Tudo e Todas As Coisas Nicola Yoon
Tudo e Todas As Coisas Nicola Yoon
Tudo e Todas As Coisas Nicola Yoon
Sobre a obra:
SUMÁRIO
Capa
Sumário
Folha de Rosto
Folha de Créditos
Dedicatória
Epígrafe
O QUARTO BRANCO
LIMBO DA IDCG
DESEJO D NIVER
CONTINUA O MESMO
A VIDA É CURTA®
DIÁRIO DE MADELINE
O COMITÊ DE BOAS-VINDAS
VIGÍLIA DA VIZINHANÇA
EU, ESPIÃ
MENTEUSE
PIÈCE DE REJECTION
SOBREVIVÊNCIA
A VIDA É CURTA®
PRIMEIRO CONTATO
NOITE DOIS
NOITE QUATRO
NOITE CINCO
NOITE SEIS
NOITE SETE
SORVETE ASTRONAUTA
TUDO É UM RISCO
FUTURO PERFEITO
OLLY
DIAGNÓSTICO
PERSPECTIVAS
A VIDA É CURTA®
TEMPO
DICIONÁRIO DA MADELINE
SEGREDOS
NUMEROLOGIA
OLLY DIZ
TEORIA DO CAOS
CARTÃO DA LIBERDADE
PELE
AMIZADE
PESQUISA
VIDA E MORTE
SINCERAMENTE
ESTERIOR
A TERCEIRA MADDY
A VIDA É UM DOM
DICIONÁRIO DA MADELINE
IMAGEM ESPELHADA
MUDANÇA DE AGENDA
ENFERMEIRA DO INFERNO
VIGÍLIA DA VIZINHANÇA #2
EDUCAÇÃO SUPERIOR
A PAREDE DE VIDRO
O MUNDO ESCONDIDO
MEIA-VIDA
ADEUS
OS CINCO SENTIDOS
OUTROS MUNDOS
JÁ FELIZ
INFECTADA
FALO C/ VC + TARDE
A ESTEIRA
DICIONÁRIO DA MADELINE
AQUI AGORA
DICIONÁRIO DA MADELINE
RECOMPENSA SE ENCONTRADO
O MAIÔ
PULO
ZACH
A CAMA MURPHY
TODAS AS PALAVRAS
DICIONÁRIO DA MADELINE
O MUNDO OBSERVÁVEL
DESTA VEZ
ESPIRAL
O FIM
LIBERADA, PARTE UM
RESSUSCITADA
READMITIDA
LIBERADA, PARTE DOIS
A VIDA É CURTA®
GEOGRAFIA
MAPA DO DESESPERO
A VIDA É CURTA®
FINGINDO
JUNTAS NOVAMENTE
VIGÍLIA DA VIZINHANÇA #3
CINCO SÍLABAS
CONFIDENCIAL
PROTEÇÃO
DICIONÁRIO DA MADELINE
IDENTIDADE
PROVA DE VIDA
DO LADO DE FORA
CONTOS DE FADAS
O VAZIO
INÍCIOS E FINAIS
DEPOIS DA MORTE DE
A MÃE DE MADELINE
O PRESENTE
FUTURO PERFEITO #2
DECOLAGEM
PERDÃO
A VIDA É CURTA®
ESTA VIDA
AGRADECIMENTOS
NICOLA YOON
Tradução
Amanda Orlando
Produção editorial:
Yoon, Nicola
15-08847 | CDD-813
Parte da renda deste livro será doada p ara a Fundação Abrinq, que p
romove a defesa dos direitos e o exercício da cidadania de crianças e
adolescentes.
Saiba mais: www.fundabrinq.org.br
No meu quarto branco, encostadas nas minhas paredes brancas, nas minhas
prateleiras brancas reluzentes, as lombadas dos livros são a única cor. Os
livros são todos de capa dura e novos em folha. Nada de capas moles de
segunda mão cheias de germes para mim. Eles vêm de Lá de Fora, são
descontaminados e selados a vácuo. Eu queria ver a máquina que faz isso.
Imagino cada um dos livros viajando sobre uma esteira em direção a
estações brancas onde braços brancos e robóticos espanam o pó, limpam,
jogam um spray e os esterilizam de todas as formas até que possam ser
considerados limpos o suficiente para chegar até mim. Quando um novo
livro chega, minha primeira tarefa é remover o plástico, um processo que
envolve uma tesoura e uma ou duas unhas quebradas. A segunda tarefa é
escrever meu nome dentro da primeira capa.
Não sei por que faço isso. Não tem mais ninguém aqui além da minha mãe,
que nunca lê nada, e a minha enfermeira, Carla, que não tem tempo para ler
porque passa o tempo todo me observando enquanto respiro. Raramente
recebo visitas, de modo que não há ninguém que possa pegar os meus livros
emprestados. Ninguém que precise ser lembrado de que aquele livro
esquecido em sua prateleira me pertence.
Esta é a seção que me toma mais tempo e eu vario de acordo com cada
livro. Às vezes, as recompensas são requintadas:
Humuhumunukunukuapua’a.
Eu (Madeline).
LIMBO DA IDCG
MINHA DOENÇA É TÃO RARA quanto famosa. É um tipo de
Imunodeficiência Combinada Grave, mas você a conhece como “doença da
criança na bolha”.
DESEJO D NIVER
— Fonética — digo.
Ela coloca o estetoscópio nos ouvidos para que possa ouvir meus
batimentos cardíacos. O sorriso murcha e é substituído por uma expressão
mais séria de médica. Essa é a cara que os pacientes dela costumam ver —
levemente distante, profissional e preocupada. Fico me perguntando se eles
consideram isso reconfortante.
Em um impulso, dou-lhe um beijo rápido na testa para lembrá-la de que sou
apenas eu, sua paciente preferida, sua filha.
Ela abre os olhos, sorri e acaricia uma das minhas bochechas. Tenho a
impressão de que, se você vai nascer com uma doença que requer cuidados
constantes, então é bom que a sua mãe seja também a sua médica.
Após alguns segundos, ela me lança seu melhor olhar do tipo eu-sou-a-
médica-e-temo-ter-másnotícias-para-você.
— Este é o seu grande dia. Por que não jogamos alguma coisa na qual você
tenha uma chance real de ganhar? Imagem & Ação em Nome do Outro?
Já que o Imagem & Ação normal não pode ser jogado só por duas pessoas,
inventamos o Imagem & Ação em Nome do Outro. Uma pessoa desenha e a
outra, em seu nome, dá o seu melhor palpite. Se a resposta estiver certa, a
outra pessoa marca o ponto.
Eu me viro para ela. Ela sorri para mim de orelha a orelha, orgulhosa,
porém seus olhos brilham por causa das lágrimas.
Sério, ela não costuma ser assim tão emotiva, mas alguma coisa com o meu
aniversário sempre faz com que fiquemos chorosas e alegres ao mesmo
tempo. E se ela fica chorosa e alegre, eu fico chorosa e alegre também.
O meu aniversário é o dia do ano em que mais nos damos conta da minha
doença. É a noção da passagem do tempo que faz com que nos sintamos
assim. Outro ano inteirinho de doença, sem nenhuma esperança de cura no
horizonte. Outro ano sentindo falta de todas as coisas que são normais na
vida de qualquer adolescente: a carteira de motorista provisória, o primeiro
beijo, o baile de formatura, o primeiro coração partido, os percalços de
aprender a dirigir. Outro ano em que a minha mãe não faz nada além de
trabalhar e cuidar de mim. Em qualquer outro dia, essas ausências são
fáceis, pelo menos um pouco mais fáceis, de serem ignoradas.
Este ano está um pouco mais difícil que o anterior. Talvez seja porque eu
tenha dezoito anos agora. Tecnicamente, sou uma pessoa adulta. Eu deveria
estar saindo de casa, indo para a universidade. Minha mãe deveria estar
penando com a síndrome do ninho vazio. Só que, por causa da IDCG, eu
não vou a lugar nenhum.
Na verdade, há apenas uma única coisa que eu desejo: uma cura mágica que
me permita sair correndo, livre, por aí, como um animal selvagem, mas
nunca fiz esse pedido porque sei que é impossível. Seria como desejar que
as sereias, os dragões e os unicórnios fossem reais. Em vez disso, peço algo
mais provável que uma cura. Algo que provavelmente não vai nos deixar
tão tristes.
— Não, mãe, sem chance. Não posso deixar você levar essa.
Balanço a cabeça.
— Ah, meu Deus, você não tem jeito. — Jogo as mãos para cima. — Tudo
bem. Tudo bem. Eu deixo.
— Yessss. — Ela soca o ar, solta uma gargalhada para mim e marca o seu
agora insuperável placar. — Na verdade, você nunca entendeu este jogo. É
uma disputa de persuasão.
CONTINUA O MESMO
Baixo o livro.
— Gracias.
— É claro.
— O Jovem Frankenstein?
— Sim.
— Não ligue para mim — diz ela, gargalhando. — Só estou com inveja de
como você e a sua mãe são fofas.
Ela pega o meu registro de saúde de ontem, dá uma lida nas medições
realizadas pela minha mãe e acrescenta uma nova folha de papel à
prancheta.
Carla se senta ao meu lado no sofá e pega a minha mão para colocar o
manguito do medidor de pressão. Os olhos dela miram o meu livro.
— Um dia ele não vai mais causar isso — digo. — E quero garantir que eu
ainda estarei lendo-o quando acontecer.
Isso foi um sinal de desaprovação, mas então me pergunto se ela não está
certa.
Carla olha fixamente para mim por alguns segundos. Sei o que ela está
pensando.
que a mãe dele o encontrou, mas não gritou com ele por comer aquilo,
como ela geralmente faz. Está
Na noite passada, sonhei que na verdade eles não tinham se mudado, mas
sido sequestrados por
ela sobre o meu sonho porque isso ia deixá-la triste, mas contei para a
Carla e ela me deu um abraço.
O COMITÊ DE BOAS-VINDAS
— CARLA — DIGO —, não vai ser como da última vez. — Eu não tenho
mais oito anos.
Não estou preparada para o sol brilhante da Califórnia. Não estou preparada
para a visão dele, alto, escaldante e branco contra o céu branco-lavado.
Estou cega. Mas então a névoa clara que encobre a minha visão começa a se
dissipar. Tudo está coberto por um halo.
Vejo o caminhão e a silhueta de uma mulher mais velha rodopiando: a mãe.
Vejo um homem mais velho na parte de trás do caminhão: o pai. Vejo uma
garota talvez um pouco mais nova que eu: a filha.
E então eu o vejo. Alto, esguio, todo vestido de preto: camiseta preta, jeans
preto, tênis preto e um gorro preto de tricô que cobre completamente seu
cabelo. Ele é branco com um leve bronzeado da cor do mel e seu rosto é
profundamente anguloso. Ele salta de seu poleiro nos fundos do caminhão e
desliza pela rua, movendo-se como se a gravidade o afetasse de forma
diferente do resto de nós. Ele para, inclina a cabeça para um dos lados e
encara a nova casa como se fosse um quebra-cabeça.
— Você não mandou ele parar com essa coisa? — rosna o pai.
Pressiono uma das palmas das mãos aberta contra o vidro, sem ar, como se
eu mesma houvesse feito aquela maluquice. Meus olhos oscilam entre o
garoto, o parapeito e o garoto novamente. Ele não está mais agachado. Está
me encarando. Nossos olhos se encontram. Imagino vagamente o que ele vê
na minha janela: uma garota esquisita com olhos arregalados que o observa.
Ele sorri para mim e o rosto dele não está mais rígido, nem severo. Tento
sorrir de volta, mas fico tão confusa que acabo franzindo a testa.
17:00 — Implora para que Kara e Olly façam suas tarefas domésticas
“antes que o seu pai chegue em casa”.
10:00 — Vai até o lado de fora com passadas barulhentas usando botas
pretas e um roupão de banho marrom
felpudo.
10:01 — Checa as mensagens no celular. Ela recebe um monte de
mensagens.
A ROTINA DO OLLY
Imprevisível.
EU, ESPIÃ
Em algumas manhãs, ele dorme até meio-dia. Em outras, ele sai do quarto
antes de eu começar minha observação. Na maior parte das manhãs, ele
acorda às nove horas e escala a parede do quarto, no melhor estilo Homem-
Aranha, até o telhado usando as quinas como apoio. Ele fica cerca de uma
hora lá em cima antes de se dependurar, passando primeiro as pernas, e
voltar para o quarto. Não importa o quanto eu tente, não consegui ver o que
ele faz lá em cima.
O quarto dele só não está vazio porque tem uma cama e uma cômoda.
Algumas caixas da mudança permanecem fechadas e empilhadas perto da
porta. Não há nenhuma decoração além do pôster de um filme chamado
Jump London. Dei uma pesquisada e soube que é um documentário sobre
parkour, que é um tipo de ginástica de rua, o que explica como ele é capaz
de fazer todas essas coisas doidas. Quanto mais assisto, mais eu quero
saber.
MENTEUSE
ACABEI DE ME SENTAR À mesa para jantar. Minha mãe coloca um
guardanapo de tecido no meu colo e enche o meu copo e o da Carla. Os
jantares de sexta são especiais na minha casa. Carla fica até mais tarde para
comer conosco em vez de fazer isso com sua própria família.
Fico surpresa com a pergunta. Sei que estou atrasada, mas, como isso nunca
aconteceu antes, eu não havia me dado conta de que minha mãe estava
acompanhando o meu desempenho.
— Oui, non, et non — respondo a cada uma das perguntas. — Está tudo
bem. Vou entregar o trabalho amanhã, prometo. Só perdi a noção do tempo.
Ela faz que sim com a cabeça e começa a cortar e passar manteiga em
pedaços de um pão francês cascudo para mim. Sei que ela quer perguntar
mais alguma coisa. Até sei o que ela quer perguntar, mas está com medo da
resposta.
Carla me lança um olhar penetrante. Nunca menti para a minha mãe. Jamais
tive necessidade de fazer isso e não acho que eu saiba como fazê-lo. Mas
alguma coisa me diz que é exatamente isso o que eu devo fazer.
— Só ando lendo demais. Você sabe como eu fico quando estou lendo um
bom livro. — Faço um esforço para que minha voz soe o mais convincente
possível. Não quero que ela se preocupe. Ela já tem muito com o que se
preocupar comigo do jeito que as coisas já estão.
— Sem fome? — pergunta minha mãe alguns minutos depois. Ela pressiona
as costas das mãos contra a minha testa. — Você não está com febre. — Ela
deixa a mão ali parada por mais um momento.
A Carla vai para trás de mim, as mãos dela pressionam levemente meus
ombros. Sei que eu devia ficar aqui. Sei que esperam que eu faça isso. Com
toda a certeza, eu também esperava que essa fosse a minha reação, mas, de
alguma forma, hoje, eu simplesmente não consigo fazer isso. Preciso saber
quem é, mesmo que seja apenas algum pedinte.
— A questão é que os bundts da minha mãe não são muito bons. Eles são
terríveis. Na verdade, são intragáveis, eles são
— Toda vez que a gente se muda ela nos faz levar um desses para os
vizinhos.
— Oh. Bem, isso é uma surpresa, não? É muito bacana da parte dela. Por
favor, digam à mãe de vocês que eu agradeço muito.
Não há a menor possibilidade de aquele bolo bundt passar pelas inspeções
adequadas e posso sentir minha mãe tentando descobrir como lhes dizer que
ela não pode aceitar o bolo sem contar a verdade sobre mim.
— Então você quer que a gente leve o bolo de volta? — diz Olly, incrédulo.
— A sua filha está em casa? — Olly pergunta quase gritando antes que
minha mãe possa fechar a porta. — A gente esperava que ela pudesse
mostrar a vizinhança para a gente.
A porta da frente se abre e dou um passo para trás para esperar pela minha
mãe. Ela precisa permanecer no purificador de ar até que os filtros tenham a
chance de limpar o ar externo. Um minuto depois, ela entra na casa, e não
me nota de imediato. Em vez disso, fica ali de pé, parada, com os olhos
fechados e a cabeça levemente abaixada.
— Sinto muito — diz ela sem olhar para cima.
Pela milésima vez percebi quão difícil minha doença é para ela. Esse é o
único mundo que eu conheço, mas antes de mim ela teve o meu irmão e o
meu pai. Ela viajava e jogava futebol. Ela tinha uma vida normal que não
incluía ficar enclausurada em uma bolha catorze horas por dia com sua filha
adolescente doente.
Eu a abraço e deixo que ela me abrace por mais alguns minutos. Essa
decepção está sendo muito mais difícil para ela do que para mim.
Em vez disso, vou para o andar de cima imaginando qual deve ser o gosto
de um bolo bundt.
PIÈCE DE REJECTION
Quando ele termina, escala a casa até o telhado, levando o bundt, e depois
de uma hora ele se pendura no parapeito e escapole para o quarto.
SOBREVIVÊNCIA
— POR QUANTO TEMPO VOCÊ vai ficar assim deprimida pela casa? —
Carla pergunta. — Você já está assim há uma semana.
Porém, tentar voltar à rotina normal é difícil quando eu ouço todos os sons
do mundo exterior.
Quanto mais eu tento deixar o mundo do lado de fora, ele parece cada vez
mais determinado a entrar.
— Você está lendo as mesmas cinco páginas daquele livro há dias. — Ela
balança a cabeça na direção do meu exemplar de O
— É terrível. A maioria dos garotos são horríveis e todos eles falam sobre
caçar e matar porcos. Nunca senti tanta vontade de comer bacon na minha
vida.
Carla solta uma gargalhada, que soa no máximo desanimada. Ela se senta
no sofá ao meu lado e coloca as minhas pernas no seu colo.
— Shhh, me escuta. Andei pensando nisso. Eu vi que essa coisa nova está
pesando sobre os seus ombros, mas sei que você vai se sair bem.
Não acho que a Carla já tenha dito tantas palavras assim de uma só vez.
— A minha própria Rosa — Carla continua, mas logo para. Ela reclina as
costas no sofá e fecha os olhos, tomada por alguma emoção que não
compreendo. — A minha Rosa poderia aprender uma coisa ou outra com
você. Ela tem tudo que posso lhe dar, mas sempre acha que não tem nada.
Eu sorrio. Carla reclama sobre a filha, mas posso dizer que ela a mima o
quanto pode.
— Você vai ver. Logo aquele sorriso vai surgir de novo. — Ela afaga a
minha perna. — A vida é difícil, querida. Todo mundo encontra um
caminho.
A VIDA É CURTA®
PRIMEIRO CONTATO
A luz se apaga e eu olho para cima bem a tempo de ver a mão do Olly com
uma luva preta levar novamente a lanterna para dentro da janela. Fico ali
mais alguns minutos, esperando que ele volte, mas isso não acontece.
NOITE DOIS
NOITE QUATRO
NOITE CINCO
NOITE SEIS
Por fim, não consigo me conter. Caio na gargalhada. Ele olha para cima e
sorri também. Pega uma caneta marcador de cor preta do bolso e escreve na
janela:
Para: usuariogenerico033@gmail.com
Assunto: Olá
De: usuariogenerico033
Para: usuariogenerico033@gmail.com
Oi.
3 xícaras de cimento
Para o bolo:
Coloque no forno. Quando você colocar um p alito dentro do bolo e ele não
sair, está p ronto. Deixe esfriar dentro da forma.
Para a cobertura:
(Serve 0)
– M adeline Whittier
Quarta-feira, 20:15
Olly: eu ia resp onder o seu e-mail, mas vi que você estava on-line. a sua
receita me fez rachar de rir. p or acaso já houve algum esp ião na história da
esp ionagem que admitiu ser um esp ião? acho que não. eu sou olly e é um
p razer conhecê-la.
Madeline: Afrodescendente.
Olly: não, claro que isso não conta. ninguém chama você de m ou maddy,
ou made, ou line? vou arrumar um ap elido p ara você.
Quinta-feira, 20:19
Madeline: Já que vamos ser amigos, tenho umas p erguntas: de onde você
é? Por que você usa um gorro o temp o todo? A sua cabeça p or acaso tem
um formato esquisito? Por que você só se veste de p reto? Pergunta
relacionada: você sabe que existem outras cores de roup a? Tenho algumas
sugestões se você p recisar. O que você faz no telhado? O que é a tatuagem
no seu braço direito?
Olly: eu tenho as resp ostas: viemos de vários lugares, mas p rincip almente
da costa leste. rasp ei a cabeça antes de me mudar p ara cá (grande erro).
sim. eu fico mesmo incrivelmente sexy de p reto. sim. não p reciso de
nenhuma, obrigado. nada. um código de barras Madeline: O que você tem
contra letras maiúsculas e a p ontuação correta?
Olly: quem disse que eu tenho alguma coisa contra Madeline: Tenho que
ir. Desculp e!
Sexta-feira, 20:34
Madeline: Não estou de castigo. Por que você acha que eu estou?
Olly: bem, alguma coisa fez com que você saísse do comp utador correndo
na noite p assada. eu estava p ensando que era a sua mãe. confie em mim.
eu sei tudo sobre estar de castigo. não vi você do lado de fora desde que nos
mudamos Madeline: Desculp e. Não sei o que dizer. Não estou de castigo,
mas não p osso sair de casa.
Olly: você não é um fantasma? então uma p rincesa de conto de fadas. qual
delas você é? cinderela? você vai se transformar em abóbora se sair de
casa?
Olly: ou a rap unzel? o seu cabelo é bem comp rido. jogue ele aqui p ara
baixo e deixe que eu escale p ara te resgatar.
Madeline: Isso semp re me soou como algo imp raticável. E doloroso. Você
não acha?
Olly: sim. então você não é a cinderela nem a rap unzel. branca de neve,
então. sua madrasta má jogou um feitiço em você de forma que jamais será
cap az de sair de casa e o mundo não p oderá ver quão digna você é.
Madeline: Não é assim que acontece na história. Você sabia que na versão
original não existia uma madrasta má, mas sim uma mãe má? Dá p ara
acreditar nisso?
Olly: definitivamente.
Olly: p ara uma fantasma esp iã p rincesa dos contos de fadas? com toda a
certeza.
Sábado, 20:01
Olly: vamos jogar um jogo. os seus cinco p referidos. ráp ido. sem p ensar
muito. livro p alavra cor vício p essoa.
Olly: anda logo. digite mais dep ressa, mulher. não p ense, digite.
Madeline: Sim
Olly: o senhor das moscas. macabro. p reto. roubar p rataria. minha irmã.
Madeline: Eca. O senhor das moscas? Não acho que p ossamos mais ser
amigos. Esse livro é horrível.
Madeline: Tudo!
Olly: sim
Segunda-feira, 20:07
Olly: o que você fez p ara te colocarem num castigo tão brabo?
Madeline: Ah, meu Deus, você é maluco! Não estou grávida, nem tenho
namorado! Que tip o de garota você acha que eu sou?
Olly: p assou p ela minha cabeça umas duas ou umas quinze vezes
Madeline: Inacreditável.
Madeline: Não.
Olly: e aí?
Madeline: Não sabia se você ia ficar on-line hoje. Você está bem?
Olly: estou
Madeline: O seu p ai, Olly. Por que você está tão irritado?
Olly: você tem os seus segredos. eu tenho os meus Madeline: OK. Olly: ok
Quarta-feira, 3:31
Madeline: Não.
Olly: eu também não. cinco favoritos. ráp ido. filme comida p arte do corp
o matéria da escola Madeline: Só tem quatro. Além disso, é muito tarde p
ara que eu consiga p ensar.
Olly: meu deus do céu. será que existe alguma menina nesse p laneta que
não ama o sr. darcy ?
Olly: você está brincando? até a minha irmã ama o darcy e olha que ela não
ama ninguém.
Madeline: Ela deve amar você. Tenho certeza de que ela ama você.
Madeline: M as ele sup era isso e no fim se dá conta de que o caráter imp
orta mais que a classe social! Ele é um homem disp osto a ap render as
lições da vida! E
Olly: hã-hã
Madeline: Prossiga.
Olly: godzilla, torrada, olhos, matemática. esp era aí. a p arte p referida do
corp o é a sua ou a de outra p essoa?
ah, tudo bem, vou continuar com os meus olhos Qual é a cor dos seus
olhos?
azul
Madeline: Chocolate.
Olly: limeriques
Madeline: Você é um leigo. Vou fingir que você não falou isso.
Madeline: Haicai.
Olly: haicais são horríveis. eles são menos engraçados do que os limerique
Madeline: Você foi rebaixado de leigo p ara herege.
Olly: ok eu também
Quinta-feira, 20:00
Madeline: Não! Isso quer dizer que... Eu não sei o que isso quer dizer.
Olly: você quer dizer que eu sou muito sexy p ara ser bom em matemática.
está tudo bem. ouço isso o temp o todo Madeline: …
Olly: é p reciso ap enas p rática, como qualquer outra coisa. se você quer
saber, eu era um matematleta duas escolas atrás. tem alguma dúvida sobre p
robabilidade ou estatística? eu sou o cara ideal p ara resolver o seu p
roblema Madeline: Não!
Olly: sim!
sim!
:) Então quer dizer que você vai ser um matematleta na Escola de Ensino M
édio do Vale de São Francisco?
p rovavelmente não
Olly: meu p ai me fez sair da equip e. ele queria que eu fizesse alguma
coisa mais de macho, tip o futebol americano.
Olly: não. ele me fez sair dos matematletas, só que não conseguiu intimidar
o técnico o suficiente p ara que ele me deixasse entrar no time bem no meio
da temp orada. no fim das contas, ele acabou esquecendo essa história
Madeline: E se ele obrigar você a jogar futebol de novo?
Olly: agora sou um p ouco mais difícil de ser ameaçado do que 2 anos atrás
Olly: também me tornei mais malvado. e maior.
Madeline: Você não p arece ser mau.
Sexta-feira, 3:03
Olly: é
Madeline: Vi o que aconteceu hoje. A sua mãe está bem? Olly: ela está ok.
essa não foi a p rimeira vez. nem será a última Madeline: Oh, Olly.
Olly: p or favor, não venha com essa história de oh olly p ara cima de mim
Olly: me fala alguma coisa. qualquer coisa. me fala um negócio engraçado
Madeline: Tudo bem. O que é um p ontinho verde no canto da sala?
Olly: o que é?
Madeline: Oi?
Olly: ah, meu deus. essa não foi uma boa p iada Madeline: M esmo assim
fez você rir.
Olly: obrigado
Olly: acho que não vou conhecê-la p essoalmente até as aulas começarem
Madeline: Eu não vou à escola.
Olly: você quer dizer que não frequenta a Escola de Ensino M édio do Vale
de São Francisco? onde você estuda?
Madeline: Quero dizer que eu não frequento uma escola regular. Faço aulas
on-line.
Olly: p or quê?
Madeline: Quero que a gente seja amigo. E não que você sinta p ena de
mim.
doente quanto?
jesus
Olly: ok
Olly: ainda somos amigos. não sinto p ena de você.
Madeline: Obrigada.
Madeline: Todas as minhas aulas são via Sky p e. Tenho dever de casa, p
rovas e notas. Um monte de gente estuda em casa hoje em dia.
Olly: você já rep arou que a maioria dos finalistas do concurso nacional de
soletração estudam em casa?
Olly: é um fenômeno
Madeline: Sim.
Olly: coloque um roup ão. vá até a janela p ara eu p oder te ver Madeline:
OK. Já vou. Boa noite, Olly.
O sr. Waterman tem uma aparência alegre e peluda, como o Papai Noel na
noite de Natal antes de começar sua longa jornada. O processo de
descontaminação deixou-o com frio, de forma que ele esfrega uma mão na
outra e as sopra para aquecê-las.
— Olá, sr. Waterman. — Eu sorrio, sem jeito, pois realmente não sei como
é estar com alguém que não é a Carla ou a minha mãe.
— E então o que você tem aí? — Seus olhos cinzentos brilham. Posiciono
os dois últimos compradores minúsculos perto de uma loja de brinquedos e
dou um passo para trás.
— Lá está ele! — exclama o sr. Waterman. Ele gargalha diante da cena por
alguns momentos e então volta para mim. Seus olhos alegres estão um
pouco mais felizes que o normal. — Está simplesmente maravilhoso, minha
querida. Mas como ele vai comer toda essa comida deliciosa sem tirar o
capacete?
Olho novamente para o meu astronauta. Nunca havia me ocorrido que ele
quisesse comer aquela comida.
TUDO É UM RISCO
É 12:30 e tenho meia hora para almoçar antes do meu tutor de história ficar
on-line. Não estou com fome. Basicamente, não sinto mais fome. Ao que
parece, um corpo pode se sustentar apenas de batepapos na internet.
Carla não está olhando, por isso eu abro o meu Gmail. Treze mensagens do
Olly desde a noite passada. Todas foram enviadas às três da manhã e é claro
que ele não acrescentou o assunto. Solto uma risadinha e balanço a cabeça.
Quero lê-las, estou louca para lê-las, mas tenho de tomar cuidado quando a
Carla está no quarto. Tiro os olhos da tela e vejo que ela está parada atrás de
mim com as sobrancelhas erguidas. Será que ela sabe de alguma coisa?
— O que tem de tão interessante nesse laptop? — pergunta ela. Meu Deus,
com toda a certeza ela sabe.
— Vídeo de gato — digo com a boca cheia de peito de peru. Opa, falei a
coisa errada. A Carla é alucinada por vídeos de gato.
Ela acha que a internet só serve para isso.
Ela se aproxima ainda mais, fica parada atrás de mim e ergue os braços para
puxar o laptop.
— Você não vai querer ver esse vídeo, Carla. É ruim. O gato morre.
— Você quer dizer que a única coisa que conseguiu inventar é que o gato
estava morto? — Ela começa a gargalhar de novo.
— Bem, se eu não sabia antes, com toda a certeza eu sei agora. — Ela ri
ainda mais um pouco e dá outro tapa no joelho. —
— Você esqueceu que eu tenho uma igualzinha a você em casa. Sempre sei
quando a Rosa está aprontando. Além disso, você, Dona Coisinha, não é
nada boa em ter segredos. Vi você checando o e-mail e procurando por ele
na janela.
— Preciso me preocupar?
— Não.
— Então não estou preocupada. — Ela afasta o meu cabelo dos ombros. —
Coma — diz ela.
Fico surpresa por perguntar, mas Carla não está nem um pouco chocada.
Ela nem mesmo faz uma pausa para espanar uma poeira não existente da
prateleira.
Ela ri de mim.
EU TENTO DE NOVO.
— Só por meia hora. Ele pode ser descontaminado do mesmo jeito que o sr.
Waterman e então...
— Você ficou maluca?
— QUINZE MINUTOS?
— Não.
Ela me interrompe:
— Nem sempre podemos ter o que queremos. — Só pelo tom seco eu sei
que essa é uma frase que ela usa com a Rosa o tempo todo. E tenho certeza
de que ela se arrependeu de dizê-la para mim, mas mesmo assim a Carla
não fala mais nada.
Ela está indo para casa, já passando pela porta do meu quarto quando
resolve parar.
— Você sabe que eu não gosto de dizer não para você. Você é uma boa
menina.
Ela faz que não com a cabeça, mas não sinto nenhuma firmeza nesse gesto.
CARLA NÃO FALA NADA sobre o assunto até depois do almoço, dois
dias depois.
— Agora, você vai me escutar — ela diz. — Nada de tocar. Você vai ficar
no seu lado da sala e o garoto no dele. Já falei a mesma coisa para ele.
Entendo as palavras que saem dos lábios da Carla, mas não entendo o que
ela quer dizer.
— Como assim? Você está falando que ele está aqui? Ele já está aqui?
Não entendi, mas, de qualquer forma, faço que sim com a cabeça.
— Descontaminado?
O olhar no rosto dela quer dizer alguma coisa do tipo: por que você acha
que eu estou aqui?
Meu estômago não se revira apenas, mas faz piruetas de trapezista sem rede
de proteção.
Posso ver que ela está repassando tudo que gostaria de dizer.
É assim que a Rosa consegue tudo o que quer. Ela simplesmente pede para
a mãe, que tem um coração grande demais.
Desvio os olhos do espelho, mas logo volto a olhar para ele, tentando me
pegar de surpresa para conseguir uma imagem mais fiel, tentando ver a
mesma imagem que Olly veria. Tento dar uma gargalhada e depois sorrio,
mostrando os dentes e escondendo-os. Tento até mesmo franzir a testa,
embora espere não precisar usar essa expressão.
Eu não me viro. Em vez disso, falo com a Carla vendo seu reflexo no
espelho.
— Você tem certeza sobre isso? Você não acha mais que é arriscado?
— Você está tentando fazer com que eu desista? — Ela vai até o espelho e
coloca uma das mãos no meu ombro. — Tudo é um risco. Não fazer nada é
um risco. A decisão é sua.
Para: usuariogenerico033@gmail.com
Quando você ler esta mensagem, a gente já vai ter se conhecido. Terá sido p
erfeito.
OLLY
Na maioria dos dias eu amo esse cômodo porque posso imaginar que o
vidro desapareceu e eu estou do Lado de Fora. Em outros, eu me sinto
como um peixe em um aquário.
Quando entro no solário, vejo que Olly deu um jeito de escalar metade da
parede de pedra dos fundos, com as mãos e os pés enfiados nas frestas. Ele
está espremendo uma grande folha de bananeira entre os dedos quando
caminho para dentro.
— Não é de verdade — ele me diz.
Ele larga o galho, mas permanece pendurado na parede. Escalar para ele é
tão banal quanto andar para o restante de nós.
— Você vai ficar aí em cima? — pergunto, pois não sei o que dizer.
— Estou pensando nisso, Maddy. A Carla me falou para ficar o mais longe
possível de você e ela não parece ser o tipo de senhora que se deva
contrariar.
— Tudo bem. — Ele escorrega sem esforço para o chão, coloca as mãos
nos bolsos, cruza os tornozelos e se apoia em uma parede. Não acho que eu
já o tenha visto tão imóvel. Acho que ele tenta não me assustar.
— Talvez você deva entrar — ele sugere e só então me dou conta de que
estou parada no batente da porta, segurando a maçaneta. Fecho a porta, mas
não tiro os olhos do Olly. Os olhos dele também rastreiam todos os meus
movimentos.
Ele abre um largo sorriso e uma covinha se forma bem debaixo do olho
direito.
— Eu sei. Mais sexy, não é? Tudo bem, você pode confessar isso.
Solto uma gargalhada.
— Como você consegue carregar por aí esse ego tão grande e pesado?
Vou até o sofá e me sento. Ele apoia as costas na parede de pedra do outro
lado da sala.
Eu sorrio. Nunca pensei em mim mesma como sendo uma garota divertida,
mas estou feliz por ele achar isso.
Ficamos sem jeito por alguns momentos, sem saber o que dizer. O silêncio
seria menos perceptível pelo programa de mensagens instantâneas. A gente
poderia apelar para um sem-número de distrações.
Mas agora, na vida real, parece que nós dois temos balõezinhos vazios em
cima das nossas cabeças. Na verdade, o meu não está nada vazio, mas
realmente não posso dizer ao Olly o quanto os olhos dele são bonitos. Eles
têm a cor do Oceano Atlântico, exatamente como ele disse. É estranho
porque é claro que eu já sabia disso. Mas a diferença entre saber e ver
pessoalmente é a diferença entre sonhar que se está voando e voar de
verdade.
— E funciona?
Ele está usando um elástico preto ao redor de um dos pulsos e lhe dá alguns
puxões antes de continuar:
Dou de ombros.
— E como eu não poderia? Além disso, tento não desejar as coisas que eu
não posso ter.
— Sim, Maddy, além do espaço sideral. — Gosto do jeito com que ele fala
Maddy, como se me conhecesse a vida inteira.
— A praia. O oceano.
Faço que sim com a cabeça de um jeito mais vigoroso do que eu esperava.
Meu coração acelera como se eu estivesse fazendo algo ilícito.
— Tudo bem, tudo bem — digo, começo a rir e ergo as mãos para que ele
pare.
— Não estou brincando — ele diz com uma seriedade fingida. — O oceano
vai matar você. — Ele pisca para mim. — No fim das contas, a Mãe
Natureza é uma mãe bem má.
Estou muito ocupada rindo para falar o que quer que seja.
Ele dá um passo à frente da parede e simplesmente cai para trás até que
fique de cabeça para baixo se apoiando sobre as mãos. É um movimento tão
gracioso e fácil que por um momento me sinto tomada pela raiva. Como
deve ser ter total confiança em seu corpo, e o que seria possível fazer?
— Você não está na igreja — Olly retruca em um tom que fica no meio do
caminho entre um sussurro e um grito, levemente arfante devido ao fato de
ele estar de cabeça para baixo.
Ele não responde. Em vez disso, fecha os olhos, lentamente remove a mão
esquerda do chão e fica com ela erguida ao lado do corpo. A camiseta dele
fica pendurada e posso ver os músculos rígidos do abdômen. A pele tem a
mesma cor bronzeada.
Desvio os olhos.
Olly dá uma pirueta para trás e se senta novamente com as costas apoiadas
na parede. Ele fecha os olhos.
Dou de ombros.
— Acho que quando a maioria das pessoas fala em “ver o mundo”, não é
bem isso o que elas querem dizer — ele comenta,
sorrindo.
Faço que sim com a cabeça e também fecho os olhos.
— Vocês não se tocaram, certo? — ela pergunta com as mãos nos quadris.
— Não houve nenhum toque — Olly confirma, seus olhos ainda fixos em
meu rosto. Algo em seu tom de voz me deixa corada de vergonha e uma
onda de calor atravessa devagar a minha cara e o meu peito.
— Qual seria o sentido disso? — digo, jogando as mãos para o ar. — Uma
pessoa como eu apaixonada seria como um crítico de comida sem papilas
gustativas. Seria como um pintor que vê tudo em preto e branco. Seria
como...
— Claro que faria sentido. — Ela olha para mim, séria. — Só porque você
não pode experimentar tudo não quer dizer que você não possa
experimentar algumas coisas. Além disso, se apaixonar faz parte da vida.
— E você também não está doente — ela retruca. — Então, não há nada
com que se preocupar.
À tarde, me dou conta de que a Carla deve estar tramando alguma coisa.
Posso até não estar apaixonada, mas estou gostando de alguém. Estou
gostando seriamente de alguém. Fico vagando pela casa sem rumo, vendo
Olly em todos os lugares.
E não é só o Olly que eu vejo. Minha imagem flutuando bem no alto, sobre
a Terra, não sai da minha cabeça. Nas profundezas do espaço, posso ver
todo o mundo de uma vez só. Meus olhos não são detidos por uma parede
ou uma porta. Posso ver o início e o fim dos tempos. Dali, posso ver o
infinito.
Pela primeira vez em muito tempo, desejo mais do que aquilo que tenho.
E É ESSE DESEJO QUE me puxa de volta para a Terra com toda a força.
Esse desejo me assusta. É como uma erva daninha que se espalha devagar,
sem que você se dê conta. Antes que você perceba, ela já se infiltrou nas
suas paredes e escureceu as janelas.
Enviei um único e-mail para o Olly. Eu disse que fiquei realmente ocupada
nesse fim de semana, que eu precisava dormir. Eu disse que precisava me
concentrar. Fechei o computador, tirei da tomada e o enterrei debaixo de
uma pilha de livros. Carla ergueu uma única sobrancelha em minha direção.
Eu, por minha vez, baixei as duas sobrancelhas para ela, deixando bem
claro que não lhe daria nenhuma explicação.
Passei a maior parte do sábado sofrendo com exercícios de cálculo.
Matemática é a matéria de que eu menos gosto e aquela na qual tenho mais
dificuldade. É possível que esses dois fatos tenham alguma relação. À noite,
voltei a reler uma edição anotada e ilustrada de Alice no País das
Maravilhas. Mal percebi quando a Carla arrumou as coisas dela para ir
embora no fim do dia.
Eu balanço a cabeça indicando que não, mas não digo mais nada.
— Você está bem — Carla afirma no caminho até a porta naquela noite. Ela
beija a minha testa e sou uma garotinha novamente.
Levo Alice para o meu sofá branco e me acomodo. Carla está certa, é claro.
Eu estou bem, mas, assim como Alice, estou apenas tentando não me
perder. Continuo a pensar no verão em que completei oito anos. Passei
tantos dias com a testa contra a parede de vidro que criei um galo por causa
do meu desejo fútil. No início, eu só queria olhar para o lado de fora da
janela. Mas, então, logo em seguida, eu queria ir para o lado de fora. E
depois eu queria brincar com as crianças da vizinhança, brincar com todas
as crianças em todos os lugares, ser normal por apenas uma única tarde, um
dia, uma vida.
Por isso, eu não checo meu e-mail. De uma coisa eu tenho certeza: a
vontade só leva a mais vontades. Não há limite para o desejo.
A VIDA É CURTA®
— Bom dia para você também — digo, apertando os olhos para a tela.
Ela sorri e começa seu ritual diário de tirar coisas de sua maleta médica. Por
que ela não deixa esse equipamento logo de uma vez aqui em casa é um
mistério.
— Por que você está fazendo careta? Outro vídeo de gato morto? — Ela
sorri mostrando todos os dentes, bem no estilo do Gato de Cheshire. A
qualquer momento o corpo dela vai desaparecer, deixando apenas um
sorriso flutuando pelo quarto.
Acredito que perplexa seja a palavra que melhor resume a cara dela.
— Xim.
Carla faz um gesto para que eu me vire para que ela possa auscultar meus
pulmões, mas não responde.
Eu estava esperando que ela fosse falar doze, de forma que oito parece uma
vitória. Digo isso para Carla e ela ri de mim.
— Então você disse a ele para não escrever e então ele não escreveu. É isso
que você está me contando?
Achei que a Carla fosse rir da minha cara, mas ela não fez isso.
— Por causa do que a gente conversou. Eu gosto dele, Carla. Muito. Mais
do que deveria.
— Você realmente quer perder o melhor amigo que já teve porque está
sofrendo um pouco por amor?
Eu já li muitos, muitos livros que falavam sobre pessoas que sofriam por
amor. Nenhum deles descrevia essa dor como sendo algo que pudesse ser
sentido com pouca intensidade. Eles a citavam como sendo uma coisa que
despedaçava sua alma e destruía o seu mundo. Não como algo que podia ser
sentido de forma branda.
— Você ainda não sabe, mas isso vai passar. Isso só acontece porque esse é
um sentimento novo e você está cheia de hormônios.
Talvez Carla esteja certa. Quero que ela esteja certa, pois assim conseguirei
falar com Olly de novo.
— Querida, eu não acho que façam mais garotos como ele hoje em dia!
Também solto uma gargalhada e imagino uma fábrica com pequenos Ollys
saindo de uma linha de produção. Como será que eles conseguem fazê-lo
ficar quieto o suficiente para colocá-lo dentro de uma caixa e enviar pelo
correio?
Madeline: Oi.
Olly: e aí?
Madeline: Uau. Você não estava mesmo brincando quando disse que
gostava de matemática?
Olly: não
Madeline: Não acho que você deveria usar todas as resp ostas.
Olly: de quê?
Madeline: De você.
Madeline: …
Madeline: Os dois.
Madeline: Tudo bem, talvez não seja p ossível encontrar o sentido da vida
em um único livro, mas se a p essoa ler bastante, ela chega lá.
Madeline: …
Olly: p ensando?
Olly: na escuta
Olly: ok
Olly: mas aí você não vai mais p oder conferir os meus músculos
Madeline: Amigos, Olly !
Madeline: Amigos!
Olly: ok
TEMPO
CARLA NOS FAZ ESPERAR uma semana até que possamos nos ver de
novo. Ela quer ter certeza absoluta de que estar na mesma sala que Olly não
disparou nenhum dos meus gatilhos de doenças. Apesar de eu concordar
com ela que devemos esperar para ter certeza só por uma questão de
segurança, a semana parece interminável. Estou meio que convencida que o
tempo literalmente, e não apenas de forma metafórica, começou a passar
mais devagar, mas esse é aquele tipo de coisa que entraria para a história.
Carla me observa enquanto luto para escolher o que vestir. Eu nunca liguei
muito para essas coisas. Na verdade, jamais pensei no assunto. Meu armário
em sua totalidade consiste em camisetas brancas e calças jeans. Os jeans
são organizados por tipo —
Será que branco é a melhor cor para a minha pele acastanhada? Faço uma
anotação mental de que preciso fazer compras mais tarde. Vou comprar uma
camiseta de cada cor até encontrar alguma que caia melhor em mim.
Pela quinta vez eu pergunto à Carla se a minha mãe já saiu.
— Você conhece a sua mãe — ela diz. — Ela por acaso já se atrasou
alguma vez na vida?
Desejo mais uma vez contar tudo para a minha mãe. Quero perguntar a ela
por que fico sem ar quando penso nele. Quero compartilhar meu estado de
total idiotice. Quero contar todas as coisas engraçadas que o Olly diz.
Quero contar como não consigo parar de pensar nele por mais que eu tente
o contrário. Quero perguntar se era assim que ela se sentia em relação ao
meu pai no início.
Falo para mim mesma que está tudo bem. Não fiquei doente depois da
última vez que o vi e o Olly conhece as regras — nada de tocar, tratamento
de descontaminação completo, nada de visitas se ele suspeitar que está
ficando doente.
Falo para mim mesma que não há mal nenhum em mentir para a minha
mãe. Falo para mim mesma que não vou ficar doente.
Falo para mim mesma que não há mal nenhum em ter um amigo.
PREVISÃO
Eu estive nesta sala ontem, fazendo o meu dever de casa. Sei que ela está
exatamente do mesmo jeito que eu a deixei, só que sua aparência e a
sensação que ela causa em mim são bem diferentes. A sala está muito mais
viva com Olly dentro dela. Se todas as plantas e árvores falsas ganhassem
vida neste momento, eu não ficaria surpresa.
— Você está calçando sapatos hoje — ele nota. Olly é definitivamente uma
pessoa atenta, o tipo de garoto que saberia se você ajeitou um quadro ou
acrescentou mais um vaso à sala.
— Uau. — Ele se vira para olhar para mim e eu posso vê-lo tentando
entender quão doente eu estou.
— Sinto muito.
— É estranho, porque na verdade eu não me lembro deles. O que significa
que eu não me lembro de nada. — Tento ignorar o sentimento que surge
quando penso neles. É uma tristeza que não é exatamente tristeza e depois
vem a culpa. — É estranho perder algo que você nunca teve ou que, de
qualquer forma, não se lembra de ter tido.
— Não é assim tão estranho — ele diz. Ambos ficamos em silêncio e ele
fecha os olhos. — Você já imaginou como seria a sua vida se você pudesse
mudar pelo menos uma única coisa?
— Todo mundo acha que é especial — ele continua. — Todo mundo é tão
único quanto um floco de neve, não é? Somos todos únicos e complicados.
Talvez a gente nunca conheça o coração humano, não é o que dizem por aí?
Faço que sim com a cabeça devagar. Com toda a certeza eu concordo com o
que ele acabou de dizer, mas tenho certeza quase na mesma medida que vou
discordar do que virá em seguida.
— Acho que isso não faz o menor sentido. Nós não somos flocos de neve.
Somos apenas reações provenientes de um conjunto de ações.
— Um excêntrico — completo para ele. — Fala sério. Você não acha que
nós somos equações matemáticas.
— Mas como você sabe que uma ação pode mudar as coisas? — pergunto.
— É.
Ele solta uma gargalhada, vira-se para um dos lados e ri ainda mais. Ele é
contagiante e logo estou rindo também, todo o meu corpo responde ao do
Olly. Procuro a covinha na qual eu não deveria mais prestar atenção. Quero
colocar o meu dedo nela e fazer com que ele sorria para sempre.
Talvez não possamos prever tudo, mas podemos prever algumas coisas. Por
exemplo, com toda a certeza eu vou me apaixonar pelo Olly.
DICIONÁRIO DA MADELINE
ob.ses.são
s.f. pl. -ões 1. interesse profundo (e completamente justificável) em algo (ou
alguém) profundamente interessante. [2015, Whittier]
SEGREDOS
Eu me sinto estranha por não contar nada para a minha mãe, não contar
sobre alguém que está se tornando tão importante para mim. Minha mãe e
eu estamos nos distanciando. E não é porque o Olly está ocupando o lugar
dela. Estamos nos distanciando porque pela primeira vez na vida tenho um
segredo.
OBRIGADA POR COMPRAR CONOSCO
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NUMEROLOGIA
NÚMERO DE:
minutos que o pai do Olly levou para começar a gritar depois de chegar
em casa na noite passada:
8
reclamações sobre a porcaria do rosbife que cozinhou demais de novo:
4
vezes que a mãe do Olly pediu desculpas:
6
vezes que o pai do Olly chamou a Kara de droga de aberração por usar
esmalte preto:
2
minutos que a mãe do Olly levou para remover o esmalte da unha de
Kara:
3
vezes que o pai do Olly mencionou que ele sabia que alguém bebeu a
porcaria do uísque dele:
5
que ele é o cara mais esperto naquela casa:
2
que ninguém deve esquecer que é ele quem ganha todo o dinheiro:
2
trocadilhos engraçados que tive de fazer para que o Olly se sentisse
levemente melhor quando conversamos pela
internet às 3 da manhã:
5
vezes que ele escreveu “isso não importa” durante nossa conversa:
7
horas de sono na noite passada:
0
cigarros que a Kara enterrou no jardim essa manhã:
4
roxos visíveis na mãe do Olly:
0
roxos invisíveis:
incertos
hora até eu ver o Olly de novo:
0,5
OLLY DIZ
Quero dizer algo, não apenas isso, mas sim dizer a coisa perfeita para
confortá-lo, para fazê-lo esquecer da família por alguns minutos, mas não
consigo pensar em nada. É por isso que as pessoas tocam as outras. Em
certas ocasiões, as palavras simplesmente não são suficientes.
Os olhos do Olly se erguem até o meu rosto como se ele tentasse se lembrar
de algo.
— Por que eu sinto como se conhecesse você desde sempre?
Eu não sei, mas também sinto o mesmo. Ele para de se mover, chegando à
conclusão de que precisava.
Ele diz que ninguém é inocente, a não ser talvez você, Madeline Whittier.
Ele diz que o pai dele não foi sempre desse jeito.
TEORIA DO CAOS
Olly ergue a caneca e sopra o creme já derretido, que desliza pela superfície
como um iceberg em miniatura. Ele olha para o pai por sobre a caneca,
tentando avaliar qual seria o seu humor naquele dia.
Nos últimos tempos, o pai andava de mau humor, pior que o normal.
Olly bate com os pés no chão repetidas vezes. Ele ama quando o pai fala
com ele desse jeito, “mano a mano”, como se ele fosse um adulto, apesar de
nem sempre entender o que o pai diz. Eles passaram a ter mais esse tipo de
conversa depois que o pai foi suspenso do trabalho.
O pai sempre espera que ele pergunte antes de explicar o que quer que seja.
— Significa que uma coisa não leva sempre à outra. — Ele toma um gole
de chocolate quente. Por algum motivo, o pai nunca sopra algo quente antes
de beber. Ele simplesmente manda o líquido direto para dentro. — Significa
que você pode fazer qualquer porcaria certa e mesmo assim sua vida pode
se transformar numa merda.
quanto menos ele parece amá-los, mais eles se esforçam para serem
amados.
No início, o pai faz a mesma voz que utiliza no trabalho, que é raivosa e
relaxada ao mesmo tempo. Entretanto, por fim, a voz se torna apenas irada.
Ele para de andar e segura o telefone afastado da orelha. Não fala nada por
um longo minuto.
Olly também fica parado, torcendo para que o que quer que o Phil diga em
seguida, isso resolva tudo.
— Meu Deus do céu. Vocês não podem fazer isso comigo. Todos vão se
afastar de mim depois disso.
Olly quer ir até o pai e dizer que tudo ficará bem, mas não pode fazer isso.
Ele escapole da cozinha, levando seu chocolate.
Olly observou a cor desbotar no copo e lembrou do dia em que o pai fora
demitido e como sentiu medo de confortá-lo. Se ele tivesse agido de outra
forma, será que as coisas seriam diferentes naquele momento? E se fossem?
Ele lembrou como o pai havia dito que uma coisa nem sempre leva à outra.
Estou assistindo ao primeiro Missão Impossível com Tom Cruise. Ele faz o
papel de um superespião, Ethan Hunt, que vive uma vida dupla, às vezes
tripla e até mesmo quádrupla. Está perto do fim e o Ethan acabou de
desmascarar a si mesmo, literalmente, para pegar os caras maus.
Carla tira o controle remoto da minha mão, aperta o pause e joga o controle
no sofá.
— Como assim?
Eu sabia que não devia ter feito aquilo. Ela pareceu tão magoada e
desapontada, mas eu não queria esperar até depois das nove para bater papo
na internet com o Olly. Nossos papos nunca são suficientes. Eu sinto as
palavras transbordarem de mim. As coisas que quero dizer a ele jamais
parecem ter fim.
— E ela falou que você passa o tempo todo distraída. E que encomendou
um monte de roupas. E sapatos. E ela já quase venceu você em um jogo no
qual você sempre ganhava.
Oh.
— Isso é tudo que preocupa você? Escute o que eu estou dizendo. Sua mãe
está sentindo sua falta. Ela fica solitária sem você.
Você deveria ver a cara dela enquanto me fazia essas perguntas.
— Eu só...
— Não — diz a Carla, levantando as mãos. — Você não pode mais vê-lo.
— Ela brinca com o controle que acabou de jogar no sofá, olhando para
todos os lados, menos para mim.
— Eu sei...
— Não, você não sabe. Ele não é seu. Talvez ele tenha tempo para você
agora, mas logo as aulas vão começar. Ele vai conhecer alguma outra garota
e vai ser o Olly dela. Você está entendendo?
Tenho certeza de que ela já disse essas mesmas palavras para a Rosa.
— Tudo bem. — Ela me passa o controle. Juntas, nós olhamos a tela inerte.
— Você tem certeza do que você disse? — pergunto quando ela alcança a
metade do quarto.
— Sobre o quê?
— Tudo bem, está certo. Você pode continuar a vê-lo, mas precisa tomar
algum juízo. Entendeu?
Passo o resto do dia no solário, longe da Carla. Não estou com raiva dela,
mas também não deixo de estar. Todas as minhas dúvidas sobre se eu
deveria mesmo esconder Olly da minha mãe
Sei que ela ficou chateada por eu ter comprado roupas novas. Ela ficou
aborrecida por eu não ter pedido sua opinião e ter comprado cores pelas
quais ela não esperava. Minha mãe ficou aborrecida com uma mudança que
ela não viu chegar. Fico magoada e ao mesmo tempo também entendo. Ela
precisa controlar todas as coisas para me manter segura na minha bolha.
E ela não está errada. Eu tenho estado distraída quando estou com ela,
minha mente passa o tempo todo sintonizada na Rádio Olly. Sei que ela não
está errada. Mas mesmo assim isso me magoa. Cortar as amarras não faz
parte do processo de crescimento?
Mesmo assim, me sinto culpada. Ela devotou toda a sua vida a mim. Quem
sou eu para jogar tudo isso fora ao primeiro sinal de amor?
Carla por fim me encontra para o nosso check-up das quatro da tarde.
— Será que é possível alguém ter uma esquizofrenia repentina? —
pergunto.
— Talvez.
— Seja boa com a sua mãe. Você é tudo que ela tem.
CARTÃO DA LIBERDADE
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— Olly! É só uma parada de mãos. Vou me apoiar na parede. Vai dar tudo
certo. — Levo uma hora para convencê-lo a me mostrar como fazer aquilo.
— Você não tem força suficiente nos pulsos e na parte superior do corpo —
ele resmunga.
— Você já mandou essa. Além disso, sou forte — digo e flexiono um dos
bíceps. — Posso erguer o peso do meu corpo em livros.
Ele sorri levemente e depois, graças a Deus, para de andar de um lado para
o outro. Ele puxa o elástico ao redor do pulso e os olhos examinam meu
corpo, mentalmente analisando minha falta de força física.
— Concentre-se.
Eu me abaixo.
— Agora — ele continua —, jogue o seu peso levemente para a frente até
que os dedos dos seus pés se desprendam do chão.
— Hã. — Ele pressiona os lábios tentando conter o riso, porém sua covinha
o entrega. Volto à minha posição. — Mais movimento e menos inclinação
— ele diz.
— Não. — Mais do que ansiosa, inclino meus ombros para a frente como
ele me instruiu, mas nada acontece. Por cerca de uma hora não faço nenhum
avanço. A parte inferior do meu corpo continua firmemente ancorada ao
chão, enquanto a parte superior dos meus braços queima graças ao esforço.
Acabo dando diversas cambalhotas não intencionais. No fim, tudo o que
consigo é não gemer enquanto rolo.
Rosno para ele, abaixo a cabeça e dou um impulso que acaba em outra
cambalhota. Agora Olly está definitivamente gargalhando.
Permaneço um tempo deitada de costas, recuperando o fôlego, e então
começo a rir junto com ele. Alguns segundos depois, eu me agacho.
Eu os fecho.
Com os olhos fechados tenho a impressão de que ele está mais perto, como
se estivesse ao meu lado e não na outra extremidade da sala. A voz dele
desliza pelo meu pescoço, sussurra na minha orelha.
Olly hesita, prestes a começar uma discussão, porém seus olhos encontram
os meus. Ele faz que sim com a cabeça e se abaixa para observar.
Eu me agacho, jogo o peso para a frente e fico de cabeça para baixo. Perco
a estabilidade quase que de imediato e começo a cair para trás. Logo, Olly
está ao meu lado com as mãos na pele nua dos meus tornozelos, me
segurando até que meu corpo se estabilize. Todos os nervos do meu corpo
migram para o local onde ele toca. A pele sob as mãos dele faísca vida,
todas as células são incendiadas pelo sentimento. Sinto como se nunca
houvesse sido tocada antes.
— Preciso descer — eu peço e ele gentilmente baixa minhas pernas até que
estejam novamente no chão. Espero que ele volte para o canto, mas Olly
não faz isso. Antes que eu possa pensar melhor a respeito, eu me levanto e o
encaro. Estamos a menos de dez centímetros de distância. Posso estender
uma das mãos e tocá-lo se eu quiser. Devagar, movo os olhos até os dele.
Quero responder que sim, mas, em vez disso, faço que não com a cabeça.
Tenho de me afastar. Ele tem de se afastar. Olly tem de voltar para o lado
dele do mundo, mas não o faz, e posso ver nos seus olhos que ele não tem a
menor intenção de fazer isso. Meu coração bate tão alto que tenho certeza
de que ele pode ouvi-lo.
— Maddy? — Meu nome forma uma pergunta e meus olhos se movem para
os lábios dele.
Ele ergue a mão direita e agarra meu dedo indicador esquerdo. A mão dele
é áspera, a pele é irregular devido aos calos e é tão quente. Ele afaga a junta
do dedo e em seguida o envolve na palma da sua mão.
Eu devia dizer alguma coisa, detê-lo, mas não consigo falar nada.
Ficamos assim, deslizando entre o certo e incerto até que ouço a Carla se
aproximando e somos forçados a nos separar.
PELE
Madeline: Eu falei p ara a minha mãe que tinha um monte de dever de casa
p ara terminar Olly: você está bem?
Olly: estou
Madeline: Por favor, não sinta. Eu não me sinto nada culp ada e não
mudaria nada nessa história.
Olly: e tudo isso só p orque a gente deu as mãos, hein? imagina só o que
um beijo p oderia fazer...
Madeline: …
Madeline: Amigos não se beijam, Olly.
Carla disse que provavelmente não haveria problema se nos víssemos hoje
de novo, mas decidi esperar mais alguns dias. Ela não sabe sobre o toque no
meu tornozelo, que demos as mãos e quase compartilhamos o mesmo ar. Eu
deveria ter contado, mas não fiz isso. Fiquei com medo que ela impedisse
nossas visitas. Outra mentira para acrescentar à minha crescente contagem.
Olly agora é a única pessoa na minha vida para a qual não tenho de mentir.
VIDA E MORTE
OLLY NÃO ESTÁ na parede. Nem mesmo está no lado do oposto de onde
fica o sofá. Ele está bem no meio da sala, com os cotovelos apoiados nos
joelhos, puxando e soltando o elástico em um de seus pulsos.
Hesito na porta. Os olhos dele não abandonam o meu rosto. Será que ele
sente a mesma urgência que eu de ocupar o mesmo espaço, de respirar o
mesmo ar?
Estou usando uma das minhas camisetas novas. Esta tem gola em V e está
bem apertadinha. E, a partir deste momento, se tornou minha peça de roupa
preferida. Eu poderia comprar mais umas dez iguais.
— Você quer que eu fique em outro lugar? — Ele estica bem o elástico
entre o dedão e o indicador.
Olly deixa o elástico estalar em seu pulso. Seus ombros aliviam a tensão.
Não havia percebido o quanto ele estava travado.
Ele tira os braços de cima dos joelhos, estica uma das mãos e começa a
balançar os dedos.
Será que foi ele quem se aproximou? Será que fui eu?
Agora estamos um diante do outro, nossas coxas se tocam, os antebraços
quentes e unidos, meu ombro pressionando a parte de cima dos braços dele.
Ele passa o dedão sobre o meu, traçando um caminho da junta até o pulso.
Minha pele, cada uma de suas células se acende. Será que as pessoas
normais, saudáveis, sentem isso o tempo todo? Como elas sobrevivem a
essa sensação? Como elas se controlam para não se tocarem o tempo todo?
Ele puxa a minha mão, ainda que levemente. Isso é uma pergunta, eu sei, e
obrigo meus olhos a abandonarem o milagre de nossas mãos para
encararem o milagre do rosto do Olly, e os olhos e os lábios dele se
aproximam dos meus. Será que eu devo me afastar? Será que é ele quem
deve fazer isso?
O hálito do Olly é quente e logo seus lábios estão roçando nos meus, suaves
como asas de borboleta. Meus olhos se fecham sozinhos. As comédias
românticas estão certas nesse quesito. Você tem de fechar os olhos. Ele
recua e os meus lábios estão frios.
Ele aperta a minha mão, os meus lábios se abrem e logo estamos sentindo o
gosto um do outro. Ele tem gosto de caramelo salgado e luz do sol. Ou do
que eu acho que é o gosto de caramelo salgado e luz do sol. O gosto dele
não é parecido com nada que eu já tenha experimentado, como a esperança,
as possibilidades e o futuro.
Ele apoia a testa contra a minha. Seu hálito é quente contra o meu nariz e
bochechas. E levemente doce. O tipo de doce que faz você querer mais.
— É sempre assim? — pergunto, ofegante.
Olly: p or quê?
Madeline: Prometi a ela que ia p assar mais temp o com a minha mãe.
Madeline: …
Olly: p reciso que você esteja em segurança. não quero p erdê-la Madeline:
M as você mal me tem!
Madeline: É claro.
Olly: não
Madeline: Não.
ESTERIOR
Os olhos dela estão no meu rosto, mas continuo olhando para a folha onde
está a marcação dos pontos. Ela tem estado assim a noite inteira, me
observando como se eu fosse um quebra-cabeça a ser desvendado. Ou
talvez eu esteja paranoica. Talvez seja a culpa por estar sendo egoísta, por
querer estar com o Olly até mesmo agora. A cada momento que eu passo
com ele, aprendo algo novo. Eu me torno uma pessoa nova.
Ela pega a folha das minhas mãos e ergue meu queixo para me encarar.
Os três — Olly, sua mãe e seu pai — estão na varanda. Seus corpos formam
um triângulo de tristeza, medo e raiva. Olly está em posição de briga, com
os punhos fechados, os pés plantados no chão, firmes e afastados. Até
mesmo daqui posso ver as veias pulando na superfície dos braços, do rosto.
A mãe dá um passo na direção do Olly, mas ele diz algo que faz com que
ela recue.
Entretanto, sua resistência não dura muito. Ela dá um passo na direção dele.
O marido a agarra, repleto de raiva e ameaças.
Porém, mais que depressa, Olly se coloca entre eles. Ele golpeia o braço do
pai, afastando-o e empurra a mãe para o lado.
Ainda mais raivoso, o pai arremete contra ele de novo. Olly o empurra para
trás. Ele bate em uma parede, mas não cai.
Olly desvia para a direita e depois para a esquerda. Ele pula para trás,
descendo os degraus da escada bem quando o pai arma mais um soco. Ele
erra o alvo e o impulso faz com que tropece escada abaixo. Ele aterrissa,
esparramando-se na entrada de carros de concreto e não se move.
Olly fica imóvel. A mãe tapa a boca com ambas as mãos. Minha mãe passa
um dos braços ao redor dos meus ombros.
Olly faz um gesto para que ela se afaste, mas a mãe o ignora. Ela se inclina
para mais perto do pai do Olly bem quando ele se vira para ficar de frente.
Ele agarra o pulso dela com suas mãos grandes e cruéis. Com o triunfo
estampado no rosto, ergue a mão dela no ar como se fosse um troféu que
acabou de ganhar. Ele dá um impulso para se levantar e a arrasta também
para cima.
Mais uma vez, Olly corre para ficar entre eles, mas desta vez o pai está
pronto. Mais depressa do que eu jamais o vi se mexer, o pai do Olly solta a
esposa, agarra o colarinho da camiseta do filho e lhe dá um soco no
estômago.
Não sei o que acontece depois porque me solto da minha mãe e começo a
correr. Eu não penso, simplesmente me mexo. Voo pela sala e desço até o
hall. Atravesso o bloqueio de ar e passo pela porta em um milésimo de
segundo.
Não sei para onde estou indo, mas preciso ir até ele.
Corro pelo nosso gramado até a parte mais próxima do terreno do Olly. O
pai está indo na direção dele de novo quando eu grito:
— PARE!
Ele olha para mim. A dor, a confusão e o medo se alternam em seu rosto.
Minha mãe pega o meu braço e tenta me puxar. Tenho uma vaga
consciência de que ela está histérica. Ela é mais forte do que eu poderia
imaginar, mas a minha necessidade de ver Olly é ainda mais intensa.
Olly se estica devagar, cauteloso, como se algo estivesse doendo, mas ele
não deixa transparecer.
— Mads, estou bem. Volte. Por favor. — Todo o peso do sentimento que
temos um pelo outro paira entre nós. — Juro que estou bem — ele repete e
deixo que minha mãe me puxe.
— Eu não entendo. — A voz dela está estridente e confusa. — Por que você
faria uma coisa dessas?
Não sou uma mentirosa tão habilidosa assim para esconder meus
sentimentos dela. Olly está em minha pele.
Ela vê a verdade.
Passo as mãos pelos meus antebraços. Meu coração bate tão depressa que
dói. A grandiosidade do que acabei de fazer toma conta de mim e começo a
tremer.
— Preciso jogar suas roupas no lixo — ela diz depois que saio do banho
que ela insistiu para que eu tomasse. Ela não olha para mim. — Teremos de
tomar cuidados extras nos próximos dias para nos assegurar de que nada...
— Mãe, desculpe...
Não tenho certeza se ela está perguntando sobre minha ida até o Lado de
Fora ou sobre o fato de eu ter mentido para ela.
Assim que ela vai embora, vou para a janela em busca do Olly, mas não o
encontro. Ele provavelmente está no telhado. Vou para a cama.
Eu estive mesmo do lado de fora? Qual era o cheiro do ar? Havia vento? Os
meus pés chegaram mesmo a encostar no chão?
Durante toda a minha vida, sonhei em estar no mundo. E agora que fiz isso,
não me lembro de nada. Tudo que tenho guardado na minha mente é a cena
do corpo dobrado, morrendo de dor. A voz dele me dizendo para voltar.
A TERCEIRA MADDY
Por um longo momento, ela não se move. Finalmente, minha mãe se inclina
e tenho certeza de que ela vai beijar minha testa como costumava fazer
quando eu era pequena, porém eu me viro para desviar dela, ainda fingindo
dormir.
Não sei por que faço isso. Quem é essa nova Maddy que é cruel sem
motivo? Ela se levanta e espero a porta se fechar antes de abrir os olhos.
Ela sabe.
A VIDA É UM DOM
— Como você pôde fazer isso? Como você deixou um estranho entrar aqui?
Não posso deixar a Carla ser culpada por isso. Eu voo escada abaixo.
— Aconteceu alguma coisa? Ela está doente? — Carla pega um dos meus
braços, dá um tapinha no meu rosto enquanto seus olhos examinam meu
corpo em busca de algum sinal de problema.
— Ela foi lá fora. Por causa dele. Por sua causa. — Minha mãe se vira para
me encarar. — Madeline colocou a vida dela em risco e está mentindo para
mim há semanas. — Ela se vira novamente para Carla. — Você está
demitida.
— Não foi só culpa dela, você quer dizer. Foi culpa sua também.
— Sinto muito — digo, mas isso não surte o menor efeito sobre a minha
mãe.
— Claro que não vai — ela declara com a mais absoluta certeza.
Carla começa a subir as escadas sem dizer nem uma única palavra.
— Provavelmente.
Corro para os braços dela. Ela deixa a maleta médica e o livro caírem e me
abraça forte.
DICIONÁRIO DA MADELINE
as.simp.to.ta
s.f. pl -s. 1. Um desejo que continuamente se aproxima do objetivo, mas
nunca o atinge.
[2015, Whittier]
IMAGEM ESPELHADA
ESCANCARO AS CORTINAS assim que volto ao meu quarto. Olly está
na janela dele, com a testa pressionada contra o punho e o punho
pressionado contra o vidro. Há quanto tempo ele está esperando? Levou um
segundo para perceber que eu estava no quarto, mas foi o suficiente para
que eu percebesse o medo no rosto dele. Evidente que a minha função nesta
vida é espalhar o medo nos corações daqueles que me amam.
Os olhos dele vagam pelo meu corpo, meu rosto. Ele faz um gesto de quem
está digitando, mas faço que não com a cabeça.
Ele faz uma careta, repete o gesto, mas eu balanço a cabeça de novo. Ele
desaparece da janela e retorna com um marcador.
Faço que sim com a cabeça. Você está bem? Eu apenas movo os lábios.
Assinto.
Assinto de novo.
Dou de ombros.
Faço que não com a cabeça. Um gesto que diz: Não, não se desculpe. Não é
sua culpa. Não é você. É a minha vida.
MUDANÇA DE AGENDA
Clique aqui ou na imagem para ampliar.
— Como você conseguiu adivinhar que isto aqui era “canção de ninar”? —
Ela faz um esforço para dar uma risadinha, tentando quebrar o gelo.
Eu assinto, mas não falo nada. O sorriso no rosto dela desaparece. Agora
que Olly e eu não podemos mais nos ver nem nos falar, minha mãe e eu
passamos mais tempo juntas. Essa é a única coisa boa de toda essa
confusão.
Pego uma das mãos dela.
— Eu também.
Faço que sim com a cabeça. Ela ofereceu para que eu entrevistasse as
potenciais substitutas da Carla, mas me recusei. Não importa quem ela
contrate. Ninguém nunca será capaz de substituir a Carla.
— Eu sei.
— Ficarei bem.
No quarto dia, ela disse que os resultados de tudo o que acontecera ainda
eram incertos. Tivemos sorte, ela comentou.
— Só que ela não era apenas sua amiga. Ela era a sua enfermeira. Ela
deveria mantê-la segura. E não arriscar sua vida ou apresentá-la a garotos
adolescentes que vão partir o seu coração. Amigos não lhe dão falsas
esperanças.
Devo ter feito uma cara tão chocada quanto eu de fato me sinto porque, de
repente, minha mãe para de falar e seca as palmas das mãos nas coxas.
E então é quando a ficha cai de uma vez por todas. Carla se foi de verdade.
Ela não vai estar aqui amanhã quando a minha mãe sair para trabalhar. Em
vez dela, haverá alguém novo. A Carla foi embora e é culpa minha. E o
Olly também se foi. Nem mesmo terei a chance de dar o beijo número dois.
Fico sem ar diante da dor que essa ideia me causa, do fim de algo que mal
começou.
Tenho certeza de que no fim minha mãe vai me deixar entrar na internet e
vamos poder conversar novamente, mas isso não será suficiente. Para ser
honesta comigo mesma, admito que isso jamais será suficiente.
Ela coloca uma das mãos no meu coração. Sei que estamos sentindo a
mesma dor.
Eu queria há tanto tempo falar sobre Olly, mas agora não tenho certeza de
por onde começar. Meu coração está tão repleto dele. Então, começo pelo
início. Conto sobre como foi vê-lo pela primeira vez, sobre a maneira como
ele se movia — com leveza, fluidez e certeza. Conto a ela sobre seus olhos
cor de oceano e os dedos cheios de calos. Conto sobre como Olly é bem
menos cínico do que ele pensa que é. Sobre o pai terrível que ele tem, sobre
suas duvidosas escolhas de roupas.
Conto a ela como Olly acha que sou divertida, esperta e bonita, nessa
ordem, e de como a ordem importa. Todas as coisas
que eu queria dizer há semanas. Ela escuta, segura a minha mão e chora
junto comigo.
— Ele parece ser maravilhoso. Entendo por que você acha isso.
— Ele é.
— Isso não é verdade — ela discorda. — Quem falou isso para você?
ENFERMEIRA DO INFERNO
MINHA NOVA ENFERMEIRA é uma déspota que jamais sorri, dotada de
um diploma em enfermagem. O nome dela é Janet Pritchert.
Tudo que vejo quando olho para a nova enfermeira é o quanto ela não é a
Carla. Ela é magra enquanto a Carla é corpulenta.
O discurso dela não é apimentado por palavras em espanhol. Ela não tem
nenhum sotaque. Comparada à Carla, ela é menos em todos os quesitos.
Imploro para que a minha mãe mude as regras, mas ela se recusa a
barganhar. Ela diz que é para a minha própria proteção.
VIGÍLIA DA VIZINHANÇA #2
ROTINA DO OLLY
6:55 — Está na janela. Escreve
no vidro.
7:20 — Espera que a Kara termine o cigarro.
e escreve
no vidro.
21:05 — Volta para a janela. Escreve algumas perguntas.
22:00 — Escreve
no vidro.
ROTINA DA MADDY
6:50 — Espera que o Olly apareça na janela.
7:25 — Se desespera.
EDUCAÇÃO SUPERIOR
por aí afora.
Ele me conta que o ensino médio não é nenhuma utopia, mas não estou
convencida. Do que mais se pode chamar um lugar que existe apenas com a
única intenção de ensinar sobre o mundo? Como se pode chamar um lugar
com amigos, professores, bibliotecas, clubes do livro, de matemática, de
debate ou de qualquer outra coisa, atividades extraclasse e possibilidades
infinitas?
Agora tudo que podemos fazer é um monte de mímica. Sinto falta de estar
na mesma sala que ele, de sua presença física. Sinto falta da maneira como
o meu corpo já tinha consciência do dele. Sinto falta de conhecer coisas
novas sobre ele. Sinto falta de conhecer a Maddy que sou quando estou com
ele.
Fico olhando pela janela enquanto ele estaciona o carro. Espero que ele
saia, para trocarmos nosso aceno de sempre, mas não é Olly quem sai
primeiro.
Quem sai do carro é uma garota que não é a Kara.
Mas então a Kara bate a porta do carro deixando Olly e a Garota Misteriosa
sozinhos. A Garota Misteriosa ri de alguma coisa que Olly diz. Ela se vira,
põe uma das mãos no ombro dele e sorri para ele do mesmo jeito que eu já
tinha sorrido.
Fico chocada no início, quase sem conseguir acreditar no que meus olhos
veem. Ela está tocando o meu Olly? Sinto um aperto no estômago. Estou
sendo torcida bem no meio de uma mão gigante. Meus órgãos são
deslocados até que eu me sinta desconfortável dentro da minha própria pele.
As palavras da minha mãe voltam à minha mente. Não quero ver você de
coração partido. Ela sabia o que aconteceria.
Sempre vai haver outra pessoa. Alguém que não está doente. Alguém que
pode sair da própria casa. Alguém que pode falar, tocar, beijar e fazer todas
as outras coisas.
O que importa é que ela pode sentir o sol sobre a pele. Ela respira um ar que
não precisa ser filtrado. O que importa é que ela vive no mesmo mundo que
Olly e eu não. Jamais viverei.
Dou outra espiada. A mão da garota ainda está no ombro do Olly e ela
continua a rir. Ele franze a testa na direção da minha janela, mas não tenho
certeza se pode me ver. Ele acena de qualquer forma, mas eu entro de novo,
fingindo para nós dois que eu não estava ali.
Ela assente, mas não tira a mão até se convencer de que eu não estou febril.
É por isso que ela está aqui? Por que ela acha que estou solitária? Por que
ela acha que estou sofrendo de algum tipo de angústia adolescente?
Ela recua, mas não tira o time de campo. Em vez disso, larga o que quer que
estivesse segurando até aquele momento e começa a acariciar a minha
bochecha até que meus olhos encontram os dela.
— Não, está tudo bem. Desculpe. Pode ficar. — Afasto as pernas para o
lado, abrindo espaço para ela. — O que você está segurando?
— Trouxe um presente. Achei que faria com que você se sentisse menos
sozinha, mas agora eu não tenho muita certeza.
Ela tira uma fotografia emoldurada de detrás das costas. Meu coração se
aperta dentro do peito. É uma velha foto de nós quatro — eu, minha mãe,
meu pai e meu irmão — de pé, em uma praia, em algum lugar tropical. O
sol está atrás da gente e quem quer que tenha tirado a foto fez uso do flash,
pois nossos rostos estão brilhantes, quase fluorescentes contra o céu escuro.
Meu irmão está de mãos dadas com o meu pai e segurando um pequeno
coelho de pelúcia com o outro braço. Ele é praticamente uma versão em
miniatura da minha mãe, com o mesmo cabelo preto e liso e os olhos
escuros. Meu pai está usando um short e uma camisa com a mesma estampa
havaiana.
Minha mãe está usando um vestido de verão florido, tomara que caia. As
mechas de cabelo úmido caem ao redor de seu rosto. Ela não está usando
maquiagem nem bijuterias. Na verdade, ela parece uma versão do universo
alternativo da mãe que está ao meu lado neste exato momento. Ela parece
pertencer mais à praia com aquelas pessoas do que a este quarto, onde fica
trancafiada junto comigo. Ela está me segurando em seus braços e é a única
que não olha para a câmera. Em vez disso, ela sorri para mim. Eu sorrio de
volta, um sorriso idiota, desdentado, que só os bebês têm.
Eu nunca tinha visto uma foto minha do Lado de Fora antes. Nem sabia que
existia algo do tipo.
— Onde é isso? — pergunto.
— Havaí. Maui era o lugar preferido do seu pai. — A voz dela se torna
quase um sussurro. — Você tinha só quatro meses, foi antes de
descobrirmos sua doença. Um mês antes do acidente.
Mas eu sei. Sempre senti o coração dela acelerando para proteger o meu.
Ouço canções de ninar na voz dela. Posso sentir seus braços me balançando
para que eu pegue no sono e seus beijos nas minhas bochechas pela manhã.
E eu a amo também. Não sou capaz de imaginar o mundo do qual ela
desistiu por mim.
Não sei o que falar, de maneira que digo que eu também a amo. Não é o
suficiente, mas vai ter de servir.
Depois que ela vai embora, fico parada na frente do espelho segurando a
fotografia junto ao meu rosto. Olho para mim na foto e para mim no
espelho várias e várias vezes.
OLLY JÁ ESTÁ ESPERANDO por mim quando vou até a janela. Em letras
garrafais ele escreve: Faço uma mímica para demonstrar a minha total e
completa ausência de ciúme.
O GALO AMA O LAGO
Antes dele, minha vida era um palíndromo — a mesma coisa se lida de trás
para a frente como “socorram-me, subi no ônibus em Marrocos” ou “o galo
ama o lago”. Só que Olly é como uma letra aleatória, um grande X
maiúsculo no meio de uma palavra ou frase que acaba com a sequência.
E agora a vida não faz mais sentido. Quase desejo não ter conhecido Olly.
Como posso voltar para a minha antiga vida, os dias se estendendo diante
de mim infinita e brutalmente iguais? Como eu posso voltar a ser A Garota
Que Lê? Não que eu me ressinta da minha vida com os livros. Tudo que sei
do mundo aprendi com eles. Entretanto, uma descrição de uma árvore não é
uma árvore e uma centena de beijos de papel nunca será capaz de gerar a
mesma sensação que os lábios do Olly nos meus me proporcionou.
A PAREDE DE VIDRO
UMA SEMANA DEPOIS, algo me faz pular da cama. Minha cabeça está
enevoada de sono, mas meu coração está desperto e bate acelerado. Ele
sabe de alguma coisa da qual a cabeça ainda não faz a menor ideia.
Olho para o relógio. 3:01 da manhã. Minhas cortinas estão fechadas, mas
posso ver uma luz no quarto do Olly. Eu me arrasto até a janela e afasto o
tecido. Até as luzes da varanda estão acesas. Meu coração acelera ainda
mais.
O desejo de ir até ele toma conta de mim como da última vez. Quero ajudá-
lo. Preciso ajudá-lo, confortá-lo, protegê-lo.
Outro minuto se passa e então a mãe dele também vai para a varanda. Ela
tenta tocar o braço do Olly, mas ele a afasta e nem mesmo olha para ela. Por
fim, ela desiste. Assim que ela desaparece, toda a tensão deixa o corpo dele.
Ele aperta os olhos com as palmas das mãos e os ombros começam a
tremer. Ele olha para a minha janela. Eu aceno, mas ele não responde.
Percebo que Olly não consegue me ver porque as luzes estão apagadas.
Corro até o interruptor, mas, quando volto para a janela, ele já foi embora.
O MUNDO ESCONDIDO
MEIA-VIDA
Desde que Olly entrou na minha vida há duas Maddys: aquela que vive
através dos livros e não quer morrer e a que vive e suspeita que a morte é
um pequeno preço a ser pago por isso. A primeira Maddy está surpresa com
o caminho que seus pensamentos estão tomando. A segunda Maddy, aquela
da foto no Havaí? Ela é como um deus — imune ao frio, à fome, à doença,
aos desastres naturais e àqueles criados pelo homem. Ela é imune ao
coração partido.
A segunda Maddy sabe que essa meia-vida pálida não significa viver de
fato.
ADEUS
Querida mãe,
A primeira coisa é que eu amo você. Você já sabe disso, mas posso não ter
a chance de dizer isso de novo.
Então, eu amo você eu amo você eu amo você.
Você não vai entender o que vou dizer. Não sei nem se eu mesma entendo.
Por sua causa eu estou viva, mãe, e sou tão, mas tão grata por isso. Por
sua causa eu sobrevivi até agora e tive a
de mim mesma quando o conheci e essa nova parte não sabe como ficar
parada apenas observando.
final. Eu não conseguia entender como ele pôde escolher a morte só para
voltar para a sua rosa.
Acho que agora eu entendo. Ele não escolheu morrer. A rosa era a vida
dele. Sem ela, ele não poderia estar
realmente vivo.
Eu não sei, mãe. Não sei o que estou fazendo, só sei que preciso fazer
isso. Às vezes eu queria que as coisas
AUDIÇÃO
TATO
VISÃO
São quatro da manhã e está muito escuro para ver os detalhes. Meus olhos
percebem apenas a forma geral das coisas, silhuetas confusas contra o céu
noturno. Árvores grandes, árvores menores, degraus, jardim, o caminho de
pedra que leva ao portão com uma cerca de madeira de cada um dos lados.
Portão, portão, portão.
OLFATO
PALADAR
Olly está diante de mim, atordoado. Não digo nada. Pressiono meus lábios
contra os dele. E pela primeira vez ele congela, indeciso e obstinado, mas
então logo muda de atitude. Pegando-me de surpresa, ele puxa meu corpo
com toda a força contra o dele. Uma de suas mãos está no meu cabelo e a
outra envolve a minha cintura.
OUTROS MUNDOS
— O que você está fazendo aqui? Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
A sua mãe está legal?
— Tente não respirar — diz ele, enquanto começa a me guiar de volta para
a minha casa.
Deixo que ele me puxe por um segundo, talvez dois, mas então paro.
Faço que não com a cabeça e afasto as minhas mãos das dele.
— Com o quê?
— Não tenho carro. Não sei dirigir. Não conheço nada do mundo.
Ele faz outro som que fica no meio do caminho entre um rosnado e uma
gargalhada. Queria poder ver os olhos dele no escuro.
Alguma coisa bate. Uma porta? Pego a mão dele e nos esgueiramos junto à
parede da casa.
Fecho os olhos.
— Maddy...
— Vou explicar tudo.
Olly pega uma das minhas mãos e me guia ao redor da casa dele até o lado
mais afastado da minha. Há uma escada alta que leva até o telhado.
— A maioria das pessoas, de qualquer forma, nem olha aqui para cima —
ele explica.
Olly se dobra para entrar com sua graça tão incomum de sempre. Estou
feliz por vê-lo em ação.
Olho ao redor. Sempre quis saber o que ele fazia aqui em cima. O telhado é
triangular, separado em diferentes partes, mas estamos sentados na parte
reta nos fundos. Distingo algumas formas: uma pequena mesa de madeira
com uma caneca em cima dela, uma luminária e alguns papéis amassados.
Talvez ele escreva aqui, componha poesia ruim. Quintilha humorística.
Ele a liga sem falar nada e a lâmpada espalha um círculo difuso de luz ao
nosso redor. Já estou quase com medo de olhar para ele.
Os papéis amassados sobre a mesa são guardanapos de fast-food. Então
quer dizer que não há nenhuma poesia secreta. Ao lado da mesa, uma
grande lona cinzenta e empoeirada cobre alguma coisa, ou algumas coisas.
O chão está tomado por ferramentas espalhadas — chaves inglesas, alicates
de vários tamanhos, martelos e algumas outras que não reconheço. Tem até
mesmo um maçarico.
Seus cotovelos estão apoiados nos joelhos e ele contempla o céu que
começa a clarear.
Às vezes você faz as coisas pelos motivos certos e outras pelos errados. Há
ainda aquelas vezes em que é impossível saber a diferença.
Ele mal está se movendo, mas quando digo isso Olly fica completamente
parado.
— Que comprimidos?
— Não sou imprudente. — Olho bem nos olhos dele. Essas mentiras são
para a própria proteção de Olly. Ele já parece aliviado. Eu sigo em frente.
— Eles devem me dar alguns dias aqui fora. Não contei para a minha mãe
porque ela não ia querer correr o risco, mas eu...
— Eles são seguros o suficiente por alguns dias. — Meu tom não apresenta
a menor dúvida. Eu espero, torço para que ele engula a minha mentira.
— Jesus. — Ele esconde o rosto com as mãos. Quando olho para cima, um
Olly menos obstinado me encara de volta. Sua voz se torna mais suave. —
Você deveria ter me dito isso cinco minutos atrás.
Ele é esperto demais para cair nessa, mas quer que as minhas palavras
sejam verdade. Ele quer que isso seja verdade, mais até do que seu próprio
desejo de saber a verdade. O sorriso que se abre no rosto dele é cauteloso,
mas tão bonito que não consigo desviar o olhar. Eu mentiria para ele
novamente só para ver esse sorriso.
No início, não tenho certeza do que estou olhando. É como ler uma coleção
aparentemente aleatória de palavras antes da frase se tornar clara.
— É bonito — elogio.
Ele dá de ombros.
Uma leve brisa sopra pela janela e os planetas começam a rodar devagar.
Nós dois contemplamos seu movimento sem falar nada.
— Por favor, me ajude, Olly. Por favor. — Aponto para o sistema solar
mecânico. Também preciso de uma fuga, só por um
tempinho.
Ele assente.
JÁ FELIZ
— Mais uma pergunta e vamos ter uma sessão de cinco perguntas. Como a
que fazemos das nossas coisas preferidas.
— Fiz um cartão algumas semanas atrás. Andar com uma mulher mais
velha tem as suas vantagens.
Ele afasta a testa do volante, mas ainda olha fixo para a frente, sem olhar
para mim.
— Mas e se acontecer?
Ele fecha os olhos bem apertados e coloca uma das mãos sobre a chave.
— Você sabe que já tem muito mundo para conhecer por aqui mesmo, no
sul da Califórnia.
Um pequeno sorriso se forma nos cantos dos lábios dele. Preciso fazer com
que se espalhe por todo o rosto do Olly.
— O que é um humu-sei-lá-o-quê?
O sorriso cresce.
— É claro que é. — Ele vira a chave na ignição. Seus olhos vagam pela
fachada da casa e o sorriso desaparece, ainda que apenas por um momento.
— Duas noites.
— Tudo bem. — Ele pega uma das minhas mãos e dá nela um beijo rápido.
— Vamos ver esse peixe.
Estar no carro dele é como estar dentro de uma bolha muito barulhenta e
veloz. Ele se recusa a abrir as janelas. Em vez disso, aperta um botão no
painel para prevenir a circulação de ar. O som dos pneus no asfalto é como
um assovio baixo e constante nos meus ouvidos. Luto contra o desejo de
tapá-los.
Olly fala que não está indo muito depressa, mas para mim estamos
colidindo com o espaço. Já li que passageiros em trens de alta velocidade
dizem que o mundo do lado de fora parece estar borrado. Sei que não
estamos nem perto disso, mas, ainda assim, a paisagem se move muito
depressa para que os meus olhos lentos consigam captá-la. Mal consigo ter
um relance das casas nos morros marrons a distância. Placas no alto com
símbolos e caracteres crípticos passam por mim antes que eu possa decifrá-
los.
Uma vez ou outra vamos devagar o suficiente para que eu veja as pessoas
nos outros carros.
Eu me sinto tonta por tentar olhar para tudo ao mesmo tempo. Há placas
extremamente iluminadas e letreiros luminosos escritos apenas em coreano.
Já que não entendo a língua, as placas parecem obras de arte com formas
belas e misteriosas. É claro que elas querem dizer coisas tão mundanas
quanto Restaurante, Farmácia ou Aberto 24 Horas.
É cedo, mas ainda assim há muita gente na rua fazendo várias coisas:
andando, conversando, sentadas ou de pé, correndo ou andando de bicicleta.
Quase não acredito que elas são de fato reais. Elas são simplesmente como
as minifiguras que eu coloco nas minhas maquetes de arquitetura, que aqui
dão a Koreatown um vigor de vida.
Ou talvez seja eu que, no fim das contas, não seja nem um pouco real.
Ele desata o cinto de segurança, mas não faz nenhum movimento no intuito
de sair do carro.
— Obrigada. — Isso é tudo que consigo pensar em falar. Quero lhe contar
que é por causa dele que estou aqui fora. Que o amor faz com que o mundo
se abra.
Eu era feliz antes de conhecê-lo. Mas agora estou viva e isso não é a mesma
coisa.
INFECTADA
— O que você está fazendo aqui? Você não pode estar aqui — ela diz, ainda
me apertando.
Ela dá de ombros.
Não quero falar sobre a minha mãe, por isso olho ao redor em busca do
Olly, que está de pé, afastado de nós.
Olly as esfrega.
— Estou fazendo o meu melhor. Não sei se você sabe, mas ela pode ser um
pouco teimosa.
Carla olha para mim e para Olly alternadamente por um longo segundo,
percebendo a tensão entre nós.
— Não esperávamos que você fosse estar acordada assim tão cedo — digo
enquanto entramos.
Eu queria retrucar que nunca vou ficar velha! Mas, em vez disso, pergunto:
Ela pega o meu rosto nas mãos novamente e me examina, desta vez com
olhos de enfermeira.
— Devo ter perdido um monte de coisas. O que você está fazendo aqui?
Como você está se sentindo?
— Eu sei que a sua mãe não deixa você tomar nada experimental.
— Onde?
Digo a mesma coisa que contei para Olly, mas ela não acredita em mim.
Nem por um segundo. Ela cobre a boca com uma das mãos e seus olhos se
arregalam como os de um personagem de desenho animado.
Coloco tudo o que sinto nos meus olhos e imploro para que ela não diga
nada. Por favor, Carla. Por favor, entenda. Por favor, não me exponha.
Você disse que a vida é um dom.
Ela nos encaminha até um sofá amarelo que parece ser excessivamente
macio antes de desaparecer na cozinha.
— Não era bem assim que eu imaginava a casa dela — comento com Olly
assim que Carla sai da sala. Não quero que ele faça perguntas sobre os
comprimidos.
— Ela pareceu ok com essa história das pílulas — Olly finalmente declara.
Ele se aproxima, mas eu fico tensa. Tenho medo de que ele sinta a mentira
ao tocar a minha pele.
Vago pela sala olhando para as fotos de gerações de mulheres. Todas elas se
parecem com a Carla. Há um retrato enorme dela segurando a Rosa quando
era bebê pendurada sobre o sofá. Algo nessa foto me faz lembrar minha
mãe. É a forma com que ela olha para Rosa não apenas com amor, mas
também com uma espécie de ferocidade, como se fosse capaz de fazer
qualquer coisa para protegêla. Jamais serei capaz de retribuir tudo o que ela
fez por mim.
Para o café, Carla faz chilaquiles — tortilhas de milho com molho e queijo,
e crema mexicana, que é um negócio parecido com crème fraîche. É novo e
delicioso, mas eu só como um pedacinho porque estou muito nervosa para
comer.
— Então, Carla, na sua opinião profissional, você realmente acha que esses
comprimidos estão funcionando? — Olly pergunta. A voz dele é tomada
pelo otimismo.
— Talvez — ela diz, mas logo balança a cabeça e completa: — Não quero
dar nenhuma falsa esperança.
— Diga-me — peço. Preciso perguntar a ela por que ainda não passei mal,
mas não consigo. Sou prisioneira de minhas próprias mentiras.
— Podem ser os comprimidos que estão atrasando sua doença. Mesmo sem
eles, pode ser que você ainda não tenha entrado em contato com nenhum
dos seus gatilhos.
Ela evita olhar para mim, recolhe nossos pratos vazios e volta para a
cozinha.
— Obrigada.
— E você se arrepende?
Carla toca um dos meus braços e faço um esforço para que todas essas
imagens sumam mais do que depressa da minha cabeça. Não aguento
pensar nessas coisas. Se eu pensar nelas, não conseguirei viver.
— É, pode ser que isso não aconteça — ela diz e a esperança se espalha
pelo meu corpo como um vírus.
FALO C/ VC + TARDE
R: Janela, com toda a certeza. É uma bela visão do mundo a que se tem a 32
mil p és de altura. Tenha consciência de que p egar o lugar na janela
significa que o seu comp anheiro de viagem p ode acabar tagarelando em
níveis esp etacularmente entediantes.
R: Vinte.
P: Como é p ossível que os seres humanos tenham inventado algo tão imp
ressionante como o avião e algo tão horrível como a bomba nuclear?
P: Teremos turbulências?
A ESTEIRA
Pequeno Príncipe. É claro que eu tinha de ter levado esse livro comigo. Vou
lê-lo mais uma vez para ver como o sentido da história mudou para mim.
— Quando você chegou a essa conclusão? — pergunto.
Ele faz que não com a cabeça e pula bem na minha frente.
— Sim.
— Prossiga.
Abro a boca algumas vezes, sem ter certeza de por onde começar.
— Na sua teoria da bagagem, a sua mãe é uma das malas que foram
danificadas?
— E a sua irmã? Ela é uma das que se perderam e ficam rodando e rodando
para sempre?
— E você?
— E o seu pai?
— Ele é a esteira.
Balanço a cabeça.
— Não. — Eu pego a mão dele. — Ele não tem nada, Olly.
— Ah, mas você precisa sim — ele insiste. — Espere aqui. — Olly vai até a
garota. No início, ela faz que não com a cabeça, mas Olly persiste, como se
não fosse desistir. Alguns segundos depois, os dois estão olhando para mim.
Aceno para provar que sou legal e amigável, o tipo de pessoa para quem ela
gostaria de dar um colar de flores.
Ela cede. Olly retorna triunfante. Ergo uma das mãos para pegar o colar,
mas em vez disso ele o coloca no meu pescoço.
— Você sabe que originalmente os colares de flores são dados apenas para a
nobreza — digo, repetindo o que li no meu guia.
Ele ergue o meu cabelo e acaricia a parte de trás do meu pescoço antes de
soltar o colar.
Ele olha para mim, um ateu confrontando-se não com a evidência, mas pelo
menos com a possibilidade da existência de Deus.
DICIONÁRIO DA MADELINE
pro.mes.sa
s.f. pl. -s 1. A mentira que você deseja manter. [2015, Whittier]
AQUI AGORA
— Não acredito que eu perdi isso tudo — digo. — Perdi todo esse mundo
imenso.
Ele pergunta ao motorista se estaria tudo bem se déssemos uma parada e ele
responde que não há o menor problema. Ele conhece um bom lugar para
isso, uma praia com uma área para piqueniques.
Saio do carro antes que o motorista desligue o motor. A água está a apenas
uma caminhada curta ladeira abaixo e então é só cruzar a areia.
O oceano.
À medida que me aproximo da água, a areia muda. Agora ela gruda nos
meus dedos, cobrindo-os como uma segunda pele.
Na beira da água, ela muda mais uma vez e me causa a sensação de veludo
líquido. Meus pés deixam marcas nessa mistura macia.
Por fim, meus pés estão na água, em suas ondas, e depois meus tornozelos,
minhas panturrilhas. Não paro de me mover até que a água esteja nos meus
joelhos e encharque meu jeans.
Não tenho certeza do que isso significa neste contexto. Devo ser cuidadosa
porque posso me afogar? Devo ser cuidadosa porque posso ficar doente?
Devo ser cuidadosa porque, se eu me tornar parte deste mundo, ele também
fará parte de mim?
DICIONÁRIO DA MADELINE
o.ce.a.no
s.m. pl. -s 1. A parte infinita de si mesmo que nunca conheceu, mas sempre
suspeitou de que estava ali. [2015, Whittier]
RECOMPENSA SE ENCONTRADO
Olly olha para mim em busca de confirmação e eu faço que sim com a
cabeça.
Ela digita algumas coisas e nos diz que, apesar de ainda ser cedo, nosso
quarto já está pronto. Ela me dá a chave e o mapa do lugar e nos informa
sobre o bufê de café da manhã que está incluído na diária.
— Aproveitem sua lua de mel! — Ela nos dá uma piscadinha e nos libera.
Do centro do quarto, giro 360 graus para ver o que é considerado necessário
em uma moradia temporária — televisão, uma pequena geladeira, um
armário enorme, uma escrivaninha e uma cadeira. Viro mais 360 graus para
descobrir o que falta.
— Ah, você está se referindo a isso? — Ele entra no que parecia ser um
imenso armário, pega os dois puxadores mais altos e os puxa para revelar
uma cama. — Voilà — ele diz. — O modelo ideal para os dias modernos, a
eficiência da economia de espaço. O ápice do estilo e do conforto, da
conveniência e da praticidade. Eu lhe apresento a cama Murphy.
Com a cama aberta, o quarto parece ainda menor. Nós dois a observamos
por mais tempo que o necessário. Olly volta a olhar para mim. Já estou
vermelha antes de ele começar a falar.
— Você devia tentar de novo. O significado muda cada vez que você o lê.
— Algumas.
Eu me viro e sento, evitando olhar para ele. Meu coração se aperta tão
dolorosamente no peito que fico sem ar.
Olly logo de imediato está ao meu lado. — Mad, o que foi? O que há de
errado?
— Precisamos ir ao hospital?
Fome.
É isso o que estou sentindo. Não estou passando mal, estou apenas com
fome.
— Estou faminta — digo. Nas últimas 24 horas dei apenas uma mordida no
chilaquiles e comi um punhado de fatias de maçã da Enfermeira do Inferno.
Olly começa a rir tanto que acaba indo parar na ponta da cama.
— Fiquei preocupado com que alguma coisa no ar fosse matar você. — Ele
pressiona as costas das mãos sobre os olhos. —
Na verdade, jamais senti fome antes. Na maior parte dos dias, eu sempre
fazia três refeições e dois lanches exatamente nos mesmos horários. Carla
acreditava muito na comida. Barriga vazia, cabeça vazia, ela costumava
dizer.
Olly aparece atrás de mim e envolve minha cintura com um dos braços.
Estou diante de uma parede repleta de calendários com fotos de surfistas
sem camisa. Eles até que são bem atraentes.
— Claro, claro.
— Não tem muito mistério. Essas coisas só querem dizer que nos
lembramos de lembrar das pessoas.
Eu me viro nos braços dele, lembrando do quão depressa este se tornou meu
lugar preferido no mundo. Familiar e estranho, confortável e arrepiante,
tudo isso ao mesmo tempo.
Que tipo de lembrança se deve levar para a mãe que a amou durante toda a
vida, que desistiu do mundo por você? A quem você nunca mais verá de
novo? Nada vai servir, não de verdade.
Penso na velha fotografia que ela me mostrou, aquela em que todos nós
estávamos no Havaí. Não tenho nenhuma memória daquele momento,
nenhuma memória de estar naquela praia com ela, meu pai e meu irmão,
mas ela se lembra. Ela tem memórias de mim, da vida que eu jamais tive.
O que ela vai fazer se eu não voltar para casa? Ela reunirá todas as
lembranças de mim? Ela as tirará do fundo do armário, olhará para elas e as
reviverá repetidas vezes?
Quero lhe dar algo que resuma essa época, o tempo que passei sem ela.
Algo que a faça lembrar de mim. Encontro um mostruário com cartões
postais vintage e conto a verdade para ela.
Clique aqui ou na imagem para ampliar.
O MAIÔ
Algum dia terei de sair deste banheiro, mas estou muito nervosa. Será que
Olly vai achar que estou com tudo no lugar?
Abro a porta depressa, como quem arranca um Band-Aid de uma vez só.
Olly simplesmente para de falar. Seus olhos vão lentamente do meu rosto
até os dedinhos dos meus pés e voltam ainda mais devagar até o meu rosto
novamente.
— Você está de maiô — ele diz. Seus olhos estão cravados no intervalo de
pele entre o meu pescoço e o meu peito.
— Estou. — Olho bem nos olhos dele e o que eu vejo me faz sentir como se
eu estivesse pelada. Meu coração acelera e respiro fundo para tentar
acalmá-lo, mas não funciona.
— É pequeno — concluo.
GUIA PARA OS PEIXES DE RECIFE HAVAIANOS
PULO
Estamos em Black Rock, que tem esse nome por causa de um penhasco
formado por pedras vulcânicas que corre até a praia e sobe até o céu.
Debaixo d’água, as pedras formam um crescente que acalma as ondas e
forma arrecifes perfeitos para mergulhos com snorkel. Nosso guia da
empresa Diversão ao Sol nos diz que esta praia também é popular entre
mergulhadores de penhasco.
A água é fria, salgada e deliciosa. Chego até a achar que posso ter sido uma
sereia na minha vida anterior. Uma sereia astronauta arquiteta. Os pés de
pato e o colete salva-vidas me mantêm na superfície e levo apenas um
minuto para me acostumar a respirar com a máscara. Ouvir o magnífico
som da minha própria respiração é algo pacífico e que me causa uma
estranha euforia.
De mãos dadas, nadamos para mais longe e vemos arraias que mais
parecem pássaros gigantes de barriga branca deslizando pela água. Vemos
duas enormes tartarugas marinhas que parecem estar voando em vez de
nadando. Racionalmente, sei que elas não podem nos fazer mal. Mas esses
animais são tão grandes e pertencem tão obviamente a este mundo aquático
— do qual não faço parte — que paro de me mover para evitar atrair sua
atenção.
Eu podia ficar ali o dia todo, mas Olly por fim me puxa de volta para a
praia. Ele não quer que nós — ou seja, eu — nos queimemos no sol do
meio-dia.
Ele olha para o topo do penhasco de onde algumas pessoas, a maioria delas
adolescentes, estão pulando no mar.
Ele pega a minha mão e corremos juntos até o penhasco. De perto, a pedra
parece uma esponja negra e dura. A rocha é afiada contra os meus pés e
levo um tempo para encontrar fendas onde apoiálos, mas finalmente
chegamos ao topo.
Olly está ávido para pular. Nem mesmo se detém para admirar a vista.
ZACH
Zach tem uma pele escura, ocre, dreadlocks imensos e um sorriso muito
maior que seu próprio rosto. Ele imediatamente começa a tocar numa
guitarra imaginária uma música que eu não conheço. Olly sorri de orelha a
orelha. Zach balança a cabeça de forma dramática enquanto “toca” e seu
cabelo acompanha o ritmo da “música”.
— Zach! — Olly o puxa para um abraço. Eles dão tapinhas sonoros nas
costas um do outro.
— Agora é Zacharias.
Fico vermelha e olho para o lado para ver Olly corar também.
— Bem, isso foi fofo. — Zach solta uma gargalhada e dedilha as cordas da
guitarra imaginária. Sua risada me lembra a da Carla: desinibida, um pouco
alta demais e repleta de alegria. Neste momento sinto desesperadamente a
falta dela.
— Zacharias.
— É fantástico conhecer você, Maddy. Ouvi muito a seu respeito, mas não
achei que você fosse, tipo assim, real.
— Está certo. — Examino minha mão onde ele a beijou. — Em alguns dias
eu não serei mesmo de verdade.
Zach ri mais uma vez alto demais e eu me flagro gargalhando junto com
ele.
— Ambas.
— Não.
Ele olha novamente para Olly e seus olhos castanhos estão mais sérios do
que antes.
— Como vou contar a eles que seu primogênito quer se tornar um Freddie
Mercury afroamericano?
— Gostei de você.
— Não tenho nem mesmo certeza se sou uma maçã — diz Zach, ainda
rindo.
— Você achou que ele podia mudar? — Olly não ergue os olhos do
telefone.
— Acho que não. — A voz do Zach fica trêmula. O quanto ele sabe sobre a
família do Olly? O pai dele é muito pior que um babaca.
Minha mãe, minha mãe. Eu nem ao menos pensei nela. Ela deve estar louca
de preocupação.
— Bem, acho que todo mundo tem alguma coisa de errado, não é mesmo?
Mas a minha mãe é inteligente e forte. E ela
— Você precisa dizer para a sua mãe que você está bem, Mad.
Para: usuariogenerico033@gmail.com
Para: usuariogenerico033@gmail.com
Sei que ela está com você. Você não entende o quanto ela está doente.
Traga-a p ara casa.
Para: usuariogenerico033@gmail.com
Por favor, me diga onde vocês estão. Ela p ode ficar seriamente doente a
qualquer minuto.
Sei onde vocês estão e vou embarcar no p róximo voo. Estarei aí de manhã.
Por favor, mantenha a M adeline a salvo.
Paro de ler, aninho o telefone junto ao peito e fecho os olhos. Sinto culpa,
ressentimento e pânico, tudo ao mesmo tempo. Ver minha mãe assim tão
preocupada me faz querer ir até ela assegurar-lhe que estou bem. Essa parte
de mim quer que ela me proteja.
Mas outra parte, a parte nova, não está pronta para desistir do mundo que
estou começando a conhecer. Fico chateada por ela ter acessado meus e-
mails pessoais. Fico chateada por eu e Olly termos ainda menos tempo do
que eu imaginava.
— Não, sério. Você está mesmo se sentindo bem? O Olly me contou que...
— É.
De: usuariogenerico033@gmail.com
Por favor, não se p reocup e, mãe. E, p or favor, não venha p ara cá. Estou
realmente bem e essa também é a minha vida. Vejo você em breve.
Ainda estou tão abalada com os e-mails da minha mãe e preocupada com a
possibilidade de Olly e eu não termos tempo suficiente um para o outro que
não estou preparada para ouvir minha mentira saindo dos lábios do Zach.
Faço exatamente o que não se deve fazer quando se está mentindo para
alguém: eu evito os olhos dele. Fico impaciente e coro.
— Não. Tenho mentido sobre mim por tanto tempo que eu sei como é.
— Obrigada.
— Peço mil desculpas aos Rolling Stones, mas o meu primeiro disco vai se
chamar Entre o rock and roll e um lugar difícil.
— É horrível.
Isso não é uma pergunta, mas, de qualquer forma, eu não teria mesmo uma
resposta.
— Tudo bem? — ele indaga antes de beijar a minha testa, depois o meu
nariz e, por último, os lábios.
Decido não contar a ele sobre a visita iminente da minha mãe. Vamos
simplesmente aproveitar o máximo possível o tempo que temos.
— Nunca me senti melhor na minha vida — digo. Sou grata por pelo menos
não ter de mentir a respeito disso.
A CAMA MURPHY
— Este lado é meu — ele diz, o que significa o lado esquerdo perto da
porta. — Eu durmo na esquerda. É bom que você saiba disso. Para
referências futuras. — Ele se senta e pressiona o cobertor com a palma das
mãos. — Sabe o que eu falei mais cedo sobre as camas Murphy serem o
suprassumo do conforto? Vou ter de retirar o que disse.
— Não — Olly responde rápido demais. Ele rola o corpo, as pernas caem
para um dos lados da cama até o chão, onde fica de pé, parado.
— Por que você dorme do lado esquerdo quando está sozinho? — pergunto.
Eu me movo na cama e volto a me deitar. Ele está certo. Este colchão é
terrivelmente desconfortável.
— De quê?
Ele não responde, de modo que eu rolo novamente para espiá-lo. Olly está
deitado de costas, com um dos braços jogado sobre os olhos.
— Companhia — ele fala.
— Claro, claro.
Através das portas posso ouvir o som dos elevadores, que imita um sininho,
e os murmúrios baixos das vozes das pessoas que passam pelo corredor.
Alguns dias antes, um único dia no mundo exterior parecia ser suficiente,
mas, agora que tive um, quero mais. Não tenho certeza se para sempre será
suficiente.
— Por quê?
— Nunca senti por ninguém o que eu sinto por você. — Ele não pronuncia
essas palavras em voz baixa. Na verdade, ele as diz até mesmo alto demais
e em um fluxo acelerado como se as palavras já desejassem há um longo
tempo ser liberadas.
— É a sua primeira vez para tudo, Maddy, mas não para mim.
Eu não entendo. Só porque é a primeira vez, não quer dizer que é menos
verdadeiro, não é? Até mesmo o universo tem um início.
Ele fica em silêncio. Quanto mais eu penso no que ele disse, mais irritada
fico. Porém, logo me dou conta de que ele não está desdenhando nem
diminuindo os meus sentimentos. Olly está apenas com medo. Dada minha
falta de escolhas, e se eu o tivesse escolhido porque ele foi simplesmente
quem apareceu?
— Na minha cabeça, eu sei que já estive apaixonado antes, mas não senti
nada. Estar apaixonado por você é melhor do que a primeira vez. Sinto
como se fosse a primeira vez, a última vez e a única vez, tudo ao mesmo
tempo.
— Olly, eu juro que conheço meu próprio coração. É uma das poucas coisas
que não são completamente novas para mim.
TODAS AS PALAVRAS
Ele sorri. E sorri mais quando me vê. Ele é o Olly e ao mesmo tempo não é
o Olly. Seus olhos focados acompanham a minha aproximação. Estou
consciente de cada um dos nervos pulsantes do meu corpo. Como ele
consegue fazer isso com apenas um olhar? Será que eu causo o mesmo
efeito nele? Paro diante das portas de vidro corrediças e olho para ele de
cima a baixo. Ele veste uma camiseta preta apertada, shorts pretos e
sandálias da mesma cor. O anjo da morte de férias.
Ele parece aliviado e não consigo conter um sorriso. Ele me empurra pelas
portas da varanda até que a parte de trás dos meus joelhos esteja
pressionada contra a cama.
Eu me sento. E então ele continua ali de pé. Foi mais fácil pular de Black
Rock do que fazer isso.
— Eu comprei algumas.
— Você comprou algumas o quê? — Ele não entende o que quero dizer.
— Quando?
— Na loja de suvenires. Custaram catorze e noventa e nove. Aquele lugar
tem de tudo.
Ele olha para mim como se eu fosse um pequeno milagre, mas então seu
sorriso se transforma em algo mais. E logo estou de costas e as mãos dele
puxam meu vestido.
Olho para baixo para confirmar essa informação e nós dois rimos.
Ele arranca a camiseta pela cabeça e meu corpo domina o cérebro. Corro os
dedos pelos músculos lisos e rígidos do peito dele, mergulho-os nos vales
entre eles. Meus lábios seguem o mesmo caminho, saboreando, acariciando.
Ele deita de costas, sem se mexer, deixando que eu o explore, e beijo toda a
sua geografia até chegar aos dedos dos pés e volto para o ponto inicial. O
Nós nos fundimos até nos tornarmos um. Somos lábios, braços, pernas e
corpos entrelaçados. Ele se ergue sobre mim e
O MUNDO OBSERVÁVEL
DESTA VEZ
OLLY SORRI. Ele não vai parar de sorrir. Ele me lança todas as variações
de sorrisos existentes e eu tenho de beijar seus lábios sorridentes. Um beijo
leva a mais dez até que nossos beijos são interrompidos pelos roncos do
estômago do Olly.
Corto o beijo.
— Além de você? — Ele beija o meu lábio superior e então lhe dá uma
mordidinha de leve. — Você é deliciosa, mas não mata a fome do meu
estômago.
Eu me sento, cobrindo os seios com o cobertor. Ainda não estou pronta para
ficar nua novamente, apesar de nossa intimidade.
Diferente de mim, Olly não sente a menor vergonha. Ele se levanta da cama
com um único movimento e caminha pelo quarto completamente nu. Eu me
encosto na cabeceira e simplesmente o observo enquanto se move, repleto
de graça e leveza. Não há nenhum resquício do anjo da morte neste
momento.
Tudo está ao mesmo tempo igual e diferente. Ainda sou a Maddy. Olly
ainda é o Olly. Entretanto, somos ambos mais alguma coisa. Eu o conheço
de um jeito diferente. E também me sinto conhecida.
O restaurante fica à beira da praia e nossa mesa tem vista para o mar. Está
tarde — nove da noite —, de forma que não consigamos ver o azul da água,
apenas a espuma branca das ondas quando quebram na areia. Nós as
ouvimos por cima da música e do burburinho ao nosso redor.
— Você acha que eles têm humuhumu no menumenu? — Olly faz piada.
Ele havia brincado que queria comer todos os peixes que vimos quando
mergulhamos.
— Olha, vou arriscar que eles não servem o peixe símbolo do estado —
retruco.
Agora que nos tocamos com tanta intimidade, não conseguimos mais parar.
— Meu pai nos pediu desculpas depois que bateu nela pela primeira vez —
Olly fala a frase de uma vez só, sem parar para respirar. Levo um segundo
para me dar conta sobre o que ele fala. — Ele estava chorando.
A noite está tão escura que acabo sentindo mais do que vendo-o balançar a
cabeça.
— Eles se sentaram junto com a gente e o meu pai disse que sentia muito.
Ele falou que aquilo jamais aconteceria de novo.
Lembro que a Kara estava com tanta raiva que não conseguia nem olhar
para o nosso pai. A minha irmã sabia que ele era um mentiroso, mas eu
acreditei, assim como a nossa mãe. Ela nos pediu que esquecêssemos aquilo
tudo. Falou que o nosso pai estava passando por muitos problemas. Que ela
o havia perdoado e que nós devíamos fazer o mesmo. — Olly devolve a
minha mão. —
Ele não bateu mais nela por um ano. Ele bebia muito. Berrava com ela.
Berrava com todos nós. Mas ele não bateu nela de novo por um longo
tempo.
— E você acha que eu já não perguntei isso a ela? — Ele deita na areia com
as mãos unidas atrás da cabeça. — Acho que se ele houvesse batido nela de
maneira que as coisas ficassem realmente feias, ela o teria deixado. Se ele
talvez fosse alguma coisa um pouco além de um babaca, talvez pudéssemos
finalmente dar no pé. Mas ele sempre pede desculpas e a nossa mãe sempre
acredita nele.
Coloco uma das mãos sobre a barriga dele. Preciso de algum contato. Acho
que Olly talvez também precise, mas então ele se senta, encosta os joelhos
no peito e descansa os cotovelos sobre eles. Seu corpo forma uma gaiola na
qual não consigo entrar.
— Nada. Minha mãe não fala mais sobre o assunto. Ela costuma dizer que
vamos entender quando formos mais velhos e tivermos nossos próprios
relacionamentos.
Fico surpresa com a raiva na voz dele. Jamais imaginei que Olly sentisse
raiva da mãe. Do pai, sim, mas não dela.
— Por quê?
— Eu vim até o Havaí com você. Não é fácil para mim deixá-las sozinhas
com ele.
— Por quê?
— Então... — Ele abaixa as pernas e pega uma das minhas mãos. — O que
a gente vai fazer agora?
Não sei o que responder. A única coisa de que tenho certeza é que isto, estar
aqui com o Olly, ser capaz de amá-lo e ser amada também, é tudo.
— Você deve deixá-los. Não é seguro para você continuar lá. — Falo isso
porque Olly não faz a menor ideia do perigo que corre. Ele está aprisionado
pela lembrança do amor, de tempos melhores, de quem é a mãe dele, e isso
não é suficiente.
No início, acho que devo estar sonhando, porém meus sonhos jamais são
tão lúcidos. Tento me sentar, aproximar o cobertor, mas não consigo. Olly
ainda está dormindo e deitado em cima das cobertas.
Tento gritar, mas minha garganta está em carne viva, como se eu houvesse
gritado por dias e dias.
Estou doente.
Ele acorda assim que esse pensamento passa pela minha cabeça.
Ele liga o abajur sobre uma das mesas de cabeceira e meus olhos queimam.
Eu os aperto e tento virar para o outro lado. Não quero que ele me veja
assim, mas já é tarde demais. Vejo o rosto dele ir da confusão, passando
pelo reconhecimento, até chegar à incredulidade. E por fim o terror se
instala.
Ele tira o cobertor de cima de mim e sinto mais frio do que jamais imaginei
ser possível.
Ele me cobre e afaga a minha cabeça, beija minha testa molhada, meus
lábios.
Não estou, mas é legal da parte dele falar isso. Meu corpo pulsa por causa
da dor e sinto que minha garganta parece fechada.
Ele está chorando. Não chore. A Kara vai ficar bem. A sua mãe vai ficar
bem. Você vai ficar bem.
A cama afunda. Estou sobre areia movediça. Alguém está tentando me tirar
do atoleiro. As mãos dele são quentes. Por que elas são tão quentes?
Algo brilha na outra mão. É o celular. Ele está falando alguma coisa, mas as
palavras não saem claras. Alguma coisa. Mãe. A sua mãe.
Sim. Mãe. Preciso da minha mãe. Ela já estava a caminho. Espero que
esteja perto.
Meu.
Coração.
Para.
LIBERADA, PARTE UM
RESSUSCITADA
E então o cheiro de combustível de avião, aquele cheiro que foi tão bem-
vindo antes, colares de flores e um cobertor que me dá coceira enrolado
duas vezes ao redor do meu corpo e que diferença faz estar sentada perto da
janela se elas estão todas fechadas?
Lembro do rosto da minha mãe e de como as lágrimas poderiam formar um
mar.
Lembro dos olhos azuis do Olly ficando pretos. Fechei os meus graças à
culpa, o alívio e o amor que sentia por vê-lo ali.
READMITIDA
Sempre que acordo, minha mãe está ao meu lado. Ela toca minha testa e
fala comigo. Às vezes tento manter o foco, entender o que ela diz, mas as
palavras estão simplesmente fora do meu alcance.
Acordo mais uma vez algum tempo depois (horas? dias?) para encontrá-la
de pé ao meu lado, franzindo a testa enquanto olha a prancheta. Fecho os
olhos e faço um inventário do meu corpo. Nada dói, ou, mais exatamente,
nada dói muito. Confiro a cabeça, a garganta, as pernas. Está tudo bem.
Abro os olhos de novo e a encontro prestes a me colocar para dormir
novamente.
— Por favor, não me coloque para dormir outra vez. — Preciso ficar
acordada já que vou continuar viva. — Eu estou bem?
— pergunto.
— Você está bem. Você vai ficar bem. — A voz dela treme até sumir.
Eu me sento e olho para ela. A pele está pálida, quase translúcida, e está
esticada demais sobre os ossos do rosto. Uma veia de aparência dolorosa
vai do fim do couro cabeludo até as pálpebras. Posso ver outras veias azuis
sob a pele dos antebraços e dos pulsos. Ela tem os olhos apavorados e
incrédulos de alguém que presenciou algo terrível e está esperando por mais
desastres.
— Como você pôde fazer isso consigo mesma? Você poderia ter morrido —
minha mãe sussurra. Ela dá um passo à frente e abraça a prancheta junto ao
peito. — Como você pôde fazer uma coisa dessas comigo? Depois de tudo?
Quero dizer alguma coisa. Abro a boca, mas nada sai dela.
Permaneço na cama até que ela vá embora. Não me levanto para alongar o
corpo. Dou as costas para a janela. Do que eu me arrependo? Em primeiro
lugar, por ter ido Lá Fora. Por ter visto e me apaixonado pelo mundo. Por
ter me apaixonado pelo Olly.
Como poderei viver o resto da minha vida nesta bolha agora que sei o que
estou perdendo?
Fecho os olhos e tento dormir. Porém, a visão do rosto da minha mãe mais
cedo, todo o amor desesperado nos olhos dela, não sai da minha cabeça.
Decido então que o amor é uma coisa muito, muito horrível. Amar alguém
tão profundamente quanto minha mãe me ama deve ser como viver com o
coração do lado de fora do peito, sem nenhuma pele, ossos, nada para
protegê-lo.
Quarta-feira, 18:56
Madeline: Sim.
Olly: tentei visitar você, mas a sua mãe não deixou Madeline: Ela está me
p rotegendo.
Olly: eu sei
Olly: sei que você está desap ontada, M ad, mas p elo menos você está viva
Olly: vamos conversar com a sua mãe assim que você estiver melhor. talvez
eu p ossa fazer uma visita Olly: sei que você não p ode ter tudo, M ad, mas
isso é melhor do que nada M ais tarde, 0:05
Madeline: Isso não é melhor do que nada. É absolutamente p ior que nada.
Olly: o quê?
Madeline: Nunca houve comp rimido algum. Falei isso só p ara você ir
comigo.
Olly: mas você p odia ter morrido e seria culp a minha Madeline: Eu não
sou resp onsabilidade sua.
Madeline: Não consigo mais conversar com você p ela internet. Nem p or
e-mail. É muito difícil. Não p osso voltar a viver assim. M inha mãe tem
razão. A vida era melhor antes.
A VIDA É CURTA®
RES ENHAS COM S POILERS POR MADELINE
GEOGRAFIA
O sonho não sai da minha cabeça. Passo o dia acordada, mas ao mesmo
tempo eu sonho, tentando não pensar no Olly. Tento não pensar em quando
o vi pela primeira vez. Como ele parecia ter vindo de outro planeta. Tento
não pensar em bolos bundts nem em plantar bananeira, beijos e areia
aveludada. Em como nossos segundo, terceiro e quarto beijos foram ainda
mais incríveis que os outros. Tento não lembrar dele se movendo para
dentro de mim e de nós dois nos mexendo juntos. Tento não pensar nele
porque, se eu fizer isso, vou lembrar de como eu estava conectada àquele
menino e ao mundo há apenas alguns dias.
Preciso esquecer o Olly. Aprendi minha lição. O amor pode matar e prefiro
continuar sobrevivendo aqui dentro do que vivendo lá fora.
Uma vez falei para o Olly que eu conhecia meu próprio coração melhor do
que qualquer outra coisa e isso ainda é verdade.
A VIDA É CURTA®
FINGINDO
FICO MAIS FORTE a cada dia que passa. Nada mais dói, a não ser meu
coração, mas estou tentando não usá-lo. Mantenho as cortinas fechadas.
Leio meus livros. Os existencialistas e os niilistas. Não tenho paciência para
livros que fingem que a vida tem um sentido. Não tenho paciência para
finais felizes.
Não penso no Olly. Ele me manda e-mails e eu os envio para a lixeira antes
de lê-los.
Minha mãe ainda está tentando me pôr nos eixos. Ela ronda o meu quarto. E
se preocupa, faz um alvoroço e me dá remédios.
Agora que estou mais forte, ela me persuade a voltar com as noites de mãe-
e-filha. Como Olly, ela quer que nossas vidas voltem a ser o que eram antes.
Não curto nossas noites juntas — na verdade, eu não curto mais nada —,
porém, faço isso por ela. Minha mãe perdeu ainda mais peso. Estou
alarmada e não sei como colocá-la nos eixos, de forma que jogamos
Palavras Cruzadas Fonéticas e Imagem & Ação em Nome do Outro,
assistimos filmes e fingimos.
— Pedi para a Carla voltar — ela diz uma noite antes do jantar.
JUNTAS NOVAMENTE
Tento me manter firme diante dela, pois, caso contrário, vou derreter. Se eu
chorar, tudo se tornará real. E aí eu de fato terei de viver esta vida. E de fato
jamais verei Olly novamente.
— As mães não sabem como odiar os seus bebês. Elas os amam demais.
— Mas ela deveria. Sou uma filha horrível. Fiz uma coisa horrorosa.
— E o seu Olly?
Balanço a cabeça. Vou contar tudo para ela, mas não sobre isso. Meu
coração está muito ferido e quero manter essa dor como um lembrete e não
jogar uma nova luz sobre ela. Não quero que ela se cure. Porque, se isso
acontecer, posso me sentir tentada a tê-la de novo.
•••
Nós nos adaptamos à nossa rotina normal. Cada dia é como o anterior e não
será muito diferente do próximo. O galo ama o lago. Estou trabalhando no
modelo de uma maquete de uma biblioteca com um interior repleto de
escadas que dão em lugar nenhum no melhor estilo do Escher. Do lado de
fora, ouço um ronco e depois um bipe. Desta vez eu imediatamente sei o
que é.
No início, não vou para a janela. Mas a Carla vai até lá e me conta o que vê.
É um caminhão de mudança — Mudanças Dois Irmãos. Os irmãos saíram
do caminhão e descarregaram carrinhos, caixas vazias e fita crepe. Eles
falam com a mãe do Olly. Kara e Olly também estão lá. Não há nenhum
sinal do pai deles, Carla me diz.
Sou vencida pela curiosidade e vou para a janela espiar por detrás da
cortina. Carla está certa. O pai do Olly não está em lugar nenhum. Olly,
Kara e a mãe caminham, frenéticos, de um lado para o outro. Eles correm
para dentro e para fora da casa, carregando caixas fechadas ou sacos de lixo
cheios até a boca, largando-os na varanda para que o pessoal da mudança os
coloque dentro do caminhão. Ninguém fala nada. Mesmo daqui, dá para
perceber que a mãe dele está nervosa. Após alguns minutos, Olly para o que
está fazendo e lhe dá um abraço. Ela o aperta com força e Olly lhe faz
carinho. Kara não se junta a eles.
Estou tentando não focar minha atenção no Olly, mas é impossível. Meu
coração não dá a mínima para o que o meu cérebro pensa. Eu me dou conta
do momento exato em que Olly percebe os meus olhos sobre ele. Nossos
olhares se encontram. É
Desta vez, tenho certeza. Eu já sei que eu o amo e que esse sentimento não
vai desaparecer.
Ele ergue uma das mãos para acenar. Solto a cortina, dou as costas para a
janela e pressiono as costas contra a parede, respirando fundo.
VIGÍLIA DA VIZINHANÇA #3
ROTINA DO PAI DELE
9:00 — Sai para o trabalho
Desconhecida
ROTINA DA KARA
Desconhecida
ROTINA DO OLLY
Desconhecida
CINCO SÍLABAS
NO MÊS SEGUINTE, logo depois do Natal, o pai dele se muda também.
Pela minha janela, eu o observo carregar apenas algumas caixas para uma
caminhonete alugada. Torço para que ele não esteja indo para o mesmo
lugar onde Olly, Kara e a mãe deles estão.
Durante alguns dias, fico olhando para a casa, imaginando como ela
consegue continuar a mesma, parecer tão sólida e manter o formato de uma
residência quando não há ninguém por ali para transformá-la em um lar.
Espero mais alguns dias antes de finalmente ler os e-mails que Olly me
enviou. Eles ainda estão na lixeira, exatamente como eu sabia que estariam.
De usuariogenerico033
Assunto: limerique #1
houve uma menina chamada M adeline que p artiu meu coração, maquine
senti que morri (eu vi minha alma p artir) existem mais p alavras que rimem
com M adeline?
De usuariogenerico033
Assunto: limerique #2
Tinha uma garota que vivia em uma bolha que eu susp eitava que ia me dar
uma trolha ainda assim lhe dei meu coração mas ela exp lodiu e o meu amor
tomou Doril
Eu rio até começar a chorar. Ele devia estar mesmo com muita raiva de mim
para me enviar limeriques em vez de haicais.
Os outros e-mails são menos poéticos. Ele me contou sobre como estava
tentando convencer a mãe a buscar ajuda e como tentava salvar a Kara de si
mesma. Ele não sabia qual das conversas que teve com a mãe finalmente a
convenceu. Poderia ter sido porque ele lhe disse que não poderia mais fazer
parte daquela família se ela continuasse com o pai. Às vezes é preciso
abandonar as pessoas que mais amamos, ele havia lhe dito. Ou, Olly me
contou, poderia ter sido quando ele finalmente lhe falou sobre mim, sobre
como eu estava doente e como eu desejava fazer qualquer coisa além de
sobreviver. Olly me disse que ela acha que eu sou corajosa.
De usuariogenerico033
Assunto: haicai #1
AQUI E AGORA
Para: madeline.whittier@gmail.com
Srta. Whittier,
Senti que seria imp ortante entrar em contato com você diretamente. Você p
recisa saber que estudei seu caso com cuidado e não acredito que você
tenha, ou já tenha tido, IDCG.
Sei que isso p ode ser um choque. Em anexo estão alguns resultados de
exames que fizemos aqui e recomendo que você vá atrás de uma segunda (e
uma terceira) op inião.
Acho que você p recisa arranjar outro médico além da sua mãe p ara
verificar minhas descobertas. M édicos nunca devem tratar seus p róp rios
familiares.
Por favor, sinta-se livre p ara entrar em contato e fazer qualquer p ergunta
que você p ossa ter. Boa sorte.
Cordialmente,
Dra. M elissa Francis
PROTEÇÃO
É claro que houve algum erro. É claro que isso não pode estar certo. A dra.
Melissa confundiu meus resultados com os de outra pessoa. Deve haver
outra Madeline Whittier. Ela é uma médica inexperiente. O mundo é, no fim
das contas, cruel.
Acredito que todas essas coisas sejam verdade, mas ainda assim. Imprimo o
e-mail e os resultados de todos os exames. Não estou me movendo em
câmera lenta. O tempo não se acelera nem passa mais devagar.
As palavras na impressão não são diferentes das que vi na tela, mas pesam
mais. Mesmo assim, não podem ser verdade. Não há a menor possibilidade
de aquilo ser verdade.
E eu sei. Eu sei que há algum erro. Ainda assim, meus pés me carregam
escada abaixo e me fazem atravessar a sala de jantar até o escritório da
minha mãe. Ela não está lá e nem na sala de TV. Vou até a suíte e bato
levemente na porta, com as mãos trêmulas. Ela não responde.
Provavelmente está no banheiro se preparando para ir para a cama. Bato de
novo, mais alto.
— Isto aqui foi enviado por uma médica de Maui. Dra. Melissa Francis.
Você a conhece?
Se eu não a estivesse olhando tão de perto, não teria percebido, mas ela
congela.
— Mãe, desculpe...
— O que é, Madeline?
— Esta carta. Ela, a dra. Melissa, acha que eu não estou doente.
— Ela diz que não acha que eu tenha IDCG. Ela não acredita que eu algum
dia tenha tido essa doença.
Ela desaba na beirada da cama.
— Ah, não. Foi para isso que você veio me ver? — A voz dela é suave,
repleta de pena. — Ela lhe deu esperanças, não é?
— Minha mãe faz um gesto para que eu me sente ao seu lado. — Desculpe,
mas isso não é verdade.
Eu me aninho nos braços da minha mãe. Ela está certa. Eu alimentei minhas
esperanças. A sensação de seus braços ao meu redor é tão boa. Eu me sinto
aquecida, protegida e segura.
— Sinto muito por você ter visto essas coisas. Foi uma atitude muito
irresponsável da parte dessa médica.
Ela me afasta mais uma vez e me encara para ter certeza de que estou
escutando e entendendo suas palavras. Ela abaixa o tom de voz e seu tom se
torna solidário — sua voz de médica.
— Você viu as consequências com seus próprios olhos, não é? Você ficou
bem por um tempo e depois quase morreu em uma sala de emergência. O
sistema imunológico do ser humano é complicado.
Ela franze a testa na direção dos papéis nas minhas mãos.
— E essa dra. Melissa não conhece todo o seu histórico médico. Ela está
vendo apenas uma pequena parcela do conjunto.
— Eu sei, mãe. — Na verdade, não quero mais falar sobre esse assunto.
Volto para os braços dela.
E é esse último “preciso protegê-la” que faz uma parte de mim ficar em
silêncio.
Há uma incerteza na voz dela que eu não esperava e a qual eu não consigo
entender.
Tento me afastar para ver seu rosto, mas ela me aperta com ainda mais
força.
Ela olha para baixo e parece confusa, como se tentasse entender como
aquelas folhas chegaram até ali.
— Você não precisa disso — ela retruca, mas mesmo assim me devolve.
DICIONÁRIO DA MADELINE
sus.pei.ta
s.f. pl. -s 1. A verdade em que você não acredita, não consegue acreditar,
não vai acreditar: As suspeitas dela a respeito da mãe a fizeram passar a
noite em claro. / Ela tinha uma suspeita crescente de que o mundo ria da
sua cara. [2015, Whittier]
IDENTIDADE
CARLA MAL ATRAVESSOU a porta e eu já corri para ela com a carta nas
mãos. Ela lê e, a cada frase, seus olhos se arregalam.
diferente.
— Descobrir o quê?
Não sabemos de nada? Claro que sabemos. Sabemos que estou doente. Que
não tenho permissão para sair de casa, pois posso morrer se fizer isso. Esta
é a pessoa que eu sou.
— Juro que não sei de nada, mas, às vezes, tenho as minhas suspeitas.
— Às vezes acho que a sua mãe não está cem por cento correta. Talvez ela
nunca tenha se recuperado do que aconteceu com o seu pai e o seu irmão.
Ela coloca uma das mãos nas minhas costas e eu desabo com o peso dela.
Eu me torno um ser imaterial. Sou novamente a garota-fantasma do Olly.
Aperto a porcelana da pia com as mãos. Não consigo erguer os olhos até o
espelho porque não reconheço a menina ali refletida.
PROVA DE VIDA
Caminho até a grande escrivaninha que ocupa o centro do cômodo. Ela tem
um arquivo embutido, de modo que começo por ali a minha busca. Minhas
mãos tremem. Mais do que isso. Na verdade, minhas mãos parecem estar
sofrendo um terremoto, exatamente como o resto de mim.
Minha mãe é meticulosa e extravagante com seus arquivos. Ela anota tudo e
demoro uma hora em apenas um punhado de pastas. Ali há recibos de
pequenas e grandes compras, contratos de aluguel, contas, garantias e
manuais de instruções. Ela guarda até os ingressos do cinema.
Por fim, lá no fundo, encontro o que estou procurando: uma grossa pasta
vermelha onde está escrito Madeline. Eu a tiro da gaveta com cuidado e
abro espaço no chão.
À medida que prossigo com a minha investigação, não levo muito tempo
para perceber que fui um bebê doente. Encontro descrições das visitas do
pediatra devido a erupções, alergias, eczemas, resfriados, febres e duas
infecções de ouvido, tudo isso antes que eu completasse quatro meses de
idade. Encontro encaminhamentos para lactação e para consultas a
especialistas em sono infantil.
Quando eu tinha cerca de seis meses, exatamente trinta dias depois da morte
do meu pai e do meu irmão, dei entrada em um hospital com um vírus
sincicial respiratório (VSR). Não sei o que é isso e faço uma nota mental
para pesquisar mais tarde no Google. Foi sério o suficiente para me manter
no hospital por três dias.
E então o arquivo da minha mãe começou a se tornar menos meticuloso.
Encontro uma página impressa da internet sobre VSR. Ela circulou a parte
que explica que a VSR ocorre de forma mais severa em pessoas com
sistemas imunológicos comprometidos. Encontro uma cópia da primeira
página de um artigo sobre IDCG extraído de um periódico de medicina. Os
garranchos que ela fez nos cantos da página são incompreensíveis. Depois
disso há apenas um único registro de uma visita a um alergista e depois a
três diferentes imunologistas. Todos eles concluíram que nenhuma doença
foi encontrada.
E isso é tudo.
Reviro o arquivo novamente em busca de mais pastas. Não faz sentido que
qualquer outro registro sobre mim estivesse em outro lugar. Onde estão os
resultados dos exames? Deve haver um quarto imunologista, certo? Onde
está o diagnóstico? Onde estão as consultas e as segundas opiniões? Deve
haver outra pasta vermelha grossa. Esquadrinho os arquivos uma terceira
vez. E
Talvez essa prova esteja em algum outro lugar. Logo de primeira descubro a
senha do computador da minha mãe —
Nada.
Dou uma pirueta em câmera lenta no meio do cômodo. Não acredito no que
meus próprios olhos comprovam. Não acredito no que não sou capaz de ver.
Como assim não há nada? É como se a minha doença houvesse sido
inventada do nada, como se fosse feita do ar leve que respiro neste exato
momento.
Talvez minha mãe mantenha outro arquivo no quarto dela? Por que não
pensei nisso antes? São 5:23 da manhã. Será que posso esperar até que ela
acorde? Claro que não.
— Aí está você — minha mãe diz com a voz repleta de alívio. — Fiquei
preocupada. Você não estava no seu quarto. — Ela dá mais um passo para
dentro do escritório e seus olhos se arregalam ao ver o caos que nos cerca.
— Sofremos um terremoto?
— ela pergunta antes de se dar conta de que aquela bagunça foi ação de um
ser humano. Ela se vira para mim, confusa. —
— Você arquiva de tudo aqui, mas não há nada sobre a IDCG. Por que não
consigo encontrar nada? — Pego a pasta vermelha no chão e a balanço
diante da minha mãe. — Você tem tudo aqui.
— Do que você está falando? — ela insiste. — É claro que está aí dentro.
Não tenho certeza do que eu esperava que ela dissesse, mas tenho certeza
de que não era aquilo. Será que ela realmente acredita que está tudo ali?
Minha mãe aperta a pasta junto ao peito como se quisesse que ela se
tornasse parte dela.
— Você procurou com cuidado? Eu guardo tudo.
— Você os tirou daqui? Sei que eles estavam aqui em algum lugar. — A
voz dela está grossa devido à confusão e, também, ao medo.
DO LADO DE FORA
Todas as emoções que segurei nas últimas vinte e quatro horas tomam conta
de mim. Esperança e desespero, antecipação e arrependimento, alegria e
raiva. Como é possível sentir uma determinada emoção e seu exato oposto
ao mesmo tempo? Eu luto, imersa em um oceano escuro, com um colete
salva-vidas ao redor do peito e uma âncora presa a uma das pernas.
Minha mãe corre atrás de mim. Seu rosto é uma ruína de medo.
— O que você está fazendo? O que você está fazendo? Você precisa entrar.
— Porque você é doente. Coisas ruins podem acontecer com você aqui fora.
Minha mãe ergue os braços para me trazer para ela, mas eu me esquivo.
— Por favor — ela implora. — Não posso perder você também. Não depois
de tudo que aconteceu.
Seus olhos estão fixos em mim, mas tenho certeza de que ela não me vê.
— Eu os perdi. Perdi o seu pai e perdi o seu irmão. Eu não podia perder
você também. Eu simplesmente não podia.
Ela está devastada. Está devastada já faz muito tempo. Carla tinha razão.
Ela jamais se recuperou da morte deles.
Digo alguma coisa, não sei exatamente o que, mas ela continua a falar.
— Logo depois que eles morreram, você ficou tão, mas tão doente. Você
não respirava direito e eu a levei para a emergência, onde ficamos por três
dias. E eles não sabiam o que havia de errado. Disseram que provavelmente
era uma alergia. Eles me deram uma lista de coisas das quais você deveria
ficar afastada, mas eu sabia que havia mais do que aquilo. — Ela balança a
cabeça para cima e para baixo. — Eu sabia que havia mais do que aquilo.
Eu tinha de proteger você.
Qualquer coisa podia acontecer com você aqui. — Ela olha ao redor. —
Qualquer coisa pode acontecer com você aqui. No mundo.
Eu deveria sentir alguma compaixão, mas não é isso que aflora em mim. A
raiva cresce e toma conta de todo o resto.
— Não estou doente — grito. — Jamais estive doente. Você é a doente por
aqui. — Golpeio o ar diante do rosto dela. Eu a observo se encolher até
desaparecer.
A dor da minha mãe é por mim, mas não posso mais suportar isso.
CONTOS DE FADAS
ERA UMA VEZ uma menina cuja vida inteira era uma mentira.
O VAZIO
INÍCIOS E FINAIS
QUATRO DIAS SE PASSAM. Eu como. Faço meu dever de casa. Não leio.
Minha mãe vaga ao redor como se sofresse de amnésia. Não acho que ela
tenha compreensão do que aconteceu. Minha mãe parece se dar conta de
que há algo que ela deve consertar, mas não tem certeza do que venha a ser.
Às vezes ela tenta falar comigo, mas eu a ignoro. Mal olho para ela.
Uma enfermeira chama meu nome e peço para que a Carla espere do lado
de fora. Seja qual for o motivo, quero ouvir a notícia sozinha.
O dr. Chase se levanta quando entro na sala. Ele parece com as fotos que vi
na internet — um homem branco de uma certa idade com cabelos grisalhos
e olhos pretos e brilhantes.
O dr. Chase faz um gesto para que eu me sente e espera que eu o faça até
voltar também para sua cadeira.
Ele abre uma pasta sobre a mesa e balança a cabeça como se ainda estivesse
confuso com os resultados.
Balanço a cabeça.
— Eu já sabia.
— Sim. Suspeito que foi uma miocardite. Conversei também com a médica
que a atendeu no Havaí. Ela suspeita do mesmo diagnóstico. Basicamente,
em algum momento do seu passado você teve uma infecção viral que
enfraqueceu o coração. Você sentiu alguma dor no peito ou falta de ar
quando esteve no Havaí?
Não tenho nenhuma outra pergunta, pelo menos não para ele, de qualquer
forma. Eu me levanto.
Eu me sento novamente.
— Devido às circunstâncias em que você foi criada, não temos muita
certeza a respeito das condições do seu sistema imunológico.
— Uma criança?
Marcamos visitas semanais de revisão. Ele me diz que devo ir com calma
quando começar a conhecer o mundo. Nada de grandes multidões, comidas
que não me são familiares nem atividades físicas exaustivas.
— O mundo não vai para lugar algum — ele me diz enquanto saio do
consultório.
DEPOIS DA MORTE DE
PASSO AS SEMANAS seguintes pesquisando mais qualquer informação
que explique o que aconteceu comigo e o que aconteceu com a minha mãe.
Quero encontrar algum diário com os pensamentos dela escritos com letra
legível. Quero ver a loucura dela claramente delineada de maneira que
possa traçar seu histórico por mim mesma. Quero detalhes e explicações.
Quero saber por que e por que e por quê. Preciso saber o que aconteceu,
mas ela não pode me dizer. Ela está muito machucada.
O dr. Chase me diz que ela precisa de um terapeuta. Ele acha que levará um
longo tempo até que ela possa explicar o que aconteceu. Se é que esse dia
chegará. Ele supõe que minha mãe tenha sofrido alguma espécie de colapso
depois que meu pai e meu irmão morreram.
Carla tenta usar todo o seu poder de persuasão para tentar me convencer a
não sair de casa. Não só pelo bem da minha mãe, mas pelo meu próprio.
Minha saúde ainda é desconhecida.
No fim, a Carla me convence a ficar com a minha mãe. Ela diz que sou uma
pessoa melhor que isso. Não tenho tanta certeza.
Fosse quem fosse a pessoa que eu era antes, ela morreu depois que descobri
a verdade.
TENHO A MINHA primeira consulta semanal com o dr. Chase. Ele pede
incansavelmente para que eu tenha cautela.
Instalo uma fechadura na porta do meu quarto.
DUAS SEMANAS D.M.
Clique aqui ou na imagem para ampliar.
MINHA MÃE TENTA ENTRAR no meu quarto, mas a porta está trancada
por dentro.
Faço mais dois rascunhos de e-mails para o Olly, mas não envio.
Minha mãe bate na minha porta, mas finjo que não ouço.
Compro cinco peixinhos dourados, dou a todos eles o nome de Olly e solto-
os na fonte.
Fiquei do lado de fora por alguns minutos depois que ele foi embora e a
Carla esperou comigo.
Ela estava tentando achar um jeito de partir com jeitinho o meu coração que
já estava despedaçado.
Sei o que vai dizer. Ela passou o dia inteiro juntando forças para falar
aquilo.
Os olhos dela ainda estão em mim, mas não sou capaz de olhar para ela.
Ela não rebate o que eu disse, apenas pega as minhas mãos nas suas.
— Hoje de manhã.
Mesmo agora, quando penso em todos os anos que perdi, eu me sinto como
se estivesse à beira de um enorme abismo, como se eu pudesse cair e nunca
mais voltar.
Carla me empurra de volta para o presente.
— Não foi a sua vida toda. Você ainda tem muito pela frente.
Voltamos para dentro. Eu a observo recolher suas coisas pela última vez.
— Li.
— Gostou?
O PRESENTE
Abro a porta com violência quando ela está prestes a bater de novo.
Ela se encolhe, mas eu não ligo. Quero feri-la muitas e muitas vezes. Minha
raiva está sempre por perto. Espero que diminua com o passar do tempo,
mas ela ainda está bem ali, à espreita.
Minha mãe respira fundo.
Reviro os olhos.
— Eu ainda a amo, Madeline. E você ainda me ama. Você tem toda a vida
pela frente. Não a desperdice. Me perdoe.
Preciso sair de casa. Vou para o lado de fora, sem saber para onde estou
indo até chegar lá. Felizmente, a escada continua ali onde Olly a deixou.
Subo até o telhado da antiga casa dele.
Nossa, já se passaram mesmo cinco meses desde que estive aqui pela última
vez? Parece que faz uma vida que não piso neste sótão. E a garota que
esteve aqui? Era mesmo eu? Será que tenho algo em comum com a velha
Maddy além de uma forte semelhança física e o mesmo nome?
Quando eu era mais nova, uma das minhas atividades preferidas era
imaginar versões de mim em universos alternativos. Às vezes eu era uma
menina de bochechas rosadas que adorava ficar ao ar livre, comia flores e
fazia trilhas sozinha, subindo quilômetros e mais quilômetros montanha
acima. Ou eu era uma paraquedista, piloto de corrida, uma jovem
destemida, movida a adrenalina. Ou uma caçadora de dragões de cota de
malha e espada sempre em punho. Era divertido imaginar essas coisas
porque eu já sabia quem eu era. Agora, não sei de mais nada. Não sei quem
devo ser neste novo mundo.
Ainda assim.
Eu poderia dar um jeito na minha mãe para que ela jamais se sentisse
devastada.
De: madeline.whittier@gmail.com
PERDÃO
Mas sei que é mais do que isso. E menos. Ele é estruturado e caótico. Belo e
estranho.
O dr. Chase não ficou feliz com a minha decisão de viajar de avião assim
tão depressa. Mas qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento. A
segurança não é tudo. Há mais na vida do que se manter vivo.
Para seu próprio bem, minha mãe não tentou me impedir de viajar quando
eu lhe dei a notícia na noite passada. Ela engoliu todo o medo, todo o
pânico, apesar de ainda não acreditar por completo que não estou doente.
Seu cérebro de médica luta para conciliar o que ela acreditou por tantos
anos com todas as evidências de tantos outros colegas, todos os exames.
Tento me colocar no lugar dela, pensando não nas causas e nos efeitos, mas
nos efeitos e nas causas. Dou voltas e mais voltas e termino sempre no
mesmo lugar.
Amor.
Minha mãe amava o meu pai. Ele era o amor da vida dela. E ela amava o
meu irmão. Ele era o amor da vida dela. E ela me ama. Eu sou o amor da
vida dela.
O universo levou o meu pai e o meu irmão embora. Para ela, isso foi um
Big Bang às avessas: tudo se tornou um nada.
Quase.
Ela chorou, mas ainda assim me deixou ir, e isso tem de valer para alguma
coisa.
Por fim, o cobertor de nuvens se torna muito espesso para que eu possa ver
o que quer que seja. Relaxo no meu assento e releio O Pequeno Príncipe. E,
exatamente como em todas as outras vezes, o sentido muda.
A VIDA É CURTA®
Abro bem os olhos para assimilar todo o mundo que vejo ao meu redor.
Não conto para o Olly que vou para Nova York. Digo apenas que há um
presente esperando por ele no sebo perto da casa dele. Passo quase todo o
voo imaginando o nosso encontro. Todas as possibilidades envolvem beijos
que duram pelo menos os primeiros trinta segundos.
A loja é pequena. Uma única sala repleta de prateleiras que vão do chão até
o teto, abarrotadas de livros. O lugar é parcamente iluminado por spots
minúsculos presos no alto de cada prateleira, de maneira que os livros são
praticamente tudo que podemos ver. O ar tem um cheiro que eu jamais
havia imaginado. Ele cheira a antigo. Como se houvesse permanecido no
mesmo lugar por muito tempo.
Tenho quinze minutos até o horário combinado com Olly. Vago pelos
corredores olhando, encantada, para os livros. Quero tocar todos ao mesmo
tempo. Quero acrescentar o meu nome à lista de pessoas que os leram antes
de mim. Passo os dedos pelas lombadas. Algumas estão tão gastas, tão
usadas, que mal consigo decifrar os títulos.
Mais do que qualquer outra coisa que experimentei nas últimas semanas —
dar adeus para a Carla, sair de casa contra a vontade do dr. Chase, deixar
minha mãe com sua própria tristeza —, vê-lo com uma aparência tão
diferente é o que mais me causou pânico.
Não sei por que esperava que ele continuasse o mesmo. Eu não era mais a
mesma.
Ele faz o telefone escorregar para dentro do bolso e volta a olhar para as
prateleiras. Coloquei o livro com a capa virada para cima bem na frente dos
outros para que Olly não pudesse deixar de reparar nele. Ele o percebe, é
claro. Só que, em vez de pegá-lo, ele coloca as mãos nos bolsos e fica
olhando para a capa.
Só que esse momento jamais existiu, mas sim uma série de outros
acontecimentos. E a sua vida pode se ramificar a partir de
um deles de mil maneiras diferentes. Talvez haja uma versão da vida de
cada um de nós de acordo com cada escolha que fizemos e com aquelas que
deixamos passar.
Talvez haja uma versão da minha vida onde, no fim das contas, eu esteja de
fato doente.
E ainda outra em que o meu pai e o meu irmão estão vivos e a minha mãe
não está devastada.
Há até mesmo uma versão da minha vida em que o Olly não está presente.
Saio do meu esconderijo. Caminho pelo corredor até onde ele está.
FIM
AGRADECIMENTOS
Você é realmente um leitor que leva a leitura a sério se está aqui comigo nos
agradecimentos. E, como um leitor que leva os livros (e seus
agradecimentos) a sério, sabe que os livros não brotam prontos das mentes
de seus autores.
Quando eu era mais nova e vivia na Jamaica, meu pai escrevia resenhas de
filmes para um jornal local. Eu achava que o emprego dele (escrever) e ele
(o meu pai) eram as coisas mais legais do mundo. Então, devo agradecer ao
meu pai por me mostrar que a gente pode passar para o papel aquilo que
está na nossa cabeça e isso pode afetar as outras pessoas.
E então tem a Wendy Loggia. Sério, ganhei na loteria ao ter você como a
minha editora. Obrigada por sua visão, paixão e gentileza. Você acreditou
neste livro desde as primeiras palavras e isso significou tudo para mim.
Obrigada a você e a toda a equipe da Delacorte por tornar o meu maior,
mais antigo e mais louco sonho realidade.
Por fim, ao meu marido, David Yoon. Obrigada por desenhar coisas bonitas
para mim às quatro da manhã entre beijos e goles de café. Obrigada por
tudo e todas as coisas. Pelo amor. Pela aventura. Pela família. Por esta vida.
Eu amo você.