A BNCC e o Componente Curricular de Lingua Inglesa

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Ensino · Humanidades

Revista Signos, Lajeado, ano 42, n. 2, 2021. ISSN 1983-0378


DOI: http://dx.doi.org/10.22410/issn.1983-0378.v42i2a2021.2895
http://www.univates.br/revistas

A BNCC E O COMPONENTE CURRICULAR DE LÍNGUA


INGLESA: ALGUMAS REFLEXÕES

Carla Pereira de Oliveira1

Resumo: Este trabalho buscar refletir sobre o Componente Curricular Língua Inglesa para o ensino
e aprendizagem na perspectiva da proposta da Base Nacional Comum Currricular (BNCC) para
o ensino fundamental. Para tanto, pauta-se em estudos documentais e bibliográficos pretendendo
verificar as perspectivas desse documento para o processo de ensino e aprendizagem desse componente
curricular. Resultados dessa análise indicam para possíveis conflitos e desencontros nos pressupostos
pedagógicos indicados pela BNCC, quanto ao uso do conceito língua franca, tanto na composição
dos quadros que contemplam os objetivos, conteúdos e as habilidades de aprendizagem apresentados
pela BNCC quanto ao que se refere à padronização de conteúdos e a ênfase dada ao ensino estrutural
da língua, trazendo assim implicações para o ensino de qualidade de uma língua que é falada
mundialmente por indivíduos de diferentes nacionalidades.
Palavras-chave: BNCC; língua inglesa; língua franca; ensino; aprendizagem.

BNCC AND THE ENGLISH LANGUAGE CURRICULUM


COMPONENT: SOME REFLECTIONS

Abstract: This work seeks to reflect on the English Language Curriculum Component for teaching
and learning in the perspective of the proposal of the Common National Curriculum Base (BNCC)
for elementary education. Therefore, it is based on documentary and bibliographic studies, intending
to verify the perspectives of this document for the teaching and learning process of this curricular
component. Results of this analysis point to possible conflicts and mismatches in the pedagogical
assumptions indicated by the BNCC, regarding the use of the lingua franca concept, both in the
composition of the tables that include the objectives, contents and learning skills presented by
BNCC as well as with regard to standardization of contents and the emphasis given to the structural
teaching of the language, thus bringing implications for the quality teaching of a language that is
spoken worldwide by individuals of different nationalities.
Keywords: BNCC; English language; lingua franca; teaching; learning.

1 Doutoranda pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. E-mail: prof.carlapo@gmail.com.

-- Artigo recebido em 15/04/2021. Aceito em 29/07/2021. --

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1. Introdução
Neste artigo, exponho e discuto a Base Nacional Comum Curricular no
âmbito do Componente Curricular Língua Inglesa e alguns conceitos como a
Língua Inglesa (LI) com o status de língua franca (ILF), que foi implementado no
documento para o ensino de Língua Inglesa (LI). Primeiramente, apresento uma
breve contextualização do documento, conceituando a BNCC e discorrendo sobre
os objetivos, o planejamento, a elaboração e a implementação desse documento em
nosso país. Logo em seguida, exponho a estruturação do documento e finalmente
analiso o Componente Curricular Língua Inglesa e a implementação do inglês
como língua franca (ILF), e de que modo essa proposta do documento está se
realizando na sala de aula de Língua Inglesa (LI). Para tanto, me apoio em trabalhos
de pesquisadores da Linguística Aplicada (DUBOC, 2019; RAJAGOPALAN,
2019, RIBAS, 2018; SZUNDY, 2019; TILIO, 2019), que revelam contradições e/
ou descompassos acerca dos pressupostos teóricos que constroem o texto da BNCC.
Para realização desse estudo utilizou-se a pesquisa documental e bibliográfica
(Gil, 2002), sendo analisados o documento oficial da BNCC e materiais relacionados
à temática.

2. BNCC: Uma breve contextualização


Atualmente, temos no Brasil, um documento oficial que tem a função
de regulamentar as políticas educacionais para a Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Ensino Médio, orientando as diretrizes gerais e específicas para cada
componente curricular, e os objetivos a serem alcançados em cada etapa de ensino
que é a Base Nacional Curricular - BNCC.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica, de modo que a tenham assegurados seus
direitos de aprendizagens e desenvolvimento, em conformidade com o que
preceitua o Plano Nacional de Educação. (PNE) (BRASIL, 2017, p. 5)

A BNCC foi planejada desde a promulgação da Lei de diretrizes e Bases


da Educação de 1996. Em junho de 2015, foram definidos os profissionais
qualificados para fazerem parte da comissão de especialistas para a elaboração da
proposta da Base Nacional Comum Curricular. Foi escrita e homologada dentro
de aproximadamente 4 anos passando por 2 versões com espaço para contribuições
e para melhorias. A terceira versão da BNCC foi homologada em 20 de dezembro
de 2017. O CNE, em 22 de dezembro de 2017 apresenta a resolução CNE/CP Nº
2 para a implementação da BNCC em todo território nacional. Desde então os
professores e todos os profissionais da educação se dedicaram a compreender sua
implementação e os possíveis impactos na educação do Brasil.

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O Brasil já teve outros documentos orientadores como os PCN2 e as
OCEM3, mas o grande diferencial é que a BNCC é Lei, sendo assim obrigatória. O
documento é um conjunto de referenciais para serem utilizados na elaboração dos
currículos dos estados brasileiros, portanto, é um currículo mínimo, porque todo
o seu conteúdo é obrigatório e tem que ser incluído nos currículos estaduais. Um
currículo único para todo o território nacional, uma educação igualitária para todos
os brasileiros, sem o olhar das diversidades e necessidades das diversas realidades do
nosso país. Segundo Tilio (2019),
Pois é isso que a BNCC faz, tentando passar a ideia de que basta haver
um currículo nacional único para que aprendizagem seja supostamente
homogeneizada em todo o país, independentemente das especificidades e
dificuldades de cada região, de cada contexto e de cada instituição. (TILIO,
2019, p. 12)

O objetivo da implementação da BNCC parece ser de oportunizar uma


mesma educação a todos os brasileiros, em todas as regiões do país e em qualquer
escola em que estivesse estudando, sem levar em conta a dimensão do nosso país,
a diversidade e peculiaridades da população brasileira. O que fica claro com a
implementação da BNCC é que “todos têm chances iguais, e aqueles que não foram
bem-sucedidos não o foram por (falta de) mérito próprio” (TILIO, 2019, p. 12).
Embora a BNCC traga um discurso teórico favorável para resolver os problemas
da educação e das políticas educacionais no âmbito nacional, a homologação dela
trouxe grande desconforto aos pesquisadores da área, especialistas em educação e
em Linguistas Aplicados (LA) que apontaram contradições no discurso teórico que
realmente a base propõe. Ribas (2018) advoga que
Alguns pontos de vista contrários à base referem-se ao não respeito à
diversidade e aos conhecimentos locais dos aprendizes, e também ao fim da
autonomia docente. A padronização de conteúdos a serem trabalhados pelos
professores acabaria indicando aos alunos que há formas corretas e legítimas de
pensar e de se expressar que compõem uma cultura elitista dominante, o que
causaria efeito de exclusão e marginalização de alguns grupos. As diferenças
existentes no país seriam, então reforçadas. (RIBAS, 2018, p. 1786)

Rajagopalan (2019) corrobora com Ribas (2018) sobre a problemática trazida


pela homogeneização de conteúdos, ao afirmar que
Quando se propõe um mesmo remédio para um universo tão diverso, estamos
de fato imaginando um sujeito ideal como receptor do tratamento. Acontece
que os sujeitos reais espalhados pelo vasto território nacional têm, cada um a
seu modo, necessidades e carências que lhe são próprias. Na verdade, como os
defensores de currículo unificado imaginam, que as necessidades e carências
específicas dos aprendizes, bem como suas expectativas e aspirações, possam ser

2 PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais.


3 OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino Médio.

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atingidas da mesma maneira – possibilidade essa fadada a conduzir à frustação
inevitável e ao eventual desencanto. (RAJAGOPALAN, 2019, p. 29).

Portanto, entende-se que um currículo com conteúdos padronizados, sem


respeitar a diversidade, a cultura, o contexto social e sem aspirar as verdadeiras
necessidades de contextos tão diversificados quanto as do povo brasileiro, possui
grandes possibilidades de se concretizar nas escolas como um grande insucesso. Um
currículo construído para atender um aluno supostamente ideal? Ideal para quê?
Para quem?
Um currículo único, como propõe a base, seria a garantiria que os alunos
aprenderiam os mesmos conteúdos, e que resolveria o problema das desigualdades,
pois estaria oportunizando o mesmo direito à aprendizagem a todos. Mas diante da
diversidade de nosso pais, as peculiaridades regionais, as especificidades culturais e a
heterogeneidade dos contextos escolares, um currículo único parece estar fadado ao
fracasso e as desigualdades e diferenças sociais poderiam ser ainda mais reforçadas,
segundo Gerhardt e Amorim (2019)
[...] um ensino bem-sucedido é aquele que se dá na prática, e o que importa
não é o conteúdo a ser repassado, mas sim a relação do professor com a
realidade de sala de aula, e a relação do aprendiz com o professor e com a
própria aprendizagem. (GERHARDT; AMORIM, 2019, p. 20).

Um currículo de sucesso deve considerar a sua realidade local, dando


autonomia ao professor para que respeite seu contexto escolar e atenda as vivências e
necessidades que os alunos apresentam, respeitando a ampla diversidade geográfica,
social e cultural do nosso país, não só conteúdos padronizados, mas sim, ser
responsivo às realidades locais, sem minar a autonomia das escolas e dos professores,
o currículo deve acontecer no chão da sala de aula.

2. Organização estrutural da BNCC


A BNCC foi elaborada com o objetivo de se ter clareza em sua estrutura.
Está dividida de modo a apresentar as competências gerais que os alunos deverão
desenvolver ao longo de suas etapas de escolaridade com o objetivo de um ensino
que “está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à
formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática”
(BRASIL, 2018, p. 7). Essas competências gerais estabelecem para as quatro áreas
do conhecimento “competências específicas de área. Essas competências explicitam
como as dez competências gerais se expressam nessas áreas” (p. 28). As competências
específicas, associadas às competências gerais visam “garantir o desenvolvimento das
competências específicas” e “cada componente curricular apresenta um conjunto
de habilidades. Essas habilidades estão relacionadas a diferentes objetos de
conhecimento – aqui entendidos como conteúdos, conceitos e processos” (p. 28). As
habilidades corresponderiam às capacidades que os estudantes iriam adquirir, como
desdobramentos das competências específicas para cada componente curricular.

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Os componentes curriculares estão organizados em quatro grandes áreas
do conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências
Humanas, que se desdobram nos componentes curriculares: Língua Portuguesa,
Arte, Educação Física, Língua Estrangeira Moderna/Língua Inglesa, Matemática,
Ciências, História e Geografia. Eles estão também organizados em unidades
temáticas para que se possam relacionar as habilidades (objetivos de aprendizagem)
aos seus respectivos objetos de conhecimento.
A BNCC, ao organizar o currículo mínimo em áreas de conhecimento,
incentiva um trabalho interdisciplinar, prevendo a interlocução entre os diversos
componentes curriculares. De acordo com a BNCC:
Decidir sobre formas de organização interdisciplinar dos componentes
curriculares e fortalecer a competência pedagógica das equipes escolares para
adotar estratégias mais dinâmicas, interativas e colaborativas em relação à
gestão do ensino e da aprendizagem. (BRASIL, 2017, p. 12)

Segundo o documento, a interdisciplinaridade é um dos caminhos para superar


a fragmentação dos conteúdos e dos currículos escolares. Entendo ser de extrema
importância essa articulação interdisciplinar que direcione para uma proposta
integradora nos conteúdos e objetivos de aprendizagem, contudo, a BNCC, em
se tratando da área de Língua Inglesa (LI), não favorece a interdisciplinaridade,
primeiramente porque apresenta-se uma proposta em eixos, mas da forma com que
foram dispostos no documento, os eixos são tratados separadamente, ou seja, não
há conexão entre eles; em segundo lugar, por trazer os conteúdos fragmentados em
habilidades, o que dificulta a articulação do ensino nas práticas sociais do uso da
Língua Inglesa (LI), desarticulando as situações de aprendizagens no planejamento
das aulas pelo professor. A organização dos conteúdos em eixos “sugere um retorno
às abordagens cognitivistas e estruturalistas que caracterizaram o ensino de línguas
nas décadas de 1970 e 1980” (SZUNDY, 2019, p. 142).

3. A BNCC e o Componente Curricular Língua Inglesa


O Componente Curricular Língua Inglesa é apresentado com enfoque para um
ensino/ aprendizagem voltado para a globalização, que possibilitará ao aluno o acesso
aos saberes linguísticos necessários para seu desenvolvimento crítico e valorizando
a língua com sua função social e política. De acordo com o documento “ensinar
inglês com essa finalidade tem, para o currículo, três implicações” (BRASIL, 2018,
p. 241), sendo elas, “a língua com um caráter formativo (educação linguística), de
multiletramentos (práticas sociais do mundo digital...participação e circulação em
diferentes “semioses e linguagens (verbal, visual, corporal, audiovisual)” (BRASIL,
2018, p. 240) e a abordagem do ensino que situa “a língua inglesa em seu status de
língua franca [...]. Isso exige do professor uma atitude de acolhimento e legitimação
de diferentes formas de expressão na língua [...]” (BRASIL, 2018, p. 240).
Segundo o documento, o professor deve oportunizar ao aluno refletir
“observando sempre a condição de inteligibilidade na interação linguística”
(BRASIL, 2018, p. 240), “buscando romper com aspectos relativos à ‘correção’,

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‘precisão’ e ‘proficiência’ linguística” (BRASIL, 2018, p. 240). De acordo Szundy
(2019), um primeiro olhar nessas afirmações constantes na BNCC nos leva a
acreditar que o documento insere uma perspectiva decolonial4 no ensino de inglês
“ao defender a não prerrogativa de falantes nativos sobre os muitos usos do que
chamamos de inglês e a legitimidade desses usos por todos/as aqueles/as que o
utilizam” (SZUNDY, 2019, p. 144).
Na Base Nacional Comum Curricular ficou definida a Língua Inglesa (LI)
como Língua Estrangeira (LE) obrigatória que deverá ser ensinada no Ensino
Fundamental II em todas as escolas brasileiras públicas ou privadas, desde o ensino
fundamental (6º ano) ao médio. Com a aprovação da medida provisória 746/2016
trouxe também concepção da língua franca (ILF) reconhecido pela Língua Inglesa
(LI) “[...] compreende-se desta forma, estar sendo reconhecido na legislação o
caráter de língua franca de comunicação internacional assumido pela língua inglesa,
bem como bem como seu papel central na mediação de práticas interculturais”
(COUTINHO, 2017, p. 3). Conceber a língua franca (ILF) no ensino da Língua
Inglesa (LI) permite que se ensine diferentes repertórios linguísticos, sem se
nortear por apenas um único inglês correto, e permite um ensino voltado para
a interculturalidade, com reconhecimento e respeito à diversidade e diferenças
culturais.
Mas, de acordo com Duboc (2019), o “conceito de ILF caiu praticamente
de paraquedas no Componente Curricular Língua Inglesa da BNCC (BRASIL,
2017) e tendo em vista que é praticamente nula a discussão sobre o conceito de
ILF na formação docente inicial e continuada” (GIMENEZ, EL KADRI, CALVO,
2018; COGO, SIQUEIRA, 2017), com o advento da globalização e o ampliação
da expansão da língua inglesa mundialmente, como consequências de fatores
socioculturais, políticos e econômicos, seria necessário primeiramente que os
professores se engajassem em formações para a reflexão sobre o uso da língua franca
(ILF). Gimenez (2014, p. 13) corrobora pontuando que:
Observa-se uma carência de reflexões sob uma perspectiva de autores
brasileiros que reflitam o olhar de usuários e aprendizes em contexto do
“Círculo de Expansão” a respeito da língua franca global. Dado que o assunto
é relativamente novo, faz-se necessária uma revisão sistemática da literatura
que englobe as pesquisas realizadas no contexto brasileiro, a fim de identificar
os temas por elas tratados, os contextos de pesquisas e suas implicações.
(GIMENEZ, 2014, p. 13)

Sendo assim, para que essa mudança na concepção de língua realmente


aconteça na sala de aula, de sistema fechado à prática social e à língua franca (ILF),
prevalece a grande necessidade de estudos, trabalhos e publicações na perspectiva de
língua franca (ILF), a fim de subsidiar os professores a assumir em suas aulas essa

4 Segundo Mignolo (2007), a perspectiva decolonial pressupõe enfrentamento aos padrões


eurocêntricos, buscando por outras formas de compreensão de si, organização social e construção
do conhecimento.

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nova modalidade de língua franca (ILF), ao invés do inglês padrão que costuma ser
vigente nas aulas de Língua Inglesa (LI). Duboc (2019) advoga que
O ensino de inglês no Brasil é marcado historicamente por um discurso de
fracasso já denunciado por pesquisadores brasileiros [...]. Um dos fatores
relacionados a esse discurso se refere ao ranço colonialista do inglês e a
empreitada árdua de muitos brasileiros na busca idealizada do “domínio” do
idioma, calcado em preceitos como precisão, pureza e imitação do falante
nativo. (DUBOC, 2019, p.16)

A Língua Inglesa (LI) sempre foi considerada uma disciplina menos


importante, que pouco contribui para a formação dos alunos do mesmo modo que
as matérias do núcleo comum, como o português e a matemática, esse componente
curricular sempre carregou um descrédito dentro do currículo comum, e não foi
diferente na elaboração da BNCC que suas diretrizes não conseguiram mudar esse
quadro negativo. Segundo Duboc (2019)
Se de um lado as considerações tecidas no texto introdutório coadunam-se
com conceitos e categorias pertinentes para o repensar do status do inglês na
contemporaneidade, de outro, a análise dos quadros didáticos dispostos ano
a ano evidenciam, paradoxalmente, lapsos de engessamento de conteúdos,
ecoando – ainda que o documento se coloque afeito a um desenho curricular
espiralado – um discurso atualizado que camufla conteúdos de língua
tradicionalmente ensinados numa lógica de linearidade e hierarquização
(Simple Present no 6º ano > Simple Past no 7º ano > Future Forms no 8º
ano). Eis o conflito epistemológico: como pode um documento acolher os
usos criativos, híbridos e locais do inglês em seu status de língua franca se
o próprio documento organiza, linear e hierarquicamente, temas, objetos de
conhecimento e habilidades, com exemplos de conteúdos linguísticos fixos e
estáveis? (DUBOC, 2019, p. 18)

Duboc (2019) apoiando-se em Cogo e Siqueira (2017), afirma que o ILF,


quando pensado em contextos educacionais, refuta qualquer pretensão de se impor
o que deve e o que não deve ser ensinado na aula de inglês (COGO E SIQUEIRA,
2017), corroborando Jordão e Marques (2018) asseguram que, sob a perspectiva
do ILF, deve-se mudar o foco em regras gramaticais institucionalizadas para o
encorajamento da negociação entre as diversas gramáticas e repertórios linguístico-
culturais que emergem das situações comunicativas em inglês, sendo assim não se
pode conceber um ensino de ILF baseado em conteúdos gramaticais impostos, em
um currículo engessado, de que forma os alunos terão então acesso a uma nova
língua ILF, a uma outra cultura, ao respeito às diversidades socioeconômicas se o
próprio currículo propõe na teoria mas não oportuniza essa concretização na prática
das aulas de inglês.
De acordo com Szundy (2019), a ideologia de língua franca (ILF) assumida
pela BNCC permitiria o ensino e aprendizagem de inglês como “um espaço de
contestação, de reivindicação dos direitos da periferia, de subversão, e não da
submissão” (RAJAGOPALAN, 2005, p. 155), portanto de acordo com a autora
“esse olhar mais esperançoso [...] logo se desfaz quando nos deparamos com
as habilidades estipuladas para o componente, que parecem privilegiar a visão

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de texto(s) como unidade(s) autônomas, e uma dimensão intercultural pouco
problematizadora.” (SZUNDY, 2019, p. 144)
As habilidades de leitura para o parecem se ancorar na ideologia linguística de
que os textos constituem unidades de sentido autônomas cujos significados
podem ser depreendidos a partir da utilização de estratégias de leitura e
aquisição de vocabulário. As concepções de que os textos representam a
realidade e de que essa representação pode ser apreendida através da localização
de informações são entextualizadas em habilidades como formular hipóteses
sobre a finalidade de um texto em língua inglesa, com base em sua estrutura,
organização textual e pistas gráficas (EF06LI07), identificar o assunto de um
texto, reconhecendo sua organização textual e palavras cognatas (EF06LI08) e
localizar informações específicas do texto (EF06LI09). A utilização dos verbos
formular, identificar, e localizar nessas três habilidades de leitura contraria o
caráter formativo e político da língua inglesa defendido na apresentação do
componente e a perspectiva de língua franca privilegiada pelo documento:
esses enquadres ideológicos orientam-se por uma visão de textos (verbais e/
ou não verbais) como recursos semióticos que (des/re)constroem realidades
sempre forjadas em trajetórias textuais através de processos contínuos de des/
recontextualização. (SZUNDY, 2019, p. 144)

Ainda sobre a perspectiva do ensino e aprendizagem de língua franca (IFL)


que a BNCC direciona, a autora advoga que
o status do inglês como língua franca na BNCC parece, portanto, estar a serviço
do neoliberalismo - atende ao desenvolvimento de competências e habilidades
para que o/a aluno/a se torne um/a empreendedor/a de si mesmo/a, de forma
a habilitá-lo/a participar desse mundo global sem questionar suas macros e
micros estruturas, e como estas operam para manter um grande contingente
de população mundial sem acesso às commodities dessa utópica aldeia global5.
(SZUNDY, 2019, p. 146-147)

Sendo assim, a BNCC se distancia do ILF, não garante a convergência das


habilidades, competências específicas desse componente curricular com o que
propõe o texto introdutório, se afasta de um ensino consciente e crítico que está
diretamente ligado ao caráter formativo e político, que direciona um trabalho
com a diversidade linguística, que busca as interações como prática social, capaz
de formar cidadãos engajados na sociedade em que vivem e serem protagonistas
da sua realidade. Rajagopalan (2019, p. 26) advoga que “o ensino bem-sucedido
se dá na prática” e ainda enfatiza que “o que vale é como o conteúdo é trabalhado
na sala de aula”. Portanto, ficará a cargo dos professores a(s) maneira(s) como esse
currículo, com tantos desencontros e descompassos, se concretizará no “chão da sala
de aula”. Para o autor, “importante mesmo é saber até que ponto o professor está
atento à realidade em que se encontra o aprendiz e até que ponto ele está sensível
aos anseios, as aspirações e as angústias de quem está no lado receptor do esforço
do esforço pedagógico” (RAJAGOPALAN, 2019, p. 26). Será que o professor está

5 Aldeia global FIGUEIREDO (2018).

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preparado para esse desafio? Como está a realização de documento tão cheio de
contradições e descompassos na sala de aula?

4. Considerações Finais
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) embora pareça trazer um
discurso de inovação e ideias revolucionárias, o que realmente se percebe é uma
orientação para um ensino e aprendizagem que não valoriza a formação crítica do
cidadão priorizando a formação para o marcado de trabalho cumprindo um papel a
favor do neoliberalismo. É um documento falho quanto a orientação para o ensino
da língua franca (ILF) pois notamos um desencontro do texto introdutório com o
que realmente se encontra nas habilidades, conteúdos e objetivos, afastando-se de
um ensino crítico, com a valorização da diversidade com ênfase nas práticas sociais
e um caráter formativo de cidadãos críticos capazes de envolver-se em lutas por uma
sociedade mais justa e igualitária.
Compreende-se que para uma verdadeira mudança no ensino de inglês,
direcionado principalmente para o status da língua franca (ILF), seria necessário
principalmente uma conscientização dos professores para realmente trabalhar em
sala de aula a diversidade linguística da Língua Inglesa (LI), através das práticas
sociais sem enfatizar um modelo padrão da língua, portanto torna-se necessário
uma efetiva formação dos professores. De acordo com Siqueira e Anjos (2012 apud
Bordoni; Gimenez, 2014, p. 30), é fundamental que “[...] um investimento maciço
na formação inicial/continuada de professores precisa ser realizada para que a escola
pública seja palco de mudanças”, para transpor esses conflitos e limitações impostos
pelas propostas do documento e vislumbrar verdadeiramente uma transformação
na sala de aula de Língua Inglesa (LI) e, de acordo com Szundy (2019, p. 148), “só
assim poderemos esperançar, verbo que segundo Freire (1992) demanda inter(ação)
conjunta, e não espera, que a educação construa futuros mais equânimes e éticos,
orientados pela coexistência pacífica de mundos e corpos distintos, e bem estar de
muitos.”

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