Música Caipira e Enraizamento, Ivan Vilela
Música Caipira e Enraizamento, Ivan Vilela
Música Caipira e Enraizamento, Ivan Vilela
Leonardo TAVARES1
Doutorando em Língua Portuguesa – PUC/SP
Essa música traz consigo toda uma carga simbólica patenteada pela viola
caipira, instrumento de dez cordas que, outrora representada nas peças do
dramaturgo Gil Vicente, posteriormente, circulou entre os padres da Companhia
de Jesus e serviu aos objetivos de dominação religiosa e cultural, instaurados
pelos portugueses quando se apossaram dessa terra brasílica, em 1532.
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Classificamos como auditório heterogêneo, pois, apesar de a maior parte do auditório ser
composto por professores universitários, a temática caipira, sobretudo no que toca à música
produzida e executada pelos caipiras, infelizmente, ainda é pouco conhecida no âmbito
acadêmico e quando citada e/ou estudada, é automaticamente vinculada à visão estereotipada
e elitista constante no trabalho do professor aposentado, Waldenyr Caldas, da USP. Essa
manifestação cultural abunda nas regiões interioranas do país, especialmente nas regiões
centro-oeste e sudeste, bem como nas periferias das grandes metrópoles. Logo, é conhecida
nos meios alijados do ensino formal superior.
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Para mais profundidade acerca da diferença entre saber popular e saber erudito ler Bakhtin: A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais - Rio de
Janeiro: HUCITEC, 2010.
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Filosofia pautada na ideia de que o conhecimento verdadeiro só pode ser obtido por meio da
experimentação e pelo aferimento científico. Segundo essa perspectiva, a ciência deve basear-
se apenas em observações cuidadosas feitas a partir da testagem sensorial.
A cultura caipira, contemporaneamente, se faz presente também na
escrita, nas diversas letras de canções que são produzidas pelas duplas que,
por meio do registro melódico-cantado em disco, narram seu tempo e colhem na
memória coletiva e individual a tradição e o habitus8, defendidos
persuasivamente, de modo a desvelar os argumentos que compõem sua
perspectiva dos acontecimentos e suas práticas sociais ao longo do seu existir.
Ivan Vilela, ao partilhar dessa visão, propôs basicamente em sua fala quatro
questões, a saber:
c) A música caipira (do tupi kaa pir, que significa aquele que arranca o mato),
ligada à cosmologia indígena, executada por mamelucos – resultado da
mistura entre brancos e índios, posteriormente também negros –, tem por
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Palavra latina utilizada pela tradição escolástica que traduz a noção grega de hexis, utilizada
por Aristóteles para designar então características do corpo e da alma adquiridas em um
processo de aprendizagem. Posteriormente foi também usada por Émile Durkheim, no livro A
evolução pedagógica e, mais tarde permeou todos os escritos de Pierre Bourdieu, desde 1982.
símbolo maior a viola, instrumento usado pelo padre Anchieta, incialmente
para catequizar os índios.
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Informação tirada do livro Música caipira: da roça ao rodeio, da jornalista e escritora Rosa
Nepomuceno - São Paulo: Editora 34, 1999.
encontrado por esses povos para guardar e enaltecer os seus feitos, os
acontecimentos da sua vida cotidiana e interiorana e preservar a memória de um
modus vivendi idiossincrático e interessante.
O professor ainda afirmou que essa fala caipira só será resgatada para
fins acadêmicos, pelo pesquisador Amadeu Amaral, a partir do final do século
XIX, nas crônicas que escrevia para o jornal O Estado de São Paulo. Os estudos
empreendidos por Amaral foram tão relevantes para que viesse a público essa
manifestação linguística e cultural do caipira, com o rigor de uma pesquisa
exaustiva e séria, que resultou em dois livros: Tradições populares e O dialeto
caipira.
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Resultante dos primeiros estudos do padre Anchieta para unir a língua tupi ao português
lusitano. A língua chama-se nhengatu. Foi extinta há mais de um século.
Com isso, aos poucos, em alguns nichos, esfacelou-se aquela imagem
caricata do caipira, representada outrora no teatro, nas peças de Artur Azevedo,
desde 1897, em virtude do abandono que a cidade de São Paulo empreendeu à
sua própria cultura para aspirar à modernidade, no estilo das metrópoles
europeias. Para frisar ainda mais a riqueza dessa cultura, valemo-nos da
observação de Xidieh (1993:23) de que os “grupos ditos rústicos e caboclos nos
ensinaram quanto a sua cultura é coesa consigo mesma e como os elementos
que a compõem se interpenetram e se autenticam em todos os momentos de
sua vida”.
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Cornélio Pires foi o primeiro a gravar e comercializar, em disco, a canção caipira do interior de
São Paulo.
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SOUZA, Walter. Moda inviolada: uma história da música caipira. Coordenação Ricardo O.
Oliveira.- São Paulo: Quiron, 2005.
Na visão de Ivan Viela, com a qual concordamos, a música caipira opera
como eixo de manutenção de valores da tradição oral. Ao narrar eventos da vida
cotidiana, registrados em forma de letras de canções, o tipo caipira promove o
(re)enraizamento13 da sua origem e das suas convicções na Paulicéia,
sobretudo, após o período de grande industrialização que se deu no Brasil a
partir de 1950.
Esse ethos estável, que o caipira constrói para o auditório, foi observado
e classificado moralmente por Oliveira Viana, assim, ele expõe que o caipira é
dotado de honestidade; fidelidade à palavra dada; independência moral – no
que diz respeito a separar, lucidamente, gratidão de valores arraigados na sua
essência – e; solidariedade. Essa última, bastante estudada por Antônio
Cândido no livro Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida, no qual se salienta que apesar de
viverem distantes uns dos outros, há um sentimento maior que os ligam e que
reforça os laços de grupo, o que se dá, por exemplo, por meio da canção ou por
meio da culinária.
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Conceito de Simone Weil, posteriormente estudado e consolidado no Brasil pela Professora
Doutora Ecléa Bosi, pioneira nos estudos de enraizamento no país, a partir do viés da Psicologia
Social.
REFERÊNCIAS
NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Ed. 34,
1999, 448 p. (Coleção Todos os Cantos).