As Cavernas de Aco (Serie Dos R - Isaac Asimov
As Cavernas de Aco (Serie Dos R - Isaac Asimov
As Cavernas de Aco (Serie Dos R - Isaac Asimov
Introdução
1 • Conversa com um Comissário
2 • Idas e vindas em uma via expressa
3 • Incidente em uma sapataria
4 • Apresentado a uma família
5 • Análise de um assassinato
6 • Sussurros em um quarto
7 • Visita à Vila Sideral
8 • Discussão sobre um robô
9 • Esclarecimentos de um sideral
10 • A tarde de um investigador
11 • Fuga pelas faixas
12 • A opinião de um especialista
13 • Apontando para a máquina
14 • O poder de um nome
15 • A prisão de um conspirador
16 • Questões sobre um motivo
17 • A conclusão de um projeto
18 • O fim de uma investigação
Notas de rodapé
Créditos e copyright
INTRODUÇÃO
– ISAAC ASIMOV
NOVA YORK
Lije Baley tinha acabado de chegar à sua mesa quando percebeu
que R. Sammy o observava com ansiedade.
As graves linhas do seu rosto comprido endureceram.
– O que você quer?
– O chefe quer falar com você, Lije. Agora mesmo. Assim que
chegasse.
– Tudo bem.
R. Sammy ficou parado, sem expressão.
Baley disse:
– Eu disse tudo bem. Vá embora!
R. Sammy virou as costas e saiu para ocupar-se de suas
obrigações. Irritado, Baley se perguntava por que essas obrigações
não poderiam ser feitas por um homem.
Ele parou para examinar o conteúdo de sua bolsa de tabaco e
fazer alguns cálculos mentais. Com duas cachimbadas por dia,
poderia fazer o tabaco durar até a entrega da próxima cota.
Então ele saiu de trás da divisória (dois anos antes, sua
classificação lhe dera direito a um canto com uma divisória) e
atravessou o salão.
Simpson levantou os olhos de um arquivo no leitor de mercúrio
enquanto Baley passava.
– O chefe quer falar com você, Lije.
– Eu sei. R. Sammy me disse.
Uma fita com dados condensados e codificados saía do leitor de
mercúrio enquanto o pequeno instrumento procurava e analisava a
própria “memória” em busca da informação desejada, armazenada
em minúsculos padrões de vibração na superfície luminosa do
mercúrio contido no aparelho.
– Eu chutaria o traseiro do R. Sammy se não tivesse medo de
quebrar a perna – disse Simpson. – Eu vi Vince Barrett outro dia.
– Oh.
– Ele queria o emprego de volta. Ou qualquer emprego no
Departamento de Polícia. O pobre rapaz está desesperado, mas o
que eu podia dizer a ele? R. Sammy está fazendo o trabalho dele e
isso é tudo. O garoto tem que fazer entregas nas regiões produtoras
de leveduras. Além disso, ele era um rapaz esperto. Todos
gostavam dele.
Baley encolheu os ombros e disse de um modo mais firme do
que pretendia ou do que sentia:
– É uma situação que todos estamos enfrentando.
O chefe tinha direito a um escritório particular por conta do cargo
que ocupava. Estava escrito JULIUS ENDERBY no vidro opaco.
Letras bonitas. Cuidadosamente entalhadas no vidro. Embaixo
estava escrito COMISSÁRIO DE POLÍCIA, CIDADE DE NOVA
YORK.
Baley entrou e disse:
– Queria me ver, Comissário?
Enderby levantou os olhos. Ele usava óculos porque tinha olhos
sensíveis e não tolerava as lentes de contato comuns. Só se podia
identificar o restante de seu rosto, que era bastante comum, quando
se acostumava com os óculos. Baley sabia bem que o Comissário
os valorizava porque lhe emprestavam personalidade e suspeitava
que os olhos do chefe não eram tão sensíveis assim.
Definitivamente, o Comissário parecia nervoso. Ele ajustou os
punhos, recostou-se e disse com demasiada avidez:
– Sente-se, Lije. Sente-se.
Baley se sentou com as costas retas e esperou.
Enderby perguntou:
– Como está Jessie? E o garoto?
– Bem – respondeu Baley, de modo vago. – Estão bem. E sua
família?
– Bem – repetiu Enderby. – Estão bem.
O começo da conversa tinha sido um alarme falso.
Baley pensou: há algo errado com o rosto dele.
Em voz alta, ele disse:
– Comissário, gostaria que não mandasse R. Sammy me
procurar.
– Sabe como me sinto sobre esse tipo de coisa, Lije. Mas o
colocaram aqui e tenho que usá-lo para algo.
– É desagradável, Comissário. Ele me avisa que você quer falar
comigo e fica lá. Sabe o que eu quero dizer. Preciso mandá-lo
embora, se não ele continua lá.
– Ah, isso é culpa minha, Lije. Passei a ele o recado que deveria
entregar e me esqueci de dizer especificamente que era para ele
voltar ao trabalho quando acabasse.
Baley suspirou. As finas rugas ao redor de seus olhos de um
castanho intenso ficaram mais acentuadas.
– De qualquer maneira, você queria me ver.
– Sim, Lije – disse o Comissário –, mas é algo que não será nada
fácil.
Ele levantou-se, afastou-se e caminhou até a parede atrás de
sua mesa. Ele tocou um interruptor imperceptível e uma parte da
parede ficou transparente.
Baley piscou com o inesperado surgimento de uma luz
acinzentada.
O Comissário sorriu.
– Eu providenciei isto especialmente ano passado, Lije. Acho que
não mostrei a você antes. Venha aqui e dê uma olhada. Nos velhos
tempos, todos os escritórios tinham coisas assim. Chamavam-se
“janelas”. Você sabia disso?
Baley sabia muito bem disso, pois tinha visto muitos romances
históricos.
– Ouvi falar delas.
– Venha aqui.
Baley sentiu-se um pouco constrangido, mas fez o que o chefe
pediu. Havia algo de indecente em expor a privacidade de um
escritório ao mundo lá fora. Às vezes, o Comissário levava seu
apreço pelo Medievalismo ao extremo, o que era um tanto ridículo.
Como seus óculos, Baley pensou.
Era isso! Era por isso que parecia haver algo errado com ele.
– Perdão, Comissário – Baley arriscou –, mas está usando
óculos novos, não está?
O Comissário olhou para ele levemente surpreso, tirou os óculos,
olhou para eles e depois para Baley. Sem os óculos, seu rosto
redondo parecia mais redondo e seu queixo, um pouquinho mais
pronunciado. Ele parecia mais vago, também, uma vez que não
conseguia focar os olhos de modo adequado.
– Sim – ele confessou.
Ele colocou os óculos de volta no nariz, e então acrescentou com
muita raiva:
– Quebrei meus óculos antigos há três dias. Entre uma coisa e
outra, eu não consegui substituí-los até hoje de manhã. Lije, esses
três dias foram um inferno.
– Por conta dos óculos?
– E por outras coisas também. Estou chegando lá.
Ele se virou para a janela e Baley fez o mesmo. Baley percebeu,
com alguma surpresa, que estava chovendo. Por um minuto, ele se
perdeu no espetáculo da água caindo do céu, enquanto o
Comissário demonstrava um tipo de orgulho, como se ele fosse
responsável pelo fenômeno.
– Esta é a terceira vez este mês que observo a chuva. É uma
vista e tanto, não acha?
Contra a sua vontade, Baley teve que admitir para si mesmo que
era impressionante. Em seus 42 anos, raras vezes ele tinha visto a
chuva, ou qualquer fenômeno da natureza, na verdade.
Ele disse:
– Sempre parece um desperdício toda essa água cair sobre a
cidade. Ela deveria cair apenas sobre os reservatórios.
– Lije – disse o Comissário –, você é um modernista. Esse é o
problema. Nos tempos Medievais, as pessoas viviam ao ar livre.
Não digo apenas nas fazendas. Quero dizer nas cidades também.
Mesmo em Nova York. Quando chovia, eles não pensavam nisso
como um desperdício. Eles se alegravam com a chuva. Viviam
próximos à natureza. É mais saudável, é melhor. Os problemas da
vida moderna se originam do fato de vivermos afastados da
natureza. Leia sobre o Século do Carvão um dia desses.
Baley tinha lido. Ele tinha ouvido muitas pessoas lamentarem a
invenção da pilha atômica. Ele mesmo lamentava essa invenção
quando as coisas davam errado ou quando se cansava. Lamentar
dessa forma era uma característica inata da natureza humana. No
Século do Carvão, as pessoas lamentavam a invenção da máquina
a vapor. Em uma das peças de Shakespeare, um personagem
lamentava a invenção da pólvora. Mil anos depois, no futuro,
estariam lamentando a invenção do cérebro positrônico.
Que se dane.
– Escute, Julius. – Baley começou, em um tom severo. (Ele não
tinha o hábito de tratar o Comissário com intimidade durante o
expediente, não importava quantas vezes o chamasse de “Lije”, mas
a ocasião parecia pedir por algo assim.) – Escute, Julius, você falou
sobre tudo, exceto sobre por que eu vim até aqui, e isso está me
deixando preocupado. O que foi?
O Comissário disse:
– Estou chegando lá, Lije. Deixe-me fazer isso do meu jeito. É...
é problema.
– Claro. E o que não é neste planeta? Mais problemas com os
R’s?
– De certa forma, sim, Lije. Fico aqui e me pergunto quantos
problemas mais o antigo mundo pode suportar. Quando instalei essa
janela, eu não estava apenas deixando o céu entrar de vez em
quando. Eu deixo a Cidade entrar. Olho para ela e penso o que será
dela daqui a um século?
Baley sentia repulsa pelo sentimentalismo do outro, mas se viu
olhando para fora, fascinado. Mesmo com o tempo fechado, a
Cidade era uma coisa extraordinária de se ver. O Departamento de
Polícia estava nos andares superiores da Prefeitura, que situava-se
em um edifício alto. A partir da janela do Comissário, as torres
vizinhas se apequenavam e seus telhados ficavam visíveis. Eram
muitos dedos apontando para cima. Suas paredes eram brancas,
sem graça. Eram a casca exterior das colmeias humanas.
– De certa forma – comentou o Comissário –, sinto muito que
esteja chovendo. Não podemos ver a Vila Sideral.
Baley olhou para o oeste, mas, como disse o Comissário, não
dava para ver nada. O horizonte estava escuro. As torres de Nova
York foram tomadas pela névoa e se desvaneceram em uma
brancura total.
– Eu sei como a Vila Sideral é – resmungou Bailey.
– Gosto de como ela é vista daqui – insistiu o Comissário. – Pode
ser avistada na lacuna que se formava entre os dois Setores
Brunswick. Cúpulas baixas espalhadas. É a diferença entre nós e os
Siderais. Nossas construções vão até bem alto e estão abarrotadas
de gente. Entre eles, cada família tem uma Cúpula. Uma família,
uma casa. E terra entre uma Cúpula e outra. Você já conversou com
algum dos Siderais, Lije?
– Poucas vezes. Um mês atrás, falei com um deles bem aqui no
seu intercomunicador – Baley disse, pacientemente.
– Sim, eu me lembro. Mas estou filosofando. Nós e eles.
Diferentes modos de vida.
Baley estava começando a sentir um aperto no estômago.
Quanto mais tortuosa a abordagem do Comissário, ele acreditava
que mais fatal poderia ser o desfecho. Então retrucou:
– Tudo bem. Mas o que há de tão surpreendente nisso? Não é
possível espalhar oito bilhões de pessoas pela Terra em pequenas
Cúpulas. Eles têm espaço no mundo deles, então deixe-os viver do
jeito deles.
O Comissário andou em direção à sua cadeira e sentou-se.
Olhou para Baley sem piscar, seus olhos um pouco encolhidos pelas
lentes côncavas dos óculos, e falou:
– Nem todo mundo é tão tolerante quanto às diferenças culturais.
Nem entre nós nem entre os Siderais.
– Tudo bem. E daí?
– Há três dias, um Sideral morreu.
Agora estava vindo à tona. Os cantos dos lábios finos de Baley
se ergueram um pouco, mas o efeito sobre seu rosto longo e triste
foi imperceptível. Ele disse:
– É uma pena. Algo contagioso, eu espero. Um vírus. Uma gripe,
talvez.
O Comissário parecia perplexo.
– Do que você está falando?
Baley não se preocupou em explicar. A precisão com a qual os
Siderais tinham erradicado as doenças de suas sociedades era bem
conhecida. O cuidado com o qual eles evitavam, tanto quanto
possível, o contato com os terráqueos repletos de doenças era
ainda mais conhecido. Mas o sarcasmo passou despercebido pelo
Comissário.
Baley respondeu:
– Só estou falando. De que ele morreu?
E virou-se de novo para a janela.
O Comissário disse:
– Ele morreu pela falta de um tórax. Alguém explodiu o peito dele
com um desintegrador.
As costas de Baley enrijeceram. Sem se virar, ele disse:
– Do que você está falando?
– Estou falando sobre assassinato – disse o Comissário
brandamente. – Você é um investigador. Você sabe o que é um
assassinato.
Agora Baley virou-se.
– Mas um Sideral? Três dias atrás?
– Sim.
– Mas quem fez isso? Como?
– Os Siderais dizem que foi um terráqueo.
– Não pode ser.
– Por que não? Você não gosta dos Siderais. Eu não gosto.
Quem na Terra gosta? Alguém não gostava deles um pouco além da
conta, é isso.
– Claro, mas...
– Houve aquele incêndio nas fábricas em Los Angeles. Houve o
linchamento dos R’s em Berlim. Houve tumultos em Xangai.
– Certo.
– Tudo isso aponta para um descontentamento crescente. Talvez
para algum tipo de organização.
Baley disse:
– Comissário, eu não entendo. Está me testando por alguma
razão?
– O quê?
O Comissário parecia verdadeiramente perplexo.
Baley o observava.
– Três dias atrás, um Sideral foi assassinado e os Siderais
acham que o assassino é um terráqueo. Até agora – ele batia na
mesa com o dedo – nada foi descoberto. Correto? Comissário, isso
é inacreditável. Por Josafá, Comissário, uma coisa dessas varreria
Nova York da face da Terra se realmente acontecesse.
O Comissário negou com a cabeça.
– Não é tão simples assim. Olhe, Lije, eu estive fora por três dias.
Tive uma conferência com o prefeito. Estive na Vila Sideral. Estive
em Washington, conversando com o DTI, o Departamento Terrestre
de Investigações.
– Oh? E o que o pessoal do DTI tinha a dizer?
– Eles disseram que o caso é nosso. Está dentro dos limites da
Cidade. A Vila Sideral está sob a jurisdição de Nova York.
– Mas com direitos extraterritoriais.
– Eu sei. Vou chegar lá.
O Comissário desviou seus olhos do olhar duro do investigador.
Ele parecia se considerar rebaixado de repente à posição do
subalterno de Baley, e este se comportava como se aceitasse o fato.
– Os Siderais podem comandar o espetáculo – disse Baley.
– Espere um minuto, Lije – implorou o Comissário. – Não me
apresse. Estou tentando discutir isso de amigo para amigo. Quero
que saiba a minha posição. Eu estava lá quando a notícia veio à
tona. Eu ia me encontrar com ele... com Roj Nemennuh Sarton.
– A vítima?
– A vítima – o Comissário suspirou de forma sofrida. – Cinco
minutos a mais e eu mesmo teria descoberto o corpo. Que choque
teria sido. Do jeito como foi, foi muito brutal. Eles me encontraram e
me contaram. E iniciou-se um pesadelo de três dias, Lije. Isso, além
de enxergar tudo embaçado e não ter tempo de substituir meus
óculos durante dias. Pelo menos isso não vai acontecer de novo. Eu
encomendei três.
Baley refletia sobre a imagem que o Comissário evocou do
acontecimento. Ele podia ver os vultos altos e esbeltos dos Siderais
se aproximando do Comissário e revelando as notícias do seu modo
direto, sem emoção. Julius teria tirado os óculos e os teria limpado.
Inevitavelmente, com o impacto do acontecimento, ele os teria
deixado cair, depois teria olhado para o vidro quebrado com um
tremor nos lábios macios e carnudos. Baley tinha quase certeza de
que, por cinco minutos, o Comissário ficou muito mais perturbado
com os óculos do que com o assassinato.
O Comissário estava dizendo:
– É uma posição dos infernos. Como você diz, os Siderais têm
direitos extraterritoriais. Eles podem insistir em ter uma investigação
própria e fazer qualquer notificação que quiserem para o seu próprio
governo. Os Mundos Exteriores poderiam usar isso como uma
desculpa para acumular pedidos de indenização. Você sabe como a
população veria isso.
– Concordar em pagar seria um suicídio político para a Casa
Branca.
– E não pagar seria outro tipo de suicídio.
– Não precisa descrever em detalhes – resmungou Baley. Ele era
um garotinho quando os cruzadores brilhantes do espaço sideral
enviaram soldados para Washington, Nova York e Moscou pela
última vez para cobrar o que eles alegavam que era deles.
– Veja bem. Pagando ou não pagando, temos problemas. A única
saída é encontrar o assassino por nossa conta e entregá-lo aos
Siderais. Depende de nós.
– Por que não entregar o caso ao DTI? Mesmo que seja da
nossa jurisdição do ponto de vista jurídico, há a questão das
relações interestelares...
– O DTI não quer mexer com isso. É uma batata quente e está
nas nossas mãos.
Por um momento, ele levantou a cabeça e olhou atentamente
para o seu subordinado.
– E isso não é bom, Lije. Todos nós corremos o risco de perder o
emprego.
Baley disse:
– Substituir todos nós? Loucura. Não existem homens treinados
para ocupar nosso lugar.
– R’s – disse o Comissário. – Eles existem.
– O quê?
– R. Sammy é apenas o começo. Ele transmite recados. Outros
podem patrulhar as vias expressas. Droga, cara, conheço os
Siderais melhor do que você, e eu sei o que eles estão fazendo.
Tem R’s que podem fazer o seu trabalho e o meu. Podemos ser
desclassificados. Não pense que não. E, na nossa idade, voltar ao
mercado de trabalho...
Baley disse, bruscamente:
– Tudo bem.
O Comissário parecia desconcertado.
– Sinto muito, Lije.
Baley acenou com a cabeça e tentou não pensar no pai. O
Comissário conhecia a história, com certeza.
– Quando surgiu essa história de substituição? – perguntou
Baley.
– Olhe, Lije, você está sendo ingênuo. Esteve acontecendo todo
esse tempo. Está acontecendo há 25 anos, desde que os Siderais
vieram. Você sabe disso. Está começando a se intensificar, só isso.
Se falharmos neste caso, estaremos colocando em risco a tão
esperada aposentadoria. Por outro lado, Lije, se conduzirmos bem o
caso, afastaremos esse risco. E seria uma excelente oportunidade
para você.
– Para mim?
– Você será o detetive responsável, Lije.
– Não tenho classificação para esse trabalho, Comissário. Tenho
apenas o grau C-5.
– Você quer passar para o grau C-6, não quer?
Se ele queria? Baley sabia dos privilégios que uma classificação
C-6 trazia. Um assento na via expressa na hora do rush, e não
apenas das dez às quatro. Mais opções no cardápio das cozinhas
comunitárias da Seção. Talvez até um apartamento melhor e uma
cota de entradas para os andares do Solário para Jessie.
– Eu quero – ele respondeu. – Claro. Por que não ia querer? Mas
o que aconteceria se eu não conseguisse resolver o caso?
– Por que não resolveria, Lije? – O Comissário tentava seduzi-lo
com palavras. – Você é um bom homem. É um dos melhores que
temos.
– Mas há meia dúzia de homens com uma classificação mais alta
na minha seção do departamento. Por que eles deveriam ser
deixados de lado?
Baley não disse em voz alta, embora o comportamento do
Comissário deixasse bem claro, que o chefe não costumava ignorar
o protocolo dessa maneira a não ser em casos de extrema
emergência.
O Comissário cruzou as mãos.
– Por dois motivos. Você não é apenas mais um detetive para
mim, Lije. Somos amigos também. Não me esqueço de que
estudamos juntos na faculdade. Às vezes, pode parecer que eu me
esqueci, mas é por conta do sistema de classificação. Eu sou
Comissário, e você sabe o que isso significa. Mas ainda sou seu
amigo e essa é uma oportunidade fantástica para a pessoa certa.
Quero que você tenha essa oportunidade.
– Esse é um dos motivos – insistiu Baley, sem entusiasmo.
– O segundo motivo é que eu acho que você é meu amigo.
Preciso de um favor.
– Que tipo de favor?
– Quero que aceite um parceiro Sideral nessa jogada. Essa foi a
condição exigida pelos Siderais. Eles concordaram em não notificar
o assassinato; concordaram em deixar a investigação nas nossas
mãos. Em troca, eles insistem em que um de seus próprios agentes
faça parte da investigação, do começo ao fim.
– Parece que eles não confiam totalmente em nós.
– Você, com certeza, entende o ponto de vista deles. Se as
coisas forem mal conduzidas, vários deles terão problemas com
seus próprios governos. Vou dar-lhes o benefício da dúvida, Lije.
Quero acreditar que estão bem-intencionados.
– Tenho certeza de que estão, Comissário. Esse é o problema.
O Comissário pareceu não entender, mas continuou:
– Você está disposto a aceitar um parceiro Sideral, Lije?
– Esse é o favor que está me pedindo?
– Sim, estou pedindo para você aceitar o trabalho com todas as
condições que os Siderais estabeleceram.
– Eu aceito um parceiro Sideral, Comissário.
– Obrigado, Lije. Ele terá que morar com você.
– Ei, espere aí.
– Eu sei, eu sei. Mas você tem um apartamento grande, Lije. Três
cômodos. Apenas um filho. Você pode hospedá-lo. Ele não será um
problema. De modo algum. E é necessário.
– Jessie não vai gostar disso. Tenho certeza.
– Diga a Jessie – o Comissário estava determinado, tão
determinado que parecia que seus olhos iriam furar as lentes dos
óculos que obstruíam seu olhar – que se fizer isso por mim, vou
fazer o que puder para que, quando tudo acabar, você pule um grau.
C-7, Lije, C-7!
– Tudo bem, Comissário, combinado.
Baley levantou-se um pouco da cadeira, viu a expressão no rosto
de Enderby e sentou-se de novo.
– Mais alguma coisa?
Lentamente, o Comissário acenou que sim.
– Mais uma coisa.
– O quê?
– O nome do seu parceiro.
– Que diferença isso faz?
– Os Siderais – disse o Comissário – fazem as coisas de um jeito
estranho. O parceiro que eles vão enviar não é... não é...
Baley arregalou os olhos.
– Espere um pouco!
– É preciso, Lije. É preciso. Não há como escapar.
– Ficar no meu apartamento? Uma coisa dessas?
– Como amigo, por favor!
– Não. Não!
– Lije, não posso confiar em mais ninguém para isso. Preciso
explicar para você? Temos que trabalhar com os Siderais. Temos
que conseguir, se quisermos manter afastadas da Terra as naves
em busca de indenização. Mas não podemos obter êxito do modo
como costumávamos fazer. Você será parceiro de um dos R’s deles.
Se ele resolver o caso, se puder notificar que somos incompetentes,
de qualquer forma, será o nosso fim. Nosso, do nosso
departamento. Você entende isso, não entende? Então, você tem
uma tarefa delicada nas mãos. Terá que trabalhar com ele, mas
certifique-se de que seja você a resolver o caso e não ele.
Entendido?
– Você quer dizer cooperar com ele em tudo, mas cortar a
garganta dele? Dar um tapinha nas costas segurando uma faca na
mão?
– O que mais podemos fazer? Não temos outra opção.
Lije Baley continuava indeciso.
– Não sei o que Jessie vai dizer.
– Eu falo com ela, se você quiser.
– Não, Comissário. – Ele soltou um suspiro profundo.
– Qual é o nome do meu parceiro?
– R. Daneel Olivaw.
Desanimado, Baley resmungou:
– Não temos tempo para eufemismos, Comissário. Vou aceitar o
trabalho, então vamos usar seu nome completo. Robô Daneel
Olivaw.
Havia a multidão costumeira na via expressa: os que ficam de pé no
andar de baixo e os que têm privilégios que lhes garantem o direito
de se sentar no andar de cima. Um pequeno e contínuo fluxo de
humanidade era filtrado pela via expressa, através das faixas de
desaceleração que levavam às vias locais ou aos corredores
estacionários, as quais passavam por baixo dos arcos e por cima
das pontes, levando aos intermináveis labirintos das Seções da
Cidade. Outro fluxo, igualmente contínuo, corria do outro lado,
através das faixas de aceleração e em direção à via expressa.
Havia infinitas luzes: as paredes e os tetos luminosos que
pareciam gotejar frescor, e até fosforescência; os anúncios
animados clamando por atenção; o brilho irritante e regular dos
“vaga-lumes” que indicavam SIGA ESTE CAMINHO PARA AS
SEÇÕES DE JERSEY, SIGA AS FLECHAS PARA O CIRCULAR DE
EAST SIDE, VÁ AO NÍVEL SUPERIOR PARA TODOS OS
CAMINHOS ÀS SEÇÕES DE LONG ISLAND.
Acima de tudo, havia o barulho que era inseparável à vida: o som
de milhares de pessoas conversando, rindo, tossindo, ligando para
alguém, cantarolando, respirando.
Não havia indicações do caminho para a Vila Sideral em lugar
algum, pensou Baley.
Ele passou de uma faixa à outra com a facilidade de quem
praticou a vida toda. As crianças aprendiam a “pular as faixas”
assim que aprendiam a andar. Baley mal sentia o solavanco da
aceleração enquanto sua velocidade aumentava a cada passo. Ele
nem percebia que se inclinava para a frente, contra a força. Em
trinta segundos, ele tinha chegado à última faixa, a de 95
quilômetros por hora, e podia embarcar na via expressa, uma
plataforma móvel e envidraçada sobre trilhos.
Não havia indicações do caminho para a Vila Sideral, pensou
Baley.
As indicações não eram necessárias. Se você tem algo a tratar
lá, você sabe o caminho. Se não sabe o caminho, não tem nada a
tratar lá. Quando a Vila Sideral foi estabelecida, 25 anos antes,
havia uma forte tendência a fazer dela uma atração turística. As
multidões da Cidade seguiam em rebanhos naquela direção.
Os Siderais puseram um fim naquilo. Educadamente (eles
sempre eram educados), mas sem qualquer comprometimento com
a noção de tato, ergueram uma barreira de força entre eles e a
Cidade. Eles estabeleceram uma combinação de Serviço de
Imigração com Inspeção Aduaneira. Se você tivesse algo a tratar lá,
você se identificava, permitia que o revistassem, se submetia a um
exame médico e a uma desinfecção de rotina.
Como era de se esperar, isso gerou insatisfação. Mais
insatisfação do que a situação merecia. Insatisfação suficiente para
atravancar o programa de modernização. Baley se lembrava das
Revoltas da Barreira. Ele fizera parte da multidão que tinha se
pendurado nos trilhos da via expressa, lotado os assentos
desrespeitando os privilégios de classificação, corrido de forma
descuidada entre uma faixa e outra, correndo o risco de se quebrar
inteiro e permanecido do lado de fora da barreira de força da Vila
Sideral por dois dias, gritando slogans e destruindo patrimônio da
Cidade por pura frustração.
Baley ainda podia se lembrar das músicas criadas naquela época
se se empenhasse. Uma delas era “O homem nasceu na mãe Terra,
você sabia?”, baseada em uma antiga melodia tradicional com o
refrão cantarolado, “rinki-dinki-parlê-vú2”.
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Visitante, prossiga.
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As luzes se apagaram.
Baley continuou acordado. Ele mal percebeu quando a
respiração de Bentley se tornou mais profunda, regular e um pouco
pesada. Quando ele se virou, notou, de alguma forma, a presença
de R. Daneel, sentado em uma cadeira, solenemente imóvel e com
o rosto voltado para a porta.
Então ele dormiu e, quando dormiu, teve um sonho.
Ele sonhou que Jessie estava caindo na câmara de fissão de
uma usina de energia nuclear, ela caía sem parar. Ela estendia os
braços em direção a ele, gritando, mas tudo o que ele conseguia
fazer era ficar paralisado bem diante de uma linha escarlate e ver o
vulto distorcido da mulher enquanto ela caía, seu vulto ficando cada
vez menor até se tornar apenas um ponto.
Tudo o que ele conseguia fazer era observá-la, no sonho,
sabendo que tinha sido ele mesmo que a empurrara.
Elijah Baley levantou os olhos quando o Comissário Julius Enderby
entrou no escritório. Abatido, ele acenou com a cabeça.
O Comissário olhou para o relógio e resmungou:
– Não me diga que passou a noite aqui!
– Não vou dizer – retrucou Baley.
O Comissário disse em voz baixa:
– Algum problema ontem à noite?
Baley negou com a cabeça.
– Andei pensando e acho que posso ter menosprezado a
possibilidade de haver um tumulto – comentou o Comissário. – Se
houve algo...
Baley interrompeu com firmeza:
– Pelo amor de Deus, Comissário, se algo tivesse acontecido, eu
diria. Não houve nenhum tipo de problema.
– Tudo bem.
O Comissário se afastou e passou pela porta que demarcava
aquela privacidade fora do comum que denotava seu cargo elevado.
Baley olhou para ele e pensou: ele deve ter dormido ontem à
noite.
O investigador se debruçou sobre o relatório que estava tentando
escrever para encobrir as atividades que tinham realmente
acontecido nos últimos dois dias, mas as palavras que ele tinha
escolhido a dedo se embaralhavam e lhe escapavam. Aos poucos,
percebeu que havia um objeto de pé ao lado da sua mesa.
Ele ergueu o olhar.
– O que você quer?
Era R. Sammy. Baley pensou: o lacaio particular de Julius. Vale a
pena ser Comissário.
R. Sammy falou, por entre seu sorriso tolo:
– O Comissário quer vê-lo, Lije. Agora mesmo, ele disse.
Baley fez um sinal com a mão.
– Ele acabou de me ver. Diga a ele que vou lá mais tarde.
R. Sammy repetiu:
– Agora mesmo, ele disse.
– Tudo bem. Tudo bem. Vá embora.
O robô se afastou, tagarelando:
– O Comissário quer vê-lo, Lije. Agora mesmo.
– Por Josafá – Baley resmungou entredentes. – Já vou. Já vou.
Ele se levantou da mesa, dirigiu-se ao escritório do chefe, e R.
Sammy ficou em silêncio.
Baley explodiu no momento em que entrou no escritório:
– Droga, Comissário, será que dá para não mandar aquela coisa
me procurar?
Mas o Comissário apenas disse:
– Sente-se, Lije. Sente-se.
Baley se sentou e ficou olhando. Talvez ele tivesse sido injusto
com o velho Julius. Talvez o homem não tivesse dormido, afinal. Ele
parecia exausto.
O Comissário estava tamborilando um papel diante dele.
– Há um registro de uma ligação segura por mecanismo de feixe
isolado que você fez para um tal dr. Gerrigel em Washington.
– Sim, Comissário.
– Não há nenhum registro da conversa, naturalmente, já que foi
uma ligação por uma linha segura. Do que se trata?
– Quero informações mais detalhadas.
– Ele é roboticista, não é?
– Isso mesmo.
O Comissário deixou o beiço cair um pouco e, de repente,
parecia uma criança prestes a ficar amuada.
– Mas com que propósito? Que tipo de informação você está
procurando?
– Não tenho certeza, Comissário. Só tenho a sensação de que,
em um caso como este, informações sobre robôs podem ajudar.
Baley ficou de boca calada depois disso. Ele não ia dizer nada
específico, e isso era tudo.
– Não sei, Lije. Não sei. Não acho que seja prudente.
– Alguma objeção, Comissário?
– Quanto menos pessoas souberem sobre isso, melhor.
– Vou contar a ele o menos possível. É claro.
– Ainda não acho que seja prudente.
Baley estava se sentindo infeliz o bastante para perder a
paciência.
– É uma ordem para que eu não o veja? – ele questionou.
– Não, não. Faça como achar adequado. Você é que está
chefiando esta investigação. É só que...
– Só o quê?
O Comissário meneou a cabeça.
– Nada. Onde está ele? Sabe de quem estou falando.
Baley sabia. Ele respondeu:
– Daneel ainda está na sala de arquivos.
O Comissário fez uma longa pausa e então comentou:
– Não estamos progredindo muito, sabe.
– Não progredimos muito até agora. No entanto, as coisas
podem mudar.
– Muito bem, então – finalizou o Comissário, mas não fez cara de
quem achava mesmo que estava tudo bem.
R. Daneel estava na mesa de Baley quando este voltou.
– Bem, e o que você achou? – perguntou Baley bruscamente.
– Terminei uma primeira, embora rápida, busca pelos arquivos,
parceiro Elijah, e localizei duas das pessoas que tentaram nos
seguir ontem à noite e que, além do mais, estavam na sapataria
durante o primeiro incidente.
– Vejamos.
R. Daneel colocou pequenas fichas do tamanho de selos diante
de Baley. Elas estavam marcadas com os pontinhos que serviam
como código. O robô também mostrou um decodificador portátil e
colocou uma das fichas na abertura apropriada. Os pontinhos
tinham propriedades de condução de eletricidade diferentes das
propriedades do resto do cartão. O campo elétrico que passava pelo
cartão sofreu, por conseguinte, uma distorção extremamente
específica e, em resposta a essa característica, a tela de três por
seis polegadas do decodificador se encheu de palavras, palavras
que, corretamente convertidas, teriam preenchido várias folhas de
papel de tamanho padrão para relatório. Além do mais, as palavras
não poderiam ser interpretadas por alguém que não possuísse um
decodificador oficial da polícia.
Baley leu o material, impassível. A primeira pessoa era Francis
Clousarr, que tinha 33 anos na época em que fora preso, dois anos
antes; motivo da prisão, provocação de tumulto; funcionário da
Leveduras Nova York; endereço residencial, tal e tal; filiação, fulano
e ciclana; cabelo, olhos, sinais particulares, histórico educacional,
histórico profissional, perfil psicoanalítico, perfil físico, informações
daqui, informações dali e, por fim, uma menção a uma foto
tridimensional na galeria dos criminosos.
– Você verificou a fotografia? – perguntou Baley.
– Sim, Elijah.
A segunda pessoa era Gerhard Paul. Baley deu uma olhada no
material que estava naquela ficha e disse:
– Isso não é nada bom.
– Estou certo de que não pode ser – R. Daneel concordou. – Se
existe uma organização de terráqueos capazes de cometer o crime
que estamos investigando, estes são membros dela. Não é evidente
que deveríamos considerar essa possibilidade? Eles não deveriam
ser interrogados?
– Não conseguiríamos tirar nada deles.
– Eles estavam lá, tanto na sapataria quanto na cozinha. Eles
não podem negar isso.
– Só estar lá não é crime. Além do que, eles podem negar.
Podem meramente dizer que não estavam lá. É simples assim.
Como podemos provar que estão mentindo?
– Eu os vi.
– Isso não é prova – disse Baley, com severidade. – Nenhum
tribunal, se algum dia isso chegasse a acontecer, acreditaria que
você consegue se lembrar de dois rostos no meio de uma multidão.
– É óbvio que eu posso.
– Claro. Diga a eles o que você é. No momento em que fizer isso,
deixará de ser testemunha. A sua espécie não tem status jurídico de
testemunha em nenhum tribunal da Terra.
– Devo entender, então, que você mudou de ideia – comentou R.
Daneel.
– O que quer dizer?
– Ontem, na cozinha, você disse que não havia necessidade de
prendê-los. Você disse que, desde que eu me lembrasse dos rostos
deles, poderíamos prendê-los a qualquer momento.
– Bem, eu não pensei direito – disse Baley. – Eu estava louco.
Não dá para fazer isso.
– Nem por motivos psicológicos? Eles não saberiam que não
temos nenhuma prova legal de sua cumplicidade na conspiração.
Tenso, Baley interveio:
– Olhe, estou esperando o dr. Gerrigel, de Washington, daqui a
meia hora. Você se importa de esperar até ele ir embora? Você se
importa?
– Vou esperar – disse R. Daneel.
***
Anthony Gerrigel era um homem de estatura mediana, cortês e
muito educado, mas que não aparentava ser um dos maiores
roboticistas da Terra. Ele estava quase vinte minutos atrasado,
aparentemente, e não parava de pedir desculpas. Baley, pálido de
raiva, vinda de sua ansiedade, dispensou os pedidos de perdão sem
sutileza. Ele conferiu sua reserva para a Sala de Reuniões D,
insistiu que eles não deveriam ser interrompidos por motivo algum
pela próxima hora e conduziu o dr. Gerrigel e R. Daneel por um
corredor, rampa acima e através de uma porta que levava a uma
das câmaras à prova de feixes-duplos isolados.
Baley verificou as paredes cautelosamente antes de se sentar,
ouvindo o zunido do pulsômetro que tinha na mão, esperando
qualquer diminuição do som constante que indicasse uma falha,
mesmo que pequena, no isolamento. Ele verificou o teto, o chão e,
com mais cautela ainda, a porta. Não havia nenhuma falha.
O dr. Gerrigel deu um sorrisinho. Ele parecia ser um homem que
nunca dava mais que um sorrisinho. O esmero com que se vestia só
poderia ser descrito como exagero. Seu cabelo, de um tom cinzento
escuro, estava cuidadosamente penteado para trás e seu rosto
estava rosado e parecia ter sido lavado pouco antes. Sentara-se
com uma postura empertigada e rígida, como se repetidos
conselhos maternos durante a juventude sobre a necessidade de
uma boa postura tivessem enrijecido sua coluna para sempre.
– Você faz tudo isso parecer formidável – ele disse a Baley.
– É muito importante, doutor. Preciso de informações sobre robôs
que talvez só o senhor possa me dar. Tudo o que dissermos aqui, é
claro, deve permanecer em sigilo absoluto e as autoridades da
Cidade esperarão que o senhor se esqueça de tudo quando for
embora.
Baley olhou para o relógio.
O sorrisinho no rosto do roboticista desapareceu. Ele falou:
– Deixe-me explicar por que estou atrasado. – Essa questão
obviamente lhe pesava. – Decidi não vir de avião. Fico enjoado.
– Que pena – resmungou Baley.
Ele guardou o pulsômetro depois de verificar suas configurações
padrão para se certificar, uma última vez, de que não havia nada de
errado com o aparelho, e sentou-se.
– Não exatamente enjoado, mas nervoso. Uma leve agorafobia.
Não é nada de mais, mas acontece. Então peguei as vias
expressas.
Baley sentiu um forte e súbito interesse.
– Agorafobia?
– Eu faço parecer pior do que é – disse o roboticista de imediato.
– É apenas a sensação que dá quando estamos em um avião. Já
viajou em um, sr. Baley?
– Várias vezes.
– Então deve saber o que quero dizer. É aquela sensação de
estar rodeado pelo nada; de que uma mera polegada é o que nos
separa da... da atmosfera. É muito incômodo.
– Então o senhor veio pela via expressa?
– Sim.
– De lá de Washington até Nova York?
– Ah, eu já fiz isso antes. Desde que construíram o túnel entre
Baltimore e Filadélfia, é bastante simples.
E era mesmo. Baley nunca tinha feito essa viagem, mas sabia
muito bem que era possível. Washington, Baltimore, Filadélfia e
Nova York tinham crescido, nos dois últimos séculos, a ponto de
todas estarem quase encostadas uma na outra. A Área das Quatro
Cidades era praticamente o nome oficial da faixa litorânea inteira, e
havia um número considerável de pessoas que apoiavam a
consolidação administrativa e a formação de uma única super-
Cidade. Baley não concordava com isso. A Cidade de Nova York
sozinha já era quase grande demais para ser administrada por um
governo centralizado. Uma Cidade maior, com uma população de
mais de 50 milhões de pessoas, desmoronaria sob o próprio peso.
– O problema foi que eu perdi uma conexão no Setor Chester,
em Filadélfia, e perdi tempo – explicou o dr. Gerrigel. – Isso, e certa
dificuldade em conseguir a designação temporária de um quarto,
acabaram fazendo com que me atrasasse.
– Não se preocupe com isso, doutor. O que o senhor diz,
entretanto, é interessante. Em vista da sua aversão a aviões, o que
acha da ideia de sair dos limites da Cidade a pé, dr. Gerrigel?
– Por que motivo? – Ele parecia perplexo, e não apenas um
pouco apreensivo.
– É somente uma pergunta retórica. Não estou sugerindo que o
senhor deveria fazer isso de fato. Apenas quero saber o que lhe
parece essa ideia, é só.
– Não me parece nada agradável.
– Imagine que o senhor tivesse que sair da Cidade à noite e
percorrer uns 800 metros ou mais pelo campo.
– E-eu acho que ninguém me convenceria a fazer isso.
– Mesmo se fosse por algo muito importante?
– Se fosse para salvar a minha vida ou a vida da minha família,
eu poderia tentar... – Ele parecia constrangido. – Posso perguntar
por que motivo o senhor me faz essas perguntas, sr. Baley?
– Vou lhe dizer. Um grave crime foi cometido, um assassinato
particularmente chocante. Não posso revelar os detalhes. No
entanto, há uma teoria de que o assassino, a fim de cometer o
crime, fez o que estávamos discutindo: atravessou o campo à noite
e sozinho. Eu estava me perguntando que tipo de homem faria isso.
O dr. Gerrigel encolheu os ombros.
– Ninguém que eu conheça. Eu com certeza não faria. É claro
que, entre milhões de pessoas, é possível que o senhor encontre
alguns indivíduos destemidos.
– Mas o senhor diria que é uma coisa muito provável para um ser
humano fazer?
– Não. Com certeza, não é provável.
– De fato, se houver qualquer outra explicação para o crime,
qualquer outra que seja concebível, ela deveria ser levada em
consideração.
O dr. Gerrigel parecia mais incomodado do que nunca, sentado
daquela maneira, empertigado, com as mãos bem cuidadas sobre
as pernas.
– O senhor tem alguma explicação alternativa em mente?
– Sim. Ocorreu-me a ideia de que um robô, por exemplo, não
teria dificuldade nenhuma em atravessar o campo.
O dr. Gerrigel se levantou.
– Senhor!
– O que foi?
– Quer dizer que um robô pode ter cometido o crime?
– Por que não?
– Um assassinato? De um ser humano?
– Sim. Por favor, sente-se, doutor.
O roboticista fez o que lhe foi pedido. E então considerou:
– Sr. Baley, há duas ações envolvidas: atravessar o campo e
assassinar alguém. Um ser humano poderia realizar a segunda com
facilidade, mas acharia difícil realizar a primeira. Um robô
conseguiria realizar a primeira com facilidade, mas a segunda ação
lhe seria completamente impossível. Se o senhor quiser substituir
uma teoria improvável por uma impossível...
– Impossível é uma palavra muito pesada, doutor.
– Já ouviu falar da Primeira Lei da Robótica, sr. Baley?
– É claro. Posso até citá-la: um robô não pode ferir um ser
humano ou, por inação, permitir que um ser humano venha a ser
ferido. – De repente, Baley apontou o dedo para o roboticista e
continuou: – Por que um robô não pode ser construído sem a
Primeira Lei? O que há de tão sagrado nela?
O dr. Gerrigel pareceu surpreso, e então deu uma risadinha
abafada:
– Ah, sr. Baley.
– Bem, qual é a resposta?
– De fato, sr. Baley, se o senhor conhecer pelo menos um pouco
sobre robótica, deve saber o trabalho gigantesco que envolve, tanto
do ponto de vista matemático quanto do eletrônico, a construção de
um cérebro positrônico.
– Eu faço ideia – retrucou Baley.
Ele se lembrava bem de uma visita que tinha feito a uma fábrica
de robôs uma vez por questões de trabalho. Ele tinha visto a
filmoteca da fábrica, com livro-filmes longos, cada um deles
contendo a análise matemática de um único tipo de cérebro
positrônico. Levava mais de uma hora em média para que um filme
desses fosse visto em uma velocidade padrão de exibição, embora
seus simbolismos estivessem condensados. E não havia dois
cérebros semelhantes, mesmo quando preparados de acordo com
as mais rígidas especificações. Baley entendia que isso era uma
consequência do Princípio da Incerteza de Heisenberg. Isso
significava que anexos envolvendo as possíveis variações tinham
que ser acrescentados a cada filme.
Ah, isso envolvia muito trabalho, é verdade. Baley não poderia
negar.
O dr. Gerrigel continuou:
– Pois bem, então o senhor deve entender que um projeto para
um novo tipo de cérebro positrônico, mesmo um cérebro no qual
estejam envolvidas apenas inovações secundárias, não é uma
questão a ser resolvida com uma noite de trabalho. Em geral,
envolve toda a equipe de pesquisa de uma fábrica de porte médio e
pode levar algo perto de um ano. Mesmo essa quantidade enorme
de trabalho não seria suficiente se a teoria básica de tais circuitos
não tivesse sido padronizada e não pudesse ser usada como base
para maiores aperfeiçoamentos. A teoria básica padrão envolve as
Três Leis da Robótica: a Primeira Lei, que o senhor citou; a
Segunda Lei, segundo a qual “um robô deve obedecer às ordens
dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens
entrem em conflito com a Primeira Lei”, e a Terceira Lei, segundo a
qual “um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal
proteção não entre em conflito com a Primeira ou com a Segunda
Lei”. Entende?
R. Daneel, que, aparentemente, estava acompanhando a
conversa com muita atenção, começou a falar.
– Se me permite, Elijah, gostaria de verificar se segui o raciocínio
do dr. Gerrigel corretamente. O que o senhor está sugerindo é que
qualquer tentativa de construir um robô, no qual o funcionamento do
cérebro positrônico não seja orientado pelas Três Leis, exigiria
primeiro a estruturação de uma nova teoria básica e que isso, por
sua vez, levaria muitos anos.
O roboticista parecia muito satisfeito.
– É exatamente isso o que eu quis dizer, senhor...
Baley esperou um instante, e então apresentou R. Daneel com
cautela:
– Este é Daneel Olivaw, dr. Gerrigel.
– Bom dia, sr. Olivaw. – O dr. Gerrigel estendeu a mão e
cumprimentou R. Daneel. Então continuou: – Pelas minhas
estimativas, seriam necessários 50 anos entre o desenvolvimento
da teoria básica para um cérebro positrônico não Asenion (ou seja,
um cérebro em que os pressupostos básicos das Três Leis não
foram ativados) até que se chegue a um ponto em que seria
possível construir robôs semelhantes aos modelos modernos.
– E isso nunca foi feito? – perguntou Baley. – Quero dizer, doutor,
que estamos construindo robôs por alguns milhares de anos. Em
todo esse tempo, nenhuma pessoa ou grupo teve à sua disposição
50 anos em uma pesquisa desse tipo?
– Com certeza – respondeu o roboticista –, mas é o tipo de
trabalho que ninguém ia querer fazer.
– Acho difícil de acreditar. A curiosidade humana é capaz de criar
de tudo.
– Mas ela não criou um tipo de robô não Asenion. A raça
humana, sr. Baley, tem um forte complexo de Frankenstein.
– Um o quê?
– É um nome popular originado de um romance Medieval que
descrevia um robô que se voltava contra o seu criador. Eu mesmo
nunca li o romance. Mas isso não vem ao caso. O que quero dizer é
que simplesmente não se constroem robôs que não tenham a
Primeira Lei.
– E não existe nenhuma teoria para isso?
– Não que seja do meu conhecimento, e o meu conhecimento –
ele deu um sorriso tímido – é bem amplo.
– E um robô que tenha a Primeira Lei incorporada a ele não
poderia matar um homem?
– Nunca. A não ser que o ato de matar fosse completamente
acidental ou que tal ação fosse necessária para salvar a vida de
dois ou mais homens. Em qualquer um dos casos, o potencial
positrônico incorporado arruinaria por completo o cérebro.
– Tudo bem – disse Baley. – Isso representa a situação na Terra.
Certo?
– Sim. Com certeza.
– E quanto aos Mundos Exteriores?
Um pouco da autoconfiança do dr. Gerrigel pareceu esvair-se.
– Oh, meu caro sr. Baley, não posso dizer, não tenho
conhecimento disso, mas estou certo de que, se algum dia
projetassem cérebros positrônicos do tipo não Asenion ou
estabelecessem a teoria matemática, ouviríamos falar sobre isso.
– Ouviríamos? Bem, deixe-me seguir outra linha de raciocínio na
minha mente, dr. Gerrigel. Espero que não se importe.
– Não. De forma alguma. – Impotente diante da situação, ele
olhou primeiro para Baley e depois para R. Daneel. – Afinal de
contas, se é tão importante quanto o senhor diz que é, fico satisfeito
em fazer tudo o que puder.
– Obrigado, doutor. A minha pergunta é: por que robôs
humanoides? Quer dizer, a minha vida inteira achei que fosse algo
natural, mas agora me ocorre que eu não sei a razão de sua
existência. Por que um robô deveria ter uma cabeça e quatro
membros? Por que deveria se parecer mais ou menos com um
homem?
– O senhor quer dizer por que eles não deveriam ser construídos
de um modo funcional, como outras máquinas?
– Correto – disse Baley. – Por que não?
O dr. Gerrigel deu um sorrisinho.
– Sr. Baley, o senhor é muito jovem. Nos primeiros textos da
literatura da área da robótica, é recorrente o debate dessa questão,
e a polêmica envolvida foi assustadora. Se quiser uma referência
muito boa das controvérsias entre funcionalistas e antifuncionalistas,
posso recomendar A história da robótica, de Hanford. As menções
aos aspectos matemáticos são mínimas. Acredito que o achará
muito interessante.
– Vou dar uma olhada – disse Baley, com paciência. – Enquanto
isso, pode me dar uma ideia do que se trata?
– A decisão foi tomada com base em questões econômicas. Veja
bem, sr. Baley, se o senhor estivesse supervisionando uma fazenda,
o senhor gostaria de construir um trator com um princípio
positrônico, uma segadeira, uma charrua, uma ordenhadeira, um
automóvel, e assim por diante, todos com um cérebro positrônico,
ou preferiria ter maquinaria comum, desprovida desse princípio, com
um único robô positrônico para utilizar tudo? Eu o advirto de que a
segunda alternativa representa apenas um cinquenta avos ou um
centésimo das despesas.
– Mas por que a forma humana?
– Porque a forma humana é a forma geral mais bem-sucedida
em toda a natureza. Não somos animais especializados, sr. Baley, a
não ser pelo nosso sistema nervoso e por uma característica ou
outra. Se o que se quer é um modelo capaz de fazer um grande
número e uma grande variedade de coisas, todas razoavelmente
bem feitas, não há nada melhor do que imitar a forma humana. Além
disso, toda a nossa tecnologia se baseia na forma humana. Os
controles de um automóvel, por exemplo, são feitos para ser
segurados e manipulados com mais facilidade por mãos e pés
humanos de certo tamanho e forma, unidos ao corpo por membros
de certo comprimento e juntas de certo tipo. Mesmo objetos simples
como as cadeiras e as mesas, ou as facas e os garfos, são
projetados para satisfazer as necessidades das medidas humanas e
do modo como funciona o corpo humano. É mais fácil fazer robôs
que imitam a forma humana do que reformular radicalmente a
filosofia das nossas ferramentas.
– Entendo. Faz sentido. Mas não é verdade, doutor, que os
roboticistas nos Mundos Exteriores fabricam robôs muito mais
humanoides do que os nossos?
– Acredito que sim.
– Eles poderiam fabricar um robô tão humanoide que ele
pudesse se passar por um humano em condições normais?
O dr. Gerrigel ergueu a sobrancelha e refletiu sobre aquilo.
– Acredito que poderiam, sr. Baley. Seria terrivelmente caro.
Duvido que o resultado pudesse ser lucrativo.
– O senhor acredita – continuou Baley, incansável – que eles
poderiam fazer um robô capaz de enganar o senhor e levá-lo a
pensar que ele é humano?
O roboticista riu entre os dentes.
– Ah, meu caro sr. Baley. Eu duvido. Sério. Um robô não é só
aparên...
O dr. Gerrigel emudeceu antes de terminar a palavra. Aos
poucos, ele se voltou para R. Daneel e seu rosto rosado ficou
pálido.
– Minha nossa – ele sussurrou. – Minha nossa!
Ele esticou o braço e tocou o rosto de R. Daneel com cuidado. R.
Daneel não se afastou; ao contrário, fitou o roboticista com
tranquilidade.
– Valha-me Deus – disse o dr. Gerrigel, com algo que era quase
um soluço na voz. – Você é um robô.
– Levou bastante tempo para o senhor perceber isso – disse
Baley, secamente.
– Eu não esperava por isso. Nunca vi um como este. É de
fabricação dos Mundos Exteriores?
– Sim – disse Baley.
– Agora é evidente. O modo como ele se comporta. A maneira de
falar. Não é uma imitação perfeita, sr. Baley.
– Mas é muito boa, não é?
– Oh, é maravilhosa. Duvido que alguém pudesse reconhecê-lo
como uma imitação à primeira vista. Estou muito grato ao senhor
por me colocar cara a cara com ele. Posso examiná-lo?
O roboticista se levantou, ansioso.
Baley o deteve, fazendo um gesto com a mão.
– Por favor, doutor. Daqui a pouco. Primeiro, a questão do
assassinato, sabe.
– Então é verdade? – O dr. Gerrigel estava profundamente
decepcionado e demonstrou isso. – Pensei que fosse só uma
estratégia para manter a minha mente ocupada e ver por quanto
tempo eu poderia ser enganado pelo...
– Não é uma estratégia, dr. Gerrigel. Agora me diga, para
construir um robô tão humanoide quanto esse, com o propósito
específico de que ele se passe por um humano, não é necessário
fazer com que seu cérebro possua propriedades tão próximas do
cérebro humano quanto possível?
– Com certeza.
– Muito bem. Será que esse cérebro humanoide não poderia ser
construído sem a Primeira Lei? Talvez não tivesse sido incorporada
acidentalmente. O senhor diz que a teoria é desconhecida. O
próprio fato de ser desconhecida significa que os construtores
poderiam montar um cérebro sem a Primeira Lei. Eles não saberiam
o que evitar.
O dr. Gerrigel negou veementemente com a cabeça.
– Não. Não. Impossível.
– Tem certeza? Podemos testar a Segunda Lei, é claro. Daneel,
dê-me seu desintegrador.
Baley não tirou os olhos do robô em momento algum. Com a mão
abaixada e de lado, ele segurava com firmeza sua própria pistola.
R. Daneel falou calmamente:
– Aqui está, Elijah.
E entregou a arma a ele, com o cabo da arma voltado para o
investigador.
– Um investigador nunca deve abandonar seu desintegrador –
Baley comentou –, mas um robô não tem escolha a não ser
obedecer a um humano.
– Exceto, sr. Baley – disse o dr. Gerrigel –, quando esse ato
envolve a violação da Primeira Lei.
– O senhor sabe, doutor, que Daneel apontou a arma para um
grupo de pessoas desarmadas e ameaçou atirar nelas?
– Mas não atirei – emendou Daneel.
– De acordo, mas a ameaça em si foi incomum, não foi, doutor?
O dr. Gerrigel mordeu os lábios.
– Preciso saber das circunstâncias exatas para avaliar. Parece
incomum.
– Então, leve isso em consideração. R. Daneel estava no local no
momento do assassinato e, se o senhor excluir a possibilidade de
um terráqueo ter atravessado o campo carregando uma arma
consigo, Daneel, apenas Daneel, de todas as pessoas no local,
poderia ter escondido a arma.
– Escondido a arma? – perguntou o dr. Gerrigel.
– Deixe-me explicar. O desintegrador usado no assassinato não
foi encontrado. Fizeram uma busca minuciosa na cena do crime e a
arma não foi encontrada. No entanto, ela não poderia ter
desaparecido como fumaça. Há somente um lugar onde ela poderia
estar, somente um lugar onde eles não teriam pensado em procurar.
– Onde, Elijah? – perguntou R. Daneel.
Baley deixou a arma à vista, com o cano da arma firmemente
apontado na direção do robô.
– No seu compartimento de comida – ele respondeu. – No seu
compartimento de comida, Daneel!
– Não foi o que aconteceu – disse R. Daneel, com tranquilidade.
– É? Deixemos que o dr. Gerrigel decida. Dr. Gerrigel?
– Sr. Baley?
O roboticista, cujo olhar passava desvairadamente do
investigador para o robô enquanto eles falavam, fixou-o no ser
humano.
– Eu o chamei aqui para que fizesse uma análise oficial desse
robô. Posso providenciar uma permissão para que use os
laboratórios no Departamento de Padrões da Cidade. Se o senhor
precisar de algum equipamento que eles não têm, eu consigo para o
senhor. O que eu quero é uma resposta rápida e definitiva sem me
preocupar com os gastos e encerrar a questão.
Baley se levantou. Suas palavras tinham surgido de um modo
calmo o bastante, mas encerravam uma histeria cada vez maior
dentro de si. Naquele momento, sentia que, se pudesse agarrar o dr.
Gerrigel pelo pescoço e arrancar dele as declarações necessárias
sufocando-o, ele facilmente abriria mão de toda a ciência.
– E então, dr. Gerrigel? – Baley insistiu.
O dr. Gerrigel riu nervosamente e disse:
– Meu caro sr. Baley, não preciso de um laboratório.
– Por que não? – perguntou Baley, apreensivo.
O investigador estava lá, parado, com os músculos tensos,
sentindo espasmos.
– Não é difícil testar a Primeira Lei. Nunca tive que testá-la,
compreende, mas é bastante simples.
Baley inspirou pela boca e soltou o ar vagarosamente. Então
perguntou:
– Poderia explicar o que quer dizer? Está dizendo que pode
testá-lo aqui?
– Sim, claro. Veja, sr. Baley, vou fazer uma analogia. Se eu fosse
médico e tivesse que testar a taxa de açúcar no sangue de um
paciente, precisaria de um laboratório químico. Se eu tivesse que
medir a taxa metabólica basal ou testar a função cortical, ou
examinar seus genes para localizar uma má-formação congênita,
precisaria de equipamentos complicados. Por outro lado, eu poderia
verificar se ele é cego apenas passando a mão diante dos olhos
dele ou verificar se está morto apenas sentindo seu pulso. O que
estou tentando dizer é que, quanto mais importante e fundamental é
a propriedade que está sendo testada, mais simples é o
equipamento necessário. É a mesma coisa com um robô. A Primeira
Lei é fundamental. Ela afeta tudo. Se não estivesse presente, o robô
não poderia reagir apropriadamente de várias formas.
Enquanto ele falava, pegou um objeto plano e preto que se
expandiu, formando um pequeno visualizador de livros. Ele inseriu
uma peça bem desgastada no receptáculo. Então pegou um
cronômetro e uma série de pequenas lâminas brancas de plástico
que se encaixavam para formar algo que parecia uma régua de
cálculo com três guias deslizantes independentes. As notações que
havia nela não pareciam familiares a Baley.
O dr. Gerrigel bateu de leve no visualizador de livros e deu um
sorrisinho, como se a perspectiva de ter um pouco de trabalho de
campo o alegrasse.
Ele disse:
– É o meu Manual de Robótica. Não vou a lugar algum sem ele.
Faz parte do meu vestuário.
Ele deu uma risadinha acanhada.
Colocou a lente do visor diante dos olhos e, com os dedos, tocou
delicadamente os controles. O visor zuniu e parou, zuniu e parou.
– Índice incorporado – disse o roboticista, com orgulho e com a
voz um pouco abafada por conta do modo como o visor cobria sua
boca. – Eu mesmo o construí. Poupa bastante tempo. Mas não é
esse o objetivo agora, é? Vejamos. Humm, não quer trazer a sua
cadeira mais perto de mim, Daneel?
R. Daneel fez isso. Enquanto o roboticista se preparava, ele
observava de perto, impassível.
Baley mudou seu desintegrador de posição.
O que aconteceu em seguida o deixou confuso e desapontado. O
dr. Gerrigel começou a fazer perguntas e realizar ações que
pareciam não ter sentido, pontuadas por menções à régua de
cálculo com as três guias deslizantes e, às vezes, ao visor.
Em certo momento, ele perguntou:
– Se eu tenho dois primos, com uma diferença de idade de cinco
anos entre eles, e a mais nova é uma menina, qual é o sexo do mais
velho?
Daneel respondeu (inevitavelmente, pensou Baley):
– É impossível dizer baseado na informação dada.
A única resposta do dr. Gerrigel a isso, além de uma olhadela no
cronômetro, foi estender ao máximo o braço direito para o lado e
dizer:
– Poderia tocar a ponta do meu dedo do meio com a ponta do
terceiro dedo da sua mão esquerda?
Daneel fez isso com prontidão e facilidade.
Em não mais que 15 minutos, o dr. Gerrigel terminou. Ele usou a
régua para fazer um último cálculo, e então a desmontou,
produzindo uma série de estalidos. Guardou o cronômetro, tirou o
Manual do visor e fechou o dispositivo.
– Isso é tudo?
– Sim, é tudo.
– Mas é ridículo. Você não perguntou nada que se refira à
Primeira Lei.
– Ah, meu caro sr. Baley, quando um médico bate no seu joelho
com um martelinho de plástico e ele se mexe, o senhor não aceita o
fato de que isso dá informações sobre a presença ou ausência de
alguma doença neurodegenerativa? Quando ele olha os seus olhos
de perto e leva em consideração a reação da sua íris à luz, o senhor
fica surpreso pelo fato de que ele pode dizer algo referente ao seu
possível vício envolvendo o uso de alcaloides?
– E então? – Baley perguntou. – Qual é a sua conclusão?
– A Primeira Lei foi totalmente incorporada a R. Daneel!
O roboticista afirmou com a cabeça de um modo veemente.
– O senhor não pode estar certo – insistiu o investigador, com a
voz rouca.
Baley não teria pensado que o dr. Gerrigel pudesse adotar uma
postura corporal ainda mais rígida do que a sua postura habitual.
Entretanto, ele visivelmente fez isso. O homem estreitou e
endureceu o olhar.
– Está tentando me ensinar como fazer o meu trabalho?
– Não quis dizer que o senhor é incompetente – disse Baley. Ele
estendeu a mão em um gesto de súplica. – Mas será que o senhor
não pode estar enganado? O senhor mesmo disse que ninguém
sabe nada sobre a teoria sobre robôs não Asenion. Um cego
poderia ler usando o método Braille ou um gravador de voz em
discos de vinil. Suponho que o senhor não sabia que esses métodos
existiam. O senhor não poderia, com toda a sinceridade, dizer que
um homem tem a visão porque ele sabe o conteúdo de certo livro-
filme e estar equivocado?
– Sim – o roboticista voltou a ficar afável –, entendo o seu ponto
de vista. Mas, ainda assim, um cego não poderia ler com os olhos e
é isso o que eu estava testando, se me permite continuar com a
analogia. Acredite em mim, independentemente do que um robô não
Asenion poderia ou não poderia fazer, é certo que a Primeira Lei foi
incorporada a R. Daneel.
– Ele não poderia ter dado respostas falsas?
Baley estava se atrapalhando, e sabia disso.
– É claro que não. Essa é a diferença entre um robô e um
homem. Um cérebro humano, ou qualquer cérebro de mamífero,
não pode ser de todo analisado por nenhuma disciplina matemática
conhecida nos dias atuais. Portanto, não se pode contar com uma
resposta como uma certeza. O cérebro do robô é completamente
analisável, caso contrário não poderia ser construído. Sabemos com
exatidão quais devem ser as respostas a certos estímulos. Nenhum
robô pode falsear respostas por completo. O que o senhor chama
de falso não existe no horizonte mental de um robô.
– Vamos voltar ao caso em mãos. R. Daneel apontou um
desintegrador para uma multidão de seres humanos. Eu vi isso. Eu
estava lá. Considerando que ele não atirou, ainda assim a Primeira
Lei não o teria forçado a ter algum tipo de neurose? Isso não
aconteceu, sabe. Ele estava perfeitamente normal depois do que
fez.
Hesitante, o roboticista colocou a mão no queixo.
– Isso é anômalo.
– De modo algum – disse R. Daneel de repente. – Parceiro
Elijah, poderia dar uma olhada na pistola que eu lhe entreguei?
Baley olhou para o desintegrador que ele segurava com cuidado
com a mão esquerda.
– Abra o compartimento de munição – insistiu R. Daneel. –
Examine-o.
Baley pesou os prós e os contras e então, devagar, colocou sua
própria arma ao seu lado na mesa. Com um movimento rápido, ele
abriu a pistola do robô.
– Está vazio – disse ele, de modo vago.
– Não há nenhuma carga nele – concordou R. Daneel. – Se olhar
com mais atenção, verá que nunca houve uma carga nele. Esse
desintegrador não tem um sistema de ignição e não pode ser usado.
– Você apontou uma arma descarregada para uma multidão?
– Eu tinha que ter um desintegrador, senão falharia no papel de
investigador – disse R. Daneel. – Entretanto, carregar uma pistola
carregada e utilizável poderia ter possibilitado que eu ferisse um ser
humano acidentalmente, coisa que é, sem dúvida, impensável. Eu
teria explicado isso naquela ocasião, mas você estava irritado e não
queria me ouvir.
Sem ânimo, Baley olhou para o desintegrador inútil que tinha em
suas mãos e disse em voz baixa:
– Acho que isso é tudo, dr. Gerrigel. Obrigado pela ajuda.
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TÍTULO ORIGINAL:
The caves of steel
COPIDESQUE:
Marcos Fernando de Barros Lima
REVISÃO:
Hebe Ester Lucas
CAPA:
Giovanna Cianelli
ILUSTRAÇÃO DE CAPA:
Stephen Youll
DIREÇÃO EXECUTIVA:
Betty Fromer
DIREÇÃO EDITORIAL:
Adriano Fromer Piazzi
DIREÇÃO DE CONTEÚDO:
Luciana Fracchetta
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