SagaWilliamDietrich02 AChavedeRoseta
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Para minha filha Heidi A posse do saber no elimina o maravilhamento e o mistrio. Sempre h mais mistrio. Anais Nin Caros leitores, Ethan Gage est encrencado de novo, e vocs so os nicos culpados! Graas maravilhosa acolhida e interesse que tiveram para com As Pirmides de Napoleo, e a poca pitoresca que aquele romance descreve, o meu americano jogador, "eletricista", protegido de Benjamin Franklin, atirador certeiro e mulherengo de meiapataca (a sorte de Ethan com as senhoras inegavelmente irregular) est de volta em A Chave de Roseta. Desta vez, ele se v metido na invaso da Terra Santa por Napoleo Bonaparte e na ascenso do general ao poder na Frana, tudo isso em 1799. Muitos de vocs se
perguntam o que teria acontecido Astiza, a namorada de Ethan, e ao conde Alessandro Silano, o vilo, depois que os dois despencam no fecho do livro anterior. Escrevi A Chave de Roseta para descobrir o mesmo. Assim como As Pirmides de Napoleo, o novo romance baseia-se num episdio real da assombrosa carreira do general francs, combinando os primrdios da cincia da eletricidade e os ensinamentos de Franklin com um mistrio - apoiado em fatos - sobre o Livro de Tot, os templrios, o misticismo judaico e a Pedra de Roseta. As batalhas realmente aconteceram, e muitas das personagens do livro (Sidney Smith, o aventureiro ingls; Antoine de Phlippeaux, o francs fiel ao Antigo Regime e rival de Napoleo; Al-Djezzar, ou "o Aougueiro"; Gaspard Monge, o matemtico; e Haim Farhi, o judeu desfigurado) existiram. No trabalho de pesquisa para esta narrativa, chapinhei nos tneis subterrneos de Jerusalm, percorri as muralhas de Acre e subi as trilhas da cidade perdida de Petra. Igualmente verdadeiro o golpe de Estado que levou Napoleo ao poder na Frana. A maneira pela qual ele transformou seu fracasso na Terra Santa em triunfo em Paris o mistrio histrico que est no mago desta narrativa. Qual era o segredo de Napoleo? Recebi mensagens de muitos leitores que apreciaram o ritmo rpido, o humor irnico e a pesquisa cuidadosa da primeira caa ao tesouro levada a efeito por Ethan, e penso que vocs tero mais dessas caractersticas em A Chave de
Roseta. J nas primeiras pginas destas novas peripcias, mesmo quem ainda no conhece Ethan Gage e suas aventuras, ser imediatamente conquistado pela maneira de ele de ver as coisas. A Chave de Roseta vem para completar o ciclo da narrativa, que ao fim me deixa um pouco sem flego aps tantas aventuras. Mas sempre h mais mistrio... Boa leitura. William Dietrich
PARTE 1 -1Encararmos mil mosquetes apontados para o peito tende mesmo a nos fazer ponderar se no tomamos a deciso errada. E ponderar, eu ponderei - com cada boca de mosquete to escancarada quanto a boca de um co de rua a querer nos morder num beco do Cairo. Mas no: embora eu seja humilde ao extremo, tambm tenho minhas pretenses superioridade moral e, no meu entender, no fora eu quem se perdera, mas o exrcito francs. Coisa que eu poderia ter explicado a meu ex-amigo, Napoleo Bonaparte, se ele no estivesse l nas dunas, fora do alcance da minha voz, desinteressado e irritantemente distrado, com seus botes e suas medalhas reluzindo ao sol do Mediterrneo. Na primeira vez em que eu estivera numa praia com Bonaparte, quando o homem desembarcara seu exrcito no Egito, em 1798, ele me disse que os afogados ali seriam imortalizados na histria. Agora, nove meses depois, do lado de fora do porto palestino de Jafa, eu que viraria histria. Os granadeiros franceses preparavam-se para atirar em mim e nos infelizes cativos muulmanos entre os quais eu fora jogado - e, mais uma vez, eu, Ethan Gage, tentava achar um jeito de passar a perna no destino. Vede bem, era uma execuo em massa, e eu cara em
desgraa junto ao general de quem um dia procurara ser amigo. Ah, quanto cho ns dois havamos percorrido em nove curtos meses! Entre os coitados dos prisioneiros otomanos, fui me enfiando atrs do maior que achei, um gigante negro do alto Nilo que calculei ter espessura suficiente para deter uma bala de mosquete. Todos ns havamos sido arrebanhados, tal qual gado perplexo, numa linda praia. Os olhos se mostravam arregalados e brancos at nas caras mais escuras, e o vermelho-escarlate, o amarelo-nata, o verdeesmeralda e o azul-safira dos uniformes turcos estavam sujos da fumaa e do sangue aps a cidade ter sofrido pilhagem atroz. Havia marroquinos esbeltos e geis, sudaneses altos e macambzios, albaneses plidos e truculentos, soldados de cavalaria circassianos, artilheiros gregos, sargentos turcos - a mistura de tropas de um vasto imprio, todos humilhados pelos franceses. No apenas eu ficava confuso diante daquele falatrio ininteligvel, mas tambm eles freqentemente no entendiam uns aos outros. A multido se mexia para l e para c, com os oficiais j mortos, e tal desordem oferecia um contraste com as fileiras impecveis de seus vitoriosos carrascos, dispostos como se estivessem desfilando em parada. A resistncia otomana enraivecera Napoleo (no se deve jamais colocar numa estaca a cabea de emissrios), e o nmero de prisioneiros famintos ameaava tornar-se um estorvo para a fora
invasora. Assim, fizeram-nos marchar atravs dos laranjais at uma faixa de areia com o formato de um crescente, logo ao sul do porto capturado, com o mar espumante adquirindo um maravilhoso tom verde e dourado nos baixios, e a cidade queimando, j sem chamas, no alto do morro. Eu enxergava algumas frutas que ainda se prendiam aos galhos de rvores estouradas pelos projteis. Meu ex-benfeitor e recente inimigo, montado em seu cavalo maneira de um Alexandre, estava (pelo desespero e pelo clculo extremo) a ponto de exibir uma crueldade de que seus prprios marechais falariam, aos cochichos, por muitas campanhas ainda. E, no entanto, ele agora no tinha sequer a cortesia de prestar ateno! Estava lendo outro daqueles romances sorumbticos, seguindo o hbito de devorar uma pgina, arranc-la e pass-la aos oficiais. Eu, descalo e ensangentado, estava a apenas vinte milhas em linha reta do lugar onde Jesus Cristo morrera para salvar o mundo. Meus dias imediatamente anteriores, de perseguio, tormenta e guerra, no me haviam convencido de que os esforos de nosso Salvador conseguiram melhorar de todo a natureza humana. "Preparar!" Puxaram-se os ces de um milhar de mosquetes. Eu tivera de marchar com os outros prisioneiros para a praia porque os sicrios de Napoleo haviam me acusado de espio e traidor. E, sim, as circunstncias tinham dado um qu de verdade a tal caracterizao. Mas de modo
algum eu comeara com esse objetivo. Era simplesmente um americano em Paris, algum cujos incipientes conhecimentos de eletricidade (e a necessidade de fugir a uma injustssima acusao de homicdio) fizeram que fosse includo na companhia dos cientistas, ou savants, de Napoleo durante a brilhante conquista do Egito pelo general. Eu tambm desenvolvera aptido para estar do lado errado na hora errada. Levara tiro da cavalaria mameluca, da mulher que eu amava, de degoladores rabes, de belonaves britnicas, de fanticos muulmanos, de pelotes franceses - e olhem que sou um sujeito afvel! Minha mais recente nmesis francesa era um patife chamado Pierre Najac, um assassino e larpio que no conseguia superar o fato de que certa vez eu o baleara na diligncia para Toulon, quando tentou me roubar um medalho sagrado. E uma histria complicada, como atesta o volume anterior. Najac reaparecera em minha vida tal qual uma dvida que nos persegue, e ele, cutucando-me as costas com um sabre de cavalaria, obrigara-me marchar na fileira de prisioneiros. O canalha estava antegozando meu iminente passamento com a mesma sensao de triunfo e asco que se tem ao esmagar uma aranha particularmente irritante. J eu lamentava no ter apontado um tantinho mais alto, e duas polegadas para a direita, quando atirara nele. Como j tive ocasio de observar, tudo parece comear com a jogatina. L em Paris, fora um jogo de cartas o que me rendera o misterioso
medalho e dera incio encrenca. Agora, o que parecia um jeito simples de recomear - tirar cada xelim dos perplexos marujos da HMS Dangerous antes que os britnicos me desembarcassem na Terra Santa - no resolvera absolutamente nada e, podia-se argumentar, levara-me presente enrascada. Permitam que eu repita: o jogo um vcio, e tolice confiar na sorte. "Apontar!" Mas estou colocando o carro na frente dos bois. Eu, Ethan Gage, passei a maior parte dos meus trinta e quatro anos tentando ficar longe de demasiada confuso e de demasiado trabalho. Como por certo diria o grande e falecido Benjamin Franklin (meu mentor e ex-empregador), essas duas ambies so to opostas quanto a eletricidade positiva e a negativa. O anseio por uma, no trabalhar, vai quase certamente fazer gorar a outra, no arrumar confuso. Mas, assim como a dor de cabea que se segue ao lcool ou traio que causam as belas mulheres, trata-se de uma lio que esquecemos com a mesma freqncia em que as aprendemos. Foi minha averso ao trabalho pesado o que reforou meu gosto pela jogatina, rendendo o medalho, que me levou ao Egito com metade dos viles do mundo em meu encalo, e o Egito trouxe minha linda, e perdida, Astiza a mim. Ela, por sua vez, convencera-me de que precisvamos salvar o mundo do amo de Najac, o conde e feiticeiro franco-italiano Alessandro Silano. Tudo isso, meio sem que eu esperasse, colocou-me do lado contrrio a
Bonaparte. No decorrer dos acontecimentos, apaixonei-me, encontrei uma entrada secreta para a Grande Pirmide e fiz as descobertas mais surpreendentes de todos os tempos, s para perder tudo o que eu prezava quando me vi obrigado a fugir de balo. Eu avisei que era uma histria complicada. Fosse como fosse, minha bela e exasperante Astiza - primeiro candidata a assassinar-me, depois minha serva, depois sacerdotisa do Egito cara do balo no Nilo, junto com meu inimigo, Silano. Desde ento, eu vinha tentando desesperadamente saber o paradeiro dela, com aflio redobrada pelo fato de que as ltimas palavras de meu inimigo a Astiza foram: "Sabes que ainda te amo!". Que tal uma coisa dessas para vir nos espreitar o pensamento noite? Qual era afinal o relacionamento entre Astiza e Silano? Foi por isso que concordei em deixar que sir Sidney Smith, aquele ingls maluco, desembarcasse-me na Palestina logo adiante do exrcito invasor de Bonaparte, para que eu fizesse investigaes. Uma coisa levou a outra, e agora l estava eu, encarando mil bocas de mosquete. "Fogo!" Antes que eu lhes conte o que aconteceu quando os mosquetes cuspiram fogo, talvez deva voltar ao ponto em que se interrompera meu relato anterior, no final de outubro de 1798, quando me vi sem escapatria no convs da fragata
Dangerous, que rumava para a Terra Santa com velas enfunadas, lpida, singrando o mar espumoso. Quo animado era tudo aquilo - a bandeira inglesa desfraldada, os robustos marujos a puxar as rijas cordas de cnhamo com uma cantoria enrgica, os altivos oficiais de chapu bicorne a percorrer o castelo de popa, os vrios canhes a orvalhar-se pela espuma do Mediterrneo, as gotinhas a secar em estrelas de sal. Em outras palavras, era justamente o tipo de iniciativa militante e viril que eu aprendi a detestar, tendo escapado por pouco carga violenta de um guerreiro mameluco na Batalha das Pirmides e ao sem-nmero de traies de um rabe adorador de cobras chamado Achmed bin Sadr, o qual eu finalmente despachara para um inferno condizente. Eu estava um pouco cansado de aventuras frenticas e mais do que disposto a voltar correndo para Nova York e assumir um belo emprego de contador, escriturrio ou talvez despachante, cuidando de testamentos chatssimos para vivas trajadas de preto, e proles ingnuas e nada merecedoras. E, uma escrivaninha e uns livros-caixa empoeirados - aquilo sim vida! Mas sir Sidney no queria saber de nada disso. Pior: eu enfim decidira o que era importante para mim no mundo - Astiza. Eu no poderia simplesmente arrumar passagem para casa sem saber se ela sobrevivera queda com o vil Silano e se poderia, de algum modo, ser resgatada. A vida era mais simples quando eu no tinha princpios.
Smith estava paramentado como almirante turco, arquitetando uma borrasca de planos e mais planos. Recebera a incumbncia de ajudar os turcos e seu Imprio Otomano a frustrarem mais avanos dos exrcitos de Bonaparte do Egito para a Sria, j que a esperana do jovem Napoleo era abocanhar para si um imprio no Oriente. Sir Sidney precisava de aliados e informaes e, aps ter-me pescado do Mediterrneo, dissera-me que seria vantajoso para ns dois se eu me unisse a ele. Assinalou que seria temerrio de minha parte tentar voltar para o Egito e encarar sozinho a ira dos franceses. Na Palestina, por outro lado, eu poderia fazer indagaes sobre o paradeiro de Astiza, ao mesmo tempo que avaliava as diversas faces que poderiam alinhar-se contra Napoleo. "Jerusalm!", gritara sir Sidney. Ser que ele enlouquecera? Segundo todos os relatos, aquela cidade semi-esquecida, um buraco otomano tomado pela sujeira e histria, pelo fanatismo religioso e pela doena, s sobrevivera impingindo o turismo obrigatrio aos crdulos e facilmente logrados peregrinos de trs religies. Mas, quando se era um guerreiro e maquina-dor ingls como Smith, Jerusalm tinha a vantagem de ser uma encruzilhada da complexa cultura da Sria, um antro poliglota de muulmanos, judeus, greco-ortodoxos, catlicos, drusos, maronitas, turcos, bedunos, curdos e palestinos, todos recordando ofensas feitas uns aos outros vrios milnios antes.
Sinceramente, eu nunca me aventuraria nem a cem milhas daquele lugar, e s o fiz porque Astiza convenceu-me de que Moiss roubara das entranhas da Grande Pirmide um livro sagrado da antiga sabedoria, e de que os descendentes dele haviam levado o livro para Israel. Com isso, Jerusalm se tornava o paradeiro mais provvel do objeto. At aquele momento, o tal Livro de Tot s rendera dissabores. Mas, se ele de fato contivesse as chaves para a imortalidade e o domnio do universo, eu no podia de jeito nenhum esquec-lo, podia? De um modo ilgico, havia mesmo lgica em ir para Jerusalm. Smith me imaginava um cmplice de confiana, e, a bem dizer, tnhamos realmente uma espcie de aliana. Eu o conhecera num acampamento cigano, depois que baleei Najac. O sinete que Smith me dera salvou-me de ser enforcado no mastro pelo almirante Nelson, aps aquela baguna no Nilo. E Smith era um heri de verdade, que queimara navios franceses e escapara de uma priso parisiense fazendo sinal das grades da janela para uma de suas excompanheiras de cama. Depois que peguei um tesouro faranico sob a Grande Pirmide, perdi-o para no me afogar e roubei um balo de meu amigo e colega savant Nicolas-Jacques Conte; fiz um pouso forado no mar e me vi encharcado e totalmente desprovido de dinheiro no castelo de popa da Dangerous, com o destino me pondo outra vez cara a cara com sir Sidney e me deixando to merc dos britnicos quanto eu estivera dos franceses. Meus sentimentos (de
que eu j estava bastante farto de guerra e tesouros e me encontrava pronto para voltar para casa, na Amrica) foram alegremente desconsiderados. "Assim, Gage, enquanto investigas na Palestina sria o paradeiro dessa mulher com quem te encantaste, podes tambm sondar os cristos e judeus a respeito da possvel resistncia a Bonaparte", dizia-me Smith. "Pode ser que eles tomem o partido dos franceses, e, se Bonaparte estiver levando um exrcito para l, nossos amigos turcos vo precisar de toda a ajuda que puderem conseguir." Ele me segurou pelo ombro. "Eu penso que s justamente o homem para esse tipo de trabalho: esperto, afvel, errante e desprovido de escrpulos e crenas. As pessoas te contam coisas, Gage, porque acham que no tens importncia!" " s porque sou americano, e no britnico nem francs..." "Exatamente. Perfeito para o que queremos. Djezzar vai se impressionar com o fato de que at um homem superficial como tu tenha abraado a causa." Al-Djezzar, cujo nome significava "o Aougueiro", era o notoriamente cruel e desptico pax de Acre, com quem os britnicos contavam para combater Napoleo. Uns e outros encantados com a perspectiva, disso eu tinha certeza. "Mas s tenho rudimentos de rabe e no sei nada sobre a Palestina", observei sensatamente. "Isso no problema para um agente sagaz e intrpido como tu, Ethan. Em Jerusalm, a Coroa
tem um colaborador de codinome Jeric, um ferreiro de ofcio que j serviu na nossa marinha. Ele pode te ajudar a procurar essa Astiza e trabalhar para ns. Jeric tem at contatos no Egito! Alguns dias com tua manha diplomtica, mais a oportunidade de caminhar por onde andou o prprio Jesus, e estars de volta com nada mais srio que poeira nas botas e alguma relquia sagrada no bolso, tendo solucionado todos os teus problemas. mesmo formidvel como essas coisas se resolvem. Entrementes, vou ajudar Djezzar a organizar a defesa de Acre no caso de Bonaparte marchar para o norte, como vens nos alertar. Logo, logo, seremos considerados dois verdadeiros heris, festejados nos sales de Londres!" Sempre que as pessoas comeam a nos elogiar e usar palavras como "formidvel", hora de checar se j no nos furtaram nada. Mas - pela batalha de Bunker Hill! - eu estava mesmo curioso a respeito do Livro de Tot e vinha me afligindo com a lembrana de Astiza. O sacrifcio que ela fizera para salvar-me fora o pior momento da minha vida (sinceramente, pior at do que quando meu adorado fuzil da Pensilvnia explodiu), e o buraco no meu corao era to grande que uma bala de canho podia atravessar por ali sem esbarrar em nada pelo caminho. Alis, boa frase para usar com uma mulher, e eu queria tentar essa tirada com Astiza... Assim,
claro que eu disse sim - a palavra mais perigosa do idioma. "Mas vede - estou sem roupas, sem armas e sem dinheiro", assinalei. A nica coisa que eu conseguira reter da Grande Pirmide haviam sido dois pequenos serafins de ouro, uns anjinhos ajoelhados que Astiza afirmava provirem do cajado de Moiss e que eu, um tanto vergonhosamente, enfiara nas ceroulas. Minha primeira idia fora penhor-los, mas eles adquiriram valor sentimental, apesar de me provocarem coceira. No mnimo, no mnimo, eram uma reserva de metal precioso que eu preferia no revelar. Ento, que Smith me desse uma verba, j que estava to ansioso para alistar-me. "Esse teu gosto por roupa rabe vem perfeitamente a calhar", disse o capito-de-mare-guerra britnico. "E ganhaste um bronzeado bem trigueiro, Gage. Para passar por nativo, basta arranjar turbante e capa em Jafa. Quanto a levar alguma arma inglesa, isso poderia te fazer parar numa cadeia turca se desconfiarem que s espio. O que vai te manter a salvo a sagacidade. Mas eu posso te emprestar uma lunetinha. Ela formidvel, perfeita para acompanhar claramente os movimentos de tropas." "Ainda no falastes em dinheiro." "A verba rgia ser mais que suficiente." Ele me deu uma pequena bolsa com uma quantidade variada mas reduzida de moedas de prata, bronze e cobre: reais (espanhis), piastras
(otomanas), um copeque (russo) e dois risdales (holandeses). Ah, a verba governamental! "Mas isto mal paga o desjejum!" "No posso te dar esterlinas, Gage, porque elas te denunciariam num instante. Mas s homem de muita capacidade, hein? Estica os tostes! Deus sabe que o Almirantado tem de fazer a mesma coisa!" Bem, eu j podia comear a mostrar capacidade ali mesmo, pensei com meus botes: talvez eu e os tripulantes que no estivessem de servio pudssemos matar o tempo com um joguinho cordial de cartas. Quando eu ainda no cara em desgraa como savant na expedio de Napoleo ao Egito, gostava de conversar sobre as leis da probabilidade com figuras ilustres como o matemtico Gaspard Monge e o gegrafo EdmeFranois Jomard. Eles me haviam estimulado a pensar de modo mais sistemtico sobre probabilidade e vantagem da banca, aguando minhas habilidades de jogador. "Ser que posso chamar vossos homens para um carteado?" "Hum... Cuidado para que eles no fiquem com o teu desjejum!"
Comecei com brelan, que no ruim para jogar com marujos simplrios, dependendo como o blefe. Nisso, eu trazia alguma prtica dos sales de Paris (s o Palais Royale tinha cem salas de jogo em meros seis acres), e os honrados marujos britnicos no eram preo para algum que eles logo estavam chamando de francs duas-caras. Por conseguinte, aps haver tirado deles o mximo possvel, para tanto fingindo que tinha cartas melhores (ou insinuando estar vulnervel quando, na realidade, a mo me deixava mais armado que a cinta repleta de ferros e bocas de fogo de um bei mameluco), propus jogos que pareciam exigir mais sorte que outra coisa. Marinheiros e tenentinhos que j haviam perdido meio ms de soldo num jogo de habilidade vieram ansiosamente apostar o soldo inteiro num jogo pura e simplesmente de azar. S que, naturalmente, as coisas no seriam assim. No lansquen, a banca (eu) lana uma aposta que os outros precisam igualar. Viram-se duas cartas, a da esquerda a minha, a da direita a do apostador. Eu ento comeo a virar outras cartas at achar par para uma das duas primeiras. Se o par da carta da direita, ganha o apostador; se o par da carta da esquerda, ganho eu. As chances so iguais, no mesmo? Mas, se as duas primeiras cartas so iguais, a banca ganha de imediato, numa ligeira vantagem matemtica que, aps vrias horas, deu-me boa
margem de lucro e os fez implorar por um jogo diferente. "Vamos ento experimentar fara", sugeri. "J virou coqueluche em Paris, e tenho certeza de que a sorte dos senhores vai mudar. Afinal, sois meus salvadores, e estou em dvida convosco." "E, vamos recuperar o dinheiro que perdemos, ianque trapaceiro!" Fara, entretanto, um jogo ainda mais vantajoso para a banca, pois esta ganha automaticamente a primeira carta. E no se conta a ltima carta no baralho de cinqenta e duas, a qual do apostador. Ademais, a banca ganha sempre que as cartas so iguais. No obstante a obviedade de minha vantagem, eles acharam que com o tempo levariam a melhor sobre mim, jogando a noite toda, quando o que aconteceu foi exatamente o oposto: quanto mais o jogo se estendia, mais minha pilha de moedas aumentava. Quanto mais eles pensavam que a sorte inevitavelmente me abandonaria, mais minha vantagem se tornava inexorvel. Numa fragata que ainda no apresara nada, os ganhos eram parcos, mas havia tanta gente querendo levar a melhor sobre mim que, quando avistamos o litoral da Palestina, minha pobreza j se remediara. Meu velho amigo Monge teria simplesmente dito que a matemtica reina soberana. Quando se tira dinheiro de um homem, importante tranqiliz-lo com a certeza de que ele jogou brilhantemente e foi apenas vtima dos caprichos do azar, e ouso dizer que distribu tamanha solidariedade em tal grau que me tornei
amigo do peito de figuras que eu espoliara ao extremo. Agradeceram-me por eu ter feito quatro emprstimos a juros altos aos perdedores mais lamentveis, e isso enquanto eu embolsava lucro suficiente para instalar-me em Jerusalm em grande estilo. Quando devolvi o medalho com retrato de namorada que um dos tolos penhorara, eles j estavam prestes a me eleger presidente. Dois de meus oponentes, porm, mantiveram-se teimosamente insensveis a tal charme. "Tens a sorte do capeta", observou com olhar furioso um enorme fuzileiro naval, de cara vermelha, que atendia pelo bastante preciso apelido Big Ned. Ele disse aquilo enquanto contava e recontava os dois tostes que lhe restaram. "Ou a sorte dos anjos", aventei. "Jogaste de modo magistral, meu camarada, mas parece que a divina providncia tem sorrido para mim nesta longa noite." Dei um sorriso de orelha a orelha, procurando parecer to afvel quanto Smith me descrevera. Em seguida, tentei reprimir um bocejo. "Homem nenhum consegue ser to sortudo por tanto tempo." Dei de ombros. "Fui apenas feliz." "Eu quero que jogues com os meus dados", disse o fuzileiro, com mirada to estreita e torta quanto uma viela de Alexandria. "A veremos se s mesmo sortudo." "Meu caro nauta, uma das marcas do homem inteligente a relutncia em confiar nos dados de outrem. Os dados so os olhos do demnio."
"Ests com medo de me dar a chance de recuperar o que perdi?" "No, estou simplesmente satisfeito em jogar o meu jogo e deixar-te jogar o teu." "Ora, ora, acho que esse americano meio covardo", escarneceu o amigo do fuzileiro, um homem mais atarracado e mais feio que chamavam de Little Tom. "Est morrendo de medo de dar uma colher de ch a dois honrados fuzileiros..." Se Ned tinha a massa de um cavalo, Tom ostentava a vileza compacta de um co de rinha. Comecei a ficar receoso. Outros marujos acompanhavam o dilogo com interesse cada vez maior, j que eles tambm no reaveriam seu dinheiro de nenhuma outra maneira. "Muito pelo contrrio, senhores - nas cartas, j nos batemos a noite toda. Lamento que tenhais perdido, estou certo de que destes o melhor de vs e admiro tal perseverana, mas talvez devsseis estudar a matemtica das probabilidades. o homem quem faz a prpria sorte." "Estudar o qu?", quis saber Big Ned. "Eu acho que ele quis dizer que trapaceou", interpretou Little Tom. "Ora, no h por que falarmos em desonestidade." "E, mas os fuzileiros esto pondo em dvida a tua honra, Gage", declarou um capito-tenente de quem eu abiscoitara cinco xelins. Ele disse aquilo com mais entusiasmo do que eu gostaria de ter ouvido. "Consta que s um atirador e tanto e que lutaste bastante bem contra os franceses. No vais
deixar esses fuzileiros questionarem o teu bom nome, vais?" "Claro que no, mas todos vimos que foi um joguinho jus..." Big Ned martelou o punho contra o convs, e um par de dados saltou de sua manopla como se fossem pulgas. "Devolve o nosso dinheiro, joga com estes dados ou encontra-me no convs da bateria ao meio-dia." Ele disse isso num resmungo, com um sorriso afetado apenas o suficiente para irritar. Ficou claro que Ned era de um tamanho tal que no estava acostumado a perder. "Ao meio-dia j estaremos em Jafa", respondi, saindo pela tangente. "Ento, teremos ainda mais tranqilidade para discutir o assunto l entre os canhes." Bem, o que eu devia fazer estava suficientemente claro. Levantei-me. ", precisas mesmo aprender uma lio. Que seja ao meio-dia, ento." Os presentes aprovaram aos brados. Para que a notcia da briga se espalhasse por toda a Dangerous, s demorou um pouquinho mais do que a fofoca de um encontro amoroso clandestino levava para ir de uma ponta a outra da Paris revolucionria. A marujada sups que seria uma luta na qual eu, por conta de cada tosto que ganhara, me debateria dolorosamente ante o peso da mo e a fora dos braos de Big Ned. A, quando j tivesse sido amassado o bastante, eu imploraria para devolver todos os meus ganhos do jogo. A fim de distrair desse futuro desagradvel minha to frtil imaginao, subi ao castelo de
popa para observar nossa aproximao de Jafa, testando a nova luneta. Era um telescopiozinho de viso muito ntida, e o principal porto da Palestina, meses antes de Napoleo vir a tom-lo, constitua-se de um farol numa costa que de resto era plana e nevoenta. Jafa coroava uma colina com fortes, torres e minaretes, e suas construes de teto abobadado desciam em degraus para todos os lados, qual pilha de tijolos. Tudo estava cercado por uma muralha que, na direo do mar, encontrava o cais do porto. Terra adentro, havia laranjais e palmeiras e, mais alm, campos dourados e pastagens castanhas. Canhes negros se projetavam de seteiras, e, mesmo de duas milhas de distncia, ouvamos os gemidos dos muezins a chamar os fiis para a prece. Em Paris, eu provara laranjas de Jafa, afamadas porque a casca espessa possibilita que sejam transportadas para a Europa. Havia tantas rvores frutferas que a prspera cidade mais parecia um castelo na floresta. Estandartes otomanos tremulavam brisa morna do outono, tapetes pendiam dos balastres, e o cheiro dos fogos a carvo vegetal chegava gua. Prximo costa, havia alguns recifes de aspecto perigoso, sinalizados por pequenos anis concntricos brancos, e o pequeno porto estava cheio de dhows e faluchos. Assim como as outras embarcaes grandes, ancoramos em mar aberto. Uma flotilha de pequenas balsas rabes veio ver que negcios poderia oferecer, e me preparei para partir.
Depois, claro, que eu tivesse me acertado com aquele fuzileiro descontente. "Gage, eu soube que a tua famosa sorte te meteu num rolo com Big Ned", disse sir Sidney, passando-me o saco de bolachas de bordo que, supunha-se, deveria bastar para me alimentar at Jerusalm. Os ingleses no so conhecidos pela boa culinria. "O homem um touro e tem cabea de arete, sendo to tapado quanto. Tens algum plano para embrom-lo?" "Sir Sidney, eu at tentaria jogar com os dados de Big Ned, mas desconfio que, se eles fossem um tantinho mais pesados, fariam esta fragata adernar." Ele riu. ", ele j usou de trapaa com mais de um desses infelizes que foram alistados na marra - e tem msculos para calar qualquer reclamao. Big Ned no est acostumado a perder. No foram poucos os que gostaram de ver-te passar a perna nele. Que pena que, na briga, essa tua cachola v pagar o pato." "Podereis proibir a luta." "A tripulao est inflamada para diabo e s vai poder desembarcar em Acre. Um bom arrancarabo ajuda a sosseg-los. Mas pareces bem lpido, hein? Faze-o danar!" Deveras. Desci para procurar Big Ned e o achei perto do fogo da cozinha, onde ele ia passando banha na imponente musculatura, para que eu no tivesse como segur-lo. Brilhava tal qual um ganso na mesa de Natal. "Poderamos ter uma palavrinha em particular?"
"Ests arregando, no?" Abriu um sorriso de orelha a orelha. Seus dentes pareciam grandes como as teclas de um desses pianos modernos. "Acabo de ponderar o assunto e cheguei concluso de que o nosso inimigo comum Bonaparte e de que no h por que hostilizarmos um ao outro. Mas ainda tenho o meu amor-prprio. Vem comigo e vamos acertar tudo longe dos olhares dos outros." "De jeito nenhum. Vais devolver o que deves no apenas a mim, mas a cada marujo e fuzileiro deste navio!" "Impossvel. No sei quem deve o que a quem. Mas, se me acompanhares agorinha mesmo e prometeres me deixar em paz, eu te devolvo o dinheiro em dobro." Agora os olhos deles brilhavam, gananciosos. "Maldito sejas - vais me dar o triplo!" "Ento vem at a coberta inferior para que eu lhe mostre a minha bolsa sem criar escarcu." Big Ned bamboleou atrs de mim como um urso de circo obtuso, mas vido. Descemos parte mais baixa da fragata, l onde se guardavam os suprimentos. "Escondi o dinheiro aqui embaixo, para que ningum o furtasse", eu disse, levantando um alapo que levava ao poro. "Ben Franklin, o meu mentor, afirmava que a riqueza aumenta as preocupaes, e atrevo-me a dizer que ele tinha razo. Farias bem em te lembrares disso." "Que se dane o rebelde do Franklin! Ele devia ter sido enforcado!"
Enfiei o brao pelo alapo. "Ai, ai, ai - a bolsa saiu do lugar... Acho que caiu..." Olhei bem em volta e, erguendo a vista para aquele Golias ameaador, usei do mesmo desamparo fingido que vrias mulheres haviam usado para comigo. "Perdeste quanto no jogo? Trs xelins?" "Por Deus, foram quatro!" "Ento triplica isso..." "Justamente - agora ests me devendo dez!" "O teu brao mais comprido que o meu. Ser que podes me dar uma ajuda?" "Estica o brao tu mesmo!" "Eu s consigo tocar a bolsa com a ponta dos dedos. Talvez possamos achar um gancho..." Fiquei ali de p, com cara de perdido. "Ianque canalha..." Ele se abaixou e enfiou a cabea pelo alapo. "No estou vendo porcaria nenhuma." "Ali, direita - vs aquele brilho da prata? Estica o brao o mais que puderes." Big Ned resmungou, com o tronco atravessado no alapo, espichando-se e tateando. Nisto, com uma vigorosa levantada, eu o fiz seguir o resto do caminho para o poro. O homem era pesado como um saco de farinha, mas isso, depois que ele j estava mesmo indo abaixo, foi uma vantagem. Big Ned caiu, ouviu-se um baque e um chape, e, antes que ele pudesse urrar bastante na gua sebosa do fundo do navio, eu j fechara e trancara o alapo. Cus, que linguajar vinha agora l de baixo! A fim de abaf-lo, rolei alguns barris de gua para cima do alapo.
Depois, peguei a bolsa de onde estava realmente escondida (entre dois barris de bolacha de bordo), enfiei-a nas calas e subi saltando, de mangas arregaadas, para o convs da bateria. "Os sinos do navio deram meio-dia!", gritei. "Em nome do rei Jorge, onde foi que ele se meteu?" Ergueu-se um coro a chamar Big Ned aos gritos, mas no houve resposta. "Ele se escondeu, ? Bem, no vou culp-lo por no querer me enfrentar." S para manter as aparncias, ensaiei movimentos de boxe. Little Tom estava rubro. "Por Satans, eu que vou te dar uma sova!" "No vais, no. No vou brigar com cada homem deste navio." "Ned, vem dar o que esse americano merece!", chamou Tom, gritando. Mas no teve resposta. "Ser que ele foi tirar uma soneca l nos mastarus?" Ergui os olhos para o velame e ento me diverti vendo Little Tom subir para escalar o mastro com dificuldade, berrando e suando. Passei algum tempo ali embaixo, portando-me como um galo impaciente. Depois, to logo ousei faz-lo, eu me voltei para Smith. "Quanto tempo vamos ficar esperando esse covarde? Eu e vs sabemos que temos assuntos a tratar em terra firme." A tripulao estava visivelmente decepcionada e extremamente desconfiada. Smith sabia que, se eu no sasse logo da Dangerous, ele provavelmente perderia seu mais recente - e nico
- agente americano. Tom, ofegante e frustrado, pulou de novo para aquele convs. Smith verificou a ampulheta. ", j passa de quinze do meio-dia, e Ned teve a chance dele. Vai-te, Gage, e cumpre tua tarefa em nome do amor e da liberdade." Houve um urrar de descontentamento. "No jogueis cartas se no podeis vos dar ao luxo de perder!", berrou Smith marujada. Eles escarneceram, mas me deixaram passar at a escada do navio. Tom sumira l para baixo. Eu no tinha muito tempo, de modo que, tal qual um gato aflito, deixei-me cair nas sujas redes de pesca de uma balsa rabe. "Para a praia, agora mesmo - e vais ganhar uma moeda a mais se fores bem depressa", cochichei para o barqueiro. Eu prprio empurrei a balsa para longe da fragata, e o capito muulmano comeou a remar para as rochas e o porto de Jafa com o dobro do vigor de costume, o que ainda equivalia metade do que eu teria preferido. Voltei-me para acenar para Smith. "Mal posso esperar para que nos vejamos de novo!" Mentira deslavada, claro. To logo eu descobrisse o paradeiro de Astiza e tirasse concluses satisfatrias acerca do Livro de Tot, no tinha nenhuma inteno de chegar perto nem dos ingleses nem dos franceses, que se engalfinhavam j fazia um milnio. Eu preferiria antes partir para a China! Em especial quando houve uma agitao no convs da bateria e a cabea de Big Ned despontava subitamente, como a de uma marmota do cho, rubro de raiva e esforo. Eu o olhei pela
nova luneta e vi que parecia ter sido batizado com lodo. "Volta aqui, cachorro covarde! Vou te arrancar os braos e as pernas!" "Acho que o covarde s tu, Ned! Foste tu que no apareceste na hora combinada!" "Tu me ludibriaste, ianque trapaceiro!" "Eu fiz que aprendeste uma lio, isto sim!" Mas estava ficando difcil ouvir medida que amos sacudindo para longe. Sir Sidney levantou o chapu, numa saudao irnica. Os fuzileiros navais ingleses j corriam a baixar uma lancha. "D para ir um pouquinho mais depressa, Simb?" "Sim - por mais uma moeda, efndi." Foi uma regata disputada, pois os musculosos fuzileiros batiam as ondas tal qual roda-d'gua, com Big Ned urrando na proa. Ainda assim, Smith j me inteirara a respeito de Jafa. A cidade tinha apenas um porto terrestre, e era preciso guia para locomover-se pelo lugar. Com uma boa dianteira, eu me esconderia bem o suficiente. Assim, peguei uma das redes de pesca do meu barqueiro e, antes que este pudesse fazer objeo, arremessei-a na rota da lancha (que j se achegava). A rede se emaranhou nos remos de estibordo, tanto que eles comearam a girar em crculos, vociferando insultos tais que fariam corar um sargento-instrutor. Meu barqueiro reclamou, mas eu tinha moedas o bastante para pagar em dobro pela miservel rede e mant-lo remando. Saltei para o cais de pedra um bom minuto antes daqueles que vinham
reivindicar o que consideravam seu. Estava determinado a localizar Astiza e dar o fora fazendo votos de nunca mais rever Big Ned nem Little Tom.
-3Jafa se ergue qual um filo de po no litoral do Mediterrneo, com praias vazias a curvarem-se na cerrao para o norte e para o sul. Como porto comercial, o lugar perdera importncia para Acre, ao norte (l onde ficava o quartel-general de AlDjezzar, ou "o Aougueiro"); Jafa ainda era, porm, prspera cidade agrcola. Havia fluxo constante de peregrinos, que chegavam para visitar Jerusalm, e de laranja, algodo e sabo, que eram exportados pelo porto. As ruas eram um labirinto que conduzia s torres, mesquitas, sinagogas e igrejas que encimavam a cidade. Anexos domsticos se projetavam ilegalmente sobre vielas escuras. Burros tropeliavam para cima e para baixo nas pedras do pavimento. Por mais que meus ganhos no jogo pudessem ser de origem discutvel, eles logo se revelaram inestimveis quando um moleque de rua me convidou taverna de sua irm, num andar superior. A irm - decepo! - era desprovida de encantos. Mas o dinheiro me proporcionou po srio, falafel, uma laranja e uma sacada com tela, atrs da qual pude me esconder enquanto o bando de fuzileiros britnicos subia por uma viela e descia por outra, correndo na intil busca por
minha vil carcaa. Esbaforidos e afogueados, eles acabaram parando numa taverna crist no cais, para falarem de minha perfdia enquanto tomavam vinho palestino de m qualidade. Nesse meiotempo, circulei sorrateiramente para gastar mais de meus ganhos no jogo. Comprei um manto beduno de listras gren e brancas, com mangas, mais botas novas, calas bufantes de beduno (to mais confortveis no calor que os apertados cales europeus!), faixa de cintura, colete, duas camisas de algodo e pano para turbante. Como Smith previra, o resultado me fazia parecer mais um membro extico de um imprio poliglota, desde que eu tomasse o cuidado de ficar longe dos arrogantes e inquiridores janzaros, soldados otomanos que usavam botas de cor vermelha e amarela. Ali descobri que no havia diligncia para a cidade santa, nem mesmo uma estrada que prestasse. Financeiramente, eu era demasiado prudente (Ben Franklin, outra vez) para comprar ou alimentar um cavalo. Por conseguinte, adquiri um burro dcil, suficiente para levar-me at l e no muito alm. Como exguo armamento, economizei comprando uma adaga rabe curva, com cabo de osso de camelo. Tenho pouca habilidade com espadas e no me animei a adquirir um dos mosquetes muulmanos, que so compridos, desajeitados e rebuscados; a madreprola marchetada das coronhas linda, mas eu j vira quanto eles haviam se mostrado medocres contra os mosquetes franceses durante as batalhas de Napoleo no Egito. E qualquer mosquete seria
muitssimo inferior ao lindo fuzil da Pensilvnia que eu sacrificara em Dendara para poder escapar com Astiza. Se o tal Jeric era metalurgista, talvez pudesse me fazer um substituto! Para ser meu guia e guarda-costas em Jerusalm, escolhi um tipo empreendedor, barbudo e muito vivo na hora de regatear; chamava-se Mohammad, nome que parecia ter sido dado a metade dos vares muulmanos de Jafa. Entre o meu rabe rudimentar e o tosco francs de Mohammad, aprendido porque os mercadores francos dominavam o comrcio do algodo, ns dois conseguamos nos comunicar. Ainda preocupado com o dinheiro, calculei que, se partssemos logo, eu poderia economizar um dia de pagamento pelos servios de Mohammad. Eu tambm escapuliria da cidade sem ser visto, para o caso de algum fuzileiro ainda estar espreita por ali. "Pois muito bem, Mohammad, eu prefiro partir l pela meia-noite. Sabes como , evitamos o trnsito e desfrutamos o revigorante ar da noite. Como dizia Ben Franklin, acordar cedo..." "Como quiserdes, efndi. Estareis talvez fugindo de inimigos?" "Claro que no. J te disse que sou uma pessoa afvel." "Ento s pode ser dos credores." "Mohammad, sabes que paguei adiantado metade do preo extorsivo que me cobras. Tenho dinheiro bastante." "Ah, ento mulher. Esposa ruim? J vi as esposas crists..." Balanou a cabea e sentiu arrepios. "Nem Sat conseguiria aplac-las."
"Basta que estejas pronto meia-noite. Combinados?" A despeito da dor pela perda de Astiza e da aflio em descobrir o paradeiro dela, confesso que me passou pela cabea procurar uma ou duas horas de companhia feminina em Jafa. No obstante as condenaes das mais variadas religies, todas as variedades de sexo, desde as mais montonas at as mais pervertidas, eram objeto de propaganda pelos moleques rabes nas ruas, com uma insistncia que desconcentrava. Sou homem, no sou monge, e j fazia mesmo uns dias... Mas o navio de Smith continuava ancorado ao largo, e, se Big Ned tivesse alguma persistncia, seria bem prprio da minha sorte que o fuzileiro me encontrasse enrolado com alguma rameira, demasiado ocupado para passar a perna nele. Por isso, pensei melhor e resolvi esperar para buscar alvio em Jerusalm, muito embora copular na Cidade Santa fosse o tipo de coisa que deixaria meu antigo pastor apopltico. A verdade era que a abstinncia e a fidelidade a Astiza faziam que eu me sentisse bem. Minhas tribulaes no Egito me levaram a decidir reforar a autodisciplina, e l estava eu, tendo passado pelo primeiro teste. "A conscincia limpa um Natal permanente", gostava de dizer Franklin. Mohammad chegou uma hora atrasado, mas finalmente me conduziu pelo labirinto de vielas escuras at o porto que, com o cho coberto de esterco, dava para terra adentro. Exigia-se propina para que o abrissem noite, e atravessei a arcada com a curiosa euforia que advm ao iniciarmos
uma nova aventura. Afinal, eu sobrevivera a oito tipos de inferno no Egito, recuperara temporariamente a solvncia graas habilidade no jogo e sara numa misso que nenhuma semelhana tinha com trabalho de verdade, apesar de meus devaneios de tornar-me contador. O Livro de Tot, que os crentes acreditavam capaz de proporcionar desde a sabedoria cientfica at a vida eterna, provavelmente j no existia... e, no entanto, podia ser que ele estivesse em algum lugar, dando viagem o carter otimista de uma caa ao tesouro. E, apesar de meus instintos lbricos, eu realmente ansiava por Astiza. Fiquei impaciente pela chance de, por intermdio do agente de Smith em Jerusalm, descobrir de algum modo o que acontecera com ela. Assim, passamos a passos largos pelo porto - e paramos. "O que que ests fazendo?", perguntei ao subitamente deitado Mohammad, imaginando se ele no teria desmaiado. Mas no: deitara-se de caso pensado, tal qual um co aps dar voltas no tapete da lareira. Ningum consegue relaxar como um otomano, no qual os prprios ossos parecem ento dissolver-se. "Efndi, os bandoleiros bedunos infestam a estrada para Jerusalm e roubam todo e qualquer peregrino desarmado", disse no escuro o guia, displicentemente. "Continuarmos sozinhos no s arriscado - insano. Mais tarde, meu primo Abdul conduzir uma caravana de camelos para l, e ns, por segurana, iremos junto com ele.
assim que eu e Al cuidamos de nosso hspede americano." "Mas e aquela conversa de sairmos cedo?" "Pagastes, e samos." E, tendo dito isso, voltou a dormir. Maldio! Bem, era o meio da noite, estvamos cinqenta jardas para fora das muralhas, eu tinha pouca idia da direo a seguir, e era bem possvel que ele tivesse razo. A Palestina era tristemente clebre por estar tomada por bandoleiros, ou caudilhos s turras uns com os outros, ou saqueadores vindos do deserto. Assim, eu me afligi durante trs horas, preocupado com a possibilidade de que os fuzileiros britnicos aparecessem por ali, at que finalmente Abdul e seus camelos resfolegantes se reuniram mesmo no porto, bem antes do nascer do sol. Fizeram-se as apresentaes, emprestaram-me uma pistola turca e cobraram-me mais cinco xelins tanto por ela quanto pela escolta adicional e outro xelim pela forragem do burro. Eu estava na Palestina havia menos de vinte e quatro horas, e minha bolsa de dinheiro j minguava. Em seguida, preparamos um ch. Por fim, surgiu um fio de luz quando as estrelas se desvaneceram, e partimos atravs dos laranjais. Uma milha depois, passamos por campos de algodo e trigo, com a estrada orlada de tamareiras. Na madrugada, no se viam as casas de telhado de palha; apenas os latidos dos ces indicavam onde elas ficavam. O rangido das selas e o badalo dos sinos dos camelos vinham assinalar nossa passagem. O cu clareou, os galos e os pssaros
comearam a cantar, e, medida que o alvorecer se avermelhava, eu enxergava os montes escarpados mais adiante, l onde transcorrera tanto da histria bblica. As rvores de Israel haviam sido eliminadas para fazer carvo e cinza de sabo, e mesmo assim, aps o deserto egpcio absolutamente rido, aquela plancie costeira parecia to luxuriante e agradvel quanto a viosa regio dos colonos alemes da Pensilvnia. Era a Terra deveras Prometida. Por meu guia, eu soube que a Palestina era nominalmente parte da Sria, uma provncia otomana cuja capital, Damasco, estava sob o controle da Sublime Porta, ou seja, do governo imperial em Constantinopla. Mas, assim como o Egito estivera na realidade sob o controle dos mamelucos (independentes at que Bonaparte os expulsou), a Palestina estava sob o controle do bsnio Djezzar, ele mesmo um ex-mameluco, que h um quarto de sculo governava o Acre, infelizmente com clebre crueldade, desde que sufocara uma revolta das tropas mercenrias dele prprio. Djezzar estrangulara vrias esposas para no ter de aturar rumores de infidelidade, mutilara os conselheiros mais prximos para lembr-los de quem mandava ali e afogara generais ou capites de navio que lhe desagradaram. Na opinio de Mohammad, essa desumanidade era necessria. A provncia se fragmentava num nmero excessivo de grupos religiosos e tnicos, cada um deles to vontade entre os outros quanto um calvinista num piquenique no Vaticano. A invaso do Egito lanara ainda mais refugiados na Terra Santa, com os
fugitivos mamelucos do bei Ibrahim procurando ali um ponto de apoio. Tropas otomanas recmrecrutadas chegavam em quantidade, prevendo a invaso francesa, ao mesmo tempo em que o ouro e as promessas de ajuda naval dos britnicos acirravam ainda mais as coisas. Metade da populao espionava a outra metade, e todo cl, seita e culto sopesavam as vantagens e desvantagens de Djezzar e dos at ento invencveis franceses. As notcias das assombrosas vitrias napolenicas no Egito, a ltima das quais fora a supresso de uma revolta no Cairo, abalavam o Imprio Otomano. Eu tambm sabia que Napoleo ainda tinha esperanas de juntar foras com Tippu Sahib, o sulto francfilo que lutava contra os Wellesley na ndia. O ambiciosssimo Bonaparte estava organizando um corpo de camelos com o qual ele esperava atravessar os desertos orientais de modo mais eficiente que Alexandre Magno conseguira. Aos vinte e nove anos, o corso queria superar o macednio, galopando todo o caminho at a ndia meridional para reunir-se ao "cidado Tippu" e privar a Gr-Bretanha de sua colnia mais rica. Segundo Smith, eu teria de extrair sentido daquele angu. "A Palestina me parece uma barafunda repleta de donos da verdade e da virtude", comentei com Mohammad enquanto cavalgvamos, eu grande demais para meu burro, cuja espinha era dura como uma barra de nogueira. "Aqui h tantas faces quanto numa vereana de New Hampshire."
"Aqui todos os homens so santos", disse Mohammad, "e no existe nada mais irritante que um vizinho, igualmente santo, de religio diferente." Amm, pois outro homem estar convencido de que ele tem razo insinuar que podemos estar errados, e a est a raiz de metade do derramamento de sangue do mundo. Franceses e britnicos so exemplos perfeitos, disparando canhonadas uns contra os outros para ver quem mais democrtico: se os republicanos franceses, com sua guilhotina ensangentada, ou se os parlamentaristas britnicos, com suas prises para inadimplentes. Em meus tempos de Paris, quando tudo o que tinha para me preocupar eram as cartas do baralho, as mulheres e s vezes um contrato de navegao, eu no me lembro de ter ficado muito aborrecido com algum, nem algum comigo. A veio o medalho, a campanha egpcia, Astiza, Napoleo, Sidney Smith, e c estava eu, instigando minha diminuta montaria rumo capital mundial da discordncia teimosa. Pela milsima vez, perguntei-me como que eu fora parar ali. Devido a nosso atraso e ao passo majestoso da caravana, levamos trs longos dias para alcanar Jerusalm, chegando l ao crepsculo do terceiro. Era um trajeto cansativo e serpeante, por caminhos que teriam sido desdenhados por qualquer cabra que tivesse algum amor-prprio (era evidente que a estrada no recebia manuteno desde a poca de Pncio Pilatos), e
em pouco tempo os montes castanhos, cobertos de arbustos, ficaram ngremes como os Apalaches. Subimos a garganta do Bab al-Wad at umas matas de pinheiro e zimbro, com a relva acastanhada pelo outono. O ar se tornou perceptivelmente mais frio e mais seco. Subimos, descemos e demos voltas e voltas, passando por burros que zurravam, camelos respingados de baba que peidavam e carroceiros cujos bois batiam cabea enquanto os dois condutores batiam boca. Passamos por frades de hbito marrom, missionrios armnios de sotaina, judeus ortodoxos de barba e longos cachos nos lados da cabea, mercadores srios, um ou dois comerciantes de algodo franceses radicados na Palestina e muulmanos de incontveis seitas, usando turbante e cajado. Bedunos desciam encostas conduzindo rebanhos de carneiros e cabras que pareciam derramar-se ali como gua, e moas de aldeia gingavam de modo bem interessante beira da estrada, equilibrando cuidadosamente na cabea jarros de barro; faixas de cintura, em cores brilhantes, oscilavam no balano dos quadris, e seus olhos escuros brilhavam como pedras negras no fundo de um rio. Os lugares que se intitulavam estalagens, ou khans, mostravam-se bem menos atraentes: eram pouco mais que ptios murados que serviam principalmente de curral para moscas. Tambm deparamos com bandos de cavaleiros malencarados, que em quatro ocasies exigiram pedgio. Em cada uma dessas vezes, meus
acompanhantes ficaram na expectativa de que eu contribusse com mais do que parecia ser minha justa parte. Aqueles parasitas me pareciam simples assaltantes, mas Mohammad insistiu em que eram valentes das aldeias locais que mantinham distncia bandoleiros ainda piores, e cada vila tinha direito parte desse pedgio. Mohammad provavelmente dizia a verdade, j que cobrar tributo para nos proteger dos ladres coisa que todos os governos fazem, no? Aqueles rsticos armados eram uma mistura de policiais com extorsionrios. Mas, quando eu no estava resmungando sobre o interminvel esvaziamento do meu bolso, Israel tinha seus encantos. Se a Palestina no chegava a ter aquele ar de antiguidade do Egito, ela ainda assim parecia bem rodada, como se pudssemos ouvir os ecos dos heris hebreus, de santos cristos e conquistadores muulmanos de um passado remoto. Oliveiras tinham o dimetro de barris de vinho, com o lenho retorcido por incontveis sculos. Pedaos diversos de entulho histrico se projetavam de cada elevao. Quando parvamos para tomar gua, as pedras que calavam o caminho para as bicas e poos eram cncavas e lisas, por conta de todas as sandlias e botas que as haviam percorrido antes de ns. Assim como no Egito, a luz apresentava uma limpidez muito diferente do que se via na brumosa Europa. O ar tambm tinha gosto de poeira, como se houvesse sido respirado vezes demais. Foi num daqueles khans que me fizeram lembrar de que eu no deixara totalmente para trs o
mundo do medalho. Um velhote de religio e idade indeterminada recebia seu magro sustento do estalajadeiro para que servisse de faz-tudo, e era to humilde e discreto que s reparvamos nele para pedir um copo de gua ou mais uma pele de carneiro onde deitar. Eu teria tido olhos para alguma servial, mas um esfarrapado com vassoura de gravetos no atraa minha ateno, de modo que, quando estava me despindo altas horas e expus momentaneamente meus serafins de ouro, dei de costas com o homem e me sobressaltei antes de ter percebido que ele estava ali. Ficou de olhos arregalados em face dos anjinhos de asas abertas, e de incio pensei que o velho mendigo vira alguma coisa que queria furtar. Mas ele apenas recuou, consternado e temeroso. Cobri os serafins com a roupa de baixo, e o brilho sumiu como se a luz houvesse se apagado. "A bssola", murmurou ele em rabe. "O qu?" "Os dedos de Sat. Que Al tenha misericrdia de vs." Ele estava claramente maluco. Ainda assim, seu olhar de assombro e desalento me deixou apreensivo. "So relquias pessoais. Nada de falar delas a ningum, ouviste?" "Meu im me confidenciou sobre elas. Da furna." "A furna?" Os serafins tinham vindo do subterrneo da Grande Pirmide. "Apfis." E, tendo dito isso, ele se virou e fugiu. Ora, eu no ficava to perplexo desde que o maldito medalho realmente funcionara. Apfis! Era esse o nome de um deus-cobra (ou demnio-
cobra) que Astiza afirmara estar nas entranhas do Egito. Eu no a levei a srio (afinal, sou discpulo de Franklin, um homem da razo, um homem do Ocidente), mas havia mesmo algo l embaixo num poo fumarento, e eu achava ter deixado isso e seu nome bem para trs, no Egito... No entanto, c estavam falando dele outra vez! Pela fua de Anbis, eu estava farto de divindades transviadas a meter-se na minha vida como parentes indesejados que vinham deixar marcas no cho com barro de suas botas. E agora um velho faztudo trazia novamente o nome baila. A coisa no tinha sentido, era verdade, mas a coincidncia era inquietante. Tornei a me vestir, correndo e de novo escondendo os serafins na roupa, e sa apressadamente de meu cubculo para procurar o velho e lhe perguntar o que significava aquele nome. Mas no o achei em lugar nenhum. De manh, o estalajadeiro contou que o criado aparentemente pegara seus escassos pertences e se escafedera. E chegamos bem legendria Jerusalm. Reconheo que se tratava de uma viso impressionante. A cidade fica encarapitada num monte entre outros montes, e em trs de seus lados o terreno despenca abruptamente para vales estreitos. pelo quarto lado, o norte, que os invasores sempre vm. Oliveiras, vinhedos e pomares recobrem as encostas, e jardins proporcionam pontos de verde no interior da cidade. Muralhas colossais, de duas milhas de
comprimento, erguidas por um sulto chamado Suleman, o Magnfico, circundam por completo a populao de Jerusalm. Menos de nove mil pessoas moravam ali quando cheguei, subsistindo economicamente dos peregrinos e da inconstante indstria da cermica e do sabo. Eu logo descobriria que uns quatro mil eram muulmanos; trs mil, cristos; e dois mil, judeus. O que fazia a cidade sobressair eram suas edificaes. O Domo da Rocha - a mesquita principal - tinha uma cpula dourada que brilhava como um farol ao poente. Mais perto de onde estvamos, o Porto de Jafa era a antiga cidadela, com suas ameias encimadas por uma torre redonda como um farol. Pedras to descomunais quanto as que eu vira no Egito constituam as fundaes da cidadela. Eu encontraria pedras semelhantes no Monte do Templo, a plataforma do antigo templo judaico, rea que agora servia de base para a grande mesquita. Aparentemente, os alicerces de Jerusalm haviam sido assentados por gigantes. Por toda a parte, o horizonte estava pontuado de cpulas, minaretes e torres de igreja, legado deste ou daquele cruzado ou conquistador, cada um deles tentando deixar um edifcio santo que compensasse sua respectiva variedade nacional de matana. O efeito era to competitivo quanto barracas de verduras a rivalizar entre si numa feira de domingo, com os sinos cristos tocando enquanto os muezins gemiam e os judeus entoavam suas preces. Trepadeiras, flores e arbustos brotavam das mal conservadas muralhas,
e palmeiras marcavam praas e jardins. Do lado de fora da cidade, fileiras de oliveiras desciam marchando para vales rochosos e tortuosos, fumacentos devido queima de lixo. Desse buraco infernal, erguia-se o olhar para ver pssaros rodopiando diante de palcios celestiais de nuvens, tudo ntido e detalhado. Com o sol baixo, Jerusalm, assim como Jafa, era da cor do mel, com sua pedra calcria fermentando aos raios amarelos do sol. "A maioria dos homens vem para c procurando alguma coisa", comentou Mohammad enquanto fitvamos a antiqussima capital, do outro lado do chamado Vale da Cidadela. "O que procurais, meu amigo?" "Sabedoria", respondi, e era bem verdade. Sabedoria era o que se presumia que estivesse contido no Livro de Tot, e - pelos culos de Franklin! - eu bem que precisava de alguma. "E, espero, notcias de quem amo." "Ah. Muitos homens procuram a vida inteira sem achar sabedoria nem amor, de modo que bom que tenhais vindo para c, onde queira Deus que as preces por ambas as coisas sejam atendidas." "Tomara que sim." Eu sabia que Jerusalm, justamente porque a consideravam to sagrada, fora atacada, queimada e saqueada mais vezes do que qualquer outro lugar da Terra. "Vou te pagar agora e ir atrs do homem com quem me hospedarei." Tentei no fazer tinir em demasia a bolsa de dinheiro enquanto contava o restante da paga de Mohammad.
Ele a pegou avidamente e ento reagiu com um assombro muito ensaiado e praticado. "Nenhum mimo por ter compartilhado convosco meus conhecimentos da Terra Santa? Nenhuma recompensa por terdes chegado em segurana? Nada por esta vista gloriosa?" "Imagino que tambm te consideres responsvel pelo bom tempo." Ele pareceu magoado. "Procurei ser vosso servo, efndi." Assim, contorcendo-me na sela para que ele no visse quo pouco me restava, dei-lhe uma gorjeta que eu no podia muito permitir-me. Ele fez uma reverncia e agradeceu efusivamente. "Que Al sorria para vossa generosidade!" No consegui esconder o azedume em meu "Vai com Deus". "E que a paz esteja convosco!" Uma bno que acabou no tendo efeito.
-4Quando segui pela trilha de terra e atravessei uma ponte de madeira at o ferro negro do porto de Jafa e a feira mais alm, vi que Jerusalm era uma semi-runa. Um policial, ou subashi, revistou-me procura de armas (elas no eram permitidas nas cidades otomanas mais importantes), mas deixou que eu conservasse minha reles adaga. "Eu achava que os francos sassem por a com coisa melhor", resmungou, tomando-me por europeu, apesar dos trajes. "Sou um simples peregrino", eu
lhe disse. Seu olhar era ctico. "Pois que continues assim." Depois, vendi meu burro pelo que pagara por ele (ao menos eram algumas moedinhas de volta!) e me localizei. Atravs do porto, passava um trfego constante. Mercadores se encontravam com caravanas, e peregrinos de uma dzia de seitas davam graas ao entrar nos locais sagrados. Mas a autoridade otomana estava em declnio havia dois sculos, e governadores inoperantes, saqueadores bedunos, impostos extorsivos e rivalidade religiosa haviam atravancado a prosperidade de Jerusalm at no mais poder. Barracas de feiras orlavam as principais ruas, mas seus toldos desbotados e suas prateleiras semivazias s enfatizavam a melancolia secular. Jerusalm era sonolenta, com as aves tendo ocupado as torres da cidades. Mohammad me explicara que a cidade se dividia em quatro bairros, para os muulmanos, os armnios, os outros cristos de modo geral e os judeus. Segui por vielas tortuosas da melhor maneira possvel, at o quadrante noroeste, construdo ao redor da igreja do Santo Sepulcro e da sede franciscana. O trajeto era to despovoado que eu topava com galinhas na rua o tempo todo. Metade das casas parecia abandonada. As residncias habitadas, construdas de pedra antiqussima, com barraces e sacadas de madeira projetando-se como pstulas, decaam tal qual a pele das velhas. Assim como no Egito, frustravamse quaisquer fantasias que eu tivesse de um Oriente opulento.
As vagas orientaes de Smith e meus prprios pedidos de informao me levaram a um sobrado de pedra calcria com slido porto de madeira, encimado por uma ferradura; no mais, a fachada no tinha traos distintivos, bem maneira rabe. De um lado havia uma porta menor, tambm de madeira, e eu sentia o cheiro do carvo vegetal da forja de Jeric. Bati vigorosamente na portinha de entrada, esperei e tornei a bater com fora, at que se abriu uma pequena viseira. Fiquei surpreso em deparar com um olhar de mulher - no Cairo, eu me acostumara a porteiros muulmanos corpulentos e esposas confinadas. Ademais, as pupilas eram cinza-claro, de uma translucidez incomum no Oriente. Por instruo de Smith, comecei em ingls. "Meu nome Ethan Gage e trago carta de apresentao de um comandante de navio ingls para o homem a que chamam Jeric. Estou aqui..." A viseira se fechou. Continuei ali, de p. Aps alguns minutos, imaginei se estava mesmo no endereo certo, at que enfim a porta se abriu, como se por vontade prpria, e entrei cautelosamente. Estava no ptio de trabalho de um ferreiro, disso no havia dvida, com as pedras do piso manchadas de cinza pela fuligem. Mais adiante, vi o fulgor de uma forja, num barraco trreo cujas paredes estavam cobertas de ferramentas penduradas. A parte esquerda do ptio era uma venda abastecida de implementos prontos; direita, um depsito de metal e carvo vegetal. Projetando-se ligeiramente por sobre essas trs alas, estava a moradia, acessvel por
uma escada de madeira sem pintura e tendo na frente uma sacada, com rosas murchas a cascatear de vasos de ferro. Algumas ptalas haviam cado nas cinzas ali embaixo. O porto se fechou s minhas costas, e percebi que a mulher ficara escondida por ele. Ela passou por mim como um fantasma, sem dizer palavra, seus olhos me examinando com uma mirada fugaz e oblqua, de intensa curiosidade, o que me surpreendeu. E verdade que sou um safado vistoso, mas ser que eu era mesmo to interessante assim? O vestido lhe ia do pescoo s canelas, a cabea estava coberta por um leno, moda de todas as religies na Palestina, e a mulher afastou pdicamente o rosto. Entretanto, vi o suficiente para chegar a uma concluso fundamental: ela era bonita. O rosto exibia a beleza arredondada de uma pintura renascentista, com a pele muito clara para aquela parte do mundo, tendo uma lisura de casca de ovo. Os lbios eram cheios, e, quando consegui que nossos olhares se encontrassem, ela, recatada, baixou o seu. O nariz tinha aquele ligeiro arco mediterrneo, aquela sutil curva meridional, que eu acho to sedutora. O cabelo estava todo coberto, exceo feita a alguns fios soltos que escapavam do leno e indicavam uma cor surpreendentemente clara. O talhe do corpo era bastante esbelto, mas ficava difcil dizer mais que isso. E ento a mulher desapareceu por um vo de porta. Tendo feito aquele reconhecimento instintivo, eu me voltei para ver um homem de barba, msculos
rijos e avental de couro vir caminhando da forja a passos largos. Tinha antebraos de ferreiro, grossos como pernis e marcados pelas inevitveis queimaduras. A fuligem do ofcio no ocultava o cabelo cor de areia nem os surpreendentes olhos azuis, que me miravam com certo ceticismo. Teriam as ondas atirado vikings na Sria? No entanto, a constituio do homem era suavizada em alguma medida pelos lbios cheios e pelo rubor que se escondia sob a barba nas faces (um vio querubnico que ele comparrilhava com aquela mulher), algo que me fazia pensar na gravidade bondosa que sempre associei a Jos, o Carpinteiro. O homem descalou uma luva de couro e estendeu a mo calejada. "Gage, no?" ", Ethan Gage", confirmei ao apertar uma palma dura como lenho. "Jeric." O homem podia ter boca de mulher, mas seu aperto de mo era um torno. "Como tua esposa talvez j tenha explicado..." "Irm." "Deveras?" Bem, j era um passo na direo certa. No que eu estivesse esquecendo Astiza por um momento que fosse - s que a beleza feminina desperta uma curiosidade natural em todo varo saudvel, e sempre mais seguro saber em que p esto as coisas. "Ela fica encabulada com estranhos. Por isso, no a constranjas." O recado, vindo de um homem rijo como um toco de carvalho, era bem claro. "Naturalmente. Em todo o caso, louvvel que ela aparentemente entenda o ingls."
"Seria surpreendente se no entendesse, j que morou na Inglaterra. Comigo. Ela no tem nenhuma relao com nossos assuntos." "Encantadora, porm indisponvel. As melhores senhoras so assim." Ele reagiu a minha verve com tanta animao quanto um dolo de pedra. "Smith mandou-me avisar sobre tua misso, de modo que posso te oferecer alojamento temporrio e um conselho que vem resistindo ao teste do tempo: qualquer estrangeiro que tenha pretenses a entender a poltica de Jerusalm no passa de um tolo." Conservei a afabilidade de sempre. "Ento quem sabe minha tarefa seja breve? Eu pergunto, no entendo a resposta e vou embora para casa como qualquer peregrino." Ele me olhou de alto a baixo. "Preferes a indumentria rabe?" "E confortvel e annima, e achei que ela poderia ser til no souk e na cafeteria. Falo um pouco de rabe." Eu estava decidido a continuar tentando. "Quanto a ti, Jeric, no consigo imaginar que vs desabar logo, logo." S consegui desconcert-lo. "Sabes a histria bblica, aquela sobre o desabamento das muralhas de Jeric? Tu me pareces slido como uma rocha. Um bom homem para termos do nosso lado, no?" "Jeric a vila onde nasci. L no h mais muralhas."
"E eu no esperava encontrar olhos azuis na Palestina...", continuei, hesitante. "Sangue dos cruzados. As razes de minha famlia so bem antigas. Deveramos ser uma mistura de cores, mas nossa gerao acabou saindo bem clara. Todas as raas passaram por Jerusalm cruzados, persas, mongis, etopes. Todos os credos, opinies e naes. E tu?" "Americano, de ascendncia breve e, quanto antes esquecida, melhor - est a uma das vantagens dos Estados Unidos. Se bem entendi, aprendeste ingls na marinha deles, no?" "Miriam e eu ficamos rfos por causa da peste. Os padres catlicos que nos acolheram nos contaram alguma coisa do mundo, e, em Tiro, eu me alistei numa fragata inglesa e aprendi a fazer reparos no ferro. Os marujos me deram esse meu apelido. Fui aprendiz de ferreiro em Portsmouth e mandei buscar minha irm. Era minha obrigao." "Mas, obviamente, no ficaste por l." "Sentamos falta do sol; os britnicos so brancos como vermes. Eu havia conhecido Smith na marinha. Pela passagem de volta e algum pagamento, concordei em ficar de ouvidos atentos aqui. Hospedo os amigos de Smith. Eles fazem o que ele manda fazer. Descobrem pouca coisa que se aproveite. Os meus vizinhos pensam que eu simplesmente me aproveito de saber ingls para acolher hspedes de vez em quando, e no esto l muito errados." Inteligente e direto, o tal ferreiro. "Sidney Smith acredita que ele e eu podemos nos ajudar mutuamente. Eu me vi na expedio de Bonaparte
ao Egito. Agora, os franceses esto planejando vir para c." "E Smith quer saber o que os cristos, os judeus e os drusos podem fazer." "Exatamente. Ele est tentando ajudar Djezzar a organizar a resistncia aos franceses..." "...Com gente que odeia Djezzar, um tirano que est sempre pisando no pescoo deles. No so poucos os que vo considerar os franceses seus libertadores." "Se a mensagem essa, vou lev-la a Smith. Mas tambm preciso de ajuda para mim mesmo. Conheci no Egito uma mulher que est desaparecida. Para ser mais preciso, ela caiu no Nilo. Quero saber se est viva e, nesse caso, como resgat-la. Disseram-me que tens contatos no Egito." "Uma mulher? Intima de ti?" Ele parecia tranqilizado por meu interesse em algum que no fosse a irm. "Esse tipo de investigao mais caro do que ficar ouvindo as fofocas polticas em Jerusalm." "Quo mais caro?" Ele me olhou de alto a baixo. "Desconfio que mais do que podes pagar." "Ento no vais me ajudar?" "Quem no vai te ajudar so meus contatos no Egito. No sem dinheiro." Avaliei que ele estava no tentando me explorar, mas apenas me dizendo a verdade. Se eu quisesse chegar a algum lugar com minha busca, precisaria de um parceiro, e quem melhor que aquele ferreiro de olhos azuis? Assim, dei-lhe uma dica da outra coisa que eu
procurava. "Talvez tu possas colaborar. E se, em troca, eu te prometesse uma parte do maior tesouro do mundo?" Ele finalmente riu. "O maior tesouro? E qual seria ele?" " segredo. Mas ele poderia fazer de um homem um rei." "Ah. E onde estaria esse tesouro?" "Espero que bem debaixo de nossos narizes, aqui mesmo em Jerusalm." "Tens idia de quantos tolos j alimentaram a esperana de descobrir tesouros em Jerusalm?" "No sero os tolos a descobri-lo." "Queres que eu gaste o meu dinheiro procurando por essa tua mulher?" "Eu quero que invistas no teu futuro." Ele passou a lngua pelos lbios. "Smith achou um biltre bem descarado e atrevido, no?" "E s timo juiz de carter!" Ele podia estar ctico, mas tambm estava curioso. Eu apostava que pagar por notcias de Astiza no lhe custaria assim to caro. E ele tinha a mesma ganncia de todos ns: no h quem no sonhe com tesouros enterrados. "Eu posso ver se no custa demais." Eu o fisgara. "Eu tambm preciso de outra coisa. Um bom fuzil." Jeric vivia com simplicidade, embora o ofcio de ferreiro lhe desse alguma prosperidade. Sendo cristo, sua casa tinha mais mobilirio que uma moradia islmica. Os muulmanos preferem
almofadas, pois estas podem ser movidas para que as mulheres fiquem isoladas quando chegam convidados do sexo masculino - o hbito da tenda beduna nunca foi deixado para trs. J ns, os cristos, estamos acostumados a ter a cabea mais perto do calor do teto que do frescor do cho; por isso, sentamos em posio alta e formal, num atravancamento estacionrio de moblia. Em vez das almofadas e arcas islmicas, Jeric tinha mesa, cadeiras e grandes armrios. A carpintaria e a marcenaria, porm, eram de uma simplicidade puritana. O piso de tbuas estava desprovido de tapetes, e os ornamentos nas paredes de estuque se limitavam a um ou outro crucifixo ou imagem de santo - um lugar despojado como um convento, e to desconcertante quanto. Miriam, a irm, mantinha a casa imaculada. A comida era farta, mas bsica: po, azeitona, vinho e quaisquer verduras que Miriam conseguisse comprar na feira a cada dia. De vez em quando, ela trazia carne para o irmo, musculoso e esfomeado, mas o produto era relativamente raro e caro. Embora o inverno j se aproximasse, no havia nada para o aquecimento, exceo feita ao calor que vinha do carvo a queimar no fogo e na forja l embaixo. As janelas tinham trelia, no vidraas, de modo que o frio mais intenso era contido por sacos de serragem que ficavam nelas por toda a estao, o que vinha reforar a escurido e a melancolia outonais. A gua das bacias era gelada; o vento, penetrante; as velas e o leo, caros e escassos; e ns dormamos e levantvamos muitssimo cedo.
Para um parisiense boa-vida como eu, a Palestina foi um baque. O que primeiro nos uniu foi a fabricao de meu fuzil. Jeric era constante, hbil, reservado e aplicado (todos atributos que, imagino, eu deveria tentar imitar) e conquistara o respeito da cidade. Via-se isso, indiferentemente, no olhar dos homens (muulmanos, cristos e judeus) que apareciam naquele ptio coberto de fuligem para comprar implementos de ferro. Achei que eu pudesse orient-lo no projeto de uma boa arma, mas ele j estava adiante de mim. "Ests falando de um fuzil alemo como o Jger? Um fuzil de caa?", perguntou quando lhe descrevi a arma que eu perdera. "J trabalhei em alguns. Mostra-me na areia o comprimento que queres." Esbocei um cano de quarenta e duas polegadas. "No vai ficar desajeitado demais?" "O comprimento d preciso e potncia bala. Quanto ao calibre, o quarenta-e-cinco j basta; a velocidade do fuzil permite que se usem balas menores que as de mosquete, e assim, para uma mesma quantidade de bucha e plvora, eu posso levar mais munio. Ferro doce, ranhuras profundas, uma cada na coronha para que os olhos fiquem na altura da mira, mas a fronte permanea longe da chama. O melhor fuzil que j vi consegue pregar trs em cada cinco pregos a cinqenta jardas. Leva um minuto inteiro para carregar e socar, mas o primeiro tiro j acerta mesmo alguma coisa." "Por aqui, a regra so as armas de alma lisa. So rpidas na hora de recarregar, e d para munici-
las com qualquer coisa - se for necessrio, at seixos. Para essa tua arma, vamos necessitar de balas precisas." "Ser preciso ser certeiro." "No combate aproximado, a rapidez ao recarregar leva s vezes a melhor." Jeric tinha a parcialidade dos marujos com os quais servira, homens que, ao abordarem um navio inimigo, partiam direto para o arranca-rabo brutal. "E o tiro certeiro ao menos impede que se aproximem de ns. Para mim, tentar lutar com um mosquete comum como ir ao bordel de olhos vendados - podemos at conseguir o que queremos, mas tambm podemos errar e muito o alvo." "No sei nada dessas coisas." Como era difcil brincar com ele! Jeric olhou para o esboo na areia. "So quatrocentas horas de trabalho. E pretendes usar o tal tesouro para me pagar por isso?" "Em dobro. Vou dar duro procurando enquanto fabricas o fuzil." "No." Ele balanou negativamente a cabea. "E fcil prometer dinheiro que no se tem. Vais ajudar, no apenas nesse servio, mas tambm em outros. Ser uma experincia nova para ti fazer trabalho de verdade. Nos dias de pouco movimento, podes caar tesouros enterrados ou ouvir rumores suficientes para satisfazer a Sidney Smith. Podes cobrar dele para saldar tua prpria dvida comigo." Trabalho honesto? A idia era instigante (verdade seja dita, eu s vezes invejo tipos srios e
responsveis como Jeric), mas tambm assustadora. "Ajudarei na forja", regateei, "mas precisas me garantir horas suficientes para que eu cisque por a. Que tenhas o fuzil pronto no final do inverno, quando Napoleo chegar. Nessa altura, eu j terei achado o tesouro e conseguido o dinheiro com Smith." Conseguir arrancar alguma coisa do Almirantado como extrair caldo de cadaros, mas a primavera estava bem longe. Poderia acontecer muita coisa at l. "Pois ento usa o fole para avivar aquele fogo." E, depois que obedeci de um timo, e joguei carvo com a p, e virei tanto metal que meus ombros doam, Jeric balanou a cabea, de m vontade. "Miriam acha que s um bom homem." Com o endosso dela, eu sabia que tinham alguma confiana em mim. Jeric primeiro pegou uma haste metlica cilndrica, ou mandril, de calibre ligeiramente menor que o do cano pretendido para meu futuro fuzil. O ferreiro aqueceu uma fita de ao carbonizado de Damasco, prpria para fazer armas de fogo, que teria o mesmo comprimento do cano da arma. Ele enrolaria a fita em torno do mandril. Segurei o mandril e lhe passei ferramentas enquanto Jeric colocava a fita numa das ranhuras da bigorna apropriada e comeava a martelar para ir formando o cano. Fazia aquilo uma polegada de cada vez, retirando o mandril enquanto o metal ainda estava ligeiramente malevel e mergulhando o resultado do trabalho na gua. A,
voltava a reaquecer, enrolar outra polegada do ao, martelar e ressoldar. E assim amos, de polegada em polegada. Era uma faina tediosa, mas tambm curiosamente apaixonante. Aquele cano seria meu novo companheiro. A obrigao me mantinha aquecido, e o trabalho braal duro produzia sua prpria satisfao. Eu comia com simplicidade, dormia bem e at vim a me sentir vontade na singeleza devota de minhas acomodaes. Meus msculos, j tonificados pelo Egito, ficaram ainda mais rijos. Tentei fazer que o ferreiro se abrisse. "No s casado, Jeric?" "Vs alguma esposa por aqui?" "Mas um homem prspero e bem-apanhado como tu?" "Eu no quero saber de casar." "Eu tambm no. Nunca encontrei a moa certa. Mas a houve essa mulher no Egito..." "Teremos notcias dela." "Ento so s tu e tua irm", insisti. Ele parou de martelar, incomodado. "J fui casado. Ela morreu quando estava grvida do meu filho. Aconteceram outras coisas. Eu fui para o navio britnico. E Miriam..." Agora eu estava entendendo. "Cuida de ti, o irmo enlutado." O olhar dele encontrou o meu. "Assim como cuido dela." "E se aparecer um pretendente?" "Ela no quer saber de pretendentes." "Mas uma moa to adorvel! Doce. Recatada. Obediente." "E tu tens essa mulher no Egito."
"Precisas casar", aconselhei. "E ter uns filhos para fazer-te dar risadas. Talvez eu possa arranjar algum para ti." "Eu no preciso da ajuda de um estrangeiro. Ou de um vagabundo." "Mas, j que estou aqui, eu posso oferec-la assim mesmo!" Eu sorri de orelha a orelha, ele resmungou, e ns voltamos a malhar metal. Quando o trabalho era leve, eu saa para conhecer Jerusalm. Dependendo do bairro aonde ia, variava ligeiramente a indumentria, procurando garimpar informaes teis com meu conhecimento do rabe, ingls e francs. Jerusalm estava acostumada com peregrinos, e meus sotaques no chamavam a ateno. As confluncias da cidade eram as feiras, onde os ricos e os pobres se misturavam e os janzaros faziam casualmente refeies com artesos comuns. Se os khaskiyya, ou refeitrios beneficentes, atendiam aos desamparados, as cafeterias atraam homens de todos os credos para bebericar caf, fumar narguil e debater. Com o caf, o forte fumo turco e o haxixe, o ar era inebriante. De vez em quando, eu convencia Jeric a vir junto. Ele precisava de uma ou duas taas de vinho para se soltar, mas, quando comeava, suas relutantes explicaes sobre a terra natal se mostravam inestimveis. "Em Jerusalm, todo o mundo acha que est bem mais perto do Cu que os outros", resumiu, "o que significa que, juntos, eles criam seu prprio Inferno particular."
"Mas no esta uma cidade desarmada, lugar de paz e devoo?" "At o momento em que algum pisa na devoo dos outros." Se algum perguntava sobre minha presena ali, eu explicava que era representante comercial dos Estados Unidos, coisa que fora de verdade em Paris. Dizia estar esperando para fazer negcio com o vencedor. Queria ser amigo de todos. A cidade estava to tomada por rumores da chegada de Napoleo que zumbia como uma colmeia, mas no havia consenso sobre qual lado levaria a melhor. Djezzar dominava implacavelmente a regio havia um quarto de sculo. Bonaparte ainda no fora derrotado. Os ingleses controlavam o mar, e a Palestina no passava de uma ilhota no vasto Imprio Otomano. Embora xiitas e sunitas estivessem s turras nas comunidades muulmanas e tanto os cristos como os judeus fossem minorias indceis e desconfiadas uma da outra, no estava de maneira alguma claro quem pegaria em armas contra quem. Aspirantes a dspota religioso de meia dzia de credos sonhavam em estabelecer suas respectivas utopias puritanas. Mesmo que Smith tivesse esperana de que eu fosse recrutar adeptos para a causa britnica, minha pessoa no tinha nenhuma inteno de realmente faz-lo. Eu ainda gostava dos ideais republicanos franceses e dos homens com os quais servira no Egito, e no discordava necessariamente dos sonhos de Napoleo de reformar o Oriente Prximo. Por que deveria eu tomar o lado dos arrogantes britnicos,
que haviam combatido to cruelmente a independncia de minha prpria nao? Tudo o que eu queria de fato era ter notcias de Astiza e descobrir se existia alguma possibilidade de que esse legendrio Livro de Tot ainda estivesse por a aps trs mil anos. E, depois, fugir daquele hospcio. Assim, descobri o que pude na cultura de caf e narguil que tinham ali. Era uma cidade pequena, e foi inevitvel que se espalhasse a notcia sobre o infiel em indumentria rabe que estava trabalhando na forja de um cristo; mas ali havia muita gente com passado nebuloso que procurava um monte de coisas. Eu era s mais um e me dedicava quilo em que consiste maioritariamente a vida - esperar.
-5
Para passar o inverno, dei o melhor de mim para mexer com Miriam. Na feira, eu encontrara um pedao de mbar, com um inseto preservado l dentro. Estava sendo vendido como amuleto vistoso e brilhante, mas vi nele um objeto de cincia. Numa ocasio em que Miriam estava depenando e limpando um frango, cheguei de fininho por trs, esfreguei o mbar energicamente em minhas roupas e a ergui a mo por sobre as peninhas. Algumas flutuaram para a minha palma. Ela se voltou num timo. "Como que fazes isso?" "Trago misteriosos poderes da Frana e da
Amrica", entoei. Miriam fez o sinal-da-cruz. "E coisa de mpios trazer magia para esta casa." "No se trata de magia - um truque eltrico que aprendi com meu mentor, Benjamin Franklin." Virei a palma da mo para cima, de modo que Miriam pudesse ver o mbar que eu estava segurando. "Os antigos gregos j faziam isso. Quando se esfrega o mbar, ele atrai coisas. Damos a essa mgica o nome de eletricidade. Eu sou um eletricista." "Que idia tola", disse Miriam, sem muita convico. "Vamos, experimenta." Peguei-lhe a mo, embora Miriam hesitasse, e coloquei o mbar em seus dedos, desfrutando o pretexto para toc-la. Os dedos eram fortes, avermelhados pelo trabalho. Em seguida, esfreguei o mbar em sua manga e a segurei sobre as penas. E no deu outra coisa: algumas levitaram para grudar-se manga. "E agora s tambm uma eletricista." Miriam torceu o nariz e me devolveu o mbar. "Como que arrumas tempo para brincadeiras inteis?" "Mas talvez no sejam inteis." "Se s to esperto, usa o teu mbar para depenar o prximo frango!" Ri e passei-lhe o mbar pelo queixo, atraindo com ele fios de seu lindo cabelo. "Talvez o mbar possa servir de pente." Eu criara um vu louro, com os desconfiados olhos de Miriam por cima. "s um descarado." "Sou curioso, s isso." "Curioso de qu?" Ela ruborizou to logo perguntou isso.
"Ah, agora comeas a me entender." Dei uma piscadela. Mas Miriam no deixou as coisas irem, alm disso. Eu tivera a esperana de fazer o tempo ocioso passar com um ou outro jogo de cartas, mas estava na pior cidade do mundo para isso. Jerusalm oferecia menos diverso que um piquenique quacre. Tambm no havia muita tentao carnal numa cidade onde as mulheres estavam mais cobertas que criana de colo numa nevasca do Maine. Assim, meu celibato de Jafa estava sendo involuntariamente prolongado. Ah, as mulheres me lanavam de vez em quando olhares cativantes (eu tenho algum estilo), mas os encantos delas eram envenenados pelas histrias lgubres que se ouviam nas cafeterias sobre a mutilao genital levada a efeito nos mais galantes por pais ou irmos furiosos. coisa que faz mesmo um homem pensar antes. Com o tempo, acabei ficando to frustrado e entediado que busquei inspirao na brincadeira do mbar e resolvi mexer com eletricidade, da maneira que Franklin me ensinara. O que parecera um esperto passatempo parisiense para encantar os sales com um beijo eltrico (to logo dava uma descarga eltrica numa mulher com minhas mquinas, eu conseguia fazer uma fasca passar entre os lbios de um casal) adquirira carter mais srio aps minha estada no Egito. Teria sido possvel que os antigos houvessem transformado tais mistrios em poderosa magia? Teria sido esse o segredo de suas civilizaes? A cincia era tambm um modo de elevar meu status durante
aquele inverno do descontentamento em Jerusalm, pois a eletricidade constitua novidade ali. Com a relutante tolerncia de Jeric, constru uma manivela de frico, com um disco de vidro para servir de gerador. Quando eu a virava contra coxins ligados a um arame, a carga esttica se transmitia aos jarros de vidro que eu revestira com chumbo - eram minhas garrafas de Leiden improvisadas. Usei filamento de cobre para ligar em seqncia essas baterias de fasca e enviar a uma corrente de metal eletricidade o bastante para fazer os fregueses saltarem se a tocassem, deixando seus braos e pernas dormentes por horas. Os estudiosos da natureza humana no ficaro surpresos em saber que homens faziam fila para levar choque, que os fazia tremer de espanto com suas extremidades formigando. Ganhei ainda mais fama de feiticeiro quando eletrifiquei meus braos e usei os dedos para atrair lascas de lato. Percebi ento que me tornara um conde Silano, um mago. Os homens comearam a cochichar a respeito de meus poderes, e reconheo que gostei da notoriedade. No Natal, retirei o ar de um globo de vidro, fazendo-o girar com a manivela, e estendi a palma da mo sobre ele. O brilho roxo que resultou iluminou o barraco e deixou as crianas da vizinhana extasiadas, muito embora duas velhas tenham desmaiado, um rabino tenha sado ruidosa e furiosamente do recinto e um padre catlico tenha estendido o crucifixo em minha direo.
" s um truque de salo", disse eu, para tranqiliz-los. "Na Frana, fazemos isso o tempo todo." "E o que so os franceses seno infiis e ateus?", rebateu o padre. "Boa coisa a eletricidade no dar." "Pelo contrrio: sbios da Frana e da Alemanha acreditam que choques eltricos possam curar a doena ou a loucura." Mas, como todo o mundo sabe que os mdicos matam mais do que curam, os vizinhos de Jeric no acaram l muito impressionados com essa perspectiva. Miriam tambm continuava ressabiada. "Parece trabalho demais s para dar uma aguilhoada em algum." "Mas por que a eletricidade aguilhoa? Era isso o que Ben Franklin queria entender." "Ela vem quando se gira a manivela, no?" "Mas por qu? Quando batemos leite para fazer manteiga, ou tiramos gua de um poo, ns obtemos eletricidade? No, h algo de especial naquilo, e Franklin achava ser a fora que anima o universo. Talvez seja a eletricidade o que anima as nossas almas." "Blasfmia!" "A eletricidade est em nossos corpos. Eletricistas vm tentando reanimar com a eletricidade, criminosos mortos." "Ugh!" "E os msculos dos mortos realmente se movem, embora o esprito j tenha partido. E a eletricidade o que nos d vida? E se pudssemos domar essa fora tal qual domamos o fogo ou os msculos de um cavalo? E se os antigos egpcios j faziam isso?
A pessoa que soubesse como fazer poderia ter um poder inimaginvel." "E isso que procuras, Ethan Gage? Poder inimaginvel?" "Quando vemos a pirmide, ficamos imaginando se os homens no tinham tal poder no passado. Por que no podemos reaprend-lo?" "Talvez porque cause mais mal do que bem." Entrementes, Jerusalm aplicava sua prpria magia. No sei se a histria humana consegue encharcar o solo como a chuva de inverno, mas os lugares que visitei transmitiam uma sensao palpvel, inescapvel e persistente do tempo. Cada parede tinha uma lembrana; cada viela, uma histria. Jesus caiu aqui, Salomo deu as boas-vindas rainha de Sab ali, os cruzados foram carga nesta praa, Saladino retomou a cidade do outro lado daquela muralha. O mais extraordinrio era o canto sudeste da cidade, que consistia num vasto tabuleiro artificial construdo no topo do monte onde Abrao ofereceu o sacrifcio de Isaac - o Monte do Templo. Construdo por Herodes, o Grande, uma plataforma pavimentada de meia milha de comprimento e trezentas jardas de largura. Mas tudo aquilo apenas para um templo? Por que precisara ser to grande? Estaria a plataforma cobrindo algo escondendo algo - mais crucial? Isso me fez lembrar nossas interminveis especulaes sobre o verdadeiro propsito das pirmides. O Templo de Salomo ficava nesse monte at que primeiro os babilnios e depois os romanos o destruram. E ento os muulmanos construram
sua mesquita dourada naquele mesmo local. Na extremidade sul, havia outra mesquita, El-Aqsa, cujas formas tinham sido distorcidas por anexos feitos pelos cruzados. Cada religio tentara deixar sua marca ali, mas o resultado geral era um vazio sereno, elevando-se acima da cidade comercial como o prprio Cu. Ali, crianas brincavam, e ovelhas pastavam. De vez em quando, eu subia a passos largos pelo Porto da Corrente e passeava pelo permetro, observando com minha lunetinha os montes circundantes. Os muulmanos me deixavam em paz, sussurrando que eu era um djinn, um gnio da garrafa, que explorava poderes sombrios. Apesar de minha fama, ou talvez por causa dela, deixavam-me s vezes entrar no prprio Domo da Rocha, a mesquita azulejada de azul. Eu tirava as botas antes de pisar em seu tapete vermelho e verde. Talvez tivessem a esperana de me converter ao isl. O domo era sustentado por quatro imensos pilares e doze colunas, e seu interior era adornado com mosaicos e escrita islmica. Debaixo dele, ficava a rocha sagrada, Kubbet es-Sakhra, pedra fundamental do mundo, onde Abrao oferecera o filho em sacrifcio e onde Maom subira para percorrer o Cu. Num dos lados da rocha havia um poo, e constava que existiria uma pequena gruta debaixo dele. Ser que alguma coisa estava mesmo escondida l? Se um dia o Templo de Salomo se erguera ali, ser que algum tesouro hebraico no fora ocultado no mesmo lugar? Mas ningum estava autorizado a descer gruta, e, quando eu me demorava
demais, um zelador muulmano me tocava para longe. Assim, fiquei especulando, e dei duro com Jeric para malhar ferraduras, foices, tenazes, dobradias e todas as diversas ferragens do cotidiano. Tive ampla oportunidade para fazer perguntas a meu anfitrio. "Ser que nesta cidade h subterrneos onde algo de valor pudesse ficar oculto por um tempo longo?" Jeric deu uma risada nada amistosa. "Subterrneos em Jerusalm? Todo poro leva a um labirinto de tneis abandonados e ruas esquecidas. No te esqueas de que esta cidade j foi saqueada por metade das naes do mundo, incluindo os teus cruzados. Cortaram-se tantas gargantas que a gua do subsolo deveria ser sangue. E runa em cima de runa em cima de runa, para no falar de uma mixrdia de grutas e pedreiras. Subterrneos? Deve haver mais Jerusalm l embaixo que aqui em cima!" "Essa coisa que estou procurando foi trazida pelos antigos israelitas." Ele grunhiu. "No venhas me dizer que ests procura da Arca da Aliana! Isso mito de lunticos. Ela pode ter estado um dia no Templo de Salomo, mas no h meno da arca desde 586 antes de Cristo, quando Nabucodonosor destruiu Jerusalm e levou os judeus para o exlio." "No, no, eu no me refiro a isso..." Mas me referia, sim, ou pelo menos nutria a esperana de que a arca me levasse ao livro, ou de que fossem
os dois a mesma coisa. Arca caixa, e teoricamente a Arca da Aliana era a caixa de accia revestida de ouro na qual os hebreus que escaparam do Egito mantinham os Dez Mandamentos. Diziam que tinha misteriosos poderes e que roi de ajuda na hora de derrotar os inimigos dos hebreus. Era natural que eu perguntasse a mim mesmo se o Livro de Tot tambm no seria um recipiente, j que Astiza acreditava que Moiss o pegara. Mas no revelei nada disso, no at aquele momento. "timo. Levarias toda a eternidade para escavar Jerusalm, e desconfio que no terminarias com mais do que comeaste. Desce rastejando pelos buracos se quiseres, mas tudo o que encontrars sero cacos de loua e ossos de rato." Embora Miriam fosse uma mulher calada, eu aos poucos percebi que aquele silncio era o vu de uma inteligncia aguada, com intensa curiosidade a respeito do passado histrico. Por diferentes que ela e Astiza fossem na personalidade, eram gmeas no intelecto. Nos primeiros dias de minha estaca, ela preparava e servia nossas refeies, mas comia parte. S depois que eu trabalhara um tempo com Jeric na forja, conquistando pequeno grau de confiana, foi que consegui induzir os dois a concordarem que ela ficasse conosco mesa. Afinal, no estvamos predispostos a segregar os sexos como os muulmanos, e a relutncia dos irmos era curiosa. De incio, Miriam falava apenas quando se dirigiam a ela (mais uma vez, o oposto de Astiza) e parecia ter pouca necessidade de expressar-se.
Como eu j desconfiara, ela era realmente linda (uma beleza que sempre me fazia pensar em frutas com creme), mas relutava em tirar o leno dos cabelos mesa. Quando o fazia, eles se assemelhavam a uma cachoeira dourada, to claros quanto eram escuros os cabelos de Astiza. O pescoo era longo, e as mas do rosto, encantadoras. Eu continuava a me orgulhar de minha castidade (j que achar uma aventureira em Jerusalm era como tentar achar uma virgem nos sales de carteado de Paris, eu bem podia ficar satisfeito com minha virtude forada), mas fiquei assombrado com o fato de que tal beldade ainda no tivesse sido levada embora por algum admirador persistente. noite, eu ouvia os sons da gua enquanto Miriam, em p numa cuba, banhava-se cuidadosamente. Eu no conseguia deixar de tentar imaginar seus seios e seu ventre, a rotundidade de suas ancas, as pernas esbeltas e fortes que meu crebro to frustrado cogitava, com riachos de gua e sabo a carem em cascata pela topografia perfeita das coxas, panturrilhas e tornozelos. E a eu gemia, tentando pensar em eletricidade, e acabava recorrendo ao punho. No jantar, Miriam desfrutava nossa conversa com olhar rpido e animado. Os irmos eram pessoas que tinham visto um pouco do mundo. Por isso, gostavam de minhas histrias sobre Paris, a infncia e juventude na Amrica, minhas primeiras incurses no comrcio de peles nos Grandes Lagos, minhas jornadas pelo Mississippi at Nova Orleans e as ilhas aucareiras das Antilhas. Tambm estavam curiosos acerca do
Egito. No lhes falei dos segredos da Grande Pirmide, mas descrevi o Nilo, as grandes batalhas terrestres e navais do ano anterior e o templo de Dendara, que eu visitara bem mais ao sul. Jeric me falou da Palestina, da Galilia (por onde Jesus caminhara), dos pontos de interesse cristos que eu poderia visitar no monte das Oliveiras. Aps alguma hesitao, Miriam tambm comeou a fazer sugestes acanhadas, indicando que ela conhecia muito mais sobre a Jerusalm histrica do que eu teria imaginado. Conhecia muito mais, alis do que o irmo. Ela no apenas sabia ler (coisa j bem rara entre as mulheres em terra islmica), como tambm lia avidamente e passava grande parte de seus inenciosos dias, resguardada dos homens e livre de crianas, no estudo de livros que comprava na feira ou pegava emprestado nos conventos. "O que ests lendo?", eu lhe perguntava. "O passado." Jerusalm era um lugar carregado de passado. Do lado de fora das muralhas, eu vagava pelos montes no inverno gelado, quando a luz projetava longas sombras sobre runas annimas. Certa vez, o vento cortante trouxe uma neve leve, e essa manta branca foi seguida de um cu azul-claro e um sol to desprovido de calor quanto uma pipa. Ao iluminar a paisagem, ele a transformava em acar. Entrementes, continuava o trabalho no fuzil, e eu podia ver que Jeric estava gostando da percia artesanal exigida. Quando se forjou por completo o cano, ns o alargamos no sentido longitudinal at
o dimetro correto. Eu girava a manivela enquanto Jeric empurrava o cano (firmado com braadeiras) em minha direo. Era trabalho pesado. Depois que acabamos isso, Jeric aferiu o resultado esticando um fio pelo furo, bem firme, e procurando sombras e rebarbas que assinalassem imperfeies. Aquecendo e malhando o cano com habilidade, ele ficou ainda mais reto. A feitura das ranhuras que fariam a bala girar no cano foi esmerada e laboriosa. Eram sete ranhuras, cada uma delas feita por uma broca que girava pelo cano. J que a broca no podia cortar fundo, era preciso gir-la mo pelo cano - duzentas vezes para cada ranhura. E isso foi s o comeo. Havia o polimento, o recozimento do ao, a grande quantidade de peas de metal para a pederneira, o gatilho, o acabamento da coronha, a vareta etc. Minhas mos ajudaram, mas a percia era toda de Jeric, cujas manoplas carnudas se mostravam capazes de produzir resultados dignos de uma prendada donzela com a agulha. Os momentos em que ele ficava mais feliz eram aqueles em que podia trabalhar em silncio. Um dia, a donzela Miriam me surpreendeu ao pedir para tomar as medidas de meu brao e meu ombro. Seria ela quem entalharia a coronha, que precisa ficar ajustada ao tamanho do atirador tal qual um casaco. A prpria Miriam se propusera para a tarefa. "Ela tem olho de artista", explicou Jeric. "Mostra a cada e o desaprumo que queres na coronha." O bordo era uma rvore inexistente
na Palestina, de modo que Miriam empregou a mesma madeira usada na Arca da Aliana, a accia do deserto - mais pesada do que eu preferiria, mas dura, firme, resistente. Depois que fiz um esboo tosco de como queria que a madeira diferisse do desenho das armas de fogo rabes, Miriam traduziu minha sugesto em curvas graciosas, que lembravam os fuzis da Pensilvnia. Quando ela tomou minhas medidas para as dimenses da coronha, tremi como um garoto de escola ao toque de seus dedos. Vede quo casto eu me tornara. Assim eu levava a vida, despachando para Smith avaliaes polticas e militares to vagas que teriam confundido qualquer tolo estrategista o suficiente para dar ateno a elas. At que, uma noite, nosso jantar foi interrompido quando vieram bater com fora na porta de Jeric. O ferreiro foi ver quem era e voltou com um viajante barbudo e empoeirado, da caravana da feira do dia. "Trago notcias do Egito para o americano", declarou o visitante. Foi a vez de meu corao bater com fora no peito. Sentamos mesa simples de cavaletes, e o homem foi servido de gua (era muulmano e recusou todo e qualquer vinho), azeitona e po. Enquanto ele agradecia acanhadamente nossa hospitalidade e comia como um esfomeado, eu aguardava com apreenso, surpreso com a enxurrada de emoes que me corriam pelas veias. Durante aquelas semanas com Miriam, Astiza fora encolhendo em minha lembrana.
Agora, sentimentos enterrados havia meses latejavam em minha cabea como se Astiza ainda estivesse em meus braos ou eu a visse balanar desesperadamente numa corda abaixo de mim. Corei, impaciente, sentindo a comicho da ansiedade. Miriam me observava. Houve o de praxe: as saudaes, os votos de prosperidade, as expresses de agradecimento ao Divino, um relatrio sobre a sade (por conta da prevalncia da gota, febre intermitente, hidropisia, frieiras, oftalmia, dores e desfaleratos, o "Como ests?" uma das mais profundas indagaes de minha e uma lista das provaes da viagem. Por fim, a pergunta: "Quais so as notcias da amiga deste homem?". O mensageiro engoliu, sacudindo da barba as migalhas de po. "H rede um balo francs que se perdeu durante a revolta de outubro no Cairo", comeou. "Nada sobre o americano a bordo; dizem que ele simplesmente desapareceu ou desertou do exrcito francs. Vrios relatos alegam que o americano estaria aqui ou ali, mas no existe consenso sobre o que teria acontecido a ele." Olhou de relance para mim e ento baixou a vista para a mesa. "Ningum confirma vossa histria." "Mas com certeza h notcias do que aconteceu ao conde Silano", insisti. "O conde Alessandro Silano est igualmente desaparecido. Consta que estava investigando a Grande Pirmide e ento sumiu. Alguns desconfiam que ele tenha sido morto na pirmide. Outros acham que voltou para a Europa. Os
crdulos acreditam que o conde tenha desaparecido por mgica." "No, no!", objetei. "Ele caiu do balo!" "No h notcia disso, efndi. S estou vos contando o que dizem por l." E Astiza?" "No achamos nem sinal dela." Fiquei deprimido. "Nem sinal?!" "A casa de Qelab Almani, o homem que chamais Enoque, onde afirmais vos hospedado, ficou vazia depois que o assassinaram e foi requisitada para servir de quartel aos franceses. Yusuf al-Beni, que dissestes ter hospedado essa mulher em seu harm, nega que algum dia ela tenha posto os ps l. Correm boatos de que uma linda mulher acompanhou a fora expedicionria do general Desaix ao alto Egito, mas, se isso de fato aconteceu, ela tambm sumiu. Do mameluco Ashraf que mencionastes, no tivemos nenhuma notcia. Ningum se recorda da presena de Astiza, seja no Cairo, seja em Alexandria. A soldadesca fala de uma mulher atraente, verdade, mas ningum afirma t-la visto ou conhecido. E quase como se ela nunca houvesse existido." "Mas ela tambm caiu no Nilo! Um peloto inteiro viu!" "Se assim foi, meu amigo, ela no deve nunca ter reaparecido. Essa mulher parece ter sido uma miragem." Eu estava abismado. A morte de Astiza, o sepultamento de seu corpo aps o afogamento,
era algo para que eu me preparara. Sua sobrevivncia, mesmo como prisioneira, algo pelo que eu nutrira esperana. Mas seu total desaparecimento?! Ser que o rio a carregara, para nunca mais ser vista nem receber enterro decente? Que tipo de resposta era aquela? E Silano tambm se fora? Isso era ainda mais suspeito. Teria Astiza sobrevivido de algum modo e ido embora com ele? Tal idia me agoniava ainda mais! "Deveis saber algo mais que isso! Deus do Cu, o exrcito inteiro a conhecia! Napoleo falou dela! Importantes sbios franceses a levaram no barco deles! E agora no se tem notcia nenhuma?!" O homem olhou para mim, solidrio. "Sinto muito, efndi. Deus s vezes deixa mais perguntas do que respostas, no mesmo?" Os humanos conseguem adaptar-se a tudo menos incerteza - os piores monstros so aqueles que ainda no encontramos. Mas ali estava eu, ainda ouvindo as ltimas palavras de Astiza, a ressoar em minha cabea: "Acha-o!". Depois, ela a cortar a corda, a cair com Silano, os gritos, o sol ofuscante enquanto o balo subia para longe... Teria sido tudo aquilo um pesadelo? No! Fora to real quanto aquela mesa. Jeric me olhava com desalento. Solidariedade, sim, mas tambm a cincia de que a egpcia me mantivera longe da irm dele. O olhar de Miriam era agora mais direto do que jamais fora, e nele vi uma compreenso pesarosa. Naquele instante, percebi que tambm ela perdera algum. Por isso no se encorajavam pretendentes, por isso o
irmo continuava a ser a companhia mais chegada. Estvamos todos unidos pela dor. "Eu s queria uma resposta clara...", sussurrei. "Vossa resposta que o que passou, passou." O visitante se levantou. "Sinto que eu no possa ter trazido notcias melhores, mas sou apenas o mensageiro. Os amigos de Jeric ficaro de ouvidos atentos, claro. Mas no tenhais esperanas. Ela se foi." E, tendo dito isso, ele tambm partiu.
-6Minha primeira reao foi querer sair de Jerusalm, do maldito Oriente, naquela mesma hora. E para sempre. Agora, toda a grotesca odissia com Bonaparte ter escapado de Paris, zarpado de Toulon, visto a tomada de assalto de Alexandria, conhecido Astiza etc., etc., passando por batalhas pavorosas, pela perda de meu amigo Antoine .alma e pelo cruel segredo da Grande Pirmide - tinha o gosto mais amargo possvel. Aquilo no dera em nada - nem riquezas, nem o perdo pelo crime que eu nunca cometera em Paris, nem a filiao permanente aos estimados sarants que tinham acompanhado a expedio napolenica, nem o amor duradouro pela mulher que me arrebatara e enfeitiara. Eu at perdera o fuzil! Meu nico motivo real para ter vindo Palestina fora descobrir o paradeiro de Astiza, e, agora que a notcia era que no havia
notcias (pode alguma mensagem ser mais cruel que isso?), minha misso parecia v. Eu no me importava com a iminente invaso da Sria, o destino do Aougueiro, a carreira de sir Sidney Smith, os clculos polticos dos drusos, judeus e todo o resto daqueles que estavam presos em seus infindveis ciclos de vingana e inveja. Como que eu fora parar naquela insana necrpole do dio? J era hora de voltar para casa na Amrica e dar incio a uma vida normal. E, no entanto... Minha determinao de dar tudo por encerrado e partir estava paralisada pelo simples fato de no saber. Se Astiza parecia no estar viva, ela tampouco estava definitivamente morta. No havia cadver. Se eu partisse, seria assombrado pelo resto da vida. Eu tambm ainda guardava lembranas demais de Astiza - ela terme mostrado a estrela Srio quando subamos o Nilo, ter-me ajudado a conter Ashraf na fria da Batalha das Pirmides, sua beleza quando sentada no ptio de Enoque, sua vulnerabilidade e seu erotismo quando acorrentada no Templo de Dendara. E, ento, ter possudo seu corpo s margens do Nilo!... Em um ou dois sculos, talvez se consigam superar lembranas como essas - mas no esquec-las. Astiza assombrava meus pensamentos. Quanto ao Livro de Tot, podia bem ser mito (afinal, tudo o que encontrramos na pirmide fora um repositrio vazio para ele e, talvez, o cajado escarninho de Moiss), mas e se no fosse e estivesse mesmo em algum lugar sob meus ps? Jeric estava perto de completar um fuzil em cuja
feitura eu dera uma mo e que parecia destinado a ser superior ao que eu perdera. E havia Miriam, que eu adivinhava ter sofrido alguma perda trgica antes da minha e que era minha parceira no pesar. Com Astiza desaparecida, a mulher cuja morada eu compartilhava, cuja comida eu comia e cujas mos estavam dando forma madeira de minha prpria arma parecia de repente ainda mai; maravilhosa. Para quem eu precisava voltar na Amrica? Para ningum. Assim, apesar da frustrao, eu me vi resolvendo ficar um pouco mais, pele menos at que a arma estivesse pronta. Eu era um jogador, esperando por uma virada nas cartas. Talvez uma nova carta aparecesse agora. E estava curioso acerca do que Miriam perdera. Ela me tratava com a mesma circunspeco decorosa de antes, mas agora nossos olhares se encontravam por mais tempo. Quando punha meu prato ela ficava perceptivelmente mais perto, e seu tom de voz - estaria eu imaginando coisas? era mais suave, mais solidrio. Jeric vigiava a ns dois com mais ateno e, s vezes, interrompia nossas conversas com interjeies rudes. Como que eu podia culp-lo? Miriam era uma linda colaboradora, de uma fidelidade canina, e eu era um estrangeiro folgazo, um caador de tesouros cujo futuro era incerto. Eu no conseguia deixar de sonhar em possu-la, e Jeric tambm era homem sabia o que qualquer de seus iguais desejaria. Pior: eu poderia carreg-la para a Amrica. Percebi que ele comeava a despender mais horas em meu fuzil. Queria termin-lo e ver-me indo embora.
Suportamos as chuvas do final do inverno, com Jerusalm cinzenta e silenciosa. Chegavam notcias de que Desaix, o melhor general de Bonaparte, relatava novos triunfos e novas e espetaculares runas bem acima no Nilo. Smith zanzava pelo mar entre Acre, Constantinopla e o bloqueio de Alexandria, tudo para preparar-se contra a ofensiva de primavera de Napoleo. Tropas francesas se acumulavam em El-Arish, perto da fronteira com a Palestina. O sol ia ganhando foras e lentamente aquecendo as pedras da cidade, e a guerra se avizinhava. Ento, numa manh escura, quando Miriam saiu para buscar nas feiras da cidade um tempero que faltava para o jantar, eu, num impulso, resolvi ir atrs dela. Queria uma oportunidade para falar-lhe longe da presena protetora de Jeric. Em Jerusalm, homem seguir mulher solteira era indecoroso, mas talvez se apresentasse a chance de conversarmos. Eu estava solitrio. O que pretendia dizer a Miriam? No sabia. Eu a segui a distncia, procurando pensar em algum motivo plausvel para abord-la, ou uma maneira de dar a volta pela frente para que nosso encontro parecesse coincidncia. Como estranho que ns, os humanos, precisemos elaborar to tortuosamente maneiras de expressar o que nos vai no corao! Ela, entretanto, andava rpido demais. Ladeou os tanques de Ezequias, desceu para o longo souk que dividia a cidade, comprou alimentos numa barraca, rejeitou os produtos de outras duas e ento pegou as vielas para as feiras
do bairro muulmano de Bezeta, para alm da residncia do pax. E a Miriam desapareceu. Num instante, ela estava descendo a Via Dolorosa, rumo ao Porto da Escurido, no Monte do Templo, e torre de El-Ghawanima. E, no instante seguinte, j sumira. Pisquei, confuso. Ser que notara que eu a seguia e tentara me evitar? Acelerei o passo, seguindo apressadamente diante de portas trancadas, at enfim perceber que eu j correra longe demais. Retrocedi e ento, do ptio adjacente a um antiqussimo arco romano que atravessava a rua, ouvi uma fala rude e insistente. E curioso como um cheiro ou um som conseguem chacoalhar a memria, e eu seria capaz de jurar que havia algo de familiar naquela voz masculina. "Para onde que ele vai? Onde que ele est procurando?" O tom era ameaador. "Eu no sei!" A mulher parecia aterrorizada. Depois de uma grade de ferro, adentrei um ptio escuro e coberto de entulho, umas runas que s vezes eram usadas como redil de cabras. Quatro brutos, usando capotes franceses e botas europias, cercavam a moa, amedrontada. Como j disse, eu estava desarmado, exceo feita adaga rabe que eu levava na faixa de cintura. Mas eles ainda no tinham me visto, o que me dava a vantagem da surpresa. No me pareciam o tipo de homem suscetvel a blefes, e por isso olhei rapidamente em volta, cata de alguma arma melhor. "Ser obrigado a usar das prprias habilidades ser jogado no prprio colo da
Fortuna", costumava dizer Ben Franklin. - s que ele tinha mais habilidades que a maioria. Por fim, avistei um cupido de pedra que, largado ali, havia muito fora desfigurado e castrado por muulmanos ou cristos que procuravam obedecer s injunes referentes a falsos dolos e a pnis pagos. A esttua jazia de lado no entulho, como se fosse uma boneca esquecida ali. Tinha um tero de minha altura - era bem pesada e felizmente no estava presa ao cho por nada que no fosse o prprio peso. Mal consegui ergula acima de minha cabea. Mas eu o fiz, rezei uma prece ao Amor e arremessei. Acertei as costas do amontoado de biltres como se fossem pinos de boliche, e eles desabaram uns sobre os outros, xingando. "Corre para casa!", gritei para a meiga Miriam. J haviam rasgado as roupas dela. Miriam olhou para mim, assentiu temerosamente, deu um passo para partir e a girou de repente quando um dos patifes a agarrou de novo. Achei que e l e talvez a puxasse para o cho, mas, mesmo enquanto era agarrada, Miriam o chutou nas bolas com fora e com a preciso de quem danava uma giga. Ouvi o baque do impacto, que fez o patife congelar tal qual flamingo em nevasca canadense. Ento Miriam soltou-se e saiu correndo pelo porto, aos pulos. Moa valente! Tinha mais tutano, e conhecimento da anatomia masculina, do que eu imaginara. Agora o bando de canalhas se levantava contra mim, mas, naquele meio-tempo, eu tornara a erguer o cupido e segurar o querubim pela cabea.
Girei num crculo completo e soltei a esttua. Dois dos viles se estatelaram, e o cupido se despedaou. Entrementes, vizinhos tinham ouvido a balbrdia e estavam armando uma gritaria. Um terceiro biltre comeou a desembainhar uma espada, at ento oculta (e obviamente passada s escondidas pela polcia de Jerusalm), e assim, antes que ele pudesse terminar de faz-lo, eu o atara com minha adaga rabe, enfiando-lhe a lmina. Apesar de todas as brigas em que me metera antes, eu nunca apunhalara ningum, e fiquei surpreso com quo depressa a lmina mergulhou nele e quo lugubremente ela roou uma costela nesse processo. O homem pareceu sibilar e se desvencilhou to violentamente que larguei o cabo da adaga. Cambaleei. Agora, estava sem arma nenhuma. Enquanto isso, aquele que vinha interrogando Miriam sacara uma pistola. Ah, no era possvel que ele fosse arriscar-se a disparar na cidade santa, violando todas as leis, quando vozes j se levantavam! Mas a arma disparou com estrondo, sua chama como o claro do relmpago, e algo me queimou o lado da cabea. Tropecei para longe, meio cego era hora de bater em retirada! Troquei pernas at a rua, mas o desgraado vinha atrs de mim, tenebroso, as abas de seu capote esvoaantes como asas, a espada desembainhada. Quem diabos era ele? O impacto da bala me deixara to zonzo que eu me movia com muita dificuldade. E ento, quando me voltei na viela para confrontlo da melhor maneira possvel, uma estaca passou
voando por mim e acertou o desgraado ali na fronteira da garganta com o peito. Ele deu uma tossidela medonha e escorregou, caindo sentado. Olhou para cima, perplexo, arquejante. Fora Miriam quem pegara um mastro de barraca de feira e o arremessara como uma lana! Eu tenho mesmo jeito para achar mulheres competentes. "Tu?!", disse o homem, quase impossibilitado de falar. Olhava para mim no para ela. "Por que no ests morto?!" Tampouco ests, pensei comigo mesmo, to atnito quanto ele. Pois, no luscofusco da viela calada de pedra: reconheci primeiro o emblema que o mastro arremessado por Miriam fizera ficar para fora da camisa dele - o compasso e o esquadro manico, com o G no centro - e depois o rosto moreno do "fiscal de alfndega" que, no ano anterior, me abordara na diligncia para Toulon, durante minha fuga de Paris. Ele tentara tomar-me o medalho, e eu acabara baleando-o com meu fuzil enquanto Sidney Smith acertava outro bandido, este oculto. Eu o deixara ali urrando, e fiquei imaginando se o ferimento acabara sendo fatal. Estava claro que no. Que diabos ele fazia agora em Jerusalm, armado at os dentes? Mas, claro, eu sabia, e sabia com horror que ele tinha o mesmo propsito que eu - procurar por segredos antiqussimos. O francs era agente de Silano e no desistira. Estava ali pelo Livro de Tot. E, aparentemente, por mim. Antes que eu tivesse chance de confirmar isso, porm, ele se ergueu com dificuldade, atentou aos
berros da vizinhana e aos gritos dos vizinhos e fugiu, ofegando. Corremos para o outro lado. Miriam tremia enquanto voltvamos para a casa de Jeric, tendo meu brao ao redor dos ombros dela. Nunca havamos estado fisicamente prximo, mas agora nos abravamos instintivamente. Peguei algumas das travessas menos bvias que eu descobrira em minhas andanas por Jerusalm, com os ratos afastando-se leves e ligeiros enquanto eu olhava para trs, verificando se nos seguiam. A volta era uma subida ngreme (nenhuma parte da cidade plana, e o bairro cristo mais elevado que o muulmano), de modo que depois de um tempo, paramos por um momento na reentrncia de um vo de porta, para tomarmos flego e nos certificarmos de que minha cabea latejante estava indo mesmo pelo caminho certo. "Eu sinto muito por aquilo disse a Miriam. "No atrs de ti que eles esto. de mim." "Quem so aqueles homens?" "O que atirou em mim francs. Eu j o vi antes." "Viste onde?" "Na Frana. A bem dizer, eu o baleei." Ethan!" "Ele tentava me assaltar. Uma pena que eu no o tenha matado naquela oportunidade." Ela olhou como se me visse pela primeira vez. "No era assunto de dinheiro, era coisa mais importante. No contei a ti e teu irmo a histria completa." A boca de Miriam estava entreaberta. "Acho que j hora de faz-lo."
"E aquela mulher, Astiza, era parte dessa histria?" Miriam falava em voz baixa. "Era." "Quem era ela?" "Uma estudiosa dos tempos antigos. Na realidade, uma sacerdotisa, mas de uma deusa egpcia muito, muito antiga. sis, j ouvistes falar." "A Virgem Negra." Miriam disse isso num sussurro. "Quem?" "Existe h muito um culto a imagens de Nossa Senhora talhadas em pedra negra. Alguns vem isso como simplesmente uma variao da arte crist, mas outros dizem que na verdade se trata de uma continuao do culto a sis. A Virgem Branca e a Negra." Interessante. sis surgira repetidamente durante minha busca no Egito. E agora essa mulher, ao que tudo indicava uma crist devota, sabia tambm alguma coisa sobre ela. Eu nunca ouvira falar de uma deusa pag que circulasse tanto. "Mas por que branca e negra?" Lembrei-me do padro xadrez das lojas manicas parisienses, quando eu me esforara ao mximo para entender a maonaria. E as duas colunas, uma branca e a outra negra, que ladeavam o altar das lojas. "Como o dia e a noite", respondeu Miriam. "Todas as coisas so duais, e esse um ensinamento que vem dos tempos mais longnquos, muito antes de Jerusalm e de Jesus. Homem e mulher. Bem e mal. Alto e baixo. Sono e viglia. Nossos pensamentos recnditos e nossos pensamentos conscientes. O universo est em tenso
permanente, e, apesar disso, os opostos precisam juntar-se para fazer o todo." "Astiza me disse a mesma coisa." Miriam assentiu. "O homem que atirou em ti usava uma medalha que expressava isso, no?" "Tu te referes ao smbolo manico do esquadro e do compasso sobrepostos?" "Eu o vi na Inglaterra. O compasso descreve o crculo, e o esquadro de carpinteiro traa um quadrado. O dual, outra vez. E o G significa God, em ingls, ou gnosis, conhecimento, em grego." "O hertico Rito Egpcio teve incio na Inglaterra", disse eu. "Mas o que aqueles homens querem?" "A mesma coisa que procuro. A mesma coisa que Astiza e eu procurvamos. Eles podem ter querido te seqestrar para pedir resgate e chegar a mim." Miriam ainda tremia. "Os dedos dele eram como garras." Senti-me culpado por inadvertidamente t-la arrastado para aquilo. O que antes era brincar de caa ao tesouro se transformara em perigosa busca. "Estamos numa corrida para descobrir a verdade antes deles. Vou precisar de ajuda de Jeric." Ela me pegou pelo brao. "Ento vamos tratar de consegui-la." "Espera." Eu a puxei de volta para o escuro. Senti que nossos apuros nos tinham dado certo grau de intimidade emocional e, por conseguinte, permisso para fazer uma pergunta mais pessoal. "Tambm perdeste algum, no verdade?"
Ela se impacientou. "Por favor, precisamos nos apressar." "Vi isso no teu olhar quando o mensageiro disse que no havia mais trao de Astiza. Fiquei imaginando se j no foste casada ou prometida s bonita demais. Mas houve algum, no houve?" Miriam hesitou, mas o perigo tambm abrira uma brecha em seu recolhimento. "Por intermdio de Jeric, conheci um homem, um aprendiz de ferreiro em Nazar. Ficamos noivos em segredo, pois meu irmo se enciumou. Jeric e eu ramos muito unidos como rfos, e os pretendentes o aborrecem. Ele descobriu, e houve uma altercao, mas eu estava decidida a casar. Antes que pudssemos faz-lo, meu noivo foi recrutado fora para o exrcito otomano. Acabou sendo mandado para o Egito e nunca voltou. Morreu na Batalha das Pirmides." Eu, naturalmente, estivera do lado oposto na mesma batalha, observando a eficiente matana que levou a cabo as tropas europias. Que desperdcio! Sinto muito", disse eu, insuficientemente. " a guerra. A guerra e o destino. E agora Bonaparte pode vir para c." Ela estremeceu. "Esse segredo que procuras... Ele poder ser de alguma ajuda?" Ajuda para qu?" "Para pr fim a toda a mortandade e violncia. Para tornar esta cidade outra vez santa." Bem, a questo era essa, no era mesmo? Astiza e seus aliados nunca tinham tido certeza sobre se poderiam usar o misterioso Livro de Tot para o
bem ou se precisavam simplesmente evitar que ele casse em mos erradas e fosse empregado para o mal. "Sei apenas que ser ruim se aquele desgraado que atirou em ns chegar a ele primeiro." Tendo dito isso, resolvi beij-la. Foi um beijo roubado, que tirava vantagem de nosso turbilho emocional, mas Miriam no se afastou de imediato, muito embora eu estivesse duro contra sua coxa. No consegui evitar (a ao e a intimidade tinham me excitado), e o modo pelo qual Miriam retribuiu o beijo me fez saber que ele era recproco, pelo menos um pouco. Quando ela de fato se afastou, foi com um pequeno suspiro. Para evitar que eu me comprimisse contra ela, desviou a vista de meus olhos para minha tmpora. "Ests sangrando." Era uma maneira de no falar o que acabramos de fazer. De fato, o lado da cabea estava mido e quente, e eu tinha uma dor de cabea danada. " s um arranho", respondi, com mais bravura do que sentia. "Vamos l falar com teu irmo." " melhor terminarmos esse teu fuzil", disse Jeric quando lhe contei nossa histria. "Magnfica idia. Eu gostaria tambm que me forjasses um machado de guerra como os dos ndios americanos. Ai!" Miriam estava enfaixando meu ferimento. Doa um pouco, mas seus dedos fortes se mostravam maravilhosamente delicados ao colocar a bandagem. Ainda que a bala de pistola tivesse me pegado apenas de raspo, um homem fica abalado quando a coisa assim por
um triz. Agora, verdade seja dita, gostei de que ela cuidasse de mim. Aquela mulher e eu havamos nos tocado mais naquela ltima hora que em todos os quatro meses anteriores. "No existe coisa mais til que essas machadinhas. e perdi a minha. Precisaremos de toda vantagem que pudermos conseguir." "Teremos de montar guarda, para o caso de esses bandidos aparecerem por aqui. Miriam, tu no sairs desta casa." Ela abriu a boca, mas logo a fechou. Jeric andava para l e para c. "Se esse fuzil mesmo to certeiro quanto afirmas, tenho uma idia para aprimor-lo. Tu dizes ser difcil mirar alvos no alcance mximo da arma, no ?" "Certa vez, mirei um inimigo e acertei o camelo dele." "Bem, reparei que ficas espiando pela cidade com tua luneta. E se a usssemos para te ajudar a mirar?" "Mas como?" "Prendendo-a ao cano do fuzil." Ora, a idia era absolutamente ridcula. Aquilo s aumentaria o peso, deixaria o fuzil mais desajeitado e atrapalharia na hora de colocar a plvora e a bala. No podia ser boa idia, j que ningum a tentara antes. No entanto.. E se ajudasse mesmo a ver de perto os alvos distantes? "Ser que funciona? Franklin, eu sabia, ficaria fascinado com esse tipo de improviso. O desconhecido, que assusta a maioria dos homens, atraa-o como a uma sereia.
"Podemos tentar. E precisaremos de aliados caso aquele bando ainda esteja na cidade. Achas que mataste um deles?" "Eu o apunhalei. Vai saber... Baleei o lder deles na Frana - e c est ele exuberante. Parece que tenho muita dificuldade em dar cabo das pessoas. Pensei em Silano e em Achmed bin Sadr, no Egito, ambos continuavam vindo atrs de mim mesmo depois de feridos diversas vezes. Eu no precisava s do fuzil. Precisava tambm de prtica de tiro. Vou mandar notcias a sir Sidney", disse Jeric. "A presena dos agentes franceses aqui pode ser importante o suficiente para que os britnicos mandem ajuda. E Miriam diz que tudo isso tem alguma coisa que ver com o tesouro que vives prometendo. O que est acontecendo de fato?" J passara da hora de eu confiar neles. "Aqui, em Jerusalm, pode estar enterrado algo que poderia influenciar todo o curso da guerra. Caamos essa coisa no Egito, mas acabamos concluindo que ela s pode ter vindo para Israel, o problema que, toda vez que encontro uma escada que leva para baixo, eu com algum tipo de beco sem sada. A cidade um monte de entulho. A minha busca talvez se mostre impossvel. E agora os franceses esto aqui, certamente atrs da mesma coisa." "Eles fizeram perguntas a teu respeito", lembrou Miriam. "Pois . Ser que s descobriram minha presena quando chegaram aqui? Ou ser que ficaram sabendo de longe? Jeric, essas pessoas que fizeram indagaes sobre Astiza no Egito podem ter deixado escapar que estou aqui?"
"O combinado no foi esse... Mas espera a - achar o qu, exatamente? Que tesouro esse que procuras?" Tomei flego. "O Livro de Tot." "Um livro?" Jeric ficou decepcionado. "Pensei que tivesses falado em tesouro. Passei o inverno inteiro fazendo um fuzil em troca de um livro?!" "Os livros tm poder, Jeric. Olha a Bblia. Ou o Coro. E esse livro diferente - um livro de sabedoria, poder e... magia." "Magia." Seu semblante era inexpressivo. "No precisas acreditar em mim. Tudo o que sei que atiraram em mim, jogaram serpentes em meu leito e perseguiram-se de camelo e barco para pegar esse livro - ou melhor, um medalho que eu tinha e que era a pista de onde estaria o livro. Ao fim, o medalho era a chave para uma porta secreta na Grande Pirmide, porta pela qual Astiza e eu adentramos. Descobrimos um lago subterrneo entupido de tesouros, um pavilho de mrmore e um repositrio de ouro para o livro." "Mas ento j tens o tesouro?" "No. A nica maneira de escapar da pirmide foi nadando por um tnel. Com o peso do ouro e das jias, eu poderia ter-me afogado. Perdi tudo. Os judeus talvez tenham enterrado um tesouro diferente aqui em Jerusalm." Jeric tinha a mesma expresso ctica que eu costumava ver em madame Durrell, em Paris, quando lhe explicava o atraso no pagamento do aluguel. "E o livro?" "O repositrio estava vazio. Tudo o que restava era um cajado, deixado ao lado. Astiza me
convenceu de que o cajado tinha sido trazido pelo homem que furtou o livro e que esse homem s pode ter sido..." Hesitei, sabendo o que tudo aquilo devia parecer. "Quem?" "Moiss." Por um instante, ele apenas piscou, consternado. Depois riu, um riso vociferante e desdenhoso. "A est - eu venho hospedando um demente! Ser que Sidney Smith sabe que s insano?" "Eu no contei tudo isso a ele, e no teria contado a ti e a Miriam se no tivssemos visto aquele francs. Sei que parece estranho, mas aquele patife estava aliado ao meu maior inimigo, o conde Silano. O que significa que o tempo curto. Precisamos achar o livro antes dele." "Um livro que Moiss furtou. "E isso assim to impossvel? Um prncipe egpcio mata um capataz num acesso de raiva, foge do pas e ento volta para libertar os escravos hebreus aps ter conversado com uma sara ardente. Tu acreditas em tudo isso, no? E, de repente, Moiss tem o poder de invocar pragas, dividir as guas e manter os israelitas alimentados no deserto do Sinai. A maioria dos homens diz que foi simplesmente milagre, uma ddiva divina - mas e se Moiss descobriu instrues que lhe disseram como fazer aquilo? Era nisso que Astiza acreditava. Ele era prncipe, sabia como entrar e sair da pirmide, a qual no passava de despiste e marco para proteger o livro dos indignos.
Moiss o pega, e, quando o Fara descobre que o livro se foi, ele persegue Moiss e os escravos hebreus com seiscentas bigas, apenas para ser engolido pelo mar Vermelho. Mais adiante, essa tribo de ex-cativos entra na Terra Prometida e comea a conquist-la aos habitantes civilizados ali estabelecidos. Mas como? Graas a uma arca com poderes misteriosos? Ou a um livro de sabedoria antiga? Sei que parece improvvel, mas os franceses tambm acreditam nisso. Do contrrio, aqueles homens no teriam seqestrado tua irm. Esta uma adversidade to real quanto os machucados nos braos e ombros de Miriam." O ferreiro me fitou, tamborilando. "s mesmo louco." Balancei a cabea, frustrado. "Ento por que estou com isto aqui?" E enfiei a mo em meu manto para sacar os dois serafins de ouro, cada um deles com quatro polegadas de comprimento. Miriam ficou boquiaberta, e os olhos de Jeric se arregalaram. Eu sabia que no era apenas o resplendor do ouro, ainda to vvido aps milnios. Era tambm o fato de que esses anjos ajoelhados, com as asas abertas na direo um do outro, constituam uma rplica minscula daqueles que outrora ornaram a tampa da Arca da Aliana. No era um truque barato que eu pudesse ter arranjado numa loja de arteso - a qualidade da obra era boa demais, e o ouro, pesado demais. "Um velho que encontrei os chamou de bssola", continuei. "No sei o que ele queria dizer. No sei quanto dessa histria verdadeiro. Tenho 'vido base de cincia, f e especulao desde que, um ano atrs, fugi de Paris. Mas as pirmides parecem
codificar uma matemtica sofisticada que nenhum povo primitivo teria como conhecer. E de onde veio a civilizao? No Egito, ela parece ter brotado j totalmente constituda. Reza a lenda que : conhecimento humano da arquitetura, escrita, medicina e astronomia veio de um ser chamado Tot, que se tornou divindade egpcia, predecessor do deus grego Hermes. Tot teria escrito um livro da sabedoria, to poderoso que poderia ser usado tanto para o mal como para o bem. Os faras, percebendo a fora desse livro, salvaguardaramno sob a Grande Pirmide. Mas, se Moiss o furtou, o livro talvez tenha sido trazido - s pode ter sido trazido! - para c pelos judeus." "Moiss nem sequer chegou Terra Prometida", contra-argumentou Miriam. "Ele morreu no monte Nebo, do outro lado do rio Jordo. Deus no permitiu que ele entrasse." "Mas seus sucessores entraram, com a arca. E se esse livro era parte ou complemento da arca? E se ele foi escondido sob o Templo de Salomo? E se ele sobreviveu destruio do Primeiro Templo pelos babilnios de Nabucodonosor e do Segundo Templo pelos romanos de Tito? E se ainda estiver aqui, esperando para ser redescoberto? E se for achado primeiro por Bonaparte, que sonha em ser outro Alexandre? Ou pelos sequazes do conde Alessandro Silano, que tm sonhos para si prprios e para seu pervertido Rito Egpcio da maonaria? E se Silano sobreviveu queda do balo, mesmo que Astiza no o tenha conseguido? Esse livro poderia ser decisivo no equilbrio do poder.
preciso ach-lo e salvaguard-lo - ou, se o pior acontecer, destru-lo. Tudo o que estou dizendo que temos de olhar em cada um dos locais provveis antes que aqueles franceses o faam." "Moras na minha casa, trabalhas na minha forja, e s agora me contas isso?" Jeric estava irritado e, no entanto, olhava com curiosidade para meus serafins. "Tentei deixar a ti e a Miriam fora disso. um pesadelo, no um privilgio. Mas agora, se conheces tneis subterrneos, precisas me ajudar a ach-los. Os franceses no desistiro. Estamos numa corrida." "Eu sou ferreiro, no explorador." "E eu sou apenas um representante comercial que se viu apanhado em guerras longnquas, no um soldado. As vezes somos chamados a fazer coisas, Jeric. Tu foste chamado a me ajudar nisto." "A achar o livro mgico de Moiss..." "De Moiss no. De Tot." "Ah! Achar um livro escrito por um deus mtico, um falso dolo." "No! Impedir que as pessoas erradas - os renegados do Rito Egpcio da maonaria - usem o poder desse livro para o mal." Minha frustrao aumentava porque eu sabia quo insano estava parecendo. "O Rito Egpcio?" "Irmo, tu te lembras dos boatos sobre eles na Inglaterra", disse Miriam. " Uma sociedade secreta, que diziam ter prticas malignas. Outros maons os abominavam."
"Isso, ests certa!", disse eu, encorajando-a. "Desconfio que o homem que atacou tua irm seja um deles." "Mas eu trabalho com ferro duro e fogo quente", objetou Jeric. "Coisas tangveis. No sei nada da Jerusalm antiga, nem de tneis ocultos, nem de livros perdidos ou maons renegados." Fiz uma careta. Como eu conseguiria recrutado? "Mas ns sabemos que nesta cidade h um erudito que pesquisou os anti-caminhos", reconheceu Miriam. No ests falando do agiota, ests?!" Ele um estudioso do passado, irmo." Um historiador?", interrompi. Aquilo lembrava Enoque, que me ajudara no Egito. "Ele est mais para publicano mutilado, mas fato que ningum conhece tanto a histria de Jerusalm", admitiu Jeric. "Miriam ficou amiga dele. Precisamos de lanternas, picaretas, auxlio de Sidney Smith... e orientao de Haim Farhi." "E quem ele?", perguntei alegremente, aliviado com o fato de que o ferreiro agora estava ajudando. "Algum que sabe mais do que qualquer um sobre os caadores de tesouros que vieram antes de ti os cavaleiros cristos que talvez tenham levado a melhor sobre ti nessa busca."
- 7
Eu tinha a expectativa de que Haim Farhi exibisse algo da circunspeco e dignidade do antiqurio
Enoque, uma figura a Aristteles que se tornara meu mentor no Egito e fora assassinada por meus inimigos. Mas, agora, eu estava fazendo fora para no olhar embasbacado. No era s porque faltava a majestade de Enoque quele judeu baixo, franzino, de meia-idade, com cachos laterais em espiral e roupa escura e sombria. Era principalmente porque ele fora mutilado para transformar-se num dos homens mais horrendos que j vi. Parte do nariz fora cortada, o que deixou uma fua como a dos porcos. A orelha direita estava faltando. E o olho direito fora arrancado, restando uma rbita fechada por cicatriz. "Deus meu, o que aconteceu com ele?!", sussurrei para Jeric enquanto Miriam pegava o capote do homem porta. "Ele incorreu na ira do Aougueiro", respondeu o ferreiro, falando baixinho. "No demonstre pena. Ele ostenta a sobrevivncia como uma divisa de honra. um dos mais poderosos banqueiros da Palestina e tem a confiana de Djezzar, pois permaneceu fiel depois da tortura." "As pessoas o usam para fazer poupana e pedir emprstimos?" "O que lesaram foi seu rosto, no seu crebro." "O rabino Farhi um dos mais destacados historiadores da provncia", disse Miriam, em tom mais alto, enquanto ela e o visitante se aproximavam de ns, com os dois j adivinhando o motivo de nossos cochichos. " tambm um estudioso dos mistrios judaicos. Qualquer pessoa que investigue o passado far bem em consultlo."
"De modo que agradeo vossa ajuda", disse eu, diplomaticamente, tentando no ficar encarando Farhi. "Assim como agradeo vossa tolerncia para com minha desventura", respondeu ele, com voz serena. "Sei do efeito que causo nas pessoas. Vejo a minha desfigurao refletida no olhar de cada criana assustada. Mas o isolamento que a mutilao causa me proporciona tempo para as lendas desta cidade. Jeric me disse que estais procurando segredos perdidos de importncia estratgica, no?" "Possivelmente." "Possivelmente? Ora vamos - se quisermos avanar nesta questo, precisaremos confiar uns nos outros, no mesmo?" Eu estava aprendendo a no confiar muito em ningum, mas no lhe disse isso nem nada mais. "E esses tpicos talvez tenham relao com a Arca da Aliana", continuou Farhi, persistente. "Isso tambm no verdade?" "." Obviamente, ele j sabia o que eu contara a Jeric. "Posso compreender porque viajastes para to longe com tanta empolgao. No entanto, minha triste responsabilidade avisar-vos de que talvez estejais setecentos anos atrasado. Homens j vieram a Jerusalm para procurar os mesmos poderes que vs." "E ides me dizer que eles tentaram o mximo possvel e no conseguiram ach-los."
"Pelo contrrio vou dizer-vos que eles podem ter achado justamente o que procurais. Ou que, se de fato no conseguiram, improvvel que tambm consigais. Eles procuraram durante anos. Jeric me disse que tendes no mximo dias." O que aquele mutilado sabia? "Achado exatamente o qu?" "Curiosamente, os eruditos ainda debatem a esse respeito. Um grupo de cavaleiros cristos partiu de Jerusalm levando poderes inexplicveis - e, ainda assim, ficaram desamparados quando foram trados. Por conseguinte, descobriram ou no alguma coisa?" "Um conto de fadas", zombou Jeric. "Mas um conto fundamentado na histria, irmo", disse Miriam, mansamente. "Essas histrias de tneis so lendas bolorentas", insistiu Jeric, dirigindo-se a Miriam. "E o que so as lendas seno ecos da verdade?", respondeu a irm. Fiquei olhando os trs, de um para outro. Eles j haviam discutido aquilo antes. "Mas, afinal, que lendas?" "Dos nossos ancestrais, os templrios", disse Miriam. "O nome completo da ordem deles era os Cavaleiros Pobres de Cristo e do Templo de Salomo. Nem todos os monges guerreiros eram celibatrios, e reza a tradio que o nosso sangue descende do deles. Os templrios procuravam o mesmo que procuras, e alguns dizem que eles o acharam." "E onde esto agora?"
" uma histria curiosa", disse Farhi. "Vivestes em Paris, no, senhor Gage? Estais familiarizado com a regio da Champagne, a sudeste daquela capital e ao norte de Troyes?" "J passei por l e gosto dos produtos locais." "Mais de mil e trezentos anos atrs, travou-se ali uma das mais terrveis batalhas de toda a histria. Ali, Acio, o ltimo dos romanos, derrotou tila, o grande huno." "A batalha de Chalons", disse eu, grato por Franklin ter mencionado uma ou duas vezes esse quebra-pau da Antiguidade. Ele era um poo de informaes esdrxulas e lia livros de histria to grossos quanto trs calos de porta juntos, escritos por um ingls chamado Gibbon. "Nessa batalha, tila tinha uma misteriosa espada com poderes msticos, que remontava a tempos muito, muito antigos. Lendas de tal magia, mais a idia de que neste mundo h foras maiores do que as dos simples msculos e aos, transmitiramse s geraes de francos que viriam a habitar a Champagne. Essas eram pessoas que achavam existir mais coisas no mundo do que aquelas que podemos facilmente ver e tocar. Bernardo de Claraval, o grande santo e mestre, foi um dos que ouviram tais histrias." Esse nome tambm despertou uma recordao. Lembrei-me de que o sbio francs Jomard o evocara logo que escalamos a Grande Pirmide. "Esperai - eu j ouvi falar dele. Disse alguma coisa sobre Deus ser altura e largura - sobre Ele ser dimenses. Que podemos incorporar dimenses divinas em edifcios sagrados."
"Sim. 'O que Deus? Ele comprimento, largura, altura e profundidade', disse o santo. E o poderoso cavaleiro Andr de Montbard, tio de Bernardo, compartilhava da idia de que os antigos que conhecessem tais coisas podiam ser enterrado poderosos segredos no Oriente. Enterrado, talvez, debaixo do Templo de Salomo - que ocupava o Monte do Templo, a pouca distncia de onde estamos." "Os maons acreditam nisso at hoje", comentei, lembrando-me de meu falecido amigo jornalista, Antoine Talma, e suas arrebatadas teorias. "No ano de 1119", continuou Farhi, "Montbard foi um dos nove cavaleiros que viajaram em misso especial Terra Santa. Jerusalm j fora tomada pelos cruzados, e esses nove chegaram cidade e pediram para formar uma nova ordem militar, de monges guerreiros - os templrios. Mas a inteno deles parecia misteriosa j nos primrdios. Embora houvessem se proposto a defender os peregrinos cristos, esses homens da Champagne no recrutaram seguidores de incio e fizeram pouco para patrulhar a estrada de Jafa. Em vez disso, conseguiram do governante de Jerusalm, o rei Balduno II, uma autorizao extraordinria para estabelecer base na mesquita de El-Aqsa, na extremidade sul do Monte do Templo." "Nove recm-chegados conseguem acantonar-se no Monte do Templo?" Farhi assentiu, fitando-me com o olho bom. "Coisa curiosa, no?"
"E que relao esses templrios tm com Moiss e a arca?", perguntei. " a que comeamos a especular", respondeu Farhi. "Os rumores do conta de que eles escavaram um tnel pelas entranhas do que havia sido o Templo de Salomo e encontraram... alguma coisa. Aps a estada deles aqui, voltaram para a Europa, receberam status especial do papa e se tornaram os primeiros banqueiros e a mais poderosa ordem militar do continente. Os recrutas vinham em multido para eles. Os templrios eram agora inimaginavelmente ricos, e reis tremiam diante deles. E ento, numa nica e terrvel noite - sexta-feira, 13 de outubro de 1309 -, os lderes templrios acabaram detidos pelo rei da Frana num imenso expurgo. Foram torturados e mortos s centenas. Com eles, morreram os segredos do que tinham descoberto em Jerusalm. E assim tiveram incio as lendas - pois como pde uma obscura ordem de cavaleiros ficar to rica e poderosa em to pouco tempo?" "Achais que eles descobriram a arca?" "Nunca se viu nem trao dela." "Logo depois", acrescentou Miriam, "comearam a surgir narrativas sobre cavaleiros em busca de um Santo Graal." "A taa da ltima Ceia", disse eu. "Essa uma das histrias", disse Farhi. "Mas, nos diversos relatos, o Graal tem sido tambm descrito como um caldeiro, um prato, uma pedra, uma espada, uma lana, um peixe, uma mesa - e at um livro secreto." Ele me observava atentamente. "O Livro de Tot!"
"At este momento, eu no o ouvi ser chamado assim. Mas a histria que contastes a Jeric e Miriam mesmo fascinante. O deus Tot foi o precursor do deus grego Hermes. J sabeis disso?" "J, aprendi isso no Egito." "Na lenda alem de Parzival, terminada em 1210, o heri vai aconselhar-se com um sbio e idoso eremita chamado Treurizent. Reconheceis o nome?" Balancei negativamente a cabea. "Alguns eruditos acreditam que ele venha do francs treble escient." Agora, eu sentia uma onda quente de empolgao tomar conta de mim. ""Triplamente sabedor!' Que o que significa o nome grego Hermes Trismegistus - Hermes, o trs vezes sabedor, mestre de todas as lidas, que por sua vez o deus egpcio Tot!" "Sim. Trs Vezes o Maior, a Primeira Inteligncia, o originador da civilizao. Foi o primeiro grande autor, aquele que ns, os judeus, chamamos Enoque." "Enoque era o nome que meu mentor no Egito adotava." "Isso no me surpreende. Pois bem, quando aprisionaram os templrios, estes foram acusados de heresia. Imputaram-lhes rituais obscenos, o sexo com outros homens e o culto a uma figura misteriosa que se chamava Baphomet - o Bafom. J ouvistes falar dele?" "No."
"Bafom tem sido retratado como um diabo com cabea de bode. Mas h uma curiosidade nesse nome. Se ele se originou de Jerusalm, pode ter sido uma corruptela do nome rabe Abufihamat, que significa 'Pai da Sabedoria'. E quem poderia ser esse para homens que denominavam a si prprios os Cavaleiros do Templo?" Pensei por um momento. "O rei Salomo." "Isto! Os elos continuam. Durante as ocupaes estrangeiras, os judeus antigos tinham tambm o hbito de s vezes escrever cdigos secretos usando cifras de substituio. Na cifra Atbash, cada letra do alfabeto hebraico corresponde na realidade a outra letra - a primeira letra se torna a ltima do alfabeto; a segunda letra, a penltima; e assim por diante. Se escreverdes Baphomet em hebraico e depois transpuserdes isso para a cifra Atbash, lereis sophia, que 'sabedoria' em grego." "Bafom. Salomo. Sofia. Ento os cavaleiros estavam se consagrando no a um demnio, mas sabedoria?" "Essa a minha teoria", disse Farhi, com modstia. "Mas ento por que foram perseguidos?" "Porque o rei da Frana os temia e queria a riqueza deles. Existe melhor maneira de desacreditar os nossos inimigos do que acus-los de blasfmia?" "Os cavaleiros talvez tenham se consagrado a algo mais tangvel", disse Miriam. "No nos disseste, Ethan, que Tot, ou Thoth, supostamente a origem da palavra inglesa thought?"
"Sim. 'Pensamento'." "E assim o encadeamento ainda mais longo. Baphomet o Pai da Sabedoria, Salomo, Sofia... mas no poderia ele tambm ser o pensamento, Tot, o deus original de todo o conhecimento?" Eu estava atnito. Teriam os templrios, os pretensos ancestrais de minhas prprias lojas manicas fraternas, sabido dessa antiga divindade egpcia? Teriam eles a cultuado? Estaria todo esse contra-senso relacionado de alguma maneira que ia dos maons aos templrios e destes ao antigo Egito, passando pelos romanos, gregos e judeus? Haveria uma histria secreta que se desenrolaria por todo o tempo do mundo, em paralelo histria comumente conhecida? "E como foi que Salomo se tornou to sbio?", disse Jeric, bem devagar. "Se esse livro fosse coisa verdadeira e o rei estivesse de posse dele..." "Corriam boatos sombrios de que Salomo tinha o poder de invocar demnios", disse Miriam. "E assim as histrias se entrelaam - relatando que homens devotos procuravam apenas conhecimento ou que o conhecimento corrompia, levando riqueza e ao mal. Ser que o conhecimento bom ou ruim? Vede a histria do Jardim do Eden e da Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal. As lendas e os debates pendem de um lado para o outro." Eu estava pasmado com as possibilidades. "Pensais que os templrios j acharam esse livro?" "Se acharam, talvez o tenham perdido no expurgo que se seguiu", respondeu Farhi. "Vosso Graal
especfico pode j no ser nada seno cinzas ou estar em outras mos. S que nenhum poder sucedeu os templrios. Nenhum grupo de cavaleiros jamais se igualou a eles, e nenhuma fraternidade voltou a estar to disseminada pela Europa. E, quando Jacques de Molay, o ltimo gro-mestre da ordem, foi queimado na fogueira por ter-se negado a trair os segredos dos templrios, ele rogou uma terrvel maldio, prometendo que, em um ano, o rei da Frana e o papa o seguiriam ao tmulo. E ambos morreram mesmo naquele perodo. Assim, para comeo de conversa, o livro fora de fato encontrado? Perdeuse? Ou foi..." "Outra vez ocultado", completou Miriam. "No Monte do Templo!", bradei. "Possivelmente, mas em lugares to profundos que no h como redescobri-lo com facilidade. Ademais, quando Saladino retomou Jerusalm aos cruzados, pareceu ter-se perdido a possibilidade de penetrar no monte. Mesmo hoje, os muulmanos o guardam ciosamente. Eles por certo j ouviram algumas das mesmas histrias que ns - mas no permitem nenhuma explorao ali. Esses segredos poderiam abalar os alicerces de todas as religies, e o isl inimigo da feitiaria." "Quereis dizer que no temos como entrar l?" "Se tentarmos e formos descobertos, seremos executados. solo sagrado. No passado, escavaes provocaram distrbios. Seria como se tentssemos escavar a baslica de So Pedro." "Ento por que estamos conversando?"
Olharam rapidamente uns para os outros, em mtuo entendimento. "Ah, compreendi - preciso que no sejamos pegos." "Exatamente", disse Jeric. "Farhi sugeriu uma rota possvel." "E por que ele mesmo no a seguiu?" "Porque encharcada, suja, perigosa, apertada e provavelmente v", respondeu alegremente Farhi. "Afinal, estvamos tratando apenas de uma vaga lenda histrica at que viestes afirmar que algo realmente extraordinrio existiu no antigo Egito e pode ter sido trazido para c. Se eu creio nisso? No. Talvez sejais um mentiroso divertido, ou um tolo crdulo. Mas quereis saber se descreio, quando a existncia desse algo pode ter representado grande poder para meu povo? No posso me dar a tal luxo." "Ento nos guiareis?" "Tanto quanto for possvel a um guarda-livros desfigurado." "Por uma parcela do tesouro, imagino." "Pela verdade e conhecimento, como teria contentado a Tot." "Coisas que Miriam disse poderem ser usadas para o bem e para o mal." "Pode-se dizer o mesmo do dinheiro, meu amigo." Bem, toda vez que um estranho proclama seu altrusmo e me chama de amigo, eu fico imaginando em qual de meus bolsos ele est metendo a mo. Mas, naqueles meus meses de pesquisa, eu no descobrira nenhuma pista, no
era mesmo? Talvez eu e ele pudssemos usar um ao outro. "Por onde comeamos?" "Entre o Domo da Rocha e a mesquita de El-Aqsa, fica a fonte de El-Kas", explicou Farhi. "A gua vem de antiqussimas cisternas pluviais que esto bem fundo no monte do Templo. Essas cisternas so ligadas entre si por tneis, para que abasteam umas s outras. Alguns autores especulam que so parte de um retculo de passagens que talvez se estenda at mesmo debaixo da prpria rocha sagrada, a Kubbet es-Sakhra, onde Abrao ofereceu seu sacrifcio a Deus - a pedra fundamental do mundo. Ademais, essas cisternas tm necessariamente de estar ligadas tambm a bicas, e no apenas a coletores da gua de chuva. Por conseguinte, uma dcada atrs, Djezzar me pediu que vasculhasse os antigos registros procura de passagens subterrneas para o Monte do Templo. Eu disse a ele que no encontrara nenhuma." "Mentistes?" "Foi uma confisso de fracasso que me saiu muito cara - como punio, fui mutilado. Mas o fiz porque de fato encontrei antigos registros, relatos fragmentrios, que indicavam uma rota secreta para poderes to grandes que no se poderia jamais permitir que um homem como Djezzar os tivesse. A fonte de Giom, que abastece o tanque de Silo, do lado de fora das muralhas da cidade, talvez oferea um caminho. Se assim for, os muulmanos nunca nos veriam."
"Pode ser que as cisternas", disse Miriam, "levem aos locais mais profundos, onde os judeus teriam escondido a arca, o livro e outros tesouros." "At essas coisas terem sido talvez descobertas pelos templrios", acrescentou Farhi. "E terem sido talvez outra vez ocultadas depois que Jacques de Molay morreu na fogueira. Entretanto, h mais um problema que me desestimulou a realizar qualquer explorao ali." "Os tneis esto bloqueados por gua?" Eu tinha lgubres lembranas de minha fuga da Grande Pirmide. "Possivelmente. Mas, mesmo se no estiverem, um registro que achei fazia referncia a portas seladas - o que um dia esteve aberto, agora talvez esteja fechado." "Com suficiente fora bruta ou plvora, homens decididos conseguem forar qualquer porta", disse Jeric. "Plvora no!", exclamou Farhi. "Queres acordar a cidade inteira?" "Fora bruta, ento." "E se os muulmanos nos ouvirem fuar l embaixo?", perguntei. "Isso", respondeu o banqueiro, "seria mesmo uma grande infelicidade." Meu fuzil estava pronto. Para dar-lhe o ponto de mira, Jeric colara cuidadosamente dois fios de cabelo de Miriam na lente da luneta, e, quando fui testar a arma fora da cidade, vi que conseguia acertar constantemente um prato a duzentas
jardas. Em comparao, um mosquete j seria impreciso aps as cinqenta jardas. Mas, quando levei o aparato ao telhado de nossa casa para vigi-la contra os bandoleiros franceses, perscrutando at a vista doer, no vi nada. Teriam eles ido embora? Devaneei que no, que Alessandro Silano estava ali, comandando-os secretamente, e que eu poderia captur-lo e interrog-lo a respeito de Astiza. Mas era como se aquele bando nunca tivesse existido. Miriam usara lato brilhante para marchetar dois serafins em cada lado da coronha, como estojos onde eu guardaria minhas buchas. Estas, empurradas pela bala, limpam os resduos de plvora a cada disparo. Os serafins se agacharam com as asas estendidas, tal qual aqueles da Arca da Aliana. Jeric tambm me fez a machadinha. Fiquei to satisfeito que dei ao desconfiado ferreiro algumas instrues de como ganhar no fara, caso algum dia topasse com esse jogo, e comprei um pequeno crucifixo espanhol, dourado, para Miriam. Quando a noite de nossa aventura chegou, no fiquei de todo surpreso em ver que Miriam insistia em nos acompanhar, apesar do costume local de enclausurar as mulheres. "Ela conhece antigas lendas que me entediam", reconheceu Jeric. "V coisas que no consigo ou no quero ver. E no tenho a inteno de deix-la sozinha enquanto os ladres franceses estiverem rondando por a." "Concordo", disse eu.
"Alm disso, os dois vo precisar de juzo feminino", disse ela, dirigindo-se a mim e ao irmo. " importante que nos desloquemos furtivamente", acrescentou Jeric. "Miriam diz que tens habilidades de pele-vermelha." A bem dizer, minhas habilidades de pele-vermelha haviam consistido primordialmente em evitar esses selvagens sempre que pude e compr-los com presentes quando aquilo no mais se mostrou factvel. Meus poucos entreveros com eles tinham sido apavorantes. Mas eu exagerara para Miriam as minhas faanhas no desbravamento da Amrica (um mau hbito meu), e no adiantaria pr as coisas a limpo naquele momento. Farhi tambm veio, trajado de preto. "Minha presena talvez seja mais importante do que eu imaginava", disse ele. "Tambm existem mistrios judaicos, e, desde nossa conversa, eu estive estudando o que os templrios estudavam, inclusive a numerologia da cabala e dos livros do Zohar." "Mais livros? E esses servem para qu?" "Alguns de ns acreditam que a Tor, ou a vossa Bblia, possa ser lida em dois nveis. O primeiro o das narrativas que todos conhecemos. O segundo seria o de outra narrativa, um mistrio, uma histria sagrada - uma histria oculta nas entrelinhas, inserida num cdigo numrico. O Zohar isso." "A Bblia um cdigo?" "Cada uma das vinte e duas letras do alfabeto hebraico pode ser representada por um nmero, e
h mais dez nmeros alm desses, representando as sagradas sephiroth. Est a o cdigo." "Dez o qu?" "Sephiroth. So as seis direes da realidade - os quatro pontos cardeais, leste, oeste, norte e sul, mais o acima e o abaixo - e as essncias do universo o fogo, a gua, o ter e Deus. Essas dez sephiroth e vinte e duas letras representam os trinta e dois caminhos da sabedoria, os quais, por sua vez, apontam para os setenta e dois nomes sagrados de Deus. Ser que esse Livro de Tot pode ser lido da mesma maneira? Qual a chave para ele? o que veremos." Bem, era mais do mesmo palavrrio obscuro que eu vinha encontrando desde que ganhara o maldito medalho egpcio em Paris. Aparentemente, a insanidade contagiosa. Tanta gente parece acreditar em lendas, numerologia e prodgios matemticos que eu tambm comecei a acreditar, mesmo se apenas raras vezes conseguia concatenar com o que as pessoas estavam dizendo. Mas, se um banqueiro desfigurado como Farhi estava disposto a fazer papel de bobo metendo-se nas entranhas da terra por causa da numerologia judaica, ento isso tambm parecia valer meu dispndio de tempo. "Ento, sede bem-vindo. Procurai acompanhar o nosso passo." Eu me voltei para Jeric. "Por que ests carregando uma saca de argamassa?" "Para recolocar no lugar qualquer coisa que tenhamos de quebrar. O segredo do furto fazer parecer que ele no aconteceu."
Era o tipo de pensamento que admiro. Depois que escureceu, samos de fininho pelo Porto do Esterco. Estvamos no comeo de maro, e a invaso napolenica j tivera incio. Haviam chegado notcias de que os franceses tinham marchado de El-Arish (na fronteira do Egito com a Palestina) em 15 de fevereiro e obtido uma rpida vitria em Gaza, e que agora se aproximavam de Jafa. Descemos pela encosta rochosa at o Tanque de Silo, que parte dos encanamentos de Jerusalm desde os tempos do rei Davi. Durante o percurso, eu animadamente lhes recomendava agachar-se aqui e apressar-se ali, como se isso fosse mesmo o fidedigno costume dos ndios algonquianos. A verdade que fico mais vontade nos cassinos de Paris que nos sertes da Amrica, mas Miriam parecia impressionada. Era lua nova, o que deixava a encosta s escuras, e aquela noite de comeo na primavera estava fria. Enquanto passvamos com dificuldade por antigas minas, ces latiam das choupanas de alguns pastores de ovelhas e cabras. Atrs de ns, formando uma linha escura contra o cu, estavam as muralhas que cingiam a face sul do Monte do Templo. Eu via l em cima os contornos da mesquita de El-Aqsa e as paredes e abbadas dos anexos que os templrios :construram ali. Estariam sentinelas muulmanas nos perscrutando de l? Enquanto seguamos lenta e furtivamente, tive a inquietante sensao de estar sendo observado. "H gente ali", murmurei para Jeric. "Onde?"
"No sei. Eu os pressinto, mas no consigo v-los." Ele olhou em torno. "No ouvi nada. Acho que afugentaste os franceses." Apalpei a machadinha e segurei o fuzil com ambas as mos. "Vs trs seguis na frente. Vou ver se pego algum atrs." Mas a noite parecia to vazia quanto a sacola preta dos mgicos. Por fim, sabendo que os outros me esperavam, fui para o Tanque de Silo, que parecia um retngulo de breu perto do leito do vale. Degraus de pedra gastos iam descendo para uma plataforma (tambm de pedra) da qual as mulheres podiam mergulhar seus cntaros na gua. Pardais, aninhados na paredes de pedra do tanque, faziam ruidinhos inquietos. S um ligeirssimo brilho dos rostos me indicava onde meus companheiros se apinhavam. E nosso grupo crescera. "Sir Sidney mandou mesmo ajuda", explicou Jeric. "Britnicos?" Agora eu entendia aquele meu pressentimento. "Precisaremos dos braos deles no subsolo." "Capito-tenente Henry Tentwhistle, da HMS Dangerous, a vosso dispor, senhor Gage", murmurou no escuro o comandante dos recmchegados. "Vs vos recordareis talvez do sucesso que tivestes em blefar melhor que eu nas nossas partidas de brelan." Gemi por dentro. "Fui afortunado em face de vosso destemor, capito-tenente." "Este o segundo-tenente Potts, sobre quem levastes a melhor no fara. Vs lhe tirastes seis meses de soldo."
"No pode ter sido tanto assim, pode?" Balancei negativamente a cabea. "Quo desesperadamente eu tenho necessitado desse dinheiro para concluir a misso atribuda a mim pela Coroa aqui em Jerusalm." "E acredito igualmente que conheais bem estes dois camaradas." Mesmo na escurido de meia-noite no Tanque de Silo, eu conseguia reconhecer o brilho de um sorriso inesquecivelmente largo e hostil, como teclas de piano em barricada. "Depois disto aqui, ainda me deves uma briga", disse o dono do sorriso. "E o nosso dinheiro de volta." Mas claro. Eram Big Ned e Little Tom.
-8 Deverias era te sentir honrado, chefe", disse Big. "Esta foi at hoje a nica misso em que nos apresentamos como voluntrios", explicou Little Tom. "Sir Sidney achou melhor que todos ns trabalhssemos em conjunto." "Foi por tua causa que a gente veio." "Estou lisonjeado, com certeza", respondi dbilmente. "Jeric, no podias ter-me deixado a par disto?" "Sir Sidney ensina que, com quanto menos pessoas falarmos, melhor estaremos."
Deveras. O prprio Ben Franklin dizia que trs s conseguem guardar um segredo se dois j esto mortos. "E ento ele mandou mais quatro?" "Calculamos que, se uma cobra como tu estava neste negcio, era porque devia haver dinheiro em jogo", disse alegremente Little Tom. "Quando eles nos deram picaretas, pensamos: 'Bom, s pode ser algum tesouro escondido! E esse ianque pode acertar as contas com o Ned aqui, do jeito que prometeu l no navio - ou ento dar a parte dele para ns'." "No somos to simplrios quanto pensas", acrescentou Big Ned. "Est claro que no. Pois muito bem, companheiros", disse eu, olhando para essa turma de oficiais e fuzileiros indiscutivelmente pouco amistosa, tentando desconsiderar meu instinto de que aquilo tudo ia acabar mal, " bom contar com aliados que tivemos o prazer de conhecer em amistosas rodadas de jogos de azar. Agora, vede: h certo perigo aqui, e precisamos ser silenciosos como camundongos, mas existe tambm uma possibilidade real de que faamos histria. No um tesouro, mas a possibilidade de descobrirmos um corredor secreto at o cerne do inimigo, caso Bonaparte venha a tomar esta cidade. essa a nossa misso. Minha filosofia que o que passou, passou, e o que vier, vir melhor para homens que se mantm unidos. No sois da mesma opinio? Afinal, cada tosto que tenho comigo vai para as necessidades da Coroa."
"Necessidades da Coroa? E o que essa bela arma que ests segurando?", assinalou Little Tom. "Este fuzil?" A arma reluzia ostentosamente. "Ora, trata-se de um exemplo capital! Ele para vossa proteo, j que responsabilidade minha que nenhum de vs sofra mal algum." "Bem carinha essa tua arma. To empetecada quanto uma vadia de luxo. Aposto que custou muito dinheiro." "Em Jerusalm, no custou quase nada", insisti. "Sabeis como - manufatura oriental, nenhum conhecimento real da feitura de armas de fogo... A bem dizer, s um lixo bonitinho." Evitei a encarada de Jeric. "Agora, no posso prometer que acharemos algo de valor. Mas, se acharmos, claro que vs, meus companheiros, podereis ficar com minha parte - eu me contentarei com este ou aquele pergaminho. nesse esprito de colaborao que eu gostaria de comear - que tal? No escuro, todos os gatos so pardos, como Ben Franklin gostava de dizer." "Quem?", perguntou Tom. "Um maldito rebelde que devia ter sido enforcado", resmungou Big Ned. "E que diabos quer dizer essa histria dos gatos?" "Que somos uma porcaria de saco de gatos, ou coisa assim." "Que estaremos todos juntos at cumprirmos a misso", corrigiu Tentwhistle. "Pois ento quem essa rapariga?", quis saber Little Tom, apontando para Miriam.
Ela se afastou, repugnada. "Minha irm", grunhiu Jeric. "Irm?!" Tom recuou como se tivesse levado um choque eltrico. "Trazes a irm numa caa ao tesouro?! Para que diabos?" "Ela v coisas", respondi. "Aqui, , que ela v", disse Ned. "E quem aquele ali atrs?" "Nosso guia judeu." "Ah, um judeu tambm?" "Trazer mulher d azar", disse Tom. "E a gente no vai carregada", acrescentou o parceiro. "Como se eu fosse deixar que fizsseis isso...", cortou Miriam, spera e abruptamente. "Toma cuidado, Ned", avisei. "O joelho dela sabe onde esto as tuas bolas." "Sabe, ?" Ele a olhou com mais interesse. Pelo relvado da batalha de Lexington, aquilo era ou no era um rolo e tanto?! Eu no conseguiria angu pior se convidasse anarquistas para redigirem uma Constituio. Assim, comigo totalmente intranquilo, entramos naquele tanque raso e, com gua pelos joelhos, vadeamo-lo at seu final. A corrente vinha de uma abertura semelhante gruta, fechada por um porto de ferro. "Construdo para manter do lado fora as crianas e os animais, no ns", disse Jeric, levantando seu p-de-cabra. Ele usou de fora e alavancagem, ouviu-se um estalo, e a grade enferrujada se abriu para dentro, com um rangido. Depois que entramos, nosso ferreiro fechou o porto atrs de ns, trancando-o com um cadeado novo que ele prprio trouxera. "Para este eu tenho a chave."
Olhei para trs, para a longa margem do tanque. Teria algum se abaixado rapidamente para sumir de vista? "Vistes alguma coisa?", sussurrei para Farhi. "No estou enxergando nada desde que samos da casa de Jeric", resmungou baixinho o banqueiro. "No tenho o hbito de chapinhar no escuro." Logo a gua nos chegava s coxas, fria mas no gelada. A passagem de tnel que vadevamos tinha a largura de meus braos abertos e uma altura de dez a quinze ps, apresentando a textura de rocha submetida a picaretas antiqussimas. Era uma canalizao artificial que fora construda para trazer gua de manancial velha cidade do rei Davi, contou-nos Farhi. O leito era irregular, fazendo que tropessemos. Quando j havamos adentrado suficientemente o tnel para que Jeric se arriscasse a acender a primeira lanterna, fui chapinhando at Tentwhistle. "No h nenhuma possibilidade de que tenhais sido seguidos at aqui, h?", perguntei. "Pagamos a nossos guias para que ficassem de boca fechada", respondeu o capito-tenente. ", e tambm no dissemos nada em Jerusalm", intrometeu-se Ned. "Um momento - vs quatro, da marinha inglesa, entrastes na cidade?" "S para conseguir comida." "Eu vos disse para ficar na surdina at escurecer!", sibilou Jeric, exasperado. "Estvamos em trajes rabes e no conversamos com ningum", explicou Tentwhistle, na defensiva.
"Ora essa, eu no ia vir at Jerusalm sem dar uma olhada... uma cidade famosa!" "Trajes rabes?!", exclamei. "Todos vs pareceis to rabes quanto Papai Noel! Essas carantonhas vermelhas no teriam dado mais na vista se tivsseis entrado marchando com a bandeira britnica". "Ah, ento a gente devia morrer de fome at de noite e depois cavar um buraco para vossa alteza?", rebateu Big Ned. "Que viesses nos receber com algum grude, se querias tanto nos deixar do lado de fora desta tua preciosa cidade." Bem, o que se podia fazer a respeito agora? Volteime para Jeric, cuja fisionomia estava sombria luz mbar da lanterna. "Acho melhor nos apressarmos." "Deixei um cadeado forte na grade. E tu, com o fuzil, s nossa retaguarda." De repente, Miriam gritou nas sombras. "No me toques!" "Desculpa - eu esbarrei?", perguntou lascivamente Little Tom. "Ei, boneca, vou te manter segura", acrescentou Ned. Jeric comeou a levantar a picareta, mas segurei a mo dele. "Eu cuido disso." Enquanto eu abria caminho aos empurres para o fim da fila, deixei que a ponta do cano de meu novo fuzil acertasse em cheio a virilha de Ned. "Maldio!", disse ele, arfando.
"Oh, desculpa - como sou desajeitado!", disse eu, girando a coronha to abruptamente que ela raspou direitinho em uma das faces de Tom. "Desgraado!" "Tenho certeza de que, se todos mantivermos distncia uns dos outros, no ficaremos esbarrando em ningum." "Pois eu vou ficar onde bem entend..." Nisto, Tom deu um berro e um pulo. "Ai! Essa cadela veio toda sorrateira por trs!" "Desculpa, eu esbarrei?" Miriam segurava um pde-cabra. "Senhores, eu vos avisei. Mantende distncia se dais valor vossa virilidade." "Eu vou te castrar com as minhas prprias mos se tocares na minha irm outra vez", completou Jeric. "E eu vou fazer os dois danarem ao som da chibata", disse Tentwhistle. "Segundo-tenente Potts! Cuidai da disciplina!" "Sim, senhor! Os dois a - comportai-vos!" "Ah, s estvamos brincando... Deus do Cu, o que foi que aconteceu com ele?!" Farhi passara luz da lanterna, e os perplexos britnicos viram pela primeira vez aquele rosto mutilado - a cratera no olho, o nariz como um focinho, a orelha arrancada. "Eu relei na irm dele", respondeu o judeu, astutamente. Os fuzileiros ficaram brancos de susto e se mantiveram o mais longe possvel de Miriam.
Se houve alguma vantagem na longa e rdua caminhada com gua pelas coxas, foi que ela tirou um pouco do vigor dos ofegantes fuzileiros. No estavam habituados aos ambientes fechados nem ao trabalho em terra, e s a suposio de que conseguiriam riquezas antigas evitou que empacassem de vez. Para mant-los resfolegantes, sugeri a Tentwhistle que Ned e Tom ajudassem a carregar a saca de argamassa de Jeric. "Por que a gente no aproveita e carrega tambm um coche cheio de tijolos?", queixou-se Ned. Mas ele continuou forcejando como uma mula, com todos ns vadeando num casulo formado por luz de lanterna. Em certa altura, parei para ficar de ouvidos atentos enquanto os outros seguiam dificultosamente e a escurido crescia medida que eles se afastavam. E ento... O que era aquilo? O eco de um tinido, de um cadeado ao ser quebrado bem l atrs? Aquela distncia, porm, era quase to inaudvel quanto a queda de um alfinete, e no escutei mais nada. Acabei desistindo e me apressei em alcanar os outros. Surgiu enfim o rudo de gua corrente, e o tnel comeou a ficar mais baixo medida que nos aproximvamos dela. Logo teramos de rastejar. "Estamos cada vez mais perto do manancial", disse Farhi. "Reza a lenda que o umbigo de Jerusalm est em algum lugar acima de nossas cabeas." "J eu acho que estamos no maldito cu", resmungou Little Tom.
Procuramos com nossas lanternas at que de fato achamos uma fenda escura acima de ns, apertada como o fecho da bolsa de um po-duro. Eu no teria adivinhado que ela levaria a algum lugar, mas, to logo demos impulso uns aos outros para subir por ela, a fenda foi se abrindo, e uma passagem (seca, dessa vez) voltava obliquamente rumo cidade principal. Rastejamos sobre pedras grandes cadas do teto, com Miriam se mostrando mais gil que qualquer um de ns. Apareceu outro buraco estreito, e a mulher foi na frente. Big Ned praguejava, pois mal conseguia espremer-se por ali, empurrando a saca de argamassa; ele j estava coberto por um suor lustroso. E ento o tnel ficou novamente regular, obra de mos humanas. Ele subia num gradiente constante, com o teto apenas um p acima de ns e o dimetro pequeno demais para que mais de um homem passasse facilmente. Ned vivia batendo o cocuruto e praguejando. "A lenda diz que esta passagem foi construda com largura suficiente apenas para um escudo", disse Farhi. "Assim, um nico homem poderia defend-la contra um exrcito de invasores. Estamos no caminho certo." proporo que seguamos, o ar ficava mais impuro, e as lanternas, mais fracas. Eu no tinha idia de quanto havamos avanado ou de que horas eram - no teria ficado surpreso se me dissessem que havamos caminhado, vadeado e rastejado de volta para Paris. Em seguida, encontramos pedra talhada, no paredes de gruta.
"A muralha de Herodes", murmurou Jeric. "Estamos passando debaixo dela e, portanto, debaixo da prpria plataforma do monte do Templo, bem acima." Continuamos vigorosamente, apesar das dificuldades - e, uma vez mais, ouvi o barulho de gua mais adiante. De sbito, o tnel terminou numa grande gruta, que nossas dbeis lanternas mal abarcavam. Jeric me fez segurar sua lanterna enquanto ele entrava cautelosamente na gua abaixo. "Est tudo certo - a gua vem s at o peito e limpa", informou. "Achamos as cisternas. Fazei o mnimo de rudo possvel." Do outro lado, o tnel continuava. Chegamos a outra cisterna e depois a uma terceira, cada qual com umas dez jardas de largura. "Numa estao mais chuvosa, todas estas passagens estariam submersas", explicou Jeric. Em seguida, o tnel voltou a subir para uma caverna seca, e enfim nosso caminho terminou, abruptamente. O teto era mais alto porque fora escavado, e as pedras tiradas dali enchiam a cmara pela metade, elevando tambm o piso. Alm dali, enxergvamos o alto de um vo de porta arcado, construdo de pedra. O problema era que a porta j no estava mais l e o vo fora completamente tampado com blocos de pedra e argamassa, cortando nosso caminho. "Maldio - esta trabalheira toda para nada!", disse Ned, ofegante. "Ser?", disse Jeric. "O que h por trs desta parede para que seus construtores no quisessem que chegssemos l?"
"Ou que no quisessem que sasse dali?", acrescentou Miriam. "Precisamos de um barril de plvora", disse o fuzileiro, atirando a saca de argamassa no cho. "No, silncio essencial", disse Farhi. "Tendes de cavar antes das preces da alvorada." "E tornar a vedar a passagem", interrompeu Miriam. "Besteira", disse Ned. Tentei direcionar o pateta. "O tempo perdido nunca reencontrado, dizia o velho Ben." "E quem rouba nas cartas deveria devolver o que pegou, diz o velho Ned." Ele me olhou de soslaio. "Chefe, melhor haver alguma coisa do outro lado desta parede, porque seno vou te chacoalhar pelas canelas at ficares vaziozinho." Mas, apesar da bazfia, ele e Little Tom acabaram pegando no oesado. Ns oito formamos uma corrente, passando pedras soltas de um para outro at formar uma vala que chegava base do vo emparedado. Foi preciso duas horas de trabalho rduo at afastarmos entulho suficiente para que se visse a entrada por inteiro: o largo portal subterrneo estava arrolhado como uma garrafa por pedras calcrias de diferentes cores. "Fazia sentido selar a entrada", aventou Tentwhistle. "Ela poderia ser usada como ponto de entrada por exrcitos inimigos." "Os antigos judeus construram a arcada", conjeturou Farhi, "e os rabes, cruzados ou templrios a emparedaram. Algum tremor de terra
fez o teto aesabar, e isto ficou esquecido desde ento, sendo lembrado apenas pelas .endas." Jeric, exausto, ergueu o p-de-cabra. "Ento, mos obra." A primeira pedra sempre a mais difcil. No ousvamos bater at quebrar, de modo que removemos a argamassa e deixamos que Ned e Jeric, cada um de um lado, usassem seus ps-decabra para deslocar a pedra. Os msculos dos dois se estufaram, a pedra deslizou para fora como uma gaveta travada e teimosa, e eles a pegaram antes que chegasse ao cho e a deitaram sem fazer rudo. Farhi ficava olhando para o teto, como se de algum modo pudesse ver a reao dos guardas muulmanos muito acima de ns. Eu me inclinei at a baforada de ar bolorento que saa de nosso buraco, escurido total. Assim, trabalhamos nas pedras adjacentes, quebrando a argamassa e alavancando-as uma a uma. Por fim, o buraco ficou grande o bastante para que se rastejasse por ele. "Jeric e eu faremos o reconhecimento", expliquei aos britnicos. "Ficai de guarda. Se houver alguma coisa l, ns traremos para vs." "Mas de jeito nenhum!", reclamou Big Ned. "Sinto muito, mas devo concordar com meu subordinado", disse Tentwhistle, secamente. "Estamos todos numa misso naval, senhores, e, gostemos ou no, somos todos agentes da Coroa. Justamente por isso, qualquer bem que venha a ser tomado pertencer Coroa para posterior distribuio aos tripulantes segundo as leis do
apresamento. Vossas contribuies sero plenamente consideradas, claro." "No estou mais na vossa marinha", protestou Jeric. "Mas ests a soldo de sir Sidney Smith, no?", disse Tentwhistle. "E Gage tambm agente dele, o que significa que ou todos atravessamos juntos este buraco, pelo rei e pela ptria, ou no atravessa ningum." Pus a mo no cano de meu fuzil, que eu deixara encostado parede da gruta. "Fostes enviados como mo-de-obra para o trabalho subterrneo, no como guarnio de uma nave apresada", ensaiei. "E o senhor foi enviado a Jerusalm como agente da Coroa, no como caador de tesouros em regime privado." Tentwhistle levou a mo pistola, e o segundo-tenente Potts fez o mesmo. Ned e Tom agarraram o cabo de seus alfanjes. Jeric ergueu o p-de-cabra como se fosse uma lana. Ficamos estremecendo tal qual ces rivais no aougue. "Parai!", disse Farhi, entre dentes. "Estais loucos? Se comearmos a lutar aqui, teremos todos os muulmanos de Jerusalm nossa espera! No podemos nos dar ao luxo de brigar." Hesitamos, mas depois baixamos as mos. Ele estava certo. Suspirei. "Ento, qual de vs quer ir primeiro? No Egito, havia serpentes e crocodilos atrs de cada buraco."
Fez-se um silncio apreensivo. "Parece que s o nico com experincia, chefe." Por conseguinte, eu me retorci para passar pelo buraco, esperei um momento para certificar-me de que nada estava me mordendo e ento puxei pela abertura uma lanterna. Tive um sobressalto. Caveiras arreganhavam os dentes para mim. No eram caveiras de verdade, s esculturas. Ainda assim, era inquietante ver uma fileira de caveiras, com ossos cruzados por baixo, estenderse como um friso pela juno das paredes com o teto. Eu no vira nada parecido no Egito. Os outros vinham rastejando atrs de mim, e, medida que deparavam com aquele mrbido friso, as exclamaes dos britnicos iam de um "Jesus!" ao mais esperanoso " tesouro de piratas!". Farhi tinha uma explicao mais prosaica. "Piratas no, meus senhores. Esse friso em ossada tpico dos templrios, a ordem de cavaleiros cujos lderes acabariam na fogueira. Sabeis, senhor Gage, que a caveira com as tbias cruzadas remonta no mnimo aos cavaleiros da ordem?" "Eu tambm a vi associada a ritos manicos. E em cemitrios de igreja." "A mortalidade obceca a todos ns, no mesmo?" As caveiras ornavam um corredor, e seguimos por ele para um recinto maior. Ali vimos outros ornatos que eu tambm achava terem-se originado com os maons. O piso estava coberto de lajotas de mrmore no conhecido padro
xadrez, preto-e-branco, dos arquitetos dionsicos. No centro, porm, o padro era outro, bem curioso: as lajotas pretas ziguezagueavam contra as brancas, em raio, Como um enorme relmpago. Estranho. Por que um relmpago? Desse lado, a entrada pela qual viramos estava ladeada por duas enormes colunas, uma preta e a outra branca. Havia um nicho de cada lado, cada qual com uma esttua do que parecia a Virgem, a primeira de alabastro, a outra de bano - a Virgem Branca e a Virgem Negra. A Virgem Maria e Maria Madalena? Ou a Virgem Maria e a antiqussima Isis, deusa da estrela Srio? "Todas as coisas so duais", murmurou Miriam. O teto era uma abbada de bero, ch, mas robusta o suficiente para sustentar a plataforma herodiana que ficava em algum lugar l em cima. Na outra ponta do recinto, havia um altar de pedra, com um nicho escuro atrs. O resto do recinto era totalmente despojado. Tinha as dimenses de um refeitrio, e talvez os cavaleiros se banqueteassem ali quando no estavam ocupados cavando tneis em busca do tesouro de Salomo. De resto, o lugar estava decepcionantemente vazio. Atravessamos o recinto, que tinha comprimento de cinqenta passos. Engastada na face do altar, viase uma placa ornamental dupla. De um lado, mostrava o desenho tosco de uma igreja com cpula. Do outro, dois cavaleiros medievais montados num nico cavalo.
"O selo dos templrios!", exclamou Farhi. "Isso confirma que foram eles a construir isso. Vede, ali est o Domo da Rocha, exatamente como a mesquita em cima de ns, simbolizando o local do Templo de Salomo, origem da designao templrios. E os dois cavaleiros num cavalo s? Alguns acreditam que isso fosse uma marca da pobreza voluntria da ordem." "Outros argumentam que o selo significa que os dois so aspectos do uno", disse Miriam. "Masculino e feminino. Verso e reverso. Noite e dia." "Aqui no h porcaria nenhuma", interrompeu Big Ned, olhando em volta. "Comentrio sagaz", disse Tentwhistle. "Parece que tivemos um bocado de trabalho por nada, senhor Gage." "Nada exceto os assuntos da Coroa", rebati, acidamente. "E, o americano nos ferrou direitinho", resmungou Little Tom. "Mas olhai isto aqui!", disse o segundo-tenente Potts, chamando-nos. Ele fora examinar a Virgem Branca. "Uma porta de servio? Ou uma passagem secreta?" Ns nos aglomeramos em volta. O segundotenente empurrara a mo estendida dessa Nossa Senhora (erguida como numa bno), e a imagem deu um giro. Quando fez isso, a pedra deslizou atrs dela, afastando-se e revelando uma escada ascendente, circular e serpeante, com uma abertura to estreita que precisaramos nos
espremer de lado para entrar. E era uma subida ngreme. "Ela deve levar plataforma do templo", disse Farhi. "Uma ligao com o velho acantonamento dos templrios, na mesquita de El-Aqsa. A passagem est provavelmente bloqueada, mas precisamos mais do que nunca fazer silncio - o rudo provavelmente subiria como por uma chamin." "Quem liga para o que eles ouvirem?", disse Ned. "Aqui no h nada mesmo." "Tolo - ests em solo sagrado muulmano e judeu. Se qualquer dos dois grupos der por ns, vo cegar-nos, circuncidar-nos, torturar-nos pela invaso e depois desmembrar-nos, um pedao de cada vez." "Ah." "Tentemos tambm a Virgem Negra", disse Miriam. Ela foi ao lado oposto do recinto, mas desta vez, no importando com quanta fora Potts empurrasse o brao, a esttua no se moveu. O dualismo de Miriam no parecia estar em vigor. Ficamos ali parados, sentindo a frustrao. "Onde est o tesouro do templo, Farhi?", perguntei. "No avisei que os templrios chegaram aqui antes de vs?" "Mas esta cmara parece europia, como algo que os templrios tenham construdo, e no que tenham descoberto. Por que eles construiriam
isto? E um jeito bem trabalhoso de conseguir um refeitrio." "Aqui embaixo no h janelas", observou Potts. "Ento isto era para cerimnias", inferiu Miriam. "Mas a atividade para valer, a busca, s pode ter ocorrido em outra cmara. Tem de haver outra porta." "As paredes so nuas e slidas", disse o irmo. Lembrei-me de minha experincia em Dendara, no Egito, e olhei rapidamente para o piso. As lajes pretas e brancas formavam diagonais que se irradiavam do altar. "Acho que Big Ned deve empurrar aquela mesa de pedra ali", disse eu. "Com fora!" De incio, nada aconteceu. Depois, veio juntar-se a ele Jeric, e por fim Little Tom, Potts e eu, todos grunhindo pelo esforo. Aps um tempo, ouviu-se um rudo de raspar, e o altar comeou a girar sobre um piv instalado num de seus cantos. Quando o altar deslizou de lado pelo piso, revelouse um buraco embaixo. Degraus desciam para a escurido. "Agora, sim, a coisa melhora de figura", disse Ned, arfando. Descemos e nos apinhamos numa ante-sala abaixo da cmara principal. Na outra ponta do recinto, via-se uma grandiosa porta de ferro, rubra e negra pela ferrugem. Estava marcada por dez discos de bronze do tamanho de pratos, verdes com a idade. Havia um disco no alto e, abaixo, duas fileiras de trs, descendo. Entre essas duas, porm mais baixo, estava outra fileira vertical de
trs. No centro de cada disco, uma tranca. "Dez maanetas?", perguntou Tentwhistle. "Ou dez fechaduras", disse Jeric. "Talvez cada uma dessas trancas gire uma lingeta nesse batente de ferro." Tentou uma das trancas, mas a pea no se moveu. "No temos ferramentas para mexer nesta porta." "O que quer dizer que ela talvez no tenha sido aberta nem saqueada", raciocinou Ned, com mais argcia do que eu teria imaginado. "Para mim, parece boa notcia. No final das contas, o americano talvez tenha descoberto mesmo alguma coisa. O que algum poderia ter que fosse to precioso que o colocariam atrs de uma porta destas? E, para completar, bem no fundo de uma toca de coelho como esta?" "Dez fechaduras? No h buracos de chave", assinalei. E, quando Jeric e Ned empurraram e puxaram aquela porta macia, ela nem sequer se estremeceu. " firme como uma rocha", disse o ferreiro. "Talvez nem seja uma porta." "E o tempo vai-se acabando", alertou Farhi. "Logo ser a alvorada na plataforma l em cima, e os muulmanos viro para as preces. Se comearmos a bater nesse ferro, algum acabar nos ouvindo." "Esperai", disse eu, recordando-me do mistrio do medalho no Egito. "E um padro, no achais? Dez discos, do formato do Sol... Dez um nmero sagrado. Meu palpite que isso significava alguma coisa para os templrios." "Mas o qu?"
"As sephiroth", disse Miriam, bem devagar. " a rvore." "rvore?" Farhi recuou de sbito. "Sim, sim - agora estou vendo! A Etz Hayim - a rvore da Vida!" "A cabala", confirmou Miriam. "O misticismo e a numerologia judaicos." "Os templrios eram judeus?!" "Decerto que no - mas eram ecumnicos quando se tratava de procurar antigos segredos", respondeu Farhi. "Devem ter estudado os textos judaicos cata de pistas de onde cavar no monte. Textos muulmanos tambm, assim como quaisquer outros. Devem ter-se interessado por todos os smbolos que fossem de ajuda na sua busca por conhecimento. O que vemos aqui o pariro das dez sephiroth, com keter, a coroa, no alto, e depois binah, a intuio, defronte a chokhmah, a sabedoria. E assim por diante." "Grandeza, misericrdia, fora, glria, vitria, majestade, fundamento e soberania, ou reino", recitou Miriam. "Todos os aspectos de um Deus que est alm da compreenso. No conseguimos apreend-lo, somente essas manifestaes de seu ser." "Mas o que significa isso na porta?" "Acho que um quebra-cabea", disse Farhi. Ele aproximara a lanterna. , consigo ver os nomes judaicos lavrados em hebraico. Chesed, tifered, netzach..." "Os egpcios acreditavam que as palavras eram mgicas", lembrei-me, "e que, enunciando-as, eles conseguiam invocar deuses ou poderes..."
Big Ned fez o sinal-da-cruz. "Por Deus, que blasfmia pag! Esses cavaleiros de que falais adotaram as coisas dos judeus? No admira que tenham morrido na fogueira!" "No as adotaram - eles apenas as usaram", explicou Jeric, pacientemente. "Aqui em Jerusalm respeitamos outros credos, mesmo quando brigamos com eles. Os templrios queriam dizer alguma coisa com este arranjo aqui. Talvez as trancas devam ser giradas na ordem certa." "Primeiro, a coroa", sugeri. "Keter, l no alto." "Vou tentar." Mas essa tranca, tal qual as outras, no cedeu. "Esperai - vamos pensar", disse Farhi. "Se cometermos um erro, talvez nenhuma das trancas v funcionar." "Ou talvez disparemos alguma armadilha", disse eu, recordando os monolitos que quase acabaram comigo na pirmide. "Isto pode ser um teste para manter afastados os imerecedores." "O que um templrio escolheria primeiro?", perguntou Farhi. "Vitria? Eles eram guerreiros. Glria? Eles encontraram a fama. Sabedoria? Se o tesouro fosse um livro. Intuio?" "Pensamento", disse Miriam. "Pensamento, thought, como Tot, Thoth, como o livro que Ethan procura." "Pensamento?" "Se traarmos retas de disco a disco, elas se entrecortaro aqui no centro", apontou ele. "E esse centro no representa para os cabalistas a incognoscvel mente de Deus? No esse centro o
pensamento em si? A essncia? Aquilo que ns, os cristos, talvez denominemos alma?" "Ests certa", disse Farhi, "mas no h nenhuma tranca ali." "E, o nico lugar sem tranca o corao." Miriam traou retas dos dez discos para aquele ponto central. "S que aqui h um pequeno crculo lavrado." E, antes que algum pudesse impedi-la, ela pegou o p-de-cabra com o qual espetara Little Tom e golpeou o ferro da porta com a ponta, exatamente naquele crculo. Ouviu-se um estrpito surdo e ressoante que sobressaltou a todos. Nisto, o crculo lavrado afundou, houve um clique, e de repente todas as dez trancas em todos os dez discos de bronze comearam a girar em unssono. "Preparai-vos!" Ergui o fuzil. Tentwhistle e Potts apontaram suas pistolas navais. Ned e Tom desembainharam os alfanjes. "Vamos todos ficar ricos!", sussurrou Ned. Quando as trancas pararam de girar, Jeric deu um empurro e, com um estrondo angustiante, a grande porta se abriu para dentro e para baixo, como uma ponte levadia, com a parte de cima presa por correntes. Ela foi baixando pesadamente, at pousar com um golpe surdo no piso empoeirado mais alm. Ergueu-se uma nuvem cinzenta, obscurecendo momentaneamente o que jazia ali, e ento vimos que a porta servia de ponte sobre uma fenda no cho. O abismo se estendia para a escurido. "Alguma falha fundamental na Terra", conjeturou Farhi, perscrutando l embaixo. "Esta uma montanha sagrada desde o incio dos tempos, uma
rocha que se dirige ao Cu - mas que talvez tenha suas razes no mundo inferior." "Todas as coisas so duais", repetiu Miriam. Da fenda na rocha, ar fresco foi bafejado para cima. Todos estvamos receosos, e, de minha parte, me lembrava daquele poo do inferno na pirmide. Mas nossa ganncia nos fez atravessar do mesmo jeito. A nova cmara era bem menor que o salo templrio mais acima. Ela no era muito maior que uma sala de estar, com teto baixo e abobadado. Este era ornado com pinturas de uma profuso de estrelas, signos zodiacais e criaturas estranhas de alguma poca primeva, um turbilho de simbolismo que me trouxe lembrana o teto que eu vira em Dendara. No vrtice da abbada, havia uma esfera que aparentemente recebera douradura e provavelmente representava o Sol. No centro do recinto, um pedestal de pedra que chegava cintura de um homem, como a base de uma esttua ou um expositor, mas que estava vazio. As paredes exibiam escrita num alfabeto com o qual eu nunca topara antes, nem rabe, nem hebraico, nem grego, nem latino. Era diferente tambm do que eu vira no Egito. Muitos caracteres tinham forma geomtrica - quadrados, tringulos e crculos; outros, porm, pareciam vermes contorcidos ou labirintos minsculos. Bas de madeira e bronze se amontoavam pela Deriferia do recinto, secos e corrodos pelo tempo. E dentro deles havia... No havia nada.
Mais uma vez, recordei-me da Grande Pirmide, onde o depositrio do livro estivera vazio. Um castigo atrs do outro. Primeiro, o livro que se fora. Depois, Astiza. E, agora, aquela piada cruel... "Maldio!" Eram Ned e Tom, dando pontaps nos bas. Ned arremessou um deles contra a parede de pedra, e um grande estrondo transformou o ba numa chuva de lascas. "No h nada aqui! J saquearam tudo!" Saquearam, reouveram ou transferiram. Se algum dia existira um tesouro ali - e eu desconfiava que existira, sim -, ele j se fora havia muito. Talvez levado pelos templrios para a Europa, ou escondido em outro lugar quando os lderes deles foram para a fogueira. Podia ser at que o tesouro j estivesse desaparecido desde que os hebreus foram escravizados por Nabucodonosor. "Silncio, tolos!", rogou Farhi. "Precisais quebrar coisas para que os guardas muulmanos nos ouam? Este Monte do Templo uma peneira formada de grutas e passagens!" Ele se voltou para Tentwhistle. "Alm dos vossos famosos coraes de carvalho, os marinheiros ingleses tambm tm crebros do mesmo material?" O capito-tenente ficou rubro. "O que dizem as paredes?", perguntei, olhando para aqueles curiosos caracteres. Ningum respondeu, pois nem mesmo Farhi sabia. Mas ento Miriam, que estava contando, apontou para uma pequena salincia ali onde as paredes se encontravam com a abobada. Havia candeeiros
esculpidos na tela, como se para receber velas ou lmpadas de leo. "Farhi, conta-os", disse ela. O banqueiro mutilado o fez. "Setenta e dois", disse bem devagar. "Como os setenta e dois nomes de Deus." Jerico se aproximou. "H leo pingando neles!", exclamou, admirado. "Aps tantos anos, como possvel tal coisa?" "E um mecanismo acionado pela porta", aventou Miriam. "Vamos acend-los", disse eu, com sbita convico. "Acend-los para compreender." Supus que se tratasse de magia templara, alguma maneira de lanar luz sobre o mistrio que havamos descoberto. E ento Jeric ps fogo num pedao de madeira de ba com o pavio de sua lanterna e tocou o leo do candeeiro mais prximo. Este se acendeu, e a um filamento de fogo se moveu por uma canaleta de leo para acender o candeeiro seguinte. Um depois do outro, os candeeiros irromperam em chamas, inflamando-se em cadeia pelo permetro da abobada, at o que antes era escuro ter-se tornado um lugar que pulsava com luz e sombra. E no era tudo. Vi que a abbada tinha vigas de pedras que subiam para o vrtice, e em cada uma delas havia um sulco. Agora, esses sulcos comeavam a brilhar com o calor ou a luz mais abaixo, numa cor roxa e lgubre semelhante ao que eu vira em experincias eltricas com tubos de vidro dos quais se retira o ar. "O antro de Satans!", murmurou Little Tom.
No ponto mais alto da abbada, a esfera de aparncia solar que eu imaginara ter apenas recebido douradura comeou a brilhar intensamente. E dela partiu um raio de luz roxa, como o raio de eletricidade que eu invocara no Natal. Esse raio incidiu diretamente no pedestal no centro do recinto. Onde talvez se houvesse mantido um livro ou rolo de papel ou pergaminho. Jeric e Miriam faziam o sinal-da-cruz. Vi que havia um orifcio no centro do pedestal, algo que teria sido bloqueado caso um livro ou rolo estivesse pousado ali. Sem isso, a luz de cima podia resplandecer pela abertura... E ento se ouviu um rangido lancinante, como o de uma engrenagem enferrujada. Os britnicos estacaram e se puseram a escutar. Olhei para o teto, procurando sinais de desabamento. "E a Virgem Negra!", gritou o segundo-tenente Potts da escada que levava de volta ao salo dos templrios. "Ela est girando!"
-9Corremos escada acima para a esttua, como se fssemos testemunhar um milagre. O brao, que antes estava imvel, agora girava sobre seu prprio eixo. A Virgem Negra estava girando com ele, e uma porta semelhante quela atrs da Virgem Branca ia se abrindo. Quando a esttua parou, ela parecia apontar para a porta recm-aberta.
"Por todos os santos!", declarou Ned. "S pode ser o tesouro!" Potts j sacara a pistola e inclinou-se para entrar primeiro, subindo uma passagem ngreme e serpeante. "Espera a!", gritei. Se o estranho espetculo de luz acionava de algum modo aquela abertura, era s porque o livro no estava no pedestal, possibilitando que o brilho penetrasse pelo orifcio. Por conseguinte, este seria mesmo uma espcie de chave que levava a mais tesouros? Ou algum alarme templrio, disparado quando o livro fosse tirado dali? "No sabemos o que isto significa!" Mas os quatro britnicos j arremetiam pela passagem, e Jeric e eu os seguimos relutantemente, com Miriam e Farhi formando a retaguarda. As paredes toscas da escadaria me fizeram lembrar o acabamento do tnel de gua do tanque de Silo: eram antigas, muito mais velhas que os templrios. Remontariam elas aos tempos de Salomo? Ou mesmo de Abrao? O tnel subia em espiral e terminava numa laje com uma grande ala de ferro. "Puxa isso, Ned!", ordenou Tentwhistle. "Puxa com toda a fora, para acabarmos de vez com este negcio! J quase dia!" O fuzileiro assim fez, e, enquanto ele lentamente abria a passagem, reparei que a outra face da porta era rocha irregular - do outro lado, ela pareceria apenas parte da parede de uma gruta. Teriam as pessoas l em cima um dia sabido que aquela passagem existia? "Onde diabos estamos?", perguntou Potts.
Adiante, havia uma gruta mais larga - e luz. "Meu palpite que samos na gruta sob a prpria rocha sagrada", respondi num sussurro. "Estamos bem debaixo da Kubbet es-Sakhra - a raiz do mundo - e do Domo da Rocha." "Bem debaixo do que j foi o Templo de Salomo!", disse Farhi, empolgado e resfolegante pelo esforo de seguir nosso grupo. "Onde talvez se guardassem os segredos do templo - ou mesmo a prpria Arca da Aliana. "Bem onde quaisquer vigias da mesquita podem ouvir intrusos do lado de baixo", alertou Jeric. Estava indo tudo depressa demais. "Queres dizer que os muulmanos. Os britnicos no iam esperar. "Tesouro, rapazes!" Ned e seus companheiros irromperam no corredor. Nisto, ergueu-se um grito em rabe, e a cabea de Potts, coitado, explodiu. Num instante, o segundo-tenente me puxara com louco entusiasmo. No outro, seus miolos eram borrifados sobre todos ns. Potts desabou como uma marionete cujos cordes houvessem sido cortados. A fumaa de plvora preencheu a estreita passagem com seu conhecido fedor. "Abaixai-vos!", gritei, e nos lanamos ao cho. Ento, uma trovoada de disparos e balas ressoou furiosamente ao nosso redor. "Allah akbar!" Deus grande! Os muulmanos tinham nos ouvido bater cabea em seu local mais sagrado e chamaram a guarda de janzaros! E, havamos mexido num vespeiro. Atravs da fumaa, vi um amontoado de homens recarregarem as armas.
Por isso, atirei, e ouviu-se um berro em resposta. A pistola de Tentwhistle tambm disparou, acertando outro janzaro, e agora era a vez deles de girarem aos trambolhes para proteger-se. "Batamos em retirada!", bradei. "Apressai-vos, pelo amor de Deus! Voltemos por aquela porta!" Mas, assim que comeamos a empurr-la para fechar, os janzaros arremeteram, e uma dzia de mos maometanas se agarrou borda da porta do outro lado. Ned soltou um berro portentoso e golpeou algumas delas com o alfanje, decepando dedos, mas outras armas de fogo dispararam, e Little Tom levou um tiro no brao. Ele deu um pinote para trs, praguejando. A porta estava sendo inexoravelmente empurrada para permanecer aberta, de modo que Ned urrou tal qual um urso e investiu contra os janzaros, descendo o alfanje como um louco at que os braos sumiram de vista. A, ele bateu a porta, pegando um de nossos ps-de-cabra para emperr-la temporariamente at que os janzaros pudessem abri-la fora. Descemos correndo a escada serpeante at o salo vazio dos templrios. Atrs e acima de ns, ouvamos o pesado impacto de uma marreta medida que os muulmanos batiam na porta de pedra. Se nos pegassem, eles nos massacrariam por sacrilgio. Somente pela passagem arcada talvez ainda tivssemos uma chance. L na passagem para o manancial, dissera Farhi, um s homem conseguiria conter um exrcito. Corremos pelo corredor com o friso de caveiras, at o buraco que
escavramos apenas uma hora antes. Eu, usando alfanje e fuzil, ganharia tempo para os outros enquanto eles fugiam. Que maldita baguna! Algo, entretanto, mudara. A abertura que fizramos no vo emparedado diminura. De algum modo, as pedras estavam se reempilhando, e o buraco ficava pequeno demais. Que mgica era aquela? "Au revoir, monsieur Gage!", disse-me pelo buraco encolhido uma voz conhecida. Mais uma vez, era a voz do pretenso inspetor de alfndega que tentara assaltar-me na Frana e com quem eu lutara em Jerusalm quando seus capangas pegaram Miriam. Desta feita, ele falava pelo que agora era o vazio de um nico bloco de pedra! Ento no era mgica coisa nenhuma, somente a perfdia de Silano. A pedra derradeira foi encaixada na nossa cara, prendendo-nos ali. Os franceses certamente haviam nos seguido (como eu temera), arrebentado o cadeado de Jeric na grade do Tanque de Silo e ouvido nossos gritos quando no achamos tesouro algum. Eles ento comearam a tapar nossa rota de fuga com a saca de argamassa que Big Ned deixara ali. Estvamos encurralados por nossa prpria previdncia. "A argamassa ainda no secou!", bradou Ned. Mas ou a cal aglomerante se solidificava depressa, ou a alvenaria estava reforada do outro lado com entulho e vigas, pois o fuzileiro quicou como uma bola ao lanar-se contra ela. Ned comeou ento a bater com os punhos no vo emparedado, enquanto Little Tom cambaleava como um
bbado, segurando o brao com a mo, de cujos dedos pingava sangue. "No temos tempo para isso!", disse Tentwhistle, de modo spero e abrupto. "Os muulmanos vo conseguir passar por aquela porta de pedra l em cima e descer pela escada da Virgem Negra!" "A escada da Virgem Branca!", gritou Farhi. " nossa nica chance!" Corremos de volta para o salo templrio. Houve um estrpito, e o eco de belicosos berros em rabe desceu pela escadaria da esttua escura. Eles haviam passado! Tentwhistle e eu chispamos para o p da escadaria e atiramos s cegas para cima. As balas ricochetearam e impuseram alguma hesitao. Do lado oposto, Farhi se espremeu para passar pela Virgem Branca e comeou a subir aquela escadaria. Logo atrs do judeu, Jeric empurrava a irm com fora. Depois, o resto de ns tambm bateu em retirada pelo salo dos templrios, comprimindo-nos um aps o outro para subir os degraus. Por fim, Big Ned empurrou at mesmo a mim frente dele. "Eu cuido dessa corja!", explicou ele. Com os msculos quase explodindo, nosso golias pegou a Virgem Branca e a arrancou do nicho. Agora os perseguidores estavam adentrando o salo dos templrios, olhando admirados e ento berrando quando nos avistaram no lado oposto. Virando-se de lado, Ned mal conseguiu espremer-se pela entrada da escadaria enquanto arrastava a Virgem pela cabea, fazendo que o corpo de pedra da esttua obstrusse a estreita passagem. Isso colocou entre
ns e eles um tapadouro parcial. Voltamo-nos e subimos com dificuldade. Uma onda de muulmanos, correndo desnorteadamente, arremeteu contra a obstruo e retrocedeu, urrando de raiva e decepo. Eles comearam a puxar para soltar a Virgem. Seguimos desesperadamente escadaria acima. Eu ouvia a turba l embaixo berrar de frustrao enquanto investiam contra a esttua que bloqueava nossa rota de fuga. Dispararam-se mais tiros; as balas, porm, ricochetearam inofensivamente nos degraus mais baixos. Deramse alarmes, certamente para avisar os compatriotas do Monte do Templo de nossa iminente sada. Topamos com um porto gradeado de ferro, que nos fechava do lado de dentro. Tentwhistle estourou o fecho com um disparo de pistola e escancarou o porto, empurrando-o violentamente e fazendo-o bater na parede. O ferro reverberou como um gongo. Aproveitei a pausa para recarregar o fuzil. Samos no alto do Monte do Templo, na mesquita de El-Aqsa. Reparei em como ela fora modificada pelos cruzados, com a fileira de arcos e janelas elevadas fazendo do enorme espao interior um cruzamento arquitetnico de palcio rabe com igreja europia. Como Farhi adivinhara, a escadaria da Virgem Branca s podia ter sido construda para possibilitar o acesso secreto da sede principal dos templrios s cmaras e tneis abaixo. Corremos desabaladamente para a porta da mesquita. Na imensa plataforma do templo, iluminada apenas pela luz tnue do cu antes do
alvorecer, pululavam centenas de muulmanos toscamente armados, como abelhas numa colmeia que acabasse de ser chacoalhada. Mais alm, eu enxergava a azulejaria azul e a coroa dourada do sereno Domo da Rocha, com sua porta fervilhando enquanto homens entravam e saam consternados de l. A multido cantava, dava gritos de alarme, brandia porretes. Afortunadamente, havia poucos janzaros e poucas armas de fogo. Alguns dos muulmanos acabaram nos vendo, e a aquela gente toda, com um grande urro, voltou-se em unssono e veio carga. "Mas que porcaria estar contigo!", disse-me Ned. Ento, mirei. noite, a mesquita de El-Aqsa alumiada por enormes lmpadas pendentes de bronze, que podem ser baixadas com cordas brancas de algodo. Uma dessas lmpadas - com diversas dzias de chamas individuais, numa base de metal de dez ps de largura, tudo pesando bem mais de uma tonelada - estava suspensa sobre a entrada principal. Quando a multido veio irrompendo por ali, eu mirei pela luneta do fuzil, pus no retculo de fios cruzados a corda e o gancho que a segurava no teto decorado e atirei. A bala rompeu a corda, e a lmpada desceu como se fosse uma guilhotina, caindo com enorme estrondo ao sepultar o lder da turba e dispersar o restante. Nossos perseguidores retrocederam momentaneamente, olhando ressabiados para cima. Foi o bastante para dar a nosso destacamento de trogloditas sujos e cobertos de sangue os preciosos segundos necessrios para
que nos retirssemos rumo parte traseira da mesquita. "Eles pegaram as sagradas relquias de Maom!", ouvi a multido bradar. E, de repente, fiquei imaginando se a viagem noturna do Profeta a Jerusalm e a ascenso dele aos Cus seria apenas um mito ou se Maom tambm estivera verdadeiramente ali, procurando e talvez achando a sabedoria. Teria tambm ele ouvido falar do Livro de Tot? O que aprendera Jesus no Egito, ou o Buda em suas andanas? Seriam todos os credos, mitos e narrativas um interminvel entrelaar e exagerar de antigos textos, de sabedoria constituda sobre a sabedoria anterior, de mistrios ocultos por ainda mais mistrios? O que eu estava pensando era heresia - mas ali, no centro religioso do mundo, eu no conseguia deixar de matutar. Corremos o mximo que podamos pelos gastos tapetes vermelhos que cobriam as lajes da mesquita, entrando nas pequenas ante-salas alm do grande salo, temendo muitssimo algum beco sem sada que nos encurralasse ali. Mas, no ponto onde a El-Aqsa e o Monte do Templo encontravam a muralha da periferia da cidade, havia outra porta trancada. Big Ned correu de encontro a ela a toda a velocidade, e desta vez a porta se arrebentou e se abriu, com as lascas de madeira retorcida parecendo feridas novas na madeira antiga. Olhamos para fora. A muralha acompanhava a extremidade sul do Monte do Templo num declive, cercando Jerusalm. Numa torre, a muralha se voltava para oeste, cingindo a cidade l embaixo.
"Se entrarmos naquele labirinto de ruas, conseguiremos despist-los", disse Farhi, arfante. Ele, Miriam e o ferido Little Tom, os trs cambaleando de exausto, comearam a andar em passo rpido e constante pelo parapeito da muralha, rumo aos degraus que desciam para o Porto do Esterco. Enquanto isso, Tentwhistle e eu recarregvamos nossas armas no parapeito e Ned e Jeric ficavam parados, em p, de alfanje na mo, prontos. Quando os primeiros dentre nossos perseguidores preencheram a porta pela qual acabramos de sair, ns atiramos. Nisso, Ned e Jeric arremeteram para a fumaa, golpeando com os alfanjes. Ouviram-se berros, os muulmanos recuaram, e Ned caminhou de volta, rpido e firme. "Agora eles vo pensar duas vezes", disse ele, com um sorriso de orelha a orelha, cheio de dentes. Jeric, vendo a lmina molhada de sangue, parecia nauseado. "Causaste o mal", disse ele ao fuzileiro. "Se bem me lembro, ferreiro, foram tu e a biscate da tua irm que mostraram o caminho." E batemos em retirada mais uma vez. Se a multido estivesse mais bem armada, teramos sido mortos. Mas dispararam poucos tiros contra ns, embora as balas passassem com aquele curioso chiado quente que nos deixa paralisados se paramos para pensar no assunto. Ento descemos pela escada da muralha para uma rua de Jerusalm, com o Porto do Esterco fechado por um subpeloto de janzaros, tendo as cimitarras prontas para que no pudssemos fugir da cidade. Acima de ns, os parapeitos estavam
apinhados de muulmanos que chispavam aos gritos para a escada. "Para o bairro judeu!", exortou Farhi. " nossa nica chance!" Agora se ouviam gritos de alarme dos minaretes, e sinos cristos badalavam. Tnhamos acordado a cidade inteira. Gente aos berros correu para as ruas. Ces uivavam, ovelhas baliam. Uma cabra apavorada passou a galope por ns, indo para o outro lado. Farhi, ofegante, conduziu-nos morro acima para a Sinagoza de Ramban e o Porto de Jafa. A multido muulmana vinha atrs, iluminada por tochas que formavam uma cobra de fogo. Mesmo se eu conseguisse tempo para recarregar o fuzil, o tiro nico que poderia dar no deteria em nada a fria despertada por termos passado por baixo do Domo da Rocha. A menos que consegussemos socorro, estvamos perdidos. "Eles querem queimar as sinagogas de Ramban e de Yochanan ben Zaka", berrou Farhi para os aflitos judeus quando estes saram correndo para as ruas. "Arranjai aliados cristos! Os muulmanos esto se sublevando!" "As sinagogas! Salvemos nossas casas sagradas!" Com isso, tnhamos agora um escudo. Judeus se apressaram a conter a multido que irrompia no bairro deles. Cristos alertavam que o verdadeiro objetivo dos muulmanos era a igreja do Santo Sepulcro. Multido colidiu com multido. Em instantes, criou-se o caos. Com isso, Farhi desapareceu. Eu instei com os outros: "Vamos nos separar! Jeric e Miriam, vs morais aqui. Ide para casa!"
"Ouvi muulmanos chamarem o meu nome", disse Jeric, desalentado. "No podemos mais ficar em Jerusalm. Fui reconhecido." Ele me olhou feio. "Vo saquear e queimar a minha casa." A culpa me deu nuseas. "Ento pegai o que puderdes e escapai para o litoral. Smith est organizando a defesa de Acre. Procurai l a proteo dele." "Vem conosco!", rogou Miriam. "No - sozinhos, provavelmente conseguireis viajar sem que vos molestem, pois sois da terra. O resto de ns d tanto na vista quanto bonecos de neve no vero." Coloquei os serafins nas mos de Miriam, apertando-as. "Leva-os e esconde-os at que nos reencontremos. Ns, os europeus, podemos correr ou sumir de vista, saindo s ocultas quando escurecer. Vamos na direo oposta, para dar-vos tempo. No te preocupes. Ns nos encontraremos em Acre." "Perdi a minha casa e o meu bom nome por um subterrneo vazio", disse Jeric, com amargura. "Havia alguma coisa ali", insisti. "Tu sabes que havia. A pergunta : onde estar esse algo agora? Em todo o caso, quando o acharmos, seremos ricos." Jeric me fitou com um misto de raiva, desespero e esperana. "Vai, vai, antes que seja tarde demais para a tua irm!" Ao mesmo tempo, Tentwhistle me puxou. "Vinde, antes que seja tarde demais tambm para ns!" E assim nos separamos. Enquanto corramos, olhei para trs, para o casal de irmos. "Ainda haveremos de achar o que procuramos!"
Eu e os britnicos nos dirigimos ao Porto de Sio. Olhei de novo para trs, mas Jeric e Miriam j haviam se perdido nas multides tal qual restos de naufrgio no mar agitado. amos aos tropees, demasiado devagar e demasiado sem esperana. Little Tom, com o brao pegajoso de sangue, no conseguia apressar-se, mas seguia em frente, brioso. Entramos no bairro armnio e chegamos ao porto. Os guardas tinham sado, provavelmente para controlar os distrbios ou procurar por ns - e isso era nosso primeiro golpe de sorte em todo aquele fiasco. Desaferrolhamos as grandes portas, empurramos com fora e passamos para campo aberto. O cu mal comeava a avermelhar-se. L atrs, as chamas, as tochas e a aurora que se aproximava tinham alaranjado o cu acima das muralhas da cidade. Mais adiante, ainda havia sombras protetoras. nossa direita, estavam o Monte Sio e a Tumba de Davi. esquerda, o Vale de Hinom, com o Tanque de Silo em algum lugar na escurido l embaixo. "Daremos a volta muralha da cidade at o norte e pegaremos a estrada para Nablus", disse eu. "Se viajarmos noite, poderemos chegar a Acre em quatro dias e levar informaes a Sidney Smith." "Mas e o tesouro?", perguntou Tentwhistle. "Ficamos por aquilo mesmo? Vamos desistir?" "Vistes que ele no estava l. Precisamos ver onde procurar em seguida. Queira Deus que eles no tenham pegado Farhi. Ele saber onde tentar agora."
"No, acho que ele est nos traindo. Por que precisava sair de fino daquele jeito?" Isso tambm me encafifava. "A gente sempre cuida de salvar primeiro a prpria pele", disse Big Ned. Nisto, o capito-tenente pareceu ter um espasmo, e o som de um disparo ecoou pelo morro acima. Depois veio outro, e mais outro, com as balas acertando a poeira. Tentwhistle sentou com um grunhido. E ento ouvi as palavras em francs: "Eles esto ali! Espalhai-vos! No os deixeis fugir!" Era o grupo que tentara nos emparedar nos tneis, os mesmos franceses que haviam pegado Miriam. Tinham sado na surdina do Tanque de Silo, ouvido o pandemnio e esperado ao p da muralha at que algum aparecesse. Eu me agachei ao lado de Tentwhistle e mirei. Minha luneta achou um dos tocaieiros, e atirei. Ele tombou. Lindo fuzil. Recarreguei, freneticamente. Ned pegara a pistola de Tentwhistle e disparou tambm, mas nossos agressores no estavam dentro do alcance de balas de pistola. "Tudo o que conseguirs atrair a mira deles com o claro da tua arma", eu lhe disse. "Leva Tom e o capitotenente de volta pelo porto. Vou segur-los por um momento, e depois podemos despist-los no bairro armnio," Outra bala zuniu acima de ns. Tentwhistle tossia sangue, e seus olhos estavam vidrados. Ele no viveria muito mais. "Est certo, chefe - que nos faas ganhar tempo, ento." Ned comeou a arrastar Tentwhistle de volta, com Tom seguindo-os, j bem grogue. "Potts
morto, dois de ns feridos. s mesmo uma inspirao desgraada." Estava ficando mais claro. Balas ricocheteavam medida que os franceses se aproximavam em bando. Tornei a atirar e, a, olhei de relance para trs. Os britnicos j haviam entrado pelo porto. No era mais hora de recarregar - era hora de ir! Agachado, fui de costas, e de fininho, no sentido do porto. Vultos escuros se achegavam como lobos a rondar a presa. Ento, ouvi um rangido - o porto estava se fechando! Chispei para l, e, mal cheguei muralha, o porto foi batido com estrondo, trancando-me do lado de fora. Ouvi o baque surdo da trava. "Ned! Abre!" Ento ouvi uma ordem em francs, e me atirei de cara no cho antes do disparo de uma salva de balas. Elas bateram como granizo contra o ferro do porto. Eu estava tal qual um condenado no muro de fuzilamento. "Depressa eles esto chegando!" "Acho que vamos seguir sozinhos, chefe", disse Ned em voz alta. "Sozinhos? Pelo amor de Deus..." "No acho que esses franceses vo se preocupar muito com os coitados de uns britnicos. s tu quem sabe dos segredos do tesouro, no verdade?" "O qu?! Vais me deixar merc deles?!" "Talvez possas lider-los como nos lideraste, no?" "Maldio, Ned - fiquemos juntos, como o capitotenente mandou!" "Ele est acabado, e ns tambm. No compensa roubar de marujos honestos no carteado, chefe. Acabamos perdendo os amigos."
"Mas eu no roubei - s fui mais esperto!" "D na mesma." "Ned, abre este porto!" Mas no havia resposta, s o porto mudo. "Ned!" Debruado, bati com fora no ferro inflexvel. "Ned! Deixa-me entrar!" Mas no deixou, claro, enquanto eu fazia fora para ouvir por sobre o tumulto da cidade a retirada deles. Voltei-me. Os franceses haviam se insinuado at poucas jardas de onde eu estava, e vrios mosquetes apontavam para mim. O mais alto dos agressores sorriu. "Ns nos despedimos por baixo do Monte do Templo e agora tornamos a nos encontrar!", gritou o lder. Ele tirou o tricornio em saudao e fez uma reverncia. "Tendes mesmo talento para estar em todo lugar, monsieur Gage. S que eu tambm tenho - ou no?" O dele era o sorriso dos torturadores. "Imagino que ainda vos lembrais de mim, l da diligncia de Toulon... Pierre Najac, a vosso dispor." "Eu me lembro de ti - o inspetor de alfndega que se revelou ladro. Ento teu verdadeiro nome Najac?" "Verdadeiro o bastante. O que aconteceu com vossos amigos, monsieur?" Eu me levantei devagar. "Saram frustrados de um jogo de cartas."
10
Eu soube que estava no inferno quando Najac insistiu em mostrar seu ferimento de bala. Era o que eu lhe causara um ano antes, rubro e coberto de crosta e cicatriz, num tronco que certamente no via sabo nem gua fazia um ms. A pequena cratera ficava poucas polegadas abaixo do mamilo esquerdo, mais para o mesmo flanco, confirmando que minha pontaria no fora perfeita por pouco. Agora eu tambm sabia que ele fedia. "Abala quebrou uma costela", explicou. "Imaginai minha satisfao quando, aps a convalescena, descobri que talvez estivsseis vivo e que eu poderia ajudar meu amo a ir em vosso encalo. Primeiro, cometestes a estupidez de mandar fazer perguntas no Egito. Depois, quando viemos para c, pegamos um tolo caduco que, to logo o assamos o bastante, abriu o bico e disse tudo sobre ter encontrado um franco que levava consigo os anjos de ouro de Satans. Foi a que eu soube que deveis estar por perto. A vingana um prato que se come frio - e, quanto mais frio, melhor, no concordais?" "Sabers a resposta quando eu finalmente te matar." Ele riu de minha piadinha, ergueu-se e me chutou a tmpora com tanta fora que a noite se dissolveu em pontos brilhantes de luz. Ca de frente na fogueira, de mos e ps amarrados, e foi a lenta combusto de minhas roupas e a dor resultante que enfim me incitaram o suficiente para me contorcer para longe. Isso divertiu muitssimo meus captores, mas o fato que eu
sempre gostei mesmo de ser o centro das atenes. Em seguida, a queimadura me manteve febril. Era a noite subseqente nossa partida de Jerusalm, e o medo e a dor eram as nicas coisas que me faziam continuar consciente. Estava exausto, dolorido e terrivelmente sozinho. De algum modo, o bando de Najac inchara para dez valentes; metade deles eram franceses, e os restantes, bedunos, to desalinhados e sujos que pareciam ser o rebotalho da Arbia, uns sapos, de to feios. Ali, estava faltando no s metade da dentio dessa turma, mas tambm o francs que eu apunhalara na briga por Miriam. Tive a esperana de hav-lo liquidado, um sinal de que eu estaria ficando melhor em dar cabo de meus inimigos. Mas talvez tambm ele estivesse convalescendo, sonhando com o dia em que poderia igualmente me capturar e chutar. O humor de Najac no melhorou com a descoberta de que eu no levava nada de valor alm do fuzil e da machadinha, coisas de que, sendo ladro, ele se apropriou. Eu confiara os serafins a Miriam e, com toda aquela agitao, no percebera que algum (Big Ned ou Little Tom, segundo presumi) me surrupiara a bolsa de moedas. Minha insistncia em que no achramos nada no subsolo - em que Jerusalm se mostrara uma decepo to grande quanto o Egito - no caiu bem. O que, perguntaram, eu estivera fazendo l embaixo se no havia o que descobrir?
Vendo a pedra fundamental do mundo pelo outro lado, respondi. Eles me espancaram, mas hesitavam em matarme. Nessa altura dos acontecimentos, as passagens sob o Monte do Templo deviam estar to agitadas quanto um formigueiro, com os muulmanos provavelmente sem entender o que procurramos. A balbrdia acabara com qualquer chance de que aquela quadrilha franco-rabe pudesse voltar, de modo que eu era a nica pista que tinham. "Eu vos assaria agora mesmo se Bonaparte e o amo no vos quisessem vivo", rosnou Najac. Ele deixou que os rabes se entretivessem usando suas adagas para jogarem brasas em meus braos e pernas, mas no muito mais que isso. Ainda haveria bastante tempo para fazer-me berrar de dor. Eu enfim apaguei numa escurido exausta, at que, na manh seguinte, sacudiram-me dolorosamente para um desjejum de gua e pasta de gro-de-bico. Ento continuamos por uma trilha batida que ia desde os montes de Jerusalm at a plancie litornea, com o horizonte j marcado por colunas de fumaa. O exrcito francs andava bem ocupado. Apesar do cativeiro, tive uma estranha sensao de volta ao lar quando chegamos ao acampamento de Napoleo. Eu marchara com o exrcito de Bonaparte e encontrara a diviso de Desaix em Dendara. Agora, armando tendas brancas diante das muralhas de Jafa, estavam de
novo homens em uniformes europeus. Senti o cheiro de comida conhecida e, mais uma vez, ouvi a sonoridade alegre e elegante da lngua francesa. medida que passvamos montados pelas fileiras, homens olhavam com curiosidade para o bando de Najac, e alguns, surpresos, apontavam para mim porque me reconheciam. No muito antes, eu fora um de seus savants. E agora l estava eu, desertor e prisioneiro. A prpria Jafa me era familiar, mas desta feita via-a da perspectiva do sitiador. Os baldaquinos e os tapetes pendurados haviam sumido, e as fortificaes exibiam as feridas frescas das balas de canho. De modo similar, muitas das laranjeiras que abrigavam o exrcito de Napoleo haviam sido reduzidas a lenho bruto pelo fogo de artilharia otomano, que lhes arrancara a copa. Terra e areia frescas estavam sendo escavadas para as obras de cerco, e longas fileiras de animais da cavalaria francesa se agitavam nervosamente sombra, onde haviam sido amarrados a estacas, relinchando e arrastando os cascos com o canhoneio. Suas caudas espantavam as moscas como metrnomos, e seu esterco tinha aquele cheiro adocicado familiar. Najac entrou no amplo pavilho de lona de Bonaparte, e eu fiquei sem chapu ao sol do Mediterrneo. Estava sedento, zonzo e fatalista. Certa vez, eu cara de um despenhadeiro no rio So Loureno, girando sem parar, e tivera aquela mesma vaga sensao de nauseado
arrependimento - at quicar num arbusto, acima das pedras, e ir parar dentro do rio. E ali talvez estivesse tambm meu arbusto salvador. "Gaspard!", chamei, em voz alta. Era Monge, o clebre matemtico francs, o homem que ajudara a solucionar parte do enigma da Grande Pirmide. Ele era confidente de Napoleo desde os triunfos do general na Itlia e o orientara e educara tal qual teria feito com um sobrinho genioso e cabeudo. Agora, Monge acompanhava o exrcito Palestina. "Gage?" Ele forou a vista ao aproximar-se. Seu traje civil estava cada vez mais surrado, com as calas remendadas nos joelhos e o casaco esfarrapado. O rosto mostrava uma barba de vrios dias. O homem tinha cinqenta e dois anos e estava esgotado. "O que fazes aqui? Achei que te houvesse mandado voltar para a Amrica!" "Eu tentei. Escuta - tens notcias de Astiza?" "A mulher? Mas ela foi embora contigo!" ", mas acabaram nos apartando." "Embarcastes os dois num balo - foi o que Conte me disse. Ah, como ele ficou furioso com essa patuscada! Flutuastes para longe... Como o resto de ns vos invejou!... E agora ests de volta a este manicmio?! Por Deus, homem - eu sabia que no eras um savant de verdade, mas pareces no ter mesmo nenhum juzo." "Nisso, doutor Monge, ns dois concordamos." Ele no apenas no sabia nada do paradeiro de Astiza, como tambm desconhecia nossa entrada na pirmide, e bem depressa resolvi que seria
melhor no lhe contar. Se os franceses porventura ficassem cientes de que havia coisas de valor l embaixo, eles explodiriam a edificao. Melhor deixar que Fara descansasse em paz. "Astiza caiu no Nilo, e o balo acabou descendo no Mediterrneo", expliquei. "Nicolas tambm est aqui?" Eu estava um pouco apreensivo ante a possibilidade de encontrar Conte, o aeronauta da expedio francesa, j que lhe furtara o balo de observao. "Felizmente para ti, ele voltou para o sul para organizar o embarque de nossa artilharia de stio. Conte props um plano bem brilhante - construir carroes de vrias rodas para transportar os canhes atravs do deserto. S que Napoleo no tem tempo para novas invenes, e, por isso, estamos nos arriscando ao trazer a artilharia por mar." Monge se interrompeu, percebendo que estava divulgando segredos. "Mas o que fazes aqui, de mos atadas?" Ele parecia confuso. "Ests sujo, queimado, desamparado - meu Deus, o que aconteceu contigo?!" "Ele espio ingls", respondeu Najac, saindo da tenda. "E tu, cientista, corres o risco de tambm se tornar suspeito s por falar com ele." "Espio ingls? No sejas ridculo. Gage um diletante, um parasita, um trapalho, um errante. Ningum o levaria a srio como espio." "No? Nosso general leva." Nisto, apareceu o prprio Bonaparte, com a lona da entrada da tenda se enfunando
grandiosamente, como se insuflada pela eletricidade dele. Assim como todos ns, Napoleo estava mais moreno que quando partramos de Toulon, quase um ano antes; e, embora ainda tivesse apenas vinte e nove anos, o sucesso e a responsabilidade haviam conferido uma dureza nova a seu rosto. Josefina era adltera, os planos de reformar o Egito com base em princpios republicanos franceses haviam sido rechaados e lhe valido a condenao como infiel, e ele precisara sufocar um sangrento levante no Cairo. O idealismo de Napoleo estava sitiado, e tinham sido abertas brechas nas muralhas de seu romantismo. Agora, os olhos cinzentos eram gelados; os cabelos escuros, desgrenhados; a fisionomia, mais afalcoada; a passada, impaciente. Marchou at mim e parou. Com cinco ps e meio de altura, era mais baixo que eu e, ainda assim, espichado pelo poder. No consegui deixar de me encolher, receoso. "Ento, s tu mesmo! Achei que tivesses morrido." "Ele passou para os britnicos, mon general", disse Najac. O homem parecia um dedo-duro de escola, e eu j comeava a desejar t-lo baleado na lngua. Bonaparte se inclinou para bem junto de mim. " verdade, Gage? Desertaste para o inimigo? Rejeitaste o republicanismo, o racionalismo e o reformismo em favor do monarquismo, dos reacionrios e dos turcos?" "As circunstncias nos obrigaram a seguir caminhos diferentes, general. Eu venho
simplesmente tentando descobrir o paradeiro da mulher que conheci no Egito. Vs vos lembrareis de Astiza." "Aquela que fica atirando nas pessoas. Minha experincia de que o amor faz mais mal do que bem, Gage. E esperavas ach-la em Jerusalm, onde Najac te apanhou?" "Na qualidade de savant, eu estava procurando fazer certa pesquisa histrica..." Ele explodiu. "No! Se h uma coisa que aprendi, que no s savant coisa nenhuma! No me faas perder tempo com absurdos! s um viracasaca, um mentiroso e um hipcrita que lutou na companhia de homens da marinha inglesa! Talvez sejas espio de fato, como Najac diz. Isso se no fosses to tolo, como Monge tambm teve ocasio de assinalar." "Senhor, esse Najac a tentou roubar meu importantssimo medalho na Frana, quando eu j estava compromissado com vossa expedio. O traidor ele!" "Foi ele quem me baleou!", disse Najac. "Ele capanga do conde Alessandro Silano e adepto do hertico Rito Egpcio, inimigo de todos os verdadeiros maons. Eu tenho convico disso!" "Silncio!", interrompeu Bonaparte. "Estou bastante ciente da tua antipatia pelo conde Silano, Gage. Eu tambm sei que ele tem demonstrado admirvel lealdade e perseverana apesar da queda que sofreu nas pirmides." Ento, pensei, Silano est vivo. As notcias no paravam de piorar. Teria o conde fingido que
cara no do balo, mas das pirmides? E por que ningum falava em Astiza? "Se fosses to leal quanto Silano, no terias condenado a ti prprio como o fazes agora", continuou Bonaparte. "Por todos os santos, Gage! Foste acusado de homicdio, eu te dei todas as oportunidades, e ainda assim mudas de lado, como um pndulo!" "O carter sempre se revela nas aes, mon general", disse Najac, presunoso. Ah, como eu queria esgan-lo! "Estavas era procurando um tesouro, no mesmo?", quis saber Napoleo, peremptrio. "Tudo no passou disso - aquele comercialismo e ganncia dos americanos." "Eu buscava conhecimento", corrigi, com um qu de verdade. "E que conhecimento descobriste? Se ds valor vida, s sincero." "Nenhum, general, como podeis ver pela minha presente condio. A verdade apenas esta! Tudo o que digo verdade. Sou to-somente um pesquisador americano, apanhado numa guerra que no a minha..." "Napoleo, evidente que o homem est mais para tolo que para inconfidente", interrompeu Monge. "O pecado dele a incompetncia, no a traio. Olha para Gage. O que poderia ele saber?" Procurei sorrir como um parvo (coisa nada fcil para um homem fundamentalmente sagaz como eu), calculando que a avaliao de Monge era um
progresso em relao de Najac. "Posso dizervos que a poltica de Jerusalm muito confusa", ensaiei. "No est claro a quem os cristos, judeus e drusos so realmente leais. "Chega!" Bonaparte fez carranca para todos ns. "Gage, no sei se mando fuzilar-te ou se te fao ir tentar a sorte com os turcos. Eu deveria despachar-te para dentro de Jafa e deixar que esperasses por minhas tropas l. Meus soldados no tm muita pacincia, no depois da resistncia que o inimigo ofereceu em El-Arish e Gaza. Ou talvez eu devesse mandar-te para Djezzar, com um bilhete dizendo que espias para mim." Eu engoli em seco. "Talvez eu pudesse ajudar o doutor Monge..." E ento se ouviu o som de disparos, cornetas e gritos de guerra. Todos olhamos para a cidade. No lado sul, uma coluna de infantaria otomana transbordava de Jafa contra os franceses, enquanto os canhes turcos retumbavam. Agitavam-se bandeiras, e homens desciam o monte, ligeiros, rumo a uma plataforma de artilharia francesa ainda semiconcluda. Os clarins franceses comearam a soar em resposta. "Maldio", resmungou Napoleo. "Najac!" "Oui, mon general!" "Tenho de ir repelir uma investida. Consegues descobrir o que ele realmente sabe?" O homem sorriu de orelha a orelha. "Ah, com certeza!"
"Ento vai e traz essas informaes para mim. Se ele no tiver mesmo serventia, vou mandar fuzil-lo." "Napoleo, deixa que eu fale com ele...", tentou Monge mais uma vez. "Se voltardes a falar com ele, doutor Monge, ser apenas para ouvir suas ltimas palavras." E, ento Bonaparte correu para o som dos disparos, chamando seus ajudantes-de-ordens. No sou nenhum covarde, mas, quando se pendurado de cabea para baixo num buraco de areia nas dunas mediterrneas, sob os apupos de uma quadrilha de degoladores franco-rabes, algo me faz querer dizer a eles qualquer coisa que queiram ouvir - s para fazer que o maldito sangue pare de acumular-se na minha cabea! Os franceses tinham rechaado a investida otomana, mas no antes que os bravos turcos tomassem a bateria incompleta e matassem franceses em quantidade suficiente para que o exrcito de Bonaparte se enfurecesse. Quando informados de que eu era espio ingls, vrios soldados tinham se oferecido entusiasticamente para ajudar a quadrilha de Najac a cavar o buraco e construir a armao de tronco de palmeira em que me dependuraram. Oficialmente, a idia era arrancar de mim quaisquer segredos que eu ainda no houvesse compartilhado. Extra-oficialmente, torturar-me era uma recompensa para o peculiar sortimento de sdicos, tarados, lunticos e ladres de Najac,
os quais existiam para fazer os servicinhos sujos da invaso. Eu j dissera a verdade uma dzia de vezes. "No h nada l embaixo!" E: "No consegui nada!" E: "Nem sei exatamente o que estou procurando!" Mas, at a, obter a verdade no realmente a razo de ser da tortura, j que a vtima dir qualquer coisa para fazer a dor parar. A tortura para o torturador. Assim, amarraram-me pelos calcanhares e me dependuraram da viga sobre o buraco na areia, com os braos livres para se agitarem. Cavaram um buraco de uns bons dez ps antes de darem em alguma coisa dura, quando ento declararam que j estava de bom tamanho para ser meu tmulo. E, em seguida, um dos bedunos se adiantou com uma cesta de vime e despejou o contedo daquilo no buraco. Meia dzia de serpentes caram no fundo do buraco e se contorceram, sibilantes e indignadas. "Jeito interessante de morrer, no?", perguntou retoricamente Najac. "Apfis", respondi, com a voz turvada pelo fato de a boca estar onde deviam estar os ps. "O qu?" "Apfis!", repeti, mais alto. Ele fingiu no entender, mas os rabes compreenderam, sim. Encolheram-se ao ouvir a palavra, pois se tratava do nome daquele antigo deus-cobra egpcio, venerado pelo assassino renegado Achmed bin Sadr. , eu j topara com aquele mesmo bando desprezvel, e, ante o fato
de eu conhecer o nome, eles se retorceram como se estivessem trocando de pele. Isso semeou a dvida entre eles. Mas quanto eu - o misterioso eletricista de Jerusalm - sabia verdadeiramente? Fosse como fosse, Najac continuava fingindo no dar pelo nome. "A morte por picada de cobra terrivelmente dolorosa e excruciantemente demorada. Ns vos mataremos mais depressa, monsieur Gage, se nos disserdes atrs do que estais realmente e o que realmente descobristes." "J recebi ofertas mais tentadoras. Vai para o inferno." "Depois de vs, monsieur." Ele se voltou para os homens que seguravam as cordas. "Ide baixando - sem parar!" A corda comeou a desenrolar-se aos trancos. Minha cabea desceu ao nvel do solo, meu corpo oscilava sobre a cova, e tudo o que eu conseguia ver era uma fileira de botas e sandlias cujos proprietrios faziam pouco de mim. Depois, mais corda. Puxei a cabea para cima e para trs, recurvando as costas de modo a olhar direto para baixo. As serpentes continuavam l, serpeando como elas gostam de fazer. Aquilo me fez lembrar a morte traioeira de Talma, coitado, e todos os ftidos delitos que Silano e sua corja haviam cometido para chegar ao livro. "Eu vos amaldioarei pelo nome de Tot!", berrei. A corda parou outra vez, e teve incio uma altercao em rabe. No consegui acompanhar a violenta enxurrada de palavras, mas ouvi fragmentos como "Apfis", "Silano", "feiticeiro" e
"eletricidade". Ento eu adquirira certa fama, hein?! Eles estavam apreensivos. A voz de Najac, furiosa e insistente, elevou-se acima daquelas de seus capangas. Deixaram a corda descer mais um p e pararam de novo, pois a discusso continuava. De repente, houve o estampido de um disparo de pistola, um solavanco quando ca mais dois ps e outra estancada. Todo o meu corpo j estava dentro do buraco, com as serpentes quatro ps abaixo. Um beduno que polemizara demais com Najac jazia morto, tendo um dos ps, calado com sandlia, virado sobre a borda do buraco. "O prximo que discutir comigo vai dividir a cova com o americano!", avisou Najac. O grupo ficara silencioso. "Ento, concordais comigo agora? timo - baixai-o! Devagar, para que possa implorar!" Ah, eu implorei mesmo, como um possesso. No sou orgulhoso quando se trata de evitar picada de cobra. Mas no adiantou nada - ou quase nada, porque pelo menos me baixaram aos pouquinhos, para que eu continuasse oferecendo entretenimento. Eles s podiam ter achado que eu nascera para os palcos. Gritei tudo o que achava que pudessem querer ouvir, rogando, contorcendo-me, transpirando, meus olhos ardendo com o suor. E ento, quando minhas abjetas lamrias comearam a ficar tediosas, algum deu um empurro para que eu balanasse de um lado para outro. Era uma sensao vertiginosa. Muito mais daquilo, e eu apagaria. Vi uma serpente atrs da outra, a
enrolarem-se de agitao, mas ento percebi outra coisa. "H uma p aqui embaixo!" "Para tapardes vossa cova to logo tenhais sido picado, monsieur Gage", disse Najac, falando alto. "No seria mais fcil se explicsseis o que vistes sob o Monte do Templo?" "J te disse - nada!" E, assim, baixaram-me mais um p. isso que a gente consegue quando diz a verdade. As serpentes, desgraadas, estavam sibilando. No era justo que aqueles rpteis estivessem to bravos - afinal, no tinha sido eu a coloc-los ali. "Bem, talvez eu tenha visto uma coisa", corrigime. "No sou de muita pacincia, monsieur Gage." A corda tornou a descer. "Espera, espera!" Eu estava comeando a entrar realmente em pnico. "Ergue-me, e eu te conto!" Eu pensaria em alguma coisa! Algumas serpentes se agitavam para cima, preparando-se para picar-me na cabea. O sol subira, e sua luz ia pouco a pouco cobrindo meu tmulo. Vi de novo a p, com serpentes se enrodilhando ao redor, e a rocha arranhada onde meus coveiros haviam parado de cavar. S que, agora, eu j no achava que fosse rocha coisa nenhuma, pois tinha o vermelho-tijolo de um cntaro ou telha de argila. Reparei que o formato tambm era regular - cilndrico, se o arredondado da areia que cobria aquilo servia de alguma indicao. Parecia um cano. No! Era um cano.
Agora que eu pensava a respeito, conclua que ele se estendia para o mar. "Acho que podeis me contar da mesmo", disse Najac, perscrutando por sobre a borda do buraco. Estiquei para baixo meus braos oscilantes, o mais que pude. Ainda me faltava um p de distncia para alcanar a p largada. Meus torturadores viram o que eu tentava fazer e me baixaram mais algumas polegadas. Nisto, uma serpente arremeteu no sentido de minha mo, e movi abruptamente os braos para cima, meio retorcido - fato que arrancou estrondosas gargalhadas. Agora, eles estavam apostando em minha capacidade de pegar a p antes que fosse picado por rpteis rastejantes. E l fui eu descer mais uma polegada, e mais outra. Ah, como meus captores estavam se divertindo! "Se me matares, perders o maior tesouro da Terra!", avisei. "Ento dizei onde ele est." Mais algumas polegadas para baixo. "S posso levar-te a ele se poupares a minha vida!" Eu estava de olho na p e nas serpentes, contorcendo-me para que pudesse balanar e passar sobre o cabo da ferramenta. "E que tesouro esse?" Outra serpente investiu na minha direo, berrei, e ouviu-se mais um coro de risadas. Se pelo menos as cortess parisienses conseguissem me achar to divertido!... "Ele ..." A corda desceu mais; eu estiquei a mo, forando os dedos; as serpentes se ergueram, prontas; e a, no que elas arremeteram, agarrei a p e a brandi desesperadamente. Acertei dois
dos rpteis e os atirei contra as paredes de areia do buraco, dando incio a uma pequena cascata ofdica. Elas se agitaram desesperadamente quando caram de volta no fundo do buraco. "Para cima, por favor, para cima! Pelo amor de Deus, puxa-me!" "Qual o tesouro, monsieur Gage? O que ele?" No consegui pensar em outra coisa para fazer. Peguei a p com ambas as mos, dobrei-me dolorosamente para cima o mais que pude, fiz muita pontaria e ento me deixei cair de novo, fazendo que meu peso levasse a tosca ponta da p contra o cano de barro. E ele se despedaou! Jorrou lquido no buraco. Ningum ficou mais surpreso do que eu. A corda desceu outro p enquanto os homens l em cima gritavam de perplexidade, e meu cabelo estava mergulhado num efluente que fedia a esgoto e gua do mar. Seria aquilo alguma infame descarga de Jafa? Fechei os olhos, bem apertados, pronto para a mordida de presas em meu nariz, minhas orelhas ou minhas plpebras. Mas o irado sibilar estava se esvanecendo. Abri os olhos. As serpentes, fugindo do jorro ftido, haviam rastejado para os cantos do buraco. Eram cobras do deserto, to insatisfeitas com tudo aquilo quanto eu. Minha cabea caiu outra vez, e agora a testa raspava nessa fossa pegajosa. Pelo bom e velho dlar, ser que eu ia escapar da peonha s para me afogar de cabea para baixo?! "O Graal!", urrei. " o Graal!"
Com isso, Najac deu uma ordem rspida, e eles comearam a alar-me. Os rabes estavam em polvorosa, dizendo que eu era um feiticeiro que operara alguma espcie de milagre eltrico para tirar gua da areia. Najac olhava incrdulo para a p em minhas mos. L embaixo, o buraco continuava a encher, com as serpentes tentando escal-lo e voltando a cair. E ento minha cabea subiu acima do nvel do solo. Meus calcanhares continuavam amarrados, e meu tronco girava como um corte de carne de boi no gancho. "O que dizeis?!", perguntou Najac, peremptoriamente. "O Graal", respondi, com voz entrecortada e dbil. "O Santo Graal. Agora podes, por favor, me dar um tiro?" E claro que ele teria gostado de fazer isso. Mas e se minha alegao se revelasse importante para Bonaparte? Nisto, um resmungo furioso, crescendo at transformar-se em bramido indignado, comeou a erguer-se de todo o exrcito que sitiava Jafa.
11
No podemos justificar as atrocidades, mas s vezes podemos explic-las. As tropas de Bonaparte vinham lutando contra a desiluso desde o vero anterior, quando desembarcaram no Egito. O calor, a misria e a hostilidade da populao - tudo isso, enfim - foram um choque para os franceses. Eles haviam tido a expectativa de ser recebidos como salvadores republicanos que traziam as ddivas da Ilustrao. Em vez disso, precisaram enfrentar resistncia militar, foram vistos como infiis e ateus, e os remanescentes dos exrcitos mamelucos vinham do deserto para fazer incurses contra eles. Nas aldeias, as guarnies viviam sob a constante ameaa do envenenamento, ou da punhalada no escuro. A resposta de Napoleo foi continuarem marchando adiante. Em Gaza, a resistncia se mostrou inesperadamente acirrada. Prisioneiros turcos haviam sido libertados aps terem prometido que no voltariam luta, mas oficiais franceses, com lunetas, viram que as mesmas unidades guarneciam agora as muralhas de Jafa - e aquilo violava uma norma fundamental do modo europeu de guerrear! Mesmo isso, porm, talvez no houvesse desencadeado os massacres que se seguiram. O que causou a tormenta de fria foi a deciso do comandante otomano, o ag Abdalla, de responder oferta de rendio apresentada por Napoleo matando os dois emissrios franceses e enfiando as cabeas deles em estacas.
Isso foi precipitao da parte de um muulmano orgulhoso cujas tropas se encontravam em inferioridade numrica de trs para um. O exrcito francs, como um leo provocado, rugiu. Agora, no poderia haver nenhuma clemncia. Passados minutos, teve incio o canhoneio - uma detonao quando ocorria o disparo, um sibilar quando os projteis cortavam o ar, uma erupo de poeira e fragmentos quando eles atingiam a alvenaria da cidade. A cada impacto certeiro, as tropas francesas davam vivas, at que o bombardeio, desgastando constantemente as defesas de Jafa, se estendera por horas e horas e se tornara montono. Pelo leste e pelo norte, cada canho disparava de seis em seis minutos. Pelo sul, onde a artilharia francesa apontava para a cidade por sobre uma ravina com vegetao densa (que daria boa cobertura para tropas que viessem tentar o assalto s fortificaes), os canhes estrondeavam de trs em trs minutos, abrindo lentamente uma brecha nas muralhas. A artilharia otomana respondia, mas com peas antigas e pontaria enferrujada. E claro que teria gostado de fazer isso. Mas e se minha alegao se revelasse importante para Bonaparte? Nisto, um resmungo furioso, crescendo at transformar-se em bramido indignado, comeou a erguer-se de todo o exrcito que sitiava Jafa. Najac se deteve para ver suas serpentes se afogarem e depois me acorrentou a uma laranjeira enquanto observava o bombardeio e ponderava o que eu dissera. A batalha era um pandemnio a
que ele preferiu no deixar de assistir, mas presumo que arranjou um minutinho para informar Napoleo de minha tagarelice sobre o Santo Graal. A noite chegou, as fogueiras pareciam pulsar em Jafa, mas no me deram comida nem gua, s me restando o montono bater de tambor da artilharia. Acabei dormindo ao som desse rufar. O nascer do sol revelou uma grande brecha na muralha meridional. As casas brancas, empilhadas como um bolo de noivas, estavam marcadas por novos buracos escuros, e a fumaa encobria Jafa. Os franceses apontaram sua artilharia como se fossem cirurgies, e a brecha se alargou de modo firme e constante. Eu via dezenas de balas slidas de canho jazerem no entulho da base da muralha, tal qual uvas-passas em massa de panificao. Em seguida, duas companhias de granadeiros, acompanhadas por sapadores que levavam plvora, comearam a aglomerar-se na ravina. Atrs delas, mais tropas se aprestavam. Najac me desacorrentou. "A vem Bonaparte. Provai vossa utilidade se no quiserdes morrer." Napoleo estava em meio a um aglomerado de oficiais. Era o menor em estatura, o maior em personalidade, aquele que gesticulava mais vigorosamente. Os granadeiros estavam marchando em fila pela ravina, batendo continncia para o general ao se aproximarem da brecha na muralha de Jafa. As balas de canho otomanas caam com estrpito, agitando violentamente a folhagem como um urso ao aproximar-se da presa. Os soldados seguiam sem
deter-se pelo fogo impreciso e pela concomitante chuva de folhas cortadas. "Veremos agora quais cabeas acabam na estaca!", disse um sargento em voz alta quando eles passaram com baionetas caladas, e pisadas duras e ritmadas. Bonaparte sorriu de modo sinistro. Os oficiais nos ignoraram por um tempo, mas, quando as tropas avanadas iniciaram o assalto, Napoleo voltou sua ateno abruptamente para mim, como se quisesse ocupar os momentos de ansiedade em que aguardaria o sucesso ou o malogro do assalto. Ouviu-se um clangor de mosquetes quando os granadeiros saram do arvoredo e investiram para a brecha, mas o general nem sequer olhou para l. "Ento, Gage, eu soube que agora operas milagres, tirando gua de pedra e afogando serpentes." "Eu achei uma velha tubulao." "E, se bem entendi, o Santo Graal." Tomei flego. "Trata-se da mesma coisa que eu estava procurando nas pirmides, general, e da mesma coisa que buscam o conde Alessandro Silano e seu depravado Rito Egpcio, para possvel prejuzo de todos ns. O Najac, aqui est ele prprio mancomunando com biltres que..." "Gage, eu venho suportando tuas divagaes h muitos meses, e no me lembro de ter obtido algum benefcio com isso. Se te recordas, eu te propus uma parceria, a oportunidade de reconstruirmos o mundo por meio dos ideais de nossas duas revolues, a francesa e a americana.
Mas preferiste desertar de balo - ou no verdade?" "Mas foi s por causa de Silano..." "Tens esse Graal ou no?" "No." "Sabes onde ele est?" "No, mas estvamos procurando quando o Najac aqui..." "Sabes ao menos o que esse Graal?" "No exatamente, mas. Bonaparte se voltou para Najac. " evidente que ele no sabe coisa nenhuma. Por que o tiraste da cova?" "Mas l ele disse que sabia!" "E quem no diria qualquer coisa quando as tuas malditas cobras esto lhe mordendo a cabea? Chega de bobagens tuas e dele! Quero que esse homem sirva de exemplo - ele no s intil, mas tambm enfadonho! Faremos o americano marchar diante da infantaria e ser fuzilado como o vira-casaca que . Estou cansado de maons, feiticeiros, cobras, deuses decrpitos e todos os outros tipos de lenda idiota que ouvi desde que iniciei esta expedio. Sou membro do Institut de France! Nossa ptria a encarnao da cincia! O nico "Graal" o poder de fogo!" Nisto, uma bala de mosquete arrancou o chapu da cabea do general e acertou o peito de um coronel ali atrs, matando o homem. Bonaparte teve um sobressalto, fitando de olhos arregalados enquanto o oficial caa. "Mon Dieu!" Najac fez o sinal-da-cruz, o que eu considerei o cmulo da hipocrisia, j que sua religiosidade crist valia tanto quanto o dinheiro fajuto que o Congresso Continental emitira durante nossa
Guerra de Independncia. " um sinal! No deveis falar como falastes!" Napoleo empalideceu momentaneamente, mas recuperou a compostura. Franziu o cenho para o inimigo, que pululava nas muralhas; olhou para o coronel estatelado; e apanhou o chapu no cho. "Foi Lambeau quem levou o tiro, no eu." "Mas o poder do Graal!..." "Esta a segunda ocasio em que a estatura me salva a vida. Se eu tivesse a altura do nosso general Kleber, j teria morrido duas vezes. Est a o teu milagre, Najac." Meu captor estava paralisado pela viso do buraco no chapu do general. "Talvez seja um sinal de que ainda podemos ajudar uns aos outros", ensaiei. "E quero o americano no s amarrado, como tambm amordaado. Mais uma palavra, e eu mesmo vou fuzil-lo." Com isso, minha situao no melhorou em nada, e Bonaparte se afastou a passos largos e pomposos. "Pois muito bem, j temos uma cabeade-ponte! Lannes, pe naquela brecha um dos canhes ligeiros!" Perdi muita coisa do que aconteceu em seguida, e sou grato por isso. As tropas otomanas resistiram com ferocidade, tanto que um capito dos engenheiros chamado Du Bois-Aym precisou descobrir um caminho pelos pores de Jafa para surpreender o inimigo por trs - e baioneta. Ento, soldados franceses furiosos comearam a enxamear-se pelas vielas da cidade.
Entrementes, no lado norte de Jafa, o general Bon transformou seu ataque diversionrio num assalto pleno, que conseguiu penetrar as defesas por aquela direo. Com as tropas entrando em grande nmero, o moral dos defensores ruiu, e os recrutas otomanos comearam a render-se. Mas a ira francesa ante a tola decapitao dos emissrios no amainara, e a matana e os saques primeiro no foram reprimidos e depois viraram furor coletivo. Fuzilaram-se e baionetaram-se prisioneiros. Pilharam-se residncias. Quando a noite veio ocultar os resultados de uma tarde sangrenta, soldados aos berros cambaleavam pelas ruas sob o peso do butim. Enfiavam mosquetes pelas janelas das casas e disparavam l para dentro. Brandiam sabres midos de sangue. Os saqueadores se negavam at a parar para ajudar seus prprios feridos. Oficiais que procuravam deter o massacre eram ameaados e empurrados para o lado. Arrancavam-se vus dos rostos das mulheres, seguindo-se as roupas. Todo marido ou irmo que tentava impedir era abatido a tiros, e as mulheres, estupradas vista dos cadveres deles. No se respeitaram mesquita, igreja nem sinagoga, e muulmanos, cristos e judeus, indistintamente, morreram nas chamas. Crianas jaziam aos berros por sobre os corpos dos pais. Filhas imploravam por misericrdia enquanto eram violadas em cima das mes moribundas. Prisioneiros eram arremessados do alto das muralhas. Os incndios encurralaram os idosos, os doentes e os insanos nos cmodos onde estes haviam-se escondido. O sangue corria pelas
sarjetas tal qual gua de chuva. Em uma nica e monstruosa noite, todo o medo e toda a frustrao de quase um ano de implacvel campanha militar foram descontados numa nica e impotente cidade. Um exrcito de racionalistas, vindo da capital da Razo, ensandecera. Bonaparte sabia que no devia tentar estancar esse transbordamento; reinara a mesma anarquia em milhares de saques anteriores, desde Tria at as pilhagens dos cruzados em Constantinopla e Jerusalm. "Nunca se deve proibir o que no se tem poder para impedir", comentava ele. Ao amanhecer, a comoo entre os soldados j se esgotara, e eles, exaustos, esparramavam-se no cho como suas vtimas, atnitos com o que tinham feito, mas tambm saciados, como stiros aps uma orgia. Aplacara-se uma ira vida e demonaca. Na seqncia, Bonaparte se viu com mais de trs mil prisioneiros otomanos - homens macambzios, famintos, aterrorizados. Napoleo no se esquivava de decises difceis. Apesar de toda a sua admirao pelos poetas e artistas, ele era fundamentalmente um homem da artilharia e da engenharia. Estava invadindo a Palestina e a Sria - uma terra de dois milhes e meio de habitantes - com treze mil soldados franceses e dois mil auxiliares egpcios. Quando Jafa caiu, algumas dessas tropas j exibiam sintomas da peste bubnica. O extravagante objetivo de Napoleo era marchar at a ndia, tal qual Alexandre antes dele, liderando um exrcito de recrutas orientais, estabelecendo um imprio.
Mas Horatio Nelson j destrura a esquadra francesa e o impedira de receber reforos; Sidney Smith estava ajudando a organizar a defesa de Acre; e Bonaparte ainda precisava aterrorizar o Aougueiro o bastante para que este capitulasse. No ousava libertar os otomanos aprisionados, nem tinha condies de guard-los ou alimentlos. Assim, resolveu execut-los. Foi uma deciso abominvel numa carreira controversa, ainda mais porque eu era um dos prisioneiros que ele decidiu executar. Eu no teria nem mesmo a dignidade e a glria de, notvel espio, desfilar diante dos regimentos reunidos; em vez disso, Najac me enfiou na massa de marroquinos, sudaneses e albaneses pululantes, como se eu fosse mais um recruta otomano. Os coitados ainda no sabiam o que estava acontecendo, j que haviam se rendido na suposio de que suas vidas seriam poupadas. Estaria Bonaparte fazendo-os marchar para embarcar em navios para Constantinopla? Seriam mandados para o Egito como mo-de-obra escrava? Ficariam to-somente acampados do lado de fora das muralhas fumegantes da cidade at que os franceses seguissem adiante? Mas no - no era nada disso, e as sombrias fileiras de granadeiros e fusiliers com os mosquetes, em posio de descanso, logo comearam a desencadear o rumor e o pnico. Cavalarianos franceses haviam sido estacionados em ambas as extremidades da praia, para assim impedir a fuga. A infantaria estava de costas para os laranjais, e ns, de costas para o mar.
"Eles vo nos matar!", comearam a gritar alguns. "Al nos proteger", asseguraram outros. "Assim como protegeu Jafa?" "Olha, eu ainda no achei o Graal", sussurrei para Najac, "mas ele existe - um livro -, e, se me matares, nunca o achars. No tarde demais para fazermos sociedade..." Ele pressionou a ponta do sabre contra minhas costas. "O que se est para fazer crime!", disse eu, entre dentes. "O mundo no esquecer!" "Bobagem na guerra, no h crime." No comeo desta narrativa, j descrevi a cena subseqente. Um dos aspectos notveis de quando estamos nos preparando para ser executado que os sentidos se aguam. Eu conseguia perceber as diversas camadas sobrepostas do ar como se tivesse asas de borboleta. Conseguia distinguir os cheiros do mar, do sangue e das laranjas. Conseguia sentir cada gro de areia debaixo de meus ps (ento descalos) e ouvir cada estalo e rangido das armas que iam sendo aprestadas, os arreios que iam sendo puxados por cavalos impacientes, o zumbido dos insetos, o grasnar e o piar das aves. Ah, quo pouco disposto a morrer eu estava! Homens imploravam e soluavam numa dzia de idiomas. As preces se avolumaram at virar zunido. "Pelo menos eu afoguei as tuas malditas cobras", assinalei. "Sentireis a bala entrar no corpo tal qual eu senti", rebateu Najac. "E depois outra, e outra. Toro para
que demoreis a morrer, porque o chumbo di muito mesmo. Ele se achata e corta a carne. Eu teria preferido as serpentes, mas isto quase to bom quanto." Quando os mosquetes foram apontados, ele se afastou a passos largos. "Fogo!" Houve um estrondo, e a massa de prisioneiros oscilou. O impacto das balas fez voar sangue e carne. Mas, ento, o que me salvou? O gigante negro, com os braos erguidos em splica, correu atrs de Najac como se o canalha pudesse lhe conceder a suspenso da execuo, colocando-o entre mim e os mosquetes justamente quando se disparou a salva de balas. Estas jogaram o negro para trs, mas ele ainda assim constituiu um escudo temporrio. Uma fileira de prisioneiros desabou, berrando, e tanto sangue espirrou em mim que, de incio, temi que parte dele tivesse sado de meu corpo. Dos que ainda continuavam de p, alguns caram de joelhos, e alguns correram para os soldados franceses. Mas a maioria, inclusive eu, fugiu instintivamente para a gua. "Fogo!" Outra fileira desbaratada, e mais prisioneiros que giravam sobre si prprios tombavam, tropeavam. Um que estava junto a mim tossiu sangue pavorosamente. Outro perdeu o cocuruto num jato rubro. A gua era jogada para cima em lminas ofuscantes medida que centenas de ns corramos para ela, tentando escapar a um pesadelo demasiado medonho para parecer real. Alguns pisaram em falso, depois ficaram
rastejando e berrando nos baixios. Outros seguravam braos e pernas feridos. Rogava-se estridente e desesperadamente a Al. "Fogo!" No que as balas passaram sibilando acima de mim, mergulhei e nadei vigorosamente, percebendo ento que a maioria dos turcos a meu redor no sabia nadar. Estavam paralisados, com a gua na altura do peito. Avancei vrias jardas e olhei para trs. O ritmo do fuzilamento se moderara, agora que os soldados arremetiam de baionetas caladas. Os feridos e os imobilizados pelo medo estavam sendo liquidados como porcos no abate. Outros soldados franceses iam calmamente recarregando as armas e mirando aqueles de ns que tinham ido mais adiante na gua; os atiradores chamavam uns aos outros e apontavam alvos. As salvas ordenadas haviam degenerado numa confuso generalizada de disparos. Homens que se afogavam agarravam-se a mim. Eu os empurrava e continuava em frente. A cerca de cinqenta jardas da praia, havia um recife aplainado. As ondas rolavam sobre sua crista, deixando baixios de um ou dois ps de profundidade. Dzias dentre ns alcanaram esse tablado serrilhado, subindo nele e cambaleando para o lado do mar aberto. Com isso, atramos o fogo dos mosquetes; homens contorceram-se, rodopiaram e caram na espuma, que j ficava rsea de sangue. Atrs de mim, o mar estava apinhado de cabeas e costas de otomanos fuzilados ou afogados, quando ento os franceses entraram na gua com seus sabres e achas.
Era uma insanidade! Eu ainda estava to miraculosamente inclume quanto Napoleo, que observava das dunas. O recife terminou, e mergulhei com louca desesperana em gua mais profunda - para onde poderia ir? Fiquei deriva, batendo dbilmente os braos, na margem externa no recife, olhando homens se amontoarem at as balas os acharem. Aquele que corria para cima e para baixo na areia seria Najac, procurando freneticamente por meu cadver? Recifes mais altos afloravam mais perto de Jafa propriamente dita. Ser que eu conseguiria achar alguma espcie de esconderijo? Vi que Bonaparte, sem vontade de assistir ao massacre at o fim, sumira de vista. Alcancei o afloramento, ao qual homens se aferravam, to tristemente expostos quanto moscas em papel coberto de cola. Os franceses j estavam saindo em pequenos barcos para dar cabo dos sobreviventes. No sabendo mais o que fazer, enfiei a cabea debaixo da gua e abri os olhos. Vi debaterem-se as pernas dos prisioneiros que se agarravam a nosso refgio e os tons esmaecidos de azul medida que o recife descia para as profundezas. Enxerguei nele um buraco, como uma pequena gruta subaqutica. Quanto mais no fosse, aquilo parecia venturosamente apartado do medonho tumulto na superfcie. Mergulhei, entrei e tateei. A rocha era cortante e lodosa. E ento, no que estiquei ao mximo a mo, ela se debateu no ar livre. Eu me impulsionei para a frente e vim tona l dentro.
Eu conseguia respirar! Estava num bolso de ar da gruta submarina, onde a nica iluminao vinha de uma fenda estreita acima de mim. Ouvi outra vez os gritos e disparos, mas agora eles estavam abafados. Por medo de que os franceses me achassem, no ousei anunciar em voz alta a minha descoberta. De todo o modo, s havia espao para um. Assim, esperei, tremendo, enquanto cascos de madeira davam no recife, disparos ressoavam, e os ltimos prisioneiros, em prantos, eram passados pela espada ou despachados a baioneta. Os soldados eram metdicos; no queriam deixar testemunhas. "Ali! Pegai aquele l!" "Olha como o rato se contorce." "Este aqui ainda est vivo!" Por fim, fez-se o silncio. Eu era o nico sobrevivente. E assim fiquei, tiritando com o frio cada vez maior, depois que acabaram os xingamentos e rogos. O Mediterrneo praticamente no tem mars, de modo que eu corria pouco risco de afogar-me. Era de manh quando nos fizeram marchar para a praia, e anoitecia quando juntei coragem para emergir, com a pele to enrugada quanto a de um cadver, pela longa permanncia na gua. Eu estava em trapos, e meus dentes batiam uns contra os outros. E agora? Entorpecido, mantive-me na vertical, boiando para o mar. Um ou dois corpos passaram boiando por mim. Eu conseguia ver que Jafa ainda estava em chamas, como brasas empilhadas com o cu ao fundo. As estrelas brilhavam o bastante para que a
linha de vegetao ao longo da praia se mostrasse em silhueta. Olhei para o bruxulear das fogueiras dos acampamentos franceses e ouvi aqui e ali um disparo, um grito, um som de risada amarga. A meu lado, boiou alguma coisa escura que no era cadver, e eu me agarrei a ela - um barril de plvora vazio, descartado por franceses ou otomanos durante a batalha. Passaram-se horas, com as estrelas rodando l em cima e Jafa ficando menos ntida. Minhas foras estavam sendo sugadas pelo frio. E ento, na luz fraca antes do alvorecer, quase vinte e quatro horas aps o incio das execues, avistei um barco. Era uma pequena balsa rabe, do tipo que me levara da HMS Dangerous para Jafa. Chamei, rouquenho e tossindo, e acenei. O barco se aproximou, com olhos arregalados me perscrutando por sobre a beirada, como os de um animal atento. "Socorro." Minha voz era pouco mais que um sussurro. Braos fortes me pegaram e me puxaram para o barco. Fiquei deitado no meio da balsa, amolecido como uma gua-viva, exausto, piscando para o cinza do cu e no inteiramente certo de estar vivo ou morto. "Efndi?" Estremeci. Eu conhecia aquela voz. "Mohammad?" "O que estais fazendo no meio do mar, quando eu mesmo vos deixei em Jerusalm?" "Quando foi que viraste marinheiro?!" "Quando a cidade caiu. Surrupiei este barco e remei para fora do porto. Infelizmente, no fao a
menor idia de como velejar. Estou apenas deriva." Com grande dificuldade, consegui sentar. Aliviado, vi que estvamos bem ao largo, fora do alcance de qualquer francs. A balsa tinha um mastro e uma vela latina, e eu conduzira embarcaes no muito diferentes no Nilo. "s uma bno, Mohammad", disse eu, ainda bem rouco. "Eu sei velejar. Podemos procurar um navio amigo." "Mas o que est acontecendo em Jafa?" "Todo o mundo morreu." Ele parecia desolado. Sem dvida, tinha amigos ou familiares que tinham sido apanhados pelo cerco. "No todo o mundo, claro", corrigi-me. Mas eu fora mais sincero da primeira vez. Daqui a muitos anos, os historiadores quebraro a cabea para explicar o raciocnio estratgico que levou s invases do Egito e da Sria por Napoleo, ao massacre de Gaza, s marchas sem objetivo definido. O trabalho dos eruditos ser intil. A guerra no tem nada a ver com a razo e tem tudo que ver com a emoo. Se alguma lgica a guerra tem, a lgica maluca do inferno. Todos temos algum mal dentro de ns. Na maioria de ns, recndito, mas alguns se entregam a ele, que acaba universalmente liberado durante as guerras. Para poderem liber-lo, os homens se desinteressam de tudo mais, destampando um caldeiro que eles mal sabem que est em ebulio - e isso depois os persegue para sempre. Os franceses - apesar de toda a mixrdia de ideais republicanos, alianas com paxs remotos, estudos cientficos, sonhos reformistas - obtiveram
acima de tudo uma catarse medonha, seguida da plena conscincia de que o que eles haviam liberado acabaria certamente por consumi-los. A guerra a glria envenenada. "Mas conheceis algum navio amigo?", perguntou Mohammad. "Talvez os britnicos, e tenho notcias que preciso levar-lhes." E, pensei comigo mesmo, contas que quero acertar com alguns deles. "Tens gua?" "Tenho. E po. E umas tmaras." "Ento j somos colegas de marinhagem, Mohammad." Ele ficou radiante. "Al sabe o que faz, no mesmo? E por acaso achastes o que procurveis em Jerusalm?" "No." "Se assim foi, penso que depois achareis." Deu-me gua e comida, to revigorantes quanto o formigar da eletricidade. "Estais fadado a isso, caso contrrio no tereis sobrevivido." Que consolo seria ter tanta f! "Ou talvez eu no devesse ter procurado e esteja sendo punido por ter visto o que no devia." Dei as costas ao brilho triste do litoral. "Pois bem, ajuda-me a meter vela. Vamos estabelecer o curso para Acre e os navios ingleses." "Sim, efndi - mais uma vez serei vosso guia, em meu novo e robusto barco! Eu vos levarei aos ingleses!" Recostei-me na pequena amurada. "Obrigado pelo resgate, amigo." Ele assentiu. "E s vou cobrar dez xelins pelo servio!"
PARTE 2 12 Eu chegaria a Acre como heri, no porque escapara execuo em massa em Jafa, mas porque me vinguei dos franceses dando informaes providenciais aos inimigos deles. Mohammad e eu localizamos o esquadro britnico no segundo dia de nossa jornada. Os navios eram encabeados pelas naus de linha Tigre e Theseus, e, quando passamos a sotavento da capitnia, saudei ningum menos que aquele demnio simptico, sir Sidney Smith. "Gage, s mesmo tu?", perguntou ele, falando alto. "Achamos que tivesses voltado para o lado dos franceses! E agora voltas para ns?" "Fui-me para os franceses pela traio de vossos prprios homens, comandante!" "Traio? Mas eles disseram que desertaste!" Era ou no era uma mentira descarada de Big Ned e Little Tom? Eles por certo me julgavam morto e incapaz de contradiz-los. Era bem o tipo de distoro da verdade a que eu mesmo poderia ter recorrido, o que me deixou ainda mais indignado. "Muito pelo contrrio! Vossos excelentes fuzileiros me trancaram do lado de fora durante a brava retirada deles! Vs nos deveis uma medalha. No mesmo, Mohammad?" "Os franceses tentaram nos matar", disse meu companheiro de bordo. "Ele me deve dez xelins."
"E aqui ests, no meio do Mediterrneo?" Smith coou a cabea. "Maldio - para um homem que aparece em todo lugar, difcil saber qual o teu. Bem, sobe a bordo, e vamos esclarecer esta situao." Assim, escalamos as cordas para subir capitnia, a Tigre, que fora capturada aos franceses anos antes e ainda conservava o nome glico. Era uma nau de setenta e quatro canhes, parecendo um leviat quando comparada frgil balsa na qual navegramos, que foi levada a reboque. Os oficiais britnicos revistaram Mohammad como se a qualquer momento ele pudesse sacar uma adaga e me lanaram olhares duros. Mas eu j estava decidido a bancar o injustiado e ofendido. Alm disso, tinha um trunfo. Assim, apresentei minha verso dos acontecimentos. "...e ento bateram o porto de ferro na minha cara, justamente quando o bando de canalhas franceses e rabes j me cercava..." Mas, em lugar da indignao e solidariedade que eu bem merecia, Smith e seus oficiais me encaram com ceticismo. "Reconhece, Ethan: pareces mesmo passar com excessiva facilidade de um lado para o outro", disse Smith. "E sair das piores enrascadas." ", ele um rebelde americano - ah, se ", interrompeu um capito-tenente. "Um momento - imaginais mesmo que os franceses me deixaram escapar de Jafa?" "As informaes do conta de que ningum mais conseguiu. Termos te achado foi um tanto extraordinrio."
"E quem esse pago?", perguntou outro oficial, apontando para Mohammad. " meu amigo e meu salvador. E aposto que mais homem que o senhor." Agora eles se eriaram, e eu estava provavelmente a ponto de ser desafiado para um duelo. Smith interveio s pressas. "Ora, ora - no h necessidade disso. Temos o direito de fazer perguntas difceis, e tens o direito de responder a elas. Sinceramente, Gage, no recebi tanta informao til de ti em Jerusalm, apesar do considervel investimento feito pela Coroa. Ademais, meus comandados relatam que adquiriste um fuzil bem caro e extravagante. Onde est ele?" "Foi roubado por um maldito ladro e torturador francs chamado Najac", respondi. "Se verdade que eu passei para os franceses, ento o que diabos estou fazendo aqui em trapos, ferido, queimado, num barquinho com um cameleiro muulmano e sem arma nenhuma?" Eu estava furioso. "Se eu passei para os franceses, por que no estou bebericando um Bordeaux na tenda de Napoleo? , vamos colocar as coisas em pratos limpos. Chamai aqueles fuzileiros canalhas agora mesmo..." "Little Tom perdeu o brao e foi mandado para casa", disse Smith. Apesar da raiva que eu sentia, a notcia me fez parar para pensar. Perder um membro era ser condenado misria. "Big Ned est lotado em terra, com grande parte da tripulao da Dangerous, para fortalecer as defesas de Djezzar em Acre. Talvez possas discutir
a questo com ele l. Temos uma mixrdia de homens rijos para conter Bonaparte - uma mistura de turcos, mamelucos, mercenrios e cafajestes, mais os nossos valentes ingleses. Temos at um francs, Antoine de Phlippeaux, oficial monarquista de artilharia. Ele est reforando as fortificaes." "Estais aliados a um francs e ainda assim me questionais?" "Ele ajudou a providenciar minha fuga da priso do Templo, em Paris, e o camarada mais leal que se pode desejar. Curioso como os homens escolhem lado em pocas perigosas, no verdade?" Ele me fitou atentamente. "Potts e Tentwhistle morreram, Tom ficou aleijado, no se obteve nada - e, ainda assim, eis-te aqui. Jeric diz igualmente ter achado que morreste ou desertaste." "Falastes tambm com Jeric?" "Ele est em Acre, com a irm." Ora, boas notcias. Eu andara ocupado com meus prprios problemas, mas senti uma onda de alvio ao saber que, por ora, Miriam estava em segurana. Fiquei imaginando se ela ainda estaria com meus serafins. Tomei flego. "Posso garantirvos, sir Sidney, que no quero mais nada com os franceses. Eles me penduraram de cabea para baixo sobre uma cova cheia de serpentes." "Por Deus, so uns brbaros! No lhes contaste nada, contaste?" "Claro que no", menti. "Mas eles me disseram uma coisa, e posso demonstrar minha lealdade com isso." J era hora de usar meu trunfo. "Disseram o qu?"
"Que a artilharia de stio de Bonaparte est vindo por mar. Com sorte, podemos captur-la por completo antes que as tropas dele cheguem a Acre." "Deveras? Bem, isso mudaria as coisas, no?" Smith ficou radiante. "Acha esses canhes para mim, Gage, e eu te dou uma medalha - dou mesmo! Uma bela medalha turca - as deles so maiores que as nossas e muito bem enfeitadinhas. Eles as distribuem a mancheias, e podes apostar que guardarei uma para ti se - para variar estiveres mesmo falando a verdade." claro que choveu, reduzindo nossas chances de localizarmos a flotilha francesa, e depois veio o nevoeiro, diminuindo ainda mais a visibilidade. A cerrao logo fez os ingleses pensarem que eu era outra vez um agente duplo, como se eu pudesse controlar o clima. Mas, se tnhamos dificuldade para achar os franceses, estes enfrentavam apuros ainda piores para evadir-se a ns. O nevoeiro tambm era inimigo deles. E ento os franceses toparam conosco na manh de 18 de maro, quando o comandante deles, capito-de-fragata Standelet, tentava circular o cabo Carmelo e entrar na pequena baa que tem Hafa ao sul e Acre ao norte. Trs navios, incluindo o de Standelet, escaparam. Mas outros seis no conseguiram, e estes levavam em seus pores peas de artilharia de stio, que disparam balas de vinte e quatro libras. Com um nico golpe, havamos capturado a mais potente arma de Napoleo. Por aquela manh de trabalho, fui
proclamado o baluarte de Acre, a raposa de Jafa, o guardio do mar profundo. Tambm ganhei uma medalha turca adornada com jias, a Ordem do Leo, que Smith ento comprou de mim, para que eu pagasse a Mohammad e ainda ficasse com umas moedinhas. "Se soubesses como gastar menos do que possuis, terias a pedra filosofal", repreendeu-me. "E, tenho lido o teu Franklin." E assim desembarquei na velha cidade dos cruzados. Nossa rota martima corria paralela ao caminho terrestre das tropas de Napoleo, cujo avano era marcado por colunas de fumaa. Haviam chegado relatos sobre uma srie constante de escaramuas entre os regimentos franceses e os combatentes muulmanos do interior, mas seria em Acre que se decidiria a disputa. A cidade fica numa pennsula que se projeta para o Mediterrneo, na extremidade norte da baa de Haifa. Por conseguinte, dois teros da cidade so cercados pelo mar. A pennsula se estende para sudoeste a partir da terra firme, e o porto formado por um quebra-mar. Acre era menor em rea que Jerusalm, com muralhas martimas e terrestres com menos de uma milha e meia de circunferncia, mas era mais prspera e quase to populosa quanto. Na poca em que l cheguei, os franceses j a estavam isolando do lado que se prolongava terra adentro. Bandeiras tricolores a tremular marcavam o arco dos acampamentos de Bonaparte. Em tempos normais, Acre uma linda cidade; as muralhas martimas confinam com recifes da cor
de gua-marinha, e as terrestres, com campos verdejantes. Um antiqussimo aqueduto, no mais em uso, levava do fosso defensivo s linhas francesas. A cpula verde de cobre da mesquita central, junto com um minarete com feitio de agulha, interrompe um encantador horizonte urbano de telhas, torres e toldos. Andares superiores se projetavam sobre ruas sinuosas. Feiras sombreadas por toldos de cores brilhantes enchiam as principais vias. O porto cheirava a sal, peixe fresco e especiarias. Havia trs grandes complexos de hospedagem e armazenamento para visitantes martimos: o Khan el-Omdan, o Khan el-Efranj e o Khan a-Shawarda. Na muralha setentrional, contrabalanando esse encanto, estava o palcio do governante, um bloco implacvel moda dos cruzados, com uma torre redonda em cada canto, suavizado apenas pelo fato de que as janelas do harm davam para jardins amenos entre a mesquita e o palcio. A slida fortaleza e a tortuosa cidade medieval coberta de telha me faziam pensar num diretor de escola rgido e severo a supervisionar uma animada classe de crianas ruivas. A parte administrativa e religiosa ocupava o quarto nordeste da cidade, e as muralhas terrestres tm face para o norte e o leste, juntando-se numa torre macia. Esta seria to fundamental para o cerco subseqente que os franceses acabariam por denomin-la la tour maudite - a torre amaldioada. Mas podia Acre ser de fato defendida? Ficava claro que muitos achavam que no. Levamos o pequeno barco de Mohammad para
terra, seguindo a chalupa da Tigre; e, quando chegamos ao cais, a rea estava apinhada de refugiados aflitos para escapar da cidade. Smith, Mohammad e eu passamos aos empurres por uma multido que estava beira do pnico. A maioria se constitua de mulheres e crianas, mas no eram poucos que eram comerciantes ricos que tinham pagado propinas exorbitantes a Djezzar pelo direito de partir. Na guerra, dinheiro pode ser sinnimo de sobrevivncia, e histrias de massacres haviam corrido litoral acima. Pessoas agarravam aos poucos pertences que podiam carregar e davam lances por passagem nos navios mercantes ao largo. Uma mulher suarenta levava nos braos, como um beb, seu conjunto de caf de prata, enquanto os filhos bem pequenos a seguravam com fora pelo vestido e abriam um berreiro. Um mercador de algodo enfiara pistolas carregadas numa faixa onde se tinham costurado moedas de ouro. Uma linda menina de dez anos, com olhos escuros e boca trmula, segurava um filhote de cachorro, que se contorcia no colo. Um banqueiro usava uma cunha de escravos africanos para abrir caminho at a frente. "No ligues para esta ral", disse Smith. "Estamos melhor sem eles." "No confiam na prpria guarnio deles?" "A guarnio deles no confia em si mesma. Djezzar tem tutano, mas os franceses arrasaram cada um dos exrcitos que j encontraram pela frente. Os teus canhes podero nos ajudar. Teremos peas de artilharia maiores que as de Bonaparte e colocaremos uma bateria delas bem
no porto do Interior, ali onde as muralhas do mar e da terra se encontravam. Mas a torre do canto ser a noz onde o diabo quebrar os dentes. o ponto mais distante do apoio da nossa artilharia naval, mas tambm o mais forte das muralhas. E o punho de Acre, e nosso verdadeiro segredo um homem que odeia Bonaparte mais at do que ns." "Falais do Aougueiro?" "No, eu me refiro ao colega de turma de Napoleo na cole Royale Militaire, em Paris. Acreditas que o nosso Antoine Le Picard de Phlippeaux dividia uma carteira de escola com o biltre corso? Na adolescncia, o aristocrata e o provinciano viviam chutando as canelas um do outro, at ficarem roxas. Phlippeaux sempre tirou notas mais altas que as de Napoleo, formou-se com mais louvor e foi designado para os melhores postos na carreira militar. Se a Revoluo no tivesse obrigado o nosso amigo monarquista a fugir da Frana, ele provavelmente seria um superior de Napoleo. Ano passado, Phlippeaux se infiltrou na Frana como agente secreto e me resgatou da priso do Templo, fingindo-se de comissrio de polcia que me transferiria para outra cela. Ele nunca perdeu para Napoleo - e no perder desta vez. Vem conhec-lo, Gage." O "palcio" de Djezzar parecia uma Bastilha transplantada. A torre de menagem dos cruzados fora reformada para incorporar no graciosidade, mas intervalos de onde canhes pudessem ser disparados das ameias, e dois teros da artilharia do Aougueiro estavam apontadas para o prprio
povo dele, e no para os franceses. Quadrada e impassvel, a cidadela era to implacvel quando a mo de ferro de Djezzar. "H o arsenal no poro, a caserna no trreo, os gabinetes administrativos no andar de cima, o palcio de Djezzar no seguinte e o harm no topo de tudo", explicou Smith, apontando. Vi janelas de harm gradeadas, tal qual as gaiolas de belas aves. Andorinhas, como se solidrias, voavam entre essas janelas e as palmeiras embaixo. J tendo irrompido num harm no Egito, eu no sentia nenhuma vontade de ir explorar esse aquelas mulheres tinham me dado medo. Passamos por grandes e parrudas sentinelas otomanas e uma imensa porta de madeira guarnecida com ferro, e adentramos o sombrio interior. Aps a luz deslumbrante do Levante, o lado de dentro da fortaleza parecia um calabouo. Pisquei ao olhar em volta. Aquele era o andar em que se alojava a guarda fiel de Djezzar, e havia ali uma espartanidade militar. Tmidos, os soldados nos olhavam das sombras, onde estavam limpando mosquetes e afiando lminas. Pareciam muitssimo desanimados. Nisso, ouviram-se passadas rpidas na escada, e um francs, gil e mais enrgico, desceu aos pulos. Seu uniforme branco, do exrcito do Antigo Regime, estava sujo e surrado. Aquele s podia ser Phlippeaux. Era mais alto que Napoleo, seus movimentos eram elegantes, e ele tinha a lnguida autoconfiana que vem do bero nobre. Phlippeaux fez uma reverncia corts, e o sorriso desfalecido e os olhos escuros pareciam avaliar
tudo com o clculo caracterstico dos oficiais de artilharia. "Monsieur Gage, eu soube que pudestes ter salvo a nossa cidade!" "Muito longe disso." "Pois eu asseguro que vossos canhes franceses sero inestimveis. Ah, que ironia! E um americano! Somos como Lafayette e Washington! Que aliana internacional est se formando aqui britnicos, franceses, americanos, mamelucos, judeus, otomanos, maronitas... todos contra o meu ex-colega de classe!" "Realmente estudastes juntos?" "Ele colava de mim." Phlippeaux abriu um sorriso largo. "Vinde, vamos dar uma espiada nele!" Eu j estava gostando daquele seu estilo impetuoso. Phlippeaux nos conduziu por uma escada serpeante at que samos na cobertura do castelo de Djezzar. Que vista magnfica! Aps as chuvas dos dias anteriores, o ar estava estonteante, e o monte Carmelo, ao longe, era uma crista azul bem do outro lado da baa. Mais perto, os franceses que ali se concentravam estavam ntidos como soldadinhos de chumbo. Tendas e toldos pareciam florescer, tal qual uma grande quermesse de primavera. Pela experincia em Jafa, eu j sabia como devia ser a vida nas linhas francesas: comida farta, bebida importada para estimular a coragem dos grupos de assalto, turmas de prostitutas e criadas para cozinhar, limpar e proporcionar calor noite, tudo a preos absurdos, pagos alegremente por homens que sentiam haver grande possibilidade de que estivessem prestes a
morrer. Cerca de uma milha terra adentro, erguiase um morro de uns trinta metros de altura, e l eu discernia um agrupamento de homens e cavalos em meio a estandartes tremulantes, fora do alcance de quaisquer de nossas armas. "Desconfio que ser ali que Buonaparte estabelecer seu quartel-general", disse Phlippeaux, prolongando com aristocrtico desdm a pronncia italiana. "Vede bem, eu o conheo e sei como ele pensa. Ns dois faramos a mesma coisa: ele estender suas trincheiras at aqui e tentar minar as nossas muralhas com sapadores. Ento, j sei que ele sabe que a torre a chave." Segui o movimento largo de seu dedo indicador. Canhes estavam sendo alados s muralhas, e logo adiante havia um fosso defensivo seco, revestido de pedra, com uns vinte ps de profundidade e cinqenta de largura. "Nenhuma gua no fosso?" "Ele no foi projetado para isso - o fundo fica acima do nvel do mar -, mas nossos engenheiros tm uma idia. Na costa, perto do porto do Interior, estamos construindo um reservatrio que encheremos bombeando gua do mar. Numa crise, ela poder ser descarregada no fosso." "Esse plano, porm, ainda est a meses de ser concludo", disse Smith. Eu assenti e disse: "Assim, neste meio-tempo, tendes vossa torre". Ela era macia, como um promontrio. Imaginei que parecesse ainda mais alta quando vista do lado francs.
" o ponto mais forte das muralhas", disse Phlippeaux, "mas tambm pode ser alvejada e assaltada dos dois lados. Se os republicanos conseguirem submet-la, j estaro nos jardins e podero espalhar-se para tomar nossas defesas por trs. Se no conseguirem, a infantaria deles ter perecido inutilmente." Procurei abarcar a cena com seus olhos de artilheiro e engenheiro. O aqueduto em runas se estendia dos franceses em direo s muralhas. Tendo outrora trazido gua para a cidade, interrompia-se quase em nossa muralha, perto da torre. Vi que os franceses cavavam trincheiras ao longo dele, que ofereceria proteo contra o fogo de interdio. De um lado, havia o que se assemelhava a uma lagoa seca. Dentro dela, os franceses estavam fincando estacas de agrimensor. "Eles esvaziaram esse reservatrio a para que tivessem uma depresso protegida onde instalar uma bateria", explicou Phlippeaux, como se lesse meus pensamentos. "Aquilo logo estar repleto dos canhes mais leves, que eles trouxeram por terra." Olhei para baixo. O jardim era um osis de sombra em meio aos preparativos militares. As mulheres do harm provavelmente estavam acostumadas a freqent-lo. Agora, com tantos soldados e marinheiros guarnecendo os parapeitos l em cima, elas ficariam mesmo confinadas, longe das vistas. "J acrescentamos quase uma centena de canhes s defesas da cidade", disse Phlippeaux. "Agora
que capturamos os canhes franceses mais pesados, precisamos manter o inimigo distncia." "O que significa no deixar Djezzar desistir", emendou Smith. "E tu, Gage, s a chave para isso." "Eu?" "Viste o exrcito de Napoleo. Quero que digas a nosso aliado que aquela fora pode ser batida porque, se ele acreditar, poder mesmo. Mas primeiro tens de acreditar nisso. E ento? Acreditas?" Pensei por um momento. "Bonaparte no mgico. Apenas ainda no encontrou ningum to combativo e obstinado quanto ele." "Exatamente. Ento, vem conhecer o Aougueiro." No precisamos esperar por uma audincia. Depois do que acontecera em Jafa, Djezzar reconhecia que a prpria sobrevivncia dependia de seus novos aliados europeus. Fomos conduzidos sala de audincias, um recinto belamente decorado, mas ainda assim modesto, com o teto esculpido em estilo florido e o piso de tapetes orientais justapostos. Aves piavam em gaiolas douradas, um macaquinho pulava para l e para c numa guia de couro, e um felino grande e sarapintado olhou-nos sonolento de uma almofada, como se estivesse ponderando se comer-nos justificava a trabalheira. Tive mais ou menos essa impresso do Aougueiro, que estava sentado, ereto, com o torso idoso ainda transmitindo a idia de fora e poder. Sentamonos de pernas cruzadas diante dele, enquanto seus guarda-costas sudaneses nos vigiavam
atentamente, como se pudssemos ser assassinos e no aliados. Djezzar tinha setenta e cinco anos e parecia no um av bondoso, mas um arofeta irascvel. A barba era branca e cerrada; os olhos, durssimos; a boca, cruel. Uma pistola estava enfiada na cinta, e uma adaga jazia bem perto da mo. No entanto, o olhar traa a insegurana do fanfarro tirnico que se v diante de outro - Napoleo. "Pax, este o americano de quem vos falei", disse Smith, apresentan-do-me. Djezzar me avaliou num relance - as roupas de marinheiro emprestadas, as botas sujas, a pele curtida pelo excesso de sol e de gua do mar - e no procurou esconder o ceticismo. Mas tambm estava curioso. ""Escapaste de Jafa?" "Os franceses pretendiam me matar junto com os outros prisioneiros", disse eu. "Nadei mar adentro e achei uma pequena gruta nos recifes. O massacre foi horrvel." ", mas a sobrevivncia a marca dos homens extraordinrios." Naturalmente, o prprio aougueiro era um astuto sobrevivente. "E ajudaste a capturar a artilharia do inimigo?" "Pelo menos parte dela." Ele me analisou. "s hbil e despachado, acho eu." "Como vs, pax. Tendes tanta habilidade e desembarao quanto qualquer Napoleo." Djezzar sorriu. "Tenho mais que ele, se queres saber - j matei mais homens e trepei com mais mulheres. Bem, ento agora temos um duelo de vontades. Um cerco. E Al me obriga a usar infiis
para combater infiis. Eu no confio em cristos. Eles esto sempre conspirando." Eso parecia ingratido. "No momento, estamos conspirando para salvar vosso pescoo." Ele deu de ombros. "Mas fala-me desse Napoleo. um homem paciente?" "Nem um pouco." "Mas ele enrgico quando se trata de insistir no que quer", acrescentou Phlippeaux. "Ele vir para vossa cidade logo, com mpeto, mesmo sem os canhes", disse eu. "Acredita em golpes rpidos, de fora avassaladora, para quebrar o nimo dos inimigos. Os soldados de Napoleo so bons no que fazem, e o fogo deles certeiro." Djezzar pegou uma tmara numa taa e a examinou como se nunca tivesse visto nenhuma antes. Em seguida, jogou-a na boca e a mastigou de lado enquanto falava. "Ento eu talvez devesse me render. Ou fugir. As tropas dele so duas vezes mais numerosas que a minha guarnio." "Com os navios britnicos, sois superior a ele em artilharia. Napoleo est a centenas de milhas de sua base no Egito e a duas mil milhas da Frana." "Ento podemos derrot-lo antes que consiga mais canhes." "Ele quase no tem tropas para guarnecer o que quer que capture. Seus soldados esto cansados e saudosos de casa." "E doentes", disse Djezzar. "Correm boatos de peste." "J haviam surgido alguns casos no Egito", confirmei. "Ouvi dizer que ocorreram mais em Jafa." Vi que o Aougueiro era sagaz, e no uma
nulidade otomana imposta pela Sublime Porta. Ele reunia informaes sobre seus inimigos como um estudioso. "O ponto fraco de Napoleo o tempo, pax. Quanto mais dias ele se detiver diante de Acre, mais foras o sulto poder enviar para cerc-lo. Napoleo no obtm reforos nem novos suprimentos, ao passo que a marinha britnica consegue trazer ambas as coisas para ns. O homem est tentando realizar num nico dia aquilo que outros homens precisam de um ano para fazer, e essa a fraqueza dele. Est querendo conquistar a sia com dez mil soldados, e ningum sabe melhor que ele que tudo blefe no instante em que seus inimigos deixarem de tem-lo, Napoleo estar liquidado. Se conseguirdes agentar firme.,." "Ele ir embora", arrematou Djezzar. "Esse homenzinho que ningum bateu ainda." "Ns o bateremos aqui", prometeu Smith, solene. "A no ser que ele descubra algo mais poderoso que a artilharia", disse outro, nas sombras. Tive um sobressalto. Eu conhecia aquela voz! E, da penumbra atrs do poleiro forrado de almofadas onde se sentava Djezzar, surgiu de fato o medonho semblante de Haim Farhi! Smith e Phlippeaux piscaram ante aquela mutilao, mas no demonstraram repugnncia. Eles j o tinham visto antes. "Rabino Farhi! O que fazeis em Acre?" "Servindo o amo dele", disse Djezzar. "Jerusalm se tornara um lugar muito desconfortvel para ns, senhor Gage. E, sem o livro, no havia motivo para permanecer l."
"Fostes conosco a servio do pax?" "Mas claro. Sabeis quem modificou minha aparncia." "Fiz um favor a ele", resmungou o Aougueiro. "A boa aparncia me da vaidade, e a soberba o maior dos pecados. As cicatrizes de Farhi permitem que ele se concentre nos nmeros. E v para o Cu." Farhi se inclinou numa reverncia. "Como sempre, sois a prpria generosidade, amo." "Mas ento escapastes de Jerusalm!" "Por um triz. Deixei-vos porque o meu rosto atrai demasiada ateno e porque eu sabia que mais averiguaes se faziam necessrias. O que os franceses sabem acerca dos nossos segredos?" "Que a indignao dos muulmanos impede que se volte a explorar os tneis. Eles no sabem nada e me ameaaram com serpentes para descobrir o que sei. Acho que todos acabamos saindo de Jerusalm de mos vazias." "Mos vazias do qu?", perguntou Smith. Farhi se voltou para o oficial britnico. "Vosso aliado aqui no foi a Jerusalm apenas para vos servir, comandante." "No, havia uma mulher sobre quem ele fazia perguntas, se bem me lembro." "E um tesouro que homens muito perigosos esto procurando." "Tesouro?" "No dinheiro", respondi, incomodado com o fato de Farhi estar displicentemente divulgando meu segredo. " um livro." "Um livro de magia", emendou o banqueiro. "Correm rumores sobre ele h milhares de anos, e
os templrios o buscavam. Quando pedimos a ajuda de vossos homens da marinha, no estvamos procurando uma porta que possibilitasse contornar as defesas da cidade para penetrar em Jerusalm. Estvamos era atrs desse livro." "Assim como os franceses", acrescentei. "E eu", disse Djezzar. "Farhi era o meu ouvido ali." Ele fazia bem em usar o substantivo no singular, j que o patife cortara a outra orelha de seu auxiliar. O olhar de Smith ia de um para outro de ns. "Mas o livro no estava l", disse eu. "Quase certamente, ele nem existe." "Apesar disso, agentes esto fazendo indagaes por toda a provncia da Sria", disse Farhi. "Na maioria, eles so rabes, a servio de alguma figura misteriosa no Egito." Senti um arrepio. "Disseram-me que o conde Silano continua vivo." "Vivo. Ressuscitado. Imortal." Farhi encolheu os ombros, denotando dvida e resignao. "Afinal, o que queres dizer, Haim?", perguntou Djezzar, no tom do amo j muito impaciente com as divagaes dos subordinados. "Que, como disse o senhor Gage, o que todos os homens buscam talvez no exista. Se existe, porm, no temos nenhuma maneira de procurar, isolados como estamos pelo exrcito de Napoleo. O tempo , sim, inimigo dele. Mas tambm um desafio para ns - se permanecermos sitiados por muito tempo poder ser tarde para acharmos primeiro o que o conde Alessandro Silano ainda procura." Farhi apontou para mim. "Esse homem
precisa descobrir um modo de ir outra vez atrs do segredo, antes que seja tarde demais." Segui o cheiro de carvo vegetal at achar Jeric. Ele estava nas entranhas do arsenal, ali no poro do palcio. Seus msculos eram iluminados pelo fulgor de uma forja de ferreiro, martelando tal qual Thor os instrumentos da guerra - espadas, chuos, baionetas, varetas de mosquete, cabos compridos com forquilha na ponta, para empurrar as escadas dos inimigos que tentassem escalar as muralhas. O chumbo esfriava em moldes de balas de pistola e mosquete, semelhantes a prolas negras, e as sobras de metal eram empilhadas para que Jeric as transformasse em metralha. Miriam estava trabalhando no fole, o cabelo nas faces em cachos suados, a camisa mida e perturbadoramente colada ao corpo, a transpirao a reluzir naquele vale da tentao entre o pescoo e os seios. Dado que haviam perdido sua casa em Jerusalm por causa do tumulto que causei, eu no sabia como me receberiam. Mas, quando Miriam me viu, seus olhos brilharam em animada saudao, e, na incandescncia infernal da armaria, ela disparou na minha direo e me abraou. Ah, como era gostoso senti-la! A vontade de descer a mo para seu traseiro redondo era enorme, mas, naturalmente, o irmo estava ali. Fosse como fosse, at Jeric permitiu-se um sorriso relutante. "Ns achamos que tinhas morrido!" Ela me beijou a face, deixando-a em fogo. Segurei Miriam a uma distncia segura, para que,
fisicamente, meu entusiasmo por nosso reencontro no ficasse demasiado bvio. "E eu temi que o mesmo tivesse acontecido a vs", disse eu. "Lamento que a nossa aventura vos tenha deixado presos em Acre, mas eu realmente achava que encontraramos um tesouro. Escapei de Jafa com meu amigo Mohammad, num barco." Olhei para Miriam, dando-me conta de quanto sentira sua falta e quo anglicamente linda ela era. "A notcia de que sobreviveste foi como nctar para um homem que est morrendo de sede." Julguei ter visto um rubor debaixo da fuligem, e eu decerto apagara o sorriso do irmo. Mas no importava - eu no queria largar a cintura de Miriam, e ela no queria tirar as mos de meus ombros. "E, agora, eis-nos aqui, vivos", disse Jeric. "Todos os trs." Eu a soltei, finalmente, e assenti. "Com um homem chamado Aougueiro, um judeu mutilado, um guia muulmano, um capito-de-mar-e-guerra ingls meio insano e um colega de escola de Napoleo Bonaparte que est muito contrariado com este. Para no falar de um ferreiro parrudo, sua douta irm e um americano jogador, mandrio e irresponsvel. Parecemos o alegre bando de Robin Hood, no?" "Sem dvida", disse Miriam. "Ethan, soubemos o que aconteceu em Jafa. E se os franceses tomarem Acre?" "No tomaro", respondi, com mais confiana do que de fato sentia. "No precisamos bat-los s temos de esperar at que se vejam compelidos a
retirar-se. E tenho uma idia para isso. Jeric, sobrou alguma corrente pesada na cidade?" "Vi algumas por a, usadas por navios ou empregadas para fechar a sada do ancoradouro. Por qu?" "Quero estend-las nas torres para dar as boasvindas aos franceses." Ele balanou a cabea negativamente, convencido de que eu continuava maluco como sempre. "Para dar-lhes uma mo na hora de escalarem as nossas defesas?" "Exatamente. E ento carregar as correntes de eletricidade." "Eletricidade?!" Jeric fez o sinal-dacruz. "Foi uma idia que tive quando estava no barco com Mohammad. Se armazenarmos bastante fasca numa bateria de garrafas de Leiden, poderemos transmiti-la com um arame para uma corrente suspensa. Daria o mesmo choque que demonstrei em Jerusalm, mas, desta vez, derrubaria os franceses no fosso, onde ento poderamos mat-los." Eu me tornara o prprio guerreiro sanguinrio. "Ests dizendo que eles no conseguiriam segurarse corrente?", perguntou Miriam. "Tanto quanto conseguiriam se o metal estivesse incandescente. Seria como uma barreira de fogo." Jeric ficou curioso. "Isso poderia mesmo dar certo?" "Se no der, o Aougueiro usar a corrente para nos enforcar."
- 13 Eu precisava gerar carga eltrica numa escala com que nem mesmo Franklin sonhara, de modo que, enquanto Jeric se punha a coletar e juntar elos de corrente de ferro, Miriam e eu nos pnhamos a reunir vidro, chumbo, cobre e garrafas em quantidade suficiente para fazer uma pilha gigantesca. Raramente desfrutei tanto um projeto. Miriam e eu no apenas trabalhvamos juntos; ramos parceiros, de uma maneira que reeditava a aliana que eu estabelecera com Astiza. O acanhamento recatado com que eu topara de incio se perdera em algum lugar dos tneis de Jerusalm, e agora Miriam exibia uma confiana vivaz que fortalecia a coragem de todos com os quais ela trabalhava. Nenhum homem quer ser covarde na presena de mulheres. Ns dois trabalhvamos ombro a ombro, roando e tocando um no outro mais que o necessrio, e eu me recordava exatamente do ponto de minha face que seu beijo afogueara. No h nada mais desejvel do que uma mulher que ainda no pudemos possuir. Dvamos duro ouvindo o eco dos canhes adversrios, que procuravam acertar o alcance de tiro medida que as trincheiras francesas avanavam rumo s muralhas. At o poro do palcio de Djezzar tremia quando uma bala de ferro slido acertava as muralhas externas. Franklin dera o nome bateria s fileiras de garrafas de Leiden porque elas o faziam lembrar uma
bateria de canhes, alinhados pelos cubos das rodas para proporcionar fogo concentrado. Em nosso caso, cada garrafa adicional poderia ser ligada ltima para intensificar o choque potencial que eu pretendia aplicar nos soldados franceses. Logo tnhamos tantas garrafas que o trabalho de eletrificar todas por frico (usando manivela) pareceu ser uma tarefa de Ssifo, empurrando interminavelmente morro acima uma enorme rocha. "Ethan, como vamos girar os teus discos de vidro por tempo suficiente para fornecer fora a este aparato imenso?", perguntou Miriam. "Precisaremos de um exrcito para girar manivelas!" "Um exrcito no. Bastam ombros largos e uma mente no muito brilhante." Eu me referia a Big Ned. Desde que eu desembarcara em Acre, vinha aguardando meu reencontro com esse fuzileiro avantajado, tosco e azedo. Era necessrio vingarme daquela perfdia no porto de Jerusalm, e, no entanto, Ned continuava a ser um gigante perigoso, ainda ressentido com as perdas no jogo. O xis da questo era no topar por acaso com ele quando eu estivesse em desvantagem. Assim, planejei cuidadosamente a lio que lhe daria. Eu soube que Ned estava informado de minha miraculosa reapario e andava se gabando de que ainda me devia uma sova, coisa que ele providenciaria to logo eu parasse de esconder-me atrs das saias da namorada. Quando fiquei sabendo que Ned fora designado para ajudar a reparar o mais depressa possvel a alvenaria do
fosso na base da torre mais crucial de Acre, apareci para dar uma mo na porta de sada da fortaleza, acima de onde ele estava. As muralhas se mostram mais fortes quando no tm fendas que facilitem a passagem de balas de canho, e era esse o motivo de Smith e Phlippeaux quererem os reparos ali. Era um servio que exigia coragem: os peritos atiradores britnicos trocavam disparos com seus equivalentes franceses enquanto uns poucos voluntrios, includo Ned, mourejavam l embaixo, no escuro. Apesar de meus problemas com Ned e Tom, eu viera a admirar a rija determinao dos tripulantes ingleses, homens pobres e analfabetos que tinham pouco do idealismo dos voluntrios franceses, mas que demonstravam obstinada lealdade Coroa e ptria. Ned possua esse mesmo estofo. Enquanto mosquetes disparavam com fulgor e estrondo no escuro (ah, que saudades de meu fuzil!), cestas de pedras, argamassa e gua eram baixadas para a turma de reparos, que lavrava, raspava e assentava. J perto do alvorecer, eles finalmente correram de volta para uma escada de cordas, como se fossem macacos apressados, com as balas ricocheteando em volta. Meu brao ofereceu a cada um deles uma mo para que entrassem, at que restou apenas Ned l embaixo. Ele deu um bom puxo na corda. A cara que Ned fez quando aquela rota de fuga se soltou e caiu fazendo som de matraca, at virar uma pilha de corda a seus ps, coisa que no tem preo. A vingana tem l suas recompensas.
Eu me inclinei sobre a muralha. "No nada gostoso ficar trancado do lado de fora, no mesmo, Ned?" A cabea dele se aqueceu como uma cebola roxa quando me reconheceu cinqenta ps acima. "Ah, juntaste coragem para sair do palcio do pax, ianque lambo? Depois da lio que te dei em Jerusalm, achei que no ficarias a menos de cem milhas de honrados fuzileiros britnicos! E agora pretendes me largar neste fosso e deixar que os franceses faam o servio por ti?" Juntou as mos em concha e gritou: "O americano poltro - ah, se !" "No, no", rebati. "S quero fazer que sintas o gostinho da tua vil traio e ver se s homem o bastante para me encarar, em vez de bater porto na minha cara ou se esconder no poro do navio." Os olhos dele saltaram como se estivessem cheios de vapor. "Encarar-te?! Por Deus, eu vou te arrancar os braos e as pernas, trapaceiro, se alguma vez tiveres peito de cair no brao comigo!" "O valento quer sempre tirar vantagem do tamanho, Big Ned", disse-lhe, gritando ele l embaixo. "Duela comigo do jeito justo, espada contra espada, como cavalheiro, e te ensinarei uma lio de verdade." "Com os diabos, vou mesmo! Vou lutar contigo com pistola, com porrete, com faca, com canho!" "Eu falei em espada." "Deixa-me subir, ento! J que no posso te esganar, vou te cortar ao meio!" Assim, com o duelo marcado de modo satisfatrio para mim, baixei uma corda, alcei de novo a
escada e fiz Ned voltar para dentro de Acre, imediatamente antes que a luz do amanhecer o transformasse em alvo. "Estou tendo mais compaixo para contigo do que tiveste para comigo", disse eu, passando-lhe sermo enquanto Ned tirava argamassa das roupas e me fitava com fria. "E eu estou a ponto de retribuir a compaixo que demonstraste no carteado. Vamos duelar e liquidar nossos assuntos de uma vez por todas! Agora, eu no te deixaria pagar para sair desta nem se tivesses dinheiro para me devolver dez vezes o que levaste!" "Eu te encontro nos jardins do palcio. Preferes o florete, o sabre ou o alfanje?" "Por Deus, o alfanje! Uma coisa que corte osso! E vou trazer os meus camaradas para te verem sangrar!" Olhou muito feio para os homens que estavam ali apreciando o dilogo. "Ningum passa a perna em Big Ned." Minha disposio para duelar com um animal daqueles vinha da minha capacidade de prever seus movimentos. Franklin era sempre uma inspirao, e, enquanto trabalhava na nova forja de Jeric, refleti que o sbio da Filadlfia usaria engenhosidade em vez de fora bruta. Assim, eu me pus a trabalhar. Sabotar Ned foi simples. Retirei o cabo de pano e tecido do alfanje que ele usaria; coloquei em seu lugar um substituto de cobre, cuidando para que Ned pudesse segur-lo com firmeza; poli a pea
toda; e tornei a cobrir o cabo com tecido. Os metais so condutores de eletricidade. Meu alfanje j foi mais complicado. Abri um vo no miolo do cabo; revesti-o de chumbo; para minha prpria segurana, coloquei uma cobertura de pano duas vezes mais grossa, aumentando o isolamento; e, pouco antes da chegada de meu oponente, segurei contra a ponta do cabo um arame grosso que saa da manivela que eu construra para gerar eletricidade por frico. Eu estava girando e girando sem parar a manivela, agora acumulando eletricidade no ao de meu alfanje, quando Ned apareceu no ptio. Meu oponente olhou de soslaio. "E o que isso agora, ianque tratante de uma figa?" "Mgica", respondi. "Ei, eu quero uma luta justa!" "E a ters, lmina contra lmina. Teu muque contra meu miolo. Nada mais justo que isso, no?" "Ethan, ele vai te partir como se fosses uma vareta", advertiu Jeric, do jeito que eu pedira. "Isto loucura. No tens chance contra Big Ned." "A honra exige que nos batamos", disse, com resignao igualmente ensaiada, "no importando o tamanho nem a percia dele." Imagino que no seja muito esportivo ludibriar o touro, mas que matador no fica agitando a capa? Dei alguns minutos at que a multido de marujos e fuzileiros navais reunidos fizesse apostas contra mim (com um emprstimo do ferreiro, eu as cobri inteiramente, calculando que poderia lucrar bastante com toda aquela trabalheira) e ento assumi uma pose de esgrimista na passagem do
jardim onde duelaramos. Gostei de pensar que as moas do harm estariam olhando l de cima, e sabia que Djezzar tambm estava. "Em guarda, fanfarro!", bradei. "Se eu perder, prometo te dar cada xelim. Mas, se perderes, ficars em dvida de gratido para comigo!" "Se perderes, pegarei o que me deves no picadinho em que terei te transformado." A multido gargalhou ante tal verve, e Ned ficou todo cheio de si. Ento arremetemos um contra o outro, brandindo os alfanjes. Aparei o golpe. Eu desejaria poder dizer que exibi valorosa e hbil demonstrao de esgrima ao contrapor destramente minha capacidade atltica fora bruta de Ned. Mas no foi assim: quando o ao bateu no ao, houve simplesmente uma chuva de fascas e um estampido agudo, tal qual disparo de arma de fogo, que fez os espectadores se sobressaltarem e gritarem. Nossas lminas mal se tocaram, e ainda assim Ned foi atirado para trs como se houvesse levado um coice de mula. O alfanje do fuzileiro voou, errando por pouco um de seus companheiros de bordo, e Ned se estatelou como Golias e ficou l no cho, com os olhos virados. O outro alfanje ardia em minha mo, mas eu ficara isolado do pior do choque. O ar cheirava a queimado. Teria Ned morrido? Eu o toquei com a ponta de meu alfanje. Ele estremeceu como um dos sapos das experincias de Galvani.1
1 Galvani pensou que este fenmeno de contrao muscular era devido a uma
"eletricidade animal". Opinio contrria teve Alessandro Volta, para quem uma
A multido estava absolutamente silenciosa, abismada. Por fim, Ned estremeceu, piscou e se encolheu, temeroso. "No me toques!" "No deverias pr prova quem melhor que ti, Ned." "Caramba! O que fizeste comigo?" "Mgica", repeti. Apontei meu alfanje para os outros. "Venci nas cartas limpamente e venci este duelo. Agora, quem mais quer me desafiar?" Eles recuaram como se eu fosse leproso. Um contramestre se apressou a atirar para mim a bolsa com o dinheiro das apostas. Deus abenoe os tolos instintos dos martimos britnicos para a jogatina. Ned conseguiu erguer-se o suficiente para ficar sentado no cho, grogue. "Ningum nunca me venceu antes. Nem mesmo o meu pai, pelo menos no depois que fiz oito ou nove anos e j conseguia sov-lo." "Vais finalmente me respeitar?" Ele balanou a cabea, para desanuvi-la. "Estou em dvida, j disseste. Tens estranhos poderes, chefe - agora eu vejo isso. Tu sempre sobrevives, em qualquer lado em que estejas." "Eu apenas uso o crebro, Ned. Se te aliares a mim, eu te ensinarei a fazer o mesmo."
fonte de eletricidade era o conjunto das duas peas de metal. Foi esta teoria que lhe permitiu construir a pilha de Volta. As observaes de Galvani conduziram muitos fisiologistas a debruarem-se sobre as relaes entre eletricidade e fisiologia (eletrofisiologia), custa do sacrifcio de milhes de rs. Em 1786, Luigi Galvani fez experincias com pernas de rs. Unindo dois metais diferentes de um lado e tocando com as outras extremidades em certos pontos do corpo da r, as pernas agitam-se bruscamente como se o animal estivesse vivo.
"Certo. Quero servir contigo, no brigar." Desajeitadamente, forcejou para colocar-se em p e balanou de um lado para outro. Eu conseguia imaginar o formigamento nada natural que ele devia estar sentindo. "Todos os outros, escutai", disse ele, em voz baixa e spera. "No contrarieis o americano. Se o fizerdes, tereis de vos acertar comigo. Eu e ele agora somos parceiros." Deu-me um abrao, tal qual um smio gigantesco. "No toques na espada, homem!" "Ah, sim." Ned se afastou s pressas. "Bem, eu preciso da tua ajuda para fazer mais mgica, s que desta vez contra os franceses. Preciso de algum que consiga fazer girar o meu aparato como o prprio capeta faria. Consegues, Ned?" "Se no me tocares..." "No, estamos quites", confirmei. "Agora, podemos ser amigos." Fez-se uma estranha calmaria enquanto os franceses cavavam como formigas rumo s muralhas de Acre e assentavam os canhes que lhes restavam. Eles cavavam, e ns espervamos, com aquele moroso fatalismo que vai desgastando os sitiados. Era a Semana Santa, de maneira que, no esprito do feriado, Smith e Bonaparte concordaram em fazer uma troca de prisioneiros, permutando os homens que haviam sido capturados em incurses e escaramuas. Djezzar andava para l e para c pelas muralhas, como um gato inquieto, resmungando a respeito da danao dos cristos e de todos os infiis. Depois, sentava
numa grande cadeira na torre do canto para motivar seus soldados, fitando-os com seu olhar feroz. Eu trabalhava exaustivamente em meu plano eltrico, mas era difcil obter ajuda de Jeric, pois o Aougueiro, Smith e Phlippeaux lhe mandavam constantes solicitaes de armamento. No combate aproximado nas muralhas, com pouco tempo para recarregar bocas de fogo, o ao seria to importante quanto a plvora. O ferreiro exibia sinais do esforo excessivo. O rosto um tanto querubnico se tornara mais seco, mais esticado, e os olhos tinham se ensombrecido. Os canhes franceses troavam vinte e quatro horas por dia, Jeric raramente via sol, e ele estava intranquilo com minha crescente proximidade de Miriam. No entanto, era o tipo de homem que no sabia dizer no nem permitir-se uma reduo da qualidade. Trabalhava at quando Miriam e eu, em cantos opostos do arsenal, desabvamos num sono espasmdico e exaurido. Por isso, foi o ferreiro a acordar-nos na escurido anterior ao amanhecer de 28 de maro, quando se acelerou o rufar da artilharia francesa, prenunciando o ataque iminente. Mesmo nas profundezas do poro de Djezzar, as vigas do teto tremeram com o bombardeio. A oscilao fez voarem fascas da forja. "Os franceses esto testando as nossas defesas", conjecturei, grogue de sono e cansao. "Mantm a tua irm aqui embaixo. Ambos sois mais valiosos como ferreiros que como alvos." "E quanto a ti?"
"A minha corrente ainda no est pronta, mas vou ver como poderamos us-la!" Eram quatro da manh, e as escadas e rampas estavam alumiadas por tochas. Fui levado de roldo para cima, numa onda de soldados turcos e de marujos e fuzileiros britnicos que subiam as muralhas, cada um deles xingando em seu respectivo idioma. No parapeito, o bombardeio era uma sucesso constante de troves, interrompida aqui e ali pelo impacto de uma bala de canho na muralha ou pelo sibilar de outra que passava por cima. Nas linhas francesas, os clares assinalavam onde se instalara a artilharia deles. Smith estava no parapeito, com um estranho sorriso nos lbios, andando compassadamente atrs de um contingente de fuzileiros navais britnicos. Phlippeaux corria como um louco pelas muralhas, para cima e para baixo, dirigindo os disparos dos canhes da cidade com uma confusa mistura de francs, ingls, rabe e aflitos gestos de mo. Ao mesmo tempo, lanternas de sinalizao eram aladas na torre do meio para chamar apoio naval. Perscrutei a escurido, mas no enxerguei as tropas inimigas. Peguei emprestado um mosquete e disparei para onde imaginava que elas pudessem estar, na esperana de atrair fogo que as denunciasse mas os franceses eram demasiado disciplinados para isso. Ento, segui Phlippeaux at a torre. Esta tremia como uma rvore que estivesse sendo abatida. Agora, nossos canhes comeavam a disparar em resposta. Seus clares interrompiam o troar
constante do fogo francs, mas tambm proporcionavam aos artilheiros inimigos uma referncia de mira. As balas comearam a voar mais alto, e ento houve um estrondo quando uma delas passou raspando por uma ameia e os fragmentos de rocha resultantes se espalharam como estilhaos de granada. Um canho turco saiu da carreta e caiu pesadamente, e homens cegados pela exploso berravam. "Como posso ajudar?", perguntei a Phlippeaux, procurando conter o tremor natural em minha voz. A coisa toda me ferira os ouvidos. As muralhas e o fosso tendiam a ecoar e amplificar os estrondos, e sentia-se o fedor acre e intoxicante da plvora queimada. "Vai chamar Djezzar. Ele o nico homem a quem seus soldados temem mais que Napoleo." Fiquei grato pelo pretexto para correr de volta ao palcio, e quase bati de encontro em Haim Farhi nos aposentos do pax. "Precisamos de vosso senhor para ajudar a fortalecer o nimo dos soldados." "Ele no pode ser incomodado. Est no harm." Pelas calas de Casanova, o governante conseguia copular num momento daqueles?! Mas ento se abriu uma porta numa escadaria que levava para cima, e apareceu o Aougueiro, sem camisa, barbudo, os olhos brilhantes - uma mescla de stiro com o profeta Elias. Tinha duas pistolas enfiadas na cinta e segurava um velho sabre prussiano. Um escravo lhe trouxe uma malha de ao, enferrujada, e uma camisa de feltro para ser usada por baixo. Antes que Djezzar fechasse a
porta atrs de si, eu ouvi a falao e o choro agitados das mulheres. "Phlippeaux precisa de vs", disse eu, sem necessidade. "Agora os francos vo chegar perto o bastante para que eu os mate", assegurou o pax. Quando voltamos para a torre, a luz plida do amanhecer recortava em silhueta o morrote que era o observatrio de Napoleo. Vi que navios britnicos tinham se movido mais para perto da terra, na baa de Acre, mas que o fogo de seus canhes no alcanava a coluna de assalto francesa. Agora, eu distinguia l embaixo uma massa humana em trincheiras rasas, como uma centopeia grande e escura. Homens carregavam escadas. "Eles abriram uma brecha na torre, logo acima do fosso", informou Phlippeaux. "No muito grande, mas, se os franceses conseguirem entrar, os turcos fugiro em debandada. H muito falatrio sobre o que aconteceu em Jafa - os nossos otomanos esto angustiados demais para lutar e apavorados demais para render-se." Inclinei-me por sobre a muralha para olhar para o negrume do fosso. Os franceses poderiam entrar nele at com facilidade, mas conseguiriam sair? "Usai um barril de plvora", sugeri. "Ou meio barril, completando o resto com prego e bala. Atirai isso neles quando tentarem tomar a brecha." O coronel monarquista sorriu de orelha a orelha. "Ah, mon Amricain sanguinaire!... Vossos instintos so de guerreiro! Pois muito bem,
iluminemos o caminho para o homem da Crsega!" "Napoleo!", bradou Djezzar, subindo para ficar de p em sua cadeira na torre, to visvel quanto uma bandeira desfraldada. "Vem meter-te com este mameluco agora, vem! Vou te foder como acabei de foder as minhas esposas!" Balas sibilaram, miraculosamente sem atingi-lo. ", vem me abanar como fazem as minhas mulheres!" Ns o puxamos fora para que descesse da cadeira. "Se morrerdes, estar tudo perdido", repreendeu-o Phlippeaux. "Eis o que eu penso da pontaria deles", disse o Aougueiro, e cuspiu. A malha de ao balanava enquanto ele se pavoneava de um lado para outro na torre, assegurando-se de que seus soldados agentariam firme. "No penseis que no estou de olho em vs!" Assim que a paisagem ficou cinza-claro pela aproximao do dia, vi quanto Bonaparte se mostrara apressado. Suas trincheiras ainda eram rasas demais, e uma vintena de seus homens j fora atingida. Diversos canhes franceses haviam sido postos fora de ao na bateria do reservatrio de gua, pois as fortificaes de terra preparadas para eles eram inadequadas, e o velho aqueduto ia sendo mascado por nosso fogo, fazendo chover pedaos de alvenaria sobre as tropas que se amontoavam ali. As escadas que elas traziam pareciam ridiculamente curtas. No obstante, ouviu-se um grande urro, agitou-se a bandeira tricolor, e os franceses arremeteram. Como sempre, demonstravam lan.
Era a primeira vez que eu via do lado oposto a temerria coragem deles, e foi um espetculo assustador. Com alarmante rapidez, a centopeia assaltou e engoliu o terreno entre as trincheiras e o fosso. Os turcos e os fuzileiros britnicos tentaram diminuir-lhes o mpeto com seus mosquetes, mas o hbil fogo francs de cobertura nos obrigou a ficar de cabea baixa. Acertamos s alguns. O inimigo se derramou para o fundo do fosso. Suas escadas se revelaram mesmo curtas demais (o trabalho francs de reconhecimento fora feito s pressas), mas os mais destemidos pularam para dentro do fosso e as ergueram e seguraram para que seus camaradas descessem por elas. Outros disparavam por sobre o fosso para a brecha que tinham aberto, matando alguns de nossos defensores. As tropas otomanas comearam a lamuriar-se. "Silncio! Estais parecendo as minhas mulheres!", esbravejou Djezzar. "Quereis descobrir o que farei convosco se fugirdes?" Agora, a infantaria francesa colocava suas escadas do outro lado do fosso. Chegavam no mximo a uma altura vrios ps abaixo da brecha - um indesculpvel erro de clculo. Esse momento, em que os franceses se puxariam para cima, era aquele em que eles poderiam agarrar-se a uma corrente suspensa. Sem descarga eltrica, ela permitiria que invadissem a cidade em torrente, e Acre teria o mesmo destino que Jafa. Entretanto, se estivesse eletrificada... Os turcos mais valentes se inclinaram sobre o parapeito para disparar com as armas de fogo ou
arremessar pedras para baixo - mas, to logo faziam isso, eram atingidos por franceses do outro lado do fosso. Um homem berrou e despencou l para baixo. Eu mesmo usei um mosquete, amaldioando sua falta de preciso. Alguns otomanos comearam a largar as armas e fugir. Os fuzileiros britnicos tentaram det-los, mas aqueles haviam entrado em pnico. Ento, Djezzar desceu do alto da torre para bloquear a sada deles, brandindo o sabre prussiano e gritando. "Do que estais com medo? Olhai para eles! As escadas que trouxeram so curtas demais! Eles no conseguem entrar aqui!" Djezzar se inclinou por cima da muralha, descarregou as duas pistolas e as entregou a um turco. "Faz alguma coisa, velha medrosa - recarrega as pistolas!" Aps esse corretivo, os otomanos voltaram a atirar. Por mais que estivessem com medo dos temveis franceses, eles tinham pavor de Djezzar. E, ento, uma estrela de fogo caiu da torre. Era o barril de plvora que eu sugerira. Ele chegou ao cho, quicou e explodiu. Houve um estrondo e uma nuvem que irradiou lascas de madeira e estilhaos de metal. Aquela aglomerao de granadeiros oscilou abruptamente para l e para c, os mais prximos despedaados, outros gravemente feridos, outros ainda atordoados pela exploso. Os homens de Djezzar deram vivas e comearam a atirar para valer no apinhamento de franceses, aumentando a devastao.
Assim, o assalto terminou antes mesmo de ter se iniciado. Os franceses, com artilharia impossibilitada de atirar contra alvos prximos demais das tropas de assalto, com escadas curtas demais, com uma brecha pequena demais, com oposio revigorada, haviam perdido o mpeto. Napoleo apostara na velocidade e no nos tediosos preparativos de cerco - e perdera. Os atacantes deram meia-volta, retornando aos trambolhes pelo caminho inverso. "Vedes como eles correm?", gritou Djezzar para seus homens. E as tropas turcas comearam mesmo a bradar com assombro. Os implacveis francos estavam em retirada! No eram invencveis afinal! E, a partir daquele momento, a guarnio se viu tomada por renovada confiana, que lhes serviria de esteio nas longas e sombrias semanas vindouras. A torre se tornaria o fulcro no apenas de Acre, mas de todo o Imprio Otomano. Quando o sol enfim coroou os montes a leste e iluminou por completo a cena, evidenciou-se a destruio: quase duzentos soldados de Napoleo jaziam mortos ou feridos, e Djezzar se negou a diminuir o fogo para que os franceses recolhessem suas baixas que ainda viviam. Muitos morreriam ali, aos berros, antes que os sobreviventes fossem finalmente carregados para um lugar seguro na noite seguinte. "Mostramos aos francos a hospitalidade de Acre!", tripudiou o Aougueiro. Phlippeaux ficou menos satisfeito. "Eu conheo o corso. Aquilo foi apenas uma sondagem. Da
prxima vez, ele vir mais forte." Virou-se para mim. " melhor que o vosso pequeno experimento funcione." O fracasso da primeira investida de Napoleo teve efeito curioso sobre a guarnio. Os soldados otomanos encorajaram-se com o fato de terem logrado repelir o invasor. Pela primeira vez, cumpriam seus deveres com determinao orgulhosa, e no mais com resignao fatalista. Os francos podiam ser derrotados! Djezzar era invencvel! Al atendera a nossas preces! Mas, em compensao, os marinheiros e fuzileiros britnicos ficaram mais comedidos. Uma longa sucesso de vitrias navais os tornara arrogantes em face da possibilidade de enfrentar os franceses. Agora, entretanto, davam-se conta da coragem dos soldados inimigos. Bonaparte no se retirara. Ao contrrio: suas trincheiras de ataque estavam sendo cavadas mais vigorosamente do que nunca. Os martimos sentiam-se encurralados em terra. Os franceses usavam engodos para atrair nosso fogo e desencavavam as balas de metal slido que nossos canhes lanavam, reutilizando-as contra ns. No ajudava que Djezzar estivesse convencido de que os cristos conspiravam contra ele, muito embora os franceses que atacavam a cidade representassem uma religio que abandonara o cristianismo. O Aougueiro colocou vrias dzias de cristos locais em sacos e os atirou ao mar, junto com dois prisioneiros franceses. Nesse episdio, Smith e Phlippeaux foram to impo-
tentes para deter o pax quanto Napoleo o fora para deter as tropas francesas no saque de Jafa, mas muitos ingleses concluram que aquele aliado era um louco impossvel de controlar. A inquieta hostilidade de Djezzar no se limitava aos seguidores da Cruz. O bei Salih, um mameluco do Cairo que era velho arquiinimigo do pax, fugira do Egito aps a vitria napolenica e viera unir-se a Djezzar contra os franceses. O pax o acolheu calorosamente, deu-lhe uma chvena de caf envenenado e jogou o cadver no mar meia hora aps a chegada do visitante. Big Ned mandou seus camaradas depositarem a confiana deles no "mgico" - eu. Ned garantia que os mesmos artifcios que me permitiram derrot-lo, um homem com o dobro de meu tamanho, ajudariam-nos a triunfar sobre Napoleo. Assim, sob nossa direo, os marujos e fuzileiros construram dois toscos cabrestantes, um em cada lado da torre. A corrente ficaria pendurada como uma grinalda naquela fachada, tendo a elevao controlada pelos cabrestantes. Em seguida, transferi minhas garrafas de Leiden e minha manivela de frico para um andar na metade da torre, o da porta de sada de onde eu desafiara Big Ned. As garrafas iriam se ligar a uma haste de cobre, que se ligaria a uma corrente menor, que, por sua vez, tambm se ligaria por gancho corrente maior. "Quando eles vierem, Ned, deves girar a manivela como louco, sem parar." "Chefe, eu vou acender esses francesotes como se eles fossem fogueira de Halloween."
Miriam ajudou a montar o aparato; seus rpidos dedos eram ideais para ligar as garrafas umas s outras. Ser que os antigos egpcios tambm tinham tal feitiaria? "Eu queria que o velho Ben estivesse aqui para ver o que estou fazendo", comentei quando descansvamos na torre num fim de tarde, com nossa feitiaria metlica reluzindo a luz dbil que passava pelas seteiras. "Quem o velho Ben?", perguntou Miriam, num sussurro, encostada em meu ombro enquanto estvamos sentados no cho. Tal proximidade fsica j no parecia fora do comum, embora eu sonhasse com mais. "Benjamin Franklin, um sbio americano que ajudou a dar incio ao meu pas. Era um maom que sabia a respeito dos templrios, e alguns acham que Franklin tinha em mente as idias deles quando criou os Estados Unidos." "Quais idias?" "Olha, eu no sei exatamente. Acho que a idia de que um pas deve representar alguma coisa. Ter um propsito. Acreditar em algo." "E no que acreditas, Ethan Gage?" " justamente a pergunta que Astiza costumava me fazer! Ser que todas as mulheres perguntam isso?... Bem, eu acabei acreditando em Astiza - e, to logo fiz isso, a perdi." Miriam me olhou com tristeza. "Sentes falta dela, no?" "Como certamente sentes falta do noivo que morreu na guerra. Como Jeric sente falta da
mulher; Big Ned, de Little Tom; e Phlippeaux, da monarquia." "Ento, c estamos ns, o nosso crculo de enlutados." Ela ficou calada por um momento. Em seguida, disse: "Sabes no que acredito, Ethan?" "Na Igreja?" "Eu acredito no Outro que a Igreja representa." "Tu te referes a Deus?" "Quero dizer que, na loucura da vida, existe mais do que apenas loucura. Eu acredito que, em todas as vidas, h raros momentos em que percebemos aquele Outro que est em toda a nossa volta. Durante a maior parte do tempo, ficamos trancados, solitrios e cegos no mundo, como as aves no ovo. Mas, de vez em quando, conseguimos quebrar a casca para dar uma espiada l fora. Os abenoados tm muitos desses momentos, e os mpios no tm nenhum. Mas, quando os temos quando percebemos o que verdadeiramente real, muito mais real do que o pesadelo em que vivemos -, tudo fica suportvel. E eu acredito que, se conseguirmos achar algum que cr como ns, algum que forceja contra a casca que nos prende... Bem, a os dois, juntos, conseguiro quebrar a casca por inteiro. E isso o mximo a que podemos aspirar neste mundo." Tremi por dentro. Seria a guerra monstruosa em que eu me vira preso naquele ltimo ano um sonho falso, uma casca que me envolvia? Teriam os ingleses sabido como quebrar a casca daquele ovo? "No sei se j tive um nico momento assim. Isso me torna mpio?"
"Os mpios nunca reconhecero s-lo, nem mesmo para si mesmos." A mo de Miriam apalpou meu queixo, com a barba de vrios dias. Seus olhos claros eram como o abismo junto ao recife de Jafa. "Mas, quando este momento chegar, precisars aproveit-lo, para deixar a luz entrar." E ento ela me beijou, desta vez um beijo pleno. Seu hlito estava quente, e o corpo se comprimiu contra o meu. Os seios se espremeram contra meu peito, e ela tremia. Eu neste momento me apaixonei, no apenas por Miriam, mas por todo o mundo. Ser que isso parece insano? Pelo mais fugaz dos momentos, senti-me ligado a todas as outras almas atormentadas de nosso mundo louco, com um estranho sentimento de comunho que me encheu de pesar e amor. Retribu o beijo, agarrando-me a ela. Eu estava finalmente esquecendo a dor de no ter Astiza, perdida havia tanto. "Guardei os teus anjos dourados, Ethan", murmurou Miriam, puxando uma algibeira de veludo que trazia num cordo entre os seios. "Aqui esto." "Fica com eles. um presente." Que utilidade teriam para mim? E ento se ouviu um estrondo, cuspindo argamassa, e a torre inteira estremeceu como se um gigante a sacudisse para que fssemos jogados para fora. Por uns instantes, temi que a construo fosse desmoronar, mas aos poucos ela parou de oscilar e acabou se assentando, com o piso ligeiramente inclinado. Soaram clarins. "Explodiram uma mina! Eles esto vindo!"
- 14 Por uma portinhola, fui perscrutar a nvoa de fumaa e poeira. "Fica aqui", disse eu a Miriam. "Tentarei ver o que est acontecendo." Em seguida, corri para o alto da torre. Phlippeaux j estava l, sem chapu, inclinado sobre a beira do parapeito e indiferente sucesso de balas disparadas pelos atiradores franceses. "Os sapadores cavaram um tnel debaixo da torre e o encheram de plvora", contou-me. "Acho que erraram os clculos. O fosso virou entulho, mas mal se atingiu a base da muralha - no vejo rachaduras at em cima." Ele se impulsionou para voltar ao parapeito e me agarrou pelo brao. "Aquela vossa diabrura est pronta?" Phlippeaux apontou para fora. "Bonaparte est decidido." Assim como antes, uma coluna de tropas vinha a passo rpido junto ao aqueduto. Desta vez, porm, parecia tratar-se de uma brigada inteira. As escadas eram agora mais compridas, balanando enquanto os soldados avanavam. Eu me inclinei para fora. Havia uma grande fenda na base da torre e uma nova passarela de entulho no fosso. "Juntai vossos melhores homens na brecha", disse eu a Phlippeaux. "Vou deter os franceses com minha corrente. Quando eles se aglomerarem, atirai neles com tudo o que temos l embaixo e aqui em cima." Voltei-me para Smith, que estava
ofegante aps a rpida subida. "Sir Sidney, preparai vossas bombas!" Ele arfava. "Farei cair sobre eles o fogo de Zeus." "No hesiteis. Em algum momento, perderei fora eltrica, e eles quebraro o meu aparato." "J os teremos liquidado at ento." Phlippeaux e eu samos correndo escada abaixo, ele para a brecha, eu para meu novo companheiro. "Agora, Ned, agora! Vem para a nossa sala e gira a manivela com toda a fora de que for capaz! Eles j esto vindo, e a nossa bateria de garrafas precisa estar totalmente carregada!" "Tu baixas a corrente, chefe, e eu os fao soltar fasca." Coloquei alguns fuzileiros em cada um dos cabrestantes, mandando-os ficarem agachados at a hora de baixar a corrente. Desde a exploso da mina, irrompera um duelo de artilharia em larga escala, e o furor da batalha era de tirar o flego. Disparavam-se canhes em toda a parte, obrigando-nos a berrar por conta dos estrondos. Quando os projteis caam na cidade, pedaos dos escombros eram atirados para o ar. s vezes se avistavam as balas da artilharia atravessarem o cu acima de ns, e, quando elas acertavam, havia estrpito e nuvens de poeira. Nossos prprios projteis de artilharia causavam grandes jorros de areia entre as posies francesas, de quando em quando destruindo ou fazendo tombar um canho de campanha ou uma carroa de plvora. A vanguarda dos granadeiros franceses comeava a correr, carregando as escadas como lanas no rumo do fosso.
"Agora, agora!", bradei. "Baixai a corrente!" Em ambas as extremidades, os fuzileiros comearam a soltar os cabos dos cabrestantes. A corrente suspensa, parecendo uma guirlanda, foi raspando e deslizando pela face da torre na direo da base. Quando chegou brecha, eu os fiz parar, com a corrente atravessada no buraco da torre, como se fosse um improvvel cordo para coibir a entrada. Os franceses certamente pensaram que tnhamos enlouquecido. Companhias inteiras deles estavam disparando salvas de mosquete contra nossas cabeas, no alto da muralha, e retribuamos o cumprimento com metralha de canho. Metal rangia. Homens berravam ou abriam a boca num esgar ao ser atingidos, e os parapeitos j ficavam escorregadios por causa do sangue. Djezzar apareceu, ainda usando a velha malha de ao tal qual um sarraceno ensandecido, caminhando para l e para c, a passos largos, entre seus soldados agachados ou estirados no cho, alheio ao fogo inimigo. "Atirai, atirai! Eles se daro por vencidos quando perceberem que no vamos fugir! A mina no funcionou - vede, a torre continua de p!" Desci com toda pressa a escada da torre, at a sala onde estavam meus companheiros. Ned, sem camisa e com o tronco reluzindo de suor, acionava freneticamente a manivela. O disco de vidro girava como uma roda de carroa a galope, fazendo o aparato zumbir como colmia. "Pronto, chefe!" "Esperemos at eles chegarem corrente." "Eles vm vindo", disse Miriam, espiando por uma seteira. Correndo furiosamente, apesar do fogo
arrasador que lhes dizimava as fileiras, os granadeiros da dianteira (um deles carregando o pendo tricolor) arremeteram-se atravs da passarela de entulho que enchera pela metade o fosso e comearam a subir com dificuldade para o buraco que a mina abrira. Ouvi Phlippeaux gritar uma ordem, e seguiu-se um estrondo quando nossos homens na base da torre dispararam uma salva de mosquete e pistola. A vanguarda dos atacantes oscilou para trs, e a bandeira caiu. Outros atacantes passaram arduamente sobre esses corpos, atirando para dentro da brecha, e a bandeira foi de novo levantada. Escutei o baque j familiar de quando o chumbo atingia carne, mais os grunhidos e berros de homens feridos. "Est quase na hora, Ned." "Eu pus todo o meu muque nestas garrafas", disse ele, arfante. Os atacantes alcanaram minha guirlanda de ferro e a agarraram. Longe de ser uma barreira, ela estava mais para uma ajuda na escalada, medida que os franceses esticavam os braos para trs para alar seus outros camaradas. Num timo, a corrente estava apinhada de soldados, como vespas num fio de melao. "Vamos! Agora!", gritou Miriam. "Reza a Franklin", murmurei. Empurrei uma chave de madeira, que fez a haste de cobre da bateria ir de encontro pequena corrente que estava ligada grande. Houve um claro e um estalo. O efeito foi instantneo - um berro, fascas, e os granadeiros voaram da corrente como se houvessem levado coices. Alguns no conseguiram soltar-se, gritando enquanto
queimavam e depois pendendo tremulamente da corrente, com os msculos geleificados. Senti o cheiro de sua carne. Era pavoroso. Na mesma hora, instalou-se a confuso. "Fogo!", gritou Phlippeaux l de baixo. Mais disparos foram feitos de nossa torre, e mais atacantes tombaram. "Aquela corrente tem um calor esquisito!", bradavam os granadeiros. Homens a tocavam com as baionetas e retrocediam. Soldados tentavam levant-la ou pux-la e caam como bois atordoados. O aparato ia funcionando, mas quanto tempo a carga eltrica poderia se manter? Ned respirava ruidosa e dificultosamente. Em algum momento, os atacantes perceberiam como a corrente estava suspensa e a arrebentariam, mas agora zanzavam sem saber o que fazer, mesmo com mais tropas afluindo para o fosso atrs deles. medida que se aglomeravam, mais eram derrubados a tiros. De sbito, notei uma ausncia e olhei desesperadamente em volta. "Onde est Miriam?" "Foi levar plvora para Phlippeaux l embaixo", respondeu Ned, sentindo o esforo. "No! Preciso dela aqui!" A brecha devia estar parecendo um abatedouro. Corri para a porta. "Continua girando a manivela!" Ele estremeceu. "Certo." Dois andares abaixo, eu me vi no pleno furor da batalha. Phlippeaux e seu bando de turcos e britnicos, de baionetas caladas, apinhavam-se na base da torre, disparando e esgrimindo pela brecha, enquanto os granadeiros franceses
tentavam passar por baixo ou por cima da corrente. Ambos os lados j haviam arremessado granadas, e pelo menos metade dos nossos estava morta ou ferida. Entre os franceses, os mortos se empilhavam. De onde eu estava, a brecha parecia uma caverna escancarada para todo o exrcito francs, um medonho buraco de luz e fumaa. Avistei Miriam bem l na frente, onde ela tentava arrastar um dos feridos para que no fosse liquidado pelas baionetas francesas. "Miriam, preciso de ti l em cima!" Ela assentiu. O vestido estava rasgado e ensangentado; o cabelo, emaranhadssimo; as mos, rubras de sangue. Mais tropas francesas chegaram impetuosamente, tocaram a corrente, berraram e foram arremessadas para trs. Continua girando, Ned, continua girando, pedi numa prece sussurrada. Eu sabia que a carga eltrica iria se esgotar. Phlippeaux dava golpes e mais golpes de espada. Atravessou o peito de um tenente e talhou a cabea de outro. "Malditos republicanos!" Uma pistola disparou, errando por pouco o rosto de Phlippeaux. Ouviu-se um grito de mulher, e Miriam ia sendo arrastada para longe de ns - um soldado rastejara por baixo e a pegara pelas pernas. Ele comeou a carreg-la de volta consigo, como se pretendesse atir-la em meu dispositivo. Miriam fritaria! "Ned, pra de girar a manivela!", berrei. "Puxa a haste de cobre para que no encoste mais na corrente!" Mas no havia como ele me ouvir. Arremeti atrs de Miriam.
Foi uma investida contra os franceses que tinham rastejado por baixo da corrente. Peguei um mosquete cado e o brandi com fria, derrubando homens como se fossem pinos de boliche, at que a arma se quebrou na parte mais estreita da coronha. Por fim, segurei o captor de Miriam, e ns trs nos debatemos, com ela unhando os olhos do homem. Tropeamos nos escombros enquanto ramos agarrados por mos de ambos os lados em luta. Ento, recebi um golpe, e Miriam foi puxada de mim e atirada contra a corrente. Preparei-me para o pior, na expectativa de que minha bruxaria matasse quem eu amava. Mas nada aconteceu. O metal se descarregara. Houve uma grande aclamao, e os franceses se lanaram para a frente. Cortaram a corrente nas pontas, e ela caiu. Uma dzia de homens a arrastou para longe, olhando-a cata da fonte daqueles misteriosos poderes. Miriam cara com a corrente. Tentei rastejar em meio ao assalto dos granadeiros, mas fui simplesmente pisoteado. Agarrei a bainha de seu vestido enquanto as botas avanavam e tropeavam em ns. Ouvi disparos, alm de gritos em pelo menos trs lnguas. Homens bufavam e tombavam. E ento veio outro estrondo, desta vez ainda mais ruidoso que a mina, pois no se limitara ao subsolo. Uma imensa bomba, elaborada com barris de plvora, fora enfim jogada do alto da torre por Sidney Smith. Ela caiu sobre a massa de franceses que haviam se juntado diante da corrente e
explodiu, com fora redobrada pelo fosso e pela torre, que a confinaram. Abracei-me ao entulho quando o mundo se dissolveu em chamas e fumo. Braos, pernas e cabeas voaram tal qual palha mida e quebrada. Os homens que antes nos pisoteavam se transformaram num escudo sanguinolento, pois seus corpos caram sobre ns como vigas. Fiquei momentaneamente surdo. E ento mos vieram nos arrastar para trs. Phlippeaux estava dizendo alguma coisa, que eu no conseguia ouvir, e apontando. Mais uma vez, os franceses batiam em retirada, tendo sofrido baixas muito mais pesadas que antes. Eu me voltei, dando um grito que tampouco consegui ouvir. "Miriam! Ests viva?" Ela jazia ali, flcida e calada. Eu a carreguei dos destroos para os jardins do pax, atravessando a torre. Meus ouvidos zumbiam, mas a audio comeava a melhorar. L atrs, Phlippeaux berrava ordens a sapadores e operrios para que iniciassem os reparos na brecha. O ar do jardim estava fumarento. Cinzas caam como se tivessem passado por uma peneira. Deitei minha colaboradora no banco junto a uma fonte e levei o ouvido em seus lbios. Sim - um murmrio de trmula respirao! Miriam estava inconsciente, no morta! Molhei um leno na gua, que estava rsea de sangue, e limpei aquele rosto - to macio e to liso por baixo da fuligem! O frescor acabou por fazer que ela se recobrasse. Piscou, tiritando um pouco, e ento se ergueu,
abruptamente. "O que aconteceu?" Ela agora tremia. "Funcionou. Eles se retiraram." Miriam ps os braos ao redor de meu pescoo e se agarrou a mim. " to horrvel, Ethan!" "Talvez eles no voltem mais." Ela balanou negativamente a cabea. "Tu me disseste que Bonaparte implacvel." Eu sabia que, para derrotar Napoleo, seria necessrio mais do que uma corrente eletrificada. Miriam olhou para si mesma. "Estou parecendo um aougueiro." "Ests linda. Linda e coberta de sangue." Era verdade. "Vamos entrar." Eu a ajudei a subir, e ela se recostou em mim, cingindo meu ombro com o brao para apoiar-se. Eu no sabia ao certo para onde lev-la, mas queria ficar longe tanto de Jeric e sua forja quanto da muralha e seus combates. Comecei a nos levar na direo da mesquita. Nisto, apareceu Jeric, conduzido por um Ned aflito. "Meu Deus, o que aconteceu?!", perguntou o ferreiro. "Miriam foi apanhada na luta pela brecha. Ela se portou como uma amazona." "Eu estou bem, irmo." O tom dele era acusador. "Disseste que ela viria apenas ajudar na tua feitiaria, e no participar." Ela intercedeu. "Os homens precisavam de munio, Jeric." "Eu poderia ter-te perdido." E a se fez silncio, e houve a tenso entre dois homens que queriam a mesma mulher por motivos diferentes. Ned ficou de lado, mudo, constrangido, como se aquilo fosse culpa dele.
"Pois bem, voltemos para a forja", disse Jeric, severo. "Nenhuma bala de canho poder nos atingir l." "Eu vou com Ethan." "Vai? Aonde?" Ambos olharam para mim, como se eu soubesse. "Vamos", respondi, "para onde ela possa descansar. Tua forja to barulhenta quanto uma fbrica, Jeric. E abafada e suja." "No te quero com ela." A voz do ferreiro era categrica. "Estou com Ethan, irmo." O tom de Miriam era suave, mas insistente. E assim fomos, ela recostando-se em mim, o ferreiro l no jardim, frustrado, com os punhos fechando-se no nada. Atrs de ns, a artilharia ressoava como tambores distantes. Meu amigo Mohammad, em vez de partir de barco e nos deixar para Napoleo, alojara-se no Khan elOmdan (em rabe, a Estalagem dos Pilares). Na empolgao do trabalho na corrente, eu me esquecera dele; agora, entretanto, fui procur-lo. Eu pusera um capote em Miriam, mas, quando aparecemos no cmodo de Mohammad, parecamos dois refugiados - cheirando a fumaa, sujos, andrajosos. "Mohammad, precisamos de um lugar para descansar." "Todos os quartos esto ocupados, efndi!" "Mas com certeza. "Pagando um precinho, sempre se acha alguma coisa." Dei um sorriso irnico. "Ser que poderamos dividir este quarto contigo?"
Ele balanou negativamente a cabea. "As paredes so finas, e a gua pouca. No lugar para uma senhora. Vs, efndi, no mereceis coisa melhor - mas ela, sim. Dai-me o resto do dinheiro que sir Sidney pagou pela medalha, mais o que ganhaste no duelo." Mohammad estendeu a mo. Hesitei. "Vamos l - sabeis que no pretendo vos lograr. Para que serve o dinheiro se no o usamos?" Assim, passei-lhe a bolsa, e Mohammad sumiu. Meia hora depois, ele estava de volta, e minha bolsa, vazia. "Vinde. Um mercador fugiu da cidade, e um jovem mdico est usando a casa dele para dormir, mas raramente aparece por l. Ele me alugou as chaves." A casa estava s escuras, com os postigos fechados e a moblia coberta e empurrada contra a parede. A fuga do proprietrio deixara um ar de desolao, e mal se podia dizer que o mdico estava aboletado ali. Era um cristo levantino, de Tiro, chamado Zawani. Trocamos um aperto de mo, e ele olhou para Miriam com curiosidade. "Usarei o dinheiro para comprar bandagens e ervas medicinais." Estvamos a uma distncia suficiente das muralhas para que o som dos canhes fosse abafado. "H um banho l em cima. Descansai. S volto amanh." Era um homem bem-apessoado, de olhos gentis, mas j encovados pela exausto. "Esta senhora precisa descansar..." "No necessrio explicar. Sou mdico." Fomos deixados a ss. O andar superior tinha um quarto de banho, com abbada de alvenaria
branca, atravessada por grossas vidraas coloridas, sobre uma pequena piscina. A luz entrava em feixes multicoloridos, como um arcoris prismado. Havia lenha para aquecer a gua, de modo que pus as mos obra enquanto Miriam cochilava. O quarto estava cheio de vapor quando a acordei. "Preparei um banho." Fiz meno de sair, mas ela me deteve e nos despiu. Seus seios eram pequenos, mas perfeitos, firmes, de mamilos rosados. O ventre descia para plos claros. Era uma Madona, virginal, e esfregou a ns dois para tirar o encardido do combate, at que ela voltou a ter cor de alabastro. O colcho do mercador chegava altura de minha cintura, numa cama rebuscadamente entalhada, com gaveteiro e dossel. Miriam subiu primeiro e deitou de costas, de maneira que eu pudesse v-la luz plida. No h espetculo mais lindo que uma mulher que nos quer. Sua doura nos engolfa como o abrao do mar clido. A topografia do corpo de Miriam era uma serra nevada, misteriosa e inexplorada. Ser que eu ainda me lembrava de como se fazia? Parecia j ter se passado um milnio desde a ltima vez. Intrometeu-se ento uma estranha e sbita lembrana de Astiza - uma facada no corao. Mas ento Miriam disse: "Este um daqueles momentos de que te falei, Ethan". E eu a possu, vagarosa e delicadamente. Ela chorou na primeira vez e se agarrou ardentemente a mim, gritando na segunda. Eu tambm me agarrei a ela, tremendo e arfando no final, com os olhos umedecendo quando pensei primeiro em
Astiza, depois em Napoleo, depois em Miriam e em quanto tempo levaria para que os franceses voltassem, agora to furiosos quanto haviam se mostrado em Jafa. Se conseguissem entrar em Acre, eles matariam a todos ns. Virei a cabea para que Miriam no visse lgrimas nem preocupaes, e adormecemos. Por volta de meia-noite, acordei ao me sacudirem. Agarrei uma pistola, mas ento vi que era Mohammad. "Mas que diabos?...", sussurrei de pssimo humor. "Ser que no se pode ter um mnimo de privacidade?" Ele levou o dedo aos lbios e me fez sinal para que o seguisse. "Agora?" Assentiu enfaticamente. Suspirando, desci da cama. O piso estava gelado. Fui atrs dele at outro cmodo naquele andar. "O que fazes aqui?", resmunguei, segurando um cobertor em volta de mim como se fosse uma toga. A cidade parecia silenciosa, com os canhes descansando. "Peo desculpas, efndi, mas sir Sidney e Phlippeaux disseram que a situao no podia esperar. Os franceses usaram uma flecha para passar isto por sobre a muralha. Vosso nome est escrito aqui." "Flecha? Por Isaac Newton, em que sculo estamos?!" Um pequeno pedao de aniagem estava amarrado flecha. E, de fato, o nome do destinatrio fora escrito com bela caligrafia numa etiqueta: "Ethan
Gage". Franklin teria admirado aquela eficincia postal. "Como que eles sabem que estou aqui?" "A corrente eletrificada como um estandarte a anunciar vossa presena. Imagino que a provncia inteira esteja falando dela." Deveras, mas o que nossos inimigos poderiam estar me enviando que fosse to pequeno? Desembrulhei o que estava envolto na aniagem. Fiz que o contedo rolasse para a palma de minha mo. Era um anel de rubi, com a pedra do tamanho de uma cereja. A ele fora amarrada uma mensagem que dizia apenas: "Ela precisa dos anjos. Monge". Fiquei atordoado. A ltima vez que eu vira aquela jia, ela estava no dedo de Astiza.
- 15
Mohammad me observava atentamente. "Esse anel significa alguma coisa para vs?" " s isto? No h outra mensagem?" Monge era indiscutivelmente Gaspard Monge, o matemtico francs que eu reencontrara em Jafa. "E vossa surpresa no apenas do tamanho da pedra, ?", insistiu Mohammad. Eu me deixei sentar, pesadamente. "Conheci a mulher que usava o anel." Astiza estava viva! "E por qual razo, exatamente, o exrcito francs mandaria assim o anel dela?"
, por qual razo? Virei o anel nos dedos, recordando sua origem. Apesar dos protestos de Astiza, que dizia que aquelas riquezas estavam amaldioadas, eu insistira em que ela o pegasse no tesouro subterrneo que descobrramos sob a Grande Pirmide. Depois, ns nos esquecemos brevemente dele, at que Astiza tentou escalar a corda do balo desembestado de Conte para chegar cesta, onde eu estava. Naquele momento, um desesperado conde Silano se agarrava aos calcanhares de Astiza. Ela lembrou a maldio e rogou que eu lhe tirasse o anel do dedo, mas no consegui. Por isso, em vez de arrastar-me para baixo at ficarmos ao alcance dos soldados franceses, Astiza cortou a corda e despencou com Silano, aos berros, no Nilo. O balo chispou para cima de modo to abrupto e violento que no vi como os dois chegaram ao rio. As tropas francesas dispararam uma salva de mosquete contra mim, e, quando enfim pude perscrutar as guas cobertas pelos reflexos ofuscantes do sol, no havia mais nada para ver. Era como se Astiza tivesse sumido da face da Terra. At esse momento em Acre. E que anjos eram aqueles? Eram os dois serafins que encontrramos. Eu teria de peg-los de volta com Miriam. "Querem que eu v l." "Ento armadilha!", disse meu companheiro. "Eles temem a vs e vossa magia eltrica." "No, no acho que seja armadilha." Eu no me convencia da lisonjeira idia de que me considerassem um inimigo to temvel que precisariam atrair-me para fora das muralhas, sob
falso pretexto, apenas para que pudessem atirar em mim. Eu desconfiava, isto sim, de que no tinham desistido de nossa busca em comum pelo Livro de Tot. Se havia uma maneira de tornarem a conseguir minha ateno, era a perspectiva de rever Astiza. "Eles simplesmente sabem que estou vivo, por causa da eletricidade, e descobriram alguma coisa em que posso ser til. O meu palpite que isso diga respeito ao que eu estava procurando em Jerusalm. E sabem que a nica coisa que me faria voltar para eles so notcias dessa mulher." "Efndi, no possvel que estejais pensando em sair destas muralhas!" Olhei de relance para onde Miriam dormia. "Eu preciso." Mohammad estava atnito. "Por causa de uma mulher?! Tendes uma bem aqui!" "Vou porque por a h algo que est esperando para ser redescoberto e porque a maneira pela qual esse algo ser usado influenciar os destinos do mundo para melhor ou para pior." Eu me pus a pensar. "Quero ajudar os franceses a achar o que procuramos - e depois furtar isso a eles. Para tanto, preciso de ajuda, Mohammad. Uma vez que eu tenha Astiza e o que buscamos, precisarei fugir pela Palestina. Algum com conhecimento local..." Ele empalideceu. "Mal consegui escapar de Jafa, efndi! Enfiar-me agora entre os demnios francos..." "...pode render-te parte do maior tesouro do mundo", completei, sem emoo. "Maior tesouro?"
"Nada est garantido, claro." Mohammad ponderou a questo. "E qual seria a minha parte?" "Bem, cinco por centro parece justo, no achas?" "Para conduzir-vos pelos ermos da Palestina?! Um quinto, no mnimo!" "Pretendo solicitar tambm a ajuda de outrem. Sete por cento o mximo que tenho condies de oferecer." Ele fez uma reverncia. "Nesse caso, um dcimo ser absolutamente razovel. Mais uma pequena gratificao se obtivermos auxlio de meus primos, irmos e tios. E as despesas com cavalos e camelos. Comida. Armas de fogo. Uma ninharia, se esse mesmo o maior dos tesouros." Suspirei. "Primeiro vamos ver se conseguimos chegar a Monge sem levarmos nenhum tiro - est bem?" Ao iniciarmos nosso urgente e animado planejamento, havia, claro, uma questo pendente. Eu acabara de dormir com a mulher mais doce que j conheci e estava pretendendo pegar meus serafins e sair de fininho para descobrir a verdade sobre Astiza sem dizer nenhuma palavra coitada. Senti-me um canalha, e no tinha a mnima idia de como explicar-me sem parecer canalha tambm. No que eu estivesse sendo desleal para com Miriam. que eu estava sendo leal memria da primeira mulher e amava ambas, s que de maneiras diferentes. Astiza se tornara a essncia do Egito, dos mistrios de antanho, uma beldade cuja busca pela sabedoria antiga era agora tambm minha. Ns nos
conhecramos quando ela ajudou na tentativa de me matar, com o prprio Napoleo vindo a comandar a pequena investida que a capturou. Depois, Astiza salvara minha vida mais de uma vez e dera propsito minha natureza vazia. No framos apenas amantes - ns nos transformamos em parceiros numa busca e quase morremos na Grande Pirmide. Era perfeitamente compreensvel sair procurando por Astiza - o anel acendera memrias tal qual fogo num rastilho , mas estava um pouquinho embaraoso explicar isso a Miriam. As mulheres podem ficar ranzinzas com tais coisas. Assim, eu sairia para descobrir o significado do anel de Astiza, resgat-la e ento... E ento o qu? Bem, mesmo formidvel como essas coisas se resolvem, garantira-me Sidney Smith. " to cmodo sermos criaturas racionais, pois isso possibilita que faamos tudo o que de antemo j pretendamos fazer", dissera Benjamin Franklin. O velho Ben freqentava bastante as senhoras, enquanto a esposa se afligia l na Filadlfia. "Devemos acordar vossa amiga?", perguntou Mohammad. "Ah, no." Quando pedi a Big Ned que nos acompanhasse, ele se mostrou to difcil de convencer quanto um co cujo dono chamasse para passear. Ned era um desses homens que no conhecem meio-termo era ou o meu mais implacvel dos inimigos, ou o meu mais fiel dos servidores. Convencera-se de que eu no s era um feiticeiro de raro poder, mas
tambm estava apenas esperando o momento certo para sair distribuindo a riqueza de Salomo. Jeric, ao contrrio, desistira havia muito de todas as idias de tesouro. Ficou interessado quando o acordei para explicar que o anel de rubi pertencera a Astiza, mas esse interesse era s porque aquela mudana de rumo talvez me mantivesse longe da irm. "Portanto cuida de Miriam enquanto eu estiver fora", ordenei, procurando assim enganar a conscincia. Ele pareceu to satisfeito que, por um momento, fiquei imaginando se no teria sido ele a enviar-me o anel. Mas ento Jeric piscou e balanou negativamente a cabea. "No posso deixar-te ir sozinho." "No estarei sozinho - Mohammad e Ned viro comigo." "Um pago e um pateta? Ser uma disputa para ver qual dos trs causar um desastre primeiro. No, precisas de algum sensato." "E esse algum ser Astiza, se estiver viva. Smith, Phlippeaux e o resto da guarnio precisam mais de ti do que eu, Jeric. Defende a cidade e Miriam, que eu ainda te darei uma parte quando acharmos o tesouro." No se pode tentar um homem com a riqueza e depois deixar de fazer que ele anseie por essa perspectiva, ainda que dbia. Ele olhou para mim com um respeito que antes no tinha. "Atravessar as linhas francesas coisa arriscada. Talvez tenhas mesmo estofo, Ethan Gage." "Tua irm tambm pensa assim." E, antes que pudssemos nos estranhar por causa daquele
assunto, parti com Mohammad e Ned. Seramos pegos no fogo cruzado se simplesmente sassemos andando das muralhas, e por isso fomos no barco em que Mohammad fugira de Jafa. Acre no era mais que uma silhueta escura contra as estrelas, para que os franceses tivessem to poucos alvos quanto possvel; j a incandescncia das fogueiras inimigas produzia uma aurora atrs das trincheiras. A fosforescncia na esteira do barco era prateada. Descemos na praia de areia atrs do semicrculo das linhas francesas e nos esgueiramos para o acampamento deles pela retaguarda, cruzando os sulcos de carroa e as lavouras pisoteadas que a guerra produz. mais fcil do que se poderia imaginar ir adentrando a p num exrcito pela retaguarda, que o lugar dos carroceiros, vivandeiros e outros paisanos e de todos os soldados que se fazem de doentes e no esto l muito acostumados com o sacar das armas. Mandei meus companheiros esperarem numa moita beira de um riacho de guas tpidas e segui a passos largos e ritmados, com o ar de superioridade dos savants, esses homens que tm opinies sobre tudo e no tm realizaes em nada. "Trago mensagem para Gaspard Monge de seus colegas acadmicos no Cairo", disse eu a uma sentinela. "Ele est ajudando no hospital." O soldado apontou para l. "Visitai-o por vossa conta e risco." Ser que j havamos ferido tantos franceses assim? O cu comeava a clarear para leste quando achei as tendas do hospital, costuradas umas s outras como uma imensa lona de circo.
Monge estava dormindo num catre e parecia ele prprio doente, um cientista e aventureiro de meia-idade que a expedio ia transformando em idoso. Estava plido, apesar do sol, e mais magro, encovado pela enfermidade. Hesitei em acord-lo. Olhei rapidamente em volta. Soldados, gemendo baixinho, jaziam em fileiras paralelas que sumiam na penumbra. Eles pareciam estar ali em nmero excessivo para as baixas que infligramos. Inclineime para olhar um deles, que tremia espasmodicamente, e recuei, assustado: havia pstulas no rosto e, quando levantei-o lenol, um inchao funesto na virilha. A peste. Retrocedi s pressas, suando. J corriam rumores de que a coisa vinha se agravando, mas a confirmao despertou um pavor secular. As doenas so a sombra dos exrcitos, e a peste a subalterna dos cercos, raramente estando limitada a s um dos lados em conflito. E se agora ela atravessasse as muralhas? Por outro lado, a doena impunha a Napoleo prazos apertados. Ele precisava vencer antes que a peste lhe dizimasse o exrcito. No admirava que houvesse atacado to impetuosamente. "s tu, Ethan?" Eu me voltei. Monge estava se erguendo o suficiente para sentar, desgrenhado e exausto, piscando. Tal qual j ocorrera antes, seu rosto me lembrou um co velho e sbio. "Venho mais uma vez consultar-te, Gaspard." Ele sorriu. "Primeiro pensamos que tinhas morrido, depois imaginamos que fosses o eletricista louco
de Acre, e agora te materializas ao meu chamado. Talvez sejas mesmo um mago - ou o homem mais confuso de ambos os exrcitos, sem nunca saber de que lado est." "Eu estava bem contente do outro lado, Gaspard." "Com um pax tirnico, um ingls luntico e um monarquista francs invejoso? Bobagem! No acredito. s mais racional do que demonstras ser." "Phlippeaux diz que, na escola, o invejoso era Bonaparte, no ele." "Phlippeaux est do lado errado da histria, assim como todos os homens que se encontram atrs daquelas muralhas. A revoluo vai refazendo o homem aps sculos de superstio e tirania. O racionalismo sempre triunfar sobre a superstio. Nosso exrcito carreia a liberdade." "Junto com a guilhotina, os massacres e a peste." Monge franziu o cenho para mim, decepcionado com minha intransigncia. Depois, os cantos de sua boca se contraram, e, por fim, ele riu. "Belos filsofos somos ns, aqui no fim do mundo!" "O centro do mundo, diriam os judeus." ". Todo exrcito acaba marchando pela Palestina, a encruzilhada de trs continentes." "Gaspard, onde conseguiste este anel?" Estendi a jia, cuja pedra parecia uma bolha de sangue luz plida. "Astiza o usava quando a vi pela ltima vez, caindo no Nilo." "Bonaparte ordenou que se enviasse aquela mensagem na flecha." "Mas por qu?"
"Bem, para comeo de conversa, Astiza no morreu." Meu corao disparou. "E como ela est?" "No a vi, mas tive notcias. Esteve em coma, sob os cuidados do conde Silano, por um ms. Disseram-me que Astiza se recuperou melhor do que ele. Desconfio que Silano bateu na gua primeiro, com Astiza por cima, de modo que sentiu o grosso do impacto e atenuou a queda dela. Ele quebrou o quadril e mancar pelo resto da vida." As batidas de meu corao eram como tambores em meus ouvidos. Ah, saber que... "Agora Astiza se desvela por ele", continuou Monge. Aquilo foi uma bofetada. "S podes estar brincando." "O que eu quero dizer que ela cuida do conde. Astiza no desistiu dessa curiosa busca em que todos vs pareceis estar. Os dois ficaram furiosos ao saber que foste condenado em Jafa - aquilo foi obra do palhao do Najac; no sei por que Napoleo no quis me escutar - e horrorizados com a notcia de que te executaram. Tu sabes algo de que eles precisam... Depois correram os boatos de que no morreras, e ela enviou o anel. Vimos o teu truque com a eletricidade. Astiza me instruiu a perguntar por uns anjos. Sabes a que ela se refere?" Mais uma vez, eu sentia os serafins comprimidos contra a pele. "Talvez. Eu preciso v-la." "Astiza no est aqui. Ela e Silano foram para o monte Nebo." "Monte o qu?"
"A leste de Jerusalm, do outro lado do Jordo. L onde Moiss enfim avistou a Terra Prometida e onde ele morreu antes de poder adentr-la. Agora, Ethan Gage, por que eles esto assim to interessados em Moiss?" Monge me observava atentamente. Ah, ento ele, e provavelmente Bonaparte, no estavam par de tudo. O que Silano e Astiza estariam tramando? "Nem fao idia", menti. "E o que sabes desses teus anjos que deixa Astiza e Silano to ansiosos por achar-te quanto tu por ach-los?" "Disso fao menos idia ainda", respondi, com sinceridade. "Vieste sozinho?" "Tenho comigo alguns amigos, que me aguardam em lugar seguro." "No h lugar seguro na Palestina - esta uma terra pestilenta. Nosso amigo Conte concebeu complexos carroes para trazer mais artilharia de stio do Egito - j que os prfidos britnicos capturaram nossos canhes no mar -, mas tem sido um combate contnuo para faz-los chegar aqui. Essa gente no sabe reconhecer que perdeu." Monge se referia aos combatentes muulmanos que fustigavam as linhas de suprimento de Napoleo. Se este estava esperando canhes pesados, o tempo era curto. "O que acontece no monte Nebo?" Monge deu de ombros. "Se te confidenciasses com teus colegas savants, Gage, talvez pudssemos determinar teu futuro com mais exatido. Mas vais
pelo que te d na telha e acabas metido em confuso. como aquela busca intil por conta do tringulo de Pascal que estava inscrito no teu medalho - alis, tu afinal te livraste desse brinquedo velho?" "Ah, sim." Monge se convencera de que meu medalho do Egito era uma fraude moderna. Astiza, quando Monge no podia ouvi-la, chamarao de tolo. Ele no era tolo, mas carregava o nus das certezas que vm com o excesso de instruo (a correlao entre escolaridade e bom senso extremamente limitada). "No tenho nada para confidenciar. Eu estava simplesmente realizando experimentos com eletricidade quando mandaste este anel por cima das muralhas." "Experimentos que mataram os meus homens." A voz me fez ter um sobressalto. Era Bonaparte, saindo das sombras! Ele parecia estar em toda a parte, o tempo inteiro. Ser que no dormia? Estava amarelo, agitado, e seus olhos cinzentos se impunham friamente, tal qual fazia a tantos homens - como um cavaleiro a seu corcel. Fiquei novamente admirado com sua habilidade para parecer maior do que era e com a maneira pela qual transmitia a sensao de sedutora energia. "Monge est certo, Gage: o teu lugar do lado da cincia e da razo - o lado da revoluo." Precisei lembrar a mim mesmo de que ns dois ramos inimigos. "Tentareis me fuzilar outra vez?" "Era isso o que o meu exrcito tentava fazer ontem, no?", disse ele, com suavidade. "E tu e a tua feitiaria eltrica ajudaram para que levassem a melhor sobre ns."
"Depois que, seguindo as recomendaes do louco do Najac, procurastes me fuzilar ou afogar em jafa. L estava eu, encarando a eternidade, e, quando olho para cima, vos vejo a ler romances baratos!" "Os meus romances no so baratos, e tenho interesse no s pela cincia, mas tambm pela literatura. Acaso sabias que escrevi fico quando era mocinho? Eu sonhava em v-la publicada." Fiquei curioso, contra a vontade. "Histrias de amor ou de guerra?" "De guerra, claro - e de passionalidade. Uma das minhas favoritas se chamava O profeta mascarado. Era sobre um fantico muulmano do sculo viu que se acha o Mdi e vai guerra contra o califa. O cenrio proftico, no?" "E o que acontece?" "Os sonhos do heri so fadados ao fracasso depois que ele perde a viso em batalha. Todavia, para manter em segredo essa desgraa, esconde o rosto com uma mscara de prata reluzente. Ele diz a seus homens que precisa cobrir o rosto para que a radincia do Mdi no cegue aqueles que o contemplem. Acreditam nele. Mas o heri no tem como vencer, e a soberba no deixa que ele se renda. Assim, ordena aos seguidores que cavem uma gigantesca vala para destruir a investida inimiga. Depois, convida-os a um banquete e envenena a todos. Ele ento arrasta os corpos para a vala, pe fogo aos cadveres e lana-se tambm s chamas. Melodramtico, eu reconheo. A morbidez da adolescncia."
Era essa a imaginao que agora atuava na Terra Santa? "Que mal vos pergunte, o que pretendeis dizer com essa histria?" "'Vede os extremos a que a obsesso pela fama pode levar um homem!...', era esse o desfecho." Ele sorriu. "Proftico tambm." "Achas que a histria era autobiogrfica? S que no sou cego, Ethan Gage. De fato, fui amaldioado com a capacidade de enxergar bem demais. E uma coisa que estou vendo que agora ests no teu devido lugar, do lado da cincia que nunca devias ter abandonado. Tu te julgas diferente do conde Silano, mas os dois buscam o conhecimento - nesse sentido, sois, portanto idnticos. O mesmo vale para a mulher pela qual sois ambos atrados, tendo os trs uma curiosidade de gato. Eu poderia mandar fuzilar-te, mas mais saboroso deixar que os trs resolvam vosso mistrio, no achas?" Suspirei. "Pelo menos pareceis mais afvel que da ltima vez que nos encontramos, general." "Estou agora com uma viso mais clara do rumo que devo tomar, o que sempre acalma nossos nimos. No desisti de persuadir-te, americano. Ainda tenho esperanas de que reconstruamos o mundo para melhor." "Melhor como a matana de Jafa?" "Momentos de crueldade podem salvar milhes, Gage. Se deixei claro para os otomanos os riscos que a resistncia acarreta, foi para que esta guerra acabasse rpido. No fossem fanticos como Smith e Phlippeaux - um traidor da prpria ptria
-, eles j teriam se rendido, e nenhum sangue teria sido derramado. No te deixes encurralar em Acre pela insensatez desses homens. Vai, descobre o que puder com Silano e Astiza e toma uma deciso de cientista acerca do que fazer com isso. Lembrate: sou membro do Institut de France. Eu irei me sujeitar aos ditames da cincia - no verdade, doutor Monge?" O matemtico deu um leve sorriso. "Ningum fez mais do que tu, Napoleo, para unir a cincia poltica e tecnologia militar." "E ningum trabalhou mais pela Frana do que o nosso doutor Monge, a quem eu mesmo tenho servido de enfermeiro nas doenas que lhe sobrevm. O doutor Monge inquebrantvel! Aprende com ele, Gage!... Agora, dado o teu estranho histrico, havers de entender que preciso designar uma escolta para acompanhar-te. Creio que tendes interesse em ficar de olho um no outro." E das sombras surgiu Pierre Najac, parecendo to desalinhado e homicida quanto da ltima vez em que nos vramos. "S podeis estar brincando." "Muito pelo contrrio - guardar-te o castigo dele por no ter lidado mais inteligentemente contigo antes", disse Bonaparte. " ou no , Pierre?" "Eu o levarei at Silano", resmungou o homem. Eu no me esquecera das queimaduras e sovas. "Esse torturador no passa de um ladro. No preciso que ele me escolte." "Mas eu preciso", retrucou Napoleo. "Estou cansado de ver-te zanzando em todas as direes.
Ou vais com Najac, ou no vais de jeito nenhum. Ele tua passagem para aquela mulher, Gage." Najac cuspiu. "No te preocupes. Depois que acharmos o que quer que estejamos procurando, ters sua chance de matar-me - assim como terei a minha de acabar contigo." Olhei para o que Najac estava carregando. "Com o meu fuzil, no ters, no." Napoleo estava confuso. "Teu fuzil?" "Eu ajudei a faz-lo em Jerusalm, e ento esse bandido o roubou." "Eu te desarmei - eras meu prisioneiro!" "E agora sou teu aliado, quer eu goste, quer no. Devolve." "Pode esquecer!" "No vou ajudar se no devolveres." Bonaparte parecia estar se divertindo com aquilo. "Vais, sim, Gage. Tu o fars pela mulher - e o fars tambm porque no consegues desistir desse mistrio, tanto quanto no conseguirias desistir de um joguinho de cartas promissor. Najac te capturou, e ele est certo - teu fuzil presa de guerra." "A arma nem to boa", acrescentou o biltre. "Atira tal qual um bacamarte." "A preciso de uma arma depende do homem que a usa", repliquei. Eu sabia que o fuzil atirava bem como o diabo. "O que achaste da luneta?" "Uma idia estpida. Eu a removi." "Eu a ganhei de presente. Se estamos procurando um tesouro, eu preciso de luneta." " justo", arbitrou Napoleo. "D a luneta a ele." Najac obedeceu, de m vontade. "E a minha machadinha." Eu sabia que ele certamente estaria com ela. " perigoso deixar o
americano armado", avisou Najac. "A machadinha no arma, ferramenta." "Entrega a ele, Pierre. Se no consegues controlar o americano com uma dzia de homens, quando tudo o que ele tem uma machadinha, ento talvez eu deva mandar-te de volta para o trabalho de polcia." O homem fez careta, mas entregou a machadinha. "Isso a instrumento de selvagens, no de savants. Pareces um campnio carregando tal coisa por a." Avaliei o peso gratificante da machadinha. "E tu pareces um ladro brandindo o meu fuzil." "To logo descubramos esse maldito segredo, Gage, ns dois vamos mesmo acertar as contas de uma vez por todas." "Deveras." Meu fuzil j estava arranhado e marcado (Najac tinha com as armas o mesmo desleixo que com as roupas), mas ainda parecia to grcil e liso quanto uma perna de donzela. Eu ansiava por ele. "Faze-me um favor, Najac: escolta-me de uma distncia da qual eu no precise sentir o teu fedor." "Garanto que o farei de uma distncia muito boa para o fuzil." "As alianas raramente so tranqilas", gracejou Bonaparte. "Mas, agora, Najac tem o fuzil, e Gage, a luneta - podeis mirar juntos!" A brincadeira irritante me fez querer embaraar o general. "E imagino que desejais que eu me apresse?" Fiz um gesto em direo aos enfermos. "Apressar-te?"
"A peste. Ela deve estar deixando vossas tropas em pnico." Mas eu nunca conseguiria vex-lo. "A doena os faz sentir a urgncia. Ento, sim, apressa-te. Mas no te preocupes demasiadamente com os prazos de minha campanha. Esto em ao coisas maiores do que conheces. Tua busca diz respeito no s Sria, mas Europa. A Frana me aguarda."
- 16 Eu presumira que viajaramos direto para o monte Nebo com o bando de degoladores de Najac, mas ele riu quando mencionei isso. "Teramos de cortar caminho pelo exrcito otomano!" Desde que Napoleo invadira a Palestina, a Sublime Porta vinha reunindo tropas para deter os franceses. A Galilia, informou-me Najac, pululava de cavalaria turca e mameluca. A libertao trazida pelos franceses no estava sendo recebida com mais entusiasmo na Terra Santa do que o fora no Egito. Agora, o general Jean-Baptiste Klber, que desembarcara com Bonaparte na praia em Alexandria quase um ano antes, levaria sua diviso para varrer esses muulmanos. Meus companheiros e eu acompanharamos as tropas de Klber para leste, at o rio Jordo (que corre no sentido sul, do mar da Galileia para o mar Morto). Em seguida, iramos para o sul por conta prpria, acompanhando o legendrio Jordo at que ele passasse junto ao sop do monte Nebo.
Mohammad e Ned no ficaram satisfeitos por ter de viajar com os franceses. Klber era um comandante popular, mas tambm podia mostrarse irascvel e impulsivo. Porm, no tnhamos opo. Os otomanos estavam diretamente em nossa rota e sem nenhuma vontade de diferenciar entre um e outro grupo de europeus. Dependeramos de Klber para abrir caminho na marra. "O monte Nebo?!", exclamou Mohammad. "Aquilo para cabras e fantasmas!" "Acho que para tesouros tambm", disse Ned, com argcia. "Por que mais o nosso mgico iria se alistar com os franceses outra vez? E ento, chefe - vamos atrs das riquezas de Moiss?" Para um palerma, ele estava adivinhando as coisas certo demais. "Trata-se de um encontro de estudiosos da Antiguidade", respondi. "Uma mulher que conheci no Egito est viva e me espera l. Ela ir me ajudar a solucionar o mistrio que tentamos desvendar nos tneis de Jerusalm." ", mas eu soube que j tens outro brinquedo bonito", disse Ned. Lancei um olhar de desagrado a Mohammad, que deu de ombros. "O fuzileiro queria saber o que ocasionou a nossa expedio, efndi." Tirei o anel do bolso. "Ento ficai sabendo que isto d azar. Veio da tumba de um fara, e esse tipo de despojo sempre amaldioado." "Amaldioado?!", admirou-se Ned. "Isso a equivale aos soldos de uma vida inteira!" "Mas no me viste usando o anel, viste?"
", no combina com a tua tez", concordou Ned. "Espalhafatoso demais." "Pois bem, marcharemos com os franceses at que possamos fugir. Provavelmente estaremos em um ou dois arranca-rabos. Ainda estais dispostos?" "Entrar em briga sem nenhum ferro e nenhum pau-de-fogo, s com esse teu machado de cortar lingia...", comentou Ned. "E escolhes mesmo muito mal as escoltas, chefe. Esse tal de Najac tem jeito de quem cozinharia os prprios filhos se lhe pagassem uma pataca pelo ensopado... Mesmo assim, estou gostando de estar do lado de fora das muralhas. L eu me sentia preso." "E agora conhecereis a verdadeira Palestina", garantiu Mohammad. "O mundo inteiro quer possu-la." Pelo que eu podia ver, era justamente esse o problema. ramos aliados dos franceses? Ou seus prisioneiros? Exceo feita minha machadinha, estvamos desarmados. No tnhamos liberdade de movimentos, estando guardados tanto pelo bando de Najac quanto pelos batedores de Klber. Mas este nos mandou uma garrafa de vinho e seus cumprimentos, e nos deram boas montarias e nos trataram como convidados da expedio, deixando-nos cavalgar frente da coluna para escapar poeira mais densa. ramos como ces caros mantidos na coleira. Ned e Najac no gostaram um do outro logo de cara. O fuzileiro se lembrava da emboscada que resultara na morte de Tentwhistle, e o francs se ressabiava com a fora do gigante. Quando o
patife se aproximava de ns, sempre abria bem o casaco, para mostrar as duas pistolas enfiadas na faixa de cintura, alertando-nos de que no estava para brincadeiras. J Ned bradou que no via uma r to feia desde que topara com certa perereca mutante no tanque atrs do bordel mais sujo e vagabundo da base naval de Portsmouth. "Se o teu crebro tivesse a metade do tamanho do teu muque, eu talvez me interessasse pelo que tens a dizer", respondeu Najac. "E, se o teu pinto tivesse pelo menos metade do tamanho dessa tua lngua solta, no precisarias ficar procurando tanto por ele toda vez que baixas as calas", rebateu Ned. Apesar das altercaes, eu tambm estava gostando de termos podido sair de Acre. A Terra Santa desperta uma paixo incomum. No norte, bem irrigada e ostenta o verde da primavera. O trigo e a cevada crescem como capim, e as papoulas e mostardeiras acrescentavam a isso largas pinceladas de vermelho e amarelo. Havia ainda o arroxeado do linho, o dourado dos crisntemos em buqus naturais de caules entrelaados, o branco dos lrios. Seria aquele o jardim de Deus? Longe do mar, o cu tinha o azul do manto da Virgem, e a luz realava a mica e o quartzo como se estes fossem minsculas jias. "Vede, uma escrevedeira-amarela", disse Mohammad. "Esse pssaro sinal de que o vero est chegando." A diviso de Klber era uma cobra azul a serpear pelo den, com a bandeira tricolor anunciando nosso fantstico irromper no Imprio Otomano. Os
rebanhos de ovelhas se abriam como um mar para que passssemos. Peas de artilharia ligeira sacolejavam ao sol, e seu bronze parecia piscar como se transmitisse alguma mensagem militar. Carroes cobertos de lona branca moviam-se a balanar. Em algum lugar a nordeste, ficava Damasco; e, ao sul, Jerusalm. Os soldados estavam animados, satisfeitos em escapar do tedioso trabalho de cerco, e a diviso dispunha de dinheiro suficiente (apresado em Jafa) para comer bem e no precisar saquear pelo caminho. Ao final do segundo dia, subimos uma derradeira serra, e avistei o mar da Galilia, uma sopa azul numa imensa tigela verde e castanha, l longe, l embaixo. Era um vasto lago, enevoado e sagrado, abaixo do nvel do mar. No descemos. Em vez disso, seguimos por espinhaos para o sul, rumo a clebre Nazar. O lar do Salvador um lugar poeirento e desanimado. A rua principal uma trilha de carroas, sem pavimentao, onde o trfego consiste, sobretudo, de cabras. Uma mesquita e um mosteiro franciscano ficam bem de frente um para o outro, como se vigiassem um ao outro. Pegamos gua no poo de Maria e visitamos a igreja da Anunciao, uma gruta ortodoxa com o tipo de quinquilharia que provoca indigesto nos protestantes. Em seguida, marchamos novamente para o sul, at o rico e indolente Vale de Jezreel, celeiro da antiga Israel e via de passagem para exrcitos durante trs mil anos. O gado pastava em morrotes cobertos de capim que outrora eram grandes fortalezas. Carroas seguiam com
estrpito por estradas que as legies romanas haviam percorrido. Meus companheiros se impacientavam com aquele sinuoso trajeto militar, mas eu sabia que estava vivenciando o que poucos americanos podem ter esperanas de um dia ver - a Terra Santa! Ali, segundo a opinio geral, os homens se aproximavam de Deus. Apesar do atesmo oficial da revoluo, alguns dos soldados faziam o sinal-da-cruz ou murmuravam preces nos lugares santos. Entretanto, quando a noite caa, eles afiavam as baionetas, com um rudo to familiar quanto o de grilos quando amos dormir. Por mais ansioso que estivesse em ver Astiza, eu tambm me sentia apreensivo. Afinal, no conseguira salv-la. Ela estava mais uma vez enredada com o ocultista Silano. Minhas alianas polticas eram agora mais confusas do que nunca, e Miriam me esperava em Acre. Ensaiei o que dizer a todo mundo, mas as falas soavam banais. Entrementes, Mohammad avisava que aqueles trs mil soldados de Klber no seriam suficientes. "Em todas as aldeias, correm rumores de que os turcos esto se concentrando contra ns, com mais homens do que o nmero de estrelas no cu. H as tropas de Damasco e Constantinopla, os mamelucos sobreviventes do bei Ibrahim e os combatentes dos montes da Samaria. Os xiitas esto se unindo aos sunitas. Chegam mercenrios de toda a parte, desde o Marrocos at a Armnia. loucura ficarmos com estes franceses eles esto condenados."
Gesticulei na direo dos canalhas de Najac. "No temos escolha." O general Klber, claro, tentava achar a tal hoste turca, no fugir a ela, e esperava flanque-la descendo das elevaes nazarenas. "A passionalidade governa, e nunca governa com sabedoria", gostava de dizer o velho Ben. E Klber, competente para um general, irritara-se um ano inteiro como subordinado de Napoleo. Embora Klber fosse o mais velho, o mais alto, o mais forte e o mais experiente, os louros da campanha egpcia haviam sido conquistados pelo corso. Era Bonaparte quem tinha destaque nos comunicados que se enviavam para a Frana, Bonaparte quem ia enriquecendo com o butim, Bonaparte quem possibilitava grandes descobertas arqueolgicas, Bonaparte quem regia a moral do exrcito. Pior: durante a batalha de El-Arish, no incio da campanha palestina, a diviso de Klber tivera desempenho no mais que mediano, ao passo que Reynier, rival de Klber, ganhara elogios de Napoleo. No importava que Klber ostentasse a estatura, o porte e a cabeleira cacheada de heri militar que faltavam a Bonaparte, nem importava que ele atirasse e montasse melhor, pois seus colegas se submetiam mesmo era ao arrivista. Nenhum dos generais reconheceria isto, mas Bonaparte, apesar de todos os defeitos, era o superior intelectual deles, o astro solar em redor do qual orbitavam instintivamente. Aquela incurso independente para destruir os reforos otomanos era, portanto, a chance de Klber para brilhar. Assim como Bonaparte levantara
acampamento no meio da noite para atacar os mamelucos nas Pirmides antes que estes estivessem plenamente preparados, tambm Klber resolveu partir no escuro para surpreender os turcos. "Loucura!", disse Mohammad. "Estamos longe demais para peg-los de surpresa. Encontraremos os turcos justamente quando o sol estiver se levantando e nos ofuscando." De fato, a marcha em torno do monte Tabor se mostrou muito mais longa do que Klber previra. Em vez de atacarem s duas da manh como planejado, os franceses toparam com as guardas avanadas turcas s na alvorada. Quando formamos fileiras para o assalto, nossa presa j tivera tempo de tomar o desjejum. Logo se viram enxames de cavalaria turca correndo para l e para c, e a ambio de Klber comeou a ser moderada pelo bom senso. O sol nascente revelou que ele conduzira trs mil homens para atacarem vinte e cinco mil. Eu realmente tenho talento para escolher o lado errado. "Ento o anel d azar mesmo", resmungou Mohammad. "Ser que Napoleo ainda est tentando executar-vos, efndi, s que agora de um jeito mais complicado?" Ns trs ficamos de boca aberta ante a gigantesca e ameaadora horda de cavalaria, cujos animais eram meio engolfados pelo trigo alto da primavera enquanto seus ginetes disparavam inutilmente mosquetes e pistolas para o ar. A nica coisa que impediu que fssemos aniquilados de pronto foi a confuso do inimigo - l, ningum parecia estar no
comando. O exrcito turco era uma colcha de retalhos vindos de cantos demais do imprio. Vamos a gama policromtica dos diversos regimentos otomanos, com grandes comboios de carroes atrs deles, e ainda tendas coloridas como numa grande quermesse. Se queres um espetculo vistoso, v a guerra antes que se iniciem os combates. "Parece uma repetio da Batalha das Pirmides", disse eu, tentando tranqiliz-los. "Vede a desordem entre eles. H tantos soldados que no conseguem se organizar." "Eles no precisam de organizao", grunhiu Big Ned. "S precisam vir em bando e nos pisotear. Ah, como eu queria estar numa fragata! E l mais limpo, hein?" Mas, embora Klber tivesse se precipitado ao subestimar seus oponentes, ele era um ttico hbil. Fez-nos retroceder para um monte chamado Djebel-el-Dahy, de modo que estivssemos no terreno mais elevado. Perto do cume, havia um castelo em runas, do tempo dos cruzados, sobranceiro ao largo vale. O general francs ps cem de seus homens para guarnecer o que restava das muralhas; os restantes formaram dois quadrados de infantaria, um comandado pelo prprio Klber e o outro pelo general Jean-Andoche Junot. Esses quadrados eram como fortins humanos, com cada soldado voltando-se para um lado e as fileiras cobrindo as quatro direes, de modo que era impossvel flanque-los. Os sargentos com os soldados veteranos se punham atrs das tropas mais inexperientes, para impedir
que elas recuassem e pusessem a formao a perder. Essa ttica desconcertara os mamelucos no Egito e estava prestes a fazer o mesmo com os otomanos: de qualquer lado que atacassem, deparavam com uma linha firme de mosquetes e baionetas. Nosso comboio de abastecimento e meu trio, com os homens de Najac, estavam no centro. Os turcos, ridiculamente, deram a Klber tempo para formar fileiras e depois realizaram cargas de sondagem, galopando at perto de nossos homens ao mesmo tempo que davam gritos de guerra e brandiam espadas. Os franceses permaneceram absolutamente quietos at que soou a ordem: "Fogo!" Fez-se um claro e um estrondo de disparos, com uma grande nuvem de fumaa branca, e os cavalarianos inimigos mais prximos foram derrubados das montarias. Os outros se afastaram para longe. "Com a breca! Eles tm mais peito do que juzo!", disse Ned, forando a vista. O sol continuava subindo. Cada vez mais cavaleiros otomanos afluam para o ameno vale abaixo de ns, ululando e agitando lanas. Periodicamente, algumas centenas investiam contra nossos quadrados. Ento, disparava-se outra salva de mosquete, e os resultados eram os mesmos. Logo se formou um semicrculo de mortos nossa volta, com seus trajes coloridos a lembrar flores ceifadas. "Que diabos eles esto fazendo?", resmungou Ned. "Por que no atacam de verdade?" "Talvez estejam s esperando que fiquemos sem gua e sem munio", disse Mohammad.
"E pretendem fazer isso levando todo o nosso chumbo no bucho?!" Acho que os otomanos estavam aguardando que sassemos de formao e debandssemos (seus adversrios anteriores certamente haviam sido menos resolutos). Mas os franceses no tremeram; eriaram-se como um porco-espinho, e os turcos no conseguiam fazer que seus cavalos se achegassem. Klber continuava montado, no dando ateno ao silvo das balas, cavalgando lentamente para cima e para baixo entre as fileiras e encorajando os homens. "Agentai firme", instrua ele. "Chegar ajuda." Ajuda? Bonaparte estava muito longe, em Acre. Aquilo seria mesmo alguma espcie de ardil otomano, deixando-nos suar e ficar aflitos at que eles viessem carga para valer? No entanto, quando olhei pela luneta que sir Sidney me dera, comecei a duvidar que tal ataque ainda ocorresse. Muitos turcos se detinham, incitando outros a virem nos enfrentar primeiro. Alguns se esparramavam no capim para comer, e outros dormiam - no auge da batalha! Mas, medida que o dia avanou, nossa resistncia foi se minando, e a confiana deles, aumentando. A plvora escasseava. Comeamos a refrear nossas salvas at o ltimo segundo, procurando garantir ao mximo que as preciosas balas atingissem de fato os alvos. Os turcos perceberam nossa apreenso. Davam um grande urro, esporeavam, e ondas de cavalaria vinham contra ns como a rebentao na praia.
"Agentai... Agentai... Deixai que venham... Fogo! Agora, a fileira de trs - fogo!" Cavalos davam relinchos lancinantes e desabavam. Janzaros de coloridssima indumentria tombavam em meio a nuvens de terra. Os ginetes mais destemidos continuavam esporeando, contornando os camaradas cados - mas, quando chegavam linha de baionetas, suas montarias se empinavam, sem inteno de seguir adiante. Pistolas e mosquetes produziam lacunas em nossas fileiras, mas a mortandade era muito pior no lado turco. Tantos cavalos mortos j atulhavam os campos que os turcos estavam tendo dificuldade em arremeter atravs deles para chegar a ns. Ned, Mohammad e eu ajudvamos a arrastar os franceses feridos para o centro do quadrado. Agora era meio-dia. Os feridos gemiam pedindo gua, e o resto de ns ansiava pela mesma coisa. A elevao em que estvamos parecia to seca quanto uma tumba egpcia. O sol interrompera no pice sua trajetria pelo cu, parecendo que nos castigaria para sempre, e os turcos escarneciam uns dos outros para atiar os companheiros a nos atacarem. Uma centena de franceses j cara, e Klber ordenou que os dois quadrados se unissem num s, engrossando as fileiras e dando aos homens uma confiana renovada e extremamente necessria, pois parecia que todos os muulmanos do mundo haviam se juntado contra ns. Os campos tinham sido pisoteados at ficar apenas terra, e levantavam-se grandes colunas de poeira. Os turcos tentaram tomar de assalto o cume do Djebel-el-Dahy e vir sobre ns da parte de cima,
mas os chasseurs (infantaria ligeira) e carabiniers (infantaria montada) que estavam no velho castelo os obrigaram a dispersar-se, e o inimigo desceu inutilmente em ambos os lados de nossa formao, ainda deixando que lhe diminussemos o contingente ao atirarmos contra seus flancos. "Agora!" Disparava-se uma salva, fazendo estrondo; ela era ofuscante e acre, por causa da fumaa, com pedacinhos de bucha esvoaando como neve. Montarias relinchavam desesperadamente, sem cavaleiros, e galopavam para longe. Depois dentes rasgavam o papel dos cartuchos para despejar a valiosa plvora nos canos dos mosquetes. O cho ficara branco por tanto papel descartado. Pelo meio da tarde, minha boca estava absolutamente seca. Moscas zuniam sobre os mortos. Alguns soldados desmaiaram por terem ficado tempo demais em p no mesmo lugar. Embora os otomanos parecessem inoperantes, no podamos ir a lugar nenhum. Presumi que a coisa terminaria quando todos morrssemos de sede. "Mohammad, quando eles enfim nos atropelarem, finge-te de morto at tudo acabar. Assim, poders ressurgir como muulmano, mais um dentre eles. No h necessidade de teres o mesmo destino que europeus malucos." "Al no manda um homem abandonar os amigos", retrucou ele, grave. Nisso, ergueu-se um brado novo - homens diziam ter avistado o brilho de baionetas no vale a oeste. "L vem o Pequeno Caporal!"
Klber se mostrava incrdulo. "Como Bonaparte conseguiria chegar aqui to depressa?" Fez um gesto para mim. "Vinde. Trazei vossa luneta naval." Meu telescpio ingls se revelara capaz de oferecer uma mirada mais ntida que a das lunetas-padro do exrcito francs. Segui Klber para fora do aconchego do quadrado, at a encosta exposta do monte. Passamos por uma roda de muulmanos cados, alguns ainda gemendo, seu sangue era uma mcula no trigo verde. As runas do castelo dos cruzados proporcionavam uma vista panormica. Para indignao, os turcos pareciam ainda mais numerosos agora que eu enxergava mais longe por sobre suas fileiras. Milhares trotavam para cima e para baixo, gesticulando como se discutissem acaloradamente o que fazer. Centenas de seus companheiros de armas j cobriam o monte abaixo de ns. Na distncia, viam-se suas tendas, suprimentos e milhares de vivandeiros e outros paisanos. ramos como uma rocha azul num mar do vermelho, branco e verde otomanos. Com certeza, bastaria uma nica e enrgica carga de cavalaria para romper nossa formao! Os homens ento debandariam, e seria o fim. S que isso ainda no acontecera. "L", apontou Klber. "Vedes baionetas francesas?" Forcei a vista at os olhos doerem. A oeste, o capim alto formava ondas, mas eu no sabia se isso se devia ao vento ou passagem de alguma infantaria - a terra verdejante engolira as manobras dos exrcitos. "Pode ser uma coluna
francesa, pois o capim est se movendo. Mas, como j dissestes, de que maneira ela poderia ter chegado to depressa?" "Morreremos de sede se permanecermos aqui", disse Klber. "Ou homens desertaro e acabaro degolados. No sei se h reforos vindo para c, mas vamos descobrir." Ele desceu trotando para o quadrado, comigo atrs. "Junot, comea a formar colunas. Partamos ao encontro daqueles que vm nos render!" Os homens deram vivas, torcendo (contra as probabilidades) para que no estivessem apenas se abrindo para serem dominados pela cavalaria turca. Esta, quando viu o quadrado dissolver-se em duas colunas, ficou mais animada: ali estava a chance de precipitarem-se sobre nossos flancos e nossa retaguarda. Ouvamos seus brados e a fora de suas cornetas. "Em frente!" Comeamos a marchar morro abaixo. Brandiram-se e agitaram-se lanas turcas. E ento um canho foi disparado ao longe. As diversas peas de artilharia tm sons muito distintos, e aquele estrondo eficiente era to francs quanto um pedido feito aos gritos num restaurante parisiense. Olhamos e vimos uma coluna de fumaa ser carregada pelo ar. Homens choraram de alvio - o socorro estava mesmo chegando! Os franceses comearam a dar vivas e at cantar. A cavalaria inimiga hesitou, perscrutando o oeste. As tricolores se agitavam ao descermos com passo pesado e firme o Djebel-el-Dahy, como se estivssemos em parada.
E ento comeou a subir fumaa do campo inimigo. Ouviram-se disparos, berros abafados e o soar triunfante dos clarins franceses. A cavalaria de Napoleo irrompera na retaguarda turca e estava semeando o pnico. Suprimentos preciosos comeavam a ser consumidos pelas chamas. E, com um estrondo, a munio armazenada explodiu. "Calma!", disse Klber a seus homens. "No saiais de formao!" "Quando eles vierem contra ns, abaixai-vos e disparai s quando receberdes a ordem!", acrescentou Junot. Vimos uma lagoa junto aldeia de Fula. Nossa empolgao aumentou: havia ali um regimento otomano, parecendo irresoluto. Agora nossos oficiais galopavam para cima e para baixo pelas colunas, dando ordens para que se preparasse uma investida. "Atacar!" Dando vivas, os franceses, atiados, correram o resto do caminho morro abaixo, na direo da infantaria da Samaria que guarnecia a aldeia. Houve disparos, baionetas e coronhadas, e ento o inimigo se ps a correr em debandada. Entrementes, turcos fugiam tambm do que quer que houvesse surgido do oeste. Em minutos, miraculosamente, um exrcito de vinte e cinco mil homens rua em pnico, tendo de escapar para leste por causa de alguns milhares de franceses. A cavalaria de Bonaparte passou galopando por ns, perseguindo o inimigo rumo ao Vale do Jordo. Otomanos foram caados e mortos por todo o caminho at o rio.
Mergulhamos na lagoa de Fula, matando a sede, e depois ficamos encharcados e pingando como bbados, com as bolsas de cartuchos j vazias. Napoleo chegou a galope, radiante como o salvador que de fato era, com os cales pardos de poeira. "Eu j desconfiava que fosses te meter em confuso, Klber!", gritou. "Parti para c ontem, depois de ter lido os relatrios!" Sorriu. "Eles fugiram s de ouvir um tiro de canho!"
- 17 Com seus instintos para a poltica, Bonaparte de imediato batizou nosso quase desastre como Batalha do Monte Tabor (um pico muito mais imponente e pronuncivel que o modestamente ascendente Djebel-el-Dahy, ainda que distantes vrias milhas um do outro) e o proclamou "uma das vitrias mais desproporcionais da histria militar - quero que todos os detalhes sejam transmitidos a Paris o mais depressa possvel". Eu tinha certeza de que ele no se mostrara to rpido para dar a notcia do massacre de Jafa. "Mais algumas divises, e poderemos marchar para Damasco", disse Kleber, inebriado com a inacreditvel vitria. Em vez de sentir inveja, ele agora parecia deslumbrado com o resgate providencial que seu comandante levara a efeito. Bonaparte operava milagres. "Mais algumas divises, general, e poderamos marchar para Bagd e Constantinopla", emendou
Napoleo. "Maldito Nelson! Se ele no tivesse destrudo a minha esquadra, eu seria senhor da sia!" Klber assentiu. "E se Alexandre no tivesse morrido na Babilnia, nem Csar sido apunhalado, nem Rolando se adiantado tanto..." "Por falta de um cravo de ferradura, perdeu-se a batalha...", comecei. "O qu?" "S uma coisinha que meu mentor, Benjamin Franklin, costumava dizer - ou seja, que o que nos derruba so as pequenas coisas. Ele acreditava em no se descuidar dos detalhes." "Franklin era sbio", disse Napoleo. "A escrupulosa ateno aos detalhes essencial aos soldados. E teu mentor era um verdadeiro savant. Ele ficaria ansioso em solucionar mistrios antigos, no em proveito prprio, mas para o bem da cincia. Razo pela qual vais agora encontrar Silano, no mesmo, Gage?" "Parece que tirastes toda a oposio do caminho, general", respondi cordialmente. Bonaparte devastava exrcitos tal qual Moiss dividia as guas. "Todavia, continuamos na orla da sia, a milhares de milhas da ndia e de vosso aliado l, Tippu Sahib. Ainda no tomastes nem Acre. Com to poucos homens, como pretendeis imitar Alexandre?" Bonaparte franziu o cenho. No gostava de que duvidassem. "Os macednios no eram muito mais numerosos. E Alexandre teve tambm de fazer um cerco, em Tiro." Pareceu pensativo. "Mas o nosso mundo maior do que era o deles, e desenrolam-
se acontecimentos na Frana. Tenho muitas coisas a exigir minha ateno, e tuas descobertas talvez sejam mais importantes em Paris do que aqui." "Na Frana?", perguntou Klber. "Pensas em Paris quando ainda estamos lutando nesta cloaca?" "Eu procuro pensar em tudo, sempre - motivo pelo qual pensei em trazer socorro tua expedio antes mesmo que precisaste disso, Klber", retrucou Bonaparte, secamente. Deu um tapa no ombro do general que, com sua cabeleira, avultava-se acima dele. "Fica tranqilo, pois o que estamos fazendo tem um propsito. Cumpre tua obrigao, que ns dois ascenderemos juntos!" Klber olhou para ele com desconfiana. "Nossa obrigao aqui, no na Frana. ou no assim?" "E a obrigao desse americano terminar enfim aquilo para que o trouxemos - solucionar o mistrio das pirmides e dos antigos com o conde Alessandro Silano! Cavalga sem descanso, Gage, porque o tempo urge para todos ns." "Estou mais ansioso do que qualquer um para voltar para casa", respondi. "Ento acha esse teu livro." Ele me deu as costas e saiu a passos largos e pomposos com seu estadomaior, batendo o dedo em riste enquanto disparava ordens. Quanto a mim, senti um desnimo: era a primeira vez que eu o via mencionar o livro. Os franceses, obviamente, sabiam mais do que eu tinha esperana que soubessem. E Astiza lhes contara mais do que eu desejara.
Assim, l estvamos ns, instrumentos de Silano e seu desonrado Rito Egpcio. Os templrios tinham descoberto alguma coisa e sido mortos na fogueira por torturadores que ansiavam saber o que era aquele segredo. Eu s esperava que meu destino fosse mais benigno. No queria levar meus companheiros destruio. Jantamos carnes e pastis turcos capturados, procurando ignorar o fedor que j emanava do escuro campo de batalha. "Bem, ento isso", comentou Big Ned, sombrio. "Se uma horda como aquela no agenta uns poucos franceses, que chance tm os meus camaradas l em Acre? Vai ser outro maldito massacre, igual a Jafa." "S que Acre tem o Aougueiro", disse eu. "Ele no deixar ningum correr nem render-se." "E tem canhes, Phlippeaux e Sidney Smith", completou Mohammad. "No te preocupes, fuzileiro. A cidade agentar at voltarmos." "Bem a tempo da pilhagem pelos franceses." Ned olhou para mim maliciosamente. Eu sabia o que se passava pela cabea do fuzileiro: achar o tesouro e fugir. No posso dizer que eu discordava de todo. A cavalaria francesa ainda estava perseguindo os remanescentes do desbaratado exrcito otomano quando nos pusemos a acompanhar seu rastro de terra e vegetao pisoteadas e descemos ao Vale do Jordo. Agora estvamos alm dos campos, em territrio seco que s sustentava cabras, com exceo dos pomares e prados ao longo do rio. Grande quantidade de santos seguira aquele curso
de rio, e Joo Batista atuara em algum lugar daquelas margens legendrias, mas cavalgvamos como uma quadrilha. A dzia de rabes de Najac ia armada at os dentes, com fuzis, mosquetes, pistolas e espadas. Havia ainda outros malfeitores, e avistamos dois bandos diferentes que se retiravam furtivamente, como lobos decepcionados, aps terem olhado nosso armamento. No rio, tambm encontramos corpos de soldados otomanos afogados ou baleados, inchados como bales de pano. Ficamos bem longe deles, para evitar a fedentina, e cuidamos de s pegar gua nas bicas. medida que avanvamos para o sul, o vale se tornava cada vez mais rido, e os navios britnicos que Ned chamava de lar pareciam estar a dez mil milhas dali. Certa noite, o fuzileiro veio rastejando para cochichar comigo. "Chefe, vamos largar esses bandidos e continuar por conta prpria", instou-me. "Esse Najac fica de olho em ti tal qual o corvo esperando para bicar o olho do defunto. A gente poderia vestir esses patifes de coroinhas que eles ainda assim assustariam a catedral inteira." ", eles tm a moralidade de deputados e a higiene de escravos das gals - mas precisamos deles para nos conduzir mulher que usava o anel de rubi, lembra-te?" Ned resmungou, de modo que tive de tranqiliz-lo. "No penses que j no possuo poderes eltricos. Conseguiremos o que viemos buscar e daremos o troco a essa corja."
"No vejo a hora de poder arrebent-los. Odeio franceses. rabes tambm, exceo feita ao Mohammad." "Eles no perdem por esperar, Ned. No perdem mesmo." Passamos a trote por uma trilha que Najac afirmou levar a Jeric. No vi nada dessa aldeia, e a regio era to estril que ficava difcil acreditar que algum dia houvessem construdo ali uma cidade de imensas muralhas. Lembrei-me do ferreiro e senti outra vez culpa por ter abandonado Miriam. Ela merecia coisa melhor. O mar Morto era o que se deduz do nome: uma margem incrustada de sal e uma gua salobra, de um azul brilhante, que se estendia at o horizonte. Nenhuma espcie de ave se juntava nos baixios, e nenhum peixe vinha tona. O ar do deserto era denso, nevoento, quente e mido, como se em dois dias houvssemos avanado dois meses, passando da primavera ao vero. Eu compartilhava do desassossego de Ned. Aquela era uma terra estranha e irreal, que gerava profetas e loucos em demasia. "Jerusalm fica para l", disse Mohammad, apontando para oeste. Depois, girando o brao na direo oposta, explicou: "L est o monte Nebo". Montanhas se erguiam precipitadamente da margem do mar Morto, como se tivessem pressa em fugir salmoura. A mais alta estava tanto para pico como para serra, salpicada de pinheiros-dealepo. Em ravinas rochosas, que veriam gua s nas chuvas, florescia o rosa dos oleandros.
Najac, que pouco falara durante a jornada, fez sinais com um espelhinho, que reluziu ao sol da manh. Aguardamos, mas nada aconteceu. "Esse ladro desgraado fez que a gente se perdesse", queixou-se Ned. "Sejas paciente, cabea-dura", rebateu o francs, que usou o espelhinho mais uma vez. Nisto, uma coluna de sinal de fumaa se ergueu do Nebo. "L!", exclamou aquele que nos escoltava. "A morada final de Moiss!" Esporeamos e comeamos a subir. Era um alvio sair do Vale do Jordo para ares menos enfasteantes. Sentimos a refrescncia, e a encosta comeou a recender a pinheiro-de-alepo. Tendas bedunas haviam sido armadas nos terraos da montanha, e eu via meninos rabes de manto preto pastorearem rebanhos de cabras que zanzavam para l e para c. Subimos por uma trilha de caravana, com os cascos fazendo chape na terra macia e os cavalos bufando ao passarem por esterco de camelo. Passaram-se quatro horas, mas enfim alcanamos o topo. A nossas costas, do outro lado do Jordo, avistvamos de fato a Terra Prometida, que dali parecia parda e brumosa, sem em nada evocar leite e mel. O mar Morto era um espelho azul. Adiante, no vi nenhuma caverna que pressagiasse tesouros. Havia, sim, uma tenda francesa num rebaixo, com a relva verde ao lado dele indicando uma fonte. Ali perto, estavam as runas baixas de alguma coisa, talvez uma antiga igreja. Vrios homens nos esperavam junto a um fio de fumaa de fogueira, os resqucios do fogo
que se acendera para sinalizar para ns. Estaria Silano entre aqueles homens? Antes que eu pudesse verificar isso, avistei uma pessoa sentada num afloramento rochoso abaixo das runas, longe dos homens. Sa com meu cavalo da fila que formramos e desmontei. Era uma mulher, trajada de branco, que vinha observando nossa chegada. Quando me aproximei, ela se ps de p, com as tranas longas e negras tal qual eu me recordava, um leno branco cado, protegendo-a do sol. Tecido e cabelo eram soprados de leve pela brisa da montanha. A beleza daquela mulher, vvida luz do cume, mostrava-se mais tangvel do que me preparara para encontrar. Eu transformara Astiza num fantasma, e agora l estava ela, em carne e osso. Tendo-a talvez idealizado na lembrana, eu viera contando com a possibilidade da decepo, mas no: o que eu imaginava continuava l, a esbeltez grcil e equilibrada, os lbios e mas dignos de uma Clepatra, os lustrosos olhos escuros. As mulheres so flores, trazendo encanto ao mundo, e Astiza era um ltus. Ela, entretanto, envelhecera. No envelhecera mal ( equvoco achar que a idade seja um insulto s mulheres, pois a beleza delas simplesmente adquire mais carter), mas os olhos estavam mais fundos, como se Astiza tivesse visto ou sentido coisas que preferiria no ter encarado. Ser que eu mudara da mesma maneira? Qual a ltima vez que eu me olhara no espelho? Levei a mo ao rosto e senti a barba de vrios dias, e, de repente,
fiquei cnscio de minhas roupas, sujas da viagem. O vestido estava sujo de poeira e repartido para que ela pudesse cavalgar. Astiza usava botas de cavalaria, to pequenas que talvez tivessem sido tomadas emprestadas a algum garoto tamborileiro do exrcito de Bonaparte. Estava ainda mais esguia, com corpo de bailarina - mas todos ns havamos emagrecido. A cintura era cingida por uma corda de seda, que mostrava uma pequena adaga curva e uma bolsa de couro. Sobre a pedra onde se sentara, via-se um odre. Hesitei, esquecendo o que ensaiara dizer. Era como se ela tivesse ressuscitado. Acabei dizendo: "Mandei perguntarem por ti". Parecia um pedido de desculpas, canhestro e nada eloqente - mas eu estava mesmo constrangido, tendo flutuado para longe no balo quando ela no pudera fazer o mesmo. "Disseram-me que desapareceras." "Trouxeste o meu anel?" Era um jeito frio de iniciar a conversa. Saquei a jia, cujo rubi brilhava. Astiza o arrebatou e o enfiou rpido na bolsa de couro da cintura, como se o anel estivesse pelando. Ela ainda o acha amaldioado, pensei. "Eu o usarei numa oferenda", explicou. "A sis?" "A todos Eles, inclusive Tot." "Temi que tivesses morrido. como um milagre pareces um anjo ou esprito." "Ests com os serafins?" Sua frieza era desconcertante. "Vivi um inferno para achar-te, e s queres saber de jias?" "Ns precisamos deles."
Percebi que Astiza estava fazendo grande esforo para no demonstrar emoo. "Ns quem?" "Ethan, foi Alessandro quem me salvou." Bem, aquilo doeu, e doeu muito. Astiza se dependurara no cabo do balo, e Silano se agarrara a seu corpo para que ela no pudesse subir cesta. Ento, Astiza cortara o cabo com minha machadinha, de maneira que o balo subisse para longe do alcance dos mosquetes. Eu fracassara em pux-la para a cesta - e em livrarme do feiticeiro aristocrata que antes fora seu amante. E agora estavam juntos de novo? Em caso afirmativo, eu no conseguia atinar por que diabos tinham mandado me buscar. Se tudo o que queriam eram quinquilharias de ouro, eu podia tlas mandado por correio. "Aquele desgraado quase te matou. A nica razo pela qual no conseguiste escapar comigo foi que ele no deixou." Astiza desviou o olhar para longe, para o vale, e seu tom se mantinha inexpressivo. "No me lembro do impacto, s da queda. A ltima coisa de que me recordo do teu rosto, olhando para baixo da beira da cesta. Foi a coisa mais terrvel que tive de fazer na vida. Quando cortei o cabo, vi uma centena de emoes em teus olhos." "O horror era uma delas, se bem me lembro." "Medo, vergonha, arrependimento, raiva, saudade, pesar... e alvio." Eu ia objetar. Em vez disso, enrubesci, porque era verdade. "Quando usei aquela machadinha, Ethan, eu te libertei do nus que te impuseram - a carga
de salvaguardar o Livro de Tot. Eu te libertei de mim. Mesmo assim, no voltaste para a Amrica." "Astiza, no podes cortar com machadinha a corda que nos une." Ento ela se voltou e me encarou de novo, com olhar ardente e corpo trmulo, e eu soube que Astiza forcejava para no correr para meus braos. Por que ela hesitava em faz-lo? De novo, eu no estava entendendo nada. E no podia tentar o contato, pois primeiro havia um muro invisvel, de obrigao e arrependimento, que precisvamos derrubar. No podamos comear direito porque tnhamos coisas demais a dizer. "Quando acordei, passara-se um ms, e eu estava com Silano, sendo tratada em segredo. Os sbios franceses tinham lhe dado instalaes de estudo no Cairo. Enquanto ia convalescendo do quadril fraturado, Silano continuava lendo todo e qualquer fragmento de escrita antiga que conseguissem achar para ele. Reuniu bas e mais bas de livros. Eu at o vi vasculhar manuscritos enegrecidos que s podem ter vindo da biblioteca queimada de Enoque. Silano no desistira, nem por um momento sequer. Sabia que no saramos da pirmide com algo de til e desconfiava que houvessem levado o livro para outro lugar. Por isso, mais uma vez me aliei a ele, para us-lo de modo que eu pudesse alcanar-te de novo. Eu tinha esperana de que ainda estivesses no Egito ou em algum lugar prximo." "Disseste que presumias que eu fosse para a Amrica."
"Reconheo que fui assaltada pela dvida - eu sabia que talvez fugisses. Depois ouvi que andavam fazendo perguntas, e o meu corao acelerou. Silano fez Bonaparte encarcerar o verdadeiro mensageiro e mandar um dos prprios homens a Jerusalm para desestimular-te. Mas isso no funcionou. E, quando o conde comeou a elaborar outro plano e Najac partiu para espionarte, percebi que o destino conspirava para nos reunir outra vez. Solucionaremos este mistrio, Ethan, e acharemos o livro." "Para qu? No pretendes apenas reenterr-lo?" "Ele tambm pode ser usado para o bem. O Egito foi outrora um paraso de paz e conhecimento. O mundo pode voltar a ser assim." "Astiza, j conheces o mundo em que vivemos. Ser que a queda te fez perder todo o juzo?" "No aclive logo acima de ns, h uma igreja, hoje em runas. Ela assinala o lugar onde Moiss talvez tenha um dia se assentado, contemplando a Terra Prometida e sabendo que, apesar de todo o sacrifcio que fizera, jamais poderia adentr-la - o velho deus da tua cultura era cruel. A construo em si remonta aos tempos bizantinos. Achamos ali a tumba de um cavaleiro templrio, tal qual os estudos de Silano indicaram. Nessa tumba, havia ossos e, escondido num fmur, um mapa medieval." "Vs despedaastes os ossos de um morto?" "Silano encontrara meno dessa possibilidade quando estudou em Constantinopla. Aps a destruio dos templrios na Europa, alguns fugiram para esta parte do mundo, Ethan. Haviam
descoberto algo em Jerusalm e o esconderam numa estranha cidade que aquele mapa descreve. Silano tambm descobriu algo mais, uma coisa que pode estar relacionada eletricidade e ao teu mentor Franklin. Depois soubemos que foras executado em Jafa, mas que o teu corpo sumira. Em desespero de causa, dei o anel a Monge, querendo saber se ele toparia contigo. E agora..." "Algum dia amaste Alessandro Silano?" Astiza hesitou apenas um momento antes de responder. "No." Fiquei ali em p, ansioso por ouvir mais antes de ousar fazer a pergunta seguinte, esta mais lgica. "No me orgulho disso", continuou. "Ele me amava - ama ainda. Os homens se apaixonam facilmente, mas as mulheres precisam ser cuidadosas. Fomos amantes, mas para mim seria difcil am-lo." "Astiza, no precisavas de mim aqui para trazer dois anjos dourados." "Ainda me amas, Ethan, como disseste no Nilo?" Claro que eu a amava. Mas tambm a temia. Do que mesmo o pobre Talma chamara Astiza? Bruxa? Feiticeira? Eu temia o poder que ela teria novamente sobre mim quando eu admitisse minha fascinao. E quanto a Miriam, coitada, ainda sitiada em Acre? Todavia, nada disso importava. Todas as antigas emoes estavam voltando em torrente. "Eu te amo desde o momento em que te tirei dos escombros em Alexandria", acabei confirmando, afobado. "Eu te amei quando estvamos subindo o Nilo naquele veleiro... E eu te amei na casa de Enoque... E eu te amei at quando, por um
instante, achei que me traras no templo de Dendara... E eu te amei quando achei que j estvamos condenados na Grande Pirmide... Eu te amei a ponto de me juntar aos malditos britnicos s pela esperana de recuperar-te - e te amei a ponto de agora, segundo parece, me juntar novamente aos malditos franceses. Amei at a esperana de ver-te quando eu estava no vale l embaixo, e durante toda essa longa cavalgada montanha acima, mesmo no tendo idia do que te diria, ou de que aparncia terias, ou de como te sentirias." Eu estava perdendo todo o controle, no? As mulheres fazem um homem perder o juzo mais rpido do que o usque do Kentucky consegue. E agora, sem flego, no limite, fiquei espera de que ela me dispensasse com uma palavra. Ali, eu oferecera o peito aos mosquetes, o pescoo lmina do carrasco. Astiza deu um sorriso triste. "Eu teria dificuldade para amar Alessandro, mas no tive dificuldade para me apaixonar por ti." Cheguei mesmo a cambalear ligeiramente, zonzo de euforia. "Ento partamos agora - hoje noite." Com olhos midos, ela balanou negativamente a cabea. "No, Ethan. Silano sabe demais. No podemos ir embora e deix-lo concluir a busca. Precisamos acompanhar tudo e pegar o livro no momento certo. Temos de trabalhar com ele e ento tra-lo. Esse o meu destino desde que conheci Alessandro no Cairo, e o teu desde que ganhaste o medalho em Paris. Tudo vem conduzindo a este cume e s montanhas mais alm. Acharemos o livro - e a, sim, partiremos."
"Espera l - que montanhas alm?" "A Cidade dos Espritos." "A o qu?" " um lugar sagrado, mtico. Creio que nenhum europeu jamais esteve ali desde os templrios. Nossa jornada ainda no se encerrou." Gemi. "Ah, pela ganncia de Benedict Arnold!..." "Agora, para engan-lo, eu e tu precisamos parecer brigados. Tu te fars de furioso porque voltei a unir-me a Alessandro, e ns dois viajaremos como ex-amantes ressentidos. At tudo terminar, necessrio que pensem que somos inimigos." "Inimigos?" E ento ela girou e me esbofeteou, com toda a fora de que foi capaz. O rudo foi de disparo de fuzil. Olhei de relance para trs. Os outros nos observavam mais acima da encosta. Alessandro Silano, alto, de porte aristocrtico, o fazia com a mxima ateno. Silano no era mais o espadachim gil de que eu me lembrava. Mancava, e a dor endurecera sua bela estampa, fazendo que ele se transformasse de P num stiro mais sombrio, de ambio frustrada. Perdera a flexibilidade por causa da queda do balo, e a mirada no era mais cativante, apenas obstinada. Havia escurido no olhar e severidade na boca. Fez um esgar ao descer uma trilha de cabras desde a igreja bizantina, e no estendeu a mo nem ofereceu nenhum cumprimento. Para qu? ramos rivais, e a bofetada de Astiza ainda doa em meu rosto.
Desconfiei de que Monge ou nossos outros mdicos lhe houvessem dado drogas contra a dor. "E ento?", perguntou Silano. "Ele os trouxe?" "No quis dizer", respondeu Astiza. "No est convencido de que deveria nos ajudar." "E resolveste convenc-lo a bofetadas?" Ela deu de ombros. "Eu e ele temos contas para acertar." Silano se voltou para mim. "Parece que no conseguimos mesmo escapar um ao outro, no , Gage?" "Eu estava bastante bem at que tu e Astiza me chamastes com o anel." "E vieste atrs dela, como j fizeste antes. Espero que Astiza aprenda a dar valor a tal coisa antes que te canses disso. No uma mulher fcil de amar, americano." Olhou de relance para Astiza, no mais seguro que eu de quanto podia confiar na parceira. Vi que ela o desconcertava. Eram aliados, no amantes. No fcil vivermos com algo que no podemos ter, e Silano no era do tipo que tolera a frustrao. Teramos todos de ficar de olho um no outro. "Astiza me disse que trarias dois anjinhos de metal que vs dois achastes na Grande Pirmide. Trouxeste?" Hesitei, s para aborrec-lo. Em seguida, falei: "Trouxe, sim. Mas isso no quer dizer que v uslos para ajudar-te". Eu queria verificar quo hostil ele estava. Silano poderia, claro, mandar matarme. "Ficaro em lugar seguro at que tenhamos conversado. Dado o nosso histrico, havers de
me perdoar se eu disser que no confio plenamente em ti." Ele fez uma reverncia. "Digo o mesmo, naturalmente. Mas scios no precisam ser amigos. De fato, s vezes melhor que no sejam - dessa maneira, -se mais sincero, no concordas? Vem, tenho certeza de que ests faminto aps a viagem. Comamos, e te contarei uma histria. Depois poders decidir se queres ajudar." "E se eu no quiser?" "A poders voltar para Acre. E Astiza poder seguir-te ou permanecer - depender apenas da vontade dela." Silano comeou a subir a trilha mancando, quando ento se voltou. "Mas sei o que ambos decidireis." Olhei de relance para Astiza, procurando restabelecer a certeza de que ela desprezava aquele homem, aquele diplomata, duelista, mago, erudito e maquinador. Contudo o olhar de Astiza era no de desdm, mas de tristeza. Ela entendia quanto somos prisioneiros de nossos desejos e nossas frustraes. ramos sonhadores num pesadelo que ns mesmos criramos. Subimos a trilha a p para a igreja sem teto, na qual a luz do dia brilhava no entulho. Viam-se montculos e buracos de escavao. Astiza me mostrou o sarcfago, escondido sob o piso, onde evidentemente haviam sido descobertos os ossos do templrio. "Silano encontrou referncias a este tmulo no Vaticano e nas bibliotecas de Constantinopla", disse ela. "O cavaleiro era Michel de Troyes, que
fugiu ao encarceramento dos templrios em Paris e partiu para a Terra Santa." "Uma carta dizia que ele repousara seus ossos com Moiss", disse Silano, "e enterrara em si prprio o segredo. Levei algum tempo para perceber que a referncia s podia ser ao monte Nebo, muito embora nunca se tenha encontrado a sepultura de Moiss. Eu tinha a esperana de simplesmente achar o documento no tmulo do cavaleiro, mas no o encontrei." "Golpeaste os ossos com impacincia", disse Astiza. "Golpeei." Ele relutou em admitir que se portara de modo passional. "E uma rachadura no fmur mostrou um qu de ouro. Haviam inserido ali um tubo fino - devem ter cortado a perna e esvaziado o osso aps a morte do cavaleiro. Dentro desse tubo, estava um mapa medieval, com os nomes em latim. O mapa assinalava o prximo passo. Foi ento que mandamos buscar-te." "Por qu?" "Porque s seguidor de Franklin. Um eletricista." "O qu? Eletricidade?" "Ela a chave. Explicarei tudo depois do jantar." Nesse momento, j ramos mais de vinte os homens de Najac, meu prprio trio, Silano, Astiza e vrios guarda-costas com que Silano viajava. A noite cara. Aqueles serviais fizeram uma fogueira num canto da igreja em runas e depois deixaram a ss os membros mais importantes da expedio. Najac sentou conosco, para meu desprazer, de modo que insisti que Ned e Mohammad tambm comessem em nossa companhia. Astiza se
ajoelhou, acanhada, numa atitude nada semelhante sua habitual, e Silano ocupou a posio central. Sentamos na areia que se acumulara sobre antigos mosaicos de cenas de caa romanas, com animais que se empinavam ante os dardos arremessados por nobres numa floresta. "Ento, eis-nos finalmente juntos", iniciou Silano, com o calor da fogueira criando um casulo contra o gelado cu do deserto. Fascas subiam voando para misturar-se s estrelas. "Ser que Tot pretendeu que se estabelecessem unies como esta para desvendar os enigmas que ele deixou para ns? Ser que, sem percebermos, estamos seguindo os deuses o tempo todo?" "Eu acredito num Deus nico e verdadeiro", murmurou Mohammad. "", concordou Ned, "ainda que tenhas escolhido o errado, companheiro. Sem ofensa." "Assim como acredito no Uno",.disse Silano, "de cujo mistrio todas as coisas, todos os seres e todas as crenas so manifestaes. Segui um milho de trilhas por bibliotecas, mosteiros e tmulos do mundo, e todas levavam ao mesmo centro. Esse centro, meus relutantes aliados, o que procuramos." "Que centro, mestre?" perguntou Najac, dando a deixa como co adestrado que era. Silano pegou um gro de areia. "E se eu vos dissesse que isto o universo?" "Eu diria que podes ficar com ele e deixar o resto para ns", replicou Ned.
O conde sorriu secamente, jogou o gro para cima e o apanhou. "E se eu vos dissesse que o mundo nossa volta algo difano, to insubstancial quanto os espaos numa teia de aranha, e que tudo o que sustm essa iluso so energias misteriosas que no compreendemos? E se eu vos dissesse que essas energias talvez no sejam nada mais que o pensamento? Ou que a... eletricidade?" "Eu responderia que o Nilo no qual caste no era nenhuma teia de aranha, e sim algo substancial o bastante para que quebrasses o quadril", disse eu. "Iluso e mais iluso - o que afirmam alguns dos escritos sagrados, todos inspirados por Tot." "O ouro no passa de fio de aranha? O poder no arrebata nada seno vcuo?" "Ah, no - embora sejamos apenas sonho, o sonho nossa realidade. Mas a est o segredo. Suponhamos que as coisas mais slidas - as pedras desta igreja, por exemplo - sejam matrizes de quase nada... Que a queda de uma rocha ou de uma estrela seja uma simples regra matemtica... Que uma construo possa abranger o divino... Que um formato possa ser sagrado... Que uma mente possa apreender energias invisveis... O que feito dos seres que se do conta dessas coisas? Se as montanhas so apenas teia, no podem ser movidas? Se o mar no passa do mais ralo vapor, no podem suas guas serem partidas? Pode o Nilo virar sangue ou uma praga de sapos ser engendrada? Quo difcil seria derrubar as muralhas de Jeric se elas no so mais que um tapume vazado? Quo difcil seria transmutar
chumbo em ouro se ambos so essencialmente p?" "Ests louco", disse Mohammad. "O que dizes a fala de Sat." "No. Sou um erudito!" E agora Silano se punha dificultosamente em p, com Najac dando-lhe uma mo de que ele se livrou to logo pde. "Tu, Ethan Gage, negaste-me esse ttulo uma vez, num banquete diante de Napoleo. Insultaste meu renome para me fazer parecer banal." Mesmo sem querer, enrubesci. O homem no esquecia nada. "Investigo tais enigmas h vinte anos. Vim para o Cairo quando a cidade ainda estava sob o domnio dos mamelucos e explorei antigos mistrios enquanto tu ainda estavas desperdiando a vida. Eu seguia o rastro dos antigos enquanto vendias teu oportunismo aos franceses. Procurei entender as pistas misteriosas que foram deixadas para ns enquanto o resto de vs se debatia na lama." Ele tampouco perdera o elevado conceito que fazia de si prprio. "E agora compreendo o que estamos procurando e o que precisamos utilizar para encontrar isso: temos de capturar o relmpago!" "Capturar o qu?", perguntou Ned, ressabiado. "Gage, soube que lograste usar a eletricidade como arma contra as tropas francesas." "Foi uma necessidade blica." "Creio que precisaremos do conhecimento de Franklin quando estivermos prximos do Livro de Tot. s eletricista bom o bastante?" "Sou um homem da cincia, mas no estou entendendo patavina do que dizes."
" por isso que precisamos dos serafins, Ethan", interveio Astiza, com mais suavidade. "Acreditamos que, de algum modo, eles apontaro para o derradeiro esconderijo que os templrios usaram aps a destruio de sua ordem. Eles trouxeram para o deserto o que haviam descoberto nos subterrneos de Jerusalm e ocultaram isso na Cidade dos Espritos. Os documentos so obscuros, mas Alessandro e eu acreditamos que Tot tambm conhecia a eletricidade e que os templrios a estabeleceram como teste para que se ache o livro. Precisamos atrair o relmpago como Franklin fazia." "Ento vou concordar com Mohammad - estais ambos loucos." "Nas galerias subterrneas de Jerusalm", disse Silano, "encontraste um piso curioso, com a configurao do raio. E uma porta estranha. No foi assim?" "Como sabes disso?", perguntei. Najac, eu tinha certeza, nunca adentrara os recintos que eu explorara, e ele, portanto no vira aquela porta de ornamentao esquisita. "Como j disse, eu venho estudando. E, nessa porta templria, deparaste com um arranjo judaico, no? As dez sephiroth da cabala." "O que isso tem que ver com relmpagos?" "Observa." Curvando-se para a poeira no cho junto fogueira, Silano traou dois crculos, unidos pelas margens. "Todas as coisas so duais", murmurou Astiza. "E, no entanto, unidas", disse o conde. Ele traou outro crculo, to grande quanto os dois primeiros,
sobrepondo-se a ambos. E depois crculos sobre esses crculos, mais e mais, num padro cada vez mais complexo. "Os profetas conheciam isto", disse ele. "Talvez Jesus tambm. E os templrios o reaprenderam." Onde os crculos se cruzavam, Silano comeou a traar retas, formando configuraes - tanto uma estrela de cinco pontas como uma de seis. "Uma egpcia, e a outra, judaica", explicou. "As duas so igualmente sagradas. A estrela egpcia usada na nova bandeira do teu pas, Gage - no achas que era esse o propsito dos maons que ajudaram a fundar os Estados Unidos?" Por fim, nos interstcios, ele cravou dez pontos, que constituram o mesmo padro distintivo que tnhamos visto no salo templrio em Jerusalm as sephiroth, s quais Haim Farhi nos apresentara antes de Silano. Mais uma vez, todos pareciam estar falando lnguas antigas que eu desconhecia e descobrindo significados no que eu teria considerado mera ornamentao. "Reconheces isto?", quis saber Silano. "Qual parte disto?", perguntei, cauteloso. "Os templrios traaram outra configurao com base neste formato", disse ele. Unindo os pontos, o conde desenhou uma linha em ziguezague. "A est um relmpago. To surpreendente que chega a dar medo, no?" "Talvez." "Nada de talvez. As pistas deixadas pelos templrios nos mandam usar o cu se quisermos descobrir onde est o livro. O smbolo do
relmpago est no mapa que achamos aqui - e ainda h o poema." "Poema?" "Duas estrofes. bem eloqente." Ele recitou: Aether cum radiis solis fulgore relucet Angelus et pinnis indicat ore Dei, Cum region deserta bibens ex murice torto Siccatis labris arida sorbet aquas Tum demum partem quandam lux clara revelat Quae prius ignota est nec repute tibi Opperiens cunctatur eum dea cndida Veri Floribus insanum qui furit atque fide "Isso para mim grego, Silano." "Latim. Eles no ensinam os clssicos nos sertes da Amrica, Gage?" "Nos sertes, os clssicos so bons para acender fogueira." "Encontrei esse documento durante minhas viagens, e a traduo explica por que eu estava ansioso para que nos reencontrssemos." Quando o cu fulgura com o relmpago dos raios do sol E com as plumas o anjo aponta ao comando de Deus; Quando o deserto, bebendo da concha retorcida do caracol, Sedento suga gua com lbios secos. E ento a clara luz enfim revela certa parte Que antes era ignota e irreconhecida por teu esprito.
Prolongando-se, a Verdade brilhante e divina espera aquele, Tolo louco por flores, que tambm confia por f. O que diabos significava aquilo? O mundo evitaria um bocado de confuso se todos se limitassem a dizer as coisas s claras, mas isso no parece ser nosso hbito... Entretanto, havia naquelas palavras algo que despertava uma lembrana, uma coisa que eu nunca compartilhara com Astiza nem com Silano. Senti um arrepio de reconhecimento. "Precisamos ir a um lugar especial na Cidade dos Espritos", disse Silano, "e invocar as chamas da tempestade, o relmpago, da mesma maneira que teu mentor Franklin fez na Filadlfia. Chamar o relmpago para os serafins e ver para qual parte eles apontam." "Qual parte do qu?" "Meu palpite que seja de uma construo ou uma gruta. Teremos a resposta se o procedimento der certo." "E o deserto bebe de uma concha de caracol?" "De um temporal com relmpago. Desconfio que seja referncia a alguma taa sagrada." Ou a outra coisa, pensei com meus botes. "E quanto s flores e f?" "Minha teoria que se trate de uma referncia aos prprios templrios e Ordem Rosa-cruz. As conjeturas sobre a origem dos rosa-cruzes variam, mas uma delas diz que o sbio alexandrino Ormo foi convertido ao cristianismo pelo apstolo Marcos, no ano 46, e fundiu os ensinamentos de Jesus com os do Egito antigo, criando um credo gnstico, ou a crena no
conhecimento." Silano me encarou para certificarse de que eu fizesse a correlao com o Livro de Tot. "As correntes de pensamento vo surgindo e desaparecendo na histria do mundo, mas o smbolo da cruz e da rosa muitssimo antigo, simbolizando morte e vida, ou desespero e esperana. A Ressurreio, se preferes." "E masculino e feminino", acrescentou Astiza. "A cruz flica e a flor vulvar." "Flor e f simbolizam o carter que se exige daqueles que querem descobrir o segredo", disse Silano. "Uma mulher?" "Talvez, sendo esse um dos motivos para termos uma conosco." Resolvi guardar minhas suspeitas para mim mesmo. "Ento pretendes atrair um raio para os meus serafins e ver o que acontece?" "Sim, no lugar determinado pelos documentos que encontramos." Ponderei. "Ests falando de um pra-raios - ou melhor, dois, j que temos dois serafins. Creio que precisaremos de metal para conduzir a energia para o solo." "E por isso que as estacas de nossa tenda so de metal, para que possamos montar os teus anjos. Venho planejando isto h meses. Precisars de nossa ajuda para achar a cidade, e precisaremos da tua para achar o esconderijo l." "E depois? Dividiremos o livro ao meio?" "No", respondeu Silano. "No precisamos de um Salomo para resolver nossa rivalidade. Ns o
usaremos juntos, para o bem da humanidade, exatamente como faziam os antigos." "Juntos?!" "Por que no, se teremos poder ilimitado para fazer o bem? Se o mundo como um tecido difano, podemos fiar e torcer a matria. isso o que o livro aparentemente nos diz como fazer. E, se todas as coisas so possveis, ento podemos deslocar rochas, prolongar vidas, reconciliar inimigos e curar feridas." Os olhos de Silano luziam. Olhei para o quadril dele. "Tendo tu recuperado a juventude." "Precisamente, e no comando de um mundo enfim regido pela razo." "A razo de Bonaparte?" Silano olhou de relance para Najac. "Sou fiel ao governo que me empregou. Todavia, os polticos e os generais s compreendem at certo ponto. Os sbios que governaro o futuro, Gage. O mundo anterior era brinquedo de prncipes e clrigos. O novo ser responsabilidade dos cientistas. Quando a razo e o oculto se unirem, ter incio uma idade de ouro. Os sacerdotes desempenharam esse papel no Egito. Ns seremos os sacerdotes do futuro." "Mas estamos em lados opostos!" "No estamos, no. Todas as coisas so duais. E estamos ligados por Astiza." O sorriso de Silano se pretendia sedutor. Que trindade mpia! Mas eu no conseguiria nada se no cooperasse, no era mesmo? Olhei para Astiza. Ela estava sentada junto a Silano, no a mim.
"Ela nem me perdoou", menti. "Perdoarei se nos ajudares, Ethan", replicou Astiza. "Precisamos de ti para chamar o fogo celeste. Precisamos de ti para submeter o cu, tal qual Benjamin Franklin."
- 18 A entrada da Cidade dos Espritos era um canyon de arenito, apertado e rosado como uma virgem. Na base, a sinuosa passagem no era mais larga que alguns passos, e o cu era uma distante risca azul l em cima. Os paredes se elevavam a seiscentos ps, por vezes se inclinando como um teto, como fresta a fechar-se num terremoto. Enquanto caminhvamos levando bornais pelo leito ensombrecido do canyon, esse abrao rochoso se mostrava inquietante. Mas, se a pedra pode mesmo ser voluptuosa, ento aquela fenda amuralhada, rosa e azul, era um serralho de carne ondulada, talhada pela gua em mil formas sensuais, to agradveis aos olhos quanto a favorita de um sulto. Grande parte era listrada em camadas de coral, cinza, branco e alfazema. A rocha aqui pingava como melado congelado, ali se intumescia como glac, acol se assemelhava a uma cortina de renda. O leito, de areia e pedra, formava uma estrada tosca que descia rumo a nosso destino, como passadio para algum mundo inferior num sonho de stiro. E, quando olhei com ateno, vi que a natureza no era a nica escultora ali. Aquilo fora um porto
de caravana, e tinham escavado no paredo uma calha, com manchas escuras que deixavam claro que ela, um dia, servira de aqueduto para a antiga cidade. Passamos sob o desgastado arco romano que marcava a entrada superior do canyon e seguimos silenciosa e energicamente, com um misto de temor e admirao, por nichos nos paredes que abrigavam deuses e entalhes geomtricos. Camelos de arenito, duas vezes maiores que o tamanho natural, sacaroteavam conosco em baixo-relevo. Era como se os mortos tivessem sido transformados em pedra, e, quando viramos a derradeira quina do canyon, esse efeito fantasmagrico se intensificou muito. Ficamos boquiabertos. "Vede!", proferiu Silano. "Eis o que se torna possvel quando os homens sonham!" , o livro s podia estar ali. Tendo partido de Nebo, estvamos havia vrios dias em jornada para aquele lugar. Nossa comitiva seguira as elevaes do Jordo, contornando verdes pastagens no planalto e passando pelas sorumbticas runas de castelos que os cruzados construram, lugares to esquecidos quanto os templrios. De quando em quando, descamos a canyons profundos e escaldantes, que se abriam para o deserto de areias amarelas a oeste. Regatos minsculos eram engolidos pela aridez. Depois subamos para o outro lado e continuvamos no rumo sul, com falces a girar no ar ascendente e seco, e bedunos a tocar suas cabras para udis laterais, vigiando-nos
silenciosamente, de uma distncia segura, at terminarmos de passar. O cerco de Acre parecia estar a um planeta de distncia. No percurso, eu tivera tempo mais que suficiente para pensar nos versos latinos de Silano. Aquilo de os anjos apontarem me parecia plausvel at certo ponto, embora eu nem imaginasse que foras poderiam estar em operao ali. Mas o que me instigara a memria foram as referncias concha de caracol e flor. As mesmas imagens tinham sido usadas pelo sbio francs Edme-Franois Jomard, amigo meu, quando escalamos a Grande Pirmide. Ele dissera que as dimenses da pirmide codificavam um "nmero ureo" (1,618, se eu bem me lembrava), que, por sua vez, era a representao geomtrica de uma progresso numrica chamada seqncia de Fibonacci. Essa progresso podia ser simbolizada por uma srie interligada de retngulos e quadrados cada vez maiores, e um arco ao redor dos retngulos gerava o tipo de espiral vista numa concha de nutilo ou, afirmava Jomard, na disposio das ptalas nas flores. Meu amigo Talma conclura que o jovem cientista era meio maluco, mas eu fora tomado de curiosidade. Ser que a pirmide traduzia de fato alguma verdade fundamental sobre a natureza? E como isso se relacionava (se que relacionava mesmo) ao lugar para onde estvamos indo agora? Tentei pensar como Monge e Jomard, os matemticos. "E ento a clara luz enfim revela certa parte que antes era ignota e irreconhecida por teu esprito", haviam escrito os templrios.
Aquilo parecia no significar nada, mas, ainda assim, deu-me uma idia extravagante. Teria eu uma pista que me possibilitaria arrebatar o Livro de Tot bem debaixo do nariz de Silano? Acampvamos nos lugares mais defensveis que achvamos e, em certo entardecer, subimos um morro para pernoitar nos restos de um castelo que os cruzados haviam construdo com arenito e sobre cujas torres destrudas as andorinhas voavam em crculos. Ao poente, as runas eram amarelas, com mato crescendo entre as pedras. Subimos cavalgando atravs de um prado de flores silvestres que balanavam ao vento da primavera. Era como se as flores assentissem para minha suposio. Fibonacci, sussurravam elas. Quando nos aglomeramos no porto semi-rudo para levar nossos cavalos ao ptio abandonado do castelo, dei um jeito de cochichar para Astiza: "Encontra-me ao luar, nas ameias, o mais longe possvel de onde dormirmos". Ela aquiesceu de modo quase imperceptvel e ento, agindo como se estivesse irritada, incitou seu cavalo adiante para cortar o caminho do meu. Para os outros, ramos ex-amantes ressentidos. Eu, Ned e Mohammad tnhamos estabelecido o hbito de dormirmos um pouco apartados do bando de degoladores de Najac, e, quando Ned j estava mergulhado em seu vigoroso ronco, sa de fininho e aguardei nas sombras. Astiza veio como um fantasma, envolta num branco luminoso e difano. Levantei-me e puxei-a para uma guarita longe dos olhares de quaisquer outras pessoas, com o luar leitoso entrando pela seteira. Eu a
beijei pela primeira vez desde nosso reencontro; seus lbios estavam gelados pelo frio noturno, e seus dedos se entrelaaram aos meus para controlar minhas mos. "No temos tempo", sussurrou Astiza. "Najac est acordado e pensa que sa para as necessidades. Ele deve estar contando os minutos." "Deixa o desgraado contar." Tentei abra-la. "Ethan, se no nos contivermos agora, vamos estragar tudo!" "Se nos contivermos, eu vou explodir." "No." Ela me empurrou para longe. "Sejas paciente! Estamos quase l!" Maldio! Desde que eu sara de Paris, estava difcil conseguir sossegar o facho - era exerccio demais e mulher de menos. Respirei fundo. "Muito bem, mas escuta. Se esse truque do raio funcionar mesmo, tu precisars me ajudar a ficar longe de Silano. Necessitarei de tempo para tentar uma coisa, sozinho. Combinaremos como nos encontrarmos depois." "Sabes algo que no nos contaste, no mesmo?" "Talvez. uma aposta." "E s apostador." Astiza pensou por um momento. "Depois que atrairmos o raio, diz a Alessandro que trocars tua parte no livro por mim. Eu ento fingirei trair-te e irei com ele. Ns te abandonaremos. Faze-te de frustrado." "No ser difcil. Posso confiar em ti?" Ela sorriu. "A confiana precisa vir do ntimo." Tendo dito isso, afastou-se na surdina. No resto do tempo, tomamos o cuidado de parecer to eriados um com o outro quanto porcos-espinhos
brigados. Minha esperana era que se tratasse realmente de um ardil de Astiza. Seguamos pelas velhas trilhas de caravana. Eu temia as patrulhas otomanas, mas era como se o confronto no monte Tabor tivesse feito as foras turcas desaparecerem temporariamente. O mundo parecia vazio, primevo. Em certa altura, vieram em nosso encalo membros de tribos locais, uns homenzinhos rijos e mal-encarados, montados em camelos; mas nossa comitiva tambm parecia rija e mal-encarada, alm de pobre, no dando a impresso de valer a pena nos assaltar. Najac se afastou a cavalo para conversar com eles, levando seus prprios bandoleiros, e os nativos acabaram sumindo. Quando chegamos cidade do mapa templrio, ningum mais nos seguia. Viramos para oeste e descemos da beira do planalto central para o distante deserto. Entre ns e aquele ermo, erguia-se a mais estranha formao geolgica que eu j vi. Havia uma sucesso de montanhas de aspecto lunar, recortadas e severas - e, em frente a elas, um furnculo de arenito marrom, arredondado e cheio de protuberncias. Assemelhava-se a um ensopado que fora congelado com bolhas castanhas e tudo, ou a um po que crescera desmesuradamente. Parecia no existir passagem naquela formao, nem ao redor - mas, quando nos aproximamos, vimos nela cavernas, como uma varola arentica, um monstro de cem olhos. Percebi que a regio estava salpicada desses afloramentos. Neles comearam a surgir pilares e
degraus talhados. Acampamos num udi seco, com as estrelas reluzentes e geladas. Silano disse que as trilhas que percorreramos na manh seguinte eram demasiadamente estreitas e ngremes para montarias, de modo que, quando clareou, ns as amarramos a estacas na entrada do canyon, deixando de guarda alguns dos rabes de Najac. Notei que os cavalos estavam estranhamente nervosos, relinchando e batendo os cascos, e temiam um carroo que surgira beira de nosso acampamento em alguma hora da noite. O carroo era aquadradado e estava coberto de oleados, e Silano explicou que, entre os suprimentos guardados ali, o cheiro da carne deixava os animais nervosos. Eu quis investigar, mas ento o sol da manh iluminou a escarpa e realou o canyon e o convidativo arco romano. Entramos a p e, poucas jardas depois, no enxergvamos mais nada do mundo l atrs. Desapareceram todos os sons, menos o de nossos passos arrastados medida que descamos pelo leito. "Tempestades varreram pedras para o que foi uma estrada da Antiguidade", esclareceu Silano. "Aqui, segundo os registros, as enchentes repentinas e violentas ocorrem com mais freqncia nesta poca do ano, depois de troves e relmpagos. Os templrios sabiam disso e se valeram de tal informao. Ns faremos o mesmo." E ento, como j descrevi, chegamos outra extremidade do canyon aps uma milha de caminhada e ficamos boquiabertos. Diante de ns, havia outro canyon, perpendicular ao primeiro e
to imponente quanto aquele, mas no foi isso o que nos deixou assombrados - e sim o fato de que, no paredo oposto, estava o mais inesperado monumento que eu j encontrara, o primeiro a rivalizar em esplendor com a imensido das pirmides. Era um templo talhado na rocha viva. Imaginai um desfiladeiro vertical com centenas de ps de altura, to rseo quanto as faces de uma donzela. Cinzelado nele e dele (no era simples coisa sobreposta ao paredo), um complexo edifcio pago com colunas, frontes e cpulas mais altos que uma agulha de campanrio da Filadlfia. guias esculpidas do tamanho de bises se encarapitavam na cornija, e os vos entre as colunas abrigavam figuras de pedra com asas de anjo. Todavia, o que atraiu meu olhar no foram esses querubins ou demnios, mas a figura central bem acima da escura porta do templo. Era uma mulher, de seios desnudos e erodidos, a roupa ptrea num drapejado romano sobre os quadris, a cabea erguida e atenta. Eu vira aquele mesmo arranjo visual nos recintos sagrados do Egito antigo. Aninhada no brao, uma cornucpia. Na cabea, os resqucios de uma coroa constituda de um disco solar entre chifres de touro. Senti um calafrio ante aquela estranha recorrncia de uma deusa que vinha me assombrando desde Paris, onde os romanos haviam construdo um templo para a mesma divindade no que agora era o terreno da Catedral de Notre-Dame. "sis!", exclamou Astiza. "Ela uma estrela a guiarnos at o livro!"
Silano sorriu. "Os rabes do a este templo o nome Khazneh, que significa Errio ou Tesouro, porque as lendas locais alegam que o Fara escondeu sua riqueza aqui." "Ests dizendo que o livro se encontra l?", perguntei. "No. Os recintos esto vazios e so pouco profundos. O livro est em algum lugar aqui perto." Fomos at a entrada do Khazneh, chapinhando ao atravessar o regato que corria pelo centro dessa nova fenda na terra. A nossa direita, o canyon dava uma guinada para longe. Uma larga escadaria levava escura entrada com colunas. Ficamos um momento em p no frescor do prtico, olhando para a rocha vermelha l fora, e ento adentramos o templo. Como Silano j dissera, o lugar estava decepcionantemente desguarnecido, to sem traos caractersticos quanto a cmara que continha o sarcfago vazio na Grande Pirmide. O desfiladeiro fora cavoucado para dar origem a cmaras retas e perpendiculares, semelhantes a caixotes. Alguns minutos de verificao confirmaram que no existiam portas ocultas. O templo era to nu quanto um armazm vazio. "A menos que tenham concebido algum truque para este lugar - suas dimenses matemticas, por exemplo -, no h nada aqui", disse eu. "Ele serve para qu?" Parecia grande demais para uma moradia, mas no grande e luminoso o bastante para um templo.
Silano deu de ombros. "No importa. Ainda vamos descobrir o Lugar do Alto Sacrifcio, de que falam os documentos. Se h uma coisa que podemos confirmar, a respeito disto aqui, que o lugar no elevado." "Mas sublime", murmurou Astiza. "E uma iluso, como tudo mais", rebateu Silano. "S a mente real. por isso que a crueldade no constitui pecado." Samos, e o canyon estava em parte ao sol, em parte nas sombras. O dia se enevoava. "Estamos com sorte", disse Silano. "O ar est pesado, e o cheiro de temporal. No teremos de esperar, mas precisamos agir antes que se desencadeie a tempestade." O novo canyon se alargava lentamente medida que seguamos por ele, proporcionando-nos vislumbres cada vez melhores do labirinto de montanhas que penetrramos. Os escarpamentos pareciam disparar para o cu em camadas de bolo, em pes arredondados, em castelos de massa de panificao. O oleandro florescia para refletir aquela estranha rocha. Por toda a parte, os paredes estavam perfurados de cavernas, mas estas no eram naturais. Tinham o formato retangular de portas humanas, indicando que pessoas haviam escavado-as. Era uma cidade construda no sobre a terra, mas da terra. Passamos por um grandioso teatro romano em semicrculo, com suas fileiras de assentos tambm talhadas no prprio desfiladeiro. Por fim, demos numa larga cavidade cercada por montanhas ngremes, como um vasto ptio rodeado de muros.
Era o esconderijo perfeito para uma cidade, acessvel apenas por canyons estreitos e facilmente defendidos. E, no entanto, havia ali espao suficiente para comportar toda a Boston. Colunas, que j no tinham o que sustentar, elevavam-se da terra. Templos sem teto se erguiam do entulho. "Pelo amor de Isis", sussurrou Astiza, "quem sonhava aqui?!" Um dos paredes era um espetculo que rivalizava com o Khazneh. Fora talhado de modo a ser a fachada de uma cidade fabulosa, uma profuso de escadarias, colunas, pedimentos, plataformas, janelas e portas, conduzindo a uma verdadeira colmia de cmaras l dentro. Comecei a contar as entradas e desisti. Eram centenas. No, milhares. "Este lugar imenso", disse eu. "Faz as pirmides parecerem uma caixa de correio. para acharmos um livro aqui?!" "E para tu achares. Tu e os teus serafins." Silano sacara seu mapa templrio e agora o examinava. Depois, apontou. "L em cima." Atrs de ns, uma montanha que se erguia acima do antigo anfiteatro fora escavada para criar parapeitos, mas parecia ser plana no topo. Trilhas de cabra conduziam at l. "L em cima? Mas onde?" "No Lugar do Alto Sacrifcio." Uma senda fora construda de degraus toscos talhados no arenito. O ar estava quente e mido, e suvamos. Entretanto, proporo que subamos,
a vista se alargava, e surgiam cada vez mais desfiladeiros salpicados de portas e janelas. No vimos gente em parte alguma. A cidade abandonada estava muda, sem as lamentaes de almas penadas. A luz se arroxeava. Chegando ao topo, ns nos vimos numa meseta de arenito com uma vista magnfica. Bem l embaixo, estava a cavidade poeirenta de muros descados e colunas tombadas, encerrada pelos desfiladeiros. Mais alm, outras montanhas escarpadas sem nenhum sinal de verde, como se fossem esqueletos. O sol ia baixando na direo das cabeas de trovoada que, assomando, aproximavam-se rapidamente de ns como negras belonaves. Uma brisa trrida e mida apanhava funis de poeira e os fazia girar ainda mais, como pies. At a meseta onde estvamos fora aplainada com muita preciso por antiqssimas talhadeiras. No centro, haviam recortado um retngulo do tamanho de um salo de baile, como uma piscina seca e muito rasa. Silano consultou uma bssola. ", o retngulo est mesmo no sentido norte-sul", sentenciou, como se j esperasse por aquilo. Para oeste, de onde vinha a tempestade, quatro degraus levavam a uma plataforma elevada que parecia ser alguma espcie de altar. Nela, via-se uma pia redonda com calha. "Para o sangue", contou-nos Silano. O capote dele se agitava ao vento. "No vejo nenhum lugar onde esconder um livro", disse eu.
O conde fez um gesto para a cidade l embaixo, com aqueles dez mil buracos que marcavam o arenito como se fossem uma absurda colmia. "E eu vejo o infinito. Chegou a hora de usar os teus serafins, Ethan Gage. Eles so feitos de um metal mais sagrado que o ouro." "E que metal esse?" "Os egpcios o chamavam Ra-ezhri, as lgrimas de R, o Sol. O deus vai tocar o metal e ento apontar para onde devemos ir. Invocaremos o dedo de Tot! A essncia do universo ir nos dar um sinal!" Ele estava totalmente maluco, mas imagino que o velho Ben tambm estivesse quando se props a empinar papagaio numa tempestade. Os savants so um bando de adoidados. "Espera a - o que acontecer quando pegarmos o livro?" "Ns o estudaremos", respondeu Silano, abrupto. "Nem sabemos se conseguiremos decifr-lo", acrescentou Astiza. "Eu me refiro a saber quem fica com o livro", insisti. "Algum precisar ser o guardio dele. Parece que os meus serafins so o instrumento fundamental e que a minha habilidade em installos a chave de tudo. E no estou realmente nem do lado francs nem do britnico - sou neutro. Tu deverias confi-lo a mim." "No terias achado este lugar por conta prpria nem em mil anos", resmungou Najac. "s incapaz de cuidar de uma lista de compras no armazm." "E no conseguirias achar a tua orelha direita nem se ela estivesse amarrada s tuas bolas por um barbante", retruquei, irritadamente.
"Gage, por certo que a situao j est bem clara nesta altura das coisas, no?", disse Silano com impacincia. "Tu te juntas a mim, no Rito Egpcio, e ganhas uma fatia do poder." "Juntar-me ao homem que, no Egito, mandou-me a cabea de meu amigo?" Silano deu um suspiro. "Ou podes ficar sem nada." "E qual seria o teu ttulo de posse do livro?" Eu precisava desempenhar meu papel. Ele olhou em volta, divertindo-se. "Ora, o fato de ter todas as armas de fogo, a maior parte das provises e a nica esperana de decifrarmos o que estamos prestes a achar." Os homens de Najac apontaram os canos de suas armas. Irritoume sobremaneira ter de olhar para a boca de meu prprio fuzil, ali nas mos sebosas de Najac. "Realmente no entendo o que Franklin viu em ti, Ethan. Tens tanta dificuldade para enxergar o bvio!..." Apontei para as nuvens, que se acumulavam. "A coisa no funcionar sem mim, Silano." "No sejas tolo. Se no ajudares, ningum conseguir o livro, e ficars sem nada. Ademais, ests to curioso quanto eu." Olhei para Astiza. "Pois eis minhas condies. Eu te ajudarei a aprestar os serafins. Se der certo, achars o livro. Pega-o, e no se fala mais nisso." "Chefe!", exclamou Ned. "Mas quero Astiza no lugar do livro." "Ela no minha para que eu possa d-la." "Quero que nos deixes ir embora, sem nos causar mal nem interferir conosco."
Silano olhou de relance para ela. Astiza evitou tanto o olhar dele como o meu. "E tu ajudars se eu concordar?" Assenti e disse: " melhor nos apressarmos". "Mas a escolha dela, no minha", alertou Silano. A fisionomia de Astiza era uma mscara sem expresso. "Sim, a escolha dela", confirmei, cheio de confiana. "No tua. tudo o que peo." "Feito." Ele sorriu, um sorriso to frio quanto uma armadilha para castor num riacho canadense. "Agora, ajuda-nos a preparar os serafins." Respirei fundo. Ser que eu podia mesmo confiar nela? Aquilo daria certo afinal? Eu estava apostando tudo numa charada latina. Enfiei a mo nas ceroulas para tirar dali meus suvenires das pirmides e vi os olhos do feiticeiro brilharem quando ele os pegou. "Usa os encaixes que os prendiam ao cajado de Moiss para mont-los no alto das tuas estacas de metal", instru. "Vamos fazer um pra-raios de Franklin." Notei dois furos no cho da meseta, e Silano confirmou que eles eram mencionados nos documentos templrios. Assim, inserimos as estacas ali. No havia, porm, nenhuma juno entre os furos. Examinei aquela superfcie plana. O arenito exibia ranhuras, formando uma estrela de seis pontas. As estacas estavam em pontos opostos. "Precisamos ligar as estacas", disse eu, "com fita ou fio metlicos, para conduzir a eletricidade. Trouxeste algum?" Claro que no - ali estava o alardeado trabalho de pesquisa de Silano! Ia ficando escuro, e os troves
ribombavam medida que as nuvens inchavam. Funis de poeira se moviam ligeiros pelo leito do vale, ziguezagueando e oscilando como brios. "No entendo o que as hastes podero fazer se ficarem isoladas uma da outra", avisei. "Os templrios afirmaram que funcionar. Meus estudos so infalveis." O homem tinha um ego to grande quanto o de Aaron Burr. Bem, pensei no que poderia substituir o metal (pois aqueles meus inimigos tinham razo: eu estava to curioso quanto qualquer um). "Najac, faz alguma coisa alm da cara feia", acabei dizendo. "Usa o teu odre para encher essas ranhuras com gua e acrescenta sal." "gua?" "Ben dizia que ela ajuda a conduzir eletricidade." A gua preencheu as ranhuras at que a estrela fulgurou luz densa e verde-arroxeada. O sol sumiu, e a temperatura baixou. Senti arrepios. Mais troves, e eu via os primeiros feixes de chuva descerem em espiral, como plumas, evaporandose antes de chegarem ao cho. Relmpagos golpeavam o cu a oeste. Recuei para a beira da meseta. Ned e Mohammad me acompanharam, mas ningum mais parecia assustado. At Astiza aguardava esperanosamente, com o cabelo em torvelinho pela ventania e os olhos no cu, e no em mim. A tempestade caiu sobre ns como uma carga de cavalaria. Veio um de p-de-vento atirando pedriscos e terra grossa, e fomos atropelados pelas nuvens, grandes sacas de chuva e trovo que adquiriam intenso brilho prateado ao
avolumar-se e inflar. Raios lampejavam e atingiam os picos ao nosso redor, cada vez mais perto, com os troves soando como uma artilharia. Caram gotas grossas, que eram muito quentes e pesadas, mais parecendo chumbo derretido que gua. Nossas roupas tremulavam, e o silvo do vento se tornou um grito agudo. E a houve um claro ofuscante, um estrondo imediato, e a montanha estremeceu - um dos pra-raios fora atingido! Senti as pernas bambas. Voaram fascas, e uma luz azul brilhante foi de estaca a estaca pelas ranhuras molhadas da estrela e depois formou um arco no ar entre os dois anjos. Os serafins ficaram de um branco incandescente. As estacas de ferro giraram, e as asas deles apontaram para nordeste, enviesando-se umas para as outras de modo que retas traadas de cada um dos anjos se interceptavam umas vinte jardas adiante. O relmpago j passara, mas as estacas retinham fora eltrica, banhando tudo com um fulgor roxo que no era muito diferente daquele que havamos testemunhado na cmara sob o Monte do Templo. E ento raios de luz emanaram das asas dos serafins, encontraram-se em pleno ar, e o raio nico resultante riscou o espao como uma bala de fuzil, indo atingir um grandioso vo da entrada com colunas, em outro templo do paredo de rocha, a duas milhas de onde estvamos. Voavam fascas para todos os lados, como numa fonte. "Isso!", exclamaram os capangas de Silano. O raio se manteve por um momento, como uma momentnea espiada do sol numa caverna sombria, e depois se desvaneceu. O alto da
montanha escureceu. Deslumbrado, olhei para nossas estacas de metal. Os serafins tinham derretido e se achatado, lembrando cogumelos na ponta das estacas. Silano erguera os braos para o ar, em triunfo. Astiza estava rgida, o vestido ensopado, a gua pingando dos anis de cabelo colados s faces. A tempestade se deslocava para leste, mas, atrs de sua rabeira flamejante, vinha mais chuva, agora mais fresca, tirando o cheiro de temporal do ar. Era um aguaceiro. Todos sentamos a eletricidade no ar, e nossos cabelos danavam por ela. No alto dos desfiladeiros, a gua corria a cntaros por toda a parte. "Algum marcou onde incidiu aquele raio?", perguntou Silano. "Eu conseguiria achar o lugar de olhos fechados", garantiu Najac, com uma ponta de cobia na voz. "Foi obra do capeta", murmurou Big Ned. "No, obra de Moiss!", replicou Silano. "E dos templrios e de todos os que buscam a verdade. Senhores, estamos vendo a obra de Deus. E no importa se esse deus Tot, Jeov ou Al, pois sua conformao a mesma - o conhecimento." Os olhos do conde se acendiam de energia, como se parte do raio o tivesse permeado. No tenho nada contra o conhecimento - afinal, estive numa expedio de savants - mas as palavras e o aspecto de Silano me inquietaram. Recordei sermes, ouvidos na infncia, em que Sat era uma serpente que prometia o conhecimento a Ado e Eva. Com que fogo estvamos brincando ali? Ao mesmo tempo, como
podamos deixar que um fruto to tentador ficasse sem ser colhido? Olhei para Astiza, minha bssola moral. Mas ela precisava evitar meu olhar, no era mesmo? Astiza parecia estupefata - realmente ocorrera alguma coisa - e preocupada. "Creio, senhores, que estamos prestes a fazer histria", proclamou Silano. "Desamos antes que anoitea. Acamparemos em frente ao templo que foi iluminado e iremos vasculh-lo primeira luz da manh." "Ou com tochas, hoje noite mesmo", disse o ansioso Najac. "Entendo tua impacincia, Pierre, mas acho que, aps mil anos, nosso objetivo no vai a lugar nenhum. Gage, tua companhia foi fascinante como sempre, mas ouso dizer que nenhum de ns dois lamentar muito a perspectiva de seguirmos caminhos diferentes. Fizeste teu acordo, de maneira que agora posso dizer-te adieu, sertanejo da Amrica." Ele se inclinou numa reverncia. "Astiza", disse eu, "agora podes vir comigo." Ela ficou longo tempo calada, at dizer: "Mas no vou, Ethan." "Hein?" "Ficarei com Alessandro." "Mas eu vim por tua causa! Sa de Acre por ti!" Ostentei mais indignao que um advogado ao encarar provas irrefutveis contra seu cliente. "No posso deixar Alessandro ter o livro apenas para si, Ethan. No posso me afastar do livro depois de todo este sofrimento. Isis me conduziu a este lugar para que eu conclusse o que comecei."
"Mas Silano louco! V quem so seus companheiros. Eles so cria do diabo! Vem conosco - vem comigo para a Amrica." Astiza balanou negativamente a cabea. "Adeus, Ethan." Silano sorria. Ele j esperava aquilo. "No!" "Ela j escolheu, Gage." "S ajudei com o raio para ficar contigo!" "Sinto muito, Ethan. O livro mais importante do que tu. Mais importante do que ns. Volta para os ingleses. Eu vou com Alessandro." "Tu me usaste!" "Ns te usamos para achar o livro de uma vez por todas, espero." Com fingida frustrao, arranquei uma das estacas de ferro para us-la como arma, mas o bando de Najac apontou os mosquetes em minha direo. Astiza, envolvendo a cabea com o leno, no quis olhar para mim enquanto Silano a conduzia para fora da meseta. "Muito em breve, Gage, percebers o que acabas de jogar fora", disse Silano, em tom mais alto, para mim. "Ah, o que o Rito Egpcio poderia ter-te proporcionado!... Amaldioars o trato que quiseste fazer!" "", resmungou Najac, empunhando a pistola com firmeza. "Ento, que voltes para Acre e morras." Deixei a estaca cair com um tinido. Nossa encenao dera certo - se que Astiza estava mesmo fingindo. "Se assim, ide embora da minha montanha!", ordenei, com voz trmula. Dando sorrisos zombeteiros, desceram a trilha em fila, levando com eles as estacas e os serafins
derretidos. No caminho, Astiza s relanceou para trs uma vez. Quando eles j estavam a uma distncia suficiente para no nos ouvirem, Big Ned finalmente explodiu. "Por todos os santos, chefe, vamos deixar aquele carcamano patife roubar o tesouro que nosso por direito?! Achei que tivesses mais peito!" "Miolo, Ned, miolo. Lembras como te superei no duelo?" Ele ficou com cara de quem falara bobagem e aceitava a repreenso. "Lembro." "Pois aquilo foi com miolo, no muque. Silano no sabe tanto quanto imagina, e isso quer dizer que agora temos nossa chance. Vamos achar uma trilha pela parte de trs desta montanha e fazer nossas prprias exploraes, bem longe daquela scia de degoladores." "Longe? Mas eles sabem onde est esse teu livro!" "Sabem onde o raio lanou a luz. S que no acho que os templrios seriam assim to bvios. A minha esperana que eles tenham sido estudiosos da Grande Pirmide." Ned no entendeu nada. "Ests falando de qu, chefe?" "A minha aposta que o que acabamos de testemunhar foi uma tentativa de levar os outros a equivocarem-se. Sou um apostador, Ned. E a Grande Pirmide incorpora uma sucesso de nmeros conhecida como seqncia de Fibonacci. Tu j deves ter ouvido falar disso, no?" "Com a breca! No ouvi, no."
"Os franceses me ensinaram isso no Egito. A tal seqncia uma representao de certos processos bsicos da natureza. algo sagrado, se preferes essa palavra. Bem o tipo de coisa em que os templrios estariam interessados." "Desculpa, chefe, mas eu achava que tudo isso tinha a ver com tesouros antigos e poderes secretos, no com nmeros e templrios." "So todas essas coisas juntas, Ned. Pois bem, existe uma razo numrica que aparece em qualquer representao geomtrica da seqncia, uma proporo aprazvel entre uma reta mais longa e uma mais curta. Essa proporo corresponde ao nmero 1,61 e uns quebrados e denominada nmero ureo. Os gregos, os construtores das catedrais gticas e os pintores renascentistas a conheciam, e ela foi incorporada nas dimenses da Grande Pirmide." "ureo?" Ned me olhava como se eu fosse maluco, o que talvez fosse mesmo verdade. Tracei retas no cho. "Isso significa que o livro talvez esteja em ngulo com aquilo que vimos aqui. Pelo menos, nisso que estou apostando. Vejamos... Vamos supor que a base da pirmide seja representada pela reta que vimos disparar atravs do vale." Esbocei uma reta para as runas a que Silano e sua turma se dirigiam naquele momento. "Tracemos uma perpendicular que vai do ponto de origem daquela reta mais ou menos para oeste." Apontei a serra escarpada de onde viera a tempestade. "Em alguma interseo dessa nova reta, h um ponto que seria representado se, para completarmos um tringulo retngulo,
trassemos o cateto oposto entre o lugar para onde foi Silano e a reta que imaginei para oeste." "Um ponto onde?..." "Exatamente. Precisaramos saber o comprimento desse cateto oposto. Imaginemos que ele tenha aproximadamente 1,61 vezes o comprimento do cateto que vai daqui ao templo de Silano - a razo urea, que a representao fsica da seqncia de Fibonacci e da prpria constante natural, como vemos na inclinao da Grande Pirmide. difcil estimar distncias, mas, se supormos que o templo est a duas milhas, ento o cateto oposto teria um pouco mais de trs..." Ned forou a vista, acompanhando meu brao enquanto este partia do templo e ia do norte para o oeste. "Meu palpite que ele interceptaria minha linha imaginria para oeste mais ou menos ali onde est aquela imponente runa. Olhamos fixamente para l. No leito do vale, havia um antigo edifcio que dava a impresso de ter sido castigado por artilharia durante uns cem anos. Na realidade, aquilo era apenas obra do tempo e da deteriorao. Ainda assim, o edifcio se erguia mais alto que todo o entulho ao redor. Uma fileira de colunas, sustentando nada, projetava-se do cho ao longo do que parecia ser um antigo passadio ou corredor. "Vistes esse ngulo onde mesmo, efndi?", perguntou Mohammad, procurando entender. "Na inclinao da Grande Pirmide. Foi meu amigo Jomard quem me explicou."
"Quereis ento dizer que o conde Diabo est indo para o templo errado?" "E s palpite, mas a nica chance que tenho. Amigos, estais dispostos a dar uma olhada e torcer para que os templrios tenham dado a esse jogo dos nmeros a mesma importncia que os antigos egpcios davam?" "Aprendi a ter f em vs, efndi." "E, caramba, que piada seria descobrirmos o maldito livro antes deles!", riu Ned. "E aposto que vamos achar ouro tambm..."
- 19 Fingimos descer como se estivssemos indo entrada do canyon para sair da Cidade dos Espritos. Mas, aps termos avanado com cautela por entre algumas pedras, longe dos olhos de Silano, encontramos uma descida difcil por uma ravina, bela e encharcada, na face oeste da montanha. Passamos por mais cavernas e tmulos em runas, junto a cascatas criadas pela chuva (o deserto estava mesmo sedento, sugando a gua tal qual os templrios haviam profetizado), at que chegamos ao leito da cidade. Era a hora do luscofusco, e a chuva terminara. Usando uns morrotes como cobertura para ficar fora das vistas dos outros, alcanamos bem ao escurecer o grande templo que tnhamos visto. Estava fresco aps a tempestade, e estrelas comeavam a salpicar o cu.
Essa estrutura estava em pior estado que o templo que eu explorara em Dendara, no Egito, e era muito menos imponente. O teto se fora, e o que restava parecia um cercado de entulho sem janelas e com ornamentao mnima. O templo era enorme (as paredes pareciam ter cem ps de altura, com um arco de altura suficiente para que uma fragata passasse por ali), mas despojado. No foi difcil achar um tnel que conduzia para baixo. Num dos cantos do interior do templo, havia uma cratera no entulho, como se algum tivesse escavado procura de tesouro; e, no fundo dessa cratera, viam-se tbuas brutas seguras por grandes pedras. "Ento est aqui!", exultou Ned, falando baixinho. Atiramos as tbuas para o lado e deparamo-nos com degraus de arenito. Usando arbustos secos para fazer tochas toscas, acendemos uma (atritando ao com pederneira) e descemos. Logo, porm, ficamos desapontados: aps trinta degraus, a escadaria se interrompeu abruptamente, e a continuao assemelhava-se a um poo, de paredes de arenito liso. Peguei uma rocha e a deixei cair ali. Passaram-se longos segundos, e ento se ouviu uma pancada na gua. Eu ouvia uma correnteza l embaixo. "Um velho poo", disse eu. "Os bedunos o fecharam para que as cabras e as crianas no cassem nele." Frustrados, voltamos para fora para explorar o permetro, mas no achamos nada de interesse. L na frente, velhas colunas que j no sustinham nada se enfileiravam num passadio abandonado. Mais montes de alvenaria quebrada marcavam
velhssimas construes, rudas havia muito. Todos eles davam a impresso de ter sido remexidos, com fragmentos de cermica por toda a parte. Eu vos direi o que a histria: so cacos e ossos esquecidos; um milho de habitantes achando que o momento em que vivem o mais importante, todos reduzidos a p. Dos desfiladeiros em volta, as cavernas pareciam bocas caladas. Sentamos, exaustos. "Parece que a tua teoria no funcionou, chefe", disse Ned, desalentado. "Ainda no, Ned. Ainda no." "Onde esto os espritos, ento?" Ele olhou ao redor, forando a vista. "Cuidando dos prprios assuntos, espero. Acreditas em fantasmas?" "Acredito - eu j os vi. Companheiros perdidos rondam o convs nas nossas viglias mais escuras. Mais algumas almas penadas, de naufrgios desconhecidos, ficam chamando l das ondas. , isso gela o sangue da marujada, podes ter certeza. E, numa casa de cmodos onde morei em Portsmouth, tinha morrido um beb, e a gente costumava ouvir o choro quando. "Isso conversa demonaca", interrompeu Mohammad. " errado ficar a lucubrar os mortos." "Sim, amigos, pensemos em nosso objetivo. Precisamos achar uma maneira de descer. Se h uma coisa que no falta em caa ao tesouro, enfiar-se pela terra." "Deveramos receber salrio de mineiro, sim, senhor!", concordou Ned.
"De manh, Silano entrar no templo que o raio atingiu, e ele ou achar alguma coisa, ou no achar nada. Estou apostando nessa segunda opo - mas precisamos descobrir o tesouro e j estarmos bem longe antes disso." "E a mulher?", perguntou Ned. "Ests desistindo dela, chefe?" "O combinado que ela saia s escondidas e venha ao nosso encontro." "Ah, apostaste tambm nela? Bem, as mulheres no so boa aposta." Dei de ombros. "A vida nada mais que uma aposta depois da outra." "Eu gosto do som do crrego", comentou Mohammad, para mudar de assunto. Eu sabia que ele tambm considerava a jogatina um ardil do diabo. " raro que possamos ouvi-lo no deserto." Prestamos ateno. De fato, um riacho corria por um canal junto ao passadio, parecendo rir ao bater gua. "Foi a tempestade. Acho que, na maioria dos dias, este lugar no tem como ser mais seco", disse Ned. "Mas para onde ser que vai a gua?", continuou Mohammad. "Estamos numa cavidade natural." Levantei-me. , para onde? O deserto, sedento, suga gua com lbios secos. Repentinamente empolgado, desci com dificuldade os degraus quebrados do templo at o passadio e o atravessei para chegar ao riacho temporrio, que agora cintilava luz das estrelas. Ele corria para oeste, no rumo das montanhas, e ento... sumia!
Uma coluna jazia tal qual tronco abatido e atravessado sobre o riacho, e, debaixo dela, a gua desaparecia abruptamente. De um lado, o curso de gua sussurrante. Do outro, seixos e areia secos. Entrei na gua fresca, sentindo-a correr contra minhas panturrilhas, e espiei sob a coluna. Havia na terra uma fenda horizontal, como a plpebra de um gigante sonolento, e era nela que a gua se derramava. Eu conseguia ouvir o eco. Ah, no o olho de um gigante, mas a boca! Suga com lbios secos. "Creio que achei o nosso buraco!", berrei para os outros. Ned saltou para a gua, ao meu lado. "Se escorregarmos para aquela fenda, chefe, podemos ser varridos para o inferno." Deveras. Mas, e se por algum milagre eu adivinhara certo e aquilo era uma pista de onde os templrios tinham realmente ocultado seu segredo de Jerusalm? Parecia ser mesmo a soluo. Sa da parte de baixo da coluna e olhei em volta. Aquela era a nica que cara por sobre o riacho. Qual a probabilidade de que essa coluna tivesse rolado justamente para onde uma caverna conduzia ao subsolo? Uma caverna, ademais, cuja presena s se fez conhecer aps uma grande tempestade com raios e troves? Segui o fuste da coluna at a encosta oposta ao templo. Ela cindia-se da base como num terremoto, e o que restava do p ressaltava do solo tal qual um dente quebrado. Muito curiosamente, essa base parecia mais livre de entulho que a paisagem circundante. Algum
(sculos antes? Ou naquele momento mesmo?) limpara o cho, talvez aps ter tirado a armadura medieval de malha e a tnica branca com uma cruz vermelha. "Ned, ajuda-me a cavar. Mohammad, pega mais arbustos para fazermos tochas." O fuzileiro resmungou. "De novo, chefe?" "Ainda queres o tesouro?" Logo revelamos sob a base da coluna uma plataforma de mrmore gasto. Por um momento, consegui visualizar o que a cidade devia ter sido no auge, com as colunas formando uma arcada umbrosa em ambos os lados do passadio central, apinhado de comrcios e tavernas pitorescos; com a gua fresca jorrando de fontes azuis; e com os camelos, enfeitados com borlas, o lombo carregado de mercadorias, balanando em passo majestoso ao chegar da Arbia. Tambm haveria estandartes, trombetas, pomares... Ali - uma configurao no mrmore! Tringulos entalhados sobressaam-se da base quadrada da coluna. Percebi que, na realidade, eram duas camadas de calo, e uma delas era uma polegada mais alta e justapunha-se outra. "Procurai um smbolo nesta cantaria", ordenei a meus companheiros. "Algo como o emblema dos pedreiros-livres - o compasso e o esquadro da maonaria." Esquadrinhamos tudo. "Nada de nada", sentenciou Ned.
Ora, os templrios eram monges guerreiros, no pedreiros. "E nenhuma cruz? Nenhuma espada? Nenhuma das sephiroth?" "Efndi, s uma coluna quebrada." "No, no - h alguma coisa aqui. Alguma coisa com flor e f, como dizia o poema. uma porta fechada, e a chave ... Temos um quadrado dentro de um quadrado. Quatro ngulos mais quatro ngulos? Do oito. Um nmero sagrado? O oito est na seqncia de Fibonacci." Os dois olharam para mim, sem entender nada. "Mas so dois tringulos tambm - trs mais trs. Seis. No, no isso. Oito mais seis so catorze, mas tambm no isso. Maldio! Ser que errei totalmente de rumo?" Senti que minhas tentativas eram contraproducentes. Eu precisava de Monge, ou de Astiza. "Se sobrepuserdes os tringulos, efndi, tereis a estrela judaica." Claro! Seria to simples assim? "Ned, ajuda a puxar esta base de coluna. Vejamos se os tringulos deste piso deslizam um sobre o outro." "Como ?" Mais uma vez, ele fez cara de quem me achava um luntico. "Puxa! Tal qual fizeste naquele altar nos subterrneos de Jerusalm!" Parecendo estar apenas confirmando a prpria danao, o fuzileiro se juntou a mim. No creio que, sozinho, eu teria conseguido mover aquela cantaria intransigente, mas os msculos de Ned se incharam at quase explodir. Mohammad tambm ajudou. Com extrema relutncia, a base comeou mesmo a mover-se, e os mrmores comearam a
justapor-se. Quando os tringulos se cruzaram, eles foram mais e mais constituindo uma estrelade-davi. "Puxa, Ned, puxa!" "Vais atrair outro raio, chefe." Mas isso no aconteceu. Quanto mais os tringulos se sobrepunham, mais facilmente eles deslizavam. Quando enfim formaram a estrela, ouviu-se um estalido, e repentinamente a base se moveu sem entraves, girando sobre um piv numa das quinas. O aparato inteiro se tornara algo desprovido de peso - e, medida que a base girava, a estrela-dedavi comeava a afundar na terra. Ficamos pasmados. "Pulai, pulai - antes que se feche!" Saltei e pousei no mrmore que descia. Aps um momento de hesitao, Ned e Mohammad fizeram o mesmo, com o rabe segurando as tochas improvisadas. Ouvamos o ranger de antiqssimos mecanismos enquanto descamos. "Estamos indo para o inferno!", lamuriou-se Mohammad. "No, homens - estamos indo para o livro e o tesouro!" Agora o rudo de gua era mais alto, ecoando na cmara subterrnea para onde estvamos descendo, qualquer que fosse ela. Afundvamos por um poo em forma de estrela, sendo nossa plataforma aquele signo-de-salomo, que ento deu um solavanco e parou no fundo. Olhei para cima. O poo era demasiado alto para que consegussemos escalado e sair. Tudo o que eu enxergava eram umas poucas estrelas.
"Como que vamos subir de novo?", quis saber Ned, com razo. "Hum... Ser que devamos ter deixado um de ns l em cima? Vinde, amigos, agora tarde demais. O livro ir nos dizer como sair." Eu disse isso com mais confiana do que de fato sentia. Uma passagem horizontal baixa saa de nosso curioso poo na direo do som da gua. Ns nos agachamos e a seguimos. Mais ou menos na metade do comprimento da coluna cada l em cima, demos numa gruta. A gua, em algum lugar, fazia um rudo possante. "Acendamos uma tocha", disse eu. "Mas uma s podemos precisar das outras." A luz amarela fulgurou. Fiquei boquiaberto. O riacho criado pela tempestade se despejava da fenda que eu vira l em cima - o deserto realmente sugava a gua. Mas no foi isso que atraiu minha ateno. A gruta onde estvamos era artificial e tinha formato de cornucpia ou funil descendente, estreitando-se proporo que baixava. Pela periferia da gruta, havia uma salincia de pedra, com largura suficiente para o andar de um homem. Estvamos aglomerados no alto do funil. A salincia se espiralava ao descer, e seu padro me lembrou a concha de nutilo que Jomard me mostrara na Grande Pirmide, aquela inspirada na seqncia de Fibonacci. Tolo louco por flores, que tambm confia por f. Na sada do funil, a gua era uma lagoa turbulenta e voraginosa. "Um sorvedouro", murmurou Ned. "No do tipo de que a gente consegue sair."
"No, Ned trata-se de outro smbolo. De alguma maneira, o universo constitudo de nmeros, e os templrios, ou as pessoas que construram esta cidade, estavam tentando imortalizar isso em pedra. Exatamente como os egpcios. Meu palpite que o livro sobre isso." "Subterrneos construdos por loucos?" "No, sobre o que est por trs do mundo comum, trivial." Ele balanou negativamente a cabea. " s uma entrada de esgoto, chefe." "No - um portal." Que tambm confia por f. "Diacho, como foi que eu acabei metido contigo?!" "Deveras, efndi - estamos num lugar maligno." "No, este um lugar sagrado. Vs podeis esperar aqui. Aposto que no teriam construdo tudo isto se no houvesse alguma coisa l embaixo. Ou achais que teriam?" Olharam-me como se pensassem que meu lugar era no manicmio, o que no estava longe da verdade. ramos todos absolutamente malucos, procurando um atalho para a felicidade. Mas eu sabia que matara a charada. Sabia que os loucos templrios e seu relmpago haviam colocado o segredo ali, no onde estava Silano; e que, se Astiza viesse nos encontrar como prometido, eu enfim teria tudo - conhecimento, tesouro e mulher. Bem, duas mulheres, mas isso se resolveria no devido tempo. Mais uma vez, senti-me culpado por causa de Miriam, o que se combinava com a doce lembrana de seu corpo e com no pouca apreenso a respeito de sua mgoa. Engraadas
as coisas em que pensamos quando estamos em apuros. Acendi outra tocha e desci, movendo-me lentamente pela salincia em espiral como um caramujo cauteloso. Meus companheiros ficaram l em cima, olhando para mim. Quando cheguei aonde a gua caa no breu da voragem, minha tocha crepitou no ar encharcado. Quo profundo era o poo? Demasiado fundo para que se recuperasse o que quer que os templrios atiraram ali? Sim, porque eu no tinha nenhuma dvida de que eles haviam lanado seu tesouro de Jerusalm por aquele funil, confiando que os membros sobreviventes voltariam um dia e reconstituiriam a ordem daqueles monges guerreiros. Tomei coragem. A gua, eu j disse, era absolutamente escura, rodopiando como num ralo, com espuma verde a boiar na superfcie como coalhos. Havia um bolor de caixo. Mas j no podamos sair pelo mesmo caminho que entrramos, podamos? Assim, colocando a tocha de lado (no que ela se apagou de imediato; agora, a nica luz era a tocha dbil de Ned e Mohammad l no alto), respirei fundo, rezei a todos os deuses que consegui lembrar e mergulhei. A gua estava gelada, mas no imunda. Submergi na escurido. Lenis macios e fibrosos de algas, o lodo de sculos, roavam em mim. Talvez houvesse ali umas coisas a nadar, brancas e flcidas no negrume (eu at as imaginei, estivessem ou no l), mas eu simplesmente fui tateando e mergulhando direto para baixo. Tinha
dois minutos para achar o que procurava ou me afogar. A correnteza j me preocupava. Comecei a entrar em pnico, porque estava cada vez mais evidente que forcejar para voltar superfcie custaria mais tempo e flego do que eu tinha. Eu no podia retroceder e estava sendo arrastado para baixo e para adiante. Notei uma claridade esquisita, vinda da frente. No era brilhante, mas se mostrava bastante bemvinda aps longos segundos de escurido absoluta. Enxerguei um fundo, e ele era tranquilizadoramente branco, como areia limpa. Mas ento vi a verdadeira fonte do brancor e quase engoli gua: o fundo no era areia, mas osso. Eu vira o friso de caveiras na cmara templria de Jerusalm, mas agora era cem vezes pior - um ossrio dos condenados ao inferno. Desta vez eram caveiras de verdade, lvidas, porm suficientemente reconhecveis, em medonha mistura de braos, pernas e costelas. Era um recife sseo e alvejado, com dentes to longos quanto dedos indicadores, e rbitas to vazias quanto covas funerrias. O todo estava envolto em pedras e em correntes de metal cobertas de filamento. Aquilo fora um poo sacrificial ou uma cmara de execues. A correnteza me levou por sobre esse cemitrio, empurrando-me para uma luz cada vez mais larga. Estaria eu tendo alucinaes com a falta de ar? No, era luz de verdade, e passei por um tnel
curto e a vi ainda mais brilhante acima de mim. Embora a correnteza quisesse me arrastar para onde quer que o rio fosse, bati freneticamente as pernas para cima. Vim tona com meu derradeiro flego, arfando - o horror daqueles ossos! Avistei uma salincia arentica e me debati furiosamente para chegar l. Agarrei-me a ela, tomei impulso e me deixei cair na beira daquilo como um peixe exausto. Por um tempo, fiquei apenas deitado, ofegante. Enfim, tomei flego o bastante para levantar meu tronco e olhar em volta. Eu estava no fundo de um poo de arenito. Bem acima, muito alm de meu alcance, estava a fonte daquela luz dbil. A correnteza subterrnea da qual eu escapara passava pela salincia e se derramava em outro tnel. Estremeci: haveria ainda mais ossos a jusante, aos quais se juntariam os meus? Ergui a vista para examinar a luz plida e prateada da lua e das estrelas. No consegui ver o cu, de modo que presumi que alguma coisa estivesse refletindo para baixo a luz celeste. A iluminao era muito fraca, mas suficiente para que eu verificasse que as paredes do poo eram lisas, sem frestas e sem pontos de apoio para os ps e mos; alm disso, o poo era demasiadamente largo para que eu pudesse subir pondo um p e uma mo em cada lado. No havia mesmo nenhuma possibilidade de sair escalando-o. E o que mais? Homens a observar. Pingando, levantei-me lentamente e me voltei quela cmara sombria. Percebi que estava
rodeado de homens, imensos, barbados e sorumbticos, ataviados com armaduras medievais. Tinham elmo, polainas de ferro e (apoiado no cho junto a estas) escudo em forma de pipa de empinar. No eram, porm, homens de verdade, e sim esttuas de arenito, talhadas nas paredes do poo para formar um crculo de sentinelas eternas templrios. Talvez fossem representaes de gromestres da ordem. Eram muito maiores que o tamanho natural, com uns bons nove ps de altura, e seu olhar era severo. Ainda assim, havia algo de reconfortante nesses meus novos companheiros, que nunca baixariam a guarda e, no entanto, ficavam de costas contra as paredes daquela cmara de pedra como se j esperassem que um dia seria encontrado o que eles guardavam. E o que guardavam eles? Um sarcfago, mas no um desprovido de tampa como o que eu vira na cmara rgia da Grande Pirmide. Esse agora seguia o estilo adotado nas igrejas europias, tendo na tampa a figura esculpida de um cavaleiro medieval. O sarcfago era de pedra calcria, e conjeturei que o templrio fosse o primeiro deles Montbard, tio de So Bernardo. Um guardio por toda a eternidade. A tampa era pesada e, a princpio, pareceu firmemente assentada. Mas, quando lhe dei um empurro mais forte, ela se deslocou ligeiramente, com rudo de raspagem, levantando poeira das bordas. Fazendo muita fora, empurrei e empurrei, at que deixei o sarcfago entreaberto e depois
consegui baixar uma das beiradas da tampa at o cho. Em seguida, espiei l dentro. Era uma caixa dentro de outra. O caixo que l estava era de accia, extraordinariamente bem conservada. Ainda que a idia de abri-lo me fizesse parar para pensar, eu j viera longe demais para no faz-lo. Levantei a tampa com um puxo. Dentro, estava o esqueleto de um homem, nada horripilante - ali, derradeiramente exposto, ele s parecia pequeno e nu. As carnes tinham se decomposto havia muito, e as roupas no passavam de pequenos fragmentos. O espado se reduzira a uma sombra estreita e enferrujada da antiga potncia. Mas a mo esqueletal ainda segurava um prodgio que no se corroera e continuava to lustroso e intricadamente ornado quanto no dia em que o forjaram. Era um cilindro de ouro, largo como uma aljava e comprido como um rolo de pergaminho. Sua superfcie mostrava uma profuso de figuras mticas, touros, falces, peixes, escaravelhos e criaturas to esquisitas e extranaturais que tenho enorme dificuldade para descrev-las, to diferentes eram de tudo o que eu vira antes. Havia ranhuras e arabescos, mais estrelas e formas geomtricas, e o ouro era to liso que meus dedos no resistiram a acariciar sua sensualidade. O metal parecia quente. Pelo peso, valeria o suficiente para uma vida inteira de riqueza. Pela concepo, no podia ter preo. O Livro de Tot s podia estar ali dentro. Mas, quando puxei o cilindro para tir-lo do caixo, o esqueleto puxou na direo contrria!
Fiquei to assustado que larguei, e o cilindro se deslocou de leve, assentando-se mais profundamente na ossada. Ento percebi que eu apenas me surpreendera com o peso do objeto. Levantei-o de novo, e o cilindro soltou-se, ameno, liso, pesado. No houve nenhum fulgor de relmpago, nenhum estrondo de trovo. Eu prendera o flego sem perceber, e agora o soltava. Ali no escuro era simplesmente eu, segurando aquilo que se dizia que homens haviam procurado durante mais de cinco mil anos, chegando a lutar e morrer por isso. Estaria tambm aquele cilindro amaldioado? Ou seria ele o meu guia para um mundo melhor? E como abri-lo? Quando examinei o cilindro com mais vagar, tive um estalo - eu j vira alguns daqueles smbolos. No todos, mas alguns estavam no teto do templo de Dendara, e outros, no dispositivo calendrio que eu estudara no poro do L'Orient antes dessa capitnia francesa explodir na batalha naval do Nilo. Havia um crculo sobreposto a uma reta, exatamente como no calendrio, e todas as outras coisas - animais, estrelas, uma pirmide e o signo de Touro, a era astrolgica em que se construra a Grande Pirmide. L estava no apenas a pirmide, mas tambm a pequena representao de um templo com colunas. Vi que o cilindro tinha um eixo mvel, para que se pudesse deslocar e alinhar os smbolos, de maneira semelhante dos crculos daquele calendrio. Assim, experimentei mais uma vez o que eu j conhecia: o touro, a estrela de cinco pontas e o smbolo do solstcio de vero, tal qual eu fizera no navio. Mas no foi
suficiente, e por isso acrescentei a pirmide e o templo. Talvez eu tenha sido inteligente. Talvez eu tenha sido sortudo. Talvez existisse uma centena de combinaes que tambm abririam o cilindro. No sei. Sei apenas que ouvi um estalido e que o objeto se dividiu entre a pirmide e o templo, como um salsicho cortado ao meio. E, quando puxei para lados opostos as duas metades douradas, surgiu o que eu esperava achar l dentro: um rolo, o antigo formato dos livros. Eu o desenrolei, com os dedos trmulos de empolgao. O papiro, se que era esse mesmo o material, no se parecia com nenhum outro que eu vira ou manuseara antes. Era mais lustroso, mais resistente, mais malevel, e tremeluzia de um jeito inusitado. No era couro, papel nem metal. O que seria? A escrita era ainda mais estranha. No eram os pictogramas ou hierglifos que eu encontrara no Egito, era mais abstrata. Era angular e vagamente geomtrica, numa profuso de formas, barras diagonais, curvas irregulares, anis e complexos caracteres. A crer nos lunticos que vinham caando aquela coisa, eu descobrira o segredo da vida, do universo ou da imortalidade e no conseguia 1er nem uma palavra! Em algum lugar, Tot decerto estava dando gargalhadas. Bem, eu j matara charadas antes. E, mesmo se o rolo se mostrasse indecifrvel, o recipiente j garantiria uma vida de rei. Eu estava rico, de novo. Se conseguisse sair daquele buraco de rato.
Ponderei as coisas. Voltar nadando contra a correnteza era impossvel, e, mesmo se eu lograsse faz-lo, s retornaria a um poo que no tnhamos meios de escalar. J seguir a correnteza iria me sugar numa tubulao subterrnea sem nenhuma garantia de que encontraria ar. Eu mal sobrevivera a coisa parecida na Grande Pirmide e no me atrevia a tentar de novo. Eu no vira nenhum sinal de que aquele rio temporrio emergisse em algum lugar. O que Benjamin Franklin faria na mesma situao? Eu me cansara totalmente dos aforismos dele quando tinha de ouvi-los todo santo dia, mas agora sentia falta de Ben. "O homem sensato no precisa de conselhos, e o tolo no os aceita." De fato, mas isso no ajudava muito naquele momento. "Esforo e perseverana conquistam tudo." Que perseverana? Cavar um tnel como fazem os mineiros? Vistoriei a cmara mais detidamente. Ao contrrio das Virgens giratrias do Monte do Templo, as esttuas dos templrios eram rgidas e inamovveis. No havia nenhuma inscrio nas paredes, nenhuma fresta, porta ou buraco onde inserir o cilindro de ouro na esperana de que ele pudesse servir como alguma espcie de chave. Bati de leve nas paredes do poo, mas no identifiquei espao oco algum. Berrei, mas o eco no adiantou de nada. Golpeei as paredes, s para ver se algo cedia, mas no. Como diabos os templrios chegavam ali? No intervalo das tempestades, o tnel ficava seco. Deveria eu esperar? No, ouviam-se mais troves, e um riacho como aquele poderia correr por dias e
dias. Chutei, puxei e urrei, mas nada saiu do lugar. "Nunca confundas agitao com ao", recomendara Ben. O que mais ele dissera? "O bem-feito melhor que o bem dito." , at onde eu sabia, tal mxima no chegava a ser propriamente til naquele meu aperto. "Todos desejam a longevidade, mas ningum quer ser velho." Nas circunstncias, at a velhice parecia prefervel morte. "Nos rios e nos maus governos, o que vem tona a escria." Bem, esse pelo menos falava de rio... Vem tona... Olhei para cima. Se a luz descia, tinha de haver uma sada! Era impossvel escalar sem corda, sem escada, sem ponto de apoio. Se ao menos eu tivesse um dos bales de... Vem tona. Diferentemente de quase todos ns, o que Ben fazia era pensar e s ento agir. Por que isso to difcil? Fosse como fosse, tive finalmente uma idia - uma idia desesperada. E, to importante quanto isso, eu no tinha nenhuma alternativa factvel. Peguei a tampa do sarcfago, que estava encostada quele caixote de pedra, e a arrastei, provocando um grande rudo agudo de raspagem, at a beira da gua. Arfando, eu a coloquei de p como uma porta, equilibrando-se numa das quinas e balanando sobre o rio subterrneo. Mirei o melhor que pude o buraco escuro onde o rio desaparecia a jusante - e ento, com um grunhido, empurrei a tampa para a gua! A fora da correnteza a lanou contra a boca do tnel, interrompendo o fluxo por ali.
No mesmo instante, a gua represada comeou a subir. Ela transbordou para a plataforma de arenito, cobrindo os ps das esttuas dos templrios. Era bom que aquilo funcionasse! "Mil desculpas, Montbard ou quem quer que sejas." Ergui o caixo de accia at a beira do sarcfago e despejei os ossos ali dentro. Eles chacoalharam no sarcfago de pedra calcria, produzindo uma misturada sacrlega, e a caveira me olhava com o que sou capaz de jurar que era reprovao - pois , agora eu estava mesmo amaldioado. Equilibrei o caixo atravessando-o sobre o sarcfago, enfiei sob a camisa o cilindro dourado e entrei naquele esquife como se ele fosse uma banheira. A gua subia depressa, quase um p por minuto. Ela ultrapassou os joelhos dos templrios, alcanou o alto do sarcfago, derramou-se l dentro at ench-lo - e ento me fez flutuar. Roguei ao Deus cristo, roguei ao Deus judaico, roguei aos deuses egpcios. Aleluia, aleluia! Minha arca se elevou. Eu sabia que, medida que o poo se enchesse e a coluna de gua ficasse mais pesada, aumentaria a presso sobre a tampa do sarcfago l embaixo. Assim, s me restava a esperana de que ele agentasse tempo suficiente. "Quem vive de esperana morre em jejum." Bem, meu conselho escolher os aforismos que nos sejam mais convenientes, de maneira que, naquele momento, eu s fiz ter esperana e mais esperana. Fui subindo, um precioso palmo de cada vez. Dei-me conta de que meu plano tambm faria a gua refluir para a
cmara em espiral l atrs, na direo de Ned e Mohammad. Desejei que soubessem nadar. A luz tnue se intensificava proporo que eu subia, e estrelas se refletiam no breu da gua. Encontrei uma ou duas costelas que no haviam sido despejadas no sarcfago e, sem nenhuma cerimnia, atirei-as para fora, ponderando que eu no me importaria com o que fizessem com meus ossos depois que eles j no me fossem necessrios. O caixo subia e subia, at que vi um disco prateado, reflexo da luz de um poo enviesado mais acima - e, nesse poo, havia degraus de arenito! Eu me pus de p em meu esquife oscilante, estiquei os braos at segurarme ao primeiro degrau e tomei impulso. Era rocha slida! Atrs de mim, a gua ainda se elevava. Mas a ouvi um baque, e a gua pareceu arrotar e, com um rudo de sorvedouro, comeou a desabar, levando meu caixo numa espiral - a tampa do sarcfago cedera presso. A gua voltava a fluir por aquele ralo, mas eu no tinha tempo para isso. Subi os degraus, percebendo que se tratava do mesmo poo que encontrramos no templo em runas. Se no tivssemos afastado aquelas tbuas, eu agora no teria nenhuma iluminao ali. Sa entre as paredes de pedra, passei com dificuldade sobre o entulho e atravessei correndo o passadio para voltar base de coluna por onde descramos. "Ned! Mohammad! Ainda estais vivos?" "Por um triz, chefe, por um triz! O funil inteiro se encheu de gua, e eu e Mohammad estvamos
prestes a nos afogar feito ratos! Mas a a gua baixou!" "Como chegastes a em cima, efndi? O que acontece?" "Ora, eu s queria dar-vos um banho, rapazes." "Mas como sastes?" "Peguei uma balsa." Eu podia ver seus rostos, virados para cima como duas pequenas luas. "Esperai, que tenho uma idia para tentar trazervos para cima." A base da coluna cada, vs vos lembrareis, afastara-se do piso em forma de estrela para que a plataforma comeasse a descer. Ento eu a empurrei de volta para o lugar de origem, houve um estalo, e a plataforma l embaixo comeou a subir pelo poo de seo estrelada, com Ned e Mohammad gritando de alegria como dois insanos. Quando saram dali, fiz que me ajudassem a empurrar a base de novo para o lugar de direito, selando novamente a entrada. E ento Ned me abraou como se eu fosse a me dele. "Com mil demnios, chefe, s mesmo um mago! Sempre te safas como um gato! E achaste o tesouro?" "Receio que no haja nenhum tesouro." Os dois agora eram o retrato da decepo. "Acreditai, eu procurei mesmo. Era s um tmulo templrio, meus amigos. Ah, mas encontrei isto." Tal qual mgico, saquei o cilindro dourado. Ficaram boquiabertos. "Aqui, vinde sentir o peso." Deixei que o segurassem. " ouro suficiente para que ns trs nos estabeleamos de maneira condigna." "Mas, efndi", disse Mohammad, "e vosso livro? Ele est aqui? Est repleto de segredos mgicos?"
"Est aqui, sim, e a coisa mais esquisita que j vi. Tenho certeza de que faremos um favor ao mundo se o mantivermos longe de Silano. Talvez uma pessoa de erudio consiga algum dia entender o que est escrito ali." "Uma pessoa de erudio?" "Eu finalmente acho o livro - um trabalho de Hrcules - e no consigo ler nem uma palavra!..." Eles me olharam consternados. "Busquemos Astiza."
20
A sada mais direta da Cidade dos Espritos nos faria passar pelo acampamento de Silano, coisa que eu no me atrevia a fazer. Em vez disso, enquanto as estrelas se apagavam e o cu enrubescia, primeiro recolocamos as tbuas do poo no lugar, l no templo (eu no queria a queda de uma criana pesando na minha conscincia) e ento fizemos o caminho inverso pela laboriosa rota que subia ao Lugar do Alto Sacrifcio e depois descia. No trajeto, paramos s por insistncia de Ned, para deix-lo arrancar do cho um pinheirinho murcho. "Pelo menos j um porrete", explicou. "Um convento de freiras tem mais poder de fogo que a gente." Enquanto seguamos adiante, ele ia arrancando os galhos com as manoplas, qual Sanso, para dar forma ao porrete. Subimos, passamos pela meseta e dali descemos, j ofegantes e exaustos quando alcanamos o leito do canyon no anfiteatro romano em runas. Uma
milha ou mais atrs de ns, eu via o brilho de uma fogueira l onde Silano acampara. Se Astiza sara de mansinho, demoraria quanto at que percebessem sua ausncia? Para leste, o cu fulgurava. Os picos mais altos j estavam iluminados. Ns nos apressamos de volta pelo canyon principal da cidade, rumo estreita e sinuosa entrada, e demos outra vez na fachada do Khazneh, o primeiro grande templo que vramos. Enquanto os outros se ajoelhavam no riachinho para beber, eu subi os degraus aos pulos e adentrei o escuro templo. "Astiza?" Silncio. Combinramos nos encontrar ali, no? "Astiza!" O nome ecoou como se zombasse de mim. Maldio. Teria eu novamente me equivocado com aquela mulher? Teria Silano atinado com o que pretendamos e feito-a prisioneira? Ou estaria ela simplesmente atrasada ou perdida? Corri para fora. O cu clareava, do cinza ao azul, e o alto dos desfiladeiros comeava a brilhar. Tnhamos de partir antes que o conde visse que eu o conduzira a um buraco vazio! Mas eu no ia preferir mulher que amava a um texto que no conseguia ler. Se fssemos embora sem ela, eu voltaria a ser torturado pelo arrependimento. Se ficssemos tempo demais, meus amigos poderiam ser mortos. "Ela no est aqui", informei, preocupado. "Ento precisamos ir embora", disse Mohammad. "Cada milha que colocamos entre ns e aqueles
infiis francos dobra nossas chances de escapar." "Mas eu pressinto que ela est vindo." "Chefe, no podemos esperar." Ned tinha razo. Eu j ouvia dbeis chamados do grupo de Silano ecoarem pelo canyon, mesmo que ainda no soubesse se eram de empolgao ou de indignao. "S mais alguns minutos", insisti. "Ser que a mulher vos enfeitiou? Ela far que sejamos todos apanhados - junto com vosso livro!" "Se necessrio, podemos usar o livro numa troca." "Mas ento por que raios viemos aqui?" De repente, Astiza surgiu na curva do canyon, espremendo-se contra a rocha para minimizar a probabilidade de ser vista. Estava plida, ofegante pela corrida, com negras madeixas por sobre os olhos. Voltei correndo at ela. "Por que demoraste tanto?" "Eles estavam to entusiasmados que no conseguiam dormir. Fui a primeira a deitar, e que agonia esperar a noite toda at que ficassem quietos! A tive de rastejar umas cem jardas ou mais pelo leito do canyon, at passar por uma sentinela adormecida." Seu vestido estava imundo. "Acho que j perceberam que sumi." "Consegues correr?" "Se no achaste o livro, eu nem quero fugir." Os olhos dela brilhavam, inquiridores. "Sim, eu o achei." Astiza me agarrou os braos, um sorriso aberto como o de criana a esperar um presente. Ela sonhara com o livro muito, muito mais tempo do que eu. Tirei o cilindro da camisa. Astiza ficou quase em flego.
"Sente o peso disto", eu lhe disse. Seus dedos exploraram o cilindro tal qual um cego o faria. "Ele est mesmo a dentro?" "Est. Mas no consigo l-lo." "Por Al, efndi, precisamos ir!", disse Mohammad, chamando-me. No lhe dei ateno, girei o cilindro para abri-lo e desenrolei parte do livro. Mais uma vez, impressionou-me quo estranhos pareciam aqueles caracteres. Astiza segurou o livro com ambas as mos, espantada, mas relutando em devolv-lo. "Onde estava?" "No fundo da tumba de um templrio. Resolvi apostar que havia um ardil nas pistas que deixaram - os templrios exigiriam que os que buscassem o livro usassem a matemtica das pirmides para demonstrar que tinham o conhecimento necessrio." "Isto mudar o mundo, Ethan." "Para melhor, espero. Do meu ponto de vista, as coisas no tm mesmo como ficar muito piores." "Chefe!" O berro de Ned nos tirou de nosso transe mtuo. Ele levara a mo ao ouvido, apontando. Era o eco de um disparo de arma de fogo. Arranquei o livro de Astiza e girei o cilindro para fech-lo. Eu o enfiei de novo por baixo da camisa e corri para onde o fuzileiro olhava. A luz do sol comeava a cobrir a fachada do templo, fazendo que o desfiladeiro e a rocha talhada adquirissem um tom rseo brilhante. Mas Ned apontava para o lado de onde viramos, na direo do acampamento de Silano. Um espelho parecia piscar ali.
"Esto sinalizando para algum." Ned apontou para a meseta arentica que a entrada do canyon cortava em duas partes. " para algum diabo que est l em cima, pronto a fazer rolar uma pedra grande." "Efndi, os homens de Silano esto vindo!" "Ento temos que tirar dos rabes aqueles cavalos l na entrada. Estais preparados para tanto, marujos?" Parecia o tipo de conclamao que Nelson ou Smith usariam. "Vamos para casa! Vamos para a Inglaterra!", bradou Ned. E a corremos, sendo engolidos num timo pela estreita entrada do canyon e totalmente cegados por aquelas muitas curvas. Nossos passos ressoavam enquanto arremetamos terreno acima. Os braos de Ned pulsavam com o esforo de segurar o porrete. Os cabelos de Astiza esvoaavam. Ouvimos berros bem l em cima e, ento, estampidos. Olhamos de relance: uma pedra do tamanho de um barril de plvora estava ricocheteando entre os paredes ao cair pela fenda, com pedaos voando como metralha. "Mais depressa!" Corremos muito, ficando frente da pedra cadente antes que ela atingisse com estrondo o leito do canyon. Da beira da meseta, gritavam em rabe. Continuamos correndo, agora mais lentamente. Nisso, houve um claro e um estrpito - os desgraados tinham minado o canyon inteiro! Silano devia ter adivinhado que pretendamos passar a perna nele e quis cortar nossa rota de
fuga. Uma avalanche de pedras foi pelos ares aps uma detonao de plvora, e desta vez empurrei meus companheiros para trs; ento nos encolhemos debaixo de uma salincia rochosa. A avalanche veio, tonitruante, fazendo tremer o leito do canyon, e ento j estvamos correndo de novo, movendo-nos com dificuldade sobre o entulho recm-criado, atravs da nuvem de poeira, que, alis, vinha nos ocultar. Balas sibilaram inutilmente, pois estvamos invisveis. "Apressai-vos, antes que estourem outra carga!" Houve mais uma exploso, mais um dilvio de pedra, mas desta vez as pedras caram atrs de ns, o que atrasaria a perseguio por Silano. Calculei que j houvssemos percorrido mais de metade daquele buraco de cobra, e, se todos os rabes estivessem l em cima detonando plvora, no teria ficado nenhum para guardar os cavalos. Ns, uma vez montados, afugentaramos os cavalos restantes e... Sem flego, dobramos outra curva do canyon e vimos que nosso caminho estava bloqueado por um carroo. Era uma dessas jaulas volantes que eu vira ser usadas no transporte de escravos, e depreendi que se tratasse daquele carroo coberto de oleados que, perto do acampamento, assustara os cavalos. Havia um nico rabe junto a ele, apontando um mosquete para ns. "Eu cuido disto", bradou Ned, erguendo o porrete. "Ned, no facilites o disparo dele!" No instante em que o fuzileiro arremeteu, porm, houve um silvo, e uma pedra cortou o ar perto de
nossos ouvidos. Quase com a velocidade de uma bala, ela acertou o rabe na testa, justamente quando ele disparara o mosquete. O projtil passou longe. Olhei para trs: Mohammad tirara o turbante e o utilizara para improvisar uma funda. "Quando era menino, eu tinha de manter os ces e chacais longe das ovelhas", explicou. Corremos a dominar o atordoado rabe e passar pelo carroo, com Ned na dianteira e Astiza atrs dele. Mas, no que o homem foi caindo como se estivesse grogue, ele acionou uma alavanca, e a rampa traseira da jaula se abriu, batendo com estrondo no cho. Uma coisa sombria e imensa levantou e se aprestou. "Ned!", gritei. A coisa saltou como se lanada por catapulta, e no impulsionada pelas prprias patas traseiras. Tive um vislumbre apavorante - a juba marrom, os dentes brancos, o rosado recndito da bocarra. Astiza berrou. Ned e o leo urraram em unssono e colidiram um com o outro. O porrete foi deitando pancadas mesmo quando as mandbulas do predador se fecharam e mastigaram o antebrao esquerdo do fuzileiro. Ned bramiu de agonia e raiva, mas tambm ouvi as costelas do leo se quebrarem quando o porrete de pinheiro golpeou seguidamente o flanco do animal, com tanta velocidade e mpeto que fez o leo cair de lado, levando Ned junto pelo brao. Os dois rolaram, o humano gritando e o felino rosnando, numa confuso de plo e poeira. O fuzileiro se levantou, e o porrete bateu de novo e de novo, mesmo enquanto Ned era atingido pelas
garras. Suas roupas estavam sendo rasgadas, e sua carne, dilacerada. Foi nauseante. Saquei minha machadinha, to insignificante quanto uma colher de ch, mas, antes que eu pudesse ter ponderado as coisas e fugido como qualquer homem sensato, tambm eu investi contra o bicho. "Ethan!", ouvi Astiza chamar, como se ela estivesse muito longe. Outra pedrada de Mohammad passou sibilando por mim e acertou o leo, fazendo a cabea dele virar depressa. Essa distrao foi to oportuna que pude sair daquele corpo-a-corpo e golpear a cabea do animal. Eu o acertei acima de um dos olhos, e o felino largou o brao de Ned e rugiu de dor e fria, movendo violentamente a cauda e batendo o traseiro na terra. Agora Astiza tambm atacava, erguendo bem acima da cabea uma pedra pesada, que ela arremessou como uma atleta, direto na fua ensangentada do leo. Nossa tresloucada arremetida o deixou confuso. Contra todas as expectativas, ele fugiu, passando aos saltos pela jaula volante que o trouxera. Subiu o canyon em disparada e, nisto, atacou os rabes de Najac que vinham tentar nos deter. Eles, berrando ante aquela reverso do que se esperava de sua arma secreta, deram meia-volta e correram. O leo, ensangentado, derrubou um, fez uma pausa para quebrar-lhe o pescoo, e depois partiu atrs dos outros e da liberdade nas montanhas mais alm. Os cavalos que puxavam o carroo relinchavam de pavor.
Estvamos em choque, com o corao disparado. Sangue e plo se grudavam ao fio de minha machadinha. Astiza se dobrara para a frente, com o peito arfante. Espantosamente, estvamos todos, exceo de Ned, inclumes. Eu ainda sentia o fedor do felino, aquele cheiro rncido de mijo, carne e sangue, e minha voz tremia quando me ajoelhei junto ao gigantesco fuzileiro. A arremetida de Ned contra as mandbulas do leo foi a coisa mais corajosa que eu j vira. "Ned, Ned! Precisamos seguir em frente!" Eu resfolegava. "Silano ainda est vindo atrs, mas acho que o leo limpou caminho para ns." "No d mais, chefe." Ele falava com dificuldade, entre dentes. Ned sangrava como um aoitado. O sangue, vvido, brilhava. Mohammad enrolava o pano do turbante no brao lacerado do gigante, mas era intil - o antebrao parecia ter sido retalhado por uma mquina. "Tereis de continuar sem mim." "Ns te carregaremos!" Ele riu. Ou melhor, arfou, um casquinar espirrado, com os dentes cerrados e os olhos arregalados por j ter cincia do prprio destino. "Ah, claro..." Estendemos os braos para tentar ergu-lo mesmo assim, mas Ned gritou de dor e nos empurrou para que nos afastssemos. "Deixai-me - todos sabemos que no vou conseguir voltar para a Inglaterra!" Gemeu, e lgrimas lhe marcavam as faces. "O bicho me esfolou at as costelas, a perna parece que quebrou ou saiu do lugar, e eu peso mais que o rei Jorge com a banheira dele. Correi, correi como loucos, enquanto ainda vale a pena."
Os ns de seus dedos estavam brancos, ali onde se agarrava ao porrete. "Mas de jeito nenhum eu vou te deixar, Ned! No depois disto tudo!" "E morrers se no o fizeres, e o teu livro do tesouro vai acabar na mo daquele conde doido e seu capanga luntico. Diacho, faze a minha vida ter valido alguma coisa - vive! Eu posso me arrastar de volta para aquele monte de entulho e peg-los quando passarem." "Eles vo te liquidar!" "Ser uma caridade, chefe... Uma caridade..." Ele fez uma careta de dor. "Eu j tinha o pressentimento de que no tornaria a ver a Inglaterra se viesse contigo. Mas s uma companhia danada de interessante, Ethan Gage. s mais que apenas um ianque batoteiro - ah, se s!..." Por que ser que nossos piores inimigos s vezes se transformam em nossos melhores amigos? "Ned..." "Correi, diacho! Correi - e, se por acaso achares a minha mezinha, d um pouco daquele ouro para ela." E, afastando-nos, ele se levantou com obstinao, primeiro ajoelhando, depois se pondo de p. Comeou ento a cambalear de volta pelo caminho que fizramos, seu flanco era uma superfcie sanguinolenta. "Jesus, que sede me deu!" Fiquei paralisado, mas Mohammad me puxou. "Precisamos ir, efndi, agora!" Fugimos. No me orgulho dessa deciso, mas, se tivssemos ficado para enfrentar os franceses
armados de Silano, levaramos com certeza a pior e para qu? Assim, passamos correndo pelo rabe esparramado junto ao carroo, pulamos por sobre aquele que o leo mastigara e subimos sem parar o aclive do canyon, arquejando, j meio esperando a cada curva que o felino enlouquecido saltasse sobre ns. O leo, entretanto, se fora. Quando chegamos entrada do canyon, ouvimos o eco de gritos e depois disparos atrs de ns. Ressoou um berro, o grito tonitruante que um homem grande poderia dar quando submetido dor insuportvel. Ned ainda tentava ganhar tempo para ns, mas o preo era a agonia do fuzileiro. Os cavalos estavam amarrados onde os havamos deixado um dia antes, mas agora batiam os cascos, davam relinchos agudos e reviravam os olhos. Selamos os trs melhores, puxamos a corda com os outros e comeamos a galopar por onde chegramos ao canyon. Apesar de escutarmos mais disparos, j estvamos bem fora de alcance. Quando subamos para o planalto, olhamos para trs. O grupo de Silano surgira do canyon e nos encalava com tenacidade, mas a p. A distncia entre ns e ele aumentava. No tnhamos como manejar tantos cavalos, de modo que soltamos os outros, menos trs para muda. Nossos perseguidores precisariam de certo tempo para recaptur-los. E ento, chorosos e totalmente exauridos, pegamos o rumo norte para Acre. Ao entardecer, alcanamos o castelo dos cruzados onde j acampramos. Embora eu imaginasse que
deveramos ter seguido mais adiante, Mohammad e eu, aps termos perdido uma noite de sono pegando o livro e fugindo pelos canyons, estvamos bambos na sela. Astiza no se encontrava muito melhor que ns. Sou um apostador, e apostei que Silano e Najac no recuperariam os cavalos to cedo. Por conseguinte, paramos. As pedras do castelo se alaranjaram fugazmente medida que o sol se punha, e achamos parcas raes de po e tmara nos alforjes. No ousamos acender fogueira. "Vs dois dormireis primeiro", disse Mohammad. "Eu ficarei de vigia. Mesmo que os franceses e rabes estejam a p e no tenham como chegar aqui logo, ainda h salteadores por estas bandas." "Ests to exausto quanto ns, Mohammad." "E por isso que precisais substituir-me em poucas horas. Naquele canto, h relva para servirvos de leito, e a pedra ainda estar quente do calor do sol. Ficarei no alto da torre em runa." Mohammad, ainda meu guia e guardio, sumiu por ali. "Ele est nos deixando a ss de propsito", disse Astiza. ", eu sei." "Vem. Estou tiritando." Naquela poca do ano, a relva ainda estava verde e macia. Quando a noite veio lanar sua sombra, um lagarto se enfiou leve e rapidamente num buraco. Deitamos juntos ao lado da rocha clida nossa primeira oportunidade de estarmos verdadeiramente prximos desde que Astiza me esbofeteara na frente de Silano. Ela se achegou
para que eu lhe desse calor e a confortasse. Estava trmula, com as faces molhadas. " sempre to difcil!..." "Ned no era mau sujeito. Fui eu que trouxe a desgraa para ele." "Quem ps o leo l foi Najac, no tu." Mas eu trouxera mesmo Ned, e Astiza trouxera o anel. Lembrei-me subitamente dele e o tirei de sua pequena bolsa. "Tu o conservaste, mesmo tendo dito que era amaldioado." "Era tudo o que eu tinha de ti, Ethan. Eu pretendia devolv-lo em oferenda." "Os deuses tinham algum objetivo ao deixar que o achssemos?" "No sei... No sei..." Ela se agarrou ainda mais a mim. "Talvez ele traga boa sorte. Afinal, estamos com o livro - e estamos juntos de novo." Ela me olhou com espanto. "Caados... Incapazes de ler o livro... Um companheiro j morreu..." Estendeu a mo. "D-me o anel." Quando o fiz, ela ergueu o torso e atirou o anel no canto oposto do ptio em runas. Ainda ouvi o tinido. Um rubi, grande o bastante para que um homem pudesse viver com conforto o resto da vida, perdera-se. "O livro j basta. Chega, chega!" E ento ela voltou a deitar, com olhar arrebatado, e me beijou, com um ardor eltrico. Um dia talvez ainda tenhamos uma cama de verdade, mas, assim como no Egito, tivemos de aproveitar o lugar e o momento disponveis. O ato foi urgente, atrapalhado, ns apenas semidespidos, um desejo no tanto pelo corpo um do outro quanto pela unio tranqilizadora contra
um mundo frio, traioeiro, implacvel. Ofegamos ao copular, forcejando como animais, Astiza dando um grito abafado, e depois nos deixamos cair juntos numa inconscincia quase imediata, tendo nossas roupas de baixo emaranhadas como uma concha em torno de ns. Eu me comprometi vagamente a substituir Mohammad tal qual combinado. Ele nos acordou ao amanhecer. "Sinto muito, Mohammad!" Batalhvamos para nos vestir to decorosamente quanto possvel. "Est tudo bem, efndi. Eu mesmo adormeci, provavelmente minutos depois que vos deixei. J perscrutei o horizonte - ningum se aproxima. Mas precisamos seguir viagem logo, pois quem sabe quando o inimigo recuperar os cavalos?" "Sim. E, com os franceses dominando a Palestina, resta apenas um lugar onde estaremos seguros Acre. E eles sabem disso." "Como que passaremos pelo exrcito de Napoleo?", perguntou Astiza, com denodo, e no preocupao. Parecia rejuvenescida luz cada vez mais forte; ela brilhava, seus olhos cintilavam, seus cabelos estavam magnificamente despenteados. Eu tambm me sentia revivido. Foi bom termos nos livrado do anel do fara. "Cortaremos para o litoral, acharemos um barco e navegaremos para l", respondi, subitamente confiante. Eu tinha o livro, eu tinha Astiza... e, claro, eu tinha Miriam, detalhe que eu cuidara no de dizer a Astiza. Bem, primeiro as prioridades. Montamos e descemos a galope o morro do castelo.
No nos atrevemos a parar para a segunda noite. Cavalgamos to celeremente quanto os cavalos agentaram, fazendo o caminho inverso para o monte Nebo e depois descendo para o mar Morto e o Jordo, a levantarmos nuvens de poeira. Imaginamos que os montes de Jerusalm ainda pululassem de combatentes irregulares da Samaria, os quais podiam ou no nos considerar aliados. Por isso, continuamos no rumo norte pelo Jordo e voltamos ao vale de Jezreel, ficando bem longe do campo de batalha de Kleber. Abutres orbitavam o morro onde resistramos s investidas otomanas. A no ser pela machadinha, meu grupo ainda estava desarmado. Em certa ocasio, vimos uma patrulha de cavalaria francesa e desmontamos para nos esconder num olivedo enquanto passavam a uma milha de ns. Duas outras vezes, avistamos cavaleiros otomanos e nos ocultamos tambm deles. "Arremeteremos para o litoral perto de Haifa", disse eu a meus companheiros. "Ali h pouca guarnio francesa. Se conseguirmos furtar um barco e chegar aos britnicos, estaremos a salvo." E assim cavalgamos pelo trigo alto, dividindo-o a nossa passagem como se fssemos Moiss. A Cidade dos Espritos era agora to irreal quanto um sonho, e a grotesca morte de Ned, um pesadelo incompreensvel. Astiza e eu readquirimos aquele companheirismo fcil dos casais, e Mohammad era nosso fiel acompanhante e parceiro. Desde nossa fuga, ele no mencionara dinheiro nem uma nica vez.
Estvamos todos mudados. A salvao parecia prxima, mas, quando fomos para nordeste rumo s elevaes do litoral e ao monte Carmelo (que cingiam Haifa), vimos uma fileira de cavaleiros esperando mais adiante. Escalei um pinheiro para olhar com minha luneta, sentindo o pavor chegar quando focalizei uma figura e depois outra. Como era possvel?! Eram Silano e Najac. Eles haviam no apenas nos alcanado, mas tambm estabelecido aquela guarda avanada para nos apanhar em armadilha. Talvez pudssemos nos esgueirar, contornando-os. Mas no: quando fugimos para o norte, demos em campos abertos que no era possvel evitar, e o grupo de Silano, com um grito, avistou-nos. A perseguio continuava! Eles tomaram o cuidado de manter-se sempre entre ns e o litoral. "Por que no nos apanham?", quis saber Astiza. "Esto nos conduzindo para Napoleo." Tentamos nos desviar para o Mediterrneo naquela noite, mas uma salva de tiros noz fez voltar correndo. Desconfiei que os rabes de Najac fossem peritos rastreadores e tivessem adivinhado para onde amos. Agora, no tnhamos como nos livrar. Exigimos muito das montarias, o bastante para mant-los a distncia, mas ficvamos desamparados sem armas. Eles no pressionavam, sabendo que nos tinham encurralados. "Efndi, podemos voltar para o interior, na direo de Nazar ou do mar da Galilia", sugeriu Mohammad. "Podemos at buscar refgio com o exrcito turco em Damasco."
"E perder tudo o que conseguimos?", respondi, com gravidade. "Ns dois sabemos que os otomanos se apoderariam do cilindro num instante." Olhei para trs. "Bem, o plano este: vamos em disparada para as linhas francesas, como se quisssemos nos render a Napoleo, mas a continuamos em frente, direto pelo acampamento, e corremos para as muralhas de Acre. Caso Silano ou os franceses nos sigam, daro com o fogo dos ingleses e de Djezzar." "E depois, efndi?" "Toro para que nossos amigos no atirem em ns." E esporeamos para cobrir as derradeiras milhas.
21
Estvamos na plancie litornea quando o sol se levantou. O Mediterrneo era uma tentadora travessa de prata cujo acesso, entretanto, nos era negado por nossos inimigos. Quando galopvamos, eles, que vinham poupando os animais, partiam tambm para o galope. Eu os observava pela luneta e reconheci alguns cavalos, daqueles que nossos perseguidores tinham recapturado. Tambm havia novas montarias. Silano por certo as forara brutalmente. Nosso descanso no castelo dos cruzados custara muito caro. Nossa nica esperana era o elemento surpresa. "Astiza! Quando nos aproximarmos do campo,
agita o teu leno como uma bandeira branca! Temos de confundi-los!" Ela assentiu, inclinando-se concentradamente sobre o pescoo de seu cavalo, a pleno galope. Ouvimos tiros atrs de ns. Olhei para trs: os homens de Silano estavam muito fora de alcance, mas tentavam alertar as sentinelas francesas de que devamos ser capturados. Eu estava apostando na confuso, reforada pelo fato de termos uma mulher conosco. A milha final foi uma corrida de vida ou morte, com nossas montarias espumando, as ilhargas arfantes, ns de cabea baixa porque continuavam a disparar atrs de ns. As sentinelas j estavam alertas, com os mosquetes aprestados e as baionetas caladas, mas se mostravam indecisas. "Agora! Agita o leno agora!" Astiza fez isso, erguendo um dos braos com o leno a tremular atrs de si e endireitando-se o bastante para que vissem seu tronco feminino, com o vento comprimindo o vestido contra o busto. Os guardas baixaram as armas. Passamos em tropel. "So bandidos e irregulares atrs de ns!", bradei. O bando de Najac parecia mesmo uma turma de salteadores. Agora os guardas estavam apontando sem muita convico para nossos perseguidores. "No afrouxeis!", berrei para Astiza e Mohammad. Passamos num timo pelas tendas do hospital e saltamos as hastes das carroas. Aqueles ali no eram Monge e o boticrio Berthollet? E no era Bonaparte a sair correndo da tenda? Disparamos atravs do crculo de soldados junto a uma
fogueira, com homens se espalhando e brasas voando. Por toda a parte, militares se levantavam do desjejum, exclamavam e apontavam. Seus mosquetes descansavam em pequenas pirmides bem ordenadas, tendo por base as coronhas e por pice o encontro das bocas dos canos, com as baionetas a cintilar. Seguimos pelo corredor entre as tendas de um regimento, num espao que se assemelhava a uma alameda, levantando poeira. Atrs de ns, eu ouvi gritaria e altercao quando o grupo de Silano, apontando furiosamente, teve de parar ante os guardas. Talvez consegussemos mesmo. Um sargento apontou uma pistola, mas dei uma guinada, e o homem foi jogado de lado pela parte dianteira de meu cavalo, com a arma disparando inofensivamente. Mohammad, sagaz, apanhou uma bandeira tricolor e a levou consigo, como se estivssemos lanando uma investida contra Acre. Mas no adiantou: agora uma cerca viva, de infantaria francesa, estava se formando entre ns e as muralhas da cidade, que ainda se encontrava a uma milha de distncia. Por isso, avanamos dando voltas entre as linhas, saltando um dique de areia. Comearam a atirar, e as balas passaram sibilando como vespas insistentes. L nas muralhas de Acre, soavam trombetas. O que pensaria Smith, depois que eu desertara sem dizer uma palavra? Ali! Uma cantina de campanha, com os homens desarmados e ocupados em cozinhar. Virei com o cavalo e chispei por eles, dispersando-os. O fato de estarem ali em bom nmero e poderem ser
alvejados nos protegeu de mais disparos. Ento saltei uma trincheira, galopando ao longo do velho aqueduto rumo cidade... E ento voei. Por um momento, no entendi o que acontecera e pensei que talvez meu cavalo tivesse levado um tiro ou repentinamente estourado o corao. Ca em terra fofa e fui parar adiante dos trambolhes, meio cego pela poeira. Mas, enquanto rolava, percebi que Mohammad e Astiza tambm haviam sido derrubados, com seus cavalos relinchando quando as patas estalaram, e vi a corda que s pressas fora esticada para nos fazer cair. Um cozinheiro deu um grito de triunfo - havamos sido abatidos quando nossa meta j estava diante de nossos olhos! Levantei-me, com as mos em carne viva, e corri de volta para os outros dois. Mais disparos, e balas passaram zunindo. "Efndi, o aqueduto! Podemos us-lo como proteo!" Assenti, puxando impiedosamente Astiza para que ela no afrouxasse o ritmo. Com o tornozelo torcido, sua expresso era de dor, mas tambm de tenacidade. Flavia uma pilha de escadas, reunidas ali para a investida seguinte dos franceses. Eu e Mohammad pegamos uma e a jogamos contra uma das colunas do aqueduto romano. Empurrei Astiza escada acima, fazendo-a rolar por sobre a borda do aqueduto, de modo que pudssemos nos deixar cair na calha por onde a gua costumava correr. Era um fiapo de proteo. Balas ricocheteavam na
pedra. "Ficai abaixados e segui pela calha at que estejamos sob as armas dos britnicos", disse eu. "Astiza, vai na frente, para sinalizar para eles." Aquela brava mulher se aferrara ao leno mesmo aps ter cado da montaria. Ela o empurrou para mim."No, a ti que eles conhecem. Corre e consegue socorro. Vou seguirte o mais depressa que puder." "Ficarei com ela", prometeu Mohammad. Olhei por sobre a beira do aqueduto. O acampamento francs inteiro estava em polvorosa. Silano conseguira entrar l e estava agora apontando. Najac parecia estar municiando meu fuzil. No era hora para delongas. Com as balas zunindo e ricocheteando, corri pela calha, que tinha menos de trs ps de profundidade. Astiza e Mohammad me seguiram com dificuldade, agachados. Dou graas a Tot que os mosquetes sejam armas sem preciso nenhuma! Adiante, mais soldados franceses, em trincheiras avanadas, estavam se voltando para toda aquela agitao e apontando seus mosquetes e pistolas. Mas ento um canho ingls trovejou de Acre, levantando uma nuvem de terra, e os franceses se abaixaram instintivamente nas trincheiras. Houve outro disparo de artilharia, e mais outro. Os defensores por certo no faziam idia de quem estava se beneficiando com os disparos deles, mas haviam decidido que qualquer inimigo dos franceses s podia ser amigo seu.
Outro estrondo, um grito, e as colunas do aqueduto foram atingidas por um projtil pesado a artilharia francesa! A estrutura toda tremeu. "Depressa", berrei para os dois atrs de mim. Corri agachado, agitando o leno como um louco e pondo todas as minhas esperanas num milagre. Mais fumaa de uma bateria francesa, e mais silvos quando passaram os projteis, alguns deles atingindo as prprias trincheiras do exrcito sitiante. Outro impacto certeiro, e o aqueduto tremeu de novo, e de novo. Uma bala de canho acertou a beirada superior, fazendo fragmentos de pedra choverem sobre mim. Pisquei e olhei para trs. Astiza mancava, mas continuava determinada; Mohammad vinha logo atrs dela. Mais cem jardas! Empenhava-se a artilharia de ambos os lados, uma batalha inteira por nosso pequeno trio. E nesse momento Astiza deu um grito. Eu me voltei. Mohammad se ergueu abruptamente, teso, a boca aberta numa expresso de surpresa. Seu peito ficou escarlate, e ele tombou. Olhei na direo dos franceses. Najac estava justamente baixando meu fuzil. Tudo o que eu queria era voltar correndo para matar o desgraado. Em vez disso, porm, gritei para Astiza: "Deixa-o!" Agora eu esperaria por ela. Mas, nisto, o aqueduto explodiu entre ns. Foi um tiro perfeito de algum canho grande. Os franceses certamente haviam trazido novas peas de artilharia de stio para substituir aquelas que capturramos no mar. O aqueduto pareceu levantar-se, e pedras explodiram em todas as
direes. Voou poeira, e ento uma brecha se escancarou entre as colunas - de repente, Astiza e eu estvamos em lados opostos de um abismo. "Pula para baixo, que eu te puxo para cima!" "No, no - continua sozinho!", berrou. "Ele no me matar! Vou ganhar tempo para ti!" Ela rasgou parte do vestido e comeou a voltar, mancando e agitando freneticamente o pano em sinal de rendio. O fogo francs diminuiu. Xinguei, mas no tinha como det-la. Desolado, virei e corri a toda para Acre, agora completamente ereto, apostando que a velocidade iria me tornar alvo difcil. Se fosse fcil recarregar um fuzil como o meu, Najac ainda poderia ter-me acertado. Mas ele levaria um minuto inteiro para conseguir dar outro tiro, e os disparos dos demais no tinham preciso alguma. Eu agora j estava alm das avanadas trincheiras francesas, no ponto onde o aqueduto terminava em entulho antes de chegar s muralhas de Acre, e, enquanto prosseguia o duelo de artilharia, eu desci para o cho, levantando poeira com as botas. Ouvi o ressoar de cascos e me voltei. Os rabes de Najac vinham galopando junto ao aqueduto, querendo pegar-me, curvados sobre o pescoo de suas montarias e indiferentes ao fogo ingls. Corri para o fosso. Ele estava a cinqenta jardas, e a estratgica torre se avultava como um monlito. Na muralha de Acre, soldados apontavam o dedo para mim. Se eu conseguisse, seria por um triz. Com as pernas latejando, corri como nunca antes, ouvindo os cavaleiros que me perseguiam
diminurem a distncia. Agora, homens por toda a muralha estavam atirando por sobre minha cabea, e escutei cavalos relincharem e tombarem, pois alguns deviam ter sido atingidos. No que alcancei o fosso, deslizei sobre sua beirada como uma lontra-marinha num banco de neve, rolando para o fundo seco. O fedor era nauseante. Viam-se corpos em decomposio, escadas quebradas e as armas abandonadas que constituem o detrito das guerras. A brecha na torre fora fechada, e no havia jeito de escalar a muralha. L de cima, homens foravam a vista para olhar-me, mas nenhum parecia ter percebido ainda quem eu era. No me ofereceram corda nenhuma. Sem saber mais o que fazer, corri pelo fundo poeirento do fosso at o ponto em que ele encontrava o Mediterrneo. Consegui ver os mastros de navios britnicos, e canhes continuavam a disparar acima de mim. Phlippeaux no dissera que estavam construindo um reservatrio de gua do mar na extremidade do fosso? Mais gritos. Olhei para trs: aqueles rabes abusados tinham entrado no fosso com cavalo e tudo e agora galopavam pelo fundo, decididos a pegar-me sem ligar para os soldados que tentavam bale-los da muralha Silano obviamente sabia que eu estava com o livro! Mais adiante, estava a rampa sobre o fosso, junto ao chamado porto do Interior. Mais alm, o molhe negro e mido do novo reservatrio. Eu estava encurralado!
E a houve outra exploso, bem frente. Escutouse um estrondo, fragmentos voaram, e o molhe negro se dissolveu diante de meus olhos. A detonao me jogou para trs, e, estupefato, vi uma parede verde de gua marinha virar espuma e comear a rugir pelo fosso, dirigindo-se a mim e a meus perseguidores. Consegui pr-me de joelhos, e exatamente ento a enxurrada me atingiu. Ela me arrastou pelo caminho inverso do que eu fizera, levando-me como folha na sarjeta. Eu estava num caos de espuma, sem poder respirar direito, sem saber se estava virado para cima ou para baixo. Fui dando cambalhotas. A gua me carreou de roldo junto com meus perseguidores, e fui atingido por uma coisa grande. Imaginei ter sido um cavalo, que por acaso me atirou para o ar. Estvamos sendo varridos ao longo do fosso, rumo torre central, todos ns de cambulhada com os cadveres ptridos e o lixo acumulado de um cerco. Debatime, tossindo. Foi quando vi minha corrente - ou, pelo menos, uma corrente que pendia da fachada da torre como uma guirlanda. E, quando fomos arrastados por ali, eu me agarrei a ela. Ela me puxou para fora da gua como se eu fosse um balde de poo e comeou a me arrastar para cima junto spera fachada da torre, que raspava tal qual lixa. "Segura firme, Gage. Ests quase em casa!" Era Jeric. Agora balas de mosquete atingiam a muralha a meu redor, e percebi que eu era um alvo suspenso
para o exrcito francs inteiro. Bastaria um tiro certeiro para que eu despencasse. Contra-me at parecer uma bola. Se eu tivesse conseguido encolher mais, teria simplesmente desaparecido. Troavam canhes, e um projtil que parecia grande como uma casa atingiu a cantaria a algumas jardas de onde eu estava, dissolvendo-se em estilhaos. A torre inteira estremeceu e balanou como uma conta num colar de barbante. Eu me segurei desesperadamente. Outro impacto, e mais outro. Em cada uma das vezes, a torre tremeu e a corrente oscilou, comigo dependurado. Aquilo no ia acabar nunca? Olhei para baixo. O fluxo de gua estava desacelerando, mas os ginetes rabes haviam sumido, arrastados para sabe-se l onde. Destroos coalhavam a superfcie da gua. Um homem boiava de barriga para cima, como se fosse um peixe morto. "Alai!", gritou Jeric. E depois mos fortes me agarraram, e fui arrastado, ofegante, por sobre as ameias, meio afogado, ralado, queimado, talhado, contundido, desolado por causa do amor e dos companheiros que perdera. Ainda assim, no apresentava, miraculosamente, nenhum furo - eu tinha as vidas, mais o aspecto molhado, sofrido e sujo, de um gato de rua. Eu me esparramei de costas no cho, arfante, incapaz de ficar de p. Juntou-se gente ao redor Jeric, Djezzar, Smith, Phlippeaux.
"Que diabo, Ethan!", saudou-me Smith. "De que lado ests agora?" Mas olhei para alm deles, para a nica pessoa que atrara instintivamente meu olhar, com seus cabelos dourados, seus olhos arregalados e atnitos, seu vestido coberto de plvora e fuligem. "Ol, Miriam", falei, com voz baixa e arranhada. E a os franceses comearam a atirar para valer. A experincia me ensina que, quando mais precisamos ponderar cuidadosamente as coisas, mais coisas vm nos atrapalhar o raciocnio. No caso em questo, tratava-se de uma centena de canhes franceses, os quais desabafavam o quanto estavam decepcionados com minha sobrevivncia. Eu me levantei e, trmulo, olhei para fora. Havia muita atividade nos bivaques de Napoleo, com unidades entrando em formao e dirigindo-se para as trincheiras. Parecia que eu estava com algo que Bonaparte queria de volta. E queria muito. A muralha tremia sob nossos ps. Miriam me olhava com uma expresso que era misto de espanto e alvio, combinados com uma mar crescente de indignao, um afluente de confuso, um aude de compaixo e uma moringa de desconfiana. "Foste embora sem dizer nada?", conseguiu finalmente articular. Do jeito que ela expressara, a coisa parecia pior. "Era difcil explicar a razo." "Do que o cristo estava correndo?", quis saber Djezzar.
"Parece que de todo o exrcito francs", comentou serenamente Phlippeaux. "Eles no parecem gostar muito de ti, Gage. E estvamos pensando em fuzilar-te, por desero e traio. Ser que tens algum amigo no mundo?" "Foi por causa daquela mulher, no?" Miriam adquirira jeito para ir direto ao ponto. "Ela no morreu, e foste procur-la." Olhei para trs. Astiza ainda estaria viva? Eu acabara de ver meu amigo muulmano ser morto por minha prpria arma e Astiza voltar rumo ao desprezvel Silano. "Precisei pegar uma coisa antes que Napoleo o fizesse", expliquei a eles. "E conseguiste?", perguntou Smith. Apontei para as tropas que se acumulavam nas linhas francesas. "Ele acha que sim - e est vindo pegar." Percebendo que um ataque talvez fosse iminente, os lderes de nossa guarnio comearam a gritar ordens, com os clarins soando por sobre o estrondo da artilharia. Eu me dirigi a Miriam. "Os franceses me enviaram um sinal de que ela podia estar viva. Tive de descobrir, mas no sabia como dizer-te - no depois da noite que passamos. E ela estava mesmo viva. Agora, ambos estvamos vindo para c, juntos, mas ela foi recapturada, eu acho." "Ser que eu signifiquei alguma coisa para ti?" "Mas claro que sim! Eu me apaixonei por ti! s que..." "E s o qu?" "Eu nunca deixei de amar Astiza." "Que te danes." Era a primeira imprecao que eu ouvia de Miriam, e aquilo me surpreendeu e atingiu mais que uma
enfiada de ofensas de algum como Djezzar. Eu procurava uma maneira de explicar, deixando claro que estavam em jogo causas mais elevadas. Entretanto, toda vez que iniciava uma frase, esta parecia insincera e oportunista, at mesmo a mim. Naquela noite, aps a defesa da torre, eu e Miriam cedramos emoo, e a o destino e um anel me desviaram de um modo que no antevi. Qual fora o erro nisso? Ademais, eu trazia sob a camisa um cilindro de ouro de valor incalculvel. Mas nada disso era fcil de explicar quando o exrcito francs estava vindo contra ns. "Miriam, h sempre mais do que apenas ns dois. Tu sabes disso." "No. Decises magoam pessoas - simples assim." "Bem, perdi Astiza outra vez." "Perdeu a mim tambm." Mas eu podia reconquist-la, no? , os homens so uns cachorros, mas as mulheres tm certa satisfao felina em nos aoitar com palavras e lgrimas. H amor e crueldade de ambos os lados, no mesmo? Portanto eu suportaria o desdm de Miriam, batalharia contra os franceses e, se sobrevivssemos, planejaria uma estratgia para apagar o passado e cativ-la de novo. "Eles esto vindo!" Grato por ter de encarar apenas as divises de Napoleo, e no a mgoa de Miriam, subi com os outros para o alto da grande torre. L embaixo, a planura ganhara vida. Cada trincheira era uma lagarta de homens apressados, com seu avano obscurecido pela fumaa do terrvel canhoneio.
Outras tropas arrastavam peas de artilharia mais leve para a frente de combate, a fim de confrontar nossas foras dentro da fortaleza caso conseguissem uma brecha na muralha. Escadas balanavam medida que granadeiros cruzavam o terreno irregular, e turmas de trabalho a galope traziam mais plvora e balas de canho para as baterias. Um grupo de homens em trajes rabes se aglomerara perto do aqueduto semidestrudo. Saquei a luneta. Ao que parecia, eram os sobreviventes do bando de Najac. No vi Silano nem Astiza. Smith me puxou pelo ombro e apontou. "Que diabos aquilo?" Girei a luneta para o que ele indicava. Uma tora se movia lentamente em nossa direo. Era um enorme cedro, que transbordava da carreta de doze rodas onde o haviam colocado de comprido. Soldados empurravam a carreta por trs e pelos lados. A ponta da tora estava inchada, como se o cedro fosse um falo gigantesco, e vinha recoberta, presumi, com alguma espcie de blindagem. A pergunta realmente se justificava - que diabos era aquilo? Parecia um arete medieval. Bonaparte por certo no achava que podia comear a martelar contra nossas muralhas com armas que estavam ultrapassadas havia sculos. Ainda assim, os soldados que empurravam o dispositivo avanavam cheios de confiana. Teria Napoleo enlouquecido? Aquilo me fez lembrar o tipo de aparato improvisado que poderia ter encantado Benjamin Franklin ou meu compatriota Robert Fulton, o qual
zanzava por Paris com idias amalucadas de coisas que ele denominava submarinos e barcos a vapor. E qual outro conhecido meu era um experimentador inveterado? Nicolas-Jacques Conte, claro, o homem cujo balo Astiza e eu furtramos no Cairo. Monge dissera que Conte inventara uma carreta reforada para fazer que canhes pesados chegassem a Acre. Aquela tora tinha todas as caractersticas da engenhosidade e capacidade de improvisao de Conte. Mas um arete? Parecia coisa to antiquada para um modernista como ele. A no ser que... " uma bomba!", gritei de repente. "Atirai naquela ponta! Depressa! Atirai naquela ponta!" O petardo chegara a um ligeiro declive que levava ao fosso e estava comeando a acelerar. "O qu?", perguntou Phlippeaux. "H plvora na ponta daquela tora! Precisamos deton-la!" Peguei um mosquete e atirei, mas, se porventura acertei mesmo o tiro, minha bala deve ter ricocheteado sem nenhum efeito no revestimento metlico. Embora outros tambm disparassem, os soldados turcos e fuzileiros navais britnicos ainda estavam mirando os homens que, junto s rodas, empurravam a carreta. Um ou dois foram atingidos, mas o monstro simplesmente os atropelou ao carem, e o petardo ganhou velocidade. "Acertai-o com a artilharia!" "Tarde demais, Gage", disse calmamente Smith. "No temos como inclinar os canhes o suficiente."
Por isso, agarrei Miriam, passando de raspo pelo atnito Jeric, e, antes que ela pudesse reclamar, a empurrei para os fundos da torre. "Ide para trs, porque a bomba pode funcionar!" Smith tambm estava recuando, e Djezzar j sara dali para pavonear-se pelas muralhas e intimidar seus homens. Mas Phlippeaux se deixou ficar, corajosamente tentando diminuir a velocidade do aparato de Conte com uma pistola bem mirada. Era loucura. Ento, o arete atingiu a beira do fosso e voou direto atravs dele, com sua ponta se chocando contra a base da torre. Os soldados que vinham empurrando a carreta se afastaram correndo, mas um deles parou tempo suficiente para puxar uma corda de disparo. Houve um claro de estopim. Mais alguns segundos, e o dispositivo explodiu com estrondo to cacofnico que apagou minha audio. O ar irrompeu em fumaa e chamas, e grandes pedaos de pedra voaram acima do alto da torre e, depois, balanaram preguiosamente na queda. A construo tremera em ataques anteriores, mas desta vez ela oscilou como um bebum encharcado de gim. Ca com Miriam enquanto eu a agarrava. Sir Sidney segurou-se nas ameias da parte de trs da torre. E a frente do edifcio se dissolveu ante meus olhos, destacando-se e deslizando para um abismo infernal. Phlippeaux e Jeric despencaram junto com ela. "Irmo!", berrou Miriam, ou pelo menos foi esse o som que interpretei pelo movimento de seus
lbios. Tudo o que eu conseguia ouvir era um zumbido. Miriam correu para a beira da torre, at que a apanhei e derrubei. Rastejando sobre seu corpo, que se contorcia numa plataforma que agora j se fora pela metade e inclinava-se perigosamente, olhei para os escombros l embaixo, os quais cuspiam fumo como a garganta de um vulco. O tero frontal daquela que era a torre mais rija simplesmente se descascara, e o resto ficara exposto como um oco de rvore, que se mantinha graas a pavimentos semidestrudos. Era como se as roupas nos tivessem sido arrancadas, desnudando-nos. Na base, corpos se misturavam pedra no entulho, com o fosso cheio de destroos at a borda. Outro som veio afetar meus maltratados ouvidos, e percebi que se tratava de milhares de homens a dar vivas, de uma maneira que eu, na confuso em que me encontrava, mal discernia: os franceses estavam arremetendo-se para a brecha que haviam aberto. Eu apostava que Najac estaria com eles, procurando por mim. Smith recobrara o equilbrio e desembainhara o sabre. Bradava algo que o zumbido em meus ouvidos tornava inaudvel, mas depreendi que estivesse convocando homens para irem brecha. Fui coleando para trs e puxei Miriam comigo. "O resto da torre pode desabar!", gritei. "O qu?" "Temos que sair desta torre!"
Ela tampouco conseguia ouvir. Assentiu, voltou-se para a vanguarda francesa e, antes que eu pudesse det-la, saltou da beirada de onde eu acabara de me afastar. Lancei-me frente, tentando agarr-la, e escorreguei para a borda. Miriam cara como um gato para as vigas que se projetavam do piso abaixo e estava descendo pelas beiradas do desabamento at Jeric. Eu, praguejando sem som comigo mesmo, comecei a seguida, certo de que a construo inteira ruiria a qualquer minuto e nos sepultaria num tmulo de pedra. Entrementes, balas de mosquete ricocheteavam, projteis de artilharia troavam em ambas as direes, e escadas portteis eram colocadas como garras a estender-se para cima. Meio correndo, meio saltando, Smith e um contingente de fuzileiros navais haviam descido a escada da torre, parcialmente destruda atrs de ns, e chegaram brecha ao mesmo tempo que ns. Colidiram com as tropas francesas que irrompiam pelo entulho do fosso, e houve um estrondo de mosquetes dos dois lados, com homens aos berros. Depois, atiraram-se uns contra os outros, usando baioneta, alfanje e coronha de mosquete. Louis Bon, o comandante da diviso francesa, tombou fatalmente ferido. Croisier, o ajudante-de-ordens, humilhado por Napoleo no ano anterior (quando no conseguira apanhar alguns escaramuadores), veio correndo para a refrega. Miriam caiu naquele inferno gritando freneticamente por Jeric. Por isso, eu tambm ca, perplexo, quase desarmado, enegrecido pelo fumo
de plvora, cara a cara com todo o exrcito francs. Com suas barretinas e quepes altos e seus talabartes cruzados, eles pareciam ter a altura de dois homens. Investiam contra ns com a fria e a frustrao que advm de semanas de trabalho infrutfero de cerco - l estava a oportunidade de acabar com tudo de uma vez por todas, como haviam feito em Jafa! Urravam como as ondas numa borrasca, avanando aos trambolhes sobre um amontoado de cadveres, com a ponta do cedro estraalhado a abrir-se para a frente tal qual uma flor desabrochada. Mas, ao mesmo tempo que iam carga, eles sofriam com o dilvio de pedra, ferro e granada dos otomanos de Djezzar mais acima, que deixavam essas coisas cair como se estivessem semeando trigo. Se os franceses eram obstinados, ns estvamos desesperados: caso eles penetrassem pela torre, Acre estaria perdida, e todos certamente morreramos. Fuzileiros navais britnicos corriam de encontro a eles, gritando, disparando e dando golpes de sabre e alfanje, e o vermelho das tnicas inglesas formava com o azul das francesas um mosaico de cores em conflito. Foi a luta mais feroz de que eu j participara, to corpo a corpo quanto os embates de gregos e troianos, sem que se desse ou se pedisse quartel. Homens grunhiam e xingavam ao ser espetados, esganados, chutados ou cegados. Arrojavam-se e lutavam como touros. Croisier submergiu no tumulto, baleado e espetado numa dzia de lugares. No enxergvamos nada da batalha mais
ampla, s aquela peleja num morrote de entulho, com a torre prestes a cair sobre ns. Vi Phlippeaux, semi-enterrado, com a coluna provavelmente quebrada, conseguir de algum modo puxar uma pistola que estava debaixo de si e dispar-la contra seus inimigos revolucionrios. Em resposta, cravou-se nele uma meia dzia de baionetas. Jeric no apenas sobrevivera queda, como tambm rastejara para fora dos destroos. Suas roupas estavam meio queimadas e retalhadas, e sua pele se acinzentara de p de pedra, mas ele encontrara uma barra de ferro, ligeiramente torcida, e, tal qual Sanso, foi a passos largos enfrentar os franceses que chegavam. Homens recuavam ante a energia insana com que ele brandia o ferro. Um fusilier veio por trs mirando o mosquete, mas Miriam encontrara em algum lugar uma pistola de oficial, que ela segurou com ambas as mos e disparou queima-roupa. Metade da cabea do francs voou pelos ares. Um granadeiro se aproximava da direo oposta. Lembrei-me de minha machadinha e a arremessei, observando-a girar at fincar-se no pescoo do soldado. Ele caiu como uma rvore abatida, e fui l arrancar a machadinha. Ento eu e Miriam demos um jeito de agarrar Jeric pelos braos e pux-lo um ou dois passos para trs, fora do alcance das baionetas que ele parecia desesperado caso visse serem enterradas em seu corpo. No que fizemos isso, tropas de Djezzar passaram correndo por ns e foram enfrentar os franceses. Estava se formando uma sebe de cadveres. Smith, sem chapu, a
cabea ensangentada, usava o sabre como um possesso, talhando e talhando. Balas zuniam e ricocheteavam - ou faziam um rudo surdo quando topavam com carne, e ento mais algum grunhia e tombava. Minha audio voltara, ainda muito ruim, e berrei para Jeric e Miriam: "Temos de voltar para nossas linhas! Seremos de mais ajuda se estivermos l em cima!" Nisto, alguma coisa passou sibilando junto a meu ouvido, to perto quanto uma vespa que viesse me advertir antes da picada, e Jeric levou um tiro no ombro e girou qual pio. Voltei-me e vi minha nmesis. Najac praguejava, com meu fuzil plantado pela coronha no entulho enquanto o patife comeava a recarregar e seus capangas se mantinham fora do verdadeiro combate, dando, porm, tiros e mais tiros por sobre as cabeas dos granadeiros que constituam a vanguarda. Aquele disparo se destinara a mim! Tinham vindo para me matar, disso no havia mais dvida - pois sabiam o que provavelmente estava enfiado sob minha camisa. E assim me vi tambm tomado pela fria de combate, sentindo uma ira e uma sede de vingana que me fizeram sentir os msculos e veias latejarem e os olhos se tornarem subitamente capazes de enxergar detalhes com preciso sobrenatural. Eu percebera o claro rubro no dedo do desgraado - ele estava usando o anel de rubi de Astiza! Entendi num timo o que acontecera. Mohammad no resistira tentao da jia amaldioada que Astiza jogara para longe no ptio do castelo dos
cruzados. Enquanto dormamos, ele se apropriara do anel, pondo fim aos peridicos pedidos de mais dinheiro. E Mohammad, no eu, fora quem acabara morto pelo fuzil de Najac ao corrermos no aqueduto. O bandoleiro francs depois fora verificar se o guia mulumano estava mesmo morto e se apossara do rubi, sem conhecer a histria da jia. Agora, eu pegava a barra de ferro de Jeric e partia para cima de Najac, contando os segundos. Ele levaria um minuto inteiro para recarregar a arma, e j se haviam passado dez segundos. Precisei lutar atravs de um feixe de franceses para chegar a ele. A barra reverberava quando, possesso como um templrio a lutar por Cristo, eu a brandia num arco largo. Isto por Mohammad e Ned, desgraados! Eu me sentia invulnervel a balas, sem saber o que era o medo. O tempo desacelerou, o rudo se abafou, a viso se aguou e se concentrou - tudo o que eu via era Najac, com suas mos trmulas a colocar uma medida de plvora no cano do fuzil. Vinte segundos. Minha barra vibrava para l e para c naquele espinheiro de baionetas, tal qual uma foice a abrir uma trilha. Metal retinia quando eu o golpeava para que sasse do caminho. Soldados da infantaria se afastavam em face de meu desvario. Trinta segundos. A bala de fuzil estava envolta na bucha e, com a vareta, era apreensivamente enfiada na boca da arma. Os franceses e rabes de Najac berravam e atiravam, mas eu no sentia nada seno o vento. Enxergava as ondulaes no ar fumarento
medida que as balas aceleravam, o brilho de olhares frenticos, o branco de dentes arreganhados, o sangue a jorrar de algum lugar obliquamente ao rosto de um jovem oficial. A barra acertou as costelas de um granadeiro imenso, e ele se vergou de lado. Quarenta segundos. A bala, teimosa, ia sendo socada no cano. Saltei sobre mortos e moribundos, usando seus corpos como pedras num riacho, com o perfeito equilbrio de uma aranha. Ao redor, minha barra de ferro continuava reverberando, e homens fugiam atabalhoadamente como o haviam feito ante o ferreiro Jeric. Smith corria com seu sabre atrs de um chasseur, um fuzileiro britnico morria, e dois outros espetavam sua presa a baionetadas. Continuavam a chover escombros das muralhas, e vi as detonaes atrs de Najac quando explodiram granadas e projteis de artilharia. Ao mesmo tempo que eu me impelia frente, reforos otomanos e ingleses irrompiam a minhas costas, tapando a brecha com seu efetivo e seu sangue. Uma bandeira tricolor tremulou, caiu e tornou a subir, balanando para trs e para adiante. Cinqenta segundos. Najac nem perdeu tempo retirando a vareta; ele agora se atrapalhava para aprestar e puxar o mecanismo de disparo. Tinha medo no olhar - medo e desespero, mas tambm dio. Eu j quase o alcanara quando um de seus bandidos surgiu diante de mim, empunhando uma cimitarra acima da cabea, com as duas mos, e tendo a fisionomia distorcida pelo urro que dava,
at que minha barra de ferro o atingiu na tmpora e seu crnio explodiu, com sangue respingando em todas as direes. Senti seu gosto nos dentes. E agora, no que eu erguia o brao para o golpe final, com os olhos de Najac arregalados de pavor, houve um claro no mecanismo de disparo, um estrondo, uma carga de calor e fumaa, e o fuzil, ainda com a vareta no cano, disparou direto contra meu peito. Cai sentado, lanado para trs com violncia. Mas, antes de morrer, girei o brao e minha barra acertou aquele ladro nos calcanhares, arrebentando-os. Ele tambm caiu, enquanto tropas arremetiam sobre ns, e eu, percebendo que ainda no morrera, rastejei para a frente, resfolegando, e o agarrei pela garganta, sufocando seus gritos agudos de dor. Eu o esganei com tanta fora que os tendes de meu pescoo latejaram pelo esforo. O olhar de Najac expressava um dio impotente. Seus braos se debatiam, procurando a arma. Sua lngua se inchou de modo obsceno. Pensei: Isto por Ned, e Mohammad, e Jeric, e todos os outros homens bons que trucidaste, verme, nessa tua vida desprezvel. E continuei a esgan-lo enquanto ele ficava roxo e meu sangue pingava sobre minha vtima, que se contorcia. Eu via a vareta projetar-se de meu peito. O que estava acontecendo? Nisto, senti as mos de Najac em minha cintura e um puxo quando ele agarrou a minha machadinha. O patife, no tendo conseguido dar cabo de mim com meu prprio fuzil, agora queria
me acertar na tmpora com meu prprio machado de guerra! Sem pensar muito, inclinei-me para a frente, de maneira que a vareta que ele disparara estivesse contra seu peito e seu corao. A ponta da vareta se quebrara e agora estava afiada como uma agulha de tric, e finalmente me dei conta do que devia ter ocorrido: quando Najac atirara, aquele projtil em forma de seta me atingira, sim, senhor, mas o fizera exatamente onde estava o cilindro com o Livro de Tot. A cabea da vareta se cravara no ouro macio, jogando-me para trs sem, entretanto, penetrar-me a carne. Agora, enquanto Najac se desembaraava e preparava o golpe com a machadinha, eu me debruava sobre ele e empurrava a vareta com o cilindro, diretamente em seu peito. O esforo doeu para diabo, mas a vareta rompeu o esterno do desgraado e ento penetrou quase como faca na manteiga. Os olhos de Najac se arregalaram ao nos abraarmos, e perfurei seu corao. O sangue jorrou tal qual num poo, formando uma lagoa cada vez maior. E Najac, sibilando como a vbora que era, morreu com meu nome numa bolha rubra em seus lbios. Escutei vivas, mas desta feita em ingls. Olhei para cima. O assalto francs estava malogrando. Arranquei abruptamente a vareta, pus-me de p e - finalmente! - recuperei meu fuzil confeccionado sob medida. A batalha fora a pior carnificina at aquele momento, uma medonha confuso de braos, pernas e troncos de homens que tinham morrido atracados uns com os outros. Havia
centenas de corpos na brecha, e dezenas em ambos os lados do fosso encharcado, com escadas de assalto despedaadas e as muralhas de Acre lascadas e fendidas. Mas os franceses estavam em retirada. Os turcos tambm festejavam, e seus canhes troavam num adeus s tropas de Bonaparte. Os homens de Smith e Djezzar no ousaram sair em perseguio aos franceses. Agacharam-se, aturdidos com o prprio sucesso, e depois recarregaram apressadamente as armas, para a possibilidade de que o inimigo voltasse. Sargentos comearam a dar ordens para que se erguesse uma tosca barricada na base da torre. O prprio Smith me avistou e veio a passos largos at mim, com os cadveres se comprimindo ligeiramente proporo que o ingls caminhava por eles. "Gage! Isso foi a coisa mais por um triz que j vi na vida! Meu Deus, a torre - parece que ela podia ter desabado a qualquer momento!" "Bonaparte deve ter pensado o mesmo, sir Sidney", disse-lhe. Eu estava arfando, tremendo com todos os msculos, mais fatigado do que jamais estivera. A emoo me exaurira por completo. Parecia que eu no tomava flego havia um sculo e no dormia havia um milnio. "Ao amanhecer, se a engenharia britnica tiver chance, Bonaparte encontrar a torre reconstruda e mais reforada do que nunca", disse o capitode-mar-e-guerra, com uma veemncia feroz. "Por Deus, ns o superamos, Ethan! Ele disparar contra ns todos os canhes que tiver, mas no voltar depois dessa surra. Seus homens no o
permitiro - eles se recusaro a avanar." Afirmou isso com um gesto de assentimento consigo mesmo. Como Smith podia ter tanta certeza? E, no entanto, estvamos prestes a ver que ele tinha mesmo razo. "Mas onde est Phlippeaux?", perguntou. "Eu o vi liderar a carga direto contra eles - por Deus, aquilo que era coragem monarquista!" Balancei negativamente a cabea. "Receio que ele j no tenha mais como combat-los, sir Sidney." Voltamos olhando cuidadosamente onde pisvamos. Dois corpos jaziam sobre o de Phlippeaux, e por isso os arrastamos para o lado. Milagre dos milagres: o monarquista ainda respirava, muito embora eu tivesse visto meia dzia de baionetas o trespassarem como se fosse um quarto de boi. Smith o puxou ligeiramente para cima, fazendo a cabea do moribundo descansar em seu colo. "Antoine, ns os rechaamos!", disse. "O corso est liquidado!" "Qu?... Recuaram?" Embora seus olhos estivessem abertos, Phlippeaux estava cego. "Ele agora est l naquele morrote, olhando feio para ns, com suas melhores tropas trucidadas ou postas para correr. Teu nome conhecer a glria, meu amigo, porque Bonaparte no tomar Acre. O tirano republicano foi detido, e generais politiqueiros como ele no resistem a uma derrota sria." Smith me fitou com olhos brilhantes. "Guarda minhas palavras, Gage: nunca mais ir se ouvir muito o nome de Napoleo Bonaparte."
22
Ento o coronel Phlippeaux morreu. Teria ele realmente compreendido sua vitria quando a vida se esvaa de seu corpo? No sei. Mas talvez Phlippeaux tenha tido um vislumbre de que no foi em vo e de que, na violenta insanidade do ltimo e pior dia do cerco, conquistara-se algo de fundamental. Retornei ao corpo de Najac, inclinei-me e peguei meu fuzil, minha machadinha e o anel. Depois caminhei de volta atravs do entulho da torre semi-destruda. Engenheiros militares aos berros j comeavam a alavancar pedras, aprestar vigas e misturar argamassa. A torre seria novamente remendada. Sa atrs de Jeric e Miriam. No vi - ainda bem! - o corpo do ferreiro entre as longas fileiras de defensores cados que, pesarosa e temporariamente, eram depositados nos jardins do pax. Olhei para cima. Com a cacofonia da batalha, as aves tinham desaparecido, mas as mulheres do harm, com seus olhos cobertos por vu, nos contemplavam das janelas gradeadas. A luta arrancara lascas do madeiramento, deixando rasgos amarelos no padro escuro. O pax andava pomposamente pela muralha, para l e para c, como um pavo, dando tapas nas costas de seus homens exaustos e berrando para os franceses. "O qu? No apreciastes a minha hospitalidade? Ora, voltai e desfrutai um pouco mais!"
Bebi gua na fonte da mesquita e depois caminhei pesadamente pela cidade, sujo de sangue e fumo de plvora, enquanto civis aglomerados me olhavam com receio. Imaginei que meus olhos brilhassem no negror do rosto, mas minha mirada se fixava em algo a mil milhas dali. Andei at chegar ao molhe do farol, onde o Mediterrneo parecia to limpo aps a sordidez da batalha. Olhei para trs. Canhes ainda ribombavam, e a fumaa e a poeira haviam criado naquela direo uma cortina, que o sol declinante iluminava por trs, transformando-a numa escurido tormentosa. Como podia ter-se passado tanto tempo? Ainda pela manh, Astiza, Mohammad e eu havamos chispado para a muralha. Peguei o anel do fara, anel que trouxera desgraa para toda pessoa que o tocara. Ser que existem mesmo maldies? O racionalista Franklin duvidaria disso. Mas eu j sabia o suficiente para no encostar os dedos no rubi enquanto entrava no mar gelado, tendo gua at os joelhos e depois a cintura, com o frio me tomando a virilha e a seguir o peito. Curvei-me e submergi, abrindo os olhos na penumbra verde, deixando o mar lavar um pouco da poeira e fuligem. Prendi a respirao o mximo que pude, certificando-me de que estava finalmente pronto para fazer o que precisava ser feito. E ento vim tona, sacudindo a gua de meu cabelo encharcado e comprido. Preparei o brao e arremessei. Foi como uma estrela cadente vermelha, dirigindo-se ao azulcobalto que indicava a gua profunda. Ouvi um chape, e o anel se foi. Simples assim.
Tive um arrepio de alvio. Achei Miriam no hospital da cidade, cujos recintos estavam apinhados com os feridos recentes. Os lenis estavam rubros, e a gua dos recipientes, rsea. Bacias continham nacos de carne amputada. Moscas zumbiam, banqueteando-se, e havia cheiro no s de sangue, mas tambm de gangrena, lixvia e carvo vegetal, dos braseiros onde os instrumentos cirrgicos de corte eram aquecidos antes do uso. Periodicamente, o ar era cortado por berros. O edifcio tremia pelo canhoneio incessante. Conforme Smith previra, Napoleo parecia estar disparando contra ns tudo o que tinha, num ltimo acesso de frustrao. Talvez ele esperasse simplesmente arrasar o que no podia capturar. Serras chacoalhavam nas mesas. Poeira descia das telhas para os olhos dos feridos. Fiquei aliviado ao ver que Miriam estava cuidando de um irmo ainda vivo. Jeric estava sem camisa, plido, com o cabelo empastado e a parte superior do tronco envolta em bandagens manchadas. Mas ele se mostrava alerta e enrgico o bastante para me dirigir uma encarada ctica quando fui at seu catre. "Ser que nada consegue te matar?" "Peguei o homem que te baleou, Jeric." Por conta da exausto emocional, minha fala estava embotada. "Conseguimos defender a brecha. Tu, eu, Miriam, todos ns. Conseguimos." "Mas aonde foste quando saste da cidade?"
"E uma histria comprida. Sabes aquela coisa que estvamos procurando em Jerusalm? Eu a achei." Ambos me fitaram. "O tesouro?" ", mais ou menos." Enfiei a mo debaixo da camisa e tirei o cilindro de ouro. Ele estava mesmo lascado e quase perfurado onde a vareta do fuzil acertara. Meu peito tinha uma equimose do tamanho de um prato. Mas tanto o invlucro do livro quanto meu corpo estavam intactos. Miriam e Jeric arregalaram os olhos ante o brilho do metal, que escondi da vista das outras pessoas no hospital. " pesado, Jeric. Pesado o suficiente para construir duas vezes a casa, e duas vezes a forja, que deixaste em Jerusalm. Quando a guerra acabar, estars rico." "Eu?" "Estou te dando. Tenho tido azar com tesouros. S pretendo ficar com o livro que est dentro do cilindro. No consigo ler palavra do que est escrito ali, mas estou ficando sentimental." "Ests me dando o ouro todo?" "Estou dando para ti e para Miriam." Agora ele me fazia uma carranca. "Como que ? Achas que podes compensar-me?" "Compensar-te?" "Por teres irrompido em nossas vidas e levado no s a nossa casa e o nosso ganha-po, mas tambm a pureza de minha irm." "No se trata de compensao! Isto aqui no pagamento nenhum! Por Deus, ela no..." Sensatamente, no conclu a frase. "No compensao, nem mesmo agradecimento. s o
que justo, pura e simplesmente. Tu me fars um favor aceitando." "Tu a seduzes, a possuis, vais embora sem dizer nada e depois vens me trazendo isso?!" Jeric estava ficando mais bravo, no mais calmo. "Eu cuspo no teu presente!" Era bvio que ele no estava entendendo. "Pois ento cospes no humilde pedido de desculpas do teu futuro cunhado." "Como ?!", disseram os dois, juntos. Miriam me olhava sem conseguir acreditar. "Eu me envergonho de ter ido embora sem me explicar e vos deixado na ignorncia nessas ltimas semanas", respondi. "Sei que o que fiz parece mais baixo que cobra na sarjeta. Mas tive uma chance de concluir nossa busca, e foi o que fiz, mantendo este objeto longe dos franceses, que fariam mau uso dele. Agora, nunca mais pegaro o livro, porque, mesmo se passarem pelas nossas defesas, eu conseguirei retir-lo por mar nos navios de Smith. Terminei o que comecei, e agora volto para terminar o resto. Quero casar com a tua irm, Jeric, e peo a tua permisso." O rosto dele se contorcia de incredulidade. "Perdeste totalmente o juzo?!" "Nunca estive mais so." Percebi que a resposta estivera debaixo de meu nariz. Um ou outro deus estava me mostrando o caminho certo ao levar Astiza para longe de mim - eu e ela ramos veneno um para o outro, como fogo e gelo, que acabavam em perigo sempre que se juntavam. A egpcia, coitada, estaria melhor sem mim. Por certo, meu corao no suportaria perd-la outra
vez. E ali estava a meiga Miriam, uma boa mulher que aprendera a estourar a cabea de um homem com pistola e, ainda assim, era um exemplo de vida reta e tranqila. Havia sido isso que eu encontrara de fato na Terra Santa, e no aquele livro bobo! Por conseguinte, eu agora casaria com uma moa correta, tomaria jeito, esqueceria o pesar que a ausncia de Astiza me causava e nunca mais teria nada a ver nem com batalhas, nem com Bonaparte. , o caminho era aquele mesmo. "Mas e Astiza?", perguntou Miriam, admirada. "No vou mentir para ti. Eu a amei. Ainda a amo. Mas ela se foi, Miriam. Eu a resgatei como j fiz antes - e a perdi como tambm j aconteceu antes. No sei por que, mas eu e ela no fomos feitos para ficar juntos. Essas ltimas horas de inferno me abriram os olhos para mil coisas. Uma delas o quanto te amo, e quo maravilhosa sers para mim, e quo bom, espero, eu serei para ti. Quero mesmo casar com Miriam, Jeric, e eu gostaria de ter a tua bno." Ele me encarou fixamente durante um bom tempo, com fisionomia inescrutvel. E, ento, seu rosto se contorceu de modo estranho. "Jeric?" O rosto se enrugou, e a o ferreiro caiu na gargalhada. Riu at no mais poder, com lgrimas a correr-lhe pelas faces, e Miriam tambm comeou a rir, olhando-me com algo perturbadoramente prximo do sentimento de pena. O que raios estava acontecendo?
"A minha bno?!" Era uma gargalhada estrondosa. "Como se eu fosse mesmo dar!" Nisto, ele teve um esgar de dor, que o lembrava do buraco em seu ombro. "Mas, v bem, eu me corrigi..." "Ethan..." Miriam esticou o brao e tocou minha mo com a dela. "Tu achas mesmo que o mundo fica parado enquanto sais nessas tuas aventuras?" "Ora, no, claro que no." Eu estava cada vez mais confuso. Jeric recuperou o autocontrole, arfando e produzindo um chiado ao respirar. "Gage, o teu senso de oportunidade horrvel." "Do que ests falando?" Olhei para um e depois para o outro. "Ser que terei de esperar a guerra acabar para que possa casar?" "Ethan", disse Miriam, suspirando, "lembra-te de onde me deixaste quando foste procurar Astiza?" "Lembro. Foi numa casa aqui em Acre." "Era a casa de um mdico. Um mdico que trabalha neste hospital." Ela abriu os olhos, fitando algo para alm de mim. "Um homem que, chegando em casa para conseguir algumas horas de sono, me encontrou em lgrimas, confusa, com raiva de mim mesma." Eu me virei, devagar. Atrs de mim, estava o cirurgio levantino, trigueiro, jovem, bemapessoado e, considerando tudo, mais respeitvel (apesar das mos sujas de sangue) que um batoteiro e mandrio como eu. Com a breca, eu bancara o bobo outra vez! Quando a cigana Sarylla lera o taro e me dera a carta do Louco, ela bem sabia o tolo que eu era.
"Ethan, quero te apresentar o meu novo noivo." "Dr. Hiram Zawani a vosso dispor, senhor Gage", disse o homem, com o tipo de entonao culta que sempre invejei. Ela os faz parecer trs vezes mais inteligentes do que ns, mesmo quando so umas cavalgaduras. "Haim Farhi diz que no sois bem o finrio que aparentas ser." "Ethan, o doutor Zawani fez de mim uma mulher honrada. Eu antes estava mentindo para mim mesma acerca do que eu queria e precisava." "Ele o tipo de homem de que minha irm necessita", disse Jeric. "Ningum sabe disso melhor que tu - e foste tu a reuni-los! s um ser humano frvolo e confuso, Ethan Gage, mas pelo menos uma vez fizeste alguma coisa direito." Sorriram enquanto eu tentava adivinhar se ele me cumprimentara ou insultara. "Mas..." Eu quis dizer que Miriam estava apaixonada por mim, que por certo ela devia ter esperado, que eu tinha duas mulheres me disputando a ateno e meu problema era escolher entre as duas... Na metade de um dia, eu passara de duas a nenhuma. O rubi e o ouro tambm se foram. Bem, ao diabo com tudo. E foi uma libertao. Eu no ia a um bom bordel desde que fugira de Paris, e l estava a oportunidade de ser solteiro outra vez. A experincia estava sendo humilhante? Estava. Mas foi um alvio? Foi, e eu me surpreendi com o quanto fora. "E mesmo formidvel como essas coisas se resolvem", dissera Smith. Solido? s vezes. Mas tambm menos responsabilidade.
Eu embarcaria para casa, daria o livro Library Company para que eles quebrassem a cabea tentando entend-lo e tocaria minha vida. Talvez John Jacob Astor, o maioral do comrcio de peles, precisasse de ajuda em seu negcio. E estavam construindo para o pas uma nova capital l nos brejos da Virgnia, longe das vistas dos americanos honestos. Parecia justamente o tipo de antro de oportunismo, embuste e velhacaria para um homem com meus talentos. "Parabns", consegui dizer, com voz aguda e embaraada. "Eu ainda devia partir-te ao meio", disse Jeric. "Mas, em vista do que aconteceu, acho que s vou te deixar nos ajudar a penhorar isso que est a contigo." E deixou Zawani dar uma espiada no ouro. Um dia depois, os franceses, tendo esgotado grande parte de sua munio num derradeiro e feroz bombardeio que no mudou em nada os apuros estratgicos em que se encontravam, comearam a bater em retirada. Bonaparte dependia do mpeto e da velocidade. No tendo conseguido utiliz-los para que seus inimigos se desequilibrassem e perdessem o p, ele agora se via em irremedivel inferioridade numrica. Acre o detivera. Sua nica opo era voltar para o Egito e proclamar a vitria, mencionando as batalhas que vencera e omitindo as que perdera. Com minha luneta, eu os observei enquanto saam de fininho. Centenas de homens, os doentes e feridos que no conseguiam andar, estavam
sentados ou estirados em carroas ou curvados sobre montarias. Se ficassem para trs, estariam condenados, de modo que vi at Bonaparte a p, puxando pela correia um cavalo que carregava um soldado com ataduras. Atearam fogo aos suprimentos que no tinham como levar, e grandes colunas de fumaa se ergueram no ar da primavera. Tambm explodiram as pontes dos rios Na'aman e Kishon. A escassez de forragem e transporte animal era to grande entre os franceses que eles abandonaram duas dzias de canhes. Abandonadas ficaram tambm multides de judeus e cristos que haviam tomado o partido dos franceses na esperana de libertar-se dos muulmanos. Agora, lamuriavam-se como crianas perdidas, pois s podiam esperar de Djezzar uma cruel desforra. Os franceses comearam a queimar vingativamente fazendas e aldeias ao longo da rota de sua retirada pelo litoral, para retardarem uma perseguio que nunca viria - nossa entorpecida guarnio no estava em condies de realiz-la. O cerco durara sessenta e dois dias, de 19 de maro a 21 de maio. Em ambos os lados, as baixas haviam sido pesadas. A peste que se propagara pelo exrcito de Napoleo atravessara as muralhas para adentrar a cidade, e a preocupao imediata era remover os mortos. Fazia muito calor, e Acre estava ftida. Eu me deslocava com cansao e aturdimento. Astiza se fora de novo, cativa ou morta. Coloquei o livro num bornal de couro e o escondi no alojamento em que me hospedei na Estalagem do
Mercador, o Khan a-Shawarda. Eu apostava que podia t-lo largado numa feira de rua que ningum o pegaria, to esquisita era sua escrita. Aos poucos, chegavam relatos da retirada de Napoleo. Uma semana aps ter deixado Acre, ele abandonou Jafa, conquistada a preo to terrvel. Aos franceses mais acometidos pela peste, deu-se pio e veneno, para apressar a morte e evitar que cassem nas mos dos combatentes irregulares muulmanos vindos de Nablus, na Samaria. Em 2 de junho, os derrotados soldados chegaram exauridos a El-Arish, no Egito, reforando a guarnio local. Depois, o grosso do exrcito seguiu para o Cairo. Um termmetro colocado na areia do deserto registrou uma temperatura de cinqenta e seis graus centgrados. Quando chegaram ao Nilo, a marcha se interrompeu para que os homens descansassem e se recompusessem - Napoleo no podia dar-se ao luxo de apresentar um exrcito derrotado. Tornou a entrar no Cairo em 14 de junho, com estandartes capturados ao inimigo, alardeando a vitria, mas essa alegao tinha sabor amargo. Eu soube que Caffarelli, o general de artilharia perneta, tivera um brao despedaado por uma bala de canho turca e morrera de infeco junto a Acre; que o fsico tienne-Louis Malus contrara a peste em Jafa e tivera de ser evacuado; e que tanto Monge quanto seu amigo boticrio Berthollet pegaram disenteria e estavam entre os enfermos evacuados por carroo. A aventura de Napoleo estava se transformando em desastre para todos os que eu conhecia.
Entrementes, Smith se mostrava ansioso para dar cabo do arquiinimigo. Os reforos turcos de Constantinopla no tinham vindo depressa o bastante para ajudar Acre, mas, no comeo de julho, chegou uma esquadra com quase doze mil soldados otomanos, pronta para continuar para a baa de Abukir e recuperar o Egito. Smith oferecera seu esquadro para apoiar o ataque. No tive interesse em alistar-me nessa expedio, que eu duvidava que pudesse derrotar o principal exrcito francs. Eu ainda fazia planos de voltar para a Amrica. Em 7 de julho, porm, um barco mercante me trouxe uma missiva do Egito. Vinha selada em cera vermelha com um sinete que mostrava a imagem de Tot, o deus provido de bico, e estava endereada a mim em caligrafia feminina. Meu corao disparou. Quando abri, encontrei no a letra de Astiza, mas fortes garranchos masculinos. O recado era simples. Eu consigo l-lo, e ela est esperando. A chave est em Roseta. Silano
Parte 3 - 23 -
Cheguei de volta ao Egito em 14 de julho de 1799, um ano e duas semanas depois que desembarcara ali com Napoleo. Agora, eu estava com o exrcito turco, no com o francs. Smith se mostrava entusiasmado por essa contra-ofensiva, proclamando que ela acabaria de vez com Bonaparte. No pude deixar de notar, porm, que o ingls permaneceu ao largo com seu esquadro de navios. E era difcil dizer quem tinha menos confiana no sucesso daquela invaso, se eu ou seu idoso comandante, o pax Mustaf - que, com suas barbas brancas, limitou o avano a ocupar a minscula pennsula que formava um dos lados da baa de Abukir. As tropas de Mustaf desembarcaram, tomaram um reduto francs a leste do vilarejo de Abukir, massacraram os trezentos defensores, foraram a rendio de outro posto avanado francs na extremidade da pennsula e pararam. Ali onde a lngua de terra da pennsula se juntava ao continente, Mustaf comeou a erigir trs linhas de fortificaes, antevendo o inevitvel contra-ataque de Bonaparte. Apesar da exitosa defesa de Acre, os otomanos ainda receavam confrontar Napoleo em campo aberto. Aps a vitria ridiculamente desigual do corso na batalha do Monte Tabor, os paxs encaravam qualquer iniciativa prpria como um desastre em formao. Por isso, invadiram e cavaram com frenesi, na esperana de que os franceses tivessem a cortesia de esticar as canelas ante as novas trincheiras. Foras de Bonaparte rapidamente se reuniam para cortar nosso acesso
ao interior, e j vamos os primeiros batedores franceses nos espiarem das dunas alm da pennsula. Sem que me tivessem pedido, eu sugeri polidamente a Mustaf que ele arremetesse para o sul e tentasse unir-se com a resistncia mameluca qual meu amigo Ashraf se juntara, um contingente de cavalaria ligeira sob o comando do bei Murad. Corria o rumor de que Murad ousara ir Grande Pirmide, escalando-a at o topo e usando um espelho para sinalizar para a esposa, que mantinham cativa no Cairo. Era um gesto de comandante audaz, e eu achava que aqueles turcos estariam melhor sob o sagaz Murad do que sob o cauteloso Mustaf. Mas o pax no confiava nos arrogantes mamelucos, no queria compartilhar o comando e ficava apavorado com a idia de sair da proteo de suas fortificaes e canhoneiras. Assim como Bonaparte se mostrara impaciente em Acre, tambm os otomanos haviam desembarcado demasiadamente rpido, com foras demasiadamente pequenas, no Egito. As coisas, entretanto, estavam em constante mudana. Sim, o grandioso projeto estratgico original de Napoleo j fracassara. A esquadra que viera com o corso fora destruda pelo almirante Nelson no ano anterior, o avano para a sia acabara detido em Acre, e Smith acabava de receber a informao de que Tippu Sahib, o sulto indiano com quem Bonaparte nutria esperanas de unir foras, fora morto no cerco de Seringapatam, na ndia, pelo general ingls Wellesley. Porm, no momento em que Mustaf desembarcava, uma
esquadra franco-espanhola adentrara o Mediterrneo para opor-se supremacia naval britnica. Estava ficando complicado calcular quem levaria a melhor. Resolvi que minha melhor aposta seria fazer negcio com Silano em Roseta, um porto na foz do Nilo, to depressa quanto possvel. Depois, voltaria correndo para o enclave turco antes que tal cabea-de-praia sumisse e pegaria um barco que fosse para qualquer lugar, menos o prprio Egito. Se eu tivesse sucesso, Astiza talvez voltasse comigo. Mas e o livro? Tanto Bonaparte como Silano tinham razo - eu estava mais curioso ainda em saber o que significava aquela escrita misteriosa. Ser que o velho Franklin teria feito diferente? "O que torna to difcil para as pessoas resistir tentao que elas no querem desencoraj-la por completo", escrevera ele. De algum modo, eu precisava obter a "chave" de Silano, resgatar outra vez Astiza e ento resolver por mim mesmo o que fazer com o segredo. A nica coisa de que tinha certeza era que, se o texto prometia a imortalidade, eu no queria ter nada a ver com ele neste mundo. A vida j dura o bastante sem que precisemos suportla para sempre. Enquanto os turcos se entrincheiravam no calor opressivo do vero, com suas tendas num carnaval de cores, aluguei um falucho para que me levasse a Roseta, na parte oeste da foz do Nilo. Passramos navegando por l um ano antes, durante minha primeira estada no Egito, mas no me parecera um lugar que chamasse
particularmente a ateno. Embora a localizao conferisse algum valor estratgico a Roseta, era um mistrio o porqu de Silano querer encontrarse comigo ali. Minha comodidade seria a ltima coisa que passaria pela cabea do feiticeiro; a explicao mais provvel era que a mensagem de Silano fosse mentirosa e traioeira, mas havia iscas suficientes - a mulher e a traduo - para me fazer enfiar a cabea na arapuca. Por conseguinte, mandei Abdul, o barqueiro, iar a vela a meio mastro para que eu pudesse fazer nela uma importante modificao - coisa que ele aceitou como prova incontestvel da maluquice de todos os estrangeiros. Com o estmulo de algumas moedas, eu o fiz jurar segredo. E ento passamos uma vez mais do mar azul para a lngua marrom do grande rio africano. Logo fomos interceptados por um barco de patrulha francs, um chebek, mas Silano enviara a senha para que me deixassem passar. O tenente no chebek reconheceu meu nome (aparentemente, minhas aventuras e mudanas de lado tinham me conferido certa m fama) e convidou-me para ir a bordo. Respondi que preferia ficar em minha prpria embarcao e segui-lo. Ele consultou o papel que trazia consigo. "Neste caso, monsieur, tenho ordens de confiscar vossa bagagem at o momento em que venha a encontrar-vos com o conde Alessandro Silano. Este documento diz que isso se faz necessrio para a segurana do Estado."
"A minha bagagem o que estou vestindo, dado que as minhas faanhas me deixaram sem tosto e sem aliados. Com certeza no pretendeis que eu desembarque nu - ou estou enganado?" "Mas carregais um bornal." "Deveras. E ele est pesado, pois traz uma pedra grande." Estendi o bornal por sobre a beira do barco. "Caso tenteis me tomar estes parcos pertences, eu os deixarei cair no Nilo. Se isso acontecer, tenente, posso garantir-vos de que o conde far que, na melhor das hipteses, sejais levado corte marcial - ou que, na pior delas, sofrais algum feitio antigo, assaz incmodo. Deixai-nos, portanto, seguir viagem. Estou aqui de livre e espontnea vontade e sou apenas um americano desacompanhado numa colnia francesa." "Tendes tambm um fuzil", retrucou ele. "O qual no tenho nenhuma inteno de disparar a menos que algum tente tom-lo de mim. O ltimo homem que procurou faz-lo morreu. Silano, acreditai, h de aprovar o que vos proponho." Ele resmungou e olhou mais algumas vezes para seu documento. No entanto, j que eu me postara na amurada com o fuzil numa das mos e a outra estendida sobre o rio, o confisco no se mostrava factvel. Assim, fomos em frente, com o chebek nos pastoreando como co de guarda, e aportamos em Roseta. Tratava-se de um vilarejo agrcola bem irrigado, no delta do Nilo. Suas construes, sombra das palmeiras, eram todas de adobe marrom, exceo feita mesquita, que tinha um nico minarete e fora construda de
pedra calcria. Deixei instrues com meu barqueiro e fui por caminhos sinuosos rumo a uma fortificao francesa ainda inacabada, chamada Fort Julian, com a bandeira tricolor tremulando acima das muralhas de adobe e uma multido de meninos de rua curiosos me seguindo. No porto, eles foram detidos por sentinelas com chapus bicornes pretos e bigodes enormes. Minha m fama se confirmou quando esses soldados me reconheceram com clara expresso de repugnncia. O eletricista inofensivo se tornara algo entre incmodo e perigoso, e eles me olharam como se eu fosse bruxo. Histrias de Acre haviam certamente chegado ali. "No podeis entrar com esse fuzil." "Ento no entro de jeito nenhum. Estou aqui porque fui convidado, e no porque me tivessem ordenado que viesse." "Ns o guardaremos para vs." "Infelizmente, vs, os franceses, tendes o hbito de pegar emprestado e no devolver." "O conde no far objees", disse uma voz feminina, interrompendo-nos. E Astiza surgiu, trajada recatadamente num vestido que lhe cobria os ps. Estava de leno na cabea, e ele ia amarrado ao pescoo, de modo que o rosto lindo, mas preocupado, lembrava uma lua. "Ele veio como savant, no como espio." Aparentemente, Astiza expressava em alguma medida a autoridade de Silano. Os soldados, relutantes, deixaram-me passar para o ptio, e o porto principal, com um estalido, fechou-se atrs de mim. Construes de tijolo e tbua recobriam
as faces internas das muralhas daquele forte aquadradado e simples. "Eu garanti a Alessandro que virias", disse Astiza, baixinho. Um sol escaldante castigava a praa de armas, e ele, mais o perfume de Astiza (uma fragrncia de flores e especiarias), deixaram-me zonzo. "E irei embora contigo." "No te enganes, Ethan - somos ambos prisioneiros, com ou sem o teu fuzil. Mais uma vez, precisamos estabelecer uma sociedade de convenincia com Alessandro." Indicou com um gesto de cabea as muralhas, e vi mais sentinelas a vigiar-nos. "Precisamos descobrir se essa lenda contm alguma verdade e, depois, planejar o que fazer." "Foi Silano quem te mandou dizer isso?" Ela pareceu decepcionada. "Por que no consegues acreditar que te amo? Cavalguei contigo todo o caminho para Acre, e o que nos separou foi uma bala de canho, e no uma escolha minha. E foi o destino que nos reuniu outra vez. S peo que tenhas f por um pouco mais de tempo." "Tu falas como Napoleo - 'J fiz todos os clculos. O destino ir se encarregar do resto'." "Bonaparte tem l sua sabedoria." Nisso, chegamos construo principal, uma estrutura trrea rebocada, com cobertura de telhas e varanda de sap (ou melhor, folha de palmeira). Dentro, estava fresco e escuro. Quando meus olhos se ajustaram falta da luz ofuscante l de fora, vi Silano, que esperava em uma mesa
simples com dois oficiais. O mais velho, eu conhecia desde o desembarque francs em Alexandria: o general Jacques de Menou lutara com bravura e depois, segundo constava, se convertera ao islamismo. Era fascinado pela cultura egpcia, mas, com a calva, a cara redonda de contador e o bigode fininho, no se tratava de um oficial de presena particularmente imponente. O outro, um capito bem-apessoado, eu no conhecia. Em ambos os lados do recinto, havia portas fechadas e, eu descobriria, trancadas. Silano se levantou. "Ests sempre tentando escapar de mim, Gage mas nossos caminhos sempre se cruzam!" Fez uma ligeira reverncia, muito polida. "J deves com certeza reconhecer que se trata do destino - quem sabe estejamos fadados a ser amigos, e no inimigos?" "Eu ficaria mais convencido disso se os teus outros amigos no vivessem atirando em mim." "At os melhores amigos tm suas discusses." Fez um gesto em direo ao oficial mais velho. "Conheces o general De Menou, no?" "Conheo." "No esperava ver-te de novo, Amricain. Ah, como o coitado do Nicolas ficou bravo quando roubaste o balo dele!" "Foi em decorrncia do hbito de atirarem em mim", respondi ao general. "E este o capito Pierre-Franois Bouchard", continuou Silano. "Ele estava encarregado da construo deste forte quando seus homens escavaram um pedao de entulho. Felizmente, o capito Bouchard percebeu depressa a
importncia daquilo. Creio que essa pedra de Roseta pode mudar o mundo." "Pedra?" "Vem comigo. Eu te mostrarei." Silano nos conduziu porta da esquerda, destrancou-a e nos introduziu no recinto. Estava bastante escuro; a janela, uma fenda vertical estreita que dava para o ptio, fora coberta com pano para manter a privacidade. A primeira coisa que me atraiu a ateno foi o esquife de madeira de uma mmia. Pintado em cores vivas e extraordinariamente bem conservado, ostentava pinturas que pareciam uma descrio da jornada de uma alma pela terra dos mortos. "H algum corpo a dentro?" "O de Omar, nossa sentinela", brincou Menou. "Ele no se cansa nunca." "Sentinela?" "Eu o trouxe rio abaixo, mas disse aos soldados que o achamos aqui no local do forte", disse Silano. "Tais mmias provocam medo, e esta tem agora a fama de assombrar Roseta. Quando se trata de manter os curiosos longe deste recinto, ela melhor que uma naja." Toquei a tampa do esquife. "Impressionante o brilho das cores." "E mgico, talvez. Hoje no conseguiramos fazer igual, do mesmssimo modo que perdemos a frmula dos vitrais medievais. No conseguimos igualar a beleza nem de uma coisa, nem de outra." Apontou para alguns frascos de tinta num dos cantos da sala. "Estou fazendo experincias. Talvez o nosso Omar me d alguma dica uma noite dessas."
"E tu? No acreditas em maldies?" "Acredito que eu esteja prestes a ser capaz de control-las. Com isto." Junto ao esquife de madeira, uma coisa volumosa, de aproximadamente cinco ps de altura e um pouco menos de trs de largura, estava envolta num oleado. Com um gesto dramtico, Silano arrancou essa cobertura. Eu me curvei, forando a vista na luz ruim. Viam-se escritas de diferentes idiomas. No sou nenhum lingista, mas um grupo de palavras parecia grego, e outro, a escrita que eu j encontrara em templos egpcios. Uma terceira no consegui identificar - e a quarta, no alto, logo acima da escrita dos templos, fez meu corao disparar. Eram os mesmos smbolos curiosos que estavam no rolo de texto que eu achara na Cidade dos Espritos. Entendi o que Silano quisera dizer com aquela mensagem misteriosa - ele podia comparar as palavras gregas com as palavras secretas de Tot e possivelmente desvendar essa linguagem! "O que este texto aqui?", perguntei, apontando para a escrita que eu no reconhecia. "E demtico, a escrita egpcia que se seguiu aos hierglifos", respondeu Silano. "O meu palpite que as escritas esto numa ordem cronolgica com a mais antiga, a de Tot, no alto e a mais recente, a dos gregos, na base." "Quando Alessandro me trouxe para c, eu reconheci o que tnhamos visto no rolo de texto, Ethan", disse Astiza. "Vs? Eu estava mesmo destinada a ser recapturada."
"E agora quereis que eu vos ajude a decifrado", resumi. "Queremos que nos ds o livro para que ns te ajudemos a decifrado", corrigiu Silano. "E ganho o que com isso?" "A mesma coisa que te ofereci antes." Silano suspirou, como se eu fosse uma criana particularmente obtusa. "Parceria, poder e imortalidade, se a quiseres. Talvez os segredos do universo. O sentido da vida, o rosto de Deus, o mundo na palma da tua mo... Ou nada, se preferires no colaborar." "Mas, se eu no colaborar, no tereis o livro - ou no ?" Vi Menou fazer um pequeno gesto. O capito Bouchard se moveu para trs de mim, e reparei que ele tinha uma pistola enfiada no cinto. "Pelo contrrio, Gage", disse Silano. Sinalizou com a cabea, e meu bornal me foi arrancado do ombro e aberto bruscamente. "Merdei", exclamou Bouchard. Virou de cabea para baixo aquela sacola de couro, e um rolo de pastel caiu l de dentro, fazendo uma marca no cho de terra batida. O general e o capito olharam sem entender, e Astiza abafou uma risada. A fisionomia de Silano se ensombreceu. "No achaste realmente que eu te entregaria o livro tal qual um bom carteiro, achaste?" "Revistai-o!" Mas no havia rolo nenhum. Espiaram at no cano de meu fuzil, como se eu o tivesse de alguma maneira enfiado ali. Entreabriram as solas de minhas botas, verificaram as solas de meus ps,
apalparam-me rudemente em lugares que me deixaram indignado. "Olhareis tambm dentro dos ouvidos?" "Onde que est?" A frustrao de Silano era evidente. "Escondido, at que estabeleamos uma sociedade de verdade. Ns, os americanos e franceses, no representamos a liberdade e a razo? Pois ento, que o livro seja traduzido para toda a humanidade, e no para os maons renegados do Rito Egpcio. Ou para generais ambiciosos como Napoleo Bonaparte. Quero dar a traduo aos savants do Institut d'Egypte, no Cairo - e Royal Society, em Londres -, para que seja difundida ao mundo. E quero Astiza de uma vez por todas. Quero que desistas dela, Silano, para troc-la pelo livro, no importando quanto poder tenhas sobre ns. E quero que ela prometa vir comigo para onde eu escolher - agora e para sempre. Quero que Bonaparte saiba que estamos todos aqui, trabalhando juntos por ele, para que nenhum de ns venha convenientemente a desaparecer. E quero o fim do derramamento de sangue. Ambos perdemos amigos. Promete-me tudo isso, que trarei o livro a tu. Ns dois temos sonhos." "Traz-lo de onde? Acre?" "Poders t-lo em menos de uma hora." Ele mordeu o lbio. "J revistamos o teu falucho e o maldito barqueiro. At ergueram o barco para procurar na quilha - e nada!" Mais uma vez, irrompeu de sua mscara de urbanidade um pouco
daquela frustrao impaciente que eu vislumbrara no Egito no ano anterior. Eu sorri. "Quanta confiana, conde Silano..." Ele se voltou para Astiza. "Concordas com aquela condio dele?" Percebi que era a segunda vez que eu pedia os afetos de Astiza em um ms. Nenhum dos dois pedidos fora terrivelmente romntico, mas ainda assim... Eu devia estar ficando velho, para querer assim compromisso de uma mulher - o que implicava que eu me comprometesse. "Concordo", respondeu ela. Astiza me olhava esperanosamente. Eu me sentia feliz e apavorado ao mesmo tempo. "Pois ento, Gage, onde est o livro?" "Mas e tu, Silano? Concordas com minhas condies?" "Sim, sim." Ele fez um gesto de alguma impacincia com a mo. "D-me tua palavra de nobre e de savant? Estes soldados so tuas testemunhas." "E, dou minha palavra - a um americano com mais perfdias do que consigo contar. O importante decifrar o cdigo lingstico e traduzir o livro. Esclareceremos e instruiremos o mundo inteiro! Mas no poderemos faz-lo se no estiveres com o livro." "Ele ficou no barco." "Impossvel", retrucou Bouchard. "Os meus homens revistaram cada polegada daquele falucho." "Mas eles no iaram a vela."
Samos do forte at o Nilo, comigo frente. O sol baixava, e uma luz clida se derramava atravs das tamareiras, que ondulavam brisa trrida. A gua, verde, parecia densa, e pequenas garas estavam de p nos baixios. Meu barqueiro se acuara num canto de seu falucho (que fora puxado para a terra), parecendo esperar a prpria execuo a qualquer instante. Eu no podia culplo: tenho talento para levar azar meus companheiros. Dei uma ordem rspida, e a vela, limitada em cima e embaixo por suas hastes de madeira, foi iada at enfunar-se. "L - vede?" Olharam de perto. A uma luz horizontal, discerniase com dificuldade uma tira que, apresentando caracteres estranhos e indistintos, ia da base ao topo da vela. "Ele costurou essa coisa no pano...", disse Menou, com certa admirao. "O livro ficou exposto durante todo o percurso rio acima", proclamei. "Absolutamente ningum notou."
- 24 Tnhamos duas tarefas pela frente. Uma era usar a pedra de Roseta a fim de traduzir para o francs os smbolos do texto de Tot. A outra, ainda mais demorada e laboriosa, era traduzir e entender realmente o livro.
Agora que tinha, nas mos um texto que procurava havia anos, Silano exibia um pouco daquele encanto fidalgo com que seduzira as damas de Paris. Sumiram-lhe rugas do rosto, o coxear ficou menos doloroso, e o conde se mostrava animado e ansioso ao comear a tabular smbolos e tentar achar nexos. Silano tinha charme, e principiei a entender o que Astiza vira nele. Sua aristocrtica energia intelectual era sedutora. Melhor ainda: parecia conformado em ceder-me Astiza (muito embora eu s vezes o pegasse olhando ardentemente para ela). Astiza tambm parecia aceitar nosso acordo. Que estranho triunvirato de pesquisadores nos tornramos! Eu no esquecera a morte de meus amigos nas mos de Silano, mas admirava seu empenho e seu zelo. O conde trouxera bas cheios de livros embolorados, e cada conjetura mais abalizada levava algum de ns a consultar este ou aquele volume para verificar se uma construo era gramaticalmente plausvel ou se uma referncia tinha mesmo sentido. Aos poucos, ia-se iluminando a pr-histria obscura em que o Livro de Tot fora supostamente escrito. Penosamente, decifrvamos ttulos de captulos do rolo de texto. Um deles era "Da natura difana da realidade, e do poder de manipul-la segundo nossa vontade". Mesmo a contragosto, aquela perspectiva me empolgava. "Da liberdade pessoal e do destino inelutvel", dizia outro. Bem, aquele era um problema e tanto, no?
"Da unio de foras entre a mente, o corpo e a alma." "Do poder de fazer o man cair dos cus." Teria Moiss lido aquilo? No vi nenhum tpico sobre como dividir as guas do mar. "Da vida eterna, em suas diversas formas." Por que isso no funcionara para Moiss? "Do mundo inferior, e do mundo superior." O Inferno e o Cu? "Do poder de manipular as mentes humanas segundo nossa vontade." Ah, dessa Bonaparte ia gostar. "Da eliminao das doenas, e da cura da dor." "Do poder de conquistar o corao de quem amamos." Seria sucesso de vendas. "Dos quarenta e dois textos sagrados." Isso j bastou para me fazer gemer. Aparentemente, aquele era apenas o primeiro de quarenta e dois rolos de texto, os quais Enoque, meu mentor egpcio, afirmara serem apenas uma amostra de trinta e seis mil, quinhentos e trinta e cinco rolos - uma centena para cada dia do ano espalhados pela Terra. Seriam encontrados apenas pelos justos, no tempo certo. Eu dava graas por no ser particularmente digno disso - ter conseguido aquele primeiro j quase me matara! Silano, entretanto, sonhava com novas buscas. " assombroso! Estou supondo que este livro seja um sumrio, uma lista de tpicos e postulados, e que o conhecimento e o mistrio se aprofundem a cada volume. Podeis imaginar t-los todos?!" "Os faras acharam que mesmo esse nosso nico rolo precisava ser mantido bem oculto", lembrei.
"Os faras eram homens primitivos que no dispunham nem da cincia nem da alquimia modernas. Todo o progresso humano, Gage, advm do conhecimento. Desde o fogo e a roda, o nosso mundo a culminncia de um milho de idias compartilhadas e registradas. O que temos aqui so mil anos de avano cientfico, legados por algum - uma divindade, um mago ou algum ser excelso de sabe-se l onde, talvez da Atlntida, ou da Lua - que fundou a civilizao e agora capaz de renov-la. A maior das bibliotecas ficou perdida por cinco milnios, e agora foi redescoberta. Este rolo de texto ir nos conduzir aos outros. E os homens mais sbios - eu, por exemplo - podero governar e colocar as coisas em ordem. Ao contrrio dos reis e tiranos, decidirei tudo com perfeito conhecimento de causa!" Ningum acusaria Silano de humildade. Privado da fortuna pessoal pela revoluo, obrigado a rastejar para voltar a cair nas graas do poder, adulando democratas que antes haviam sido reles advogados e panfletrios, o conde era um homem movido pela frustrao. A feitiaria e o oculto reconquistariam o que o republicanismo lhe tomara. Embora j tivssemos alguns ttulos de captulo, atinar com o texto em si estava se mostrando fatigante. Sua construo era em tudo estranha, e simplesmente identificar as palavras no esclarecia o sentido. "Isto trabalho para universidades inteiras", disse eu a Silano. "Passaremos o resto de nossas vidas tentando deslindar o texto aqui em Roseta. Vamos
dar o trabalho ao Institut de France ou Royal Society." "s um completo tolo, Gage? Deixar um savant comum meter-se com isto como guardar plvora em loja de vela. Achei que eras tu a temer o mau uso do livro... Durante dcadas, estudei as tradies referentes a essas palavras. Astiza e eu labutamos muito, desde longa data, para sermos dignos da tarefa." "E quanto a mim?" "Estranhamente, foste necessrio para que se achasse o livro. O porqu disso, s Tot sabe." "Certa vez, uma cigana leu o meu taro e me disse que eu era o Louco. Um tolo a procurar tolices." "E a primeira vez que ouo esses charlates dizerem uma verdade." E naquela noite, como se querendo demonstrar seu argumento, ele mandou me envenenarem. No sou o mais bondoso nem o mais contemplativo dos homens, e em geral s penso nas outras criaturas do Senhor quando se trata de ca-las, apanh-las em armadilha ou us-las como montaria ou animal de tiro. Mas houve ces de caa a que me afeioei, ou gatos a que dei valor por pegarem ratos, ou aves cuja plumagem me deslumbrou. Foi por isso que alimentei o rato. Fiquei acordado com o livro at mais tarde que Silano e Astiza, procurando ver se esta ou aquela palavra encadeava-se a outra e se tinham algum sentido esquisitices como "Em vosso mundo, o acaso o alicerce da predeterminao fatalista". Acabei fazendo uma pausa rpida em nossa
varanda, tendo a abundncia de estrelas no breu mido e compacto do cu de vero, e pedi a um ordenana que me trouxesse comida. Embora tenham demorado demais, veio enfim um prato, e tornei a entrar para sentar a nossa mesa e ir beliscando o fui medames, receita egpcia que consiste em fava cozida e parcialmente macerada, com tomate e cebola. Num canto do recinto, avistei um visitante peridico que j me divertira antes: um rato-espinhoso-do-cairo, assim chamado porque seus plos espetam a boca de qualquer predador. Sentindo-me socivel naquela noite silenciosa, eu lhe joguei um pouquinho de fui, ainda que a presena de tais roedores fosse uma das razes para que tivssemos colocado o livro num cofre. Depois, voltei ao trabalho. Eram tantas opes! Eu me maravilhava com os smbolos, de repente notando como eles pareciam mudar e deslizar, girar e dar cambalhotas. Pisquei, com as letras borrando-se eu parecia estar mais cansado do que me dera conta! Mas, se conseguisse decifrar onde a frase terminava, ou ver que Tot usava mesmo frases na acepo moderna do termo... Agora, o rolo de texto tremulava. O que acontecia? Olhei para o canto. O rato, to grande quanto uma pequena ratazana americana, cara de lado e tiritava, com olhos arregalados de pavor. Ele espumava. Empurrei o prato para longe e me levantei. "Astiza!", tentei gritar, mas minha lngua, inchada, produziu apenas um murmrio, que apenas eu ouvi. Dei um passo trpego. Silano, aquele
desgraado! Ele conclura que no precisava mais de mim! Lembrei-me de sua ameaa de envenenamento no Cairo, durante o ano anterior. Em seguida, eu me senti caindo, sem nem mesmo ter certeza do que acontecera a minhas pernas, e bati no cho com tanta fora que luzes danaram diante de meus olhos. Com percepo enevoada, vi o rato morrer. Homens entraram na ponta dos ps para me levarem dali. Mas como Silano explicaria o homicdio a Astiza? Ou pretendia ele assassin-la tambm? No, o conde ainda a queria. Ergueramme, gemendo os dois com o esforo, e me carregaram como uma saca de farinha. Eu estava tonto, mas consciente - provavelmente porque mal provara da comida. Eles, entretanto, presumiram que eu j estivesse morto. Samos do forte por um pequeno porto lateral e descemos no rumo do rio e da latrina da guarnio, junto a um crrego. Para alm dele, uma lagoinha do grande rio, a qual exalava o odor de ltus e merda. Balanando-me, arremessaram para l o meu corpo, desamparado como um beb. Com um rudo de queda na gua, submergi. Ser que queriam que parecesse afogamento? Alas o impacto me despertou um pouco mais, e o pnico deu algum movimento a meus braos e pernas. Consegui sacudir-me para voltar superfcie e tomar ar, boiando na vertical. O efeito da pequena dose de veneno j estava passando. Os dois aspirantes a carrascos apenas observavam, sem curiosamente parecerem muito preocupados com meu poder de recuperao. No
perceberam que eu no tomara veneno suficiente? No se mexeram para atirar em mim, nem para entrar na gua e me liquidar a golpes de espada ou de machado. Talvez eu pudesse nadar de cachorrinho e conseguir socorro... Foi ento que ouvi um grande espirrar de gua atrs de mim. Virei-me. Havia na lagoinha um cais baixo, e uma corrente estava se desenrolando com rudo de matraca. Os elos agora serpeavam em minha direo. Que diabos...? Meus acompanhantes riram. No escuro, vinham em minha direo as narinas salientes e os olhos reptilianos da mais asquerosa e medonha de todas as feras - o crocodilo-do-nilo. Esse pesadelo pr-histrico, da grossura de uma tora, blindado com escamas, um projtil de msculos e consegue entrar na gua e sair com espantosa rapidez. E to antigo quanto os drages, e to insensvel quanto uma mquina. Mesmo tonto como eu estava, entendi o que tramaram. Os canalhas de Silano haviam acorrentado o predador na lagoinha para que ele me despachasse. Eu j ouvia a histria que Silano contaria: o americano usou a latrina, foi at o Nilo para lavar-se ou admirar a noite, e a o crocodilo saiu da gua e (coisa que j acontecera no Egito milhares de vezes) lhe papou. Xeque-mate: o conde ficaria com a pedra, o livro e a mulher! Eu mal acabara de visualizar esse roteiro desagradvel, reconhecendo com abobalhada admirao a engenhosa perfdia daquilo, quando o
animal deu o bote. Ele me pegou por baixo, abocanhando minha perna sem mastig-la ainda, e nos fez rolar, seguindo o costume ancestral de afogar a presa. O absoluto horror daquela pegada, firme como um torno, os dentes justapostos na longa boca, as escamas musgosas, o vazio obtuso da expresso do animal - tudo isso se registrou em minha mente, e o choque me impeliu ao apesar da dor e do veneno. Enquanto girvamos na gua, tirei a machadinha do cinto e acertei o bicho no focinho, sem dvida surpreendendo-o com essa minha picadinha tanto quanto ele me surpreendera. Suas mandbulas se abriram num timo, como se acionadas por mola, soltando minha perna, e eu o golpeei de novo, atingindo-o no cu da boca, onde a machadinha se fincou e ficou. A lagoa parecia explodir enquanto o crocodilo se contorcia, e, nisto, senti sua corrente resvalar em mim. Inconscientemente, eu me agarrei a ela. O crocodilo e sua corrente me carregaram para cima, minha cabea veio tona, e tomei flego. Tornamos a mergulhar, e o animal tentava virar-se para me morder, ainda que cada mordida sua s pudesse fazer a machadinha enterrar-se dolorosamente mais fundo. No ousei deixar que sua boca chegasse perto. Puxei-me freneticamente para adiante na corrente, at que cheguei aonde ela formava uma coleira no pescoo do monstro, logo aps as patas dianteiras. Eu me segurei ali com a mxima firmeza - por mais que o bicho se retorcia, ele no era mais capaz de me morder.
Mergulhvamos, de modo que lhe bati repetidamente nos olhos. Agora, ele se agitava como cavalo chucro, e eu mal conseguia me segurar. Viemos de novo tona, submergimos, nadamos no lodo do fundo raso da lagoinha e subimos outra vez. Enquanto a fera puxava e sacudia com fria a corrente, eu podia ouvir o cais estalar e ranger atrs de ns. Meus captores tinham parado de rir. Minha perna sangrava, e o cheiro do sangue fazia o crocodilo debater-se de maneira ainda mais frentica. Eu no tinha por onde mat-lo. Assim, quando nossa agitao nos trouxe para perto do cais, larguei a corrente e nadei para l. Homem nenhum j saiu da gua com tanta rapidez - tendo alcanado a estrutura de madeira, eu me pus em p voando. O crocodilo se voltou, enrolado na prpria corrente, e veio atrs de mim. Seu focinho se chocou com estrondo no cais irregular. A fera mordeu a madeira, partindo tbuas ao meio e grunhindo com a dor que minha machadinha tornava a lhe causar. O cais comeou a afundar rumo ao focinho do bicho, e eu me arrastava para subir pelas tbuas inclinadas. Ouvi gritos confusos dos homens que haviam me atirado na lagoinha. Avistei ento a estaca onde tinham enrolado a corrente e, quando outra arremetida do crocodilo relaxou a tenso nos elos, levantei a laada para soltar o animal, esperando que ele nadasse Nilo acima. Em vez disso, o crocodilo irrompeu com metade do corpo para fora da gua, e a corrente solta zuniu
como um chicote. Eu me agachei quando ela sibilou pertinho de mim. O bicho caiu de novo na lagoa, percebendo que estava livre - e, de repente, arremeteu a toda a velocidade, mas no contra mim. Seus olhos angustiados tinham avistado os homens que, da margem, acompanhavam nossa luta. O crocodilo saiu da gua para persegui-los, com as grandes patas espalmadas ao avanar, fazendo voar gua. Eles fugiram aos berros. Os crocodilos conseguem correr distncias curtas com a mesma velocidade que um cavalo a galope. O rptil pegou um de meus algozes e, com um furioso fechar de mandbulas, quase o partiu ao meio. Em seguida, deixou-o cair e foi atrs do outro, direto para o forte. O homem gritava para alertar a guarnio. Eu no tinha muito tempo. De jeito nenhum eu deixaria tudo para Silano. Se fosse possvel, o mataria. Se no fosse, o atormentaria com o que ele estava para perder eu pegaria o livro e o jogaria no lugar mais fundo do Mediterrneo. Ferido pelos dentes do crocodilo, pingando sangue, subi o caminho mancando, seguindo o rastro de areia que a cauda do crocodilo varrera ao bater de um lado para outro. Com cautela, parei no portozinho lateral por onde havamos sado. O crocodilo irrompera direto por ali e estava no ptio. Homens comeavam a atirar, e um canho disparou dando o alarme. Entrei, mas fiquei nas sombras, esgueirando-me pelo permetro do forte at meus aposentos. Ali, peguei o fuzil e espiei pela porta. O crocodilo estava ferido, com uma centena de homens abrindo todo
o fogo que podiam contra ele; pedaos de outro humano j estavam presos em suas mandbulas colossais. Mirei, mas no a fera: visei uma lanterna nos estbulos do outro lado do ptio, os quais, por sua vez, no ficavam longe do paiol. Eu ia pr fogo no forte. Foi um dos melhores tiros que j dei, segurando o flego e puxando o gatilho com dedo firme. Tive de disparar por sobre todo o comprimento da praa de armas para, atravs de uma janela aberta, derrubar a lanterna sem apagar a mecha. A lanterna caiu e se quebrou, e as chamas comearam a danar no feno. Uma luz estranha comeou a iluminar as escamas e os dentes (semelhantes a sabre) do crocodilo, e nisso os homens comearam a berrar: "Incndio! Fogo, fogo!" Cavalos relinchavam desesperadamente. Ningum olhava para mim. Assim, tornei a sair, mancando, e fui para a sala onde haviam me envenenado. No caminho, peguei uma das picaretas que estavam usando na construo do forte. Maldio - o livro sumira! Lancei um olhar para fora. As chamas disparavam, mais altas, e os cavalos relinchavam e saam em pnico do estbulo, aumentando o caos. Ouvi oficiais gritarem: "O paiol! Jogai gua no paiol!" Recarreguei e tornei a atirar, acertando algum que tentava organizar uma corrente de baldes desde o poo do forte. Quando esse homem caiu, a turma dos baldes se dispersou, confusa, sem saber o que acontecia. Houve mais disparos, pois sentinelas atiravam para todos os lados.
Astiza apareceu correndo, de camisola, o cabelo solto e despenteado, os olhos arregalados de perplexidade. Viu minha perna a sangrar, minhas roupas encharcadas, a mesa vazia onde estivera o livro. "Ethan, o que fizeste?!" "Eu?! O teu ex-namorado, isto sim! Silano me envenenou e tentou me dar de comer quele rptil l fora! Tu achas que no terias sido a prxima, depois que ele tivesse te possudo e se cansado de ti? Ele quer o livro s para si. No para a cincia, no para Bonaparte - e certamente no para ns. O livro o levou loucura!" "Eu o vi correr para a torre de vigia com Bouchard. Bateram a porta e se trancaram l dentro." "Ele vai esperar e deixar que a guarnio d cabo de mim - e talvez de ti." Escutaram-se mais gritos, e agora balas comeavam a atingir a construo onde estvamos encolhidos. "No podemos permitir que Alessandro desaparea levando o livro!", disse ela. "Mas ento por que que fomos atrs daquilo? No teria sido melhor deixar o livro onde estava?" "Por que que as pessoas querem aprender o que quer que seja? E da nossa natureza!" "No da minha." Agarrei Astiza. "Ests do meu lado?" " claro." "Pois ento, se no podemos ter o livro, vamos destruir a cifra que o traduz e deixar Silano com um livro intil. H alguma sada desta ratoeira?" "Atrs daquela outra porta, h uma armaria para os oficiais, com alguma plvora."
"Achas que temos como encarar a guarnio inteira?" "Podemos usar a plvora para abrir um buraco na muralha dos fundos." Eu sorri. "Cus, tu ficas linda sob presso!" Era uma porta pesada e trancada, mas atirei uma vez e depois a golpeei com a picareta. A porta cedeu. Aquilo no era o paiol principal, s o lugar onde se guardavam as armas dos oficiais, mas por Tot! - l estavam dois barris de plvora. Desarrolhei um deles e deitei um rastilho at o recinto principal. Depois, encostei ambos os barris contra a parede que dava para fora do forte. "Agora, peguemos a pedra para ns." "No conseguirs levada! pesada demais." Ergui aquele rolo de pastel que eu colocara no bornal para lograr Silano e seus comparsas e sorri de orelha a orelha. "Benjamin Franklin garante que consigo." O negcio editorial sempre me pareceu uma barafunda, mas Franklin afirmava que era to lucrativo quanto imprimir dinheiro. Pus o fuzil a tiracolo e fui mancando para o recinto onde estava a pedra de Roseta, enquanto l fora as chamas, lgubres, projetavam sombras. No ptio, soldados haviam formado uma longa corrente que ia at o rio, e os baldes iam sendo passados por sobre o rabo do crocodilo morto. O tiroteio era agora menos intenso. Tirei dos frascos as tintas experimentais de Silano e usei um pouco delas para besuntar meu rolo de pastel. Em seguida, eu o passei sobre a parte superior da pedra de Roseta, cobrindo sua
superfcie com o pigmento, mas deixando sem tinta os smbolos ali talhados. Fiz a mesma coisa com o texto grego. "Por favor, desnuda-te at a cintura." "Ethan!" "Eu preciso da tua pele." "Pelo amor de sis - esses homens! tudo em que consegues pensar numa hora des...?" Segurei sua camisola pelos ombros e puxei, rasgando-a pelas costas enquanto Astiza dava um grito agudo. "Desculpa-me. que s mais lisa que eu..." Ento a beijei, com seus trapos contra os seios, e a empurrei para a pedra. Astiza se contraiu. "O que ests fazendo?" "Transformando-te em biblioteca." Eu a puxei e fui olhar. No ficara perfeito, pois alguns smbolos se perderam na cavidade da coluna dorsal. Ainda assim, estampara-se ali uma imagem idntica da pedra. Comprimi Astiza outra vez, agora contra o texto grego, e parte dele chegou ao alto das ndegas. Foi estranhamente ertico, mas as mulheres realmente tm costas lindas, e eu gostei mesmo da maneira que o pano da camisola parecia dilatar-se ao drapejar em suas ancas... Hora de trabalhar! Enquanto Astiza ficava ali de p, atnita demais para j ficar brava, eu investi contra o monumento, no para desfigur-lo, mas para trinc-lo. Tive de mirar no meio dos hierglifos, torcendo para que algum savant no me amaldioasse anos depois. Um golpe de picareta, dois, trs, e o granito comeou a fenderse! Mirei pela ltima vez e usei a picareta com toda a fora de que fui capaz, e ento o quarto
superior da pedra de Roseta soltou-se, levando consigo toda a escrita de Tot e parte dos hierglifos. O fragmento caiu no cho com estrondo. "Ajuda-me a arrastar isto." "Ficaste completamente louco?!" "Agora temos a cifra no teu corpo. Vamos destruir este pedao da pedra. No d para levar a pedra inteira, mas podemos coloc-lo na armaria." "E depois?" "Explodi-lo ao mesmo tempo que abrimos um buraco na parede. Isso far que o livro permanea intil enquanto no conseguirmos recuper-lo!" O fragmento era pesado, mas demos um jeito de pux-lo, empurr-lo e arrast-lo pelo recinto de entrada at a armaria. Eu o calcei contra os barris de plvora, calculando que ele ajudaria a direcionar a exploso para a parede. Em seguida, eu me retirei, peguei uma vela e acendi o rastilho. Olhei rapidamente para trs. Astiza estava agachada junto janela, olhando para fora. Homens bradavam e corriam. As chamas se avivavam. "Ethan!", gritou ela. E ento o mundo inteiro explodiu. Primeiro foi a vez do paiol do Fort Julian, uma detonao atroadora que lanou destroos flamejantes para o ar, centenas de ps acima de ns. Mesmo abrigados como estvamos, a concusso nos deixou estatelados no cho. Um instante depois, houve outro estrondo, desta vez na armaria, e tambm de l choveram destroos sobre ns. Pedaos da pedra de Roseta voaram
como metralha - agora, o lindo torso de Astiza passava a ser o nico registro daquele escrito de Tot. Eu a toquei. "A tinta j secou." Eu sorri. "s um livro, Astiza - o segredo da vida!" "Pois trata de arranjar capa para este livro. No vou zanzar nua pelo Egito." Fui buscar um capote de oficial. A machadinha, eu tivera de deixar no crocodilo morto. Levando meu fuzil, abrimos caminho em meio destruio da armaria. A muralha de adobe do forte se rompera, e escalamos seu entulho para dar nas ruas de Roseta. No fim da viela, haviam pendurado roupa para secar junto a uma carroa de burro, no muito longe do bicho, que, muito apavorado, estava num curral.
- 25 -
Fugir a passo de carroa de burro no a maneira mais clere de escapar aos inimigos, mas leva a vantagem de ser to ridculo que as pessoas no tomam conhecimento. Aps termos requisitado sem conhecimento do dono aquela roupa lavada, estvamos mais ou menos em trajes egpcios, e agora minha perna, embora latejasse, estava bem enfaixada. Minha esperana era de que, na confuso causada por um crocodilo alucinado, por cavalos em disparada e por um paiol detonado, talvez consegussemos nos safar. Com alguma sorte, o prfido Silano talvez presumisse que eu estava na barriga daquele seu rptil gigantesco, pelo menos at que algum pensasse em abri-la.
Ou ento ele poderia concluir que fugamos pelo Nilo, tentando passar pelos barcos de patrulha. Meu plano era vago: eu pretendia me esgueirar entre os franceses at as linhas otomanas; ir ao encontro do esquadro de Smith, que estava ao largo; e regatear com Silano de algum lugar seguro. Se perdramos o livro, ele perdera a possibilidade de continuar a decifr-lo. O sucesso desse esquema comeou a diminuir medida que o sol se levantou e o dia foi ficando mais quente. No que deixamos a verde plancie aluvial do Nilo para adentrar o deserto vermelho que se estendia at Abukir, comeou a fazer-se ouvir um rudo como o de trovo. Com o cu to lmpido, s podia ser o troar de canhes. Travavase alguma batalha, e isso significava que, a menos que os turcos vencessem e os franceses se desbaratassem, todo o exrcito de Bonaparte estava em nosso caminho. Era o dia 25 de julho de 1799. "No podemos voltar", disse Astiza. "Silano iria nos localizar." "E batalhas criam confuso - talvez esta apresente alguma sada para ns." Deixamos a carroa e o burro ao abrigo de uma duna alta e a subimos para olhar a baa mais alm. O panorama era desolador. Mais uma vez, evidenciava-se a atrofia do poder militar otomano. No havia nada de errado com a coragem dos homens do pax Mustaf. O que lhes faltava era poder de fogo e bom senso ttico. Os turcos ficaram esperando como uma lebre paralisada; os franceses ento os bombardearam e depois os
atacaram com a cavalaria. ramos espectadores de um desastre, assistindo enquanto uma carga frontal dos cavalarianos de Joachim Murat no apenas rompia a primeira linha otomana, mas tambm atravessava a segunda e a terceira. Os corcis avanavam correndo por todo o comprimento da pennsula de Abukir, fazendo que os defensores se esparramassem em pnico para fora de suas trincheiras e as tendas murchassem ao terem as cordas cortadas. Soubemos depois que Murat em pessoa capturou o comandantechefe turco em feroz combate corpo-a-corpo, sendo atingido no maxilar por um tiro de raspo da pistola de Mustaf, e ento decepando alguns dedos do pax a golpe de espada. Bonaparte usou o prprio leno para improvisar uma bandagem na mo do homem. Em 1799, ainda havia fidalguia. O resto, to logo as linhas turcas se romperam, foi uma matana. Mais de dois mil dos guerreiros muulmanos foram ceifados em terra, e o dobro desse nmero se afogou ao mergulhar no mar para tentar chegar a seus navios. A guarnio do forte que ficava na extremidade da pennsula agentou teimosamente, mas acabou bombardeada e privada de alimento at render-se. Ao preo de mil baixas, das quais trs quartos eram feridos, Bonaparte destrura outro exrcito otomano. Era exatamente o triunfo de que ele precisava para restaurar sua boa fama aps a batalha de Acre. Escrevendo a um colega, disse que fora "uma das batalhas mais lindas que j vi". Escrevendo ao Diretrio (a junta que, de Paris, ento governava a Frana revolucionria), ele a
pintou como "uma das mais terrveis". Ambas as qualificaes eram verdadeiras. O sangue o ressuscitara. Por conseguinte, Astiza e eu tnhamos, atrs de ns, um monte de franceses furiosos em Roseta e, nossa frente, um exrcito francs vitorioso a saquear os restos de nossos aliados. Eu fugira das mandbulas de crocodilo para me ver cercado por militares. "Ethan, o que achas que devemos fazer?" Imagino ser lisonjeiro que as mulheres nos faam perguntas desse tipo em meio ao perigo marcial, mas eu no me importaria se, de vez em quando, elas apresentassem suas prprias idias. "Continuar fugindo, acho eu. S no sei para onde." E assim Astiza, moa valorosa, deu mesmo uma sugesto. "Lembra-te do osis de Siwah, onde Alexandre, o Grande, foi declarado filho de Zeus e Amon? Pois bem, Napoleo no domina o osis vamos para l." Engoli em seco. "Isso no fica depois de cem milhas de completo deserto?" "Nesse caso, melhor no perdermos mais tempo." Acabaramos ambos mumificados pelo calor e pela sede, mas para onde mais poderamos ir? Agora, Silano certamente nos mataria. Napoleo faria a mesma coisa. "Eu queria que o nosso burro no parecesse to famlico e zonzo", comentei. "Se tivssemos tido tempo, eu teria procurado um melhor."
Mas no tinha importncia: uma patrulha francesa estava nossa espera quando descemos da duna. Napoleo, previsivelmente, estava de bom humor naquela noite. Nada como a vitria para sosseglo. Informes seriam enviados Franca para descrever com detalhes fulgurantes sua nova vitria. Estandartes capturados aos turcos j estavam sendo preparados para embarque e exposio em Paris. E eu, o irritante moscardo do general, estava agora bem agrilhoado, com a perna mastigada por um crocodilo esfomeado, a amada amarrada, o fuzil apreendido e o burro voltando para o legtimo dono. "Venho tentando salvar-vos da feitiaria, general", ensaiei dizer, sem muita convico. Ele desarrolhou uma garrafa de Bordeaux, parte da reserva pessoal que o irmo trouxera da Frana. "E estavas tentando fazer isso agora? Com a tua bela vbora do lado?" "Silano procura poderes malignos que vos desencaminharo." "Ento, Gage, s posso dar graas a Deus por teres mandado metade do meu forte pelos ares, no mesmo?" Bonaparte tomou um gole de vinho. Realmente, quando colocada naqueles termos, a coisa no parecia nada boa. "Mas foi s para despistar...", respondi. Sei que teria sido mais corajoso ser insolente e mal-educado; eu, porm, estava tentando salvar nossas vidas. O conde Silano chegara boquiaberto, como se eu houvesse ressuscitado aps os bblicos trs dias.
Agora, ele dizia: "J estou farto de tentar te matar, Gage". Eu sorri para ambos. "Eu tambm estou farto disso." "E quanto quele pedao de pedra que destruste?", perguntou Bonaparte. "Era a chave para traduzir um livro da Antiguidade?" Por sorte, ainda havia dignidade suficiente para que ningum tivesse pensado em desnudar Astiza. "Era, general." "E o que esse livro nos revelaria exatamente?" "A magia", respondeu Silano. "Ainda existe isso?" "Poderemos fazer que exista. Magia apenas cincia avanada. A magia e a imortalidade." "Imortalidade?!" Bonaparte riu. "Fugir ao destino final?! Eu j sobrevivi quando tantos morreram, e a minha imortalidade no ser esquecida. O que deixamos a lembrana." "Acreditamos que o livro poder vos ajudar a obter imortalidade de maneira mais literal", explicou o conde. "Ele ajudar a vs e a todos aqueles que ascenderem convosco." "Vs, por exemplo, conde?" Ele passou a garrafa. "Ento, meu amigo, tendes o incentivo!" Napoleo se voltou para mim. " um aborrecimento que tenhas quebrado a pedra, Gage, mas Silano j decifrou alguns dos smbolos. Talvez ele desvende o resto. E o que restou da pedra possibilitar que os savants se concentrem nos hierglifos. Dependendo de quem acabe por vencer aqui no Egito, ela um dia ir para Paris ou Londres.
Multides iro veda sem saber que havia um quarto texto." "Eu poderia ficar por a para contar a elas." "Receio que no." Bonaparte enfiou a mo numa pasta de couro e retirou dali um mao de jornais velhos. "Smith me mandou isto como presente quando deixei os turcos recolherem seus feridos. Parece que, embora tenhamos alcanado a glria no Egito, os acontecimentos na Europa vo se desenrolando depressa - e a Frana est outra vez em perigo." Foi ento que pude confirmar que ele claramente abandonara um propsito, a conquista da sia, e adotara outro, o retorno a Paris. Napoleo j ganhara o que pudera, e descobrramos o que ele mais queria encontrar - o poder, de um jeito ou de outro. "A Frana e a ustria esto em guerra desde maro, e fomos expulsos da Alemanha e da Itlia. Tippu Sahib morreu na ndia ao mesmo tempo que ramos rechaados em Acre. O Diretrio est uma baguna, e meu irmo Lucien est em Paris tentando reformar aquela nossa Assemblia imbecil. A esquadra britnica logo ter de afrouxar o bloqueio para que possa reabastecer os britnicos em Chipre. Ser assim que poderei regressar Frana para endireitar as coisas. O dever me chama." Aquilo parecia muito descaramento. "O dever? E abandonar vossas tropas?" "Para preparar o caminho. Klber sonha com o comando desde que desembarcamos aqui. Pois agora o ter - eu o surpreenderei com uma carta.
Entrementes, assumirei o risco de escapar esquadra britnica." Risco?! O risco estava em ficar com um exrcito ilhado no Egito. O desgraado estava abandonando os prprios homens pela poltica parisiense! Mas, verdade seja dita, eu sentia relutante admirao pelo safado tinhoso. Em algumas coisas, ramos iguais - oportunistas, apostadores e sobrevivem tes. ramos fatalistas, sempre atrs da maior chance. Ambos tambm gostvamos de mulheres bonitas. E de grandes aventuras, quando se tratava de fugir ao tdio. Foi como se ele tivesse lido meus pensamentos. "A guerra e a poltica impem necessidades", disse. " uma pena que tenhamos de matar, mas isso a." " isso a o qu?!" "Sinto que estou sendo conduzido a um objetivo desconhecido e que tu, Ethan Gage, representas agora um obstculo to perigoso quanto foste til quando te trouxe para o Egito. Nenhum de ns pretendeu que acabasses com os malditos ingleses, mas l estavas com a tua eletricidade em Acre. E agora atacaste Roseta." "S por causa de Silano. Ele que arranjou o crocodilo..." "Au revoir, Gage", interrompeu-me Bonaparte. "Em outras circunstncias, poderamos ter sido slidos companheiros. Mas traste a Frana pela ltima vez. Demonstraste ser um estorvo grande demais, e um inimigo demasiado capaz. S que at os gatos no tm mais que sete vidas. Nesta altura, j gastaste as tuas, no?"
"Tereis de tirar a prova", retruquei, de pssimo humor. "Deixarei que Silano seja criativo contigo e com a tua amante. Aquela que, tanto tempo atrs, atirou em mim em Alexandria." "No, general, ela atirou foi em mim!" "Pois . Por que ser que justamente as malvadas so to lindas? Bem, o destino nos aguarda." E, tendo se desembaraado de ns, saiu em passo de marcha, com a cabea j no projeto seguinte. Um homem honrado teria simplesmente atirado em ns, mas Silano era cientista. Astiza e eu o logrramos o suficiente para que conclusse que merecamos alguma dor, e ele tinha curiosidade em usar o ambiente local. "Sabeis que a areia j basta para mumificar um cadver?" "Quanta erudio." Assim, fomos enterrados aps a meia-noite, mas s at o pescoo. "O que me agrada nisto que podeis olhar um para o outro enquanto queimam e choram", explicou, quando seus capangas terminavam de colocar e bater areia ao redor de nossos corpos. Tnhamos as mos atadas s costas, e os ps tambm amarrados. Estvamos sem chapu, e j sentamos sede. "O tormento aumentar devagar, medida que o sol levantar-se. Vossa pele fritar e acabar rachando. Aos poucos, a poeira e a luz refletida induziro a cegueira, e enlouquecereis gradualmente, fitando um ao outro. A areia escaldante sugar qualquer lquido que retiverdes, e vossas lnguas incharo tanto que tereis
dificuldade para respirar. A, rezareis para que as serpentes ou os escorpies venham apressar as coisas." Silano se inclinou e me deu tapinhas amigveis no alto da cabea, como se eu fosse uma criana ou um co. "Escorpio gosta de ir direto para os olhos, e formiga sobe pelas narinas para alimentar-se. Os abutres torcero para pegarvos antes que sejais comidos por completo. Mas o que causa mais dor so as serpentes." "Pareces entender um bocado do assunto." "Sou naturalista. Estudo a tortura h muitos anos. uma cincia requintada, que nos d muito prazer quando entendemos seus refinamentos. No fcil fazer que um homem sinta dor excruciante e, ao mesmo tempo, se mantenha coerente o bastante para nos revelar algo de til. No presente caso, o interessante que o corpo abaixo do pescoo assar at ficar seco e preservado. Suponho que tenha sido com base nesse processo natural que os antigos egpcios tiveram a idia da mumificao. Tu sabias, Gage, que o rei persa Cambises perdeu um exrcito inteiro numa tempestade de areia?" "Eu no diria que estou muito interessado." "Eu estudo a histria para no repeti-la." Voltou-se para Astiza, cujos cabelos negros pareciam um leque aberto sobre a areia. "Tu sabes que te amei." "Nunca amaste ningum que no fosse tu mesmo." "Benjamin Franklin disse que o homem que ama a si mesmo no ter rivais no amor", disse eu, intrometendo-me na conversa.
"Ah, aquele monsieur Franklin, to divertido! Eu por certo fui mais fiel a mim mesmo do que qualquer um de vs foi a mim! Quantas oportunidades de parceria eu te dei, Gage? Quantos avisos e advertncias? E ainda assim me traste, muitas e muitas vezes." "Nem imagino o porqu disso." "Eu gostaria de ver-te implorar antes que o teu fim chegasse." E eu imploraria mesmo, se achasse que poderia adiantar alguma coisa. "Mas receio que o destino tambm esteja me chamando. Voltarei com Bonaparte para a Frana, onde posso estudar mais profundamente o livro, e o general no do tipo que fica esperando. Tambm no seguro afastar-se do corpo principal do exrcito. Creio que no tornaremos a nos encontrar, Gage." "Acreditas em fantasmas, Silano?" "Acho que o meu interesse pelo sobrenatural no se estende superstio." "Mas acreditars, quando eu for atrs de ti." Ele riu. "E, depois que me deres um bom susto, talvez joguemos um carteado, no? At l, eu os deixo para que possam olhar um para o outro e virar mmias. Quem sabe no mando algum vir escavar-vos daqui a algumas semanas, para que eu possa encostar-vos num canto como fizemos com o nosso amigo Omar?" "Alessandro, no merecemos isto!", gritou Astiza. Fez-se um longo silncio. No conseguamos ver o rosto dele. E ento Silano disse, baixinho: "Tu mereces, sim. Partiste o meu corao." E a nos deixaram, para que fritssemos.
Astiza e eu nos encarvamos, ela voltada para o norte, e eu para o sul, de modo que nossas bochechas grelhassem por igual entre a alvorada e o crepsculo. O deserto gelado noite, e, durante os primeiros minutos depois que o sol surgiu no horizonte, a calidez no foi desagradvel. Mas depois, quando o cu perdeu o rosado para ganhar a cor leitosa do vero, a temperatura comeou a subir, sendo acentuada pela areia, que refletia a luz. Minha orelha comeou a queimar. Ouvi os primeiros sussurros de inseto. "Estou com medo, Ethan", murmurou Astiza, a uns dez palmos de mim. "Vamos acabar apagando, e ponto", garanti-lhe, sem convico. "sis, socorrei-nos! Chamai nossos amigos!" sis no respondeu. "Depois de um tempo, no doer mais", disse eu. Mas a dor, ao contrrio, aumentou. Minha cabea logo latejava, e a lngua inchou. Astiza gemia baixinho. Mesmo nas melhores circunstncias, o sol do vero egpcio nos martela a moleira. Agora, eu me sentia como a bigorna de Jeric. Com indesejada nitidez, lembrei-me da fuga que, um ano antes, Ashraf e eu havamos empreendido para o deserto. Daquela vez, pelo menos, estvamos montados, e esse meu amigo mameluco sabia achar gua. A areia ficou mais quente. Embora cada polegada de pele sentisse o calor crescente, eu no podia me sacudir nem me abanar. Sentia picadas agudas, como mordidas, mas no tinha como
saber se algo j estava me comendo ou se era apenas o calor a roer minhas percepes. O crebro tem um jeito de fazer o pavor ampliar o medo. Ser que j mencionei que a jogatina um vcio? O suor j me deixara meio cego, ardendo nos olhos, mas logo secou, ficando o sal. Minha cabea inteira parecia estar inchando. A vista se turvava com a luz forte e ofuscante, e a cabea de Astiza se assemelhava mais a um ponto pequeno e distante do que a algum reconhecvel. J seria pelo menos meio-dia? Achei que no. Escutei o eco desfalecido de um estrondo. Estariam os combates recomeando? Aquilo talvez fosse prenncio de chuva, como na Cidade dos Espritos. No, o calor aumentou, em grandes ondas tremeluzentes. Astiza chorou por um tempo, mas depois ficou silenciosa. Rezei para que ela houvesse desfalecido. E aguardava que me acontecesse o mesmo, aquele lento resvalar para a inconscincia e a morte. O deserto, porm, queria punir-me. A temperatura subia sem parar. Meu queixo pegava fogo. Meus dentes fritavam nas gengivas. Minhas plpebras j inchavam a ponto de fechar-se. E ento vi uma coisa passar rpido ao lado. Era preta, e gemi por dentro. Soldados tinham me dito que as picadas de escorpio eram especialmente dolorosas. "So como uma centena de abelhas de uma vez s", contara um deles. "No, no - como segurar carvo em brasa contra a pele!", afirmara outro. "Parece mais
cido no olho!", sugerira outro ainda. "Ou martelada no dedo!" Mais movimentos rpidos. Outro escorpio. Eles se aproximavam de ns e ento recuavam. No ouvi nenhuma troca de sinais, mas pareciam juntar-se em bandos, como lobos. Nutri a esperana de que o ataque deles no despertasse Astiza. Prometi a mim mesmo que faria toda a fora para no berrar. O ribombar ia ficando mais alto. Agora se aproximava um escorpio, que, a meus olhos devastados, afigurava-se um monstro, to descomunal quanto o crocodilo do Fort Julian quando visto daquela perspectiva. Ele parecia contemplar-me com o calculismo frio, obtuso e instintivo de seu minsculo crebro. A cauda, erguida, fez um movimento brusco, como se mirando. E a... Pum! Contorci-me o mximo que minha priso permitia. Uma bota empoeirada esmagara a criatura. A bota pisou e repisou, fazendo que o escorpio triturado se misturasse areia, e ouvi uma voz conhecida. "Pelas barbas do Profeta, ser que nunca consegues cuidar de ti mesmo, Ethan?!" "Ashraf?" Minha voz era um murmrio de perplexidade. "Eu vinha esperando que vossos algozes se afastassem o suficiente. Digo uma coisa - faz um calor danado quando se fica parado no deserto! E c estais vs dois, em situao ainda pior do que aquela em que nos separamos no vero passado. Ser que no aprendes nada, americano?"
Aquilo era mesmo possvel?! O mameluco Ashraf fora primeiro meu prisioneiro e depois meu camarada, quando fugimos do Cairo e fomos resgatar Astiza. Ele tornara a nos salvar numa margem do rio, dera-nos um cavalo e ento se despedira, para juntar-se s foras de resistncia do bei Murad. E agora ele reaparecia?! Tot estava mesmo em ao. "Eu venho te seguindo h dias, primeiro at Roseta e depois na volta de l. No entendo por que estavas disfarado de fel numa carroa de burro. E os teus amigos francos ainda resolveram enterrar-te vivo? Precisas de companhias melhores, Ethan." "Amm", consegui dizer. E ouvi o bendito raspar de uma p, escavando-me. Lembro apenas vagamente o que aconteceu em seguida. Uma aglomerao de mamelucos bem armados, o que explicava o rudo que eu ouvira. A gua, dolorosamente mida quando a sugamos para nossas gargantas inchadas. Um camelo se ajoelhou, e fomos amarrados em seu dorso. Depois seguimos montados rumo ao pr-do-sol. Dormimos sob um arremedo de tenda num osis, recuperando os sentidos. Tnhamos a cabea vermelha e coberta de bolhas, os lbios rachados, os olhos no mais que ranhuras. Estvamos indefesos, incapazes de cuidar de ns mesmos. Assim, acabamos sendo amarrados de novo ao camelo e conduzidos ainda mais profundamente no deserto, primeiro para o sul e o oeste, depois para o leste, at um acampamento secreto de
Murad. Mulheres passaram ungento em nossa pele queimada, e a alimentao fez que lentamente nos restabelecssemos. O tempo ainda transcorria de modo indistinto. Se subssemos ao topo de uma duna prxima, poderamos discernir a ponta das pirmides. O Cairo estava alm, invisvel. "Como conseguiste nos achar?", perguntei a Ashraf. Ele j me relatara as escaramuas e batalhas com que vinha desgastando as foras francesas. "Primeiro, soubemos que um ferreiro estava fazendo indagaes sobre Astiza l da longnqua Jerusalm", respondeu. "Era uma notcia estranha, mas eu sabia que desapareceras e fiquei desconfiado. Depois, o bei Ibrahim informou que o conde Silano rumara por terra para o norte e sumira em algum lugar da Sria. O que podia estar acontecendo? Napoleo foi repelido em Acre, mas no voltaste para o Cairo com ele. Ento achei que te juntaras aos ingleses e ordenei que procurassem por ti na fora de invaso otomana. E, sim, vimos chamas em Roseta, e avistei a vs dois na carroa de burro, mas a cavalaria francesa estava demasiado perto. Assim, esperei at que tivessem vos enterrado e os franceses tivessem se afastado. Estou sempre tendo de salvar-te, meu amigo americano." "E estou sempre em dvida para contigo." "No se fizeres o que desconfio que precisas fazer." "E o que seria isso?"
"Acaba de chegar a notcia de que Napoleo zarpou e levou consigo o conde Silano. Ters, Ethan, de det-los na Frana. As criadas me disseram dos misteriosos sinais nas costas da tua dama. O que so eles?" "Uma escrita antiga, para decifrarmos o que Silano roubou." "A tinta est descascando, mas h jeito de fazer os sinais permanecerem l por mais tempo. Mandei as mulheres prepararem hena." A hena uma tintura que se usa para enfeitar as rabes com intricados arabescos castanhos, como tatuagens efmeras. Quando terminaram, as costas de Astiza estavam ainda mais estranhamente belas. "Ser que esse livro mesmo para ser lido?", perguntou Ashraf quando nos preparvamos para partir. "Se no , ento o segredo dele morrer comigo", respondeu Astiza. "Sou a chave de Roseta."
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Ustiza e eu desembarcamos no litoral sul da Frana em 11 de outubro de 1799, dois dias aps Napoleo Bonaparte e Alessandro Silano terem feito o mesmo. Tanto para ele quanto para ns, a viagem fora longa. Bonaparte, depois de ter dado um tapinha no traseiro da amante Pauline Fours, despedindo-se assim dela, e deixado recado para Kleber, informando-o de que este agora estava no comando (preferira no encarar pessoalmente o general), partira com Monge, Berthollet e alguns outros savants como Silano e navegara bem
prximo ao litoral norte-africano, de freqentes calmarias, para evitar a Marinha britnica. O trajeto escolhido fez que uma viagem de rotina tomasse quarenta e dois tediosos dias. Enquanto Bonaparte seguia vagarosamente para casa, a poltica francesa ficava mais catica medida que, em Paris, ferviam em banho-maria conspiraes e contraconspiraes. Era o ambiente perfeito para um general ambicioso, e a notcia da arrasadora vitria de Napoleo em Abukir chegou capital trs dias antes. O percurso dele para o norte foi marcado por multides a aclam-lo. Nossa viagem tambm foi demorada, mas por motivo diferente. Encorajados por Smith, embarcamos numa fragata britnica uma semana aps Bonaparte ter deixado o Egito e, a fim de intercept-lo, partimos diretamente para a Frana. A lentido o salvou. J estvamos ao largo da Crsega e de Toulon duas semanas antes da chegada de Napoleo Frana e, descobrindo que no havia notcias dele por l, fizemos rapidamente o caminho de volta. Entretanto, mesmo do alto do mastro, avistam-se apenas algumas milhas quadradas de mar, e o Mediterrneo bem grande. Quo perto estivemos de Napoleo, isso eu no sei. Por fim, um barcopatrulha trouxe a informao de que ele descera primeiro na terra natal, a Crsega, e depois na Frana. Quando fomos em seu encalo, o homem j estava muito nossa frente. Caso Silano no o houvesse acompanhado, eu teria ficado satisfeito em deixar Napoleo ir-se embora. No era obrigao minha perseguir
insistentemente generais ambiciosos. Mas tnhamos contas a acertar com o conde, e o livro era perigoso nas mos dele e potencialmente til nas nossas. Quanto Silano j saberia? Quanto poderamos decifrar com a chave de Astiza? Se nossa caada por mar foi aflitiva e desanimadora, o tempo que ela tomou no foi. Astiza e eu raramente tivramos oportunidade de respirar juntos: havia sempre campanhas militares, caas ao tesouro, fugas cheias de perigo. Agora, compartilhvamos a cabine de um capitotenente (nossa intimidade causava certa inveja entre os solitrios oficiais e praas) e tnhamos tempo de nos conhecer com vagar, como marido e mulher. Em outras palavras, tempo suficiente para apavorar qualquer homem que visse a intimidade com um p atrs. S que gostei. Decerto j framos parceiros na aventura - e amantes. Agora, ramos tambm amigos. Com o descanso e a alimentao, Astiza se encorpou, sua pele recuperou o vio, e seus cabelos, o lustro. Eu adorava simplesmente olhar para ela, lendo em nossa cabine ou olhando da amurada o mar brilhante. Adorava como seus cabelos se esvoaavam brisa. Adorava como as roupas lhe caam em dobras - e, claro, melhor ainda era despi-la lentamente. Mas nossas provaes a tornaram mais triste, e sua beleza se afigurava agridoce. E, quando nos unamos em nosso apertado alojamento, s vezes com pressa, s vezes com gentil cuidado, procurando fazer silncio naquele navio de paredes finas, eu me enlevava. Admirava-me com o fato de que eu, o
americano oportunista e inconstante, e ela, a egpcia mstica, nos dssemos. Mas realmente nos complementvamos, j sendo capazes de saber o que o outro pensava. Comecei a antever uma vida normal. Eu quis que pudssemos navegar para sempre - e no achar Napoleo de jeito nenhum. Algumas vezes, porm, eu perdia o vnculo com Astiza, e seu olhar era de preocupao, enxergando coisas sombrias no passado ou no futuro. Era a que eu temia perd-la outra vez. O destino a exigia tanto quanto eu. "Ethan, pensa nisto: Bonaparte com o poder de Moiss... A Frana com o conhecimento secreto dos templrios... Silano vivendo para sempre e, a cada ano, dominando mais frmulas arcanas e arrebanhando mais seguidores... Nossa misso no estar concluda at que recuperemos aquele livro." Assim, desembarcamos na Frana. Naturalmente, no pudemos aportar no cais de Toulon. Astiza conferenciou com o comandante da fragata, estudou as cartas nuticas e, insistentemente, indicou-nos uma angra obscura, cercada por encostas ngremes e habitada apenas por um ou outro pastor de cabras. Como conhecia ela o litoral da Frana? Numa noite sem luar, trouxeram-nos num barco a remo para uma praia de seixos e nos deixaram sozinhos ali. Por fim, ouviu-se um assobio, e Astiza acendeu uma vela, protegendo-a com o manto. "E no que voltou o tolo?", disse dos arbustos uma voz familiar. "Aquele que descobriu o Louco,
pai de todo o pensamento, originador da civilizao, bno e maldio dos reis." Surgiram homens, morenos, de botas e chapu largo, tendo na cintura faixas de cores vivas onde se viam facas prateadas. O lder deles fez uma reverncia. "Bem-vindo de volta ao roma", disse Stefan, o cigano. Fiquei agradavelmente espantado com o reencontro. Eu conhecera aqueles roma, ou ciganos (ou ainda "egpcios", como alguns europeus chamavam aqueles andarilhos, que supostamente descendiam dos antigos), no ano anterior, quando eu e meu amigo Talma fugramos de Paris para nos juntarmos expedio de Napoleo. Depois que Najac e seus ratos de sarjeta nos emboscaram na diligncia para Toulon, eu escapara para as matas e achara refgio com o bando de Stefan. Foi l que conheci Sidney Smith e, fato mais aprazvel, a bela Sarylla, que leu minha sorte, disse ser eu o tolo a procurar o Louco (outro nome de Tot) e me instruiu nas tcnicas amorosas da Antiguidade. Fora uma maneira agradvel de completar a viagem para Toulon, encerrado num carroo cigano, a salvo daqueles que estavam atrs de meu medalho sagrado. E agora, tal qual um coelho a despontar da toca, eis que meus salvadores ciganos estavam ali outra vez. "Pelas cartas do taro, o que fazes aqui?!", perguntei. "Ora, esperando por ti, claro."
"Eu j mandara avis-los por um cter ingls", explicou Astiza. Ah. No tinham aqueles mesmos ciganos avisado com antecedncia do medalho e de minha chegada ao Egito? Coisa que quase fizera minha cabea ser estourada pelo antigo senhor de Astiza, o que no fora a mais amena das apresentaes. "Bonaparte chegou antes de vs dois, e a notcia das mais recentes vitrias no Egito j chegara antes dele", disse Stefan. "A viagem do general para Paris vem sendo uma marcha triunfal. Os homens tm esperana de que o conquistador do Egito possa ser o salvador da Frana. Basta uma ajudinha de Alessandro Silano para que ele alcance tudo o que deseja, e o desejo algo perigoso. Precisais separar Bonaparte do livro e salvaguardar o texto. O esconderijo templrio durou quase cinco sculos. Tomara que o vosso dure cinco milnios - ou mais." "Primeiro temos de alcanar Bonaparte." ", devemos nos apressar. Coisas momentosas esto para acontecer." "Stefan, estou encantado e espantado em ver-te, mas apressar-se a ltima coisa que pensei que os ciganos fossem capazes de fazer. Se bem te lembras, viajamos para Toulon a passo de tartaruga, e esses teus cavalinhos no conseguem puxar os carroes muito mais depressa." " verdade. Mas os roma tm talento para pegar as coisas emprestadas. Acharemos uma carruagem e duas parelhas rpidas e te conduziremos como um raio a Paris. Faremos de conta que tu sejas algum deputado. Eu serei,
digamos, um capito de polcia, e o Andr aqui, teu cocheiro. Carlo ser teu lacaio, e tua dama ser tua senhora..." "A primeira coisa que fazemos ao voltar para a Frana furtar uma carruagem e quatro cavalos?!" "Se te comportares como se os merecesses, no parecer furto." "Mas nem sequer estamos legalmente na Frana!... E continuo acusado de matar uma prostituta. Meus inimigos poderiam usar o furto contra mim." "Eles j no te mataro de qualquer jeito?" "Bem, isso l verdade." "Pois ento? Mas vamos. Perguntaremos a Sarylla o que fazer." A cartomante cigana que me mostrara mais que meu futuro (Cus, com que carinho eu me recordava de seus ganidos!) permanecia to linda quanto dela me lembrava, morena e misteriosa, com os anis a reluzir nos dedos e os brincos de argola a refletir a luz do fogo. Eu no estava de todo satisfeito em topar com uma ex-amante tendo Astiza a tiracolo, e as duas se eriaram silenciosamente, maneira das mulheres, como gatas desconfiadas. Astiza, porm, ficou calada e sentada junto a mim enquanto a cigana manejava as cartas de taro. "A sorte vos apressa", entoou Sarylla quando virou a carta do Carro. "No teremos problema em requisitar uma carruagem para teus propsitos." "Ests vendo?", disse Stefan, contente. Eu gosto do taro - ele consegue nos dizer qualquer coisa que queiramos ouvir.
Sarylla virou mais cartas. "Mas conhecers uma mulher em circunstncias de muita pressa. Teu trajeto ir se tornar tortuoso." Outra mulher? "E ainda teremos xito?" Ela virou mais cartas. Vi a Torre, o Mago, o Louco e o Imperador. "Qualquer que seja o desfecho, ser por um triz." Outra carta. Os Enamorados. Sarylla olhou para ns. "Precisais trabalhar juntos." Astiza pegou minha mo e sorriu. Sarylla virou outra carta. A Morte. "No sei para quem seria esta carta. Para o Mago? O Louco? O Imperador? Os Enamorados? Vosso caminho perigoso." "Mas pelo menos ser factvel a tarefa?" A Morte era para Silano, com certeza. E talvez eu tambm devesse assassinar Bonaparte. Outra carta. A Roda da Fortuna. "s apostador, no?" "Quando preciso." Mais uma carta. O Mundo. "No tens escolha." Sarylla olhou para ns com aqueles seus olhos escuros e grandes. "Encontrareis estranhos aliados e estranhos inimigos." Fiz careta. "Ento est tudo dentro da normalidade." Ela balanou negativamente a cabea, desconcertada. "Espera para ver quem o qu." Fitou as cartas e depois Astiza. "H perigo para a tua nova dama, Ethan Gage. Grande perigo, e acho que alguma coisa ainda mais profunda que isso - o pesar." L estava a tal rivalidade. "O que queres dizer?" "S o que as cartas dizem. Nada mais."
Isso me deixou aflito. Caso a primeira leitura que Sarylla fizera de minha sorte no tivesse se mostrado verdadeira, eu no teria dado ateno quela nova. Afinal, sou um homem moda de Franklin, um savant. Entretanto, por mais que eu pudesse fazer pouco do taro, o poder dele tinha algo de lgubre. Temi muito pela mulher a meu lado. "Talvez haja luta", disse eu a Astiza. "Podes me esperar no navio ingls. Ainda no tarde demais para sinalizarmos para eles." Astiza ponderou as cartas e a cigana por algum tempo, e ento meneou a cabea, discordando. "Tenho minha prpria magia, e j chegamos at aqui", disse ela, puxando o manto em torno de si, desacostumada que estava com a friagem europia de outubro, a qual j alcanava o sul. "O verdadeiro perigo para ns o tempo. Precisamos nos apressar." Sarylla pareceu solidria e deu a Astiza a carta da Estrela. "Guardai isto, minha senhora. para meditao e esclarecimento. Que a f esteja convosco." Astiza se mostrou surpresa - e comovida. "E convosco." Assim, ns nos esgueiramos at a casa de um magistrado, tomamos "emprestados" a carruagem e os cavalos dele e partimos para Paris. Depois da estada no Egito e na Sria, fiquei embasbacado com o exuberante verde-dourado da regio campestre. As derradeiras uvas, rotundas e gordas, pendiam das parreiras. Os campos estavam repletos de montes amarelos de feno. As
frutas remanescentes conferiam ao ar uma fragrncia de maduro, de fermentado. Carroes sobrecarregados com as hortalias do outono nos abriam passagem quando os homens de Stefan gritavam ordens e estalavam o chicote, como se fssemos mesmo importantes representantes da Repblica. At as moas de fazenda pareciam suculentas; aps as roupas do deserto, que tudo cobriam, essas raparigas davam a impresso de estar seminuas, com. os seios lembrando meles, os quadris um alegre tonel, as panturrilhas tingidas pelo sumo das uvas. Seus lbios eram rubros e cheios pelas ameixas que chupavam. "No bonito, Astiza?" Ela se mostrava mais preocupada com os cus enevoados, as folhas a girar no cho, as rvores a formar prgulas indceis por sobre as estradas. "No estou vendo", respondeu. Passamos vrias vezes por localidades ornamentadas com bandeirolas nas trs cores nacionais, de aspecto j gasto, mais ptalas secas nos caminhos e garrafas de vinho vazias e jogadas nas valas. Tudo aquilo era prova da passagem de Napoleo. "O pequeno general?", disse um taberneiro. "Um verdadeiro galo!" "Bonito como o diabo", acrescentou sua esposa. "Cachos negros, olhos cinzentos e fogosos. Dizem que ele conquistou metade da sia!" "Dizem tambm que o tesouro dos antigos est chegando logo depois dele!" "Assim como seus bravos soldados!"
Seguamos viagem noite adentro e nos levantvamos antes do amanhecer, mas o trajeto para Paris toma vrios dias. medida que amos para o norte, o cu ficava mais cinza, e o outono avanava. A carruagem chispava, desfazendo o tapete de folhas cadas na estrada. Os cavalos fumegavam quando parvamos para que bebessem gua. E assim tropelivamos adiante no anoitecer do quarto dia, com Paris a poucas horas de distncia, quando outra bela carruagem com bons cavalos surgiu repentinamente de uma vereda esquerda e deu uma guinada bem frente de ns. Os animais relincharam e foram de encontro uns aos outros, derrubando-se mutuamente. Nossa carruagem se inclinou, equilibrou-se sobre duas rodas e ento derrapou para uma vala, capotando lentamente. Astiza e eu camos para um dos lados. Os ciganos pularam para longe. "Imbecis!", gritou uma mulher. "O meu marido pode mandar fuzilar-vos!" Trmulos, samos nos erguendo pela porta que, agora, dava para o alto. O eixo da frente se quebrara, tal qual as pernas de dois de nossos cavalos, que relinchavam desesperadamente. Cavalarianos que escoltavam quem quer que fosse com que colidramos haviam desmontado e estavam indo de pistola na mo sacrificar os animais feridos e soltar os outros. Berrando conosco da janela de sua carruagem, via-se uma mulher extraordinariamente elegante (suas roupas teriam custado o suficiente para levar um banqueiro runa). De olhar frentico, tinha a
altivez dos parisienses, mas no a reconheci de imediato. Eu era um americano que voltava ilegalmente para a Frana, sendo at onde sabia ainda procurado por homicdio e no tendo sequer cumprido a quarentena que, para evitar epidemias, era imposta a todos os que chegavam do Oriente. (Bonaparte, alis, tambm no se submetera a ela.) Agora, l estavam soldados, e perguntas seriam feitas, muito embora a culpa tivesse sido da carruagem da mulher. Pressenti que estar com a razo no seria de muita valia naquele momento. "Meus assuntos so de suprema importncia para o Estado!", gritou a estranha, em pnico. "Afastai vossos cavalos dos meus!" "Mas foste tu que atravessaste nosso caminho!", retrucou Astiza, com evidente sotaque. "s to mal-educada quanto incompetente!" "Devagar", disse eu, alertando-a. "Ela est com soldados." Era tarde demais. "E s to insolente quanto desastrada!", rebateu a outra, com voz aguda e histrica. "Por acaso sabes quem sou? Posso mandar prender-te!" Avancei para evitar uma briga de mulher, propondo uma oferta fajuta de ressarcimento posterior, s para tirar a megera de nosso caminho. Nossos ciganos haviam sensatamente se escondido na mata. Dispararam-se dois tiros de pistola, silenciando os relinchos mais excruciantes, e a os cavalarianos se voltaram para ns com as mos no punho da espada.
"Por favor, madame, foi s um acidente", argumentei, sorrindo com meu encanto afvel de sempre. "Mais um minuto, e j iremos embora. A propsito, vais para onde?" "Para onde estiver meu marido, se eu conseguir ach-lo! Ah, isto uma catstrofe! Pegamos o caminho errado, e acabei perdendo a oportunidade de encontr-lo na estrada. Agora, os irmos vo chegar a ele primeiro e contar mentiras sobre mim. Se vs me atrasastes demais, respondereis por isso!" Eu achava que a guilhotina houvesse liquidado esse tipo de arrogncia, mas aparentemente ela no cuidara de todos os casos. "Mas Paris fica para l", apontei. "Eu queria vir ao encontro de meu marido! S que ele se adiantou a ns, e pegamos aquele caminho para dar a volta e retornar. Agora ele j deve estar em casa, e o fato de no me encontrar l vai apenas confirmar o pior!" "Pior como?" "Que sou infiel!" E ela irrompeu em lgrimas. Foi a que reconheci seus traos, um tanto famosos nos crculos sociais parisienses cuja periferia eu freqentara. Era ningum menos que Josefina, a esposa de Napoleo! O que diabos ela fazia numa estrada sombria quando a noite j caa? E claro que as lgrimas despertaram compaixo. Sou antes de tudo um galante, e o choro desarma qualquer cavalheiro. " a mulher de Bonaparte", cochichei para Astiza. "Na vspera da Batalha das Pirmides, quando
soube que ela o traa, o general quase ficou louco." " por isso que ela est apavorada?" "Ns dois sabemos como Bonaparte volvel. Ele poderia coloc-la diante do peloto de fuzilamento." Astiza ponderou o assunto e ento se moveu rpido at a porta da carruagem. "Madame, conhecemos vosso esposo." "Como ?!" Eu agora via que se tratava de uma mulher pequena. Era esbelta, no sendo nem feia nem particularmente bonita. Tinha tez clida, nariz retilneo, lbios carnudos, olhos agradavelmente escuros, grandes e, mesmo no desespero, inteligentes. Os cabelos eram escuros, e as orelhas, belamente esculpidas, mas a pele estava manchada de rubro pelo choro. "Como que podeis conhec-lo?" "Servimos com Bonaparte no Egito. Ns mesmos estamos correndo para avis-lo de um perigo terrvel." "Vs o conheceis?! Que perigo? Um atentado?" "Um acompanhante, Alessandro Silano, pretende tra-lo." "O conde Silano? Eu soube que ele est vindo com meu marido. Consta que confidente e conselheiro." "Ele enfeitiou Napoleo e vem tentando volt-lo contra vs. Mas podemos ajudar. A senhora e vosso esposo tentam a reconciliao?" Josefina, com os olhos marejados, baixou a cabea. "Foi uma surpresa to grande! No tivemos nenhum aviso de que ele estava vindo.
Sa correndo da casa de meu amigo mais querido para encontr-lo. Mas esses idiotas pegaram o caminho errado!" Ela se inclinou para fora da janela e agarrou Astiza pelos braos. "Precisais dizer a ele que, apesar de tudo, eu ainda o amo! Se ele se divorciar de mim, perderei tudo! Meus filhos ficaro na misria! Eu tenho l culpa se ele some por meses e anos?!" "Pois ento os deuses devem ter providenciado este acidente, no achais?", disse Astiza. "Os deuses?!" Puxei minha companheira para trs. "O que ests fazendo?", disse-lhe, entre dentes. "Eis a chave para chegarmos a Bonaparte!", respondeu Astiza num sussurro. "Ele estar rodeado de soldados. De que outro modo teremos acesso a ele a no ser pela esposa? Josefina no tem sido fiel, ou coisa assim, o que significa que ela se aliar a qualquer um que lhe convenha. Isso quer dizer que precisamos traz-la para o nosso lado. Ela poder descobrir onde est o Livro de Tot quando tiver relaes com o marido, naquele momento em que os homens perdem o pouco juzo que tm - e, a, poderemos surrupiar o livro!" "O que estais cochichando a?" perguntou Josefina, chamando-nos. Astiza sorriu. "Madame, nossa carruagem est destruda, mas imperativo que cheguemos a vosso esposo. Creio que podemos nos ajudar mutuamente. Se nos fizerdes o favor de deixar que sigamos caminho convosco, poderemos auxiliar na vossa reconciliao." "Como?"
"Meu companheiro um sbio maom. Temos a chave para um livro sagrado que poder proporcionar grande poder a Napoleo." "Maom?" Ela me olhou com desconfiana, forando a vista. "O padre Barruel, naquele famoso livro, disse que os maons estavam por trs da revoluo - os jacobinos, todos eles, no passariam de um compl maom. Por outro lado, no Journal des Hommes Libres, os jacobinos vivem dizendo que os maons so na realidade monarquistas, conspirando pela volta do trono. Assim, que maons sois vs?" "Madame, eu vejo que o futuro est com vosso marido", menti. Josefina ficou interessada em pesar os prs e contras. "Livro sagrado?" "Do Egito", respondeu Astiza. "Se seguirmos viagem, chegaremos a Paris ao amanhecer." De modo um tanto surpreendente, Josefina concordou. To aturdida estava com o reaparecimento de Napoleo, e a indubitvel fria dele ante seus hbitos adlteros, que se mostrava ansiosa por qualquer ajuda, no importando quo inverossmil. Assim, largamos os destroos de nossa carruagem roubada, com metade dos cavalos sacrificados e os ciganos escondidos, e pegamos a dela para Paris. "Agora, deveis contar-me o que sabes, ou vos porei para fora", advertiu Josefina. Era uma aposta que tnhamos de fazer. "Descobri um livro que transmite grandes poderes...", principiei. "Que tipo de poder?"
"O poder de convencer... De enfeitiar... De ter vida inaturalmente longa, talvez eterna... De transmutar objetos..." Os olhos de Josefina se arregalaram, cobiosos. "O conde Silano roubou esse livro e se grudou a Bonaparte como uma sanguessuga, exaurindo-lhe o esprito. Mas o livro ainda no foi traduzido - s ns podemos faz-lo. Se a esposa do general puder oferecer-lhe a cifra sob a condio de que Silano seja afastado, ento recuperareis vosso matrimnio. Eu proponho uma aliana: com nosso segredo, conseguireis voltar aos aposentos de vosso esposo; com vossa influncia, conseguiremos recuperar nosso livro, livrar-nos de Silano e ajudar Napoleo." Ela estava desconfiada. "Que cifra essa?" "A chave para um idioma estranho e antigo, h muito perdido." Astiza se virou no assento da carruagem de Josefina e desatou o lao na parte de trs do vestido. O tecido se abriu, revelando aquele intricado alfabeto inscrito em hena. A francesa ficou boquiaberta. "Parece a escrita de Satans!" "Ou de Deus." Josefina refletiu. "Bem, se vencermos, quem vai querer saber de qual deles ela ?" Estaria Tot enfim sorrindo para ns? Chispamos para a casa de Bonaparte, na recm-rebatizada rue de la Victoire, homenagem s vitrias dele na campanha da Itlia. E, sem plano, sem aliados e sem armas, confiamos naquela arrivista. O que sabamos sobre Josefina? O tipo de mexerico de que Paris se nutria. Ela crescera na Martinica, tinha meia dzia de anos mais e duas
polegadas menos que Napoleo e era uma sobrevivente obstinada. Casara com um jovem e rico oficial do exrcito, Alexandre de Beauharnais, mas ele ficara to envergonhado dos modos provincianos da esposa que se recusara a apresent-la corte de Maria Antonieta. Josefina separou-se, voltou para as Antilhas, fugiu de uma revolta de escravos para regressar a Paris no auge da revoluo, perdeu o marido na guilhotina em 1794 e acabou ela prpria na priso. S o golpe de Estado que ps fim ao Terror salvou-lhe a cabea. Quando um jovem oficial chamado Bonaparte viera visit-la para louvar a conduta do filho, Eugne de Beauharnais (que pedira ajuda para recuperar a espada do pai), ela o seduziu. Desesperada, apostou suas fichas naquele corso em ascenso e o desposou, mas depois dormiu com todo o mundo que lhe aparecesse pela frente enquanto ele estava na Itlia e no Egito. Alguns, boca pequena, diziam que era ninfomanaca. Estava vivendo com um ex-oficial chamado Hippolyte Charles, agora homem de negcios, quando chegou a notcia alarmante do retorno do marido. J que a revoluo institura o divrcio, Josefina corria o risco de perder tudo justamente no momento em que Bonaparte buscava o poder supremo. Aos trinta e seis anos, com os dentes manchados, ela podia no ter outra chance. Seus olhos se arregalaram com a explicao de Astiza sobre os poderes sobrenaturais. Oriunda que era das ilhas aucareiras das Antilhas, as histrias de magia no lhe eram estranhas.
"Esse livro capaz de destruir os homens que o possuem", disse Astiza, "e devastar as naes onde o usem. Os antigos sabiam disso e o esconderam, mas o conde Silano provocou o destino ao roub-lo. Silano enfeitiou vosso esposo com sonhos de poder ilimitado. Isso poderia levar Napoleo insanidade. Precisais ajudar-nos a pegar o livro de volta." "Mas de que jeito?" "Se nos derdes o livro, poderemos salvaguard-lo. Vosso conhecimento sobre ele vos dar enorme influncia sobre vosso marido." "Mas quem sois vs?" "Eu me chamo Astiza, e este Ethan Gage, um americano." "Gage? O eletricista? O assistente de Franklin?" "Madame, fico honrado em conhecer-vos e lisonjeado em saber que j ouvistes falar de mim." Peguei-lhe a mo. "Espero que possamos ser aliados." Josefina tirou bruscamente a mo. "Mas sois um assassino!" Olhou-me cheia de dvidas. "Matastes uma aventureira barata! Ou no o fizestes?" "Eis um exemplo perfeito das mentiras de Silano, bem do tipo que pode ludibriar o general e pr a perder os sonhos dele. Fui vtima de uma acusao injusta. Ajudemos a afastar de vosso marido esse veneno, para que vosso idlio matrimonial retorne!" "Sim! tudo culpa de Silano, no minha! Dissestes que esse livro contm um poder terrvel?" "Um poder do tipo que escraviza almas."
Ela pensou bem. Por fim, reclinou-se e sorriu. "Tendes razo. Deus veio minha procura." A casa de Bonaparte, comprada por Josefina antes do segundo casamento, ficava na parte elegante de Paris que era conhecida como Chausse dAntin, uma regio antes pantanosa onde os ricos haviam construdo residncias encantadoras, chamadas folies (extravagncias), no decorrer daquele sculo. Era uma moradia modesta, de dois pavimentos, com um roseiral no fim da florao e um terrao que Josefina cobrira com teto de madeira e decorara com bandeiras e tapearias; um lar respeitvel para aplicados servidores pblicos de mdio escalo. A carruagem parou numa entrada de cascalho, sob tlias, e Josefina saiu, ansiosa e agitada, passando os dedos nas faces. "Como estou?" "Estais como uma mulher que tem um segredo", respondeu Astiza. "Pareceis no controle da situao." Josefina deu um sorriso lnguido e tomou flego. Em seguida, entramos. Os cmodos eram uma curiosa mistura do feminino com o masculino, tendo suntuoso papel de parede e cortinado de renda, mas ostentando mapas e plantas urbanas nas paredes. L estavam as flores da patroa e os livros do patro, pilhas e pilhas deles, alguns recm-desencaixotadas do Egito. O asseio e o capricho de Josefina eram evidentes, ainda que as botas de Napoleo estivessem jogadas na sala de jantar e o capote
dele tivesse sido largado numa cadeira. Uma escada conduzia ao andar superior. "O general est no quarto dele", sussurrou ela. "Ide at ele." "Os irmos j devem ter-lhe contado tudo. Ele vai me odiar! No presto, sou uma mulher infiel. No consigo evitar - eu gosto tanto do amor! E achava que ele seria morto!" "Sois humana, assim como ele", disse eu, confortando-a. "E, acreditai, ele tambm no nenhum santo. Ide, pedi perdo e dizei a ele que estivestes empenhada em recrutar aliados. Explicai que nos persuadistes a ajud-lo e que o futuro dele depende de ns trs." Eu no confiava em Josefina, mas de que outra arma dispnhamos? Preocupava-me que Silano pudesse estar espreitando por ali. Josefina, juntando coragem, subiu os vinte degraus at o andar de cima e bateu na porta do marido. "Querido general?..." Por um momento, fez-se silncio, e escutamos pisadas e batidas duras, e depois soluos, e pedidos lacrimosos de perdo. Ele j se decidira pelo divrcio. Atravs da madeira do piso, ouvamos a mulher implorar. A, a gritaria diminuiu, e houve conversa em tom mais baixo. Em certa altura, pensei ter ouvido o estalido de uma fechadura a trancar-se. Depois, o silncio. Desci a escada que levava cozinha, no poro, e uma empregada nos arranjou po e queijo. A criadagem se aglomerou como camundongos, aguardando o desfecho da tormenta que desabava l em cima. Cansados que estvamos, cochilamos.
Perto do amanhecer, uma empregada nos acordou. "A patroa quer ver-vos", sussurrou. Fomos conduzidos escada acima. A empregada bateu, e a voz de Josefina respondeu "Entrai", com uma despreocupao que eu no ouvira antes. Adentramos o quarto, e o vencedor de Abukir e sua esposa, recm-readmitida fidelidade, estavam deitados lado a lado na cama, cobertos at o queixo, ambos parecendo to satisfeitos quanto gatos a beber leite vontade. "Por Deus, Gage", saudou-me Napoleo, "ainda no ests morto?! Se meus soldados conseguissem sobreviver como tu, eu conquistaria o mundo." "S estamos tentando salvar este mesmo mundo, general." "Mas Silano disse que vos deixou enterrados! E minha mulher estava me contando as vossas historinhas." "Queremos apenas o que melhor para a Frana e para vs, general." "Vs dois quereis o livro. Todo o mundo o quer. Mas ningum consegue l-lo." "Ns conseguimos." "E o que minha mulher me diz, alegando que tendes um registro do que ajudastes a destruir. Admiro a esperteza de vs dois. Bem, podeis ter certeza de que uma coisa boa resultou dessa vossa longa noite: ajudastes a fazer que eu e Josefina nos reconcilissemos, e, por isso, estou com nimo generoso."
Eu tambm me animei muito. Talvez aquilo tudo viesse mesmo a dar certo. Comecei a olhar em volta, de relance, procurando o livro. Nisso, ouvi passos pesados atrs de ns, e me voltei. Um destacamento de gendarmes subia a escada. Quando tornei a olhar para a frente, Napoleo empunhava uma pistola. "Minha mulher me convenceu de que, em vez de simplesmente fuzilar-vos, seria melhor prendervos na Priso do Templo. Tua execuo, Gage, poder esperar at que sejas julgado pela morte daquela rameira." Ele sorriu. "Devo dizer que minha Josefina se mostrou incansvel em teu favor." Apontou para Astiza. "Quanto a ti, vais desnudar-te no toucador de minha mulher, enquanto ela e as criadas vigiam. J convoquei secretrios para que venham copiar teu segredo."
- 27 irnico ser encarcerado num "templo" que originariamente foi construdo como sede dos templrios, depois usado como calabouo para Lus XVI e Maria Antonieta antes da execuo e por fim empregado como ineficaz cadeia para Sidney Smith. Se o oficial da marinha britnica conseguira escapar, isso em parte se devia ao fato de ter feito sinal pelas janelas da priso para uma dama com a qual j dormira - ato que representava um desembarao e uma engenhosidade bem ao meu gosto. Agora, dezoito meses depois, Astiza e eu experimentvamos ns
mesmos aquelas acomodaes, sendo nosso senhorio o corpulento, encardido, servil, intrometido, obtuso, mas interessante carcereiro Jacques Boniface, que distrara sir Sidney contando-lhe lendas dos templrios. Fomos conduzidos para l na carroa gradeada da priso, observando Paris atravs das barras de ferro. Em outubro, a cidade parecia sem cor, estando as pessoas apreensivas e os cus cinzentos. ramos tambm observados, como animais, e essa foi uma maneira deprimente de apresentar Astiza a uma cidade grandiosa. Para minha companheira, tudo era estranho: as grandes agulhas da catedral, o alarido das feiras de couro, pano e frutas, a cacofonia dos relinchos no trnsito e dos ambulantes nas caladas, a ousadia das mulheres trajadas de peles e veludo, estrategicamente abertos para oferecer um vislumbre dos seios e tornozelos. Astiza se vira humilhada quando a obrigaram a despir-se para copiarem a cifra, e agora no estava falando. Quando entramos e descemos junto torre dianteira, num ptio frio e desprovido de rvores, algo atraiu meu olhar para o porto principal. Do lado de fora, pessoas fitavam pelas grades, sempre ansiosas por ver infelizes ainda mais desafortunados que elas, e tive um sobressalto ao avistar uma cabea de cabelo seco e muito ruivo, to familiar quanto uma dvida de aluguel e to irritante quanto uma lembrana desagradvel. Seria possvel que...? No, claro que no.
A Priso do Templo, que data do sculo XIII, era um castelo estreito e feio que se erguia duzentos ps at o pico de seu telhado piramidal. As celas em suas torres eram iluminadas por janelas apertadas e providas de barras. Do lado de dentro, davam para galerias ao redor de um trio central. O fato de que a priso estava basicamente vazia dizia algo da eficincia do Terror: os detentos monarquistas j haviam sido todos guilhotinados. Eu j vira crceres piores. Astiza e eu estvamos autorizados a passear pelo parapeito ao redor do telhado (ele era demasiado alto para que se tentasse pular de l ou descer pelas paredes), e a comida era melhor que em alguns dos khans que eu conhecera perto de Jerusalm. Afinal, estvamos na Frana. No fosse estarmos bem trancafiados e Bonaparte e Silano parecerem determinados a dominar o mundo, eu teria encarado de bom grado aquele descanso. Nada como caas ao tesouro, lendas antigas e batalhas contemporneas para nos fazer dar valor a uma boa soneca. Mas o Livro de Tot nos arrastava para si, e Boniface era um fofoqueiro que gostava de relatar as intrigas de uma cidade em p de guerra e sob presso. Compls e conspiraes sucediam-se com rapidez, e todo grupo de conjurados procurava "uma espada" que lhes proporcionasse a necessria fora militar para tomarem o poder. A composio do Diretrio, formado de cinco lderes polticos, vivia sendo modificada pelo Conselho dos Ancios e pelo Conselho dos Quinhentos. Essas duas cmaras legislativas eram barulhentas e
empoladas; nelas se usavam togas romanas, praticava-se uma corrupo descarada e tinha-se orquestra mo para marcar a legislatura com canes patriticas. A economia estava em frangalhos, o exrcito penava na indigncia de suprimentos, metade da Frana ocidental vivia uma revolta alimentada pelo ouro ingls, e a maioria dos generais tinha um olho no campo de batalha e o outro em Paris. "Precisamos de um lder", disse nosso carcereiro. "Estamos todos cansados da democracia. Tens sorte de estar aqui, Gage, longe da barafunda. Quando ando pela cidade, nunca me sinto seguro." Inste isso. "S que as pessoas no querem um ditador. Pouca gente deseja a volta da monarquia. Precisamos conservar a repblica, mas como algum conseguiria tomar as rdeas dessa nossa Assemblia cheia de rixas? como tentar controlar os gatos de Paris. Precisamos da sabedoria de Salomo." "Precisas dela agora?" Estvamos jantando juntos em minha cela. Boniface fizera o mesmo com Smith, porque o carcereiro sentia o tdio e no tinha amigos. Imagino que a companhia dele se destinasse a ser parte de nossa tortura, mas eu adquirira um estranho apreo por ele. Boniface se mostrava mais tolerante com seus prisioneiros do que alguns anfitries com os convidados, e ainda prestava mais ateno. Do ponto de vista dele, no chegava a atrapalhar que Astiza continuasse
bem agradvel aos olhos e que eu, claro, fosse uma companhia extraordinariamente boa. Boniface assentiu. "Bonaparte quer ser um George Washington, aceitando com relutncia a conduo da ptria, mas no tem a mesma circunspeco. , Gage, andei estudando Washington, e aquela estica modstia honra tua jovem nao. O corso voltou achando que seria alado ao Diretrio pelo clamor popular, mas os superiores dele o receberam com frieza. O que pretendia retornando do Egito sem ter recebido ordens para tanto? Vs dois tm lido Le Messager?" "Se recordais, monsieur Boniface, estamos confinados a esta torre", disse Astiza, em tom baixo e delicado. "Ah, sim, claro... Bem, aquele bravo peridico atacou abertamente a campanha do Egito! Zombou dela! Um exrcito abandonado! Soldados atirados inutilmente s muralhas de Acre! Bonaparte humilhado por sir Sidney Smith, homem que j esteve preso aqui! Os jornais, vs sabeis, so uma voz da Assemblia. Napoleo est liquidado." Taima me contara que Bonaparte tinha mais medo da imprensa hostil que das baionetas. Mas o que ningum sabia era que Napoleo estava com o livro e que Silano outra vez dispunha da cifra completa para l-lo. Era nisso que dava negociar com Josefina, aquela vadia intriguenta. A mulher seria capaz de seduzir o papa e, na mesma toada, lev-lo misria. Quando perguntei a Boniface sobre os templrios que haviam construdo aquele lugar, foi como ter
posto para funcionar uma bomba de gua - fatos e teorias vieram em borboto. "O prprio Jacques de Molay foi gro-mestre aqui - e aqui torturado! Temos fantasmas, meus jovens, espritos que ouo soltarem gritos lancinantes nas noites de tempestade. Os templrios foram tratados a queimaduras e pancadas at confessarem a pior espcie de abominao e adorao do diabo; depois, foram mandados para a fogueira. No entanto, onde foi parar o tesouro deles? Acreditava-se que os recintos em que estais confinados estivessem atulhados de riquezas, mas, quando o rei chegou para pilh-las, encontrou tudo vazio. E onde foi parar aquilo que diziam ser a fonte do poder dos templrios? De Molay no revelou nada e s falou quando foi para a fogueira. L, profetizou que o rei e o papa morreriam no espao de um ano. Ah, o calafrio que a multido sentiu quando ele augurou isso! E era verdade! Meus amigos, aqueles templrios no eram apenas monges guerreiros - eram magos. Em Jerusalm, haviam descoberto algo que lhes dera estranhos poderes." "Imaginai como seria se tal poder fosse redescoberto...", murmurou Astiza. "Um homem como Bonaparte se apoderaria do Estado num instante. Bem, estamos prestes a ver mudanas - e, eu vos digo, mudanas para melhor e para pior." "Tu falas de nosso julgamento?", perguntei. "No, a j estaramos falando de quando fordes guilhotinados." Ele deu de ombros, francesa.
O carcereiro ansiava por ouvir nossas aventuras, cuja descrio modificamos prudentemente. Estivramos dentro da Grande Pirmide? Ah, sim. No havia nada para ver l. E o Monte do Templo, em Jerusalm? Era agora um local sagrado dos muulmanos, e a entrada de cristos estava proibida. E as histrias sobre cidades perdidas no deserto? Se estavam perdidas, como poderamos ns t-las achado? Boniface insistia em que os antigos no teriam tido como erigir seus grandes monumentos sem usarem de segredos espantosos. A magia se perdera com os sacerdotes de antanho. Nossa era moderna se mostrava desinteressante, mecnica, ctica, privada de maravilhas. A cincia vinha subjugando o mistrio, e o racionalismo passava por cima dos prodgios. Isso em nada se parecia com o Egito! "Mas e se aquilo tudo fosse redescoberto?", sugeri. "Ests a par de alguma coisa, no, Amricain? No, no adianta balanar a cabea! Sabes de alguma coisa, e eu, Boniface, vou fazer-te desembuchar!" Em 26 de outubro, nosso carcereiro trouxe uma notcia eletrizante: Lucien Bonaparte, aos vinte e dois anos, acabava de ser eleito presidente do Conselho dos Quinhentos! Eu sabia que Lucien, muito antes de Napoleo ter deixado o Egito, vinha trabalhando em prol do irmo em Paris. Era poltico talentoso, mas presidente da mais poderosa cmara legislativa da
Frana?! "Pensei que fosse preciso ter no mnimo trinta anos para ocupar o cargo." " justamente por isso que Paris est em polvorosa! Ele mentiu sobre a idade - tinha de mentir, claro, para cumprir o que diz a Constituio. O fato, porm, que todo o mundo sabe que mentiu, e o elegeram do mesmo jeito! De algum modo, coisa de Napoleo. Os deputados esto apavorados, ou enfeitiados." Seguiram-se mais notcias muito curiosas. Napoleo Bonaparte, antes esnobado pelo Diretrio, agora seria homenageado com um banquete. Estaria a opinio pblica mudando e o general cativando os polticos da cidade para que tomassem seu partido? Em 9 de novembro de 1799 (ou 18 de brumrio do ano viu, no calendrio revolucionrio francs), Boniface veio at ns de olhos muito arregalados. O homem era um jornal ambulante. "No d para acreditar!", exclamou. "Foi como se os nossos parlamentares tivessem sido mesmerizados! s quatro e meia da manh, tiraram o Conselho dos Ancios da cama, e eles, ainda sonolentos, foram reunidos nas Tulherias. L, votaram por retirar-se para o chteau de Saint-Cloud, nos subrbios de Paris, a fim de deliberarem l. Foi uma insanidade, que impedir que convoquem o apoio do populacho, se necessrio. Fizeram isso de livre e espontnea vontade, e o Conselho dos Quinhentos vai imit-los! Continua tudo muito confuso, e no faltam especulaes - mas h mais do que isso para que Paris esteja vivendo em suspense." "E o que seria?"
"Napoleo recebeu o comando da guarnio da cidade, tendo sido destitudo o general Moreau! Agora, tropas se deslocam para Saint-Cloud, e outras formam barricadas. H baionetas por toda a parte." "O comando da guarnio? So dez mil homens. O exrcito de Paris era o que mantinha todos, inclusive Napoleo, na linha." "Justamente! Por que os parlamentares permitiriam uma coisa dessas? Est acontecendo alguma coisa esquisita, algo que os leva a votar o oposto do que afirmavam dias ou mesmo horas antes. Mas o que poderia ser?" Eu, naturalmente, sabia. Silano progredira na traduo do Livro de Tot. Encantamentos estavam sendo elaborados e usados, e mentes, toldadas. Enfeitiadas era de fato a palavra! A cidade inteira estava enfeitiada. Astiza e eu nos olhamos: no havia tempo a perder. "Mistrios do Oriente...", disse eu, de sbito. "Hein?" "Monsieur Boniface, j ouvistes falar do Livro de Tot?", perguntou Astiza. Boniface pareceu surpreso. "Mas claro - todos os estudiosos do passado sabem do Trs Vezes o Maior, ancestral de Salomo, pai de todo o conhecimento, o Caminho e o Verbo." Sua voz se reduzira a um murmrio. "Alguns dizem que Tot criou um paraso terrestre que nos esquecemos de como conservar, mas outros afirmam que ele o prprio arcanjo negro, com suas mil aparncias Baal, Belzebu, Bafom!..." "Esse livro est perdido h milhares de anos, no?"
Agora ela parecia furtivo. "Talvez. Correm histrias de que os templrios. "Tais histrias, Jacques Boniface, so verdadeiras", disse eu, levantando-me da mesa tosca aonde dividamos uma jarra de vinho barato. Meu tom de voz ficava mais grave. "Quais as acusaes que se fazem a Astiza e a mim?" "Acusaes? Nenhuma, ora! No precisamos de acusaes para manter-vos na priso do Templo." "Ainda assim, no estranhas que Bonaparte nos tenha confinado aqui? Podes ver que estamos desamparados, sem amigos. Ele nos confinou, mas ainda no nos matou, pois talvez possamos ser teis outra vez. Afinal, o que uma dupla esdrxula como ns estaria fazendo em Paris? E o que poderamos saber que fosse to perigoso para o Estado?" Boniface olhou para ns, desconfiado. ", tenho estranhado isso, sim." "Considera a possibilidade, Boniface, de que saibamos o paradeiro de um tesouro - o maior do mundo." Eu me inclinei para a frente, por sobre a mesa. "Tesouro?" A voz do carcereiro saiu num gritinho, agudo e curto. "Dos templrios, escondido desde aquela sextafeira 13 de 1309, quando eles foram aprisionados e torturados pelo louco rei da Frana. Ests, guardio deste crcere, to preso quanto ns. Quanto tempo mais desejas ficar aqui?" "Pelo tempo que os meus senhores..." "Mas poderias ser um senhor, Jacques Boniface. O senhor de Tot. Tu e ns, que somos os verdadeiros
estudiosos do passado - pois, ao contrrio do que faz o conde Alessandro Silano, no daramos segredos sagrados a tiranos ambiciosos como Bonaparte. Ns os preservaramos para toda a humanidade - ou no?" Ele coou a cabea. "Acho que sim." "Mas, para tanto, precisamos agir - e logo. Creio que o golpe de Napoleo ser hoje noite. E esse golpe depender de quem estiver com um livro que, outrora perdido, foi redescoberto. Sim, os templrios esconderam mesmo sua riqueza, num lugar onde calcularam que homem algum ousaria procurar", arrematei, mentindo. "Onde?", perguntou Boniface, a respirao contida. "Sob o Templo da Razo, construdo na le de la Cite no local exato onde os romanos ergueram seu templo a sis, deusa do Egito. No entanto, s o livro ir nos dizer onde precisamente est o tesouro." Boniface arregalou os olhos. "Na Notre-Dame?!" A pobreza nos faz acreditar em qualquer coisa, e o salrio de carcereiro mesmo vergonhoso. "Precisars de picareta e de coragem, Boniface - a coragem de tornar-te o homem mais rico e poderoso do mundo! Mas isso apenas se te dispuseres a cavar! E s um homem poder conduzir-nos ao local exato! Silano vive tosomente para sua prpria cobia, e temos de captur-lo e fazer o que certo, pela maonaria, pela tradio dos templrios e pelos mistrios dos antigos! Ests comigo?" "Ser perigoso?"
"Leva-nos aos aposentos de Silano, s isso. Poders ento esconder-te na cripta da NotreDame enquanto decifrarmos o segredo. A, juntos, mudaremos a histria do mundo!" Em tempos menos intranqilos, eu talvez no tivesse conseguido convenc-lo. Mas, com Paris beira de um golpe, com tropas erguendo barricadas, com a Assemblia em pnico, com generais apinhando-se em reluzentes uniformes na casa de Napoleo, com a cidade escura e apreensiva... Nessas circunstncias, tudo podia acontecer. E o que era mais importante: o sacerdcio catlico fora encerrado pela revoluo, e a Notre-Dame se tornara um grandioso fantasma, sendo usada apenas por velhas devotas e varrida pelos pobres em troca de assistncia. O carcereiro conseguiria entrar na cripta com bastante facilidade. Enquanto Bonaparte se dirigia a milhares de soldados no Jardim das Tulherias, Boniface reunia ferramentas de sapa. Deixar que sassemos era, claro, flagrante descumprimento de suas obrigaes. Mas o advertimos de que nunca conseguiria achar nem ler o livro sem a nossa ajuda e de que, do contrrio, passaria o resto de seus dias como encarregado na Priso do Templo, trocando mexericos com os condenados em vez de herdar a riqueza e o poder dos templrios. noitinha, Boniface informou que Bonaparte tomara de assalto o Conselho dos Ancios quando eles rechaaram sua exigncia de que dissolvessem o Diretrio e o nomeassem primeiro-cnsul. Segundo
todos os relatos, o discurso de Napoleo foi torrencial e disparatado, tanto que seus prprios auxiliares o afastaram dali - ele estava berrando um palavrrio sem sentido! Tudo parecia perdido. Ainda assim, os deputados no ordenaram a priso dele nem se recusaram a reunir-se. Pelo contrrio: pareciam propensos a atender ao que o general demandava. Por qu? Naquela noite, depois que as tropas mesmerizadas de Napoleo haviam limpado do Conselho dos Quinhentos o chteau de SaintCloud (com alguns dos deputados pulando das janelas para safar-se), os Ancios passaram um decreto que determinava que um "comit executivo temporrio" dirigido por Bonaparte substituiria o Diretrio. "Uma dzia de vezes, tudo pareceu perdido para os conspiradores de Napoleo, e, apesar disso, os homens submeteram-se vontade dele", contou o carcereiro. "Agora, alguns dos Quinhentos esto sendo detidos para fazer o mesmo. Depois da meia-noite, os conjurados faro o juramento de posse!" Posteriormente, poderia ser dito que tudo foi resultado de baioneta, blefe e pnico. Mas fiquei imaginando se o discurso sem sentido de Napoleo no teria contido palavras mgicas que no eram pronunciadas havia quase cinco mil anos, palavras de um livro antiqssimo que fora enterrado com um templrio na Cidade dos Espritos. Fiquei imaginando, enfim, se o Livro de Tot j no estaria em ao. Caso os feitios do livro tivessem poder, ento Bonaparte, novo senhor do pas mais poderoso da Terra, logo seria senhor do planeta -
e, com ele, o Rito Egpcio de Silano. Teria incio um domnio de megalmanos ocultistas, e a histria humana assistiria no a uma nova aurora, mas a uma longa era das trevas. Precisvamos agir. "J descobriste, Boniface, onde Alessandro Silano se encontra?" "Ele vem realizando experincias nas Tulherias, sob a proteo de Bonaparte. Mas consta que saiu esta noite, para ajudar os conspiradores a tomar o governo. Felizmente, a maioria das tropas marchou para Saint-Cloud. H alguns guardas nas Tulherias, mas o velho palcio est basicamente vazio. Conseguireis ir aos aposentos de Silano e pegar esse vosso livro." Boniface olhou para ns. "Tendes certeza de que Silano est com o segredo? Se falharmos, o castigo poder ser a guilhotina!" "To logo tenhas o livro e o tesouro, poders controlar a guilhotina - e tudo mais." Ele assentiu, sem muita convico e com as manchas de meia dzia de jantares anteriores a salpicar-lhe a camisa. " s que isto tudo arriscado... No estou certo de que seja a coisa certa..." "Todas as coisas grandiosas so difceis - ou no seriam grandiosas!" Parecia algo que o prprio Bonaparte diria, e os franceses gostam desse tipo de conversa. "Ns iremos para os aposentos de Silano e assumiremos o risco enquanto segues na frente para a Notre-Dame." "Mas sou vosso carcereiro! No posso deixar-vos a ss!"
"Crs que partilharmos o maior tesouro do mundo no nos unir mais firmemente que a mais forte das correntes? De uma coisa podes ter certeza, Jacques Boniface: no conseguirs livrar-te de ns!" Nosso trajeto por Paris era coisa de uma milha e meia, e fomos a p para que pudssemos contornar os postos de controle militar instalados pela cidade. A capital parecia em suspense. Viamse poucas luzes, e as pessoas que estavam na rua formavam grupos, trocando rumores sobre a tentativa de golpe. Bonaparte agora era rei. Bonaparte fora preso. Bonaparte estava em SaintCloud, ou no palcio de Luxembourg, ou at em Versalhes. Os deputados reuniriam o populacho. Os deputados haviam se unido a Bonaparte. Os deputados haviam fugido. Era uma falao impotente. Passamos pelo Hotel de Ville (a prefeitura), para chegar margem norte do Sena, e por teatros que, em vez de animados, estavam s escuras. (Eu tinha gratas lembranas de seus sagues repletos de cortess a cortejar negcios.) Depois, seguimos o rio para leste, passando pelo Louvre. As grandes agulhas e arcobotantes da catedral na le de la Cite se erguiam contra um cu cinzento, iluminado por uma lua encoberta. "E ali que deves preparar o caminho para ns", disse eu a Boniface, apontando a Notre-Dame. "Voltaremos com o livro e um Silano j prisioneiro." Ele assentiu. Ns nos agachamos num vo de entrada quando um esquadro de cavalaria passou em tropel.
Em certa altura, percebi que uma figura nos seguia e me voltei rapidamente para ela, mas s vislumbrei uma saia que desaparecia num vo de porta. De novo, o claro ruivo. Teria eu apenas imaginado aquela mulher? Desejei estar com meu fuzil, ou qualquer outra coisa que servisse, mas poderamos ir para a cadeia se fssemos parados levando armas de fogo. Elas estavam proibidas na cidade. "Viste uma mulher esquisita?", perguntei a Astiza. "Em Paris, todos me parecem esquisitos." Passamos pelo Louvre. O rio estava escuro e espesso, e, no Jardim das Tulherias, viramos e acompanhamos a grandiosa fachada do Palcio das Tulherias, encomendado por Catarina de Medici mais de dois sculos antes. Assim como muitos palcios europeus, era uma coisa enorme, oito vezes maior do que qualquer necessidade racional exigiria. Como se no bastasse, ainda ficara essencialmente abandonado aps a construo de Versalhes. Lus XVI e Maria Antonieta, coitados, tinham sido obrigados a mudar-se para l durante a revoluo. Depois, o edifcio fora tomado de assalto pela turba e, desde ento, era quase uma runa. Tinha um ar espectral de abandono. Boniface arranjara um passe da polcia para que pudssemos passar por uma sentinela entediada e sonolenta numa entrada lateral. Explicamos que tnhamos assuntos urgentes a tratar ali. Naqueles dias agitados, quem no tinha? "Eu no subiria com a mulher", aconselhou o soldado, dando uma olhadela em Astiza. "Ningum
mais vai l em cima. O lugar guardado por um fantasma." "Fantasma?", perguntou Boniface, empalidecendo. "J se ouviram coisas na noite." "Tu te referes ao conde?" "Algo fica se mexendo l em cima quando ele sai." A sentinela sorriu de orelha a orelha, com seus dentes amarelos. "Podeis deixar a moa comigo." "Eu gosto de fantasmas", retrucou Astiza. Subimos a escada para o primeiro andar. Nossos passos ecoavam. A opulncia arquitetnica das Tulherias ainda estava l: vastos sales que se abriam uns para os outros num longo encadeamento, tetos abobadados que eram intricadamente entalhados, parques de madeira de lei que pareciam mosaicos, lareiras que tinham futilidades suficientes para ornamentar metade da Filadlfia. Mas a pintura estava encardida, o papel de parede se descolava, e o piso fora rachado e estragado por um canho que, em 1792, o populacho arrastara por ali para confrontar Lus XVI. Algumas das grandiosas janelas ainda estavam quebradas e cobertas por tbuas. A maior parte das obras de arte j desaparecera. Seguimos em frente, recinto aps recinto, como num lugar que fosse visto interminavelmente graas a espelhos que se refletissem uns nos outros. Por fim, o carcereiro parou diante de uma porta. "Estes so os aposentos de Silano", explicou Boniface. "Ele no deixa que as sentinelas cheguem perto daqui. Precisamos nos apressar, pois ele pode voltar a qualquer minuto." Olhou em volta. "Onde est esse fantasma?"
"Na tua imaginao", respondi. "Bem, o fato que alguma coisa mantm os curiosos, longe." "Sim - a credulidade que os faz dar ouvidos a historinhas tolas." A fechadura da porta foi aberta com facilidade nosso carcereiro tivera tempo de sobra para aprender com os criminosos que hospedava. "Belo trabalho", eu lhe disse. "s o homem certo para penetrar a cripta. Ns te encontraremos l." "Acaso me tomas por algum tolo, Gage? No vos deixarei at ter certeza de que esse conde tem mesmo algo que valha a pena procurar. Desde que nos apressemos..." Ele olhou por sobre o ombro. Assim, atravessamos juntos uma ante-sala e adentramos uma cmara maior, sombria. Ali paramos, indecisos. Silano andara ocupado. A primeira coisa que atraa o olhar era uma mesa central. Jazia nela um co morto, com os lbios retorcidos num rosnar congelado de dor, o plo borrado de tinta ou tosado para deixar a pele mostra. Alfinetes unidos por filamentos de metal sobressaam do cadver. "Mon Dieu, o que aquilo?!", sussurrou Boniface. "Uma experincia, acho eu", disse Astiza. "Silano est mexendo com a idia da ressurreio." Nosso carcereiro fez o sinal-da-cruz. As estantes estavam apinhadas de livros e rolos de texto que Silano devia ter despachado do Egito. Havia tambm dzias e dzias de frascos com conservante, e seu lquido, amarelo como a bile, estava repleto de organismos: peixes de olhos enormes e redondos, enguias viscosas, aves com o
bico enfiado na plumagem encharcada, mamferos flutuantes e partes de coisas que no identifiquei por completo. Havia braos e pernas de bebs e crebros, lnguas e outros rgos de adultos. Num recipiente, olhos que se assemelhavam a azeitonas ou bolas de gude e pareciam perturbadoramente humanos. Via-se uma prateleira de caveiras e o esqueleto montado de uma criatura grande que no consegui sequer reconhecer. Das sombras, ramos observados por aves e roedores empalhados ou mumificados, com olhos de vidro. Perto da ponta, pintara-se no cho um pentagrama, inscrito com estranhos smbolos do livro. Pergaminhos e placas com smbolos variados pendiam das paredes, junto com velhos mapas e diagramas das pirmides. Avistei o padro cabalstico que vramos nos subterrneos de Jerusalm, mais outras mixrdias de nmeros, traos e smbolos de fontes arcanas, como uma cruz invertida e distorcida. Tudo era iluminado por velas que j haviam queimado alm da metade Silano sara fazia algum tempo, mas era bvio que esperava voltar ainda naquela noite. Sobre uma segunda mesa, um mar de folhas de papel, repletos com os caracteres do Livro de Tot e as tentativas do conde de traduzir o texto para o francs. Metade estava riscada e respingada de tinta. Mais frascos continham lquidos perigosos, e havia caixas de lato com muito p qumico. A sala tinha um cheiro esquisito de tinta, conservante, limalha e certa podrido subjacente.
"Este lugar maligno", sussurrou Boniface. Sua fisionomia era a de quem acaba de descobrir que fez um pacto com o diabo. " por isso que precisamos tirar o livro de Silano", respondeu Astiza. "Se ests com medo, vai agora", incitei-o. "No. Quero ver esse livro." A maior parte do piso estava coberta por um enorme tapete de l, manchado e gasto, mas indubitavelmente deixado pelos Bourbon. Ele terminava numa sacada que dava para um espao s escuras. L embaixo, o andar trreo era pavimentado de pedra e tinha grandes portas duplas que se abriam para fora, como um galpo de fazenda. Uma carruagem e trs carretas se comprimiam l dentro, e as carretas estavam repletas de caixotes. Silano, portanto, ainda no desfizera toda a bagagem. Uma escada de madeira levava aonde estvamos, explicando por que se escolhera aquele apartamento especfico era o mais cmodo para a entrada e sada de cargas. Por exemplo, um esquife de madeira. O caixo de Roseta estivera oculto nas sombras, mas agora eu o via, encostado verticalmente parede da sala. A luz fraca, os traos rendilhados da decorao antiqssima estavam cinzentos, mas j me eram familiares. Ainda assim, havia algo de estranhamente repulsivo naquele esquife. " a mmia", disse eu. "Aposto que o conde espalhou a notcia. Esse o fantasma de que a sentinela estava falando, a coisa que evita que os homens fiquem xeretando aqui." "H um defunto ali dentro?"
"Defunto de milhares de anos, Boniface. D uma espiada. Um dia, ficaremos todos daquele jeito." "Abrir aquilo?! Mas no mesmo! O guarda diz que a coisa ganha vida!" "Desconfio que no sem o livro, e ainda no o temos. A chave para a fortuna que se encontra debaixo da Notre-Dame pode estar naquele esquife. J mandaste homens para a execuo, meu carcereiro. Ests com medo de uma caixa de madeira?" "Caixa, no - caixo." "Que Silano trouxe l do Egito sem problema nenhum." Instigado, Boniface ento juntou coragem, foi a passos largos at l e escancarou o tampo do esquife. E Omar, a mmia-guardi, de rosto quase negro, rbitas vazias e fechadas e dentes arreganhados, inclinou-se lentamente para fora e caiu nos braos dele. Boniface deu um grito curto e agudo. Bandagens milenares se agitaram junto a seu rosto, e poeira bolorenta caiu-lhe nos olhos. Ele largou Omar como se a mmia estivesse pegando fogo. "Est vivo!" O problema de pagar salrios de fome ao funcionalismo pblico que no se consegue atrair o que h de melhor. "Acalma-te", disse eu. "Ele est bem morto, e isso h vrios milnios. Vs? Ns o chamamos de Omar." O carcereiro tornou a fazer o sinal-da-cruz, no obstante a animosidade jacobina religio. "O que estamos fazendo errado. Ficaremos amaldioados por isso."
"S se perdermos a coragem. Escuta, est ficando tarde. Quanto risco s capaz de encarar? Vai para a catedral, d um jeito nos cadeados para entrar e esconde as nossas ferramentas. Esconde-as e espera por ns." "Mas quando vireis?" "To logo consigamos o livro e respostas do conde. Quanto a ti, j comea a bater de leve no piso da cripta - deve haver uma parte oca em algum lugar. Ele assentiu, recobrando parte da ganncia. "E vs dois prometeis vir?" "S serei rico se eu for at l, no verdade?" Isso o satisfez, e, para nosso alvio, ele fugiu. Eu esperava que fosse a ltima vez que o vamos, j que, at onde eu sabia, no existia tesouro nenhum debaixo da Notre-Dame e eu no tinha nenhuma inteno de ir at l. Omar nos fizera um favor. Olhei com cautela para o cadver - a mmia ficaria mesmo imvel, no? "Temos de achar o livro depressa", disse eu a Astiza. O negcio era terminar antes que o conde voltasse. "Tu ficas com as estantes daquele lado, e eu, com as deste." Percorremos os livros rapidamente, jogando-os no cho, procurando em algum lugar atrs deles o rolo de texto de Tot. Havia tomos sobre alquimia, feitiaria, Zoroastro, Mitra, a Atlntica e a ltima Tule. Tambm lbuns de imagstica manica, desenhos de hierglifos egpcios, a hierarquia dos templrios, teorias acerca dos rosa-cruzes e do mistrio do Graal. Silano tinha tratados sobre eletricidade, longevidade, afrodisacos, curas
herbreas, a origem das doenas e a idade da Terra. A gama das especulaes a que ele se dedicava era infinita, mas no achamos o que buscvamos. "Talvez ele tenha levado o livro consigo", aventei. "No se atreveria faz-lo, no nas ruas de Paris. Ele o escondeu onde no cogitaramos - ou no ousaramos - olhar." Ousar olhar? Em Roseta, Omar servira de sentinela. Pensei na pobre mmia, tombada com o carcomido nariz no cho. Seria possvel? Eu a virei de frente. Omar tinha uma fresta nas bandagens, e reparei que o tronco era oco, tendo sido removidos os rgos vitais. Com uma careta de repugnncia, enfiei a mo l dentro. E senti o livro, liso e bem enrolado. Esconderijo engenhoso. "Ah, ento o rato descobriu o queijo", disse uma voz da porta dos aposentos. Voltei-me, desolado por termos sido pegos de surpresa. Era Alessandro Silano, que vinha a passos largos em nossa direo. Estava aprumado e jovem, tendo remoado anos, e um espadim lhe tremeluzia na mo, para a frente e para trs, enquanto avanava. O coxear sumira, e o olhar do conde era homicida. "s um homem difcil de matar, Ethan Gage, e por isso no repetirei o engano negligente que cometi no Egito. Embora eu houvesse desejado desencavar o teu corpo mumificado e plo para queimar no fogo de meu futuro palcio, tambm nutri a esperana de que um dia eu tivesse a chance que tenho agora - a chance de
- 28 Tanto eu quanto Astiza estvamos desarmados. Ela, na falta de coisa melhor, pegou uma caveira. Motivado por pouco mais que a vontade de segurar o que viramos buscar, levantei e agarrei Omar, com seu eterno sorriso arreganhado e o Livro de Tot ainda dentro de si. A mmia era leve e frgil. As bandagens pareciam papel velho, speras e esfarelentas. "Que adequado que estejamos de volta a Paris, onde tudo comeou, no mesmo?", disse o conde. Seu espadim se assemelhava a um varinha, s que letal, fazendo movimentos bruscos como a lngua de uma cobra. Com a mo livre, Silano desfez o lao no pescoo para deixar a capa cair. "J te perguntaste, Gage, quo diferente seria a tua vida se simplesmente me tivesses vendido o medalho naquela primeira noite, aqui em Paris?" "Claro. Eu no teria conhecido Astiza nem a tirado de ti." Silano lanou um rpido olhar para ela, cujo brao estava preparado para arremessar a caveira. "Pensei melhor, e agora a terei de volta para fazer o que eu quiser - logo, logo." Astiza ento jogou a caveira. Ele a desviou para longe com o cabo do espadim. Os lbios do conde sorriram de sarcasmo, a caveira fez estrpito ao bater no piso -
e Silano continuava a vir em minha direo, passando pelas mesas. O conde dava mesmo a impresso de estar mais moo - o livro fizera alguma coisa para ele -, mas era uma juventude estranha, como se a pele tivesse sido esticada. Ela estava tesa e amarelada, e os olhos, embora brilhantes, eram nublados pela fatiga. Parecia um homem que estava sem dormir havia semanas - e que talvez nunca mais dormisse. Por isso, seu olhar exibia um qu de insano. Havia algo terrivelmente errado com aquele rolo de texto que descobrramos. "A tua sala de estudos fede como o inferno, Alessandro", disse eu. "De qual deus s aprendiz?" "E simplesmente uma anteviso do lugar para onde ests indo, Gage. E indo agora mesmo!" Nisto, ele arremeteu. E eu ergui meu macabro escudo. Omar foi perfurado, mas a mmia deteve a ponta do espadim. Senti remorso por fazer o velho passar por tudo aquilo, mas ele j no ligava mais, no era mesmo? Empurrei a mmia contra Silano, torcendo o punho do conde. Porm, nesse momento o espadim atravessou Omar por completo e cortou meu flanco de raspo. Diabos, como doeu! O espadim era como uma navalha. Silano xingou, girou o brao livre (ele recuperara a antiga flexibilidade) e me acertou um murro, jogando-me para trs e afastando de mim, s turras, o cadver egpcio. Cambaleou para um lado, com o espadim ainda preso, mas tateou dentro da cavidade da mmia e, triunfante,
arrancou de l o rolo. Agora eu no tinha mais escudo nenhum. Silano levantou o livro acima da cabea, desafiando-me a dar o bote para que pudesse espetar-me. Astiza se agachara, esperando uma oportunidade. Olhei freneticamente em volta. O esquife! Ele j estava encostado na vertical, de maneira que o agarrei e forcejei para virar aquela caixa desajeitada e us-la como proteo. Silano, que j estava com a espada livre (Omar, coitado, quase se partira ao meio), enfiou o livro debaixo da camisa e investiu contra mim outra vez. Aparei o golpe com o esquife, deixando o espadim perfurar a madeira antiga, mas torcendo aquele trambolho, atirando Silano para trs e quebrando a lmina ao meio. O conde chutou raivosamente o esquife, arrebentando o lenho decrpito, e, quando aquilo caiu aos pedaos, soltou-se algo que estivera preso l dentro. Meu fuzil! Mergulhei para peg-lo, mas, quando estendi o brao, o espadim quebrado cortou-me os ns dos dedos como uma picada de cobra, to dolorosamente que no consegui segurar o fuzil. Rolei para longe enquanto Silano chutava para o lado a madeira estourada, tentando chegar at mim. Ele sacara uma pistola, e seu rosto se contorcia de ira e averso. Joguei-me de costas contra a estante justamente quando a pistola disparou, e senti o vento da bala a passar. Ela atingiu um dos recipientes de vidro na extremidade da sala, e o recipiente se estilhaou. O lquido se esparramou com rudo junto sacada, e uma coisa plida e medonha deslizou no cho.
Surgiu um cheiro txico, um fedor de vapores combustveis, que se misturou ao da plvora. "Maldito sejas!" Silano recarregava atrapalhadamente a pistola. E ento o velho Ben veio em meu socorro. "Energia e persistncia tudo conquistam", relembrei. Energia! Astiza se encontrava debaixo de uma das mesas, rastejando-se at o conde. Tirei o casaco e o atirei em Silano para distra-lo. Em seguida, arranquei a camisa. Silano me olhou como se eu fosse um luntico, mas eu precisava de pele nua e seca no existe nada melhor para criar frico. Dei dois passos e mergulhei rumo ao vidro que se quebrara, batendo no tapete de l tal qual um nadador e escorregando sobre o torso. A ardncia da abraso me fez ranger os dentes. Vede que a eletricidade gerada por frico e que o sal em nosso sangue nos transforma em baterias temporrias. Ao deslizar at a ponta da sala, acumulei carga eltrica. O recipiente quebrado tinha base metlica. Enquanto eu escorregava pelo tapete, estiquei o brao e o dedo, como o Deus de Michelangelo a quase tocar Ado. E, quando me aproximei, a energia que se acumulara em mim saltou, com um choque, para o metal. Produziu-se uma fasca, e a sala explodiu. Os vapores do preparado de bruxo de Silano se tornaram uma bola de fogo, expandindo-se num timo sobre meu corpo encolhido, indo em direo ao conde e Astiza e descendo para a carruagem, as carretas e os caixotes l embaixo, onde o
lquido conservante j pingara. A exploso fez os papis sobre a mesa remoinharem no ar, chamuscando alguns, enquanto o depsito das carretas pegava fogo. Levantei-me com muita dificuldade, tendo o cabelo crestado e os flancos a queimar (um deles pelo corte do espadim, o outro pela escorregada no tapete), e vi o fuzil. Eu tinha lquido conservante nas roupas que me restavam, e apaguei a tapas um comecinho de incndio nos cales. Uma nvoa baa e fumarenta encheu a sala. Vi que Silano cara, mas agora ele tambm forcejava para colocar-se em p, parecendo atordoado, porm tateando outra vez em busca da pistola. Foi quando Astiza se levantou por trs dele e lhe enrolou alguma coisa no pescoo, para esgan-lo. Era parte das bandagens de Omar! Rastejei para meu fuzil. Silano, debatendo-se, ergueu-a at que Astiza ficou suspensa no ar, mas ela se aferrou s costas dele. Enquanto os dois danavam desajeitadamente, a pavorosa mmia pulava com eles, num grotesco mnage trois. Cheguei ao fuzil e disparei, mas houve apenas um estalido seco. "Ethan, depressa!" O chifre de plvora e a bolsa de balas estavam l, e comecei a carregar a arma, amaldioando pela primeira vez o trabalhoso ato de socar a munio no cano. Plvora, bucha, bala. Minha mo tremia. Astiza e Silano giraram junto a mim. O conde estava ficando vermelho pela asfixia, mas segurava Astiza
pelos cabelos e se contorcia para peg-la. Soquei a munio com a vareta... maldio! Astiza e Silano bateram com fora contra o corrimo da sacada, fazendo parte dele despencar. O fogo subia l de baixo. A mmia, presa ao par, continuava sua dana. O conde enfim conseguiu colocar Astiza sua frente, escudando-se nela ao ver meu fuzil, e lutou para levantar e apontar a pistola. A fumaa ficou mais densa no teto da sala. Meu tiro precisava ser perfeito! Silano removera a bandagem do pescoo e agora estava estrangulando Astiza com ela. Ergueu a pistola. Retirei a vareta do cano s pressas, coloquei uma pitada de plvora no mecanismo de disparo e comecei a apontar. Silano atirou, mas sua mira foi arruinada por Astiza, que se retorcia por ser lanada s chamas. "Ele vai me queimar!" Atirei. A bala acertou-lhe a garganta. O berro de Silano foi um gargarejo sanguinolento. Seus olhos se arregalaram de espanto e dor. E ento ele desabou pelo corrimo quebrado, rumo s chamas abaixo, levando minha amada consigo. "Astiza!" Era uma reprise da queda do balo. Astiza deu um grito e se foi. Corri at a ponta da sala e perscrutei l embaixo, j na expectativa de ver Astiza em chamas. Mas no: a mmia, com a caixa torcica e os msculos ressecados ainda firmes aps milnios, ficara
presa. Astiza se aferrara s bandagens de linho, de onde agora pendia, com os ps a debater-se sobre o incndio. O conde Silano ia sumindo no fogaru, contorcendo-se na pira improvisada. O Livro de Tot estava junto a seu peito. Ao inferno com o maldito livro! Agarrei e puxei as bandagens, peguei o brao de Astiza e a alcei - no ia deix-la despencar com Silano outra vez! Quando a arrastei pela beira da sacada, Omar soltou-se e caiu, transformando-se em tocha quando o pano foi atingido pelas chamas. A mmia crepitou ao queimar com o amo. Olhei para l. Os braos e as pernas de Omar, quebrados, moviam-se como se ele agonizasse! Estaria a mmia viva de algum modo? Ou seria aquilo uma iluso criada pelo calor? Omar fora no uma maldio, mas um salvador. Finalmente, Tot sorrira para ns. E o livro? Enquanto as roupas de Silano se incineravam, vi o rolo torcer-se e espiralar-se no peito dissolvente do conde. As chamas se avivavam medida que a carne de Silano borbulhava, e recuei, repugnado. Astiza e eu nos agarramos um ao outro. Ouviramse sinos de igreja, brados, o fragor de carroes: os bombeiros de Paris logo estariam ali. Quando chegassem, os segredos que homens haviam cobiado durante milhares de anos j teriam virado cinza. "Consegues andar?", perguntei a Astiza. "No temos muito tempo - precisamos fugir." "E o livro?!" "Foi-se com Silano."
Ela estava soluando. Pelo qu, disso eu no tinha certeza. Ouvi as portas de carruagem serem abertas e a gua ser bombeada l embaixo. Fomos lenta e claudicantemente para a porta pela qual entrramos. Estvamos chamuscados e ensangentados e pisvamos sobre uma baguna de vidro, fluido, osso, livro e papel estragado. O corredor estava enfumaado. Por um instante, tive a esperana de que o incndio afastasse qualquer perseguidor at que consegussemos escapar. No seria assim: um peloto de gendarmes j vinha pesadamente pelo corredor. " ele! aquele ali!" Tratava-se de uma voz irritantemente familiar, que eu no escutava havia um ano e meio. "Ele me deve o aluguel!" Madame Durrell! Minha ex-senhoria em Paris, de quem eu fugira em circunstncias vexatrias, era a ruiva misteriosa que me assombrava desde que eu voltara para a cidade. Ela nunca pusera f em meu carter e, quando nos despedramos, acusara-me de tentativa de estupro. Eu o negaria, mas, francamente, nem era preciso, pois bastava olhar para madame Durrell. As pirmides so mais novas que ela - e esto em melhor estado. "Ser que nunca me verei livre de vs?", disse eu, gemendo. "Estars livre quando pagares o que me deves!" "Os credores tm memria melhor que a dos devedores", gostava de dizer Benjamin Franklin. Por experincia prpria, eu sabia que ele tinha razo. "E tendes me seguido como um dos secretas de Fouch?"
"Eu te avistei na carroa da priso, que o teu lugar, mas j estava convencida de que sairias de algum jeito - e para aprontar alguma! Oui, podes ter certeza de que fiquei de olho na Priso do Templo! Quando te vi entrar no palcio com aquele carcereiro corrupto, corri a pedir ajuda. O conde Silano disse que ele mesmo cuidaria de ti! Mas, quando voltei, o lugar inteiro estava em chamas!" Ela se virou para os soldados. "Isto tpico do americano. Ele vive como um selvagem daqueles sertes - experimentai tentar faz-lo pagar uma dvida!" Suspirei. "Madame Durrell, receio que eu haja perdido tudo outra vez. No tenho condies de pagar-vos, no importando quantos policiais tragais." Ela forou a vista, desconfiada. "E essa arma a? No aquela que furtaste do meu apartamento, aquela com que tentaste atirar em mim?" "Eu no a furtei, ela era minha, e atirei na fechadura, no em vs. Nem sequer o mesmo fu..." Mas Astiza ps a mo em meu brao e olhou para alm de minha antiga senhoria. Bonaparte se aproximava pelo corredor com um enxame de generais e auxiliares. Seus olhos cinzentos estavam gelados, e sua fisionomia, irada. A ltima ocasio em que eu o vira to furioso foi quando ele soube das infidelidades de Josefina e aniquilou os mamelucos na Batalha das Pirmides. Preparei-me para o pior. O domnio que Bonaparte tinha das broncas militares recheadas de imprecaes era legendrio. Mas, aps ter feito carranca, ele balanou negativamente a cabea,
exibindo um espanto relutante. "Eu devia ter adivinhado... Ser possvel, Gage, que tenhas mesmo descoberto o segredo da imortalidade? "Sou apenas persistente." "Ento me segues por duas mil milhas, pes fogo num palcio rgio e fazes que meus bombeiros encontrem dois corpos nas cinzas?" "Garanto-vos que estvamos impedindo que acontecesse coisa pior." "General, ele me deve aluguel!", disse madame Durrell, intrometendo-se. "Madame, eu preferiria que vos refersseis a mim como primeiro-cnsul, cargo para o qual fui eleito s duas horas desta manh. E quanto ele vos deve?" Dava para ver a feitura dos clculos na cabea da senhoria, que ponderava at onde poderia inflacionar o verdadeiro total. "Cem libras francesas", tentou por fim. Quando ningum explodiu em face daquele absurdo, ela acrescentou: "Mais cinqenta de juros". "Madame, fostes vs quem soou o alarme?" Ela se inchou de orgulho. "Eu mesma." "Nesse caso, outras cinqenta libras como recompensa - um presente do governo." Ele se voltou. "Berthier, paga duzentas libras a esta brava mulher." "Sim, meu general. Quero dizer, cnsul." Madame Durrell no cabia em si de contentamento. "Mas no deveis jamais dizer palavra sobre o que aconteceu aqui", disse-lhe Bonaparte, em tom de sermo. "Isso diz respeito segurana da Frana,
e os destinos de nossa nao dependem de vossa discrio e coragem. Consegues arcar com tal nus, madame?" "Por duzentas libras, eu consigo." "Excelente. Sois uma verdadeira patriota." O auxiliar a puxou para longe, a fim de contarem o dinheiro, e o novo governante da Frana se voltou outra vez para mim. "Os corpos queimaram de modo tal que no h como reconhec-los. Podes identific-los para mim, Gage?" "Um o conde Silano. Parece que eu e ele no pudemos renovar sociedade." "Entendo." Napoleo ps-se a bater o p de leve no cho. "E o outro?" "Um velho amigo egpcio, chamado Omar. Acredito que ele tenha salvado nossas vidas." Bonaparte suspirou. "E o livro?" "Temo que tenha sido vtima do mesmo incndio." "Foi, ? Revistai-os", ordenou a seus homens. E eles o fizeram, grosseiramente, mas no havia nada para acharem. Um soldado tornou a confiscar meu fuzil. "Ento me traste at o final, Gage." Franzindo o cenho como um senhorio ao ver uma goteira, ele perscrutou a fumaa, que comeava a dissipar-se. "Bem, no tenho mais necessidade do livro, j que agora tenho a Frana. Deverias olhar bem o que farei com ela." "Tenho certeza de que no ficareis na inao." "Lamentavelmente, teu fuzilamento j est mais do que atrasado, e a Frana ficar mais segura quando ele acontecer. Tendo deixado essa providncia a cargo de outros antes desta noite,
sem sucesso algum, penso que cuidarei dela eu mesmo. Para isso, o Jardim das Tulherias um lugar to bom quanto qualquer outro." "Napoleo!", rogou Astiza. "No sentirs a falta dele, pois vou fuzilar tambm a ti - e ao carcereiro dos dois, se eu conseguir encontr-lo." "Acho que ele est procurando por um tesouro na cripta da Notre-Dame", disse eu. "No o culpeis. um simplrio com imaginao frtil, o nico carcereiro de quem j gostei." "Aquele idiota tambm deixou Sidney Smith escapar da Priso do Templo", resmungou Napoleo, muito irritado. "O mesmo Smith que depois precisei enfrentar em Acre." "E verdade, general. Mas as histrias de Boniface nos estimularam a continuar procurando pelo vosso livro." "Neste caso, pouparei o carcereiro, eu vos fuzilarei duas vezes, para compensar." Fomos conduzidos ao lado de fora. Tufos de fumaa se elevavam no cu cinzento de antes da alvorada. Mais uma vez, eu estava muito arrebentado - exausto, cortado por espadim, ralado pela necessidade de produzir frico, com o sono muito atrasado. Se tenho mesmo uma sorte do diabo, ento eu sinto muita pena dele. Bonaparte nos fez ficar de p contra um muro decorativo no jardim. O outono j fizera sumir a maioria das flores. Seria ali, numa agourenta manh de novembro, que minha histria deveria terminar: Napoleo senhor de tudo, o livro perdido, meu amor condenado. Estvamos fatigados
demais at para implorar. Apontaram-se e prepararam-se os mosquetes. L vou eu outra vez, pensei. E ento veio uma ordem abrupta: "Esperai". Eu fechara os olhos (em Jafa, j encarara bocas de mosquete mais que suficientes) e ouvi o caminhar ruidoso de botas no cascalhinho quando Napoleo veio at ns. O que era agora? Abri cautelosamente os olhos. "Ests dizendo a verdade sobre o livro, no, Gage?" "Ele no existe mais, general. Quero dizer, primeiro-cnsul. Pegou fogo." "Ele funcionava, se queres saber. Parte dele, pelo menos. possvel enfeitiar homens e faz-los concordar com coisas extraordinrias. O que fizeste foi um desperdcio vergonhoso, Amricain." "Homem nenhum deveria ser capaz de lanar feitios sobre outro." "Eu te desprezo, Gage, mas fico bem impressionado contigo. s um sobrevivente, como eu. Um oportunista, como eu. E, a teu modo esquisito, at mesmo um intelectual, como eu. No preciso de magia quando tenho o Estado. Assim, o que farias se eu te deixasse ir?" "Deixar-me ir? Vs me desculpareis se ainda no estou conseguindo pensar bem nisso." "Minha posio se modificou. Eu sou a Frana. No posso ceder a vinganas mesquinhas - preciso pensar em milhes. Ano que vem, haver eleio nos Estados Unidos, e necessitarei de ajuda para melhorar as relaes com o teu pas. Ests ciente
do fato de que as nossas duas naes vm duelando no mar?" "Que infelicidade." "Gage, preciso de um enviado s Amricas que pense e saiba desembaraar-se com rapidez. A Frana possui interesses nas Antilhas e na Louisiana, e ainda temos esperana de recuperar o Canad. H estranhos relatos de artefatos no Oeste que talvez interessem a um pioneiro como tu. As nossas naes podem ser inimigas, ou podem ajudar-se mutuamente, como fizemos durante a vossa revoluo. Tu me conheces to bem quanto qualquer outro. Quero que vs para a vossa nova capital, aquela que denominam Washington, ou Columbia, e examines algumas idias para mim." Olhei para a fileira de carrascos atrs dele. "Ser um enviado?" "Tal qual Franklin, explicando uma nao outra." Os soldados pousaram a coronha dos mosquetes no cho. "Sem dvida, estou encantado com essa perspectiva." Eu tossi. "Desistiremos da acusao de homicdio contra ti e relevaremos este fiasco entre ti e Silano. Homem fascinante, mas nunca confiei nele. Nunca." No era o que eu lembrava, mas h limite para o que se pode discutir com Napoleo. Senti a vida retornar a minhas extremidades. "E?" Fiz um gesto com a cabea em direo a Astiza. "Sim, sim, ests to enfeitiado por ela quanto eu por minha Josefina. Qualquer um v isso, e que Deus tenha piedade de ns! Vai com Astiza, v o
que consegues aprender e descobrir e lembra-te: tu me deves duzentas de nossas libras!" Sorri com tanta afabilidade quanto possvel. "Se eu puder ter o meu fuzil de volta." "Feito. Mas acho melhor confiscar a tua munio at que eu esteja bem fora de alcance." Quando me restituram o fuzil (descarregado), Napoleo se voltou e contemplou o palcio. "O meu governo comear no Luxembourg, claro. Mas estou disposto a fazer daqui o meu lar. O teu incndio o pretexto para comear a reforma - esta manh mesmo!" "Que bom que eu pude ser de alguma ajuda." "Percebes que, j que o teu carter to vazio, no vale a pena gastar as balas para matar-te?" "Penso exatamente assim." "E que a Frana e os Estados Unidos compartilham os mesmos interesses contra a prfida Albion?" ", a Inglaterra pode ser bem arrogante s vezes." "Tampouco confio em ti, Gage. s um velhaco. Mas trabalha comigo que alguma coisa poder resultar disso - ainda no fizeste fortuna, no mesmo?" "Estou bem ciente disso, primeiro-cnsul. Depois de quase dois anos de aventura, no tenho um tosto." "Eu sou generoso com os amigos. Pois bem, isso. Meus auxiliares acharo um hotel para ti, longe daquela senhoria medonha - mon Dieu, que medusa! Vou comear dando-te um pequeno estipndio e confiar que no vs arrisc-lo nas cartas. Faremos algumas dedues at que eu receba minhas duzentas libras, claro." Suspirei. " claro."
"E quanto a ti, moa?", perguntou ele a Astiza. "Ests pronta para conhecer a Amrica?" Ela parecera preocupada enquanto Napoleo e eu conversvamos. Agora, hesitou e ento balanou negativamente a cabea, com vagar e tristeza. "No, cnsul." "No?" "Nestes dias longos e sombrios, fiz um exame de conscincia e me dei conta de que o meu lugar o Egito, tanto quanto no o para Ethan. Vosso pas belo, mas frio, e as florestas daqui ensombrecem a alma. As terras agrestes da Amrica me seriam ainda piores. Este no o meu lugar - e no creio que j tenhamos descoberto os derradeiros vestgios de Tot ou dos templrios. Enviai Ethan em vossa misso, mas compreendei por que preciso voltar para o Cairo e o Institut d'Egypte, com vossos savants." "No posso garantir tua segurana no Egito - no sei se conseguirei resgatar meu exrcito l." "Isis tem uma funo para mim, e no do outro lado do oceano." Ela se virou. "Sinto muito, Ethan. Eu te amo, tanto quanto tens me amado. Mas minha busca ainda no est de todo concluda. Ainda no chegou a hora de ficarmos juntos. Ela talvez ainda chegue... No: ela chegar." Com a breca! Ser que eu nunca posso dar sorte com as mulheres? Atravesso o Inferno de Dante, consigo finalmente eliminar o ex-amante dela, arrumo um emprego respeitvel no novo governo da Frana - e agora ela quer ir embora? Que insanidade!
Mas seria mesmo? Eu ainda no estava com nenhuma vontade de estabelecer casa, e realmente no fazia idia de onde aquela nova aventura poderia levar-me. Astiza tampouco era o tipo de mulher que me seguiria docilmente. E eu estava muito interessado em saber mais sobre o antigo Egito, de modo que ela poderia j ir tomando aquele caminho enquanto eu cumpria as tarefas de Napoleo na Amrica. Alguns almoos diplomticos aqui, uma rpida olhada em uma ou duas ilhas aucareiras ali, e eu estaria livre do homem e pronto para planejar nosso futuro. "No vais sentir minha falta?", arrisquei perguntar. Astiza deu um sorriso triste. "Ah, vou. A vida pesar. Mas ela tambm destino, Ethan, e esta suspenso de nossa execuo sinal de que devemos abrir a prxima porta e seguir o prximo caminho." "Como que vou saber se nos veremos outra vez?" Ela deu outro sorriso, triste, pesaroso, mas doce, e me beijou na face. E ento sussurrou: "Tu podes apostar nisso, Ethan Gage. Tu podes apostar".
Nota Histrica
Se de fato aprendemos mais com os erros que com os acertos, ento a campanha de Bonaparte na Terra Santa, em 1799, foi mesmo educativa ao extremo. Em Acre, os ataques de Napoleo foram fruto de impacincia e se revelaram mal preparados. O general francs provocou a
hostilidade da maioria da populao local. O saque e o subseqente massacre dos prisioneiros em Jafa atingiriam a reputao dele pelo resto da vida. Tambm no se mostraram muito melhores os relatos de que Napoleo era culpado de praticar a eutansia entre suas prprias tropas, ao distribuir pio e veneno aos moribundos da peste. Ele no conheceria outro revs poltico-militar to embaraoso at a invaso da Rssia, em 1812. E ainda assim, ao encerrar-se o ano de 1799, o corso no apenas sobrevivera a uma debacle militar, mas tambm manipulara to habilmente a opinio pblica francesa que se viu no cargo de primeiro-cnsul de sua ptria adotiva, a caminho de tornar-se imperador. Os polticos modernos que parecem revestidos de Teflon (no sentido de que nada de realmente negativo se cola a eles) nem se comparam a Napoleo Bonaparte em lbia e astcia. Como foi que ele conseguiu tal reviravolta aps um desastre como aquele? esse o mistrio manhoso que est no cerne deste livro. Os leitores de fico que tm curiosidade por tais coisas gostaro de saber que grande parte deste romance fato. A tragdia de Jafa, a Batalha do Monte Tabor e o cerco de Acre ocorreram em larga medida como se descreve, embora eu tenha tomado liberdades com os detalhes. Ethan Gage e sua corrente de metal eletrificado constituem invenes, do mesmo modo que o torpedo-arete de Napoleo. Mas sir Sidney Smith, Antoine de Phlippeaux, Haim Farhi e Djezzar so personagens histricas. (Na realidade, Phlippeaux morreu de exausto ou insolao durante o cerco,
e no a baionetadas.) Acre e Jafa (que hoje subrbio de Tel Aviv) conservam parte da atmosfera arquitetnica de 1799, e ali no fica difcil imaginar a estada de Gage na Terra Santa. Ainda que a estratgica torre e as muralhas do cerco de Acre no existam mais (em razo dos pesados danos sofridos por elas, Djezzar as substituiu por novas depois da batalha), sobra ar romanesco quando caminhamos pelas fortificaes dessa linda localidade mediterrnea. leste, uma rodovia para a Galilia passa junto ao p do morrote em que Napoleo instalou seu quartelgeneral durante o cerco. Aos leitores interessados na histria da campanha sria de Bonaparte, eu recomendo Nathan Shur, Napolen in the Holy Lan, e J. Christopher Herold, Bonaparte in Egypt. As evocativas aquarelas documentais pintadas em 1839 pelo artista ingls David Roberts esto reunidas em diversos livros de arte. Muito embora eu tenha imaginado algumas das galerias subterrneas do Monte do Templo (uma necessidade, pois mesmo espaos que antes puderam ser visitados durante longo tempo, como os Estbulos de Salomo, foram fechados visitao pelas autoridades muulmanas), Jerusalm est repleta de grutas e tneis. Entre esses locais, inclui-se um escuro canal subterrneo que sai do mais baixo dos tanques de Silo e que este autor, com gua pela altura das coxas, percorreu zelosamente para captar um qu da aventura subterrnea que descrevo. Existem portes subterrneos para tneis, durante longo
tempo secretos, debaixo do Monte do Templo, e pode-se ver pelo menos um como turista. O monte est interditado aos arquelogos por medo de que descobertas desencadeiem confrontos religiosos. No passado, pesquisadores j foram postos para correr de l por multides furiosas - mas no justamente isso que d embasamento idia de que ainda possa haver revelaes ali? S no aparea no Monte do Templo com uma p: voc poder provocar uma guerra santa. Alguns leitores percebero que a "Cidade dos Espritos" so na realidade as deslumbrantes runas jordanianas de Petra, cidade que foi construda pelos rabes nabateus pouco antes de Cristo e acabou sendo administrada pelos romanos. A poca da visita de Gage, tratava-se mesmo de uma cidade perdida, a qual deixaria pasmados os primeiros europeus a visit-la, no sculo XIX. No obstante eu ter tomado algumas liberdades evidentes, muito do que descrevo est l. H de fato um Lugar do Alto Sacrifcio. Em Paris, o Palcio das Tulherias foi iniciado em 1564 e destrudo pelo fogo em 1871. Serviu de residncia oficial para Napoleo e Josefina a partir de fevereiro de 1800, trs meses aps o general ter tomado o poder. A Priso do Templo tambm existia, mas foi posteriormente demolida. E, sim, construram a Catedral de Notre-Dame no local de um templo romano dedicado a Isis. As narrativas tradicionais acerca dos templrios, o simbolismo da cabala e a idia do Livro de Tot so reais. Sobre Tot, encontram-se mais informaes em As pirmides de Napoleo, o romance que
antecede este. Minha afirmao de que o Livro de Tot foi descoberto pelos templrios coisa que inventei - mas qual a causa da espantosamente rpida e avassaladora ascenso daquela ordem ao poder depois que seus cavaleiros fizeram escavaes sob o Monte do Templo? O que, afinal, eles acharam ali? Onde est a Arca da Aliana? Que segredos adquiriram as sociedades antigas? Sempre h mais mistrio. Devo sarcasticamente observar que pode ser surpresa para o Museu Britnico o fato de que a Pedra de Roseta, exposta com orgulho ali desde que as tropas britnicas a confiscaram aos franceses (1801), est desprovida da parte superior, a mais importante. Aps lerem este livro, os conservadores daquele museu talvez queiram colocar um pequeno aviso na caixa de vidro que protege a pedra, desculpando-se pela omisso e garantindo que esto se envidando todos os esforos para localizar o fragmento que um americano renegado mandou pelos ares em 1799. Mas trata-se apenas de sugesto, assim como a idia de que os arquelogos fiquem de olho nos outros trinta e seis mil, quinhentos e trinta e quatro Livros de Tot. Isso, claro, se eles forem dignos de ach-los.
Agradecimentos
Para elaborar esta narrativa, o autor se baseou na erudio conscienciosa de uma multido de historiadores, bem como no evocativo trabalho de
conservao arqueolgica que faz de Israel e da Jordnia lugares to gratificantes para quem os visita. Em especial, agradeo a Paule Rakower e ao professor Dan Bahat, meus guias em Israel, e a Mohammed Helalat, meu guia na Jordnia. Diane Johnson, da Western Washington University, providenciou o latim do epigrama dos templrios, e Nancy Pearl trouxe minha ateno a histria de que Napoleo rasgava as pginas dos romances e as passava a seus oficiais. Na HarperCollins, meus especiais agradecimentos a meu editor, Rakesh Satyal; copidesque Martha Cameron; ao editor de produo David Koral; ao assistente editorial Rob Crawford; agente de comunicao Heather Drucker, pelo trabalho duro que realizou para divulgar o livro; e aos muitos outros que tornaram a publicao possvel. Minhas mximas congratulaes, claro, a Andrew Stuart, o agente literrio que me mantm no mercado. E, como sempre, obrigado a Holly, minha primeira leitora.