A Decepção

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A Decepção!

A DECEPÇÃO:

Certamente todos os sacerdotes de Candomblé já se depararam com este sentimento. A


decepção é a emoção mais recorrente dentre as queixas daqueles que comandam uma
comunidade de Terreiro.

Não há quem não tenha relatos pessoais, ou histórias para contar dentro de uma Casa de
Santo que não tenha experimentado a decepção.

Isto talvez porque o Candomblé seja uma Religião atípica, na qual os adeptos tratam os
sacerdotes como “pais” e “mães”.

O convívio no Terreiro faz com que em pouco tempo crie-se um elo consistente que
aproxima estranhos, de idades, cores, culturas, origens e educações distintas ao ponto de
torná-los “pais” e “filhos”. E esta relação muitas vezes acaba por suprir, ou reproduzir
as dinâmicas das famílias biológicas.

A relação ainda se avoluma, porque no Candomblé a ritualística implica em períodos


longos de recolhimento no Terreiro, aumentando a convivência e aproximando as
pessoas por dias e às vezes semanas contínuas.

Cada obrigação, seja ela iniciática ou periódica, acaba por demandar toda esta
mobilização daquela comunidade em torno do “recolhido” (obrigacionado).

E esta mobilização redunda em certos sacrifícios que todos os envolvidos se dispõem a


fazer em prol do outro. Isto implica em abdicar durante estes períodos de bebidas
alcoólicas, sexo, festas, compromissos pessoais, do convívio de sua família biológica e
do conforto de seu próprio lar para participar das obrigações dormindo dias seguidos no
Terreiro.

Tudo isto indiscutivelmente propicia um sentimento coletivo de solidariedade, mas


também de decepção, quando algum desses membros abandona a comunidade.

Nesse momento, por mais que a comunidade sinta, é o sacerdote que sofre o maior
impacto, já que ele lidera o egbé e é ele quem cria o mais intenso laço de união com o
frequentador, ou filho da Casa.
Há a quebra de um elo. E esse rompimento traz consigo a decepção e a tristeza de saber
que a dedicação devotada não foi correspondida e quase sempre não foi sequer
compreendida.

Pior quando esta decepção vem adicionada a falatórios e fofocas de conhecidos em


comum, que revelam que aquele que deixou o Terreiro ainda saiu se queixando, ou
criticando a própria Casa e o sacerdote que tanto se dedicou a ele.

Muitas vezes são anos de preparação, informação, esclarecimentos e ensinamentos


diversos. Tempo em que se investiram esperanças no futuro daquele filho. Anos durante
os quais este mesmo filho teve suas atitudes compreendidas, corrigidas e perdoadas pelo
sacerdote. Mas diante dos menores ou dos mais inusitados motivos, ele se revolta, se
enche de razões para discordar de determinadas decisões. Achando-se injustiçado e
dono da verdade, simplesmente vai embora sem nem dizer um simples “obrigado”, ou
ao menos despedir-se, como a decência e a boa educação recomendam a qualquer um.

Muitos destes que se sentem vítimas, incompreendidos e revoltados, no momento de dor


e de necessidade, foram acolhidos pela Casa, por seus membros e sacerdotes que lhes
deram amparo, roupas, comida, teto e força espiritual quando mais precisaram.

Abraçaram, beberam e festejaram junto à comunidade. Não raro, custeados pelos até
então “pais”, “mães” e “irmãos” de outrora.

No momento da dor e da necessidade, proferiram juras de amor e fidelidade à Casa,


gestos e homenagens de uma gratidão que parecia sincera e inabalável… Para no
momento seguinte, tudo se dissipar como o vento, sem nem sabermos onde foi parar
toda aquela amizade e gentileza.

A decepção acaba por ser uma terrível armadilha que fere de surpresa os sacerdotes e
membros do egbe.

Por mais experientes que sejam e por mais que se digam preparados para lidar com ela,
a decepção sempre age como uma lâmina gelada perfurando o peito.

Claro que algumas decepções são maiores, ou piores. Mas sempre este sentimento se
revela fruto das próprias expectativas criadas (porque não dizer: fantasiadas) em torno
de filhos de santo e frequentadores da Casa.

O desejo de que aquela pessoa traga alegrias, que seja amiga fiel ao zelador e à Casa,
geram uma expectativa que, quando rompida pela decepção, desmorona como um
castelo de areia, que diante de uma onde furtiva, se transforma rapidamente em
escombros tão diferentes da beleza lúdica que tinha.

Diante da decepção, muitos e bons pais e mães de santo sofreram tanto que não tiveram
mais forças para prosseguir com seu sacerdócio.

Outros revoltaram-se de tal maneira, que transformaram o amor paterno em ódio,


rebaixando filhos à condição de inimigos mortais.
A decepção é dor. E dor é difícil de descrever. Só quem sente consegue entende-la em
sua amplitude.

É difícil, quase impossível prevenir-se contra a decepção. Quem ama espera, sonha, se
dedica. Não há como chamar alguém de filho e não criar expectativas. E também não há
como ser chamado de pai e banalizar esta relação, tornando-se frio como uma pedra de
gelo ambulante.

O sacerdote é como um professor, que prepara os alunos a cada ano, mas que nem
sempre participará da formatura deles. O sacerdote prepara os filhos, se preparando
também para não mais os ver.

Não sei se ameniza, ou consola, mas encarar os atos de dedicação aos filhos, como
sendo devotados unicamente em prol dos Orixás e não em prol das pessoas, muda um
pouco a configuração das coisas.  Assim se, ou quando, a decepção chegar, teremos a
consciência tranquila de que o objetivo principal foi sempre atingido. Logo, se o filho
decepcionar, saberemos que o Orixá foi bem servido e atendido e por isso reconhecerá
sempre, na cabeça do filho ingrato, ou não, aquilo que foi feito por ele.

Mas a única atitude realmente eficaz e propedêutica contra a decepção é tentar respeitar
o momento de cada um. Antes de criar sonhos e gerar expectativas acerca daquele filho,
precisamos antes enxergá-lo como pessoa. Uma pessoa que não é nossa. E como pessoa
livre, ele terá seu tempo para amadurecer, terá suas chances de errar e sua própria forma
de fazer escolhas (certas e erradas).

É sempre bom lembrarmos que, como pessoas que somos, também já decepcionamos
muita gente que nos amava e muitas que criaram expectativas diante de nós. Por
inúmeras vezes fomos e somos imaturos e egoístas ao ponto de agirmos sem considerar
o sentimento dos outros. Isso nos faz iguais e tão falíveis quanto aqueles que nos
feriram.

Uma avaliação honesta sobre cada caso, feita ainda que silenciosamente pelos
envolvidos, é sempre bem vinda. O tempo se encarrega do restante. Tempo também é
Orixá.

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Texto: Babalorixá Márcio de Jagun 

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