A Freira No Subterrâneo

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A.

LUZ
• FLORESC

" RARIA ACADÉMICA


GUEDES DA SILV
1. Mártires da Liberdade, 1
10 - PORTUGAL - TELEF. 2598

THE LIBRARY

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Darualliosa , 52
PORTO

200
A FREIRA NO SUBTERRANEO

ROMANCE HISTORICO

TRADUZIDO

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO

PORTO
TYPOGRAPHIA - PEREIRA DA SILVA
Impressor da Casa Real
1872
(

1
1
8696277
Ofr
ADVERTENCIA DO TRADUCTOR

s periodicos portuguezes trasladaram , ba trez an


nos, da imprensa de França a noticia do apparecimento
d'uma religiosa carmelita , que por espaço de vinte an
nos agonisara no subterraneo d'um convento na cidade
de Cracovia .
A succinta descripção que então se fez d’este flagel
lo, até certo ponto incrivel , dava a suppor que os adver
sarios do catholicismo fantasiassem fabulas para atravez
do seraphico peito de Sancta Thereza de Jesus assetea .
rem o vigario de Christo . Mas, acontecendo que Luiz
Veuillot, e outros esculcas das invenciveis milicias do céo ,
não desmentiram a noticia , era de recear que não fosse
de todo imaginaria a bistoria da victima do fanatismo.
Volvidos trez annos, em 1871, sahiu dos prelos
francezes um livro relatardo os pormenores do martyrio
de Barbara Ubryk, a freira carmelita de Cracovia.
Quem escreveu este livro?
Não o dizem as apreciações dos periodicos , nem os
catalogos das livrarias. O livro é lido com espanto e
talvez com lagrimas; ao passo que o auctor, que tão cui
dadosamente se occultou, deve ter lido mysteriosas e for
tissimas razões para esquivar-se á gloria de haver escripto
um livro tão precioso na forma quanto virtualmente util .
Transpira a verdade do contexto do romance , posto
que, à espaços, a simplesa natural das coisas é estofada
em pompas demasiadas da linguagem .
Isso, porém, não desdoura , antes redobra o quilate
da obra para quem se deixa de bom grado captivar e
levar pas azas da dolorosa poesia que voeja por alto . O
que os bons espiritos hão de vêr d'esta pungente narra
tiva é a substancia de tal e tamanho flagicio praticado
entre 1841 a 1868, n'este tempo , em nossos dias! A cri
tica illustrada estremará da religião divina , que ensinou
Jesus, a protervia dos sacrilegos que se abonam com ella ,
e lhe vão apagando as luzes para que as trevas da idade
media se condensem e involvam as instituições não carim
badas pela chancella pontifical.
O livro é precioso por que é verdadeiro ; é excellen
te por que é bem escripto; é util por que incerra uma
lição.
O traductor abstem-se de indicar as passagens real
çadas de maiores bellezas, por que lá está o claro inten
>

dimento de quem lê para as distinguir; e seria tambem


desaccordo anticipal-as, prejudicando o tal qual prazer
do imprevisto .
I

UMA CARTA ANONYMA

entardecer d'aquelle dia, passou-se um drama


intimo em casa de Zolpki, juiz do crime. Arrastava -se
aos pés do magistrado uma formosa menina de desasete
annos , livida, suffocada pelas lagrimas, com umas pa
lavras descozidas que a um tempo denotavam grande
desespero e turbação.
« Pai, exclamava ella , meu pai, não faça a minha
desgraça n'este mundo, e a minha condemnação no ou
tro ! Eu estou tão nova e desejo tanto a vida ! Deixe
me ser feliz, como meu pai ha sido? Quem foi que esco
lheu a sua noiva, não foi meu pai ! Minha mãe, amada
obstinadamente , não explicou bastante a razão da sua
ternura ? .. Meu pai amou, consinta que eu ame tambem ;
não prohiba que eu tenha o meu quinhão de felicidade...
8 A FREIRA

Foi tão bom para commigo até hoje ... Tratou-me com
tanto mimo, e quer n’um momento destruir as caricias
de desasete annos . Pense, meu pai ! Olhe que vai fazer
a desgraça de sua filha, condemnal-a á morte peior que
a dos criminosos ...
« Minha filha , respondeu o juiz , rasgas -me o cora
ção, e fazes -me com as tuas lagrimas maior mal do que
tu imaginas ...
-Então enchugue-m'as, meu pai .
- Não posso, por que a minha posição de pai me
obriga a fazer - te feliz embora não queiras... Tu amas,
crês amar um homem de vinte annos, sem posição , po
bre, sonhador de chimeras, que te arrebatou a não sei
que mundo perigoso e falso, embriagando-te com pro
messas tanto mais perturbadoras quanto ellas se desfa
zem no vago .Filtrou-te ao coração isso que os homens
chamam poesia, e que tu bebeste a longos haustos ...
Wladimir sabe que és rica, vê-te formosa, que admira
que elle te queira ?
Quer-me sim ; mas não pede dote .
--Mas sabe que eu não deixarei minha filha ser
pobre .
- E por que não , se eu antes quero com Wladimir
a miseria do que a opulencia com o conde de Sergy !
Dou importancia á riquesa como accessorio, mas como:
base da felicidade não . Wladimir não é nobre ?
-É .
-O pai sabe que elle trabalha incessantemente; e
se a sua familia, empobrecida pelas revoluções , nada lhe:
7

deixou, elle esforça -se por adquirir posição .


-Concedo .
NO SUBTERRANEO . 9

-E bem sabe que hade alcançal-a honrosa com a


vontade e intelligencia que tem .
-Talvez; mas em que tempo ?
- Isso não importa ; o essencial é que elle consiga
um dia o0 lugar que merece . Luctaremos unidos e am
parados um pelo outro. A nossa felicidade material, len
tamente adquirida á custa de muitos trabalhos e priva
ções, hade -nos ser por isso mais grata... Eu sei que mi
nha mãe era pobre quando meu pai casou: deixe-me es
colher um marido tambem pobre ...
-É diverso ! Eu, apenas casei, enriqueci -a. Nego
que haja felicidade sem dinheiro ; sem dinheiro não ha
talento que brilhe; honras e celebridades pagam-se. Se
Wladimir fosse rico, convinha-me : é pobre ?.. não me
serve. Se agora te queixas da minha duresa, mais tar
de a experiencia te convencerá de que eu tinha razão.
-Não, meu pai, nunca! Falla-me da experiencia ...
Quando tinha a minha idade , raciocinava assim ? Os tra
balhos da vida, quando são dois a supportal-os, não cus
tam. Os meus proprios soffrimentos hảo-de ser causa a
que Wladimir me adore mais. Cuida que eu posso ser
feliz se me separa d'elle? Heide amaldiçoar a opulencia
em que elle não tiver parte. Amo-o ! e não tenho outra
idéa, outro pensamento que não seja isto. Amo-o ! E' o
instincto, é talvez uma loucura ! Desgraça ou felicidade,
tenho-a no intimo da minha alma. E' amor que me arde
no sangue: irresistivel... nem meu pai póde apagal-o !
Mate-me, que nem assim o extinguirá. Da sua parte está
o poder que ameaça, da minha a fé ardente que salva,
a esperança inflexivel, a ternura humildosa . Ajoelho a
seus pés, primeiro por que é meu pai, depois por que é
10 A FREIRA

meu mestre, e arbitrò da minha felicidade... Se o pai


soubesse quanto eu havia de amal-o, se consentisse... A
minha vida seria curta para lhe agradecer, e a d'elle tam
bem, por que o venera e respeita, e o presa como pai de
filha tão querida.
E o juiz, desenlaçando- se dos braços da filha que o
prendiam , replicou:
- Vanda, até agora mostrei grande brandura e ex
trema paciencia ; esperei vencer com a razão as suas re
pugnancias, e desfazer esses desvarios com a minha gene
rosidade. Vejo que nada consegui. Se cuida que de dia
em dia vai ganhando terreno, juro-lhe que não consegui
rá abalar as minhas resoluções. O que uma vez disse es
tá dito para sempre. Parece-me que deve conhecer bas
tante o meu caracter para comprehender que a sua teima
acabará por me cançar. Uma coisa lhe prohibo: não pen
se mais em ser esposa de Wladimir.
-O seu poder, meu pai, limita-se a dominar os
meus actos .
-Outra coisa quero .
-Qual ?
Hade cazar com o conde Sergy Radzwil.
Vanda levantou - se de golpe . Operou-se n’ella tão
rapida e completa transformação que seria impossivel re
conhecer a donzella supplicante, ainda ha pouco , na mu
lher que se aprumava severa frente a frente do pai.
-Tenho desasete annos disse ella – O pai recusa
que eu me caze com o homem , cujos bens de fortuna são
a força e amor que o seu valor pessoal lhe da: não lhe
nego esse direito. E' rigoroso, e 'cruel; mas prostro -me,
reconhecendo -lh'o ... A lei auctorisa - o : é o que basta; mas
NO SUBTERRANEO . 11

virá um dia em que a lei seja por mim . A equidade tem


alternativas... mas impor -me que caze com o conde Ra
dzwil , isso é que não póde... chega a minha vez de lhe
dizer que não quero! E ninguem , nem meu pai, que re
presenta a justiça, póde fazer que entre no meu dedo o
annel nupcial do homem que detesto..
-Por que é esse odio, Vanda ?
--Porque ? O conde Radzwil é meu inimigo logo
que meu pai o defende contra mim ... A riqueza d'elle
dá realces á pobreza de Wladimir. Que importa que o
pai me encareça a posição que elle occupa na sociedade
querendo aviltar o outro que não tem nenhuma? Isso é
verdade ; mas tem vinte annos ! Quando os cabellos lhe
encañecerem , tambem elle terá riquezas e titulos, honras
e renome ... mas tem vinte annos , cabellos negros, alma

de poeta, coração d’oiro, e algibeira vazia! E o pai in


sulta esta mocidade, despresa a hombridade do pobre que
ambicionava dois amores, a Polonia e eu ! Esperarei para
esposar Wladimir mas, quando a mulher de Radzwil,
nunca ! nunca! Não ha caso algum que me faça acceital-o;
contra as sugestões da ambição, o meu amor me defen
derá... E' isso que eu chamo fraqueza da obediencia .
--Olhe que está insultando o poder paternal.
-E o pai abusando .
-Vanda !
--Deixe-me fallar, meu pai! Ha lances em que tudo
se diz e confessa . Sou honesta e leal; se me revolto,
seja-lhe isto prova da minha franqueza e lealdade! Não
sei mentir nem quero sabel-o, pouco importa que meu
pai me queira ensinar a fingir.
-Eu?
12 A FREIRA

-Vou convencel- o . Uma noite n'um baile onde


o pai me levava muitas vezes, vi Wladimir. Encontra
ram-se nossas vistas , e contemplam’o-nos em silencio
por que tudo estava dito nos olhares ... Um lance d’olhos ,
um relampago, um flamma divina, é o mundo, é o céo,
é tudo. Elle amava -me, e eu a elle. Occultei- lh'o meu
pai? Não . O pai , esperando triumphar do sentimento que
lhe ' pareceu pueril, sorriu -se; e não obstante, o amor
venceu a sua logica de ferro ... Levou -me ao turbilhão
dos prazeres que poderiam exaltar uma cabeça mais fra
ca do que a minha; mas eu tinha um coração que defen
dia o cerebro. Requestou-me o conde Radzwil com appro
vação sua... Cuidava meu pai que amor tinha a mes
ma significação proferido por todos os labios; pensou que
o pobre moço habitando um sotão não duraria muito na
minha memoria, logo que esse conde me offerecesse pa
lacios, castellos, e riquezas immensas ... Bem sabe que
se illudiu... O pai aconselha-me indignidades, e arrasta
me a um abysmo quando me induz a contrahir uma al
liança que me repugna e assombra. O conde é velho,
hediondo e triste : hade ser forçosamente cioso . Não pos
so amal-o, nem o amaria nunca; e comtudo quem quer
atirar-me aos braços d'eļle é meu pai ; e não me pergun
ta se o pensamento do outro tão bello ee adoravel me não
seguirá ao palacio d'esse velho ... Eu lhe juro que segui
ria ! Quando o conde me dissesse : amo-te ! eu fecharia os
olhos para imaginar que era a voz de Wladimir que m'o
dizia ... Eu amaria o querido da minha mocidade na pro
porção da repugnancia que tivesse pelo marido imposto
violentamente como um flagello. E um dia, se o acaso ,
a fatalidade, a vontade, que sei eu! me collocasse em
NO SUBTERRANEO . 13

frente de Wladimir , eu me engolpharia na paixão como


n'um abysmo . Havia de amal-o á medida das torturas
que por amor d'elle houvesse soffrido. Vingar-me -hia da
velhice do esposo no calor juvenil do amante! Se não pu
de desfolhar-lhe no seio a corôa de esposa, dar -lhe-hia
todas as virgindades da minha alma, florescidas a um
raio dos seus olhos ... Os casamentos semelhantes a este
que o pai me aconselha, são o primeiro passo para o
adulterio ; mas eu não sou d'aquellas que o premeditam :
a mentira horrorisa -me, Se eu cazar com outro homem ,
heide fatalmente trahil-o . O coração é vingativo . O co
ração detesta o juizo, rompe os obstaculos, o jugo fomen
ta desejos de quebrar a fronte mas não de a curvar .
Compete-me a mim dizer -lhe isto ? Nem pensal- o devia!
São palavras que me queimam os labios como lufadas
ardentes de tempestade. Quero ficar o que sou: não me
aconselhe o precipicio cazando-me com Radzwil. Não
pense em tal. Os beijos d'elle far-me-hiam morrer de
vergonha e tedio ! O odio ao marido impelle para o aman
te... Não queira que a sua filha se degrade.
- A sua educação será bastante a defendel-a .
-Não é . Fraco estorvo é a modestia contra a vio
lencia do amor! Que monta que a bocca se calle quando
fallam os olhos ? Que importa que os olhos se baixem ,
se o coração palpita ? Juro - lhe que serei indigna esposa,
se o conde fôr meu marido .
O juiz passeiava agitadamente na sala . Empallide
cia -lhe a face, fulminavam-lhe ameaças os olhos ; não
fallava ; mas a violencia dos tregeitos dizia mais que
.

longos discursos.
Vanda comprehendia que a sua sorte ia ser decidi
14 A FREIRA

da immutavelmente. E com os braços cruzados, encosta


da á parede, immovel como estatua, esperava resignada
a condemnação.
Finalmente o pai arremetteu para ella, e bradou vi
brante de colera :
-Tudo o que ahi disse é uma loucura.
-Pois seja; estou louca .
-Os mentecaptos encarceram - se .
Pois encarcere -me ,
-Recusa cazar com o conde?
-Recuso .
-Obstina - se na sua paixão por Wladimir?
-Sou inalteravel .
-Disse ahi ha pouco que nem juiz nem verdugo
de tortura podem arrancar um sentimento d'alma. Con
fessou que seria adultera, se cazasse com homem que não
seja o da sua paixão?
Serei adultera .
- N'esse caso será adultera para com Deus , porque
ámanhã de madrugada entra n'um convento .
-Falta-me a vocação religiosa, meu pai.
Bem sei.
-E' um carcere desfarçado a que me condemna .
-Voluntario quanto á sua duração.
-De que depende?
- Do seu consentimento a cazar com o conde .
-Tenho a optar entre a desgraça e a infamia.
-Entre a obediencia e a rebellião .
--- Meu pai , sabe -- replicou Vanda após uma curta
pausa O que são as cazas -matas na Russia ; conhece
os padecimentos das galés da Siberia; leu nos livros his
NO SUBTERRANEO . 15

toricos e nas memorias dos carrascos as descripções dos


supplicios d'outro tempo ; sondou os mysterios da inquisi
ção; e como legista e viajante sabe o que é o capacete
do silencio, e o beijo da virgem , e outros refinamentos
de crueldade...
-Sei .
-Sabe o que é um convento?
E ella disse isto com um tremor de voz que retran
siu o juiz. Todavia, como elle se não queria deixar ven
cer na lucta, respondeu:
-Um convento é uma caza cercada de muro tảo
alto que os amantes não vingam transpol-o; tão espesso
que as suas lamurias e estribilhos de guitarras não o pe
netram . O convento é a mansão da paz e socego . Ha
ahi um silencio que refrigera as almas abrazadas ; a pre
sença das virgens do Senhor faz corar de pejo as don
zellas amoriscadas ; o cantar dos psalmos, a vida frugal,
a insulação d’esses oasis perdidos no dezerto humano
para que n'alguma parte se conserve a celestial pureza , >

o fervor -divino, emfim , exercem poderes que lentamen


te acalmam , ineffavelmente consolativos. Lá, os corações
irritados dulcificam -se; as frontes incendidas esfriam ; as
mãos nervosas ajuntam -se supplicantes, e os labios , que
vociferavam palavras rebeldes , balbuciam confissões hu
mildes ... Quem lá entra de fronte soberba, e alma tem
pestuosa de paixões, sahe alfim resignada ao viver qual
elle é n’este mundo, disprendida de chimeras, digna da
vista de Deus e da ternura d'um pai .
E Vanda redarguiu placidamente :
-A sua definição não me convence , pai ... Cêdo á
força, e vou para o convento . Prefiro uma cella algida,
16 A FREIRA

penitencia , mortificação, tudo a um palacio explendido,


ao marido execrado ! Mas meu pai vê os conventos atra
vez de illusão estranha... E' certo que reina lá o silen
cio; mas quem sabe de que lagrimas elle se faz ... O mu
ro é espesso, e ninguem o devassa... Quem lhe disse a
profundeza das cellas e dos carceres .. ? Ah! eu creio que
ha ahi o sepulchro em vida!
O juiz Zolpki baixou a fronte, absorto em penoso
sentir. Estremeceu, correu a mão pela testa, e disse com
um rumor quasi inintelligivel de voz :
-Ahi socega - se , eu t'o affirmo, Vanda ... Meninas
formosas e amantes com tu, lá viveram...
-E nunca desejaram de la sahir, meu pai?
A tal pergunta , accentuada morosamente, o juiz
não respondeu . Vibrou aos olhos da filha um olhar es
crutador como quem sonda o alcance das palavras . Mas
o gesto de Vanda denunciou apenas dôr enorme e o que
quer que fosse heroico .
Recusando esposar o conde Radzwil , Vanda con
formava -se ao existir das torturas lentas, immolava-se
ao amor sincero, palpitante , ao amor que a si sómente se
contempla, e a si sómente se está sempre devorando. Era
paixão que a ensoberbecia e amparava. Tảo timida no
mais , era espantosa de ver-se arrostar com a força da
ternura as iras do pai , e sob pôr á súa paixão as mes
quinhas considerações do juiz.
E esperava.
Mas o magistrado, em cuja alma, Vanda, sem o
cogitar, emborrascara um escarceu de lembranças pun
gentes, nem parecia pensar n'ella .
Vanda tornou com amargura :
NO SUBTERRANEO . 17

-Meu paisteve em sua vida terriveis missões a cum


prir; muitos réos compareceram em sua presença para
darem conta de assassinios, roubos, e infamias. Creio que
nunca infligiu castigo aos innocentes . Aqui estou eu para
que me julgue. Não tenho quem me defenda ... Minha
mãe é morta ... morreu , pedindo- lhe que me fizesse feliz.
Condemne -me, sentenceie -me á tortura lenta do mostei
ro . Estou tranquilla , resignada, prompta !
है
-Estará lá até ao dia em que fresolver cazar com
o conde .
-Nunca de la sahirei... ir-me-hei definhando de
baixo do véo ... Em silencio me irei matando... as ma
cerações me irão dilacerando lentamente o corpo... Bem!
quando vou ?
-A'manhã cedo .
-Não quer que eu vá já?
-Aproveite a noute para reflectir.
---As minhas noutes quero -as lá todas .
-Que convento escolhe, Vanda ?
-O mais austero .
--Com que então ...
-O mais austero deve ser o mais sancto e perfei
to . Ouço fallar muito das carmelitas descalças. Vou pa
ra lá, se consente .
- Não!—exclamou Zolpki-para ahi não. Ahi não
se pensa : soffre -se.
-Se o pai me quizesse feliz, não me enviava a
claustro nenhum , que basta a palavra para me atormen 1

tar ... Consinto em viver n'esta casa sosinha, segregada


de tudo, fechada , sem vêr ninguem , sem receber nin
guem ... Acha que seria conceder-me muito ? Pois como
2
18 A FREIRA

queira. Mas, ao menos, se me prohibe viver, não me


tire a possibilidade de morrer .
O juiz não pôde encarar a filha, quando respondeu
seccamente :
--Póde entrar hoje mesmo no carmelo.
A menina saudou profundamente o pai e sahiu .
Quando ella transpunha o limiar da porta , o escudei
ro do pai entrava no gabinete ,7 com uma bandeja de pra
ta . N'esta bandeja trazia uma carta lacrada de preto. O
sinete era sinistro: um crescente sobre fundo de prata e
uma cabeça de morto sobranceira ao crescente .
O juiz reparou na carta, mandou sahir o creado, é
hesitou antes de quebrar o lacre . Todos temos experi
mentado momentos de torvação perplexa durante os quaes
nos parece que em nossa vida arfa um vulcão de impre
vistas desgraças. Como que prescutamos ali o destino, 1

vêmo-l'o, palpamo'l-o. Se podessemos , cerrariamos os


olhos á ourela de golphảo; mas não ha vencer o abysmo:
é forçoso que nos despenhemos.
Zolpki rasgou o sobrescripto e procurou a assigna
tura de quem escrevêra a carta .
Não a tinha .
« Carta anonyma!» - disse elle com despreso.
Ía rasgal- a e queimal-a; mas susteve-se, e reflectiu:
«Um particular não deixaria de a lêr; e o juiz tem
talvez necessidade de saber o que está aqui.»
Leu algumas linhas, poz a carta na meza e ficou
oppresso por violenta dôr, a ponto de turbar-se-lhe a
vista, tremerem-lhe as mãos e porejar-lhe o suor á fronte .
« Oh ! -- exclamou elle não é, não pode ser isto...
Zombam da minha credulidade como juiz, e torturam -me 1
NO SUBTERRANEO . 19

o coração como homem ... Como ! após vinte annos de


silencio , vinte annos! não de esquecimento mas de paz,
ha quem atire este nome contra o meu coração... A mim ,
pai de familias, ha ahi quem recorde a memoria da
grande paixão da minha mocidade ... Por que? Com que
fim ? Que significação tem isto ? .. Será Wladimir que em
prega tal expediente para impedir que eu recolha minha
filha ao convento ? Que miseravel fraude ! Talvez que
Vanda o prevenisse ... e lhe dissesse... mas ella nada sa
be! Quem ousaria contar-lhe a primeira inclinação de seu
pai? Minha propria mulher nunca a desconfiou ... Tenho
pois algum feroz inimigo que bate em meu velho cora
ção a ver se lhe tira sangue e lagrimas ? Pois bem ! seja
assim! Eis -me soffrendo ! Não ha remecher impunemente
em taes cinzas sem que os dedos se queimem nas mal
extinctas brazas ... Tem este nome para mim as vibra
ções d’uma harmonia, o arquejar d’um soluço ... Amei - a !
E ella amou-me ! .. Por não ser infiel ao seu amor antes
quiz a lenta morte e não a vida que outras mulheres in
vejariam . O amiga tantos annos adorada, e tão longo
tempo chorada, eu nunca pude esquecer-te!... Quem po
deria escrever esta carta ? Quem conhece ou recorda a
antiga historia dos nossos amores infantis ? Apenas duas
testemunhas , dois amigos, que podem cada dia fallar da
minha primeira noiva ... Quem escreveu isto conhece o
presente, mas o passado não . Não invoca reminiscencias
amorosas : dirige -se à minha justiça de magistrado! Não
me diz: « Recorda -te ) . Exclama: « Vinga ! Salva uma des
ditosa cuja miseria todos ignoram excepto eu... d Se to
davia o que esta carta diz fosse verdade... Quem sabe?
Eu attribuia á malquerença as sombrias noticias que me
20 A FREIRA

davam a tal respeito ... Não podia crêr... figurava -se-me


que taes infamias se perdiam na escuridão da idade me
dia ... Mas se o seculo caminha, os mosteiros são immo
veis ... Ha entes que não marcham nunca ... São mor
tos ... E que aconteça isto em Cracovia no seculo deza
nove, em plena civilisação, é impossivel!
O magistrado retomou a carta e seguiu a leitura
interrompida. Ao passo que hia lendo , luz terrivel lhe
escaldava os olhos, e, quando a terminou, rompeu n'es
tes brados desvairados :
« Isto é assim ! Existe crime ! Dura a atrocida
de ha vinte annos ! Ha vinte annos que tão perto de
mim agonisa a mulher que amei, e ninguem me revelou
o seu martyrio, quando eu a julgava no repouso do céo,
quando os seus gritos desesperados em vão me chama
vam a soccorrel - a ! .. Heide salval-a ! Eu decifrarei es
te espantoso enygma, o juiz vingará a martyr, e ai
d'aquellas que torturaram a mulher que amei !!!»
Zolpki atirou-se a um sophá e ahi ficou com a face
apertada nas mãos.
O rodar d'uma carruagem que se affastava revo
cou-o subitamente á realidade .
Chamando um creado, perguntou -lhe com a voz vi
brante de viva angustia:
a Dize a minha filha que venha aqui já. »
Meu amo não ignora que a menina partiu.
-Partiu ? Já ?
LE a menina mandou ao cocheiro que a conduzis
se ao convento das carmelitas descalças.
-Corre atraz da sege ... Ou vai antes buscar uma,
que irei eu mesmo .
NO SUBTERRANEO . 21

--A senhora já vai muito longe ; meu amo não iria


a tempo , e acharia fechadas as portas que não se abrem
a ninguem .
É certo 1 - balbuciou o juiz.
--D'aqui a algumas horas póde v. ex.a procurar a
menina .
Zolpki apertou aa fronte convulsamente exclamando :
Esperar ! é impossivel esperar !
-V . ex . tem ordens que me dar ? perguntou o
creado .
-Não, retira -te.
O magistrado a só parecia presa de immensa dôr.
Passeiava , retinha-se, vociferava rugidos inarticulados,
chamava a filha, e proferia o nome d'outra mulher .
« Eis aqui onde eu mandei minha filha - murmurava
elle.- O que eu hia fazer de Vanda, d'aquella adoravel
creança, tão somente criminosa por amar um homem po
bre... Se a outra , a nobre martyr me não preferisse a tu
do, estaria ella n’aquelle antecipado tumulo ... Ah! como
as horås se arrastam lentas ! Quando será dia? Receio que
estas palpitações de coração me matem antes de ter feito
justiça! Quanta razão não tinha contra mim a pobre me
nina, espantada de que eu a encerrasse n'um claustro !...
Esta denuncia fatal e abençoada salvará duas victimas
ao mesmo tempo ).
Zolpki retomou a carta, e leu - a em alta voz.
Continha isto :
« Senhor.
« Venho revelar, denunciar a um dos mais integros
cmagistrados "de Cracovia , um facto de sequestração
odiosa que dura ha vinte annos . Uma religiosa carme
22 A FREIRA

alita, Barbara Ubryk , entrada no convento em 1841 ,


aestá, desde 1848, fechada não em um cubiculo, nem
a sequer n'um carcere, mas n'um antro infecto onde não
aentra ar nem luz. Que crime tem Barbara Ubryk ? Nin
aguem sabe; só eu talvez conheço o monstruoso facto,
de em nome da justiça e da humanidade lhe rogo que
asoccorra uma desgraçada, que já não espera auxilio dos
«homens, e que talvez já perdesse tambem a confiança
aem Deus ) .
Ao terminar a carta, Zolpki ajoelhara collando os
labios sobre o nome de Barbara .
E clamava :
« Foi por mim que ella tanto ha padecido, e se per
deu! Se necessario fôr alarmar toda a cidade, ee derribar
pedra a pedra esse convento infame, e atirar á face da
soberania espiritual do papa o crime perpetrado em no
me da religião da paz, heide vencer ... Entrarei em no
me da lei nos claustros, e arrancarei das prisões myste
riosas as victimas que la gemem ! O nome de Barbara
soará na Europa, como invocação a um castigo justo .
E dirá a todas e a todos que a lei tem direito de fisca
lisar essas mansões aferrolhadas pelo arbitrio! E o mar
tyrio de uma só talvez que salve milhares de victimas . »
E o tempo arrastava-se com desesperador vagar.
Repontou emfim o dia. Zolpki, antecipando-se á hora
das visitas e das occupações, devorado de angustiosos
sobresaltos, sahiu e correu a casa do commissario Pamza.
II

UMA CASA MURADA

STAVA no escriptorio o commissario . Dotado de in


dole energica, recta, forte e perseverante, o chefe da po
licia prestava á sociedade não só os serviços proprios de
seu emprego e attribuições, senão que exercia o seu mis
ter captivando de mil maneiras . Um commissario de po
licia é mais e menos que um magistrado criminal. O
juiz sentenceia sobre factos, o commissario illucida -os,
desembaraça-os, aproveita apparencias insignificantes,
deduzindo d'ellas optimas illações. Cumpre-lhe poseuir
em grau supremo a faculdade de avaliar os homens; sen
do que o magistrado acha quasi feita a prova , prepara 1

da pelo commissario .
Um lucta somente contra os argumentos, o outro
sacrifica -se pessoalmente muitas vezes . Pamza possuia
24 A FREIRA

as qualidades necessarias ao seu emprego; mas de mais


d'isto era dotado de rectidão natural, e instincto generoso
e delicado . Mais d'uma familia de Cracovia lhe devia a hon
ra dos filhos. E que elle exercia a auctoridade de seu offi
cio cortando abusos que não denunciava. A's vezes com
uma palavra retinha um mancebo já pendido ao abysmo .
As raparigas impellidas á voragem por um lapso, e
ameaçadas de cahirem seduzidas nos braços da devassi
dão, achavam n’elle recursos em premio do seu trabalho,
e com o arrependimento restauravam a dignidade per
dida. Porém , se os crimes eram friamente commettidos,
a indulgencia tornava - se excessiva severidade. Aos olhos
d'elle a paixão desculpava muito. Mas o crime feito por
amor ao mal, a vingança premeditada, a peçonha lenta
mente instillada, o rancor surdo desfechando no homici
dio, eram crimes que não perdoava . Amavam -no e te
miam -no. Ser justiceiro era para elle paixão em vez de
officio; todavia usava e não abusava da justiça.
Desde muito o conhecia o juiz Zolpki; e quando a ,
carta anonyma, delatando o encarceramento de Barbara
emfim o convenceu, toda a sua esperança se fixou no
commissario .
Ao entrar no gabinete d'elle, tremia tanto e tão pal-,
lido ia que Pamza lhe chegou cadeira perguntando-lhe
com a voz commovida:
Que é o que o perturba ?
Zolpki mostrou-lhe a carta .
Pamza leu de espaço , sem a menor visagem . De
pois, disse a Zolpki:
- Esta Barbara Ubryk não é uma que v . ex.a amou
apaixonadamente ?
NO SUBTERRANEO . 25

E '.
-Se me não falha a memoria, esta menina foi man
dada ao convento pela familia que o não considerou rico
bastante para ser marido d'ella.
FO
E verdade.
Em 1841 soaram em Cracovia estranhos rumores
a respeito d'esta mesma senhora: disse-se que v. ex.a
viera a esta cidade e diligenciava arrancar a menina do
convento .
Assim foi.
-Uma patrulha impediu a execução do projecto.r.
mas não houve procedimento. A tentativa de rapto ficou
abafada em misterio tão importante ao interesse de Bar
bara, como ao interesse do snr . Zolpki e da sua fami
lia ... Depois ...
--Cazei-me, e o senhor sabe qual a minha vida tem
sido .
-Não suspeita que alguem lhe désse este aviso ?
-Não .
--Examinemos, replicou o commissario . A carta
está escripta em optimo papel, compacto , um verdadeiro
papel inglez... Logo quem quer que lhe escreveu é abas
tado... O caracter da lettra é redondo, largo e grande ...
e a margem enorme... O auctor da carta denota gene
rosidade e excellente natureza. Phrase breve e laconica ...
, auctor desculpa -se de empregar tal meio para lhe trans
0.
mittir a verdade ..: logo receia prejudicar alguem ... O
segredo não é só d'elle... Movido por amor á justiça de
nuncia factos que sabe ; mas sem duvida, se nos dissesse
o nome levar-nos-hia no incalço de culpado que elle não
quer denunciar... E' talvez parente ou amigo ... Alguma
26 A FREIRA

vez acharemos o auctor d'esta carta ; e n'este rasto vinga


remos descobrir o nome de quem quer que seja que elle
não quiz expôr revelando- se completamente ... Seja como
fôr, esta revelação merece credito.
-Eu logo antevi que a desgraçada seria salva,
se me eu valesse do snr . commissario !-Exclamou Zol
pki .
-Devagar — replicou tristemente Pamza --estamos
na vereda ... entrevemos o crime, sabemos onde se pra
tica , conhecemos os algozes e a victima, e, com tudo,
quem nos diz que poderemos livrar uma e castigar os
outros ?
-A justiça .
- Justiça humana , que prepondera em tudo e em
todos , salvante as ungidas do Senhor, inclauzuradas nos
7

seus muros, e ligadas por votos... Vai instaurar-se plei


to entre nós e as carmelitas. A lei estaca no limiar da
portaria; que o antigo direito de couto subsiste nos mos
teiros . Não está em minhas attribuições levar aguazis e
tropa, intimar a prelada a abrir as portas, ou , em ulti
mo apuro , arrombal-as ... O meu mandato é inefficaz
contra as ordens monasticas. Disponho da força contra
toda a gente; mas lei e força não tem que ver contra
pessoas ecclesiasticas. Vivem vida á parte do commum ;
teem legislação propria , castigos e supplicios particula
rissimos, bem vê v. ex.a
- Mas isso é infame ! bradou o juiz.
-Diga -o aos signatarios da concordata.
-Então ... nada pode fazer-se ? nada ?
-Resta - nos uma esperança .
-Qual ?
NO SUBTERRANEO , 27

-Recorrer ao bispo.
-0 bispo não punirá freiras.
- Por que não, se é justo ?
2

-Receiará desacreditar a religião.


-Receiaria uma inepcia - disse gravemente o com
missario.. -- A religião é irresponsavel de taes abusos e
cruesas . A religião, apezar d'isso, não deixará de ser
o codigo da mais pura moral. Intendem -na mal, for
çam - lhe o sentido, desfiguram -na. Dizem que a purifi
cam , e tornam - a indigna do Mestre que a implantou na
terra, dulcissima de caridade e inoffensiva. O bispo tem
pleno poder sobre os mosteiros de sua diocese: basta
que elle ordene, e as portas ser -nos -hão franqueadas.
--Vamos então lá já.
--Vamos. Eu por mim sou a lei brutal que baixa
a mão sobre o hombro do criminoso ; v. ex.a é a justiça
que interroga, discute e sentenceia . Talvez que Barba
ra esteja nas vascas da morte . Levemos comnosco o
doutor Blumenstock ... Vamos de carro a casa d'elle, e
depois ao paço episcopal.
Osnr, não sabe tudo ainda, -
disse o juiz sus
pirando. – Hontem á noute, em momentos de irritação
contra minha filha, dei-lhe a escolher entre casar com o
conde Radzwil ou entrar nas carmelitas.
-E ella escolheu ...
- convento , para onde foi logo.
a
-A'manhã, permitta v . ex . a sua filha plena liber
dade. Não lhe basta na vida uma desgraça ?
Pouco depois, juiz, commissario e doutor compare
ciam no paço do bispo, com agentes que os seguiam
distantes . O famulo de monsenhor Galecki objectou de
28 A FREIRA

balde que era aquella a hora de sua excellencia estar


meditando . O commissario insistiu em fallar- lhe imme
diatamente e acrescentou :
--Monsenhor depois de orar que faz ?
-

--Diz missa.
-Não podemos esperar .
Se é caso reservado ...- balbuciou o famulo, sa
hindo ás « recuadas .
O bispo veio logo.
E o juiz disse o seguinte:
-Monsenhor, a nossa authoridade succumbe hoje
diante d’uma porta que precisamos abrir .... Fui avisa
do de que uma freira é detida ha vinte annos no tronco
do convento das carmelitas . Queremos salvar a desgra
çada presa, interrogar e castigar aquellas que exercem o
mister de verdugas.
-E' impossivel o que me diz !-clamou o bispo.
As religiosas do Carmo vivem edificantemente austeras .
O seu capellão não cessa de nos elogiar a pontualidade,
modestia e zelo com que vivem .
-Quem sabe se o capellão não é cumplice d'ellas ?
-Observou o chefe de policia.
Permitta Deus que se enganem , senhores; mag
eu toda a vida me reprehenderia se atravancasse a ac
ção da justiça, e estorvasse o cumprimento d’um acto de
reparação. Entrem , pois, quando quizerem no convento
das carmelitas, e para isso lhes vou dar plena authori
sação. Não posso agora acompanhal-os , por que está
cheia a capella episcopal de fieis que me esperam : são
horas de celebrar o sancto sacrificio da missa. Mas antes
que hajam concluido a sua visita , irei encontral-os, ou
NO SUBTERRANEO . 29

para , como espero, lhes ouvir rehabilitar as religiosas, ou


para me coadjuvarem no castigo, se ellas o merecerem .
Não sou d'esses prelados que creem na impeccabilidade
de todos os membros do seu rebanho . Temos ministros
prevaricadores, padres indignos, e servos do Senhor que
mancham a castidade do habito . Ha no clero de hoje, como
no do tempo do Messias, lobos vestidos com a pelle dos cor
deiros , e vêmos sepulchros branqueados por fóra pelo me
nos tanto como entre os phariseus. Creio até que darei
bom exemplo aos meus collegas no episcopado, se con
seguir desarraigar abusos deploraveis e horrendissimas
crueldades .
Monsenhor Galecki escreveu rapidamente uma or
dem a favor dos magistrados investidos em commissão.
judicial para que todas as portas do mosteiro das car
melitas se lhes franqueassem por maneira que elles o exa
minassem como quizessem . Feito isto , sellou a ordem
com as suas armas, e entregou - a ao commissario da po
licia .
Os guardas esperavam na ante - camara . Commissario,
juiz e medico entraram n'uma sege, chamaram dois
dos mais recommendaveis cidadãos para que os acompa
nhassem . Depois um guarda entrou na officina d'um ser
ralheiro, disse - lhe que se apetrechasse com os melhores
utensilios do seu officio, e o seguisse.
Um quarto de hora passado, Zolpki e companheiros
entravam no arrabalde de Werola, onde está o mosteiro
de carmelitas descalças de Santa Thereza, abi fundado
em 1725 .
Zolpki fugira sempre de atravessar esse arrabalde
e defrontar- se com tal convento . Havia muitos annos que
30 A FREIRA

ella não vira aquella sombria porta . Ao vêl-a, agora ,


lembrou -lhe uma scena nocturna , cujas reminiscencias
muitas vezes lhe deram n'alma rebates dolorosos. Quan
do viu os alterosos muros do carrancudo mosteiro, ao
juiz afigurou -se Barbara Ubrik tal qual à vira na ultima
vez que se encontraram , elle, arquejante de esperança ,
ella tremente de pavor... Um instante a tivera nos bra
ços, então, crendo que ella era sua por toda a vida ...
Mas, de subito, as grossas portadas fecharam - se com
estrondo, e ella ficou ... e ficou para sempre . Agora ... ia
vêl-a... vêr-lhe a sombra... Vinte annos volvidos por
aquella face formosa, deviam têl-a desfigurado ! Vinte
annos deviam ter-lhe encanecido as tranças d'oiro, tão
admiradas outr'ora ! Vinte annos mais, e vividos assim !
Isto passava no intimo de Zolpki, em quanto se es
perava que a porta fosse aberta .
Finalmente, mão invisivel abriu um postigo, e, atra
vez do crivo de ferro aberto em cruz na portada, trans
luziu a figura d'uma irmåa conversa. Era pallido e com
prido o rosto d'ella ; olhos orlados e reconcavos; bocca
franzida nos cantos dos beiços. Fallava baixo por habito
e preceito .
-Que querem os senhores ? perguntou ella .
-Queremos fallar á prelada.
-A reverenda prioresa está a orar na sua cella .
-Que saia a receber -nos.
-Os senhores de certo ignoram - voltou a soror
que nenhum homem transpõe o limiar d'esta casa. Ei
medico , sahindo à frente, disse :
-Sou o doutor Blumenstock , e n’esta casa está uma
religiosa doente .
NO SUBTERRANEO . 31

Nenhuma de minhas irmãs está enferma.


-Nem Barbara Ubrik ?
-Não ha aqui freira com tal nome.
-Ha vinte oito annos que aqui entrou - disse Zolpki.
-Queira desculpar-me - negou a porteira - eu sou
uma pobre creatura que nada sabe ... Nossa reverenda ma
dre é que conhece o nome profano das freiras ... eu sei
apenas o nome religioso que os senhores nomeam Barba
ra Ubrik .
-Tanto monta !-replicou o commissario - queremos
entrar e entraremos. Vá prevenir a prioreza.
-E' inutil ---- redarguiu a soror lenta e docemente
homens não entram aqui, tirante sua magestade o impe
rador e o nosso sancto bispo.
-Ou os enviados pelo bispo - disse o doutor.
—Isso então sim --concordou a porteira.
Zolpki sentia arder em si violenta colera, e aldra
vou de novo com o pezado martello na porta.
Abra! -exclamou elle-abra em nome da lei!
-

-Nós só conhecemos como lei a nossa sancta regra .


-Em nome do bispo, seu superior, que me enviou
aqui!
-Traz ordem ? -perguntou a soror .
Zolpki tirou - a da algibeira, e deu - lh'a . A velha por
teira examinou - a, e, reconhecendo o sello episcopal, disse:
-Esperem que eu vou avisar a prioreza.
O rumor das saudalias da soror ouvia-se ao longo do
lagêdo até gradualmente se perder.
Ao cabo de dez minutos, a porta rugiu nos gonzos,
e a porteira á frente da alçada judiciaria, fez signal aos
membros d'ella que a seguissem a um locutorio .
32 A FREIRA

-A prelada vem aqui-disse ella.


O locutorio era vasto, desmobilado, apenas decorado
de bancos ao longo das paredes, e d’um relicario enorme
envidraçado, contendo um cadaver sem cabeça de monge
mumificado. Lugubres textos, á laia de frizos, corriam ao
longo do rebordo do tecto . Um Christo de tamanho natu
ral esculpido com severidade quasi feroz, levantava os
braços hirtos e sanguentados, e pendia a cabeça, pintalga
da de sangue roixo, sobre a espadua ulcerada. Era ver
dadeiramente um suppliciado; mas, em verdade, aquella
imagem , não representava um Deus ! A bocca estorcida
pela angustia parecia cuspir maldições; o olhar convulsivo
pedia a fulminação dos verdugos, os pés esforçavam -se
em escabujar de agonias para se arrancarem aos cravos -
que os esfacellavam . Esta imagem da morte horrida,
medonha, sem consolação , com a esponja de fel, corôa
de espinhos, beijo perfido, e multidão enfuriadà, era
realmente hedionda de vêr-se ! Seria aquelle o Christo
que chamava para si as criancinhas, e rehabilitava mu
lheres perdidas, e saneava enfermos, e dava a visão do
céo aos cegos, e desalojava dos corpos a sordicia dos
demonios? Não . O Jesus dos Evangelhos foi julgado in
dulgente e dulcissimo pelos successores dos seus disci.
pulos... Vieram outros que converteram dogmas de ter
nura em religião de pavores . Ao serviço de suas ambi
ções secretas, dos seus odios entranhados, ou por neces.
sidade de infligirem aos outros os soffrimentos que pas
saram, pozeram o redemptor, arvorando - o em mestre se
vero, trocando-lhe a missão de Messias pela de juiz, e a
de Jesus pela de inquisidor.
Mas aquella imagem condizia com a casa.
NO SUBTERRANEO 33

A porteira quedou -se á entrada da salêta . Lia - se - lhe


na fronte a rebellião suffocada. Não intendia o que taes
homens ali vinham fazer. Com que direito invadiam um
convento ? Esses Heliodoros profanadores do pavimento
sancto que pretendiam ? O que seria do claustro sacratis
simo, se aos magistrados - coisa inaudita! -- bastára bater
nas portas dos mosteiros, para lhes serem abertas!
A porteira era uma pobre mulher completamente
abrutecida pela obediencia absoluta . Sabia somente d'es
ta vida que as ordens da prioreza eram leis, e que a sua
sancta regra subvertia todas as instituições. Desprezava
homens e mulheres que não pertencessem a Deus. O ha
bito era para ella um trajar de bem -aventurada, como
quem , no dia final, esperava vêl-o transformado em tu
nica de resplendores perpetuos. Não havia ahi discutir
com tal pessoa: era mulher morta dentro de si propria ,
maquina movida por mão alheia. Faculdades de pensar
não tinha nenhuma. Não é admissivel crer que nos mos
teiros se consinta a cada freira licença de reflectir, me
ditar, exercitar os dons do intendimento . Esta privação
é prerogativa das religiosas estremecidas, das dilectas que
Deus chama ás altas paragens da perfeição, das ovelhas
predestinadas que devem pascer-se nos uberrimos almar
geaes onde serpenteam regatos de leite e mel. A propria
iniciação á oração mental, ao culto do espirito, ao arro
bo d'alma, se faz gradualmente,9 como se usava nos mys
terios antigos, cujos véos se levantavam pouco e pouco
para emfim deixarem entrever, na sua radiosa nudez, a
deusa ou deus aquem se devotava o idolatra.
As freiras, semelhantes à porteira, recitavam jacu
latorias de cór. D'esta sorte, cingia -lhes o animo um cir
3
• 34 A FREIRA

culo restricto, d'onde não se extraviava a minima idéa .


Bastava vêl- as para logo se perceber que a vontade lhes
era subjugada por outra, que lh'a comprimia e apagava.
Taes mulheres, como as femeas dos fakirs indiaticos, sof
freriam a tortura , sem proferirem grito que não fosse o
Ave de cada dia .
A toada d’um andar compassado se ouviu no locuto
rio . A porteira recuou , prostrou -se e murmurou :
--A nossa reverenda madre.
Maria Wenzyk appareceu .
Não era decerto mulher vulgar. Fronte intelligen
te e imperiosa ; olhos não desluzidos por macerações,
coriscando como carvões sob as arcadas ciliares. Bocca
retrahida e austera, desdenhosa no franzir dos labios, e
voluptuosa na carnadura d'elles. Esta mulher devia ser
de extremos em tudo . Se amou, o seu amor devia de ter
sido ardente e sedento de selvagens volupias. Se odiou,
o seu rancor devia ser glacialmente duradouro . Fulgia
lhe no olhar a lamina d'um punhal, e na bocca espuma
va-lhe o sensualismo d'umą Lais . Os cilios descidos con
seguiriain esconder- lhe as fulgurações dos olhos; mas o
que ella não podia era dissimular a lubricidade dos la
bios .
Ao entrar na saleta, fréchou uma vista indagadora
sobre os que ahi viu. Cumpria-lhe medir a força do ini
migo. Após rapido exame, abaixou o véo, ficando a es
piar ainda, sem que lhe vissem os olhos; depois, cruzan
do ambas as mãos nas amplas mangas, disse laconica
mente :

--Trazem os senhores ordem do bispo para vizitar


esta caza : podem dizer -me o que querem ?
NO SUBTERRANEO . 35

--Duas coisas, senhora --- disse Zolpki - — Primeira,


levar d'aqui minha filha.
-Eu pensei que ella entrara com o seu consenti
mento. Descance : ser -lhe -ha entregue; e , não sendo ella
ainda noviça nem protestante, póde sahir, já... Magoa
me que v. ex. recorresse á authoridade para objecto tão
simples!
E a prelada fez signal de retirar-se.
-Eu disse, senbora, que queria outra coisa. Recla
mo em nome da justiça que faça chamar a nossa presen
ça Barbara Ubrik que professou n'esta casa em 1840 .
-Barbara Ubrik rendeu o espirito a Deus ha quin
ze nnos .

-Quem m'o prova?


-Eu que o affirmo. Temos um cemiterio onde são
enterradas nossas irmãs, sem advertir aà authoridade nem
recorrer a gente de fóra .
-E só me dá a sua affirmação como prova de que
Barbara é morta ?
-Creio que lhe basta, senhor.
- Não basta . A senhora affirma, eu nego. A senho
ra occulta, eu procurarei.
-Tenciona entrar no interior d'esta casa ?
- Demolil-a, se preciso fôr.
-E o bispo ?
- bispo approva, e não tardará a vir auxiliar -me.
A prelada ficou confusa por instantes; mas, reani
mando -se, dirigiu -se á porteira :
-As chaves, minha irmå ; e conduza esses senho
res aonde elles quizerem ir. Querem que eu os acompa
nhe ?
36 A FREIRA

-Decerto - respondeu Pamza .


--- Como queira- disse ella .
E serena, rigida, caminhou á frente do commissa
rio, do juiz e do medico. E, como visse uma novica,
chamou - a .
Minha filha, as religiosas que se ajuntem no côro;
eu farei tanger o sino quando houverem de sahir.
Começou a visita .
Os cenobios vasios de suas moradoras não offereciam
nada que ver. Uma taboa ingonçada na parede coberta
pela enxerga era o leito das carmelitas. Sobre uma
banqueta via-se um livro , a caveira e o crucifixo. Um
escano de páo e lavatorio de barro completavam a mos
bilia . Nada que convidasse ao repousar, ao scismar
e á indolencia. O frio das cellas retransia o coração;
sentiam - se calefrios ao entrar ali. Eram todas uma.
Todo o rebanho se movia tangido pela mesma vara .
Abriam as cellas para um vasto corredor. Em cada
porta via-se a imagem do sancto ou sancta cujo nome
apadrinhava as freiras. O nome com que sahiram de
suas familias esquecera , föra absorvido no outro . Com
renunciarem ao seculo, haviam tambem abjurado nome
de mãe , de pai e de irmãos: era mister que tudo se re
novasse , que tudo morresse para renascer sob outro as
pecto .
Nenhuma d'essas portas tinha chave, para que a
toda hora a prelada e mestra de noviças inspecionassem
o dormir de suas filhas em Jesus Christo .
O refeitorio, situado na extrema d'esse corredor,
não offerecia feição notavel. Uma ingente banca de ma
deira occupava o centro ; e bancos adherentes á mesa cor
NO SUBTERRANEI . 37

riam circularmente. O eido de cada freira era assigna


lado por um garfo de ferro, uma escudela de páo e
bilha de barro . A caveira sobre uma peanha, e um
pulpito, destinado á noviça que lia, completavam as al
faias do refeitorio .
11 O salão da communidade era grande e glacial. Ao
longo da parede enfileiravam - se cadeiras, e ao centro
bancas cobertas de cestinhos com lavores de costura in
dicando que esta sala era ao mesmo tempo officina de
costura e bastidor. Passado um largo corredor, visitaram
a lavanderia e rouparia. Ao passarem por diante d’uma
grande porta, o commissario parou, a tempo que a por
teira lançava de esconso um olhar á prelada. As janel
las d'esta casa estavam hermeticamente fechadas: fez-se
mister recorrer ao serralheiro para abrir uma. Só depois
de arrancar uma espessa almofada -- que não só impedia
a entrada da luz, mas bastaria a abafar gemidos --- con
seguiram abril- a . Esta casa era abobadada á maneira
de egreja. Um lampadario de ferro pendido ao centro
devia espargir claridade lugubre na immensidade do
recinto . De cada lado da lampada, umas correias de
couro, suspensas do tecto, sustinham pedras enormes,
em bruto , que pareciam mosqueadas de nodoas escuras .
Via -se ahi uma cruz encostada á parede. Duas golilhas
correspondiam aos braços, e uma terceira, chumbada á
pranchếta, era destinada aos pés. Causava horror este es
pectaculo! De que servia ali aquella cruz ? Havia mais duas
deitadas no pavimento. Na parede fronteira, pendurados
em pregos, viam -se dois cilicios de malha de ferro, cada
um com sua roseta agudissima, umas palmilhas de fer
ro eriçado de cravos , e tambem uma corôa de espinhos
38 A FREIRA

metallicos que deviam sangrar a testa que a cingisse.


Depois, por ali, em confusa desordem, disciplinas com
balas de chumbo, cingulos de coiro, flagellos de cordas
nodosas , tudo quanto crudelissima phantasia podéra in
ventar para tortura . ”
E existem coisas d'estas! -
disse o commissario .
E Zolpky pensava comsigo:
Onde eu enviei minha filha!
-Como se chama este recinto ? --perguntou Pamza.
- A penitenciaria - respondeu a prioreza.
-E 'estes instrumentos de tortura servem para sup
pliciar as desgraçadas mulheres ?
--E' que nós fugimos ás delicias do mundo para
abraçar a mortificação --- explicou a prelada.
Zolpky quiz interrogal -a sobre o uso dos diversos
instrumentos .
-O senhor está aqui para ver - disse ella - veja .
-

O meu dever é facultar -lhe o exame; mas não de o ini


ciar na regra de nossa madre Santa Thereza .
O doutor enxergou uma portinha no angulo mais
escuro da sala, e quedou-se ali esperando que a portei
ra abrisse ; ella, porém , buscando debalde na cambada
das chaves a que justasse á fechadura, voltou-se para a
prioreza.
Maria Wenzyk tirou da algibeira uma chavinha e
abriu a porta. Ao alumiar- se aquelle recinto, dir-se -bia
que ao pé d'um antro de tortura resplandecia uma reca
mara elegante.
A quadra era pequena, decorada de estofos mais
elaros. Um leito, senão antes um diwan , occupava - a qua
si toda. Sobre este leito via -se deitado um Christo morto ,
NO SUBTERRANEO . 39

obra prima de sculptura, primorosamente encarnado . Es


te não tinha o semblante terrifico do crucifixo do locuto
rio . Parece que os olhos d'esmalte lhe sorriam , os labios
descerravam -se, os braços pendidos ao longo do tronco
pareciam ter ainda a flexibilidade vital. Este Christo era
um primor de arte . Nos cantos d'esta pequena camara ,
quatro caçoulas deviam vaporar fragrancias embriagan
tes . A lampada pendida do tecto semilhava uma ingente
estrella , destinada a radiar um clarão pallido sobre a
imagem do Christo adormecido .
Zolpky encarou a revezes a penitenciaria e aquella
salêta sombria . Procurou o ponto de contacto das duas
idéas que lhe pareciam tão oppostas e todavia tão liga
das, mas não o descobriu .
A madre porteira restituiu a chavinha á prioreza.
-Falta -lhes sómente visitar a egreja, senhores -
disse Maria Wenzyk .
- Vamos .
A irmã conversa tangeu uma sineta , toada de alar
ma que fez foragir as freiras do côro, e logo os agentes
da policia entraram .
A egreja do mosteiro tem dois chôros sobrepostos.
O primeiro, especie de crypta mortuaria, encerra
quatro cadaveres visiveis, porque a tampa do sarcopha
go foi substituida por uma enorme lamina.
-E os subterraneos da egreja ? -perguntou Pamza.
--Logo os verá, senhor. E' o local onde deposita
2

mos os esquifes de nossas irmãs, visto que a terra d'este


convento não dissolve os corpos .
Da crypta passaram ás catacumbas.
O cirio da porteira alumjava a custo aquella escuri
40 A FREIRA

dão crassa e abafadora . Os tumulos alinhados em anda


res, chegando do pavimento ao tecto, exhalavam o feti
do da morte. As catacumbas romanas não poderiam con
ter maior numero de ossadas . Quanto ao mais, nem no
me, nem algum signal distinctivo. Os mortos que ahi
dormiam , bem mortos eram para suas familias, que nem
sequer lhes podiam guardar minima recordação .
Um dos jazigos, separado dos outros e de diversa
dimensão, continha a mumia d'um homem ! Espectaculo
hediondo ! Aquelle cadaver estava decapitado ! Parece que
o morto havia sido degollado.
Pamza, voltado para a prioreza, apontou -lhe aquel.
le tumulo .
-Ha duzentos annos que este cadaver aqui jaz—
disse ella . — A historia d'elle é legendaria , e ninguem
m'a soube contar.
Quando o juiz, o commissario e o doutor precorriam
o subterraneo, disse -lhes Maria Wenzyk :
-Agora conhecem os senhores este convento tanto
como eu .

Zolpky pegou da tocha que o doutor levava, e se


gunda vez a perpassou ao longo das paredes.
Nada ! -- murmurava elle — nada !
Eis que de subito despede um grito: é que acabava
de vêr duas fechaduras chumbadas na parede.
--Isto que é ?-perguntou.
- Esta porta abre sobre um corredor .
-E o corredor ?
- Vai dar aos esgotos.
-Abra ! -- disse o commissario á porteira.
-Esta porta nunca se abre - disse a prioreza.
NO SUBTERRANEO . 41

Não tenho a chave d'ella. Já disse o que isto era: ao fim


do corredor está o cano dos despejos.
Zolpky chamou o serralheiro, e disse:
-Arrombe esta porta .
O artista observou attentamente a fechadura .
-Ella não está enferrujada - observou elle - não ha
muito tempo que foi aberta .
A prelada tremeu ligeiramente, e encostou -se a um
rebordo de sepultura .
A porta resistia , a fechadura era rija , o serralheiro
com difficuldade venceu arrancal-a : saltou emfim . E lo
go, ao clarão fumacento da tocha, distinguiu -se uma esca
leira sem rampa engolphando -se nas profundezas da ter
ra como um parafuzo disforme.
Zolpky foi quem primeiro desceu, levando a tocha
cuja flamma vasquejava carecida de ar.
Pamza e Blumenstock seguiram -no; e o artista após
elles.

A prelada apertou a mão da porteira, e segredou


lhe :
- Trata de encobrir a porta ... bem sabes...
A porteira fez um gesto imperceptivel, e as duas
mulheres desappareceram cada qual por sua vez no an
tro .

Quando os vizitantes chegaram ao fundo da escada,


acharam - se outra vez n’um corredor tenebroso , onde ha
via duas portas; uma abria sobre um esgoto pestilencial;
a segunda estava encoberta pela porteira que obedecia
å ordem secreta da prelada.
-- Nada! -repetiu Zolpky - nada!
E, já descorocoado, ia dar o signal da sahida, quan
42 A FREIRA

do um gemido, apenas perceptivel, pareceu ressoar n'esse


mesmo corredor. Não era um grito, era um soluço, talvez
o derradeiro estertor d'am agonisante.
--Abra isto ! -_- bradou Pamza desviando de repellão
a porteira - 0) gemido é d'este lado ... aqui deve estar
uma porta ...
De feito, uma porta de ferro, baixa e estreita, ap
pareceu de repente ao exame dos tres homens,7 e, outra
vez, o serralheiro teve de arrombal- a .
Quando, porém , esta porta rondou nos gonzos, os
tres homens recuaram . O que elles viram era coisa de
si tão pavorosa, que lhes falleceu a coragem para en
carar semelhante espectaculo !
1
III

O IN PACE ( * )

espaço de poucos pés quadrados, estava aga


chada, recurva sobre si mesma uma creatura talvez hu
mana . Dizemos talvez porque a face contrahida pelo sof
frimento revelava uma expressão medonha em que a lou
cura se confundia com a raiva. Os cabellos prematura
mente enbranquecidos ondeavam -lhe desgrenhados sobre
os hombros; alguns farrapos cobriam apenas a nudez da
miseravel mulher. Cahiam -lhe os braços sobre os joe

(*) In pace. Assim se designava antigamente o carcere per


petuo dos mosteiros, onde eram castigados os criminosos de enor
mes delictos. Este castigo era precedido de grandes e terribilissi
más ceremonias. A mesma expressão, in pace, era applicada ás
masmorras das prisões civis. Equivalia á eterna privação de li
berdade.
N. do traduct.
44 A FREIRA

lhos retrahidos . Servia - lhe de leito alguma palha fetida .


O unico postigo do carcere tinha sido ladrilhado. Nem
ar, nem luz n’este tumulo : era o in pace da morte antes
2

do trespasse . Nunca tão lugubre agonia ferira a vista do


doutor Blumenstock ; nunca o juiz Zolpki tinha visto nas
prisões civis um criminoso tão deshumanamente tratado .
A presa , quando viu a luz do cirio, abriu os olhos
offuscados e fechou -os subitamente .
Agitando-se violenta, ergueu -se hirta sobre o seu mu
ladar , e exclamou : matem-me ! matem -me d’uma só vez !
Depois, apontando com o braço descarnado contra a
prelada, exclamou convulsa:
--Deus julgará Maria Wenzyk ! Estou prompta a'
-

comparecer na presença d'elle ! O meu inferno foi n'este


mundo.
Fez uma pausa , expediu uma casquinada sinistra,
e bateu as mãos descarnadas, clamando : Elle hade tor
nar, hade tornar aquelle que um dia quiz salvar-me...
Ha vinte annos que o espero e elle hade vir trazer -me a
liberdade, o dia e a luz. Oh ! que frio eu tenho - mur
murou ella tiritante. Não apaguem a luz que me faz
-

bem . Ha tanto tempo que não vejo o sol ! E a luz é,


tão bonita !
E sem transição, a desgraçada fechou os dois pu
nhos ameaçando as testemunhas d'esta scena .
E exclamava :
-Querem torturar -me... querem levar -me á peniten
ciaria ... bem me lembro ... as corôas de espinhos, o açou
te, as dôres na cruz ... e o capellão a escarnecer o meu
supplicio! Perderam -me! Perderam -me e querem agora
assassinar -me. Eu luctarei, eu me defenderei com as
NO SUBTERRANEO . 45

unhas e com os dentes. Não se cheguem para mim . Eu


não sou freira, não sou mulher, sou uma fera.
Um grito rouco rugiu na garganta contrahida da
preza .
Zolpki, á custa d'um violento esforço, aproximou-se
d'ella e disse :
- Barbara Ubryk ...
A encarcerada cahiu de joelhos perguntando : Quem
proferiu este nome ? Quem se lembra d'elle ? Barbara era
o nome que me dava minha mãe, o nome que me dava
o meu amado . Quem é que se lembra d'um nome que
eu julgava esquecido de todos?
-Venho procural-a , Barbara, arrancal- a a - este in
.

ferno.
-Não me enganem murmurou ella com voz in
ternecida - Se me querem matar, façam -no ... facil é...
aqui estou . Que supplicio não será preferivel a esta vida?
-Nós viemos a salval-a !-repetiu Zolpki—Em no
me da lei e da justiça levante-se, que nós vamos ampa
ral-a para sahir d'este carcere.
Pamza acercou -se da prelada e disse: « Dê cá o seu
manto para cobrir aquella desgraçada .»
Só n’este momento , Barbara divisou a prelada ; e en
tão vibrando um grito estridente correu impetuosa para
o fundo da masmorra, bradando:
-Mentem ! querem enganar-me. A furia está ali, o
supplicio está perto. Ah! sim, pois não saio , matem -me
aqui, d'um golpe, por piedade! E' muito... morrer a pe
daços!
-Em nome de Deus lhe juro que venho soccorrel- a
-- replicou Zolpki .
46 A FREIRA

A preza não o acreditava. O relampago de razão,


que parecia alumiar-lhe as palavras, apagara-se sob a
impressão do terror . E ella agora chorava como uma
creança, logo rugia ferozmente; e ás vezes cozida com a
parede, livida ee minacissima na sua immobilidade, esten
2

dendo os braços cadavericos, ameaçava os espectadores


com as unhas agudas.
Ouviu -se do lado da escada rumor . O commissario
deu alguns passos, e percebeu a luz de dois cirios.
Obispo, consoante promettera, chegava acompa
nbado de dois agentes.
A indignação impallidecera - o; nobre e sancta colera
fuzilava - lhe na vista .
Cresceu para a prelada, e perguntou - lhe severamente:
--Isto é obra sua ? E' assim que pratica a misericor
dia de Christo ?
-Esta freira está alienada --respondeu Maria Wen
C

zyk .--Rasga os vestidos, e só com a prisão podemos


reprimil-a .
--Alienada!? — bradou o bispo. Alienada ! Sim ,
actualmente decerto; mas estava - o ella quando a trouxe
ram para aqui ? Então a senhora é juiza e algoz n’esta
casa ? Como? Uma freira, uma filha da mãe 'espiritual
que a senhora devia ser d'estas religiosas, agonisa lenta
mente aqui por sua ordem? ! .. E ousam chamar -se as espo
sas do Senhor! E atrevem -se a aproximarem - se dos sacra
mentos! A senhora merece ser fulminada por todos os raios
da egreja, mas eu não sei que haja anathemas bastantes
que a castiguem . Receio perder a razão se aqui estiver
a.
vinte e quatro horas, e a snr . & accusa de louca uma creatu
2

ra a quem a sua cruêza roubou a luz do intendimento ?


NO SUBTERRANEO , 47

A louca não comprehendia as palavras do bispo;


mantinha -se aterrada, impedrenida contra a parede, com
os olhos esgaziados, e os punhos cerrados. Ah !-dizia
ella . - Eu pensava que só o capellão, o miseravel Onu
fre pertencia aos meus verdugos, mas tambem tu ahi es
tás, bispo! Tu pastor d'estes miseraveis padres que me
torturam depois de me aviltar! Oraça de viboras! Mer
cadores de hostias e de indulgencias, vós polluis e cru
cificaes as esposas de Jesus ! Se o mundo soubesse! Se o
mundo soubesse ... seriam poucas as pedras da rua para
vos apedrejar. Vens aqui julgar-me e condemnar-me bis
po? E ' pena que eu já não seja linda, o espectaculo do
meu supplicio te daria prazer como ao padre Onufre. Ah!
vingança divina, tu não és mais que uma palavra! Cole
ra celeste, que é da tua justiça ? Pois estes muros não se
abatem para esmagar o ninho dos escorpiões ? Deus não
existe, ou absorveu -se na sua eternidade impassivel! El
le já não olha para a terra, senão a terra seria pulveri
sada por causa dos seus crimes... Que quereis fazer do
meu corpo espedaçado, ó pharizeus! Vós já o amastes
quando a pelle era fina e as formas elegantes; quereis
agora que eu acompanhe as gargalhadas das vossas or
gias com os meus gritos de angustia !... Lá em cima ten
des religiosas novas , e bellas noviças... ide ensinar-lhes
o que vós chamaes amplexas do esposo . Oh ! a vida, a 2

vida! Eu devia matar -me antes de deixar lançar o véo


sobre a minha cabeça ... Eu era tão pura Senhor! E vós
fizestes de mim tão enorme peccadora, tão miseravel mar
tyr. Oh ! os sacrilegos ! Os carrascos ! Os profanado
res!
O bispo deixara correr a torrente das palavras . Em
48 A FREIRA

meio das divagações da miserrima louca , descobriu uma


cadêa de factos sinistros . O que elle não via, adivinha
va-o. Esclarecido subitaneamente, penetrava os miste
rios de iniquidade que até aquella hora tinham fugido
ao seu intendimento. Durante o seu episcopado crimes
immundos se haviam commettido. A religião tinha sido
conspurcada, as leis mais sanctas trahidas, a caridade,
a humanidade, esta virtude instinctiva do coração do
homem, haviam sido sovadas aos pés . Em vez de geme
bundas pombas exalçando para o céo votos puros afim
de obterem o celeste perdão, ouvia brados da devassi .
dão monastica, a peior de todas as libertinagens, por
que se faz cumplice de Deus. Em vez de virgens pros .
tradas sobre os ladrilhos , pedindo ao céo perdão dos
crimes do seu povo, descobria mulheres loucas de seu
corpo , servindo- se da propria penitencia para cevarem
deleites. Aquelle sagrado claustro, um dos mais admi
raveis modelos da regra, estava internamente profanado.
O capellão do mosteiro era o chefe d'esse harem de re
ligiosas... E elle bispo, padre, pastor, que tinha ó car
go das almas, e direito de direcção e inspecção, confia
do na rotina, descurara de ver e ouvir. Nunca se per
suadira que algumas pobres meninas fechadas n’esse
convento por pobresa, desesperança ou submissão , se
achariam no lance horrivel de denegrir o que o claustro
devia resalvar, ou então seriam preza de vinganças
tanto mais requintadas quanto misteriosas . A primeira
palavra l'este enigma espantoso disse- lh'a Barbara :
cumpria-lhe averiguar o mais.
Galecski chegou á entrada do carcere, e disse com
a voz cheia de tristeza e dignidade :
NO SUBTERRANEO . 49

Tem direito de me accusar, Barbara Ubryck, por


que houve desmasêlo no meu dever de pastor ... Eu de
veria confiar de mim só para bem ajuisar do viver d'es
tas casas. Foi a confiança que me cegou. Illudiu -me a
austeridade apparente d'estas mulheres. Tamanhas in
famias quem poderia crê -las ! .. Se os homens as contas
sem , e os escriptores as escrevessem , accusa -los- iamos
de impiedade, e lastimariamos que tão mal julgadas fos
sem aquellas que fugiram do seculo para conquistarem
o céo em tempos como estes ... Confesso -me réo , Barba
ra ; mas, chegada a minha vez de juiz, vou chamar ao
$

met tribunal Maria Wenzyk primeiro e depois as suas


cumplices... Interrogatorios, livres e completos, vão di
lucidar-me a verdade em todos os pontos. Serei rigoro
so e inflexivel. Castigando, vingarei não só o seu lon
go supplicio, mas a injuria atirada å religião, cujo minis
tro sou . O principe da egreja vai armar-se com todos os
raios canonicos para fulminar as suas perseguidoras ...
Venha dem medo, Barbara, e compenetre-se bem de que
eu vim salval- a d'este carcere .
-Por quanto tempo ?-perguntou Barbara .
-Não voltará aqui mais .
--Nunca mais ! Disse que nunca mais?... Ó luz
+

do céo! O celestial alegria! Hão de dar -me vestidos ?


Poderei comer ? Sentirei accordar o meu cerebro que se
atrophia ? E heide vêr o sol? A claridade que eu já não
conheço ?
Hade, Barbara, pode vir comnosco .
Lá acima ?
-Sim , mas saírá immediatamente d'esta casa .
A louca sorriu .
4
50 A FREIRA

3
Ponha esta capa - disse o bispo meigamente.
Mas Barbara, reconhecendo o habito religioso, re
9

cusou .
E então o bispo, tirando a propria capa, lançou -Ik'a
sobre os hombros .
Barbara envolveu -se, e das dobras negras resalta
va -lhe a face livida como cabeça mumificada pela morte .
Zolpki e Pamza ampararam -na.
· Dois esbirros ladearam a prioresa .
O serralheiro ía á frente do grupo levando aa tocha :
Quando Barbara chegou ao topo da escada, cahiu ,
ajoelhou, e soluçou como creança . 3

-O dia ! -exclamava ella . -0 dia !


E os seus braços mirrados erguiam -se para o céu
n'um extasis de gratidão.
E ao mesmo tempo disse o bispo, á prelada :
-Faça reunir todas as religiosas na sala do locu
torio, e o capellão tambem . 1

A prioresa dirigiu -se impassivel ao salão onde a es


perava a porteira . Momentos depois, as religiosas com
scus véos achavam -se reunidas, tremulas e aterradas pe
la perspectiva d'um funesto acontecimento . As mais mo
ças choravam , as velhas espavoriam -se por verem o bis
po visitando-as. Era esta uma visita natural, supposto
que nenhum bispo de Cracovia exercesse tal poder para
não dar visos de suspeita; mas que monsenhor Galeeski
auctorisasse as investigações da policia, ultrapassava os
limites. Pois que ! não seriam inviolaveis os mosteiros car
melítanos ? O nome de Santa Thereza d'Avila não pro
tegeria suas filhas ? A lei, forçando as portas das reclu
sas, ousava esquadrinhar-lhes o modo de viver tão á par
NO SUBTERRANEO . 51

te? Em que pensava o sancto padre, se não defendia os


mosteiros ? Não seria melhor isto que estar a reunir tro
pa em defesa d'um territorio que Christo lhe não dera?
Todavia, entre as religiosas que abaixavam os olhos,
algumas abençoavam a intervenção das leis disciplina
res e civis. Uma novica muito na flor dos annos, de joe
thos na sala, orava como Daniel orou na caverna dos
Leões.
As freiras velhas estorciam - se com frenesis de rai
va, e davam aos seus semblantes de pergaminho a im
mobilidade dos traços esculpturaes. Sabiam algumas que
haviam de revelar terriveis lances; e a si se pergunta
vam se seria bom mentir, se confessar, grangeando al
guma indulgencia pela franquesa. E d'esta sorte se pre
miam umas contra as outras como se assim podessem
affrontar melhormente a borrasca . A maior parte d'ellas
ignorava a prisão de Barbara : ás religiosas novas havia
se dito que ella morrera . Porém as que a conheciam e
conjecturavam que o negocio intendia com ella, tremiam
do resultado. A chegada do padre Onufre, longe de as
socegar, dobrou - lhes o terror. Uma sahiu -lhe ao encontro
e disse - lhe:
-Salve-nos , já que nos perdeu!
Ao abrir-se a porta para entrar o bispo, as freiras
recuaram até á parede, como se ella podesse engullil-as e
defendel-as do opprobrio .
Monsenhor entrou primeiro.
Barbara, que tanto almejava a luz do dia, não po
dia supportar -lhe o brilho. O ar vivo que lhe dava no
rosto era forte de mais para aquelles pulmões affeitos ao
fedor do carcere; e porisso, cambaleando, parecia ébria.
62 A FREIRA

Zolpki e Pamza levavam -na amparada.


O espectaculo porém da communidade reunida gal
vanisou - a a pouco e pouco. Retrocedeu vinte annos; re
miniscencias d'algumas feições lhe accudiam atravez dos
destroços feitos pelo tempo; murmurava nomes conheci
dos; é tanto quanto a razão vacillante lhe concedia ia su
bindo na escaleira das suas memorias. Embuçada na ca
pa, com os cabellos brancos dispersos pelas espaduas, es
tendia o braço secco e mostrava ao bispo as freiras que
ella conhecera. Ainda o terror lhe paralisava a lingua ,
ou bem pode ser que o rancor lentamente cumulado em
seu coração não podesse ainda desafogar-se.
E os magistrados, sentados á meza, escreviam .,
-Como se chama? -perguntou o commissario á
prioresa,
-Maria Wenzyk .
-E filha do defuncto Wenzyk , que exerceu altas
funcções e deixou um grande nome litterario ?
-Sou .
- Que idade tem ?
-Trinta e sete annos .
-Ha quantos annos está no convento ?
- Entrei de vinte e um .
Por inclinação ?
--Que intende por essa palavra?
--Póde entrar-se no convento por tendencia á vida
religiosa, ou por violencia da familia, ou pelas grandes
desesperações que nos levam a desejar uma sepultura.
-Entrei por inclinação.
-Não está no mesmo caso a desgraçada que hoje
nos interessa. Foi aqui arrastada por sua familia, e en
NO SUBTERRANEO . 53

carcerada como presa e não como freira ... Mais tarde,


saberemos que circumstancias a trouxeram a isto; o que
hoje importa é saber com que direito e com que motivos
a senhora usou com ella semelhante crueldade .
-Barbara está louca - respondeu friamente a prio
resa .

-Louca! Até certo ponto assim é ; mas quem a tor


nou assim? Quem a exasperou ? Quem obliterou com a
tortura aquelle cerebro exaltado, aquella naturesa arden
te , senão os flagellos que a senhora lhe fez soffrer ?
--Barbara foi presa depois que enlouqueceu .
--As freiras é que a perderam ?
--- Não. Foi o sacristão Casimiro .
--Quem empedrou a janella do seu carcere ?
O sacristão .
--Quem dava de comer a esta desgraçada ?
A sub-prioresa Thereza .
-As freiras conhecem as torturas infligidas a Bar
bara?
-Algumas.
Zolpki, voltando-se para Barbara, disse suavemente :
-Faça um esforço para reatar a cadêa do passado.
O que eu lhe pergunto importa ao seu livramento e a
salvação d'aquellas que á imitação da senhora são amea
çadas de prisão e martyrio ... Se lhe for forçoso fazer
alguma penosa confissão, não tema. Tem aqui a lei para
protegel-a, e um sacerdote para a livrar de escrupulos ...
A senhora foi fechada no seu carcere ha vinte annos ...
Commetteu algum delicto que merecesse castigo - já não
digo como este, contrario á justiça e a humanidade, mas
qualquer punição ?
54 A FREIRA

Barbara passou as mãos pela fronte e respondeu


com voz sonora :
-Sim, tenho uma culpa ... mas não sou eu a cul
pada... O responsavel do crime é outro . Quando entrei
no convento tinha um amor, um amor unico ... Guardei- o
7

puro em mim como fogo sagrado... Mas um homem,


um monstro ... forçou -me a violar o meu voto de casti
dade .
-Um homem ! Quem ? perguntou o bispo?
-Está ali! Está ali ! -disse Barbara . - Entrou aqui
para vêr a victima da sua lubricidade... Elle espera que
a demencia embargue a accusação na minha garganta ...
Mas a razão reapparece-me... a razão que elles enfra
queceram, mas não vingaram extinguir. Eu comprehen
do que me querem vingar, e por isso accuso o réo.
E apontava para o capellão, a quem o bispo per
guntou :
-Ouviu ?
- Ouço, monsenhor . Esta mulher está possessa d'um
espirito mau, e eu nem sequer lhes refutarei as calumnias .
V. ex.a já ouviu dizer que ella está doida; julgue -a pe
lo que diz. Aponta-me como cumplice das suas culpas;
capaz seria ella de accusar tambem os anjos e o proprio
Christo .
-0 Christo ! ... balbuciou Barbara. -0 Christo ! ...
Ah ! Ah ! eu bem me lembro dos amplexos do esposo di
vino, do oratorio mistico, e do cantar da filha de Sulam ...
Elles não viram a alcova sagrada das monjas ... Misera
vel! Miseravel! Tu me perdeste... e a idade ciosa das mi
nhas rivaes fez o resto . Prenderam-me, por que tu me
proferias, e por que era assim preciso enterrar a minha
NO SUBTERRANEO . 55

culpa... Mas, ahi as tem todas, senhor bispo! - proseguiu


ella, apontando para as freiras .-- Não ha aqui uma só que
seja pura , uma só que seja virgem ! E o ardil da cor
rupção vai tão longe que algumas nem sequer sabem que
estão prostituidas... A corrupção! Para saber - se o que el
la é, faz -se preciso excaval- a na alma d'uma freira, ou
d'um confessor de religiosas .
Barbara immudeceu exhaurida de alentos; más de
pois, abeirando- se da prelada, insistiu:
--Deixaste -me sem pão e sem vestidos; impediste
me que eu invocasse soccorro e misericordia ! Mas che
gou a hora de saldarmos nossas contas. As minhas não
são as mais difficies ... Que vida eu vivi ! Que vida eu
passei!
Os magistrados attendiam aquellas palavras com
progressivo interesse. Barbara recuperava a sua lucidez.
Quer a senhora sahir immediatamente d'esta ca
sa? -perguntou Pamza. -Eu a farei transferir para o
Hospicio de S. Lazaro.
--- Já. Respondeu Barbarą. — Mas aquellas ficam no
mosteiro?. 1

-Em nome da minha auctoridade episcopal— intre


veio o bispo - declaro intredicto este convento. E' prohi
bido officiar n'esta egreja; são retirados os sacramentos
ás religiosas que os profanaram ; o capellão passe para
uma casa de penitencia, e a justiça ecclesiastica punirá
as criminosas ao mesmo tempo que a justiça secular a
quem os entrego.
Zolpki acenou aos seus quadrilheiros, dizendo:
chamem um destacamento de hussards: é preciso de cer
to proteger estas miseraveis mulheres contra o furor po
56 A FREIRA

pular. As novas correm depressa, e o que se está passan


do aqui deve já saber-se lá fóra .
Os quadrilheiros retiraram -se.
Zolpki fallou ao ouvido de Pamza; e depois pergun
tou à prioresa:
-Onde está minha filha ?
--Espera -o na egreja.
Zolpki dirigia- se para lá, emquanto Barbara o se
guia com obstinado exame, procurando dar um nome
áquelle rosto ; mas não podia ...
Instantes depois, o doutor, Barbara, e mais duas
pessoas entravam n'uma carruagem e seguiam para o
proximo hospicio.
A tropa chegou logo. Como sempre acontece quan
do se fazem arrestos, a noticia de que a força armada
entrava ao convento das carmelitas divulgou -se com ex
trema rapidez. A populaça apinhou -se na rua, pergun
tando e esperando . Os odios velhos longo tempo repre
sados extravasavam, as injurias faiscavam das linguas
dos homens e do mulherio. Repetiam -se as velhas legen
das do mosteiro; as crueldades ali feitas, e citavam - se os
nomes de meninas que ninguem mais viu . O mysterio
em que se acobertam as ordens claustraes volve-as mais
suspeitas que quaesquer outras. A grade que defende do
mundo deixa ao mundo o direito de suspeitar. O silen
cio, que reina n'esses serralhos celestes, aguça a curiosi
2

dade de conhecer o que ahi. vai. wrig


Apenas se proferiu o nome de Barbara Ubrik , esta
mulher incutiu terror ao espirito do povo, como se fosse
a imagem da morte ; mas recordaram -se que a tinham
visto no dia da profissão, radiosa de mocidade e belleza.
NO SUBTERRANEO . 57

Murmurios de piedade circularam nas turbas que augmen


tavam, e impacientes esperavam a sahida dos agentes da
policia e o desenlace do drama .
Abriu -se emfim a porta das carmelitas de par em
par
Assomou primeiro o commissario, depois quatro
quadrilheiros escoltando a prelada e a sub -prioresa .
Os gritos, os urros, as ameaças da multidão estra
lejaram assim que as viu ; algumas mulheres apanharam
pedras para as arremessarem contra as duas freiras.
Os hussards esforçaram-se e debalde para defender
as carmelitas d'aquella horda aggressora: gritavam todos
repetindo o nome de Barbara, com aquelle brado do Se
nhor fallando a Caim :
-Que fizeste do teu irmão ?
As duas religiosas desceram o véo para encobrir à
vergonha sob as dobras da estamenha; mas uma mu
lher do povo mais atrevida arrancou de repuchão o véo
de Maria Wenzyk , exclamando:
-Vede-as , as corruptoras das raparigas ; caçamos
esta miseravel, mas escaparam - nos milhares d'ellas ! Ar
razemos a casa das carmelitas e a dos jesuitas ; que só as
mães sabem guardar as suas filhas. Fóra da cidade com
estas pestes, e façamos justiça por nossas mãos.
Os hussards tiveram de cerrar filas e levantar um
muro vivo entre a multidão e as duas carmelitas , que
immediatamente foram encarceradas.
1
IV

A VIRGEM DAS TRANÇAS D’OIRO.

POR
OR 1817 , nascia em Czerniakow , nas cercanias de
Varsovia, uma d'essas explendidas crianças das quaes
nos contos das fadas se diz : Ella era formosa como o
dia. A familia dos condes de Ubryk era opulenta. Bar
bara, ao entrar no mundo, foi saudada com extremos de
alegria. Pai e mãe acariciavam -na á competencia , e a
creança cresceu entre duas ternuras cujo defeito era a
exaggeração. Os haveres dos Ubryks permittiram que
Barbara fosse educada com esmero, e bastante é dizel-o
assim , quando se falla d’uma donzella do norte. Por mui
to soberbos que sejamos em França da nossa nacionali
dade, talento, e vivesa de espirito, é mister reconhecer
que a educação de nossas filhas, está muito áquem , da
que recebem as russas e as polacas. Barbara, de na
tural ardente, palpitante de vida e enthusiasmo, estuda
60 A FREIRA

va com paixão. Assim que soube linguas, dedicou -se ás


artes, e ahi mesmo a espantosa facilidade e faculdade de
comprehensão a dotaram muito além das esperanças de
sua familia. N'esse paiz das magias melancolicas, pode
ria dizer-se que uma Elfe divina presidia á vida da for
mosa creança. Cedo deixou de o ser. Floresceu a moci
dade n'ella . Ardia-lhe nas veias generoso sangue; radia
vam-lhe os olhos, ostentava fórmas tão vigorosas quanto
flexiveis; e sobre tudo o que mais lhe realçava os encan
tos,7 e mais explendidamente lhe alindava a face, eram
os cabellos d’oiro , em parte ondeados d’um colorido cas
tanho que contrastava com os esplendores solares que lhe
doiravam as madeixas . Trança longa , fluida, fragante ,
que se frizava no alto do pescoço, e encalamistrava nas
fontes como as cabelleiras dos anjos. Os olhos negros
formavam com estes cabellos e a brancura da pelle uma
admiravel e formosa divergencia . Era de formas fortes
e flexas, com promessas de contornos explendidos, que
a adolescencia guardava ainda na virgindade da sua gra
ça. Nos braços dava a lembrar as deusas, e nas mãos
as madonas . O pé, sem encarecimento de pequeneza , era
arqueado e subtil, feito para aquella nobre dança dos
gregos cuja tradição chegou até nós nas esculpturas dos
templos idolatras. Porém alguma coisa havia n'ella para
maiores encantos que esta belleza perfeita: era a graça
do sorriso, a caricia feiticeira do olhar, e o som melo
dioso da voz . Barbara não agradava tão somente: fasci
nava. Dir --se--hia que ella respirava um ambiente de
amor. Sem o saber, tinha a natureza das fadas. Os an
tigos, classificando estas mulheres , extremaram -nas do
commum dos seres, pela raridade d'ellas. Mas, quer lhes
NO SUBTERRANEO . 61

chamem sereias ou d'outro modo, nada faz o nome: a


especie d'ellas é distincta. Ha mulheres sereias , não por
que se façam , mas porque assim nascem. Não se cançam
para attrahir: exercitam uma faculdade que possuem ,
Barbara com taes fórmas, com tal belleza e diversidade
de talentos, gosava-se d'aquella quasi divina faculdade,
pela qual as mulheres se fazem conquistadoras e despo
tas ás vezes. Fascinava; mas mediante uma opposição
sem duvida destinada a manter oiro fio a balança dos
seus meritos; -o coração, sensivel aos males de outrem ,
doce e terno para os seus, contrahia-se, fechava a qual
quer outro sentimento . Não procurava dominar nem se
servia cruelmente do seu predominio; não; mas a sua al
ma nåo reflectia tanto quanto inspirava. Era alma can
dida e fria como o gêlo . Talvez que n'esta indifferença
andasse exaltado orgulho; mas em tal caso, este orgulho
é o escudo das mulheres... Nunca ellas se defenderão
contra o amor despeitado; porém o amor que inspiram
não lhes custa a repellir. Serão injustas? Porque? Acaso he

o homem pergunta a uma mulher se lhe convém que


elle a ame? Por ventura indaga se ella o achou ama
1

vel, espirituoso e bom ? Não. Cede ao iman que o


attrahe para uma mulher, depois converte, esse amor
n'uma arma, e tenta vencer. Mais d'um homem se dei
xou seduzir pela formosura de Barbara, muitos a pedi
ram para casamento, e ella glacialmente os regeitou,
antevendo que a sua hora de amar chegaria , e então de
balde tentaria repulsar aquelle que desabrolhasse n'ella
as divinas flores da paixão.
De mais d'isso, uma razão impedia que a orgulhosa
menina poetisasse muito a vida. O scismar delicias ener
62 A FREIRA

va; e já dissemos que Barbara era uma indole forte,


şimples, e ao mesmo tempo enthusiasta. Era ingenua nas
relações com familia e amigos; o enthusiasmo era todo
da patria, d'aquella Polonia estagnada em sangue e la
grimas, crucificada sempre e nunca vencida, a Polonia
2

que ergue a fronte subjugada e fita o céo com a serena


confiança dos martyres. Antes de conhecer as paixões
pessoaes, alvorejara -lhe n’alma aquella grande paixão .
Anhelava uma pagina heroica na historia das pugnas
que não tem epopea escripta, pezava-lhe não repre
sentar em seu paiz o papel d'aquellas bellicosas damas
de que a historia registra egregias proêzas. Quando, pe
rante seu pai, fallava no aviltamento do seu paiz, da
oppressão russa , da dôr da nação, o pai abraçava - a com
altiva hombridade, e sacudia tristemente a cabeça.
E a mãe dizia :
« Se Barbara revelar em todas as suas affeições o
fogo que a incende n'esta , que destino será o seu ?
E tinha razão a mãe . Devem temer-se nas mulheres
os transportes, os sonhos d'arte e de poezia, as ambições
nobres, as aspirações sanctas. Tudo lhes é resvaladico,
até a propria virtude, e mórmente as demazias d'ella.
Onde ellas entram de coração , o ideal da vida, o mais in
timo da alma, o homem , ser-lhes -ha inferior. Que o homem
então descrê da mulher. Depois que a legenda reconta
que Adão foi enganado por Eva, todas as seducções fe
minis são consideradas perigos e armadilhas. As mulhe
res ditosas não são grandes artistas nem celebrados es
criptores. Contra estas ha ahi o atirar-lhes o lixo das ruas
para lhes fazerem pagar sua gloria tão amargamente , que
ellas munca acceitariam , se lhes fosse dado prevêr o futuro
NO SUBTERRÁNEO . 63

quando, pela primeira vez, sentiram palpitar na fronte


as inspirações espirituaes. Barbara defrontava -se, pois,
com muitos perigos; por que era bella , artista e enthu
siasta de todas as coisas formosas e nobres .
Se ao menos lhe fosse dado amar a sua Polonia que
rida, louval-a e pranteal- a !.. Mas cada palavra d'estas,
poderia ser malsinada de rebellião. A Russia crê nas cons
pirações das mulheres. Na Polonia se alguem ha revelado
mais heroismo que os homens, são ellas. E nunca lhes
minguou dedicação á causa fraternal, nunca uma polaca
fez pé atraz ao resgate d’um prisioneiro , acovardada pe
los perigos da tentativa. A lei do czar não distingue entre
polacos e polacas, quando os juizes os accusam de cons
pirar; pelo que, se para o homem ha o knout para a mu
lher ha a plette (*) ; mas a Siberia é d'ambos, e a morte,
pelo supplicio, de ambos é tambem.
o destino de Barbara era soffrer os precalços de
todas as vantagens com que a natureza, a sociedade e
a familia a tinham enriquecido. Antes de chorar por si
chorou pelos outros, antes de saber o que era o capti
veiro fremiu indignada contra a escravidão da Polonia;
antes de abrir ao amor aquella fogosa alma que devia
gemer todas as angustias humanas, encheu-a de novos
affectos, de sublimes compaixões e sagrados enlevos .
Derramava os immensos thesouros da sua rica imagina
ção e dadivosa indole sobre os padecentes e os tristes,
lamentando- os, ella que mais tarde havia de ser tanto
(-). O knout é um acoute de correias enterlaçadas e nodosas.
A plette é outro instrumento de tortura, igual na missão de aver
goar as carnes, inas de feitio distincto.
· N. do trad .
64 A FREIRA

para lastimas. O pai era homem austero nos principios,


e inflexivel nas yontades. Não tinha limites, o seu amor
á filha, e não obstante bem sabia ella, que se um dia
anhelasse coisa opposta á vontade do pai seria vencida
infallivelmente na , lucta. Os odios , de Ubrick guarda
vam a presistencia da vingança ; para desafrontar-sed'uma
injuria, esperaria a opportunidade atravez dos annos . E
comtudo não era máo . Julgava a firmeza a maxima das
virtudes civicas e moraes , e toda a energia fundada no
stoicismo da alma. Confessava que comprehendia Bruto
condemnando os filhos á morte; e approvava o supplicio
de D. Carlos enviado ao patibulo por Filippe 11. E' ver
dade que applicava taes theorias á politica, é não á vida
privada; mas apezar d'isso bem sabia a filha que elle no
regimen da familia exerceria o despotismo que desculpa
va nos outros.
Ubryk alimentava contra um homem de Cracovia
um rancor dos que empeçonham as opiniões partidarias.
Ubryk ligara -se tão excessivamente ao governo russo
que excitara por isso o odio de Zolpky, e tanta era a
raiva, e grande o despreso que tal homem lhe ins
pirou, que nem ao filho innocente perdoava as opiniões
do pai . O joven Zolpki fraternisava com a mocida
de polaca eternamente sonhadora da liberdade do seu
paiz.
A fatalidade que preside a tudo n’este mundo, e
talvez principalmente ao amor, aproximou uma noite Zol
pki de Barbara.
A joven, sentada junto d'uma janella, prestava o ou
vido primeiro desattento e depois curioso á conversa
ção que trocavam , perto d'ella, dois homens já velhos.
NO SUBTERRANEO . 65

Um elogiava enthusiasticamente um mancebo, o outro


escutava - o a sorrir.
-

-Mas então, o homem é um heroe? — perguntou


elle ,
--Tal qual; é um heroe modesto e doce que parece
córar das suas bellas acções quando as faz; homem que
se bateria como leão e que um elogio acanha; instruido,
inspirado, com a eloquencia que electrisa as turbas, e
sobre mancira digno de capitanear uma revolução.
-Sim , sei isso - replicou o interlocutor --- Contam
me coisas d'elle admiraveis... Mas sabe elle calcular o
perigo que o ameaça?
-Calculou .
-E não desiste ?
-Diz que o sangue dos martyres sustenta as cau
-

sas preclaras.
Continuou o elogio do moço algum tempo ainda,
por modo qué Barbara se interessou por elle sem o co
nhecer, por que nome nenhum se dera áquelle retrato.
De repente um dos dois, mostrando ao seu amigo
um gentil rapaz, disse :
-Elle aqui vem para nós .
De certo ia para elles , mas com certeza não os via:
>

os olhos levava-os fitos em Barbara, cuja soberba formo


sura o repassara de admiração. Nunca tão maravilhosa
creatura tinha visto. Ia attrahido para ella como para a
luz . Barbara encarava-o tambem com enlevo. Tal ho
mem que tanto enthusiasmava os dois anciãos, e o que
elles haviam dito a respeito d'elle , eram motivos a inte
ressal- a docemente na contemplação d'aquelle que tão fi
xamente a olhava .
5
66 A FREIRA

E d'este encontro de vistas fulgurantes relampa


gueou aquelle magnetismo electrico do amor que funde
momentaneamente duas almas em uma só ...
O mancebo, aproximando -se dos seus amigos, per
guntou :
--Podem apresentar-me aquella senhora ?
Tocava então a orchestra o preludio d’uma valsa.
-

-Aquella senhora -- disse um dos amigos - não a


conheces ?
- Bem sabem que eu não frequento bailes.
- E ' Barbara Ubrik ..
-Aquella! -murmurou o moço .
E passados alguns instantes meditativos inclinou -se
respeitosamente diante de Barbara, e disse:
Foi n'uma festa de Veneza que se encontraram
aquelles immortaes inimigos chamados Julietta e Ro
meu... Passados poucos dias , vou a uma expedição onde
arriscarei a vida... Sou Ladislau Zolpki... Concede-me,
esta valsa?
Levantou - se Barbara, toda purpura e fogo nos
olhos .
-- Vamos -disse ella .
E os dous desappareceram no redomoinho das dan
ças .
O coração de Zolpki arfava de ebriedade desconhe
cida ; premia meigamente a cintura da virgem ; sentia
nas faces o roçar das louras espiras do cabello . E ella
era tão leve, que elle apenas a sentia reclinar-se-lhe no
braço; e era tão bella que os vagados o tomavam, se a
encarava a fito .
Barbara deixava-se ir como Zolpki ao sabor d'aquel
NO SUBTERRANEO . 67

la perigosa embriaguez. Bem sabia ella que se o pai a


visse, havia de soffrer aspera invectiva. Fascinava - a po
rém a idéa do perigo ; como que já lhe sorria a doçura
de padecer por elle. Em rapidos instantes, como tudo
que é felicidade, sentiu -se amada, e amou .
-Quando entrei n'esta salam -disse Zolpki- o meu
intento era unir -me aos meus amigos que conspiram ;
mas agora quizera eu ficar para vêl-a... Tudo nos sepa
ra: a sua opulencia, e a minha pobresa; a obrigação de
me devotar a uma causa sagrada, a responsabilidade em
que empenhei a minha cabeça, a vigilancia do governo ... e
comtudo sinto, adivinho que as nossas almas se intendem ,
e já não deixarei esta cidade sem immensa dôr.
- Vai defender a Polonia , talvez salval- a ! — disse
>

Barbara .
Ao menos vou fazer-lhe os funeraes pomposos.
-Vá, que o seguem os votos de todas as polacas.
-De todas ? E' de mais .
-Não ! A patria é mãe de todos nós .
-Pois, se eu succumbir na lucta, tenha saudades de
2

mim .
-Antes quero offerecer-lhe um talisman ... Acceite
este raminho de urze... Na volta m'o entregará. Já vê
por isto que tem obrigação de voltar.
C
-E tornarei a vêl-a ?
-Hade ver .
-Talvez não saiba a historia das nossas familias...
-Eu não acceito herança de odios; além de que, o
cavalheiro' serve a causa da patria , que é o laço sancto
da familia .
-E pensará em miin ?
68 A FREIRA

-Pois se eu o espero...
A fina mão de Barbara estremecera no braço do
mancebo .
-Ahi vem meu pai- disse ella alvoroçada.
Zolpki desappareceu , mas não tão rapido que Ubrik
o não reconhecesse. Pelo que dardejou á filha um severo
olhar .
-Sabes quem dançou comtigo ?
Barbara hesitou na resposta; mas, vencida pela fran
queza do caracter,, respondeu:
Sei.
-E não receias desobedecer -me ? ..
-Pois que me prohibiu ?
-Ha preceitos implicitos. Sabes de mais que odeio
a familia Zolpki.
--E tambem sei que Ladislau é estimado e admira
do; e sei tambem que estou n'um baile e que dancei...
não sei mais nada .
-A isso ajuntarei que a prohibo de fallar com tal
homem .
--Comprehendo, meu pai.
- E , se transgredir esta ordem ...
>

-Não diga mais nada ... E' tarde ... quer que nos
retiremos ?
E' o que Ubryk desejava.
Desde esta noite Barbara teve um segredo para seu
pai .
O amor que lhe prohibiam implantou -se tanto mais
entranhadamente quanto era o esforço para lh'o arran
car . E do mesmo passo que ella ouviu encarecer a cora
gem e patriotismo de Zolpki, mais vibrava de jubilo ou
NO SUBTERRANEO . 69

vindo citar relances de generosa intrepidez e nobre ar


dimento . A missão a que elle se votara promettia emi
nentes perigos, que affrontava não só por enthusias
mo patrio e pelo resgate da Polonia, mas ainda com a
serenidade heroica que preside ás resoluções formida
veis .
Ao cabo da precaria empreza negrejava -lhe a mor
te, e, peior que a morte, o captiveiro na Siberia ; mas
não havia fazel- o recuar . E, se algum estimulo podia
exaltar a energia do moço audaz, era a idea de merecer
a estima de Barbara , estima profunda e intima sem a
qual não pode haver amor sincero e duradoiro. Esteve
ausente tres mezes Zolpki. Quantas vezes, n'esse lon
go espaço não perguntou elle, inquieto e desconfiado, se
Barbara conservaria lembranças d'aquelle unico encon
tro! Uma valsa, uma flôr offerecida, uma promessa d'o
2

lhos... Que mundo de pensamentos, de sensações! E


todavia que insignificante penhor!
Tinha Zolpki um amigo, não companheiro de infan
cia, mas um camarada de folias que se encontra alegre
mente, que se deixa com pezar, com quem se bebem
garrafas de generoso vinho e se queimam alguns charu
tos; amigos, porém , no sentido perfeito da palavra, que o
mesmo é dizer um ente com quem pensava em voz alta,
que lhe conhecia o amago da alma, e cuja affeição lhe
era de todo o ponto insuspeita .
Zolpki encarregou Casimiro de lhe fazer chegar no
vas de Barbara. O moço , temeroso de a expor, não ou
sava escrever-lhe . Comprou um exemplar de Marya,
admiravel poema que é uma das obras - primas da litte
ratura polaca, sublinhou a passagem do « Juramentov
70 A FREIRA

as sublimes strophes que sabem de cór todos os amantes


slavos, e enviou o volume a Barbara Ubrik. Ella com
&

prehendeu -o ; mas era -lhe desnecessaria á sua confiança


aquella prova : bastavam - lhe as palavras ouvidas. Um
minuto lhe sobejara ao completo reviramento de sua
vida .
Findos tres mezes, o moço voltou .
Foi no templo que encontrou Barbara .
A menina ia ali todas as manhãs, seguida de uma
aia que a creára, e cuja amisade tinha a profundeza da
ternura maternal.
Ajoelhou Zolpky á beira de Barbara; e, no instan
te em que os fieis acurvavam mais humildemente as ca
beças, interpoz uma carta na pagina do livro das ora
ções .
E ella não fingiu desperceber aquelle acto . Baixou
as palpebras em signal de consentimento mudo; e quan
do sahiu da igreja, estreitando o livro ao seio, sentiu que
lhe lavrava fogo na alma, -que esse fogo radiava da
carta de Ladislau .
Depois, fechou -se no seu quarto e leu a carta.
Quem ha ahi que defina e analyse uma carta d'amo
l'es ? São todas parecidas, cheias de adoraveis candu
ras, de enthusiasmos sublimes, por vezes pueris e en
cantadores, jubilosos como um hossanah, e tristes como
um gemido. Umas vezes marejam os olhos ; outras vezes
fazem sorrir. O que as aformoseia e divinisa é o senti
mento que nos infundem e inflammam . Se mais tarde
o coração se resfria e encinéra, lá vai perdida a primei.
ra impressão; porém , se um bafejo generoso nos aviven
ta, se o seio arfa, se renascemos para o amor como pa
NO SUBTERRANEO , 71

ra uma vida nova, são ineffaveis os gosos que nos dão


as nossas cartas amorosas . Não nos vexamos de as ler,
acolhemo-las ao seio, beijamo-las sem pejo nem contra
feito pudor. Aquelle que não estremece ao ler uma car
ta d'essas, aquelle que olvidou a vida ardente e febril
que ahi se reflecte n'esse papel, esse tal não amou nun
2
ca, nem foi digno de ser amado.
Ladislau referia a Barbara o resultado da sua via
gem , iniciando- a em suas altas e legitimas esperanças,
e rogava - lhe que lhe confirmasse o sublime alento de seu
coração. Não mandava, implorava, supplicando-lhe que
lbe concedesse vêl- a todos os dias na egreja, e licença
para escrever - lhe, á falta de outro meio de lhe fallar .
Barbara permittiu tacitamente quanto lhe elle pe
dira ,
O amor, porém, é insaciavel. O moço não se satis
fez com o prazer de a vêr uma hora de cada dia . A
virgem , ajoelhada ante o altar, parecia ser mais de Deus
do que d'elle. Por isso, Ladislau solicitou encontral- a
em melhor local, e procurou os meios.
A casa do pai de Barbara era murada de vastos
hortos, e tão amplos, que um d'elles entestava em uma
especie de matagal em que se emmaranhavam mais ar
bustos que arvores corpulentas. Este jardim frondente,
accidentado e pittoresco era o dilecto de Barbara com
preferencia aos taboleiros floridos que no estio alcatifa .
vam os arredores da casa. A serra sobranceava aquelle
bosquesinho, e d'ahi perto havia uma porta estreita, que
não servia nunca, já velha e carunchosa , fechada com
ferrugenta fechadura, incapaz de resistir a um rijo em
puchão. Quando Zolpky lhe pediu uma entre-vista, Bar .
72 À FREIRA

bara pensou logo n'aquella porta; depois atemorisou-se,


e repelliu a idéa tão formalmente que Ladislau não ou
sou insistir. Era alma terna e melindrosa que facilmen
te se retrahia em si mesma. Cuidou que Barbara o ama

va menos de que elle esperava, e d'ahi seguiu -se o avas


salal- o grande tristeza . Continuou , não obstante, a fre
quentar a egreja; mas já longe de sentir aquelle entra
nhado jubilo que lhe brilhava na mente quando via
Barbara . Depois, nos seus olhos triste parecia queixar-se
a magua, e já no sorriso lhe pungia o agro da duvida.
E não foi um dia ao templo, dizendo entre si:
--De que serve ir, se não sou amado?
Não obstante, volvidos dois dias, cedendo a novo
impulso, tornou á egreja. Viu Barbara pallida e contur
bada. Repercutira n’ella a dôr de Ladislau. E assim,
ao perpassar, sem encaral-o, murmurou :
--A noite.
Recolhida a casa, Barbara apavorou -se da sua cora
gem . Que promessa fizera ? que destino era o seu ? Co
mo cumprir tão imprudente acto ? As chaves da porta
eram desde muito perdidas.
Fingiu que passeava, durante o dia, no bosque, e,
examinando a porta, intendeu que só havia um recurso:
despregar a fechadura; mas não tinha com quê . Esgar
çou as debcis mãos, e quebrou uma faca antes de poder
desencravar dois pregos. Quando conseguiu isto, ouviu
ao longe a voz do pai, e ergueu mão da tarefa. Correu
aos braços d'elle, entreteve-o, com diversas coisas, e vol
tou á empreza, quando elle a deixou . Era noite. Em.
fim , a fechadura cahiu. Barbara escondeu - a n'um tufo
de verdura e mais os pregos , e voltou á sala. Por causa
NO SUBTERRANEO 73

da sua distracção foi muitas vezes interrogada carinho


samente. Respondeu que soffria . E não faltava á verda
de. Ardia -lhe a cabeça, saltava-lhe o coração. A mãe
alvorotou-se. Ubryk mandou - a deitar- se.
Barbara folgou com a ordem, para estar sósinha, e
>

não ser interrogada pelos olhares, e por palavras, bem


que intencionalmente inoffensivas. Sentada no seu sophá,
escutava o silencio da caza . Pouco e pouco, deu tento de
que a mãe se deitava, e o pai entrava na livraria. Fal
tavam os criados. Deram dez horas. Barbara nada dis
sera a Zolpki sobre o modo de se verem ; mas a idéa
da porta com todas as desejadas felicidades partira d'el
le: era de esperar que lá estivesse.
A alcova de Barbara era tão contigua da da mãe,
que todas as precauções eram precisas .
Cobrou animo, abriu a sua porta, quedou-se mo
mentos no corredor a fim de certificar - se de que não
acordara ninguem .
Depois começou a descer ás apalpadellas e em pal
milhas.
Chegando á porta que abria para o jardim, tomou
fôlego. Era cerrada a escuridão do jardim . Não havia
luar, nem clarão nas janellas. Barbara socegou; mas en
trou-se d'outra especie de medo. Até aquelle instante,
dera-lhe alma a febre causada pela difficuldade do pro
jecto. Chegado o lance de vêr Zolpki rosto a rosto, sen
tiu-se alvoroçada pelo pudor. Nada temia; que a casti
dade é um instincto sublime que soffre receios e não os
define. O amor que Barbara sentia não lhe era estorvo
a
& conhecer que commettia grave culpa contra seu pai e
contra os bons costumes. Seria amaldiçoada pelo pai, se
74 A FREIRA

lhe elle descobrisse a fragilidade; o mundo culpal-a -ía ,


e as mães prohibiriam a suas filhas que lhe fallassem ;
e seria repulsa da sociedade onde ella tinha sido sobe
rana até aquelle instante.
Esmoreceu . Teve a idéa de retroceder; mas figu.
rou -se- lhe isto covardia. Receiosa de que o panico a do
minasse, e o remorso lhe sopezasse o amor, correu para
a extrema do jardim; e, chegada á porta, abriu - a sub
tilmente .
Zolpki expediu um grito de alegria; e, involvendo - a
nos braços com ardentes carinhos, estreitou-a como um
thesouro . E não lhe fallava, por que a sua commoção
era indizivel . Apenas lhe acariciava as tranças d'ouro
com o bafejo. Não reparava na formosura material da
mulher , por que tomava posse d'uma alma. N'ella e n'el
le a pareza aporhavam a qual mais immaculada . Quan
tas grandezas d'alma cabem n’um sancto amor as tinha
elle . Como o seu intento era esposal-a, o pensamento do
deseja viria somente á hora em que Deus lh'a pozesse
nos braços .
Quando se remiram de sua lethargia, ebria e encan
tada, Ladislau, que não a podia vêr n'aquella escuridão,
segredou - lhe ternuras, sonhos, amores, com aquella divi
nal eloquencia que brota de corações amantissimos, e
filtra n'elles luminosas convicções. Foi o difundir -se d'uma
alma n'outra enternecida e heroica. Quando elle dizia
que amava, ella respondia-lhe « Tambem eu te amo ) ; e
quando mais tarde, elle disse : « Até quando? - > aper
tando- a ao peito, a virgem respondeu: «Até amanhã » .
V

O POEMA ETERNO

FFOITOU-SE Barbara a ponto de ir todas as noites


esperar o amado ao bosque silencioso . Durante as horas
que passavam juntos, esfolhavam uma a uma as mais vi
cejantes flores da esperança. A felicidade do momento
offuscava -lhes os estorvos do porvir. A exultação de se
entreverem cada noite não os deixava soffrér receios das
privações que se lhe antolhavam . Horas de casto enle
vo, de effusão d'alma, de apaixonados arrobos, de elo
quentes promessas eram essas de Zolpki e Barbara ! Os
sentidos não tinham parte n'aquella enchente de gosos
espirituaes... Os anjos não se beijariam com mais can
dura. O futuro esposo não queria desluzir os mimos da
predestinada noiva. O futuro lhe centuplicaria as deli
cias de que se privava. Quando o coração de Zolpki
palpitava muito, por que os cabellos de Barbara, roçan
76 Å FREIRA

do-lhe as faces, as estremeciam voluptuosamente;


quando a tepida pressão das mãos da virgem lhe accen
diam lavas no sangue, levantava-se e despedia-se. E en
tão, com dulcissima e casta desenvoltura, ella se lhe
pendia do pescoço, e murmurava:
- Amas - me tu?
-Doida! .. -respondia elle .
E hasde amar-me sempre?
Até á morte ,
E ella agitava a loira cabeça.
-As mulheres - dizia ella são mais leaes na pai
xão .
-- E os homens mais intrepidos.
-E se nos separassem?
-

- Tempo virá em que sejas livre ... Esperarei...


-E,> se eu morresse primeiro de tristeza!
-Seguir-te -hia eu .
-Assim seria, esposo da minha alma... Sei que me
amas. Tua voz e teu coração tem a mesma harmonia; e
eu tremo quando te escuto, porque as tuas palavras es
pertam em mim sentimentos de força, valor e ternura .
Todas as noites, ao separarem - se, repetiam aquel
las phrases incoherentes e adoraveis, balbuciavam as pa
lavras divinas que os beijos interrompiam . Todas as noi.
tes, a ancia de se tornarem a vêr lhes difficultava a se
paração, e prolongava essas tão perigosas quanto que
ridas entrevistas.
Ai ! o amor atraiçoa-se com as suas proprias dema
sias! A's vezes a estrella matutina ainda os encontrava
juntos! O repontar do dia assustava Barbara, que des
pedia a fugir atravez do jardim, subia a tremer para o
NO SUBTERRANEO . 77

seu quarto, lançava se á cama, e adormecia tão profun


damente que não ia á missa d'alva. A paixão absorvia
lhe a fé, até aquelle tempo tảo candida! Já não sabia
2

que dizer a Deus desde que fallava, por largas horas, a


um homem, doido de amor da sua belleza, e encantado
de seu espirito e da nobresa do seu coração. Esta mu
dança de habitos foi grande imprudencia. A mãe im
pressionada interrogou - a.
A filha attribuiu á falta de saude a quebra nas devo
ções. O mesmo foi inquietar-se a familia, e logo Barbara
intender que os cuidados com que ia ser desvelada lhe
seriam impecilhos ás noitadas amorosas.
Ubryk, desde certo tempo, mostrava - se desconfiado
da filha. Pela primeira vez, n'aquelle sarau em que Bar
bara dançou com Zolpki, conheceu que a filha herdara
o seu caracter energico. Atterrou o a idéa da lucta. Nun
ca elle proferiu o nome de Ladislau, nunca alludiu á
brilhante sahida que elle dera á melindrusa missão po
litica; mas Ubryk, reparando n'um certo rubor instanta .
neo, e subita pallidez, inferiu que ella não esquecera o
cavalheiroso rapaz .
Nada disse a Barbara ; mas invectivou d'esta arte a
mulher :
--Tu educas mal esta rapariga, deixando-lhe nu
trir no coração ideas de independencia que mais tarde
nos darão que soffrer. Oxalá que não disparem em des
honra para nós...
-Oh ! - exclamou a mãe - pois tu desconheces a
C

tal ponto tua filha ?


- Não sou cego ...
--Mas que é que tu pensas ...
78 A FREIRA

-Tudo e nada. Uma valsa e um momento de pa


lestra com esse Zolpki, que o céo confunda ...
-E' um nobre coração ...
- Tambem tu !.... Parece-te que é um heroe ?
-Digo que é. Não me compete averiguar se fizes
te bem ou mal em te submetteres ao governo russo ,
aceitando empregos e medalhas . As polacas que não
passam de mulheres, divergem das opiniões dos homens.
Zolpki é um bravo antagonista do oppressor . Conspira
contra o Czar, odeia-o, e toda a sua vida odiará conspi
rando . Esta firmesa de proceder espanta-me . Zolpky é
amado de toda a gente, conquistou a confiança d'um
partido, e, se elle amasse nossa filha ...
Davas -lh'a ? -exclamou Ubryk .
Immediatamente . Quem se immola por seu paiz,
saberá sacrificar -se a sua familia e á ventura dos seus.
-Dizes sandices, e taes, que, se outro as ouvisse,
bastára isso a tornar-me suspeito . Creio que sabes quan
tos perigos se involvem n'esta palavra « suspeito ) ..,
-Sei; e pode até ser que eu me abalançasse aos
perigos em vez de me estar gosando d’uma tranquil
lidade que os nossos compatriotas nos fazem pagar
cara ...

-De sorte que tu animas tua filha em sua louca


paixão, se estás certa de que ella ama esse desatinado
conspirador que hade acabar os dias na Siberia?
--Deus é pai dos desgraçados ! - E como o marido
fizesse um gesto de impaciencia, proseguiu: --Pergun
tas- me se animo a paixão de minha filha ? Não . Pelo
contrario, heide prohibir-lh'a. Enlace não applaudido pe
los pais é funesto. Tranquillisa-te. Defenderei a paz e
NO SUBTERRANEO . 79

honra de minha filha; mas faltar-me-ha força para amal.


diçoal-a, se o seu coração se obstinar.
-Bem... já sei a quem me heide atêr. E, sem mais
delongas, interrogarei Barbara na tua presença .
-Não o faças; peço -t'o em nome de Deus . Os ho
mens não tem bastante delicado o coração para interro
gar as filhas em taes casos.
-Sou pai .
-Pois sim ; mas és homem . Uma creança, em ven
do a ira nos teus olhos, não desdobrará diante d'elles a
sua alma . A minha ternura colherá mais que a tua se /
veridade. O que tu queres saber, eu o saberei. Mas pe
ço-te que me deixes sondar o coração da filha, a mim
só. E' um direito meu... e tu sabes quanto eu, ordina
riamente, uso pouco dos meus direitos...
--Seja assim, mas sem demora . Incommoda-me a
* incerteza . Offerece -se-me excellente casamento para a
pequena. O conde Rastoi pediu- m'a.
- russo?
-Pois não somos nós todos habitantes da Polonia
russa ?
-Nunca-exclamou a condessa Ubryk . - 08 pola
cos não ractificam a usurpação, nem acceitam a nova
carta redigida pelo imperador. Não digas tal, senão que
res que o coração se me parta de dôr. O que fizemos
foi deixar que o vencedor absorvesse o vencido, defen- '
dendo contra elle nossa fé, nossa historia, nossa lingua,
e sobre tudo nossa familia. Quanto ao mais, socega, que
hoje mesmo te farei a vontade.
O conde sahiu, deixando a mulher atterrada.
Bem suspeitava ella que seu marido não estava de
80 A FREIRA

todo em todo illudido . Combinando pequenas coisas con


seguiria convencer-se. Se Ubryk tivesse dito verdade?
Se Barbara amasse Ladislau? Se o enthusiasmo da me
nina houvesse esposado o patriotico enthusiasmo do ar
dente polaco? Tambem ella sentia, como mulher, os po
derosos encantos de Zolpki. Comprehendia qual devia
ser a influencia d'aquelle cavalheiroso moço, nobilitado
por incessantes arrojos, n'um espirito varonil e ao mes
mo tempo amoroso . Figurando-se no logar de Barbara,
perguntava a si mesma se, na mocidade, recusaria o
amor de Zolpki.
Longo tempo se deteve encerrada, hesitando em
exercer poderes de mãe sobre a filha que segredava em
si amor talvez forte bastante para lhe dar energia na
lucta .
Depois , entrando na sua propria individualidade, a
condessa lembrou-se do muito que havia sido humilhada
pela situação do marido; quanto ella, ardente polaca,
havia corado em presença dos seus compatriotas que ha
viam regeitado alliança com a Russia, e padeciam des
terrados, roubados, mas não enfraquecidos na sagrada
defeza da terra natal.
A condessa Ubryk vira fenecerem -se lentamente os
seus mais bellos annos requeimados pela angustia. A
apostazia do marido fôra- lhe o tormento de cada hora.
Acolhendo- se á maternidade, ella devia a Barbara, se
não o esquecimento, ao menos o turpor de muitas ma
guas. Mas uma nova lucta começava. A ter de defender
a filha, a mãe revelaria coragem sobrenatural .
Que tinha porém a ganhar com isso! Que faria con
tra a vontade do marido ? Não só impugnava elle que a
NO SUBTERRANEO . 81

filha amasse Zolpki , porque o moço lhe não convinha


para genro, mas ainda e principalmente, porque a sua
politica se expunha. Se Ubryk concedia a filha aquelle
fogoso defensor da liberdade polaca , a Russia julgaria
que elle se bandeiava com os perturbadores da ordem ,
e para logo as suspeitas lhe andariam na espionagem .
Entre suspeitar e accusar a distancia é curta . A situação
que Ubryk alcançara tinha - lhe sido bem penosa. Muitas
vezes os polacos incorruptos o tinham accusado de dar
o beijo de judas na face da Polonia atraiçoada. Se elle
tinha arriscado muito, cumpria -lhe guardar ao menos os
beneficios da traição . Ubryk sacrificou sem magoa a fe
licidade da mulher a sua ambição, e pelo mesmo theor
não duvidaria sacrificar a filha .
Resolveu-se emfim a condessa. Pareceu-lhe ceremo
nioso de mais chamar Barbara e ter com ella uma ex
plicação similhante ao interrogatorio d'um processo de
familia . Preferiu simplesmente subir ao quarto da fi
lha .
Barbara ao ouvir o rumor. da porta que se abria,
deu-se pressa em esconder o papel em que estava escre
vendo. A condessa impallideceu ligeiramente ; depois, sen
tando-se n'um sophá, chamou a filha, a qual poz ambas
as mãos no regaço da mãe, e esperou. A condessa não
sabia por onde começar. Pensativa, afagava os cabellos'
dourados da filha, perplexa entre perturbar aquelle cora
ção infantil ou revoltar o coração da mulher.
-Que tem , minha mão?--perguntou Barbara do
cemente .

-Eu nada, filha.


--- Nada !-- repetiu Barbara melancolicamente. - Olle
6
82 A FREIRA

lá se quer enganar a sua cara filha ... Eu bem a vejo a


sorrir nas salas; vejo- a coberta de brilhantes que lhe in
vejam ; mas vêl-a chorar... só Deus e eu !
-Tu !
Eu ! sim . E tenho pena que a mãe me não faça
sua confidente, e me diga : « consola -me que eu soffro » .
E creia que eu havia de consolal-a, derramando no seu
coração. todo o balsamo da minha ternura , fazendo -me
creança para lhe chamar o riso aos labios, e o contenta
mento ao espirito... Meu pai é duro ...--disse Barbara,
abaixando a voz .
-Minha filha !
-Oh ! eu por mim não me queixo. Nunca lhe ouvi
palavras asperas ... senão uma vez ; mas eu conheço que
a alma d'elle é aspera... Se a brandura da mãe não fos
se tanta , os arrebatamentos d'elle haviam de ser terri
veis .
- Espero que tu nunca os mereças .
Barbara não respondeu .
-Em que meditas?-perguntou a mãe.
-N'isto ... Estava a pensar se foi minha mãe que
escolheu o marido .
-Não , filha.
-Lá me pareceu ... Obrigaram -na
na ...
Nunca tive que soffrer por isso .
-Isso é a boa maneira de fallar a uma filha ... A
mãe quer que eu respeite meu pai, e por isso diz que
"não teve pezar de ser sua mulher; póde ser, mas custa
me tanto a ... A mãe sendo tão polaca, hade por força
soffrer com a situação politica do pai.
- Era outra n'esse tempo .
NO SUBTERRANEO . 83

-Pois sim ; mas por isso mesmo a desilluzão e a


tristesa haviam de ser maiores .
-Resignei -me... é o dever das mulheres.
-Por que?-perguntou Barbara fitando na mãe os
seus grandes olhos .
-Por que o evangelho nos ordena obediencia ao
marido, e a lei nos força .
-Eu respeito o evangelho e sigo a lei ; mas, na
applicação d'estes dois codigos ... tenho duvidas .
-Tu !
--Tenho reflectido muito .
- Reflecte , mas não raciocines.
-Por que não?
-Por que nos é prohibido .
- Bem sei ; mas não faço caso da prohibição. Que
ro obedecer a meu marido, quero amal-o muito, seguil-o,
ser a metade vivente , pensante e apaixonada do esposo
recebido perante o padre; mas quero escolher esse mari
do que me hade dominar; quero estimal-o, adoral- o an
tes de lhe sacrificar a vida. E tão pouco admitto o caza
mento de conveniencia , como o cazamento de dinheiro .
-Que cazamento queres tu?
O do amor .
-Meu Deus ! meu Deus ! - exclamou à condessa,
apertando a filha ao coração .
-A mãe deve comprehender isto ... O cazamento
do amor... a castidade da paixão , a alegria do dever,
a escravidão do espirito, e a igualdade da razão, um es
poso que é nosso amante, um esposo admirado de todos,
que nos ama , que nos adora, e que só de nós é adora
do !
84 A FREIRA

-Ai, filha !
-Quer dizer que isto é um sonho ? Pois seja. Mas
por que não havemos de continual- o com a obstinação do
desejo !? A mim parece -me que, á força de vontade, se
vence o destino , e o que desejamos se realisa por effeito
d'uma lei de attracção moral; eu por mim só me cazarei
por amor, por que d'outra maneira nunca acceitarei ma
rido .
-Pobre creança ! -murmurou á condessa.
-Não me lamente, approve.
--Quizera, mas não posso ..
-Censura -me ?
-A mãe não ousa dizer-te que tens razão .
-Isso não pode ser, permitta-me que lh'o diga,
não pode ser assim ... O que eu penso ... é o que a mãe
pensa ou já pensou... Se fossemos sósinhas aqui, estava
tudo decidido; más ha um estorvo ...
-Um estorvo ...
-Meu pai ... Sei que elle , fiel ao seu systema im
perativo, hade querer impôr-me cazamento que mereça a
approvação dos seus chefes, e o suffragio do partido rus
so ... A mãe abaixa a cabeça... entendo-a... não me res
ponde nem eu quero que me responda ... é-me doloroso
expôl-a a mentir, a mim ou a elle... Veio procurar-me
ao meu quarto; isto, á primeira vista, parece simples...
måe e filha tem sempre necessidade de se verem e con
fiarem insignificancias que são coisas grandes como tudo
que pertence ao amor... Entretanto, algum motivo aqui
trouxe minha mãe ... não me engane . A maneira como
me abraçou não era a do costume... O seu lance d'olhos
espreitava tudo o que está por aqui ... Foi meu pai que
NO SUBTERRANEO . 85

a enviou... Elle que quer? Que eu me caze?... Adivinho


que sim . Responda -lhe que eu esperava o ensejo de lhe
confessar o que vai no meu coração, e na minha intel
ligencia ... Já estou vendo nos seus labios uma pergun
ta ... Peço -lhe por Deus , que m'a não faça, por que me
obriga a responder-lhe ... Não lhe esconderei nada por que
a amo ... A minha franqueza ser-lhe-ia penosa, quando
>

a mãe fallasse ao pai... E' melhor que o não saiba .


--Desgraçada creança !--- bradou a condessa .
-Feliz ! quer a mãe dizer. Muito feliz, por que o
sentimento que me enche o coração dá -me valor para lu
ctar com todo o mundo .
-Excepto contra mim .
-Oh ! a mãe, essa hade estar sempre do meu lado
-exclamou Barbara, lançando-se-lhe nos braços.
E a måe, abraçando a filha com ardente carinho,
beijou -lhe a fronte e os cabellos; ao passo que Barbara
lhe agradeceu o abraço tão violentamente commovida,
que a pobre mãe comprehendeu a profundeza do mal.
Que dizer -lhe ? Obter a completa confissão de Barbara
era facilimo. Mas que fazer a esse segredo! Confial- o ao
marido ? Expôr a filha ás iras d’um homem que tão máo
havia sido para ella ! A reticencia de Barbara era bem
mais habil e politica. A mãe adivinhava a esposa ... não
era obrigada a trahir. E mais tarde , qual viria a ser a
sorte de Barbara? Ninguem podia sabel-o . O que desde
já cumpria era salval- a da situação presente; quanto ao
futuro, a providencia .
-Que heide eu dizer a teu pai , a respeito de ...
-Do cazamento que elle me propõe ?
-Sim .
86 A FREIRA

A mãe inda me não disse quem é que me per


tende .
-O conde Rastoi .
-Respondo simplesmente que não cazarei com um
russo .

-- Deus queira que teu pai se dê por satisfeito com


essa resposta .
-Hade dar provisoriamente .
E nada mais disseram . Abraçadas uma n'outra , as
şim passaram a tarde.
O conde, vendo que a mulher não vinha, concluiu
que as negociações se complicavam, e que era chegada
a hora de pôr a sua auctoridade na balança .
Subiu; e, quando subitamente empurrou a porta , viu
Barbara reclinada ao seio da mãe e brandamente emba
lada por ella como se faz ás creanças quando se lhes
acalenta os vagidos . A condessa levantou -se quando ou
viu o marido .
Crispou aos beiços de Ubryk uma pergunta ; más a
esposa deu-lhe o braço e levou-o comsigo; e, como elle
tivesse pressa de saber o acontecido, sahiu do quarto
sem dizer nada á filha . A anciedade da mãe, e o silen
cio de Barbara dobraram a inquietação de Ubryk .
Quando porém se achou a só com a condessa, em
vez de ouvir alguma coisa positiva , escutou phrases
anodinas, vagas promessas, fluctuações e divagações sem
fim .
- Muito obrigado , sei tudo --disse elle seccamente .
Sahiu, e só voltou á hora de jantar.
Havia um certo embaraço e desconfiança em toda
a familia .
NO SUBTERRANEO . 87

O conde jogou o xadrez com a filha, contrafez ale


gria muito inversa das disposições de seu espirito; e, tera's
minada a partida, disse que estava fatigado e ia reco
lher - se .
Barbara deixou rapidamente a mãe.
- Toca a rebate no campo - disse ella -- O que irá
agora acontecer .
E entrou nos seus aposentos muito perturbada.
Como quer que fosse, os diversos rumores da casa
extinguiram -se como sempre a pouco e pouco ; e ella es
perava que o completo silencio lhe permittisse sahir pa
ra ir ter com Zolpki .
Desceu as escadas com precauções infinitas, saltitou
pelas aleas do jardim , e sumiu -se atraz dos macissos .
Um momento depois , ouvia o bater do coração de
Ladislau .
-Como o teu seio pulsa ! E' de jubilo ? -- disse
elle .
-Meu amado — respondeu ella - O jubilo do pre
sente não me esconde as tristezas do futuro ... Aquelle
anjo da minha mãe propoz-me um marido por ordem
de meu pai ... Já sabes que recusei... Minha mãe prote
ge-nos ... Primeiro, emquanto o silencio for possivel não
diz nada ; mas depois, defende-nos... Meu pai é cruel e
obstinado ... Não me hade perdoar nunca este amor.
-E que farás tu ?

- Pedirei a indulgencia do céo, e continuarei &


amar - te .
- Ah ! a minha linda corajosa !
--Até á morte --ajuntou ella.
- Até à morte !---- repetiu Ladislau .
88 A FREIRA

Não bão, de esperar tanto tempo ! -- disse uma voz


conyulsiva de raiva .
- ,-; E, ao mesmo tempo, o conde Ubryk assentou Iso
bre o hombro de Zolpki a sua mão pesada, exclamando.
em VOZ cava :

-Corruptor de donzellas illustres! covarde ladrão


que entras no gremio das familias pela porta falsa! a des
honra nunca denegriu mulher da minha familia, e Bar
bara não será tua victima .
-Senhor conde, --respondeu Zolpki --- estou em sua
-

casa, entrei aqui de noute como um ladrão, a minha vi


da está ás suas ordens ... Mas eu amo sua filha extre
mosamente; e , receiando ser repellido por v . ex .“, dirigi
me a ella , cuidando que assim conseguiria abrandar -lhe
o coração .
--Vou matar -te, que posso por direito fazel-o .
Barbara atirou-se de joelhos aos pés do pai, cla
mando:
-Perdão, perdão ! que eu amo-o !
-Ousa confessal-o ?? .
-Confesso, proclamo-o, digo -lhe em alta voz que
o amo. Se meu pai o fere, o mesmo golpe me dará a
morte !
A pallida menina quiz arrancar a pistola da mão do
pai; mas Ubryk repelliu-a tão brutalmente que a fez ca
hir em cheio e desamparada no chão .
- Mate um homem - bradou Zolpki, mas não mate
essa creança !
Instantes depois, já Barbara se abraçava ás per
nas do pai, e lhe dizia entre soluços estas palavras ma
yiosas :
NO SUBTERRANEO . .
89

- Piedade e perdão para elle e para mim ... Que


pode fazer, meu pai, contra um amor tão forte ? Nenhum
de nós tem culpa. Se me separa d'elle, mata -me... Mas
esta fria crueldade não pode têl-a um pai ... Não me con
demne, não, meu pai?.. Olhe que eu sou a sua unica fi
lha... não me repulse assim ... ó meu querido pai!..
-Calla -te ! -bradou o conde .
-Barbara!-disse Ladislau - os teus rogos são inu
teis... Estou condemnado ... Não exacerbes a irritação
de teu pai .
O conde apontou a pistola á fronte do moço .
-Sabes que vais morrer?
-Sei .
-Não te queres defender ?
--Contra o pai de Barbara, nunca .
-Eu é que o defendo ! -- exclamou ella.
-

-Sacrilega !--bradou o pai .


-Zolpki , eu não quero que morras ! --repetiu ella
---abandona-me antes ; que a minha vida se perca... Sa
crifico a ti o meu proprio amor... Vive para o teu paiz,
para a tua cara Polonia, para todos os que tu amparas
com a esperança! Meu pai, se eu desistir de o amar, não
o mata?
-Não .
-Bem ... não o amarei ...
-Nem o verás mais?
--Nunca mais .
-Antes quero a morte - interveio Zolpki que out
vir-te dizer que me não amas .
Adeus ! adeus ! -- clamou ella - Não tenho a sacri
ficar -te senão a minha futura felicidade... Essa te dou ...
90 A FREIRA

-
-Escuta, Barbara - disse o conde -a minha von
tade é immutavel... A’manhã entrarás no convento .
C
-Entrarei, meu pai .
>

- Será eterno carcere em expiação de tua culpa.


- Acceito .
-Considerar -me- has um executor da justiça fami
liar.
- Agradeço-lhe a vida de Ladislau.
-Saia! -disse Ubryk a Zolpki --- salvou - oo a obe
diencia d'ella .
-Ah ! Barbara ! tu nunca me tiveste amor! .. SA

exclamou o moço .
A infeliz saltou - lhe aos braços, d'onde o pai a arran
cou de repellào, lançando Zolpki fóra do jardim .
Quando voltou, Barbara, rigida e inanimada, estava>

cahida em terra.
Ubryk tomou - a nos braços e levou-a á camara da
mãe .
.
-Aqui está como educaste tua filha--disse elle
encontrei esta amorosa no jardim , em galante entrevista
com Zolpki . A’manhã leval-a-hei ao convento das car
melitas.
-Oh ! tu não praticarás semelhante crueldade! --
exclamou a mãe .
-A'manhã -repetiu o conde .
No dia immediato a nova da entrada no Carmelo
da formosa Barbara não era a unica de que a sociedade
se preoccupava. Ao mesmo tempo era preso em sua ca
sa, sem processo algum , o joven patriota Zolpki e con
duzido ninguem sabia onde; talvez. encarcerado n’algu
ma fortaleza.
VI

MORTA E VIVA

HEGOU o dia da profissão religiosa de Barbara.


E ella, no seu cenobio, contemplava com infinita amar
gura o vestido branco da ceremonia. Uma apoz outra ,
examinou a saia de seda com flacidos refêgos, a corôa
de flores de larangeiras e o véo de filó que devia cobrir
lhe o rosto . Não cuidou ella de vestir aquelles trajos em
ditosos dias? Quantas vezes , em frente do seu espelho,
no palacio de Ubrik , frizando as tranças d'oiro, ella dis
sera entre si que seria vaidosamente ditosa no dia em
que cingisse na fronte o diadema nupcial! Mas, n'aquel
le tempo, antolhava -se - lhe que a vista magica de Zolpki
a banharia de luzentissima ternura , em quanto uma gra
ta impaciencia lhe faria parecer longa a hora de desfo
lhar entre seus dedos aquella corôa. Figurára -se -lhe ro
çagar no pavimento marmoreo da egreja a sua cauda de
92 A FREIRA

setim , em quanto familia e amigos commovidos da sua


ventura, a viam perpassar, e faziam votos pela duração
de sua felicidade . Era certo que parentes e amigos a es
peravam já na egreja; já flores e cirios exornavam o al
tar, e as galas da noiva estavam promptas; mas a noiva
7

esperava Christo , e as vestes do noivado iam ser troca


das pela mortalha.
Barbara havia jurado de entrar no convento : cum
prira. A vida de Zolpki valia bem o holocausto da sua
vida toda . Mas o absoluto silencio de homem tão amado
perturbava-lhe ás vezes o animo. Barbara não podia dei
xar de sentir que elle tão depressa se resignasse a perdel-a !
Ainda assim , nenhum queixume murmuraram seus la
bios, nem no coração a magua do resentimento ; porém ,
2

uma vaga impressão de desencantamento a impelliu mais


facilmente a curvar -se á regra claustral .
No dia seguinte ao da sinistra scena no jardim, o
proprio conde levou a filha ás Carmelitas . Não consentiu
que a mãe a acompanhasse , e declarou que a condessa
só no palratorio a veria .
Sosinha e com stoica valentia supportou Barbara a
primeira provação. Invocando em seu soccorro a força
moral, o seu amor, não esmoreceu nem hesitou . O adeus
>

que disse ao pai foi glacial: era, desde aquelle momen


to, um homem morto para ella; mas soffreu horrivel
mente por não poder abraçar a mãe . A esperança de a
vêr no locotorio não lhe era consolação . Ella sabia que
uma freira escondida atraz d'uma cortina assistiria ás
suas conferencias; tambem sabia que as grades serradas
e espessas lhe não deixariam se quer apertar a mão de
sua mãe. Oh! aquella expiação d'amor era uma bem com
ON SUBTERRANEO. 93

pleta condemnação de morte! A idea de martyrio tama


nho soffrido pelo homem da sua alma era -lhe amparo.
A gloria do moco lhe seria galardão do sacrificio; e a
Polonia lhe deveria a ella o seu heroe e talvez o seu
libertador .
O primeiro anno de noviciado passou-o Barbara co
mo um sonho tormentoso . Não tendo sido levada ao
claustro pela vocação, obedecia pelo dever com aquella
pontualidade que empregam nas coisas minimas as pes
soas incapazes de descerem a pedir desculpa .
As postulantes são nos conventos tratadas com espe
ciaes cuidados que se tornam mais intimos e meigos
quando ellas passam a noviças. Ha então empenho em
attrahil-as carinhosamente a Deus, tratal-as com privi
legiado amor, e persuadir-lhes que ellas são objecto
d'uma preferencia divina .
A boa mestra de noviças deve fazer quanto em si
couber por persuadir ás meninas que dirije que é ' a vo
cação o seu impulso . Quer ellas hajam entrado no con
vento por que a pobresa as privou de marido, quer en
trassem victima d'uma paixão impossivel , pouco importa.
Concluido o anno de noviciado, o ponto está em fazel-as
caminhar ao holocausto com a alma enternecida, deslum
brada, e fascinada .
Facil coisa é dominar a imaginação d’uma noviça .
Bastam a commovel- a vivamente a poesia e magestade
do culto catholico ; depois a religião suavisa - se - lhe ro
deando - a de poderosos attractivos ; uma candida vaidade ,
certas porfias piedosas prefiguram -lhe nas perspectivas
do céo um throno a conquistar.
« Quando os anjos rebeldes cahiram , ficou vago o
94 A FREIRA

lugar d'elles , esperando homens, mulheres e virgens,


que victoriosos do mundo e do peccado haviam de ga
nhal-as com vida casta mortificada e pobre ).
E o que diz a mestra de noviças . Respiga nos san
ctos padres os trechos admiraveis que laureiam a virgin
dade ; touca as donsellas de lyrios do céo , dizendo-lhes
que hão-de ir no seguimento do esposo celestial : « As vir
gens seguem o Cordeiro por onde quer que elle vaev . A
noviça é rodeada, premida, envolvida, em tudo que pos
sa abafar- lhe a reacção da vontade. Tiram - lhe a indivi
dualidade. Perfumam -na com as vaporações do incenso .
Infraquecem -na com os jejuns para lhe exaltarem o es
pirito, aturdem-na de poesia cujo lyrismo se desata em
paixões divinas, marasmam - lhe os sentidos ; illucidam
lhe a vista da alma, bafejam -lhe ao coração as delicias
de extasis de modo que, findo o anno da prova , todo le
vado em seducções misticas , a noviça vai de bom grado
immolar-se; Efigenia christan submette o collo ao cutel
lo; e, mais altiva que a filha de Jephté, não deplora a sua
virgindade no cimo da montanha. O jubilo de entregar
a Deus o corpo sem macula liga-se a uma hombridade
modesta . E mais tarde verá com piedade, senão com
despreso, as mulheres que seguiram as leis ordinarias da
vida .
Barbara foi menos flexivel á mestra de noviças do
carmelo. O seu silencio, e observancia glacial das regras ,
impressionou notavelmente soror S. Xavier. N'aquella
noviça adivinhava -se, sem vêr-se, um coração empedre
nido. A mestra , tentando obter a confiança da nova pen
sionaria, interrogou - a muitas vezes . Barbara respondia
que a sua consciencia estava em paz, e que sómente o
NO SUBTERRANEO . 95

seu confessor podia lêr-lhe na alma . Mas, se o confessor


a interrogava, Barbara incerrava - se n'esta formula :
« Nenhum peccado me dá remorsos: acceitei passar
a minha vida entre as carmelitas .
Queriam-na porém mais confiada, mais expansiva; e
houveram de contentar - se, reconhecendo que Barbara ob
servava admiravelmente a regra , mostrando-se agracia
da com as companheiras , respeitosa com as superioras,
e paciente em tudo que intendia com os lavores da casa.
Desvelaram-se durante semanas em fatigal- a com rudes
trabalhos: ella cumpriu -os sem queixar -se, não tão sere
na quanto se diz da predistinação das sanctas , mas com
um absoluto desprendimento de si propria . Foi afinal for
çoso conhecer que Barbara era exemplar.
E todavia era menos amada que as outras. Não se
prestava a intimidades . Havia n’ella frieza inacessivel
ás confidencias das outras .
A vida claustral, aquelle regular mecanismo de exis
tencia, iam-n'a vencendo sem que ella desse tento . Ao
vestirem - lhe o habito, entendeu que a amortalhavam :
deixou -se vestir. Não lhe chegava nova alguma do mun
do , nenhum ecco lhe repetia o nome de Zolpki. Debru
çou-se sobre um abysmo moral, e fez quanto pôde por
se engolphar. A revolta interna acalmou -se. Acceitou o
martyrio que era a continuação d'outro. E chegou a es
perar remoto contentamento , vendo que a maior parte
das suas companheiras eram feliz ,
A mestra de noviças deu logo tino d'esta mudança.
«A graça actua sobre esta menina, disse ella á
prelada --Havemos de fazel- a vaso de eleição,
A prelada sorriu duvidosa.
96 A FREIRA

Findou o anno. Barbara devia professar. Esta idea


já a não espavoria. Tantas vezes lhe diziam que logo
que se entregasse a Deus se havia de sentir mudada --co
mo Paulo fulminado na estrada de Damasco, a ponto de
volver-se discipulo quem tinha sido perseguidor de Chris
to - que ella chegou a anciar a hora em que morresse
a si e ao mundo.
A memoria de Zolpki ainda lhe vivia na alma á se
milhança d'uma visão celeste divisada por entre as nebli
nas d'um sonho... E doce lhe era o sonhar, que mais
tarde e mais no alto havia de encontral-o, para o amar
sem pavor nem pejo no eterno amor do céo .
Muitas vezes sua mãe tentara,> mas debalde, abran
dar o conde de Ubrik .
(
«Heide perdoar-lhe, no dia da profissão - dizia elle .
Quanto áquella terna mãe, perdoada já ella tinha
ha muito a imprudencia da filha.
Chegado o dia solemne, a condessa Ubrik enviou os
ornatos de noiva ás carmelitas . Pediu para ajudar a ves
tir sua filha, mas não o obteve.
Soror S. Xavier, com duas bellas noviças, entraram
na cella de Barbara emquanto ella tristemente contem
plava aquelle vestido .
- Vamos ! disse a soror . O orgão já toca e os
thuribulos queimam o incenso. Nunca tamanho concurso
de fieis e estranhos se viu em nosso mosteiro. Trate de
vestir-se, minha filha, que o divino esposo a espera .
Despirain-lhe o pesado vestido de burel, e logo a
mulher em todo, o esplendor da belleza, radiou n'aquelle
pobre cenobio . A seu pezar a formosa estremeceu como
se tivesse saudades da sua belleza ... Nunca mais aquel
NO SUBTERRANEO . 97

les braços de jaspe, aquelles admiraveis cabellos seriam


vistos por olhos humanos: a noite e a morte iam tragar
tão divinos primores ... Quando se viu no espelho, receiou
perder o alento .
A propria mestra de noviças, espantada de formas
tão perfeitas, murmurou esta phrase do cantico dos can
ticos:
« O' minha bem amada, tão bella que tu és, e tão
sem macula !»
Como este vestido te vai bem ! -disse uma noviça,
chamada Santa Angela.--Pareces-te tanto com as Mado
nas de Italia !
- Deixa-me cingir esta corôa nos teus lindos cabel
los - ajuntou a morena soror das Cinco Chagas com jubi
lo infantil. --Ahl que feliz tu és em professar... A mim
fazem -me esperar, e ha tanto tempo que suspiro pelo es
poso amado...
As duas meninas Santa Angela, e Cinco Chagas
empregavam encantadora garridice no cuidado de vestir
a companheira . Uma, alma ardente, innocente e exalta
da, imaginava -se predestinada a gosar os extasis de The
reza de Avila ; a outra , meiga e triste, passava á orla do
altar infinitas horas absorvida no sentimento da pre
sença do seu Deus. Pombas amorosas, volitavam ao
Tabor, e pensavam no santissimo deleite da transfigu
ração
Barbara sabia que tinha de subir a encosta do seu
Golgotha.
Era bello vel-a com o véo ondeante sob a corôa das
flores e envolta nas magestosas dobras do alvissimo vés
tido ,
7
98 A FREIRA

Todas as pompas mundanas haviam entrado no


convento, por que aquelle dia era festa do céo, e espe
ctaculo curioso para a terra .
Estava cheio o templo. No arco do altar mór via -se
um genuflexorio de velludo sobre o qual a profitente ajoe
lhou . Quando ella appareceu, fez -se um rumor de pieda
de e assombro . No seu rosto sempre a mesma expres
são fria; porém , quando viu a mãe, resvalaram - lhe no
rosto duas lagrimas que enxugou com o véo .
Principiou a missa, bem rapida para a profitente.
Era chegado o momento supremo: o terror parecia soffo
cal-a .
Subiu o padre ao pulpito, exaltando a ventura da
noviça eleita para as bodas de Jesus,7 apontando - lhe no
céo a corôa e palma que a esperavam ; e , ao mesmo tem
po que os assistentes compadecidos pediam a Deus a fe
licidade da professa, Barbara sentia-se fallir de cora
gem .
Chegou em fim o momento fatal. A mestra de novi
ças aproximou -se da profitente; as duas postulantes la
dearam - na, e a prelada sahiu á frente levando na mão
uma grande thesoura . Santa Angela tirou - lhe o véo e a
corôa de flores. A prelada desatou - lhe os cabellos por
sobre as espaduas: dir- se -hia então que um manto d'oiro
fluetuante , fluido, admiravel envolvia a virgem .
Um grito estridente estrugiu d'entre a multidão: era
a condessa Ubryk que desmaiava.
Aquellas peregrinas tranças, aquellas rutilantes es
piraes que outr'ora com tanto amor alindava perfuman
do -as, trançando -as, estrellando-as de flôres e perolas,
iam ser cortadas sem piedade!
NO SUBTERRANEO . 99

O gemido de sua mãe angustiou tão profundamente


Barbara, que se voltou de subito sobre o seu genuflexorio,
e durante minutos mostrou a face á multidão . Oh ! co
mo foi triste vêl- a colher dos labios humidos de lagrimas
nas pontas dos dedos tremulos um beijo que enviou á
mãe !
Mas.., máo foi que ella assim provasse que não esta
va inteiramente morta para as coisas d'este mundo, por
que a madre Xavier, lhe disse em tom reprehensivo:
-Em que está a pensar?
Barbara curvou o collo, e a thesoura ringiu -lhe no
cabello ... Um momento depois, aquella onda loura jazia
em terra ennovellada e morta .
E, quando as tranças cahiram , Cinco Chagas poz-lhe
na cabeça um véo negro , e encaminhou - a á sacristia .
A infeliz não pensava : ſa inerte, deixava -se le
var .
Despiram -lhe o vestido de noiva, vestiram -lhe o ha ..
bito do carmo, sem que ella fizesse algum movimento
que lhe não fosse ordenado. Vestida de carmelita, olhou
para si, e não se conheceu. Mas era bem ella! pallida,
anjo de infortunio, com o duplo encanto da desgraça!
Como ella é ditosa !----dizia soror Sant'Angela.
Tambem eu heide assim estar, semi-morta de sanotos
deliquios no dia da minha profissão...
E eu por mim -- murmuroy soror Cinco Chagas -
cantarei o Nunc dimittis com o transporte das esposas
escolhidas.
-Vinde! --disse a mestra das noviças dando a mão
a Barbara . 1

As duas noviças, vendo que ella caminhava a cus


100 A FREIRA

to, abraçaram -na pelos hombros, e assim a levaram , es


maecida, mas formosa d'aquella morbideza.
Entrou no templo. " " " ...
A' volta d'ella as freiras regougavam soturnamente .
N'esta ceremonia o minimo enthusiasmo esmore
ceu .
7
Levaram a professa ao centro da egreja; mandaram
na ajoelbar n'uma alcatifa; e prostrar-se.
Barbara abaixou -se, colou al face ás lages, cruzou
os braços, immovel, aspecto de eadaver.
Cobriram -na do crepe funeral.
E o canto de profundis reboou, no templo, -sublime:
e terribilissimo !
Barbara tiritou debaixo do crepe. Parecia- lhe que
cada palavra d'aquelle plangente cantar lhe pregava o
caixão que ia descer ás profundezas sem fim . ini
Desde este instante, perdeu a consciencia de si.
Fez-se parte n'aquella corporação austera e despotica.
Não lhe restava impulso minimo de vontade propria . Es
queceram-lhe as horas durante as quaes ella anhelára
aquelle morrer... Sentiu tentações de erguer -se , sacudir
a mortalha , e gritar:
Estou viva ! estes responsos funebres não são por
mim !
Mas que escandalo não seria este desespero ! Que
vergonha para sua mãel Que colera para o pai ! ' E Zol
pki? Zolpki de certo pagaria com a vida a covardia de
Barbara, que teve um dia o orgulhoso pensamento de o
salvar !
E cabiu, como expirante, no momento em que aca- ..
bou o ultimo versiculo.
NO SUBTERRANEO . 101

Ergueram -na.
A ultima palavra do seu destino estava dita.
$ Levaram -na ao locutorio . ... in
Esperavam -na a condessa e o conde de Ubryk.
A mãe abraçou - a desfeita em lagrimas.
O conde disse- lhe em voz baixa: :
-Estás perdoada..
E ella nem se inclinou nem respondeu a taes pala
vras : ficou de gelo para o perdão; mas apertou ao seio a
mãe com a vehemencia da suprema ternura . ?
A prelada cortou estas expansões; por que, ao fim
d'um quarto de hora, a freira devia deixar a familia , e
ir tomar posse do seu cubiculo.
Estamos em um recinto quadrado, de tabique com
janella para um pateo, e com o unico horisonte d'um alto
muro. Um leito de bancos coberto com uma manta , uma
cruz, uma banquinha e algumas vasilhas de barro: eram
o adorno da cella. Tudo ahi era frio de trespassar. Ha
via mais um craneo, e uma imagem de Santa Barbara
com uma espada na mão, e a torre na outra gru
dada no tabique. A vista não achava ali nada consola
tivo. Era tudo assellado de soffrimento rigido sem com
pensação, nem allivio. Era ahi o reduzir -se hora a ho
rà a pó o corpo em martyrio vagaroso, em lenta consum
pção.
-Filha ! -disse a madre S. Xavier -- a porta d'uma
cella é a entrada do céo .
--Basta que seja a entrada da sepultura --disse
.

Barbara . **

... Esta phrase destoou nos ouvidos da freira ; mas,


reflectindo, cuidou que a julgara erradamente. Talvez
.
102 A FREIRA

quizesse dizer que pela sepultura se entrava no caminho


do céo .
-Deixo -vos com o Salvador - tornou a mestra
os grandes jubilos querem -se saboreados em silencio.
Barbara inclinou a cabeça sem responder.
A porta fechou -se surdamente.
A nova carmelita estava em fim sosinha.
Relançou um olhar espavorido à gélida tarima, ache
gou -se á janella gradeada como a dos carceres, circum
vagou por tudo a vista n'uma especie de muda deses
peração, depois, de repente, em extasis da sua indole
apaixonada, cabiu em joelhos, tomou o crucifixo entre
as mãos, e colou os labios nos pés traspassadas de cra
1 VOS .

-Consola-me, Senhor! -balbuciou ella -que me sin


to desfallecer; ama-me, que a minha sede de amor é inex
tinguivel. Dizem -me que d'hora ávante és meu esposo ,
-meu confidente e pai... Remunera -me de tudo que perdi :
a mãe que me chora, e o amado que eu invoco. Jesus,
sede-me Jesus ! Não vim aqui espontaneamente ... ati
raram -me ao teu altar como se atira ao açougue a ove
lhinha boa para a degolação... Eu amava um homem ,
-amava - o quanto se pode amar... Toda aа . minha alma lhe
dei... meu peito ardia bafejado pelo seu halito . Sou ain
da pura; e, ainda assim, a minha virgindade já não é
como a de minhas innocentes irmans. Acolhe -me, absor
ve-me, engolpha -me no abysmo das tuas ternuras, es
conde -me na chaga aberta do teu coração. Eu quizera
ser uma digna carmelita, e cumprir por dever o que os
outros cumprem por vocação... N'este mundo tenho -te
*ó a 'ti, Jesus! e no outro serás tu tambem . Sou a tua
NO SUBTERRANEO . 103

serva, a tua filha. Faz de mim a tua dilecta . Attrai-me


ao sanctuario das tuas delicias... Que os divinos extasis
do teu amor deslumbrem até a lembrança de outros
amores transitorios.
Barbara calou - se suffocada pelos soluços,
O chorar deu-lhe allivio. Quando desceu ao refei
torio, parecia socegada.
Deram -lhe legumes cosidos sem sal : não os tocou.
Dispensaram -na. N'aquelle dia era Barbara a predilecta
da casa . Agradeciam -lhe ter sido causa de vir ao tem
plo tanta gente com tão ricas esmolas. Se alguma nu
vem escurecia o espirito da freira, era cedo para repre
hendel-a .
Barbara cantou em côro; depois, tornando á cella,
adormeceu alquebrada pelas commoções do dia.
No dia seguinte sentiu -se algum tanto consolada,
pensando que o seu destino estava decidido. Era, pois,
tudo acabado. Nem já esperar lhe era permittido. A se
renidade succede sempre a uma certeza , boa ou má .
A anciedade é a maxima das torturas. Se elimi-.
nassem a prisão preventiva e o tribunal, a pena de mor
te seria quasi nada: não aterraria o paciente, nem os
earrascos, nem os juizes .
Portanto esforçou -se Barbara em sugeitar -se á sua
vida, achando - a supportavel.
Não havia fugir-lhe: tanto montava acceital- a como
regeital-a. Esperou a visita do divino esposo; e no en
tanto curou de tranquillisar-se ee esmaltar a vida de mil
visões occultas. Ao ler a Legenda dos sanclos exaltavam
se-lhe as esperanças. Quando estava sosinha no seu ce
nobio, almejava a visita do seraphim que devia traspas
104 A FREIRA

sar-lhe o coração com a sua frecha ardente, e chamava


o esposo que devia dar-lhe o annel que Santa Catharina
do Sena recebera do Salvador; e espiritava as forças do
cerebro, e os nervos do corpo n’aquelles radiosos inlevos
que transfiguram o semblante, e vaporisam a alma.
Muitas vezes, depois das noites pássadas sobre o
grabato de seu leito , despertava com o corpo macera
do, todavia, sorrindo . E que sonhára que um anjo a
tonava nos braços, á imitação dos cherubins nas assum
pções da Virgem. E aquelle anjo tinha uma vaga seme
lhança com Zolpki-Estranha analogia que ella não po
dia comprehender.
A belleza de Barbara tinha o que quer que fosse
extranhamente novo .
A prelada e a mestra de noviças contemplaram-na
um dia, e a primeira perguntou:
-Que faremos d'esta menina?
-Uma contemplativa de certo -- respondeu a ma
dre S. Xavier .
-Pois sim , uma crucificada, ou esposa do cordeiro.
-Crucificada... mas ella é tão bella!
--- Veremos -- disse a prelada meditando -- Até hoje
não pude formar idéa bastante exacta do seu caracter;
e, apezar da sua sagacidade, parece-me, minha irman ,
que não está ainda bem segura da direcção que devemos
dar a esta joven santa.
-Não seria melhor que ella escolhesse ?
--A prova tem perigos .
-Mas decisiva... Quando Barbara souber o que
são as noites da Penitenciaria, então será occasião de
introduzil - a no jardim das delicias.
NO SUBTERRANEO 105

-Pensa bem . E no entanto , ajuntou soror Xa


vier - continuarei a purifical- a na devoção.
-Quanto puder... soror das Cinco Chagas pare
ce-me que voeja nas alturas do céo, como casta pom
ba
E ' preciso reprimir-lhe o zêlo .
-E Santa Angela ?
-Passiva, um tanto fraca, crendeira, e facil de
modular -se como cera. 1

Nas suas praticas com Barbara, mostre-lhe a en


trada do cenaculo como elevada recompensa . Faça que
ella deseje ardentemente a iniciação nos nossos miste
rios... uns dolorosos, outros gosozos, passando dos mais
crueis aos mais suaveis ... Cite-lhe passagens escandeci
das dos santos padres, que, encarecem a castidade e a
paciencia, principalmente S. Jeronimo; dê-lhe a lôr o
Cantico de Salomão: é preciso que esta alma em tormen
tas de não sei que tempestado se nos entregue sem re
serva alguma... E' preciso .
Soror Xavier sorriu- se, fez a reverencia, e sahiu .
A prelada era mulher de cincoenta annos , refeita e
robusta, apezar do regimen da vida carmelitana, Pare
ce que os estatutos não enfraqueciam aquella vigorosa
natureza . Testa estreita, bocca grande e sensual , nariz
dilatado, barba carnuda, eram feições que davam á sua
phisionomia um complexo de traços lascivos corrigidos
pela uncção dos olhos e brandura da voz . Se esta mu
lher vivesse na sociedade, haveria muito quem dissesse
ao vêl-a:
-Que paixões não irão ali, e que tempestades não
terá desencadeado aquella mulher!
106 A FREIRA

Todavia, como ella era freira, os juizos eram ou


tros, assim exprimidos:
Que appetites, e que sedes voluptuosas ella não
terá vencido antes de chegar aquelle abatimento!
Sujeitaram pois Barbara, sem que ella o suspeitas.
se , a um regimen moral e religioso. Prepararam -na pa
ra a visão e para a vida contemplativa. Prestou -se inno
centemente aquella educação monastica, comprazendo-se
no marasmo e enervamento das suas noites, e no per
dimento, durante os trabalhos do dia , das lembranças
do mundo .
Era- lhe prohibido vêr a mãe. A porta que se fecha
ra nunca mais se abriria. Como lhe disseram que não
porr alcan
tinha perspectiva senão a do céo, forcejava po
çal- a. Jejuava, orava , trabalhava, cantava no côro, ob
servava perpetuo silencio , e deixava ascender a sua al
ma como ave solta para além do espaço e do tempo. Sus
pirando por vêr ainda Zolpki na eternidade, ceifava pal
mas de martyr e santa. A prelada louvava-lhe o fervor,
e as companheiras amavam-na. Cinco Chagas e Santa
Angela invejavam -lhe a dita de ser tão favorecida da gra
а.

ça da prelada, e da mestra das noviças . Mau grado seu ,


Barbara, bem que não fosse orgulhosa, deixava-se bran.
damente emballar d'estas lisonjas. E quanto a lisonjas,
não as ha ahi mais idoneas para seduzir almas tenras,
que exaggerar-lhes as perfeições, e crêl-as dignas do
amor d'um rei, e das nupcias d'um Deus.
Promettiam & Barbara como galardão do seu fer
vor admittil-a na primeira assemblea de penitencia. Pa
ra isto era - lhe mister edificar grandemente a communi
dade, afervorando -se mais. Esta iniciação era retardada
NO SUBTERRANEO . 107

até se confirmarem as virtudes das recentes professas; e


sobre tudo havia n'isto o proposito de lhes sondar as
disposições e obter a certeza de que ellas se não recusa
riam á celebração dos sagrados mysterios, os quaes, no
dizer da prelada, indicavam a verdadeira predestinação
das carmelitas.
t
VII

O RECINTO DA PENITENCIA

noite .
.
Uma lampadazinha alumia froixamente o corredor
do convento das carmelitas .
O som d'uma sineta, funebre como a toada da cam
painha que tange no viatico, tilintava a espaços e lenta
mente . Vão -se abrindo as cellas das freiras uma após ou
tra . Algumas perguntam em tom afflicto o que vai acon
tecer . As professas novas tentam em vão que as velhas
religiosas lh'o digam . Grande numero d'ellas caminha ao
longo do dormitorio, com aspecto de medo . As duas no
viças Santa Angela e Cinco Chagas 'vão pressurosas,
procurando Barbara, que as espera transida do espanto
causado por umas palavras ouvidas na véspera. Não pó
de recuzar - se aquella reunião; mas segue-a com visivel
répugnancia.
110 A FREIRA

E a sineta vai tangendo sempre ...


Uma a uma, seguindo aquella melodia da noite e
da angustia, semelhante ao Angelus pelo som argentino,
e ao dobre a finados pelo lugubre das notas, as freiras
descem as escaleiras de granito. Reina ainda escuridão
quasi absoluta . A prelada desinvencilha uma chave da
cintura , abre uma porta de dois batentes, e as monjas
penetram n'um vasto recinto. A meia -treva que ahi se
condensa não deixa desde logo entrever o local onde es
tão.
São enormes as dimensões d'aquella quadra. Dá a
lembrar um salão de tribunal. Ao ver a variedade de
esquisitos objectos que ahi se amontoam , lembra se
aquillo será um dos horrendos subterraneos que a inqui
sição decorava de instrumentos de tortura . Com a dif
ferença, que a inquisição agarrava da victima para acor
rental- a ao potro, e ali -- phenomeno incomprehensivel! -
a victima supplicava aos algozes que a iniciassem nos
misterios da flagellação .
As paredes negras não recebiam o menor reflexo
da lampada pendente ao meio, Só de longe a longe uma
faisca, argentina reverberava em malhas de ferro d’uma
camiza semelhante á cota dos cavalleiros, ou as puas das
sandalias de ferro tremeluziam scintillações.
As religiosas entoaram o plangente psalmo do Mi
serere .

Esta poesia vibrante de gritos de angustia, concla


mada na escuridão por mulheres prostradas com os bra .
ços em cruz e o rosto no pavimento, era horrivel de ou
vir -se !
A intervallos, a voz da prelada sobrelevava a das
NO SUBTERRANEO . 111

freiras: era quando o poema de David tinha palavras


mais analogas á situação .
-Asperge-me com a hyssope para que eu me purifi
que .
E as freiras respondiam :
-Asperge-me, e bu serei mais branca do que a
neve .

Concluida a psalmodia, a prelada ergueu -se.


Com os labios crispantes, a fronte livida de pytho
nisa, soffreando a voz secca e soturna, fallou assim ao
rebanho curvado a seus pés :
-E chegada a hora do sacrificio, sanguinolento
como o do Calvario ... O Senhor não quer hecatombas
de cordeiros, e de novilhas : quer que suas filhas se lhe
sacrifiquem até ao sangue... Vós não sois esposas d'um
Deus de gloria, mas do Christo agonisante no Calvario .
A ' luz celestial, radiada de vossas chagas voluntarias, é
que sereis reconhecidas no dia final! Concentrai toda
a vossa fé, espertai toda a vossa coragem , meditai na
constancia das martyres bellas, novas e delicadas como
vós . Quem não quer aguentar sua cruz é indigna de
mim, diz o Senhor. O virgens, salpicai de sangue vos
sas palmas e arnezes . Invocai o martyrio como um fa .
vor, implorai força para soffrer dôres excruciantes, afim
de vos tornardes mais digoas dos amplexos do esposo ...
De sobre as ruinas do corpo é que a alma se levanta ex
plendorosa. Odiai a carne para adquirir immortal re
compensa . A sexta feira é o anniversario da morte de
Jesus; morrei tambem , ou ao menos roçai nos labios o
calix d'amargura . Estendei as mãos aos cravos, as es
paduas á cruz, deixai escorrer sangue por pés e braços;
112 * A FREIRA

e,e santamente crueis comvosco, alentai- vos, fortalecei-vos


para uma nobre porfia. Quem me dera ver-vos a disputar
as lancinantes dôres do Deus do Golgotha, e com as mãos
abertas para mim a imploral-as ... O' vós, que conheceis
as amargas delicias da mortificação! Vós que conheceis a
paga que Deus vos dá, e cujos deliquios vos egualam ás
santas, vinde exclamar com Santa Thereza: Soffrer ou
morrer ! Vinde repetir como S. João da Cruz: eu fui
recaldeado no amor, como em fragoa . Vinde ! ardei !
soffrei ! morrei ! se quereis ganhar o direito de revi
ver .

A prelada fez uma breve pausa .


As freiras ergueram - se vagarosamente.
Algumas acocoradas ficaram com as mãos cruzadas
sobre o peito, outras, pendendo a fronte, punham as mãos
supplicantes; e as mais ardentes estiravam os braços
para a prioresa.
Barbara escutou aquillo tudo estupefacta.
Cinco Chagas sorria em extasis, e Santa Angela
tremia de impaciencia estendendo as alvas mãos para a
prelada que proseguiu:
--Meditai nas agonias do Christo no jardim das
Oliveiras... Elle, em resgate do mundo, offerecia - se co
mo victima, e comtudo, tamanho é para a humanidade o
preconceito da dôr phisica, que bradou: Meu pai! affasta
de mim este calix ! E ferindo - se no peito recebia a paixão
inexoravel como um decreto da justiça divina ... Não
calculeis sobre a vossa fragilidade ... Eu sou forte n'aquel
le que me fortalece, diz S. Paulo. Cada uma de vós pece
cou: fira -se cada uma no proprio seio . As que se persua
dem possuir ainda a innocencia baptismal expiem os cri.
NO SUBTERRANEO . 113

més do mundo que se condemna a esta hora em que nós


soffremos ... Mea culpa! Mea culpa!
E então uma religiosa saltou para o meio da sala,
pegou da pedra suspensa na correa de coiro, e deu com
ella tão fortemente no peito que soluçou um rouco gemi
do. Mas este grito de dôr, longe de atterrar a compa
nheira, pareceu reanimal- a de tão viva inveja que cahių
por terra extenuada de soffrimento , espumando sangue.
E para logo irromperam todas n'um brado de mea
culpa homicida; porém a voz da prelada dominou os ge
midos das pacientes, clamando assim :
Quem dirá as agonias do Salvador na noite ante
cedente á sua morte ? Vêde-lo errante de tribunal para
tribunal? Aqui, vestido com tunica de histrião ; ali, es
bofeteado por um soldado; por toda a parte , ludibrio
de apupos, de escarneos e desprezos! Eil- o chega a casa
de Pilato, do covarde, que o acha innocente, e sacrifi
ca-o, não ao urrar do povo, mas ao medo dos romanos
de quem depende! Este homem está innocente, diz elle ;
e comtudo consente que o flagellem . Vēde-o, arrastado
pela soldadesca, chusma de algozes ali feitos de impro-
viso . Vede - o sem defeza e silencioso, em quanto as ves
>

tes lhe são esfarpadas por miseraveis que o maneatam


à columna dos açoutes. Eil-o, o homem das dores ! que
sinistros vergões esculpem os lategos n'aquellas carnes
virginaes! Quem contou o numero de açoutes que ver
beraram o filho de Deus! A’quelle espectaculo os anjos
cobrem o rosto e a terra sorve convulsa o sangue inno
cente do cordeiro immaculado ... Eis aqui o vosso pre
torio ... Minhas filhas, a columna está erguida ... O suppli
cio espera- vos. Quem ama bastante o Salvador para
8
114 A FREIRA

aquinhoar com elle o mais sensivel dos seus tormentos?


Quem vem maneatar -se ao poste ? Quem quer ser flagel
lada por amor a Jesus ?
' s Cinco Chagas sahiu á frente com o rosto brilhante
-de enthusiasmo.
Blandina, a martyr lionêza, devia ter aquella cas
ta formozura quando a prenderam á columna em redor
da qual tigres e leões chegaram a lamber-lhe as plan
tas . 'di A !

A mestra das noviças, rapida como o pensamento ,


introduziu as mãos de Cinco Chagas na golilha de ferro
chumbada na columna .
Immediatamente uma freira descintou o seu ha
bito , e o deixou resvalar pelas espaduas. Eil - a inteira
mente despida.
Cinco Chagas expediu um brado de pudor.
-As disciplinas, as varas, os tagantes. de coiro,
tudo que quizerdes... Antes quero todos os martyrios
que vêr -me núa .
-Filha -- respondeu a prelada - ainda não compre
hendes o Christo ! Lembro-te que Jesus, Deus da casti
dade, foi exposto nú diante da vil gentalha.
Feito certo signal, uma freira velha lançou mão
d'uma disciplina, e começou a açoitar o corpo da Cinco
Chagas. Cada golpe ia progredindo em força. A meni
na estorcia -se, confrangida pela dôr; gritava por Deus;
soluçava escabujando; ás vezes parecia desmaiar," mas,
de repente, ella mesma pedia que lhe exacerbassem a
tortura . :
Quando o braço da velha fraquejou, a victima re
costou -se desfallecida a columna . O habito cubria - lhe os
NO ŞUBTERRANEO . 115

pés. As costas, cortadas de vergões roixos, ressumavam


orvalho de sangue . '
O meu vestido ! o meu vestido! exclamou ella .
A prioresa poz -lhe na cabeça uma çorôa de junco
com véo negro, e deixou-a assim.
Cinco Chagas chorava suffocada .
A dor da freira não impressionava as monjas que
já haviam passado por semelhantes provações. Ao aves
so da minima piedade, era horrivel vel-as a despirem
se, e a proverem -se de disciplinas que tinham nas extre
midades balas de chumbo. Algumas acolchetavam no
alto dos braços nús braceletes de lhama de ferro, com
umas puas por dentro que entravam pelas carnes ; ou
tras, cíngiam á cintura um cinto da mesma natureza, da
largura d'uma mão, e d'este modo estavam immoveis,
orando . Santa Angela, vendo, que uma das suas com
panheiras calçava umas sandalias de ferro , tirou umas
da parede, calçou -as, e ligou as pernas com as correas.
Ao levantar-se, esteve para cabir. As solas dos pés san
gravam -lhe feridas nos cravos , de que as sandalias esta
vam hirissadas.
A voz da prelada sobrelevou ás surdas lastimas ar
rancadas pelo soffrimento, da seguinte fórma : !

« Humilhai-vos ! Sede, como diz Izaias , não entes


humanos, mas vermes ... Tomai sobre os hombros, fla
gellados, a cruz do Salvador dos homens; e como elle
cahi sobre o.peso esmagador. Que os vossos debeis bra
ços se cancem a sustentar o instrumento das torturas;
não importa, ide até ao fim da vossa paixão. Exaltem
vos as proprias dôres; lagrimas e sangue, tudo vos será
contado.
116 A FREIRA

Uma das flagelladas acurvou -se, ergueu do chão


uma cruz de páo de pezo de oitenta kilogrammas, le
vantou -se com muito custo, cahiu, ergueu -se outra vez,
sustendo -se difficultosamente; e, arqueando -se e geme
bunda, arrastou -se até meio do recinto. Ahi cahiu livi
da, extenuada, e ficou , meio -prostrada, sobre a cruz,
buscando ainda com os braços cingil-a, até que perdeu
a consciencia da vida.
Assim como os fanaticos indianos e os aissanas se
excitam mutuamente com o espectaculo de seus soffri
mentos, e aporfiam no requinte da cruêsa, por egual
theor as religiosas encerradas na casa penitenciaria em
briagavam -se contagiosamente no padecer. As novas
chamavam a si as velhas, investidas no cargo de ator
mentar, e pediam açoutes, disciplinas, coroas de espi
7

nhos, espartilhos de ferro. Possessas d'aquelle delirio,


soluçavam ao mesmo tempo que a psalmodia do Misere
re cobria com a toada os clamores das penitenciadas: era
uma vertigem , a demencia sem nome, a hysteria san
guinaria. Aquelles corpos tenros, alvos e flacidos atira
vam-se ao martyrio mais sedento do que o fazem as
amantes aos braços que as acariciam .
A final distinguia.se claramente o conjuncto d'esta
scena. Cinco-Chagas, nua, amarrada á columna; Sancta
Angela, esvaida sob o pezo da cruz ; o maior numero
meio vestidas, açoutando -se com disciplinas, ou com uma
das pedras suspensas no tecto .
Por fim , a voz da prelada reboou de novo:
-Ao calvario! ao calvario ! as crucificadas serão as
queridas do crucificado! Quem sobe ao patibulo? quem
vai imitar o senhor do Golgotha? quem arde em sedes
NO SUBTERRANEO . 117

do calix de fel para se embriagar, depois com as ineffa


veis delicias que o esposo reserva ás suas amantes ? Ao
calvario !
Sancta Angela levantou - se como galvanizada, sobre
os pés esgarcados pelos picos das sendalias; e avançou
cambaleando até ao angulo mais escuro da sala.
Sobre a parede negra via-se uma enorme cruz; a
prumo e lateralmente havia golilhas de ferro destinadas
a suspender o tronco e os braços. Na base da cruz re
saltava uma taboa sobre que a crucificada havia de apoiar
os pés.
---Minha filha, tu és a pomba dilecta de Jesus!-
disse a prioreza á pallida penitente.
Amparou-a, ajudou -lhe a pôr os pés sobre a pran
cheta, ageitou o'o apparelho das golilhas, e, instantes de
pois, o corpo da formosa moça mostrava -se inteiro, 80
bresahindo por sua alvura á côr negra da parede.
Instantaneamente conclamaram todas:
-Milagre! milagre!
Sancta Angela já não se contornava sobre um fundo
escuro; um foco suavemente luminoso a aureolava d'uns
alvores matutinos, mosqueados de raios de côr de rosa,
resplendor maravilhoso como o do diluculo, só definivel
com as palavras escriptas nas vidas dos sanctos, sempre
que ahi se referem extasis de bem aventurados, deli
quios e arrebatamentos para além-mundo. Vistes as te
las de Murillo e a Noite de Corregio? Comprehendereis
o effeito produzido por aquella claridade magica e subita .
O corpo nu da juvenil religiosa parecia cercado de nimbo
celestial. Com a fronte um pouco pendida, e os joelhos
tanto ou quanto curvos , Sancta Angela ficou immovel.
118 A FREIRA

Nada mais para assombro e dôr que o espectaculo


d'aquella mulher crucificada! O enthusiasmo das monjas
redobrou á vista do prodigio. Era então o pedirem to
das a cruz, todas a implorarem torturas, para participa
rem da gloria de Sancta Angela, por que sanctamente
a invejavam . Que doloroso lance de olhos lhe fixava a
Cinco Chagas !
A prelada andava por entre os grupos, acirrando
o zelo das froixas, e alentando o fervor das zelosas...
A loucura da cruz hallucinava todas vertiginosamente,
exceptuada uma.
A prioresa distinguiu-a; e, dirigindo-lhe a palavra,
perguntou :
-E tu , Barbata, não farás nada por Deus?
-Por Deus dei eu a minha vida á clauzura .
-Não humilharás teu orgulho imitando tuas irmãs ?
--Receio deshonestar a minha castidade- respondeu
Barbara .
-Fizeste voto de penitencia - contrariou a prelada.
-A vida aqui é já de si longa penitencia, nossa
madre .
- Illudi-me comtigo ; tive- te em conta de vaso de
eleição, julguei -te vencida por Christo, crucificada por
amor d'elle, e digna dos seus celestiaes abraços .
-Quero sahir d'aqui disse Barbara com uma voz
soturna - Enoja-me a vista do sangue ... desmaio com
éste enjoativo cheiro ...
--Conserva- te para que o exemplo te anime.
-Eu despresaria a dôr se não houvesse n'ella a im
pureza ... A nudez de minhas irmãs faz -me soffrer.
-S6 Deus as vê... -murmurou a prelada.
NO SUBTERRANEO . 119

N'este momento, Barbara inteiriçou os braços tão


rigidamente como se fossem de pedra, e apontou para a
parede que defrontava com a crucificada.
Um postiguinho se abrira n’aquelle momento .
E Barbara, apontando -o, exclamava :
Ali! ali!
E cahiu sem sentidos no sobrado .
/
VIII
2

AS NUPCIAS CELESTIAES

E repente, fez -se profunda escuridão no recinto .


As freiras apanharam ás apalpadellas os vestidos disper
sos. Algumas gemiam , e bastantes não tinham força que
as levantasse,
Santa Angela desmaiara na cruz . Tres religiosas fo
ram então desapertal- a destramente das golilhas que
a acorrentavam ao madeiro. Cahiu -lhes inerte nos bra
ços o corpo da menina. Uma tomou - a pelos hombros, ou
1
tra pelos pés, em quanto a terceira, procurando na pare
de certa mola , abriu uma portinha que dava para um
estreito recinto cavado na espessura da parede.
As duas freiras velhas pozeram o corpo sobre um
leito formado de muitas almofadas justa- postas, depois
humedeceram finos lençoes de cambraia em agua aroma
tisada d’um vaso que ali estava sobre uma banquinha.
122 A FREIRA .

Estes objectos precisos ao enterramento da crucifi


cada estavam preparados, por que já sabiam que pelo
menos uma das freiras novas levaria até aquelle extremo
de demencia a prova da sua devoção.
Santa Angela permanecia immovel, com as palpe
bras cerradas, e o corpo hirto sobre almadraques de
demasco , escarlate. Parecia realmente morta . Ao lava
rem-lhe o peregrino corpo, cingiram -lhe na cabeça uma
coroa de rozas .
As duas monjas contemplavam-na, quando por en
tre os labios lhe siciava um suspiro sibilante .
Depois sumiram -se por uma avenida que se fechou
logo tão hermeticamente que os mais perspicazes olhos
não vingariam descobril-a, passados momentos.
Dissemos que Sancta Angela estava deitada sobre
um flaxido coxim . Em frente d'este, havia outro cober
to de veludo preto.
Sobre o qual se estendia uma imagem de Christo
descido da cruz . Era maravilhosa aquella esculptura !
N'esta funebre camera não se via o crucifixo rete
zado, anguloso , atormentado como o do locutorio. Este
que acompanhava Sancta Angela em seu retiro era em
verdade o «mais gentil dos filhos dos homens» . A cabe
ça, explendidamente bella , attrahia com ineffavel expres
são de ternura. Brilhavam-lhe os olhos por entre as lon
gas e sedosas pestanas; parecia chamar com os labios;
as azas do nariz como que arquejavam ; coroavam -lhe a
fronte louros cabellos, semelhantes á barba um tanto
frizada. Braços admiraveis cahidos ao longo do corpo
com flexibilidade de vivos. As mãos encarnadas nas pal
mas pareciam cheias de petalas de flores vermelhas, e
NO SUBTERRANEO . 123

não manchadas de sangue na cigura dos, cravos. Pernas


nervosas, e pés de irreprehensivel delicadeza . Não era
estatua de homem , senão d’um deus, quanto podem artis
tas realisar um typo sobre -natural; más esta divindade
seductora parécia vagamente maliciada de idolatria pa
gan . Era Jesus morto ou Apollo ferido ? Aquelle admi
ravel corpo não exalçava o pensamento . E, se idéas
carnaes assaltassem o espirito contemplativo, com toda
a certeza devêra pensar -se que, se um prodigio animas
se tal estatua, qualquer virgem se daria por contente de
tal esposo.
-A legenda de Voragine, a Vida dos santos de Go
descar superabundam em milagres d'aquella natureza .
Umas vezes o caminheiro que pede agasalho, se transfi
gura de manhã na belleza de Jesus ; outras vezes uma
formosa rainha, que levava em braços um menino doen
te, o vê transformar - se em imagem do crucificado. O
que já succedeu póde succeder de novo; ou , pelo menos ,
é facil comprehender que as freiras moças, affeitas aos
perpetuos contos de taes visionices, milagres e transfi
gurações, se illudam facilmente. Deram -lhes uma par
ticular educação de que cedo ou tarde são infalliveis as
consequencias. A noviça que vive em esperanças de go
sar um dia os amplexos do esposo divino, está sempre
a ponto de aceitar o prodigio em cada noite, por que as
noites encerram favores mysteriosos, e é de noite que as
hade visitar o amantissimo noivo. Sob qualquer forma
que lhe appareça , adoral-o -ha, em árrobos de celestial
prazer, e ao romper da aurora lhe estará dando pranto
de reconhecimento infindo. Os dias passa -os a merecer
preferencias do salvador; as noites, a esperar signaes
124 A FREIRA

d'essa distincção. Se o corpo soffre, o espirito reacende


se-lhe. Elanguescem -na dulcissimamente os perfumes do
ar que respira. Murmura palavras estranhas, cheias de
blandicias mysteriosas. Diz a Jesus o que amantes não
ousam dizer aos amados. Presta -se- lhe a lingua flexivel
a toda a variedade de expressões amorosas. Estão-lhe
continuas nos labios as palavras: extasis, deliquios, ar
rôbos, prazeres divinos, esvahimentos, infusões angeli
cas, supremas exultações. Chama o amado, offerece
se-lhe, dá -se- lhe langorosa . Sem saber como, sente-se ,
a um tempo, exaltada na phantasia e nos sentidos . Ar
de, ama, arfa de mysteriosos desejos, volateis como as
auras, discretos como um sonho, tão abysmados nas pro
fundezas innocentes do seu espirito, que julga sentir ef
fluvios de graça quando o coração lhe palpita mais forte
e a respiração mais apressada. Bem sabe ella que peri
gos affronta . N'aquelle vago aspirar á condemnação, crê
ganhar o céo. Crava os olhos no Christo sem sobresal
tos nem remorsos, sem mesmo attentar na nudeza da
imagem resplendente. Lê a relação dos milagres, que
não aprofunda, e todavia lhe conturbam o intimo seio .
Por exemplo, se folheia a vida de S. Bernardo, verá
que este mavioso servo de Maria, ornamentando o seu
cubiculo com uma imagem da Virgem Mãe, não podia
desfitar os olhos d'ella. Aquella doce imagem o manti
nha devoto e ajoelhado, escravo submisso. Mas elle não
fixava tão somente a vista no semblante da filha de Ju.
dá: ó que mais ali o inlevava e lhe incutia pios ciumes
era vêr o formoso seio de Maria, tumido a um tempo
de puro leite e de virgindade. Aquellas rozeas carnes
sem macula tentavam -no como um fructo . E então ex .
NO SUBTERRANEO . 125

clamava elle, fallando ao innocente Jesus cujos labios se


collavam no peito de alabastro, em quanto com as mão
sinhas lh'o acariciava maciamente:
-Que eu não esteja em vosso logar, ó divinal me
nino? Por que não hade uma bocca sedenta collar-se tam
bem ao alvo collo que se dá aos teus beijos?
E um dia (lá vem contado o caso na vida dos San
ctos) a Virgem , depondo no chão a criança, e arregá
çando amplamente o seu manto de purpura , permittiu
que Bernardo se dessedentasse na taça onde a creança
hauria a vida,
Não ha commentos para semelhante parvoice! Sir
va -nos ella unicamente como justificação do parecer que
temos ácerca dos ensinamentos especiaes que recebe uma
freira : o que fazem é nortear- lhe os sentidos para outro
porto, e prometterem -lhe de procedencia celeste sensa
ções privilegeadamente terreaes. Quanto mais a quei
mam desejos, mais ella julga que Deus a chama á vida
contemplativa. E acontece logo que as macerações a
deleitam, cuidando que conquista a preferencia á custa
de torturas. Immola -se; mas espera ser recompensada.
E' uma virgem que arde em desejos de perder mistica
mente a sua virgindade. Não se acham perdidos os sen
tidos n'ella : deslocados, sim . O clarão do relampago tal
vez lhe mostrasse a natureza em toda a sua verdade; e
então aconteceria que ella, antes de se vêr cabida, não
soubesse perceber como se fez a transição invencivel d'um
sentimento para outro.
Santa Angela era um modelo consumado da freira
juvenil, ardente, amorosa, bella, ebria do amor divino,
que ultrapassa o ideal. Para ser correspondida em tal
126 A FREIRA

ternura, vimos que nenhuma dôr aa retinha sem exceptuar


os tormentos da cruz .
Eil -a pois immovel sempre, eburnea como as escul
pturas, com o marfim de suas carnes resaltando do fun
do escarlate dos estofos. Bruxeleava apenas na camera
uma luz pallida, caçoulas aromaticas vaporavam lenta
mente,' e uma neblina de fragrante fumo condensava um
véo diafano.
0 Christo, immovel tambem , estirava -se sobre o
almadraque negro .
No seio da menina arfavam suspiros.
Entreabriram -se-lhe as palpebras, expediu um grito,
e fechou os olhos... O que ella devisára figurou -se-lhe vi
são, attribuindo a deliquo o apparecimento d'aquella ima
' gem .
O Salvador, em cuja paixão dolorosa ella tinha par
te, chamou-a para o seu tumulo , dando lhe tambem par
te n'elle: de sorte que, corrido algum tempo, ressuscita
riam juntos .
-Senhor! Senhor !_balbuciou ella .
E então, voz aeria, como murmurio de briza, ci
ciou - lhe ao ouvido :
--Não és d'este mundo, querida ! N'esta noite de
martyrio e gloria, ser -te-hão revellados os segredos do
paraizo... Vais compartir nas ineffaveis delicias que eu
liberaliso aos que me amam ... O' virgem discreta! A
tua lampada está cheia d’oleo, vem...
Santa Angela levantou-se ; mas, tomada de indifini
vel turpôr, cahiu , exclamando:
--- Leva -me, Jesus! leva -me!
-Esquece o mundo... Cerra os teus olhos carnaes,,
NO SUBTERRANEO . 127

abre os da alma, deixa a caza de teu pai, entra no jar


dim do rei, e nas adegas mysteriosos onde te embriaga
rás com o vinho de Engaddhi... Entrega -te a esse divino
quebranto que toda te elanguece... Despenha -te cega
mente no abysmo do amor... Transpoem montes e vales
em busca do amado, e cuida em o attrahir a ti com as
mais suaves palavras da tua prece.
E Santa Angela respondeu:
-Que bello és, meu querido ! Que bello és ... 0
2

meu amado desceu a colher lyrios do meu jardim ... Sou


sua !
E a vós seraphica replicou :
Teu seio é mais alvo que os cordeirinhos , e o
teu perfume recende ao sinamomo... Que formosa és,
ó querida ! Que formosa és... Dá -me um beijo da tua
bocca .
Auras de estio perfumadas, e o ardor da braza vi
va, eram a dupla impressão que Santa Angela sentia .
Coava - lhe nas veias estranho fogo, era um sentir quasi
doloroso, e todavia ella alongou os beiços á feição de
beijo ...
E a voz continuou :
-Tu és a minha pomba, prendeste-me o coração
n'um só lance d'olhos , com um só de teus cabellos ... A
tua bocca é favo que distilla mel... Mel e leite adoçam
tua lingoa ... E's um jardim fechado, uma fonte defeza.
Santa Angela balbuciou:
-Durmo , e meu coração vela... Elangueço d'amor.
N’este lance, o bafejo que roçou a face da extatica,
foi por tanta maneira afogueado, que ella cuidou sentir
uns labios nos seus .
128 A FREIRA

E ao mesmo tempo os perfumes dos vazos deram


todos os aromas, a luz da alampada impallideceu mais,
e figurou -se á freira que o Christo morto se levantava
do seu leito mortuario ... Escureceu de todo, e aquella
voz mais cariciosa, acrescentou :
-E's semelhante á palmeira na estatura ; e eu su
birei á palmeira aa colher - lhe dos fructos ... O teu pesco
ço é semelhante a um cacho de uvas...
A aza d’um anjo deslizaria no seio arquejante da ex
tatica ?, Santa Angela murmurou um gemido delicioso de
celestiaes volupias.
E disse com voz expirante estas palavras:
-A sua mão esquerda está debaixo da minha cabe
ça, e com a direita me abraça .
E, depois, ouviu -se este dizer:
--Minha querida, minha tão amada, eu colhi o fa
vo com o seu mel e colhi a myrrha com os seus olo
res .

E, logo á maneira de ecco, um gemido prolongado,


e estas palavras:
-O meu amado é como um raminho de myrrha, e
entre os meus dois seios o heide ter.
Depois, silencio, silencio de sopitamento, de mys
teriosa embriaguez ...
Passaram minutos ee horas . A claridade fez- se a pou
co e pouco na camera sagrada, cujo ambiente estava
nubloso de perfumes.
A imagem do Salvador immovel sobre o cochim
negro ficou sosinha no retiro.
Santa Angela sahira; e, como que despertára, exte
nuada, na sua cella.
NO SUBTERRANEO . 129

Languor estranho a alquebrava, Soffria, abafava,


não se reconhecia, palpava -se nos braços, precorria a
fronte para certificar-se de que era viva. A existencia
normal parecia - lhe sonho; tantas e tão novas sensações
a exagitavam, desde que voltára a si. Lembrava -se ..
Na casa , penitenciaria, onde, louca da loucura da cruz,
se deixara ir depox a alma generosa, deu-se como
Christo aos algozes, e, como elle, cahiu extenuada;
depois, sentira-se transportada ao céo em nuvens de in
censo, e ouvira a voz do ainado, e com , elle dia
logára as phrases sensualmente amorosas do Cantico dos
canticos, escriptas pelo mais apaixonado rei sob os olhos
da Sulamita ... E experimentara a ebriedade do extasis,
quando a vida se lhe escoava em tảo violentas dilicias,
que todo o seu ser lhe parecia engolphar-se por abysmos
sem finn !
E assim fôra de : certo : primeiro o martyrio; depois
as nupcias com o Cordeiro.
E então, arraiada no palor da face pelas illumina
ções dos recordados prazeres , dizia :
-Vem, ó querido, vem !..
Sancta Angela não sabia que hora era . Ia vestir o
hábito, quando a porta se abriu subtilmente .
A prelada entrou, e, contemplando, penetrantemen
te, a freira, disse :
-Dispenso -te hoje do côro, e dou-te uma compa
nhia que te distraia .
Esta companheira era Barbara ,
Tào radioso estava o semblante de Sancta Angela ,
quanto quebrado e sombrio o da sua amiga .
As duas carmelitas aproximaram-øe .
9
130 A FREIRA

Os olhos de Barbara inundaram-se de lagrimas.


-Pobre martyr !-disse ella - pobre martyr !
Lamentas -me !? - acndiu Sancta Angela .
--Se te lamento ! Ah ! que horrivel demencia hon
tem se apossou d'estas mulheres! Nunca poderei esque
cer o que vi ... nem já mais tornarei a ver ...
-Cega ! cega !-disse Sancta Angela, sorrindo.
-O que tu soffreste ! ..
-Não ... não ... Estás muito enganada com o que
é dôr physica ... Hontem , ao começár a tortura , confes
so que me entravam nas carnes agulhas de fogo ... Os
nervos não podiam ... senti -me desfallecer ... mas, se o
miseravel corpo enfraquecia, o espirito venceu ... Minha
alma levantou-se logo como se tivesse immensas azas...
Superei o corpo ... a ponto de já não sentir as mordedu
ras da flagellação ... Quando me deitei na cruz, todo o
meu sentir era ambição do céo... Parecia -me vêl-o abrir
se, e que o Salvador me dizia: « Irás hoje commigo ao
paraizo .
Sancta Angela , cuja voz se elevára gradualmente,
disse em ar de segredo:
-E o Christo me prometteu que ...
--Que...
-E cumpriu o que promettera - murmurou a frei
-

ra , purpurejando -se como a noiva no seu primeiro dia


de esposa .
Barbara, que não podia tolerar a idéa do soffri
mento physico, achegou-se mais da amiga, e disse- lhe :
-Conta-me' tudo .
-Não sei se dêva ... A escriptura diz: « A belleza
da filha do rei é toda intima ... e não deve revelar - se o
NO SUBTERRANEO 131

segredo do reis... Mas , se eu fallei, minha irmã querida,


é para te convencer de que a penitencia, que recusaste,
encerra prazeres infindos ...
-Que prazeres ?... perguntou Barbára .
-Recorda -te dos dons sobrenaturaes concedidos aos
såretos; os lumes da vizão beatifica, as dilicias do exta
sis , os arrebatamentos d'amor de S. Francisco Xavier,
que, abrazeado em inextinguivel fogo, exclamava: « Bas
ta , senhor, basta ! » Lembra -te dos esvahimentos amo
rosos de Sancta Thereza ... Olha ... tudo eu senti...
tudo...
- Tu ?
-Eu, sim ! Onde estive? ... Levaram -me... não sci
como... era , talvez, um anjo que me involveu nas suas
azas, e me levou a Deus ... Não o vi com os olhos , nem
meus ouvidos o ouviram ... O coração humano não pode
imaginar o que o Salvador dá aquelles que o amam ...
-Não te percebo... Quando te levaram da sala ,
sabes onde fêste ?
--- Para aqui de certo ...
Barbara acenou negativamente .
-Então para onde ? -tornou a extatica .
--Que sei eu ! .. Desde hontem á noute que me sin
- to traspassada d'um pesadello horrivel... Estás ahi fal
lando em transportes divinos, e eu penso que assisti a
- uma scena de inferno. Dizes que os anjos te levaram
para longe da vida material, e eu, n'isso d'anjos, o que
vi foi una bengalé de demonios... Fallas em Cantico
dos canticos, e o que eu tenho na lembrança é a toada
plangente dos psalmos de David... Eu insandeco, juro
te que insandeço, se torno a ver semelhantes quadros.

1
132 A FREIRA '

Acceito o convento na glacial regularidade do seu vi


ver... curvo -me á regra , não quebrantarei os votos , isto
e só isto farei... não podem exigir mais de mim .
-Pois não queres merecer a effusão da graça ?
/ -Falla-me da tua visão, minha mystica dulcissima,
- virgem discreta cuja lampada desborda de olorentes
oleos, conta -me tudo, tudo ...
--Quando despertei, vi-me deitada sobre uma ca
ma, cercavam -me perfumes, nuvens de incenso que que
bravam a luz do céo... O Christo estava defronte de
mim ...
-O Christo ?!_exclamou Barbara .
-Tal qual a gente o vê quando as sanctas mulhe
res o sepultaram , bello ee livido. Reconheceu -me, fallou
me ...

-Que sonho ! que chimera !


-Fallou -me, repito, e sua voz entrou -me n'alma
como celestial harmonia . Depois, uns gosos desconheci
dos me deram tremuras; a braza de Izaias calcinava -me
os labios; um esvaecimento. me elanguecia todas as fi
bras ...
Barbara, ao recordar o primeiro beijo de Zolpky,
estremeceu .
-E , depois? ..-- perguntou ella, reflexiva e concen
-

trada .
Depois ? sentia me tão languidamente abatida, co
mo se me estivessem amolecendo as mãos dos anjos,
n’aquelles dulcissimos contactos que as virgens devem
sentir ao ascenderem para Deus, caricias divinas, mercês
de alto amor, que eu toda ancias me ia ao encontro d'el
las para as saborear melhor ... Algumas vezes, abafava
NO SUBTERRANEO . 133

me o excesso da delicia, e tremiam-me na garganta uns


gritos inarticulados... Mudando de natureza , as minhas
sensações revelavam -me deleites novos; e , alfim , um lon
go estremecer 'me agitou , o rapto arrebatou -me, e oh! ...
que desfallecimento ! ..
--E depois? -perguntou Barbara .
-Depois, despertei aqui, com saudades da minha
visão que se esvahiu, e anciosa por que se abra outra
vezi a sala da penitencia por onde vamos ao jardim das
delicias ... Ah ! Barbara, minha amiga, minha irmã, se
tu podesses sondar o mysterio que esta noite me foi re
velado, não recusarias acceitar as passageiras dores que
pagam por certo semelhantes gosos.
- Ainda não percebi o enygma - murmurou Bar
bara .
-Qual enygma?
0 que me embrulha a tua narrativa .
-Pois não foi ella tão simples e admissivel ?
--Escuta — disse Barbara, erguendo -se, e tomando
nas suas as mãosinhas de Sancta Angela -a tua alma é
pura e a tua confiança infantil. Estimo-te e quero -te por
tua sancta ignorancia, ainda que ella te abysme... Tu,
n’este instante, desvairas , certamente ... Estavas febril,
quando pensavas sentir jubilos celestiaes , ou então...
Barbara conteve -se, murmurando :
-Oh !.. seria horrivel!..
- quê? -perguntou Sancta Angela.
- Não terias animo que te fizesse descer ao fundo
negro do que eu penso ... Heide ir sósinha onde está a
ultima palavra do mysterio .
Por onde eu fui...
134 A FREIRA

Deus sabe por onde eu irei.


E sahiu da cella, instantes depois.
-Eu não sonhei!-dizia ella entre si no caminho
do côro -- só eu talvez possuo o segredo do que se pas
.

sava ... oh ! se possuo !... Eu bem vi ... Mas não irei fe


rir aquella pobre alma... o que farci é acautelar -me ...
E accrescentou, ao transpor o limiar do côro:
-E meu pai a receiar que a deshonra lhe entrasse
em casa, mediante as innocentes entre -vistas com Zol
pki...
IX

O APRISCO DO SENHOR

ESDE aquelle dia, Barbara foi espionada cuida


dosamente. Com toda a certeza, aquella mulher indivi
dualisava - se de estranho modo: cumpria estudal- a a pre
ceito. No convento, a religiosa que se não docilisa
tanto á regra escripta, como á interpretação que lhe dá
a prelada, é logo malsinada e suspeita . A suprema pa
lavra da vida monastica, o maximo da perfeição, é o
esquecer-se de si em Deus, o desprender --se de vontade
3

propria nas mãos de quem lh'a representa. Qualquer


desfalque n'esta renunciação absoluta, n'este suicidio da
individualidade, constitue rebeldia . O voto de obedien
cia é o unico, de quantos lá se fazem , a que se não con
cedem subtracções. O voto de pobreza, respeitado no indi
viduo, é ultrajantemente violado no conjuncto da communi
dade. E' certo que a menina rica, entrada ao mosteiro, lh'o

1
136 À FREIRA

dota os seus haveres, fruindo de seus rendimentos a mini


ma parte. Uma freira não chega a romper dois habitos de
burel. O segundo hade ser- lhe tambem mortalha. Gosa,
porém , como as irmãs, a magnificencia da casa conven
tual, onde ha prodigalidade de marmores e bronzes de
valor. Habita um palacio onde reverberam resplendores.
A capella rebrilha como a rampa d’um theatro; recende
como toucador de dama casquilha; os espaciados claus
tros recebem por debaixo da arcaria as fragrancias dos
hortos ; a cella é decerto melancolica; mas o aspecto dos
cubiculos tem um exterior magestoso. IA O
O mosteiro possue enormes rendas , que se gastam
nas mais das vezes a enxamear novos cortiços, por que a
cubiça de cada ordem é contar mais conventos que a or
dem émula. A pobresa dos mosteiros, por tanto, é sim
plesmente uma palavra convencional .
0 voto de castidade !... Nas chrónicas e na historia
sobram personagens, que nos dispensam de fantasiar .
Ha ahi realidades vivas , dramaticas, mais para pavores
que quantas ficções cabem na mais imaginosa vocação
de romancista .
O voto de penitencia éé particular do certas ordens.
As ursulinas, as visitantes, as religiosas do Sagrado-co
ração não o proferem . N'estas ordens, são raras as pe
nitencias, e peculiares de certos dias. S. Francisco de
Sales, posto que aconselhasse uma boa disciplina a quem
quizesse dormir regaladamente, não consentia que as suas
filhas espirituaes abusassem d'isso, e receiava que o san
gue remoçado, e escandecido pela dôr physica, tentasse
desforra .
As claras, as calvaristas, as trappistas e carmelita
NO SUBTERRANEO . 137

nas constituem a maceração uma das vitaes condições


da ordem . A fogosa reformadora do Carmelo viveu me
tade de sua vida sobre o calvario, e outra metade em
.

extasis de Thabor . '


Até ondechega o soffrimento das macerações? E' dif
ficil abalisar . Talvez que, durante os primeiros dias, 09
1

cilicios de ferro, os látegós achumbados, as corôas de


espinhos penetrantes atterrem e exulcerem ' a carne da
joven penitente; mas a exaltação moral e febre da phan
tasia depressa sobvertem o sentimento da dôr plenamen
te . Os fakirs da India não soffrem , se os supplicios, que
se infligem , são voluntarios. Attingiami os martyres dos
primeiros seculos um grau de enthusiasmo que lhes ab .
sorvia o sentimento. Deitados sobre grelhas ardentes, af- •
firmavam estar deitados em leitos de rosas . O certo é que
elles retrahiam ao intimo as torturas que lhes 'escálavra
vam os membros. A embriaguez da dôr remata na in
sensibilidade, o excesso atrophia . Estão cheias de ale
górias poeticas e graciosas, que pintam perfeitamente o
estado real dos martyres, a Legenda aurea e a Vida dos
Sanctos. As chammas abatem -se nas fogueiras desvian
do-se das virgens; chuva de perfumes Ihes refrigeram
os corpos invulneraveis, anjos as involvem nas suas azas
n'aquelles infames paradeiros onde os perfeitos de Roma
ás arrojam ao sêvo dos libertinos e gladiadores . Lama"
bem - lhes leões os pés alvissimos, e prostram -se no circo
deante das vencedoras innocentes. Leite em vez de san
gue lhes deriva das chagas. Quando morrém , lá se lhes
vai voando ao céo a alma em figura de nivea pomba.
No dia seguinte ao do martyrio , as feridas desappare
cem , por que enviados do céo lh'as ungiram com divi

6
138 A FREIRA

nos balsamos. Os estrepes de vidro transfiguram -se em


leitos juncados de olorosas pétalas. Auroras maravilho
sas rutilam nas suas escurissimas masmorras . O es
pectaculo de taes prodigios, e o reviramento das leis
da dôr, assombra verdugos e espectadores, a termos
.

de alguns clamarem em frente das victimas : « Sou chris


tão!, para em seguida os imitarem na morte. A dôr torna
se attrahente, o martyrio contagioso , o amor ao soffrimen
to pega -se como a febre. En todos os tempos foi assim .
Quando se deram aquelles extravagantes cazos que,
forçaram a auctoridade a fechar o cemiterio de São Me
dard, os discipulos do diácono de Pariz torturavam -se fre
2

neticamente . Não ha ahi supplicio que os taes fanaticos


não comportassem com enthusiasmo . As proprias mulhe
res se offereciam aos atormentadores. Era geral o attra
ctivo. Se o rei não pozesse côbro a tamanhos escandalos,
a torrente arrastaria a França inteira.
Não se nega que algumas ordens religiosas se dão
a excessivas penitencias: provado está isso de mais para
que o discutamos . Porém , não temos sempre em grande
conta a dôr da penitencia ; e fundamos esta duvida so
bre o que a maior parte dos ascetas escreveu sobre o
assumpto . Além de que, é crença nossa que, se a exal
tação mystica de certos beatos não se eleva ao alto pon .
to em que o soffrimento se anniquilla, a compensação
estranha, exquisita , mixto de visão e sonho, de pezadelo
e extasis, basta de mais a remuneral-os .
Ha ainda o voto de obediencia. Este sim , que é
grave, fatal e inviolavel. A prelada de um mosteiro é
rainha absoluta , autocrata e sacerdotisa a um tempo :
reina e governa. O centurião diz ao seu servo: «Faz,
NO SUBTERRANEO . 139

isto .» A prelada diz mais: « Pense isto. Absorve na


sua a vontade das vassalas . Veda -lhes ter ideas . Toda a
sua politica funda em lhes supprimir o pensamento .
E', ao mesmo tempo, cerebro e braço .
A qualquer hora lhe assiste o direito de perguntar:
« Irmã, em que pensa ?
E é obrigatorio responder logo. Se a freira mente,
corre -lhe o dever de confessar a mentira, e penitenciar
se em dõbro .
Uma senhora de baixa condição, sendo prioreza de
um convento , comprazia - se em humilhar as freiras de
linhagem antiga. Uma noite, perguntou a uma recente
professa que a precedia com o castiçal:
- Irmã, em que vai pensando?
-Nossa madre, penso que, se estivessemos lá fóra ,
era a senhora que me servia de creada .
A pobre menina de certo nunca mais teve pensa
mentos orgulhosos,> por que foi encerrada no tronco.
Freira, que seja voluntariosa, é má freira . Entrar
ali é morrer , sem mais resurreição de individualidade.
Tal obediencia corta as azas da alma á professa juvenil .;
A’ prelada incumbe apontar no seu rebanho as que hao ,
de ser Marthas e as que hão de ser Marias; umas para
a vida activa, outras para a contemplativa .
As da vida activa são as que moirejam na caza,
curando do bragal, da cozinha, da portaria. Oram , mas
vocalmente - oração labial, sem que o espirito intenda
n'isso . A oração vocal restringe o intellecto n'um circulo
d'onde não ha sahir. As rezas ditas de cor são sempre
as mesmas; os hymnos do psalterio são poucos. Ha frei
ras que em toda a sua vida não leram tres volumes. São
140 A FREIRA

umas que andam atarefadas em limpezas de casa , arran


jos de claustro, que vão e vem, tangem sinos, sacodem
tapetes, escovam , barrem , afadigam -se todas n'aquella
1

admiravel ordem que notaes nos conventos, e se identi


ficam n'este monotono e ingrato mister até ao extremo
de se embrutecerem .
São as Marthas da casa.
Quanto ás Marias, ás dilectas, ás amantes , essas, são
inversamente impellidas a tudo que é do dominio espiri
tual.
Meditam, oram e contemplam .
E ahi começa a região sombria do mysticismo.
Mas, á inergia de pormenores, é impossivel perce
ber a vida monastica. "}
A religiosa , que medita, conhece as lettras. A, que
ora, junta as palavras. A contemplativa lê correntemen
te . Meditar é analisar e desfiar um texto grande ou cur
to : é uma gloria pessoal , familiar, que cada dia se reno
va sobre diversos assumptos . A oração é coisa de mais
fôlego: é improvisar sobre uma palavra ou um sentimen
to; nada de phrases de livros; quando muito, uma cita
ção evangelica, um recordar mysterios do christianismo,
materialisal-os, se isso convier. A concatenação de idéas,
invocações , fervores que brotam do espirito , constituem a
oração: a alma lá vai ter levada por uma lembrança , um
simples fio conductor . ,,
A contemplação vive de si mesma . Renasce inces
santemente, phenix divina. E' a ' alma que se está na
presença de Deus. Não falla nem actua: espera passiva.
Soffre dôr, enlevo ou enthusiasmo, segundo praz ao Es
pirito Sancto . E' o ultimo grau de mysticismo.

3
NO SUBTERRANEO , 141

Acima d'isto , está o extasis, como fim lógico da


contemplação.
O extasis vê, sente , saboreia e gosa .
O extasis tira ao corpo o pezo, e a faculdade de pa
decer. · Arrebata Elias no carro igneo, e Paulo ao ter
ceiro céo; idealisa o purgatorio de Santa Perpetua, o in
ferno de S. Brandão, põe o Deus-menino nos braços de
Estanislau Koska, dá a Sancta Thereza o desmaio em
que o seraphim lhe alcanceia o coração, permitte a S.
Bernardo receber nos beiços as gotas de leite virginal
destinadas ao menino Jesus, passa ao dedo de Cathari
na o anel nupcial, abre nas mãos de Francisco d'Assiz
as chagas sangrentas, e lardea de passagens exoticas de
contestavel moralidade as paginas de Voragine e Gode
scar . !

A vida ascetica procede por iniciação progressiva.


Do mesmo modo que os sacerdotes de Isis levan
tavam um a um os véos da deuza, ao passo que os pro
fanos cahiam fulminados se ll’os queriam arrancar d'uma
vez, assim as freiras entram mui devagar na senda mysti
ca. Ha d'ellas que topam , n'essas diversas phazės, recom
pensas de suas privações . Muitas vão de boa fé.
Logo que a prelada sondou, esquadrinhou e viu
por miudo a alma d'uma noviça , fica sabendo o que ha
de fazer d'ella . E o que é factivel far -se -ba : à novilha
ficará no redil, ou irá ao dezerto. Perguntam -lhe o que
sente e que deseja . Findos seis mezes , está predestina
da : activa ou contemplativa - uma das coisas, sem termo
>

medio . Ha ordens que tentaram enlaçar os dois modos


de ser, fundindo Maria em Martha: não se combinam
bem . A alma assim dupla não está plenamente satisfeita.
142 A FREIRA ,

Ou muita actividade, ou perigo de demasiada passibilida


de. Por mais que faça e possa, a prelada não vinga re
fundir corações e vontades tão a ponto.
E, se não fosse aquella pujança de dominio, que
em uma só vontade cifra todas as vontades d'um con
vento , não seria possivel conter uma só noviça .
No mosteiro carmelitano de Cracovia, o voto de obe
diencia não era palavra vã. 5

A prioreza tinha ' envelhecido no exercicio da sua


soberania, fazia d'isso gala, e não permittia a minima
trangressão .
Assim pois que ella viu vontade tenaz em Barbara
Ubryk , affrontando-lh'a com armas eguaes á sua, in
1

tendeu -se d'este theor com a mestra das noviças:


-Estudou mal esta rapariga; figurou-m'a creatura
· branda, flexivel, e ahi a tem rebelde aos dois grandes
- mcios de submetter que até hoje exercitamos. Barbara ,
por causa da exaltação que lhe é natural ee talvez ella
mesma desconheça, devia entregar -se sem reagir ás,san
ctas crueldades da penitencia .
-Tel- o -hia feito -respondeu a mestra - se a nossa
madre lhe houvesse dado os instrumentos na solidão da
sua cella ... Que impedimento poz ella? 0 voto de casti
dade que lhe prohibia mostrar -se nua...
-E Christo estava vestido na cruz?
-Barbara não attingiu por ora o grau de obedien
-cia que annula a vontade alheia em nossas mãos. Hade
( ser preciso muito tempo para desfazer a memoria da
scená a que a fizemos assistir prematuramente.
-Ah ! Eu tambem assim o pensava ... Quem teve a
culpa foi o padre Zózimo... Era bem melhor esperar al
NO SUBTERRÁNEO . 143

guns mezes ... Não lhe bastava o ardor da Cinco-Chagas,


e a evangelica obediencia de Sancta Angela? A muita
pressa pode perder tndo, quando temos que luctar com
naturezas de tempera tão rija ... Que faremos agora para
reconduzir esta menina receiosa e desconfiada?
Sim ... desconfiada... obtemperou a mestra das
noviças.
-Que surtir da sua conversação com Sancta An
gela ?
- Nada que preste.
-Então a joven sulainita ...
-Ah ! Sancta Angela ala-se ao paraizo a todo o voar
de suas azas ... Nunca tão mystica pomba poison nas
franças da oliveira , nunca mais fervente virgem acendeu
sua lampada para ir offegante ao encontro do esposo ;
nunca tão predilecta amante se gosou na lembrança dos
reäes celeiros onde'o vinho do amor se bebe com perfu
mes de myrra ... Mas, por fatalidade, o que devia coadju
var-nos , nos embaraça n'esta conjunctura... Quando
Sancta Angela enthusiasticamente lhe contava as suas
delicias, Barbara respondeu -lhe com um sorriso cheio de
reticencias...
-E
- E ' que ella viu ...- disse a prelada .
A mestra de noviças deu aos hombros.
--Ou julgou vêr, que é o mesmo .
-Mas o que devemos fazer é convencêl- a de que
se eng : nou .
-Decerto; mas quem hade convencêl-a?
--O padre Zézimo decerto não.
Recorre -se ao confessor.
-Custa -ine a submetter raparigas novas á direcção
144 A FREIRA { {

d'um padre: O confessor deveria operar influenciado por


nós .
A nossa Madre decidirá segundo o seu alto dis
cernimento . 1

-Por agora, de livros a Barbara, occupe-lhe o es


pirito , empregue -a na egreja . Não lhe falle em Peniten
ciaria. Não a misturemos com as outras, antes de aye.
riguarmos se , ella é digna de pascer-se nos prados re.
gados por correntes de leite e mel.
-Intendi, nossa madre.
O som do sino rematou este dialogo.
Consoante se convencionou, Barbara foi dispensada
da vida contemplativa. Deu-se-lhe officio de preparar
altares, e colher fores para as jarras da egreja. As
companheiras viam-na raras vezes. Em volta d'ella,
redobrou - se a lei do silencio... Encheram - lhe a cella de
livros, que a freira lia para entreter o espirito. A pou
co e pouco foi-se tranquillisando. Quando, porém , lhe
perpassava na memoria aquella terrivel noite em que
tantas nudesas, virginaes se lhe mostraram , tremia ain
da de medo ; todavia ,..como ardera em febre no dia se
guinte, já confundia a realidade com o delirio.
Trataram -na com brandura.
O director das carmelitas, prevenido das cautelas
que era mister haver, mostrou-se reservado, e Barbara,
por isso, mais disposta a confiar n'elle .,
Quanto ao padre Zózimo, confessor, isso era di
verso .

Nas grandes communidades, ha confessor e director.


O confessor ouve os peccados, absolve e impõe a
penitencia.
NO SUBTERRANEO . 145

O confessor, medianeiro entre Deus e as monjas,


é menos considerado, está muitó áquem do director.
A freira, se tem socegada a consciencia, não tem
que ver com o confessor.
A relação da miudezas sobre o maior ou menor
fervor da oração, dos raptos movidos pelo Espirito-San.
cto, do affecto que sentem ao Salvador, do attractivo da
penitencia, do encanto que as leva para as consolações
sensiveis, isso pertence ao director somente.
O director destrinça as propensões, jubilos, lagri
mas, exultações das suas derigidas, sondando-lhes os seios
da alma. Faz, a seu modo, sanctas e illuminadas. Arras
ta com a authoridade da palavra ao horto da agonia ou
ao jardim das delicias. O director é a alma do conven
to; o confessor é um maquinismo necessario ao ministe
rio dos sacramentos. Exércem acções independentes. Na
sociedade, as beatas, que aspiram á perfeição, usam
d'este luxo mystico: director e confessor.
O confessor pode ser um padre simples, idiota,
ignorante, tanto monta.
O director deve ser por egual theologo e eloquente,
e, mormente, possuir o que se chama tacto das almas .
Francisco de Sales, 'director de Joanna de Chantal,
converteu á sanctidade a amavel filha de Frémiot.
Pedro d'Alcantara, amigo e director de Sancta The
reza, dirigiu e aconselhou a reforma do Carmêlo .
Um convento sem director vai desnorteado.
O padre Onufre, director das carmelitas de Craco
via, era homem habil, prudente, reflexivo, pomareiro
sagaz que deixava amadurar os fructos antes de os co
lher, differente do padre Zozimo com quem a miudo ti
10
146 A FREIRA

nha graves questões. Barbara, porém , durante bastantes


mezes , foi sómente dirigida pela prelada.
Convinha remittir -lhe a febre moral e reconquistar
lhe a confiança .
Dôr e terror eram o duplo sentimento que a recon
centravam desde a profunda impressão que lhe deixou o
revelado mysterio das macerações .
Repulsa da familia, esquecida por Zolpki, trahida
até certo ponto pela religião que quizera abraçar em tran
ces de naufragio, que lhe restava? A força do 'espirito e
a logica da consciencia..
Invocou todas as energias para a lucta, e jurou não
se deixar prostituir pelo exemplo das outras mulheres,
ainda que a rebeldia lhe custasse a vida.
Contra a espectativa, não se lhe azou o ensejo de
envidar o aprumo do seu caracter. Espectaculos perigo
sos nunca mais os viu; revelações de Sancta Angela nun
ca mais escutou alguma, Dir-se-hia que a prelada lhe
concedera a liberdade de se derigir.
Serenou-se gradualmente o espirito da freira . Já
descorocoada de esperar a volta de Zolpki, julgou -se con
demnada para sempre. Desde ahi, forcejou por afazer- se
á existencia imposta e repulsiva. Applicou -se a esque
cer, a refundir -se completamente na regra de Sancta
Thereza .
N'este em meio, morreu a preļada ..
Foi successo estrondoso no mosteiro ,
As freiras, o padre Onufre, director; o padre Zózi
mo, confessor, fizeram frequentes conciliabulos . Duas
carmelitas disputavam a soberania. Uma ainda nova,
bella, ardente. A outra já avelhada. A primeira tinha as
NO SUBTERRANEO . 147

exaltações de espirito aventuroso, e os mal esfriados senti


dos de mulher de vinte e cinco annos; a segunda, rispida
por idade, invejosa do frescor e belleza das suas compa
nheiras, pellidava pelas auctoridades da regra , sem as
attenuar com as compensações de que era prodiga a fal
lecida prelada .
Sahiram a campo , n'esta eleição, seducções sagazes,
e ardis velhacos. O padre Onufre protegia a candidata
velha, e o padre Zózimo dava o seu suffragio a Maria
Wenzik , cujos haveres e ascendencia illustre, segundo
elle, realçariam a honra do convento .
Instaram vivamente com Barbara para que desse
o seu voto; ella porém fechou -se com o segredo da sua
preferencia. A rigidez da Santa Rosalia atemorisava -a, ao
passo que a mocidade de Wenzyk lhe parecia de melhor
agouro. O voto de Barbara por fim decidiu aa eleição.
Pobre mulher! Se ella adivinhasse as torturas que
um dia lhe seriam feitas, por aquella religiosa que o seu
1

suffragio chamou á prelazia do Carmelo! Dir-se-hia que a


nova eleita comprehendia quanto era obrigada a Barba
ra : tantas eram as delicadezas com que a tratava, a
ponto de sondar o segredo do coração da sua amiga. A
contricção d'alma da infeliz freira desafogava - ee a pou
co e pouco . Parecendo-lhe impossivel qualquer futuro fó
ra do convento, subinettia -se ao destino, repetindo o
Quotidie morior de S. Paulo, que é a grande divisa do
christianismo.
Barbara foi mais adiante .
Com quanto não commungasse d'aquellas macera
ções nocturnas que a tinham indignado mais do que as
sombrado, quiz tambem matar o corpo a fim de reviver
148 A FREIRA

a alma. Deu-se á penitencia fervorosamente . Mortificou


o corpo desangrando-o, para espancar a imagem de Zol
pki. No seu triste cenobio resoaram muitas vezes os in
voluntarios gemidos que lhe arrancava a dor . Estes sup
plicios eram mais excruciantes, por que não tinham cum
plices nem testemunhas . O frenesi da penitencia não era
contagioso para Barbara, que se mortificava por que as
sim o queria, sem o attractivo do exemplo. Era-lhe instin
ctivamente odioso o soffrimento corporal. Figurava -se
The commetter um crime de lesa humanidade - um suicidio
lento, com premeditação. Procurava nos livros sanctos
passagens idoneas que a absolvessem , tornando-se disci
pula da loucura da cruz, com aquella serenidade que re
dobra as torturas de quem voluntaria e solitariamente a
ellas se condemna . A' custa pois do muito soffrer, es
perava ella desfazer a visão do fantasma adorado.
Maria Wenzyk prestou -se aos desejos da religiosa.
Se a não amava tanto como a outras, estimava - a por
veneração ao respeito de si propria . Bem sabia a prela
da que não era facil reduzir Barbara á submissão de ade
pta; mas esperava que ella fosse no convento pessoa
bastante considerada, de quem mais tarde se colhessem
as vantagens promettidas á situação que estava gran
geando.
Enganara-se Barbara, quanto a pensar que a flagel
lação bastaria a dissipar a lembrança de Zolpki, e que
o socego d'alma iria vindo á proporção que o corpo des-.
fallecesse esvaido de sangue .
Quando, consoante a praxe do convento , estendia
os dois braços á sangria, e que a força ia abatendo á
medida que os borbotões de sangue derivavam , sentis
NO SUBTERRANEO . 149

se exhaurida, semimorta, e de repente mais deslumbran


te e pura se lhe contornava a imagem radiosa do aman
te da sua mocidade. Era por tanto baldado luctar con
tra si mesma : o amor resistia invencivel como a morte .
Succumbiu , porém , o corpo.
A freira foi atacada de febre ardentissima. Duran
te alguns dias recearam que ella morresse.
A' imitação de todas as freiras enclaustradas, as
carmelitas retardam quanto podem o recurso da medici
na . Estava pois quasi agonisante Barbara Ubryk, quan
do a prelada mandou chamar o doutor Wrobleski.
?

+
X

O AFILHADO DO DOUTOR

© medico acabava de metter-se ao caminho do bair


ro de Wesola, quando um homem de cerca de trinta an
7

nos , pallido e esbofado, bateu precipitadamente na 'sua


porta .
A creada abriu apressada, e, vendo o visitante, re
cuou expedindo um grito de espanto :
O senhor aqui!
-Julgavas-me morto , não é verdade ?
--Como toda a gente, como seu padrinho, como ...
Pobre menino ! -- ajuntou ella com ternura -- Muito hade
ter padecido ...
-Muito !.. Meu padrinho está em casa ?
-Não senhor, sahiu ha pouco .
-Esperarei... O casa querida! Ha que tempos eu
não transpuz a tua hospedeira porta ... Tudo está no mes
mo lugar. Os homens passam , e as coisas ficam
152 A FREIRA

O mancebo seguiu o corredor, e entrou no gabinete


do medico, atirou -se a um sophá, e recolheu - se em me
ditação profunda que a velha criada respeitou affastando
se discretamente .
Meia hora depois, chegou o doutor, que, ao entrar
no seu gabinete, deu subitamente de rosto com o hospe
de, e exclamou :
--Zolpki! Zolpki ! Meu caro Zolpki!
E abraçaram -se com vehemente ternura .
-E o mesmo homem ... Que bom agouro eu tiro
d'isto ...-- disse Ladislau - Adivinha o que a minha vida
tem sido ... Preso , e longos annos incavernado em car
cere duro. Pude sahir porque os meus inimigos conse
guiram o que queriam, e já me não temem ... Meu ami
go, meu segundo pai , falle -me com franqueza, diga-me
tudo, o bom e o máo, que eu tenho soffrido tanto que
já me julgo capaz de ouvir tudo... Que é feito de Bar
bara Ubryk ?
O doutor impallideceu .
Cazada ? -- exclamou Zolpki
.. !
O padrinho fez um gesto negativo,
-Morta ?! - bradou o mancebo amparando -se á
meza .

-Nem morta , nem cazada, mas para ti ... perdida .


-Quem ousa dizer que Barbara Ubryk está perdi
da para mim , se não está gelada na sepultura !... Se não
cazou, foi leal ao seu amor, como eu'à sua memoria...
Onde está ella, meu amigo, meu pai, onde está ella ?
2

- Pódes escutar -me serenamente ? ;


-Diga.
- Esperei que oito annos de exilio e soffrimento te
NO SUBTERRANEO . 153

fizessem esquecer Barbara ... Sim , isto esperava eu, meu


filho ... O amor da tua mocidade não é hoje a esposa de
outro homem , e comtudo, não tornarás a vêl-a ... Barba
bara , cedendo á vontade despotica do pai, professou nas
carmelitas...
-Desgraçada menina !
-Mas o peior é ser terrivel a austeridade da regra ,
e a melindrosa compleição d'esta senhora não a supporta ...
Sabes d'onde venho ? Do mosteiro onde ella está ... Ve
nho de disputar á morte a tua querida Barbara.
-Meu Deus! Meu Deus! -soluçou Zolpki tapando
a face com as mãos.
Depois levantou -se, e caminhando agitado no gabi
nete do doutor, dizia:
-E' impossivel! E' impossivel!.. Eu soffreria mil
torturas por amor d'ella, e ella terá soffrido tanto por
minha causa , e para que tanta paixão, e tantas lagrimas
fossem inuteis ! Não! Existe Deus, ha uma justiça provi
dencial! Eide tornar a vêl- a ... Eide salval- a da morte,
e do captiveiro depois... Os muros do convento não são
mais altos do que os do meu careere ... Hade fugir ... Não
heide ser só n’esta empresa salvadora ... O doutor hade
ajudar -me.
Pois esperas ...
Creio que o padrinho me ama.. á
*** , --Sim , amo-te! E este amor, é quem impede que
eu não coadjuve as tuas loucuras... Que queres tu fazer
contra o irremediavel ? Barbara está tão inteiramente se
parada de ti, que, ainda que fosses seu irmão , não pode
rias visital - a na grade ... O sepulchro não é mais invio
lavel que o seu claustro...
154 A FREIRA

-
-0 padrinho entra no convento ?
-Como medico . ..
E ella está muito doente ?
Muito ...
-Póde morrer ?
- Sim , por que não quer viver.
E se ella quizesse ?
--Salyal- a -hia a mocidade.
-Graças! graças, meu amigo! E' preciso que Bar
-

bara queira viver. E' preciso que um vigoroso interes


se como a esperança a impulse para a vida ! Diga -lhe,
como o Christo, aquelles que levantava da sepultura :
« Ergue- te, e caminha ! » Ella erguer-se-ha, viva e for
mosa ! Como eu heide amal-o então ! Adorar-lhe a sua
bondade! Vamos! Faça o milagre. Basta que lhe diga:
5
« Existe Zolpki; existe, e ama-a. »
Mas, meu pobre filho, eu não fallo com Barbara,
--

-Não lhe falla ?!


-Só, nunca . A prelada e outra freira estão sempre
ao meu lado, e é impossivel que eu diga á doente pala
vras que ellas não ouçam . :)
- Mas é preciso que ella saiba, é preciso ! " Dis!
-- Não!- disse o doutor com tristeza.- Não é pre
-

ciso ; e, se queres que eu te diga o que sinto, escuta :


Melhor seria para aquella desgraçada senhora que a mor
te a colhesse nos seus braços maternaės, que prolongar
lhe a tristeza dos annos que vão seguir -se... O conven
to mata Barbara ... Definham -na as sombras dos altos
muros ; e a tua imagem ainda lhe está no coração ... Se
eu a salvar da morte, augmento-lhe o martyrio ... Se từ
soubesses, Zolpki ! Eu vi- lhe nos braços e nos hombros;
NO SUBTERRANEO . 155

quando a auscultava, as cicatrizes das recentes feridas ...


Barbara, dilacera -se com penitencias ...
- Isso é horrivel!
-Horrivel! -Mas que fazer-lhe ? O meu dever é
acalmar-lhe a febre ; porém , sei de sobra que não con
seguirei suspender -lhe as pulsações do coração.
-Fui eu, pois, que a matei!
-Meu pobre filho, sou fatalista : o que acontece,
devia acontecer .
-E' a phrase do homem resignado; mas eu estou
-

resolvido a luctar. Pois pensa que tendo eu atravessado


tantos perigos, me deixarei quebrantar agora por peque
nas difficuldades ... Se me não auxiliar, chegarei sósinho
aod meu fim , ainda que o exito me haja de custar a vi
2

a.
--Pobre amigo, não estamos em Portugal, no tem
po das escadas de corda .
-Ha um meio, que força os claustros mais rebel
des a franquearem - se.
Qual?
-O fogo - disse tranquillamente o mancebo.
-Pois serias capaz?
De tudo ... As chammas me darão Barbara, que
a auctoridade da familia me roubou, e a igreja me
nega ...
-Não queres ouvir nada ?
- Nada, se não é algum conselho que me ajude nos
meus projectos.
- Projectos d'um louco !
- Talvez! Mas que é o amor senio uma loucura!
Entre o crime e o suicidio, escolho... Esta é que é à
156 A FREIRA

verdade! Se nada conseguir fica -me o recurso da morte.


-O suicidio ! Tu! .. Pois não sabes que eu , ao vêr
te agora , pensei que ficarias sendo o meu filho adoptivo!
Vem para mim! Envelheci na solidão entre os livros da
sciencia.... Tu serás n'esta casa o contentamento e a vi
da. Fica, que eu te amarei e compensarei das saudades
do passado.
Mas eu amo Barbara.
-Então que fazer ? Que fazer ?
-Quer -me servir ?
--Não posso faltar á missão de confiança que exer
ço .
-O seu primeiro dever é salval-a .
-Então que queres de mim?
-Pouco - disse Ladislau, sorrindo. --Segundo a sua
propria confissão a sciencia nada vale n’esta cura ... Eu
enlouqueço da doença que a mata a ella. O seu mal e o
meu é a paixão ... Julga -me morto , e pensa em morrer
para tornar a vêr-me... Amanhã, quando fôr ao conven
to, e a prelada lhe perguntar o que pensa da molestia,
não occulte a gravidade do mal, tenha a coragem de con
fessar que nada póde.
--Farei isso .
- E depois diga: « Só o céo faz milagres, e eu ou .
so propôr á reverenda madre um meio infallivel... »
A prelada quererá conhecel- o. O padrinho mostra -lhe
então um pequeno relicario de prata , recommendando
que a doente o tenha comsigo nove dias . Não duvide
que a prioreza lance o relicario ao pescoço de Barbara ...
E ella será salva.
Se é só isso...
NO SUBTERRANEO . 157

-Só .
-Consinto .
Zolpki abriu o relicario, tirou um embrulhinho de
papel amarellido que continha umas esquirolas d'osso, e
escreveu dez linhas em caracteres microscopicos. Depois
repoz o papel á volta da reliquia, e entregou o relicario
ao padrinho. Este, porém , parecia hesitar, quando o
olhar supplicante de Ladislau conseguiu vencel-o .
Mas volveu o doutor Se Barbara estivesse
-

morta para tudo, e atépara o amor... Se recuzasse a


liberdade que lhe queres dar ?
-Se tal desgraça acontecesse, acabaria a minha fé
n'ella, em todas, e d'ora ávante não haveria mais amor
em minha vida. Não se violenta um coração! Barbara
fará o que quizer. Se acceitar, serei feliz ; se recusar,
matar -me -hei...
O doutor, de seu natural refractario ás grandes
paixões, olhou para Ladislau com profunda piedade. De
pois, deligenciou desviar -lhe o animo para outro assum
pto. Fallou-lhe do pai, cujo intimo amigo havia sido, e
de quem , na hora extrema, recebera o encargo de pro
teger- lhe o filho. Serenou assim a primeira perturbação
do moço . Durante o jantar, quasi que esteve alegre . A'
noite, contou as suas aventuras. Referiu o modo como o
pai de Barbara 0o fizera prender denunciando- o como cum
plice em tentativa contra o imperador d'Austria. O ultra
ge feito á familia Ubryk pelo amoroso rapaz pareceu ao
velho digno dos mais atrozes supplicios, dando- lhe por
tanto direito a vingar-se da sedução moral de sua fi
lha . Os precedentes politicos de Zolpki eram de nature
za bem accomodada ao intento do conde. A authoridade
158 ** A FREIRA

lançou mão do conspirador e aferrolhou - o sem mais ave


riguações.
Ubryk , antes de o deixar soltar, queria bem defi
nir a posição da filha . Se ella aceitasse o conde Tostoi ,
perdoar-lhe-ia; mas Barbara vestiu o habito, fez votos
e professou sem dar signaes de submissão.
Ubryk morreu antes de levar ao cabo a empresa
da vingança, ou de reconsiderar a iniquidade. O gover
no austriaco deu liberdade a Zolpki, á falta de provas ,
julgando-o bastantemente castigado com a prizão preven
tiva de sete annos. Voltára pois Ladislau a Cracovia,
febril das recordações amantissimas da sua querida. Ao
saber que ella era freira, balançou entre a consternação
e o contentamento. Em verdade, fôra -lhe mais facil va
rar o peito d'um rival que arrancal-a do mosteiro. Um
homem é trahido mais facilmente que Deus. As esposas do
Senhor adulteram mais raras vezes que as dos homens .
Ladislau desvelou a noite quasi inteira com o pa
drinho. Fadiga e dôr não o impediram de saborear -se nas
recordações da perdida mocidade .
Quando na antemanhã do seguinte dia o doutor sa
hiu do seu quarto, encontrou já de pé o afilhado.
-Quero acompanhal-o a Wesola ;-- disse o moço -
não be assuste, que eu ficarei na sege: desejo vêr a casa
em que morre a infeliz senhora .
: Wrobleski , vendo que seriam baldadas todas as
advertencias, fez um gesto de consentimento .
Quando lançava mão do estojo, disse-lhe Zolpki:
--Que lhe não esqueça o relicario.
Um quarto de hora depois, estavam em frente das
paredes negras do Carmelo .
NO SUBTERRANEO . 159

O doutor apeou -se .


0,1moço ficou submerso em angustiosa contemplação.
Puchou o medico rijamente pela cadeia da sineta ;
a porta rodou nos gonzos com um rangir surdo que fez
estremecer Ladislau.
O doutor caminhou apressado ao longo do claustro .
Ao visinhar -se da enfermaria, estugou o passo , e contur
bou-se . Ia ser instigador e cumplice d’um rapto, e ra
1

pto religioso ... Crime gravissimo!


E ' verdade que Barbara estava ali violentada, e,
com toda a certeza, em risco de morte.
Apesar d'estas considerações o medico não atinava
a decidir se praticava uma boa acção, se premeditava
um crime.
A' cabeceira da enferma estava Maria Wenzyk .
Barbara parecia mais marasmada que na vespera .
Talvez, ainda assim , que uma forte commoção po
desse galvanisar aquelle corpo desnervado por jejuns,
macerąções e dores,
-Que lhe parece a doente ? -perguntou a prelada.
O doutor sacudiu a cabeça ,
-Não ha remedio algum ?
-Na sciencia, não .
- Veja lá , snr. doutor, pense ...
-Onde acaba a sciencia, principia a confiança em
Deus.: low
Já se torou muito n'esta casa.
TA senhora prioreza sabe que o Senhor se com
praz em operar prodigios por intercessão dos sanctos, da
mesma sorte que máis benignamente acolhe os preitos que
se lhe fazem em alguns altares privilegiados .
160 A FREIRA

-Sei.
-Acho que não ha nada que fazer aqui; mas tenho
uma reliquia de efficacia divina; consinta que eu a lan
ce ao pescoço da doente, e esperemos o prodigio impe
trado pelas orações da senhora prioreza.
-Pois não !..-- disse Maria Wenzyk .
O medico tirou do seio o relicario de prata . ! /

A enferma fechara os olhos feridos pela demasia da


luz.

Wrobleski cingiu -lhe no collo à reliquia, e affastou


se com a prelada para o vão d’uma janella.
Instantes depois , Barbara expediu um grandebrado.
A prioresa e o medico accudiram .
Coruscavam os olhos da freira, sentada na cama,
com os labios pallidos collados no relicario.
-Que é isto ?-exclamou ella -Que é isto ? digam
mo por piedade!
E ' a esperança da cura disse o0 doutor - é o bal
samo da sua ferida ... Descance, minha senhora , e dur
ma em paz .
-Em paz ! -murmurou a doente.
Barbara reclinou-se para as almofadas, com o reli
cario sobre os beiços.
-

-Tem razão, snr. doutor - disse a prelada-as re


liquias operam prodigios,
--- Antes de nove dias, esta freira estará salva.
Soror Maria acompanhou o medico que sahiu ,
prescrevendo que deixassem a doente completamente so
sinha .
Sahiram todas as freiras da enfermaria.
Barbara sentou - se outra vez na cama . Não sonha
NO SUBTERRANEO . 161

va! Aquelle relicario bem o conhecia ella ! .. Era uma


.

joia de familia , que vira ao peito de Zolpki. Por que


lh'o dera o doutor ? Cumpriria a sagrada promessa feita
a um muribundo ? ou Zolpki estava em Cracovia? Era
ainda amada ? Seria aquella reliquia o testimunho de ser
amada ainda? Amada ! .. Então queria viver ... queria a
grande coragem das vidas desgraçadas. Mas viver para
quê, se o não havia de ver jámais !..
E, pensando assim , abriu o relicario.
Sobre um tecido de brocado viu umas lascas de
OS $0 , e
o nome de São Marciano escripto em uma fa
chazinha circumposta.
Barbara levantou a tira de papel, e deu um grito
de jubilo.
E leu :

« Vive; resurge do fundo d'esse sepulchro , e prepa


ra -te para me seguir na noite seguinte ao nono dia . Es
tarei á porta do convento das carmelitas com uma sege,
e o meu mais fiel amigo . 1
Subita reanimação aviventou a freira. Empurpera
ram -se-lhe as faces lividas , o sangue regirou- lhe nas ar
terias rapido e calido . Era precizo viver! triumphar da
doença e da morte! Amada !.. O' effusão do milagre pe
lo amor! ó triumphar das paixões sobre todos , e sobre
tudo ! O crentes infinitos, ó loucos imperecedouros que
vos chamais amantes ! ..
Ao intardecer d'aquelle dia, Barbara não tinha fe
bre .

11
XI

A RELIQUIA DE S. MARCIANO .

s rapidas melhoras de Barbara alvoroçaram a


communidade.
Todas as freiras quizeram vêr o milagre. Barbara
prestou -se graciosamente aos parabens das companheiras,
respondendo ás perguntas. Dizia que apenas sentira so
bre o coração o relicario, logo o allivio, e cura foram
instantaneos. E ajunctava que, ao mesmo tempo, sentira
um jubilo desconhecido, como se a tirassem do tumulo ;
e então, penetrada de immensa gratidão, se voltára com
todas as potencias de sua alma para Deus que lhe resti
tuira fé, saude e esperança .
Eram benemeritas de confiança estas palavras por
serem textualmente as mesmas que de que usam as
favorecidas por milagres. Em breve tempo, Barbara
g rangeou não só o preito que se dava ás suas compa
164 A FREIRA

nheiras; mas, para Maria Wenzyk, tornou-se objecto de


assignalada preferencia.
Enviado ao leito da inferma, o padre Zózimo lou
'vou o Senhor por tão maravilhosa cura. Deu-lhe a in
tender a prelada que seria proveitoso divulgar o prodi
gio, e attrahir d'esta arte ao mosteiro a visita de todos
os fieis christãos de Cracovia, cujas offrendas sem duvi,
da iriam em barda pelas portas dentro.
No dia seguinte, incommendou - se um relicario sum
2

ptuoso, e assentaram que no dia final da novena se can


taria um solemne To- Deum , e depois se exporia a reli
quia de S. Marciano.
-Parece-me, - disse o padre -.que, á excepção do
fragmento que Barbara possue, não temos mais nada do
sancto .
Maria replicou, sorrindo :
- E' de opinião que o pó humano, de quem quer que
seja, dêva ser glorificado ? O culto e a invocação diri
gem-se á alma que animou o miseravel corpo desfeito
em cinzas : logo , nada prejudicamos aa honra devida a S.
Marciano, collocando no relicario a cabeça e o braço d’um
homem ,cuja salvação custou o mesmo a Christo .
- Pensa bem - disse o padre Zósimo.
-A communidade vai trabalhar na bordadura dos
requifes de velludo que hão de ornamentar as reliquias,
Quantas piedosas damas nos não hão de enriquecer o re
licario coin as suas perolas ! Antes de dois annos, o co
fre de S. Marciano hade encerrar metade das joias de
Cracovia .
Acho que será bom - tornou o confessor - que as
pessoas piedosas possam vêr Barbara, tanto quanto a
!

NO SUBTERRANEO . 165

clauzura o permitte. A noticia do milagre fará muito,


mas o espectaculo da favorecida do sancto fará muito
mais . Esta menina é tão prodigiosamente bonita, que só
de persi parece um milagre de formosura!
-Oh! .. eu bem sei -- disse a prelada, assentuando
as palavras --bem sei que, desde certo tempo, a prefere
em segredo ...
-Pois acredita ? ..- exclamou o padre.
--Contaram -me que, antes de eu entrar n'esta ca
sa, Barbara Ubryk foi um dia destinada pelo snr. pa
dre Zózimo á iniciação completa do soffrimento e do ex
tasis ... Mais me contaram que ella, espavorida pelo es
pectaculo de scenas cuja intenção e fim não percebia, se
recuzara constantemente ao que lhe pediam. Dizia -se até
que ella o vira com os olhos accezamente fitos na peni
tenciaria, ao mesmo tempo que Sancta Angela, despida
sobre a cruz, radiava em meio de uma aureola de res
plendores . Eu nada quiz aprofundar... reporto-me só a
Zázimo... mas se a minha desconfiança fixar alguem ...
desgraçado d'aquella que eu suspeitar...
Maria pregou os olhos coruscantes no padre, que
lhe aparou as frechas sem se perturbar.
-Entretanto, o seu parecer não me parece máo --
tornou ella adocicando a voz — Barbara terá a semana
toda para convalescer-se.
Fez -se o que a prioreza indicou .
Barbara readquiriu o colorido da vida. A commu
nidade via edificada a terna devoção da freira a S. Mar
ciano; o fervor com que ella beijava a reliquia, e pare
.
cia, n’aquelle inleio , absorta em profundo rapto. Ao ter
ceiro dia mostrou vontade de sahir da infermaria . Obi
166 A FREIRA

temperaram agradavelmente aos seus desejos. Permitti


ram-lhe que passeiasse no jardim, claustro e pateos. Co
mo a dispensaram do côro, e a tratavam como filha di
lecta e inferma, aproveitou aquella temporaria liberdade
para melhor estudar a topographia do convento, e deli
niar a proxima fuga. O milagre, com que S. Marciano
a honrára, adormecêra suspeitas. D'ali á var.te, Barba
ra seria tractada com especiaes mimos, visto que attra
hira para a communidade honra e proveito.
A religiosa que Barbara mais receiava era a por
teira .
Esta mulher já desbotada de juventude, angulosa,
enrugada e amarellenta, guardava no seio do claustro
uma horrivel doença: a inveja.
Sendo feissima, e indigna de qualquer marido, abra
çou a vida religiosa, para não soffrer a affronta de in
velhecer sem namoro. Chamava-se Martha. Vocação não
tinha alguma a não ser a do tedio por tudo d'este mun
do que lhe era defezo . Ambições, que na sociedade lhe
seriam matraqueadas, foi exercital- as no mosteiro. A
clausura não dá preferencia ás bellas. Martha, fria e
pontual, longo tempo aspirou ao maximo ponto da san
ctidade. Estudou a vida dos bem -aventurados no inten
to de os imitar servilmente; dobrava-se aos caprichos da
prelada sem murmurar; e, apezar d'isso, não attingiu o
almejado fim . Minguava-lhe ardor no espirito e enthu
siasmo na palavra. Fizeran -na porteira logo que profes
sou : manteve -se n'este posto, invejando as suas compa
nheiras de noviciado que iam vagarosamente subindo a
escaleira das dignidades conventuaes. Com ouvir dizer
a miudo que era grande o sacrificio de quem professava
NO SUBTERRANEO 167

no Carmelo, capacitou-se de que se havia immolado , e


accusava o divino esposo, a quem se unira á falta de
homens, de ingratidão para com a mais casta e fiel das
suas noivas.
Maria Wenzyk não deu maior preço que a sua an
tecessora aos raros meritos de Martha. Gemia, pois, a
porteira por se vêr reduzida á oração vocal, aos encar
gos secundarios, e perguntava que mais valiam do que
ella as freiras encaminhadas na vereda da perfeição, que
conduz a todas as delicias das amantes predilectas.
Barbara escrutou logo o que ia no coração de Mar
tha.
A recente liberdade permittia-lhe girar no mosteiro .
Foi ter - se com Martha, á sala onde ella estava esperan
do sempre a aldravada do martello no portão.
Espantou-se Martha da honra que lhe fazia a joven
freira do milagre. Humilhou-se deanté de Barbara, lon
vou o Senhor pelo prodigio operado na sua serva, e dis
se que era bom que a fé publica se retemperasse tal qual
vez na crença de similhantes successos.
-Ah!-- respondeu Barbara - muito certo é aquelle
dizer da Escriptura: O espirito sopra onde lhe praz .
Deus sabe que eu, longe de solicitar favores ostensivos,
08 temia e mil vezes antes quizera vêl-os operados em
mais perfeitas creaturas... Eu me abato e prostro, con
fessando minhas fragilidades e peccados... temendo mui
to esta especie de ardil armado á minha vaidade...
-Ardil?-atalhou Martha .
-

-Certamente . Não sabe quanto é facil figurar-se a


gente o espirito das trevas com apparencias de espirito
de luz?
168 A FREIRA

O Evangelho o diz .
-Quem me assegura a mim a verdade ? ... a mim,
peccadora !.. Não consta da Biblia que os magos do Pha
raó operavam milagres semilhantes aos de Moisés? Si
mão Magico não espantou o povo com prodigios analo
gos aos dos apostolos? A nossa sancta fundadora pro
priamente não temia sempre de enganar -se com a qua
lidade dos espiritos que lhe assistiam, e tomar á conta
de conselhos angelicos as tentações do diabo ? +13
Tudo isso é assim concordou a porteira.
-Além de quê, se tal prodigio devia ter logar, por
que se não deu em uma filha de Sancta Thereza, perfei
tissima nas virtudes monasticas? Ha cinco annos apenas
que eu profossei; ainda não caminho, mas vou de rojo
na via da perfeição ... Antes eu queria vêr os favores do
céo cumulados sobre uma alma excellente, e que a re
frigerassem como os orvalhos celestiaes ao vélo de Ge
deão . O minha irmã, poderemos fallar confiadamente,
abrir-mo-nos as nossas almas, como Santa Thereza com
Pedro d'Alcantara? Os divinos segredos da consciencia
querem - se expandidos, por que a confiança ela amizade
og aviva . Ora diga -me: nos vinte annos que tem de frei
ra, foi favorecida dos favores do divino esposo ?
-Nunca respondeu Martha . # 1 ...
Como assim ? A minha irmã tem sempre estado
no dezerto arido... 3 : ‫ارونا‬

--Senipre.. i 1 niny ,
-Sem consolação sensivel? ib :
-Privada da minima consolação!!!!!! 1.6 ? )
-Injustiçala.. se: tal palavra póde applicar-se aq
arbitrio de Deus... Ha vinte annos que exercita as vir
NO SUBTERRANEO . 169

tudes da pobreza, da castidade, da humildade, da mor


tificação, da obediencia, e nunca taes sacrificios lhe foram
remunerados como uma visão celestial, com divinas la
grimas, effluvios d'alma, consolações ineffaveis, deliquios,
affluencias de graça refrigerante ? Nunca?
Nunca ! nunca! 1

Minha irmã, permitte -me que eu peça ao Senhor


que lhe conceda alguma manifestação de seu poder, al
guma dadiva de consolativa graça?
:: Pois a minha irmã, à honra do convento faria
tantopor mim ?
Farei .
-Ah ! então já sei que hade ser attendida...
Soos Pelo menos, espero sel-O- e acrescentou com ve
hemencia :-Martha, encha -se de fé; e quarta feira á noi
14
té, depois do solemné Te- Deum , em que hade fazer-se
a exposição das reliquias de S. Marciano, meu patrono,
será então objecto d'um favor do céo .
Deixe-me beijar- lhe as mãos e o habito, minha
irmã!! p
Vamos... Não hade soffrer inais. Martha... Vai
abrir-se-lhe o céo ... Não tem a minha irmã em si as pre
rogativas de Pedro que ata ee dezata ? Quando lhe vejo as
insignias de confiança de que está investida, penso que
deve occorrer-lhe a miudo a lembrança de Jesus e dos
apostolos... Decerto 'que as chaves do reino do céo não
são mais pezadas ... Que volumoso molho! Estas chaves
devem ser de muitissimas portas...
- Esta é a da portaria; esta é aa da loja da lenha;
e & mais grossa é a do portão de fóra. ' .
-- Barbara tomou-lhe:0.pezo . I ... !!! 3
170 A FREIRA

-Eu não tinha bastante força para desandar a lin


gueta de uma fechadura tamanha!
A religiosa pouzou as chaves á beira de Martha, e
continuou fallando em milagres operados pelo fervor,
recompensas concedidas ás almas humildes, effusões de
graça, e poder das reliquias dos sanctos, particularmen
te de S. Marciano, o qual , havendo sido feiticeiro antes
de converter -se ao christianismo, revertêra depois a sua
prodigiosa sciencia ao allivio e consolação do proximo.
Quando se apartou da porteira, recommendnu -lhe: .

- Peça a Deus que a favoreça com uma visão ce


lestial .
Martha não cabia na pelle de contente. Nenhuma
duvida lhe passou pelo animo. O orgulho, solapado
n'ella, inchou descompassadamente com a idea de edifi
car a christandade relatando os favores com que Deus
a visitára. Quem sabe até se ella não viria a dictar as
suas memorias e visões, á laia de Catharina Emerich ,
Maria d'Agreda, e quejandas? Agradeceu , por tanto, ao
Senhor o obsequio de servir-se de Barbara como media
neira entre elle e ella. Orou pois com dobrada devoção,
e, febril de sancta e orgulhosa impaciencia, esperou a
hora promettida .
Alguns dias volvidos, realisada a conjectura da
prelada, a cidade de Cracovia não fallava senão no
caso das carmelitas. Desde o amanhecer até á noute as
carruagens rodavam no bairro de Wesola . Quem rece
bia no palratorio era o padre Zézimo. Como era defezo
o palestrar com as freiras, inaccessiveis á curiosa indis
cripção dos fieis,., o confessor é quem referia o soilagre.
Pediam -lhe conselhos . Encommendavam -lhe missas. Da
NO SUBTERRANEO . 171

va- lhe ricas esmolas para S. Marciano. O patrono de


Cracovia S. João de Kenti perdeu n'aquella semana
quasi todo o credito com Deus na opinião dos cracove
zes . O fervor seguiu as fluctuações da moda. A's tem
poradas, ha no mundo catholico d'estas lufadas de de
voção soprando para um ou outro sancto. Os mais das
vezes é a egreja quem as sopra. Agora, é a mumia de
uma joven martyr achada nas catacumbas, e logo o no
me de Philomena ganha grande poderio como interces
sora: logo, folheam -se chronicas para exhumar um san.
cto pulvereo á feição do bemaventurado Labre. E' de
suppôr que Labre, cujo principal heroismo era ignorar
que a agua lava as immundicies, não comprehendia que
1

tanto o velho coino o novo testamento recommendam a


virtude da limpeza. Como é que se curavam annualmen
te os infermos de Jerusalém ? Banhando- se na piscina.
Como se administrava o baptismo? nas correntes dos
rios. E, não obstante, lêde quantos livros asceticos ahi
correm , estudai todas as regras dos mosteiros, e nota
reis que o cuidado com o corpo é tido em conta, não só
de perigo, mas até de imperfeição. Ora, com o exemplo
de Labre, não seria justo tirar do esquecido martyrolo
gio aquelle S. Marciano, o sabio confessor da fé ? Não
se fallava, pois, de coisa em Cracovia, que não fosse a
resurreição de Barbara Ubryk .
A clinica do doutor Wrobleski dobrou na seguinte
semana .

O valor da reliquia tentava os infermos tanto como


a sciencia do medico .
O honesto homem tinha furias intimas.
-Vês onde me leva a minha condescendencia ?
172 A FREIRA

dizia elle aa Ladislau --- D'aqui a pouco, estou sendo a fa


bula do povo .
-Por que, meu padrinho?
-O' amoroso estupido! não vês o que por ahi
vai?
- Vejo que o preferem aos outros medicos, por
que meu padrinho é o mais habil.
--Não é isso ---redarguiu Wrobleski batendo o pé
---Bem se lhe importa o publico do que eu sei e do que
estudei! O que me pedem é que lhes applique o maldito
relicário. Catharraes, rheumatismo, dyspepsia, phthisi
ca, paralisia, nevroses, que sei eu ! Querem que tudo
desappareça em vinte e quatro horas, do pé para a mão.
Já não sou senhor de tomar o pulso , de estabelecer dia
gnostico e receitar. Quando me valho d'estes expedien
tes, unicos que tenho, olham-me de ma catadura, e di
zein -me: -« Seja humano, doutor !» - Então que querem ?
--pergunto eu . « Ah ! o doutor bem nos entende... -
Não sei o que diz— « Não me desampare... ) Encho-me
de cólera , e brado:---E ' preciso que a doença siga o seu
curso regular .-- Hontem , um homem disse -me cara a
cara: « quanto quer você por me curar de repente ? » --
Não sou feiticeiro, senhor; não posso.-- « E a freira car.
melita ? e o relicario de S. Marciano ? » Levantei-ine fu
rioso e safei-me. Repito, Ladislau, tornaste -me ridicu.
lo, e, d'aqui a pouco, odioso . Não tardo a ser posto
entre os charlatảes e milagreiros.
. - Meu bom e digno amigo- replicou Zolpki-- res
ponda aos que lhe pedem prodigios que esses prodigios
se repetirão quando os supplicantes egualarem as car
melitas na sanctidade dos costumes .
NO SUBTERRANEO . 173

E ' boa idea essa ; mas, meu pobre Ladislau, tan.


to faz; da situação difficil é que tu me não salvas .
--Peço-lhe que por amor de mim soffra com pa
ciencia. D'aqui'a pouco, tudo será acabado, menos .
prazer de me ter soccorrido na empreza da minha feli
cidade .
Zolpki não perdia tempo. Descobriu Casimiro, seu
fiel companheiro da infancia. Era este quem devia sal
tar para a almofada da sege em que Barbara havia de
fugir. Resgatada do convento, esconder-se-ia por alguns
dias nos suburbios da cidade; depois, iria para Italia,
Belgica ou França, para qualquer parte onde se podes
sem amar em paz ,
Ladislau embolçou o seu patrimonio, herdado do
pai , com os rendimentos vencidos nos annos da sua aus
zencia. Tinha pois dinheiro --esse ingente meio de acal
canhar estorvos; e tinha tambem energica vontade para
investir com as difficuldades da empreza. Concorriam
n'elle, por tanto , a febre ardente do coração, e a sere
nidade da força, quando chegou o grande dia espera
do em Cracovia com diversas impaciencias .
Barbara fingira o seu ardil perfeitamente . A ausen
cia do côro, os passeios solitarios, as palestras com Mar,
>

tha eram explicadas á communidade pela importancia


do papel que a freira representava.
Ao oitavo dia prepararam -se os altares, e os orna
mentos da igreja.
Corria então o mez de abril . Os jardins das casas
nobres de Cracovia despojaram -se para afermosear e per
fumar o convento.
Sobejavam agafates de camelias, ramilhetes de lilas
174 A FREIRA

branco, e fôres purpureas nascidas nos tropicos e arti


tificialmente aclimadas. Rendas de preço fabuloso, offe
recidas por uma donzella em momento de generosa de
voção, adornavam o altar. Caçoulas enorines, cheias de
vaporosos perfumes, recendiam seus vestiginosos aro
mas .

A organista havia de ser uma carmelita de grande


habilidade ,
Finalmente, como attractivo superior a todos, dizia
se que Barbara Ubryk, concluido o officio, cantaria um
Magnificat em acção de graças.
Depois seguir-sc-hia uma practica do padre Zózimo,
consagrada ao panegyrico de S. Marciano, para corro
borar a confiança nas reliquias cuja exposição se faria
depois.
O programma da sancta ceremonia, em forma de
cartaz de espectaculo, foi profusamente espalhada na ci
dade .
A’hora designada para o Te Deum, c doutor, ven
do Ladislau a ponto de sahir, perguntou -lhe :
-A que hora voltas ?
- Talvez muito tarde. Não sei quando terminarão
as sanctas ceremonias.
-Vais ouvil-a esta tarde, para ficar bem certo de
que ella vive?
-Justamente; vou ouvir esta tarde aquella voz
querida! E então, meu velho amigo, meu pai, o cora
ção de Zolpki o abençoará.
E bem preciso éé que me des essa compensação,
em desconto dos dissabores que vou tendo. Sê feliz,
Ladislau !
NO SUBTERRANEO . 175
1
Zolpky apertou o doutor nos braços, accusando-se
intimanente da sua falta de confiança; por que não ou
sava dizer-lhe, que n'aquella noite, raptaria Barbara .
O doutor imaginava que o afilhado, certo da sau
de de Barbara, desistira dos perigosos intentos.
Ladislau, querendo só para si a responsabilidade
e a censura que poderiam caber -lhe se a tentativa se bal .
dasse, desviava o doutor da minima complicidade, por
intender que já bastantemente exposera o honrado ho
mem , levando- o a entregar o relicario que tamanho rui
do causara na cidade .
Por volta das sete horas, começaram a repicar os
sinos do convento . A multidão encheu logo a igreja. Ape
zar do rigor da estação os devotos e curiosos estancia
vam diante da fachada do mosteiro. As ruas convisinhas
estavam cheias de tréns. Na multidão de tantos vehicu .
los, ninguem reparou n'uma sege de viagem , cujo co
cheiro, involto n'um ferragoulo que o cobria até ás ore
Ihas, parecia impaciente sobre a almofada.
Ao passo que as harmonias magestosas do orgão re
boavam no templo , centenas de cirios se acenderam , ra
diando pelas naves uns clarðes magicos.
O padre Zózimo subiu ao pulpito, referiu a vida de #

S. Marciano, animou os devotos a confiarem n’elle, fez


uma pathetica narração do milagre, e, quando abençoou
o auditorio, un lisongeiro murmurio testemunhou o bom
exito que elle obtivera com a sua eloquencia.
Foi então que, por detraz da grade que separavá as
freiras do concurso do povo, se cantou aquelle cantico
d'amor e triumpho que se chama Magnificat. A voz
de Barbara tinha grande volume ; mas sobre tudo, o que
176 A FREIRA

mais a destinguiaera o timbre metallico e sonoro . Aquel


a

la voz nãoo agradaya somente: deslumbrava, fascinava o


auditorio, com inexprimivel encanto. 1.195.0 V8
Aquelle cantar enviaya -o ella ao coração de Ladis
>

lau, perdido na multidão, esperando a hora de a liber ,;


tar. A alma extravasante de jubilo deixava exhalar a sua
alegria . Liberdade e amor vibravam em todas as notas,
O auditorio estremecia , palpitava , por que a paixão de
Barbara , trahindo -se na voz, filtrava em todas as almas.
O seu amor , que ali chamavam devoção, era n’ella o
exalçamento vertiginoso da pythonisa antigą . Ao findar
o sagrado cantico, os fieis, electrisados pela sublime ar
tista , estavam de pé.
Correu -se entãoo,, uma, cortina escarlate posta diante
do altar, e expoz -se o cofre das reliquias de S. Marciano,
Cantou- se a benção do SS . Sacramento, orgão ge
meu pela ultima vez os seus grandes suspiros, e depois,
lentamente os assistentes retiraram - se.
Entre os fieis, havia dois homens,, um dos quaes
envolto no seu capote, tão perto estava, da grade que
encostava a face ás rexas; o outro, de braços cruzados,
parecia assistir pacientemente a um espectaculo,
Dir-se-hia que o homem do capote receava perder
uma só,nota da voz da cantora. Durante o cantico, a
mão occulta comprimia as pulsações do peito. Quando
se apagaram os ultimos brandões, sahiu elle do templo,
seguido do outro, e ambos se encaminharam á sege de
viagem , 17
Não havia já outra na rua .
O tropel dos cavallos, o rodar surdo das carroagens,
e o bradar dos cocheiros já resoavam longe.
NO SUBTERRANEO . 177

Ladislau acercou -se do bolieiro, e disse -lhe:


-Casimiro, agora vamos esperar ... Ouvi-lhe a voz,
e, pelo modo como ella cantou, parece-me que está prom
pta a sahir.
-Pois esperemos.
--Parece-me - disse o outro amigo de Zolpki, o
conde Wenceslau -que seria prudente entrarmos ambos
na sege, para darmos menos que desconfiar. Em em
prezas d'este genero todas as cautellas são poucas.
Zolpki e Wenceslau entraram no trem .
No interior do convento começava a reinar o silen
cio do costume.
As freiras iam entrando para os seus cubiculos.
Maria Wenzyk, reconhecida a Barbara pela cele
bridade que o mosteiro estava gosando, disse-lhe, ao se
parar -se, algumas palavras affectuosas.
Barbara entrou na cella e assentou - se na cama .
Uma freira passou pelo dormitorio, vigiando que
as freiras estivessem recolhidas com as portas fechadas.
Barbara parecia dormir sobre a sua enxerga. Logo que
ella ouviu o rumor da ultima porta , e percebeu que aa freira
se tinha fechado, ergueu -se mui de manso . Levantou
com ambas as mãos o alisar da porta para que os gon
zos não rangessem , abriu o bastante parà sahir ao corre

dor, e ás apalpadelas, tremula ee descalça, desceu a escada.


Isto já era muito; mas a maior difficuldade estava
por vencer .
De que modo se apossaria ella das chaves da por
teira ? Era preciso seduzir a vaidade religiosa de Mar
tha com os vãos prestigios d’uma visão . E' certo que
a velha soror estava preparada para ella ; mas, se uma
12
178 A FREIRA

duvida, uma desconfiança lhe abalasse o animo, tudo


estava perdido; por que então Martha, irritada por fa
zerem d'ella tola, romperia em furias contra a desgraça
da Barbara .
Era mister representar esta mistica farça com
rara destreza e imperturbavel velhacaria, ao mesmo tem
po que Ladislau esperava cheio de angustia , e não me
nos sobresaltado que ella .
Barbara atravessou o pateo, e entrou no pequeno
quarto habitado pela porteira. A lamparina estava apa
gada. Dormiria Martha ? Barbara esperou .
Nos conventos austeros em que o serviço da noite
é interrompido pelas rezas do côro, apenas as religiosas
se deitam , adormecem logo. O pouco tempo que tem de
repouso não lhes permitte meditarem antes de adorme
cer . Dormem para restaurar algum tanto o cquilibrio
das forças corporaes . E n'aquella noite, a festa mais
demorada que o costume as tinha obrigado a velar mais
duas horas; e porisso, quebradas do cansaço , haviam logo
adormecido .
Barbara abriu a porta de Martha.
Conheceu que ella dornia pelo resonar igual da
respiração .
Martha costumava deixar as chaves á cabeceira .
Barbara abeirou -se do leito : a porteira voltou -se
neste lance suspirando.
As mãos da freira procuravam na parede o molho
das chaves.
Martha sonhava, murmurando :
--Visões! Quem me dera visões e consolações es
pirituaes !
NO SUBTERRANEO . 179

A religiosa pôs a mão sobre as pesadas chaves, e


pousou a outra na testa da porteira.
-Martha ! Martha ! disse ella, com a voz mui
maviosa .
A porteira ia despertando, quando Barbara já esta
va de posse das chaves .
E a voz maviosa continuou :
-Eu sou Marciano ... Venho reclamar as tuas mais
puras jaculatorias; e em paga eu te encherei de dons ce
lestiaes... Serás a preferida amante de Jesus, e toda a
cidade maravilhada porá em ti os olhos ... Ah ! fecha
tu os teus, cruza as mãos no peito, reza piedosas lita
nias, e espera a realisação das minhas promessas.
Martha, repartida entre a curiosidade e a ancia de
obedecer á apparição, começou a rezar; mas o seu espiri
to, fluctuando entre a realidade e o sonho, não resistiu
muito tempo ao somno : apenas teria nomeado metade
dos bemaventurados da ladainha, quando adormeceu.
Barbara sahiu do quarto, e desafogou n'um suspiro
immenso de exultação .
Estava livre ! Ia abrir -se a pezada porta ! D'ahi a
momentos estaria reclinada ao coração de Ladislau .
Barbara achou a chave no molho, fêl- a rodar na fe
chadura e a porta abriu -se vagarosa, transpoz o limiar,
entreviu uma sege na rua , e correu para ella, excla
mando :
--Ladislau ! Ladislau !
-
}
XII

A PATRULHA NOCTURNA

ARBARA deixou a porta do convento aberta, para


evitar a bulha que ella fizesse ao fechar. Pouco importa
va que Maria Wenzyk , ao chamal- a de manhã, ficasse
sabendo que a fugitiva deixara a porta escancarada.
Se uma religiosa das novas , ou uma noviça apro
veitasse a liberdade de sahir, tanto melhor: em lugar
d'uma seriam mais as resgatadas.
Quando Zolpki apertou Barbara ao seio, tamanho
foi o seu jubilo que as pulsações do coração pararam , a
ponto de pensar que a sua alegria e a de Barbara o
matavam .
A' claridade da lua, Zolpki viu - a mais bella que
nunca , n'aquella pallidez, envolta no manto escuro. 0
véo tinha -se despregado, alvejava -lhe a touca na fronte,
adoçando-lhe a fixidez penetrante dos olhos.
Ladislau pôde arrancar-se aquella contemplação, e
182 A FREIRA

tomando a freira pelo braço ajudou -a à entrar na car


ruagem onde estava Casimiro.
Não entrou, porém , tão depressa que uma patrulha,
ao vêr passar aquella sombra, não suspeitasse algum
mysterio nocturno . De salto, a religiosa sobresaltada sen
2

tou -se no fundo da sege ; e Ladislau, sahindo á porti


nhola , exclamou a Casimiro :
Marcha!
Mas o mancebo mal teve tempo de apanhar as re
deas e dar alor aos cavallos. Um bando de guardas na
cionaes desembocaya da extremidade da rua.
Dissemos que corria então o mez d'abril de 1848 .
Rebentara em França a revolução de fevereiro .
A influencia d'aquella commoção abalou mais ou
menos todos os reinos da Europa, e tanto os imperado
res como os reis, vendo, que os povos despojavam os
thronos, tremiam por si, e redobravam temerosos a vi
gilancia da policia sobre a população....,
A Polonia foi sempre dilectissima da França; e
d'ahi o , crear esperanças de redempção sempre que um
sopro de liberdade lhe bafejava d'além .
A Polonia espera que a França a resgate. A Alle
manha, cooperando na escravidão da infeliz, não lhe dá
motivo a confiar-se n'ella. A Hespanha é debil, e Por
tugal é pobre . A Italia tem muito que fazer em sua ca
sa. Não ha que esperar soccorro algum do poder d'essas
nações .
A Irlanda catholica perseguida, á imitação da Polo
nia, faz, votos pela salvação de sua irmå crucificada.
Para salvar uma nação não basta a força: o que mais
monta n'essa empreza é o enthusiasmo.
NO SUBTERRANEO . 183

A França é arrojada. Ama a Polonia. Talvez por


que d'aqui lhe foi Henrique III? Ou por que lhe deu Ma
ria Leszinska ? Não. A França folga de ser invocada no
livramento dos que padecem . Praz-lhe atirar o seu gla
dio pezado á balança , afim de a fazer pender do lado
dos vencidos. Quando a convidam a ser arbitra, fol
ga de ser a justiça armada , e soberana reparadora.
Foi , em nome d'estes sentimentos , que Carlos Magno de
clarou batalha á moirama; e d'esses honrados intentos
sahiu aquelle brado de Pedro o eremita que arrebanhou ,
a conjuração senhorial dos cruzados.
A França traja lucto quando aa Polonia geme; e , se
a aguia azul sangra e grita, a França responde.
Por tanto , quando, em 1848, o écco da revolução
repercutiu em Polonia, viria a ponto recitar estes ver
sos de Bathélémy:
E os olhos fita no deserto immenso
Do céo profundo a aguia branca , e olhava
Se a aguia fraternal, que fere o espaço,
Paira sobre Varsoviama triste escrava 1

tre
O czar e o imperador d'Austria, os autócratas,
miam .

O throno do primeiro, bem solido em Petersbourg,


vacillava mal equilibrado na Polonia . Que farte sabia o
imperador que povoar carceres, arruinar familias, deci
mar a nobreza, não era extinguir sentimentos de nacio
nalidade. Juncar a Siberia de polacos não era esponjar
a Polonia. Assim como o sangue dos martyres, escala
vrados pelas feras, nos circos de Roma, regou a arvore
do christianismo, do mesmo modo a perseguição redo
184 A FREIRA

bra a vitalidade das nações captivas. Embora a Polonia


fosse aspada d'entre os potentados, e agonisasse lenta
mente á mingua de filhos capazes de a redemirem ;
embora o congresso dos reis a retalhasse como objecto
sem existencia pessoal --a desventurada resurgiria ainda
no espirito e coração de seus filhos. Piedade, respeito,
e compaixão das nações visinhas ser-lhe-iam as flores do
tumulo .
O czar, entretanto, cobrara pavor.
A Austria não se dava por mais segura . Policia e
patrulhas, formigando em Cracovia , exercitavam maior
severidade. Farejavam conspirações onde quer que lhes
negrejava um grupo nas ruas, se dois ebrios se ampara
vam reciprocamente a marradas, por alta noite, eram
presos como jurados.
A demasia da desconfiança gerava a suavidade ar
bitraria .
Era de vêr que a patrulha, composta de guardas
nacionaes austriacas , suspeitasse caso grave na sege que
estanciava em frente do mosteiro .
O commandante mandou dobrar a patrulha, en
viando metade dos soldados rodear o convento a fim
de que a sege fosse impedida, no caso de retroceder.
Assim que descobriu tropa, Zolpki não pôde em
bargar um grito de afflicção. Desceu rapidamente a por
tinhola, e disse a Casimiro :
Desanda !
Com destreza e rapidez extremas, o mancebo con
seguiu dar a volta.
Barbara, cingida com Zolpki, murmurava anciosa
mente :
NO SUBTERRANEO .. 185

-Meu Deus, meu Deus, eu não estarei salva ? ..


Estás, ainda que eu perca a vidal- respondeu
Ladislau .
Ao proferir estas palavras, estrugiu um grito de
furiosa angustia .
e
Os guardas haviam agarrado as cambas da sege, e
Casimiro saccudira -lhes o chicote ás caras; depois, de
sesperado, conhecendo que só a rapidez os salvaria , af
foitou a fogosa parelha que partiu, a desapoderado ga
lope, arrastando os dous soldados. N'este lance, surgi.
ram pela frente os dois que primeiro viram a sege, e
lançaram -se ás redeas, subjugando os cavallos que es
tacaram escabriando - se resfolegantes.
Casimiro saltou da almofada : o encontro assumia
perigosas proporções. Ladislau com um braço apertava
a tremente senhora ao peito, e com a mão do outro ar
rancava d'um punhal.
- Deus não quer ...-- murmurou ella.
-Queremos nós !-- respondeu Ladislau .
Depois, curvou-se á portinhola, e disse com uma
pistola engatilhada:
-O primeiro que ergue um braço é morto .
Houve um momento de pavor, e quasi desistencia
das patrulhas .
Pensavam ellas que o reterem uma sege de viagem ,
sem ordem , poderia ser un arbitrio que o proprio go
verno reprehendesse . Que era aquillo? Dois homens e
uma mulher que iam de viagem : coisa naturalissima.
O local onde estacionava a sege é que não era mui-.
to natural. Pois, se ella estava parada, alguem se espe
rava ali. A particularidade de estar postada em frente
186 A FREIRA

do mosteiro das carmelitas, dava que pensar. Além d'is


so , a freira, se não tinha o véo, deixava vêr a touca . Com
toda a certeza, era rapto, e rapto de religiosa ..! ?
N'esta conjunctura, conspirava tudo para a perdição
dos desgraçados amantes .
Descobrir um mysterio d'amor, e dar- lhe forma de
escandalo religioso, foi para os soldados de Cracovia re
galo que não cederiam a ninguem .
O momento do panico foi rapido . Quatro soldados
arremetteram ás portinholas.
--Alto ahí ! -exclamou Ladislau se são ladrões
que me assaltam a carruagem , recorro á legitima defeza !
- Para onde vão ?-perguntou um dos soldados.
-Que lhe importa ?-- respondeu violentamente Zol
pki.- A sua obrigação é patrulhar as ruas de Cracovia;
nós não perturbamos ninguem , nem fazemos arruidos .
Larguem as redeas aos cavallos, se não, eu não respon
do pelo que acontecer.
-Eu é que respondo que não passam adiante sem
que me digam os seus nomes, appellidos , e qualidades
respondeu um que parecia mais audaz e um tanto al
coolisado .
-O meu nome 7 disse Ladislau com altivez é
Zolpki: sou polaco.
-Olé ! um polaco que conspira 'desde criança !
-Tem prudencia, por piedade ! -- disse Barbara ao
ouvido de Ladislau .
O moço sopezou a colera, e disse com grande es
forço de serenidade:
-Os senhores já veem que a minha nacionalidade
nada faz. Tanto monta que eu seja polaco como austria
NO SUBTERRANEO . 187

co. Os senhores parécem -me pessoas bem educadas, e


idoneas para perceberem que n'esta carruagem está ...
Bem vejo .
- Respeitem uma dama; peço-lh'o em nome da core .
tezia .
---Queremos vel -a ...- disgeram os guardas. ; ,
-Nunca !-- exclamou Zolpki .
-Havemos de vêl-a por força disse o comman
dante .
Travou-se então um conflicto horrendo. Abriram - se
ambas as portinholas a um tempo . Quatro homens inves
tiram com Cazimiro, cujo punhal vibrou tres vezes; dois
arremetteram a Ladislau, que desfechou sobre um dos
adversarios. Barbara, apesar das supplicas e gritos, foi
arrancada da carruagem .
A lucta continuava . Cazimiro batia -se desesperada
mente . Barbara, entre os braços dos guardas , escabuja
va de vergonha e angustia. A peleja era encarniçada
de parte a parte; mas desegual para Zolpki e seus ami- ,
gos .
Os prodigios de valor prolongavam a lụcta, e exte
nuavam as forças dos defensores de Barbara . Zolpki,
cercado de inimigos e já mal-ferido, sustentava - se ainda
em pé, terrivel e ameaçador. Por fim , o commandante,
fez-lhe um golpe de espada a uma perna . O mancebo
cahiu sobre um joelho; mas , com um sabre arrancado a
um dos guardas, e um punhal na outra mão , exhauria
os ultimos alentos com as ultimas gotas de sangue.
-Barbara ! murmurava elle adeus...
do que eu
morro !..
Com desesperado esforço, a religiosa furtou -se ás .
188 A FREIRA

mãos brutaes que a retinham , e debruçou -se sobre o cor


po de Zolpki.
-Ergue -te, Ladislau!! - exclamava ella Tu não
.

pódes morrer, por que eu sou livre e amo-te!


O ' minha amada filha! disse elle com a voz
já muito extenuada foge aos ultrages d'esses misera
veis !
-Não, em quanto viveres!
Recebe o meu ultimo alento – disse elle, erguen
do -se penosamente para aproximar os labios da boca de
Barbara.
Os labios d'ella foram como trespassados do frio da
morte .
Ladislau cahiu ...
E, apertando nos braços convulsos aquelle corpo
immovel, Barbara perdeu a consciencia de tudo que a
rodeava .
-Ladislau ! -- exclamava ella - reanima-te... vem ...
estes infames deixam -nos passar ... Eu te levarei nos
braços ... Ladislau, tu não me ouves? O' Senhor, fazei
um milagre!.. Erguei-o, salvai-o, meu Deus!
2

Barbara, estirando os braços em vertiginosa agonia,


chorava torrentes de lagrimas.
-Ora vamos, lindinha! -disse um dos guardas na
cionaes -por cada namoro que se vai , vem dez. E' nos
sa a menina por direito de conquista ... Vê-se que a ga
lantinha não se dá no convento , por isso se escapuliu;
mas amantes todos são um ! Cá estamos nós que sabemos
amar tambem como se quer! ..
.
O soldado repuchou o braço de Barbara para a le
var comsigo .
NO SUBTERRANEO . 189

E ella , comprehendendo então o perigo que lhe es


tava eminente, intendeu as ultimas palavras de Zolpki.
O convento, a cujas austeridades fugira, já lhe pa
recia o supremo refugio.. haysiyashiwa
នេះ
Morto o amante, que lhe importava la entrar para
morrer ?
-Deixem -me, deixem -me ! .- exclamou ella - que
eu pertenço á nobreza ! Basta de crimes, malvados !
-Deixal - a ! restituir tão bella preza ás carmelitas !
C

isso não anda ! Vamos ... Nós... os homens do povo,


tambem sabemos amar, as lindas fidalgas.
A freira, ao sentir -se aferrada pelo soldado, vibrou
um grito de pavor, arrancou -se- lhe dos braços, e fugiu
na direitura do convento . Mais dous passos , e estaria
salva. Transposto o adito do pateo, não teria mais que
receiar; mas o guarda seguiu -a, exclamando:
Venha comnosco !
-Matem -me, se querem ...
E esforçou -se por entrar a tempo que o sino do se
gundo nocturno já chamava para o côro. Conseguiu des
apressar-se dos scelerados; entrou á portaria; mas, quando
ia fechar a porta, o chefe da guarda, estorvou -a , gritando:
-Nós vamos chamar a communidade, se nos não
segue.
- Chame! - bradou ella, correndo para o interior
do mosteiro .
O austriaco ainda lhe travou do habito, dizendo a
altos brados :
-Fechem as portas, que foge uma freira !
Na extrema do corredor perpassava então uma fi
leira de sombras : era o rebanho das religiosas que ia
190 À FREIRA

entrando no coro , e todas se desgarraram 'ao ouvirem a


voz d'um homem . Porém, a prelada, a sub - prioreza , e
a porteira, as tres mais responsaveis da fuga, avança
ram para a desgraçada Barbara.
Maria Wenzyk, dirigindo-se ao guarda nacional,
disse :
Quem quer que seja, senhor, grande é o serviço
que prestou á religião prevenindo um grande escandalo;
entretanto, queira sahir sem demora d'esta casa, onde é
defeza a entrada de homens. sf. Tinirea,
O soldado primeiro fez um passo á frente, depois
outro á retaguarda, e sahiu .
No mesmo instante, o sacristão Gregorchyk foi di
reito a Barbara, obedecendo ao aceno da prioreza.
Martha, cerrando os punhos, invectivou -a furiosa
mente :

- Miseravel! prometteste -me visitas de S. Marcia


no para te sahires bem dos teus infamés projectos! Não
ha bastante penitencia que castigue a tua hypoerisia e
malicia .
Barbara não respondeu.
-As correntes !-- disse a prioreza ao sacristão, que
-

immediatamente sahiu .
Já dissemos que estes successos passavam por uma
noite de abril fria e clara. Terror, curiosidade e desejo
de vingança retinham ali todas as freiras. Nenhuma pen
sava em ir at) côro.. As monjas antigas scismavam no
rigor das penas infligidas ás religiosas delinquentes ; 'ais
novas, em cujas almas os sentimentos humanos ainda
não haviam morrido, tremiam de susto e escondíam as
lagrimas sobilos véos. ina't , du
NO SUBTERRANEO . 191

Sancta Angela e Cinco -Chagas davam-se as mãos em


silencio .
O sacristão chegou com as cadeias e golilhas de
enorme pezo .
-Prenda a criminosa --- disse a prelada.
Barbara offereceu os braços.
Quando os delicados pulsos começavam a esyer
dear-se, apertados pelas golilhas, a prioreza fez esta
conciza indicação mais para horrores que longas phrases:
-Cova negra. :
Gregorchyk solevou uma cadeia que rojava no
chão, e Barbara, cambaleando, seguiu.
As religiosas contemplavam -na.
Um grito de piedosa magua fugiu do coração de
Sancta Angela .
--Qual das senhoras em tão pouco tem a honra
d'esta casa , que lastima aquella miseravel ? - perguntou
Maria Wenzyk .
Uma novica affogou na garganta um soluçante ge
mido.
A prelada, alongando o braço na direcção do côro,
disse glacialmente:
- Vamos cantar o officio .
Minutos depois, na egreja alumiada ; resoava a
psalmodia . Ah! Forçoso é confessar que os psalmos de
David tem menos preceitos de amor e caridade que sê
des de vingança e sentimentos de odio. O profeta-rei,
que nunca perdoou injurias , não se satisfaz odiando: em
parceira nas suas vinganças o Senhor.
Em nome de tudo que fez bom , roga a Deus que o
ajude a fulminar os inimigos. « Hảo de rojar -se-me aos
192 A FREIRA

pés (diz elle). Pulverisal- os -hei como pó que o vento es


palha; e farei que se sumam como a lama dos caminhos.
Senhor, julgai quem me não faz justiça. Arrancai do
gladio , e atravancai o transito aos que me perseguem ;
que trevas. Ihes obumbrem o caminho, e o anjo do Se
nhor não cesse de os atormentar... Esmagai meus ini
migos com o peso que elles querem sobre -pôr-me, e ex
terminai-os , consoante promettestes ... Elles soffrerão fo
me como cães; divagarão em volta da cidade, errarão
dispersos á cata de alimento, e nunca se fartarão. Que
os olhos se dhe escurentem a ponto de cegarem ; fazei
4 T 1

que o dorso se lhes derreie para o chão; cubri-os de vos


sa colera, e sobresaltai-os com o furor da vossa indigna
ção; que a sua habitação seja erma, e não haja quem lhe
povõe as tendas . »
2. Os psalmos de David sempre nos pareceram - assaz
improprios para serem cantados nas igrejas catholicas.
Primeiro, porque essas poesias são biblicas, satura
>

das do espirito da lei antiga, que era a lei de Talião, da


colera e do rancor ; depois, os psalmos de David são per
sonalissimos para se apropriarem á generalidade dos fieis.
Poucos são os cantares de graça e triumpho que possam
quadrar com a uncção religiosa.
Posto isto, vem de molde inquirir por que é que,
durante os officios, fazem cantar nossas filhas innocen
tes as phrases dos pesares de David , assassino e adulte
ro ? D'esta anomalia o correctivo unico é responderem
nos que os psalmos são ditos em lingua desconhecida ao
maior numero de christãos. Pois a egreja catholica não
pôde formular preces, crear expressões contrictas, com
por as supplicas adequadas ao seu espirito, e culto e es
NO SUBTERRANEO . 193

peranças? Não houve sancto ou doutor da egreja com


tanta inspiração para resumir o pensamento do evange
lho . Praticamos um culto , e pedimos emprestadas a
outro culto 13 nossas rezas . Pedimos vingança contra
nossos inimigos quando Christo nos mandou que offe
recessemos uma face logo nos esbofeteassem a outra .
Imploramos o Messias, e o Messias ha dezoito seculos
que veio . Fallamos de sacrificios abolidos, isanças abro
gadas, leis rle sangue mudadas em leis de misericordia.
Os psalmos de David , se os consideramos clamores
humanos, lastimas de poeta, canticos doloridos e lacry.
mantes, são admiraveis. O poema de Job, com esses ou
tros poemas, representam a mais egregia expressão da
magua. Vibra enthusiasmo grande nas odes lyricas . Foi
e eternamente será um excellente poeta David. Quem
desconhece a poesia biblica carece do mais acrisolado
elemento da poesia universal. Como quer que seja, as
poesias do profeta rei devem ser lidas, pensadas e ad
miradas como se admiram todos os poemas notaveis.
Somos, porém , de parecer que a egreja catholica deve
ria expugir essas fezes de judaismo, e recompor ora
ções harmonicas e congruentes com o culto que derruiu
completamente o dos hebreus. Não é irracional coisa que
os israelitas e catholicos psalmodiem os mesmos versioni
los? As fadigosas interpretações dadas pelos padrez a
certos trechos de David e Salomão são nova prova da
insufficiencia do rito christão . Já não fazemos caso do
cantico dos canticos mysticamente applicado á ogroja:
isso então é um esforço de ingenho que já não embaça
ninguem . Mas é tão altamente injurioso que n'um tem
plo se peça a Deus que fulmine os nossos inimigos , co
13
194 A FREIRA

mo
o estar-se ahi a rememorar os deliquios da Sulami
ta, em quanto o rei lhe põe a mão esquerda sob a cabe
ça , e com a direita se abraça n'ella .
O Concilio, que tantas cousas trata, não poderá re
formar na egreja uma usança que não pode ser descul
pavel por ser muito ancian? Deixai que os psalmos de
David se leiam como poemas; mas expurgai-os das ora
ções christãs. Os pezares das multidões não se acham
bem exprimidos nos clamores do assassino de Urias e do
amante de Bethsabé . Se existisse officio especial para
uso dos grandes criminosos, convenho que a explosão
d'esses remorsos viesse a ponto; porém, quando uma me
nina innocente se ajoelha ante o altar, com a candura
dos quinze annos, parece -nos que a afinação da sua al
ma destôa d'isso que canta, e que o excesso do remorso
de David póde dar -lhe vontade de querer saber que cri
mes elle expiava com as suas choradeiras.
Em resumo: quizeramos que os padres catholicos
se servissem de orações catholicas. Por que é que se
muda o ornato dos templos e as ceremonias que lá se
celebram, se os sentimentos, que ahi se exaltam, são os
severamente reprehendidos por Jesus?
Mas emquanto esta logica não entrar na christan
dade , invocaremos com David a colera celeste sobre os
transviados, como se Christo não houvesse dito: « Vai
mais alegria no céo pela conversação d’um peccador,
que pela perseverança de noventa e nove justos » .
i
E n'aquella noite de abril de 1848 , as religiosas
carmelitanas de Cracovia pediam a Deus que trovejas
se sobre a criminosa, e a esmagasse sob o seu oppro
brio ...
XIII

O TRIBUNAL DAS CARMELITAS

ÉRA
RAMM passados dias depois que Barbara fôra en
carcerada na prizão denominada por Maria Wenzyk a
Cova negra .
Era uma especie de ante.camara do In -pace. Pren
diam-se abi as freiras incursas em algum delicto, em
quanto não eram sentenciadas no tribunal monastico .
N'este tribunal negrejavam ceremonias lugubres
com o intuito de atterrar as espectadoras do drama, e
espavorir a fantasia das noviças e recentes professas.
Qualquer successo avultava enorme proporções aos olhos
de mulheres privadas de distracções externas. Maria Wen
zyk procurou nas tradições do convento memorias dei
xadas por suas antecessoras do que praticaram em ana
196 À FREIRA

loga occorrencia . Como não achasse alguma particulari


dade, tratou de copiar serviltnente as excommunhões
usadas na idade media.
A communidade gastou dois dias nos preparativos
ib
ay
funebres.
Parecia ter esquecido Barbara na cova negra .
Esta masmorra, de forma quadrada, recebia a luz
por um postigo gradeado. O pavimento era de ladrilho.
Uma tarima, com sua manta, e um escano, eram a mo.
bilia do lobrego recinto . Não havia ahi o pão da amar
gura, nem a agua das angustias: era completa a absti
nencia . A religiosa, que entrasse n'esta sepultura, fos
se qual fosse a demora, soffria sede e fome. Barbara,
em meio das grandes dores que lhe dilaceravam o scio,
escassamente sentia aquelles tormentos. De si, do seu
existir, do que era e do que viria a ser, parecia de todo
7

despreoccupada . Apenas uma palavra lhe descerrava 08


beiços requeimados: « Zolpki!
A morte absorvia aquella desgraçada.
5
Era-lhe consolação a esperança de morrer exanime
á minglia de alimento , .
Involta no seu habito , prostrada no catre, cobrindo
a face com as mãos , deixava passar as horas . A escuri .
dão da cova negra era -lhe grata , por lhe parecer que
ali começava a noite do tumulo . Abençoava, é não mal
dizia as mulheres que a condemnaram . Matavam -na, ha
viain com ella a misericordia de a inatar, se lhe faltas .
se a coragem do suicidio .
Já não existia para ella o sentimento da vida actual .
Se a intervallos as mãos lhe estremeciam no seio, não
saberia dizer que dores lh'o dilacerayan ; o queella 82
NO SUBTERRANEO . 197

bia ao certo é que morria, acceitando sem resistencia o


amargo calix da morte ..
Ao cabo do segundo dia, a portinha da cova negra
deixou passar uma sombra indecisa .
Um ente vestido de negro, cujas vestes roçavam na
parede, com uma lanterna de furta -fogo, entrou na ca
mara lugubre, pendurou a lampada n'um prego que de
certo conhecia, aproximou um escabello para a beira do
grabato da religiosa, e assentou -se.
A encarcerada não abriu os olhos.
Barbara! Barbara ! -disse uma voz tremula .
-Que me querem ? --- perguntou a freira levantan
do -se .
--Confessal-a -- respondeu o visitante.
Barbara ergueu -se de salto, exclamando:
-Fóra ! fóra d'aqui !
-Por que recusa escutar-me, minha filha ? per
guntou o padre Zozimo com perturbação .
-Por que não commetti falta de que me accuze a
consciencia: não tenho que confessar.
-E a infidelidade que quiz commetter contra os
seus votos ?
-Isso é com Deus, e commigo.
-Pois é em nome de Deus que eu pertendo fallar
lhe .
Barbara sorriu desdenhosamente .
-Ousa appellar para a justiça divina?
-De certo .
Olhe -disse Barbara-Eu vou morrer, c morrer
de fome n'esta cova, por que ha dois dias me não deram
nada; pois creia que este supplicio nada é em compara
198 A FREIRA

ção do horror que me faz a sua presença ... Não sei por
que, a sua visita a esta hora liga-se á lembrança d'uma
terrivel visão...
-Qual?-perguntou Zózimo.
-Lembre -se da sala da penitencia.
A minha filha está sonhando ... Mas o que é ter
rivel realidade ... é o castigo que lhe preparam , e do qual
só eu poderei salval-a...
-Estou resignada.
-Por que cuida morrer, como ha pouco disse; mas
conhece mal a justiça dos conventos, se cuida que o seu
castigo hade acabar tão depressa
-Pois não me hão de deixar morrer de fome ?
- Não.
-Então que me fazem ?
-Hade ser julgada primeiro.
-Estou prompta; e nada responderei ás accusações
que me fizerem ... Tentei fugir, a fatalidade não quiz :
soffrerei o castigo.
--Então não teme o carcere perpetuo, à tortura
infinita, um trespasse dilatado gota a gota de sangue?
-Zolpki está morto ! -- disse Barbara soluçando.
E ' tão nova replicou o padre Zózimo — Deve
querer a vida. Deve amal- a seja como fôr... Faz -me
compaixão , Barbara... Esqueço-me de que nunca deixou
ver ao confessor toda a sua alma... Quero arrancal- a a
este longo supplicio ... Confie -me o seu destino . Deixe
me salval- a .
-Para que?.. Não quero salvar-me.
--Mas queria fugir...
-Sim , por que me seguia o homem que eu amava.
NO SUBTERRANEO . 199

-Sacrilega ! Ousa confessar esse crime !


-Tanto importa confessal- o como não ... Arguiu
me ha pouco de que eu lhe não abrisse francamente a
minha alma... Vou agora contar- lhe tudo ... Se quizer,
absolva-me depois... Eu não vim para aqui por vonta
de. Amava um homem, quando meu pai me trouxe a
esta casa. O sacrificio da minha liberdade era a paga
da vida d'esse homem , que eu tão barata comprava...
Trouxe para aqui a imagem d'elle, no mais intimo da
alma. Eu jurara de entrar no carmelo , mas viver aqui
nào ... Esperava que o meu amante, um dia, me arran
casse de cá... Passaram -se as semanas e os mezes ...

Acabou-se a esperança... Então esforcei-me por me su


geitar á vida que me deram; humildei-me, silenciosa,
casta, mortificada, e estudei o espirito da regra para ca
da vez mais o observar... E já quando a serenidade co
meçava em mim, então duvidei do valor que tem n'esta
casa as palavras virgindade e pudor...
-Que quer dizer, Barbara ?
-Eu não sonhava, não, n'aquella horrenda noite,
em que fui conduzida ás saturnaes dos supplicios, segui
das de noutes cujos sacrilegos prazeres a minha lingua
não ousa proferir... Comprehendi, na casa das torturas,
a voluptuosidade que certas pessoas achavam na con
templação das minhas irmãs nuas, e no espectaculo da
carne palpitante. Comprehendi, que não se tratava só
de penitenciar freiras, mas sim de as suspender nuas na
cruz, parodiando o drama redemptor do Calvario, em
proveito dos sentidos d’um homem ... Comprehendi tudo
isso , que me indignou, e luctei para que me não des
pissem o meu vestido de estamenha; por que o meu
200 : A FREIRA

seio seria indigno de palpitar, se uma vez se prostituisse :


em similbante assembléa... O meu futuro , o meu amor, a
minha felicidade tudo estava perdido ... Restava-me so.o.:
corpo, que eu jurara guardar casto e puro, apezar de
todas as violencias... E foi dentro d'estas paredes, er- ,
guidas para me protegerem , que se tentou contra a mi.
nha virgindade ... Oh ! que horror se fez na ininha alma,
e me lançou por terra, sem alento, quasi morta, quando
o resplendor d’uma fingida aurora, mostrando Sancta : 3
Angela crucificada, me mostrou , padre, a sua cara ar
dente de lascivia , a espreitar por um secreto postigo das
parede!.. itbank
Enganou - se, Barbara .
--Enganada! oxalá! Pedi a Deus que me desoppri
misse de tal lembrança, que me arrancasse da idéa o
phantasma que me perseguia sem descanço ! .. e sempre
deante de mim aquelles olhos fulgurantes que me horrori
savam ... aquella incessante tentação que eu debalde e3
pancava !.. E ainda mais ... As confidencias de Sancta An
gela .
Zózimo estremeceu todo desde as unhas dos pés até
á raiz dos cabellos .
E Barbara continuou :
---Cuidavam que eu fosse tão simples que me dei
xasse lograr por tacs artimanhas... Fizeram-me o favor
de me não dar importancia ... Eu vivia no mosteiro co
mo se não fosse nada ... Já me não fallavam de mortifi,
cações nem gosos de amor divino. Graças dava eu a
Deus por isso ... E mais fervorosas lh'as dei , quando me
senti morrer , morrer da consumpção do claustro , do frio
que ressumbra d'estas paredes e congela a alma... Sen
NO SUBTERRANEO . 201

tia-me adormecer para sempre depois de amar, luetar er


soffrer... Ia para Deus, sem macula, e coroada pelo meu .
martyrio ... Acceitava a morte com as mãos erguidas,
quando de repente uma palavra me resuscitou.... O ama ;
do da minha mocidade voltára ... Chamava-me aos seus
braços... Fui, sem terror do passo que dei, nem medo
de castigo, se a fugida se malograsse ... Chamava-me...
corri para elle... Já eu lhe sentia o bater do coração...
eramos livres ... iamos esquecer oito annos de apartamen
to quando um raio nos subverteu... Elle cahiu por terra ",
ensanguentado, ee depois... eu... Mas que valho eu já
.

agora ? .. Estou perdida... e resignada ...


--Perdida, sim , se se obstina a querer perder-se .
-Obstino -me só em querer morrer . " ,
-Diga uma palavra, que eu salvo-a .
-O senhor ?
-Eu, sim , Barbara ... Eu, que posso contrapôr a
minha vontade á de Maria Wenzyk.
-Pois pode trahil -a?
-

-Sim ... por sua causa... posso !


-Sancto Deus! e que horrivel preço quer por tal
serviço ? .
-Que me não odeie .
-Não ha odio onde ha despre80 ,
--Deixe me ser o director da sua alma e cu farei ,
que lá renasça , o amor á vida, Quer sahir d'esta mag
morra ? quer voltar ao seu posto no côro? Diga que sim ,
e Maria Wenzyk será sua subdita; o poder que ella tem
será seu ... heide tornal-a independente de todas para
que seja exclusivamente minha.
-Miseravel ! - fremiu Barbara Miserável ! vem
202 A FREIRA

aqui fingir piedades, prostituir compaixões no carcere


d’uma condemnada á morte ! Tem a ousadia de apresen •.
tar á minha razão que se perde o quadro das devassi
dões infames ! Vai-te, scelerado ! vai-te, não manches
este ergastulo que d'aqui a pouco será uma sepultura !
vai pedir que me carreguem de ferros, não peças o meu
livramento . Apostata ! sacrilego ! devasso , torpissimo
padre que tu és ! Se a eternidade vingadora existe, os
teus crimes hảo de ser castigados !
Zózimo parecia impassivel á ira de Barbara.
Ha cinco annos-disse elle — n'aquella noite em
que quizemos contar uma nova eleita, como eu visse a
sua rebeldia e a julguei motivada por sentimentos de
pudor, respeitei-a ... Hoje, porém , o caso é diverso ...
Hoje sei que esta virgem do Senhor não se esquiva a
ser d’um homem, pois que fugiu, de noite, do conven
to... A sua castidade é, por tanto, uma impostura... A
menina já sabe o que são as delicias do amor e sabia
em procura d'ellas. Já não vejo na senhora a esposa
immaculada. A infidelidade moral consummou-se . O de
sejo venceu-lhe a vontade... O seu peito sentiu as pulsa
ções d'outro peito ... uns braços a fizeram estremecer nos
seus apertos ... as volupias arderam - lhe no sangue... a
sua virgindade está perdida ... e o meu respeito ces
SOU ...

-Se assim é, respeite-se a si proprio, padre. Amei


um homem livre, que nada devia á sociedade nem a
Deus . O snr. padre Zózimo é um sacerdote, um confes
sor, um impudico, um sacrilego, um incestuoso, um
adultero, um infame dos que costumam ser suppliciados
no fogo.
NO SUBTERRANEO . 203

- Tenciona denunciar -me ? -_-bradou elle crescendo


-

para Barbara .
Ella affastou - o de si com um repellão, apesar de
ter as mãos algemadas , e gritou:
--Soccorro ! meu Deus ! soccorro! Matem -me, mas
livrem -me d'este malvado homem !
Não obstante, Zózimo agarrou da victima pelos
bombros prostrando-a sobre a tarima chumbada na pa
rede.
N'este lance abriu -se a porta .
A prelada entrou.
Barbara arrastou-se até aos joelhos d'ella, que lhe
parecia já menos horrenda que o padre.
-Condemne-me ! faça que eu morra nas maiores
torturas ; mas tire-me este padre d'aqui ... tire-m'o, que
>

a minha agonia não pode com a torpeza da sua pre


zença ...
-Não ha que fazer d'esta rebelde, -- disse Zózimo
com uma voz seraphica - está obstinadissima.
-Não era esta a hora nem este o lugar para en- .
saiar o triumpho -- disse Maria Wenzyk em tom de voz
vibrante de colera e estou quasi em dizer que o seu
excesso de zelo é um abuso de confiança ... Ora vamos,
meu padre, n'este instante, esta mulher depende de mim
e de Deus .
-Pensei que devia preparal- a para o castigo que
deve soffrer.
-Covarde hypocrita ! disse Barbara Nem se
quer tem a coragem da sua vilania !
-Maria - disse Zózimo a meia voz á prioreza
haja-se com ella sem piedade.
204 A FREIRA

-Descance ... que hade ser o juiz .


O padre sahiu da cova negra .
No corredor estavam Gregorczyk, a porteira , e
duas das mais corpulentas freiras.
Ai ! não era precisa tanta gente para subjugar a
desgraçada menina ! Barbara exhaurira -se de forças; es
tava para ali cahida nos ladrilhos sem voz nem respira .
são.
Martha levantou -a .
Barbara cambaleava .
-Leve - a - disse a prelada ao sachristão.
-

Quando elle lhe poz a mão no braço, a freira sa


cudiu-se d'aquelle contacto, recuando até á parede.
-- Irei sósinha ... 'digam -me para onde...- exclamou
ella .
A prelada e a porteira iam na frente: depois se
guia -se Barbara, escoltada pelo sacristão e as duas ir
màs conversas .
Subiram as escaleiras, foram ao longo dos corredo
res , e entraram no claustro .
O sacristão sahiu . Minutos depois, os sinos tange
>

ram um dobre a finados.


Martha abriu a porta da igreja. Estava ornamenta
da de negro. No altar um grande crucifixo, e un vaso
de agua benta com o seu hyssope de buxo . A porta do
sacrario estava aberta, e lá ao fundo scintillava o cibo
rio. A toalha do altar, lançada sem o costumado alinho,
queria dizer que havia perturbação grande nas aras do
Senhor.
Por de cima dos brandões negrejava uma especie
de escudo funerario sustendo uma caveira .
NO SUBTERRANEO . 205

Este lugubre apparato espavoriu a religiosa exte


nuada pela fome. Que vinha a ser aquelle scenario ? Qual
seria o acto final do drama sinistro?
+
A prelada poz um véo sobre o rosto de Barbara , o
véo que ella quando fugia tinha perdido.
- De joelhos! - disse-lhe ella, indicando- lhe o logar
marcado 'no pavimento .
E o sino continuava a dobrar.
As religiosas entoaram o De profundis.
Acabada a funebre cantoria, as freiras ordenaram
se em circulo, e a prioreza, subindo o degrau da balaus
trada, e olhando de travez sobre a religiosa ajoelhada,
disse .
- Barbara Ubryk confessas que professaste n'este
mesmo tribunal votos de obediencia, de clausura, de pe.
nitencia e castidade?
- Confesso - respondeu Barbara, tendo como coisa
indigna de si lembrar n'aquelle local a violencia que
seu pai lhe fizera .
E a prelada"continuou:
--Infringiste o voto de clausura transpondo o limiar
do mosteiro; infringiste o voto de castidade, seguindo
um bomem ; o voto de penitencia, voltando a procurar
as delicias do seculo ; o voto de obediencia, infringindo
todos os mais . Confessas ?
-Confesso .
- Para salvarnios tua alma, que a teu pezar sal
varemos, vamos castigar o teu corpo... Pois que deixas
te o Carmelo, serás preza toda a vida, comendo o pão ·
da amargura, e bebendo a agua das lagrimas. Pois que
faltaste á obediencia e quebraste o jugo do Senhor, geo
206 A FREIRA

merás até à hora derradeira que o céo te der. Nunca


mais voltarás ao gremio de tuas irmãs. Eu te repulso
do rebanho, ovelha tinhosa; eu te privo do véo, mulher
sem pudor; eu te arranco dos hombros a veste das es.
posas de Christo , prostituta de Sião! Em signal de cas
tigo e affrontamento cada uma de tuas irmãs fará gote
jar de teu corpo algumas gotas de sangue . Em signal
de apartamento absoluto não só do claustro, mas tam
bem do altar, eu te privo da agua lustral, em que os
teus dedos nunca mais serão molhados, e regarei com
ella o chão do templo ... e apagarei com o meu pé as lu
zęs sanctas que alumiam nossas sanctas ceremonias ...
Serás para sempre privada da eucharistia, que assim
o vês no tabernaculo aberto e na custodia yasia ... Pro
hibo até que jámais possas beijar um crucifixo. Maldita
sejas em tua alma que concebeu o crime, e que a bes
tial demencia de Nabuchodonozor se aposse d'esse cere
bro que engendrou planos de fuga. Maldita sejas em
teus pés que transpozeram as grades sagradas; parali
sem-t'os a dôr; lancem raizes nos ladrilhos do teu carce
re! Maldita sejas na bellesa do teu rosto e das tua's fór
mas! Que teus olhos se cavem á força de chorar, què
teus cabellos alvejem precocemente, que tua cintura se
curve e retorça, que tuas unhas cresçam como as das
bestas-feras, que tua voz rouqueje á força de gritar ! Mal
dita sejas n'esses olhos que viram um homem, n'esses
labios que beijaram um rosto, n'esses peitos que o cin
giram a si! Maldita sejas n’este mundo e no outro, pe
· los homens e pelos demonios, privada de absolvição á
hora da morte, e queimada eternamente nas lavaredas
da Gehenna !
NO SUBTERRANEO 207

Maria Wenzik, proferindo tal apostrophe, era real


mente medonha ! A estatura do seu corpo parecia maior,
as dobras do habito eram como as azas negras d'uma
ave nocturna; em pé no meio dos vasos sanctos disper.
808, dos cirios apagados, do Crucifixo arrojado ao sopé
do altar, parecia a imagem da destruição, a estatua ani
>

mada do rancor. Coriscavam-lhe os olhos em meio da


face acobreada . Tremiam-lhe as mãos no vibrar das
maldições.
Barbara fitava.a, escutava-a ; mas não a via nem
ouvia .
A intervallos, os beiços da religiosa crispavam -se,
vagindo este murmurio :
-Zolpki é morto ... mataram-no...
Findas as formulas do anathema, quatro freiras se
acercaram da condemnada. D'esta feita , apezar da
grande resistencia, despiram-na até á cintura, e cada
freira armada de disciplinas com pontas de ferro verbe
rou-lhe as espaduas.
O sangue espirrava ás faces das atormentadoras .
Nem um gemido nos labios da suppliciada ! E' que
não ha comparar aquella dôr physica á indisivel angus
tia que lhe ia na alma ! A infeliz abençoava a tortura,
por que esperava morrer n’ella. Alquebrada pelos je
juns, pela desesperação, e pela lucta com o padre, e
vendo-se a braços com aquellas mulheres mais incarni
çadas que verdugos, julgou que ia acabar, que o frio
que lhe inteiriçava os membros era o da morte, que do
spasmo em que sentia esvair-se não acordaria jámais .
As freiras espancavam já uma coisa inerte, um qua
si cadaver.
208 A FREIRA

Quando o sangue borrifava o pavimento da egreja,


a prelada ordenou á freira que a seguisse.
Barbara não deu signal de vida.
Martha, debruçando - se sobre ella, disse:
Parece-me que morreu.
Cobriram -lhe o peito avergoado com um véo de es
tamenba escura, tomaram-na em braços duas freiras, e
outra pelos pés, e conduziram-na á frentc d'un longo
cortejo.
-Ao In pace!-disse a prelada:
Cessou o dobre a finados.
Desceram uma escada tenebrosa. Abriu-se a porta
da masmorra . Lá dentro, no canto, uma pouca de pa
lha, uma bilha d'agua, um pão negro ... o pão da amar
gura e a agua das angustias...
Barbara continuava desfallecida.
As freiras deitaram-na sobre a palha, tirando-lhe as
algemas.
A prioreza encarou -a , e disse:
Fica em paz .
No mesmo dia, na cidade de Cracovia, soube-se
que o dobre a 'tinados no mosteiro tangia quando se
estava sepultando Barbara Ubryk , morta na paz do Se
nhor.
IN PACE !
Quando emergiu de sua lethargia, estava sósinha.
Era noite alta . Estendeu os braços, e roçou as mãos na
parede. Levantou -se, quiz ter-se em pé, não pôde, reca
hiu sobre a palha que lhe era cama. O sopitamento,
nova fórma da alma anniquilada, furtou - a por momen
tos á crua realidade da vida . E, quer fosse consolação
NO SUBTERRANEO . 209

quer ironia, sonhou com o jardim de seu pai , e viu , á


claridade da lua, Zolpki, o inoço,
moço , o gentil , o amante'ar .
rebatado; e ouviu -lhe as promessas de eterno amor, e
viu que elle lhe descerrava as portas do paraizo d'onde
os anjos são desterrados ... Jubilos ineffaveis e puros a
indoudeciam , quando os beijos do amantissimo esposo lho
sorviam o halito .
Raiou a estrella da manhã, e o presente lhe avul
tou em toda a sua negrura . Abriu os olhos, e conheceu
onde estava. Era um quarto subterreo , caiado, sem mo
veis . D'uma fresta alta coava -se luz froixa; apenas se
entrevia o azul do céo ; mas claridade bastante para qual
quer trabalho não a tinha . Barbara forcejou debalde
por espreitar pela fresta em que parte do mosteiro jazia
aquella masmorra . As feridas não na deixavam redobrar
esforços para chegar ao postigo inaccessivel. Não chega
va ali soin de relogio, nem toada de sino . Suppoz, por
tanto, que fôra soterrada nas profundezas do inosteiro,
para a banda da cêrca. A idéa de que lhe dariam alimen
tos alimentava -lhe esperanças de interrogar a freira que
ll'os trouxesse . Mas ninguem ali foi. Intendeu então que
a deixiriam morrer de fome . Recordou-se de que as Ves
taes infieis eram sepult:idas vivas. Conheceu qué anoitecia .
Pediu a Deus que a deixasse adormecer. E dormių. Ao
despertar, apezar de tão infeliz, sorriu á restea solar que
Ile tremeluziu no carcere .
Ahi por meio dia, pareceu -lhe ouvir rumor de pas
sos . Pulsavá-lhe a impetos o coração. Achegou -se á por
ta e poz o ouvido; era para lá que os passos se moviam .
Ouviu uma estralada de abrir e desafferrolhar portas.
Eis que assoma uma religiosa no ergasluto:
14
210 A FREIRA

Era Martha conduzindo pão e agua . Barbara excla


mou :

- Minha irmã, diga -me por piedade, minha irmā,


onde é que estou ?
Martha encarou - a com expressão de atroz regosijo,
e , sem lhe dar resposta , sahiu.
Barbara debulhou-se em pranto. Foi-se-lhe o res
tante animo. Todo o seu desejo, e unico alento , era mor
. rer, morrer para ir ao encontro de Zolpki.
--Heide suicidar-me pela fome - disse ella comsi
go .
E, por mais que se agonizasse, não boliu no pão
nem provou gota d'agua.
Pareceu-lhe infinito aquelle dia. Os mesmos pensa
mentos exulcerantes recresciam de hora a hora . Que
bravam -lhe as fontes dores agudissimas ; oiravam-na
zunidos afflictivos. Se fechava os olhos, via horrendas
visões creadas pela vertigem . E lá por deshoras, ouviu
uma voz que lhe dizia :
- Barbara ! Barbara !
A preza sentou -se no seu ninho, mais perturbada
que se visse entrar Maria Wenzyk e as suas carrascas .
--Barbara, ainda é tempo - continuou a voz - que
res salvar - te ?
-Vai-te, miseravel! vai-te ! respeita , sequer, uma
sepultura! — respondeu ella .
--Ouve... eu posso arrancar-te d'este carcere, dar
te liberdade , e a vista do céo, intendes ? a vista do céo ,
a ti, que nunca mais resurgirás d'este antro de agonias ...
Amo-te... Não me repulses, que eu serei teu libertador,
teu escravo !
NO SUBTERRANEO . 211

-Antes morrer !-respondeu Barbara .


E, muito ao longe, sumiu -se o soturno rumor de
passos.
Novo martyrio davam à desgraçada. Não lhe bas
tava a prizão . Era atrocissimo que ainda io padre Zó
zimo ali fosse vibrar os clamores da sua paixão den
tro d'um sepulchro ! Nem ao menos deixavam que a in
feliz senhora vasquejasse silenciosa nos seus paroxismos !
Era forçoso que, em quanto a alma não rompesse ós lia
mes do corpo , aquelle homem , ebrio de sensualidades
ali entrasse, a polluir, a sobrepôr aos horrores da tum
ba a sordicia das suas impurezas ! Este supplicio exa
cerbava-lhe a dôr mais que todos. Que faria ? que diria ?
crél-a -hiaın ? Desconfiou Barbara dos ciumes da prelada;
mas Maria Wenzyk não iria ali, e Martha nada lhe di
ria, se a presa lh'o contasse.
Apoderou-se d'ella o maior terror . Entrou a scis
mar que Zózimo podia ali penetrar quando lhe aprou
vesse, e que ella estava tão sem forças que não poderia
defender-se da lubricidade d'aquelle monstro .
Martha levou -lhe outro pão. A preza nada lhe dis
se . Ao anoitecer recresceu -lhe o terror, e formou tenção
de não adormecer. Não obstante, os olhos, fecharam -se
apezar do intento. Mas acordou estouvinhada por um
subtil rumor, semelhante ao apalpar d’uma destra mão
que diligenciasse introduzir uma chave em fechadura ..
Erguida, com a fronte a ressumbrar suor de afflicção,
attentando o ouvido, esperou ... Era com certeza o pa
dre que tractava de se introduzir na masmorra ; porém ,
qualquer que fosse, º motivo, o visitante retirou -se . 10
castigo da prisão já não pezava nada nas dores de Bari
212 A FREIRA

bara, nem sequer o da fome; todo o seu morrer - se de


angustia era o medo da violencia . Esta mulher, amante
e corajosa, que tão ardente se lançava aos braços d'un
homem, tinha a castidade das naturesas sublimes .
-Se eu teimo em não comer - dizia ella entre si
mais um dia, e não terei a mais pequena força que
me salve contra a violencia ...
E comeu para reter o vigor expirante .
As chagas cicatrisaram -se. Voltou - lhe a energia.
Era preciso viver para affrontar o opprobrio. Viveria !
Faria ainda a Zolpki o sacrificio da tão suspirada morte .
E? de presumir que o padre, cuja vinda tanto medo
incutia em Barbara , não conseguisse ao espaço de um
dia preparar chave que abrisse o antro da preza ; ou tal
vez desistisse de luctar com o despreso d'ella. Como
quer que fosse, decorreram duas noites sem algum inci
dente .
Continuava Martha a levar påo e agua . Sempre
que entrava, Barbara fallava -lhe, mas em vão: a portei
ra permanecia incorruptivel. Com tado, na oitava noite,
pareceu tentada a mover - se; uma luz piedosa lhe adoçou
a vista pela primeira vez; mas este sentimento foi ins
tantaneo, e de mais a mais, a porteira, receiosa de ce
der, fugiu .
Barbara rompeu o seu pão, e achou dentro um obje
cto rijo e frio . A preza expediu um brado de inespera
da alegria.
Uma chave! -exclamou uma chave !
E correu á porta , introduziu a chave, e desandou - a .
Estava aberta . Sahiu , e tropeçou no que quer que fosse .
Era uma lanterna . Quem a deixaria ali?!
NO SUBTERRANEO . 213

Não lhe occorreu idéa de perfidia , nenhum racioci


nio lhe occupou o espirito. Ia, ao acaso, pensando que a
mão que lhe abrira a sepultura a levaria ao ar da vida.
Perpassou - lhe na mente a lembrança do medico.
Talvez fosse elle o salvador, pelo muito que estimava
Zolpki.
Se ella soubesse que era julgada morta em Craco
via, tal idéa não lhe entraria na alma. Na situação terri
vel em que se via, qualquer esperança de salvação era
acceitavel com a energia do desespero. Conjecturou tam
bem a louca que as freiras, tão cruelmente implacaveis
com ella, haviam sentido remorsos, e annullavam o jul
gamento dando -lhe escapúla. Tudo isto e muito mais
lhe lembrou em menos tempo que o preciso para refe
ril- o . N'aquelle conflicto a sua cabeça era um cahos, um
tumultuar de ideas antagonistas. Ia febril, ao longo dos
corredores, apalpando as paredes, como quem busca uma
evasiva. Evidentemente, devia existir uma; e, se a não
havia, para que lhe deram a chave e a lanterna tanto á
mão ?
Em fim , descubriu um encaixe , empurrou uma por
tada, e logo enxergou uma restea de claridade . Onde
ia dar aquella sahida? donde vinha aquella luz ? Barba
ra esteve a ponto de retroceder.
Mas, de repente, e com tal rapidez que lhe não foi
possivel fugir nem defender -se, cahiu -lhe a lanterna das
mãos que dois robustos braços agarravam .
Barbara voltou-se convulsa de pavor.
Viu a face pallida do padre Zózimo.
A desventurada, sentindo- se no cumo de horrivel pe
rigo, forcejou por se arrancar ás gargalheiras que lhe cin
214 " A FREIRA "

giam " og "pulsos. Inutil esforço !' A mão de Zózimio era


dura como as presas d'uma tenaz .'
Fito a fito, o algoz e a victima encararam -se.
Zózimo intendendo que não venceria com palavras,
cingiu -a rapidamente com os braços.
-Escuta ...- disse elle - Repelliste -me e ameaças
te -me; cobriste -me de injurias e insultos... Como não
havia dobrar -te o orgulho com bonis modos , armei-te um
ardil. Cessa de me resistir, que te dou a liberdade ...
Não me affastes com o pé que eu hoje mesino té abro
as portas do mosteiro. Faço -te o que quizeres. Se tan
to fôr preciso, perder-me-hei desafiando a vingança da
prelada e de todas as freiras... E olha que é enorme o

pezo da vingança que vou arrostar... O ' Barbara, eu


luctei muito contra mim , hesitando em disputar a Deus
a mais pura das suas "virgens ... 'Mas tu quizeste dar-te
a 'um homem ... repudiaste o Senhor, rasgaste da tua
véo que te defendia de mim... descingiste
ó teu cinto de esposa de Christo, e deste-te como um
triumpho ao teu amante ... E' pois certo que tens coração
e sentidos... Não és uma noviça de gêlo nem uma esta
túa marmorea ! O coração falla, o sangue arde, os dese
jos estuam em ti! Queres vêr, é amar e beber a longos
tragos o prazer! Pois bem ! olha para mim , e vê-me tre
mulo , perdido, louco ! Estou a teus pés ! Os teus labios
insultam -me, e eu ardo em sede dos teus beijos! As tuas
mãos algemadas repellem -me, e eu cada vez mais te
cinjo com o meu seio ... Ai! não te defendas! Renuncia
á idéa da fidelidade ... Não és tu que te dás, sou eu que
te arrebato ! Não queres que eu te ame; mas eu roubo -te o
amor... Recusas -te ao meu bafejo' abrazado, e eu sou um
NO SÚBTERRANEO . . 215

ladrão das túas caricias... Tu não peccas contra Deus,


nem trahes a memoria do teu amor... De mais, Barba
ra , perdão-te o delicto de que serás apenas cumplice.
Amo -te! Sabes como é feito este sentimento em mim?
de mil formas diversas, oppostas , terriveis. Reverte en
te furor em ternura, Barbara! Por que não hasde ser
minha ?
A freira estorcia -se semi-morta, afogada de deses
peração, de colera, de vergonha. Zózimo despeitorou - lhe
o vestido, já quando ella não podia defender-se dos olha
res do cynico verdugo. Gritou, chamou, valeu-se até das
supplicas. Cahiu, rolou - se por terra, implorou a justiça
do céo, o soccorro dos anjos que outrora accudiam ás
martyres lançadas nos bordeis de Roma. Estalou todas
as cordas que vibram n'alma, valeu-se de quantos sen
timentos commovem corações; mas soluços, ameaças, ro
gos tudo se mallogrou contra a vontade infrene do devas
1
so, cada vez mais encarniçado na lucta repellente! Os
dentes de Barbara cravejaram -se- lhe nas mãos, e elle não
sentiu as dores, nem lhe ouviu as imprecações. A final,
vendo que não sopezava aquella mulher debilitada pela
fome e pela estagnação do carcere, correu a um canto
do quarto , pegou d'um frasco, e approximou -lho do ros
to . A desgraçada conheceu que estava perdida ... O ter
ror esbugalhou -lhe os olhos supplicantes ainda na vaga
treva que os escurecia. Recuou tremente ; mas as pernas
faltaram - lhe, e eil-a que veio a terra desamparada como
morta .
No dia seguinte, quando Martha entrou á cellula da
presa, viu - a prostrada na palha, com os vestidos esfar
rapados, e fria como cadaver. Foi chamar Maria Wen
216 A FREIRA

zyk, por que tamanho foi seu medo que julgou a con
demnada morta .
A prelada examinou vagarosamente a freira . De
pois disse á porteira:
--- Deixe-me sósinha. Basta eu para guardal-a .
Martha sahiu .
E então a prioreza, operando como um juiz em
exame de corpos de delicto, pegou d'um castiçal, exa
minou o quarto, encarou de novo a freira desfallecida,
abriu a porta da prisão, e, rastreando aa luz no pavimen
to, espreitou vestigios.
Estalou -lhe na garganta um rugido mal abafado .
Acabava de encontrar pegadas ; depois um phosphoro
apagado de fresco; e mais longe tres pingos de cêra no
chão .
Não procurou mais nada : sobravam - lhe vestigios .
-E'elle - bramiu ella--é o padre ! 0 corredor ...
a alcova ... Elle m'as pagará... Quanto a ella, se este
2

carcere não basta, nós lhe cavaremos outro nas entra


nhas da terra, de modo que ninguem lhe vá no faro...
Maria Wenzyk não sahiu logo da cova de Barbara .
De pé, encostada á parede, com as mãos escondidas nas
largas mangas do habito, pregara um olhar negro sobre
aquella victima de seu rancor , d'hora em diante dupla
mente odiosa,
-Oh ! --exclamou – antes de alguns mezes e talvez
semanas, tornar-te - has tão repulsiva aos olhos de todos,
e até aos d'elle, que não haverá quem se não horrorise
do cadaver , vivo !
Nem a lividez d'aquelle rosto ainda aljofarado de
lagrimns, nem a graça do formoso corpo, nem a casti
NO SUBTERRANEO . 217

dade d'aquelle colo que parecia sobreviver ao attentado,


interneceram a prelada. N'esta hora, a alma de Maria
Wenzyk não sentiu os assomos da authoridade, mas sim
>

o ciume de mulher, ciume feroz, doido, cego , ingrande


cido ás proporções que lhe dá o claustro, combinando-se,
agigantando -se com mil diversos elementos, aguçando
se feramente á mingua de distracções, á falta de outra
escolha ; formando -se do opprobrio, das affrontas e do
constrangimento do pudor. A sede de torturar a mulher
que já é victima, e perdoar provisoriamente ao homem
que trahiu, abjurar o orgulho em proveito dos sentidos ,
acurvar -se ao jugo dos appetites, perdoar quando o odio
está pedindo dilacerar, immudecer quando ha impetos
de gritar: que abjecta situação! que dilacerante ignomi
nia !
Era esta a situação infamemente atormentada da
prioreza!
Denunciar o padre? Pensou n'isso... Mas a quem ?
Ao bispo. Porém , o padre, perdido, e desesperado,
fallaria ... E depois , outra razão a impedia ... Odiar Zó
zimo, ah ! isso odiava-o ; mas não o ver nunca... não
poderia. Um dia, talvez, se sentisse bastante forte...
A’quella hora , não .
A infame sabia de mais que lhe perdoaria . A im
punidade d'este crime estava segura nos outros crimes...
E, quanto a estes , a prelada tremia se pensava n'elles .
Repleta de odio, e meditado o meio de o satisfazer,
sahiu.
Foi chamado o sacristão .

XIV

TORTURAS

Ao pé do cano de esgoto, n'um fosso humido , in


fecto de miasmas pestilenciaes, havia uma escavação ane
grada, uma quasi noite perpetua. Esta latrina, que me
dia um metro de comprimento, e sessenta centimetros de
largura, não era sobradada nem ladrilhada; ali os pés
escorregavam na terra lodosa e diluida. Encerrar aqui
um ente vivo era idéa que não devia caber na mais pre
versa alma. As luras das emparedadas deviam de pare
cer palacios comparadas aquelle socavado fétido.
-Gregorczyk – disse a prelada—pregue uma tabua
n'este postigo.
Concluido este primeiro arranjo , a prioreza chamou
um serralheiro. A porta de ferro do escondrijo foi refor
mada com uma fechadura de segredo, cuja chave a pre
lada pendurou das suas calmandulas. Um postigo, aber
220 A FREIRA

to sobre uma prancha pregada interiormente, servia a


introduzir os alimentos, de modo que não fosse necessa
rio abrir a porta. Terminado isto, uma manta parda foi
posta a um canto, sobre uma gabella de palha.
O sacristão recebeu ordem de ir buscar Barbara, é
trazel-a aquella cova immunda,> sua habitação eterna . A
prelada não teve sequer pudor para cobrir o corpo de
Barbara meio -nú .
-Esta freira indoudeceu - disse a prioreza ao sa
cristão . – Veja o que ella faz aos vestidos! E ' mister que
a não veja ninguem , e pôr em pratica meios fortes pa
ra lhe domar os accessos de furia .
Ао passo que a levavam , Barbara recobrou os sen
tidos.
A idéa de que era levada por Zózimo alanceou-lhe
o cerebro amodorrado pelo chloroformio que respirára.
Estrebuchou para fugir, e soltou um grito.
Maria Wenzyk tapou -lhe a bocca, dizendo :
-Cala -te ! cala - te !
O sacristão deixou cahir a freira em terra .
Barbara viu tảo densa noite á volta de si que mur
mulou :

--- Agora sim ... estou morta!


O sacristão sahiu .
--Barbara - disse a prelada - o teu ultimo crime
exhauriu o resto de compaixão que eu tinha por ti .
-Crime? O meu crime? .. O meu ? Quem ousa fal
lar-me em castigo quando eu peço justiça?.. Sabe que
eu ... sou ...
Uma freira infiel aos seus votos .
- Vingança divina, onde estás? Eu roguei, luctei,
NO SUBTERRANEO . 221

e pedi soccorro... Defendi-me com os dentes ... Fulmina


ram -me não sei com quê... Não sei depois o que acon
teceu ... Tenho horriveis duvidas ... e não ouso já dizer
que son a mesma ... Maria ! Maria ! que o crime de Zó
zimo recaia sobre elle, sobre ti, e sobre esta casa amal
diçoada! Estou innocente e sacrificada , humilhada, esma
gada, mas não vencida. Fui ultrajada, mas sou casta...
Macularam -me, mas sou ainda virgem ! A minha alma
não teve parte nas manchas do meu corpo inquinado por
um monstro ... Pode ser que eu expie o crime de Zózi
mo, mas eu appello para a justiça de Deus!
2

-Espera pois que a tternidade se abra para ti .


A esta hora, estás nas entranhas da terra, sem ha
lito de ar, sem raio de luz ... A palha d'este ninho não
será renovada nunca ... os teus vestidos desfazer -se -hào
de podres sobre o teu corpo, e a tua nudez nunca mais
se cobrirá ... Os teus dentes cahirão, as tuas unhas cres
cerão como as das feras, os teus cabellos hảo de encane
cer n'esta caverna, que é a tua sepultura . Não haverá
creatura humana que haja de soffrer o que tu vais aqui
amargurar. E o teu proprio anuante, se te visse alguma
vez recuaria horrorisado de ti !
-Deus me vê ! disse Barbara Apesar da tua
crueldade e do teu odio, Maria , creio ainda em Deus .
Elle haverá misericordia de mim .
A prelada fechou o postigo ; pouco depois, abriu -o,
e disse:
-E' meio dia , Barbara. Não verás jámais o sol;
nunca mais contarás os dias .
D'esta vez, fechou -se o postigo para não mais se
abrir.
222 A FREIRA

A prioreza atraves $ou os corredores, subiu a esca .


da de caracol, e fez chamar o padre Zózimo .
O que passou entre elles? Ninguem o soube. Mas
o certo é que o director e a prioreza continuavam na
melhor conformidade .
O que mais terrificou Barbara, quando se viu a só
no seu infecto antro, foi esto pensamento :
-Nunca mais verei o sol; não poderei mais contar
-

os dias !
O terror, a agonia , o stupor moral, o spasmo eram
taes que nenhuma outra idéa se lhe suggeriu no espiri
to por tanta maneira atormentado.
Noite perpetua !
Ignorar infinitamente o resvalar dos dias ! Nem
uma claridadezinha, nem uma gota d'agua por onde ella
podesse contar os segundos! Pensou em contal-os pelas
pulsações. Mas calcular as horas de que lhe servia ?
Não haveria uma melhor que as outras na sua vida !
Quiz erguer-se, mas não se sustentava em pé . O tecto
era mais baixo do que ella.
Nem a palha chegava para se deitar toda. Era lhe
preciso encolher-se, retrahir-se, arquear -se. Ardia em
febre ... bebeu a agua toda. Soffreu sede cruel; mas me
deou tanto tempo a ser -lhe dado outro pão e outra agua ,
que ella calculou tres dias. Não era tanto . O certo ,
porém , é que lhe davam a miseravel ração com inter
vallos irregulares, muito de acinte para que ella não lo
grasse medir as horas decorridas .
A desgraçada, extorcendo - se em dores do corpo e
da alma, golpeada pelo sentimento de involuntaria macu
la, asphixiada por measmas pestilenciosos, para ali es
NO SUBTERRANEO . 223

tava, agachada, absorvida, bebendo a longos tragos a


agonia, a vêr se assim morria depressa. O excesso da
tortura dava-lhe esperanças de não sobreviver muito ao
seu vilipendio. Esperava, pois...
Mas as semanas e os mezes dobraraiu-se... A mor.
te não chegou ... E Barbara, retransida, deitada na pa
lha pôdre, meio-nua, tiritando, comendo apenas pão e
bebendo agua bastante para não expirar ... não morria!
Os martyrios cresciain com as horas, martyrios sern
nome para a mulher vezada aos usos da boa sociedade,
á limpeza, ao luxo, aos esmeros da elegancia ... Os bi
chos asquerosos, os ratos e as santopeias roçavam-lhe
nas carnes, mordidas pelos moscardos creados nos esgo
tos.
Barbara reagia , quanto em si era , contra este sup
plicio. Poupava metade da sua agua para lavar o rosto
e as mãos . E, talvez por que o desconfiaram , davam
lhe já só metade da ração . Baldaram -se as supplicas que
fez á pessoa invisivel, que lhe levava o pão, para que lhe
dessem alguma camisa, o mais urgente ao vestir d'uma
mulher .
Não lhe era menor soffrimento a grandeza das unhas.
Um homem , que soffreu semelhante supplicio, Tasso dis
se que elle era horrendissimo.
O vestido da freira era un apontoado de farrapos,
a desfazerem-se na palha humida e fetida .
A miserabilissima creatura já não era mulher, já
não era ser humano: era uma coisa immunda, revolven
do-se n'uin chiqueiro .
O animal irracional não tem consciencia de sua im
mundice; o cerdo que se retouça n'um enxurdeiro não
224 & FREIRA

sabe que sae d'ali esqualido e nauseabundo ; mas Barba


ra palpava-se, sentia -se asquerosa. Contava os minutos
da sua transformação na bestialidade animal.
E a torvação de seu intendimento era -lhe mais af.
flictiva que todas as outras ignominias . Sentia -se insan
decer. Horas inteiras , com a cabeça abafada entre as
mãos , recordava - se de todos os incidentes da sua vida
para certificar -se de que ainda tinha idéas e memoria.
Outras vezes, rememorando coisas que aprendêra, repe
tia passagens historicas. Esta lida intellectual occupava
lhe algum tempo de cada dia. Depois , curava de avultar
aos olhos da alma imagens de pessoas que conhecera, e
logares onde estivera.
--- Eu não quero sabir doida d'aqui ! - dizia ella.
E , uma vez, accrescentou:
--Zolpki, a final, hade descobrir-me... hade arran
car -me d'esta sepultura ...
Esquecera-se de que Zolpki era morto...
Porém , quando se lembrou de que elle morrera,
passou por violenta crise de desesperação .
- A horrivel doença vem chegando ...--pensou el
la.- Estas trevas abafam-me a intelligencia ... Sinto que
o espirito vae descendo ao abysmo onde eu cahi...
Redobrou de energia contra o flagello da loucura .
Durante tres annos de prisão, nunca disse palavra, quan
do lhe traziam a comida . Depois, já supplicava que lhe
descem um livro e uma luz . Nem sequer lhe respondiam .
Teve então ataques de furia; gritava e bramia como fe
ra ; desangrava as mãos a bater na porta , feriu o rosto
de encontro á parede, espedaçou a manta já apodrenta
da, mordeu os braços e rasgou a carne com as unhas.
NO SUBTERRÁNEO . 225

Job , todo ulcerado, no seu muladar, ao menos ti


nha o sol a que via as suas chagas .
Quando abriam o postigo,Barbara desabafava em
injurias e ameaças. Accusava a prioreza, o padre Zózi
mo, Martha, a communidade toda . Promettia denuncial -os
no tribunal dos homens, e dizia que só o fogo poderia
purificar o chão d'aquelle 'infaune convento . Outras ve
žes, humilhava -se em rogativas. Pedia que lhe dessem
por uma hora sómente o espectaculo do céo, algum ves
tido é bastante agua, jurando submetter-se ao encarce
ramiento seni se queixar.
--Acceito tudo ! -clamava ella.- Pequei contra a
regra por que tentei fugir... Não ine queixo ... estou bem
condemnada e punida ... Mas todos os prezos tem uma
hora no dia em que respiram ... e contemplam o céo ...
Luz! dêem -me luz ao menos! Tenho muito frio ... estou
como debaixo da terra... dêem -me um vestido que me
aqueça ... Tenham piedade, e vergonha da minha nudez !
Estou nua ... Se querem que eu morra , acabem commigo
já... Eu lh’o agradeço, por que soffro horrorosamente .
Não me respondem ?.. Dêem -me agua, só agua, não peço
mais nada ... E nem uma palavra! .. Pois nada me dão, na
da ! ... E sabem que, se ha falta perdoavel , é a minba ...
Eu amava Zolpki ... amava-o tanto ! Que outro crime te
nho eu? Outro? não, não! esse não o pratiquei eu ... Ap
pello para Deus... E quem sois vós para me julgardes?
O ' impuras!6 devassas! ó monstros de torpeza e ferocida
de ! instrumentos cegos de sordidos scelerados! Deus vos
julgará ... Deus verá as chagas de vossas consciencias! Es
tas paredes hảode fallar... Oh ! eu não sei que prodigio
fará Deus ...; mas hade fazel.0 ! hade fazel-o, ó infames!
15
226 A FREIRA

E cahia esvahida, livida, estrangulada pela ancie


dade dos gritos.
Então era o tomarem -na hallucinações, por modo
que já não destrinçava entre sonhar e pensar. A demen
cia cingia-lhe ferreamente аa fronte convulsa. Sentia o pro
gredir da invasão, e já não podia rebatêl- a .
E não sabia que tempo era corrido desde que en
trara n’aquella caverna. Desmoronava-se a pedaços o edi
ficio d'aquella alma. Começaram a corroer-lhe o cerebro
idéas fixas. Pedia a brados café, na esperança de que o
café lhe reacenderia a lucidez do espirito vasquejante.
Ah ! se ella podesse vêr-se, contemplar-se ! Se a luz,
que pedia, relampejasse n'aquella masmorra, decerto es
talaria em maiores furores aquella loucura nas trevas!
Que mudança, ó sancto Deus!
Quem reconheceria a futura condessa de Ubryk, a
formosa e explendida Barbara, n'aquella coisa sem nome
na escala das miserias !
Quem veria ali a mulher radiosa d'aquella noite
de baile! .. a pallida professa submettendo os cabellos doi
rados á thesoira monacal! .. a tremente fugitiva arquejan
te de jubilo nos braços de Zolpki ...
Bem podera applicar- se-lhe aquelle dizer de David:
« Creatura humana ja não sou ... eis-me um verme ! »
E aquelle ente desamparado, flagellado, e attascado
n'um lamaçal, mordido por animaes nojentos, ainda ti
nha alma na qual bruxuleavam lampejos de rasão !
Aquella creatura ainda recordava... quer, por m.e
moria, quer por instincto, balbuciava ainda o nome de
Zolpki !
E que era feito d'elle?
1

XV

ZOLPKI

ENTRETANTO que Barbara Ubryk, reconduzida ao


convento d'onde fugira, se sentia vergar áá vingança das
filhas de Sancta Thereza, um lance deploravel passava
em casa do medico .
Ahi por volta das duas horas da manhã, parou uma
sege em frente da porta ; o cocheiro apeou da almofada,
abriu a portinhola, e um mancebo desceu . Este e o bo
lieiro tiraram então da sege um corpo sem alento, in 1

volto na sua capa . Repetidas aldabradas na porta do


doutor despertaram a creada, que desceu ao pateo, e re
cuou de horror quando viu dois homens amparando o
ferido .
-Onde está seu amo? -disse o cocheiro - depres
sa, que o snr. Zolpki está mortalmente ferido.
228 A FREIRA

-Ferido!-exclamou a governanta .
A pobre mulher oirou. Com muito custo lhe fez Ca
simiro perceber que a salvação do moço dependia da
presteza d'ella .
Emfim , a creada acordou o amo. Wroblesky, infor
mado de estar ali um homem ferido n’uma desordem,
não lhe passou pela mente que se tratava do seu afilha .
do. Só depois que reconheceu Casimiro, comprehendeu o
que era.
- E ' Zolpkil - disse elle anciado.
--Fiz quanto pude por ajudal- o e defendel - o --ob
servou Casimiro, mostrando o peito e braços ensanguen
tados-- Tractemos d'elle -- proseguiu o amigo - e depois
fallaremos de mim .
Signal de vida não dava nenhum o ferido. Volvida
meia hora, porém, á custa de esforços mais de pai que
de medico, recobrou o alento, circumvagando um vago
lance de olhos.
o que primeiro reviveu n'elle . fui o instincto do:
amor .

--Barbara !-- murmurou, e depois, olhando para Ca


simiro,5 disse:--Meu bom amigo...
Bem que fossem graves, nenhuma ferida pareceu
mortal ao medico ; mas a perplexidade do ferido, quan
to ao destino de Barbara , agravava .grandemente o ca
racter dos ferimentos. Quando elle soube que a infeliz vol
tára para o mosteiro, suspirou com anciosa pena, e quasi
1
perdeu os sentidos .
1

No dia immediato, os sinos dobravam a finados.


Com a subtileza auricular d'um selvagem , e a dolorosa
agudeza dos sentidos: de um agonisante, Zolpki exclamou :
NO SUBTERRANEO . 229

--Alguem morreu nas Carmelitas !


-D'onde te vem essa phantasia ?-perguntou o dou
tor.
O som vem do lado de Wesola ... Barbara mor
reu ... Felizmente... que eu vou morrer tambem ...
Ai ! Zolpki não devia succumbir nem á dôr da al
ma nem ao desangrar das feridas. A dôr lá lhe ficou no
coração como serpente a devorar -lhe a seiva; as feridas
1

.cicatrisaram ; e, poucos dias passados, Zolpki estava con.


yalescente .
Do lugubre recontro da Wesola nada transpirou .
Os soldados, que tinham abusado da força, não in
teressavam no divulgar -se o caso; as consequencias de
sua curiosidade e pertinacia haviam sido funestas de mais
para que elles ousassem gabar -se da façanha, que ao prin
cipio lhes pareceu uma travessura .
Impunha-lhes silencio o sangue derramado, um ho
mem morto --- que assim o julgaram - te uma freira expi
rando tres dias depois da aventura .
Pelo que respeita a Zolpki, tambem elle a não di
zia. Que valia espertar lembranças da desgraçada mu
lher, se estava morta ?
O medico tão paternalmente se desvelou que Zol
pki , para lhe não desanimar a ternura, acceitou todos
os cuidados . Se Barbara não tivesse morrido, os phrene
sis do amante seriam mais desesperados. A ancia de res
gatal-a, a impossibilidade de tentar segunda vez arran
cal- a á sepultura, leval-o - iam á febre, ao delirio ee á mor
te. Mas acabado era tudo ! Deus cortara a questão de
modo que não havia em forças humanas já nada que fazer.
Zolpki deixou-se salvar por amor ao ancião que tanto
230 A FREIRA

lhe queria. Todavia, o enthusiasmo juvenil, o vigor da


alma, a alta poesia do coração, isso morreu n'elle, e pa
ra não mais resurgir. Na tumba de Barbara cahira tám
bem a mocidade d'aquelle homem .
Ladislau ficou hospede do medico com quem uni
camente fallava de Barbara, é recordava aquella nefas
ta noite de sangue e lagrimas, em que, d'um lance, a
recuperára e perdêra !
Depois, deu-se a estudar. Sahiu . Explorou particu
larmente a sciencia do direito, e publicou formosos li
vros ácerca de questões juridicas. Como não podesse fo
mentar nova rebellião, e visse que era mister aguardar
opportunidade, por que a Europa se pacificava, e a Fran
ça passara de republicana a imperial, quiz cooperar no
progredimento das idéas, se nada podia na conquista da
2

liberdade .
A placidez de Zolpki foi explicada por dissabores
da mocidade e trabalhos padecidos no praso dos oito an
nos de carcere duro. Não obstante, dizia-se que, se o cla
rim da peleja soasse outra vez, elle seria na vanguarda
dos mais valentes .
E assim proseguiu pacientemente no assiduo estu
do, como quem deseja tornar util ao menos uma existen
cia viuva de alegrias . A socierlade tem phases succes .
sivas de febre e repouso : o homem é como ella. As in
gentes crises não duram . As multidões, á imitação do
individuo em separado, não actuam longo tempo convul
sas. As febres e as revoluções tem intermittencias.
Viu Zolpki resvalarem longos annos em apparente
calmaria politica. Aquelle coração, onde o amor havia
chammejado, parecia exhaurido das doçuras dos affe
NO SUBTERRANEO 231

ctos . Morto o amor, o homem sobrevivia -se como solita


rio em si proprio . Mas lá estava o vacuo immenso do
coração, augmentando a par e passo que as saudades se
iam refazendo por entre as nevoas longinquas da lem
brança. Era homem... Barbara, sombra querida orva
Thada de prantos, era a visão do passado . O presente ,
porém , erguia-se despotico. Era homem ...
E o doutor, coadjuvando quanto em si cabia aquel
la transformação, pensou em casar o afilhado.
A' primeira vez que lhe tocou em tal assumpto,
Ladislau atalhou-o com desabrimento :
-Esquece a minha noiva immortal ! Barbara es
pera - me no céo.
-Não - replicou o doutor---Não te espera nem te
chama. Se aquella pobre senhora, martyr dos odios de
familia e preconceitos sociaes, te vê do céo, folgará que
entres na vida positiva, discreta e racional . Amaste-a
até ao extremo de dar-lhe teu sangue. Estás desligado
pela morte . Perante Deus, e perante a memoria d'ella,
és livre ! E's hoje um homem já de annos reflexivos. Não
tiques assim sósinho , quando te eu faltar. Bem vês quan
to hei envelhecido . Pensa no triste porvir do homem
sem lar nem familia .
-Não me falle mais em tal...-- concluiu Ladislau .
O doutor nada mais disse ao intento; mas, corridos
dois mezes, levou comsigo Zolpki a um sarau da senho
ra Zilmann, bella dama, mãe de duas meninas que pa
reciam suas irmans .
A senhora Zilmann era viuva e pouco abastada. As
suas relações com o medico procediam dos cuidados com
que elle lhe assistirà em grave enfermidade. No seio d'a
232 A FREIRA

quella familia era tanta a paz, a honestidade, a magia


da vida intima, que o espirito e olhos não tinham mais
que ver e admirar.
Conversayam ao fogão, ao sabor do animo, em quan
2

to as senhoras bordavam . A's dez horas uma das meni


nas preparava o chá . Algumas vezes cantavam cançone
tas amoraveis de poesia d'alma, sem pretenções nem des
vanecimento. O doutor admirava quanto é possivel a
viuva. Zolpki, a poucos passos, deu em achar infinito
encanto n’aquellas reuniões em que se estava tão á von
tade e tão respeitosamente ao mesmo tempo. Quando
Mina, a mais nova, o fitava serenamente com os seus
olhos azues, Ladislau sentia - se dulcificado de paz intima.
O conjuncto das tres senhoras inspirava por egual o sen
tir respeitoso , a dedicação e o affecto que deliciam as
relações - tão raras vezes assim formadas. Zolpki , ali,
sentia a quietação das nevrozes , o refrigerio do cerebro.
Como elle era homem ! ..
Quando Ladislau e o doutor entravam , a viuva er
guia-se graciosamente do seu sophá, estendendo-lhes a
mão, Lisbeth ia com infantil enthusiasmo ao encontro
do velho, que ella chamava o seu amiguinho, é Mina,
purpúrea e enleiada, esperava a primeira palavra do moco .
2

Mas que diverso não era este d'aquelle brilhante


rapaz que, aos vinte annos excitava a admiração dos
homens, e inspirava desvairado amor a Barbara Ubrik !
A fronte de Zolpki , şulcada pela meditação, amarelleci
da pela dôr, fallava de soffrimentos longos; os labios
pareciam lacrados pelo sinete da amargura indeleyel; os
olhos somente, a espaços, se animavam e rutilavam de
baixo das pestanas sedosas e negras.
NO SUBTERRANEO . 233

Mina, ao principio, deu a Ladislau o importante


interesse de bello personagem de romance. Via-o ao
travez do prisma da dôr tão attractiva dos corações su
blimes. Figurava-se-lhe perseguido por odios partida
rios, preso , torturado . Deixou -se ir embevecida pela
aureola que veste a fronte dos heroes. Amou-o silencio
sa e secretamente; mas o doutor desvendou o mysterio
no seio da resguardada alleman .
Uma noite, perguntou-lhe Zolpki se não iam a ca
sa da senhora Zilmann. O medico respondeu magoada
mente :

-Não, meu amigo, e bom será que lá vamos pou


quissimas vezes .
Porque?! --- volveu Ladislau sobresaltado.
--Por que não devemos levar o desassocego, embo
ra involuntariamente, ao seio d'esta familia .
-Não entendo, meu padrinho.
-As duas meninas são bellas, mas pobres: duas
condições que nos mandam ser prudentes... A reputação
de Mina ( Lisbeth é pura como o orvalho do céo, e ...
--Mas quem é que lh'a macúla?
-Ninguem ... que eu a defenderia... crê, Zolpki...
Não é d'isso que se tracta ... E' que Mina inquieta- me ...
Está pallida e deperece visivelmente ... Estão com ella
as primeiras tristezas da mocidade ...
-E d'abi?
-Não adivinhas o mais? Se tu te consideras velho,
os outros julgam-te o que és : um rapaz com trinta e
quatro annos . Nada perdeşte das antigas seducções, e
tens de mais a mais o prestigio. Receio que Mina scisme
muito a miudo com Ladislau, e aqui está por que me
234 A FREIRA

abstenho de vizitas que poderiam suggerir n’aquella


' creança esperanças irrealisaveis .
-E crê que ella me...
-Que te ame?.. desconfio .
- Engana-se ... isso é uma apprehensão sua. Quero
sabel-o ...
-O que devemos crer, primeiro que tudo, é o so
cego d'estas senhoras .
-Mas, se o padrinho não se engana, alguma im
2

prudencia haveria da nossa parte.


Talvez...
-E, n'esse caso, deve dar- se a reparação ...
voz de Ladislau tremia. O doutor, como se não
désse tento d'isso, replicou serenamente :
-Reparação de quê ? Eu por mim estou velho de
mais para me cazar, tendo além d'isso a certeza de que
não inspirei amor a nenhuma.
-Meu amigo tornou Ladislau, pondo-lhe a mão
.

sobre o hombro - rogo-lhe que vamos hoje a casa da se


nhora Zilmann ... Mortifica-me o receio de ter perturba
do a paz d'esta senhora ... Se meu padrinho tiver sup.
posto a verdade...
-- Vamos ... — disse o medico, interrompendo o
afilhado apraz -me dar-te provas de que me não il
ludi ,
A senhora Zilmann , quando o medico e Zolpki en
traram, alisava animosamente o cabello de Mina, fallan .
do-lhe mui de manso.
A filha tinha chorado: denunciavam-na os olhos hu
midos .
Ao vêr, ainda assim, Ladislau, allumiou-lhe de im
NO SUBTERRANEO . 235

proviso o semblante, como em céo tempestuoso, um su


bito romper do sol.
Zolpki apertou a mão da menina com desacostuma
da vehemencia; e, depois, com tanta gravidade como
ternura, disse -lhe :
- Eu desejava fallar -lhe e pedir -lhe um conse
Tho .
-Dar eu conselhos!.. tomára eu quem m'os desse ;
mas,7 se insiste ...
-Com todo o meu coração .
Sahiram para um terraço.
-E' certo que me ama? -perguntou elle .
-Quem lh'o disse?-exclamou Mina .
-Mas posso eu crêr tal! A menina, bella, tão no
va, sympathisar com um homem quebrantado, e venci
do nas luctas da vida ! Preferir-me a mim, que tão des
feita sinto a alma nas irreparaveis tempestades da mi
nha juventude! .. Por qué a não encontrei eu, quando ti
nba suffrido menos; quando...
----Amo- o justamente por que soffreu muito ...
--E acceita -me tão triste, tão desencantado já das
illusões da vida... O' Mina, não se engane! .. Olhe que
eu hoje sou um phantasma de mim proprio !
-Se o acceito?.. Pois quer...
-Fazel-a minha esposa, se é sua vontade.
Mina tremia por maneira que houve de amparar-se
nos braços d'elle.
--Ah! -murmurou ella. -A alegria é quasi uma
dôr ...
E assim estiveram algum tempo no terraço, mur
murando apenas os sentimentos que lhes affluiam ao co
236 A FREIRA

ração . Zolpki não poderia commover -se:a não ser ama


do extremosamente .
Quando voltaram á sala, Mina entrou pelo braço
de Ladislau ..
-Esta querida menina-disse elle á mãe - consen
te em ser minha esposa, se isso é do gosto de sua mãe .
A senhora abraçou o noivo, e Lisbeth abraçou o
doutor, dando palmas muito alegre, e dizendo-lhe ao
ouvido :
-E olhe que Mina não chora uma lagrima !..
E a viuva disse então gravemente :
-Sabe, snr. Ladislau, que somos pobres?
--Eu sou rico - disse Zolpki.
-E eu velho--ajunctou o medico.
O sarau correu muito intimo de jubilosa conversa
ção . A's onze horas o noivo e o padrinho sahiram .
-Estás , .com effeito, casado ...-- disse o doutor.
-Assim que fitei Mina, para logo me convenci de
que as suspeitas de meu padrinho eram justas. Que.ou
tro proceder honesto me competia, se não fazer feliz es
ta creança! Se me ama, acaricial- a- hei... Já não posso
reviver a devorante paixão que senti por outra; mas des
velar-me em lhe fazer ditosa a existencia, creio que po
derei . E, depois, meu padrinho fica sendo da nossa fa
2

milia, de que eu vou ser o chefe. A juventude de todo


em todo se vai suinir nas obrigações de homem feito .
-- Muito bem , meu amigol -applaudiu o doutor.
1

Toda аa . cidade ficou maravilhada com a noticia das


nupcias de Ladislau. Ao inverso dos usos allemães que
estatuem longa duração" nos espousaes, Zolpki deu - se
pressa no casamento,
NO SUBTERRANEO . 237

Enriqueceu Mina de preciosissimas joias, e levou-a


para sua casa com o mais sincero e jubiloso sentir de
coração , onde ella reclinou a formosa fronte .
Um incidente, porém, conturbou a felicidade d'a
quelle dia.
Quando jantavam , os sinos do Carmelo repicavam
festivalmente, e Ladislau attentava o ouvido áquelles sons
do bronze que já lhe havia batido no peito .
E um dos convivas disse :
-Houve hoje profissão no Carmelo. A professa ado
rava un homem que a enganou, e lá foi sepultar-se'em
vida .
-Pobre menina !-- disse Mina fitando os olhos apai
xonados . no esposo .
Mas os olhos do marido não a viram, por que lh’o
vedavam o pranto. E Mina viu aquellas lagrimas... Não
Thes adivinhou a causa ; mas, desde aquella hora, des
confiou que entre as antigas paixões de seu marido ha
via um amor desgraçado .
O casamento pacificou inteiramente a vida de Zol
pki . Mina era adorada; e, um anno depois, nos braços
d'ella, era tambem adorada uma filha que se chamou
Vanda , nome de heroina, verdadeiro nome de polaca .
Se alguma coisa faltava á felicidade de Ladislau, o
nascimento d'aquella menina prehencheu -lh'a.
Ai ! Mina deu á criancinha mais do que a exis
tencia , o leite e a ternura: deu-lhe a propria vida. Asi
fadigas da maternidade extenuaram-na : via-se a morrer
de dia para dia. Fez quanto heroicamente pôde por 'es
conder dos olhos do esposo a hora do trespasse . Zulpki
esperava no medico, o medico não esperava nada .
238 A FREIRA

Uma tarde, Mina aconchegou de si o esposo, que


se abeirava do leito, e disse-lhe:
-Meu querido, quero fallar-te pela derradeira vez,
hoje; que amanhã ja será tarde... Vou morrer... E por
que vou tão cedo? E' segredo do Altissimo ... Foste o meu
amor unico; e tu, se não podeste dar-me a parte de tua
alma que se tinha evolado, isso não impediu que eu
fosse muito feliz ... Soffri bastante quando soube que
amaste ; e nunca me deixou аa. lembrança das lagrimas
que te vi no dia do nosso casamento, quando ouviste os
sinos das carmelitas... Mas não tinhas culpa... As lem.
branças não as mata quem quer... Foste um fiel e bom
esposo : eu to agradeço e te abenção, filho ! Vou mor
rer; mas não te deixo só ... Tens a nossa filha . Deus
a faça ditosa! .. Sacrifica -te á felicidade d'ella ... Jura
que eu serei amada em minha filha e que sobrevivo pa
ra ti no querido anjo ...
--Juro ! -disse Zolpki solemnemente .
--Agora... posso ir... Tive o meu quinhão de ale
gria n'este mundo; e, para maior ventura, de tuas mãos
() recebi ... Não esqueças a morta que te vai espe
rar ...

E lançou ao pescoço do esposo os braços desfalle


cidos .
Volvida uma hora, a senhora Zilmann e o medico,
chamados por Ladislau, entravam no quarto. Mina re
conheceu -os, pediu a criança, passou -a aos braços du
marido, expediu um grande suspiro, e reclinou a cabeça
para as travesseiras .
E não teve outra agonia.
NO SUBTERRANEO . 239

Vanda cresceu entre os afagos do pai e do medico .


Tres annos depois, Lisbeth casou, e transferiu -se
para Berlin , levando comsigo a mãe .
Tinha então a menina cinco annos .
Era uma creança singularmente precoce.
Os seus grandes olhos interrogavam sempre brilhan
tes de curiosidade, a sua alma impregnava-se, digamol-o
assim, tão puramente de tudo que lá tem ao longe o
destino impulsor dos altos sentimentos . As dôres de Zol
pki e a morte de Mina influiram na compleição e educa
ção de Vanda. Aos quatorze annos dava ares do pai aos
vinte. Ardente e ousada em frente do perigo, não obe
decia senão aos dictames de sua consciencia .
Havia n'ella o morgadio das paixões.
No começo d'esta narrativa, vimol- a abatida aos
pés do pai , e logo rebelada em tom ameaçador! Oh!
Zolpki devia ter visto ali o seu sangue ! Devia lembrar
se da logica inflexa da sua paixão, quando se arrostou
a defender Barbara contra todo mundo. Devia vêr ali o
odio á oppressão, o amor a liberdade, a sêde dos affe
ctos e a febre da dedicação sem limites...
Todavia, á hora em que o coração de Vanda se
abria florido, o do pai resfriava -se com os invernos da
idade; e já então elle não saberia intender a linguagem
que fallara outr'ora.
() achaque da nossa natureza está na palavra ; mu
dança. Opera o tempo transformações espantosas . Ces .
samos de vêr com os niesmos olhos, de sonhar os mes
mos sonhos, de amar com o mesmo coração. Deluz-se
nos da alma o que mais amamos. Chega uma hora em
que os olhos n'algum dia inundados de jubilosas lagri
240 Å FREIRA

mas e fitos n'outros olhos, encaram enchutos e friamen


te o mesmo rosto . O som de voz que nos fazia estreme
cer difficilmente nos altera. E' então o0 dizer-se cada ho
mem a si mesmo: « Ali está a mulher que eu amei tan
, E alguem terá dito lá comsigo: « E por que foi
to! ...
que eu tanto a amei?! »
Sujeito, pois, á razoira commum, Zolpki, ven
do que o duro nivel do positivismo acaba por aba
ter as mais poeticás frontes, não permittia que Vanda
experimentasse os juvenis ardores da paixão . Queria
lhe na alma a placidez da sua, a frieza, o raciocinio, o
calculo, ó amor ao demonio do ouro, o heroismo de sa
crificar quimeras de amor aos interesses tangiveis. To
davia, se por uma parte os pais exigem dos filhos
coisas que só a idade experimentada póde dar-lhes,
por outra parte, a logica do coração faz que os filhos
deitem a mão á taça do amor, sem se importarem se lá
dentro ha fel.
Vanda nunca ouvira fallar de Barbara Ubryk . Es
te episodio da vida de seu pai nunca se divulgou . Tudo
corrêra entre elle, e a infeliz e o pai inabalavel . A so
ciedade ignorou sempre aquella valsa no baile, os en
contros no templo, as entrevistas no jardim , a tentativa
de rapto. Nem Mina propriamente entreviu o mysterio.
Se sabia que Ladislau amara, nunca descobriu o nome
da sua rival. Alérn de que, se tal nome lh'o proferissem
na sua presença , ella não teria ciumes de Barbara, duas
vezes morta, no mosteiro do Carmelo .
Casimiro conhecia os pormenores do romance de
Ladislau ; mas nunca mais lh’os recordou . A imagem de
Barbara esvaecia -se ao longe nas neblinas das sauda
NO SUBTERRANEO . 241

des . A rebellião de Vanda, porém ,-a recusação à cazar


se com Radzwil, levantou diante do pai a livida larva de
sua perdida mocidade. Não queria elle, todavia, succum
bir. Esqueceu -lhe que Barbara regeitara por amor d'el
le o conde Rastoi: attentou principalmente na rebeldia
da familia, e o seu primeiro impulso foi mandal-a re
considerar na clauzura . Algumas palavras da filha, em
verdade, abalavam-no profundamente; mas recuzou crêr
que ella antepozesse o convento a um inlace abomi
nado .
A experiencia nada monta. A nossa propria expe
riencia pouco nos aproveita. A lembrança do que já sen
timos desfaz-se . A não ser assim tão triste e tão verda
deiro este aleijão da alma, como deixaria aquelle pai sa
hir a filha, uma noute, para o mosteiro do Carmo?
De prompto se entende o terror que o traspassou,
quando uma carta anonyma lhe disse que Barbara não
tinha morrido, e havia vinte annos que gemia tortura
da !
O passado entrou -lhe pela alma. Eil-a, em frente
>

d'elle, aquella formosa e apaixonada mulher! Derivaram


lhe copiosas as lagrimas do coração. Ia vêl-a... Ah! co
mo a veria? Invelhecida pelo soffrimento , inlouquecida
pela desesperação, e já não podendo conhecer o homem
que a exhumava da sepultura, o amante por quem duas
vezes se abysmara !..
E por mais horrivel que se lhe afigurasse o quadro,
para maiores pavores lh'o mostrou a realidade.
A desgraça de Barbara seria ao menos util, para
que elle salvasse a filha. Era o martyrio da amante que
pagava o resgate da nova victima!
16
242 A FREIRA }

Logo, pois, que Vanda entrou na casa paterna, o


pai abraçou -a, estreitou - a ao seio, e disse-lhe:
--Socega, minha querida filha... Por emquanto,
deixa que o magistrado siga a sua delorosa missão; que
brevemente voltarei por ti com todo o amor de pai .
1
XVI

EXPIAÇÃO DO PADRE ZOZIMO

KUINZE dias antes do acontecimento que encami


nhou a justiça em busca de Barbara, e fez levantar de
seu sepulchro aquelle esqueleto vivo, uma scena de tra
gedia, intima, tanto mais pavorosa, passava em uma ća.
sa insulada em Csezy.
Um padre, prostrado em uma othomana, arcava
phreneticamente desesperado contra soffrimentos incom
portaveis. A espaços, os musculos do rosto convulcio
navam -se-lhe; a voz rugia -lhe nos gorgomilos estrangu
lados; o peito arfava- lhe a trances de oppressiva asphi
xia. Quando as crises redobravam violentas, vibrava-lhe
na cara patibular uma visagem diabolica ! Perto d'elle,
no vão de uma janella, estava outro homem , que de vez
7

em quando, olhava para o padre, interrogando-lhe as pos


turas, o olhar, as alterações do rosto; mas não lhe dizia
palavra.

1 1
244 A FREIRA

Reinava silencio havia mais de hora, quando a por


ta se abriu, e o medico entrou . O doente cravava a fle
cha da vista nos olhos do doutor, e por certo leu-lhe a
sentença , por que, recurvando os dedos, raspou com as
unhas no respaldo da othomana .
O medico abeirou-se da testemunha muda da ago
nia do padre.
-Senhor Gziorowski- disse elle --- seu primo póde
pôr em ordem as suas coisas n’este e no outro mundo.
-Bem o receiava eu, doutor... Bem vê com que
paciencia elle soffre as agudissimas dôres... ' Facilmente
se resignará ... E' um varão de Deus em toda a exten
são da palavra .
-Oh! sim ! --respondeu o medico -- a reputação do
padre Zózimo está feita . Já era conhecido entre nós,
quando deixou o mosteiro das carmelitas, e se retirou pa
ra aqui.
O primo do infermo apertou a mão do doutor; acom
panhou -o: a escada, e voltou para junto do recosto do
+

padre.
O moribunido fez signal ao primo que puchasse ca
deira é se sentasse ao pé d'elle . .

Quando -se defrontaram face a face, Zózimo, fremen .


te de terror, perguntou :
-Vou morrer ? é isso? o medico disse -te que eu
morria ?
- Meu primo..oi:
-Não mintas, não me enganes ... Estou condemna
do ... perdido ... morrer:! Tu não sabes qué horror e an
gustia ha n'esta :palavra ... morrer! Não quero ... nào
quero ... Tenho medo!
NO SUBTERRANEO . 245 .

--Se o primo teme tanto o minuto que nos separa


da eternidade, tendo sido toda a sua vida consagrada á
virtude e practica do bem , que farão aquelles que vive
ram indifferentes em religião, e não resaram , nem en
frearam suas paixões ? Não o tenho eu tantas vezes ou
vido fallar aos agonisantes no anjo da morte que os aco- ?
lhe nos braços e leva ao seio de Deus ... :39 : -49
-Cala - te ! cala - te !
,-E' certo, primo, que eu não sei exhortar nem
2

consolar: ignoro a linguagem mystica ... Haverá um mez


que o. primo me arguia por eu me não subjeitar ás pra
cticas da religião que me pareceriam pieguices... Já se
vê que nada lhe saberei dizer ácerca da sua inquietação .
e de seu medo de acabar...Compete aos sacerdotes es
sa missão ... Só elles tem força e uncção necessarias pa
ra o socegarem , convencerem , e insinuarem - lhe as espe- ,
ranças, celestiaes que meu primo prodigalisava aos mori
bundos... Quer que eu chame o padre Ludwig ? ‫܃؛‬

Esse !—bradou o agonisante.- Nunca! nunca!


Eu suppunha -os amigos .
Esvoaçou nos beiços do padre um sorriso truculento .
-Veja se quer outro...
-Nenhum , nenhum ! Tenho medo de morrer, con
fesso ..., mas antes quero morrer só , desesperado, e não
}

vêr ao pé de mim um homem assoldadado para me di


zer palavras hypocritas ... Cuidas que estou delirando ?
Pensas que estou doudo ? Não....O terror subjuga -me,
sem me turvar o juizo ... Tenho uma necessidade gran
de...
-Qual?
--Queria eonfessar-me......
246 A FREIRA

Eu vou chamar ...


-Confessar -me a um homem honrado ...
Escolha quem quizer, primo.
-A confissão, no seu principio, era um ' acto gran
dioso e sanctissimo... Em quanto foi publica foi excel
lente. A voluntaria humildade a que o penitente se con-'
demnava, restaurava - o e influia -lhe paz na alma. São
dois os elementos da confissão: humildade e contricção:
O sacrificio do orgulho innobrece . A confissão foi provei
tosa, austera, indispensavel: era , para assim dizer /"
eterno baptismo do espirito . Ahi se lavavam nodoas. Lo
go que a fizeram secreta, perdeu a indole boa , abastar
dou -se lentamente. Mas agora, ai ! agora, quero confes
sar -me por que von morrer , e levo commigo um segredo
que me despedaça. Porém , que importa dizel- o a um pas
dre ou a um leigo ? Deus me descontará o confessal-o ...
Se eu disser a um padre o segredo que me tortura, elle
recuará decerto deante da reparação, e temerá desacre
ditar a cleresia ... e eu preciso, percebes? preciso que a
reparação se faça ...
Gziorowski escutava Zózimo com doloroso assom
bro.
Pois aquelle homem venerando, aquelle sacerdote
exemplo de ministros de Jesus, albergava no seio um
segredo criminoso ? Já não ha em quem se fiar a gente!
O primo no entanto, intendendo que era preciso
usar caridade com aquelle homem acabrunhado por dô-.
res phisicas e moraes, apertou -lhe a mão para lhe incu
tir coragem .
O'padre bebeu uma poção, reanimou -se, e disse:
S6
Só a ti direi tudo ...
NO SUBTERRANEO . 247

A mim ?
-Fio -me na tua palavra ... Jura -me que me ajuda
rás a reparar uma iniquidade, a castigar um crime cuja
responsabilidade é minha em parte?
-Jüro.
-Escuta -me com a placidez de juiz. E's mais no
vo que eu ; e, com tudo, tens mais senso... Eu, apezar
do meu caracter sagrado, humilho -me diante de ti ...
Por que tu és quem és, e nunca te mascaraste com a
hypocrisia. Diante de ti arranco a mascara ! Antes de
morrer, quero que me vejas qual sou ! Tenho sede de
desprezo e odio, como se estes ultrajes, flagellando-me
7

a hora final, podessem ganhar alguma piedade n'aquelle


que me vai julgar e confundir. Meu primo, eu tinha nas
veias o sangue ardente , e no coração as paixões da nos
sa raça . Fiz-me padre, sem attender ás provações que
me esperavam , sem attentar no que ao diante seria o
voto de castidade que me forçaram a fazer. Quando
soube o que fiz, quando a minha carne e a minha alma
se revoltaram , ó maldição !.. era tarde ! A tunica de
Nessus adheria -me aos membros ... Queimava -me o es
tigma do celibato ... Desde à cabeça até aos pés , todo 1

eu era , da igreja... A minha cabeça foi assignalada pelo


ferro, e o meu corpo foi involvido n’uma tunica negra .
Julguei -me apartado do genero humano, moralmente am-,
putado, guarda d'um harem , em rebeldia perpetua, por
*

que era perpetuo o martyrio ... O meu temperamento,


degenerado, amollecido no seminario , perturbou-se bes
tialmente . Inundou -me a onda dos desejos que rompera
os diques; repueharam -me ao cerebro jactos de sangue.
Estorci-me entre as roscas da serpente lasciva; escabu
P

248 " A FREIRA

jei aguilhoado pelos farpões da carne que faziam gemer


S. Paulo; tentei sopesar orgulhosamente as remettidas
da natureza de homem ! Vãos esforços ! Lucta sem tre
guas nem esperança ! .. Cahi ! Que raiva, que embria
1

guez diabolica, que revelação e terror n’este cahir ! Tro


vejou-me na alma uma phraze de S. Jeronimo : Se um
monge eaho , um padre pedirá por elle; se um padre ca
hir , quem pedirá pelo padre ? Escruciaram -me remor
sos ; mas duraram pouco. Praticada a primeira culpa,
estava para sempre perdido ! Restava -me sustentar a
minha reputação... Era preciso conciliar a regularidade
a

apparente da vida com os prazeres de que eu já não po


dia abster-me... Eu queria á volta de mim mulheres... -
muitas mulheres ... : Soube então que as carmelitas de
Cracovia precisavam de capellão. 0

--Meu Deus!--- disse entre si o interlocutor..!


-Nada direi dos mysterios d'esta casa, onde as
doutrinas de Molina tem uma grande influencia ... As
fragilidades do corpo são menos punidas do que se cui
da... Mas a mim não me contentavam as pombas geme
bundas... Deixei-me vencer de uma louca paixão por
uma bella mulher... paixão que me excitou até á feroci
dade do crime ... Ella era casta e sem mancha... Um
amor contrariado a levára ao Carmelo... Oito annos ali
viveu chorando... Ao cabo d'este tempo, quiz fagir...
Condemnada pelas freiras a prisão perpetua, lá aa fui
arrancar uma noite ao seu.covil; e, como era impossivel
vencer -lhe a resistencia, narcotizei- a ...
---Horror -! exclamou o primo recuando.
-Oh! sim ... foi horrivel ! .. Essa desgraçada so'ti- ,
nha de seu a castidade do seu corpo, e essa mesma lhe
NO SUBTERRANEO . 249

roubei... como um ladrão e algoz! Ainda mais... A pre


lada soube tudo ... Esta mulher amava -me como eu ama
va a outra ... A vingança que ella exercitou sobre a des
graçada foi infamissima... Sotterraram -na em uma cova
tảo baixa, que ella' não podia erguer-se, e tão estreita
que não tinha espaço, onde deitar-se... Ahi esteve em
paredada sem ar, sem luz...
E o primo deixou consummar tamanha atrocidade!
-A prelada atterrou -me... e, depois, o meu unico
recurso era esquecer...
E esteve muito tempo n'essa cova a infeliz ?
E lá está ainda !-- disse o padre erguendo-se
Estava lá, quando sali de Cracovia. Eu quero, sim, que
ro antes de morrer que a luz e a liberdade sejam resti
tuidas a esta mulher...
Que devo fazer ?
-Avisar a justiça .
E se o primo é cumplice?
Que importa ? Vou morrer ... Escreve, escreve,
não te demores um instante, e manda a carta ao juiz do
crime... : S
-Zolpki tem fama de ser o melhor.
Zózimo passou a mão pela testa, e disse:
-Parece -me que ouvi pronunciar esse nome á des
graçada mulher... Escreve, escreve ...
-Para o não expor, irá ànonyma a carta .
Pois sim
-E o nome da freira ? 1

-Barbara Ubryk .
E ' aquella celebre formosa que ha vinte annos ves
tiu ",o habito com grande admiração de Cracovia?
250 A FREIRA

E '.
Gziorowski escreveu a carta que os leitores viram
no principio d'este livro.Aderessou - a a Zolpki, e levou - a
á caixa postal.
A noite do infermo passou serena .
Assim que foi dia, esperou os periodicos impacien .
temente . Parecia - lhe que o facto da sequestração de Bar
bara havia de irritar a geral indignação, e forçar a jus
tiça a exercer violentas repressões contra os mosteiros,
e em particular contra os do Carmelo .
Gziorowski não se apartava do criminoso, posto que
o affecto que lhe tivera estivesse extincto. Assim mesmo
a confissão do padre commoveu-o. Era-lhe, todavia, cus
toso occultar o involuntario desprezo que sentia, ao pas
so que lhe suavisava os paroxismos..
Ao quarto dia, o jornal Le Kraj, de Cracovia , re
feriu que, por ordem de um magistrado , o snr . Pamza,
chefe da policia, com authorisação do bispo, as portas
do convento de Wesola haviam sido arrombadas, e ahi
encontrada em um fosso subterraneo uma freira chama
da Barbara Ubryk , encarcerada desde 1848; e acrescen
tava que o capellão fôra preso, juntamente com a prela
da e com a sub -prioreza.
O artigo do Kraj, relatava miudamente a exaspera
ção dos habitantes de Cracovia, as desordens que tumul-.
tuavam na casa dos jesuitas, o sentimento de ira geral
contra os conventos, e o proposito de os supprimir que
preocupava o governo .
Zózimo ouviu serenamente a leitura do Kraj.
Barbara está livre - disse elle . - Metade do meu
dever está cumprido. A outra é o meu proprio castigo.
NO SUBTERRANEO . 251

-Que intenta fazer ?! - perguntou o primo.


-Deixa -me ficar... Tenho necessidade de me reco
lher e pensar... Soffro horriveis dôres ... Tem -me sido
preciso muita energia para domar o soffrimento , a fim de
ter este intervallo ... Está feito o que me cumpria fazer ...
A dôr não tarda ahi... a morte não tardará tambem .
-Eu estarei perto ; se precisar, chame-me.
--Aperta -me esta mão ... e perdoa-me. "
Quem se sentir innocente que te arremesse a
primeira pedra » disse Jesus.
1. O padre ficou só.
Prostrado na othomana, com os olhos cerrados, e os
labios trementes, assim se quedou immovel por espaço
de duas horas.
O que iria n’aquella alma atormentada por tantas
paixões preversas ? Que perdão pediria elle á justiça di
vina? Que exame faria em sua vida antes de ir dar con
tas d'ella ? Segredos do céo.
Mas duas lagrimas lhe rolaram nas faces.
Depois, levou aos beiços um frasco de opio.
.
Passaram mais duas horas. O primo, não querendo
contrariar a vontade do agonisante, esperava na saleta vi
sinha . A crcada entrou ahi então, dizendo que a justiça
estava na sala. Um dos magistrados disse, que vinha ali,
depois da inquisição feita no convento das carmelitas de
Cracovia; por quanto , uma freira interrogada no hospi
tal de S. Lazaro accusava o director d'aquelle conven
to, justamente o padre Zózimo, que elles procuravam .
-Queiram seguir-me, disse o dono da casa; mas
previno -08 de que ao desgraçado que vão interrogar se
deve a noticia do encarceramento de Barbara Ubryk .
252 A FREIRA

E abriu a porta . 1

Os magistrados foram direitos á othomana do doente .


-Queira acordal-o - disse um dos juizes ao primo.
--Este pegou na mão de Zózimo, e logó a deixou
cabir, por que estava fria. , ?,
E murmurou :
-Já está julgado por Deus, senhores.
Os magistrados sahiram sem proferir- palavra.
E depois que elles sahiram , Gziorowski voltou ao
#

quarto para cerrar os olhos d'aquelle criminoso cuja ago


nia fôra alumiada pelos terriveis clarões do remorso. Ao
abaixar - lhe as palpebras sobre as pupilas immoveis, quiz
estender-lhe os braços ao longo do tronco, e então viu
na mão do cadaver o frasco do opio que estava vazio .
spune

::

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3
1

XVII

PENULTIMO CAPITULO (*)

ARBARA Ubryk foi tratada com o maximo carinho


no hospital de S. Lazaro, para onde foi conduzida. O
interesse que ella inspirava não provinha somente do
sentimento piedoso pelas dôres que soffrera: é que toda
a cidade, e a Prussia, Austria e a França foram com
movidas pelo horrivel drama. Durante muitas semanas,
o Kraj de Cracovia , a Nova imprensa livre de Vienna ,
o Narodni, Listy, o Freindenblatt, a Correspondencia de
Berlim , o Czar, o periodico La Lys publicaram vehe
mentes artigos relatando não só os actos monstruosos
relativos á freira de Cracovia, mas tambem os factos de
prisão e tortura cujas provas augmentavam diariamente.
Não foi somente devassado o mosteiro de Wesola . Todos

(o) O auctor denomina penultimo este capitulo, como quem


diz que o ultimo está ainda pendente da vida de alguns persona.
gens da medonha tragedia.
254 A FREIRA

os subterraneos dos claustros de carmelitas e trapistas


deram victimas comprovativas de iguaes infamias. Fo
ram theatro de analogas scenas o mosteiro das irmãs
da misericordia, em Casolinenthall, muitos conventos da
Gallicia occidental , as carmelitas de Kradshum, o con
vento de Kamé, junto de Jodoina, o convento dos bene
dictinos de Mogilno, na provincia de Pozeu, finalmente,
o das carmelitas de Courtroi .
O caso de Cracovia, semelhante a um rastilho de
polvora, derramou -se por toda a Europa. Um geral ter
ror se apoderou dos espiritos, que perguntavam espavo
ridos de que servira abolir -se aa inquisição, e o supprimi
rem-se os votos perpetuos, se os crimes religiosos se pre
petravam ainda, graças á impunidade da concordata.
A effervescencia dos espiritos foi tamanha em Cra
covia, que os habitantes tentaram derruir o mosteiro das
Carmelitas. Foi mister que a tropa o defendesse.
No dia vinte e quatro de junho, passante de quatro
mil pessoas se reuniram no bairro de Wesola ; e como a
tropa impedisse a tentativa de invasão, o povo voltou -se
contra os outros conventos da cidade, principalmente de
jesuitas. Os padres principiaram por entrincheirar as
suas agigantadas portas; apagaram as luzes nas celas ;
e, tomados em todas as avenidas , esperaram os effeitos
da ira popular. A gritaria, os apupos e as ameaças re
tumbabam á roda do convento . A porta cedeu aos em
puxões, os vidros voaram em estilhas, e os jesuitas a
muito custo escaparam ás prezas dos furiosos. Fizeram
se prisões de populares, cujo resultado foi augmentar a
colera geral, e odio do povo contra freiras e frades. De
toda a parte sahiram reclamações a pedir que a nova
NO SUBTERRANEO . 255

legislação providenciasse energicamente, e a ameaçar


que a sociedade faria justiça, se os tribunaes a não fizes
sem no processo de Barbara . Os interrogatorios e de
poimentos não cessavam ; por maneira que, em tão gra
ve questão, todos os interesses eram pequenos, incluin
do propriamente a lucta diplomatica com Berlim .
A opinião publica em Cracovia, em Praga, Tries
tre, Gratz, Linz e Vienna já proclamou repetidas vezes
e vivacissimamente contra o espirito geral dos conven
tos, e mormente contra o dos jesuitas. Espera -se agora
0 resultado definitivo da reforma dos mosteiros e seus
estatutos .
Se monsenhor Galeski não mostrasse a firmeza e
espirito justiceiro que permittiram aos magistrados de
Cracovia penetrar o odioso mysterio do Carmelo de We
sola, quem sabe por quanto tempo ainda se perpetua
riam similhantes crimes ? A Hespanha já pede a sup
pressão dos conventos ; a Italia hade imital- a um dia .
Chegará por tanto a epocha em que de todo desappare
çam esses refugios mysteriosos, em que a vida se furta
ao imperio da lei, e o escudo d’um falso evangelho re
bate os golpes da espada da justiça.
Barbara recuperou pouco a pouco o socego de espi
rito. Recommendaram -lhe que não torturasse a memoria
a renovar a cadeia dos acontecimentos passados. A mu
dança de vida devia produzir aquellas melhoras . O pri
meiro allivio que recebeu a desgraçada foi uma sala es
paçosa, arejada, com muita luz, e janellas para um jar
dim . Era triste vêl - a infantilinente risonha com coisas
insignificantes para pessoas que houvessem menos pade
cido. A irritação acalmou -se lenta e progressivamente. Já
256 A FREIRA

sentia mais vigor e elasticidade no corpo. E já no rosto


lhe transpareciam uns traços d'aquella celebrada belleza,
que tão fatal lhe havia sido .
Zolpki ia todos os dias ao hospicio informar-se do
estado da enferma, sem ousar dar- se a conhecer, receio
so da fraqueza em que ella estava . Era muito para te
mer essa hora , tão solemne quanto dolorosa. Que diria
áquella martyr, elle que não tivera coragem de guardar
os luctos do seu amor, e da sua juventude !
Barbara fallava; mas não ligava conversação escor
reita. Phrases breves, exclamações, palavras desatadas , e
2

mais nada. Talvez que lá no seu intendimento as ideas


se incadeassem ; mas as pessoas, que a escutavam ou in
terrogavam , não a percebiam . Além4 de quê, Barbara in
fadava -se quando lhe faziam perguntas, e respondia cons
trangidamente . Lá o que ella dizia de si para comsigo,
indicava que as pessoas circumstantes lhe não davam o
minimo cuidado. Não se queixava da prelada e do pa
dre com grande colera . Invocava contra o director a jus
tiça divina, sem saber que o miseravel sacerdote se pu
nira dos crimes velhos com um crime novo, evadindo-se
dos tribunaes pela porta do suicidio.
Deliberou, finalmente, Zolpki, passados cinco dias,
entrar no hospital de S. Lazaro, Barbara estava socega
da n'essa occasião, e dormitava. Pousava o rosto livido
sobre a travesseira menos alva que os seus cabellos, e as
mãos translucidas e intrelaçadas assentavam sobre a co
berta . Dir -se - ia uma estatua de cêra n'aquella palidez e
immobilidade .
O magistrado assentou - se convulsivo á cabeceira da
doente .
NO SUBTERRANEO . 257

D'ahi a instantes, cuidou ouvir n'um suspiro o no


me « Zolpkiy, ao mesmo tempo que Barbara descerrava
as palpebras.
- O senhor aqui!-disse ella .
-Não me esperava ?
-Ha dois dias... antes d'isso não pensava quasi
nada... Lembra -me quo o vi... n'aquella noite do sub
terraneo ... ao clarão das tochas... Sim, vi ...
1
A religiosa tomou - se d'um profundo inlevo, e tor
nou, depois de instantes:
--Se 0o homem que eu amei não fosse morto ...
-Fallemos d'elle, -disse o magistrado apertando a
.

mão da freira - Quem lhe disse que elle morreu ?


-Vi-o eu cahir cortado de golpes defronte da por
taria do convento... Era já morto, quando os soldados
me'quizeram arrastar... Foi então que eu me réfugiei no
mosteiro ... Morreu ! ..
- Barbara,-replicou o juiz-a Providencia é mys
teriosa e impenetravel nos seus designios. A mim disse
ram-me que Zolpki não succumbiu aos ferimentos, pos
to que padeceų longo tempo, e parécia agonisar da vida
quando nas carmelitas dobraram os sinos por aquella
tảo sua amada...
-Sim... tão amada! ..
-Deus condemnou - os ambos a viver... '
-Tem a certeza d’isso? - exclamou a religiosa
Zolpki é vivo ! Deus do céo ! .. Mas ... já agora... para
quê? De que lhe serviria Barbara, este medonho esque
leto, fugido dos calabouços do Carmelo ? Poderia elle,
an menos, olhal- a com a piedade de amigo?.. Não... Zol
pki morreu ... Se elle vivesse, estaria aqui...
17
258 A FREIRA

- Talvez que elle receie não ser perdoado... !


-Que heide eu perdoar-lhe? Que posso eu exigir
d'elle, senão uma saudade da mulher morta ?
-E se elle, infiel a essa saudade, ou antes aba
fando o seu lucto no intimo da alma, carecido de fami
lia ... >

Barbara sorriu meigamente, e disse:


-Receia dizer-me que elle casou? O que eu quero
é que elle viva ... não importa que seja com outra ... mas
que viva! Desejo vêl-o, quero fallar-lhe... Quero apertar
as suas mãos, e fixal- o bem face a face ... Quero vêl-o,
como o estou vendo... O meu Deus! ... Por que está
olhando assim para mim? A minha memoria hesita...
Recordo -me... reconheço... Tu ! .. tul ..
E cahiu sem sentidos.
Desde este momentto, era quasi seguro o restabe
lecimento d'aquelle espirito. Quando voltou a si, Zolpki
estava ao seu lado .
-Não me havias tu promettido a liberdade? ..
disse ella .
Depois quiz saber a vida toda do querido da sua
mocidade, estremeceu quando ouviu proferir o nome
de Mina, e alegrou- se quando lhe ouviu o nome de
Vanda .
-Tu hasde trazer-m'a, sim ? e depois hasde deixal-a
cazar com o homem que ama...
Nesse mesmo dia, Vanda era auctorisada por seu
pai a dizer a Wladimir que seria recebido como noivo
em sua casa .

O processo relativo ao encarceramento de Barbara


NO SUBTERRANEO . 259

Ubryk durou longo tempo. A sociedade reclama o cas


tigo de Maria Wenzyk; mas a familia da prelada éé po
derosa ; o clero faz supremos esforços por abafar aa infa
mia ; os arcebispos e o papa entraram n'esse conloio; e,
por fim , baixou ordem do governo para que o processo
fosse trancado .

FIM .
པའོ།༧
INDICE

Cap. Pag .
I. Uma carta anonyma . 7

II . Uma casa murada 23


III . O in pace 43

IV. A Virgem das tranças d'ouro 59


V, 0 poema eterno 75

VI . Morta e viva 91

VII. O recinto da penitenciaria . 109

VIII. As nupcias celestiaes . 121

IX. O aprisco do Senhor . 135


X. O afilhado do doutor . . 151

XI. A reliquia de S. Marciano . 163

XII. A patrulha nocturna . 181

XIII. O tribunal das carmelitas . . 195

XIV . Torturas . 219

XV . Zolpki 227

XVI. Expiação do padre Zózimo 243

XVII . Penultimo capitulo 203


જ-
છ.ે
690277
OFT

PER 29 1966
9ZAR05D30S1
UNIVERSITY OF MINNESOTA
wils
869C277 OFr
Castelo Branco, Camilo, 1825-1890 .
A freira no subterr aneo : romance hist

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MINITEX

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