu apelo natural por
meio da realização dentro do Estado (LOWENTHAL, 1996).
Para alcançar sua proposta, inicialmente devemos considerar as espécies de governo
existentes, posto que, dependendo de qual modelo for adotado em um Estado, o modo de elaborar
e aplicar as leis, bem como a forma de regular a sociedade, será alterado. São três as formas
identificadas: a republicana, composta pela democracia, governada por todos os cidadãos, e
pela aristocracia, governada somente por alguns cidadãos selecionados; o governo monárquico,
composto pelo governo de um só com base nas leis; e o governo despótico, composto pelo governo
de um só, tendo em vista seu próprio interesse.
Cada uma dessas formas possui seu próprio princípio, o valor pelo qual se constrói determinado
governo e de onde partem todas as atitudes desse governo.17 Na República, o princípio do governo é
o amor à república, o qual na democracia reflete-se no amor à igualdade e na aristocracia, no amor
à virtude. O princípio da monarquia é a honra, enquanto no despotismo esse princípio é o temor.
A importância desses princípios é assinalada na consideração de que, quando em um Estado há a
perda desse princípio, opera-se a corrupção de cada forma de governo, o que precede sua queda.
Estabelecidas as três formas de governo, bem como os princípios relativos a cada uma delas,
a partir dos quais devem partir todos os atos de determinado governo, com vistas a sua realização,
Montesquieu considera diversos pontos que devem ser regulamentados por lei para a boa regulação
de um Estado, até que, no livro XI, depara-se com a relação entre as leis e a liberdade dos cidadãos.
Acerca da liberdade, o pensador a considera sob dois aspectos, tanto em relação à constituição
quanto relativamente ao cidadão, buscando desse modo o valor da liberdade política e estabelecendo
as condições efetivas que possibilitarão que os indivíduos desfrutem a liberdade (REALE, 2003).
Relativamente à constituição, liberdade significa o poder de se fazer o que se deve querer e
não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer. Por outro lado, em relação ao cidadão,
entende-se tal termo como o exercício de sua vontade livre para agir bem, podendo-se chamá-la
de liberdade filosófica. A primeira é a concepção de liberdade em seu sentido legal, o indivíduo
pode fazer tudo aquilo que não é proibido por lei. Já o segundo conceito, mais profundo, envolve
a capacidade de o indivíduo discernir a realidade e agir do modo adequado, sendo, portanto, livre.
Trata-se muito mais de uma questão de ética do que de Direito.
Se as leis procuram assegurar o desenvolvimento das sociedades humanas, coagindo os homens
a voltarem a agir em conformidade com a ordem do mundo, essas leis somente alcançarão seu objetivo

17 Reforça-se esse caráter nos capítulos da obra dedicados à consideração de que as leis sobre a educação, bem
como as leis em geral, devem se relacionar com o princípio de cada forma de governo.
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 139

se a liberdade for garantida aos seus cidadãos. Por esse motivo, considera-se em primeiro lugar a
liberdade relativa às leis, pois somente aqueles que se encontrarem melhor preparados nas questões
da vida estarão aptos a gozar da segunda forma de liberdade, que se pauta no bom uso da razão.
Por outro lado, o próprio Estado não pode ser empecilho ao desenvolvimento do indivíduo
nem o primeiro a afrontar a liberdade dos seus cidadãos no exercício do seu poder. Tendo em vista
essa premissa, Montesquieu, ao tratar sobre a Constituição da Inglaterra no capítulo VI do livro XI
do Espírito das Leis, constrói a célebre teoria da separação dos poderes como elemento essencial
para a realização da liberdade política (LOWENTHAL, 1996). Para o pensador, existem três tipos
de poder: o poder de legislar, criar leis por um tempo ou para sempre e corrigir ou anular as leis já
elaboradas; outro de aplicar as leis existentes na realidade fática, executando-as; e outro de castigar os
crimes e julgar as querelas entre os particulares (MONTESQUIEU, 2000). Essas funções não podem
ser confiadas à mesma pessoa, pois o concurso de duas delas já concede força suficiente para o seu
titular exercer o poder de modo arbitrário e prejudicial a toda a sociedade.
Portanto, em Montesquieu, a gênese da separação dos poderes, assim como a construção
axiológica das formas de governo, tem um objetivo claro: a garantia da liberdade dos seus cidadãos.
Não basta em um Estado construir um sistema que proteja os indivíduos nas suas relações entre si
se o próprio Estado representar a maior e mais perigosa ameaça ao indivíduo.
Destaca-se disso que, sendo o Estado um ente ficto, que se faz presente historicamente
representado por pessoas que agem em nome dessa figura maior, a limitação e o controle dos
poderes do Estado são essenciais para que seus agentes não se utilizem do poder que lhes é conferido
para prejudicar a outrem, bem como para alcançar benefícios próprios, situações em que haveria
corrupção do governo e falência do Estado como figura reguladora de determinada sociedade civil.
Apesar de Montesquieu não tratar expressamente do contrato social em sua obra, parte das
concepções contratualistas, especialmente das formuladas por Locke, para construir sua obra,
pilar sobre o qual foram constituídos todos os grandes sistemas jurídicos da modernidade e da
contemporaneidade.

8.4 Rousseau
Rousseau18 é uma das mais influentes mentes do século XVIII, e seu pensamento foi um dos
marcos do auge do iluminismo francês, bem como o princípio do movimento romantista. Suas
ideias acerca da constituição do Estado e do Direito são apresentadas em sua obra Do Contrato
Social (ROUSSEAU, 1999), na qual o filósofo parte da seguinte premissa: “O homem nasceu livre e
por toda parte ele está agrilhoado” (ROUSSEAU, 1999, p. 9). Romper as cadeias que o aprisionam e
possibilitar ao homem viver em liberdade é a sua proposta nessa obra. A ordem social é considerada
um direito sagrado que prescinde a todos os demais, e para Rousseau esse direito não tem origem

18 Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, em 28 de junho de 1712. Deixou a cidade em 1728, morando em
Turim, na atual Itália, e na França, primeiramente em Chambéry, mudando-se depois para Paris, onde conhece Diderot
e, através deste, os enciclopedistas. Auxiliou na elaboração da Enciclopédia, contudo, por divergências com o grupo,
afasta-se destes em 1758, quando retira-se para o Montmorency, onde publicou sua obra Du contract social, em 1762.
Rousseau morreu em Ermenonville, em 2 de julho de 1778.
140 Filosofia do Direito

na natureza, como pensaram outros contratualistas, mas sim nos pactos que os próprios homens
fazem entre si.
Rousseau considera que apenas ser o mais forte não é o suficiente para ser o dono de alguma
coisa: se não transformar essa força em Direito e a obediência na figura de um dever, não existem
garantias da manutenção do poder sobre essa coisa. Ceder à força é um ato de necessidade, não
de vontade, trata-se de um ato de prudência, quando é necessário fazê-lo. Contudo, a atitude de o
homem renunciar a sua liberdade constitui-se na renúncia de sua própria qualidade de homem, aos
direitos de toda humanidade e inclusive a seus deveres (ROUSSEAU, 1999).
O contrato social para Rousseau não é um ato pelo qual se garantirá a proteção dos indivíduos
que se encontram em constante estado de guerra entre si, tal como propusera Hobbes. Para o
filósofo de Genebra, o homem é naturalmente bondoso; nos primórdios os homens viviam em um
período paradisíaco, que teve fim com o princípio da vida em sociedade, quando o grupo social
corrompeu o homem bom. Para voltar ao status quo ante, ao estado de natureza em que todos
viviam bem, a solução seria a fixação de um pacto social legítimo, em conformidade com a razão,
pelo qual se garantiria o direito de todos de maneira igualitária, cessando as desigualdades da união
anteriormente firmada (BITTAR, 2008).
Considerando que os homens não podem criar novas forças, mas somente unir e dirigir as
que existem, não têm outro remédio para se conservar do que somar suas forças. Como é possível
garantir que os homens, ao somarem suas forças e liberdades, seus principais instrumentos de
conservação, não acabarão saindo prejudicados? Esse é justamente o problema do contrato social.
A única forma dessa cessão de direitos prosperar é pela alienação total de cada um, com todos os
seus direitos, a toda a comunidade, dando-se cada um, por inteiro, para todos. Se for igual para
todos, não haverá interesse em fazê-la onerosa aos outros. Assim, o contrato social trata-se da união
de todos, entregando a todos seus poderes e suas liberdades, para que esse todo possa organizar-se
e buscar organizar a vida de toda essa coletividade, instituindo-se o Estado. Destaca-se que para
o pensador, em razão desse pacto, todo Estado regido por leis, qualquer que seja a forma de sua
administração, é uma República.
O ato de associação que ocorre encerra um empenho recíproco do público com os particulares.
Cada indivíduo, ao contratar consigo mesmo, acha-se empenhado de dois modos diversos: como
membro do soberano com os particulares e como membro do Estado com o soberano. Nessa natureza
dúplice se dá o soberano do Estado no pensamento de Rousseau, o qual se personifica na união do
próprio povo. Essa é uma importante passagem operada pelo filósofo: Rousseau transfere o conceito
de soberania, classicamente vinculado às teses absolutistas como poder dos reis, ao povo.19 Assim,
ao mesmo tempo, o indivíduo relaciona-se com o cidadão e com o soberano enquanto também é
o próprio soberano.
A formalização de um poder soberano único constituído por todos os cidadãos opera-se com
um fim específico: o bem de todos. Para que o soberano aja sempre tendo em vista o bem de todos,

19 “Mas, para isso, é preciso entender que a soberania, que faz a lei, não é externa aos indivíduos: ela é composta
pelos próprios indivíduos e, nesse sentido, contrariamente ao que Bossuet objetava a Jurieu, esse povo de indivíduos
racionais comanda a si mesmo. Se, na concepção absolutista, o povo é governado porque há um soberano, na concepção
rousseauniana o povo é governado porque ele mesmo é o soberano”.
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 141

deve pautar-se na vontade geral (volonté générale), contraposta à vontade particular das partes que
compuseram o contrato social.
Por vontade geral entende-se aquela vontade que cada indivíduo possui dentro de si e que
conduz ao bem comum, é uma disposição ao melhor da coletividade e, portanto, ao melhor de si
mesmo. Esta pode ser contrária à vontade particular, que trata do próprio interesse do indivíduo
singularmente. A vontade geral é importante porque será muito mais vantajoso que um indivíduo
perca a realização do seu interesse do que, por meio do seu exercício, prejudique os interesses de
toda a sociedade.
A vontade geral não pode, todavia, ser confundida com a vontade de todos, entendendo-
-se esta última categoria como a soma dos interesses particulares de cada um. A volonté générale
constitui-se na vontade que impulsiona todo o grupo social avante, não somente facções ou
determinados indivíduos. Essa forma de vontade permite, inclusive, que qualquer um que se recuse
a obedecê-la seja forçado pelos demais à obediência, posto que isso não significa outra coisa senão
obrigar o indivíduo a ser livre, pois a condição com a qual se dá cada cidadão à pátria lhe assegura
toda a independência pessoal. Trata-se da incursão do coletivo no individual na busca pela devida
ordenação à boa conduta desse que não soube reconhecer a melhor atitude a ser tomada naquela
ocasião (ROUSSEAU, 1999).
Sintetizando, a vontade geral difere da vontade particular de cada indivíduo da sociedade,
bem como da vontade de todos. Entendemos esta como a soma das vontades particulares de cada
um dos componentes do todo soberano, sendo o fundamento de onde partirão todas as atitudes
deste último visando a alcançar o bem comum.
Com o contrato, há o nascimento do estado civil, que substitui na conduta do homem o
instinto pela justiça e confere às suas ações a moralidade que antes faltava. Nessa passagem, o dever
assume o lugar do impulso físico, o Direito passa a regular os apetites e as vontades humanas,
sujeitando-os aos ditames da volonté générale. Somente desse modo possibilita-se ao homem o
retorno à vida ideal que possuía quando se encontrava no estado natural.
Por mais que no Estado o homem seja privado de muitas das vantagens concedidas pela
natureza, ele ganha outras de igual importância, elevando sua alma a tal ponto que transforma o
indivíduo de fato em um homem (ROUSSEAU, 1999). Nesse momento, Rousseau divide três espécies
de liberdade existentes: a liberdade natural, relacionada a um direito sem limites a tudo o que tenta
e pode atingir, movida pelo espírito do homem; a liberdade civil, recebida pelo Estado Civil em
conjunto com a propriedade, é o exercício da liberdade limitado pela vontade geral. Todavia, acima
dessas ergue-se a liberdade moral, que faz o homem verdadeiramente ser senhor de si, a qual diz
respeito à experiência própria de cada homem, havendo nesse instante, portanto, a superação da
dependência da coletividade.
Em suma, o pacto social torna os homens, desiguais em força ou talento, iguais por convenção
e direito, garantindo, assim, com base nos ditames da vontade geral, que os melhores ou os piores
dos homens possam viver bem em determinado grupo social (ROUSSEAU, 1999).
142 Filosofia do Direito

Tal como foi dito, a finalidade da vontade geral é o bem comum e somente ela pode dirigir
a força do Estado em direção a essa finalidade. O exercício da vontade geral constitui-se em um
verdadeiro exercício de soberania. Nesse sentido, a vontade geral é inalienável, bem como não pode
ser representada, pois o soberano, que é um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo.
Transmite-se o poder, mas não a vontade ao governante.20 Além disso, a vontade geral não pode
errar, pois trata-se do perfeito juízo da coletividade em busca do seu bem geral; caso haja o erro,
este ocorrerá no momento em que se particularizar a vontade geral, tornando-a vontade de todos,
mas não a vontade do grupo em uníssono na busca do seu benefício.
Constituído o pacto social, torna-se necessário instituir em seguida o sistema de leis, o qual
dará movimento e vontade ao Estado recém-constituído. Rousseau considera que o objeto das leis
é sempre geral, pois a lei considera os súditos coletivamente e as ações como abstratas, nunca um
homem como indivíduo nem uma ação como particular. A lei pode perfeitamente estatuir que
haverá privilégios, porém não pode concedê-los nem os nomear a ninguém.
Se o soberano é toda a coletividade, outra questão a ser considerada é quem será o legislador
do Estado. Tendo em vista os objetivos de sua obra, Rousseau considera que o legislador deve ser
um homem profundamente preparado, capacitado para, por intermédio do texto legal que produzir,
reproduzir os anseios da sociedade, baseado nos ditames da vontade geral. Para isso, além de todo
preparo intelectual, deve também conhecer profundamente o povo para o qual se dirigirá a legislação
em questão. Contudo, não pode ser ele próprio quem as executará, evitando-se, assim, abusos e
concentração de poder.
Pelo exposto, constata-se que Rousseau é o pensador que formaliza a passagem da visão da
soberania, antes vista como poder emanado pelo monarca, segundo a fundamentação do absolutismo
monárquico, entregando-a ao próprio povo, constituído pela massa de sujeitos que possuem direitos
e deveres no Estado formado pelo pacto social. Esse ato de Rousseau foi adotado pela maioria dos
Estados que vieram a constituir-se posteriormente ao pensador, por exemplo, o próprio Estado
brasileiro, que no parágrafo único do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil
(BRASIL, 1988) declara: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Sintetiza-se, a partir dos filósofos apresentados, que todos, de alguma forma, veem a organização
jurídica, política e social como não necessariamente uma consequência da natureza, porque desta
decorre não a comunidade humana, mas o indivíduo. É por se beneficiar, por buscar algo, por
entender que a coexistência pode gerar frutos que o homem decidiu viver em sociedade. Assim,
existiria sempre, no interior das comunidades humanas, um conflito entre a busca por socialidade
e a defesa da própria individualidade. Disso resultam conflitos relacionais, sociais, políticos, bem
como as pendências jurídicas em geral.

20 “Prodigiosa (mas indispensável) exceção do pensamento rousseauniano ao seu princípio mais querido, a igualdade
de todos os membros do corpo social: haverá um homem, ou um grupo, o princípio, que poderá ordenar sem contrapartida
[...] Sem dúvida, em Rousseau, o príncipe só pode ordenar aquilo que a lei havia anteriormente prescrito: mesmo não
tendo contrapartida ‘a jusante’, a lei permanece boa, pelo menos ‘a montante’, enquanto expressão da vontade geral”
(JAUME, 2005, p. 189).
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 143

Como conciliar a individualidade com a socialidade? Como garantir o direito de viver com
base nas próprias aspirações ao mesmo tempo que respeita as regras sociais e coopera com elas? O
ser humano quer liberdade, mas também segurança, paz.
As pessoas não vivem em sociedade simplesmente porque querem ou precisam, mas também
porque buscam algo para si, anseiam benefícios próprios. Talvez aqui esteja uma das grandes lições
trazidas pela filosofia contratualista e que ainda hoje auxilia operadores econômicos, políticos e
jurídicos ao conduzir suas equipes: para fazer prevalecer o bem comum, o interesse da equipe, da
organização, é necessário também entender como pensa, o que busca cada individualidade.

Considerações finais
O contratualismo moderno indaga a origem da sociedade, deseja saber por que o homem
vive em comunidade, por que decide, em dado momento, limitar seus comportamentos tendo em
vista as expectativas alheias.
O modo como se dá o contratualismo varia de autor para autor e decorre de qual visão da
natureza humana cada filósofo possui.
O homem é posto pela natureza de um modo, mas depois se adapta às convenções sociais.
Quais dessas convenções são funcionais e quais devem ser aprimoradas? A filosofia contratualista
ajuda a pessoa a indagar melhor seu papel e sua responsabilidade diante da sociedade, de como pode
se construir enquanto pessoa na relação com os outros ao mesmo tempo que age para aperfeiçoar
as regras sociais.

Ampliando seus conhecimentos


• ENSAIO sobre a cegueira. Direção de Fernando Meirelles. Brasil; Canadá; Japão: Rhombus
Media; O2 Filmes; Bee Vine Pictures; Alliance; Ancine; Asmik Ace Entertainment; BNDES;
Cinema Investment; Corus Entertainment; Fox Filmes do Brasil; GAGA; Movie Central
Network; Téléfilm Canada, 2008. (121 min), son., color., 35 mm.
Filme poderoso sobre a sociedade de controle. Oferece material para análise sob a ótica do
pensamento de Hobbes. Importante notar como as relações entre os indivíduos reforçam
o estado de vigilância contínuo e como as estruturas sociais se reforçam à medida que as
pessoas não conseguem conduzir suas vidas.

• A MISSÃO. Direção de Roland Joffé. Reino Unido; França: Warner Bros.; Goldcrest Films
International; Kingsmere Productions Ltd.; Enigma Productions, 1986. (125 min), son.,
color., 35 mm.
História sobre as missões guaraníticas, reduções de povos indígenas que passavam a viver
em comunidades auto-organizadas a partir da orientação jesuítica. O filme é interessante
para compreender o processo de adaptação social, de como a vida em coletividade molda
costumes, modifica comportamentos, de como a individualidade lida com a moral coletiva.
144 Filosofia do Direito

Atividades
1. Thomas Hobbes propõe que um dos principais motivos para viver em sociedade é a garantia
da segurança, dada a guerra de todos contra todos existente no estado de natureza. Acerca
desse argumento, considerando o Estado contemporâneo, qual é a importância da tutela do
Estado para a proteção da segurança do indivíduo?

2. Para John Locke, ao contrário de Hobbes, os indivíduos não vivem em uma guerra entre si,
contudo o convívio em sociedade lhes é mais vantajoso, e, a partir deste e da fundação do
Estado, torna-se possível proteger os bens jurídicos mais importantes: a vida, a liberdade
e a propriedade. Tal espécie de proteção também é objeto de proteção pelos Estados
contemporâneos?

3. Quais são as implicações da diferenciação entre liberdade política e liberdade filosófica, tal
como o fez Montesquieu, na realidade?

4. Característica essencial no Estado construído por O Contrato Social de Rousseau é a concepção


de volonté générale, da vontade geral que conduz esse mesmo Estado. Conceitue vontade geral,
com base no pensamento do filósofo, bem como considere sua relação com a atualidade.

Referências
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A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas 145

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VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. Trad. de Claudia Berliner. São Paulo: Martins
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9
Liberdade interna e externa em Kant

O filósofo David Hume foi fundamental para despertar Kant de seu sono dogmático, pois
a crítica do pensador escocês ao sistema metafísico obrigou o alemão a refundar suas concepções.
Hume teria tentado demonstrar, a partir do empirismo, a desnecessidade de causas metafísicas para
explicar os fenômenos, o que inquietou demasiadamente Kant, de formação baseada na leitura dos
filósofos clássicos e, portanto, sustentado em princípios metafísicos.
Do racionalismo moderno será influenciado pelas ideias inatas de Descartes, que em Kant
repercutirão nos postulados a priori da razão pura. Pela razão pura, o homem é capaz de conhecer
sem a necessidade de algo empírico, de um conhecimento advindo do externo.
Da revolução científica receberá a noção de empiria, isto é, para o filósofo, com as revoluções
científicas modernas, a Física e a Matemática se tornaram solos seguros para o conhecimento,
ao contrário do que ainda ocorria na metafísica. Quando o homem conhece, não o faz somente
passivamente, mas também construtivamente, pois conhece algo que ele mesmo pôs aos dados
fornecidos pela faculdade da sensibilidade.
A afirmação de Hume de que aquilo que entendemos como fenômeno de causa e efeito no fundo
não passaria de uma sensação ou imaginação nossa provocou em Kant as dúvidas que o conduziram a
reformular e conceber uma nova sistemática filosófica. Ou Kant refutaria também a metafísica, e com
isso também as ideias a priori, ou teria que elaborar uma nova argumentação a favor da metafísica.
O resultado dessas investigações intelectuais serão suas grandes obras: Crítica da Razão Pura (1781),
Crítica da Razão Prática (1788), Crítica da Faculdade do Juízo (1790), Fundamentação da Metafísica
dos Costumes (1785) e a Metafísica dos Costumes (1797). A moral e o Direito, como veremos, é também
resultado desse esforço. Outra influência forte de Hume em Kant é percebida em seu viés ceticista,
isto é, a postura de duvidar e necessitar comprovar cada argumento como realmente sendo capaz de
ser demonstrado, o que se faz tanto pela empiria como pelo raciocínio.
Por fim, o Iluminismo francês exercerá grande influência em Kant na perspectiva da
necessidade de autonomia, de pensar e agir por si mesmo, de formular leis e obedecê-las mediante
a própria vontade. Como veremos adiante, a autonomia e a liberdade são conceitos essenciais para
a filosofia crítica kantiana.

9.1 A crítica kantiana – juízos a priori e a posteriori,


analíticos e sintéticos
Immanuel Kant nasceu em 1724, em Königsberg, Prússia (hoje Alemanha), cidade que
habitou por toda a sua vida. A primeira fase de sua trajetória, que vai da graduação em Königsberg
à sua estreia como professor na mesma universidade, é marcada pelos estudos sobre metafísica da
natureza, sustentados no racionalismo moderno, sobretudo em Descartes e Leibniz, e na revolução
148 Filosofia do Direito

científica iniciada por Nicolau Copérnico. É nesse período que alcança sucesso com suas primeiras
teses, como A verdadeira avaliação das forças vivas (1747), e a dissertação De mundi sensibilis
atque intelligibilis forma et principiis (Sobre a forma e os princípios do mundo sensível e do mundo
inteligível) (1770).
Kant inicia a fase que a história da Filosofia consagrou como idealismo alemão, um avanço
nas análises relacionadas à metafísica, à busca pelas ideias transcendentais, nas grandes investigações
acerca de conceitos como espaço, tempo, alma e Deus. Contudo esse retorno somente foi possível
porque antes o pensador alemão teve que recorrer à utilização de seu criticismo para fundamentar
a metafísica. Por sua vez, a crítica kantiana é a fase em que o filósofo passou a estudar os limites
do conhecimento humano, esforço que o levaria a refletir tanto acerca dos raciocínios como da
utilização da empiria. Nessa fase, Kant passa a buscar os fundamentos últimos para as grandes
questões da existência, tais como o conhecimento, a moral, a estética e a justiça.
O idealismo kantiano trabalha na concepção de que o conhecer é dar forma a uma matéria
dada, no sentido de que a matéria é inerente ao próprio objeto, e forma é a participação do sujeito
nesse processo de conhecer. Para o conhecimento ser válido, a forma que o sujeito atribui ao objeto
deverá ser encontrada em todos os objetos e por todos os sujeitos (MACEDO JÚNIOR, 2008).
Nisso, alcançamos a primeira distinção fundamental: conhecimentos a priori e a posteriori. Os
primeiros são aqueles que estão conforme as formas dadas pela mente do sujeito; já os a posteriori
relacionam-se à empiria, ao conhecimento sensível. O problema é que o sensível é contingente, ou
seja, podemos saber que algo é desse modo, mas não que ele não possa ser de outro modo. Dessa
forma, é necessário que a razão revele seus conhecimentos a priori, porque somente estes abarcam os
universais e estão livres do contingencial. Um exemplo que afirma essa necessidade são os conceitos
de espaço e tempo, pois é impensável um objeto sensível sem essas condições, de forma que mesmo
os objetos sensíveis possuem antes algo a priori.
O raciocínio kantiano prossegue, distinguindo agora os juízos analíticos dos sintéticos.
O juízo analítico é o que se limita a explanar um conceito, analisar-lhe o
conteúdo, sem fazer apelo a qualquer elemento novo. O predicado, nesse caso,
é extraído do sujeito por simples análise. [...] O juízo sintético, ao contrário, é
um juízo cujo predicado acrescenta algo sobre o conceito do sujeito. [...] Todo
juízo de experiência é sintético, pois ele nos ensina a acrescentar atributos aos
nossos conceitos. Todos os juízos analíticos, pelo contrário, são a priori, visto
que independem da experiência. (MACEDO JÚNIOR, 2008, p. 434-435)

Em linhas gerais, então, poderíamos diferenciar os juízos analíticos como aqueles que
se limitam a analisar o objeto, sem nada a acrescentar-lhe, apenas decompondo o conceito e
trabalhando as ideias que já estão pensadas nele. Já os juízos sintéticos baseiam-se na experiência,
tal como no próprio exemplo trazido por Kant na afirmação “todos os corpos são pesados”. Nesse
caso estaríamos acrescentando algo do sujeito ao objeto, pois não há como se afirmar isso a não ser
pela via da experiência. Essa distinção também resulta que os juízos analíticos são a priori, porque
não dependem da experiência, enquanto os sintéticos são a posteriori. Os juízos analíticos alcançam
o universal, mas os juízos sintéticos permitem a ampliação do conhecimento, pela inclusão de dados
novos. Vejamos como o filósofo auxilia na distinção utilizando-se ainda de exemplos:
Liberdade interna e externa em Kant 149

Juízos da experiência como tais são todos sintéticos. Com efeito, seria absurdo
fundar um juízo analítico sobre a experiência, pois para formar o juízo de modo
algum preciso sair do meu conceito nem, portanto, de testemunho algum da
experiência. Que um corpo seja extenso, é uma proposição certa a priori e
não um juízo de experiência. Pois antes de recorrer à experiência já possuo no
conceito todas as condições para o meu juízo, conceito do qual posso extrair o
predicado segundo o princípio de contradição e com isso tornar-se ao mesmo
tempo consciente da necessidade do juízo, coisa que a experiência nunca me
ensinaria. Do contrário, embora já não inclua no conceito de um corpo em geral
o predicado peso, esse conceito designa um objeto da experiência mediante
uma das partes da mesma experiência como pertencentes ao primeiro conceito.
Posso conhecer antes analiticamente o conceito de corpo pelas características da
extensão, da impenetrabilidade, da forma etc., todas pensadas nesse conceito.
(KANT, 1996, p. 58-59)

Contudo o pensamento kantiano encontrou ainda um terceiro tipo de juízo, que combina
os dois anteriores nos juízos sintéticos a priori. É um juízo universal, como o analítico, e que amplia
conhecimentos, como os sintéticos. Kant aprendeu esse juízo com a revolução científica copernicana e
o extraiu da Física e da Matemática. Ele dá o exemplo da Geometria, na qual os juízos sintéticos a priori
permitem afirmar que a linha reta é a mais curta entre dois pontos. Esse juízo é sintético a priori porque
o conceito de linha não está necessariamente ligado às ideias de curta ou longa, logo, saber que ela é a
mais curta entre dois pontos é mérito da experiência. Vejamos como Kant sustenta que também a Física,
a ciência da natureza, fundamenta-se muitas vezes em juízos sintéticos a priori:
A ciência da natureza (physica) contém em si juízos sintéticos a priori como
princípios. A título de exemplo, quero mencionar apenas algumas proposições
tais como a seguinte: em todas as mudanças do mundo corpóreo a quantidade
da matéria permanece imutável, ou, em toda a comunicação de movimento
ação e reação têm que ser sempre iguais entre si. Em ambas é clara não apenas a
necessidade, por conseguinte a sua origem a priori, mas também o fato de serem
proposições sintéticas. Pois no conceito de matéria penso não a permanência,
mas somente sua presença no espaço pelo preenchimento do mesmo. Portanto,
vou efetivamente além do conceito de matéria para pensar acrescido a priori ao
mesmo algo que não pensara nele. A proposição não é portanto analítica, mas
sintética e não obstante pensada a priori, e assim nas restantes proposições da
parte pura da ciência da natureza. (KANT, 1996, p. 61-62)

Depois de comprovar a utilização dos juízos sintéticos a priori nas ciências naturais, restava,
para Kant, saber se o mesmo raciocínio poderia ser aplicado à metafísica. Para ele, o conhecer tende
ao absoluto, às ideias que são causas e substâncias de todas as coisas, como Deus, alma e mundo.
O problema é que o homem pode somente pensá-las, jamais conhecê-las apropriadamente, porque
necessita também do sensível. Por isso, os objetos são fenômenos, as coisas tais como as conhecemos,
e noúmenos, as coisas em si, que independem do nosso conhecer. Dessa forma, o homem pode
pensar Deus e o mundo como um todo, mas não os conhecer, porque isso implica também a
150 Filosofia do Direito

necessidade de experiência. Conclui-se que Kant não aceita a possibilidade de juízos sintéticos
a priori na metafísica, mas aceita que a metafísica é uma tendência, uma necessidade humana.1
Em seguida, veremos a metafísica kantiana aplicada à moral e ao Direito na Metafísica dos
Costumes, com a formulação de leis a priori para a orientação do espírito.

9.2 O pensamento político e jurídico de Kant


Kant, tal como seus predecessores estudados no capítulo anterior, dedicado aos filósofos
contratualistas, também entende o início da sociedade civil por meio da realização de um contrato
civil. Contudo o filósofo prussiano opera uma passagem fundamental que o distancia dos anteriores:
a postulação metafísica como condição primordial para a construção do Direito, e mesmo do direito
positivo. É na sua obra Metafísica dos Costumes que buscamos suas maiores contribuições para a
Filosofia do Direito.
A Metafísica dos Costumes dá prosseguimento às discussões já iniciadas pela Fundamentação
da Metafísica dos Costumes e pela Crítica da Razão Prática. Para Kant, a metafísica é a sistemática,
é o conhecimento filosófico derivado da razão pura e que pode ser encadeado sistematicamente.
Uma das possibilidades de tais encadeamentos se percebe no uso da razão prática, que corrobora a
metafísica dos costumes. Essa delimitação foi operada por Kant na Crítica da Razão Pura, quando
afirma que a metafísica se divide nos usos especulativo e prático da razão pura, de forma que surgem
a metafísica da natureza e a metafísica dos costumes, respectivamente. Nesta parte do trabalho, é
essencial apresentar algumas questões dessa segunda metafísica, sobre a qual o autor diz o seguinte:
[...] contém os princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer
e o deixar de fazer. Ora, a moralidade é a única conformidade das ações a leis
que podem ser derivadas, de um modo completamente a priori, de princípios.
Em decorrência disso, a metafísica dos costumes é propriamente a moral
pura, a qual não se funda sobre qualquer Antropologia (quaisquer condições
empíricas). (KANT, 1996, p. 497)

A moral kantiana é pura, isto é, concebe-se tão somente sobre princípios a priori, derivados
da razão pura. É da racionalidade que emana a moral, e não de aspectos empíricos ou históricos.
Uma moral empírica, por estar exposta a variações, jamais encontraria fundamentos em princípios
a priori. Por isso Kant articula a moral, e depois também o Direito, em fundamentos metafísicos.
Ainda nessa citação encontramos uma ideia que se tornou basilar na metafísica dos costumes: o
fazer e o deixar de fazer. Essa dicotomia identifica a liberdade de agir sem ser impedido por outros,
o que corrobora a concepção kantiana de Direito como liberdade. Ao coagir outros a deixarem de
fazer algo, o Direito também privilegia a minha liberdade de agir, evitando impedimentos alheios.

1 Sobre a necessidade natural da metafísica para o homem, citemos o próprio Kant: “Não obstante, essa espécie de
conhecimento também pode ser considerada dada em certo sentido, e embora não como ciência, a Metafísica é contudo
real como disposição natural (metaphysica naturalis). Com efeito, sem ser movida pela mera vaidade da erudição, mas
impelida pela sua própria necessidade, a razão humana progride irresistivelmente até perguntas que não podem ser
respondidas por nenhum uso da razão na experiência nem por princípios daí tomados emprestados, e assim alguma
metafísica sempre existiu e continuará a existir realmente em todos os homens, tão logo a razão se estenda neles até a
especulação.“ (KANT, 1995, p. 63).
Liberdade interna e externa em Kant 151

Prosseguindo na análise dos termos metafísica e costumes, observamos o significado do segundo.


Costume deriva do termo alemão sitten, que corresponde ao vocábulo latino mores e ao grego ethos. O
uso grego, como já explicado no primeiro capítulo deste livro, reúne em sua acepção tanto ética como
moral, demonstrando que para aquele povo não havia essa distinção, que é própria do mundo moderno.
Portanto costumes, em geral, retratam a necessidade de sistematizar o agir humano, estabelecendo
regras para suas condutas.
Retomando a divisão entre metafísica da natureza e metafísica dos costumes, há aqui uma
diferenciação fundamental. A metafísica dos costumes rege-se pela razão prática e tem em vista
ações práticas, enquanto a metafísica da natureza rege-se pela razão pura e tem em vista questões
teóricas, o conhecimento em si. A metafísica dos costumes permite a existência dos imperativos, que
impõem uma obrigação de agir de determinado modo, um dever, uma ação que busca determinado
fim. Por outro lado, a metafísica da natureza não se baseia no dever-ser (Sollen), mas no ser, não
se preocupa com o que as coisas devem ser ou como devem agir, mas como elas são, o que são. A
metafísica dos costumes direciona-se ao agir, enquanto a metafísica da natureza, ao ser.
Antes de adentrarmos os imperativos categóricos, é importante ressaltar que a metafísica dos
costumes tem como fim a liberdade, que para Kant viria justamente na formulação de leis universais
e racionais.2 Interessa acrescentar, ainda, que a Metafísica dos Costumes divide-se em duas partes,
que buscam delimitar os princípios metafísicos da doutrina do Direito e os princípios metafísicos da
doutrina da virtude. A primeira parte é mais voltada aos juristas, pois analisa os aspectos formais do
livre-arbítrio a serem cerceados pelas leis da liberdade nas relações externas; já a segunda trata mais
especificamente da ética, que possui princípios metafísicos próprios, além de conter a finalidade da
razão prática. Resultado disso é que na legislação jurídica a obrigatoriedade em relação à lei é uma
coerção externa, enquanto na ética a coerção é interna, pois está ligada a princípios metafísicos que
o indivíduo sabe que deve seguir, e não necessariamente normas positivadas em códigos.
Por fim, a distinção entre doutrina do Direito e doutrina da virtude, ou entre Direito e Ética,
na Metafísica dos Costumes, segue a mesma lógica da divisão da metafísica da natureza, que possui
uma parte transcendental que trata das leis que abarcam os objetos em geral, sem se ater a esse ou
aquele, e de outra parte, que investiga a natureza particular desse ou daquele objeto. A primeira
possui postulados metafísicos, enquanto a segunda se situa no plano empírico (LOPARIC, 2003).
A metafísica da natureza procura demonstrar que existem pressupostos a priori que devem ser
seguidos pela pesquisa científica empírica. De forma análoga, a metafísica dos costumes tem como
objetivo demonstrar como o agir humano apresenta regras a priori que são, inclusive, anteriores às
leis jurídicas.3

2 Tradução livre: “Qualquer ação é conforme ao direito quando por meio dessa, ou segundo a sua máxima, a liberdade
do arbítrio de todos pode coexistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal” (KANT, 2004, p. 35).
3 Com tais princípios a priori, Zeljko afirma que Kant busca resolver também de forma a priori todos os problemas
que envolvem o uso externo da nossa liberdade. Tal situação não teria como fim apenas as relações entre os homens,
mas entre os próprios Estados. “O fim último visado por esse tipo de legislação é a realização da paz perpétua entre
estados nacionais, governados, internamente, por constituições maximamente conforme às exigências do direito natural
e, externamente, pelas regras, também racionais, de uma confederação mundial – um estado das coisas humanas que
é, ao mesmo tempo, o elemento central do fim último da história do gênero humano” (LOPARIC, 2003, p. 314).
152 Filosofia do Direito

Entretanto, embora haja essa aproximação, em outro aspecto as duas metafísicas se distanciam.
A metafísica da natureza está no plano do ser, enquanto a metafísica dos costumes situa-se no
plano do dever-ser (Sollen). Essa diferenciação torna-se mais evidente com a exposição sobre os
imperativos categóricos, delimitados por Kant na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

9.3 Os imperativos categóricos na metafísica dos costumes


Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant afirma que nesta obra busca os princípios
supremos da moralidade, que se fundamentam essencialmente na ideia de boa vontade, o único bem
no mundo que é bom em si mesmo, livre de qualquer contingência. “Nem neste mundo nem fora
dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só
coisa: uma boa vontade” (KANT, 2006, p. 21). E a boa vontade seria justamente o agir pelo dever,
não o agir conforme o dever, mas tão somente pelo dever4. A distinção é importante aqui: quando
agimos conforme o dever, sempre temos uma finalidade em vista, ou seja, qualquer ação boa, quando
praticada por interesses, desvirtua-se do dever. Mesmo a caridade, quando tem interesse, seja ele
qual for, reputação, vaidade, carência, entre outras possibilidades, cria uma finalidade na ação,
retirando dela toda a pureza. Isso é agir conforme o dever. O agir pelo dever é o agir simplesmente
pela razão, sem qualquer interesse ou finalidade nela; uma pessoa faz algo porque a razão impera, e
não por qualquer outra coisa. É um agir prático. Coloca-se acima das simples opiniões e preferências
contingenciais para agir pela razão. Nisso consiste a pureza da intenção, o agir prescindido de
qualquer finalidade. Por isso, o dever seria a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei.
Disso decorre também que devemos obedecer a lei não por seu conteúdo, mas simplesmente
pelo dever de obedecer. A moral kantiana, portanto, assenta-se no modo de como as ações devem
ser, e não naquilo que as coisas são. Pela mesma razão, também extrai sua moral da metafísica de
ideias a priori captadas somente pela razão, e não pela experiência.
Como podemos ver, a base da razão prática kantiana é a vontade, porque somente ela pode
condicionar uma ação a uma lei. Todas as coisas são regidas por leis, quando observamos as leis
físicas e químicas, por exemplo. A vontade está relacionada diretamente à questão das regras que a
condicionam a agir de determinado modo. Como a vontade é uma razão prática, é na razão que deverá
encontrar suas regras,5 que, para Kant, são justamente os imperativos, que servem de leis, ou princípios
racionais, a todo agir que tem em vista um agir universal. Kant distingue dois tipos de imperativos: o
hipotético e o categórico.

4 “A boa vontade não é boa pelo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas
tão somente pelo querer, isto é, em si mesma. E considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais elevado
do que tudo o que por meio dela puder ser alcançado em proveito de qualquer inclinação ou, se quiser, da soma de todas
as inclinações” (KANT, 2006, p. 22).
5 “Cada coisa na natureza atua segundo certas leis. Só um ser racional possui a capacidade de agir segundo a
representação das leis, isto é, por princípios, ou, só ele possui uma vontade. Como para derivar as ações das leis se
exige a razão, a vontade outra coisa não é senão a razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, então
as ações de tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, ou
seja, a vontade é a faculdade de não escolher nada mais que a razão, independentemente da inclinação: conhece-a como
praticamente necessária, quer dizer, como algo bom” (KANT, 2006, p. 43).
Liberdade interna e externa em Kant 153

Os imperativos hipotéticos são aqueles que buscam algum fim determinado, como alcançar
um certo resultado ou mesmo alcançar bens maiores, por exemplo, a felicidade. Dessa forma, os
imperativos hipotéticos estão sempre condicionados, estão sempre ligados a determinado fim.
Bastante diferentes são os imperativos categóricos, que afirmam que algumas ações são necessárias
em si mesmas, livres de qualquer condicionamento. Não se persegue qualquer fim nos imperativos
categóricos, mas os imperativos por si mesmos. Os imperativos categóricos não nos apresentam um fim
exterior, um resultado, mas somente o agir pelo dever-ser, que é exatamente o agir conforme uma lei geral.
Importante notar aqui que os imperativos hipotéticos são juízos analíticos, porque decompõem
o fim em vários meios. Ou seja, eu quero determinado resultado, determinado fim, mas para isso
preciso fazer tais coisas, praticar tais atos, realizar tais ações.
Por outro lado, os imperativos categóricos não estão ligados a qualquer fim, por isso não
permitem a decomposição em partes menores e também por isso devem ser entendidos como juízos
sintéticos a priori. Quando temos um imperativo categórico, é possível de imediato conhecer o seu
conteúdo, porque ele é livre, por ter o fim em si mesmo. Esse imediatismo funciona como a intuição
dos juízos sintéticos a priori já discutidos na Crítica da Razão Pura.
O conteúdo dos imperativos categóricos é a universalidade e a necessidade de se obedecer
às leis em geral, a tal ponto que ele pode ser formulado como o “age só segundo máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2006, p. 51). Uma formulação
semelhante do mesmo enunciado resultará no princípio da autonomia da vontade: “age como se
a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (KANT,
2006, p. 52). Em outras palavras, está lançado o princípio de que o homem é o único que pode agir
conforme as suas leis, no qual se fundamenta o princípio da autonomia da vontade6, que é aquele
em que devemos obedecer somente às leis que formulamos7. Aqui torna-se bastante evidente a
influência iluminista em Kant, na necessidade de se orientar conforme as próprias leis – é a ideia
de autonomia, de esclarecimento, do alemão Aufklärung, que traduz o Iluminismo dos franceses.
Delineada a distinção entre imperativos hipotéticos e categóricos, e compreendida a
fundamental importância dos imperativos categóricos para a filosofia kantiana, vejamos como ele
se dá na discussão da moral e do Direito.

6 O princípio da autonomia da vontade se revestirá de enorme importância no ordenamento jurídico brasileiro atual,
representando papel fundamental tanto na Constituição Federal de 1988 como sendo um dos pilares da teoria geral dos
direitos contratuais, que afirma que somente posso aderir a um contrato se a minha vontade assim o querer. No primeiro
caso, quando falamos da Constituição, pode ser aplicada a qualquer lei, a partir da ideia de um princípio democrático.
Pela autonomia da vontade, nós sabemos que devemos obedecer às leis porque nós as colocamos lá, já que somente
precisamos obedecer a o que a nossa razão assim o pensa. Em um regime democrático, entende-se que as leis são
postas pelo povo, pelas regras que esse sistema condiciona, de forma que as leis democráticas seriam sempre leis
postas pelos indivíduos, logo necessárias de serem obedecidas simplesmente por dever-ser. Tal princípio, ainda, é
uma das bases de todo o direito privado, tendo como exemplo o direito contratual, no qual é mais evidente sua função
(NORONHA, 2005).
7 A leitura de um pequeno texto de Kant, intitulado “Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?”, é essencial
não somente para compreender o sistema filosófico kantiano mas também o próprio período histórico vivido pelo
autor. Nesse texto, Kant enfatiza a necessidade de o indivíduo passar a pensar e agir por si mesmo, livre de qualquer
paternalismo. O texto também apresenta a enorme influência das ideias iluministas no pensamento kantiano. O termo
Esclarecimento refere-se à expressão Aufklärung, termo alemão que identifica o Iluminismo (KANT, 2003).
154 Filosofia do Direito

9.4 Ética e Direito


Na Metafísica dos Costumes, Kant conceitua e delimita as áreas abrangidas pelo Direito e pela
ética, identificando dessa forma que o homem obedece a duas leis: uma lei interna e uma lei externa.
A lei interna é a moral, ou a ética, e a lei externa é o Direito. Kant utiliza a construção paralela desses
dois conceitos para fundamentar a liberdade humana.
A lei interna identifica liberdade porque está ligada aos postulados racionais da metafísica
dos costumes. Para Kant, como já vimos, todo homem já é dotado de uma vontade boa, ou seja,
de uma inclinação a praticar boas ações. A moral interna do indivíduo se articula por meio dos
imperativos categóricos. Importante notar que liberdade, para Kant, não está ligada essencialmente
a uma ausência de coação exterior, mas à condição de agir conforme a lei interna da razão. Partindo
da inclinação humana às boas ações, Kant constrói um sistema que permite a formulação de leis
universais, que seriam aquelas leis que qualquer humano, devido à sua capacidade racional, é capaz
de entender como uma obrigação a ser seguida. Não se obedece a essa lei por capricho, desejo ou
opinião subjetiva, mas por um dever interno, postulado pela razão.
Já a lei externa, por sua vez, fundamenta a legalidade, por ser a faculdade do agir no mundo
externo. A lei externa traz consigo também a liberdade externa, pois fundamenta a ausência de
obstáculos dos outros para com as próprias ações de quem as realiza. Sendo todos os homens livres
tanto interna como externamente, não podemos ter impedimentos provindos de outrem para com
as nossas ações. Dessa ideia de lei como condição para a liberdade surge o conceito kantiano de
Direito, que seria a “restrição da liberdade de cada indivíduo para que se harmonize para com todos
os outros” (KANT, 2006, p. 78). Direito é algo conhecido pela razão a priori por todos e por cada um.
A moralidade está intimamente ligada aos imperativos categóricos, que são seu fundamento
essencial, aquilo que delimita que a ação não deve perseguir qualquer fim, mas somente o dever-ser
(Sollen). Agora, onde delimitaríamos a distinção entre moral e Direito? Ou melhor, que elementos
compõem o Direito e o separam da moral?
Para Kant, são três os elementos que compõem o Direito. Primeiro, o Direito baseia-se nas
relações externas, nas relações de uma pessoa com outra, de forma que ambas se influenciam
reciprocamente. Segundo, o Direito não se relaciona ao desejo do outro, que condicionaria a
necessidade da relação, mas apenas ao arbítrio. E, por fim, como terceiro elemento, essa relação
recíproca entre os arbítrios deve ocorrer de tal forma que a ação de um não interfira na liberdade
do outro, segundo uma lei universal.
Retomemos os três elementos, apontando como eles diferenciam o Direito da moral. O
primeiro afirma a necessidade de haver mais de uma pessoa, e isso basear-se em relações externas.
A moral não implica a necessidade de mais de uma pessoa, pois ela pode perseguir um fim que não
a envolva com mais ninguém. Já o Direito se dá na sociedade, na sociabilidade, logo, implica mais
indivíduos. Não obstante, no Direito as relações não são exclusivamente externas, porque o próprio
dever-ser (Sollen) de obedecer a um contrato externo fundamenta-se em uma lei interna. Portanto
a moral é somente interna, enquanto o Direito é externo, mas também interno.
Liberdade interna e externa em Kant 155

O segundo elemento diz que o Direito vincula arbítrios, e não desejos. O arbítrio está ligado
à vontade e se relaciona ao agir conforme a lei, enquanto o desejo, em muitos casos, está vinculado
a questões emocionais, subjetivas, que passam longe do Direito.
Por fim, o terceiro elemento identifica que a minha ação não pode nunca interferir na
liberdade do outro. É o conflito entre coerção e arbítrio. Porém, como os indivíduos obedecem a
leis universais, que eles mesmos formularam segundo princípios universais, não são eles coagidos
a obedecer, mas sim a exercer sua liberdade, sua autonomia. Na moral a ação de alguém não é
limitada pelo outro, porque esse alguém a exerce segundo sua própria razão de agir. No Direito,
mesmo a ação de alguém é limitada pela liberdade do outro. Certamente, tal como já demonstrado
no conceito kantiano de Direito, essa restrição está inserida na liberdade e autonomia da vontade,
pois o Direito, mais do que coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo, impede o outro de interferir
na liberdade de qualquer pessoa.
Após apresentar e explicitar os três elementos que compõem o conceito kantiano de Direito,
entendemos a noção formalista kantiana de Direito. É uma noção formalista porque pressupõe que as
leis, quando emanadas de uma razão conforme princípios universais, podem harmonizar os arbítrios
dos indivíduos, impedindo que a ação de um prejudique a liberdade do outro. É daqui que emana
o seu imperativo categórico da justiça, também apresentado como Princípio Universal do Direito:
“Uma ação é conforme o Direito quando por meio desta, ou segundo a sua máxima, a liberdade do
arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal” (KANT, 2006,
p. 35). Percebemos como o formalismo kantiano sustenta-se em um direito positivista. O Direito
seria um complexo de leis e regras positivas, formuladas a partir de imperativos categóricos, dos
princípios puros do Direito, de forma que podem harmonizar os arbítrios dos indivíduos, impedindo
que qualquer um deles possa coagir o outro a infringir a própria liberdade. Esse sistema kantiano
pretende envolver tanto a esfera do universal, das relações em geral, como do individual. Ou seja,
ao mesmo tempo que pretende desenvolver a sociabilidade na sociedade, procura impedir a coação
coletiva sobre o indivíduo, pois cada um formulou as leis conforme a razão prática, da qual emanam
princípios universais.
Chegada a essa noção de sociabilidade, passemos ao momento de estudar a concepção
kantiana para Estado, que é o ente maior que controla todo esse complexo de normas positivadas.

9.5 O Estado
Assim como para os predecessores, Kant entende o Estado como um contrato, um pacto entre
os indivíduos. O Estado é o ente público que não é patrimônio de ninguém, mas de todos, por isso,
tem em vista as questões universais.
O Estado não se formula em Kant segundo dados históricos, antropológicos, ou algum
raciocínio teológico, mas como uma necessidade racional (KANT, 2006). São os juízos sintéticos
a priori que fundamentam o Estado. Sem o Estado, seria impensável a vida civil, pois o homem
estaria ainda envolvido no estado de natureza, de forma que ainda que ele contenha a boa vontade,
inevitavelmente, em algum momento, resultaria em uma guerra entre todos, ou seja, uma ameaça
156 Filosofia do Direito

permanente àquela já trazida por Hobbes, embora Kant em momento algum entenda o homem
como o lobo do homem.
Somente no Estado a igualdade, a estabilidade e a paz entre os homens são possíveis. Nesse
sentido, o surgimento do Estado é uma formulação racional humana, e não uma busca por interesses.
Pelos princípios puros do Direito, cada homem entende que possui alguns direitos que derivam da
própria razão e que a razão prática postula na forma dos imperativos categóricos. Contudo esses
direitos precisam ser efetivados e apenas em uma sociedade civil eles podem alcançar tais status.
Sem o Estado, é impensável uma proteção legal, jurídica desses direitos. Com efeito, o Estado deriva
dos postulados racionais iniciados por juízos sintéticos a priori, e não por desenvolvimento histórico
ou necessidade. Para Kant, é dever do homem chegar ao Estado pela razão prática.

9.6 A justiça para Kant


A justiça em Kant contempla outros conceitos, como liberdade, autonomia e paz, todos já
trabalhados aqui. O homem possui uma liberdade interna fundada na moral e em juízos a priori
e tem o direito de não ser coagido a agir contra ela, o qual fundamenta-se na liberdade externa.
Nesse sentido, a justiça é a fruição dessa liberdade externa, garantindo liberdade interna, autonomia,
igualdade e paz entre os homens. Na justiça, não há ofensa à liberdade externa do outro, todos
interagem em harmonia. Conforme Kant (2003, p. 407): “É justa toda a ação que por si, ou por
sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a
liberdade e cada um segundo leis universais”. Em outras palavras, a justiça ocorre quando cada um
pode exercer tanto a liberdade externa como a liberdade interna, segundo as leis universais.
A ordem jurídica de Kant é uma ordem que se baseia na proteção à liberdade, tanto interna
como externa, e é nela que deve ser concebido o dever-ser (Sollen). Sendo assim, retirar a oposição
à liberdade é proteger e exercer a liberdade.
É importante trazer que a filosofia kantiana exerce influência no Direito contemporâneo,
pois vários sistemas jurídicos da atualidade possuem por base a ideia de dever-ser do filósofo
alemão. Na Metafísica dos Costumes, Kant divide o sistema jurídico em Direito privado e Direito
público – o primeiro contempla ainda direitos como os pessoais e os reais, e o segundo traz o
direito estatal, o direito das gentes e o direito cosmopolita.
A filosofia kantiana possibilita inúmeras reflexões que podem contribuir enormemente com
as questões contemporâneas. Uma delas é a distinção entre as liberdades interna e externa. Tanto
o Estado como as demais instituições devem funcionar de forma que as leis e as ações dos órgãos
públicos não prejudiquem a liberdade individual de cada cidadão, ao mesmo tempo que se mantém
a ordem externa. Nesse sentido, Kant segue a tradição iluminista de reclamar para o indivíduo o
direito à liberdade não apenas externa, mas também interna.

Considerações finais
Kant ressalta o papel do indivíduo enquanto ser moral e racional, capaz de conhecer dimensões
da realidade e identificar as condutas adequadas para si a cada momento. Em Kant observamos a
Liberdade interna e externa em Kant 157

convicção de que o ser humano, quando coerente consigo, pode saber o que deve e o que não deve
fazer, como se comportar diante dos outros e da sociedade, o que precisa buscar para si na existência.
No entanto, tudo isso depende de um profundo exercício de autonomia intelectual e moral, de se
tornar apto a colher, a partir dos instrumentos racionais, o que é correto em cada situação. Em
Kant, as leis e as instituições poderiam ser mais funcionais se antes os indivíduos fossem mais
adequados no uso da própria racionalidade. Isso tudo relembra ao operador social, do jurista ao
líder econômico, que deve se atentar aos próprios pensamentos, aos próprios juízos, verificando a
cada momento se a racionalidade está em coerência com o real externo ou desabando em fantasias
e opiniões subjetivas que não retratam aquilo que o mundo projeta naquele contexto.

Ampliando seus conhecimentos


• O INFORMANTE. Direção de Michael Mann. Estados Unidos: Touchstone Pictures
(presents); Forward Pass, 1999. (157 min), son., color., 35 mm.
Filme sobre o dilema moral de seguir a indústria para a qual trabalha ou atender interesses
sociais. Traz uma história envolvendo o ramo de tabaco para propor discussões sobre
moralidade e responsabilidade individual perante o coletivo. Interessante a combinação
do pensamento kantiano com a abordagem do filme.

• A CAÇA. Direção de Thomas Vinterberg. Dinamarca; Suécia: Zentropa Entertainments,


2012. (115 min), son., color., 35 mm.
Um homem é acusado e inocentado de abuso sexual de menores na escola em que
trabalhava. No entanto, mesmo a inocência na esfera jurídica não livra o protagonista de
imensas dificuldades na vida social comunitária. A abordagem kantiana do direito e da
moral com âmbitos distintos pode ser melhor esclarecida com este filme.

Atividades
1. A partir da postura crítica de Kant para com a metafísica, ele revisa a metafísica clássica, concebendo
a impossibilidade de alcançar as causas das causas e ideias como Deus e alma. Analise a questão
comparando com a visão dos filósofos medievais, já discutidos no capítulo 6.

2. Demonstre algumas implicações da ideia de agir pelo dever de obedecer a leis universais sem
ter interesses em vista, relacionando com situações da vida em geral.

3. O Direito é baseado na liberdade, e não na coação, segundo Kant. Elabore um exercício


crítico sobre essa questão, analisando se, no Brasil atual, o Direito é instrumento de liberdade
ou de coação.

4. De acordo com o princípio da autonomia da vontade, eu somente obedeço a leis formuladas


por mim mesmo, conforme princípios universais, os imperativos categóricos. Interprete esse
158 Filosofia do Direito

princípio relacionando com sua utilização no Direito atual, comparando se as legislações de


hoje de fato trazem a vontade do indivíduo ou não. Lembre-se que o indivíduo imaginado por
Kant é autônomo, plenamente consciente das leis que obedece.

Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. rev. São Paulo: Atlas, 2008.

KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. de Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. de: Valerio Rohden; Udo B. Moosburger. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003.

KANT, Immanuel. La Metafisica dei Costumi. Trad. de Giovanni Vidari. Roma-Bari: Laterza, 2004.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros Escritos. Trad. de Leopoldo Holzbach.
São Paulo: Martin Claret, 2006.

LOPARIC, Zeljko. As duas metafísicas de Kant. In: OLIVEIRA, Nythamar Fernandes; SOUSA, Draiton
Gonzaga de (org.). Justiça e Política: homenagem a Ottfried Höffe. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Kant e a crítica da razão: moral e Direito. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo
Porto. Curso de Filosofia Política: do nascimento da Filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008.

NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva 1994.
10
Direito e Política na Dialética de Hegel

O idealismo alemão, que se inicia com Kant, tem em Hegel sua face mais desenvolvida,
pois, em seu sistema filosófico, de fato a ideia (Idee) ocupa lugar central em todas as dialéticas,
conforme anuncia logo no início da última seção da sua Ciência da Lógica, obra em que apresenta
o desenvolvimento lógico e ontológico de sua filosofia: “a Ideia é o conceito adequado, o verdadeiro
objetivo, ou seja, o verdadeiro como tal. Se algo tem verdade, tem por meio sua Ideia, ou seja, algo
tem verdade apenas enquanto é Ideia” (HEGEL, 1968, p. 471). Para Hegel, a ideia não é apenas
uma concepção teleológica1, mas aquilo que dá validade ao conhecimento racional. A ideia está em
toda a sua filosofia, de forma que as questões éticas, políticas e jurídicas, objeto da sua obra Linhas
Fundamentais da Filosofia do Direito, têm como objetivo a realização da ideia de liberdade, aquilo
que ele denomina como eticidade (Sittlichkeit).
O sistema hegeliano está apresentado na sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, obra em que
cataloga todos os estudos anteriores em um compêndio que serve para apresentar sistematicamente
seu pensamento. A enciclopédia é dividida em três volumes: a Ciência da Lógica, a Filosofia da
Natureza e a Filosofia do Espírito. A Filosofia do Espírito, por sua vez, está dividida em três seções:
o Espírito subjetivo, o Espírito objetivo, o Espírito absoluto. O espírito deve manifestar no mundo a
ideia, ou seja, deve efetivar na prática aquilo que já é no conceito. O Espírito subjetivo apresenta três
momentos: a Antropologia, a Fenomenologia e a Psicologia. O Espírito objetivo traz o Direito Político
Interno, o Direito Político Externo e a História Universal. Por fim, o Espírito absoluto se manifesta
por meio da Arte, da Religião e da Filosofia.
Como o objetivo deste livro está situado no campo da Filosofia do Direito, as análises serão
relativas ao Espírito objetivo, em particular ao Direito Político Interno, que se divide ainda em direito
abstrato, moralidade e eticidade. Contudo, antes de entrarmos especificamente na Filosofia do
Direito, é necessário resgatar entendimentos de obras anteriores, uma vez que o Direito é temática
fundamental do discurso hegeliano desde sua juventude. Em especial, retornaremos à Fenomenologia
do Espírito, obra em que Hegel apresenta a formação do indivíduo, desde seu estágio mais inculto
até o saber absoluto. Essa leitura é importante, porque acompanhar alguns momentos pelos quais
atravessa a consciência na Fenomenologia auxilia a compreender o papel do indivíduo na Filosofia
do Direito.

10.1 A Fenomenologia do Espírito


A Fenomenologia do Espírito é considerada a primeira grande obra hegeliana, escrita após
vários trabalhos que o autor desenvolveu durante a juventude. Trata-se de uma obra enigmática, pois
trabalha inúmeras temáticas simultaneamente, o que a torna uma leitura ainda mais complexa. A

1 Segundo a teleologia hegeliana, o processo histórico da humanidade é explicável como um trajeto em direção a uma
finalidade que, em última instância, é a realização plena e exequível do espírito humano (HOUAISS, 2001).
160 Filosofia do Direito

proposta da obra é apresentada logo no prefácio: “A tarefa de conduzir o indivíduo, desde seu estado
inculto até o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de considerar o indivíduo
universal, o espírito consciente-de-si em sua manifestação cultural” (HEGEL, 2002, p. 41). Logo a
seguir complementa a sentença explicando o porquê do indivíduo universal: “O indivíduo particular
é o espírito incompleto, uma figura concreta: uma só determinidade predomina em todo o seu ser
– enquanto outras determinidades só ocorrem com seus traços rasurados” (HEGEL, 2002, p. 41).
Ou seja, Hegel pretende conduzir o indivíduo desde seu estágio mais primitivo, aquele do estado
inculto, até o saber absoluto. Não se trata de formar apenas o indivíduo singular, e sim o universal,
porque o objetivo é formar a humanidade em geral. Isso se torna mais claro quando observamos
a estrutura da Fenomenologia, que é dividida em duas partes: a primeira, que trata da “Ciência
da experiência da consciência”, ou seja, trabalha o indivíduo singular em suas várias dimensões
(intelectuais, existenciais, morais, religiosas, jurídicas, entre outras); e a segunda, intitulada Espírito,
que representa a passagem do indivíduo singular ao indivíduo universal, da consciência de si
singular à consciência de si universal. No Espírito não se trabalha este ou aquele indivíduo, mas
a universalidade representada na figura da comunidade e manifestada por meio dos costumes e
da história. Neste capítulo, vamos nos dedicar a analisar algumas passagens das experiências da
consciência, pois o indivíduo universal poderá ser trabalhado também na Filosofia do Direito.
Hegel denomina como experiência da consciência cada momento enfrentado pela consciência
em seu processo de formação. Esse processo passa pela consciência, estágio imediato no qual a
consciência é apenas teórica, e busca analisar o mundo externo, construir métodos e instrumentos
que possam ajudá-la na tarefa de entender o mundo. Para isso, passa pelas experiências da certeza
sensível, da percepção e do entendimento. Na certeza sensível, ela confirma a existência de um
objeto, afirma que “isto é” ou “isto existe”; na percepção, atribui qualidades a esse objeto, “é verde”,
“é salgado”; e, no entendimento, busca conceituar o objeto, tenta entendê-lo por meio de leis
universais. Porém mesmo essa última passagem não completa o seu objetivo, pois a consciência
teórica cai na incerteza quanto à sua possibilidade de conhecer o objeto. Tal incerteza conduz a
consciência para o momento seguinte: a consciência de si.
É importante fazer algumas considerações sobre essa questão de superação dos momentos,
por ser algo que será presenciado em toda a filosofia hegeliana, e não apenas na Fenomenologia.
Para Hegel, tudo está em constante atualização, nada é acabado, pois, como afirmam Lefebvre e
Macherey (1994), a filosofia de Hegel é também a filosofia do “ainda não”. Essa constante atualização
é identificada pela expressão alemã aufheben, que pode ser traduzida por suspender, no sentido
de que é tanto conservar como atualizar, isto é, não é um simples processo de negação, em que um
momento supera o anterior, aniquilando-o. O significado de aufheben identifica que em Hegel
cada momento é superado pelo seguinte, mas seu conteúdo permanece consigo nesse movimento
dialético, ou seja, nada é perdido, tudo está em constante fluxo.
A filosofia hegeliana compõe um trabalho sistemático no qual cada obra ocupa sua real posição
conforme o movimento dialético. É a totalidade do sistema que permite captar seu pensamento.
Direito e Política na Dialética de Hegel 161

Nesse sentido, a Fenomenologia ocupa um espaço essencial, pois serve como introdução2 às outras
grandes obras – sem esse processo inicial de formação espiritual do indivíduo, não haveria como se
pensar em desenvolvê-lo politicamente, por exemplo. Tal processo de formação cultural encontra
na consciência de si um momento fundamental, pois representa a descoberta da subjetividade e do
autoconhecimento, questões essenciais para o movimento dialético, que sucede mediante a negação
dos momentos anteriores.
Na consciência de si, pela primeira vez, o indivíduo é sujeito e objeto ao mesmo tempo. Isso
porque agora ele não estuda o objeto externo, mas a si mesmo. Esse momento é definido por Hegel
como da “verdade e certeza de si mesmo”. Antes a verdade era somente em si, para um outro, e
não para si mesma. A consciência de si deve mergulhar em si mesma e conhecer sua existência,
para depois voltar-se ao mundo externo. Não obstante, esse mergulhar em si mesma não é uma
experiência teórica, intelectual, mas prática, que se dá na existência, na ação, no plano da vida. “O
ponto de partida da dedução é a oposição entre o saber de si e o saber de um Outro. A consciência
era saber de um Outro, saber do mundo sensível em geral; ao contrário, a consciência de si é saber
de si; exprime-se pela identidade do Eu = Eu – Ich bin Ich” (HYPPOLITE, 1999, p. 170).
A consciência de si precisa sair de si mesma e ir ao mundo, ao outro. Ao mesmo tempo que
procura conhecer o mundo, a consciência busca sua independência. O desejo é a manifestação
que impulsiona a consciência de si a sair de si e percorrer as várias dialéticas na busca de
autoconhecimento e independência. Tais dialéticas são a do reconhecimento, da luta entre senhor
e servo, do trabalho, e da liberdade da consciência de si, que atravessa as figuras do estoicismo,
do ceticismo e da consciência infeliz.
A consciência de si buscará de vários modos satisfazer seus desejos no mundo. Tais desejos
são múltiplos e ascendem conforme a satisfação dos anteriores. Os primeiros são essencialmente
relacionados ao ciclo biológico, como a alimentação. Percebemos como, pelo desejo, a consciência
de si não somente busca conhecer o mundo, mas sobretudo agir nele. Porém este desejo não está
ligado essencialmente ao objeto externo, mas à própria consciência de si. Isso porque mesmo
com a consciência de si satisfazendo seus desejos biológicos, tais desejos continuarão surgindo,
indefinidamente. No fundo, é um anseio da própria consciência de si em conhecer e agir no mundo
para que assim possa experimentar a si mesma.
Esgotados os objetos puramente biológicos, a consciência de si direcionará seus desejos a
outro ser vivo como ela: outra consciência de si. É a dialética do reconhecimento, na qual ambas
as consciências buscarão sair de si e ir em direção ao outro, no desejo de serem reconhecidas. É o
desejo recíproco de reconhecimento, ou seja, a consciência precisa sair de si e tornar-se o outro,
em uma questão de alteridade, porque “somente sou consciência de si quando me faço reconhecer
por outra consciência de si, e se reconheço a outra” (HYPPOLITE, 1999, p. 170). Cada consciência
nega a si mesma para tornar-se outro, o que é o fundamento do para nós.

2 A discussão de que se a Fenomenologia seria a introdução ao sistema ou já a primeira parte do sistema, esta última
fundamentada na exposição sistemática da Enciclopédia, na qual a Fenomenologia surge dentro do “Espírito subjetivo”,
foi objeto de vários comentadores. Importante observar a obra: LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Structures et Mouvement
Dialectique dans la Phénoménologie de L’Esprit de Hegel. Paris: Aubier-Montaigne, 1968.
162 Filosofia do Direito

Para nós, portanto, já está presente o conceito de espírito. Para a consciência, o


que vem-a-ser mais adiante é a experiência do que é o espírito: essa substância
absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber,
das diversas consciências-de-si para si essentes3 – é a unidade das mesmas: Eu,
que é Nós, Nós que é Eu. (HEGEL, 2002, p. 142).

Contudo, por ter que negar a si mesma, a consciência perdeu a si mesma na exteriorização.
Ou seja, o processo de alteridade é incompleto, pois ambos perdem a si mesmos para poderem ser
reconhecidos. Surge dessa situação o desejo de aniquilar o outro, dominá-lo.
A dialética do reconhecimento conduz ao enfrentamento, à dialética da luta pela independência
das consciências de si desejantes. Como o reconhecimento anterior não foi completo, cada consciência
buscará na luta o reconhecimento do outro e sua liberdade, porque como exteriorizado perdeu-
-se no outro. É necessário lutar e impor a morte a este para que se torne livre. A consciência de si,
portanto, precisa arriscar a própria existência em uma luta de vida ou morte com a outra consciência
de si. Em outras palavras, a consciência de si precisa demonstrar que a liberdade é seu bem mais
importante. Nisso, caiu a consciência que não conseguiu colocar a vida em risco, não conseguiu
ariscar a si mesma pela liberdade. Essa consciência tornou-se escrava da outra consciência, que por
sua vez é senhor. “O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa, mas
não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente”(HEGEL,
2002, p. 146).
A consciência tornou-se escrava porque não conseguiu superar o ciclo biológico, ligado ainda
à vida natural. A liberdade não está na vida natural, mas na construção de uma segunda natureza.
Uma consciência que sente medo diante da própria existência não pode ser considerada consciência
de si. Para ser consciência de si, o indivíduo precisa ser dono de sua própria existência, em um
trabalho de autonomia existencial. A liberdade, antes de ser política, é algo interior ao indivíduo,
dá-se no plano da consciência. O plano que segue é o do trabalho, o qual a consciência serva deverá
produzir para servir o senhor.
Pelo trabalho se estabelece uma nova relação. O servo produz mediante seu próprio labor
algo que outro vai usufruir. O servo precisa servir, porque devido ao medo reconheceu a outra
consciência como senhor, mas o senhor não a reconhece como consciência de si livre. Trata-se
de um reconhecimento unilateral: reconheço, mas não sou reconhecido. Por outro lado, o senhor
vive também a angústia: como não reconheceu o servo, e este é o único que o reconhece, sua
condição é de ser reconhecido unicamente por uma figura que nem ele mesmo reconhece. Aqui a
dialética entre senhor e escravo revela novas significações. O senhor foi corajoso, por isso tornou-se
livre exteriormente, mas interiormente não conquistou o próprio reconhecimento. O senhor está
estagnado em seu próprio desenvolvimento.
Por outro lado, o servo trabalha, e em seu trabalho o servo transforma o mundo conforme sua
própria vontade. Paradoxalmente, é no trabalho servil que o homem modela o mundo conforme a sua

3 Por essente, Hegel se refere àquilo que porta uma essência. No trecho citado, o autor assinala que a consciência
experiencia a si mesma a partir da própria identidade, com independência em relação a outras consciências de si, que
também fazem o mesmo percurso.
Direito e Política na Dialética de Hegel 163

inteligência. O trabalho é atividade espiritual4, pois pelo trabalho o homem permanece em movimento e
apropria-se do mundo onde vive, transforma-o, retirando-o de sua imediaticidade natural para um local
que reflete sua vontade. Ao transformar a natureza, o homem se liberta do ciclo biológico.
Mas, como a dominação mostrava ser em sua essência o inverso do que pretendia
ser, assim também a escravidão, ao realizar-se cabalmente, vai tornar-se, de fato, o
contrário do que é imediatamente; entrará em si como consciência recalcada sobre
si mesma e se converterá em verdadeira independência (HEGEL, 2002, p. 149).

A última parte da seção da consciência de si é denominada por Hegel como “liberdade da


consciência de si” e representa a dialética pela qual passa a consciência de si serva, agora livre no
plano existencial, obtido por meio do trabalho. Essa dialética passa pelos momentos do estoicismo,
do cepticismo e da consciência infeliz e se conclui na passagem da consciência de si à razão, que
é o último momento da “Fenomenologia como ciência da experiência da consciência”. A razão
representa a reconciliação entre a consciência e a consciência de si; na razão, tanto a consciência
teórica como a consciência prática encontram-se conciliadas.
O objetivo era apresentar o desenvolvimento da consciência de si para demonstrar como isso
depois repercutirá na Filosofia do Direito. Como percebemos, após as dialéticas apresentadas, que
trouxeram inúmeras questões, como vida, liberdade, natureza, independência, reconhecimento,
desejo, trabalho, medo, é necessário compreender que essas questões, antes de serem temáticas
jurídicas, são temáticas da existência em geral e que repercutem no Direito.

10.2 As linhas fundamentais da Filosofia do Direito


Como já mencionado, a Filosofia do Direito ocupa um estágio intermediário no desenvolvimento
do espírito. É o espírito objetivo, que sucede a mediação do espírito subjetivo e antecede o espírito
absoluto. Ademais, entre as divisões já comentadas na Filosofia do Direito (Direito Político Interno,
Direito Político Externo e História Universal), vamos nos ater ao estudo da primeira, que contempla o
Direito Abstrato, a moralidade e a eticidade. Como vamos ver, a passagem entre esses três momentos
representa também o desenvolvimento do indivíduo por meio da vontade livre. No Direito Abstrato,
o indivíduo é pessoa; na moralidade, é sujeito; na eticidade, é membro de uma comunidade.
O Direito Abstrato representa a universalidade imediata do espírito objetivo, mas ao mesmo
tempo um reino puramente formal, restrito somente ao plano jurídico, das relações contratuais entre os
indivíduos. O Direito Abstrato funda-se na propriedade, no direito do indivíduo de ter uma propriedade
e no dever do outro de respeitar essa propriedade, e o contrário também é reciprocamente verdadeiro.
No Direito, o indivíduo estabelece relações com os outros em que reconheço e é reconhecido por
outros como pessoa, sendo o termo aqui utilizado em sua acepção jurídica5. Primeiro alguém, por um
ato racional de vontade, toma a coisa externa para si e a transforma em sua posse. Com a possessão

4 “A Fenomenologia do Espírito apresenta claramente como a verdade do trabalho material, real, do escravo, isto é,
da oposição deste ao trabalho intelectual do pensamento, ilustrado e enaltecido especialmente pelo estoicismo. Mas
o trabalho intelectual, gozo de seu domínio de si, ultrapassa e nega concretamente seus dois momentos unilaterais,
antagônicos: o gozo propriamente dito e o trabalho propriamente dito” (BOURGEOIS, 2004, p. 87).
5 Pessoa em sua acepção jurídica no sentido de que ser alguém capaz de efetuar relações jurídicas, como atos
negociais, contratos, entre outros, ou seja, implica uma condição de autonomia perante os demais indivíduos.
164 Filosofia do Direito

da coisa, pode transformá-la e moldá-la conforme sua vontade. Aqui, a dialética é semelhante àquela
do trabalho do servo diante do senhor. Na posse da coisa, esse alguém a trabalha e a transforma, logo
transforma a natureza conforme a vontade humana.
Depois de estabelecer a posse, o possuidor pode aliená-la a outros: é o contrato. O contrato
rege-se pela reciprocidade de direitos e deveres. Estabelece-se uma lei entre as partes, com obrigações
recíprocas que devem ser cumpridas. O problema é que o contrato se situa tão somente no plano
formal do Direito, ainda não efetivo. O término da dialética do Direito Abstrato é a injustiça,
momento em que Hegel estende sua crítica não apenas aos contratos privados entre particulares,
mas também a todos os filósofos modernos que basearam suas concepções jurídicas e políticas no
contrato social. A crítica hegeliana é esta: como pode o Direito impedir que uma das partes quebre,
por livre vontade, o contrato? Ou seja, o contrato é algo apenas abstrato, não é ainda o Direito
em sua realização. O ilícito penal segue a mesma lógica: a lei por si só não pode impedir o crime,
nada pode evitar que um indivíduo decida ir contra o ordenamento jurídico vigente. Em outras
palavras, o problema do não direito, ou da injustiça, não está no plano jurídico, mas no moral, pois
é do indivíduo que parte a vontade de negar o Direito. O Direito Abstrato é um direito coercitivo
porque nele uma pessoa pode agredir o direito da outra, violando a liberdade, a propriedade, etc.
A moralidade é o segundo momento da Filosofia do Direito. Aqui as questões não são
jurídicas, mas morais, estão no plano da subjetividade individual. A moralidade discute questões
como a intenção e a responsabilidade, o bem-estar e a certeza moral, o bem e o mal. Na moralidade,
cada indivíduo é sujeito, porque exprime ao máximo sua subjetividade, e cada sujeito tem sua própria
concepção de bem.
O ponto de vista moral é o da vontade quando deixa de ser infinita em si para sê-lo
para si. É esse retorno da vontade de si, bem como a sua identidade, que existe para
si em face da existência em si imediata e das determinações específicas que nesse
nível se desenvolvem, que definem a pessoa como sujeito. (HEGEL, 2003, p. 203)

A moralidade representa o mundo interior e intelectual de cada sujeito, o mundo em que ele
vive conforme suas convicções, que não necessariamente estão conforme os sistemas jurídicos vigentes.
Cada sujeito age partindo de suas convicções morais, que se baseiam na sua ideia de bem. O problema
da moralidade é que tudo está apenas no plano subjetivo. Para Hegel, toda ação tem em vista um
bem, porque ninguém pode agir visando um mal; ainda que algo seja entendido como mal, naquele
momento, na concepção do sujeito, era um bem. Nesse sentido, abre-se um completo relativismo, pois
aquilo que eu penso como bem pode ser justamente o contrário daquilo que o outro pensa como bem.
Nisso surge a tensão entre o bem e o mal. A passagem da moralidade à eticidade se dá na elevação do
pensamento subjetivo ao objetivo, do moral ao ético.
Na eticidade, o indivíduo não é apenas pessoa ou sujeito, mas membro de uma comunidade.
A eticidade supera a formalidade vazia do Direito Abstrato e a intencionalidade subjetiva da
moralidade para fundar o reino da liberdade realizada. Ela é resultado do movimento da vontade
livre do indivíduo, que por seu trabalho de efetivação do conceito no mundo dado transforma-o
conforme o seu pensamento.
Direito e Política na Dialética de Hegel 165

A eticidade ocupa a maior parte da Filosofia do Direito. Para entendê-la, comecemos pelo
seu conceito, enunciado no parágrafo 142:
A Eticidade é a realização da Ideia de Liberdade enquanto Bem Vivo, que tem
o seu saber e o seu querer na consciência de si, e que se torna realidade efetiva
mediante o agir da autoconsciência. Essa ação tem o seu fundamento em si
e para si e sua finalidade motora no ser ético. A Eticidade é onde a Ideia de
Liberdade se torna presente no mundo e natureza da autoconsciência. (HEGEL,
1982, p. 293)

A interpretação desse parágrafo permite uma ampla compreensão daquilo que viria a ser o
mundo ético de Hegel. A eticidade é a realização da ideia de liberdade porque são os indivíduos
quem a efetivam historicamente mediante sua vontade livre. Retornando ao início do capítulo, a
ideia é a forma essencial de algo e está fora do mundo, mas deve ser efetivada conceitualmente no
mundo. Por isso, a eticidade representa a realização da ideia de liberdade, porque é a forma como
a essência da liberdade passa a ser presente no mundo. Esse movimento é um bem vivo, porque
contrapõe-se ao bem abstrato da moralidade, na qual o bem era apenas uma convicção subjetiva
de cada indivíduo. Na eticidade, como vamos ver, esse bem é vivo, porque surge do movimento
produtivo e refletido do indivíduo consciente de si, logo, é uma ideia de bem resultante de um ato
de vontade livre. A vida, na Ciência da Lógica, representa justamente a forma de como a ideia em
sua forma absoluta se torna presença no mundo, na natureza.
A eticidade é também resultado do agir efetivo da autoconsciência6. Isso porque é o indivíduo
quem a põe no mundo dado mediante a exteriorização da vontade livre. Sendo assim, é um produto
consciente, querido, portanto autoconsciente.
A eticidade tem a sua finalidade motriz no ser ético, mediante um agir em si e para si. Em
outras palavras, a eticidade representa um movimento não singular, mas universal, ou seja, não de
um indivíduo em particular, mas da comunidade, do povo como espírito. Por isso, há o ser ético, o
ser que determina o que é ético e o que não é, porque esse ser é livre, já que foi posto pela vontade
dos próprios indivíduos.
A eticidade se torna presente no mundo e na natureza da autoconsciência devido a esse ser
ético. Como o ser ético é vontade livre, ele não é externo aos indivíduos, mas interno a eles, já que
eles o criaram. Também o ser ético se presencia no mundo, porque faz realidade jurídica, política,
social, econômica etc. O ser ético deriva dos costumes, que por sua vez fundamentam leis. A síntese
do parágrafo é esta: na eticidade abre-se a possibilidade de criar leis, mas leis que possibilitam a
liberdade do indivíduo, porque são leis resultantes da vontade livre dos próprios indivíduos. Na
eticidade o sujeito não é coagido a seguir leis, porque ele as criou.
Com efeito, a eticidade não é uma coação, ou um suprimir do livre-arbítrio, mas realização da
ideia de liberdade. As leis não podem ser opressoras, porque, como são postas pela vontade racional
do indivíduo, este tem não apenas o direito, mas o dever de negar as leis injustas ou as leis que não
refletem sua vontade livre em si e para si. O essencial não é o conteúdo da lei, mas o processo de pôr

6 “Nessa consciência de si efetiva, a substância é si mesma, e o próprio objeto do saber. Para o sujeito, a
substância ética, suas leis e suas potências, constituem em si mesmo a existência mais elevada da autonomia, como uma
unidade absoluta e infinita acima do ser da natureza”.(HEGEL, 1996) (FD. A Eticidade, § 146, HW 7. p. 294-5).
166 Filosofia do Direito

a lei. Logo, para o indivíduo, viver conforme as instituições e as leis é um dever ético, já que assim
estará vivendo conforme os costumes.
O reino ético desenvolve-se em três momentos. Primeiro, é universalidade imediata, na
família; depois, alarga-se a singularidade na sociedade civil; por fim, é o retorno à universalidade,
mas em um movimento efetivo, é o Estado representado pela Constituição. A lógica imanente que
percorre a Filosofia do Direito deve reconciliar o universal com o singular, harmonizar e inserir a
vontade livre individual na vontade universal da comunidade.
As instituições ocupam momentos importantes da Filosofia do Direito. Hegel trabalha a
formação do indivíduo, porém este deve se inserir no desenvolvimento social, político, jurídico
e econômico de sua nação, o que torna necessária a formação das próprias instituições. A família
forma o indivíduo, a sociedade civil trabalha sua singularidade, e o Estado tem a função de realizar a
liberdade enquanto protege o bem público. O homem está em constante processo de reconhecimento
com os outros, por isso o desenvolvimento coletivo é tão essencial quanto o individual. É nesse
contexto que se visualiza a importância das instituições para a filosofia hegeliana.

10.3 A família
A família é universalidade natural, imediata, pois o indivíduo nasce na família, e não por um
ato de vontade. A família se forma pelo reconhecimento recíproco entre duas pessoas que se unem
em uma só: o matrimônio, que é uma relação ética.
Embora mantenha-se na universalidade, a família é também singularidade, porque, vista
externamente, todos os indivíduos tornam-se um só: o ser familiar. Nessa posição está baseada
a relação entre famílias, cada uma sendo uma singularidade que representa a universalidade dos
indivíduos.
Essa relação entre famílias é o segundo momento dessa seção da eticidade: é o patrimônio. O
responsável pelo patrimônio é o pai, pois é ele quem trabalha e acumula riquezas na comunidade
e traz os benefícios ao ser familiar. O patrimônio é importante, pois por ele a família conquista
reconhecimento na comunidade.
O terceiro momento da família, e que também é sua dissolução, é a educação dos filhos, a
qual representa o fim último do ser familiar. A família precisa formar seus filhos não para ela, mas
para a sociedade civil e para o Estado, os outros dois momentos da eticidade. É interessante notar
que esse movimento de formação ética, pela educação, em que o filho sai da família e torna-se para
si, indo em direção à comunidade, é, ao mesmo tempo, fim e começo da instituição da família, pois
nesse movimento o filho construirá também a sua família.
Como “pessoas”, as famílias guardam entre si uma relação de igualdade.
Entretanto, essa igualdade externa como “pessoa” não é a expressão de uma
igualdade interna onde, em princípio, dever-se-ia encontrar a concretização dos
princípios universais da liberdade. [...] refere-se à desigualdade das mulheres
em relação aos homens, formulação que descarta completamente o direito das
mulheres. A segunda concerne à punição que é considerada como um meio
para “despertar as crianças para o universal”. (ROSENFIELD, 1983, p. 147-8)
Direito e Política na Dialética de Hegel 167

Essa passagem hegeliana é essencial: a família não possui fim em si mesma, mas no mundo
externo; sua função não é educar para si, mas para a sociedade civil e para o Estado. A família educa
os filhos com o conteúdo ético, forma o indivíduo para que no futuro ele possa se harmonizar com
os costumes e os deveres éticos da comunidade.
O segundo momento da eticidade é a sociedade civil. Nela, o indivíduo não é visto como
membro de uma família, mas tão somente como singular.

10.4 A sociedade civil


A sociedade civil, introduzida por Hegel com o termo burgerliche Gesellschaft, pode ser traduzida
também por sociedade civil-burguesa. Essa informação é importante para a contextualização da
sociedade civil como fenômeno histórico ligado ao mundo moderno, à ascensão do cidadão burguês.
Os gregos não conheciam a sociedade civil porque não conseguiam ver o indivíduo como capaz de
ser apenas singular, sem estar necessariamente envolvido na universalidade do Estado. A explosão
econômica do mundo moderno, com suas necessidades de grandes navegações e comércios distantes,
bem como o impulso da tecnologia e da industrialização, são as causas que conduzem à criação da
sociedade civil. É essencialmente burguesa, porque antes dos burgueses não havia a possibilidade de
o indivíduo viver no Estado sem ser para o Estado. Não por outro motivo, Hegel analisa nessa seção
vários pensadores da economia política, como Ricardo e Smith.
Logo, percebe-se como a sociedade civil tem um fim iminentemente egoísta, resultado do
aumento da liberdade econômica. Aqui, o indivíduo não é membro do Estado nem da família, mas
apenas um singular que alarga ao extremo sua singularidade, colocando em todas as suas ações apenas
a si mesmo como fim, e nunca o bem comum. É a negação da universalidade imediata familiar.
Contudo, mesmo sendo somente para si, esses indivíduos precisam se relacionar com outros,
pois precisam negociar, adquirir produtos, serviços etc. Ou seja, é estabelecido um sistema de
interdependência que Hegel chama de sistema das necessidades. Por necessidades entende-se desde
as primordiais, biológicas, como a alimentação, até as mais refinadas, como prazeres estéticos e a
própria riqueza econômica. Resulta dessa situação que, ainda que cada indivíduo busque satisfazer
apenas as suas necessidades, não há como fazê-lo sem recorrer ao universal.
Enquanto cidadãos desse Estado, [do entendimento] os indivíduos são pessoas
privadas, que têm por fim o seu interesse próprio. Como esse fim é mediado
pelo universal que, assim, lhes aparece como meio, ele só pode ser alcançado
por eles na medida em que determinam de modo universal o seu saber, querer
e fazer, e se façam um elo da cadeia dessa conexão. O interesse da Ideia, aqui,
que não reside na consciência desses membros da sociedade civil enquanto
tal, é o processo de elevar, pela necessidade natural assim como pelo arbítrio
das carências, a singularidade e a naturalidade desses à liberdade formal e à
universalidade do saber e do querer, de formar pelo cultivo à subjetividade na sua
particularidade. (HEGEL, 1996, p. 343)

Outro paradigma trazido pela sociedade civil é a questão da riqueza universal. Quando o
indivíduo produz, ainda que seja só para si mesmo, é obrigado a se relacionar com outros, logo,
mais indivíduos ganham nessas relações. Com isso, a própria riqueza universal é incrementada
168 Filosofia do Direito

pelo trabalho individual. Essa reflexão hegeliana é fundamental, pois ele demonstra como mesmo
no pleno egoísmo o trabalho é capaz de gerar riqueza e benefícios à universalidade. Além disso,
ao incentivar a livre iniciativa privada, o trabalho do singular contribuirá com a riqueza universal.
O trabalho é essencial para a sociedade civil. Como o princípio norteador da sociedade civil é
a liberdade econômica, cada indivíduo é livre para exercer a profissão que entender mais adequada.
O trabalho aqui ganha contornos similares ao seu significado na dialética entre senhor e servo na
Fenomenologia do Espírito. O trabalho cria, transforma o mundo. Quando o indivíduo se apropria do
dado natural e molda-o à sua vontade, está tornando o objeto sua propriedade. Como na sociedade
civil há uma forte dependência entre indivíduos, cada singular acaba se especializando em um ofício,
resultando na divisão dos trabalhos.
O trabalho é livre e deve perseguir fins econômicos. Esse alargamento aos extremos da
singularidade inevitavelmente causará desigualdades sociais, pois o trabalho singular não consegue
privilegiar a todos. A sociedade civil não está baseada em equilíbrio, mas nos excessos, o que
certamente provoca grandes riquezas de um lado e pobrezas do outro.
Contudo, ainda que os indivíduos sejam reduzidos à pobreza, Hegel não defende que o Estado ou
outras instituições tomem conta deles por um tempo. Ajudar excessivamente o indivíduo é subestimá-
-lo, ignorar que ele tem inteligência e possibilidade de por si mesmo sair daquela situação. A solução de
Hegel está nas corporações. As corporações seriam instituições criadas por cada classe de trabalhadores,
ou seja, cada profissão organiza uma corporação para defender seus direitos e interesses no Estado. Para
o indivíduo integrar uma corporação, ele deve possuir oficialmente um trabalho. Os companheiros
de corporação podem e devem ajudar financeiramente aqueles reduzidos à pobreza, pois, como são
todos trabalhadores da mesma profissão, sabem que aquele indivíduo está apenas temporariamente
em má situação econômica. Nisso anula-se o assistencialismo e privilegia-se com ajudas econômicas
somente aqueles que de fato exercem profissão, ou seja, contribuem. Para Hegel, o indivíduo que não
possui profissão não ajuda a sociedade nem o Estado, logo também não pode ser ajudado.
Por fim, uma nação não pode viver com excessivas desigualdades sociais, porque isso resultaria
em algum momento em problemas a toda a coletividade. Com isso, cumpre-se a passagem da
sociedade civil ao Estado, o ente que reconcilia o singular com o universal.

10.5 O Estado
Embora seja o último momento da eticidade, isso não significa que o Estado seja o último a ser
posto, nem historicamente, nem logicamente. O Estado já existe como ideia desde o Direito Abstrato,
o que se tem aqui é apenas sua efetivação no mundo. O Estado não é criado juridicamente, não é um
ato de vontade dos cidadãos que estabelecem um contrato social, pois isso seria aceitar que o Estado é
uma associação atomística, em que cada indivíduo decide participar dele por vontade e também por
vontade poderia decidir sair dele. O Estado é o fim absoluto do mundo ético, é para ele que convergem
todos os momentos, o que significa que sua ideia é que movimenta todas essas passagens.
O Estado é a realidade efetiva da ideia ética, – o espírito ético enquanto vontade
substancial, manifesta, clara a si, que se pensa e se sabe, e realiza plenamente
o que ele sabe e na medida em que o sabe. No costume o Estado tem ela a sua
Direito e Política na Dialética de Hegel 169

existência imediata e na autoconsciência do singular, no saber e na atividade do


mesmo, a sua existência mediada, assim como essa autoconsciência do singular,
através da [sua] disposição de ânimo, tem no Estado, como sua essência, fim
e produto da sua atividade, a sua liberdade substancial. (HEGEL, 1996, p. 398)

Se o Estado já está presente desde os movimentos iniciais da Filosofia do Direito, isso significa
que ele é a realidade efetiva da ideia ética, ou seja, a realização no mundo daquilo que já se é em
essência fora do mundo. É realidade efetiva porque é mediatizada, é elaborada racionalmente pela
vontade dos indivíduos, e não como na família, na qual o indivíduo nasce fazendo parte dela.
Essa realidade efetiva também demonstra que o Estado é essência fim e produto da atividade do
indivíduo, que encontra nele sua liberdade substancial, pois é uma instituição que reflete seus costumes.
Para captarmos a essência do Estado hegeliano, não podemos pensá-lo como algo separado
do indivíduo, mas interno a ele. No Estado, o indivíduo se encontra e realiza a sua liberdade. Não
há como o indivíduo ser oprimido pelo Estado, porque ele quer estar nele. Se o Estado se torna
despótico, ou é porque seus indivíduos também o são, ou porque não estão agindo conforme o
conceito, isto é, liberando o agir ético e negando a condição atual do Estado para torná-lo mais
adequado à sua vontade.
A substância do Estado é a lei, que se expõe como ethos, como costumes vigentes. Contudo,
ressalta-se que Hegel não é favorável a um Direito baseado nos costumes, isto é, que resista a positivar
suas leis em códigos, porque dessa forma poderia tornar-se demasiadamente abstrata a aplicação da
lei. Sem a lei posta em algum lugar, com regras fixadas, a decisão do juiz poderia ser arbitrária. A
positivação, portanto, é uma defesa aos direitos dos indivíduos contra arbitrariedades do magistrado.
A publicidade das leis é garantia fundamental dos indivíduos.
Por fim, chega-se à Constituição do Estado, que em Hegel exprime a igualdade e a liberdade
dos indivíduos. A Constituição é expressão da justiça, porque representa os ideais, a noção de
liberdade que aquele povo possui. Isso significa que a Constituição sempre será justa, porque, se
ela não reflete a vontade dos indivíduos, deve ser modificada por eles.
A Constituição também representa liberdade, pois em uma nação regida sob um governo
constitucional significa que não há nenhum indivíduo que seja superior à lei. A lei é resultado de
um movimento universal da vontade livre; sendo ela a expressão máxima, significa que todos ali
são livres.
Por fim, é importante salientar que a eticidade não elimina o Direito Abstrato e a moralidade,
pois esses dois momentos precedentes permanecem presentes no movimento dialético de Hegel. A
eticidade contém o mundo jurídico do Direito Abstrato e também a subjetividade da moralidade. O
Direito Abstrato garante a liberdade na lei em aspectos universais, e a subjetividade da moralidade
permite a avaliação constante das leis, verificando se elas estão conforme a vontade livre dos indivíduos.

10.6 Visão geral sobre a Filosofia do Direito e o sistema hegeliano


A filosofia hegeliana oportuniza importantes temáticas para discussões contemporâneas. O
projeto hegeliano da Filosofia do Direito busca conscientizar o indivíduo de sua autonomia e de seu
170 Filosofia do Direito

papel irrenunciável de transformar sua própria sociedade e seu próprio mundo. Isso é delineado
nas passagens dos vários momentos do indivíduo e da vontade livre: Direito Abstrato, moralidade,
eticidade e os seus momentos internos.
O Direito não pode ser separado da moralidade, e ambos não podem se escusar de buscar
uma eticidade. É na totalidade que a comunidade é capaz de se organizar para a promoção do
autodesenvolvimento. O Direito isolado do resto é abstrato, coercitivo, uma abstração do pensamento
que cria regras limitadas a serem impostas aos indivíduos. O limite do Direito Abstrato pode ser
visualizado na figura do injusto. O crime, no Direito, é uma agressão ao Direito, mas essa agressão já
está incluída no sistema jurídico. Quando alguém pratica um crime, está consciente de que receberá
uma pena, logo ele tem direito a essa pena. A pena, inclusive, tem regras quanto à sua aplicação.
Em outras palavras, o crime e a pena estão inseridos no sistema jurídico. Hegel demonstra que o
Direito por si só, a norma restrita, não pode evitar a injustiça na sociedade, pois a norma no máximo
consegue proporcionar a sanção ao criminoso.
Já a moralidade, se absolutizada, também proporciona reflexões exageradas, a ponto de
permitir a máxima subjetividade de cada sujeito. Com tanta subjetividade, perdem-se os conceitos
de bem, mal, certo, errado, justo, injusto, as máximas categorias éticas, e é no limite da moralidade
subjetiva que percebemos a importância fundamental de uma comunidade regida por leis éticas.
É essencial que a comunidade seja ética, isto é, que entenda o Direito como forma de liberdade,
dinâmico e transformador, que entenda os momentos históricos e locais, que se adapte a cada região e
povo para servir-lhes da melhor maneira possível. O Direito nunca está acabado. Ele precisa ser positivo,
pois senão cairia no autoritarismo daqueles que detêm o poder. E o Direito precisa permitir o exame
subjetivo dos indivíduos, para evitar da mesma forma o autoritarismo. A concepção de Direito de Hegel
é bastante elevada, só capaz de ser captada por povos já consideravelmente conscientes de si. Entender
que todos, em uma sociedade, são responsáveis pelos fracassos e sucessos e que normas são relativas,
bem como as opiniões morais, e o que deve prevalecer é a lei passageira dos costumes, que se importa
mais com resultados que com ideologias, certamente exige um alto grau de autoconscientização. O
Estado é espaço de liberdade, pois sem ele não há lei.
O cidadão de hoje torna-se cada vez mais apático, não se envolve nas grandes questões
políticas, sociais, econômicas, jurídicas, não entende o que se passa consigo mesmo nem com o
seu povo. Esse cidadão não é livre, não é consciente de si, e portanto nem seu direito, nem sua
sociedade são livres. Em 1821, Hegel já alertava que o Direito por si só não é capaz de auxiliar a
sociedade, antes é necessário preparar o povo. O indivíduo deve se formar e tomar consciência
de si. Criminalidade, corrupção, apatia política, desigualdades sociais, são todos problemas que
escondem outros maiores: os indivíduos não se reconhecem nas leis nem entendem seu papel como
operadores históricos e sociais. O indivíduo contemporâneo perde cada vez mais o poder de dizer
não e mudar as instituições, aprimorá-las.
A leitura das obras hegelianas oferece grande contribuição a uma formação mais qualificada
do indivíduo, tendo em vista as várias dimensões da vida, como a existencial, a social, a política,
a econômica e a jurídica. Essa formação é realizada por momentos, passando pelo entendimento
dos desejos, do saber reconhecer o outro e lutar pelo próprio reconhecimento, pela necessidade
Direito e Política na Dialética de Hegel 171

de aprender a trabalhar. O trabalho transforma a si mesmo e ao mundo, pois, enquanto o homem


domina tecnicamente o ofício e com isso adquire uma fonte de renda, também entra em contato
com o mundo, modificando-o à sua maneira. Essas dimensões existenciais presenciam-se também
no mundo coletivo da sociedade.
O Direito passa pelo reconhecimento do outro pelo contrato e pelo trabalho na posse.
O indivíduo adquire a posse com seu trabalho, com seu esforço. A moralidade busca afirmar a
subjetividade de cada indivíduo, tal como a consciência de si tenta afirmar sua independência
diante das demais consciências de si. Por fim, a eticidade é a harmonia do universal com o singular,
harmonia que garante tanto o desenvolvimento individual do cidadão como o desenvolvimento
coletivo da sociedade.
Quando entendemos a eticidade como continuação de um processo que se inicia na própria
Fenomenologia, percebemos que o mundo ético é construção harmônica do indivíduo e da
universalidade, um processo em que a consciência torna-se cada vez mais consciente de si e com isso
transforma o mundo, o que significa trabalhar aspectos naturais, sociais, políticos, culturais, jurídicos,
econômicos etc. O homem torna-se consciente de si e com isso passa a viver uma segunda natureza,
que se manifesta na cultura de cada povo. A formação do indivíduo, então, é um processo histórico,
que se dá na prática, nas várias dimensões da vida.

Considerações finais
Hegel ensina a transcender a finitude da consciência, a não se limitar a circunstâncias e
momentos específicos. A consciência é infinita, tende ao absoluto, desde que seja capaz de fazer
aufhebung de cada contexto, isto é, libertar-se e ir adiante. O homem passa pela família, pelas regras
jurídicas, pelo Estado, pela economia, mas existe para além disso tudo, existe para elaborar no mundo
a própria busca pelo absoluto.

Ampliando seus conhecimentos


• BELEZA americana. Direção de Sam Mendes. Estados Unidos: DreamWorks, 1999. (122
min), son., color., 35 mm.
Interessante obra para discutir a questão do desejo em Hegel e a busca por reconhecimento.
Neste filme, os personagens vivem existências externas que não refletem seus desejos
interiores, e muitas vezes as escolhas são feitas a partir das expectativas afetivas alheias.

• GUERRA ao terror. Direção de Kathryn Bigelow. Estados Unidos: Voltage Pictures, 2008.
(131 min), son., color., 35 mm.
Sobre um especialista em desarmar bombas servindo ao exército americano em guerra
no Oriente Médio. O personagem, quando está fora dos campos de batalha, encontra-se
deslocado e quando está em guerra parece se ver protagonista. O filme pode ser analisado
na ótica hegeliana da relação entre indivíduo e sociedade, da responsabilidade do sujeito em
172 Filosofia do Direito

moldar as instituições à sua vontade quando vive em contextos que não lhe favorecem, do
contrário encontra a desilusão e a apatia, como o personagem.

Atividades
1. A Fenomenologia tem como objetivo conduzir o indivíduo desde o saber inculto até o saber
absoluto, o filosófico, devendo para isso superar vários momentos, experiências da consciência,
como a dialética do reconhecimento e a dialética entre senhor e servo. Esses movimentos são
impulsionados pelo desejo. Explique como você entendeu ser o desejo para Hegel.

2. A Filosofia do Direito, em Hegel, ocupa um estágio intermediário entre o espírito subjetivo e


o espírito absoluto. Interprete o que isso significa, pensando o Direito em relação ao mundo.

3. Na eticidade, o indivíduo se vê nas leis, nos costumes, por isso para ele é um dever ético
obedecer a Constituição. Relacione isso à contemporaneidade: os indivíduos hoje se veem
na Constituição?

4. “O Estado é o fim absoluto do mundo”. Interprete a sentença hegeliana, que para alguns
significa sua defesa ao totalitarismo estatal contra o indivíduo.

Referências
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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciencia de la Lógica. Trad. de Augusta Mondolfo; Rodolfo Mondolfo.
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Direito e Política na Dialética de Hegel 173

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11
O Direito e os dilemas da existência humana:
de Marx aos filósofos existencialistas

Neste momento, trataremos de duas correntes de pensamento diversas, mas de grande importância
para a constituição da racionalidade contemporânea e para a construção dos sistemas filosóficos
jurídicos: o marxismo e a corrente filosófica existencialista. Ambas indagam o papel do indivíduo e suas
complexidades existenciais em meio à sociedade e trazem reflexões profundas sobre como o direito se
imposta diante dessa realidade.

11.1 Karl Marx


O filósofo alemão Karl Marx é identificado como pensador do materialismo dialético ou
materialismo histórico. O materialismo dialético é um dos momentos de maior repercussão na história
da Filosofia, pois implica o entendimento do mundo e da sociedade como processo de constante
transformação. O mundo hoje é diferente daquele de ontem e também do de amanhã, e quem executa
a transformação é a própria sociedade. O mundo está ligado à história, e por isso a Filosofia pode
transformar a realidade, e não apenas estudá-la.
Essa mudança é fundamental, pois não surtiu efeitos somente na área intelectual, nos debates
acadêmicos e filosóficos sobre as concepções de justiça, ser, liberdade, entre outras categorias. Com
isso, a filosofia de Marx influenciou decisivamente os eventos da história mundial que se desenrolaram
nos séculos seguintes. Como veremos, não há como falar em Revolução Russa, Revolução Mexicana,
nas duas Grandes Guerras e mesmo na Guerra Fria sem fazer menções a Karl Marx.
Antes de adentrarmos a teoria de Marx, é importante assinalar que suas concepções filosóficas
nascem não somente da reflexão intelectual, mas de suas observações a fatos históricos e o que eles
representam para o período em que vivia, tais como a ascensão burguesa ao poder, sobretudo com
a Revolução Francesa, ou a explosão capitalista e sua relação com as qualidades de vida no trabalho
reduzidas com a Revolução Industrial1.
Marx diferencia-se dos demais, sobretudo, pela necessidade de não somente estudar e analisar
a realidade, mas principalmente de modificá-la. O pensamento de Marx é impregnado de ativismo
político e de indignação para com a Filosofia.
indignação e insatisfação com o papel que vinha exercendo até o momento
(“Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente;

1 “Tendo vivido um momento conturbado da história europeia, conhecendo de perto os efeitos funestos deixados pela
introdução do modo de produção industrial na economia (desde a Revolução Industrial), e tendo analisado com percuciente
ótica a ascensão da classe burguesa no domínio dos meios de produção agrícola e industrial (desde o Renascimento),
estando consciente do enriquecimento das nações, sobre livrar-se dos cânones imponentes da filosofia especulativa e
racional (ao estilo de Hegel) e construir um sistema de ideias que fosse o motor de mudanças sociais. Nesse sistema,
estava prevista uma natural aversão, até mesmo física, a tudo que fosse de origem burguesa, como demonstração de seu
irrefreável repúdio à exploração econômica burguesa” (BITTAR, 2008).
176 Filosofia do Direito

trata-se porém de modificá-lo”). A estagnação e o diletantismo acadêmico ou


teórico não eram mais suficientes, pois o mundo conclamava decisões, e, de
preferência, incisivas e radicais, com vista na modificação do status quo vivido
pela sociedade. O profundo conhecimento da história e do funcionamento da
sociedade no plano econômico permitia a Marx estar plenamente consciente
de como funcionava sua mecânica e de como sua estrutura se reproduzia no
processo de exploração de classes; quanto a esse aspecto, a Filosofia nada havia
feito até então. (BITTAR, 2008, p. 229)

Para Marx, a Filosofia não deveria justificar juridicamente e ideologicamente as estruturas


sociais, incluindo aqui a desigualdade social entre classes e a opressão burguesa ao proletariado.
A teoria não poderia justificar a prática, mas modificá-la. Essa Filosofia como práxis influenciou
decisivamente o século XX, por meio de usos tanto adequados como inadequados de sua obra. As leis
trabalhistas, que reduzem a jornada diária de trabalho e estabelecem direitos sociais básicos, como o
décimo terceiro salário e o salário mínimo, são todas consequências da filosofia de Marx; por outro
lado, as ditaduras de Stalin e Mao Tse Tung, por exemplo, ainda mais opressoras que a antiga violência
capitalista contra as classes mais baixas da sociedade, também resultaram da leitura de suas obras.
A obra de Marx é extensa, de forma que aqui serão apresentados apenas alguns pontos de
suas concepções filosóficas, políticas e jurídicas.

11.2 A filosofia de Marx


A dialética hegeliana ainda se baseava na esfera da ideia, do pensamento, e, para Marx, o seu
aspecto absoluto como regra de funcionamento, inclusive da história, somente justificaria a crescente
opressão capitalista e burguesa2. Para Marx, “o aqui e agora são importantes nessa proposta de tornar
a Filosofia algo capaz de intervir no ser histórico das coisas e, até mesmo, estacar o antigo regime de
continuação dos modos sociais de exploração do homem pelo homem” (BITTAR, 2008, p. 229). A
Filosofia deveria entender a realidade social, mas também buscar modificá-la, pois somente assim
seria possível não alimentar o antigo sistema.
Quando Marx analisou a realidade social de seu período histórico, percebeu que o capital se
reproduzia cada vez mais, mas, por outro lado, as condições de trabalho da classe operária tornavam-
-se mais injustas. Analisando essa situação, entendeu que a classe operária era basicamente mão
de obra barata para o enriquecimento da classe burguesa3. Ademais, esse panorama social tendia a

2 Uma das principais críticas de Marx a Hegel é que o idealismo teria se importado tão somente com as ideias puras,
e que inclusive na interpretação de uma filosofia da história se limitaria a descrevê-la nessa perspectiva. Para Marx, ler
não era suficiente, mas era essencial compreender os interesses reais e políticos que movem a história. (MARX; ENGELS,
1998). Além disso, para entender a crítica de Marx a Hegel, é essencial a leitura de sua Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel (MARX, 2005).
3 “O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que parte da sociedade possua o monopólio dos meios de
produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário à sua autoconservação um tempo
de trabalho excedente destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produção, seja
esse proprietário aristocrata ateniense, teocrata etrusco, civis romanus, barão normando, escravocrata americano, boiardo
da Valáquia, landlord moderno ou capitalista. É claro, entretanto, que se numa formação socioeconômica predomina não
o valor de troca, mas o valor de uso do produto, o mais-trabalho é limitado por um círculo mais estreito ou mais amplo
de necessidades, ao passo que não se origina nenhuma necessidade ilimitada por mais-trabalho do próprio caráter da
produção. O sobretrabalho mostra-se tenebrosamente na Antiguidade, por conseguinte, onde se trata de ganhar o valor de
troca em sua figura autônoma de dinheiro, na produção de ouro e prata. Trabalho forçado até a morte é aqui a forma oficial
de sobretrabalho” (MARX, 1988, p. 181).
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas 177

fortificar-se, a menos que houvesse alguma ação contrária que impedisse o seu desenvolvimento. O
materialismo histórico via na revolução contra o sistema a única possibilidade de reverter a situação.
Tal situação se tornou ainda mais evidente quando Marx inseriu seu conceito de mais-valia.
Há sempre um cálculo do investimento no trabalho do operário e daquilo que este executa. A renda
obtida com seu esforço é repartida entre capitalista e operário, sendo para este último na forma de
salário. Mas a produção verdadeira é em geral maior do que o calculado, e esse dinheiro excedente
retorna em enriquecimento do capitalista. Esse diferencial é fator determinante para o aumento
das desigualdades sociais, pois tende a ampliá-las cada vez mais, com os capitalistas mais ricos e os
operários mais pobres.
É essa revolução que Marx defende no Manifesto do Partido Comunista. Nessa obra, o autor
não somente analisa e justifica teoricamente a necessidade da revolução do proletariado, mas dá
também os passos seguintes, as indicações das ações que deveriam ser tomadas após a classe do
proletariado tomar o poder dos burgueses e passar a centralizar os recursos nas mãos do Estado, que
seria então controlado pelos proletários. Entre as medidas que seriam adotadas pelos comunistas
estariam a expropriação da propriedade latifundiária e o emprego da renda da terra em proveito
do Estado, a abolição do direito de herança, a centralização nas mãos do Estado de todos os meios
de transportes, educação pública e gratuita de todas as crianças, combinação do trabalho agrícola
com o industrial, entre outras.
Percebe-se que todos os pontos conduzem a uma centralização do poder nas mãos do Estado,
que por sua vez seria controlado pela sociedade civil. Essa revolução, o ato violento de modificar a
estrutura social vigente, seria a única forma de impedir as tendências históricas. O indivíduo sempre
havia sido oprimido pelas classes dominantes, primeiro com a escravidão, depois com o servilismo,
em seguida com o colonialismo e agora com práticas de opressão ao proletariado. Marx reconhece
méritos na revolução dos burgueses contra a monarquia absolutista, mas também percebe que em
seu período histórico a supremacia do poder apenas havia sido transferida da monarquia à classe
burguesa. A revolução social, para Marx, ocorreria, então, na:
[...] ruptura das estruturas de poder, para a instauração provisória do governo
proletário e o desmonte paulatino e sucessivo do Estado, com vista na
constituição do comunismo como forma unitária, de iniciativa da sociedade
civil, imposta de cima para baixo pela superestrutura estatal (com seus aparatos
de força, coação, leis, políticas, burocracia...), de condução dos negócios de
interesse coletivo. (BITTAR, 2008, p. 229)

Decorre desse raciocínio que, para Marx, também o Direito é somente um instrumento de
dominação social, de opressão das classes dominantes contra o proletariado. O Direito não estaria
ligado à realização da justiça ou da liberdade, mas da continuação da opressão à classe operária. Por
isso também o sistema jurídico deveria ser subvertido na revolução e adequar-se às novas exigências
sociais, de privilegiar o proletário. Marx via a sociedade de sua época como um sistema que visava
apenas uma direção: o crescente enriquecimento dos burgueses com o fortalecimento do capitalismo
e cada vez maior desvalorização do proletariado. Nessa linha, não somente o sistema jurídico, mas
também a moral convencional, e inclusive a religião, seriam instrumentos de dominação social. Não
obstante, convém lembrar que Marx é de cunho prático, ou seja, visa a resolver situações sociais e
178 Filosofia do Direito

econômicas do aqui e agora, de forma que suas análises do Direito, da religião e da moral se dão no
campo institucional e de sua influência no sistema vigente, e não necessariamente conceitualmente.
Em outras palavras, o conceito de Direito, de religião, de moral, entre outras categorias, não seria
tão importante quanto as suas manifestações práticas na sociedade.
Trazendo para a atualidade, a questão levantada por Marx diante do aumento das desigualdades
sociais torna-se ainda mais relevante. O Direito em muitos casos segue sendo instrumento de
dominação, para ampliar as desigualdades, seja em plano interno, dentro dos países, seja no plano
internacional. A postura de Marx deve ser sempre lembrada e refletida para os nossos dias. Será que as
leis refletem benefícios à coletividade ou apenas reforçam o melhor para uma minoria? Não somente
no que concerne às leis trabalhistas, mas a todo o ordenamento jurídico e ao próprio sistema que rege
a vida das pessoas. É necessária essa postura crítica permanente para que a justiça seja perseguida,
uma postura que identifique em cada ato do Estado, em cada lei, se ela beneficia a sociedade ou
apenas partes dela.
Marx ensina, ao operador jurídico, social e empresarial, a observar a práxis, o movimento
histórico, a analisar mais do que as abstrações intelectuais, os meios práticos, concretos, de se
construir a história. Os projetos sociais e empresariais devem ser materializados, devem se tornar
concretude histórica.

11.3 Søren Kierkegaard


O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard4 é considerado um dos precursores, ou até mesmo
o primeiro, dos filósofos da corrente existencialista. Seu pensamento centra-se na valorização da
individualidade, a qual, para o pensador, somente será efetivada pelo vínculo com o divino. Para
Kierkegaard, a existência é uma categoria que se refere ao indivíduo livre, portanto existir significa
realizar-se a si mesmo por meio da livre escolha entre as alternativas que surgem na existência e
por um próprio compromisso, significa ser cada vez mais indivíduo e cada vez menos um simples
membro de um grupo5. Assim, o homem, ao se unir ou fundir àquilo que é universal, seja o Estado,
seja o pensamento da humanidade, está a rejeitar sua responsabilidade enquanto pessoa e sua
autêntica existência.
Em sua obra Ou Isto, ou Aquilo, Kierkegaard esclarece sua atitude frente à vida, na qual
manifesta que a existência do indivíduo é caracterizada pela escolha (COPLESTON, 1999). O autor
identifica três estados da existência humana, pois o existir não é um ato unitário ou uma disposição
genérica, mas sim a articulação de uma escala de possibilidades e estados, a vida é um processo

4 Søren Aabye Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813, em Copenhague. Recebeu uma educação extremamente
religiosa de seu pai. Em 1830 entrou na Universidade de Copenhague, onde estudou Teologia. Na Universidade interessou-
-se mais pelos estudos de Filosofia, Literatura e História. A figura severa de seu pai, que acreditava viver sob maldição
divina, refletiu na formação de seu filho e seu relacionamento com Regina Olsen, com quem noivou, desistindo, porém, de
casar-se, apesar de manter vivos seus sentimentos por ela, que marcaram sua vida e seu pensamento. Mudou-se para
Berlim para estudar, onde pôde estudar com Schlelling. Ao retornar à Dinamarca, combate à Igreja oficial danesa, a qual, em
sua opinião, somente conservava de cristã o nome. Kierkegaard faleceu em 4 de novembro de 1855 (COPLESTON, 1999).
5 “Na espécie animal, vale sempre o princípio: o indivíduo é inferior ao gênero. Já no gênero humano prevalece a
característica, precisamente porque cada indivíduo é criado à imagem de Deus, de que o indivíduo é mais elevado do que
o gênero” (KIERKEGAARD apud REALE; ANTISERI, 1991, p. 238).
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas 179

dialético6, em que a transição entre as etapas não ocorre pelo pensamento, mas mediante um ato
de vontade, um salto, um ato de mudança da própria existência, e não por uma síntese conceitual
(COPLESTON, 1999).
Os três estágios referidos são, respectivamente, o estético, o ético e o religioso. No estado
estético o homem vive sempre na figura do momento, na busca pelo prazer sensível. O homem
está próximo ao desespero nesse estado. Quanto mais consciente estiver de encontrar-se nesse
estado, mais próximo fica ao momento de decidir: ou seguir vivendo no “sótão do próprio edifício”,
ou efetuar a transição ao nível superior. A figura que representa esse estágio é o Don Giovanni,
personagem de uma das mais famosas óperas de Mozart. No próximo estágio, o homem aceita
determinados princípios e obrigações morais e se submete aos ditados da razão universal, definindo
a forma e a consistência de sua vida. Esse estágio é representado por Sócrates, e o exemplo dessa
passagem formulado pelo pensador envolve a renúncia do homem à satisfação dos impulsos sexuais,
sabendo que são atrações passageiras, preferindo contrair matrimônio, aceitando as obrigações
atinentes a essa relação (ADORNO, 1996).
Contudo a serenidade encontrada no estado ético se vê bruscamente diminuída quando se
alcança o estágio religioso, simbolizado por Abraão e sua opção por sacrificar seu próprio filho, Isaac,
a Deus. Estabelecendo a relação do homem com Deus, o absoluto pessoal e transcendente, o homem
torna-se o que realmente é: um indivíduo perante Deus. É pela fé que o homem faz a mais profunda
passagem de sua existência, e por meio dela esse homem pode considerar-se de fato existente, livre.
Concluindo tal ponto, somente pode se considerar existente aquele que conseguiu afirmar-se
como indivíduo, não somente como gênero. Esse torna-se um verdadeiro ator da vida, não mero
espectador. Assim, para Kierkegaard, o termo existência é neutro e pode ser aplicado aos três estados
da dialética (COPLESTON, 1999).
Outro assunto tratado pelo filósofo dinamarquês é o conceito de angústia, tema de seu livro O
Conceito de Angústia, no qual Kierkegaard a define como uma “simpatia antipática e uma antipatia
simpática”. A angústia refere-se àquilo que é indefinido e desconhecido, reflete ao mesmo tempo as
expectativas e os temores referentes a tal ponto, aplicando essa ideia ao pecado. Essa angústia pode
ser condição primordial para que o indivíduo faça a passagem existencial, tirando-o de sua conduta
habitual, por mais que esta lhe agrade. Esse tipo de angústia possibilita ao homem alcançar a liberdade,
pois a angústia é superada pelo salto, pela passagem a um dos níveis anteriormente elencados.
Finalizando este tópico, constata-se que, para Kierkegaard, é o próprio indivíduo que se
encontrará por meio das escolhas que reforcem sua subjetividade. Por meio destas, o homem
encontra Deus e relaciona-se com Ele, sendo este o ápice da existência humana, possível, contudo,
somente àqueles que deixam de ser simplesmente parte do grupo.

6 Nota-se aqui a influência do pensamento do filósofo alemão Hegel em Kierkegaard. O pensador dinamarquês dedicou-
-se ao estudo das ideias de Hegel, criticando o afastamento do indivíduo na busca pelo sentido universal na filosofia
hegeliana. Constata-se que essa crítica se relaciona à própria filosofia kierkegaardiana e sua proposta de desenvolvimento
do indivíduo na existência.
180 Filosofia do Direito

11.4 Friedrich Nietzsche


Friedrich Wilhelm Nietzsche7 é um dos mais influentes pensadores do século XX, uma das
principais bases sobre as quais se fundou a filosofia existencialista. Sua filosofia é uma proposta de
inversão das ideias filosóficas e dos valores morais tradicionais. Por tal motivo, foram dadas as mais
variadas interpretações ao seu pensamento, das mais liberais às mais conservadoras.
Enquanto jovem, duas personalidades marcaram profundamente o pensamento de Nietzsche:
o filósofo Schopenhauer e o compositor Richard Wagner. Sob a influência de ambos, publicou
em 1872 sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia8. Nessa época, Nietzsche entendia a vida
como “cruel e cega irracionalidade, dor e destruição” (REALE, 1991, p. 426). Só a arte poderia
oferecer ao indivíduo a força e a capacidade de enfrentar a dor da vida, dizendo sim a ela. Nietzsche
via em Wagner o espírito do retorno à Grécia, mas não à Grécia pós-socrática, a qual é por ele
criticada, mas sim à Grécia do período dos filósofos pré-socráticos e dos primeiros tragediógrafos.
Nesse momento da civilização grega, Nietzsche identifica o espírito de Dionísio. A divindade grega
Dionísio representa a imagem da força instintiva e da saúde, símbolo de uma humanidade em plena
harmonia com a natureza. O desenvolvimento da arte grega estava ligado a esse espírito, o dionisíaco,
e também ao apolíneo, de Apolo, outra divindade relacionada com as artes, mas consubstanciada
na tentativa de expressar o sentido das coisas na medida e na moderação (REALE, 1991).
Essa compreensão representa de maneira preliminar o modo como Nietzsche representou o
homem de sua época e sua profunda crítica à moral de seu tempo. O dionisíaco é o seu próprio
pensamento. As culturas sublimam as energias dionisíacas: “O dionisíaco jaz diante da civilização e
debaixo dela é a dimensão a um tempo sedutora e ameaçadora do inaudito” (SAFRANSKI, 2000, p. 58).
O afastamento de Schopenhauer e de Wagner marca o princípio do segundo período do
pensamento filosófico de Nietzsche, quando ele ataca os metafísicos indiretamente, buscando
demonstrar que os aspectos da experiência e os conhecimentos humanos que, supunha-se, necessitavam
de explicações metafísicas ou justificavam uma superestrutura metafísica, poderiam ser explicados em
linhas materialistas. Nessa fase, Nietzsche inicia sua campanha contra a moralidade de autorrenúncia.
Em Gaia Ciência, expõe a ideia do cristianismo como hostil à vida, bem como já expõe a ideia da
morte de Deus.
Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche diz ter descoberto dois tipos primários de moral, “a dos
chefes e a dos escravos”, mescladas em todas as civilizações superiores – elementos de ambas podem
se encontrar, inclusive, em um mesmo homem. A moral dos chefes é a moral aristocrática, “bom” e
“mal” são equivalentes de “nobre” e “plebeu”. Já na moral dos escravos, a norma é o que for benéfico

7 Nasceu em Röcken, Alemanha, em 15 de outubro de 1844. Estudou Filologia Clássica na Universidade de Bonn
(1864) e de Leipzig (1865). Dessa época ocorre a aproximação com o Schopenhauer e Wagner, duas grandes influências
do seu pensamento na juventude. Tornou-se professor de Filologia Clássica na Universidade da Basileia. Sua má saúde,
junto a uma insatisfação que se refletia em desgosto e suas dúvidas profissionais o levaram a renunciar sua cátedra na
Basileia, passando a viver em diversos lugares da Suíça e Itália, viajando ocasionalmente à Alemanha. Suas principais
obras são O Nascimento da Tragédia, Gaia Ciência, Assim Falou Zaratustra, Genealogia da Moral, Além do Bem e do Mal, O
Anticristo e Ecce Homo. Ao final de 1889 passaram a surgir evidentes sinais de loucura. Em janeiro de 1889 foi internado
em uma clínica na Basileia. Nunca mais se recuperou totalmente, passando a viver com sua mãe e, após a morte dela,
com sua irmã em Weimar. Nietzsche morreu em 25 de agosto de 1900 (SAFRANSKI, 2001).
8 NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução, notas e posfácio
de J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas 181

à sociedade do débil e impotente. Valorizam-se qualidades como simpatia, bondade e humildade, os


indivíduos fortes e independentes são considerados perigosos. As valorações morais dessa segunda
concepção são expressões das necessidades do “rebanho” (COPLESTON, 1996).
Em A Genealogia da Moral, utiliza o conceito de ressentimento, na relação em que o homem
superior cria seus próprios valores partindo da abundância de sua vida e energia, ao passo que
o submisso e impotente teme ao forte e poderoso e tenta contê-lo e dominá-lo afirmando como
absolutos os valores do rebanho. Essa rebelião se principia com o ressentimento, que passa a ser
criador, originário do nascimento dos valores. Na história há o conflito dessas duas atitudes morais.
Enquanto o homem superior pode coexistir com ambas, mantendo seus próprios valores, o rebanho,
incapaz de qualquer coisa e disposto a manter os seus valores, tenta impô-los universalmente. Nessa
linha, desenvolve-se a crítica nietzscheniana ao cristianismo. “Nietzsche não nega todo valor da
moral cristã. Admite, por exemplo, que há contribuído ao refinamento do homem. Mas vê nela, ao
mesmo tempo, uma expressão do ressentimento característico do instinto do rebanho, ou moral dos
escravos”9 (COPLESTON, 1999, p. 316). A esse mesmo ressentimento são atribuídos os movimentos
democráticos e socialistas que Nietzsche interpreta como consequências do cristianismo.
Nietzsche não nega a moral, mas propõe sua reestruturação, de modo que o homem superior
possa seguramente viver mais além do bem e do mal, sem a moral do ressentimento, podendo, assim,
transcender a si mesmo até o além-do-homem10. A crítica de Nietzsche não se dirige à figura de Cristo,
mas à construção histórica da religião cristã, a qual diz ele depreciar o corpo, o impulso, o instinto,
a paixão, o desenvolvimento da mente livre e sem travas, os valores estéticos (COPLESTON, 1999).
Em Gaia Ciência, Nietzsche destaca que o acontecimento mais importante da sua época é que
Deus está morto e foi morto pela humanidade. A fé no deus cristão se fez impossível de manter, e
já começam a se dissipar as primeiras nuvens sobre a Europa. Nietzsche até chega a aceitar que a
religião, em algumas fases, expressou a vontade de viver, ou melhor, de poder, mas sua atitude geral
é que a fé em Deus, especialmente da religião cristã, é hostil à vida e que quando expressa a vontade
de poder, tal vontade é aquela dos tipos inferiores de homem (COPLESTON, 1999).
O filósofo destaca que os europeus foram educados à aceitação dos valores morais cristãos
associados à fé cristã, em certo sentido dependentes dela. Se os europeus perdessem sua fé nesses
valores, perderiam sua fé em todos os valores. O desprezo de todos os valores, que brota do sentimento
de carência do objetivo do mundo, é um dos principais elementos do niilismo11. Assim, podemos
dizer que a moralidade se opera como um antídoto (Gegenmittel) contra o niilismo teórico e prático
exercendo o papel de segurar o homem, pois, sem sua segurança, resta o nada, e o homem não possui
sentido para existir. Nesse sentido, a moral cristã exerce um valor por segurar os homens inferiores
contra isso. Para Nietzsche, o advento do niilismo é inevitável. Por mais que houvesse seu risco

9 “Nietzsche no niega todo valor a la moral Cristiana. Admite, por ejemplo, que ha contribuido al refinamiento del
hombre. Pero ve en ella, al mismo tiempo, una expresión del resentimiento característico del instinto del rebaño, o moral de
los esclavos” (COPLESTON, 1999, p. 316).
10 No original, Übermensch. A tradução desse conceito gera discussões no meio acadêmico, sendo que boa parte
recomenda a tradução como além-do-homem, conforme adotou Rubens Rodrigues Torres Filho em sua tradução para
a coleção Os Pensadores da editora Nova Cultural, ao contrário da corriqueira tradução “super-homem” (LUFT apud
SAFRANSKI, 2000)
11 Do latim nihil, nada.
182 Filosofia do Direito

premente, esse movimento possibilitaria o caminho até um novo horizonte, até uma transformação
dos valores e até o nascimento de um tipo superior de homem (COPLESTON, 1999).
Importante para a construção desse tipo de homem é o amor fati, amar o necessário, aceitar
esse mundo e amá-lo, aceitar o eterno retorno12 da vida. Para se refundar a vida, ciente do mundo
em que se encontra, deve-se criar um novo sentido da terra, esse é o além-do-homem. Não é a
humanidade, senão o além-do-homem, pois a meta a ser alcançada é a superação do próprio homem.
Por fim, destaca-se a crítica de Nietzsche ao Estado, feita logo na primeira parte de Assim
Falou Zaratustra, entendendo-o como “o mais frio de todos os frios monstros”, o novo ídolo
erigido a si mesmo como objeto de adoração, e tentando reduzi-lo todo a um estado comum de
mediocridade. O Estado impede os indivíduos excepcionais de se desenvolverem, reforçando os
valores da inferioridade. O Estado, diz ele, é frio até no mentir, ao dizer que ele, o Estado, é o povo,
bem como ao propor-se a ser como um deus na terra. Somente onde o Estado deixa de existir, ao
menos para o indivíduo, começa o homem não inútil (REALE, 1991).
Pelo que foi visto, constata-se que o pensamento de Nietzsche possui relações com o
desenvolvimento de lideranças, pois àqueles que se propõem a conduzir outros indivíduos a um
determinado escopo que gere resultados a todos eles é primordial primeiro um tipo de atitude própria
que se diferencie da atitude dos demais. Isso não significa que esse homem é uma espécie superior aos
seus coordenados, mas que ele deve ter um modo de agir e pensar diferente dos demais integrantes do
grupo. Cada um tem sua importância na consumação do escopo, mas ao líder cabe a inteligência de saber
coordená-los, de saber potencializar a capacidade de cada um, e para isso ele deve se diferenciar deles.
É nessa linha que também se encontra a crítica de Nietzsche ao Estado: este ente busca
tutelar o interesse de todos, regulando a sociedade com base na média, naquilo que é benéfico à
maioria dos indivíduos. Contudo, ao homem que coordena outras pessoas isso não basta. Entra-se
na necessidade de que esse homem por si próprio se desenvolva e se prepare adequadamente para
que então possa vir a conduzir outras pessoas, esse é o principal significado de fazer o Estado deixar
de existir ao indivíduo.
Nietzsche é fundamental como responsabilização da pessoa pelo seu potencial. Cada um
vem ao mundo com uma força, com uma potência que quer se tornar história, mas essa capacidade
potencial deve se tornar real no cotidiano existencial.

11.5 Edmund Husserl


Edmund Husserl13 é o fundador do movimento fenomenológico, uma proposta de refundação
do critério científico pelo retorno às próprias coisas “indo além da verbosidade dos filósofos e

12 Em um tempo infinito existem ciclos periódicos em que tudo o que sucedeu se repete de novo. Essa concepção é
posta nos lábios do sábio persa Zaratustra, protagonista do seu mais famoso trabalho, Assim Falou Zaratustra.
13 Edmund Husserl, nascido em 1859, depois de ter terminado seu doutorado em Matemática, assistiu às aulas de
Brentano em Viena (1884-1886) sob sua influência se consagrou à Filosofia. Foi professor de Filosofia em Göttingen e
mais tarde em Freiburg-im-Breisgrau, onde teve por discípulo o filósofo Martin Heidegger, com o advento do nazismo,
sendo judeu, foi afastado do ensino, apresentando em raras ocasiões de fazer sentir em público sua voz como em duas
conferências em Viena e Praga em 1935. Morreu em Freiburg em 27 de abril de 1938 (ADORNO; GREGORY; VERRA.1996,
p. 294-295).
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas 183

de seus sistemas construídos no ar” (REALE, 1991, p. 544). Trata-se de uma verdadeira crítica às
concepções positivistas14 da ciência e uma busca por dar à Filosofia o caráter rigoroso de uma ciência.
Nesse escopo, precisa-se partir de dados indubitáveis para, com base neles, operar a construção
filosófica. Procuram-se, em suma, evidências estáveis para colocar como fundamento da Filosofia:
“sem evidência não há Filosofia”.
O estudo fenomenológico é realizado com a descrição dos “fenômenos” que se anunciam e
se apresentam à ciência depois que se faz a epoché15, isto é, depois que são postas entre parênteses
as nossas persuasões filosóficas. É preciso suspender o juízo sobre tudo o que não é convincente
nem incontroverso, até se conseguir encontrar aqueles “dados” que resistam às reiteradas suspensões
da epoché. A partir da epoché, os fenomenólogos buscam descrever os modos típicos de como as
eidéticas: do grego
coisas e os fatos se apresentam à consciência, as essências eidéticas, portanto a Fenomenologia não eidos, essência.

é ciência dos fatos, mas das essências.


Enquanto a Psicologia é ciência de dados, de fatos, de realidade inserida em um contexto
espaço-temporal, a Fenomenologia é ciência das essências e de fenômenos depurados daqueles no
contexto espaço-temporal e dos englobamentos no mundo em geral. Nisso há, ainda, a crítica ao
psicologismo, concepção que resumia qualquer processo racional-científico ao processo psicológico,
limitando as demais ciências a esta. Concluindo, pode-se dizer que a Fenomenologia se propõe a ser
ciência fundamentada estavelmente, voltada à análise e à descrição das essências.
A consciência humana é “intencional”, é sempre consciência de alguma coisa que se apresenta
de modo típico: a análise desses modos é a função do fenomenólogo. Para conhecer a essência do
objeto de estudo, o fenomenólogo usa da intuição eidética, diferente de um dado de fato. Um fato é
o que acontece aqui e agora, é algo contingente, podendo ser ou não ser, mas quando um fato nos é
apresentado à consciência, juntamente com o fato capta-se uma essência (o som, a cor etc.), o quid
desse fato. As essências são os modos típicos do aparecer dos fenômenos. Seu conhecimento não é
mediato, obtido pela abstração ou comparação de vários fatos, capta-se o aspecto pelo qual os fatos
são semelhantes. O conhecimento das essências é a intuição (REALE, 1991).
Toda intuição que apresenta originariamente alguma coisa é, por direito, fonte
de conhecimento; tudo aquilo que se apresenta a nós originariamente na
intuição (que, por assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser assumido
assim como se apresenta, mas também apenas nos limites em que se apresenta.
(HUSSERL apud REALE, 1991, p. 562)

Seguindo o desenvolvimento da novidade representada pela Fenomenologia, há que se


discutir o argumento da crise das ciências europeias e o retorno ao “mundo-da-vida” (Lebenswelt).
Husserl considera que o positivismo reduziu a ideia de ciência a uma mera ciência dos fatos, e as
meras ciências dos fatos criam meros homens de fato. As interrogações especificamente humanas

14 Termo empregado pela primeira vez por Saint-Simon, para designar o método exato das ciências e sua extensão
para a Filosofia. Foi adotado por Auguste Comte para sua filosofia e, graças a ele, passou a designar a corrente filosófica
que representa a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social do homem, único
conhecimento, moral e religião possível. Suas principais teses são: a ciência é o único conhecimento possível e o seu
método é o único válido; o método da ciência é puramente descritivo; o método da ciência deve ser estendido a todos os
campos de indagação da atividade humana (ABBAGNANO, 2005).
15 Termo grego que significa literalmente “colocar em parênteses” (ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, 1996).
184 Filosofia do Direito

foram banidas do reino da ciência, que se transformou e se limitou, perdendo o seu significado
de guia para a humanidade. Isso gerou a dicotomia entre o conhecimento objetivo e subjetivo do
homem, concretizado no século passado, com o aprofundamento das ciências naturais, humanas
e sociais, que, pelo conhecimento da objetividade, aumentam também incógnitas em relação à
essência humana, já que prevaleceu um estudo cientificamente unilateral dessa natureza.
A crise das ciências não é sua crise de cientificidade, mas sim a crise de seu significado para
a existência humana. Husserl critica a pretensão da ciência positivista e naturalista de ser a única
verdade válida e a ideia ligada a ela de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira
realidade. Essa concepção exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o homem, que,
em nossos tempos, atormentado, sente-se à mercê do destino, sofre com os problemas do sentido
e do não sentido da existência humana em seu conjunto. Nessa crise categorial, substituem-se as
categorias científicas pelo concreto, o pré-categorial, o mundo da vida16. O mundo da vida é o âmbito
das originárias “formações do sentido” humanas, é o conjunto de superações realizadas antes do
nascimento da ciência, âmbito e conjunto que as ciências adotam delas. Isso significa que o mundo,
para Husserl, é um ser já dado, mas que não existiria para o ser humano se ele não o vivificasse na
sua subjetividade. Por isso, a superação da atitude natural consiste precisamente nisto: o ser humano
deixa de acreditar no mundo exterior como algo dado e passa a indagar como as validades são dadas
à subjetividade.
A coisa percebida não é só ela mesma, real e propriamente, porque a subjetividade lhe
acrescenta algo mais, que é anexado ao objeto. Experienciar implica perceber, e este, um projetar. Por
isso o mundo não é dado “como haver”, mas sim através de uma operação subjetiva da consciência
que percebe. Daí porque tudo no mundo é subjetivo-relativo, visto que se relativiza segundo o
sentido que é elaborado ou dado pela subjetividade (HUSSERL, 2002).
A simples experiência, ou a experiência direta das coisas, não é uma experiência da objetividade,
mas sim uma experiência subjetivo-relativa do mundo da vida. O mundo objetivo não é experienciável,
pois o experienciável é somente o elemento subjetivo. É o ser humano traduzido pelo eu ou
conscientizado. O método que viabiliza a transformação de atitude frente ao mundo (passando de
ingênuo a reflexivo) é o método da “epoché fenomenológica”, o qual consiste em uma suspensão do
conceito em análise, libertando o filósofo dos vínculos mais fortes e universais com aquela coisa, e,
por isso, mais ocultos. Encontrando-se sobre o objeto estudado, portanto livre, o fenomenólogo pode,
ao ver o mundo como Fenomenologia, identificar a essência daquilo que estuda (HUSSERL, 2002).

11.6 Justiça como intersubjetividade


Assim como a questão inicial de Husserl é a de como o mundo se dá para a consciência,
na última epoché pergunta-se sobre o enigma da existência de outrem. Trata-se de ultrapassar os
limites da individualidade para atingir o universo da intersubjetividade, passo fundamental para
que a Fenomenologia adquira um caráter objetivo.

16 “Se trata do reino de uma subjetividade completamente circunscrita em si mesma, que é no seu modo, que atua em
qualquer experiência, em qualquer pensamento, e que por isso é em toda parte inevitavelmente presente e que, todavia, não
tem sido mais considerada não tem mais sido apreendida, nem compreendida”; (HUSSERL, 2002, p. 141-142) [tradução livre].
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas 185

Porém o homem necessita primeiro superar as diversas epochés, os diversos estados da


subjetividade. Aquilo que a minha consciência subjetiva pensa é Fenomenologia, não é verdade,
são espelhos que refletem partes do meu existir, mas eu sei que sou muito mais. Por isso, a minha
consciência é um complexo que me dá direções, mas não é meu real. Somente quando os homens se
propuserem ao percurso das reduções fenomenológicas, a autenticidade dada pela intencionalidade
de natureza se manifestará no existir do ser em particular e comunitário, um movimento com
determinado direcionamento já definido que dirige o indivíduo ao agir em conformidade com a
natureza, ao ser que se faz realidade no ser aqui e agora.
A redução transcendental revela que o outro se constitui em “mim” a partir do seu reflexo em
“mim”. O ser adquire a significação de um outro organismo que se encontra também no mundo e
é sujeito do mesmo mundo, análogo ao “mundo do outro.” (HUSSERL, 2001). Cada alma existe em
comunidade com as outras, enquanto está ligada intencionalmente a elas, enquanto está em uma
conexão puramente intencional, íntima e essencialmente fechada: a conexão da intersubjetividade
(HUSSERL, 2001). Ultrapassando-se os limites da individualidade, “o ser é apreendido como
organismo corporal, cuja alma, porém, não é acessível ao Eu do outro de forma direta.” (HUSSERL,
2001, p. 158); “Cada vida, com a sua intencionalidade, penetra, intencionalmente, na vida dos outros,
e todos [...] estão entrelaçados na comunidade da vida.” (HUSSERL, 2001, p. 151).
Husserl assim evidencia o entendimento de que a vida humana é uma intersubjetividade,
pressuposto esse que diz respeito a toda e qualquer concepção de justiça contemporânea, levando
em consideração a definição desta como “referente a outrem”.
Ao elaborarmos o processo reflexivo da redução fenomenológica, deparamo-nos com o outro.
Nesse momento surge a questão da orientação da relação estabelecida entre mim e esse outro, o que
é feito por meio da ética e do Direito. Dentro dessa realidade, a justiça se encontra no modo como
se consegue adequadamente operar essa interação intersubjetiva. O homem pode agir justamente
pois, através do método fenomenológico, tornou-se capacitado a identificar a essência do fenômeno
que surge diante de si.
Além disso, mais especificamente na produção e aplicação do Direito, encontra-se aqui a
necessidade de que os sujeitos que assumem a responsabilidade de criar, analisar, interpretar e aplicar
o Direito nos fenômenos jurídicos pesquisem a sua própria intencionalidade de consciência, pois
acima de seus próprios interesses e de seu modo de agir e pensar encontra-se o interesse público,
ou ao mínimo de outrem, que envolve a atividade por eles desenvolvida.
É necessário que esses sujeitos passem pelas epochés fenomenológicas para que estejam
habilitados a operar o Direito de uma maneira mais adequada à sociedade que é organizada por
esse sistema de leis.
Husserl nos leva assim a refletir sobre a necessidade de a ciência considerar a dimensão
metafísica da consciência, a intencionalidade, construída no mundo da vida pelo método exposto,
pois assim teremos conhecimentos humanos em essência e, por consequência, justos.
186 Filosofia do Direito

11.7 Martin Heidegger


Martin Heidegger é provavelmente o mais famoso dos filósofos existencialistas. Sua extensa
obra é resultado da leitura de toda a história da Filosofia, o que resultou em uma profunda
familiaridade com o pensamento de mentes como Heráclito, Platão, Aristóteles, Kant e Hegel. Todo
esse estudo motivou-se a responder uma indagação fundamental, a questão metafísica e do ser. É
disso que resulta a sua filosofia do dasein, ou do ser-aí.
Primeiro foi filósofo cristão, baseando-se na lógica eterna e imutável de Husserl e nas
concepções medievais de metafísica. Deus era o fundamento e a questão primordial de todas as
suas discussões. Contudo, após 1918, com os acontecimentos históricos daquela época, em especial
os eventos da Primeira Guerra Mundial, suas convicções quanto a verdades imutáveis e atemporais
foram abaladas. Além disso, os seus estudos dos pensadores contemporâneos conduziram-no a
novas indagações, que resultariam na elaboração da mais célebre de suas obras: Ser e Tempo (Sein und
Zeit). Nesse trabalho, Heidegger salienta que não haveria como entender o ser fora da historicidade.
Nesse sentido, a filosofia heideggeriana se aproximaria de uma ontologia existencial.
Primeiro laboriosamente mas depois com o crescendo de uma conquista
triunfante, ele pouco a pouco faz emergir da treva do dasein, como agora chama
a vida humana, os dispositivos apresentados em Ser e Tempo como existenciais
(Existenzialien): ser-em, sentimento de situação (Befindlichkeit), compreender,
decair (Verfallen), preocupação. Ele encontra a fórmula do dasein, que se importa
com o seu próprio poder-ser (Seinkönnen). (SAFRANSKI, 2000, p. 186-187)

Heidegger traz a Ontologia para a existência humana em geral. Expressões como decair
(Verfallen) realçam esse caráter amplamente existencial da obra, que encontra na morte um dos
temas fundamentais. Junto à morte envolvem-se muitas outras questões humanas, como a angústia
e o sofrimento. O dasein de Heidegger é um ser que surge da filosofia de Nietzsche, de sua ideia da
morte de Deus, e se desenvolve conforme a necessidade de uma coragem para a angústia. Em outras
palavras, os dilemas existenciais humanos, o sentido da vida, são trabalhados de forma ontológica.
Importante, então, abrir a questão do ser em Heidegger (2006, p. 42-43):
Caso a questão do ser deva ser colocada explicitamente e desdobrada em toda a
transparência de si mesma, sua elaboração exige, de acordo com as explicitações
feitas até aqui, a explicação da maneira de visualizar o ser, de compreender e
apreender conceitualmente o sentido, a preparação da possibilidade de uma
escolha correta do ente exemplar, a elaboração do modo genuíno de acesso a esse
ente. Ora visualizar, compreender, escolher, aceder são atitudes constitutivas do
questionamento e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente,
daquele ente que nós mesmos, os que questionam, sempre somos. Elaborar a
questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – o que questiona
– em seu ser. Como modo de ser de um ente, o questionamento dessa questão se
acha essencialmente determinado pelo que nela se questiona – pelo ser.

Heidegger liga a Ontologia à existência em geral. Para o filósofo alemão, o ser existe apenas
na perspectiva da consciência humana e, por isso, é sempre ser-aí, é sempre ser no mundo. O ser
não pode ser compreendido em sua profunda acepção pelo homem, mas permanece sendo uma
indagação eterna e angustiante para a humanidade. Essa necessidade revela que, se por um lado é
inaplicável o entendimento do ser, por outro é preciso captar o sentido do ser.
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas 187

Heidegger também separa o domínio do ente, o existente, do domínio do ser. O primeiro


é o domínio ôntico, no qual encontramos a índole que está em todos os entes e que deriva do ser,
que por sua vez é a raiz fundamental de todas as coisas, a qual não se identifica com uma presença
empírica, mas sim um dado que antecede e possibilita todas as presenças17.
Para Heidegger, a tradição filosófica sempre separou a essência da existência, conferindo ao
ser o caráter universal e perene, que não necessita da temporalidade, enquanto a existência se dá no
aspecto empírico. Mas Heidegger assinala que essa distinção deve ser repensada, caso se deseje captar a
ideia de ser: “se o ser é realmente raiz fundamental e a fonte de todas as coisas, importa absolutamente
para o filósofo enraizar esse ser na esfera da temporalidade. [...] Em outros termos, o ser ‘não é isto ou
aquilo’, ele tem que ser; é o homem, o ente, que continuamente o faz ser” (HUISMAN, 2001, p. 101-
102). Dessa constatação surge sua expressão dasein.
O dasein de Heidegger é a presença do ente humano ao ser, bem como alude ainda ao campo
de manifestação deste, ao mundo, onde o ser pode se desenvolver.
A característica desse dasein é a facticidade: continuamente projetado adiante ou
projeto, ele tem que ser e toma todo seu sentido em relação ao futuro. Mas ao mesmo
tempo, o homem não tem a escolha de não ser. Ele é imediatamente surgimento
num mundo que sempre lhe pré-existe, o qual ele tem que operar e que deve
analisar sem Deus. [...] O homem, esse existente humano, é irremediavelmente
projetado adiante de si mesmo; ele se transcende (ultrapassa-se) no tempo e no
espaço para realizar esse projeto que é ele mesmo, pois ele tem que ser o que ainda
não é, e não mais o que é. A facticidade do dasein reside, portanto, no fato de que
o homem é a ‘antecipação de si’”. (HUISMAN, 2001, p. 104)

Portanto, além da busca pela noção de ser, é preciso dar sentido ao ser. Dessa forma, entende-
-se o ser como o ente humano nesse mundo. É necessário buscar dar sentido à vida do homem,
tornando a vida mais autêntica contra as várias mentiras que circundam a vida em sociedade, que
em geral se identificam com a fixação em um objeto ou momento específico da vida. É nesse mundo
de convenções que se pergunta: qual é o sentido da existência? Alguns podem colocá-lo na família,
outros, no trabalho, outros, na religião, e assim por diante, mas cada momento desses, embora
importantes, são apenas momentos, não esgotam a existência por inteiro. Para dar sentido ao ser,
é preciso entender aquilo que preenche a existência, trazendo mais tranquilidade e bem-estar ao
indivíduo. O questionamento de Heidegger é bastante profundo, pois implica na importância de
que não basta entender o mundo, conceituá-lo, classificá-lo, mas também não basta trabalhá-lo,
modificá-lo, se todas essas ações não estão entrelaçadas a uma busca de sentido da existência, a
uma tentativa verdadeira de o indivíduo justificar seu aqui e agora. Heidegger nos remete a refletir

17 Para Heidegger, a tradição filosófica sempre se ocupou apenas da questão ontológica, sem perceber que todo ser é
ser de um ente, decorrendo disso que é necessário estudar também o ser em sua existência. Somente a presença do ser
pode explicá-lo em suas vastas dimensões. “Em consequência, a presença possui um primado múltiplo frente a todos os
outros entes: o primeiro é um primado ôntico: a presença é um ente determinado em seu ser pela existência. O segundo é
um primado ontológico: com base em sua determinação da existência, a presença é em si mesma ‘ontológica’. Pertence
à presença, de maneira originária, e enquanto constitutivo da compreensão da existência, uma compreensão do ser de
todos os entes que não possuem o modo de ser da presença. A presença tem, por conseguinte, um terceiro primado que
é a condição ôntico-ontológica da possibilidade de todas as ontologias. Desse modo, a presença se mostra como o ente
que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro” (HEIDEGGER, 2005, p. 40).
188 Filosofia do Direito

sempre em nossas ações: será que isso que estudo ou faço amplia a minha existência ou é apenas a
fixação em determinado momento? Qual é o sentido de cada ação minha?
Também como uma dessas condições que interrompem o desenvolvimento do ser é a ideia
de morte que se propaga entre as pessoas, aquela que trata a morte como algo banal e universal.
Para Heidegger, a morte é a consciência do insuperável, da finitude do dasein, o fim do dasein
nesse mundo. A morte como um dado insuperável acarreta ao indivíduo uma maior tomada de
responsabilidade para com a sua vida.
A responsabilização do indivíduo frente a sua própria morte (como não sendo
adiada ou remetida ao “fim da vida”) é, portanto, a tomada de consciência
profundamente existencial de que ele não deve a significação de sua existência a
nada senão a seus próprios atos, e sobretudo não deve à utilidade e à “atividade”
quotidiana. O ser autêntico é então aquele que reconhece sua morte como
sua única especificidade, visto que ninguém pode substituí-lo em sua própria
morte; assim, ela é a única coisa que lhe pertence propriamente. (HUISMAN,
2001, p. 104)

Heidegger exige do indivíduo uma profunda tomada de responsabilização por sua própria
vida. Como vemos, a morte não é uma atração à decadência, mas o dado concreto e insuperável
que conecta logicamente sua filosofia, a filosofia do dasein. A morte põe fim à existência humana,
retira o dasein do mundo, ao mesmo tempo em que retira do indivíduo todas as demais limitações.
A morte é o dado que liberta o homem, pois, sendo algo insuperável, exige do indivíduo que durante
sua vida faça-a da melhor maneira possível, desenvolvendo o seu ser.
As reflexões de Heidegger também contribuem em uma aplicação ao Direito e ao business.
O Direito trabalha convenções sociais, as normas jurídicas são convenções postas pelo Estado,
pela sociedade etc. Será que essas normas ajudam as pessoas a dar mais sentido à existência? As
normas são pautadas na coletividade, mas a existência tem sentido único. Nessa contraposição,
cada indivíduo tem o dever de dar sentido à sua existência, sabendo que as convenções são sempre
momentos importantes, mas não completos. A lei é um instrumento de organização social, por
isso é importante a pessoa realizar aquilo que lhe dá sentido sem colidir com os interesses sociais
e coletivos refletidos nas leis.

Considerações finais
A filosofia dos séculos XIX e XX é sempre mais centrada na existência, preocupada em
entender a posição do indivíduo diante da sociedade e da vida. Eu, nesta existência, que papel tenho?
Como posso desempenhar com excelência meu cotidiano?
Diante dessa problemática, os filósofos apresentam soluções diversas, caminhos distintos, da
necessidade de pensar o condicionamento econômico das instituições à importância de refletir o
homem diante do mundo e da vida, de sua posição ôntica.
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas 189

Ampliando seus conhecimentos


• A LIBERDADE é azul. Direção de Krzysztof Kieslowski. França; Polônia; Suíça: MK2
Productions; CED Productions; France 3 Cinéma; Zespol Filmowy; CAB Productions,
1993. (98 min), son., color., 35 mm.
Uma mulher perde marido e filhos em acidente de automóvel e então de repente se vê diante da
liberdade social. No entanto, vários outros dilemas morais começam a afligi-la, demonstrando
que a construção da liberdade é antes uma questão interna, existencial, é se libertar de vários
modelos morais interiorizados em nossa personalidade, tal como defenderam vários filósofos
existencialistas.

• GERMINAL. Direção de Claude Berri. França; Bélgica; Itália: Renn Productions; France
2 Cinéma; DD Productions, 1993. (160 min), son., color., 35 mm.
Adaptação literária famosa de história envolvendo movimento operário, greve de
trabalhadores e crise do capitalismo, demonstrando a imensa influência do pensamento de
Marx não apenas na história do pensamento, mas também nos eventos políticos e sociais.

Atividades
1. A partir da visão de Marx sobre a sociedade, comente algumas relações da sua leitura com
a realidade atual. Analise a supremacia do poder estatal, o papel do indivíduo como ativista
político, as classes sociais etc.

2. O pensamento filosófico de Søren Kierkegaard opera-se no sentido de valorizar a importância do


existir humano, como uma questão muito mais importante, inclusive, que o desenvolvimento das
próprias ciências naturais. Nesse escopo, o filósofo destaca a importância da angústia e da decisão
como momentos elementares para que se opere a passagem existencial em sentido qualitativo.
Considerado o mundo atual, qual é a importância dessas concepções?

3. Nietzsche, em suas obras Além do Bem e do Mal e Gaia Ciência, retrata a existência de duas formas
de moral na sociedade: uma, aristocrática, pertencente aos indivíduos superiores, e outra, baseada
no ressentimento. Além disso, em Assim Falou Zaratustra, expõe a importância do além-do-homem
como a meta a ser alcançada na existência humana. Com base nesse suporte, podemos afirmar que
essas duas morais coexistem na sociedade contemporânea? Qual é a importância da superação do
homem ordinário nesse sentido?

4. Husserl trata sobre a importância do movimento da epoché, de colocar o conhecimento entre


parênteses para que seja possível a análise fidedigna do fenômeno. Acerca dessa concepção, qual
é a importância de suspender esses conhecimentos para a realidade pessoal e profissional atual?
190 Filosofia do Direito

5. O grande mérito de Heidegger é trazer a Ontologia para a existência em geral, criando a


filosofia do dasein, o ser-aí. Reflita sobre a relação entre a Ontologia, o puro ser metafísico e
o caminho humano em sua existência mundana e temporal.

Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. de Alfredo Bosi. Revisão e tradução dos novos textos
de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. Roma-Bari: Gius Laterza & Figli
Spa, 1996.

BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. rev, aument. e modif. pelo autor. São Paulo: Atlas, 2008.

COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. 4. ed. Trad. de Ana Doménech.
Barcelona: Ariel, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15. ed. Trad. de Marica S. C. Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005. Tomo I.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.

HUISMAN, Denis. História do Existencialismo. Trad. de Maria L. Loureiro. Bauru: EDUSC, 2001.

HUSSERL, Edmund. La Crisi delle Scienze Europee e la Fenomenologia Transcedentale. Per un sapere
umanistico. Trad. de Enrico Filippini. Milão: Net, 2002.

HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas: introdução à fenomenologia. Trad. de Frank de Oliveira. São
Paulo: Madras, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. 2. ed. Tradução,


notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. 3. ed. São Paulo:
Paulus, 1991. 3 v.

SAFRANSKI, Rudiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Trad. de Lya Luft. São Paulo:
Geração Editorial, 2000.

SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. de Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
12
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Concluindo este livro, neste capítulo serão apresentadas as contribuições da filosofia


contemporânea ao Direito e às discussões das concepções de justiça. Trataremos das concepções
de Max Scheler, Carl Schmitt, Hans Kelsen, John Rawls, Jürgen Habermas e, por fim, do filósofo e
jurista brasileiro Miguel Reale. Desse modo, serão aqui introduzidas algumas das mais importantes
reflexões acerca do tema no pensamento atual, as quais seguem como principal objeto de reflexão
contemporaneamente.

12.1 Max Scheler


Em Visão Filosófica do Mundo, é possível captar a forma como Scheler pensa e filosofa acerca
das grandes questões da vida humana. Para ele, o saber é composto por três níveis: o primeiro
ainda é ligado aos objetos, em que é marcante o saber empírico das ciências positivas. Nesse nível,
o grande objetivo é entender as leis que regem o mundo, porque, entendendo essas leis, podemos
captar seu funcionamento, prevendo-as e dominando-as. Um segundo nível é o saber filosófico,
que se relaciona àquilo que Aristóteles chamava de filosofia primeira, portanto, o entendimento
ontológico do homem e do mundo. Por fim, um terceiro nível é a metafísica da salvação, momento
em que o homem se liga ao cosmos e a Deus1.
Esse entendimento é importante para se compreender como a filosofia de Scheler insere-se
em uma visão ampla que envolve a Antropologia, a Cosmologia e a Teologia, ou seja, o homem, o
mundo e Deus. A ética de Scheler, representada em sua cosmologia dos valores, também se situa
nessa linha de pensamento.
Max Scheler foi grande adversário da ética kantiana, que teria formulado apenas uma ética do
ressentimento, em que se obedece a lei por dever apenas, mas que nada justificaria tal formulação. A
arbitrariedade de obrigar a obediência causa ressentimento e bloqueia o prazer e a alegria da vida. Por
tal motivo, Scheler muda o conceito fundamental da ética do dever para o valor. A ética trabalha com
bens, mas os bens são bens justamente pelos valores. O valor seria a essência em sentido husserliano, ou
seja, a qualidade pela qual a coisa é boa. Exemplos: a pintura é um bem, mas a sua beleza é valor; assim
como a relação entre lei e justiça. Nesse sentido, Scheler busca articular uma ética dos valores, mas com
os valores em seu sentido material.

1 “Também a ‘pessoa’ espiritual do homem não é uma coisa substancial nem um ser com a forma de um objeto.
O homem pode unir-se com essa sua pessoa somente de uma forma ativa. Pois essa pessoa é uma estrutura
monarquicamente ordenada de atos espirituais que representa todas as vezes uma autoconcentração única e individual
desse espírito infinito, um e sempre mesmo, em que está enraizada a estrutura essencial do mundo objetivo. Por analogia,
entretanto, o homem, como ser dotado de instinto e vida, está também enraizado no impulso divino da ‘natureza’, em
Deus. Nós experienciamos essa unidade de raiz de todos os homens, mesmo de tudo que é vivo, no impulso divino dos
grandes movimentos de simpatia, de amor, e em todas as formas de sentir-se em uma só unidade com o cosmos. Esse
é o caminho ‘dionisíaco’ a Deus” (SCHELER, 1986, p. 17).
192 Filosofia do Direito

Para Scheler, o valor não é algo construído intelectualmente, mas percebido no cosmos dos
valores que circundam a todos. “E os valores não são objeto de atividade teórica, senão de intuição
emocional” (REALE, 1991, p. 568).
O homem tem uma intuição sentimental que é capaz de ver a essência dos valores, a qual
constituiria uma lógica pura, a única capaz de compreender os valores como essência. Esses valores
podem, inclusive, ser organizados conforme uma sucessão hierárquica: valores sensoriais (alegria-
-tristeza, prazer-dor); valores da civilização (útil-danoso); valores vitais (nobre-vulgar); valores
culturais ou espirituais, os quais dividem-se em valores estéticos (belo-feio); ético-jurídicos (justo-
-injusto); especulativos (verdadeiro-falso); e, por fim, valores religiosos (sagrado-profano). Desse
quadro, Scheler é capaz de analisar antropologicamente o homem, extraindo daqui inclusive o seu
conceito de pessoa, que seria:
Para Scheler, a pessoa não é sujeito que considera a natureza pragmaticamente
apenas como objeto a dominar: quase franciscanamente, a pessoa sabe se
colocar na atitude extática de abertura para as coisas. Ademais, a pessoa está
originariamente em relação com o eu-do-outro. E essa relação vai das formas
mais baixas da sociabilidade ao ponto culminante, representado pela relação de
amor. A forma mais baixa de sociabilidade, que nasce do contrato social; a ela,
segue-se a comunidade vital ou nação; depois, temos a comunidade jurídico-
-cultural (Estado, escola, círculo) e, por fim, a comunidade de amor, a Igreja.
(REALE, 1991, p. 568)

Scheler não somente apresentou os valores, mas também articulou critérios para se estabelecer
os graus de alturas entre eles, que seriam: os valores são mais fortes quanto mais duradouros são;
quanto menos divisíveis forem; quando são fundamentos de outros valores; quanto mais profunda
é a satisfação provocada em nós; e o grau de relatividade.
Essa concepção de valores seria a sua ética, pois, como os valores não são essências criadas
teoricamente pelo homem, mas intuídas emocionalmente de um cosmos de valores, o qual brotaria
do íntimo da relação do homem com o próximo, com a natureza e com Deus, deveria ser o núcleo
das relações em sociedade, inclusive das questões envolvendo a justiça. Para Scheler, a justiça deve
refletir sobre essa hierarquia de valores, bem como sobre critérios dos graus, pois os problemas
jurídicos são consequências dessas deficiências sociais envolvendo os valores. Portanto o relativismo
de valores é perigoso para a aplicação do Direito.
No contexto da contemporaneidade o pensamento de Max Scheler adquire ainda maior
importância, devido à sua intuição da cosmologia dos valores emanada na relação com o próximo.
No mundo atual é consenso que a solidariedade é indispensável, pois é ela, como valor de essência
intersubjetiva, que permite a melhor interação entre as pessoas. Na empresa, a ligação com o outro
deve se dar em todos os níveis, seja entre funcionários, entre funcionários e chefes, entre todos e os
clientes. O saber trabalhar em equipe não é apenas habilidade técnica, mas é acima de tudo entender
o outro, conhecer seu valor como pessoa única. Todos têm seu valor, e esse entendimento deve
permear tanto a vida econômica como a vida familiar e a própria vida em sociedade. O empreendedor
que intui o valor do outro e sabe se relacionar de modo profundo com todos que o acompanham
certamente obterá maiores resultados, pois sua equipe trabalhará como uma sociedade de pessoas
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 193

conscientes de seus valores. Na relação profissional, o valor como conteúdo impulsiona a pessoa a
oferecer mais pela organização do que normalmente o faria.

12.2 Carl Schmitt


O conturbado século XX, cenário de duas Guerras Mundiais e outros inúmeros conflitos
bélicos em todo o mundo, que colocaram em xeque as grandes ideologias que perduraram na história
da humanidade, resultou em um complexo espaço de debates acerca das questões jurídicas, sociais,
políticas e econômicas. O período entre o final da Primeira Guerra e o início da Segunda Guerra
recebeu preocupação, sobretudo, acerca da condição humana. Um dos autores que trabalhou essas
indagações foi Carl Schmitt.
O objetivo principal da obra de Carl Schmitt é encontrar uma fundamentação para o poder.
Bittar assinala que Schmitt faz uma analogia da Teologia com a Política, ao dizer que o milagre está
para a Teologia assim como a exceção está para a política. Nesse sentido, para Schmitt o poder não
se fundamentava em bases jurídicas, mas políticas. O âmago do poder coercitivo não estaria na
lei, mas na decisão, da qual emana toda a soberania. “De fato, soberania consiste na competência
imprevisível, que é a ordem emanada com superioridade do político sobre o jurídico, o que de certa
forma determina o próprio conteúdo do Direito que se quer ver positivado em um Estado. Antes
da lei está a decisão.” (BITTAR, 2008, p. 238)
Não há como haver uma norma jurídica sem antes haver uma decisão que o formule. A ordem
não pode emanar de si mesma, mas de uma outra vontade. A necessidade de a ordem vir de uma
decisão, portanto, justificaria a superioridade da política sobre o jurídico.
Esses entendimentos ele formulou, sobretudo, após os estudos das obras de Hobbes e Bodin,
que justificam a supremacia e soberania do Estado, respectivamente. Percebe-se como Schmitt não
está tão preocupado em discutir se existe uma justiça e qual seria ela, em um ordenamento jurídico,
mas de onde emana essa necessidade de se obedecer ao ordenamento. Para Schmitt, toda lei, sem
importar seu conteúdo, exige obediência, uma vez que “desde quando irrompeu da modernidade, toda
legitimidade se converteu em legalidade” (BITTAR, 2008, p. 238). Para Schmitt, portanto, a decisão
define toda a justiça e o conteúdo do Direito.
Uma vez que a reflexão de Schmitt lhe autoriza a confinar todo o poder no
episódio de produção da decisão política, que consiste no desdobramento de ação
de uma instituição, e não de uma vontade, o que dá o tom e define a natureza do
sistema jurídico que se tem, a exceção passa a se tornar a regra do funcionamento
do sistema jurídico, e é aí que reside o decisionismo institucionalista de Schmitt.
(BITTAR, 2008, p. 238)

A formulação de Schmitt baseava-se muito na leitura do artigo 48 da Constituição de Weimar,


que possibilitava ao presidente, no caso de crise no Estado, obrigar os indivíduos a praticarem
determinados atos, por via da força armada. Seria uma opção pela guarda da Constituição do
presidente do Reich. Essa leitura permite a interpretação de que ali está contido o fundamento da
soberania decisiva, pois, se nos momentos de maior crise é permitido ao presidente tornar-se um
ditador comissivo, toda a construção jurídica e política de um Estado de exceção seria justificada.
194 Filosofia do Direito

Desse modo, Schmitt critica Kelsen ao afirmar que a lei não se justifica por si mesma, nem
o Direito tem fim em si mesmo. O jurídico não emana de si mesmo, mas da ordem política, que
“lhe antecede, lógica e cronologicamente” (BITTAR, 2008, p. 239). Schmitt também demonstra a
limitação das formulações kelsenianas argumentando que muitos casos nos quais o Direito precisa
se manifestar não estão prescritos em leis e códigos, mas ainda assim precisam de uma resolução,
que vem por meio da decisão política ou institucional. “o Direito é fruto das instituições existentes
e vigorantes, e não o contrário. A ordem concreta existente nas condições históricas de um povo é
o que determina a formação do Direito, e não o contrário” (BITTAR, 2008, p. 240)
A ideia de Política, para Schmitt, contudo, baseia-se no objetivo de identificar amigos e
inimigos tanto dentro como fora do Estado. Busca-se uma homogeneidade, uma unidade social,
para que se anulem as hostilidades que podem ameaçar o funcionamento do sistema. Percebe-se
como as ideias de Schmitt refletem de modo marcante o seu período histórico, pois ressaltam a crise
social e política vivida pela Alemanha após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Todos os vieses
políticos deveriam convergir à unidade, o que não se torna harmonioso com os ideais democráticos
muito reclamados em seu tempo, pois este exige o pluralismo político, por exemplo.
Em Schmitt se encontra uma abordagem prática, de preocupação com fins, resultados
concretos. A visão de Schmitt não busca uma obediência à norma em si mesma, mas sim uma
percepção de que o ordenamento jurídico é produto de uma ordem política, de uma organização
social. As regras são fundamentais, as normas são indispensáveis para uma vida em sociedade, mas a
regra em si mesma pode se congelar no tempo, exigindo do operador social a capacidade de adaptá-la
às circunstâncias históricas. É necessário buscar o bem comum, fazer aquilo que é funcional para a
sobrevivência e o crescimento da coletividade, que no caso de Schmitt é o Estado como organização
da sociedade, mas esse pensamento serve também para o operador empresarial. A cada momento
deve o empresário e gestor indagar se a cultura, se as metodologias, se as práticas organizacionais
são ainda atuais, são ainda capazes de gerar evolução para a organização. Mais importante que a
fidelidade às regras estabelecidas é a capacidade de adaptar tais regras às exigências da organização
tendo em vista seu futuro de vitórias.

12.3 Hans Kelsen


Tal como Carl Schmitt, Hans Kelsen também não se preocupou com a questão de se a lei seria
justa ou injusta. Para esse jusfilósofo alemão, são distintas a justiça, a validade e a eficácia do Direito.
Kelsen é responsável pelo positivismo jurídico, mas não um positivismo em sentido ideológico, e
sim aquele em que o autor busca estudar o Direito como uma ciência jurídica, autônoma em relação
às demais ciências.
Kelsen [...] afirma que o que constitui o Direito é a sua validade jurídica. E
acrescenta que a norma jurídica, diferentemente de outras normas, se qualifica
por sua coatividade, mas não sustenta de modo algum que o Direito válido seja
também o justo. Para Kelsen, o problema da Justiça é problema ético, enquanto
o problema jurídico é o problema da validade das normas, se a autoridade de
que emana esta ou aquela norma tinha ou não o poder legítimo para fazê-lo.
(REALE, 1991, p. 909-910)
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 195

Para Kelsen, distinguem-se os “juízos de fato” (ou descrição científica) dos “juízos de valor”.
Dessa forma, a ciência jurídica, ainda que estude normas que implicam necessariamente valores,
não pode compreender tais valores, mas apenas as normas que estão ligadas a eles. Portanto, “se
o conhecimento não pode criar os valores, então a função do estudioso do Direito não é a de
fundamentar um ideal de Justiça” (REALE, 1991, p. 909-910). É necessário, para isso, delimitar
o Direito, separá-lo da ética, que é a ciência que deve discutir a questão da justiça. Importante
assinalar que Kelsen não elimina a justiça do Direito, mas apenas entende que a justiça não é objeto
de estudo da ciência jurídica, a qual deve se limitar ao Direito e às normas jurídicas. Kelsen não está
preocupado em discutir a política jurídica, mas apenas a ciência jurídica.
Percebe-se como a visão kelseniana parte da distinção kantiana entre ser e dever-ser. A norma
jurídica, para Kelsen, não se formularia a partir do princípio da causalidade, mas da imputação.
Ou seja, enquanto nos fenômenos naturais há um nexo de causalidade, ou seja, uma explicação do
porquê de um acontecimento, nas normas jurídicas existe um acontecimento ilícito que é seguido
por outro acontecimento: a sanção.
Entretanto, precisamente, o nexo entre o ilícito e a sanção não é nexo causal
entre fenômenos naturais, que o pensamento simplesmente constata, mas muito
mais uma imputação ou atribuição – realizada pela vontade de alguém – em
consequência a um fato que, em si mesmo, não é sua causa, mas sim condição –
e que o é por uma vontade o colocou como tal. (REALE, 1991, p. 909-911)

Disso decorre que a norma jurídica atribui uma consequência a uma condição, ou seja, uma
sanção a um fato ilícito. Importante esclarecer que esses ilícitos não são ilícitos em si mesmos, mas
o são porque uma norma jurídica assim o prescreve. Acontecimentos reprováveis não prescritos
por normas jurídicas entram no campo da moral, e não da ciência jurídica. No campo do Direito,
para uma ação ser considerada ilícita, requer-se que seja seguida por uma sanção. Dessa constatação
decorrem duas novas situações: uma é que cada indivíduo deve observar para não infringir a norma
jurídica; outra é quando alguém infringe a norma jurídica, outro indivíduo deve aplicar nele uma
sanção. Esse outro indivíduo é o juiz.
Não obstante, para que esse juiz seja obrigado a aplicar a sanção, exige-se do ordenamento
jurídico uma norma anterior, que é aquela que sanciona caso o juiz não aplique as outras sanções
a quem é devido. O problema é que nessa lógica chegaríamos à necessidade de haver sempre uma
norma anterior, que sancione quem não aplica as posteriores.
Contudo não se pode retroceder ao infinito. Logo, deve haver uma norma que dê validade
a todas as outras normas jurídicas, a qual se situe na base de todo o ordenamento jurídico. Essa
primeira norma, que Kelsen chamou de “norma fundamental”, não é posta, mas pressuposta.
Como cada norma procede conforme determinação de uma norma anterior, sempre acabaríamos
retrocedendo à Constituição, a qual por sua vez decorre de Constituição anterior etc. Esse processo
retornaria na história, até que se encontrasse uma primeira vontade da qual emanaram as demais
normas. Essa vontade pode ser tanto uma medida despótica como uma decisão por assembleia. É
esse sistema hierarquizado de normas de que depende a validade do Direito.
A norma fundamental pode muito bem ser referida como a “fonte do Direito”, pois é ela que
dá validade a todo o ordenamento jurídico, antes dela não há norma. A necessidade de uma norma
196 Filosofia do Direito

depende de outra norma para existir, culminando em uma hierarquia em forma de pirâmide, e tal
raciocínio está em conformidade também com o seu princípio de que a ciência jurídica deve ser
separada das demais ciências. Por isso a norma fundamental deve ser uma norma, algo que proponha
autonomia ao Direito. Esse caráter confere soberania ao ordenamento jurídico.
A soberania é exatamente a manifestação dessa supremacia da ordem jurídica
positiva de determinado Estado-nacional. Quando este se afirma, trazendo consigo
e personificando uma ordem jurídica, em verdade, cria a incontrastabilidade de suas
regras, o que define sua condição de ente soberano, nacional e internacionalmente,
na medida em que conta com o seu reconhecimento seja interna, seja
internacionalmente. (BITTAR, 2008, p. 248-249)

Nesse sentido, a soberania nacional implica também a existência de uma ordem jurídica
internacional, pois um Estado, para ser soberano, necessita ser reconhecido pelos demais. Para que
um Estado tenha pleno poder de autonomia para legislar, julgar e executar leis em seu território, é
necessário que essa soberania seja reconhecida por outros Estados.
Esse tópico é importante pois é aqui que Kelsen se diferencia de Carl Schmitt. Como a
soberania provém de um respeito ao ordenamento jurídico de outro Estado, isso significa que a
perspectiva positivista-normativista implica ela mesma em soberania interna e externa, e não em um
poder político. É o sistema jurídico que implica na Política em reconhecer a validade das normas, e
não a decisão de algum indivíduo ou instituição, pois essas decisões já são decorrências do sistema
normativo. Kelsen afirma mais uma vez a necessidade de uma teoria pura do Direito, desprovida
de análises axiológicas.
Ainda assim, o pensamento kelseniano pode muito bem ser afirmado como uma Filosofia
do Direito, de caráter positivista-normativista. A ideia de uma ciência jurídica autônoma, com
objeto próprio, decorre antes de reflexões filosóficas que permitem tal construção, que nesse caso
foram realizadas por Kelsen. Ele não discute conteúdo de leis, mas sua validade, a construção de
um ordenamento jurídico. É marcante a influência de Kelsen no direito contemporâneo, pois suas
reflexões conduzem a dinâmica da maioria dos ordenamentos jurídicos atuais.
Kelsen nos lembra da indispensabilidade de se respeitar as normas, da necessidade de estabelecer
um ordenamento organizado e imposto a todos como condição de pacto para o bem comum. A
norma, quando inteligente, quando reflete as coordenadas da realidade, é um imenso instrumento de
funcionalidade, de facilitação de riqueza, de construção de bem-estar e responsabilização dos indivíduos
perante a sociedade. A norma inteligente é civilizatória. Com isso deve também o operador empresarial
pensar as metodologias e regras da organização como instrumentos de inteligência, como ferramentas
que devem auxiliar os profissionais a serem mais dinâmicos, responsáveis, produtivos, normas que
informem indicadores de qualidade, metas, que estabeleçam uma racionalidade vencedora. A norma
inteligente pode ser metodologia que facilita o sucesso.

12.4 John Rawls


John Rawls foi um contratualista do século XX que formulou uma Teoria da Justiça que colocava
a justiça como equidade, como um dos pilares da construção de uma sociedade democrática para
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 197

cidadãos que fossem livres e iguais. Ele não somente buscou caracterizar o que é a justiça ou qual é
a sua finalidade, mas também procurou explicar todas as etapas que envolvem a formulação de uma
concepção de justiça, para que esta posteriormente pudesse nortear toda construção das estruturas
componentes de uma sociedade. Sua teoria procura explicar desde as questões mais primordiais, como
o momento que precede a própria criação de uma estrutura básica, caracterizada como possuidora
de todos os elementos essenciais a uma sociedade, passando pela formulação de uma concepção de
justiça que vise a equidade, caracterizando também as situações em que se torna possível a existência
da desobediência civil, como um meio às vezes necessário para obter a restituição de determinado
direito violado.
Partindo da ideia de que Rawls procura desenvolver um critério para a escolha da concepção
de justiça que seja equânime, o primeiro ponto é assegurar para que todas as partes envolvidas nessa
escolha não possuam nenhum tipo de parcialidade que possa vir a beneficiá-las. É nesse ponto que
entra uma das ideias basilares dentro da teoria de Rawls: a ideia da posição original. A posição original
é um estado em que as partes se encontram e têm um total desconhecimento das características
da outra parte, bem como de si mesmas. Em outras palavras, não sabem que doutrina religiosa ou
política, que anseios, objetivos, que condição social a outra possui, além de desconhecer também
as próprias características. Dessa forma, diminui-se a possibilidade da prática de uma injustiça no
momento da escolha da concepção de justiça adequada àquela sociedade (RAWLS, 1986).
Poderiam ser escolhidos diferentes critérios para se identificar os princípios norteadores,
por exemplo um conjunto de hábitos ou costumes, uma lei natural, ou valores morais, porém, para
Rawls, somente ao estar na posição original que se pode ter uma aproximação da imparcialidade
necessária para a escolha dos princípios norteadores, já que nela as partes usam o que o autor chama
de “véu da ignorância”, que é justamente essa incapacidade de conhecer as características próprias
e alheias. É importante destacar que o termo “ignorância” não significa “desconhecimento”, ou que
as partes estão incapazes de formular raciocínios coerentes, mas sim que estão impossibilitadas de
perceber qualquer particularidade que possa afetar a decisão (RAWS, 1997).
Encontrando-se na posição original, parte-se para a observação das doutrinas e filosofias
existentes a fim de se encontrar aquela mais adequada para a construção da sociedade, utilizando-se
do que o autor intitula como “equilíbrio reflexivo”. Por equilíbrio reflexivo o autor entende a ação
de procurar “refletir” as ideias, ou seja, não tomar nada como verdadeiro ou absoluto, buscando
compreender o verdadeiro significado de determinado argumento e de que maneira isso se “reflete”
na sociedade. As ideias de posição original e de equilíbrio reflexivo se complementam, ou seja, não
é possível fazer a reflexão dos argumentos se o indivíduo não está na posição original, da mesma
forma que para que possa se situar na posição original é preciso verificar e analisar os argumentos
por meio do equilíbrio reflexivo.
Tendo então constatados os passos iniciais para a construção de uma sociedade justa para
cidadãos livres e iguais, observando que até mesmo na formulação de uma estrutura básica
para dar o mínimo de subsistência é necessário se encontrar na posição original e no equilíbrio
reflexivo, passa-se para uma nova etapa: a determinação do consenso sobreposto.
198 Filosofia do Direito

O consenso sobreposto é entendido como a habilidade de se encontrar um consenso entre as


várias doutrinas filosóficas, políticas e sociais, para que elas possam coexistir em harmonia dentro
de uma sociedade. Esse consenso é formulado de tal maneira que não seria vantajoso a nenhuma
das partes contrariá-lo, ou seja, a melhor opção seria sempre estar de acordo com esse consenso
que foi sobreposto aos outros.
Portanto a posição original e o equilíbrio reflexivo são conceitos que surgem para tornar justa
e imparcial a escolha dos princípios norteadores que vão delinear toda a construção da sociedade.
A estrutura básica inicial, as instituições, a economia, a política, os direitos e deveres dos cidadãos,
tudo isso será formado com base nos princípios norteadores que foram evidenciados pela posição
original e pelo equilíbrio reflexivo. Com isso, o autor pretende criar uma teoria da justiça que eleva o
nível de abstração do conceito tradicional de contrato social. Em vez de um pacto social, tem-se uma
situação inicial que possui certas restrições destinadas a fomentar um acordo sobre os princípios de
justiça. Esses princípios, então, servirão de guia para que as pessoas busquem a cooperação social.
Rawls, assim como outros autores, traz a ideia da desobediência civil, em que os cidadãos,
ao constatarem que determinada injustiça está sendo praticada ou ao perceberem que certa
lei fere os princípios fundamentais, recorrem ao uso de meios, muitas vezes ilegais e que
desobedecem à lei, para que a justiça seja restaurada. Segundo Rawls (1986), a desobediência
civil é um ato não violento que tem como objetivo provocar mudanças nas políticas do governo
sempre que os princípios de cooperação social entre os cidadãos não estejam sendo respeitados.

12.5 Habermas
Jürgen Habermas2, considerado um dos maiores expoentes do pensamento filosófico na
contemporaneidade, direciona seu pensamento à reflexão da metodologia hermenêutica das
ciências humanas, o espírito das ciências (Geisteswissenschaften). O pensador alemão procura
justificar a primazia de uma ciência social crítica contra a hegemonia metodológica na discussão
sobre as ciências (INGRAM, 1987). Para sustentar essa base metodológica, Habermas preocupa-se
em criar um fundamento ético, considerando-o essencial para que as mencionadas ciências sejam
invocadas como auxiliares à administração racional humana.
Sua principal obra é a Teoria da Ação Comunicativa, em que defende a construção da sociedade
por meio de consensos obtidos pelo discurso. Entende que com a diminuição do poder das autoridades
religiosas e tradicionais no presente século, estaria entrando em um perfeito ambiente para o
desenvolvimento desse espaço de discussões isento de coerções e de entidades que personalizassem a
interpretação vigente dos fenômenos. O pensador considera que há agir comunicativo quando “os planos
de ações dos atores implicados não se coordenam através de um cálculo egocêntrico de resultados, senão
mediante atos de entendimento” (HABERMAS, 1999, p. 367), quando as partes envolvidas no discurso
estão abertas a, por meio do discurso, firmarem um entendimento.

2 Nascido em 18 de junho de 1929 em Dusseldorf. Estudou Filosofia, História, Psicologia, Economia e Literatura alemã
nas universidades de Göttingen, Zurique e Bonn entre 1949 e 1954. Doutorou-se em Bonn no ano de 1954 com a tese
O Aboluto na História – um estudo sobre Filosofia das Idades do Mundo de Schelling. É considerado um dos pensadores
da segunda geração da Escola de Frankfurt, tendo por influências os pensadores da primeira geração como Adorno,
Horkheimer e Marcuse (HABERMAS, 1993).
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 199

Nesse sentido, uma teoria social voltada aos potenciais de reflexão e crítica imersos nas
interações linguísticas deve assumir a tarefa de criar uma comunicação isenta de coerções em
diversos âmbitos da vida social, bem como analisar a natureza de seus principais entraves.
Fala-se, assim, na colonização do mundo-da-vida, o próprio solo da ação comunicativa pelo
sistema, entendendo-se essa categoria, a Lebenswelt, no sentido husserliano do termo. Essa
invasão é protagonizada pela monetarização e burocratização da vida social, em que as relações
interpessoais passam a ser coordenadas não pelo entendimento recíproco dos participantes,
mas por meios padronizadores e linguisticamente empobrecidos do dinheiro e do controle
burocrático; vários são os resultados dessa força atuante, como a perda de sentido cultural e a
‘‘anomia social”, a perda da validade das normas sociais.
A racionalidade comunicativa é a utilização comunicativa do saber imbuído de alguma
proposição em ato de fala. Disso decorre que somente pode-se atribuir o termo “racional” a todo
ato de fala criticável, pois somente se for possível criticar a coisa pode-se considerar que tal conexão
se apresenta implicada conceitualmente.
O pensamento de Habermas direciona-se à fundamentação de uma ética deontológica, uma
ética dos deveres, com base no pensamento de Immanuel Kant. É para lograr êxito nesse intento que
sua teoria é alicerçada na importância da linguagem, considerada pragmática e universal, dando-se a
apreensão de um objeto por meio dela. Opera-se essa vinculação principalmente a partir da chamada
virada linguística, em que ele acrescenta à linguagem, além da dimensão sintática e semântica, um
terceiro aspecto, a dimensão pragmática. Com isso, torna-se possível, com o uso de uma Filosofia da
Linguagem, acessar as questões morais.
Se a linguagem é essencial na formulação do pensamento humano, também o será quando
se considerar o momento em que o indivíduo usa de sua razão para buscar encontrar a melhor
conduta para si, ou seja, a ética. Habermas propõe que tanto a correção de normas morais quanto a
verdade de proposições descritivas se estabelecem no discurso, sem estarem vinculadas, portanto,
a um princípio universal. A validade das proposições só pode passar pela prova discursivamente.
Após isso, opera-se o princípio de universalização, que é a regra do discurso, envolvendo as ideias
de aceitação geral e não coativa daquele argumento.
Além da ética, o Direito também deve ser encarado sob a perspectiva da razão comunicativa.
Conforme Luiz Moreira, esse é o modo como o Direito se institucionaliza, por meio de um procedimento
emanado da relação de complementaridade entre direitos humanos e soberania popular dos cidadãos;
esse procedimento permite ao Direito estabelecer-se como normativo (MOREIRA, 1999, p. 155).
O Direito possui uma neutralidade deontológica, portanto não há subordinação do direito
positivo ao direito natural. É por intermédio dessa neutralidade que Habermas constrói o sistema
jurídico, estabilizando a autonomia privada e pública por meio do procedimento administrativo. Na
busca por um critério de validade ao ordenamento jurídico, Habermas encontra-o na moralidade,
que garantirá a validade das normas jurídicas positivas, o que não significa uma subordinação das
normas jurídicas às morais, ambas coexistem em uma correlação complementar recíproca3.

3 “À luz das teorias do discurso normas morais válidas (gültig) são ‘corretas’ (richtig) no sentido de justas (gerecht).
Normas jurídicas válidas estão afinadas com normas morais” (HABERMAS, 1997, p. 196).
200 Filosofia do Direito

A normatividade de um ordenamento jurídico somente ocorrerá com a incorporação neste da


razão comunicativa; esta passa a substituir a razão prática no plano da fundamentação do Direito.
Quanto à manutenção do ordenamento jurídico, é operada pelos cidadãos, que são os
produtores das leis. Somente quando o Direito emanar da vontade do povo ele terá sido legítimo
e tanto mais legítimo será quanto mais preservar o espaço de liberdade privada. Quando as partes
envolvidas não tiverem sua autonomia e liberdade preservadas, as prescrições do Direito não
poderão ser consideradas válidas (MOREIRA, 1999).
Além disso, a produção discursiva da vontade democrática dos cidadãos exige um processo de
institucionalização. Após institucionalizados, devem ser afastados aqueles procedimentos injustos,
posto que a manutenção desse postulado no sistema não caracterizaria o Direito, mas sim o arbítrio,
a violência. Assim, conclui-se que não basta o ato legislativo para se gerar uma norma jurídica: esta
deve ser reconhecida, pois é a vontade discursiva dos cidadãos que dá validade às leis.
Conforme Habermas (1993), nessa relação há a complementaridade entre Direito e Moral,
posto que o Direito, sendo reconhecido por todos, diminui o peso da responsabilidade do indivíduo
para a formação do juízo moral próprio. Nesse sentido:
Sob o ponto de vista da complementaridade entre Direito e Moral, o processo
de legislação parlamentar, a prática de decisão judicial institucionalizada, bem
como o tratamento profissional de uma dogmática jurídica, que sistematiza
decisões e concretiza regras, significam um alívio para o indivíduo, que
não precisa carregar o peso cognitivo da formação do juízo moral próprio.
(HABERMAS, 1993)

Desse modo, o Direito auxilia o indivíduo na sua conduta, retira o fardo do homem de por
si só descobrir como agir bem, posto que o próprio ordenamento já apresenta orientações sobre
a conduta prática. Por outro lado, isso é possível pelo reconhecimento daquele ordenamento pelo
indivíduo, por ser expressão de sua vontade aliada à dos demais cidadãos. Essas são as principais
considerações acerca do pensamento de Habermas e sua relação com o Direito.

12.6 Miguel Reale


O jurista e filósofo brasileiro Miguel Reale é considerado um dos grandes nomes do pensamento
jurídico contemporâneo; com sua teoria tridimensional do Direito, o pensador marca a superação do
positivismo jurídico na esfera nacional. Sua produção científica e filosófica repercutiu no Brasil, na
América Latina e na Europa.
Miguel Reale foi fortemente influenciado pelas concepções filosóficas de Edmund Husserl,
buscando pelo método fenomenológico superar o problema da crise das ciências no âmbito do
Direito. A partir dessa influência, teve como objetivo lançar as bases da teoria do conhecimento em
termos de uma Ontognoseologia, como o fez em Experiência e Cultura (REALE, 2000), e, com base
nesses elementos, partiu à procura da concepção de Direito que seja conforme ao mundo-da-vida,
na acepção husserliana (REALE, 1981).
O espírito de inovação do pensador, baseado na Fenomenologia, na busca pela superação das
influências do pensamento kantiano no Direito, pode ser colhido no seguinte fragmento:
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 201

A razão no Direito não é, pois a razão formalizada e estática de Kant, mas é uma
“razão axiológica e existencial” que se desdobra através do processo histórico. É
uma razão que, de certa maneira, reproduz, sob certo ângulo, aquilo que Hegel
chamava o universal concreto – expressão essa que levou a tantas interpretações
equívocas. Mas o logos do Direito, que se põe na norma jurídica, consoante tenho
procurado explicar em estudos mais recentes, está em constante vinculação
com o substrato da vida comum, com a vida corrente, com o embasamento do
viver espontâneo E. Husserl denomina Lebenswelt (mundo-da-vida). É este que
alimenta o conteúdo interpretável da “regula juris” no decorrer da sua duração
histórica. (REALE, 1998, p. 76)

Em Fundamentos do Direito (REALE, 1998), o autor apresenta um panorama por todas as


concepções de Direito desenvolvidas durante a evolução da história do pensamento moderno e
contemporâneo, partindo da concepção de Direito como pura categoria racional até a aproximação
à sua teoria, destacando os pontos em que cada teoria falhava ao buscar identificar o conceito de
Direito. Logo ao final, o filósofo traz sua concepção do Direito, a partir da relação entre ser e dever
ser, o sein und sollen do pensamento de Hans Kelsen. Conforme Reale, Kelsen reduz o dever ser à
normatividade puramente lógica, enquanto o próprio Miguel Reale, contrariamente, propõe ligar o
dever ser à ideia de fim, ou valor, por meio da Filosofia do Direito. O ser, nesse caso, estaria ligado
à ideia de sucessão de ordem causal, relações estabelecidas segundo a lei de causalidade (relação
entre causa e efeito) (REALE, 1998).
Os fenômenos do mundo físico pertencem à esfera do Sein, em que por mais que uma coisa
material possa ser empregada para certo fim, esta não pode possuir consciência desse fim, sem poder
reduzir a ela o problema do valor. O mundo do ser, por conseguinte, é o mundo governado por
um sistema de relações constantes que constituem as leis e implicam a aceitação de um postulado
determinista como condição do seu conhecimento. O dever ser, contrariamente, exprime sempre
um imperativo, uma norma que pode ou não ser seguida, mas que, se seguida, realiza um valor, e
se desobedecida, nega um valor. Para que ocorra a ligação entre ambos os conceitos, Reale (1998)
acrescenta uma terceira categoria, a cultura. O Direito somente pode ser compreendido como a
síntese entre ser e dever ser, motivo pelo qual a conclusão dessa obra é que o Direito é uma realidade
bidimensional, com um substrato sociológico e uma forma técnico-jurídica: “Não é, pois, puro fato,
nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma racionalmente promulgada
por uma autoridade competente segundo uma ordem de valores” (REALE, 1998, p. 302).
Reale (2002) assevera que não se pode resolver o problema do fundamento da obrigatoriedade
das normas jurídicas fazendo-as descer de uma norma primária hipotética posta pelo jurista, como
propôs Hans Kelsen, nem considerar o Direito como um dado espontâneo da realidade social,
sem a interferência construtiva e ordenadora da razão. Ademais, não basta um ato legislativo
perfeito para considerar como plenamente válido um comando normativo. Para tanto, há que se
considerar não somente sua validade formal (ter sido devidamente aprovado por um órgão legislativo
competente, exatamente do modo como a lei preceitua), mas também a eficácia da norma e a
validade ética. Vislumbra-se, assim, a manifestação do Direito como integração entre fato-valor-
-norma, correspondendo à validade social (eficácia), à validade ética (fundamento) e à validade
técnico-jurídica (vigência) (REALE, 1998).
202 Filosofia do Direito

Deste modo manifesta-se o filósofo:


Realizar o Direito é, pelo dito, realizar a sociedade como comunidade concreta,
a qual não se reduz a um conglomerado fortuito de indivíduos, mas é uma
ordem de cooperação e de coexistência, uma comunhão de fins, com os quais
é mister que se conciliem fins irrenunciáveis do homem como pessoa, ou seja,
como ente que tem consciência de ser o autor de suas ações, de valer como
centro axiológico autônomo, o que só será possível com igual reconhecimento
da personalidade alheia. (REALE, 2002, p. 706)

Podemos compreender a teoria tridimensional do Direito de Reale (1994) sob os seguintes


prismas: primeiro, fato, valor e norma, que estão sempre presentes e correlacionados em qualquer
expressão da vida jurídica, ou seja, trata-se de um estudo uno, e não cabe ao filósofo estudar os
valores e ao sociólogo, os fatos, restando ao jurista somente a norma, conforme propunham algumas
correntes. Além disso, a correlação entre os três elementos é de natureza funcional e dialética, da
interação entre fato e valor há como resultado o momento normativo (REALE, 1994).
A partir da concepção tridimensional do Direito, é possível resolver questões como a de por
que uma mesma norma de Direito, sem que tenha sofrido qualquer alteração, adquire significados
diversos com o passar dos anos, por obra da doutrina4 e da jurisprudência5. O sentido estimativo
autêntico da norma é dado pela estimativa dos fatos, nas circunstâncias em que o intérprete se
encontra (REALE, 2002).
Encontrado o fundamento do Direito, Miguel Reale (1998) também considera as questões
relativas à ideia de justiça, reafirmando as concepções anteriores, especialmente a noção de justiça
distributiva e corretiva elaboradas por Aristóteles, bem como referindo-se a outra categoria de
justiça, a justiça geral, quando diz:
Há milênios que a humanidade procura se achegar à mais alta expressão da
Justiça, que não é a que se realiza só com o dar a cada um o que é seu, ou com
o tratamento dos cidadãos na proporção de seus méritos, mas também com a
constituição de uma ordem social na qual cada homem saiba se dedicar ao bem
comum sem exigir retribuição proporcional à sua obra. (REALE, 1998, p. 311)

Manifesta que essa última forma de justiça já havia sido antecipada pelos pitagóricos e
estudada por Aristóteles, São Tomás e os mestres que os sucederam. A justiça geral representaria
a superação e complementação da justiça comutativa e distributiva, revelando o mais alto grau de
atualização das virtudes da pessoa (REALE, 1998).
O bem comum é entendido como objeto mais alto da virtude justiça, representado por uma
ordem proporcional de bens em sociedade. Assim, o Direito não tem a finalidade exclusiva de
realizar a coexistência das liberdades individuais, mas também alcançar a “coexistência e a harmonia
do bem de cada um com o bem de todos” (REALE, 1998, p. 311).
Com base nas considerações sobre a justiça em Miguel Reale, podemos concluir que o Direito
in concreto somente poderá se realizar enquanto Direito justo se estiver em contato com a realidade

4 Chamam-se de doutrina as obras escritas por pensadores do Direito interpretando a área do Direito por ele estudada,
bem como ordenação vigente sobre essa mesma área.
5 Nesse sentido, o corpo de decisões reiteradas tomadas pelos tribunais sobre determinada matéria, apresentando
em muitos casos interpretação inovadora acerca do preceito legal.
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 203

da sociedade que regula e com os fins que a esta foram propostos. Valor, fato e norma possuem
uma força pedagógica e geram o aprimoramento da vida em sociedade. Sua interação possibilita o
desenvolvimento de uma sociedade em direção a uma condição axiológica superior. Para que essa
proposta se torne realidade, aqueles que produzem o Direito e o aplicam, o legislador, o jurista, os
agentes públicos e a própria sociedade, devem se responsabilizar, assumir o compromisso de buscar
a perfeita integração entre esses três termos. Esse é o espírito da Teoria Tridimensional do Direito.

Considerações finais
Neste capítulo, apresentamos algumas correntes importantes da filosofia do direito ao longo
do século XX. O positivismo jurídico kelseniano foi aqui sintetizado como abordagem que vislumbra
o direito não em perspectiva moral, mas como criação pela autoridade estatal. Da mesma forma,
outros autores bastante influentes no pensamento jurídico, como Habermas e Rawls, também
receberam a devida atenção.
O direito hoje é instrumento de racionalidade na relação entre pessoas, instituições e povos,
é a capacidade de elaborar dialéticas sem necessidade do recurso da violência. O direito, quando
coerente com as necessidades humanas, é sempre reforço da inteligência humana.
Miguel Reale vê o direito em seu movimento no mundo, a norma não como mero produto
da abstração, e sim como resultado de fatos valorados hermeneuticamente, isto é, interpretados
pela consciência. Em Reale, o direito positivista encontra sua fundamentação que contempla as
dimensões ética e empírica, filosófica e sociológica, intelectual e prática, o direito como obra da
inteligência em ação. Se as normas hoje não são adequadas, é responsabilidade do operador jurídico
e social transformá-las, tornando-as mais coerentes com as demandas civilizacionais.

Ampliando seus conhecimentos


• CAPITÃO Phillips. Direção de Paul Greengrass. Estados Unidos: Scott Rudin Productions,
Michael De Luca Productions, Trigger Street Productions, 2013. (134 min), son., color.,
35 mm.
Um navio é atacado por piratas na costa da Somália. O enredo sintetiza a diferença de
perspectivas tanto morais como culturais dos personagens envolvidos, de tal modo que ali
se desenrola um conflito de visões diferentes de mundo. Filme interessante para discutir
o papel da filosofia e do direito em uma época cada vez mais marcada pela globalização,
na qual as diferenças culturais se ressaltam.

• DOZE homens e uma sentença. Direção de Sidney Lumet. Estados Unidos: MGM Studios,
1958. (96 min) son., color., 35 mm.
Doze jurados são convocados para decidir se condenam ou inocentam um jovem acusado
de ter assassinado o próprio pai. Durante os diálogos e movimentos, o espectador vai
notando as diferentes abordagens e impostações existenciais dos personagens, de como
204 Filosofia do Direito

cada um tende a resolver o caso a partir da própria visão de mundo, a partir das próprias
experiências, projetando no outro aquilo que aflige cada um internamente.

Atividades
1. Comente algumas diferenças e semelhanças entre os pensamentos de Carl Schmitt e Hans
Kelsen, partindo do pressuposto que um privilegia o político e outro, o jurídico.

2. Reflita sobre a importância das questões trazidas por Max Scheler para a atualidade.

3. John Rawls traz a ideia de que, para que haja um acordo justo, é necessário que as partes se
valham do “véu da ignorância”, situação na qual as partes possuem desconhecimento sobre
as características individuais, tanto próprias como da outra parte. Levando esse conceito
para a prática, é de fato viável a possibilidade de se formular acordos utilizando o “véu da
ignorância” do autor? Escolha uma situação (acordo entre países, transações financeiras
entre empresas etc.) e demonstre se seria possível ou impossível, justificando sua resposta.

4. A filosofia de Jurgen Habermas é muito influenciada pela Filosofia da Linguagem, centrando


na concepção de ação comunicativa a maioria de seus postulados, até mesmo em relação
ao Direito. Acerca disso, qual é a importância da comunicação no mundo contemporâneo?

5. Miguel Reale, com sua concepção tridimensionalista do Direito, conclui que ideais como o
de uma justiça geral, bem como a realização do Direito em uma sociedade, somente serão
possíveis com a interação entre a produção normativa, os valores, os ideais para essa sociedade
e a cultura em que se encontra. No plano da empresa, de que modo poderíamos considerar
essa concepção da organização de uma sociedade?

Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. rev. São Paulo: Atlas, 2008.

HABERMAS, Jurgen. Faktizität und Geltung. Beitrage zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen
Rechtsstaats. 3. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993.

HABERMAS, Jurgen. Sociologia. Trad. de Barbara Freitag e Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Ática, 1993.

HABERMAS, Jurgen. Direito Democracia: entre facticidade e validade. Trad. de Flávio B. Siebeneichler. Rio
de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997. 1 v.

HABERMAS, Jurgen. Teoría de la Acción Comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. Madrid: Taurus,
1999. 2 v.

INGRAM, David. Habermas e a Dialética da Razão. 2. ed. Trad. de Sérgio Bath. Brasília: UnB, 1987.

LARENZ, Methodenlehre der Rechtswissenschaft. Trad. de Enrique G. Ordeig. Berlim, 1960, Cap. III, § 2.

MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos: Fortlivros, 1999.
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 205

RAWLS, John. Justicia como Equidad: materiales para una teoría de la justicia. Trad. de Miguel A. Ridilla.
Madrid: Tecnos. 1986.

RAWLS, John . Uma Teoria da Justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenira M. R. Esteves. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.

REALE, Miguel. Miguel Reale na UnB. Brasília: UnB, 1981. (Coleção Itinerários).

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia Antiga: do Romantismo até os nossos dias. 3. ed.
São Paulo: Paulus, 1991. 3 v.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e reestr. São Paulo: Saraiva, 1994.

REALE, Miguel . Fundamentos do Direito. 3. ed. fac símile da 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

REALE, Miguel. Experiência e Cultura. 2.ed. Campinas: Bookseller, 2000.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e reestrutur. São Paulo: Saraiva, 2005.

SCHELER, Max. Visão filosófica do mundo. São Paulo: Perspectiva, 1986.


Gabarito

1 Introdução ao pensamento filosófico


1. O cidadão atual tende a levar uma vida sem grandes participações políticas e sociais,
preferindo a passividade. Citando, por exemplo, o herói Aquiles, em geral as pessoas
se recusariam a entrar na batalha quando soubessem dos riscos. Essa passividade gera
redução de criatividade e, por consequência, do desenvolvimento do potencial. É pela
coragem que o homem enfrenta os próprios medos e limites, explora mais e mais o
próprio potencial. A decisão íntima de construir uma trajetória profissional especial
começa sempre com imensa coragem interior.

2. A mitologia é já uma tentativa de explicar a realidade. Aristóteles dizia que quem


admira os mitos é já um filósofo, porque o mito pretende desvelar a verdade. Os mitos
são narrativas de cunho ontológico, epistemológico e ético, porque buscam apresentar,
na forma de fábulas, elementos da realidade física e humana. Muitos mitos carregam
mensagem ética, no sentido de tentar ensinar aos homens os motivos de seus acertos e
erros existenciais. Além disso, o mito, tal como a filosofia, é sempre pedagógico, visa a
educar o sujeito a ser mais coerente na própria existência.

3. Somente pelo trabalho, pela transformação do mundo, o homem exterioriza o próprio


potencial de modo virtuoso, projetando na história aquilo que carrega dentro de
si enquanto força criativa. Pelo trabalho, o homem enfrenta os próprios dilemas
existenciais, aprende a se posicionar na sociedade e no mundo e a construir as dialéticas
com a natureza e com as pessoas indispensáveis para promoção da própria satisfação.
Pelo trabalho, o homem se aperfeiçoa continuamente e toma controle da própria vida,
passando a ter condições de elaborar a realidade à sua vontade.

4. A Ontologia explica a realidade, o ser; a Epistemologia estuda como o homem conhece


a realidade; já a Ética aborda o agir, como deve viver o homem. Todo ator social, para
tomar decisões assertivas com o próprio potencial, deve se aproximar sempre mais da
realidade, daquilo que escorre na vida momento a momento, deve ter a capacidade de
colher no instante a intuição que dá a diretriz vencedora para cada contexto. Como me
relacionar com a família? Com a empresa? Como fechar este negócio? Como enfrentar
tal problemática jurídica? Como compreender certo fenômeno social? Todas essas
questões somente podem ter êxito de resolução se o sujeito toma contato consigo mesmo,
compreende como se posiciona no mundo, identifica as situações que promovem ou não
funcionalidade.
208 Filosofia do Direito

2 Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias


1. Com base no que foi estudado, constatamos que as questões mal resolvidas no plano
existencial-afetivo, se forem somente suprimidas, em vez de enfrentadas pelo indivíduo,
tornam-se mais adiante um problema jurídico que poderá atingi-lo, tanto na esfera individual
quanto na profissional.

2. Creonte, obstinado por resolver tal situação, esquece-se de atentar aos princípios de justiça
aos quais Antígona filia-se para defender sua causa. Desse modo, por melhor que fosse sua
intenção, seu ato foi um atentado contra a vida, dando razão a todo o seu sofrimento.

3. Pode-se relacionar a questão entre a individualidade, a subjetividade de Antígona, que


nesse sentido procura lutar em favor daqueles princípios primeiros e que no homem
contemporâneo se traduzem em sua busca pela mais profunda realização enquanto pessoa, e,
por outro lado, a objetividade de Creonte, representando nesse aspecto as questões da cidade
e o controle dela sobre o indivíduo. É necessário saber administrar ambas as dimensões para
tornar-se um homem de sucesso.

4. Conforme Ésquilo lecionava por intermédio de suas tragédias, o sofrimento é o sinal de que
há algo de errado com o indivíduo que necessita ser sanado; além de ser o sinal, o sofrimento
possibilita ao homem, ao decidir enfrentá-lo, compreender a causa desse sofrimento e
resolver tal situação, gerando crescimento existencial, desenvolvimento. Determinadas
passagens somente podem ser feitas encarando o sofrimento.

5. A característica marcante das comédias é a possibilidade de retratar uma realidade da forma


como ela é, mascarando-a com os exageros e o satirismo que tornam os eventos cômicos.
Desse modo, torna-se possível representar aos espectadores a realidade de um modo que não
os inspire instinto de autodefesa ou rejeição do argumento, sutilmente a representação entra
no indivíduo e pode levá-lo à reflexão sobre a importância ou não do seu comportamento.
Nesse sentido, as representações cômicas são um ótimo recurso de formação humana,
auxiliando a melhorar a postura dentro das relações interpessoais ou no âmbito profissional.

3 Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas


1. A arte, para gregos, romanos e renascentistas, exige uma proporcionalidade que, conforme
os artistas clássicos, simbolizava uma medida divina. É uma busca por exatidão, proporção
e perfeição, que se for aplicada a cada pequena coisa do cotidiano transforma cada tarefa em
uma obra de arte.

2. Os gregos eram adeptos da ideia de equilíbrio, proporcionalidade, meio-termo. O excesso,


tanto de um lado como de outro, conduz a atitudes desequilibradas, e nisso a proporção
natural se perde. Os opostos não são medidas extremas em que um é certo e outro é errado,
mas extremos, que se forem proporcionais consentem algo mais harmônico.
Gabarito 209

3. A justiça deve ser precisa, proporcional ao fato e às questões éticas. A simples aplicação da lei
não é proporcional, pois ignora as peculiaridades do fato. A medida proporcional é aquela
que obtém o melhor resultado possível, pois não se baseou em premissas anteriores nem em
excessos, mas em uma proporção.

4. Por exemplo, Parmênides afirma que o ser é e o não ser não é. Isso significa que em tudo
já existe uma verdade anterior e que pode ser colhida por evidência. O restante é aparência
e opinião. A cada instante devemos tentar evidenciar o que está por detrás de cada efeito
provocado por alguém ou algo, para não pensarmos nas aparências, mas na causa, no ser.

4 A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão


1. Trata-se de questão essencial ao indivíduo que se propõe a ser um protagonista responsável
a busca por conhecer-se e, por meio desse processo, tanto encontrar o local onde essa
pessoa exercerá do melhor modo para si e para os demais sua liderança, assim como saberá
identificar e evitar situações de vivência que são muito mais ligadas à sua formação do que
um problema dentro da organização. Tal como os clássicos diziam, é essencial um processo
de autoconhecimento e de cuidado com a inteligência para tornar-se um líder vencedor.

2. A ironia, tal como já se falou sobre a comédia, é um modo de se retratar a realidade como
ela é a outra pessoa, sem que isso pareça agressivo, incentivando-a a refletir por si própria a
validade dessas suas concepções, evitando conflitos desnecessários dentro da organização, o
que a torna uma ótima ferramenta para formar os colaboradores.

3. É de essencial importância, posto que, conforme já refletido anteriormente, a maior parte


dos problemas vividos pelo indivíduo, para não dizer todos, possui profunda relação com
o universo psicológico dele. Desse modo, faz-se necessário formar aqueles que virão a
trabalhar junto do líder, tanto quanto o líder deve formar-se e capacitar-se para, de fato,
tornar-se uma liderança que gere desenvolvimento e resultados.

4. Conforme tratamos no texto, é essencial um tipo de controle e sabedoria no cultivo das relações
no trabalho, especialmente na questão afetiva, pois uma situação mal resolvida dentro desse
âmbito pode gerar profundos prejuízos à organização como um todo, portanto é necessário,
no mínimo, que todo o corpo de líderes seja formado a saber lidar com tais questões.

5. A concepção platônica de justiça pressupõe justamente o exercício profissional adequado


tanto ao indivíduo, em sua individualidade, quanto em relação à empresa, de modo que
cada vez mais destaca-se a necessidade de o líder saber ter o tipo apropriado de inteligência
para identificar o tipo de estruturação de uma pessoa ou de um grupo, um setor, para torná-
-lo(a) mais produtivo. Essa realização, mais do que aumentar a produtividade, significa um
espaço de maior sanidade, concentração, desenvolvimento àquele grupo, tratando-se de
uma atitude de justiça com o próprio trabalhador dentro da empresa.
210 Filosofia do Direito

5 Justiça em Aristóteles
1. Apesar de se falar em crise ética, não se propõe solução alguma a essa questão. Desse modo,
a ética aristotélica apresenta-se como uma proposta de boa conduta da vida. Pautando-se em
um critério objetivo, a virtude, o meio-termo, trata-se de um modo de se disciplinar a conduta
humana em busca da realização humana, o que é essencial na sociedade contemporânea.

2. As virtudes éticas são justamente as que disciplinam a ação humana. Portanto há que se
considerar a sua importância na atualidade, considerando-se a ausência de um critério de
ação que discipline a boa conduta, a proposta de condução da vida pelas virtudes; cultivar
bons hábitos é um bom modo de o indivíduo desenvolver-se e saber agir adequadamente
em sociedade.

3. A justiça corretiva relativa às transações voluntárias possui especial ligação com as relações
de Direito Civil, especialmente com os contratos que os homens firmam entre si. Assim,
reforça-se a importância da liberdade de vontade nessas relações; quando a vontade de uma
das partes for preterida, ou quando a relação se demonstrar demasiado onerosa, há que se
buscar reaver a relação de igualdade, tal como ela existia quando da constituição da relação
jurídica em questão, o que é disciplinado por essa modalidade de justiça.

4. No mundo atual segue sendo importante o cultivo dessas duas questões. É essencial que o
homem que se propõe a ter um modelo de vida diferenciado e, especialmente, profundamente
realizado passe por um processo de desenvolvimento de suas virtudes. Porém, no mundo
atual, não basta ser um homem de valor, é também necessário ser conhecedor das regras
do jogo e saber cumpri-las – esse é o significado de ser um bom cidadão. Quando se atenta
apenas à formação pessoal e se esquece da sua relação com o Estado ou com a instituição
civil em que se trabalha, ou com seus grupos particulares, há a perda de espaço do indivíduo,
ou até sua própria exclusão. Por outro lado, a vida social não basta para garantir ao indivíduo
seu pleno desenvolvimento, sendo de grande importância também o desenvolvimento das
boas virtudes.

5. A justiça, no pensamento Aristotélico, é uma virtude, portanto um modelo ideal de conduta


pelo qual o homem pode alcançar, por consequência de sua prática, a felicidade. Como se
não bastasse, ela é a maior das virtudes, posto que pode ser exercida tanto em relação a si
próprio quanto em relação aos demais. Portanto, a justiça é um tipo de excelência essencial
para a boa conduta humana, encontrando-se aí sua intrínseca relação com a Ética, ciência
que disciplina o agir do homem. Além disso, por se relacionar com as demais pessoas, pode
também vir a auxiliar os outros no seu desenvolvimento, razão pela qual considera-se a
amizade, um ato de amizade, a forma mais autêntica de justiça.

6 Helenismo e Idade Média


1. Todas essas correntes concentravam-se muito mais no indivíduo e em sua conduta. Desse
modo, afastam-se das preocupações com as relações sociais e, por conseguinte, com o
Gabarito 211

Direito. A felicidade é mais questão de conduta pessoal do que um escopo social, tal como
era para os predecessores.

2. Imperfeitas ou não, são as leis humanas que organizam a sociedade. Seja para construir
uma carreira profissional, seja para melhorar a própria sociedade, antes é preciso entender o
sistema vigente, e a partir daí modificar. Não adianta ignorar a existência do sistema vigente,
é preciso entendê-lo para depois, inteligentemente, modificá-lo.

3. A relação entre ambos os conceitos no pensamento tomista refere-se à relação das leis humanas
com a realidade natural que é anterior e preexistente a esta. Dos princípios naturais é que os
homens partem a positivar as condutas no momento em que julgam necessário fazê-lo.

4. Se o indivíduo não possuir espaço para exercer sua subjetividade e liberdade, pode se dar
o perigo de criar um regime autoritário, em que obedecer as leis vigentes é um caráter
obrigatório e sem oportunidade de questionamento por parte dos indivíduos.

7 A fundação do pensamento moderno:


do racionalismo ao Iluminismo
1. Influenciado pelo empirismo científico, o Direito demasiadamente positivista corre o risco
de esquecer aspectos filosóficos, sociais, psicológicos, entre outros, que existem por trás de
um fato e ignora que um acontecimento não pode ser analisado em separado da totalidade.

2. O pensamento de René Descartes é especialmente essencial para a compreensão da lógica


jurídica, ou seja, pela organização do raciocínio humano, de modo que na apreciação da
situação em questão se esteja apto a emitir um juízo de certeza, diferenciando o certo do
errado, com base em premissas lógicas e em um raciocínio dedutivo. A sentença judicial,
por excelência, parte de um raciocínio dedutivo, da Lei como premissa geral, aplicando-se à
situação particular que é aplicável.

3. Na atualidade não há uma análise séria sobre as paixões, em ambos os extremos. Ou vive-a
exageradamente, sem pensar nas consequências, ou suprime-a da mesma forma.

4. Os filósofos iluministas influenciaram a racionalidade de onde se originou a fundação do


atual Estado de direito, ou seja, do Estado governado pelas leis e que, partindo de princípios
racionais, busca auxiliar a boa condução do ser humano. Baseados em princípios essenciais
e em bens jurídicos a serem protegidos pelo Estado, os iluministas propuseram um Estado
que possui sua atuação possibilitada, ao mesmo tempo que limitada, pelas próprias leis.

8 A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas


1. O Estado, até a atualidade, no mínimo no plano das leis existentes, toma para si o direito
de garantir a segurança dos indivíduos que vivem dentro dele, bem como de punir os
212 Filosofia do Direito

transgressores dos ordenamentos sociais. Surge, assim, a problemática de como o Estado


tornará efetiva a garantia da segurança de seu povo.

2. Sim, inclusive o próprio Estado brasileiro, nos primeiros artigos da Constituição, faz constar
a importância da proteção à vida, à liberdade e à igualdade, bem como à propriedade, mesmo
que essa seja passível, na atualidade, de limitações.

3. O Estado propõe-se a garantir a liberdade do indivíduo, impondo limites ao seu agir, na busca
da regulação do convívio social. Contudo o indivíduo somente poderá ser considerado livre
quando possuir a capacidade de discernimento para identificar, da maneira mais adequada,
qual é a atitude cabível no momento.

4. Vontade geral pode ser entendida como a vontade de todo o corpo social tendo em vista
o bem de todos; trata-se da escolha que beneficiará toda a sociedade, sendo, portanto, a
mais adequada a ser seguida. Na atualidade, consagrado o sistema de eleições democráticas,
constata-se que, em vez de se estimular um exercício de vontade geral por meio dos sufrágios,
tem-se ocorrido, na realidade, o triunfo da vontade de todos, ou seja, da soma das vontades
particulares de cada um, visando a interesses de grupos, mas não de toda a sociedade.

9 Liberdade interna e externa em Kant


1. Os medievais, em especial Agostinho e Tomás de Aquino, concebiam a metafísica como
essência do Direito, uma vez que ele emanava da vontade divina. Esses filósofos faziam o
universal decorrer do pensamento teológico, enquanto Kant postula o universal e a metafísica
em questões do conhecimento, nas ideias inatas a partir da razão pura humana.

2. Os exercícios de caridade, por exemplo, embora sejam muito válidos e eficazes na promoção
de políticas públicas, em geral trazem como finalidade maior por seus líderes não o dever de
ajudar em si, mas um interesse em ser recompensado com fama e agradecimentos. No fim, é
um anseio egoísta, na visão de Kant.

3. Depende do caso e da opinião de cada um. Existem momentos em que o Direito é exercício
de coação, forçando o indivíduo a participar de um determinado sistema, e em outros ele
produz liberdade. Em geral, por ele estar vinculado à democracia, torna-se violência do
número, pois a maioria impõe as regras àqueles que pensam diferente, de forma que nisso o
princípio da autonomia da vontade não se efetiva.

4. No mundo contemporâneo, o indivíduo cada vez mais é inconsciente de suas ações. Isso
gera uma apatia perante as leis que torna quase impossível afirmar que as legislações são
postuladas por vontades suas. É ainda mais complicado afirmar que isso decorre de leis
universais. É necessário um processo de educação política e jurídica.
Gabarito 213

10 Direito e Política na Dialética de Hegel


1. O desejo é uma impulsão interna que movimenta a consciência a sair de si mesma e buscar
realizar suas necessidades. O desejo é algo natural ao indivíduo, por isso, não se satisfaz com
o consumo desse alimento ou dessa situação específica.

2. Para Hegel, o Direito não é o fim absoluto do ser, da lógica imanente que movimenta a
existência. O Estado é apenas o fim absoluto do mundo, mas para isso percorre os momentos
dialéticos conforme conceitos fenomenológicos e lógicos, pois o Direito não é autônomo,
mas dependente de outros conteúdos.

3. Não, pois o desrespeito à lei, o ato de negar o Direito é apenas falta de reconhecimento do
indivíduo para com as instituições e leis. O indivíduo de hoje não vê o seu Direito como algo ético.

4. Não procede essa interpretação, porque o Estado é apenas o fim absoluto do mundo porque
contém a vontade posta do indivíduo. A ideia do Estado já estava em todos os momentos
anteriores. Sendo assim, o indivíduo é livre no Estado, porque é livre para obedecer somente
às leis criadas por ele mesmo.

11 O Direito e os dilemas da existência humana:


de Marx aos filósofos existencialistas
1. Embora a sociedade tenha se modificado bastante durante as últimas décadas, o Estado, o
Direito, bem como demais instituições, seguem sendo instrumentos de poder nas mãos de
alguns indivíduos. Requer-se uma tomada de consciência mais efetiva dos cidadãos na luta
por seus direitos, o que não significa revolução violenta, tal como ocorreu no século XX.

2. Hodiernamente, muito mais do que em períodos anteriores, a adequabilidade do indivíduo


com o meio, sem perder a sua subjetividade, torna-se cada vez mais importante. Pode-se
considerar a angústia, nesse contexto, como um alerta do momento em que se faz necessária
uma passagem de desenvolvimento. Contudo, sem a capacidade de decisão, de mudança,
não bastará a angústia para que a pessoa opere as passagens que a sua vida pede, bem como
que o mundo dos negócios também requer.

3. Há de se considerar que essa estrutura permanece na atualidade e que, cada vez mais, o
processo de globalização prorrompe a unificação cultural em torno de um modelo de pessoa
sob domínio. Nesse sentido, o desenvolvimento de lideranças, com um tipo de moral superior,
torna-se essencial, não somente para que todos caiam nessa estrutura, mas também para que
o ideal de um tipo superior de homem que possa guiar a sociedade ao seu desenvolvimento se
torne possível.

4. A orientação fenomenológica, além de buscar orientar o proceder da ciência, é também um


modo de orientar a vida humana. Portanto faz-se importante, diante das várias situações
de vivência que o indivíduo se confronta, colocar entre parênteses os fatos que surgem na
214 Filosofia do Direito

existência e a busca pela identificação da essência daquele fenômeno, para que, então, a
apreciação seja verdadeira e o indivíduo aja em conformidade com o que o momento pede.

5. O homem é um ente situado no domínio ôntico, ou seja, pressupõe o ser puro ontológico
como fundamento. O ser possui um projeto de desenvolvimento em sua existência.
Desenvolver a liberdade durante a vida é justamente dar mais ser à própria existência.

12 Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito


1. Carl Schmitt diz que o poder é fundamentado na política, e não no Direito, porque é sempre
uma decisão política que origina as normas. Já Kelsen afirma que a ciência jurídica não
deve se interessar pelas questões políticas e outras, limitando-se apenas às normas jurídicas.
Contudo o conceito de norma fundamental o aproxima de Schmitt, na medida em que aceita
que a primeira das manifestações é sempre uma decisão.

2. Cada vez mais, a sociedade se preocupa apenas com normas, sem se ater aos valores, que na
verdade são a essência de qualquer bem. É necessário revisar que valores a sociedade vem
privilegiando e ver se isso combina com a hierarquia de Scheler.

3. Podemos argumentar que é impossível se utilizar da posição original, tendo em vista que,
para que isso ocorresse, teríamos que ter a garantia de que a outra parte também seria
imparcial e que, caso isso não ocorresse, estaríamos em grande desvantagem em uma
transação de negócios, por exemplo. Também, poderíamos argumentar que hoje, com a
globalização e com os inúmeros meios de comunicação, é praticamente impossível buscar
se encontrar em um estado de ignorância em relação a outra parte por mais que se queira,
pois sempre acabamos por saber algo sem querer, e então fica difícil apagar essa informação.
Os argumentos a favor são mais difíceis, porém é possível argumentar, por exemplo, que as
partes forçosamente se encontrem nessa posição para ter mais garantia de um acordo justo,
mas então caímos novamente no problema da confiabilidade.

4. Essa concepção pode ser encarada de dois modos: primeiro, a importância da comunicação e
da consciência das normas para o controle de validade das leis, de modo que a pessoa poderá
propor o aperfeiçoamento de normas não funcionais para a sociedade, podendo buscar nos
órgãos legislativos e judiciários a correção de uma lei ilegal ou injusta. Em outro senso,
dado o resguardo do princípio da autonomia da vontade, faz-se essencial a manifestação de
vontade por meio da comunicação para a consecução da atividade empresária conforme o
sistema jurídico e recebendo a proteção por este garantida.

5. Tal como na busca por uma organização social, uma empresa, para alcançar sucesso e
realização de modo estável no mercado, prescinde de um sistema de regulação de todos os
que nela trabalham, ligados a uma finalidade específica engajada ao desenvolvimento do
negócio, mas sem deixar de considerar o modo como a empresa se encontra na atualidade,
bem como os hábitos que nela estão instaurados.
FILOSOFIA DO DIREITO
Filosofia
Josemar Soares
do Direito
Josemar Soares

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