Macunaíma Da Rapsódia Ao Palco
Macunaíma Da Rapsódia Ao Palco
Macunaíma Da Rapsódia Ao Palco
1 Introdução
1
Mestranda em Teoria Literária da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
E-mail: claudiabeatriz31@yahoo.com.br
2
Informações retiradas da Edição Crítica de Macunaíma de Telê Lopez (1988)
Revista Literatura em Debate, v. 5, n. 8, p. 257 - 270, jan.-jul., 2011. Recebido em 25 abr..;
aceito em 7 jun. 2010.
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que, incompreendida, não foi bem aceita; depois, na década de 50, quando o movimento
modernista começa a ser retomado pela historiografia literária e pelos poetas concretistas,
surgindo o primeiro estudo da narrativa3; para então, somente depois, na década de 70, ser
considerado definitivamente como um clássico da literatura brasileira. Década esta que a
rapsódia experimenta um salto quantitativo tanto em suas publicações como nos estudos
direcionados à obra, consagrando-a definitivamente como a melhor prosa de ficção
modernista. Se Macunaíma teve oito edições publicadas em mais de quatro décadas, só na
década de 70 são nove edições. Além disso, a rapsódia será uma das poucas obras brasileiras
que são transpostas tanto para o cinema4 como para o teatro5, alcançando repercussão
internacional.
Se o Modernismo é retomado inicialmente pela historiografia e crítica literária, é no
cenário da censura política que as obras modernistas alcançam o maior público ledor de sua
história. Isso se deu por dois motivos: o primeiro, porque a literatura carrega em si uma
dualidade íntima e irredutível, configurando-se no inacabável, podendo assim, tomar a forma
necessária a ocupar espaços, interesses e tempos distintos. É dessa forma, que se tornou útil,
no contexto da ditadura militar, uma literatura anterior àquele tempo e, aparentemente
inofensiva, pois era necessário encobrir qualquer tipo de expressão atualizada da realidade do
país. Assim, o governo, ao mesmo tempo, que veta tudo que foge a sua própria ideologia,
incentiva a indústria cultural brasileira com subvenções, ou seja, financia a produção literária,
desde que lhe pareça inócua.
O segundo motivo também está ligado ao quadro político do país, é o intenso
investimento do governo em sua “modernização”: a escola abre as portas para as camadas
populares, diminuindo a taxa de analfabetismo; Cresce o mercado editorial, tornando mais
acessível a literatura à sociedade; com o “milagre brasileiro”, o poder de compra do brasileiro
aumenta. A arte modernista é então resgatada, entra no currículo escolar do ensino regular ao
ensino superior, é absorvida pela produção cultural de massa, recebe investimento pelo
mercado editorial, é apresentada às camadas populares; enfim, seleciona-se o material,
empacota-o, impondo-lhe forma, tamanho e cor determinada na tentativa de manter sob
controle sua dualidade inerente.
3
PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. 1ª edição. São Paulo: editora Anhembi Ltda, 1955.
4
Macunaíma. Direção e Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade. Produção: filmes do Serro / Grupo filmes / Condor
filmes, 1969.
5
Macunaíma. Roteiro: Antunes Filho e Jacques Thièrot. Direção: Antunes Filho. Grupo Pau Brasil, 1978.
Revista Literatura em Debate, v. 5, n. 8, p. 257 - 270, jan.-jul., 2011. Recebido em 25 abr..;
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Com isso, a literatura modernista assume a partir do final da década de 60 vários
papéis: para a historiografia literária representa o marco da literatura brasileira, a fase heróica
de sua constituição como tal; para a política um instrumento de distração e alienação da
sociedade; para o mercado editorial objeto vendável; e, por fim, para os próprios literatos, que
buscavam no experimentalismo estético dos modernistas inspirações para suas criações,
precioso material para suas pesquisas. Desperta então, as obras modernistas, o interesse de
pesquisadores, historiadores, críticos literários, artistas e até mesmo, políticos.
É nesse quadro, segunda metade da década de 70, que Antunes dá início ao seu projeto
de apresentar Macunaíma no palco. Momento em que o diretor não enfrentará mais os
mesmos problemas de Mário de Andrade na época da publicação da rapsódia: o Modernismo
já havia encontrado seu público, Macunaíma já havia se tornado um clássico da literatura
brasileira, era possível encontrar um número considerável de pesquisas sobre a rapsódia e, o
mais importante: na estreia da peça, tanto o público como a crítica teatral estavam preparados
para ler e assistir Macunaíma de Antunes, ou seja, estavam prontos para absorver as
inovações estéticas do texto e do espetáculo.
Antunes é fiel à narrativa e a sua forma de composição, no entanto, enquanto na
rapsódia, Macunaíma é narrado, no palco é apresentado ao público; e, por um instante,
instante em que se apresenta no palco, despido da voz do outro, mostra-se em sua totalidade,
permitindo ao espectador o encontro com a poesia6 de Macunaíma. Dessa forma, ao traduzir a
poesia contida na narrativa em uma transposição de signos, Antunes produz uma recriação,
não uma cópia idêntica da rapsódia ou uma fôrma para colocá-la, servindo aos interesses
políticos da época, mas a repetição do próprio ato de criação de Mário de Andrade, quebrando
assim, a muralha interpretativa que se instaurou ao redor do livro modernista e, portanto,
confirmando o potencial artístico da rapsódia, que se repete no teatro.
Para uma melhor compreensão de tal processo criativo, este trabalho será dividido em
três partes: a primeira fará uma apreciação da gênese e trajetória da peça, no intuito de
mostrá-la em sua totalidade, do projeto inicial a sua concretização e sucesso; a segunda
abordará os pressupostos teóricos que serviram de base para sua montagem; e, por fim, a
última parte contemplará a análise da peça, os recursos criados ou reaproveitados pelo
teatrólogo para a transposição da narrativa, tanto para o texto dramático, como para o palco,
ou seja, será feita uma análise da peça em si.
6
Poesia no sentido proposto por Otávio Paz em O arco e a lira: a poesia não é nada senão tempo, ritmo
perpetuamente criador. É onde os opostos se fundem por um instante.
Revista Literatura em Debate, v. 5, n. 8, p. 257 - 270, jan.-jul., 2011. Recebido em 25 abr..;
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2 Gênese e trajetória de Macunaíma no teatro
O espetáculo Macunaíma de Antunes Filho foi encenado pela primeira vez em 1978,
no teatro São Pedro, em São Paulo, com o Grupo Pau-Brasil; percorreu trinta cidades
brasileiras e sessenta e sete estrangeiras, no total de 17 países (Venezuela, México, Canadá,
EUA, Israel, Austrália e dez países europeus). Foi considerado um divisor de águas do Teatro
Brasileiro, pela beleza plástica, pelo diálogo vivo que estabelece com o público, pela
simplicidade e mobilidade criativa do cenário, pela plasticidade de sentidos que oferece à
imaginação criativa do espectador; enfim, por se apresentar na incompletude de uma obra de
arte que é, transpondo assim, o tempo e o espaço.
José Alves Antunes Filho (1929), dramaturgo, diretor de teatro e cineasta, destacou-se
em meio à primeira geração dos encenadores modernos do Brasil. Recebeu sua formação de
diretor e iniciou sua carreira no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). No entanto, alcança
projeção internacional com a peça teatral Macunaíma. Tudo começou em 1977, quando
resolveu oferecer um curso para atores. Escreveu um projeto, baseado no tema “Macunaíma”,
o qual foi aceito pela Comissão de Teatro da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo,
recebendo patrocínio desta para o seu desenvolvimento.
Do curso surge a peça teatral e, com esta, o Grupo de Teatro Pau-Brasil que, mais
tarde, com a repercussão do espetáculo, passa a se chamar Grupo de Teatro Macunaíma. A
preparação e montagem da peça acontecem durante doze meses, sendo o estado de São Paulo
o único produtor do espetáculo. A partir de 1982 o Grupo passa a receber o patrocínio do
SESC-SP, com sede no Teatro Anchieta, fazendo parte do Centro de Pesquisa Teatral (CPT).
O espetáculo torna-se, desde a sua estreia em 15/09/1978, um fenômeno teatral
brasileiro sem precedentes: será uma das carreiras mais longas na história do teatro brasileiro,
tendo sua última encenação em 05/07/1987, em Atenas. Da primeira à última apresentação,
causou grande impacto na crítica nacional e internacional. No ano mesmo de estreia, é
possível ver a opinião de grandes especialistas da área teatral estampada nos principais jornais
e revistas da época:
Macunaíma [...] despede-se de São Paulo porque vai à olimpíada fazer tremer Los
Angeles nas bases. Duvidaram muito e ele volta com a medalha de ouro da
malandragem mundial [...]. Macunaíma é, pois, um milagre teatral que cumpre a
função de jogo aberto com a platéia. (ZANOTTO, 1984).
David George, em seu livro Grupo Macunaíma: carnavalização e mito, faz um recorte
das principais críticas internacionais sobre o espetáculo, que se achou importante serem
citadas neste trabalho, com a finalidade de confirmar o impacto que a peça causou também no
exterior:
3 Preparação do espetáculo
visa a utilizar e concentrar a energia do grupo como uma entidade coletiva [...] não
se trata simplesmente do modo de representar; trata-se de um modo de trabalhar, e
acima de tudo, de um esforço de colaboração. [...] O processo é tão importante
quanto o produto. [...] (Os atores) são submetidos a um treinamento intensivo de
artes dramáticas tradicionais (representação, canto, dança), assim como de várias
disciplinas como karatê, tai-chi, ioga e técnicas circenses. [...] (Essas técnicas) são
cuidadosamente integradas na equipe, de modo que as habilidades individuais
tornam-se coletivas. [...] A improvisação é intensamente empregada. [...] Os atores
tentam desenvolver espontaneamente as ideias, sem a ajuda de um texto (GEORGE,
1985, p. 75).
Ainda em relação ao teatro coletivo, é importante ressaltar que este já era utilizado,
desde a década de 30, por dramaturgos e companhias de teatro experimental que buscavam se
opor ao teatro linear, convencional e realista, no intuito de subverter a empatia entre a plateia
e as personagens. O sistema brechtiano de distanciamento foi a primeira tentativa de quebra
4 Macunaíma
O texto
PRIMEIRA ÉPOCA
SEGUNA ÉPOCA
São feitas também pequenas alterações no final e no início de cada cena para manter a
coesão da narrativa: ou uma cena termina com o início da cena seguinte, ou a cena inicia-se
explicando o desfecho da cena anterior, como no trecho que segue, em que Macunaíma
explica aos irmãos a aventura que viveu com a velha Ceiuci, contada na cena anterior:
PROST. 1 - Cês tão gostando de São Paulo? [...] Macunaíma campeou, campeou mas as estradas
PROST. 2 - Aqui é bem diferente, não? e terreiros estavam apinhados de cunhas tão brancas
MACUNAÍMA - É... São Paulo é uma selva bem tão alvinhas, tão!... Macunaíma gemia. Roçava nas
diferente. [...] cunhas murmurejando com doçura: “Mani! Mani!
MACUNAÍMA - Apartamento? Filhinhas da mandioca...” perdido de gosto e tanta
PROST. 1 - Onde a gente mora, dorme... formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas
MACUNAÍMA - Maloca! Maanape, não tenha na rede estranha plantada no chão, numa maloca
medo. É a maloca delas. [...] mais alta que a Paranaguara. [...] Acordou com os
( ENTRAM NO ELEVADOR ) berros da bicharia lá embaixo nas ruas, disparando
JIGUÊ - Ô, sagui açu. entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagui-
PROST. 1 - Não é sagui açu, não, é elevador. açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em
( DESCE O PANO DO APARTAMENTO ) [...] que dormira... [...] As cunhãs rindo tinham ensinado
MACUNAÍMA - Plantaram uma esteira no chão. pra ele que o sagui-açu não era saguim não,
PROST. 2 - Não é esteira não. É cama, máquina chamava elevador e era uma máquina. [...] As onças
cama. Estou pronta... Vem chéri. [...] pardas não eram pardas, se chamavam fordes
MACUNAÍMA - ( BOTANDO A CABEÇA PARA hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram
FORA ) - Que abafamento. Essa maloca máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de
é mais alta que a Paranaguara. Olha Jiguê, quanta curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes
onça parda lá embaixo! autobondes anúncios-luminosos relógios faróis
JIGUÊ - ( COM A CABEÇA DE FORA ) - É rádios motocicletas telefones gorjetas postes
mesmo! chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só
PROST. 2 - Não é onça parda, não. Aquilo lá é ford, máquina! O herói aprendendo calado. De vez em
dodge, chevrolet. É automóvel. quando estremecia. [...] (ANDRADE, 2008, p. 52-
PROST. 1 - É máquina! 53)
MACUNAÍMA - Máquina automóvel... Olha quanto
tamanduá, saci, boitatá lá naqueles
atalhos!
PROST. 1 - Que nada. Aquilo são caminhões,
bondes, motocicletas, gorgetas, rádios, faróis,
postes, chaminés...
PROST. 2 - E é tudo máquina!
PROST. 1 - Tudo na cidade é só máquina! [...]
(ANDRADE, p. 21-22)
O espetáculo
5 Considerações finais
ABSTRACT: The aim of this text is to analyze the transposition of rhapsody Macunaíma
Mario de Andrade for the theater, performed by theater director Antunes Filho, in 1978. As is
a theater research, will be addressed preparing the final assembly of the piece and, reception
by the public and the critics. The purpose is to understand this transposition, both at the
textual, as in the symbolic level and scenario and then, situate the success of the play, fifty
years after the publication of the narrative, and in mark that represented the brazilian theater.
Referências
ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Adaptação teatral de Antunes Filho e Jacques Thiériot.
Texto pertencente ao acervo de peças teatrais da biblioteca da UFU, digitalizado para fins de
preservação por meio do projeto Biblioteca Digital de Peças Teatrais (BDteatro), p. 54.
Andrade, Mário de. Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p.
52-53.
GEORGE, David. Grupo Macunaíma: carnavalização e mito. São Paulo: Perspectiva, 1990,
p. 22.
_________. Teatro e antropofagia. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Global, 1985, p. 75.
LUIZ, Maksen. O teatro brasileiro está vivo e morando em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio
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Macunaíma / Mário de Andrade. Edição Crítica. Coord. Telê Porto Ancona Lopez. Paris:
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siécles. Coleção Arquivos, v. 6, 1988.
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Paulo, p. 15, 4 maio. 1978.
_________. Como se fosse um bom sonho, os personagens do livro mágico viram gente. E
dão uma festa incrível no palco. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 21, 29 set. 1978.
MICHALSKI, Yan. Macunaíma: um teatro com muito caráter. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, p. 5, 17 out. 1978.
PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. São Paulo: Ed. Anhembi Ltda, 1955.
ZANOTTO, Ilka Marinho. Macunaíma, um milagre teatral. O Estado de São Paulo, SP, 15
jun. 1984.