A Decepção
A Decepção
A Decepção
A DECEPÇÃO:
Não há quem não tenha relatos pessoais, ou histórias para contar dentro de uma Casa de
Santo que não tenha experimentado a decepção.
Isto talvez porque o Candomblé seja uma Religião atípica, na qual os adeptos tratam os
sacerdotes como “pais” e “mães”.
O convívio no Terreiro faz com que em pouco tempo crie-se um elo consistente que
aproxima estranhos, de idades, cores, culturas, origens e educações distintas ao ponto de
torná-los “pais” e “filhos”. E esta relação muitas vezes acaba por suprir, ou reproduzir
as dinâmicas das famílias biológicas.
Cada obrigação, seja ela iniciática ou periódica, acaba por demandar toda esta
mobilização daquela comunidade em torno do “recolhido” (obrigacionado).
Nesse momento, por mais que a comunidade sinta, é o sacerdote que sofre o maior
impacto, já que ele lidera o egbé e é ele quem cria o mais intenso laço de união com o
frequentador, ou filho da Casa.
Há a quebra de um elo. E esse rompimento traz consigo a decepção e a tristeza de saber
que a dedicação devotada não foi correspondida e quase sempre não foi sequer
compreendida.
Abraçaram, beberam e festejaram junto à comunidade. Não raro, custeados pelos até
então “pais”, “mães” e “irmãos” de outrora.
A decepção acaba por ser uma terrível armadilha que fere de surpresa os sacerdotes e
membros do egbe.
Por mais experientes que sejam e por mais que se digam preparados para lidar com ela,
a decepção sempre age como uma lâmina gelada perfurando o peito.
Claro que algumas decepções são maiores, ou piores. Mas sempre este sentimento se
revela fruto das próprias expectativas criadas (porque não dizer: fantasiadas) em torno
de filhos de santo e frequentadores da Casa.
O desejo de que aquela pessoa traga alegrias, que seja amiga fiel ao zelador e à Casa,
geram uma expectativa que, quando rompida pela decepção, desmorona como um
castelo de areia, que diante de uma onde furtiva, se transforma rapidamente em
escombros tão diferentes da beleza lúdica que tinha.
Diante da decepção, muitos e bons pais e mães de santo sofreram tanto que não tiveram
mais forças para prosseguir com seu sacerdócio.
É difícil, quase impossível prevenir-se contra a decepção. Quem ama espera, sonha, se
dedica. Não há como chamar alguém de filho e não criar expectativas. E também não há
como ser chamado de pai e banalizar esta relação, tornando-se frio como uma pedra de
gelo ambulante.
O sacerdote é como um professor, que prepara os alunos a cada ano, mas que nem
sempre participará da formatura deles. O sacerdote prepara os filhos, se preparando
também para não mais os ver.
Não sei se ameniza, ou consola, mas encarar os atos de dedicação aos filhos, como
sendo devotados unicamente em prol dos Orixás e não em prol das pessoas, muda um
pouco a configuração das coisas. Assim se, ou quando, a decepção chegar, teremos a
consciência tranquila de que o objetivo principal foi sempre atingido. Logo, se o filho
decepcionar, saberemos que o Orixá foi bem servido e atendido e por isso reconhecerá
sempre, na cabeça do filho ingrato, ou não, aquilo que foi feito por ele.
Mas a única atitude realmente eficaz e propedêutica contra a decepção é tentar respeitar
o momento de cada um. Antes de criar sonhos e gerar expectativas acerca daquele filho,
precisamos antes enxergá-lo como pessoa. Uma pessoa que não é nossa. E como pessoa
livre, ele terá seu tempo para amadurecer, terá suas chances de errar e sua própria forma
de fazer escolhas (certas e erradas).
É sempre bom lembrarmos que, como pessoas que somos, também já decepcionamos
muita gente que nos amava e muitas que criaram expectativas diante de nós. Por
inúmeras vezes fomos e somos imaturos e egoístas ao ponto de agirmos sem considerar
o sentimento dos outros. Isso nos faz iguais e tão falíveis quanto aqueles que nos
feriram.
Uma avaliação honesta sobre cada caso, feita ainda que silenciosamente pelos
envolvidos, é sempre bem vinda. O tempo se encarrega do restante. Tempo também é
Orixá.
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