O Absoluto Absoluto
O Absoluto Absoluto
O Absoluto Absoluto
Absoluto:
Estudo sobre a
Personalidade
Intelectual de Oiliam
Lanna
Sumário
Introdução
Arte e Personalidade
2. Toponimização e estética
1. Análise da primeira peça das duas melodias para flauta e piano por
toponimização com uma meditação
2. Análise da segunda peça das três miniaturas por toponimização com uma
collage machadiana
Viktor Zuckerkandl, em seu revolucionário Sound and Symbol, começa por dizer que
associamos tradicionalmente a altura – num sentido melódico – com a vida animal. Mesmo que
uma grande lufada, em circunstâncias específicas, possa gerar alguma altura, imediatamente
confundimos isso com um sussurro ou mesmo um grito. Também no início do livro, ele expõe uma
teoria de que, na pré-história, a fala era normalmente associada com uma melodia, que reforçava
grandemente seu significado. Não é possível negar os órgãos vestigiais que confirmam esta
hipótese. Cada afirmação nossa, cada frase que sai da nossa boca dança numa melodia esboçada
que a acompanha. Paul Ekman, em seus estudos sobre linguagem corporal, demonstrou que
universalmente, mesmo em tribos primitivas da África à Nova Zelândia, a mudança brusca do pitch
vocal está associada com alguma surpresa ou medo – isso justifica porque a renascença, em seu
afã de equilíbrio e sobriedade, rejeitava as melodias que considerava angulosas, e porque certas
técnicas de composição pós-século XX, fundadas a partir de uma estética de guerra e
desequilíbrio, são tão afeitas a esse processo non cantabile. Essas descobertas revelam que a
música se funda na tentativa de dizer com esses símbolos, de absolutizá-los e utilizá-los como
forma de expressão além da palavra. Ela é, por excelência, a linguagem do espírito. Esse
absolutizar do símbolo, entretanto, não é ressequi-lo – pelo contrário! Sua elevação se consiste
exatamente em propiciar que ele revele todas as suas facetas, pois é uma matriz de intelecções.
Assim, os saltos dos quais falamos antes podem ser arranjados de forma que talvez expressem até
mesmo a calma, unicamente dependendo da sinceridade e da habilidade do artista – e o problema
de falar sobre música começa aí.
Para falar sobre arte a sinceridade e humildade são as virtudes mais importantes -
tornar-se pequenino, como diz o evangelho. Pois a arte é a estruturação de um ludus moralis; é
usar o mundo das aparições para transmitir uma significação espiritual. Há nela, por isso, algo de
frívolo. Essa característica, que parece um problema para os ideólogos da arte, é, na verdade, a
sua salvação. Por causa dela, tudo que é arte nunca mente e o artista, como dizia Pound, é a
antena da sociedade, sendo um expositor de visões de mundo e não um defensor delas. A arte,
portanto, só é ruim quando é falsa, quando é progressista ou atávica, pois só existe arte na
verdade – não se pode censurá-la por dizer uma inconveniente. Nós, enquanto receptores do
objeto artístico, devemos sempre ter em mente o suspension of disbelief e se deixar influenciar
por ela. E o artista, com sua personalidade, deve utilizá-la como um filtro, que traz claridade para
o tema tratado, pois ela é a história que vivifica o espírito da moldura. Essa moldura – na música, o
som, na poesia, a palavra, na pintura, as linhas e cores – faz o objeto transcender o artista, pois
estabelece na realidade, a coesão que homem nenhum é capaz de dar a um pensamento – isso
soluciona o famoso problema da intenção na arte: ela não importa. É esse fato que faz com que
tenhamos sempre a sensação de que o artista exerça algum poder sobre o desconhecido. Mas isso
é uma noção errada, é o desconhecido que o domina. Essa relação com o mistério da simbologia
natural é mais ou menos consciente, dependendo da pessoa. Manuel Bandeira, por exemplo, sabia
de cor todo um dicionário de termos poéticos e conseguia fazer de tudo na língua portuguesa, já
Orides Fontela não demonstrava possuir conhecimento tão profundo. Na pintura, Van Gogh e Da
Vinci tiveram formações completamente diferentes e seus resultados são fruto, em parte, desta
diferença de ambiente. Esta diferença de conhecimento não é, necessariamente, uma diferença
de valor, mas tem tudo para ser, caso seja fruto de displicência e superficialidade. Assim, se tem
entendido que, enquanto a substância da personalidade é a moral pura, a substância da
personalidade na arte é a disponibilidade, ou em melhores palavras, a sinceridade.
Levando isso em conta, desenvolvi o método que chamo de toponimização. Este processo
busca aproximar quais locais do espírito a música atinge, através de uma série de comparações e
referencias. Há neste método algo de transformar a música numa narrativa que seja clara, para
que, enquanto a ouçamos, não esqueçamos os conteúdos anteriores, cuja a relação é
precisamente a revelação do conteúdo musical. A toponimização começa com a escolha de um
tema que será, em contrapartida, elucidado pelo discurso musical. Essa técnica de elucidação vem
da música vocal, onde o conteúdo sonoro dá luz ao conteúdo fático. Até o barroco, acreditava-se
que a música vocal era infinitamente superior à música instrumental. Por isso, é interessante
utilizar exemplos vocais desta época, onde essa intenção de levar o ouvinte a entender algo
melhor era expressa.
Manuel Cardoso, um compositor e frade português que morreu no meio do século XVII,
tem um moteto chamado Nemo te condemnavit, cujo a primeira exposição da primeira frase
analisarei. Antes disso, algumas considerações estéticas são necessárias de se precipitar: o estilo
de contraponto da renascença, diferente do bachiano, não é tão focado na harmonia, mas na
independência das vozes. Há regras de eufonia, mas o bloco não é pensado com tanta clareza
como uma unidade viva, como é o caso de Bach. Portanto, devemos analisar a peça como uma
soma de melodias, uma exposição da polifonia natural da mente humana. Outro fato que é muito
importante para analisarmos esta obra é sua metrificação e sua forma modal. Em 2007, uma tese
de doutorado na USP, de Heloísa Maria Moraes, chamou especial atenção ao ethos de cada um
dos metros na poesia horaciana e, como indicam fontes medievais e renascentistas, há uma forte
influência do conceito de métrica da poesia na música. Já os modos, variações do espectro da
escala maior, serão analisados de acordo com os lúcidos comentários de Aristóteles e Platão sobre
seu ethos, e a tábua das escalas gregas extraído dos escritos de Palisca e baseada nos estudos de
Cleónides, musicólogo grego do século II.
Para começar a análise, enveredando pela estrutura métrica, me permiti desenvolver uma
abstração do metro em que a música desenvolve a frase nemo te condemnavit, mulier. A métrica
em música possui certas diferenças da poética, mas a força de suas formas é a mesma –
estabelecendo a dificuldade na interpretação dos ritmos. Neste trecho, a regularidade básica é a
de um dímetro iâmbico – que será recomposta na maioria das reexposições desta frase -, mas, no
primeiro compasso, sua exposição é a de um espondeu, cujo caráter é nobre e viril – que se
relaciona com a fala do Cristo, de cima para baixo, anunciando o perdão - com uma nota curta no
fim que estimula a continuação do discurso, dando à música o caráter dialogal que é típico do
iâmbo – que, se caso seguisse a regularidade natural do compasso, seria troqueu. É um segundo
compasso se torna, portanto, caracteristicamente iambo, denotando um fluxo conversacional -
como, entretanto, os dois compassos seguintes versam sobre a mesma palavra, há uma
acumulação de perspectivas, denotando o acúmulo de tensão sobre a palavra condemnavit. O
terceiro compasso dá continuidade à ideia da palavra de forma bem interessante. Viktor
Zuckerkandl discute uma peculiaridade muito importante na análise de um compasso: as notas
longas, no meio do compasso, puxam a força do tempo para elas, gerando uma sutil distorção.
Neste caso, eu avaliaria o compasso não como um báquico, mas como um anfíbraco, que se
encaixa muito melhor em sua sonoridade. Este metro sugere um desequilíbrio e, curiosamente, já
fora relacionado com a feminilidade. O quarto compasso é um troqueu, mas que, pelo anterior
anfíbraco soa como uma correção iâmbica da sonoridade, criando com os outros compassos o
seguinte discurso: a música começa imitando o modo de falar, gera o desequilíbrio, resultado do
impacto da palavra, e segue com a imitação da fala, produzindo uma sensação de coerência sem
ser tedioso ou sem sentido. O quinto compasso se estrutura de forma análoga ao primeiro, sendo
um báquico. Isso é muito interessante de se notar, pois assim como há o milagre da oitava, eu
diria haver também o milagre da divisão rítmica, onde um ritmo se estrutura metricamente igual
ao outro, apesar de valores diferentes. Aqui, o ritmo retoma a nobreza para que Nosso Senhor
termine de lhe conceder o seu perdão – o que é confirmado pela célula longa e tética que termina
a frase. Aqui, a toponimização se confunde com a interpretação, pois o conteúdo mental ao qual
devemos relacionar a música é o seu conteúdo fático.
Analisando agora o movimento melódico desta frase, devemos ver a tensão entre os
modos, seguindo o guia assinalado por Palisca onde a recorrência da tônica é o melhor indício do
modo. O primeiro compasso gira em torno da nossa frígia, conhecida como hipolídia na antiga
Grécia. Platão, na República, dá indícios de que esse modo, mesmo naquela época, já era indicado
como sinônimo de melancolia e do lamento. Isso reflete com o que ouvimos na música e, elevando
esse indício ao nível do discurso, é a sensação que a mulher sentia logo quando Jesus começara a
falar. A partir do segundo compasso, a composição vai caindo para o frígio, nosso dórico, e depois
para a região do nosso jônico, que logo se contrapõe com dois toques na tônica do lócrio – o modo
mais instável. Essa movimentação é fruto de uma sutilíssima psicologia. Algo como uma sensação
atrasada – que é uma representação fiel da cena -, Manuel trança pela região do nosso dórico –
que indica resignação – e pelo jônico – que simboliza o alívio. Esse alívio, entretanto, não se
consuma, pois os toques no lócrio transformam rapidamente o vestígio de alívio em apreensão –
quanta psicologia não está inscrita nestes rápidos movimentos? que, apesar de rápidos, são
plenamente audíveis? O terceiro compasso, com o distintivo anfíbraco, gera um deslocamento
radical em direção ao dórico, simbolizando o movimento da alma indecisa em direção a um
ímpeto vago. Esse ímpeto vago logo se desfaz em um lá que nos leva para o jônio, uma
estabilização dos sentimentos da mulher. Manuel, então, usa o sétimo grau da jônia para reavivar
a tensão da sua alma, seguindo, no quinto compasso, para um salto de quarta, um intervalo que é
muito relacionado com a elocução e com a chamada de atenção no geral, que retorna o
relaxamento levemente conturbado à tensão da frígia – que é o modo principal desta melodia.
Esta pequena frase, portanto, contém uma quantidade enorme de sutilezas psicológicas, uma
descrição tão clara da paisagem interior, ainda que eivada de complexidades, que se assemelha
com os quadros de Botticelli e Leonardo – onde a simplicidade camufla infinitos mistérios. Assumir
que a melodia trata das sensações da mulher, e não de qualquer outra coisa possível, é
toponimizar.
Já o que aqui chamo de estética é o conjunto de escolhas que estruturadas por uma
dialética concreta do estilo. A estética é uma escolha temporal. Na arte do som, essa dialética se
manifesta através do hábito tonal, da rítmica e de outros elementos que, apesar de todos serem
facilmente perceptíveis são dificilmente explicáveis, sendo mais efetivo utilizar-se de traços
esboçáveis da obra, que de uma abordagem sistemática. Como escrevi antes da análise, uma
característica importante da renascença é o seu contraponto modal de vozes independentes.
Socialmente, o significado dessa escolha é uma transposição da estrutura catedrática das igrejas e
das sumas teológicas: elas são uma antítese do estilo musical passado que, sem preocupações de
se estruturar como uma filosofia independente, dada a garantia desses fundamentos humanos
pelos outros meios já citados, se estruturavam na homofonia. Também é importante notar a
influência de um intelectismo, já patente desde os escritos de Nicolau de Cusa, na música desse
tempo. Muito dela era mais para ser lida do que ouvida, pois as significações mais profundas eram
escurecidas pela polifonia densa – coisa que acontece nesta música em específico, quando tocada
na velocidade acelerada que é apresentada hoje. Também é importante, apesar de óbvio, notar o
caráter eminentemente religioso dos escritos de Manuel Cardoso e como, no seio de seu trabalho,
está presente uma discussão sobre a religião não enquanto artífice moralista como
compreendemos hoje, mas como uma realidade que deve ser levada em conta em todos os
momentos. Em cada um dos discursos, como visto anteriormente, vemos uma metafísica da
esperança e do perdão, além de uma funda compreensão dos finos estados da psicologia, o que
afasta o preconceito tão difundido hoje de que a religião, quando vivida plenamente, é só mais
uma neurose. Tendo tudo isso em vista, pode-se concluir que o ponto de vista estético é o ponto
de vista do desenvolvimento histórico da arte em si e da personalidade – de onde fica evidente a
necessidade destes dois capítulos.
Para dar um bom exemplo da análise estética e como ela relaciona com a personalidade,
aproveitando para elucidar o tema da personalidade intelectual, e com a história, além de mostrar
que ambas as técnicas podem ser feitas com todas as artes, vale a pena estudar a personalidade
intelectual de Bruno Tolentino, tendo em vista seus livros e palestras em geral e dois poemas
contrastantes em particular: A Xeroxona, um poema cômico dos sapos de ontem sobre a confusão
engendrada pelo plágio de Marilena Chauí de um trabalho de seu amante francês, Claude Lefort, e
um dos poemas da imitação da música, do mundo como ideia.
A Xeroxona
A imitação da música
A peça, que se inicia em si menor e dialoga com essa tonalidade em todos os momentos, é
uma forma ternária simples (A - B - A') e sua textura é de uma melodia acompanhada, salvo
algumas formas de contraponto livre. Encontrada a superestrutura da peça, agora podemos
prosseguir para a extrusão do seu significado.
O primeiro tema é constituído de três frases - Do compasso 1 ao terceiro tempo do 4, do
último tempo do 4 e se superpondo aos três primeiros tempos do 7, e do compasso 7 ao 10. Aqui
é interessante notar que essa pequena estrutura imita a grande estrutura do ternário simples. A
primeira frase, com um acompanhamento ostinando, evoca a imagem de uma meditação
profunda, mas sem malícia, percorrendo nostalgicamente as memórias - ou pensamento. Esse
efeito é dado pelo acompanhamento que, pelo caráter piano e sempre legato, evoca um doce
palmilhar, um caminhar leve que, aqui mesmo, já começa a esboçar um caráter de "mineiridade"
no autor - ou talvez pudéssemos chamar de um drummondismo? A progressão harmônica
também leva a entender nesse sentido. Há um certo arcadismo - bem mineiro, aliás - na
progressão de terças que se prolonga quase que indefinidamente - recurso que fora
expressamente evitado já em Fux. As harmonias também, como passam por grau conjunto,
refletem uma espécie de "meditação meticulosa sobre todos os pontos": pois sabemos que os
graus mais próximos geram os efeitos mais distantes - o que a assinatura de "lento", ressalta
muito. Voltando à melodia, não é dificultoso perceber que, seguindo nossa comparação, as
colcheias são os gestos do pensamento, enquanto as longas notas são a substância mesma da
contemplação. Esses gestos do pensamento, se dividindo em ascendentes e descendentes, no
início precipitam rapidamente para a subdominante - o símbolo, por excelência, do recuo - que,
majestosamente, caminha para o acorde de lá maior. Quanta filosofia se poderia esconder neste
pequeno gesto? Ora, se estamos toponimizando com o ato da meditação, o recuo, seguido de uma
cor levemente brilhante, é o ato do esclarecimento pela memória - tema que voltará, mais de 30
anos depois, nos Rituas do Tempo. Este movimento de esclarecimento, entretanto, é obscurecido
e esse obscurecimento é logo rebatido com o movimento ascendente da flauta para fá - e esse
rebater-se no pensamento enseja o primeiro salto da flauta - uma "queda" do pensamento. Seu
obscurecimento - que, não por coincidência cai na dominante menor - é o aprofundamento da
melancolia, indo a diante no oceano da tonalidade menor. Segue a subdominante antirelativa,
perpetuando o enredamento na melancolia da meditação. O próximo acorde, continuando a
palmilhação arcaica de terças, reflete uma característica muito interessante do pensamento, que é
a antecipação do movimento interior à sua manifestação exterior, O movimento do espírito
antecedendo seu conteúdo emocional. Esse movimento nesta parte do diálogo, onde a flauta
encarna o discurso da emoção e o piano o movimento do pensamento, representa a suave
exaltação após o encontro de uma pequena verdade, que, incrivelmente, segue com uma união
dos dois instrumentos, evocando suavemente tonalidades maiores. Essa sutil união, que
desemboca na tônica paralela - declinando -, e, curiosamente, não segue com a tonalidade
paralela, mas só a usa para criar um compasso quase todo maior, é o encontro da gravidade do
espírito. Esse movimento descendente do fim da primeira frase ecoa a primeira descida, criando
um caráter sutilmente cíclico na frase - movimento cíclico que também é característico do
pensamento. Essa repetição não-literal que, no primeiro momento, leva à subdominante e a tudo
que isso simboliza, agora vai em direção ao tonus maior da tônica, representando uma
reelaboração do primeiro topos - ou seja, a tomada de alguma consciência na meditação. Esse
apoderamento, entretanto, por questões harmônicas, não evoca uma serenidade, mas, pelo
contrário, traz um ar marcial para o fim da melodia: essa consciência é a analogia da atenção e do
enfrentamento. É interessante notar, por último, que o salto da voz superior do piano também é
significativo, porque reflete o lastro da emoção nos movimentos do espírito que antes discutimos.
A segunda frase, denotando uma elevação potente que culmina no sexto compasso, se
utiliza do mesmo artifício rítmico que notamos em Manuel Cardoso. Sua potência está na nota
forte que dá espaço à nota longa, criando um problema rítmico que só será resolvido nos longos fá
e lá do seu fim. O problema e a solução rítmica são construídos pela sequência de
iambo-anapesto-iambo-iambo-troqueu. É muito interessante notar que essa sucessão reflete o
primeiro verso da estrofe alcaica tradicional, pois, sendo ele constituído de iambo, anapesto e
espondeu, podemos interpretar a dupla iambo-troqueu do final como um espondeu com uma
adição métrica finalizante – procedimento muito comum na poesia antiga. Isso implica em denotar
a esta passagem um caráter de alerta, produtor de sensações opostas e arrebatadoras. Acontece,
entretanto, que é assim só pelo lado do ritmo, pois as alturas e a condução suavizam esta
sensação. No fim, a harmonia, favorecendo o caráter enérgico presente no ritmo – como no
primeiro acorde – bem menos que a melancolia branca dos acordes menores, exceto rara exceção
– como no oitavo acorde, que engendra uma poderosa transformação de cor -, guia a melodia
para um outro caminho: a acidez trágica do alcaico se transforma naquele tipo doce de
recordações que nos enchem de altivez e gravidade. É a essas recordações que o símbolo da
atenção preludiava. Num processo de superposição, a repetição da primeira frase se inicia e a
harmonia paulatinamente vai para os mesmos lugares que começou. Há nisso o tema da
meditação, cessando para dar espaço aos furores da memória, recomeçando, e então cessando
novamente, como um homem que vai dormir e que verá agora seus pensamentos e emoções
diárias esculpidos nos seus sonhos – mas podemos dizer que este é o sonho do coração.
A transição entre as duas sessões, que por se constituir de uma oitava e graus conjuntos
se torna suave, é, levando em conta também o registro do instrumento, um agravamento. Agora,
o pensamento não está sendo digerido só pela razão, também há uma substância etérea, mas
profunda, que raciocina para nós. Essa sensação de intangibilidade é dada pela harmonia, pois os
acordes de sétima perfeitos sobrepõem as direções que cada nota assume no sistema tonal – isso
é ainda amplificado pela posição aberta -, fazendo com que a sua divergência intrínseca não nos
permita concebê-lo unificadamente senão como uma evasão. Isso também é verdade para a
apoiadura do quarto tempo do primeiro compasso. Essa paisagem interior, forjada por um
contraponto a três vozes que, não fosse a presença de um acorde com quarta e a harmonia em
tríades, seria um contraponto arcaico, tem bastante afinidade com o modo eólio e lembra um
pouco as músicas de Debussy ou do Les Six; por isso mesmo, parece haver nela um conteúdo de
emoções difusas, pronta para se elaborar mais para frente – sensação que é passada pela mistura
algo sem rumo, que é uma ótima opção para simbolizar como tudo que é emoção nos aparece. Em
seguida, a indicação do mezzo piano adiciona a essa frase a impressão de ser um reavivamento do
pensamento – a flauta e a cesura também o indicam – e esse retorno se utiliza da escala dórica
para imprimir entusiasmo, como Aristóteles dizia ser a função dessa escala; entretanto, como o
compositor se vale justamente dos graus que compõe a tríade de ré maior, esse entusiasmo é
alegre – veja que, se se houvesse utilizado o sol ao invés do lá, a melodia encontraria uma
agitação, porém seria lúgubre. É importante notar que, desde antes, havia uma preferência cada
vez maior por acordes abertos, dando essa sensação de ressonância que, curiosamente, se
aproxima da dissolução. Agora, no fim da sessão B, entretanto, o piano vai lentamente se
aproximando das terças arcaicas – e as vozes até produzem quintas paralelas para reforçar este
arcaísmo. Esta última frase da sessão B se relaciona, portanto, com a manifestação organizada do
sentimento, agora exposto através da fala – representada pela fala, representada pela flauta.
Escolho esse movimento porque esta parte se dirige cada vez mais ao tonus maior, que contrasta
com o ambiente interior do menor. Há aqui, dado o entusiasmo do dórico e as escolhas de acordes
maiores que ganham forma definida na medida em que a música progride – dado o caminho de
acordes abertos para fechados -, um discurso de afirmação à vida, amoroso – tema que também
será tratado com maior profundidade nos Rituais do Tempo, tendo em vista a escolha de cortejo
para a contemplação do momento presente. É interessante notar que esse discurso de afirmação
à vida e a oposição entre exterior e interior foram ressuscitar no fim do século XIX, com trabalhos
como os de Nietzsche e Dostoiesvski, e tratamento plácido e neoclássico se assemelha bastante
com a Georgian Poetry que, se acabara três décadas antes da publicação destas duas peças, ainda
permanecia moderadamente presente nos trabalhos de João Cabral de Melo Neto, Adélia Prado e
Drummond - há, aqui, algo bucólico e alegre que me inspira a dizer isso.
A música segue com uma repetição de A, o retorno para o mundo interior, mas, agora, ela
termina a primeira frase com um acorde sem terça – mais um arcadismo -, e logo depois segue
para um acorde de sétima que está na escala de si menor, fazendo com que o espectro de atenção
que havia na primeira vez, dê espaço aos sentimentos vaporosos da segunda sessão –
inaugurando uma frase que é a síntese dialética de toda a música. Aqui, o pensamento que havia
começado com movimentos calmos e medidos já passou pela ruminação da emoção, e o homem
que pensava, já saudou a situação com um canto entusiasmado e voltou, mesmo assim, à mesma
reflexão, que engendrou emoções ainda mais difusas que, agora, o pensamento – representado
por motivos semelhantes, se bem que com notas mais longas – tenta remediar, mas cessa num fim
que nos chama para a atenção – simbolizada por um locus harmônico. Esta narrativa termina com
este locus por dois motivos, a meu ver: o primeiro, de natureza acidental, é que ele relaciona as
duas peças, a segunda, de natureza simbólica e necessária, é que ela se identifica com um cessar
paciente, porém altivo. Acabada a peça com a derrota do pensamento pelo acúmulo de sensações
e emoções, ele não cessa sem dizer: nossa guerra ainda não acabou.
Análise da segunda peça das três miniaturas por toponimização com uma
collage machadiana
O espírito destas peças é bem diferente daquelas que Oiliam escrevera mais de 10 anos
antes. Assim, achei necessário escolher um topos mental que fizesse jus a essa mudança de
ambiente. Me explico: algumas décadas antes desta peça, um hábito modernista havia se
instalado na poesia, tendo como participantes temporários Ezra Pound e TS Eliot. Esta aventura,
encontrada em profusão na canção de Alfred Prufrock e no The Waste Land, além de ser a
premissa mesma dos canti, era a de retratar a realidade nua e crua e contrastar isso com os
recônditos segredos do espírito. O equivalente disso na pintura é o cubismo e creio que a ambição
destas três peças é a mesma. Creio, ainda, que a estrutura de todo o conjunto seja a seguinte: a
primeira peça versa sobre o ato da descrença e da suspeita, que é o princípio da queda, a segunda
peça sobre as atribulações banais do dia, e a terceira é a meditação paciente que busca retornar
ao Absoluto. Infelizmente, não poderei me aprofundar neste tema, mas, analisando somente a
segunda, se terá maior noção de como esse tema se encaixa dentro da personalidade do
compositor.
Continuando a explicação, que fora cessada por comentários de maior importância, é
nesse espírito que chamo esta obra de uma collage machadiana. Ela é um conjunto das cenas
banais recortadas - exceto que sem a cena, só com a paisagem musical - e é machadiana porque é
toda uma psicologia do mal da banalidade, expondo como o coração banal contém em si amargas
ironias, raivas e ressentimentos. A peça, tendo esta abordagem em vista, é dividida em oito
imagens, que se articulam numa unidade, sendo a primeira imagem o primeiro compasso ao
segunda o segundo e metade do terceiro, a terceira a metade do terceiro e metade do quarto, a
quarta a outra metade do quarto até o sétimo, a quinta o oitavo e nono, a sexta o décimo, a
sétima o décimo primeiro e a oitava os últimos compassos – este processo lembra muito a
estrutura das Tramas da Memória, estreada vinte anos depois. Estas imagens, os motivos da peça,
se articulam em frases, mas que se assemelham mais a cenas. Digo isso porque há algo de espacial
em toda música que pretende ser atonal, cuja origem e consequências serão exploradas mais
profundamente no capítulo seguinte. No momento, basta dizer que este fenômeno surge da
tentativa de destruição da tonalidade, pois, destruindo a tonalidade, destrói-se também a direção
do espírito. Uso o termo, entretanto, com sabido descompasso entre o que digo e o que já foi dito
sobre o tema. O leitor atento perceberá que há muito que utilizo o termo latino tonus , para
expressar o estado de espírito que certa passagem nos evoca – ideia representada genericamente
pelo vocábulo ἁρμονίᾱ na Grécia antiga e que corresponde vagamente aos nossos modos. Essa
identificação da tonalidade com os modos, entretanto, não é minha, mas de Alexandre-Étienne
Choron, quem usou a palavra pela primeira vez. Para ser mais específico, ela seria uma
organização dos modos, contendo-os e iluminando-os. Se é a tonalidade é assim entendida,
devemos tratar o modo maior como a união de todos os nossos modos gregos, a estrutura de suas
possibilidades. O modo menor, quando se utiliza das formas harmônicas e melódicas,
evidentemente transcende o escopo da hierarquia proposta pelo maior, propondo assim novas
tonalidades, ou, em outras palavras, novas estruturas tonais que produzem novos modos. É nesse
espírito que, como dizia Adorno em sua filosofia da nova música, o atonalismo é uma
consequência dialética na história do tonalismo. O lugar comum de que o cromatismo romântico
deu lugar à música atonal deve ser entendido de uma forma mais profunda: a exploração cada vez
mais ampla de novas tonalidades – seja nas rapsódias húngaras de Liszt e em suas escalas exóticas,
seja na escala de tons inteiros em Debussy, ou em vários outros exemplos que nos aproximaram
ao longo dos séculos com turcos, hindus, muçulmanos, povos tribais e chineses -, fez o homem
ocidental se convencer de que a ordem da tonalidade sequer existia no mundo como uma
substância, mas só na mente como uma abstração – não sendo justo dizer, entretanto, que tenha
conseguido aboli-la, mas que, pelo atonalismo, conseguira só expandir e progredir em direção a
uma teoria geral da tonalidade que leva em conta todas as estruturas tonais possíveis num
sistema temperado de doze tons e desenvolve nelas um senso hierárquico, teoria essa que, se
ainda não promulgada, é expressamente prenunciada em trabalhos tão diversos quanto de
Messiaen, Prokofiev, Guarnieri e Ginastera. Este psicologismo, com a licença de dar ao termo a
frouxidão que necessita, é o caminho ao qual estivemos expostos no momento em que
escolhemos buscar a salvação da alma individual em face a entende-la como uma mera emanação
do Ser – caminho prefigurado na discussão entre Averrois e Santo Tomás de Aquino. Pode-se
perscrutar neste destino até que cheguemos, como prenunciava Maine de Biran, numa descoberta
colombesca do mundo interior, encontrando nas meras possibilidades das abstrações do
pensamento, a razão infalível de Deus; outro modo de caminhar, do qual a segunda escola de
Viena e seus teóricos são os continuadores, é, cito Adorno, o do movimento subversivo como a
própria mudança de função da expressão musical. Já não se fingindo paixões. Pois no meio da
música se registram somente emoções indissimuladamente corpóreas do inconsciente, shocks,
traumas – vale lembrar que o autor estudou e manteve contato com Berg, sendo um grande
proponente da nova música. Os espasmos que caminham para o nada e, no nada, prenunciam
uma igualdade de mecanismos inúteis, uma comunhão no absurdo, é o materialismo de Epicuro, é
como a matéria nos espasmos de energia que não cessam de criar o mundo ao nosso entorno, é
até mesmo como a democracia moderna, o sonho dos soldados, onde o supremo valor é escolher
nossos destinos sem ter em vista valor algum. Há, por isso, uma relação íntima da música atonal
com todos estes movimentos, e principalmente com a matéria como a percebemos num primeiro
relance – isto é, num relance epicurista -, sendo ela o símbolo natural mais imediato de todas
essas manifestações. Em termos musicais, é a emancipação da dissonância, cansada de se
subordinar à consonância e exigindo dela a igualdade, fraternidade e liberdade que todo cidadão
moderno tem como garantida – c’est pour la dignité! Eles gritavam.
Deixando o aprofundamento deste tema para o capítulo que segue este, é importante
salientar que a estética não pressupõe valor à música, mas antes ao tempo. Portanto, a raiz da
qual esta peça emerge não a impede de conter elementos importantes como há em inúmeros
exemplos da literatura – e, até talvez por isso mesmo, seja ainda mais importante. Continuando a
nossa análise, se a razão da música atonal é o shock e o trauma e se por isso ela se apresenta a
nossos ouvidos numa organização cenográfica – e não dramática, como mesmo dizia Adorno - ,
então a narrativa musical deve ser apreciada como um empilhado de cenas esparsas que se ligam
somente no ato da razão, formando o que antes já havíamos chamado de cubismo em música, ou,
como diz o título: uma collage. Encontra-se um perfeito sinônimo poético disso numa das poesias
de T. S. Eliot chamada Sweeney Agonistes, fragments of an Aristophanic Melodrama:
Fragment of a prologue
Dusty. Doris.
I don’t care.
[...]
É em alcançar o espírito pela via negativa que poderíamos descrever grande parte da
música de Oiliam Lanna. Há aí um orfismo, um paganismo crente que sempre saltou aos meus
olhos em toda música atonal que eu ouvia. Não que esta música expresse diretamente uma
descrença em Deus, mas é, como já demonstramos, música materialista em sua origem. Ora, o
ateísmo não existe. Há ateus judeus que, através do judaísmo, religião da ordem por excelência,
desejam arduamente a destruição dela – como Adorno – e ateus cristãos que, através da religião
da castidade por excelência, amam o que é impúdico e torto: quem quer que venha a ser ateu é só
um crente de farrapos a mendigar farelos. Crê-se nas leis da ciência que o tempo logo chega para
devorar. Crê-se nos princípios da honra e da dignidade humana, cuja a natureza cruel logo nos faz
amaldiçoar deuses que nem mesmo tínhamos por credo. Crê-se num mundo melhor, onde a
impotência humana logo nos faz passar pela insanidade. E, se por muito tempo perscrutarmos o
caminho da descrença, cremos fiel e profundamente na insanidade e na irracionalidade.
Acreditamos, além de todas as provas possíveis, que o princípio da identidade é falso – e com isso
sem saber o afirmamos. A capacidade de provar e a razão analítica, faculdades criadoras de nosso
espírito, tornam-se meros fetiches, meros átomos perdidos num caos ainda maior cujo o divino
demiurgo é a aleatoriedade. A insanidade, entretanto, pode se apresentar como estado de espírito
mesmo para as almas mais piedosas – e é neste problema, problema de mortal importância a dizer
de passagem, que localizo a personalidade intelectual do compositor.
Finalmente posso me explicar quanto ao título do ensaio: a busca pelo absoluto Absoluto
é o fundamento intelectual de Oiliam Lanna. Me explico, confrontando esta com a intenção
fundamental de outros compositores. Brahms, como revela o brilhante ensaio de Franklin de
Oliveira, é o compositor da intimidade por excelência. Sua música revela os cumes de um religioso
individualismo do qual Rilke poder-se-ia dizer ser o representante na poesia. Na personalidade
intelectual, isto é, na personalidade estruturada como liberdade, conceitos opostos se confundem
numa perpétua dialética. Onde ouviríamos música mais potente que em seus quartetos de
cordas? Ou mesmo em seu concerto duplo para violino e cello, onde a dupla se assemelha muitas
vezes a um quarteto inteiro? Se há exemplos maiores, só confirmam a grandiosidade destes.
Brahms, começando pela solidão e pelo interior, várias vezes alcança aquela pura potência do
mundo físico, potência que une todo o ato, divino e humano. Talvez poderíamos sua pergunta
essencial da seguinte forma: de que maneiras a solidão pode penetrar além de sua própria
opressão? Lembrando que, como toda ciência, esta não busca resultados apodíticos, mas a melhor
aproximação possível ao fenômeno real. Outro exemplo especialmente importante para
entendermos o compositor em questão é o de César Franck. O francês, também estudado no livro
A Fantasia Exata, é, junto de Bruckner, a epítome do que Franklin chama de música sacra - mesmo
que pura. Em Hommage à César Franck, Oiliam constrói a mesma ambientação que ouvimos em
quase todas as músicas do compositor francês: uma placidez de espírito – seja ela para a alegria
ou para a tragédia - que, paulatinamente, é tomada por um elã furioso, estabelecendo uma
perpétua tensão entre estes dois elementos - essa divisão é demarcada logo no início da peça de
Oiliam, com as notas longas nos oboés e clarinetas e o motivo do fagote. Este pequeno motivo do
fagote, de caráter anelante – um anelo que, na medida em que se identifica com o grave, toma o
caráter de uma força da natureza - vai se espalhar por toda a partitura. Este é um dos temas que,
não importando a obra que se pegue para analisar de Oiliam, não faltará: a consciência da
matéria. A matéria que falo aqui pode assumir duas formas: como potência viva da natureza, que
é expressa nas obras de juventude – como a partita para clarinete e fagote e as melodias para
flauta e piano -, e da coisa, elemento que obscurece a iluminação do espírito – esse
desenvolvimento é típico do reencontro com o mundo espiritual e a sua sucessiva incapacidade de
abranger toda a vida, incluindo a material, transformando o espírito também em uma coisa(tema
que desenvolveremos mais para frente) e vulgarizando a força que antes havia sido divinizada:
para confirmar isso, entretanto, nos faltam dados biográficos mais profundos - , como em Reflexos
de Bruma e Luzes, no Poema de la Luna Nueva, no prelúdio ao Anoitecer, na peça para piano Na
noite e na terceira miniatura. Essa forma de perceber a matéria é, definitivamente, influência de
Tagore, poeta muito estimado pelo compositor, que dividia a música entre a da noite, do Oriente,
e do dia, do Ocidente, a dos mistérios do espírito, do Oriente, e das atribulações do mundo, do
Ocidente. Esta divisão, que exalta o dualismo espírito-matéria, revela uma tendência profunda da
música de Oiliam através da poesia do bengalês: o poeta era, ou poderia ser, gnóstico. Para tal
afirmação, preciso me explicar melhor, sendo mister postergar aquilo que ambicionava obter
primeiro. Deixemos para mais adiante a explicação do título.
O gnosticismo é um tema complexo. Ao rigor do termo, não há gnósticos. Pois a essência
de sua natureza é a negação – e, por isso mesmo, não há nele natureza alguma. O gnosticismo
surge de uma experiência: da experiência de que Deus nos abandonou. Baseado nela, por pura
revolta nossa curiosidade se atiça numa força que busca unicamente corromper. Nenhum gnóstico
diz propriamente alguma coisa. São, todos eles, teólogos do negativo. Propriamente, eles não
dizem: o não dizer e o casquinar são suas aparências eternas. Depois destas vestes, podem se dar
ao luxo de falar sério, de teorizar com livros volumosos e, até mesmo negar veementemente a
inação e o riso, proclamando, seja em qual for a guerra em que estejam engajados para se
esquecer da vida, que eles são expressões de um outro lado – ah, este lado inimigo, que
amorosamente os define e que, num ato final, é o conteúdo de seu julgamento. Nietzsche,
enquanto parte para o gnosticismo com o seu irracionalismo, bem define grande parte deste
movimento pela vontade ascética, estabelecendo que ela se constitui da negação da potência
fundadora da vida – claro que não podemos considerar a ascese tradicional assim. Tagore, no seu
Gitanjali e em outros poemas esparsos, dá sinais de compactuar com esta negação. Ora, a primeira
objeção natural é que todos os poemas do bengalês parecem surgir daquele lugar onde o contato
do homem com o Todo incessantemente se renova, isso, apesar de ser verdade, revela a
necessidade de uma diferenciação dos tipos de gnose – a qual Santo Irineu de Lyon, eu seu
Adversus Haereses, aprofundou bem mais detalhadamente do que poderia se aprofundar aqui.
Os tipos que me vem à mente em ordem não linear são os seguintes: o ódio a Deus, a
crença em deuses intermediários com substâncias irredutíveis – a negação da onipotência -, a
identificação do irracional e da contradição como substância, a crença na onipotência da matéria,
o angelismo – desprezo dos sentidos - e o quietismo. Há vários outros, sem dúvida, e a arte não
pode cair em nenhum deles, pois a arte nunca mente. Ora, estamos falando de dois artistas,
poderia argumentar um leitor imprecavido, mas a arte nunca mente, o artista, sempre. Os artistas
que analisamos se aproximam do quietismo. Tagore diz, em seu Gitanjali: My heart longs to join in
thy song, but vainly struggles for a voice e I shall ever try to keep my body pure. Tendo consciência
de que constatar verdadeiro quietismo seria tarefa muito mais abrangente e trabalhosa, me limito
a apontar os seus inegáveis vestígios. Esta heterodoxia de séculos se baseia na crença de que Deus
nos põe no mundo para nos apagarmos, evitando toda forma de contágio com este mundo -
curiosamente, os hindus e os brasileiros possuem este traço em comum. A Máquina do Mundo, de
Drummond, é a trágica elegia-epopéia que narra o ocaso da presença do Ser frente a covardia
brasileira. Nos hindus, muito provavelmente isso se deu origem através do sistema de castas, que
incentivava uma certa impossibilidade de direção do próprio destino, favorecendo a quietação da
voz interior. No Brasil, há nisso uma raiz sociológica: Paulo Mercadante, em seu a coerência das
incertezas, explora o símbolo da atitude oficial – ou seja, a ideia de que as responsabilidades
sociais, longe de serem compostas por virtudes como nas grandes sociedades (Cícero, em De
Oficiis, fala de sabedoria, justiça, magnanimidade e propriedade), são compostas por
responsabilidades práticas que, por serem materiais ou psicológicas, separam a sociedade em
diferentes fragmentos incomunicáveis: alguns são mais psicológicos e valorizam a concórdia e o
respeito sem a se importar com a verdade e com o bem, fazendo imitar na psicologia o ócio
natural da matéria, outros, homens mais práticos, valorizam a pontualidade, a capacidade de
servidão, até mesmo chegando a dizer que o auge da capacidade humana é conseguir lavar a louça
obsessivamente, não permitir que nenhuma roupa se deixe suja ou comer bem. Eles creem que o
homem foi feito para a lei e não a lei para o homem – a nossa ditadura positivista encarna isso
muito bem. Essa imensa mesquinharia e ganância que guia todas as ambições para o material, faz
com que a desordem se instaure em todos os espíritos. Surge um apelo secreto pelo roubo e sua
justificativa mais natural: uns tem mais e outros tem menos, renegando a realidade espiritual
onde todos são iguais. Este materialismo cultural que incentiva a desordem faz com que o
brasileiro se sinta sempre impotente diante das situações, fazendo com que precisemos sempre
de um auxílio psicológico – fonte primordial da lei absoluta do respeito e da concórdia vaidosa – e,
quando encontra consciências profundas, faz com que se abandone a voz própria, preferindo
sugerir a afirmar, revelando na negação – nos momentos musicais, a duplicidade de sistemas
harmônico do primeiro momento, criando duas músicas em uma, é um ótimo momento
representante desta tendência. Essa, creio eu, corresponde a outra das características mais
importantes do trabalho de Oiliam Lanna, uma longa lição das trevas que o assemelha muito ao
poeta analisado, Bruno Tolentino.
Agora, seguindo em direção à explicação do título, devemos lidar com o orfismo e com a
coisificação do espírito. Que o compositor me perdoe pelo segundo termo, que não é, de forma
alguma, para ser ofensivo como pode soar. Na verdade, significa o costume dos antigos gregos de
pensar o espírito como uma das coisas possíveis do mundo – costume que foi renovado no
renascimento -, que possibilitou o surgimento dos cultos órficos. Na mitologia grega, tudo se
refere à terra. Urano significa céu, mas seu significado etimológico é aquele que cobre (a terra).
Seu filho, o Tempo, gera Zeus, que é o símbolo da presença do Ser, que é instantânea como um
raio. Zeus, entretanto, acaba sempre filiado aos seus antecessores, limitando-o como uma das
meras manifestações que traz o tempo. Nas miniaturas de Oiliam, essa forma de se manifestar o
espírito é semelhante. Por motivos que não conseguirei explicar de todo – sendo alguns já
explicados -, identifico as três peças da série com a atividade da suspeita, com o padecer da
atribulação e uma meditação filosófica sobre os temas anteriores, respectivamente, e, por isso,
considero haver uma narrativa que é o fio condutor das três miniaturas – basta citar, na primeira
peça, o andar cauteloso da flauta e o trinado do piano, que lembra o sibilar de uma cobra, animal
característico do ardil e da suspeita, e, na segunda, todo o ambiente que parece continuar a
primeira peça, em alguns gestos pianísticos e nas técnicas estendidas da flauta, que parecem, por
sua vez, continuar o tema da suspeita, também vale citar as notas longas, ensejando a elaboração
da terceira peça, e, além disso, no que concerne à atribulação, a segunda peça parece toda um
conjunto de elocuções diárias, algumas biliosas, outras irônicas, outras ainda dúbias e fugazes,
como que o reflexo musical do espírito quando exposto à banalidade. Há, como dissemos antes,
nessas obras um quê de machadiano, ocultando nelas uma filosofia sobre a banalidade e fazendo
dela música brasileira por excelência. A terceira, com o timbre profundo da flauta em Sol, se
assemelha à recuperação da transcendência da verdade pelo conceito de Aletheia pelo orfismo e
por Platão. Aletheia significa não entrar no Lethes, o rio do esquecimento, enxergar tudo não a
partir do seu fenômeno estático, mas no seu nascimento que pressupõe, consequentemente, uma
estrutura de nascimento – estrutura essa que chamamos de causalidade, e que nos permite nos
fazer a associação. É como se, das experiências agudas da consciência que Adorno havia
estabelecido como fundamento da música atonal, ressurgisse mais uma vez o espírito, numa
profunda meditação. Essa intermediação entre espírito como coisa e sua conquista como centro
da realidade mesma, o repouso da atenção sobre este processo que está entre o nada e o Todo,
que tanto caracteriza a música de Webern, algumas de Schoenberg, Dallapiccola e do próprio
Oiliam, pela seu próprio propósito acaba sonoramente lembrando algumas peças de música grega
antiga – o poema de la luna nueva lembra alguns fragmentos das composições de Ésquilo para
suas peças, até mesmo na liberdade de apresentação do texto! – e as miniaturas para flauta
relembram vagamente alguns raags indianos – é música noturna, ou melhor, lunaire.
Aproveitando a oportunidade de compreender esta música como representante de uma
paisagem lunar, há uma discussão que revela uma das partes que menos me apraz na música do
compositor: não é música feita para os sentidos, mas música para o espírito. Rossellini, em um de
seus belos diálogos no filme Santo Agostinho, diz que o sentido é a porta do espírito, e que toda
arte que busca o absoluto do espírito é decadente. Se bem que colocando esta frase na boca de
um pagão contra um cristão, esta característica intelectualista de algumas obras de Oiliam, que
lembra de alguns renascentistas, faz com que elas percam força de expressão para sustentar o
desejo de novidade. Esta característica provavelmente surgiu dos estudos com Koellreuter, o
homem que importou o atonalismo para o Brasil, e com a música acadêmica do Quebèc, em seu
doutorado. Outras influências que moldaram mais a sua personalidade que sua música, são o
pessimismo em relação ao mundo, de Baudelaire, e a gula intelectual de Rolando Barthes. O poeta
francês, em À une Mendiante rousse, estabelece a estética de uma arte que busca ser
absolutamente espiritual: Pour moi, poète chétif, / Ton jeune corps maladif, / Plein de taches de
rousseur, / À sa douceur / Tu portes plus galamment / Qu’un reine de roman / ... . Barthes, em seu
discurso para a Academia Francesa, diz que há um fascismo implícito na estrutura da linguagem,
que toda escritura subentende um poder e uma opressão e que a guerra do intelectual é contra tal
poder. Talvez possa haver aqui, como já pensava Adorno e Schoenberg, a ideia de que a expressão
convoluta da música atonal represente um passo para a libertação de uma ordem que nos é
imposta, baseada nas constatações mais recentes da linguística, que o compositor estudara tão
profundamente, mas o fato é que não podemos nos libertar daquilo que nos é imposto por nós
mesmos. A música atonal, enquanto uma negação, não existe. Só existe enquanto uma expressão
específica de seu topos específico, como demonstramos na análise da peça. Longe disso se
manifestar como uma prisão, é esta a estrutura mesma da liberdade. A vontade, a verdadeira
vontade do espírito, é uma necessidade diferente da exterior que nos constrange ou da
puramente lógica é, na verdade, uma manifestação anterior a estas duas, onde estas se conciliam
com muitas outras, no seio da cumplicidade entre o eu e o Ser. Por isso, a imposição inevitável da
tonalidade – é necessário que o leitor se lembre que uso tonalidade como um termo muito
específico -, assim como a projeção inevitável do passado sobre a personalidade como estudamos
anteriormente, é anterior ao ponto em que determinismo e liberdade se diferenciam, não
significando a perda da liberdade, mas, pelo contrário, a sua conquista – muito oposto à ideia de
que devemos sempre procurar novos sabores, que nos aprisiona através da nosso próprio instinto
de novidade. A manifestação desta antinomia é exposta pelo pensamento de Dante Grela, que ele
reexpôs em recente palestra na UNILA: descolonizar, conseguir uma nacionalidade independente
da europeia, não pode ser negar o anterior sempre como eurocêntrico e ir progressivamente até
negar toda a música. É, pelo contrário, permitir que todas as influências anteriores sejam
utilizadas, pois o passado não é o inimigo do futuro, mas o seu pressuposto.
Não posso dizer, entretanto, que este elemento, a princípio fortuito, não tenha se
revelado o apanágio de uma arte com profunda seriedade. Os Rituais do Tempo, uma das últimas
obras de grande escala publicadas pelo compositor, são, como ele mesmo diz, uma meditação
sobre a memória e o cortejo, termo usado para designar o fascínio amoroso que nos exerce a
presença do presente – prefiro aqui a clareza à evitação do pleonasmo. É impressionante como
todos os caráteres analisados da obra do compositor, suas qualidades e seus defeitos, convergem
maravilhosamente para esta obra: é como se, antes dele haver tê-la feito, ela fora feita para ele. A
consecução desta peça é, em si, um momento de cortejo: na primeira parte, o tom continuamente
misterioso seguido por espasmos da memória que são como dores de um demorado parto
representam a memória na sua capacidade de nos recuperar a realidade, sem reter a vazão de um
tema que toma a maior parte da obra de Oiliam: a névoa e a noite. A memória é a névoa do
cortejo, e o cortejo é a união espiritual e carnal, representada pela imitação dos sinos pelos
pianos, pela percussão viva, com o real. Essa peça magnífica supera o materialismo e o quietismo,
na medida em que encontra o Absoluto em sua essência e em sua totalidade – totalidade que
alcança a percepção humana, claro: a presença do Ser, a base de todas as experiências. O
compasso multiforme, mas sempre em base múltipla de dois sustenta aquela sensação de
inconformidade com a matéria que, se antes era expressada de forma ora negando o espírito ora a
matéria, agora se apresenta em toda sua forma com o espírito sobre a matéria. Há várias outras
partes que gostaria de analisar, mas o leitor, que a este momento pode pensar que já esqueci de
minha promessa, ficaria enfastiado se eu terminasse este ensaio sem justificar a escolha do título.
Ora, se as suas obras de juventude se assemelham a um estudo sobre as forças naturais, se sua
segunda fase se fundamenta na tensão entre a matéria e o espírito, e sua maturidade se funda
justamente na mediação entre estes dois elementos, tendo como base a força criadora tanto da
matéria – em tramas da memória -, quanto do espírito individual – nos Rituais do Tempo -, como
eu, um ouvinte distante, que pouco conhece sobre as razões mais profundas da consciência do
compositor, não poderia concluir que o esforço que move suas ambições intelectuais é justamente
transparecer a força do Absoluto? Revelar dele sua capacidade de impressionar, de criar, de se
recriar e de destruir? É irônico, devo admitir, que tal personalidade venha de um sujeito que
pessoalmente não é imperativo e, pelo contrário, tenha a simplicidade e humildade de um pardal,
mas, como ele mesmo me dissera uma vez: a mansidão não é sinônimo de falta de efeito, muito
menos de fraqueza - ora, se Elias, o profeta, encontrara Deus não no vento forte que destruía
montanhas, não no terremoto de fogo, mas no vento manso e suave, quem sou eu para duvidar
de tal afirmação? Quem sou eu para acreditar haver aí alguma contradição? Esta busca pela
manifestação da força do Absoluto, esta busca pelo absoluto Absoluto – primeiro absolutamente
material, depois absolutamente espírito, e depois absolutamente Absoluto, ou seja,
absolutamente potência criadora – é o que define o percurso artístico de Oiliam Lanna. Isto, é
claro, quem diz sou eu que, como fala Yeats em seu prefácio ao Gitanjali de Tagore: shall not know
anything of his life, and of the movements of thought that have made them possible, if some
Indian traveller will not tell me – e espero que Deus venha a fazer deste meu legítimo esforço um
justo acerto.