Música Caipira e Enraizamento, Ivan Vilela

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PINTO, Ivan Vilela. Música caipira e enraizamento.

Leonardo TAVARES1
Doutorando em Língua Portuguesa – PUC/SP

Márcia Silva Pituba FREITAS2


Doutoranda em Língua Portuguesa – PUC/SP

A música caipira é uma manifestação cultural singular, de alta qualidade


poética e rítmica, arraigada nas origens da formação do povo brasileiro,
sobretudo, desde meados do século XVI, em virtude da ação bandeirante de
desbravar os sertões. Dentro desse contexto, culminou o surgimento e a
consolidação – devido à mistura de elementos europeus, indígenas e,
posteriormente, africanos – nos mais longínquos rincões paulistas, de uma
cultura oral musicada, alicerçada na narrativa e de base romântica, que reside
de certa forma, no coração e no imaginário de cada habitante citadino e
campesino da contemporaneidade.

Essa música traz consigo toda uma carga simbólica patenteada pela viola
caipira, instrumento de dez cordas que, outrora representada nas peças do
dramaturgo Gil Vicente, posteriormente, circulou entre os padres da Companhia
de Jesus e serviu aos objetivos de dominação religiosa e cultural, instaurados
pelos portugueses quando se apossaram dessa terra brasílica, em 1532.

Passados mais de três séculos, especialmente a partir da década de


1980, quando surgiu o sertanejo romântico, a canção caipira perdeu expressivo
espaço nas mídias – rádio e TV – e nas gravadoras, que passaram a contratar
produtores que estivessem em sintonia com as tendências de mercado, a fim de
viabilizar um aumento expressivo de lucro dessas empresas, a partir da
vendagem de canções “da moda”.

1 Endereço eletrônico: leonardovitavares@yahoo.com.br

2 Endereço eletrônico: marpituba@hotmail.com


Esse movimento mercadológico, desvinculado de qualquer proposta
cultural genuína, visando principalmente fins de rentabilidade econômica,
propiciou o surgimento de vários selos de menor expressão que, de certa forma,
registraram a cultura musical brasileira, nas suas mais diversas nuances, durante
algum tempo3.

Cônscio dessa temática e no intuito de provocar debate elucidativo acerca


do tema, o Grupo de Estudos Retóricos e Argumentativos – ERA, da PUC-SP,
promoveu, virtualmente, pela Plataforma Teams, a palestra Música caipira e
enraizamento. O evento integra o projeto Jornadas de Retórica 2020, que tem
por objetivo favorecer a interação de profissionais de diversas áreas da
educação, dos mais variados grupos de pesquisa, de instituições nacionais e
internacionais, a fim de serem estreitados laços pelo contato com as temáticas
que vêm sendo discutidas nas áreas de Retórica e afins. A ideia é unir e
consolidar diálogos interinstitucionais.

Na seara dessa proposta, convidamos o professor e pesquisador da


Faculdade de Música e do Programa de Pós-Graduação da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), da área de
musicologia e etnomusicologia, o Professor Doutor Ivan Vilela Pinto. Seus
escritos e pesquisas estão voltados ao estudo das culturas populares e da
música popular brasileira e portuguesa.

Ademais, o Professor Vilela atua como compositor, arranjador e


instrumentista e, atualmente, pelo triênio 2018/2021, está como pesquisador
principal do Projeto AtlaS (Atlântico Sensível), no Instituto de Etnomusicologia
da Universidade de Aveiro (Inet-md), onde estuda os trânsitos e relações sociais
de instrumentos portugueses, notadamente a viola e o cavaquinho, pelo Atlântico
Lusófono.4

3Informação constante no livro Música caipira e enraizamento: cantando a própria história, do


Professor Doutor Ivan Vilela Pinto. O livro é fruto de sua tese de doutoramento em Psicologia
Social, defendida em 2011, na Universidade de São Paulo, sob a orientação da Professora
Doutora Ecléa Bosi.
4
Informações fornecidas pelo palestrante.
Vilela iniciou sua explanação sob a tese de que a viola é um instrumento
que provoca uma ação social e não se trata de um objeto apenas, pois o
instrumento apresenta signos históricos, retratos de uma memória tanto coletiva
quanto individual que se traduzem na sua arte, no seu ponteado e nas letras das
canções. Para fundamentar esse ponto de vista, propôs que o auditório
heterogêneo5 procurasse entender a sua fala deslocada do eixo do Hemisfério
Norte, o qual é detentor de um padrão de dominação e de propagação cultural
inculcado pela mídia, e que influenciam os nossos juízos de valor acerca da
cultura popular, sobretudo, no que diz respeito à música caipira, levando-nos a
colocar num mesmo bojo interpretativo a cultura e a civilização.

Esse equívoco impregna preconceitos e cria cisões entre o saber popular


e a cultura advinda dele e o padrão de saber erudito6. Esse último, estabelecido
e cristalizado pelas classes dominantes, inclusive no Brasil República, no qual
ecoaram resquícios da filosofia comteana7 que privilegia o saber enciclopédico,
advindo do ensino acadêmico.

Cabe ainda salientar que, geralmente, quando a cultura, considerada um


saber popular, é discutida em universidades, por exemplo, há a tendência em
ser interpretada exclusivamente como aprendizado oriundo da escola ou como
conhecimento folclórico, avaliado apenas pela oralidade, o “ouvi dizer”, o que
caracteriza uma postura excludente de alguns estudiosos do tema.

5
Classificamos como auditório heterogêneo, pois, apesar de a maior parte do auditório ser
composto por professores universitários, a temática caipira, sobretudo no que toca à música
produzida e executada pelos caipiras, infelizmente, ainda é pouco conhecida no âmbito
acadêmico e quando citada e/ou estudada, é automaticamente vinculada à visão estereotipada
e elitista constante no trabalho do professor aposentado, Waldenyr Caldas, da USP. Essa
manifestação cultural abunda nas regiões interioranas do país, especialmente nas regiões
centro-oeste e sudeste, bem como nas periferias das grandes metrópoles. Logo, é conhecida
nos meios alijados do ensino formal superior.

6
Para mais profundidade acerca da diferença entre saber popular e saber erudito ler Bakhtin: A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais - Rio de
Janeiro: HUCITEC, 2010.

7
Filosofia pautada na ideia de que o conhecimento verdadeiro só pode ser obtido por meio da
experimentação e pelo aferimento científico. Segundo essa perspectiva, a ciência deve basear-
se apenas em observações cuidadosas feitas a partir da testagem sensorial.
A cultura caipira, contemporaneamente, se faz presente também na
escrita, nas diversas letras de canções que são produzidas pelas duplas que,
por meio do registro melódico-cantado em disco, narram seu tempo e colhem na
memória coletiva e individual a tradição e o habitus8, defendidos
persuasivamente, de modo a desvelar os argumentos que compõem sua
perspectiva dos acontecimentos e suas práticas sociais ao longo do seu existir.
Ivan Vilela, ao partilhar dessa visão, propôs basicamente em sua fala quatro
questões, a saber:

a) A primeira universidade surgida no Brasil foi a Universidade de São Paulo,


em 1934, após esforços para unir as Faculdades de Direito, Engenharia
e Medicina, existentes na época. Essa questão reforça o argumento
presente no princípio da fala de que há cisão entre o oral e o escrito e que
o Brasil tem a sua tradição arraigada, predominantemente no oral, uma
vez que a escola e até mesmo a universidade até então eram acessadas
apenas pelos agentes da elite, que podiam se valer das benesses do
ensino formal.

b) O advento da República adotou a filosofia comteana de valorização


exagerada do saber erudito, quando surgiram as primeiras enciclopédias
que se ocuparam de registrar a História sob o ponto de vista de quem as
escrevia. A adoção desse modelo de saber sufocou a cultura popular oral
no Brasil, olvidada aos rincões distantes da nação brasileira. Essa
imposição arbitrária ignorou a existência de pelo menos 230 danças, na
perspectiva musical, advindas do saber oral. Vê-se claramente a
predileção por uma “estampa europeia”.

c) A música caipira (do tupi kaa pir, que significa aquele que arranca o mato),
ligada à cosmologia indígena, executada por mamelucos – resultado da
mistura entre brancos e índios, posteriormente também negros –, tem por

8
Palavra latina utilizada pela tradição escolástica que traduz a noção grega de hexis, utilizada
por Aristóteles para designar então características do corpo e da alma adquiridas em um
processo de aprendizagem. Posteriormente foi também usada por Émile Durkheim, no livro A
evolução pedagógica e, mais tarde permeou todos os escritos de Pierre Bourdieu, desde 1982.
símbolo maior a viola, instrumento usado pelo padre Anchieta, incialmente
para catequizar os índios.

d) O caipira, agente do bandeirismo paulista, ao desbravar o interior ou os


sertões, difundiu essa cultura pelos rincões por onde passou. O
bandeirante foi uma espécie de “insurgente camponês” brasileiro, pois
andava descalço e tecia as próprias roupas, bem diferente da visão
romântica que o retrata com botas, chapéu, capa e armas como a
emblemática figura do bandeirante Borba Gato.

O orador – palestrante – estabeleceu um acordo com o auditório, valendo-


se de um conjunto de processos de ligação e de dissociação; essa última, no
sentido de descolar a perspectiva do auditório da visão dominante – movimento
centrífugo – e, aquela, como ponto de partida da argumentação, no sentido de
ressaltar que todos são ligados pela cultura e, mais ainda, em cada um, no
âmago, faz-se presente um tiquinho de sertão, herança registrada e cantada em
disco pelos caipiras do Brasil desde 19299.

Para cumprir o seu propósito e exemplificar a identificação do auditório,


em sua maioria acadêmicos – estudantes e professores do ensino superior, com
a canção caipira, conceituou cultura como a maneira como cada povo encontra
para se manifestar diante da vida no mundo em que vive.

Assim, ao construir esse raciocínio, o professor apresentou não somente


uma introdução de elementos culturais, mas sim, a construção de um primeiro
movimento rumo à persuasão (PERELMAN & TYTECA, 1996:73), pois o
raciocínio indutivo, cosmopolita, fez com que o auditório percebesse a existência
de mundos particulares que de algum modo se ligam pela música.

No Brasil, particularmente, ele ressaltou que a música ocupa papel


central, sobretudo, porque pode ser concebida como cronista da história de
formação do seu povo, em especial, dos povos alijados e impossibilitados de
registrar a sua história pela via da escrita. A música, portanto, foi o modo

9
Informação tirada do livro Música caipira: da roça ao rodeio, da jornalista e escritora Rosa
Nepomuceno - São Paulo: Editora 34, 1999.
encontrado por esses povos para guardar e enaltecer os seus feitos, os
acontecimentos da sua vida cotidiana e interiorana e preservar a memória de um
modus vivendi idiossincrático e interessante.

Ivan Vilela procedeu a um apanhado histórico, baseado em vultoso estudo


antropológico, histórico e sociológico, para demonstrar que a dominação de um
grupo pode se dar por meio da língua, pois língua é poder. Para isso, salientou
que até em 1727, falava-se do Sudeste ao Sul do Brasil uma língua geral10 que
facilitava a comunicação entre brancos e índios.

Mesmo com a proibição advinda de Portugal – na figura do Marquês de


Pombal –, para que a língua geral cedesse espaço definitivo à língua oficial – o
português –, a língua geral foi falada significativamente no Brasil até o final do
século XIX. A proibição justificava-se pelo receio que a Coroa Portuguesa tinha
de que, sob o domínio da língua geral, os dominados discordassem dos
princípios basilares da soberania e dominação portuguesas.

A partir desse episódio, podemos estabelecer o que a partir de agora


começará a ser chamado de fala caipira. Os tupis tinham dificuldade em
pronunciar três letras distintas que eram: F, L e R. Quando o português foi
introduzido, ele foi falado a partir da fonética do tupi. O que desafiou essas
pessoas a emitirem sons que não estavam no seu repertório de palavras e
expressões. Essa distorção na pronúncia tornou-se característica desse grupo.
Eis aí a fala do caipira.

O professor ainda afirmou que essa fala caipira só será resgatada para
fins acadêmicos, pelo pesquisador Amadeu Amaral, a partir do final do século
XIX, nas crônicas que escrevia para o jornal O Estado de São Paulo. Os estudos
empreendidos por Amaral foram tão relevantes para que viesse a público essa
manifestação linguística e cultural do caipira, com o rigor de uma pesquisa
exaustiva e séria, que resultou em dois livros: Tradições populares e O dialeto
caipira.

10
Resultante dos primeiros estudos do padre Anchieta para unir a língua tupi ao português
lusitano. A língua chama-se nhengatu. Foi extinta há mais de um século.
Com isso, aos poucos, em alguns nichos, esfacelou-se aquela imagem
caricata do caipira, representada outrora no teatro, nas peças de Artur Azevedo,
desde 1897, em virtude do abandono que a cidade de São Paulo empreendeu à
sua própria cultura para aspirar à modernidade, no estilo das metrópoles
europeias. Para frisar ainda mais a riqueza dessa cultura, valemo-nos da
observação de Xidieh (1993:23) de que os “grupos ditos rústicos e caboclos nos
ensinaram quanto a sua cultura é coesa consigo mesma e como os elementos
que a compõem se interpenetram e se autenticam em todos os momentos de
sua vida”.

São Paulo, originalmente recanto caipira, na contramão dessa concepção,


nesse momento, passa a negar a sua cultura e adotar os modismos estrangeiros,
ostentados pela elite paulistana. Foi nesse contexto que surgiu a canção caipira
em disco, nascida e produzida a partir de dejetos urbanos de cultura do século
XIX. Ainda, segundo Vilela, a genuína cultura popular brasileira foi gestada nos
séculos XVIII e XIX, não antes.

Essa canção, banida para as periferias, foi alvo de interesse do jornalista


tieteense Cornélio Pires11, o qual fez suas primeiras aparições em São Paulo, a
partir de 1910, no Colégio Mackenzie. Desde então, com Cornélio há uma hiper
exaltação do caipira nas apresentações que fazia embebidas de música e
causos e, também, nos livros que escreveu que resgatavam o modo genuíno de
falar do caipira, sem as “correções” esperadas em conformidade com a norma
gramatical padrão.

Essa postura de Pires ia de encontro a do escritor e jornalista Monteiro


Lobato, que em suas obras delineou um achaque aos caipiras e ao seu modo de
vida.12 Por fim, Valdomiro Silveira foi feliz ao compor a imagem do caipira como
um ser humano comum, que está propenso às paixões e aos conflitos que
permeiam o existir.

11
Cornélio Pires foi o primeiro a gravar e comercializar, em disco, a canção caipira do interior de
São Paulo.

12
SOUZA, Walter. Moda inviolada: uma história da música caipira. Coordenação Ricardo O.
Oliveira.- São Paulo: Quiron, 2005.
Na visão de Ivan Viela, com a qual concordamos, a música caipira opera
como eixo de manutenção de valores da tradição oral. Ao narrar eventos da vida
cotidiana, registrados em forma de letras de canções, o tipo caipira promove o
(re)enraizamento13 da sua origem e das suas convicções na Paulicéia,
sobretudo, após o período de grande industrialização que se deu no Brasil a
partir de 1950.

Pela via da arte, o caipira difunde a sua mensagem, a sua interpretação


dos fatos e recupera na memória, o seu habitus. Esse movimento, retórico por
excelência, imprime no auditório – ouvintes dos discos caipiras e das rádios –
novas significações e perspectivas acerca do amor, da política, das contendas
existentes na vida em sociedade.

Esse ethos estável, que o caipira constrói para o auditório, foi observado
e classificado moralmente por Oliveira Viana, assim, ele expõe que o caipira é
dotado de honestidade; fidelidade à palavra dada; independência moral – no
que diz respeito a separar, lucidamente, gratidão de valores arraigados na sua
essência – e; solidariedade. Essa última, bastante estudada por Antônio
Cândido no livro Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida, no qual se salienta que apesar de
viverem distantes uns dos outros, há um sentimento maior que os ligam e que
reforça os laços de grupo, o que se dá, por exemplo, por meio da canção ou por
meio da culinária.

Ivan concluiu a palestra com a intenção de reforçar que os caipiras


habitantes das periferias das metrópoles, uma vez que impossibilitados, de
alguma forma, ao retorno físico às origens, o fazem simbolicamente pelo viés da
música, ou seja, ressignificam valores basilares grupais e individuais e, por meio
das letras e melodias, atingem pessoas pela via da sensibilidade. O caipira é um
antagonista de um tempo em que o ter suplanta o ser.

13
Conceito de Simone Weil, posteriormente estudado e consolidado no Brasil pela Professora
Doutora Ecléa Bosi, pioneira nos estudos de enraizamento no país, a partir do viés da Psicologia
Social.
REFERÊNCIAS

CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira


paulista e a transformação dos seus meios de vida. 11ª ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2010.

NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Ed. 34,
1999, 448 p. (Coleção Todos os Cantos).

PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da


Argumentação: a nova retórica. Prefácio de Fábio Ulhôa Coelho e tradução de
Maria Ermantina Galvão G. Pereira. - São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PINTO, Ivan Vilela. Cantando a própria história: Música Caipira e


Enraizamento. Prefácio de Alfredo Bosi – São Paulo: EDUSP, 2015.

SOUSA, Walter. Moda inviolada: uma história da música caipira. Coordenação


Ricardo O. Oliveira. São Paulo: Quiron, 2005.

XIDIEH, Oswaldo Elias. Narrativas Populares: Estórias de Nosso Senhor Jesus


Cristo e mais São Pedro Andando pelo Mundo. Introdução de Alfredo Bosi. – São
Paulo: EDUSP, 1993. (Reconquista do Brasil; v.73).

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