O Deus Presente - D. A. Carson

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“O Deus Presente, de Don Carson, é de muitas maneiras um livro

singular e importante. Não é uma teologia sistemática tradicional,


nem uma pesquisa bíblica. Antes, explica toda a linha histórica da
Bíblia por meio das lentes do caráter e das ações de Deus. Como
ferramenta de ministério, pode ser usado para evangelizar, visto que
expõe tão completamente a doutrina de Deus, como Paulo o fez no
Areópago, em Atos 17. Além disso, este livro também faz o que os
catecismos das igrejas da Reforma fizeram: dá aos cristãos um
conhecimento básico de crenças e comportamentos bíblicos
essenciais. Por todos os meios, obtenha este livro!”
 
Tim Keller, pastor,
Redeemer Presbyterian Church, New York City

“Esse é um livro muito necessário. D. A. Carson é um dos poucos


eruditos bíblicos que tem o dom de escrever de maneira simples e
cativante. Vivemos numa época em que as pessoas rejeitam ou
aceitam prontamente a Bíblia, sem nem mesmo saber o que ela
contém. Carson faz um excelente trabalho de explicar as Escrituras
para que uma pessoa que nunca a abriu possa entendê-la. Ao mesmo
tempo, aqueles que cresceram sob os ensinos da Bíblia acharão nesse
livro verdades óbvias e valiosas que os levarão a maior adoração e
apreciação do Deus a quem servimos.”
 
Francis Chan, autor de Crazy Love

“Que obra maravilhosa! Aprecio o modo como Don Carson


harmoniza de maneira atraente a história de Deus escrita na Bíblia.
Esse livro é um tesouro tanto para aqueles que desejam saber o que
as Escrituras dizem quanto para aqueles de nós que a lemos,
ensinamos e vivemos já por muitos anos.”
 
Dr. Crawford W. Loritts Jr.,
palestrante, autor,
pastor da Fellowship Bible Church, Roswell

“Estou constantemente à procura de bons livros sobre as


questões da fé para alunos dedicados. Geralmente as escolhas são
poucas. O Deus presente, de D. A. Carson, oferece material proveitoso
que eu posso recomendar de coração. É desafiante, mas respeitoso,
instigador do pensamento, mas acessível, fiel à fé cristã histórica,
mas relevante para o nosso mundo que muda constantemente. Espero
que muitos alunos e professores considerem-no com seriedade.”
 
Randy Newman, Campus Crusade for Christ, autor de Questioning
Evangelism e Corner Conversations

“Se você já desejou ouvir a história de Deus, esse livro é para


você. Se você já quis estar face a face com o Deus que o criou, amou e
salvou, esse livro é para você. Se você nunca abriu a Bíblia ou
vagueou por uma igreja cristã, esse livro é especialmente para você.”
 
Sam Chan, palestrante em teologia, pregação, ética e evangelização,
Sidney Missionary and Bible College, Austrália

“Esse livro pode ser um dos mais excelentes e mais influentes


que D. A. Carson já escreveu. É uma apologia abrangente para a fé
cristã e está fundamentado na exposição cativante de importantes
passagens bíblicas, traçando a história cronológica do evangelho da
graça de Deus, com rico discernimento teológico. Relacionado
habilidosamente às objeções e às questões suscitadas pela cultura do
século XXI, esse livro inspirará e equipará todo cristão que deseja
falar de Cristo mais eficazmente; e pode ser dado a qualquer
interessado que procura descobrir o âmago da fé cristã. É o melhor
livro desse tipo que já li em muito anos.”
 
David J. Jackman,
Proclamation Trust, Londres
O Deus Presente – Encontrando seu lugar no plano de Deus
Traduzido do original em inglês The God Who is There – Finding your
place in God’s history
por D. A. Carson

 
Copyright © 2010 by D. A. Carson

Publicado originalmente em inglês por Baker Books,


Uma divisão de Baker Publishing Group
P.O Box 6287, Grand Rapids, Michigan 49516-6287, U.S.A
Copyright © 2010 Editora Fiel
Primeira Edição em Português: 2012
Primeira Edição Digital: 2015

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


Editora Fiel da Missão Evangélica Literária

P
, ,
, .

Presidente: James Richard Denham III Presidente Emérito: James


Richard Denham Jr.
Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Francisco Wellington Ferreira
Revisão: Márcia Gomes eBook: Heraldo Almeida Capa: Rubner Durais
ISBN: 978-85-8132-229-2

 
Caixa Postal, 1601
CEP 12230-971
São José dos Campos-SP
PABX.: (12) 3919-9999
www.editorafiel.com.br
Para

Ben e Lynae Peays


 

Sumário

Capa

Créditos
Depoimentos

Dedicatória

Prefácio
1-O Deus que Criou Todas as Coisas
2-O Deus que Não Destrói Rebeldes

3-O Deus que Escreve Seus Próprios Acordos


4-O Deus que Estabelece Leis

5-O Deus que Reina


6-O Deus que É Inescrutavelmente Sábio

7-O Deus que se Torna um Ser Humano


8-O Deus que Dá o Novo Nascimento

9-O Deus que Ama


10-O Deus que Morre — e Vive Novamente

11-O Deus que Declara Justo o Culpado


12-O Deus que Reúne e Transforma seu Povo
13-O Deus que É Bastante Irado
14-O Deus que Triunfa

Editora Fiel
Prefácio
S Se você não sabe nada sobre o que a Bíblia diz, o livro que agora
está em suas mãos é para você.
Se você se tornou recentemente interessado em Deus, ou na
Bíblia, ou em Jesus, mas, com franqueza, acha que grande
quantidade do material sobre o assunto é desanimador e não sabe
onde começar, esse livro é para você.
Se você tem frequentado uma igreja cristã por muitos anos, de
maneira indiferente — uma ótima atividade extracurricular e
ocasional —, mas chegou à conclusão de que realmente precisa saber
mais, esse livro é para você.
Se você tem algumas passagens da Bíblia guardadas em sua
mente, mas não tem a menor ideia de como o êxodo se relaciona com
o exílio ou por que o Novo Testamento é chamado de Novo
Testamento, esse livro é para você.
Se, em sua experiência, a Bíblia contém milhares de informações,
mas você não sabe como ela revela a Deus ou lhe apresenta Jesus de
um modo totalmente humilhante e transformador, esse livro é para
você.
Esse livro não é para todos. A pessoa que quer apenas uma breve
introdução ao cristianismo poderá achá-lo muito grande. O que tento
fazer aqui é passar pela Bíblia em 14 capítulos. Cada capítulo
focaliza uma ou mais passagens bíblicas, explicando e procurando
estabelecer conexões com o contexto maior, unindo as ideias para
mostrar como elas convergem em Jesus. No geral, pressuponho pouca
familiaridade anterior com a Bíblia. Entretanto, pressuponho que o
leitor pegará uma Bíblia e ficará com ela perto de si. No capítulo 1,
falarei como você pode manusear uma Bíblia.
Apresentei o material contido nesses capítulos em vários lugares.
No entanto, eu o apresentei recentemente como uma série de
mensagens pregadas em dois fins de semana, em Minneapolis e Saint
Paul. Essa série foi gravada em vídeo e está disponível em DVD. Cada
palestra pode ser baixada como um arquivo de vídeo gratuito de
thegospelcoalition.org. Os vídeos em série são paralelos quase exatos
aos capítulos aqui apresentados.
Meus calorosos agradecimentos àqueles que me ajudaram a
reunir essa série de mensagens. A lista dos nomes poderia ser
surpreendentemente longa. Gostaria de mencionar, em especial, Lucas
Naugle e sua equipe de vídeo, por sua competência e
profissionalismo; vários membros do ministério Desiring God, por
organizarem as palestras em Minneapolis e Saint Paul; Andy Naselli,
pela transcrição inicial; e Ben Peays, o diretor executivo da The
Gospel Coalition, por elaborar os detalhes. Sou especialmente grato
por aqueles que ouviram partes desse material em ocasiões anteriores
e fizeram perguntas inteligentes e perscrutadoras que me forçaram a
ser um pouco mais claro do que eu seria.
Tenho de dizer-lhe que não pretendo ser um observador neutro,
avaliando com frieza o que alguns considerarão como os prós e os
contras da fé cristã. Tentarei ser tão cuidadoso quanto possível em
lidar com a Bíblia, mas preciso dizer-lhe que sou um cristão. O que
tenho achado de Deus em Jesus Cristo é tão maravilhoso que estou
ansioso para que outros também o saibam — e conheçam a Deus.
Visto que, neste livro, tento explicar coisas, em vez de supor que
todos as saibam, começarei com uma pequena explicação agora
mesmo. Durante anos, tenho colocado à frente de meu nome, nos
prefácios dos livros que escrevi, a frase latina Soli Deo gloria. E a
usarei de novo aqui. A frase significa “Glória somente a Deus” ou “A
Deus somente seja a glória”. Foi uma das cinco frases cunhadas há
500 anos para resumir uma grande quantidade da verdade cristã —
nesse caso, a verdade de que tudo que fizermos deve ser feito para o
louvor de Deus, em exclusão da pompa e da autoglorificação
humana. O grande compositor Johann Sebastian Bach acrescentava
as inicias “SDG” aos manuscritos musicais de cada uma de suas
cantatas. Foi usado de modo semelhante por seu contemporâneo
George Frideric Handel (mais conhecido pelo que chamamos
comumente de “Messias de Handel”). É um pequeno reconhecimento
de algo que está na Bíblia que iremos agora ler, em 1Coríntios 10.31:
“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer,
fazei tudo para a glória de Deus”. E, se você não sabe o que
“1Coríntios” significa, continue lendo!
 
Don Carson
Soli Deo gloria
1
O Deus
que Criou Todas as Coisas
A Antes de nos engajarmos na primeira passagem da Bíblia, talvez
seja proveitoso dizer-lhe aonde chegaremos nessa série.
Houve um tempo em que, no mundo ocidental, muitas pessoas
liam a Bíblia toda e, por isso, sabiam como harmonizá-la. Mesmo
aqueles que se diziam ateístas eram, eu diria, ateístas cristãos. Isso
significa: o Deus no qual eles não acreditavam era o Deus da Bíblia.
O entendimento deles sobre Deus, que achavam inaceitável, era, em
alguma medida, moldado pela leitura da Bíblia que faziam. Contudo,
hoje, um número crescente de pessoas não conhece a Bíblia
realmente. Nunca a leram ou nunca o fizeram com atenção. Portanto,
o ponto de partida para procurar entender o que é o cristianismo e
quem é Jesus, é começar a lê-la novamente.
Há muitas maneiras pelas quais podemos apresentar o
cristianismo. Podemos, por exemplo, fazer uma breve investigação da
história da igreja cristã. Ou podemos começar analisando o que os
cristãos creem em diferentes partes do mundo. Todavia, a melhor
maneira de fazer isso é examinar os documentos de fundação do
cristianismo. Há 66 desses documentos. Eles variam em tamanho, de
uma página a pequenos livros. Foram escritos num período de 1.500
anos, em três idiomas. A maior parte deles foi escrita em hebraico.
Uma pequeníssima parte foi escrita em um idioma chamado
aramaico, semelhante ao hebraico. E a última parte foi escrita em
grego. Isso significa que todas as Bíblias atuais — as Bíblias que
temos, pegamos, lemos e valorizamos — são traduções do que foi
dado originalmente nesses idiomas.
Esses 66 documentos de fundação são muito diferentes em forma
e gênero literário: alguns são cartas; outros são oráculos de Deus;
alguns são escritos em forma de poesia; alguns são lamentos; alguns
contêm genealogias; alguns refletem intensa luta mental e espiritual
de crentes que tentam entender o que Deus está fazendo na terra;
alguns são escritos em um tipo de literatura que não usamos mais,
chamada “apocalíptica”, que emprega simbolismo admirável e
visivelmente impressionante. Além disso, esses 66 documentos,
chamados frequentemente de os “livros” da Bíblia, são
surpreendentemente variados em termos de acessibilidade: algumas
partes você pode ler com muita facilidade, enquanto outras estão
cheias de simbolismo antigo, que têm de ser explicado porque
pertencem a uma época e lugar bem diferentes do nosso.
Todos esses documentos de fundação, esses “livros”, foram
reunidos para constituir “o Livro”. Isso é o que a “Bíblia” significa.
Ela é o Livro. É o livro de documentos de fundação do cristianismo. E
nós, que somos cristãos, insistimos no fato de que Deus se revelou
supremamente nas páginas desses documentos. Visto que a maioria
das pessoas não lê os idiomas nos quais a Bíblia foi escrita
originalmente (hebraico, aramaico e grego), usam uma tradução para
o seu idioma. Existem muitas traduções na Bíblia para o Português.
Para nosso propósito, não faz muita diferença qual versão você
escolher. Normalmente usa-se a Nova Versão Internacional ou Revista
e Atualizada de João Ferreira de Almeida. Se em algum momento
houver diferença de linguagem entre as versões que sejam
significativas, gastarei um tempo explicando-as.
Nestes capítulos, descreverei o que a Bíblia diz, com a intenção
de mostrar o que o cristianismo significa e como ele é, quando
delimitado por seus próprios documentos de fundação. Algumas
vezes, os cristãos abandonam esses documentos e, assim, traem,
mesmo que involuntariamente, a herança que receberam. No entanto,
a afirmação cristã é que a Bíblia revela o Deus presente.
No primeiro capítulo, refletimos sobre “o Deus que criou todas as
coisas”. Começamos com o primeiro livro da Bíblia, chamado Gênesis.
Os livros da Bíblia estão organizados em capítulos e versículos. Isso
significa que, se você abri-la em qualquer de suas passagens, achará
uma separação marcada com um número grande (o número do
capítulo) e, em seguida, alguns números pequenos (os números dos
versículos). Assim, uma referência como “Gênesis 3.16” significa o
livro de Gênesis, capítulo 3, versículo 16. Se você não é familiarizado
com a Bíblia, a maneira mais fácil de orientar-se quanto à
organização dela é abrir as suas primeiras páginas, nas quais você
achará uma lista que contém os nomes dos livros em ordem: Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e assim por diante, até ao final — todos os
66 livros. Assim, você poderá achar a página para que localize o livro
e, quando abrir o livro, achar o número do capítulo e o do versículo.
Ao longo destes 14 capítulos, me referirei a muitos livros e a muitas
passagens específicas da Bíblia. Se você quiser olhá-los, poderá fazer
isso. Todavia, focalizaremos em uma passagem por vez e a
consideraremos — e, neste caso, será melhor você abrir sua Bíblia
naquela passagem e acompanhar-me.
Mais um pequeno detalhe. Uma olhada rápida na lista de
conteúdo da Bíblia mostrará que ela está dividida em duas partes
desiguais. Os primeiros dois terços são frequentemente chamados de
“Antigo Testamento”, que é constituído de 39 dos 66 livros. Abrange
a história desde a criação até o período de tempo anterior a Jesus. O
último terço da Bíblia é chamado de “Novo Testamento”; é
constituído dos 27 livros restantes. Começa com a história de Jesus e
se concentra resolutamente nele. Os livros do Novo Testamento
procedem, todos, dos primeiros 100 anos dessa era, embora o seu
conteúdo também aponte para o fim da História. As expressões
“Antigo Testamento” e “Novo Testamento” serão explicadas
posteriormente.
 
GÊNESIS 1-2
 
Comecemos com Gênesis 1. Talvez você queira ler estes dois
breves capítulos, porque as próximas considerações abordarão partes
deles. As linhas iniciais da Bíblia dizem isto:
 
No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém,
estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do
abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.
Disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que a luz era
boa; e fez separação entre a luz e as trevas. Chamou Deus à
luz Dia e às trevas, Noite. Houve tarde e manhã, o primeiro
dia.
Gênesis 1.1-5
 
Depois, em dias sucessivos, várias coisas foram criadas por
Deus. Ele disse: “Haja isto” ou: “Haja aquilo”. E, ocasionalmente, um
refrão é acrescentado: “E viu Deus que isso era bom” (Gn 1.10).
Assim, chegamos ao quinto dia, quando as águas ficam cheias de
seres vivos, e os pássaros voam acima da terra, no firmamento do
céu (1.20). “Criou, pois, Deus os grandes animais marinhos e todos
os seres viventes que rastejam, os quais povoavam as águas,
segundo as suas espécies; e todas as aves, segundo as suas espécies.
E viu Deus que isso era bom” (1.21).
Depois, no sexto dia: “Produza a terra seres viventes, conforme a
sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos,
segundo a sua espécie” (1.24). Outra vez, no final da descrição: “E
viu Deus que isso era bom” (1.25).
 
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que
rastejam pela terra.
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-
vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do
mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja
pela terra.
E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas
que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e
todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos
será para mantimento.
E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e
a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda
erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez.
Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom.
Houve tarde e manhã, o sexto dia.
Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu
exército.
E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que
fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha
feito.
E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele
descansou de toda a obra que, como Criador, fizera.
Gênesis 1.26-2.3
 
Em seguida, o restante do capítulo 2 oferece um tipo de
expansão referente à criação dos seres humanos, que consideraremos
no momento oportuno.
 
GÊNESIS 1-2 E A CIÊNCIA
 
Visto que grande parte da cultura do século XXI está convencida
que o pensamento científico contemporâneo é fundamentalmente
incompatível com os capítulos iniciais de Gênesis, devo dizer algo
sobre a abordagem que adoto neste livro. Há quatros coisas a
destacar:
1. Há mais ambiguidade na interpretação desses capítulos do
que alguns cristãos reconhecem. Por exemplo, alguns cristãos
presumem que os dois capítulos, lidos responsavelmente, afirmam
que o mundo não é mais do que 4.000 anos mais velho do que a
vinda de Cristo. Outros insistem que o relato desses capítulos é
totalmente compatível com vastas eras. Em específico, alguns acham
que cada “dia” representa uma era. Outros inferem que há um grande
intervalo de tempo entre os versículos 1 e 2 de Gênesis 1.
Outros veem a semana de sete dias, descrita em Gênesis, como
um artifício literário: a semana da criação está cheia de simbolismo e
se focaliza em outros pontos de interesse e não em descrever uma
semana literal.
Outros, ainda, dedicam sua energia em comparar esses dois
capítulos com outros relatos da criação, existentes no mundo antigo
em que o livro de Gênesis foi escrito. Na era babilônica, por exemplo,
houve um documento chamado Enuma Elish, descrevendo a criação
do mundo. Tem sido argumentado que o relato bíblico foi elaborado à
semelhança desses mitos babilônicos.
Em resumo, há diferenças de opinião significativas entre os
cristãos, sem mencionar aqueles que desejam anular todo o relato. O
que faremos com tudo isso?
Afirmo que o relato de Gênesis é uma mistura de gêneros que nos
dá realmente alguns detalhes históricos. Ao mesmo tempo, está cheio
de simbolismo demonstrável. Selecionar o simbólico e o não simbólico
é bastante difícil. Como lidaremos com essa tensão? Eu lhe direi logo
adiante.
2. Há mais ambiguidade nas afirmações da ciência do que
alguns cientistas reconhecem. Recentemente, os meios de
comunicação destacaram as novas aventuras literárias de pessoas
como Richard Dawkins (Deus, um Delírio), Sam Harris (A Morte da
Fé: Religião, Terror e o Futuro da Razão), Christopher Hitchens (Deus
Não É Grande: Como a Religião Envenena Tudo) e outros. Juntos, os
seus escritos constituem o que agora é chamado, algumas vezes, de
“o neo ateísmo”. De modo correspondente, respostas vigorosas, de
vários tipos, têm sido escritas. Podemos pensar, por exemplo, em R.
Albert Mohler — Ateísmo Remix; em David Bentley Hart — Atheist
Delusions: The Christian Revolution and Its Fashionable Enemies
(Ilusões Ateístas: Revolução Cristã e Seus Inimigos Modernos); em
Paul Copan e William Lane Craig, editores de Contending with
Christianity’s Critics: Answering New Atheists and Other Objectors
(Contendendo Com os Críticos do Cristianismo: Respondendo aos
Novos Ateístas e Outros Opositores); ou no ensaio de William Lane
Craig — “Five Arguments for the Existence of God” (Cinco
Argumentos em Favor da Existência de Deus), que interage em
específico com Richard Dawkins.
Todos os livros do novo ateísmo estão baseados na suposição do
materialismo filosófico: tudo que existe é matéria, energia, espaço e
tempo — nada mais. Portanto, qualquer coisa que afirme ir além
disso ou pertencer a algum domínio que não possa ser reduzido a
essas realidades tem de ser rejeitada, até mesmo zombada, como o
resquício de uma superstição que foi declarada tolice há muito tempo
e deve ser imediatamente abandonada.
Apesar disso, eu conheço pessoalmente muitos cientistas
proeminentes que são cristãos. Tenho falado em muitas
universidades. Uma das coisas interessantes que descobri foi isto: se
eu frequentasse igrejas locais nas proximidades e encontrasse alguns
dos professores universitários que pertencem a essas igrejas locais e
são crentes comprometidos, o número deles seria constituído mais de
professores de ciência, de matemática e de matérias semelhantes do
que de professores de artes, psicologia e literatura inglesa. Não é
verdade que um cientista não pode ser um cristão. Por isso, alegro-me
em recomendar-lhe alguns livros que falam sobre cientistas que são
cristãos. Por exemplo, posso recomendar um pequeno livro escrito por
Mike Poole, God and the Scientist (Deus e o Cientista), ou outro
editado por William A. Dembski, Uncommon Dissent: Intellectuals
Who Find Darwinism Unconvincing (Discordância Incomum:
Intelectuais que Acham o Darwinismo Inconvincente), ou a obra
escrita por Li Cheng, um ateísta e cientista chinês que se tornou
cristão, Song of a Wanderer: Beckoned by Eternity (Canção de um
Viandante: Atraído pela Eternidade). Está acontecendo mais debates
do que percebemos.
Se o seu entendimento das origens se enquadra no paradigma
moderno predominante, segundo o qual todo o nosso universo
desenvolveu-se de uma grande explosão que aconteceu há
aproximadamente 15 bilhões de anos, a partir de uma massa
inimaginavelmente condensada, ainda há uma pergunta óbvia a
fazer. Quer você apoie ou não a opinião de que essa grande explosão
aconteceu sob a direção de Deus, cedo ou tarde você é forçado a
perguntar: de onde surgiu aquele material altamente condensado?
É neste ponto que alguns teoristas mostram grande esperteza.
Alan Guth escreveu um livro intitulado The Inflationary Universe (O
Universo Inflacionário). Ele propõe que esse material altamente
condensado que, por fim, resultou na grande explosão surgiu do
nada. E, se você diz que a física não opera assim, ele responde: “Sim,
mas na grande explosão, há o que os físicos chamam de
singularidade”. Uma singularidade é uma ocorrência em que as leis
normais da física não operam. Isso implica que não temos acesso a
elas. Esse é o ponto de mais selvagem especulação, levando um
crítico chamado David Berlinski a escrever:
 
“Muita coisa que é publicada é simplesmente absurdo. A
derivação de algo a partir do nada, proposta por Alan Guth,
é simplesmente incandescente [esterco de cavalo]. [Ora, ele
usa outra palavra em lugar de ‘esterco’, mas quero poupar
você.] Não me diga que você deriva algo do nada, quando é
evidentemente óbvio a qualquer matemático que isso é um
absurdo impressionante”.(1)
 
Em outras palavras, há complicações no domínio da ciência que
mostram que ela não é um obstáculo ou uma barreira que
impossibilita aos cristãos, que se submetem à autoridade da
Escritura e querem realmente aprender da ciência, o diálogo
inteligente entre ambos.
3. Qualquer que seja a posição de alguém em relação aos debates
atuais sobre o design inteligente — um dos debates predominantes
em nossos dias —, há uma versão dele que acho quase inescapável.
Deixe-me explicar. Durante os últimos 25 anos, vários grupos de
pessoas — a maioria constituída de cristãos, mas há não cristãos
também — têm apontado para o que chamam de “complexidade
irredutível”, ou seja, estruturas na natureza e no ser humano tão
complexas, que seria estatisticamente impossível terem chegado à
existência por acaso. Apelar à mutação fortuita, ou à mera seleção
dos mais adaptados, ou a quaisquer outros apelos oferecidos nas
várias heranças que surgiram do darwinismo, simplesmente não faz
sentido. Sistemas vivos têm em si uma complexidade irredutível, que
torna estatisticamente impossível que todos os passos necessários,
mas altamente improváveis, tenham sido tomados ao mesmo tempo
— e, sem essa simultaneidade estatisticamente impossível, a vida
não poderia existir. O que isso sugere, argumenta-se, é a necessidade
de um designer.
Alguns argumentam em resposta — muitos incrédulos e alguns
crentes: “Sim, sim, mas esses desenvolvimentos vantajosos,
simultâneos e improváveis podem apenas significar que não
entendemos os mecanismos. Se começarmos a inserir Deus em tudo
que não pudermos explicar, acabaremos colocando Deus nos vazios
de nossa ignorância, e, à medida que aprendermos mais, os vazios se
encherão, e Deus será retirado. Não precisamos de um Deus dos
vazios. Um Deus dos vazios não é apenas péssima ciência, é péssima
teologia”. E assim o debate continua.
Qualquer que seja a sua posição nesse debate — e a literatura já
é imensa —, acho interessante o fato de muitos escritores, que não
afirmam ser cristãos, falarem, às vezes, sobre a sua admiração da
complexidade inimaginável e do esplendor do universo — uma
admiração que chega ao nível do que pode ser chamado de
“adoração”. Por exemplo, penso no livro fascinante Just Six Numbers:
The Deep Forces That Shape the Universe (Apenas Seis Números: As
Forças Profundas que Moldam o Universo), escrito por Martin J. Rees.
Se as realidades físicas que esses números descrevem gerassem um
número um pouco maior ou um número um pouco menor, o universo,
como o conhecemos, não poderia existir. Por exemplo, tem de haver a
distância exata entre uma partícula e outra no nível subatômico para
dar equilíbrio às várias forças em andamento. Apenas seis números,
tão rigidamente fixos em seus limites maiores e menores, tornam
possível o universo físico. Como isso aconteceu? Outros escritores
descrevem a extraordinária complexidade do globo ocular e, embora
sejam abertamente materialistas filosóficos em sua orientação, eles
são tão impressionados pela complexidade e maravilha de tudo, que
começam a tratar a natureza como um deus.
À luz de um ponto de vista cristão, os instintos desses cientistas
são muito bons, exceto que há um Deus que se revelou na glória do
que chamamos natureza. Não tenho certeza se é correto argumentar
com base na complexidade e glória dos seis números ou na rigidez
das penas da cauda do pica-pau ou na complexidade irredutível de
uma célula ou do globo ocular, para chegar à conclusão que Deus
existe. Afinal de contas, Deus não é apenas uma inferência, o fim de
um argumento, a conclusão obtida depois de harmonizar
inteligentemente as evidências. Todavia, se você começa com Deus, o
testemunho de sua grandeza em tudo que vemos ao nosso redor é
extasiante. É necessário um grande desejo por parte do mais cínico
dos cientistas para, ao invés de enxergar isso, apenas dizer: “Ora,
isso é apenas física. Parem de admirá-lo. Não façam isso. Não há
nenhum plano. São apenas moléculas se encontrando com
moléculas”.
4. Por último, deixe-me dizer de onde vim, enquanto
consideramos estes textos. Cerca de 30 anos atrás, um filósofo
cristão chamado Francis Schaffer escreveu um livrete intitulado
Genesis in Space and Time: The Flow of Biblical History (Gênesis em
Espaço e Tempo: O Fluxo da História Bíblica). Ele argumenta que
uma das maneiras de minimizar alguns dos intermináveis debates
que obscurecem as discussões sobre as origens é perguntar: “Qual é o
mínimo que Gênesis 1 e os capítulos seguintes devem estar dizendo
para que o resto da Bíblia faça sentido?” Portanto, eu me guardarei
de dizer-lhe tudo que penso que esses capítulos dizem. Certamente,
isso seria muito extenso. O que desejo sugerir-lhe é que, embora os
debates sobre o simbolismo e o gênero literário de Genesis 1-2 sejam
complexos e a relação deles com a ciência contemporânea seja
bastante discutida, há um mínimo irredutível que esses capítulos
dizem para que a Bíblia tenha coerência. E isso é o que mostrarei
para você nas páginas seguintes.
Então, o que Gênesis 1-2 nos diz?
 
ALGUMAS COISAS SOBRE DEUS
 
1. Deus simplesmente existe. A Bíblia não começa com um
grande conjunto de argumentos para provar a existência de Deus.
Não começa com uma abordagem profunda, nem com algum tipo de
analogia adjacente ou algo semelhante. A Bíblia apenas diz: “No
princípio... Deus” (Gn 1.1). Ora, se os seres humanos fossem o teste
de tudo, isso não faria sentido porque, neste caso, teríamos o direito
de assentar-nos e julgar sobre a probabilidade da existência de Deus,
avaliarmos as evidências e sairmos com certa possibilidade de que
talvez exista algum tipo de deus. Assim, nos tornaríamos juízes de
Deus. Mas o Deus da Bíblia não é assim. A Bíblia começa de maneira
simples, porém categórica: “No princípio... Deus”. Ele existe. Ele não
é o objeto que nós avaliamos. Ele é o Criador que nos fez, e isso muda
toda a dinâmica.
Essa maneira de ver a Deus está ligada a alguns
desenvolvimentos no pensamento ocidental que devemos apreciar. Na
primeira parte da Renascença (séculos XIV a XVII) e no tempo da
Reforma (século XVI), a maioria das pessoas no mundo ocidental
pressupunha que Deus existe e sabe todas as coisas. Os seres
humanos existem; e, porque Deus sabe todas as coisas, o que nós
sabemos tem de ser necessariamente um pequeno subconjunto do que
ele sabe. Em outras palavras, todo o nosso conhecimento — porque
Deus sabe todas as coisas — tem de ser um subconjunto do que ele
sabe exaustiva e perfeitamente. Nessa maneira de olhar a realidade,
todo o nosso conhecimento tem de vir a nós, em algum sentido, por
Deus revelar o que ele sabe — por Deus revelá-lo na natureza, pelo
seu Espírito ou pela Bíblia. Isso simplesmente era o pressuposto.
No entanto, a primeira metade dos anos 1600 testemunhou o
surgimento do que é agora chamado de pensamento cartesiano (sob a
influência de René Descartes e aqueles que o seguiram). A maneira
tradicional de pensar sobre o conhecimento mudou. Mais e mais
pessoas basearam seu conhecimento em um axioma que Descartes
tornou popular: “Eu penso, logo, existo”. Hoje, todo aluno de
primeiro ano de filosofia conhece o axioma de Descartes. O próprio
Descartes pensava que esse era um fundamento para todo o
conhecimento humano. Afinal de contas, se você está pensando, não
pode negar sua própria existência; o fato de você estar pensando
mostra que você existe. Descartes procurava um fundamento sobre o
qual cristãos, ateístas, mulçumanos, secularistas e espiritualistas
pudessem concordar e que fosse indisputável. A partir desse
fundamento e de outras abordagens, ele criou, gradualmente, todo
um sistema de pensamento para tentar convencer as pessoas a se
tornarem Católicos Romanos.
Observe, porém, como o axioma funciona: “Eu penso, logo,
existo”. Duzentos anos antes, nenhum cristão teria dito isso tão
facilmente, porque a existência de Deus e o conhecimento absoluto de
Deus eram pressupostos. Nossa existência era dependente dele, e
nosso conhecimento era um minúsculo subconjunto do conhecimento
de Deus. Começar com Deus, e não com “Eu” ou “Eu penso, logo,
existo”, era amplamente considerado apropriado. Se existimos, é por
causa do poder de Deus. Nosso conhecimento e nossa existência são
dependentes de Deus. Mas, deste lado do pensamento cartesiano,
começamos com “Eu”. Começo comigo mesmo. E isso me coloca na
posição de avaliar não somente o mundo, mas também a moral, a
história e Deus, de uma maneira que Deus se torna, no máximo, a
inferência de meu estudo. Isso muda tudo.
Entretanto, a Bíblia não segue essa maneira de pensar. Deus
simplesmente existe.
2. Deus criou tudo que não é Deus. Ele criou tudo que existe. Isso
estabelece uma distinção irredutível entre o Criador e a criatura. Deus
não é uma criatura; por correlação, nesse sentido absoluto, não
somos criadores. Se alguém perguntasse: “Sim, mas como Deus
surgiu?”, a resposta da Bíblia é que a existência de Deus não depende
de nada, nem de ninguém. A minha existência depende dele. A
existência de Deus é autoexistência. Deus não tem causa. Ele apenas
é. Ele sempre foi. Por contraste, todas as outras coisas no universo
começaram a existir em algum lugar, quer em uma grande explosão,
quer em concepção humana. Deus criou tudo. Isso significa que tudo
que existe no universo, à parte de Deus, é dependente de Deus.
3. Há apenas um Deus. Isso se evidencia poderosamente na
Bíblia. Deus falou claramente: “Haja isto”, “Haja aquilo”, “Deus fez
tudo”, “Viu Deus que era muito bom”. Depois, a Bíblia enfatiza essa
verdade repetidas vezes. Por exemplo, nos versículos chamados
Shemá que os judeus recitam até hoje (e estão no quinto livro da
Bíblia: Deuteronômio 6), lemos as seguintes palavras: “Ouve, Israel,
o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6.4).(2) Há apenas um
único Deus.
No entanto, mesmo neste primeiro capítulo da Bíblia há um
indício de complexidade na unicidade de Deus. É apenas um indício.
É difícil saber exatamente o que esse indício significa, mas ele é
impressionante. No relato da criação, lemos: “Deus disse isto”, “Deus
disse aquilo”, “Disse também Deus”. Porém, quando chegamos ao
relato sobre os seres humanos, lemos: “Também disse Deus: Façamos
o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26,
ênfase acrescentada). Isso poderia ser um “nós real”. Se você ouve a
BBC, talvez já ouviu Sua Majestade, a rainha Elizabeth II, dizendo
“nós” e “nos”, referindo-se claramente a si mesma. Até os quadrinhos
cômicos usam essa ideia e retratam a rainha dizendo: “Nós não nos
divertimos”. A Bíblia poderia estar usando um tipo de “nós” editorial
nessa passagem. Mas é interessante que ele seja apresentado nesse
ponto, quando os seres humanos são criados, e que o texto prossiga
falando na primeira pessoa do plural, não somente quando Deus diz:
“Façamos”, mas também nas expressões “à nossa imagem, conforme
a nossa semelhança”. Não ousaremos argumentar muito sobre esses
detalhes. Todavia, isso é uma linguagem estranha, especialmente
porque a Bíblia insiste, frequentemente, que há um único Deus e que
Ele é um só. Isso poderia ser um indício que esse único Deus é um ser
complexo, uma unidade complexa? Isso é algo que atrairá nossa
atenção repetidas vezes à medida que prosseguimos em estudar a
Bíblia.
Não importa como entendemos o plural, a Bíblia diz nessa
passagem que Deus fez criaturas que portam a sua imagem. Leiamos
novamente Gênesis 1.26-27:
 
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que
rastejam pela terra.
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os [plural] criou.
 
Retornaremos em breve ao que pode significar ser feito à imagem
de Deus.
4. Deus é um Deus que fala. A primeira ação descrita sob o título
geral “criou Deus os céus e a terra” é esta: “Disse Deus: Haja luz”
(1.3). Suponho que alguém possa imaginar que isso seja uma
maneira metafórica de afirmar que Deus trouxe os céus e a terra à
existência pelo seu poder e que ele não tenha proferido realmente
nenhuma palavra. A expressão é metafórica. Bem, poderia ser. Exceto
que, na criação de Adão e Eva, Deus lhes falou realmente e lhes deu
algumas responsabilidades: “Isto é o que vocês devem fazer. É assim
que o casamento deve ser”. Deus falou com Adão e Eva. Portanto, o
Deus da Bíblia, apresentado no primeiro capítulo, não é um
“impulsionador insensível” e abstrato, um espírito impossível de
definir, um fundamento de todos os seres, uma experiência mística.
Ele tem personalidade e ousa se revelar em palavras que os seres
humanos entendem. Esse retrato de Deus aparece constantemente em
toda a Bíblia. Embora ele seja grande e transcendente, ele é um Deus
que fala.
5. Tudo que Deus faz é bom — muito bom. À medida que o relato
prossegue, você percebe que não há em Genesis 1 e 2 qualquer sinal
de morte, decadência, carnificina, malícia, ódio, rivalidade,
arrogância, orgulho ou destruição. Não há qualquer sinal dessas
coisas. Tudo é muito bom. Apesar de toda a dificuldade que temos
para entender a soberania de Deus em um mundo em que há
sofrimento e mal — retornaremos a esses temas à medida que
avançamos no estudo da Bíblia — a Bíblia insiste que Deus é bom, e
as bases dessa afirmação se acham já no primeiro capítulo de
Gênesis.
6. Deus termina a sua obra de criação e descansa. Isso significa:
Deus para de fazer sua obra de criação. Quando a Bíblia nos diz que
Deus descansou de sua obra, isso não significa que Deus disse:
“Puxa! Estou cansado! Fico feliz por ter terminado. Conseguirei
sentar agora e pôr os pés para cima”. Pelo contrário, isso é uma má
compreensão do texto. Deus chega ao final de sua semana de criação
— não importa como entendamos esta “semana” — e, no fim de sua
obra de criação, ele para. Ele descansa e designa o sétimo dia de uma
maneira especial, uma maneira que consideraremos depois.
7. A criação proclama a glória e a grandeza de Deus. Outro
aspecto da automanifestação de Deus, nesses primeiros capítulos da
Bíblia, está apenas implícito no relato, mas é elucidado nos capítulos
posteriores da Bíblia. Quando você segura um Stradivarius em suas
mãos, quanto mais que você sabe a respeito da história de fabricação
do violino, mais impressionado você fica com o artesão que fez o
instrumento. De modo semelhante, quanto mais sabemos sobre as
coisas criadas — sua vastidão, sua complexidade, sua física, a
habilidade de um pequeno beija-flor em viajar 2.400 quilômetros, em
migração, e retornar para a mesma árvore, a amplitude desde as
dimensões inimagináveis de um universo que se expande até a
pequenez das partículas subatômicas, com suas meias-vidas
incrivelmente curtas — tanto mais a nossa reação deve ser de
adoração e temor genuínos diante do Criador. Essa reação aparece
muitas vezes na Bíblia. Por exemplo:
 
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento
anuncia as obras das suas mãos.
Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela
conhecimento a outra noite.
Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve
nenhum som;
no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as
suas palavras, até aos confins do mundo.
Salmos 19.1-4
 
Há algumas coisas sobre Deus que esses dois capítulos iniciais
dizem com clareza. Eles também nos dizem algumas coisas sobre nós
mesmos.
 
ALGUMAS COISAS SOBRE OS SERES HUMANOS
 
1. Somos criados à imagem de Deus. Visto que os seres humanos
são criaturas, não é surpreendente que tenhamos vários atributos em
comum com outras criaturas. Sabemos pela genética. Que
porcentagem de meus genes é compartilhada com um chimpanzé ou
com um leitão? Quando um leitão morre e volta ao pó, ele faz
exatamente o que eu faço: eu também volto ao pó. Você e eu somos
parte dessa ordem criada.
Se continuar enfatizando somente a continuidade que os seres
humanos compartilham com os animais, por fim você acabará
chegando ao tipo de posição que Peter Singer, da Universidade de
Princeton, adota. Ele argumenta que toda a vida animal deve ter,
mais ou menos, exatamente o mesmo tipo de direitos que os seres
humanos têm; os seres humanos não são intrinsecamente mais
importantes do que os golfinhos ou os chipanzés. Afinal de contas,
em termos de genética, somos quase o mesmo material. Somos seres
físicos; os animais são seres físicos. Eles nascem, vivem e morrem;
nós também nascemos, vivemos e morremos. Mas Gênesis não vê as
coisas dessa maneira. Gênesis insiste que os seres humanos, e
somente os seres humanos, são feitos à imagem de Deus.
Como você pode imaginar, essa expressão “imagem de Deus” tem
gerado, através dos séculos, discussão interminável. O que significa
ser feito “à imagem de Deus”? Filósofos e teólogos têm escrito livros
enormes dizendo: “Tem algo a ver com a facilidade de linguagem, ou
com nossa autoidentidade, nossos processos de raciocínio, amor que
pode ser altruísta, nossa capacidade de conhecer a Deus”, e assim
por diante. Mas, se você estivesse lendo a Bíblia pela primeira vez e
não soubesse nada sobre esses debates, acho que sua maneira de
entender a expressão “imagem de Deus” seria um pouco mais
simples. Ela se torna um tipo de conceito original que se completa
enquanto você lê a Bíblia. O ensino nessa primeira conjuntura é que,
como portadores da imagem de Deus, refletimos a ele. As maneiras
pelas quais refletimos a Deus se manifestarão à medida que a Bíblia
se abrir para nós.
De que maneiras os seres humanos começam a refletir a Deus,
nesse primeiro capítulo? Deus é um Deus que fala. Ele fala com os
seres humanos, e estes falam de volta com Deus. Existem atributos
comuns de discurso, proposições e conhecimento que podem não
somente ser sentidos, mas também articulados.
Há também algo de criatividade. É claro que nossa criatividade
não é semelhante à de Deus. Neste capítulo, Deus faz coisas; ele cria
as coisas a partir do nada. Não podemos fazer isso. Mas, implantada
no ser humano, como um reflexo de Deus, há certa criatividade.
Trabalhamos com as mãos. Minha esposa faz trabalho espetacular
com bordado, seda e linha metálica; ela faz colchas e vestidos para
meninas. Minha filha é uma cozinheira inventiva e criativa. Eu gosto
de trabalhar com madeira. Alguns escrevem. Alguns são
notavelmente criativos no uso de suas capacidades físicas. Eu tenho
um filho que estuda quase todo novo desafio físico que surge e se
envolve nele. Ele é quase um artista quando aprende a mergulhar, ou
explorar cavernas, ou qualquer que seja o novo desafio. De onde vem
esse impulso criativo? Em geral, a criatividade não é uma
característica de elefantes, viúvas-negras ou rochas.
Os seres humanos têm a capacidade de trabalhar. Deus é
retratado como envolvido no trabalho na semana da criação, que
termina com “descanso”, quando ele chega ao final da obra. O que
Deus dá ao homem e à mulher são certas responsabilidades de
trabalhar este mundo e cuidar do jardim. O trabalho é apresentado
em toda a Escritura como algo intrinsecamente honrável. Os cristãos
não devem chegar ao ponto de achar que trabalhar como operário ou
secretária ou como motorista de ônibus ou fazer pesquisa em química
seja algo “secular”, separado de Deus. Não devemos dizer: “Trabalho
como devo para pagar as contas, e o domingo é o dia em que devo ser
espiritual. Na segunda, eu retorno para tentar desenvolver um novo
remédio que combaterá o câncer. Isso é trabalho e nada tem a ver com
Deus”. Pelo contrário, se este é o universo de Deus, e se fomos criados
à imagem de Deus, então, quando trabalhamos, nosso trabalho
reflete a Deus, sendo oferecido a ele com integridade e gratidão. O
trabalho é significativo porque somos criados à imagem de Deus. O
trabalho realizado desta maneira muda nossa perspectiva sobre quem
somos.
Temos de reconhecer que há diferenças intransponíveis entre
Deus e nós. Já vimos que somente Deus é autoexistente. Nós não
somos, pois, como todas as demais coisas da criação, somos
criaturas dependentes. Deus nunca nos diz que sejamos algo que
somos intrinsecamente incapazes de ser. Ele nunca nos diz: “Sejam
autoexistentes, porque eu sou autoexistente”. Quando a Bíblia
descreve a onipotência de Deus — ou seja, seu poder ilimitado —, ele
não diz: “Sejam onipotentes, porque eu sou onipotente”. No entanto,
em muitos domínios, precisamente porque somos criados à imagem
de Deus, devemos refletir a ele. Essa é a razão por que, depois, Deus
nos dirá na Bíblia: “Sede santos, porque eu sou santo”. (Veremos
posteriormente o que é santidade.) Devemos refletir a Deus de certas
maneiras. Nestes capítulos de Gênesis, Deus é apresentado não
somente como Criador, mas também como o governante soberano de
tudo. E, em uma pequena medida, a função de Deus como o
governante soberano deve ser refletida pelos seres humanos criados,
o homem e a mulher, pois eles foram encarregados do resto da ordem
criada — não para destruí-la, explorá-la ou tornarem-se
economicamente egoístas com ela, mas para serem os mordomos de
Deus sobre o mundo excelente que ele criou. Fomos criados à imagem
de Deus e colocados sob a responsabilidade de cuidar da criação.
Quando fazemos isso, refletimos algo de Deus.
Até a capacidade de conhecer a Deus, deleitar-se nele, é
maravilhosa. Peter Williams escreveu um livro intitulado I Wish I
Could Believe in Meaning: A Response to Nihilism (Gostaria de
Acreditar em Significado: Uma Resposta ao Niilismo). O niilismo é a
opinião de que a vida não tem significado intrínseco ou objetivo.
Muitos caminhos serpeiam em direção ao niilismo, mas nenhum é
mais sedutor do que aquele que diz que os seres humanos não são
nada além de uma coleção de moléculas arranjadas de modo útil,
seres que surgiram por puro acaso da sopa primordial. Onde está o
significado em seres desse tipo? Do ponto de vista da Bíblia, o
significado da vida está vinculado ao fato de sermos criados por
Deus, à sua imagem, e para Deus, com um destino eterno. Isso muda
radicalmente nossa percepção do que os seres humanos são. Do
contrário, andamos em direção ao que um filósofo chamou de
“incoerência autorreferencial”. O que ele pretendia dizer com essa
expressão é que nos comparamos a nós mesmos. Não temos padrões
externos pelos quais alguma coisa deva ser julgada; não podemos
achar uma âncora para nosso ser, em nenhum lugar. Por isso,
mergulhamos em prazeres temporários, ou na busca de dinheiro, ou
na autopromoção, mas não temos uma âncora que nos firma e nos
dá um significado que esteja além de nós mesmos. Não há nenhuma
escala.
Os seres humanos foram criados à imagem de Deus, e, como
portadores dessa imagem, devem trabalhar, dominar e servir como
mordomos de Deus; devem ser abundantemente centrados em Deus.
2. Os seres humanos foram criados macho e fêmea. Em Gênesis
1, que contém o primeiro relato da criação, lemos: “Criou Deus, pois,
o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher
os criou” (Gn 1.27). Mas, em Gênesis 2, que expande a criação dos
seres humanos, tanto o que eles têm em comum como as suas
diferenças são expostas:
 
Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja
só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea
Havendo, pois, o SENHOR Deus formado da terra todos os
animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao
homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o
homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome
deles.
Deu nome o homem a todos os animais domésticos, às aves
dos céus e a todos os animais selváticos; para o homem,
todavia, não se achava uma auxiliadora que lhe fosse
idônea.
Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e
este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o
lugar com carne.
E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem,
transformou-a numa mulher e lha trouxe. E disse o homem:
Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne;
chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada.
Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher,
tornando-se os dois uma só carne.
Gênesis 2.18-24
 
Assim, enquanto os capítulos iniciais de Gênesis insistem que os
seres humanos, macho e fêmea, foram criados igualmente à imagem
de Deus, eles também insistem que a mulher foi criada como uma
auxiliadora. Mas homem e mulher se ajuntaram em uma união, uma
união sexual, uma união de casamento. Um padrão é estabelecido;
Gênesis 2 nos diz que, geração após geração, o homem deixará sua
família, a mulher deixará a sua família, e os dois estabelecerão um
novo relacionamento, um novo casamento: os dois se tornarão um.
Essa é uma figura do casamento bem diferente da que alguns
outros oferecem. O homem e a mulher não são apenas animais que
fazem sexo. Isso não é um quadro, digamos, de um harém do antigo
Oriente Próximo, no qual o mais poderoso monarca possui a maioria
das mulheres, e cada mulher não é nada mais do que uma
propriedade, um ser definitiva e intrinsecamente inferior. No quadro
bíblico, a mulher procede do homem. Ela é um com o homem. É
diferente — ela não é idêntica ao homem, é sua companheira sexual e
emocional, para que no casamento os dois se tornem “uma só carne”.
Mas neste quadro há uma visão do casamento que, em última
análise, se torna um modelo do relacionamento esclarecido em
capítulos posteriores da Bíblia.
3. O homem e a mulher eram inocentes. Lemos no último
versículo de Gênesis 2: “Ora, um e outro, o homem e sua mulher,
estavam nus e não se envergonhavam” (v. 25). Tenho certeza que
você já viu alguns quadrinhos de Adão e Eva no jardim, com uma
pequena serpente que desce por um galho, e uma maçã pendurada.
Nesses quadrinhos, não querendo mostrá-los indecentes, o cabelo da
mulher cobre apropriadamente os seus seios, e folhas de figueira e
outros galhos cobrem o homem nos lugares apropriadas. Algum
comentário engraçado é acrescentado nos quadrinhos, e todos nós
rimos. Mas o que a nudez significa neste final de Gênesis 2?
Você sabe que há uma teoria para as colônias de nudistas? Sim,
eu sei que algumas colônias de nudismo são apenas uma desculpa
para orgia sexual. Mas as melhores — se eu puder falar em colônias
de nudismo em uma escala moral — têm certa filosofia vinculada a
elas. A ideia é que, se você puder ser completamente aberto e
transparente em uma parte de sua vida, então, mais cedo ou mais
tarde, você poderá fomentar abertura e transparência em todas as
partes de sua vida. Portanto, começamos com transparência física —
abertura total, nudez total — e talvez ao longo do caminho nos
tornemos, todos, pessoas maravilhosamente abertas, cândidas,
honestas, cuidadosas, amorosas. Isso nunca funciona. Mas é a
teoria. A razão por que isso nunca funciona é que temos tantas
coisas do que nos envergonharmos. Há tanto que precisamos
esconder.
No entanto, nesse relato, Adão e Eva nada tinham a esconder e,
consequentemente, nada do que se envergonhar. Digam-me, homens,
vocês gostariam que sua mãe, esposa ou filha soubesse tudo que
vocês pensam ou sentem? E vocês, mulheres, gostariam que seu pai,
esposo ou filho soubesse tudo que vocês pensam ou sentem?
Escondemos todos os tipos de coisas, não escondemos? Por quê? Por
que temos muito do que nos envergonhar. O que seria nunca ter
contado uma mentira? Nunca ter nutrido amargura? Nunca ter
sucumbido a uma paixão dominante? Nunca ter sido tomado por
ódio? Nunca ter se enchido de arrogância? Mas, pelo contrário,
sempre amar a Deus com o coração, alma, mente e força e o próximo
como a si mesmo? Então, não teríamos nada do que nos envergonhar.
Poderíamos nos permitir andar nus. Não é surpreendente que a
palavra “Éden” signifique “deleite”.
 
ALGUMAS COISAS A RESPEITO DE COMO GENESIS 1-2
SE ENCAIXA EM TODA A BÍBLIA E EM NOSSA VIDA
 
Aqui, eu apenas instigarei o assunto. Estes poucos parágrafos
nos preparam para algumas das coisas elucidadas no resto do livro.
1. Estes dois capítulos da Bíblia constituem o contexto
necessário para Genesis 3. Sem entendermos que tudo era muito
bom, não podemos compreender plenamente o que acontece no
capítulo seguinte de Gênesis, que descreve o que às vezes é chamado
de “a Queda”, o começo de uma grande rebelião.
2. A doutrina da criação aparece novamente na Bíblia, em
passagens escritas depois da vinda de Jesus. Todavia, essa noção da
criação é transformada: o que é prometido é uma nova criação e, em
última análise, um novo céu e uma nova terra. A visão bíblica
quanto ao futuro olha para trás, para a velha criação, que sucumbiu
tragicamente à rebelião, ao ódio, à idolatria e ao pecado. É
necessário que Deus realize um novo ato criador, comece outra vez,
crie de novo pessoas, crie uma nova existência. Em alguns escritos do
Novo Testamento, essa perspectiva é chamada de “nova criação”.
Avançamos em direção a um novo céu e uma nova terra, o lar dos
justos. Examinaremos essa perspectiva mais atentamente no último
capítulo desse livro. No entanto, a terminologia para ela é extraída
de Gênesis 1 e 2.
De modo semelhante, Adão é retratado como o ancestral da raça
humana, nossa raça, que cai em corrupção, decadência e idolatria.
Mais tarde, Jesus é chamado de “o segundo Adão” — ou seja, Jesus
começa outra humanidade, uma nova raça, que opera em princípios
bem diferentes. Os cristãos têm de pertencer a este segundo Adão,
pois, do contrário, tudo que a Bíblia fala sobre “o evangelho”, as
boas-novas, não faz sentido. Por igual modo, o tema de descanso e o
tema de jardim também continuarão, como veremos.
3. Acima de tudo, essa visão molda a nossa cosmovisão. Por
exemplo, no politeísmo pagão (ou seja, em concepções do mundo em
que há muitos deuses), os deuses têm diferentes domínios de
atividade: há um deus ou deusa da guerra, um deus do mar, um deus
do amor e assim por diante. Na cosmovisão bíblica, há um único
Deus, que criou todas as coisas. Isso difere, por exemplo, do
hedonismo, em que a razão da existência humana é, em termos
simples, que a pessoa ache tanto prazer quanto lhe for possível, por
todos os meios possíveis, antes de morrer. Mas, na cosmovisão
bíblica, a busca do prazer está vinculada ao próprio Deus. Fomos
criados originalmente por Deus e para Deus, e o melhor e mais
elevado prazer é uma centralidade em Deus que os hedonistas
seculares não podem sequer imaginar. Os prazeres dos hedonistas são
muito efêmeros, insignificantes e limitados.
Alternativamente, o panteísmo nos ensina que todo o mundo e a
divindade material são parte da mesma coisa. Não há diferença.
Portanto, eu sou deus, e você é deus, e todos nós estamos juntos
nesta existência divina. “Eu sou realmente uma pessoa bastante
espiritual, você sabe, e para mim é a vibração dos cristais que me
capacita a estar em harmonia com o universo e me faz sentir
transcendentemente outro”. Isso é um modelo de referência que
muitos adotam. Mas não é a cosmovisão da Bíblia. Deus criou todas
as coisas, e nós, seres humanos, que fomos criados à imagem de
Deus, achamos nossa maior realização, propósito, felicidade e
integridade em estarmos relacionados corretamente com Deus.
4. O que a Bíblia diz sobre a criação é o que fundamenta a noção
de prestação de contas e de responsabilidade humana. Por que
devemos obedecer a Deus? Se ele quer me guiar em direções das quais
não gosto, quem é ele para me dizer o que fazer? Com certeza, sou
livre para escolher outros deuses ou inventar meu próprio deus. Posso
cantar a canção popular: “Eu o fiz do meu jeito”. Quem é Deus para
me dar ordens? Eu o desafio.
No entanto, se Deus me criou, se Deus me planejou, eu lhe devo
tudo — vida, respiração e tudo mais. E, se não vejo as coisas dessa
maneira, estou em desarmonia com o meu Criador. Estou em
desavença com aquele que me planejou e com o que Deus tencionou
que eu fosse. Estou lutando contra mim mesmo e contra o Deus que
me criou. Toda a responsabilidade e prestação de contas humana
diante de Deus estão fundamentadas, em primeira instância, na
criação. Deus nos criou, e somos devedores a ele. Se não
reconhecemos esta verdade simples, então, de acordo com a Bíblia,
essa cegueira é, em si mesma, uma evidência de quão alienados
estamos de Deus. É para o nosso bem que reconhecemos isso, não
porque ele é o intimidador supremo, e sim porque sem ele nem mesmo
estaríamos aqui. E certamente teremos de prestar contas a ele.
Agora estamos prontos para a análise bíblica do que está errado
conosco.

(1) Ron Rosenbaum, “Is the Big Bang Just a Big Hoax? David Berlinski Challenges
Everyone”, New York Observer, June 7, 1998. Este artigo que oferece um resumo sobre
Berlinski e sua obra pode ser achada online em: http://www.observer.com/node/40610.
(2) Às vezes, no Antigo Testamento, ou seja, nos primeiros dois terços da Bíblia, a palavra
“Senhor” se acha em letras maiúsculas, assim: SENHOR. Quando isso acontece, como na
sentença citada, há uma palavra hebraica específica por trás dela, um nome de Deus. O
nome significa algo como “Eu sou” ou “Eu sou o que sou”.
2
O Deus
que Não Destrói Rebeldes
A A passagem da Bíblia que focalizaremos aqui é Gênesis 3. No
final do capítulo anterior, eu disse que Gênesis 1-2 monta o palco
para aquilo que termina mal. Em termos gerais, isso está correto. O
que eu não disse é que há em Gênesis 2 um elemento específico que
monta o palco para Gênesis 3 — ou seja, Gênesis 2.17 relata uma
proibição que Deus deu a Adão e Eva: “Mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que
dela comeres, certamente morrerás.” Eles deviam trabalhar no jardim
e gozar de todos os seus frutos. Era um deleite perfeito. Mas havia
uma proibição: não deviam comer da árvore do conhecimento do bem
e do mal. E, se comessem dela, morreriam.
Consideraremos, em seu devido lugar, por que Deus emitiu a
proibição. Isso não era algo que preparava o casal para o fracasso?
Em qualquer caso, sem notarmos essa proibição, talvez não
possamos entender Gênesis 3.
Seguiremos tão de perto o texto bíblico, que vale a pena citá-lo
aqui. Em seguida, oferecei alguns comentários introdutórios. Antes
de mostrar como o material do primeiro livro da Bíblia é totalmente
essencial a qualquer entendimento correto de toda a Bíblia, explicarei
Gênesis 3 em quatro passos, e mostrarei por que isso é importante
para você e para mim.
 
Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos
que o SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que
Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?
Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim
podemos comer,
mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse
Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não
morrais.
Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos
abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e
do mal.
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer,
agradável aos olhos e árvore desejável para dar
entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao
marido, e ele comeu.
Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que
estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas
para si.
Quando ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no
jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do
SENHOR Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do
jardim.
E chamou o SENHOR Deus ao homem e lhe perguntou: Onde
estás?
Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava
nu, tive medo, e me escondi.
Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu?
Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?
Então, disse o homem: A mulher que me deste por esposa,
ela me deu da árvore, e eu comi.
Disse o SENHOR Deus à mulher: Que é isso que fizeste?
Respondeu a mulher: A serpente me enganou, e eu comi.
Então, o SENHOR Deus disse à serpente: Visto que isso
fizeste, maldita és entre todos os animais domésticos e o és
entre todos os animais selváticos; rastejarás sobre o teu
ventre e comerás pó todos os dias da tua vida.
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência
e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás
o calcanhar.
E à mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da
tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu
desejo será para o teu marido, e ele te governará.
E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e
comeste da árvore que eu te ordenara não comesses,
maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o
sustento durante os dias de tua vida.
Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a
erva do campo.
No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra,
pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.
E deu o homem o nome de Eva a sua mulher, por ser a mãe
de todos os seres humanos.
Fez o SENHOR Deus vestimenta de peles para Adão e sua
mulher e os vestiu.
Então, disse o SENHOR Deus: Eis que o homem se tornou
como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que
não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e
coma, e viva eternamente.
O SENHOR Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a
fim de lavrar a terra de que fora tomado.
E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim
do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para
guardar o caminho da árvore da vida.
Gênesis 3
 
ENTENDENDO GÊNESIS 3
 
Como entendemos este capítulo? Em outra parte da Bíblia —
uma parte que não poderemos explorar em detalhes — existe o relato
sobre o rei Davi seduzindo uma mulher vizinha, e, quando ele é
apanhado, arranja meios de matar o marido da mulher (ver 2Sm 11).
Nesse caso, você tem um homem poderoso (Davi), uma mulher fraca
(a mulher do homem) e algo que é desejado (a mulher).
O profeta Natã foi enviado por Deus para confrontar o rei Davi
quanto ao seu adultério e assassinato sagazmente ocultado (ver 2Sm
12). Pelo fato do rei ser um autocrata, o profeta se dirigiu a ele com
certa medida de cuidado e, por isso, começou com uma parábola. Ele
disse: “Vossa Majestade, algo muito triste aconteceu em nosso país.
Há um fazendeiro muito rico, que tem rebanhos e gado, tão
numerosos que o senhor nem acredita. Ao lado dele, vive um
agricultor pobre, que possui apenas uma ovelhinha — e não a possui
mais. Algumas pessoas chegaram para visitar o homem rico. E, para
preparar o banquete para os visitantes, o fazendeiro rico matou a
única ovelhinha do agricultor pobre”. Agora, temos um homem muito
poderoso (o fazendeiro rico), um homem fraco (o agricultor pobre) e
algo desejado (a única ovelha desse agricultor). A parábola tem o
propósito de demonstrar a traição de Davi. Inicialmente, Davi não viu
a conexão, mas, por fim, percebeu a ligação. Ele foi denunciado e
esmagado por sua corrupção idólatra.
É fácil perceber por que Natã contou a parábola e descobrir a
intenção dela: estabelecer uma situação análoga, contando algo
semelhante ao que acontecera, tendo os mesmos elementos
essenciais: um homem rico, um homem fraco e algo desejado.
Todavia, se você comparar as histórias em detalhes, verá algumas
diferenças. No primeiro caso, o que é desejado é uma mulher; no
segundo, uma ovelha. No primeiro caso, um homem fraco é morto,
para que Davi esconda o seu pecado; mas, no segundo caso, aquilo
que é desejado é morto (a ovelha). As histórias não são exatamente
correspondentes. Se fossem exatamente a mesma, não seriam uma
analogia ou uma parábola. Em outras palavras, às vezes as histórias
atingem o âmago da questão, mas contêm tantos símbolos que
precisamos labutar para estruturar os detalhes e entender a lição
principal.
Isso acontece em Gênesis 3. A serpente pode ser a incorporação
de Satanás ou pode ser o símbolo que o representa. E a Bíblia não se
preocupa realmente em explicar isso. O que ela diz realmente sobre
Satanás pode ser definido com bastante precisão, mas não podemos
entender exatamente que arranjos de comunicação havia no Éden, e
eles não afetam negativamente os principais pontos da narrativa.
Com essa introdução, quero sugerir quatro coisas que emergem
de modo inconfundível de Gênesis 3.
 
1. A VILEZA ARDILOSA DESSA PRIMEIRA REBELIÃO (GN 3.1-6)
 
O texto nos apresenta a serpente. De acordo com o último livro
da Bíblia, Satanás está, em algum sentido, por trás da serpente (ver
Ap 12). Além disso, sua conversa macia se harmoniza com outra
descrição de Satanás, na qual somos informados que ele se disfarça
de anjo de luz (2Co 11.14), enganando, se possível, os próprios
eleitos de Deus (Mt 24.24). Satanás é sarcástico.
Gênesis 3 nos diz também que ele foi criado por Deus: “a
serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR
Deus tinha feito” (Gn 3.1). Em outras palavras, a Bíblia não
apresenta Satanás ou a serpente como um tipo de antideus que se
levanta contra ele; igual a Deus, mas no polo oposto, como matéria e
antimatéria, tendo exatamente o mesmo poder, de modo que, se
colidissem, explodiriam em uma bola de fogo de energia que não
deixaria nada para trás. Na Bíblia, não há um quadro em que Deus é
confrontado por um antideus equivalente, como se houvesse um lado
bom e um lado negro da Força, em que os seres humanos inclinam-se
para um lado ou para o outro, determinando que lado da Força
vencerá. Esse não é o quadro bíblico. O quadro pintado pela primeira
sentença desse capítulo é que Satanás é um ser dependente, um ser
criado. Essa passagem não nos diz como ou quando ele caiu. Em
outra passagem, ele é retratado como parte dos seres angelicais que
se rebelaram contra Deus. Mas nada disso é descrito aqui. Ele apenas
aparece.
O texto bíblico nos diz que ele era o mais sagaz de todos os
animais selváticos que Deus tinha feito. A palavra sagaz sugere
dissimulação, clandestinidade. Ela tem essa conotação negativa para
você? Certamente, ela o tem para mim. Mas a palavra hebraica usada
nesse versículo pode ser negativa ou positiva, dependendo do
contexto. Em muitas passagens, ela é traduzida por algo como
“prudência”. Por exemplo: “O homem prudente oculta o
conhecimento” (Pv 12.23). Essa passagem não se refere a um homem
astuto, um sujeito esperto que guarda seu conhecimento para si
mesmo; pelo contrário, ela descreve alguém que é sábio e prudente.
Ou, novamente: “Os prudentes se coroam de conhecimento” (Pv
14.18). Isso não significa que os espertos são coroados de
conhecimento. De modo semelhante, no primeiro versículo de Gênesis
3, suspeito que o texto nos diz que a serpente, Satanás, foi coroada
de mais prudência do que todas as outras criaturas, mas em sua
rebelião a prudência se tornou astúcia; a mesma virtude que era um
poder foi convertida em um erro. Podemos lembrar a observação de
Sherlock Holmes: “Oh! Este mundo é perverso, e, quando um homem
inteligente volve a sua mente para o crime, isso é a pior de todas as
coisas!”(1)
A serpente se aproxima da mulher (quais eram os modos de
comunicação, não faço a menor ideia) e evita oferecer-lhe uma
negação ou uma tentação direta. Em vez disso, Satanás começa com
uma pergunta: “Deus disse realmente isso? Deus disse realmente:
Vocês não devem comer de toda árvore do jardim?” Observe o que
Satanás está fazendo. Ele expressa certa quantidade de ceticismo, faz
uma pergunta levemente incrédula: “Vocês acreditam realmente que
Deus diria isso?” — como um empregado que pergunta: “Vocês
acreditam no que o chefe fez desta vez?” A diferença é que a pessoa
cuja palavra está sendo questionada é o criador, o planejador, o Deus
soberano. De algumas maneiras, a pergunta de Satanás é tanto
perturbadora como bajuladora. Ela introduz sutilmente a suposição
de que temos a capacidade, e mesmo o direito, de julgar o que Deus
disse.
Em seguida, o Diabo apresenta exagero. Deus proibiu realmente
um fruto, mas a maneira como Satanás formula sua pergunta —
“Deus disse realmente: Vocês não devem comer de toda árvore do
jardim?” — Ele apresenta a Deus como o desmancha-prazeres
cósmico: “Deus existe basicamente para destruir minha alegria. Eu
posso querer um lanche, mas ele diz: ‘Não’. Eu quero fazer algo, mas
ele diz: ‘Não, não, não’. Ele é o desmancha-prazeres cósmico. Vocês
podem acreditar que Deus disse isso?”
A mulher responde com certa medida de discernimento,
sabedoria e graça — pelo menos, inicialmente. Ela corrige Satanás
em seus fatos, em seu exagero. “Do fruto das árvores do jardim
podemos comer” (3.2), ela insiste. E acrescenta, ainda corretamente:
“Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele
não comereis” (3.3, referindo-se a 2.17). O exagero de Satanás é
habilmente rejeitado. No entanto, Eva acrescenta seu próprio
exagero. Ela acrescenta: “Nem tocareis nele, para que não morrais”
(3.3, ênfase acrescentada). Deus não disse nada sobre não tocar o
fruto. Isso é quase como se a proibição de comer do fruto tivesse
irritado a Eva, deixando-a tão aborrecida com o fato, que ela tivesse
de estabelecer a insignificância da proibição. O primeiro pecado foi
um pecado contra a bondade de Deus.
Obteremos um pequeno discernimento quanto ao terrível deslize
que se processava na mente da mulher, se imaginarmos o que ela
deveria ter dito. Talvez algo assim: “Você está doido? Olhe ao redor!
Este é o Éden; é o paraíso! Deus sabe exatamente o que está fazendo.
Ele criou todas as coisas; ele me criou. Meu marido me ama, e eu o
amo — e somos, ambos, dominados pela alegria e a santidade de
nosso amado Criador. Meu próprio ser vibra com o desejo de refletir,
de volta para ele, algo da sua glória extraordinária. Como eu poderia
questionar sua sabedoria e amor? Ele sabe, de uma maneira que eu
nunca poderei saber, com exatidão, o que é melhor — e confio
totalmente nele. E você quer que eu duvide dele ou questione a pureza
de seus motivos e caráter? Como isso é insensato! Além disso, que
bem pode resultar de uma criatura que desafia o seu Criador e
Soberano? Você está doido?”
Em vez disso, a mulher flertou com a possibilidade de que Deus
pudesse ser nada mais do que um desmancha-prazeres cósmico, dado
a restringir o prazer de suas criaturas.
Então, surge a primeira negação descarada de Deus. A serpente
declara: “É certo que não morrereis” (3.4). De acordo com a Bíblia, a
primeira doutrina a ser negada é a doutrina do julgamento. Em
muitas disputas sobre Deus e o cristianismo, esse padrão se repete
frequentemente, porque, se pudermos livrar-nos desse único ensino, a
rebelião não terá consequências adversas, e, portanto, seremos livres
para fazer o que quisermos.
Em vez de reconhecer a ameaça do julgamento, a serpente afirma
que a rebelião ofereceria uma percepção especial, uma percepção
divina: “Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os
olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (3.5). Aqui
está a grande cilada, a tentação. O cerne do engano pecaminoso que
a serpente promete é o fato de que o que ela diz é parcialmente
verdadeiro e totalmente falso. Afinal de contas, é verdade: os olhos de
Eva serão abertos, e, em algum sentido, ela verá a diferença entre o
bem e o mal. Ela determinará isso por si mesma. Deus disse isso no
final do capítulo: “O homem se tornou como um de nós, conhecedor
do bem e do mal” (3.22).
No entanto, a promessa era totalmente subversiva. Deus conhece
o bem e o mal com o conhecimento de onisciência. Ele sabe tudo que
já foi, tudo que é e tudo que será, tudo que possa estar sob diferentes
circunstâncias — Deus sabe tudo, incluindo o que é o mal. Contudo,
a mulher aprenderá sobre o mal por experiência pessoal, aprenderá
sobre o mal por se tornar má.
Uma ilustração poderá ajudar-nos. Minha esposa é uma
sobrevivente de um câncer. Ela é uma sobrevivente de alto risco; por
isso, os médicos ainda a acompanham com atenção. Os oncologistas
conhecem muito sobre essa doença — do lado do fora. A minha
esposa conhece o câncer do lado de dentro. Deus conhece tudo que
precisa ser conhecido sobre o pecado, mas não por tornar-se um
pecador. A mulher achará o conhecimento do bem e do mal a partir do
seu interior. Nesse sentido, o que a serpente prometeu era uma
mentira total.
De fato, a expressão hebraica “o conhecimento do bem e do mal”
é usada frequentemente em passagens onde ter esse conhecimento
significa ter a habilidade de pronunciar o que é bom e o que é mau.
Se você lembra, isso foi o que Deus fez. Ele fez algo e declarou que
“isso era bom” (1.10). Ele fez mais uma coisa, e “isso era bom”
(1.12, 18, 21, 25). Deus terminou sua obra de criação, e “eis que era
muito bom” (1.31). Deus tem esta habilidade soberana, alicerçada em
conhecimento infinito, de pronunciar o que é bom. Agora, a mulher
quer essa função divina. De fato, Deus disse: “Não é bom vocês
comerem daquele fruto específico. Vocês morrerão”. Mas, se a mulher
faz isso, em vez de deleitar-se na sabedoria do seu Criador, ela
pronuncia de maneira independente suas próprias escolhas quanto
ao que é bom ou mau. Ela se torna “como Deus”, afirmando todo tipo
de independência que caracteriza somente a Deus, a autoexistência
que pertence somente a Deus, a plenitude moral que somente Deus
possui.
Ser como Deus, atingir isso por desafiá-lo, talvez sendo mais
esperto do que ele — esse é um programa estimulante. Isso significa
que Deus tem de ser considerado, a partir deste momento,
conscientemente ou não, como um rival e, talvez, um inimigo: “Eu
afirmo o meu próprio bem. Muito obrigado! Eu não preciso que você
me diga o que eu posso ou não posso fazer”.
Sem dúvida, precisamos pensar um pouco mais sobre essa
árvore. O que era o fruto? Não há nenhum texto bíblico que diz que o
fruto era uma maçã, como se Deus odiasse maçãs, mas fosse
imparcial com peras e abacaxis. Não é necessário supor que o fruto
fosse mágico, de modo que, ao ingeri-lo — não importando o que era
—, uma alteração se introduziria subitamente no cérebro, a química
mudaria, e a pessoa começaria a proferir, de modo repentino, o bem e
o mal. Esse não é o ensino da passagem. Qualquer que fosse o fruto,
era um teste inevitável. Se Deus cria portadores de sua imagem e
declara o que é bom e o que é mau; se ele ordena todo o sistema e, em
algum momento, alguém aparece e diz: “Agora, declararei o meu
próprio bem. O que você declara ser mau, eu declararei ser bom. O
que você diz ser bom eu declararei que é mau” —, essa é a razão pela
qual a árvore que dava esse fruto foi chamada de árvore do
conhecimento do bem e do mal. O que é essencial nesse caso não é a
árvore, e sim a rebelião. O que é tão horrivelmente trágico é que os
portadores da imagem de Deus se levantaram contra ele. Isso é
diminuir a Deus, para que eu seja meu próprio deus. Em resumo, isso
é idolatria.
Na história da igreja cristã, alguns cristãos têm argumentado
que a árvore é um símbolo do sexo. Mas isso sugere que há algo
intrinsecamente mau no sexo. Esse tipo de inferência se opõe ao que
a Bíblia diz. Quando Deus uniu homem e mulher no primeiro
casamento, ele mesmo estabeleceu a união e declarou que isso era
muito bom. Depois, na Bíblia, um escritor disse: “Digno de honra
entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem mácula” (Hb
13.4). Na Bíblia, não há nenhuma passagem que diz que o sexo é
intrinsecamente mau, embora, como todos os dons de Deus, o sexo
seja abusado, corrompido, distorcido e pervertido.
Não devemos pensar que a tentação por parte da serpente era
apenas um convite a quebrar uma regra, arbitrária ou não. Isso é o
que muitas pessoas pensam sobre o “pecado” — é apenas quebrar
uma regra. O que estava em jogo na tentação era algo muito mais
profundo, mais importante, mais infeliz, mais horrível, mais
detestável. Era uma revolução. Isso me torna Deus e, portanto, tira
Deus do trono.
“Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável
aos olhos e árvore desejável para dar entendimento” — isto é,
fisicamente atraente, esteticamente agradável, transformadora no
domínio da sabedoria —, “tomou-lhe do fruto e comeu” (Gn 3.6).
Para aqueles de vocês que conhecem a linguagem “tomai e comei”,
que os cristãos recitam na Ceia do Senhor, é impossível não lembrar
este último uso dos dois verbos. Ela “tomou... e comeu”. “Um ato tão
simples, um desfazer tão árduo”, disse alguém. “Deus provará a
pobreza e a morte, antes que ‘tomai e comei’ se tornem verbos de
salvação.”(2)
Ela “deu também ao marido, e ele comeu” (3.6). Aparentemente,
ele estava com ela durante tudo isso, era seu cúmplice, não menos
culpado do que ela no engano e vileza do deslize para a
autodestruição.
 
2. AS CONSEQUÊNCIAS INICIAIS QUE RESULTARAM
DESTA PRIMEIRA REBELIÃO (GN 3.7-13)
 
Acima de tudo, há uma grande inversão: Deus cria o homem que
ama sua esposa, procedente dele, e juntos eles devem ser vice-
regentes sobre a ordem criada. Em vez disso, um dos seres da ordem
criada, a serpente, seduz a mulher, que arrasta o homem, e juntos
eles desafiam a Deus — a ordem da criação é invertida. E há morte.
Isso não deve surpreender-nos. Se Deus é o Criador e nos dá vida,
então, se nos afastarmos dele, se o desafiarmos, o que restará, senão
morte? Deus é aquele que primeiramente nos deu vida. Ele não trouxe
à existência o universo e os portadores de sua imagem para que
fossem totalmente independentes dele, atingindo de algum modo a
autoexistência que somente ele possui. Portanto, se alguém se afasta
dele, o que resta, senão morte? Se afirmarmos o nosso próprio bem
ou mal e decidirmos que queremos ser um deus para nós mesmos,
apartando-nos assim do Deus vivo, que nos criou e nos deu vida, não
haverá nada além de morte.
Que tipo de morte? Os cristãos têm debatido essa pergunta. No
século IV, um pensador cristão chamado Agostinho escreveu:
 
“Se perguntassem com que tipo de morte Deus ameaçou o
casal, morte física, ou espiritual, ou a segunda morte [essa
linguagem é usada para referir-se ao inferno],
responderíamos: eram todas... [Deus] incluiu naquele
momento não somente a primeira parte da primeira morte,
na qual a alma perde a Deus [ou seja, morremos
espiritualmente; nos escondemos de Deus e nos tornamos
mortos para Deus], nem somente a última parte, na qual a
alma deixa o corpo... mas também... a segunda que é a
última das mortes, a eterna, que vem depois de tudo”.(3)
 
Você não pode separar-se do Deus da Bíblia sem ter
consequências. Deus mesmo ordenou que a tentativa de tirá-lo do seu
lugar tenha como consequência a punição de morte.
Observe, porém, os resultados imediatos que são destacados no
texto. Os olhos do homem e da mulher são abertos; eles percebem que
estão nus. Em consequência, cosem uma cobertura para si de folhas
de figueira (Gn 3.7). Em um nível, a serpente cumpre a sua
promessa, mas essa nova consciência do bem e do mal não é um
resultado feliz. Não há prazer nisso, antes, há perda do conhecimento
de Deus e, por fim, vergonha e culpa. Agora, eles têm algo a esconder;
por isso, cosem folhas de figueira, o que deve ser um tanto insensato.
Não podemos esconder vergonha moral com folhas de figueira.
Mas isto é também uma maneira de dizer que não há retorno
para o Éden. Não podemos desfazer a perda da inocência. Se
cometermos um roubo, poderemos devolver o que roubamos. Nesse
caso, poderemos desfazer o erro. Todavia, a mancha em nosso próprio
ser não poderá ser desfeita. Se cometermos adultério, não podemos
desfazê-lo, de maneira alguma. E, se afrontarmos a Deus, não
poderemos desfazer a afronta. Ela não poderá ser desfeita. Cobrimos
a nós mesmos com vergonha. Não há caminho de volta à inocência.
Na Bíblia, há apenas um caminho para frente — para a cruz.
Um dos resultados dessa culpa é o rompimento da comunhão
com Deus (ver Gn 3.8-10). Embora o prazer de desfrutar a intimidade
com Deus fosse espetacularmente maravilhoso, expresso na imagem
do andar com Deus na viração do dia (3.8), esse prazer se foi.
Podemos ter uma ideia dessa queda miserável usando analogias
humanas. Se você fosse casado há dez anos e tivesse um casamento
realmente bom, caracterizado por verdadeira intimidade, e não
apenas por alegria momentânea, e então, por alguma razão abismal,
você tropeçasse e dormisse com alguém com quem você não deveria; e
você soubesse disso, e sua esposa também, a velha intimidade seria
assolada. Vocês não poderiam mais olhar nos olhos um do outro. A
vergonha os dominaria. Vocês se escondem. Ainda que fossem feitos
bons esforços para curar a ruptura, há certas coisas sobre as quais
vocês não poderiam mais conversar. Essa é a razão por que, em toda
a Bíblia, o pecado humano diante de Deus é, às vezes, descrito como
algo semelhante à traição sexual. Um escritor do Antigo Testamento,
o profeta Oseias, observou a maneira como o povo traiu a Deus.
Oseias retratou — isso é difícil de acreditar — o Todo-Poderoso, como
esposo de uma adúltera, o marido traído. Afinal de contas, o povo de
Deus o abandonou e procurou outros deuses, embora ele lhes tivesse
dado vida e comunhão íntima.
Esse pecado resulta não somente em interrupção do
relacionamento com Deus, mas também em relacionamentos
humanos quebrados. O relato seria quase engraçado, se não fosse
triste e melancólico. Deus pergunta: “Comeste da árvore de que te
ordenei que não comesses?” (Gn 3.11). “A mulher que me deste por
esposa”, Adão responde — é culpa dela (3.12). Essa não é a última
vez que um homem culpa a sua esposa. Mas a mulher não é melhor:
“Não é culpa minha, Deus. Aquela serpente me enganou”. Uma das
coisas que habitualmente acompanha o desafiar a Deus é isto:
negamos qualquer responsabilidade pelo que aconteceu. Todos os
erros que cometemos é culpa de outra pessoa.
Em outras palavras, um dos resultados inevitáveis da culpa e da
vergonha é a autojustificação. Adão justifica a si mesmo culpando
sua mulher. Eva justifica a si mesma culpando a serpente. Nossa
única esperança de sermos reconciliados com Deus é que Deus mesmo
nos justifique, que Deus mesmo nos vindique. A autojustificação não
pode salvar-nos, porque somos culpados. De fato, a autojustificação é
apenas mais uma evidência de idolatria — a idolatria de pensar que
temos os meios de salvar a nós mesmos, a idolatria que ainda está
tão marcada pelo “eu” que não pode admitir prontamente a culpa. No
começo do século XX, quando os editores do jornal Times, de Londres,
pediram a alguns escritores eminentes que contribuíssem com alguns
artigos pequenos sobre o tema “O que há de errado com o mundo?”,
G. K. Chesterton respondeu:
 
Prezados Senhores,
Eu.
Cordialmente,
G. K. Chesterton
 
Isso reflete uma perspectiva profundamente cristã — mas o
homem e a mulher, em Gênesis 3, não chegaram nem perto de
reconhecer isso.
Estes são apenas os resultados iniciais que surgem como
consequência da rebelião.
 
3. AS MALDIÇÕES EXPLÍCITAS QUE DEUS PRONUNCIA (GN
3.14-19)
 
Em consequência desta rebelião, Deus pronuncia três maldições:
 
A PRIMEIRA MALDI O: PARA A SERPENTE
 
Deus diz à serpente:
 
Visto que isso fizeste, maldita és entre todos os animais
domésticos e o és entre todos os animais selváticos;
rastejarás sobre o teu ventre e comerás pó todos os dias da
tua vida.
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência
e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás
o calcanhar.
Gênesis 3.14-15
 
Algumas pessoas acham que isso é um tipo de lenda, um mito
sobre as origens, uma história fictícia sobre como a serpente perdeu
suas pernas. “Houve um tempo em que todas as serpentes tinham
pernas, e foi assim que elas perderam suas pernas.” É sobre isso que
fala esta passagem de Gênesis?
Eu sei isto: às vezes, Deus pega algo que já existe e o emprega de
uma nova maneira, carregada de simbolismo. No próximo capítulo
deste livro, conheceremos um homem chamado Abraão, sobre o qual
se diz, entre outras coisas, ter estabelecido a prática da circuncisão
para todos os homens de sua família e de sua casa. Devemos
entender que a circuncisão não foi inventada por Deus ou por
Abraão. Ela era amplamente praticada em todo o Oriente próximo dos
dias de Abraão. Porém, não era conhecida como um rito. Quando
Deus a impôs, como veremos, deu a ela uma nova e especial
conotação simbólica, no contexto de suas relações com Abraão. A
circuncisão, em si mesma, não era um fenômeno novo, mas ganhou
uma nova força que simbolizava a realidade do relacionamento. Isso
também acontece nessa passagem de Gênesis. A serpente podia muito
bem ter estado deslizando e se arrastando pelo chão, mas agora o seu
modo de se locomover se torna algo carregado de simbolismo. O
próprio Diabo é expulso, é rejeitado, uma coisa viscosa que anda pelo
chão.
Na Bíblia, os símbolos posteriores seguem esse mesmo padrão. O
profeta Isaías (no final do século VIII a.C.), por exemplo, descreveu
um dia por vir quando “o lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão
comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente” (Is 65.25).
Ele não disse isso porque as serpentes são, de algum modo, menos
morais do que os leões, e sim porque, no simbolismo daqueles dias, a
serpente estava conectada com o Diabo e tudo que era viscoso,
desprezível e repugnante.
Quando Deus disse: “Porei inimizade entre ti [a serpente] e a
mulher, entre a tua descendência e o seu descendente” (3.15), isso
não significa que todas as mulheres odiariam serpentes. Sei que
algumas mulheres odeiam serpentes, incluindo a minha esposa.
Minha esposa, embora tenha diversos talentos e dons, não foi
chamada para ser herpetologista. Mas há algumas mulheres que são
herpetologistas. A maldição relatada em Gênesis 3 vai além do nível
das mulheres e das serpentes. De fato, o texto prossegue
imediatamente para falar não somente da mulher, mas também da
descendência: haverá inimizade “entre a tua descendência e o seu
descendente”. Se essa expressão significa “toda a descendência da
mulher e toda a descendência da serpente”, então, a inimizade
pronunciada é entre todos os seres humanos e todas as serpentes; e
não existiria nenhum herpetologista! Esse não é o ensino do texto.
Da mulher, da raça humana virá, por fim, o descendente que
esmagará a cabeça da serpente. Você assistiu ao filme A Paixão de
Cristo, dirigido por Mel Gibson? Não importando as virtudes ou as
fraquezas do filme, a cena de abertura, em que Jesus está em agonia
e ora no jardim do Getsêmani, é verdadeiramente memorável.
Enquanto Jesus está orando, uma serpente começa a deslizar sobre
um de seus braços. Jesus se levanta e, repentinamente, pisa com
força a cabeça da serpente. O simbolismo é o de Gênesis 3. Indo à
cruz, Jesus destruirá, finalmente, a serpente, o Diabo, que mantém
pessoas cativas do pecado, vergonha e culpa. Ele esmagará a cabeça
da serpente por tomar sobre si mesmo a culpa e a vergonha dessas
pessoas.
Gênesis 3.15 é chamado nos círculos cristãos de
“protoevangelho”, ou seja, o primeiro anúncio do evangelho, o
primeiro anúncio das boas-novas. Após a Queda, o quadro é sombrio,
com ameaça de condenação, mas agora há uma promessa de que da
descendência da mulher — da raça humana — surgirá alguém que
esmagará a cabeça da serpente. De fato, essa promessa é estendida
no Novo Testamento, a última terça parte da Bíblia, de Cristo para os
cristãos. Em uma carta escrita em meados do século I aos cristãos em
Roma, o apóstolo Paulo disse: “O Deus da paz, em breve, esmagará
debaixo dos vossos pés a Satanás” (Rm 16.20). Há um sentido em
que os cristãos, por viverem sob os benefícios do evangelho e serem
reconciliados com Deus por causa do evangelho, estão destruindo o
Diabo e suas obras.
 
A SEGUNDA MALDI O: PARA A MULHER
 
Deus disse à mulher:
 
Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em
meio de dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o
teu marido, e ele te governará.
Gênesis 3.16
 
A primeira ordem categórica que Deus deu à mulher foi: “Sede
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a” (Gn 1.28).
Agora, porém, após a Queda, até esses direitos e privilégios mais
fundamentais — parte do próprio ser do homem e da mulher — se
tornam uma coisa dolorosa. Toda a ordem criada está caótica. Até
mesmo o dar à luz a uma nova vida está ligado a sofrimento.
“O teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (3.16).
Como você pode imaginar, esta passagem tem sido interpretada de
muitas maneiras diferentes. Vale a pena refletir sobre o fato de que os
dois verbos, usados juntos aqui, ocorrem como par somente em mais
uma passagem nos cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números, Deuteronômio), a saber, no capítulo seguinte. Se
um leitor estivesse em sua primeira leitura de Gênesis 3 e pensasse:
“Eu não tenho a mínima indicação do que isso significa”, e
prosseguisse alguns versículos adiante, se depararia com o mesmo
par de verbos. Nessa segunda instância, eles se acham numa
passagem mais clara. Isso levaria o leitor a dizer: “Ah! Isso faz
sentido” — e a aplicar o mesmo significado a Gênesis 3.16.
A segunda passagem está em Gênesis 4. Aqui, aprendemos que
um dos filhos de Adão e Eva, chamado Caim, quer matar seu irmão,
Abel. O capítulo retrata o primeiro homicídio. Quando Deus explica a
Caim por que ele, Deus, está irado com Caim, ele diz: “Se procederes
bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis
que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti [ou seja, o
pecado deseja controlar-te, manipular-te, dar-te ordens], mas a ti
cumpre dominá-lo” (Gn 4.7, ênfase acrescentada). Isso também se
aplica às consequências da Queda: a mulher deseja ter seu marido
para controlá-lo, e ele a governa com certo tipo de força brutal. Há
pecado em ambos os lados: ela quer controlar, e ele, sendo
fisicamente mais forte, bate nela. O que temos aqui, em Gênesis 3.16,
é a destruição do relacionamento conjugal. Os tentáculos da rebelião
contra Deus corroem todos os relacionamentos.
Quando você lê os capítulos seguintes de Gênesis, contempla
desde o primeiro homicídio a duplo assassinato, poligamia,
genocídio, estupro — constantemente - tudo porque no começo
alguém disse: “Eu serei Deus”.
 
A TERCEIRA MALDI O — PARA AD O
 
E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e
comeste da árvore que eu te ordenara não comesses,
maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o
sustento durante os dias de tua vida.
Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a
erva do campo.
No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra,
pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.
Gênesis 3.17-19
 
“Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore
que eu te ordenara não comesses” (3.17). Adão deu ouvidos à mulher
e não a Deus. Em última análise, a primeira lealdade tem de ser
prestada a Deus, somente a Deus.
“Maldita é a terra por tua causa” (3.17). Toda a ordem criada da
qual somos parte não está funcionando apropriadamente. Está sob
maldição, sujeita por Deus à morte e à decadência.
Poderíamos continuar desenvolvendo este tema, mas temos de
considerar o último assunto desse capítulo.
 
4. OS EFEITOS A LONGO PRAZO DESSA REBELIÃO (GN 3.20-
24)
 
“Fez o SENHOR Deus vestimenta de peles para Adão e sua mulher
e os vestiu” (Gn 3.21). Eles usavam folhas de figueira. Se Deus fez
vestes de pele, então, sangue foi derramado — um sacrifício de
animal. Nessa altura da história bíblica, não há ainda um sistema de
sacrifícios. Isso surge depois — um sistema sacerdotal com
sacrifícios e leis prescritas. Mas Deus sabia que o casal precisava ser
coberto. Eles tinham muita vergonha para ocultar. Deus não lhes
disse: “Tirem essas folhas de figueira estúpidas. Se vocês apenas
expuserem-se e forem honestos um com o outro, poderemos todos
viver juntos novamente e, depois, viver sempre felizes”. Não há
caminho de volta. Deus os cobriu com algo mais durável, ao preço de
um animal que derramou seu sangue.
Este é o primeiro sacrifício na longa trajetória de sacrifícios
sangrentos que acompanha toda a história até a vinda de Jesus.
Quando ele aparece, é declarado “o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” (Jo 1.29). Por meio de seu sacrifício de sangue —
por meio de sua morte — somos cobertos. Nossa vergonha e nossa
culpa são tratadas porque ele morre em nosso lugar. Um cordeiro não
pode fazer isso. Aqui, em Gênesis 3, a morte de um animal para
cobrir o homem e a mulher é uma figura do que está por acontecer, o
primeiro passo de toda uma instituição de sacrifícios que nos remete,
por fim, ao sacrifício supremo e ao que Jesus fez para tirar nosso
pecado e cobrir nossa vergonha.
 
CONCLUSÃO
 
Quero pensar agora em como este capítulo se encaixa na Bíblia e
em nossa vida.
O primeiro ensino importante é que Gênesis 3 descreve rebelião
obstinada. Algumas das questões difíceis que o darwinismo
estritamente materialista tem de enfrentar são: “De onde vem a
moralidade? De onde vem o significado? De onde vêm as noções de
certo e de errado?”
Durante as últimas duas ou três décadas, surgiu um campo de
esforço científico e filosófico que é agora rotulado comumente de
sociobiologia. Um escritor intitulou seu livro de The Selfish Gene (O
Gene Egoísta). Ele argumenta que, por causa da maneira como nos
desenvolvemos de acordo com as linhas evolucionárias, temos genes
que nos protegem. São esses genes que nos movem em direção a certo
comportamento que nos mantém vivos e, em se reproduzindo,
fortalecerão aquelas pessoas cujo comportamento é mais vantajoso.
Aqueles que não desenvolvem esse comportamento vantajoso
diminuirão, e, por isso, temos, estatisticamente, uma porcentagem
cada vez maior de seres humanos que possuem esses genes
adaptados a produzir o comportamento vantajoso. Até um gene
egoísta pode aprender ao longo da vida que, cooperação com as
outras pessoas de genes semelhantes é melhor do que seguir sozinho;
e até isso é um tipo de egoísmo expandido. Agora você tem uma
predisposição genética para trabalhar e compartilhar
cooperativamente, e isso pode não se harmonizar com algum ponto
de vista individualista sobre a sobrevivência dos mais adaptados,
mas no nível coletivo — no nível sociobiológico — esse ponto de vista
da função do gene egoísta faz bastante sentido. Em outras palavras,
pessoas podem desenvolver uma tendência para certo comportamento
que é, então, chamado de bem ou mal, o que é, porém, nada mais do
que seleções felizes de genes que equipam você, através das gerações,
com comportamento vantajoso. Em resumo, a sociobiologia se tornou
uma tentativa sistemática de explicar as noções de certo e de errado
não em um nível moral, e sim em um nível puramente genético e
naturalista.
Eu seria a última pessoa que desejaria argumentar que não há
nenhuma conexão entre nossa moralidade e nosso corpo, entre nossa
vontade e nosso espírito, entre nossa herança e nossa formação,
incluindo nossa constituição genética. Somos seres integrais; todas
as nossas partes interagem juntas. Todavia, é muito difícil imaginar
pessoas se voluntariando para sacrificar sua vida em benefício de
outras, sofrendo em lugar delas, a fim de melhorarem a raça. Por
exemplo, uma pessoa no campo de concentração em Auschwitz que
finge ter feito algo proibido para ser morto, a fim de que outro
companheiro seja liberto, não é explicado prontamente pela
sociobiologia. Por isso, em nossos dias, livros e ensaios têm começado
a responder às pretensões da sociobiologia, argumentando que essa
disciplina não pode explicar certos tipos de conduta.
Pete Lowman escreveu um livro intitulado A Long Way East of
Eden (Um Longo Caminho a Leste do Éden). O propósito de Lowman é
mostrar que o relato da Queda faz muito mais sentido quanto aos
dilemas morais e o viver pervertido no mundo do que qualquer outra
explicação. O sociólogo Christian Smith argumenta a mesma ideia em
seu livro Moral, Believing, Animals: Human Personhood and Culture
(Moral, Crer, Animais: Personalidade Humana e Cultura).
Um segundo ensino importante a obervar é que Gênesis 3 não
pensa no mal primariamente em termos horizontais, e sim em termos
verticais. Quando pensamos no mal, tendemos a pensar no nível
horizontal. Talvez nenhum de nós deseje negar que Auschwitz foi um
mal. Talvez não queiramos negar que estuprar uma criança seja
mau. Talvez não queiramos negar que operar um grande esquema
fraudulento que rouba bilhões de dólares das pessoas seja mau.
Certamente a Bíblia diz muitas coisas condenatórias sobre males em
nível horizontal, ou seja, males que perpetramos entre nós mesmos.
Entretanto, o que a Bíblia diz mais frequentemente é que Deus
detesta a idolatria. Isso é a dimensão vertical do mal. A pessoa mais
ofendida nesse capítulo de Gênesis é Deus. O principal problema não
é que Eva tenha sido realmente confrontada porque Adão a culpou. A
culpa primária é diante de Deus. Sim, você poderia ler passagens do
profeta Isaías, que condena males em nível horizontal, como os
patrões gananciosos que não pagam salários justos; contudo,
páginas e mais páginas do texto bíblico se dedicam à idolatria. Esse
é o mal supremo.
Em terceiro, visto dessa perspectiva, Gênesis 3 mostra o que
mais necessitamos. Se você é um marxista, você precisa de
revolucionários e economistas decentes. Se você é um psicólogo,
precisa de um exército de conselheiros. Se você pensa que a fonte de
todo distúrbio e desordem é médica, você precisa de grande número
de hospitais beneficentes de pesquisa médica. Mas, se a nossa
principal e mais solene necessidade é sermos reconciliados com Deus
— que agora está contra nós e pronuncia morte sobre nós, por causa
de nossa rebelião obstinada — então, aquilo que mais necessitamos,
embora possamos ter todas essas outras necessidades derivadas, é
sermos reconciliados com Deus. Precisamos de alguém para nos
salvar.
A Bíblia não faz sentido para você, se você não concorda com o
que ela diz a respeito de nosso maior problema. Se você não vê qual é
a análise da Bíblia sobre o nosso problema, você não pode concordar
com a sua análise quanto à solução do problema. O problema crucial
é nossa alienação de Deus, a tentativa de nos identificarmos apenas
em referência a nós mesmos, essa idolatria que diminui a Deus. E o
que precisamos ter é a reconciliação com esse Deus, ou não temos
nada. É à luz dessa análise que Gênesis 3 olha para frente, para a
vinda do descendente da mulher.
Pouco tempo atrás, estive em um funeral. Na placa que estava
fixada na porta da casa, minha esposa e eu lemos estas palavras
daquele vizinho: “Aqueles que nos amam continuem nos amando;
aqueles que não nos amam, que Deus mude o coração deles; e, se ele
não mudar o coração deles, que quebre o seu tornozelo, e os
conheceremos pelo seu manquejar”. Esperto. Não pude deixar de
pensar quão trágico era aquilo. O homem acabara de partir para
encontrar-se com seu Criador, e suas últimas palavras para nós,
presentes no funeral, eram severas, sobre pessoas que não gostavam
dele — pensando ainda em um nível horizontal.
No século XVII, o grande filósofo Blaise Pascal escreveu: “Que
tipo de anomalia é o homem? Quão novo, quão monstruoso, quão
caótico, quão paradoxo, quão prodigioso, juiz de todas as coisas,
verme frágil, repositório da verdade, mergulhado em dúvida e erro,
glória e refugo do universo”.(4) Ele entendeu Gênesis 1, 2 e 3.
Ou, nas palavras de um filósofo e escritor contemporâneo, Daniel
L. Migliore:
 
Nós, seres humanos, somos um mistério para nós mesmos.
Somos racionais e irracionais, civilizados e selvagens,
capazes de amizade profunda e hostilidade mortal, livres e
em escravidão, o clímax da criação e seu maior perigo.
Somos Rembrandt e Hitler, Mozart e Stalin, Antígone e Lady
Macbeth, Rute e Jezabel. “Que obra de arte”, diz
Shakespeare sobre a humanidade. “Somos muito
perigosos”, diz Arthur Miller em After the Fall, “estamos...
não em um jardim de fruto de cera e folhas pintadas que
fica a leste do Éden, e sim depois da Queda, depois de
muitas, muitas mortes”.(5)
 
Agora, começamos a entender o enredo de toda a Bíblia: quem
consertará isso?

(1) Sir Arthur Conan Doyle, “The Adventure of the Speckled Band”, em The Complete Works
of Sherlock Holmes (New York: Doubleday, 1930), 268.
(2) F. Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary, Tyndale Old Testament
Commentaries (Leicester: Inter-Varsity, 1981), 68.
(3) Augustine, The City of God, vol. 2, Everyman’s Library ed. (London: J. M. Dent, 1945), 9-
10.
(4) Blaise Pascal, Pensées, ed. A. J. Krailsheimer (London: Penguin, 1995), 34.
(5) Daniel L. Migliore, Faith Seeking Understanding: An Introduction to Christian Theology,
2nd ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), 139.
3
O Deus
que Escreve Seus Próprios Acordos

O O que devemos pensar sobre o relacionamento entre Deus e os


seres humanos? Quando pensamos nesse relacionamento, que tipo de
modelo temos em mente?Há muitas opções propostas nas várias
culturas que nos rodeiam. Será útil descrevermos três delas.
 
MODELO 1: O AVÔ SUPERMANSO
 
Deus é um cavalheiro benevolente, que tem uma barba longa e
esvoaçante, cuja tarefa primordial é ser bom. Quando eu era um
estudante na Inglaterra, anos atrás, estive por um tempo na
Alemanha, para aprimorar o meu alemão. Enquanto eu estive lá, na
escola de línguas, conheci um jovem engenheiro que fazia curso de
doutorado, natural da África Ocidental Francesa. Porque eu fora
criado falando francês, e ele era da África Ocidental Francesa,
saíamos de vez em quando — umas duas vezes por semana — para
tomar uma refeição juntos e conversar num idioma em que nos
sentíamos mais à vontade, francês em vez do alemão, que estava nos
causando dores de cabeça. Quando o conheci um pouco mais,
descobri que ele era casado e que sua esposa estava em Londres
estudando medicina, enquanto ele estava na Alemanha estudando
alemão, para voltar a concluir seus estudos de doutorado em
engenharia mecânica numa universidade alemã. Logo descobri que,
uma vez por semana, ele ia ao bairro de prostitutas e pagava para
ter uma mulher. Por esse tempo, eu já o conhecia bem. Por isso, certa
noite, quando saímos para uma refeição, eu lhe perguntei: “Não
quero ser muito intromedito, mas o que você diria se descobrisse que
sua esposa está fazendo algo semelhante em Londres?”“Ah! Eu a
mataria!” — ele respondeu.Eu lhe disse: “Ora, isso parece um padrão
duplo”.“Sim”, ele respondeu, “mas você tem de entender. Na parte do
mundo de onde eu vim — em nossa estrutura tribal — ela estaria me
desonrando. Seria uma questão de honra. Eu teria de matá-la”.“Mas
você me disse que foi educado na escola de uma missão. Você
aprendeu a Bíblia. Você sabe que o Deus da Bíblia não é injusto — ele
não tem um conjunto de padrões para os homens e um conjunto de
padrões para as mulheres”.“Le bom Dieu”, ele respondeu, “il doit
nous pardonner. C’est son métier”. “Deus é bom. Ele certamente
perdoará. Esse é o seu trabalho.” Na verdade, meu amigo estava
citando as palavras de Catarina, a Grande. É uma grande afirmação
para nos livrar de uma situação difícil e para nos esquivar de
qualquer tipo de culpa, não é? Esse é um tipo de modelo do
relacionamento entre Deus e os seres humanos. Deus é um avô
supermanso cujo trabalho consiste em ser bom e perdoar-nos.
 
MODELO 2: DEÍSMO
 
Deus é espetacularmente grande. Pense nas eras incalculáveis
necessárias para viajarmos de galáxia a galáxia, à velocidade da luz.
Quantas galáxias existem? Onde é o final? E Deus fez tudo isso! Ele é
maior do que tudo isso, incalculavelmente grande,
transcendentemente glorioso. Então, é claro que não podemos esperar
que ele se preocupe com nossa existência insignificante nesse mundo.
Temos tanta importância para ele como uma nanopartícula tem para
nós. Ainda que tenhamos alguma preocupação genuína com os
animais de nossa chácara, não damos a menor importância para os
vermes da terra. Por que Deus se preocuparia conosco? Ele pode ter
colocado todo o universo a funcionar como um grande relógio
antiquado, mas agora o universo está funcionando sozinho, sem
qualquer ação de Deus, fazendo tudo por si mesmo.Nem o modelo do
deísmo nem o do avô se harmoniza com a Bíblia. É verdade que, de
acordo com a Bíblia, Deus criou todas as coisas. Além disso, ele é
“grande”, transcendentemente glorioso. Mas ele também é descrito
como pessoal, um ser que interage e fala com as criaturas que criou à
sua imagem, sendo intimamente interessado nas coisas delas e
considerando-as responsáveis para com ele. Descobriremos que Deus,
conforme descrito na Bíblia, é incalculavelmente amoroso, embora, ao
mesmo tempo, totalmente santo; de tal modo que, ao confrontar a
rebelião, o pecado e tudo que é perverso e mau, ele se mostra irado —
e não há outra palavra para descrever sua atitude.Portanto, o Deus
do primeiro modelo, que é bastante comum, não pode ser
harmonizado com a Escritura, porque ele é apenas bonzinho: não há
justiça nele, nenhuma virtude moral, nem julgamento, nem a simples
paixão de ser Deus e de ser reconhecido como Deus. O modelo do avô
nos coloca no centro do universo, e a função de Deus é amimar-nos
ali. Isso é chamado de idolatria. O segundo modelo não pode ser
harmonizado com a Escritura porque retrata a Deus como muito
distante, muito desinteressado, muito impessoal. Deus é mostrado na
Bíblia como intensamente pessoal e totalmente soberano.Podemos
considerar outro modelo do relacionamento entre Deus e os seres
humanos.
 
MODELO 3: TROCA DE FAVORES
 
Este é um modelo muito comum no mundo do politeísmo, ou
seja, nas religiões em que há deuses múltiplos. Esses deuses são
todos finitos. Todos eles têm personalidade, e muitos deles têm suas
peculiaridades, fraquezas, males, excentricidades, pecados e
necessidades. Eles possuem, também, suas esferas de interesse, seus
domínios de operação. Portanto, a maneira como a religião pagã
funciona é assim: você vai ao templo do deus específico e lhe oferece o
tipo de coisa que ele quer. Você faz um favor para esse deus,
oferecendo-lhe um sacrifício específico ou fazendo uma doação ao seu
templo ou envolvendo-se em algum ritual prescrito. Assim, talvez esse
deus lhe dê o que você quer.Então, no século I, você quer fazer uma
viagem segura pelo mar no mundo do Mediterrâneo? Você se dirige ao
templo de Netuno, o Deus do mar. Oferece os sacrifícios apropriados,
espera e ora que Netuno mantenha o mar calmo e você tenha uma
viagem tranquila. Você precisa fazer um discurso importante para os
seus acionistas? Então, você recorre ao deus da comunicação,
Hermes, no mundo grego, e Mercúrio, no mundo latino. Você oferece
os sacrifícios apropriados. Faz um favor àquele deus, e ele lhe faz de
volta um favor. Assim, essa forma de religião é um tipo de arranjo de
retribuição equivalente: você me faz um favor, eu lhe faço outro de
volta. Nesse tipo de religião, você pode viver em certo temor de que
não pagou o suficiente, de que não fez o favor apropriado ou de que,
talvez, o deus em questão seja particularmente genioso.Temos de
reconhecer que alguns cristãos também pensam que seu
relacionamento com Deus é do tipo “troca de favores”. Se você for
muito bom, terá um casamento feliz. Se fizer suas devoções todos os
dias, viverá uma vida longa e não terá câncer enquanto não estiver,
pelo menos, com 96 anos de idade. Se você for honesto no trabalho,
não perderá seu emprego, como acontece com outras pessoas, que
merecem perdê-lo mais do que você. Se você sempre fizer suas
orações, seus filhos nunca se rebelarão. E um dia você irá para o céu.
Você me faz um favor, e eu lhe faço de volta um favor.O problema
neste modelo é que ele pressupõe que o Deus da Bíblia tenha
necessidades: você precisa oferecer-lhe algo que ele precisa e, por isso,
quer. Essa é a razão pela qual, na religião, a abordagem “troca de
favores” é um sistema de permuta. Essa é a razão pela qual o
sistema funciona, pelo menos em teoria, no politeísmo. Os deuses são
todos finitos. E todos eles têm necessidades. Mas suponha que você
tenha de lidar com um Deus que não tem nenhuma necessidade. O
que você lhe oferecerá?
 
DEUS NÃO PODE SER MANIPULADO (ATOS 17.24)
 
O apóstolo Paulo entendeu estas questões. Ele foi um pregador
do século I que apareceu na narrativa bíblica pouco depois da
crucificação e ressurreição de Jesus. Paulo escreveu um quarto do
Novo Testamento. Ele foi especialmente capacitado para anunciar o
Deus da Bíblia aos politeístas que dominavam a cultura do mundo
imperial romano. Por isso, nós o encontramos, por exemplo, na
grande cidade de Atenas, explicando cuidadosamente que existe um
único Deus, que não pode ser manipulado e que esse entendimento
faz grande diferença. Naquele tempo, Atenas tinha a reputação de ser
a mais erudita cidade do mundo romano, seguida por Alexandria, no
Egito.
Quando apresentou sua mensagem a alguns filósofos e mestres
em Atenas, Paulo explicou a eles o que sustentava ser a verdade. O
mundo dos atenienses era um mundo de deuses, e a natureza de sua
religião era “troca de favores”. Mas Paulo lhes disse: “O Deus que fez
o mundo e tudo o que nele existe [isso mostra Paulo afirmando o
ensino bíblico de Gênesis 1-2 sobre a criação], sendo ele Senhor do
céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas”
(At 17.24). Paulo não pretendia dizer que Deus não poderia se revelar
em um templo, se resolvesse fazer isso. O que Paulo pretendia dizer
era que Deus não podia ser reduzido a um templo, sendo manipulado
e controlado por uma classe sacerdotal. Não podemos colocá-lo em
uma posição em que o controlemos para fazer a nossa vontade,
oferecendo dinheiro a uma classe de sacerdotes conectados a um
templo, os quais são, conforme se alega, peritos em descobrir o que
os deuses querem. O Deus da Bíblia é muito grande para isso; ele fez
tudo que existe. Ele é soberano sobre tudo e não pode ser
manipulado.
 
DEUS NÃO PRECISA DE NÓS (ATOS 17.25)
 
Em seguida, Paulo disse isto: “Nem é servido por mãos
humanas, como se de alguma coisa precisasse” (At 17.25). Isso não é
admirável? Deus não precisa de você. E certamente não precisa de
mim. Ele não precisa de nossas bandas de louvor. Isso não é como se
Deus chegasse à tarde de quinta-feira e começasse a disser: “Oh! mal
posso esperar até domingo, quando os rapazes darão um show com
aquelas guitarras novamente. Estou me sentindo tão sozinho. Preciso
ser estimulado aqui”. Ele não precisa de nossa adoração. Não precisa
de nosso dinheiro. Não precisa de nós. Não precisa de nada. Na
eternidade passada, antes que existisse qualquer coisa, Deus estava
lá; e ele era totalmente cheio de gozo e contentamento. Mesmo
naquele tempo, ele era um Deus amoroso, porque na complexidade da
unicidade de Deus (em categorias que veremos em momento
oportuno), o Pai amava o Filho (chegaremos a essas categorias).
Havia uma distinguibilidade em Deus. Ele não criou seres humanos
porque estava sozinho e pensou: “Meu trabalho como Deus será mais
agradável se eu fizer um ou dois portadores de minha imagem que me
afaguem de vez em quando”. Ele não precisa de nós. Nesse sentido,
Deus não pode ser comparado com os deuses finitos e necessitados do
politeísmo.
Não me entendam mal: o fato de Deus não precisar de nós não
significa que ele não nos corresponda, que não se deleite em nós, que
não se satisfaça em nós. Ele nos corresponde, mas faz isso não
motivado por alguma necessidade intrínseca em seu ser ou caráter, e
sim por total determinação de suas perfeições e vontade. Deus
interage conosco não porque não preveja o futuro ou deixe as coisas
saírem do controle ou por ter renunciado sua soberania ou nunca
tenha sido soberano ou seja psicologicamente debilitado ou necessite
de algo — antes, é motivado pelas perfeições de tudo que ele é, com
todas as suas características e atributos. Ele sempre corresponde em
harmonia com todos os seus atributos. Ele nunca é menos do que
Deus.Você pode imaginar quão difícil foi para Paulo comunicar essa
verdade para aqueles acadêmicos sofisticados, cuja noção de religião
estava presa a uma forma de politeísmo do tipo “troca de favores”?
 
NÓS PRECISAMOS DE DEUS (ATOS 17.25)
 
Para acentuar ainda mais a distinção entre Deus e os deuses dos
atenienses, Paulo acrescentou: “Ele mesmo é quem a todos dá vida,
respiração e tudo mais” (At 17.25). Deus não precisa de nós, mas nós
precisamos dele. O ensino de Paulo procede diretamente de Gênesis 1-
3: somos dependentes de Deus quanto à “vida, respiração e tudo
mais”.Quando o Senhor Jesus esteve na terra, ensinou que nem um
pardal cai do céu sem a aprovação de Deus e que até os cabelos de
nossa cabeça estão contados (ver Mt 10.29-30). Em meu caso, isso
significa que Deus está fazendo uma conta de subtração rápida, e ele
conhece todos os meus cabelos, até os que desaparecem. E cada
respiração, eu a tenho por permissão de Deus. Sou dependente dele,
Paulo nos lembra, quanto à vida, à respiração e tudo mais — quanto
ao alimento, quanto à saúde. Sou uma criatura totalmente
dependente. Eu não sou o Criador.Então, como você pode ter um
relacionamento com este Deus? Ele não é um avô supermanso. Além
disso, ele não está muito longe, em segurança. Ele é intensamente
pessoal, mas não tem nenhuma necessidade. Isso significa que não
temos nada para trocar com ele. A única razão por que ainda
estamos aqui é que Deus permite que isso aconteça.Na semana
passada, um de meus amigos que ensinava em um seminário de
Dallas — um bom amigo, um professor de Novo Testamento, autor de
livros importantes, pai de três filhos: um é missionário na Sibéria, o
outro, na Rússia, e o outro, no Afeganistão — estava correndo. Ao
voltar para casa, deitou-se e morreu. Ele não pôde fazer nada quanto
a isso. Se o nosso coração continua batendo, isso acontece porque
Deus permite. E, se ele diz: “Venha para casa, meu filho. Está na
hora. Seu trabalho está terminado”, você vai. Ou, se ele diz: “Louco,
nesta noite pedirão a sua alma”, você morre. Como você barganhará
com um Deus assim? “Ó Deus, eu lhe darei 10%.” Mas ele possui você
e tudo que você é e tem. “Senhor, eu me tornarei um missionário.”
“Serei um diácono melhor na igreja.” Você está tentando subornar a
Deus? Isso o tornará uma pessoa melhor?Não, só há uma maneira de
termos um relacionamento com este Deus: se ele nos mostrar graça
soberana. Não temos nada que possamos trocar com ele.A maneira
como a graça soberana — a decisão de Deus de ser gracioso para
algumas pessoas — age na Bíblia, pode ser vista em várias
estruturas diferentes. Às vezes, Deus promete graciosamente fazer
alguma coisa, para que as pessoas aprendam a crer no que ele diz,
creiam em sua Palavra e anseiem pelo que ele fará. Às vezes, Deus
entra em acordos formais com elas. Esses acordos formais são
chamados “alianças”. Acho que podemos pensar nas alianças como
um tipo de contrato, um acordo legal — exceto que os contratos
modernos são negociados por ambas as partes. Na Bíblia, as alianças
refletem, muitas vezes, alianças que eram bem conhecidas no mundo
antigo. Em alguns casos, um superpoder regional impunha uma
“aliança” a um estado vassalo: a aliança era toda de cima para
baixo. Isso se aplica igualmente a Deus: ele é o Deus que escreve seus
próprios acordos, suas alianças, e nisso sua graça é
espetacularmente manifestada.A Bíblia fala sobre várias alianças que
Deus estabeleceu. Começaremos com a aliança feita com Abraão.
 
GÊNESIS 12
 
O que aconteceu nos capítulos intermediários — ou seja, entre
Gênesis 3 e 12 — não é agradável. Abominações se multiplicaram até
que Deus destruiu quase tudo no planeta, por meio de um dilúvio.
Somente algumas poucas pessoas foram poupadas, e o líder, Noé,
ficou bêbado prontamente. No capítulo 11, a rebelião está crescendo
pela terra novamente, em desafio a Deus. E, agora, em Gênesis 12,
lemos: “Disse o SENHOR a Abrão [seu nome foi depois mudado para
Abraão; continuarei chamando-o de Abraão]: Sai da tua terra, da tua
parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei”
(Gn 12.1). Nesse tempo, Abraão vivia em um lugar chamado Ur, na
antiga Babilônia. Depois, ele se mudou para uma cidade chamada
Harã. Agora, Deus estava lhe dizendo que fosse para um lugar que se
tornaria a terra de Israel. Deus prometeu a ele três coisas:
 
De ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te
engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que
te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti
serão benditas todas as famílias da terra.
Gênesis 12.2-3
 
Isso é uma promessa. Mais tarde, a promessa foi acrescentada de
detalhes. Os descendentes de Abraão seriam tão numerosos como a
areia do mar. Um filho foi prometido a Abraão, e esse filho prometido,
por meio de quem viria todas as bênçãos, nasceria quando Abraão
estivesse em idade avançada. Nessa altura, Abraão já tinha 75 anos.
Sua esposa também estava envelhecendo, mas a promessa era que o
filho viria da união de Abrão e sua esposa, Sara. Abraão atravessou
períodos de dúvida e incerteza. Ele tentou facilitar as coisas
dormindo com outra mulher. É uma história desagradável. Mas, por
fim, Deus cumpriu sua promessa. Eles tiveram um filho, um filho
chamado Isaque.
No devido tempo, Isaque casou, e sua esposa deu à luz dois
filhos. Antes de os meninos nascerem, Deus falou à mãe: “Você tem
gêmeos em seu ventre. Deixe-me dizer-lhe: o mais velho servirá ao
mais novo” (ver 25.23). Naquela cultura, esse arranjo não seria
normal, mas Deus escolheu, em sua soberania, o mais novo, antes
mesmo que os meninos tivessem feito bem ou mal. Motivado por sua
graça soberana, Deus escolheu um acima do outro e predisse o que
aconteceria. Em seguida, Deus preservou certa linhagem através dos
anos, geração após geração, até que as tribos se multiplicassem e,
por fim, possuíssem a terra.
E, no meio de todas estas promessas, esta se destaca: “Em ti
serão benditas todas as famílias da terra” (12.3). Deus estava não
somente escolhendo Abraão e seus descendentes, mas também
insistindo que, por meio desses descendentes tribais, todos os povos
da terra seriam abençoados. Isso nos mostra Deus prometendo algo
de maneira graciosa, soberana e incondicional.
 
GÊNESIS 17
 
Mas, depois, há não somente a promessa, mas também a
aliança. Em Gênesis 17, lemos:
 
Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos,
apareceu-lhe o SENHOR e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-
Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. Farei uma
aliança entre mim e ti e te multiplicarei
extraordinariamente.
Prostrou-se Abrão, rosto em terra, e Deus lhe falou:
Quanto a mim, será contigo a minha aliança; serás pai de
numerosas nações. Abrão já não será o teu nome, e sim
Abraão; porque por pai de numerosas nações te constituí.
Far-te-ei fecundo extraordinariamente, de ti farei nações, e
reis procederão de ti.
Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e a tua
descendência no decurso das suas gerações, aliança
perpétua, para ser o teu Deus e da tua descendência.
Dar-te-ei e à tua descendência a terra das tuas
peregrinações, toda a terra de Canaã, em possessão
perpétua, e serei o seu Deus.
Disse mais Deus a Abraão: Guardarás a minha aliança, tu e
a tua descendência no decurso das suas gerações.
Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a
tua descendência: todo macho entre vós será circuncidado.
Gênesis 17.1-10, ênfase acrescentada
 
Isso é muito admirável. Isso não é apenas uma promessa; é uma
aliança — uma aliança imposta por Deus, que deixou ambas as
partes com obrigações. Deus seria o Deus de Abraão e seus
descendentes, asseguraria a terra para eles e garantiria que nações
inteiras procederiam de Abraão. De sua parte, Abraão e seus
descendentes tinham de guardar a aliança — ou seja, deviam manter
fidelidade para com Deus e confirmar sua aceitação dessa aliança
por meio do rito da circuncisão. E, no final do capítulo, o texto nos
diz: “Tomou, pois, Abraão a seu filho Ismael, e a todos os escravos
nascidos em sua casa, e a todos os comprados por seu dinheiro, todo
macho dentre os de sua casa, e lhes circuncidou a carne do prepúcio
de cada um, naquele mesmo dia, como Deus lhe ordenara” (17.23).
 
GÊNESIS 15
 
Assim, temos primeiramente uma promessa (Gênesis 12) e,
depois, uma estrutura de aliança (Gênesis 17). Entre Gênesis 12 e
17, há outro capítulo que fala sobre aliança: Gênesis 15. No começo
desse capítulo, Deus falou: “Não temas, Abrão, eu sou o teu escudo, e
teu galardão será sobremodo grande” (15.1). Depois, segundo esse
mesmo capítulo, Abraão caiu em profundo sono (15.12) e teve uma
visão espetacularmente sobrenatural. A preparação para a visão
aconteceu quando Abraão perguntou a Deus:
 
SENHOR Deus, como saberei que hei de possuí-la?
Respondeu-lhe: Toma-me uma novilha, uma cabra e um
cordeiro, cada qual de três anos, uma rola e um pombinho.
Ele, tomando todos estes animais, partiu-os pelo meio e
lhes pôs em ordem as metades, umas defronte das outras; e
não partiu as aves.
Gênesis 15.8-10
 
Agora, temos uma novilha partida ao meio, uma cabra partida
ao meio, um cordeiro partido ao meio, um pássaro de um lado e um
pássaro do outro lado.
 
Aves de rapina desciam sobre os cadáveres, porém Abrão as
enxotava.
Ao pôr do sol, caiu profundo sono sobre Abrão, e grande
pavor e cerradas trevas o acometeram;
então, lhe foi dito: Sabe, com certeza, que a tua posteridade
será peregrina em terra alheia, e será reduzida à
escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas
também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e
depois sairão com grandes riquezas.
E tu irás para os teus pais em paz; serás sepultado em
ditosa velhice.
Na quarta geração, tornarão para aqui; porque não se
encheu ainda a medida da iniquidade dos amorreus.
E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um
fogareiro fumegante e uma tocha de fogo que passou entre
aqueles pedaços.
Naquele mesmo dia, fez o SENHOR aliança com Abrão.
Gênesis 15.11-18
 
O que estava acontecendo? Isso impressiona o leitor moderno
como algo bizarro. Hoje, quando falamos em escrever os nossos
acordos, não é isso que acontece no final da cerimônia de assinatura.
 
ALIANÇAS NO MUNDO ANTIGO
 
Havia diferentes tipos de aliança no mundo antigo. Como já
indiquei, às vezes, as alianças eram estabelecidas entre um
superpoder regional e pequenos estados vassalos. O superpoder
regional — os hititas, em alguns períodos de tempo, os assírios em
outros, e os babilônios em outros — arranjaria um acordo, uma
aliança. Basicamente, a aliança dizia: “Cuidaremos de vocês.
Manteremos seguras as suas fronteiras. Garantiremos que sejam
protegidos de inimigos. E vocês pagarão seus tributos e mostrarão
lealdade a nós”, e assim por diante. Era um acordo entre duas partes.
A aliança especificava que, se uma das partes não cumprisse os
termos, certas coisas desagradáveis deveriam acontecer à parte
ofensora. Obviamente, o superpoder regional tinha o poder de impor
as punições desagradáveis, e não a outra parte, mas essa era a
maneira como as alianças eram escritas. Às vezes, um dos sinais
desse tipo de acordo e ameaça correspondente era tomar animais,
parti-los ao meio e colocar as partes em dois lados; em seguida, as
duas partes celebrantes da aliança passavam entre os animais
divididos, para significar: “Que isto aconteça comigo se eu quebrar
esta aliança. Que eu seja partido ao meio. Que eu seja cortado pela
metade”.
Por isso, Abraão preparou os animais. Obviamente, Deus não era
um ser humano para caminhar ao lado de Abraão, entre os animais.
Abraão caiu em sono profundo, e, em seu sonho, ele viu uma tocha de
fogo que representava a presença de Deus. Um fato interessante é
que, em vez de mover-se entre os animais lado a lado com Abraão
(como se os dois estivessem dizendo: “Que isto aconteça conosco se
algum de nós quebrar a aliança”), Deus passou por aquele corredor
de sangue sozinho. Ele tomou para si mesmo a total responsabilidade
pelo cumprimento da aliança. Isso é graça.
Abraão pecaria. Isaque, seu filho, seria um covarde. O filho
seguinte, Jacó, aprenderia algumas lições ao longo de sua vida, mas
ele sempre seria um enganador e espertalhão. Jacó teve 12 filhos: um
deles dormiu com a concubina de seu pai; outro dormiu com sua
própria nora; dez desses filhos não podiam resolver se matariam seu
irmão mais novo ou se o venderiam como escravo. E estes são os
patriarcas! Apesar disso, Deus não os destruiu. Ele havia jurado por
meio daquele ato simbólico que, se viessem maldições, elas deveriam
cair sobre ele. É claro que os descendentes de Abraão, mais tarde
chamados israelitas, deviam praticar o sinal da aliança para mostrar
que eram filhos dela — e, assim, eles praticaram a circuncisão,
geração após geração. Todavia, à medida que os anos passaram, e a
onda moral subia e descia, podemos nos admirar de quanto dano e
destruição foram feitos, enquanto Deus ainda os tolerava por causa
da promessa de cumprir sua aliança. Ele os protegeria e os traria à
sua terra. E da descendência deles viria alguém por meio de quem as
nações da terra seriam abençoadas.
Há mais um capítulo em Gênesis que devemos considerar.
 
GÊNESIS 22
 
Gênesis 22 acontece depois do nascimento de Isaque, o filho
favorecido de Abraão. O texto bíblico nos diz:
 
Depois dessas coisas, pôs Deus Abraão à prova e lhe disse:
Abraão! Este lhe respondeu: Eis-me aqui!
Acrescentou Deus: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a
quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em
holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei.
Gênesis 22.1-2
 
Assim, Abraão vai até ao lugar. O filho, que tem cerca de 13
anos, diz:
 
Meu pai! Respondeu Abraão: Eis-me aqui, meu filho!
Perguntou-lhe Isaque: Eis o fogo e a lenha, mas onde está o
cordeiro para o holocausto?
Respondeu Abraão: Deus proverá para si, meu filho, o
cordeiro para o holocausto; e seguiam ambos juntos.
Gênesis 22.7-8
 
Em uma cena horrível, Abraão deita seu filho no altar e está
prestes a matá-lo — a sacrificar seu próprio filho.
 
Mas do céu lhe bradou o Anjo do SENHOR: Abraão! Abraão!
Ele respondeu: Eis-me aqui!
Então, lhe disse: Não estendas a mão sobre o rapaz e nada
lhe faças; pois agora sei que temes a Deus, porquanto não
me negaste o filho, o teu único filho.
Tendo Abraão erguido os olhos, viu atrás de si um carneiro
preso pelos chifres entre os arbustos; tomou Abraão o
carneiro e o ofereceu em holocausto, em lugar de seu filho.
E pôs Abraão por nome àquele lugar — O SENHOR Proverá.
Daí dizer-se até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se
proverá.
Então, do céu bradou pela segunda vez o Anjo do SENHOR a
Abraão e disse: Jurei, por mim mesmo, diz o SENHOR,
porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho,
que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua
descendência como as estrelas dos céus e como a areia na
praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade dos
seus inimigos,
nela serão benditas todas as nações da terra, porquanto
obedeceste à minha voz.
Gênesis 22.11-18
 
Ora, talvez você pergunte: “Que tipo de Deus quer que alguém
sacrifique seu próprio filho?” Nas religiões pagãs daquele tempo, não
era incomum os pais sacrificarem seus filhos. Um deus pagão
chamado Moloque era representado como segurando um grande vaso
de pedra em suas mãos, e um fogo era acesso debaixo do vaso até que
ficasse vermelho ardente. Algumas vezes, os pais lançariam naquele
vaso seus filhinhos gritantes. Isso não era algo incomum. Era uma
marca de devoção. Mas o principal ensino desse relato de Gênesis é
que isso não é o que Deus quer. Como poderíamos agradar a Deus, o
Deus da Bíblia, destruindo nossos filhos?
Em um sentido, devemos ver esse acontecimento como um tipo
de prova em harmonia com as normas culturais daqueles dias: “Você
tem para comigo o tipo de confiança que os pagãos parecem ter em
seus deuses — seus deuses falsos e assassinos, aos quais eles estão
dispostos a sacrificar seus próprios filhos?” Mas, quando chega o
momento crucial, Deus diz, na realidade: “Você não entende? Eu
providencio o sacrifício! Como você pode me agradar por sacrificar
seu filho?” Assim como em Gênesis 15, somente Deus anda pelo
corredor sangrento e toma sobre si mesmo a maldição da aliança,
neste acontecimento, ele providencia o sacrifício. A proibição de
sacrifício de crianças foi incorporada, no tempo oportuno, à lei do
Antigo Testamento. O sacrifício de crianças devia ser visto como um
crime idólatra, a despeito das pressões culturais da época. O Deus
presente não exige que sacrifiquemos nossos filhos. Em vez disso, em
sua graça soberana, ele provê um sacrifício. O que ele quer é que nos
voltemos totalmente para ele e digamos: “Tu és Deus. Tu és Senhor.
Tu és soberano. Sou dependente de ti. Preciso de ti. Creio em ti. Eu te
obedecerei”.
Para todos as falhas da vida de Abraão e de nossa vida, Deus
provê o cordeiro sacrificial. As histórias e relatos começam a
multiplicar-se nas páginas do Antigo Testamento, em antecipação do
tempo em que Deus proveria um sacrifício que excede grandemente o
valor de um carneiro preso nos arbustos.
 
ORAÇÃO CONCLUSIVA
 
Confessamos, Senhor Deus, que em um mundo digital, cheio de
incontáveis bênçãos materiais, em um mundo de física nuclear e
ritmo impressionante, precisamos de esforço para considerar
atentamente essas passagens bíblicas. Mas começamos a vislumbrar
que tu és o Deus soberano a quem devemos tudo. O âmago de nossa
rebelião é o desejo de sermos Deus, em teu lugar, realizarmos as
coisas por nós mesmos, fazermos trocas contigo. Fazemos erros que
prejudicam a nós mesmos, nossa família, nossa cultura e as relações
entre as nações — tudo, desde pequena demonstração de
superioridade até racismo e genocídio e tudo que se acha entre estes.
No entanto, confessamos: no âmago de tudo isso, há esta rebelião
horrível, esta idolatria que exige que sejamos nossos próprios deuses.
Senhor, abra nossos olhos para que vejamos tua independência
soberana, tua glória, tua paciência conosco para não sermos
destruídos, a maneira como tomaste tempo, através de inúmeras
gerações, para mostrar que Deus gracioso e soberano tu és, até que,
na plenitude do tempo, enviaste teu próprio Filho, para ser o Cordeiro
de Deus que tira o nosso pecado. Senhor Deus, abra nossos olhos e
nosso coração, para que sejamos inescapavelmente atraídos a ele. Em
nome de Jesus, amém.
4
O Deus
que Estabelece Leis
S Suspeito que uma das objeções mais comuns levantadas contra
os cristãos de hoje e contra o cristianismo no Ocidente é que os
cristãos são intrinsecamente restritos e intolerantes. Eles sustentam
que certas coisas são verdadeiras e que os seus opostos são falsos.
Distinguem entre ortodoxia e heresia. Eles têm suas próprias regras
de conduta, de moralidade. Aprovam algumas coisas e desaprovam
outras. Isso é arrogante e, ainda pior, divisivo. Em vez de edificar
uma comunidade cívica, para estabelecer uma sociedade
genuinamente tolerante, essas linhas inflexíveis têm o resultado
inevitável de gerar divisionismo. Para aqueles que são criados em
algumas das tendências pós-modernas mais fortes, sob a influência,
digamos, de Michael Foucault, todas as reivindicações de falar a
verdade são, na realidade, revindicações de poder; são formas de
manipulação. Em vez fomentar a liberdade, apenas engendram
constrangimento e coerção.
No entanto, quando consideramos as acusações mais
atentamente, elas são problemáticas. Nenhuma comunidade é
totalmente inclusiva. Tim Keller, pastor em Nova Iorque, gosta de dar
este exemplo: suponha que você tenha uma comissão de gays,
lésbicas e transexuais que labuta em uma grande cidade,
trabalhando em inclusão. Os membros da comissão se dão muito
bem. Suponha que um deles chegue a uma das reuniões da comissão
e diga: “Vocês sabem, isso é um tanto embaraçoso, mas eu tive uma
estranha experiência religiosa. Encontrei um grupo estranho de
pessoas — eles são cristãos — e toda a minha vida foi mudada. Eu
não vejo mais as coisas da mesma maneira. Não estou mais
convencido de que a homossexualidade é apenas um estilo de vida
alternativo”. Os outros lhe dizem: “Bem, achamos que você está
totalmente errado nisso, mas você é bem-vindo com suas ideias.
Ainda queremos acolhê-lo”. À medida que as semanas passam, as
tensões surgem, porque a comissão como um todo não está seguindo
a mesma direção que este membro específico segue. Por fim, as
pessoas da comissão dirão a este membro: “Sabe, você não
compartilha mais de nossas opiniões. Está seguindo noutra direção.
Sua percepção de certo e errado é diferente da nossa. Não temos mais
certeza de que você pertença a esta comissão. Achamos que seria bom
você renunciar”.
Eles teriam se envolvido em excomunhão.
É impossível sermos completa e incessantemente abertos, porque
até essa abertura incessante está baseada na suposição de que ela é
uma coisa boa. Por isso, se alguém diz: “Não é bom ser
incessantemente aberto”, aqueles que estão comprometidos com a
abertura incessante sentem que têm de rejeitar essa pessoa,
exatamente porque eles não querem ser incessantemente abertos com
a pessoa que não sustenta a opinião deles. Em outras palavras, em
um mundo finito há limites. Há, inevitavelmente, inclusões e
exclusões.
Além disso, até o apelo à verdade é inevitável. Em uma geração
anterior, a verdade era frequentemente analisada sob a categoria de
psiquiatria e psicologia. Isso está mudando novamente agora. Uma
geração atrás, a compositora popular Anna Russel zombou
gentilmente desta “geração eu” com suas formas de explicar todo
comportamento estranho:
 
Fui ao meu psiquiatra para ser psicanalisada
Para descobrir por que matei gato e arroxeei o olho de meu
marido.
Ele me deitou em um divã para ver o que podia descobrir
E eis o que ele extraiu de minha mente subconsciente:
Quando eu tinha um ano, mamãe escondeu minha boneca
numa árvore
Por isso, segue-se, naturalmente, que estou sempre bêbada.
Quando eu tinha dois anos, vi meu pai beijar a empregada
um dia,
E essa é a razão por que eu sofro agora de cleptomania.
Aos três anos, tive o sentimento de ambivalência para com
meus irmãos,
Por isso, segue-se, naturalmente, que envenenei todos os
que me amavam.
Mas estou feliz: aprendi agora a lição que isso me ensinou:
Tudo que eu faço de errado é culpa de outra pessoa.
 
Isso foi uma geração atrás. Agora lidamos com as coisas de um
modo diferente. Agora dizemos que a verdade é moldada pela
comunidade. A verdade é apenas aquilo que é percebido por um grupo
específico ou por um indivíduo do grupo. Houve um tempo em que os
céticos rejeitavam o cristianismo porque (diziam) ele não é
verdadeiro. Hoje eles são mais propensos a rejeitar o cristianismo
porque este afirma ser verdadeiro, visto que eles creem não existirem
absolutos. Nos anos 1960, muitos alunos universitários seguiam o
existencialismo individual de Albert Camus ou Jean-Paul Sartre. Hoje
é muito provável que eles creiam que as noções de moralidade e
verdade são formadas socialmente e que nenhum conceito assim
formado tem direito legítimo de ser superior a qualquer outra
perspectiva formada socialmente.
No entanto, é claro que, se você afirma que essa opinião é
verdadeira, então, você crê que ela é formada socialmente, por isso,
não pode reivindicar de maneira legítima qualquer superioridade. E,
em última análise, não podemos escapar da noção da verdade. Além
disso, a própria liberdade não pode ser permanentemente ilimitada.
Você gostaria de ser livre para tocar extremamente bem o piano?
Então, é inevitável que você tenha de aprender muita disciplina,
aprender que certos acordes soam bem e outros não. Há certos
princípios na maneira como a música opera. Você quer ser livre para
ter um casamento realmente maravilhoso, digno e feliz? Então você
não será livre para fazer certas coisas. Em outras palavras, uma
abertura incessante em relação à liberdade se torna um tipo de
escravidão.
Precisamos manter tudo isso em mente quando chegamos à
Bíblia e descobrimos que Deus legisla. Ele estabelece leis. A menos
que estejamos dispostos a pensar fora de nosso contexto cultural do
Ocidente, poderemos achar isso um tanto ofensivo. No entanto, na
narrativa bíblica, descobrimos que a lei de Deus está realmente
vinculada à jubilosa liberdade de vivermos sob o governo do Deus que
nos criou.
 
A NARRATIVA BÍBLICA DESDE OS PATRIARCAS
ATE A ENTREGA DA LEI
 
Vamos continuar a narrativa bíblica de onde a deixamos no
capítulo anterior. Terminamos no relato sobre os patriarcas (Abraão,
Isaque e Jacó), que haviam sido chamados por Deus para constituir
um tipo de nova humanidade que entraria em um relacionamento de
aliança com Deus. Eles permaneceram na terra de Canaã (depois
chamada de Israel), como nômades que cuidavam de grandes
rebanhos até que, por causa da fome, se mudaram, em bloco para o
Egito. À medida que os séculos se passaram, eles se multiplicaram
em número e se tornaram servos e escravos para os egípcios. Mas
ainda tinham uma herança de fé, que fora sustentada pelo Deus que
se manifestara ao patriarca Abraão. Os hebreus se multiplicaram.
Esse grupo de pessoas que seriam, mais tarde, conhecidas como
israelitas e, mais tarde ainda, como judeus prósperos, floresceu sob
escravidão e cativeiro.
No devido tempo, Deus levantou um homem chamado Moisés.
Este Moisés era hebreu, mas, por meio de circunstâncias estranhas,
foi criado na corte real egípcia. Quando ainda jovem, tomando
partido de seu povo étnico oprimido, acabou matando um egípcio e
fugindo para se salvar. Gastou boa parte de sua vida trabalhando
como um pastor no deserto, mas, quando tinha 80 anos, ouviu a voz
de Deus lhe ordenando-lhe que voltasse e livrasse seu povo da
escravidão, tirando-o do Egito. Em Êxodo 3, Moisés apresentou todas
as razões pelas quais não deveria ir: ele era muito velho e não sabia
falar muito bem em público. Outra pessoa deveria ir. Ele ainda era
um homem procurado no Egito.
 
Disse Moisés a Deus: Eis que, quando eu vier aos filhos de
Israel e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós
outros; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes
direi?
Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim
dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros.
Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de
Israel: O SENHOR, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o
Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós outros;
este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de
geração em geração.
Êxodo 3.13-15
 
Em outras palavras, Deus dá a si mesmo um nome (“EU SOU O
QUE SOU... EU SOU me enviou a vós outros”), mas não é um nome que
o restringe. Ele é o que é. “EU SOU O QUE SOU.” Depois, ele define a si
mesmo, revela a si mesmo para pessoas como Moisés, para pessoas
como nós, à medida que se revela progressivamente através dos
séculos. Deus é eterno. Ele não é um objeto de alguém que pode ser
caracterizado e definido. Deus é o que ele diz que é. Ele é o que revela
de si mesmo. Ele é. “Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me
enviou a vós outros” (3.14). E, por fim, Moisés tirou o povo da
escravidão. Talvez você já tenha ouvido falar das dez pragas e da
travessia do mar Vermelho. Moisés conduziu o povo para fora do
Egito.
Eventualmente, os israelitas que saíram do Egito vêm até um
monte no deserto, o monte Sinai. Não chegam ainda à terra
prometida. No monte Sinai, Deus faz outra aliança. Ele estabelece
outro acordo com os israelitas. A aliança ou acordo de Deus com
Abraão (como vimos no capítulo anterior), estava alicerçada na
promessa do que Deus faria, a única condição era de ele mesmo ser
Deus. Ele passou simbolicamente entre as partes daqueles animais
para dizer: “Isso é o que eu farei. É inconcebível que outra coisa
possa ser feita. Eu te abençoarei. Eu te darei segurança. Eu
multiplicarei a tua descendência, farei de ti uma grande nação, e, por
meio de tua descendência, todas as nações da terra serão
abençoadas”. Agora, no Sinai, Deus entra em uma nova aliança com
toda a nação. Frequentemente, nós a chamamos de aliança mosaica
(nome do homem que a mediou), ou a aliança do Sinai (nome do
monte em que Deus se revelou), ou a aliança da lei (pois contém
muitas leis, assim como a aliança feita com Abraão foi caracterizada
por promessa). No Novo Testamento, essa aliança é referida como a
“antiga aliança” uma ou duas vezes, porque precedeu a aliança que
Jesus estabeleceu, chamada de “nova aliança” — que, é lógico, torna
“antiga” a aliança anterior, dada por Moisés. Essa é a origem dos
títulos dados às duas partes da Bíblia. “Antigo Testamento” e “Novo
Testamento” são maneiras alternativas de nos referirmos à velha e à
nova aliança.
A velha aliança estabelecida no segundo livro da Bíblia, o livro
de Êxodo, especificava formas de religião, como a nação devia se
organizar, quem eram os sacerdotes e assim por diante. Acima de
tudo, ela revelava mais de Deus.
 
OS DEZ MANDAMENTOS (ÊXODO 20)
 
No âmago dessa aliança, há um grupo de versículos que nos dão
os Dez Mandamentos. Esses mandamentos são dados em duas
passagens no Antigo Testamento. A passagem que examinaremos é
Êxodo 20.1-19:
 
Então, falou Deus todas estas palavras:
Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da
casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança
alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra,
nem nas águas debaixo da terra.
Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o
SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos
pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que
me aborrecem
e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam
e guardam os meus mandamentos.
Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o
SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em
vão.
Lembra-te do dia de sábado, para o santificar.
Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra.
Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás
nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha,
nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o
forasteiro das tuas portas para dentro;
porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e
tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o
SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou.
Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus
dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá.
Não matarás.
Não adulterarás.
Não furtarás.
Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.
Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a
mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva,
nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que
pertença ao teu próximo.
Todo o povo presenciou os trovões, e os relâmpagos, e o
clangor da trombeta, e o monte fumegante; e o povo,
observando, se estremeceu e ficou de longe.
Disseram a Moisés: Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não
fale Deus conosco, para que não morramos.
 
Estes são os Dez Mandamentos. Diz-se frequentemente que eles
são divididos em duas partes: os primeiros quatro tratam do
relacionamento do povo com Deus; e os seis restantes tratam dos
relacionamentos entre as pessoas (não adulterar, falar a verdade e
assim por diante). Consideraremos rapidamente alguns desses
mandamentos.
 
MANDAMENTO 1: A EXCLUSIVIDADE DE DEUS
 
O primeiro dos Dez Mandamentos nos dirige ao reconhecimento
da exclusividade de Deus: “Não terás outros deuses diante de mim”
(20.3). Observe o contexto em que o mandamento foi dado. “Eu sou o
SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”
(20.2). Até este ponto da narrativa bíblica, Deus é revelado como o
Criador, aquele que fez tudo e todos. Como Criador, ele é o Deus a
quem temos de prestar contas, o Deus de quem somos dependentes, o
Deus que nos dá vida e respiração, saúde e força e tudo mais. Isso é
verdade quanto a todos os seres humanos. Mas, nesse texto de Êxodo,
o foco está no que Deus fez por alguns seres humanos específicos, os
descendentes de Abraão. Deus os tirou da escravidão. Por
consequência dessa libertação, Deus disse: “Não terás outros deuses
diante de mim” (20.3).
Este é um tema reiterado constantemente na Bíblia. Tanto por
ser criador como por ser libertador do povo da aliança, há uma
repetida exigência de lealdade ao Deus presente. Dois capítulos à
frente, lemos: “Quem sacrificar aos deuses e não somente ao SENHOR
será destruído” (22.20). Um capítulo depois deste, lemos: “Do nome
de outros deuses nem vos lembreis, nem se ouça de vossa boca”
(23.13). Onze capítulos depois, lemos: “Não adorarás outro deus;
pois o nome do SENHOR é Zeloso; sim, Deus zeloso é ele” (34.14). Ou,
novamente: “Eu sou o SENHOR, e não há outro” (Is 45.5). “Só contigo
está Deus, e não há outro que seja Deus” (Is 45.14).
Talvez a princípio fiquemos inquietos quanto à noção de um
Deus zeloso ou ciumento. Você quer que seu cônjuge seja
constantemente ciumento? Mesmo no contexto de casamento,
certamente você deseja que haja um pouco de ciúme, não deseja? Ou
seu casamento será do tipo aberto, em que ambos os cônjuges têm
permissão de fazer sexo com várias pessoas, sem repercussões —
todos são felizes com isso? Não há um senso de que, se vocês estão
realmente comprometidos um com o outro, certo tipo de ciúme, que
preserva o relacionamento, é bom e saudável, uma reação sábia? E
essa reação existe entre pares, entre amigos íntimos. Agora pense em
Deus, o Deus que criou todas as coisas. Retornamos à situação que
descobrimos em Gênesis 3. A natureza da primeira rebelião foi
idolatria. O que Deus deveria ter dito? “Oh! desenvolvam a
espiritualidade de vocês à medida que vivem. Inventem seu próprio
deus. Eu realmente não me importo.” Esse tipo de reação nega o
caráter de Deus. Nega o seu papel como Criador. Nega a sua função
exclusiva como sustentador soberano da vida. Em Êxodo 20, ele é o
Deus que resgatou seu povo da escravidão. Poderia ele dizer: “Vocês
podem fingir que outro deus os livrou, se quiserem. Podem fazer seus
próprios deuses”?
Ele é o SENHOR, cujo nome é Zeloso.
Na verdade, esse assunto também visa ao bem do povo. Se Deus
dissesse: “Vocês podem fazer o que quiserem”, eles simplesmente
cairiam em incessante autojustificação, amor próprio e egoísmo. Eles
se tornariam indistintos dos pagãos que viviam ao seu redor. Logo
ofereceriam seus filhos a Moloque, o deus que descrevi no capítulo 3.
Por que não? Os seus vizinhos faziam isso. Essa insistência na
centralidade em Deus visava o bem dos israelitas. Na verdade, era
um ato de amor, de grande generosidade. “Eu sou o SENHOR, teu Deus,
que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros
deuses diante de mim” (Êx 20.2-3). O primeiro dos Dez Mandamentos
nos ordena a reconhecer a exclusividade de Deus.
 
MANDAMENTO 2: A TRANSCENDÊNCIA DE DEUS
 
O segundo mandamento nos ordena a reconhecer a
transcendência de Deus. “Não farás para ti imagem de escultura,
nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo
na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Êx 20.4). A proibição
preserva a distinção entre o Criador e a coisa criada. Logo que você
começa a dizer: “Deus se parece com isto” (seja um peixe, ou uma
montanha, ou um ser humano), de algum modo você o reduz. Ele se
torna algo menor, que podemos encapsular, domesticar e, em alguma
medida, controlar. Mas vimos, desde o princípio, que Deus não quer
que o entendamos dessa maneira. Há apenas um Criador, e ele tem de
ser distinguido de tudo que constitui a ordem criada. Deus não pode
ser domesticado.
 
MANDAMENTO 3: A IMPORTÂNCIA DE DEUS
 
O terceiro dos Dez Mandamentos nos ordena a reconhecer a
importância de Deus. “Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em
vão, porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome
em vão” (Êx 20.7). No mundo antigo, o nome de uma pessoa estava
firmemente ligado à sua identidade e ao seu caráter. Quando uma
pessoa usava mal o nome de Deus, ela o desrespeitava, ela o
manchava. Portanto, quando a Bíblia nos manda dar glória ao
glorioso nome de Deus (como em Salmos 72.19), isso significa dar
glória a Deus. Significa louvar o próprio Deus.
A razão por que não devemos dizer: “Oh! Deus!”, quando
atingimos nosso polegar com um martelo, ou dizer: “Jesus!”, quando
somos desapontados, é porque isso diminui a Deus. Se você fosse tão
ousado ao ponto de se voltar para a pessoa que acabou de usar o
nome de Jesus, por haver machucado o seu polegar com um martelo,
e dizer-lhe: “Gostaria que você não usasse o nome de meu Salvador
dessa maneira”, ela talvez responderia: “Eu não quis dizer nada com
isso”. Mas este é justamente o problema: ela não quis dizer nada com
o nome de Jesus. Essa é a razão exata por que esse uso é “profano”,
ou seja, comum. Usar o nome de Deus ou de Jesus quando você não
quer “dizer nada” não é profano porque você falou uma palavra
mágica que não tinha permissão de usar, como se somente os
sacerdotes pudessem dizer o correto abracadabra. Esse uso do nome
de Jesus é profano porque é banal, é insignificante. Estamos lidando
com Deus e não devemos dizer ou fazer nada que o diminua ou
menospreze. Esse uso é, no melhor, desrespeitoso, ingrato e
desprezador; no pior, diminui a Deus e desce ao nível de idolatria.
 
MANDAMENTO 4: O DIREITO DE DEUS DE REINAR,
INCLUSIVE SOBRE O NOSSO USO DO TEMPO
 
O quarto dos Dez Mandamentos nos ordena a reconhecer o
direito de Deus de reinar sobre cada aspecto da vida, incluindo o uso
do tempo em que vivemos, nos movemos e temos nossa existência.
 
Lembra-te do dia de sábado, para o santificar.
Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra.
Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás
nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha,
nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o
forasteiro das tuas portas para dentro;
porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e
tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o
SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou.
Gênesis 20.8-11
 
Este padrão foi estabelecido na criação. Deus fez sua obra de
criação em seis dias e parou no sétimo dia. E o padrão estabelece,
nesta passagem, um ciclo de tempo na ordem humana. Há um tempo
para descanso. O motivo primário não é somente viver de acordo com
o padrão que Deus estabeleceu, mas também preservar um dia
dedicado ao “SENHOR, teu Deus” (20.10).
 
OUTRAS OBSERVAÇÕES
 
Poderíamos considerar o resto dos Dez Mandamentos, mas, em
vez disso, me restringirei a várias observações breves.
1. O capítulo começa dizendo: “Falou Deus todas estas palavras”
(Êx 20.1). Deus está sendo apresentado como um Deus que fala, não
somente com um discurso que trouxe o universo à existência (Gênesis
1-2) ou que interage com os portadores de sua imagem (Gênesis 3) e
estabelece uma aliança com eles (Gênesis 15), mas também com o
tipo de discurso que lhes dá ordens. Posteriormente, o texto bíblico
nos diz: “Estas palavras falou o SENHOR a toda a vossa congregação
no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridade, com grande
voz, e nada acrescentou” (Dt 5.22). Ele falou.
2. Esses Dez Mandamentos têm um lugar central na antiga
aliança. Eles são citados pelos profetas (Oseias, no século VII a.C., e
Jeremias, no final do século VII até o século VI a.C.) e nos Salmos. E
são, às vezes, aludidos no Novo Testamento.
3. Os primeiros quatro mandamentos nos levam aos seis
seguintes. Porque Deus é o que ele é, porque ele tem de ser honrado e
reverenciado, devemos nos comportar de certa maneira entre nós
mesmos.
4. Acima de tudo, os Dez Mandamentos estão relacionados à
autorrevelação de Deus em um ato redentor gracioso, a libertação de
seu povo da escravidão. Ele é o Deus que tira o seu povo da
escravidão e lhe diz: “Vocês agirão desta maneira”.
5. Em sua maior parte, os Dez Mandamentos não somente
introduzem novos padrões de comportamento, mas também codificam
o relacionamento que o povo da aliança de Deus deve ter com ele. Em
outras palavras, depois da Criação, o que saiu errado primeiro foi a
traição do relacionamento entre o Criador e os seres criados,
portadores de sua imagem. Pouco depois da Queda, os seres humanos
ficaram tão perdidos que um deles matou um outro (Gênesis 4) —
mesmo antes de estar em vigência uma lei que dizia: “Não matarás”.
A inserção da lei que proíbe matar nos Dez Mandamentos não torna o
assassinato um pecado, como se cometer assassinato antes da
introdução dos Dez Mandamentos fosse algo aceitável. Pelo contrário,
o assassinato já era uma atitude ímpia, uma traição perversa do
relacionamento que devíamos ter com Deus e uns com os outros. Mas
os Dez Mandamentos formalizam o que é exigido e o que é proibido.
Por essa razão, as leis de Deus, incluindo os Dez Mandamentos, não
têm o poder de transformar-nos; elas não têm o poder de libertar-nos
de nossa propensão para o pecado. Elas estabelecem os padrões e,
assim, em um sentido, ressaltam nossas falhas e fracassos —
expõem nosso mau comportamento pelo que ele é e torna-o mais do
que egocentrismo idólatra: nosso mau comportamento é agora
transgressão de mandamentos específicos.(1) Cobiçávamos e
fornicávamos mesmo sem a lei que diz: “Não adulterarás”; mas
agora, além da traição e da quebra de relacionamentos que são
intrínsecos à cobiça e à fornicação, essas atitudes são a quebra de
um mandamento específico.
 
O SANTO DOS SANTOS (LEVÍTICO 16)
 
Olhamos rapidamente os Dez Mandamentos, mas esses
mandamentos não são os únicos tipos de lei que Deus estabeleceu.
Ele também estabeleceu uma estrutura completa de rituais.
Não é possível resumir toda essa estrutura que Deus estabeleceu,
mas será proveitoso assimilar uma parte mais importante dela. Deus
ordenou que um tabernáculo (uma grande tenda, um tipo de
antecessor do templo) fosse erigido; e deveria ser construído de certa
maneira. Deus proveu o desenho e as dimensões exatas; e as pessoas
trabalharam e o construíram.
O tabernáculo era basicamente uma sala cujo cumprimento era
três vezes a dimensão da largura. Dois terços do tabernáculo eram
separados do último terço, o que constituía um quadrado perfeito. De
fato, era um cubo perfeito; as dimensões de cumprimento, altura e
largura eram exatamente as mesmas. A primeira sala, a maior, era
chamada de Santo Lugar; a segunda sala, separada da primeira por
meio de um véu ou cortina, era chamada de Santo dos Santos. Do
lado de fora da tenda, havia o lugar para o sacrifício de animais; no
interior do tabernáculo, havia uma variedade de objetos: um castiçal,
um lugar em que os pães eram colocados semana após semana e
outras coisas que não consideraremos. Fora do tabernáculo, havia
também átrios nos quais as pessoas se congregavam. Em muitas
maneiras, o desenho básico é bem simples — não exatamente o tipo
de catedral que você acha em Roma ou Canterbury, uma estrutura
enorme. O tabernáculo era, afinal de contas, uma tenda planejada
com excelência.
No interior do Santos dos Santos, havia uma caixa. Era
chamada de arca da aliança ou arca do acordo; ela continha certas
coisas, incluindo uma cópia dos Dez Mandamentos. Algo especial
acontecia com esta caixa uma vez por ano. Deus ordenara que uma
classe especial de pessoas realizasse essa atividade, ou seja, alguns
sacerdotes. Todos os sacerdotes eram tirados de uma das tribos dos
hebreus antigos, chamada os levitas. E o sumo sacerdote tinha de ser
um levita que descendia de uma família específica, a família de Arão,
irmão de Moisés. Uma vez por ano, o sumo sacerdote devia levar o
sangue de um bode e de um touro imolados para trás do véu, até ao
Santo dos Santos, e aspergi-lo no topo da arca da aliança. Isso
acontecia em um dia chamado “o Dia da Expiação”. Enquanto isso,
fora do tabernáculo, outro bode era levado ao deserto, para vaguear
ali.
Por conta de nosso mundo grandemente secular, alguns não
podem deixar de pensar: “Que tipo de religião era essa, que usava
sangue de animais e bodes errantes?” Essas coias eram também
parte do que Deus ordenara em sua lei. Neste caso, a descrição se
acha no terceiro livro da Bíblia: Levítico 16. Levítico é um livro que
descreve muitos dos sacrifícios que deviam ser realizados pelos
sacerdotes e o que os sacrifícios significavam. Todavia, tomamos um
espaço aqui para descobrir um pouco mais precisamente o que
acontecia no Dia da Expiação, conforme prescrito por Deus, o Deus
que estabelece leis.
 
Falou o SENHOR a Moisés, depois que morreram os dois filhos
de Arão [ou seja, o irmão de Moisés], tendo chegado aqueles
diante do SENHOR.
Então, disse o SENHOR a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que
não entre no santuário em todo tempo, para dentro do véu,
diante do propiciatório que está sobre a arca, para que não
morra; porque aparecerei na nuvem sobre o propiciatório.
Entrará Arão [que era o sumo sacerdote] no santuário com
isto: um novilho, para oferta pelo pecado, e um carneiro,
para holocausto.
Vestirá ele a túnica de linho, sagrada, terá as calças de
linho sobre a pele, cingir-se-á com o cinto de linho e se
cobrirá com a mitra de linho; são estas as vestes sagradas.
Banhará o seu corpo em água e, então, as vestirá.
Da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes, para
a oferta pelo pecado, e um carneiro, para holocausto.
Levítico 16.1-5
 
Em seguida, todo o ritual é descrito. Na cabeça de um dos bodes
— aquele que não seria morto — Arão colocava sua mão. Isso era
uma maneira de significar que os pecados do próprio sacerdote, de
sua família e de todo o povo estavam sendo transferidos, por assim
dizer, para o bode que levava embora, simbolicamente, o pecado
deles. Esse animal era solto no deserto, para nunca mais retornar. Os
outros dois animais, um carneiro e um novilho, eram imolados, e seu
sangue era coletado numa pequena bacia, levado ao Santo dos
Santos, atrás do véu, e aspergido no topo da arca da aliança; isso era
uma maneira de dizer que alguém havia morrido — alguém pagara o
preço de morte — pelos pecados do sacerdote, de sua família e do
povo. Isso tinha de acontecer uma vez por ano, no Dia da Expiação.
Essa era a única vez em que o sacerdote tinha permissão de entrar no
Santo dos Santos, aquele cubo perfeito.
Estou mencionando esses detalhes porque você verá no final
desse livro que todos esses detalhes são retomados posteriormente na
Bíblia. O fato de que a sala era um cubo é retomado mais tarde, bem
como a arca da aliança, o sangue de novilhos e de bodes e, além
destas coisas, a função do sumo sacerdote.
Você percebe onde estamos no desenvolvimento da narrativa
bíblica? Deus revelou a si mesmo como um Deus que considera o seu
povo responsável para com ele. Ele já havia banido Adão e Eva de
sua presença. Como alguém retorna à presença de Deus? Como
alguém pode ser reconciliado com ele? O que descobrimos é que todos
esses sacrifícios são ordenados sob a vigência da lei da aliança, sob a
vigência da aliança de Moisés, para indicar que a morte ainda
prevalecerá, sem o sacrifício, porque ainda há muito pecado, mesmo
entre o povo da aliança. Abraão era um pecador. Isaque e Jacó eram
pecadores. Os patriarcas eram pecadores. E, agora, o povo de Deus —
a comunidade da aliança, o povo com o qual Deus estabeleceu sua
aliança — também são pecadores terríveis. Isso nos leva a outra
passagem nesta coleção de livros. É uma das passagens mais
chocantes.
 
ÊXODO 32-34
 
O que é retratado neste capítulo é a descida de Moisés do monte
Sinai, quando ele trouxe pela primeira vez os Dez Mandamentos,
gravados em tábuas de pedra. Ele estava acompanhado do jovem
chamado Josué, que, por fim, se tornaria seu sucessor. Quando se
aproximaram do acampamento, eles ouviram muito barulho, e Josué
não sabia o que causava aquele barulho. Era um som de alegria?
Moisés foi o primeiro a discerni-lo: “Não é alarido dos vencedores nem
alarido dos vencidos, mas alarido dos que cantam é o que ouço” (Êx
32.18). Eles descobriram que, enquanto Moisés esteve fora (por
algumas semanas), o povo — que acabara de ser liberto da
escravidão e fora exposto repetidas vezes à autorrevelação graciosa
de Deus, o povo que estava prestes a entrar numa terra prometida e
ser estabelecido como nação — reduziu, de algum modo, o Deus que
operara toda aquela libertação, à imagem de um bezerro. Eles
disseram, na realidade: “Não sabemos onde está Moisés. Ele está fora
por várias semanas. E não estamos convencidos de que este Deus é
um ser muito transcendente. Gostaríamos de ter uma imagem que o
retratasse. Não podemos ter um deus que podemos ver e tocar, como
todos os vizinhos ao nosso redor?”
Arão, o irmão de Moisés, que ficara encarregado do povo, foi
amedrontado pelo que estava acontecendo, pelo potencial de violência
da multidão, e por essa razão disse: “Bem, deem-me os braceletes e os
brincos de ouro, e vejamos o que posso fazer”. Ele produziu um
pequeno e atraente bezerro de ouro, o tipo de imagem que era
conhecido nos círculos de ídolos no Egito. As pessoas estavam
realizando uma grande festa ao redor desse deus, um tipo de
adoração pagã que se tornava cada vez mais entusiasmada. De fato,
foi o som de cantos que Moisés ouviu, quando desceu do monte —
mas não o som de cantos em adoração ao Deus presente, e sim o
canto para um deus domesticado que podia ser tocado, beijado e
adulado. “Este é o deus que nos tirou da terra do Egito”, eles
cantavam. Nas cenas horríveis que se seguiram, Deus ameaçou
destruir todo a nação e começar de novo, talvez com Moisés. Moisés
intercedeu pelo povo em oração (ver Êxodo 33). Moisés se sentiu
terrivelmente sozinho e decepcionado com seu próprio irmão.
 
Disse Moisés ao SENHOR: Tu me dizes: Faze subir este povo,
porém não me deste saber a quem hás de enviar comigo;
contudo, disseste: Conheço-te pelo teu nome; também
achaste graça aos meus olhos.
Agora, pois, se achei graça aos teus olhos, rogo-te que me
faças saber neste momento o teu caminho, para que eu te
conheça e ache graça aos teus olhos; e considera que esta
nação é teu povo.
Êxodo 33.12-13
 
Ou seja, Moisés disse, em essência: “Eu não os escolhi. Eu não
os tirei da terra do Egito. Sou apenas o teu porta-voz. Tu tens de
fazer o que precisa ser feito com eles. Não posso mudar o coração
deles. Não posso salvá-los. Não posso redimi-los. Eles são o teu povo.
Não são o meu povo. Além disso, quem enviarás comigo?” De fato,
Deus havia ameaçado não ir mais com Moisés. Se ele fosse, o pecado
do povo, em proximidade com a santidade transcendente de Deus,
resultaria em que ele acabaria destruindo todos eles. Mas, em vez
disso, o SENHOR respondeu:
 
A minha presença irá contigo, e eu te darei descanso.
Êxodo 33.14
Descanso. Onde ouvimos essa linguagem antes? Você lembra que
no final da semana da criação Deus descansou? Entrar na terra
prometida é frequentemente retratado como entrar na terra de
descanso. Agora, Deus promete que, apesar do pecado do povo, ele os
acompanhará. Será tolerante e os levará ao descanso.
 
Então, lhe disse Moisés: Se a tua presença não vai comigo,
não nos faças subir deste lugar.
Êxodo 33.15
 
O que toda pessoa precisa ter é a presença do Deus vivo. Não
basta a uma igreja ter os rituais certos, os sermões certos e o tipo
certo de música. Se Deus não se manifestar de alguma maneira, se
ele não estiver presente, que vantagem há nessa igreja? O
cristianismo é meramente algum tipo de herança de rituais
estruturados? Ou ele depende de sermos reconciliados com o Deus
que nos criou e a quem temos de prestar contas? “Se tua presença
não vai conosco, que vantagem no cristianismo?” Moisés continuou:
 
Pois como se há de saber que achamos graça aos teus
olhos, eu e o teu povo? Não é, porventura, em andares
conosco, de maneira que somos separados, eu e o teu povo,
de todos os povos da terra?
Êxodo 33.16
 
Não há proveito algum em apenas ser diferente porque temos
regras. Precisamos ter Deus conosco.
 
Disse o SENHOR a Moisés: Farei também isto que disseste;
porque achaste graça aos meus olhos, e eu te conheço pelo
teu nome.
Então, ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória.
Êxodo 33.17-18
 
Uma coisa é andar pela fé, saber que Deus fala, mas, “por
favor”, disse Moisés, “eu não posso ver uma manifestação de tua
transcendência? Como tu és espetacular — eu não posso ver isso?
Não posso ter mais disso?”
 
Respondeu-lhe: Farei passar toda a minha bondade diante
de ti [ou seja, a glória de Deus é manifestada de algum
modo em sua bondade — preste atenção a estas palavras;
retornaremos a elas, quando, depois, estudarmos sobre
Jesus] e te proclamarei o nome do SENHOR; terei misericórdia
de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem
eu me compadecer.
E acrescentou: Não me poderás ver a face, porquanto
homem nenhum verá a minha face e viverá.
Êxodo 33.19-20
 
Já observamos que as ocorrências da palavra Senhor em letras
maiúsculas refletem as quatro letras hebraicas YHWH, pelas quais
Deus revelou a si mesmo: “EU SOU O QUE SOU”. Deus proclamou seu
próprio nome. Ele se identificou em meio aos muitos deuses da
vizinhança. Ele estava dizendo: “Isto é o que eu sou. Sou o Deus
presente. Proclamarei o meu nome — o SENHOR, em tua presença. Terei
misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de
quem eu me compadecer”. Como você lida com um Deus com quem
você não pode fazer trocas, que não tem necessidades? Isso tem de
ser uma obra da graça soberana: “Terei misericórdia de quem eu tiver
misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer” (33.19).
Mas, se o que você deseja é me ver de maneira íntima e pessoal, face
a face, então, disse Deus: “Não me poderá ver a face, porquanto
homem nenhum verá a minha face e viverá” (33.20).
 
Disse mais o SENHOR: Eis aqui um lugar junto a mim; e tu
estarás sobre a penha.
Quando passar a minha glória, eu te porei numa fenda da
penha e com a mão te cobrirei, até que eu tenha passado.
Depois, em tirando eu a mão, tu me verás pelas costas; mas
a minha face não se verá.
Êxodo 33.21-23
 
O relato espetacular do que aconteceu depois está em Êxodo 34.
Moisés se escondeu. O Senhor passou enquanto Moisés estava
escondido na fenda de uma rocha. Deus falou certas palavras. Depois
que o Senhor passou, Moisés teve permissão de espiar e ter apenas
um vislumbre da resplandecência da glória do Senhor. Isso foi tudo
que lhe foi permitido ver. E, quando o Senhor passou, as palavras que
ele pronunciou foram estas:
 
E, passando o SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR,
SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em
misericórdia e fidelidade;
que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a
iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não
inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos
e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração.
Êxodo 34.6-7
 
Poderíamos facilmente gastar o resto desse livro explicando
todas as coisas que Deus disse a respeito de si mesmo. À medida que
a narrativa bíblica se desenvolve, Deus revela progressivamente quem
e o que ele é.
Deus disse que “visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos
filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração” (34.7). Isso
acontece porque o pecado é social. O pecado nunca é individual. Você
não pode cometer um pecado, ainda que este seja bem particular, sem
que ele tenha repercussões não somente em sua própria vida, mas
também na comunidade em que você vive. Talvez a fraqueza seja tão
particular, como ver pornografia em secreto: certamente, isso não
fará dano a ninguém, exceto a você mesmo. Mas, na realidade, se
você vê pornografia em secreto, a sua maneira de considerar o sexo
oposto será gradualmente mudada, e isso moldará a dinâmica da
família, o que, por sua vez, influenciará seus filhos. Seu pecado tem
implicações sociais para a segunda, a terceira e a quarta geração.
Isso é o que Deus afirma nessa passagem. Deus transcende tempo e
espaço e pode ver as ramificações que você não pode.
No entanto, focalizarei o profundo paradoxo nessa
autorrevelação de Deus. Por um lado, ele é compassivo e gracioso. Se
ele não fosse compassivo e gracioso, a raça humana teria acabado no
final de Gênesis 3. Teria havido apenas julgamento. A morte foi
prometida, e, em vez disso, Deus foi tolerante. Ele é grande em
“misericórdia e fidelidade;(2) que guarda a misericórdia em mil
gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado” (Êx
34.6-7). Por outro lado, embora ele seja um Deus de perdão, ele não
se enquadra no primeiro modelo que vimos no capítulo anterior,
segundo o qual Deus é como um superavô que tem uma longa barba
branca e cujo único negócio é perdoar e ser bom. Ele é, também, o
Deus que não deixa o culpado sem punição. Como harmonizamos
esses dois temas? Já aprendemos que ele é o Deus que perdoa o
pecado; agora, o texto bíblico nos diz que não podemos fingir que o
pecado não está presente: Deus não inocenta o culpado. No Antigo
Testamento, na aliança mosaica, o Dia da Expiação é o ponto mais
próximo que chegamos da resolução dessa tensão: uma vez por ano, o
sumo sacerdote colocava sua mão sobre a cabeça de um bode e o
enviava embora, para simbolizar que o pecado era removido. Depois,
levava o sangue de outro bode e de um novilho à presença de Deus,
no Santo dos Santos, e o aspergia sobre a arca da aliança. Na
realidade, o sacerdote estava dizendo: “Merecemos morrer. Estes
animais morreram em nosso lugar. Isto resolverá? É o que o Senhor
ordenou. Isto resolverá? Não terás misericórdia de nós, em nosso
pecado, em nossa rebelião e deserção?”
Já vimos que a lei de Deus, embora seja muito importante, não
pode salvar-nos. Ela não tem poder para fazer isso, visto que temos a
capacidade de desobedecê-la. Na Bíblia, a demonstração mais notável
do fato de que a lei não pode salvar-nos e reconciliar-nos com Deus se
acha no final dos cinco primeiros livros. Quais são os cinco primeiros
livros? Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. São
frequentemente chamados de “Pentateuco” ou os cinco livros de
Moisés. Bem no final do último desses livros, Deuteronômio, no
último capítulo, Moisés não entrou na terra prometida. Ele foi
chamado de o homem mais manso que já viveu; foi aquele que
mediou a aliança; foi o herói que, em idade avançada, organizou a
nação, estabeleceu um sistema de sacerdotes e uma estrutura
judicial; era um homem de justiça e integridade, que guiou o povo,
repetidas vezes, através de tempos turbulentos. Mas ele explodiu aqui
e ali. Ele também pecou e não entrou na terra prometida. A lei não
pode salvar.
No entanto, a lei proporcionou um meio — uma estrutura
baseada em sacrifícios — pelo qual Deus se revelou como aquele que
acompanha o seu povo. Isso inclui o paradoxo que temos diante de
nós: o desejo de Deus de perdoar é emparelhado com sua insistência
de que o pecado seja punido. Esses polos terão uma solução gloriosa
somente 1.500 anos depois. Após a morte e ressurreição de Jesus,
outro livro foi escrito, um livro do Novo Testamento. Nós o chamamos
de Epístola aos Hebreus. O autor desse livro convida os seus leitores,
nos capítulos 9 e 10, a olharem para trás, para o antigo sistema de
sacrifícios, e lhes diz: “Vocês não entendem? Aqueles sacrifícios de
um bode e de um touro não podem resolver definitivamente o pecado!
Como podem, se os próprios sacerdotes têm de oferecer sempre os
mesmos sacrifícios, ano após ano? Como pode o sangue de um
novilho e de um bode pagar pelo pecado? Em que sentido o próprio
novilho oferece um sacrifício? O novilho vem e diz: ‘Tudo bem,
morrerei por vocês. Furem minha garganta’? Onde está exatamente o
valor moral neste sacrifício?”
O antigo Dia da Expiação, celebrado todo ano de acordo com a
aliança mosaica foi descartado, porque temos o sacrifício final pelo
pecado: o próprio Jesus, que derramou seu sangue em nosso favor,
um sacrifício moral perfeito. Ele ofereceu sua vida, sofreu a nossa
morte e retirou o nosso pecado, de um modo que nenhum animal
poderia fazer. A lei apontava para frente, para aquele único meio de
Deus reconciliar rebeldes consigo mesmo e unir em Jesus os polos de
Êxodo 34: Deus é grande “em misericórdia e fidelidade” (34.6) e
perdoa “a iniquidade, a transgressão e o pecado” (34.7), não porque
ele inocenta o culpado, e sim porque outro recebeu a punição deles.
Este é o Deus que estabelece leis e, ao estabelecê-las, nos aponta
para Jesus.

(1) Mil e quinhentos anos depois, o apóstolo Paulo formularia esse mesmo argumento sobre
a função da lei no âmbito da história bíblica (ver Gálatas 3).
(2) Lembre-se dessas duas palavras. Elas aparecerão de novo no capítulo 7.
5
O Deus
que Reina

O O que vem à nossa mente quando ouvimos a palavra “rei” ou


“monarca”? Sem dúvida, isso depende, em parte, de onde vivemos no
mundo. O último rei que os Estados Unidos tiveram, o rei George III,
não é tido em muito boa consideração. Os Estados Unidos são uma
república democrática, e não queremos nem precisamos de uma
monarca. Talvez não queiramos ir tão longe como Voltaire em nossa
avaliação antimonarca e anticlerical das coisas. Ele disse que ficaria
satisfeito quando o último rei fosse estrangulado com as entranhas
do último sacerdote. Entretanto, embora existam monarcas em outras
partes do mundo, sentimo-nos felizes que eles não estejam aqui. Se
estivéssemos numa disposição mais positiva, poderíamos pensar na
rainha Elizabeth II e admitir que a pompa real tem suas atrações.
Eles sabem realizar um casamento real decente, com cavalos vistosos,
carruagens incrustadas de ouro, coroas espetaculares e aquelas
cornetas longas que repercutem um som agudo e penetrante, não é
mesmo?! Há algo extasiante nisso, não há? Considere: a rainha
Elizabeth II é uma monarca constitucional, uma maneira educada de
dizer que ela não tem muito poder real. Ela é limitada por uma
estrutura constitucional, à parte de qualquer conselho ou influência
moral que ela possa oferecer ao primeiro ministro.
Isso é muito diferente, digamos, do reino da Arábia Saudita.
Embora alguma limitação proceda da família maior, o governo desse
país é muito próximo de um reino absoluto. É diferente também do
reino da Tailândia. Os tailandeses amam o seu rei. Você realmente
não pode falar qualquer palavra contra a realeza na Tailândia. As
pessoas não aceitariam isso, embora as limitações no poder do rei
sejam bastante significativas.
 
O REINO DE DEUS SOBRE TUDO
 
Percepções quanto ao significado das palavras “rei” e “monarca”
diferem em várias partes do mundo. Contudo, nos tempos bíblicos,
não havia qualquer entendimento do que nós queremos dizer hoje
com a expressão “monarca constitucional”. Se você é um rei, você
reina! Isso é o que os reis fazem. Você tem a autoridade. A verdade é
que, nas Escrituras, Deus é apresentado frequentemente como o rei.
Por exemplo, o Livro dos Salmos dizem: “Nos céus, estabeleceu o
SENHOR o seu trono, e o seu reino domina sobre tudo” (Sl 103.19). E
Daniel 4.35 diz: “Todos os moradores da terra são por ele reputados
em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e
os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe
dizer: Que fazes?” Essa é outra maneira de dizer que a soberania de
Deus abrange completamente todos os domínios. Isto está incluído no
próprio relato da criação: Deus fez tudo, tudo lhe pertence, e ele
continua a reinar. Ele permanece soberano sobre tudo. Nesse sentido,
você e eu estamos no reino de Deus, quer gostemos, quer não. Nesse
sentido, você não pode estar fora do reino de Deus. Se ele reina
verdadeiramente sobre tudo, até aqueles que não creem nele, que o
odeiam e acham que há outros deuses, estão no reino de Deus.
 
O REINO DE DEUS SOBRE ISRAEL
 
A noção do reino de Deus — o reinado de Deus — é bastante
flexível na Escritura. Você tem de prestar atenção ao contexto para
entender apropriadamente o que está sendo dito em uma passagem
específica. No Antigo Testamento, visto que Deus chamou o seu povo
— os hebreus, os israelitas — para si mesmo, primeiramente por
meio da aliança feita com Abraão e, depois, por meio da aliança feita
sob a liderança de Moisés, Deus é entendido como o rei de seu povo.
Deus tem de ser o governante deles, o rei deles. Os israelitas
constituíam a nação de Deus e, portanto, num aspecto estrito,
alguém só estaria sob o reinado de Deus se pertencesse à comunidade
da aliança. Isso é diferente da noção de que o reino de Deus é
equivalente à extensão ilimitada de seu domínio providencial. No
momento, focalizaremos o escopo menor — a maneira como Deus
reina sobre seu povo da aliança, os israelitas.
 
O LIVRO DOS JUÍZES
 
Depois que o povo finalmente entrou na terra prometida, passou
por ciclos desanimadores. Após duas ou três gerações, o que eles
sabiam sobre a bondade de Deus no passado — como ele os poupara,
como os protegera e provera todas as suas necessidades — foi
esquecido. Eles se tornaram quase indistinguíveis dos povos pagãos
ao seu redor. Deus, então, impôs vários tipos de juízos terrenos. Por
exemplo, eles eram atacados e embaraçados pelas outras tribos que
viviam na região — os midianitas ou outros. Os israelitas
suplicavam a Deus misericórdia, tolerância e perdão.
E Deus levantava um juiz. Esse juiz liderava o povo em
renovação e pequenas batalhas com alguns de seus opressores. Os
israelitas se reestabeleciam e renovavam seus votos de aliança, de
serem fiéis diante de Deus. Em seguida, em outras duas ou três
gerações, todos esqueciam e caíam coletivamente em desgraça e
vergonha, cedendo a várias formas de libertinagem realmente
horrível, sem mencionar a idolatria que estava por trás. Seguia-se,
como consequencia, outra rodada de juízo e outro apelo desesperado
pela ajuda de Deus. Então, Deus levantava outro juiz, e o ciclo
começava novamente. As espirais descendentes no livro de Juízes são
tão impressionantes, que dificilmente podemos ler os dois ou três
últimos capítulos em público, porque eles são grotescos e bárbaros. À
medida que o livro prossegue, começamos a ouvir um refrão triste:
“Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava
mais reto” (Jz 21.25). Esta é a maneira como o livro termina: caos
sangrento. É como se o livro terminasse dizendo: “Ó Deus, como
precisamos de um rei para ordenar nossa vida e dar segurança à
nossa nação”.
 
SAUL
 
Logo descobrimos que algumas pessoas queriam um rei, não
para que ficassem um pouco mais seguras ou para que alguém, em
autoridade, os mantivesse fiéis à aliança ou vigiasse as coisas
quando a estrutura moral e ética se destroçasse. Não, algumas
pessoas queriam um rei apenas para que fossem mais parecidos com
as nações pagãs ao seu redor. O clamor era, na realidade, este:
“Queremos ser como eles. Eles parecem ter as coisas em ordem civil.
Gostaríamos de ter exatamente o mesmo tipo de arranjo
constitucional”. Deus responde: “Bem, se vocês querem um rei, vamos
em frente! Mas vocês se arrependerão!” Deus escolhe para eles um
homem jovem chamado Saul, que parece convenientemente humilde,
tímido (ele não quis realmente o trabalho) e cuidadoso. Ele amava ao
Senhor. Todavia, em poucos anos, ele se tornou um homem corrupto,
paranoico, temeroso, bruto e ímpio, que ansiava por mais poder.
Qualquer um que fosse visto como ameaça à sua autoridade, queria
matar. Era uma bagunça (ver 1Samuel 8 a 31).
 
DAVI
 
No entanto, Deus levantou outro rei. Ele disse: “Agora,
permitam-me mostrar-lhes, pelo menos em princípio, como deve ser
um bom rei. Eis um homem segundo o meu coração! Seu nome é
Davi”. Depois que Saul morreu, Davi se tornou rei. Inicialmente, ele
foi um rei muito bom, um excelente administrador. Ele deu segurança
às fronteiras e uniu as tribos. Mudou sua capital, da pequena cidade
de Hebrom para Jerusalém — o mesmo local da Jerusalém moderna.
Davi se estabeleceu ali e trouxe ordem, paz e prosperidade (ver
1Samuel 16; 2Samuel 1 a 5).
 
2SAMUEL 7
 
“Sucedeu que, habitando o rei Davi em sua própria casa, tendo-
lhe o SENHOR dado descanso de todos os seus inimigos em redor, disse
o rei ao profeta Natã: Olha, eu moro em casa de cedros, e a arca de
Deus se acha numa tenda” (2Sm 7.1-2).
Essa “arca de Deus” é a que descrevemos no capítulo anterior.
Ela era uma caixa colocada no Santo dos Santos, que continha
algumas coisas, incluindo as tábuas de pedra em que estavam
escritos os Dez Mandamentos. O topo da arca de Deus era o lugar
onde o sangue era aspergido no Dia da Expiação. Nesta altura da
história de Israel, por volta de 1000 a.C., essa arca de Deus ainda
residia numa tenda — um tabernáculo. “Eu moro em casa de cedros”,
Davi disse a Natã, “mas o lugar em que Deus se encontra com os
seus sacerdotes é nada mais do que uma tenda”.
 
Disse Natã ao rei: Vai, faze tudo quanto está no teu
coração, porque o SENHOR é contigo.
Porém, naquela mesma noite, veio a palavra do SENHOR a
Natã, dizendo:
Vai e dize a meu servo Davi: Assim diz o SENHOR: Edificar-
me-ás tu casa para minha habitação?
Porque em casa nenhuma habitei desde o dia em que fiz
subir os filhos de Israel do Egito até ao dia de hoje; mas
tenho andado em tenda, em tabernáculo.
Em todo lugar em que andei com todos os filhos de Israel,
falei, acaso, alguma palavra com qualquer das suas tribos,
a quem mandei apascentar o meu povo de Israel, dizendo:
Por que não me edificais uma casa de cedro?
Agora, pois, assim dirás ao meu servo Davi: Assim diz o
SENHOR dos Exércitos: Tomei-te da malhada, de detrás das
ovelhas, para que fosses príncipe sobre o meu povo, sobre
Israel.
E fui contigo, por onde quer que andaste, eliminei os teus
inimigos diante de ti e fiz grande o teu nome, como só os
grandes têm na terra.
Prepararei lugar para o meu povo, para Israel, e o plantarei,
para que habite no seu lugar e não mais seja perturbado, e
jamais os filhos da perversidade o aflijam, como dantes,
desde o dia em que mandei houvesse juízes sobre o meu
povo de Israel. Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus
inimigos; também o SENHOR te faz saber que ele, o SENHOR, te
fará casa.
Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus
pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente,
que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino.
Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei
para sempre o trono do seu reino.
Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a
transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com
açoites de filhos de homens.
Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a
retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti.
Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre
diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre.
Segundo todas estas palavras e conforme toda esta visão,
assim falou Natã a Davi.
Então, entrou o rei Davi na Casa do SENHOR, ficou perante
ele e disse: Quem sou eu, SENHOR Deus, e qual é a minha
casa, para que me tenhas trazido até aqui?
Foi isso ainda pouco aos teus olhos, SENHOR Deus, de
maneira que também falaste a respeito da casa de teu servo
para tempos distantes; e isto é instrução para todos os
homens, ó SENHOR Deus.
Que mais ainda te poderá dizer Davi? Pois tu conheces bem
a teu servo, ó SENHOR Deus.
Por causa da tua palavra e segundo o teu coração, fizeste
toda esta grandeza, dando-a a conhecer a teu servo.
Portanto, grandíssimo és, ó SENHOR Deus, porque não há
semelhante a ti, e não há outro Deus além de ti, segundo
tudo o que nós mesmos temos ouvido.
Quem há como o teu povo, como Israel, gente única na
terra, a quem tu, ó Deus, foste resgatar para ser teu povo?
E para fazer a ti mesmo um nome e fazer a teu povo estas
grandes e tremendas coisas, para a tua terra, diante do teu
povo, que tu resgataste do Egito, desterrando as nações e
seus deuses?
Estabeleceste teu povo Israel por teu povo para sempre e tu,
ó SENHOR, te fizeste o seu Deus.
Agora, pois, ó SENHOR Deus, quanto a esta palavra que
disseste acerca de teu servo e acerca da sua casa, confirma-
a para sempre e faze como falaste.
Seja para sempre engrandecido o teu nome, e diga-se: O
SENHOR dos Exércitos é Deus sobre Israel; e a casa de Davi,
teu servo, será estabelecida diante de ti.
Pois tu, ó SENHOR dos Exércitos, Deus de Israel, fizeste ao
teu servo esta revelação, dizendo: Edificar-te-ei casa. Por
isso, o teu servo se animou para fazer-te esta oração.
Agora, pois, ó SENHOR Deus, tu mesmo és Deus, e as tuas
palavras são verdade, e tens prometido a teu servo este
bem.
Sê, pois, agora, servido de abençoar a casa do teu servo, a
fim de permanecer para sempre diante de ti, pois tu, ó
SENHOR Deus, o disseste; e, com a tua bênção, será, para
sempre, bendita a casa do teu servo.
2Samuel 7.3-29
 
O rei deveria ser o vice-regente de Deus, o sub-rei. Deus
continuaria sendo rei, o soberano final sobre todo o povo, mas o rei
deveria mediar a justiça, os caminhos e as leis de Deus para todo o
povo. Todavia, nesta passagem temos um notável conjunto de
relacionamentos.
 
1. UM REI COM INICIATIVAS RELIGIOSAS RESTRINGIDAS
(2SAMUEL 7.1-11)
 
O rei Davi queria fazer um favor para Deus. Ele estava
estabelecido como rei. O primeiro versículo diz que a nação
desfrutava de descanso. (Observe de novo esse tema: descanso de
seus inimigos, descanso na terra prometida.) Davi olhou ao redor. Ele
já estava na nova capital por tempo suficiente para obter um palácio
excelente para si mesmo, mas o centro de adoração coletiva para toda
a nação ainda era aquela tenda levemente desgastada. Ele talvez se
lembrasse de que o livro de Deuteronômio, no tempo de Moisés,
predisse um centro permanente; por isso, ele pensou: “Bem, este é o
tempo. Por que eu não devo ser aquele que construirá o centro
permanente? Isso é o que eu gostaria de fazer”. E, em certo sentido, o
profeta Natã disse: “Grande ideia. Deus está com você. Vá em frente”.
Mas Deus interveio e disse a Natã: “Não sejam tão rápidos. Esta não
é a maneira como as coisas irão acontecer”. E Deus apresentou duas
ou três razões por que não deveria ser assim:
1. Deus sozinho toma a iniciativa nas mudanças cruciais da
história bíblica (ver 2Sm 7.5-7). Não vimos isso antes? Pense em
Abraão. Ele acordou um dia e, em suas devoções, disse algo assim?
 
Ó Deus, falando com franqueza, este mundo parece estar
caminhando para o inferno. Acho que deveríamos fazer algo
a respeito disso. Acho que devemos começar uma nova raça
entre os seres humanos, um tipo de subconjunto. Gostaria
de ser o primeiro dela. Eu serei o grande ancestral de toda
esta nova humanidade. Nós a chamaremos de “hebreus”.
Você pode ser o nosso Deus, e nós seremos o seu povo. Você
nos diz o que devemos fazer, e lhe obedeceremos. E
começaremos uma nova estrutura de dinastia. Não é uma
grande ideia? E esta nova raça, esta nova comunidade da
aliança, mostrará ao mundo como é ter um relacionamento
correto com você.
 
Foi assim que aconteceu? Não, Deus tomou a iniciativa. Ele
chamou a Abraão, levou-o para a terra e lhe deu uma aliança. Mesmo
naquela cena no meio da noite, em que Deus se colocou sob um tipo
de voto de aliança, de cuidar de seu povo, ele mesmo tomou a
iniciativa de andar sozinho por aquele corredor sangrento (ver Gn
15). Em Gênesis 22, Deus tomou a iniciativa de prover um cordeiro.
Ou pense em Moisés. Quando Moisés era um homem jovem, ele se
perguntou sobre a possibilidade de começar uma revolução e tirar o
seu povo da escravidão? Ele foi descoberto em um assassinato e teve
de fugir para salvar a vida. Ele viveu em um deserto por quase meio
século. De fato, quando Deus tomou a iniciativa, Moisés não estava
muito interessado em ir: “Deus, estou ficando velho e tenho
dificuldade para falar. Não sou um líder. Sou apenas um pastor”.
Mas Deus tomou a iniciativa e, no devido tempo, usou a Moisés.
Deus não dará sua glória a ninguém. Ele não se mostra aberto
às nossas sugestões a respeito de como governar o universo. Essa é,
na verdade, a sua primeira objeção:
 
Vai e dize a meu servo Davi: Assim diz o SENHOR: Edificar-
me-ás tu casa para minha habitação?
Porque em casa nenhuma habitei desde o dia em que fiz
subir os filhos de Israel do Egito até ao dia de hoje; mas
tenho andado em tenda, em tabernáculo.
Em todo lugar em que andei com todos os filhos de Israel,
falei, acaso, alguma palavra com qualquer das suas tribos,
a quem mandei apascentar o meu povo de Israel, dizendo:
Por que não me edificais uma casa de cedro?
2Samuel 7.5-7
 
Isso não significa que o templo não deveria ser construído. Na
verdade, ele seria construído na próxima geração. Essa tarefa seria
confiada ao filho de Davi, o rei Salomão. Mas Deus tomou a
iniciativa.
2. Deus engrandece os seus servos — e não o contrário (ver 2Sm
7.8-11). Deus disse:
 
Agora, pois, assim dirás ao meu servo Davi: Assim diz o
SENHOR dos Exércitos: Tomei-te da malhada, de detrás das
ovelhas, para que fosses príncipe sobre o meu povo, sobre
Israel.
E fui contigo, por onde quer que andaste, eliminei os teus
inimigos diante de ti e fiz grande o teu nome, como só os
grandes têm na terra.
2Samuel 7.8-9, ênfase acrescentada
 
Em seu coração, talvez Davi estivesse começando a pensar que
iria fazer um favor para Deus. Se ele pudesse construir um templo
maior do que os templos dos vizinhos pagãos, ele não mostraria que
o verdadeiro Deus é mais magnificente do que os deuses deles? Davi
engrandeceria o nome de Deus e faria um favor para ele. Mas, na
verdade, Deus estava dizendo: “As coisas não são assim. Eu sou
aquele que engrandece o seu nome”.
Em certos contextos, é maravilhoso que os crentes tentem
engrandecer o nome de Deus, mas nem sempre, porque alguns
sucumbem à ilusão de que, por meio disso, estejam fazendo um favor
para Deus. Adorar a Deus, exaltar seu nome, deve ser uma resposta
de gratidão e adoração — e não uma maneira de dizermos: “Os
pagãos adoram os seus deuses. Temos de exceder a adoração deles
porque, em uma competição, podemos tornar o nome de Deus maior
do que os nomes de seus deuses”. Deus diz: “Você entendeu isso
totalmente errado. Eu torno o seu nome grande, e não o contrário.
Você era um pastor de ovelhas. Eu não somente fiz de você um rei,
mas também farei seu nome ressoar através dos séculos”.
Hoje, há milhões de cristãos em todo o mundo que conhecem o
nome de Davi. Muitos deles nunca ouviram falar de Alexandre, o
Grande. Não sabem muito sobre o rei Tutancâmon. Mas o nome de
Davi chegou até nós através de 3.000 anos.
O capítulo começa, como vimos, com um rei cujas iniciativas
religiosas foram restringidas, e foi nesse contexto que Deus fez uma
promessa admirável.
 
2. UMA DINASTIA COM UMA PROMESSA ETERNA REVELADA
(2SM 7.11-17)
 
“Também o SENHOR te faz saber que ele, o SENHOR, te fará casa”
(2Sm 7.11). É claro que há um jogo de palavras aqui. Davi queria
construir uma “casa”, ou seja, um templo para Deus. Deus edificaria
uma “casa”, ou seja, uma família, uma dinastia para Davi. “Você
quer construir uma casa para mim?” Podemos quase ver Deus
sorrindo. “Eu edificarei uma casa para você. Vou lhe dizer como farei
isso”.
 
Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus
pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente,
que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino.
Este edificará uma casa ao meu nome [ou seja, Salomão
edificaria o templo], e eu estabelecerei para sempre o trono
do seu reino.
Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a
transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com
açoites de filhos de homens.
Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a
retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti.
Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre
diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre.
2Samuel 7.12-16
 
Duas ou três observações esclarecem essa passagem:
1. Davi estava ciente de que seu antecessor, Saul, havia
começado bem e terminado mal; e, por consequência, o filho de Saul,
Jônatas, nunca chegou ao trono. Nenhuma dinastia fora estabelecida.
Fora uma dinastia de uma única geração (se pudermos falar sobre
dinastia em termos de uma geração). Houve tanta impiedade, que
Deus sentenciou: “Isso não continuará”. Mesmo que Davi
permanecesse fiel durante toda a sua vida (e, na realidade, ele teve
seus próprios fracassos), quem garantiria o que aconteceria nas
gerações posteriores? Se você pertence à realeza, você se preocupa em
preservar a linhagem familiar, a dinastia, a casa — quer seja a casa
de Windsor (no caso da rainha Elizabeth II), quer seja, de acordo com
este texto, a casa de Davi. De modo assegurador, Deus afirma: “Eu
edificarei uma casa para você, de tal modo que, embora seu filho faça
alguma coisa errada, algo realmente ímpio, eu não o removerei do
trono, da maneira como removi a Saul, deixando-o sem um sucessor
que estabelecesse a dinastia. Eu não farei isso. Preservarei sua casa,
sua família”.
Então, poderá haver aplicação de castigo temporal. Poderá haver
alguma punição temporal. Poderá acontecer que nações se levantem
contra a nação de Davi. Poderão acontecer coisas desse tipo. Mas
Deus não imporá a sanção final que extinguirá a linhagem. Isso foi o
que Deus prometeu a Davi.
2. O que Deus quis dizer quando falou: “Eu lhe serei por pai, e
ele me será por filho” (7.14)?
Para nós, a filiação está relacionada ao DNA. Quantos
programas de televisão, sem mencionar a série CSI, usam o DNA para
descobrir quem é o verdadeiro pai, que pessoa é o verdadeiro filho?
Vinculados a essa ciência estão os litígios de paternidade. A filiação
é, antes de tudo, uma questão de descendência genética. Mas o
mundo antigo entendia as coisas de modo diferente. Descendência
física contava apenas parte da história; havia também a
descendência de obra e de identidade.
Quantos homens estão hoje trabalhando nas mesmas profissões
que seus pais exerceram na mesma idade? Quantas mulheres estão
trabalhando nas mesmas vocações que suas mães exerceram? Já fiz
essa pergunta em muitos contextos ocidentais e descobri que não
mais do 5% ou 6% responderam afirmativamente, e a porcentagem
tem sido cada vez menor. Por contraste, no mundo antigo, se o seu
pai fosse um padeiro, você se tornaria um padeiro. Se fosse um
agricultor, você seria um agricultor. Se o nome de seu pai fosse
Stradivari, então você faria violinos. Em outras palavras, em uma
sociedade agrícola, artesanal e pré-industrial, na grande
predominância dos casos, o filho terminaria fazendo o que seu pai
fazia, e a filha terminaria fazendo o que a sua mãe fazia. Hoje, as
noções de liberdade são tais, que saímos de casa para uma
universidade ou para uma faculdade técnica, obtemos um trabalho
em algum lugar e seguimos uma vocação totalmente separada da
tradição de nossa família. Tal liberdade era impensável há 300 ou
400 anos, exceto em raras ocasiões. Portanto, o resultado era que a
pessoa se identificava não somente com a família, mas também com
a profissão da família. Essa foi a razão por que Jesus foi chamado de
“o filho do carpinteiro” — José, reconhecido como seu pai, era um
carpinteiro. De fato, em um lugar, Jesus foi chamado de “o
carpinteiro”. Aparentemente, o seu pai, José, havia morrido, e Jesus
assumiu os negócios da família. José era um carpinteiro. O que se
esperava que Jesus fosse? Ele foi um carpinteiro.
Esse padrão vocacional significava que, no curso normal dos
acontecimentos, o pai ensinava ao filho a sua profissão. Certamente,
não havia educação superior. No judaísmo posterior, as sinagogas
podiam ensinar aos filhos a leitura e a escrita elementar. Famílias
prósperas podiam contratar pessoas para ensinar habilidades
educacionais ou mesmo conhecimento mais avançado para alguns
dos filhos. Mas a sua profissão, aquilo que você aprendia a fazer
para subsistir, esse tipo de treinamento você recebia de seu pai. Se ele
era um agricultor, ele lhe ensinava quando plantar a semente,
quando irrigar, como entender o clima, como fazer uma boa cerca e
coisas assim. Por causa da identificação do filho com a vocação do
pai, a noção de filiação envolvia um conjunto de associações mais
amplo do que ela tem na série CSI.
A partir dessa matriz social, surgiram diversas metáforas
bíblicas. Por exemplo, diversas vezes na Bíblia alguém era chamado
de “filho de Belial”; e isso significava um “filho de indignidade”. Isso
não dizia que o pai era o Sr. Indigno. O que isso significava era que o
caráter da pessoa era tão indigno, que ela pertencia à família da
indignidade. Essa é a única explicação adequada. Jesus nos deu um
exemplo que ilustra esse tipo de metáfora: “Bem-aventurados os
pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5.9). A
ideia é que Deus é o supremo pacificador. Então, se você faz a paz,
está agindo como Deus; você se mostra como um filho de Deus. Essa
afirmação de Jesus não está dizendo como você se torna um cristão.
Esta dizendo que, neste aspecto, você está fazendo o que Deus faz;
está agindo como Deus age e, assim, está mostrando ser um “filho”
de Deus.
Em outro lugar, quando Jesus estava debatendo com alguns
adversários judeus (ver Jo 8), ele afirmou que seu ensino os
libertaria; mas eles replicaram: “Como pode ser isto? Nós mesmos
somos verdadeiros filhos de Abraão. Somos a verdadeira herança, e
essa herança nos liberta”. Jesus respondeu: “Se vocês pecam, são
escravos do pecado, e somente eu posso libertá-los. Sei que
fisicamente vocês são descendentes de Abraão, mas não estão
respondendo à revelação da mesma maneira como Abraão
respondeu”. Eles arriscaram e disseram: “Somos não somente filhos
de Abraão. Somos filhos de Deus. Deus mesmo é nosso verdadeiro
pai”. Na realidade, Jesus lhes respondeu: “Isso não é possível. Eu vim
de Deus. Ele me conhece, e eu o conheço. Se vocês não me
reconhecem, não podem ser filhos de Deus. Eu lhes direi quem é o pai
de vocês. O pai de vocês é o Diabo. Ele foi assassino desde o
princípio, e vocês estão procurando me assassinar. Ele foi mentiroso
desde o princípio, e vocês não estão falando a verdade a respeito de
mim”.
É obvio que Jesus não estava negando que seus adversários eram
realmente filhos de Abraão, no aspecto genético. Eles eram. Jesus
também não sugeriu que, de algum modo, os demônios copularam
com mulheres para produzir algum tipo de geração bastarda. Ele
estava dizendo que, quanto ao comportamento, eles agiam como o
Diabo. Isso os tornava filhos do Diabo.
Esse é o uso da terminologia “filho” na passagem de 2Samuel 7.
Ela é usada para se referir a reis. Se Deus era o Rei supremo sobre o
povo, quando um homem da linhagem de Davi ascendia ao trono, ele
se tornava “filho” de Deus. Isso não significava que ele assumia
literalmente a natureza divina ou qualquer coisa desse tipo.
Significava apenas que estava agindo como filho de Deus, em lugar
de Deus, na família do rei. Deus reina sobre o seu povo da aliança.
Ele se preocupa em ministrar justiça e preservar fidelidade à aliança.
Se um rei da linhagem de Davi fizesse isso, estaria agindo como filho
de Deus. Essa é a natureza da promessa dada nessa passagem. “Este
[ou seja, o herdeiro de Davi] edificará uma casa ao meu nome, e eu
estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e
ele me será por filho” (7.13-14, ênfase acrescentada).
No entanto, filhos podem errar. O que aconteceria? “Se vier a
transgredir”, Deus acrescentou, “castigá-lo-ei com varas de homens e
com açoites de filhos de homens. Mas a minha misericórdia se não
apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti”
(7.14-15).
3. Há mais uma coisa a entendermos desta passagem: “A tua
casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono
será estabelecido para sempre” (7.16). Em outras palavras, Deus não
estava somente prometendo que a linhagem de Davi permaneceria
para a geração seguinte, de Salomão, quando o templo seria
construído, ainda que Salomão se mostrasse ímpio. Estava dizendo
que a dinastia seguiria adiante; seria estabelecida para sempre.
Essa promessa poderia ser cumprida apenas de duas maneiras.
Uma maneira seria que cada geração produzisse um novo herdeiro de
Davi, para que o trono fosse passado ao herdeiro seguinte, e deste, ao
herdeiro seguinte, por tempos intermináveis. A outra única maneira
possível não foi nem mesmo mencionada nessa passagem. No
entanto, em teoria, se houvesse na linhagem de Davi um herdeiro que
vivesse para sempre, a promessa poderia ser cumprida.
Essa promessa foi dada por volta de 1000 a.C. Foi precursora de
inúmeras outras promessas para os reis davídicos através dos
séculos. A maioria de nós, estou certo, já ouviu o Messias, de Handel,
que cita Isaías 9, escrito no final do século VIII a.C., mais de 200
anos depois dessa promessa feita a Davi. Isaías viu um rei que
surgiria: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu... para
que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim sobre o trono de
Davi e sobre o seu reino” (Is 9.6-7, ênfase acrescentada). Em outras
palavras, ele seria um filho de Davi que seria também um “filho de
Deus”, que permaneceria sob a autoridade de Deus, como vice-regente
de Deus. “Para que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim”
(Is 9.7). “Seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da
Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9.6).
A linguagem é extraordinária: um filho de Davi que seria
chamado “Deus Forte” e “Pai da Eternidade”? Não imagino que
Isaías tenha entendido todo o significado de sua profecia. Contudo, à
primeira vista, ela parece estar prometendo que, de algum modo,
haveria um descendente de Davi, alguém da linhagem e herança de
Davi, que seria chamado apropriadamente de não menos do que
Deus. (Veremos de modo breve que outros profetas fizeram promessas
semelhantes.) Essa é uma antecipação de um descendente de Davi
que excederia em muito seu estimado antecessor.
 
3. UM REI COM PRIVILÉGIOS ESPETACULARES, HUMILHADO
(2SM 7.18-27)
 
Davi foi aquietado e impressionado pelo que lhe foi prometido. O
seu apelo, então, não foi mais: “Permite-me construir um templo para
ti e faze algo para ti”. Agora, só havia gratidão em Davi: “Eu não
mereço isto. Isto é maravilhoso. Tudo que peço, querido Deus,
soberano Deus, é que cumpras a tua promessa”.
 
DE DAVI PARA O REI JESUS
 
Tudo isso aconteceu, como já disse, por volta de 1000 a.C. Houve
muitos desenvolvimentos intermediários antes da vinda de Jesus.
Depois de vários séculos, o reino davídico se corrompeu. Apenas duas
gerações depois, o reino se dividiu em reino do Norte e reino do Sul. E
a linhagem de Davi reinou somente sobre o Sul. Mais dois séculos e
meio se passaram, e o reino do Norte nunca teve uma dinastia
estabelecida. Reis surgiam, reis desapareciam; um novo usurpador
surgia e matava todos os filhos do rei anterior. Era um caos brutal,
repleto de muitas formas de idolatria. Por fim, os líderes foram
levados em cativeiro sob o domínio do império assírio. Mais um
século e meio se passou, e a dinastia de Davi se tornou tão corrupta e
perversa que, apesar dos tempos ocasionais de avivamento, no
começo do século VI (por volta de 587 a.C.), ela foi destruída. Os
babilônios a conquistaram. Muitos dos líderes foram levados ao
exílio, desta vez sob o domínio do império babilônio, que tomou o
lugar do império assírio.
No devido tempo, Deus os trouxe de volta: inicialmente, apenas
uns 50.000 ou mais. Eles reconstruíram o templo que havia sido
queimado, mas, por comparação com o grande templo erigido no
tempo de Salomão, filho de Davi, este segundo templo era uma
estrutura bem simples. Ainda não havia rei. Eles viviam sob o
domínio dos persas, que deram lugar à autoridade dos gregos e,
depois destes, ao império romano. Assim, atravessamos os séculos e
chegamos à mudança das eras, de antes para depois de Cristo, e
ainda não havia um rei davídico restaurado no trono. Os israelitas se
acharam sempre debaixo de um ou outro domínio. Nessa altura, o
superpoder regional era Roma. E os monarcas dos judeus eram reis
mesquinhos e rudes, como os Herodes.
Abrimos as páginas do Novo Testamento, a parte da Bíblia que
começa nos dizendo o que aconteceu nos tempos de Jesus. Qual é o
primeiro versículo do primeiro livro do Novo Testamento? “Livro da
genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1.1).
Aqui está o cumprimento da promessa do reino davídico. (A palavra
“Cristo” é o equivalente da palavra hebraica “Messiah” e se refere a
alguém que é “ungido” ou separado para uma tarefa específica.)
Quando Jesus começou seu ministério público, anunciou a
chegada do reino e usou a palavra “reino” de várias maneiras. Por
exemplo, ele disse algo assim: “O reino é semelhante a um homem
que semeou trigo em um campo, boa semente em um campo. E, à
noite, alguns inimigos vieram e semearam joio no meio do trigo. O
trigo e o joio cresceram juntos. Os servos do homem lhe perguntaram:
Queres que vamos e tentemos arrancar o joio agora? Não, não!
Deixai-os crescer juntos até o final quando, então, haverá uma última
separação. O reino é assim”. Em outras palavras, temos aqui um
quadro do reino que envolve este mundo com boa semente e com má
semente que crescem juntas. Isso inclui Billy Graham e Adolf Hitler.
Há boa semente, e há joio. Ambos crescem até ao final quando haverá
uma última divisão. Essa é uma perspectiva sobre o reino.
Em outra passagem, em João 3 (uma passagem que
consideraremos depois), Jesus disse: “Quem não nascer da água e do
Espírito não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3.5). De acordo com
essa noção sobre o reino, nem todos estão no reino. Segundo a noção
anterior, todos estão no reino. Ou você é trigo, ou você é joio. Mas,
nesta noção do reino, existe um subconjunto do reino de Deus, do
governo de Deus, do domínio de Deus, sob o qual há vida. Somente
aqueles que são nascidos de novo podem entrar nesse reino ou vê-lo.
Mencionando algumas variações adicionais: às vezes, Jesus
falou sobre o reino como algo que já havia começado. O reino já está
aqui, operando em secreto. Ele é como fermento posto em uma massa;
está operando quietamente e tendo seus efeitos. Contudo, em outros
momentos, Jesus falou do reino como algo que vem no final, quando
haverá consumação e transformação tremenda. Portanto, o reino já
está presente; mas, visto de outra maneira, ele ainda não veio. Todas
essas noções do reino centralizam-se em Jesus, o rei.
Depois da Segunda Guerra Mundial, um teólogo suíço chamado
Oscar Cullmann usou um dos momentos decisivos da guerra para
explicar algumas destas noções. Ele chamou atenção para o que
aconteceu no Dia D, 6 de junho de 1944. Nesse tempo, os aliados do
Ocidente já tinham expulsado os inimigos do Norte da África e
começavam a penetrar a bota da Itália. Os russos estavam vindo das
estepes. Já tinham defendido Stalingrado e avançavam para e
através da Polônia e outros países da Europa Oriental. No Dia D, os
aliados ocidentais chegaram às praias da Normandia e, em três dias,
descarregaram 1,1 milhões de homens e inúmeras toneladas de
material bélico. Havia uma segunda fronte do Ocidente. Toda pessoa
inteligente podia ver que a guerra estava acabada. Afinal de contas,
a guerra já estava acabada em termos de energia, material bélico,
número de soldados e destinos para os quais todas essas frentes e
trajetórias convergiam. Isso significou que Hitler disse: “Opa! Fiz o
cálculo errado!” e pediu paz? O que aconteceu depois foi a Batalha do
Bulge, na qual ele quase conquistou a costa da França novamente,
mas recuou por falta de combustível. Depois, houve a Batalha de
Berlim, que foi uma das mais sangrentas de toda a guerra. Portanto,
a guerra ainda não estava terminada. Um ano depois, a guerra
terminou finalmente na Europa, depois de os combatentes haverem
atravessado esse grande intervalo entre o Dia D e o Dia da Vitória na
Europa.
Cullmann disse que a experiência cristã é como essa guerra. O
rei prometido veio. Este é o nosso Dia D: a vinda de Jesus, sua cruz e
sua ressurreição. Depois de ressuscitar dos mortos, Jesus declarou,
conforme os últimos versículos do evangelho de Mateus: “Toda a
autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt 28.18). Ele é o rei. Mas
isso significa que o Diabo diz: “Opa! Fiz o cálculo errado! Acho que é
melhor pedir paz”? Isso significa que os seres humanos dizem: “Bem,
bem, você ressuscitou dos mortos. Você venceu. É melhor render-nos”?
Não, o que isso significa é que você tem alguns dos mais violentos
conflitos, porque Jesus ainda não derrotou todos os seus inimigos.
Ele reina. Toda a soberania de Deus é mediada pelo rei Jesus. O reino
já começou. Está aqui. Ou você está nesse reino, no sentido do novo
nascimento, ou você está fora dele. Alternativamente, quando
pensamos no reino total de Jesus (toda autoridade pertence a ele),
você está nesse reino, quer goste quer não. A questão é se você se
prostrará agora, alegremente, com arrependimento, fé e ações de
graça, ou esperará até ao final para se prostrar em terror. O fim está
chegando. O Dia da Vitoria cristã está chegando, e não há dúvida de
quem será visto como Rei no último dia.
Quando Paulo escreveu aos cristãos que residiam na cidade de
Corinto, em meados do século I, descreveu Jesus como o rei pelo qual
toda a soberania de Deus é mediada: “Porque convém que ele reine
até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés. O último
inimigo a ser destruído é a morte” (1Co 15.25-26). A morte morrerá.
É claro que isso nos traz de volta ao que aconteceu em Gênesis 1, 2 e
3. Em contraposição com essa grande rebelião que tentou degradar a
Deus, uma rebelião que trouxe apenas morte e decadência, temos
Jesus Cristo. O rei Jesus já derrotou a morte e permanece como o rei
de Deus, da linhagem de Davi. Todavia, embora seja um homem da
linhagem de Davi, Jesus é aquele que é chamado “Deus Forte, Pai da
Eternidade” (Is 9.6). Ele reinará até que destrua o último inimigo: a
morte. Essa é a razão por que a igreja se levanta e canta, repetidas
vezes: “Salve, Rei Jesus”. Precisamos de um rei — um rei que é
perfeitamente justo, que não pode ser corrompido, que é totalmente
bom, em quem não há nenhum mal. Jesus salva e transforma
poderosamente seu povo, que vem a ele e reconhece alegremente o seu
senhorio.
Salve, Rei Jesus.
6
O Deus
que É Inescrutavelmente Sábio

N Neste capítulo, focalizaremos dois tipos de literatura do Antigo


Testamento. Um tipo é o Livro dos Salmos. O outro é um conjunto de
livros diversos chamado frequentemente de literatura de sabedoria.
Por razões que mencionarei de modo breve, até alguns dos salmos são
corretamente designados como literatura de sabedoria.
Nenhuma destas categorias — salmos e literatura de sabedoria
— dá prosseguimento à história bíblica. Elas não são a sequência
dos livros narrativos que nos contam o que aconteceu em seguida aos
israelitas nem se referem ao que estava acontecendo na história
mundial naquela época. Às vezes, alguns salmos individuais podem
ser vistos como procedentes de um período específico da história do
Antigo Testamento. Porém, em sua maioria, esses materiais suprem
algo um pouco diferente. Refletem as experiências, os discernimentos,
a revelação de Deus que seu povo considerou em sua mente durante
aqueles tempos. Embora, em sua maior parte, esse material não dê
prosseguimento à narrativa histórica, a contribuição que ele faz é tão
substancial que não pode ser ignorado. Temos de dizer algo sobre
esses livros para entendermos como eles contribuem para a nossa
compreensão de Deus, conforme ele se revela na Bíblia.
 
O DEUS QUE FAZ SEU POVO CANTAR: SALMOS
 
Alguém fez uma pilhéria dizendo: “Quero escrever canções de
uma nação, não me importo com quem faz as suas leis”.(1) Devido a
algumas coisas que são cantadas em nossos dias, esse é um
pensamento assustador. Mas a noção é bastante compreensível. Se
pessoas estão andando por aí com ipods, apesar do que o Congresso
decide, a formação mais fundamental da mente pública, incluindo a
mente pública representada pelo Congresso, acontecerá por meio de
ipods (ou algum outro sistema de entrega de comunicação).
No Antigo Testamento, o livro que incorpora a maior parte desse
material em semelhança de cânticos — ou semelhança de hinos — é
o Livro dos Salmos, quase no meio da Bíblia, contendo 150 deles. Foi
escrito durante um período de aproximadamente 1.200 anos. A
coleção de salmos não foi o resultado da obra de alguém que se
assentou e determinou torná-los seu projeto de escrita em um ano
específico. Por exemplo, um dos salmos é o de Moisés, que nos leva de
volta à primeira parte da Bíblia. Muitos deles foram escritos por Davi
que, sendo um músico, usou sua autoridade de rei para organizar os
coros e a adoração pública conectados com o antigo tabernáculo.
Esses padrões de adoração e de canto foram depois aprimorados por
Salomão, seu filho, e foram usados no novo templo, cuja construção
Salomão supervisionou. Há também os salmos que retratam as
experiências do povo de Deus quando exilados, 400 anos depois. Há
também salmos que refletem pensamentos do povo de Deus quando
retornaram do exílio, o que nos leva a cerca de 400 a.C. Os salmos
abrangem um longo período de tempo.
É óbvio que não podemos examinar todos os 150 salmos. O que
eu gostaria de fazer é considerar alguns deles, para que você veja o
que as pessoas cantavam. Os salmos são bastante diversificados.
Aqueles de nós que são cristãos há algum tempo ou que
conhecem crentes mais velhos, sabem como o Livro de Salmos é
amado pelos mais experientes. Não são muitas as pessoas que o
conhecem bem aos 25 anos. Isso acontece porque este livro ecoa em
pessoas que tiveram muitas experiências. E precisamos ter muitas
experiências diferentes antes de ecoarmos facilmente as coisas que
são ditas no Livro de Salmos: lamento, perda, vergonha, morte,
triunfo, a exaltação do louvor bem instruído, piedoso e centrado em
Deus e profecia que antecipava o que ainda estava por vir. Se, em vez
disso, temos uma experiência limitada, a maioria dessas coisas
parece muito elevada, ou um tanto extravagante, ou mesmo estranha
para nós. Já estive ao lado de muitas pessoas que estavam no leito de
morte e descobri que, se lhes perguntasse: “O que gostaria que eu
lesse para você?”, muitas delas diriam: “O Salmo 23 — o Senhor é o
meu pastor”; ou: “O Salmo 42”; ou: “O Salmo 40 — sobre como ele
me tira de um tremedal de lama, coloca meus pés sobre uma rocha e
me firma os passos”. Mas, enquanto não passamos por experiências
em que nos sentimos como se estivéssemos nos revolvendo num
lamaçal, este salmo talvez não fale muito poderosamente conosco.
Então, consideraremos alguns salmos para perceber o tipo de
coisas que os salmistas disseram sobre Deus e o seu povo.
Começaremos no começo.
 
SALMO 1
 
1 Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos

ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se


assenta na roda dos escarnecedores.
2 Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei
medita de dia e de noite.
3 Ele é como árvore plantada junto a corrente de águas,
que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não
murcha; e tudo quanto ele faz será bem sucedido.
4 Os ímpios não são assim; são, porém, como a palha que o
vento dispersa.
5 Por isso, os perversos não prevalecerão no juízo, nem os
pecadores, na congregação dos justos.
6 Pois o SENHOR conhece o caminho dos justos, mas o
caminho dos ímpios perecerá.
 
Se examinarmos esse salmo com atenção, descobriremos que ele
se divide em três partes desiguais: os versículos 1 a 3 descrevem o
justo; os versículos 4 e 5 descrevem os ímpios; e o versículo 6 é o
resumo e contraste final.
 
OS JUSTOS (SL 1.1-3)
 
O versículo 1 descreve os justos em termos negativos: o que eles
não são e não fazem. “Bem-aventurado o homem que não anda no
conselho dos ímpios”, ou seja, ele evita andar com os ímpios,
caminhar ao lado deles. Não quer viver em harmonia com eles, pois,
se fizer isso por muito tempo, poderá começar a deter-se “no caminho
dos pecadores”. “Deter-se no caminho” de pessoas não é uma boa
tradução. O problema é que no hebraico deter-se no caminho de
alguém não significa o mesmo que pretendemos dizer quando usamos
essas palavras. Deter-se no caminho de alguém significa impedi-la,
bloquear o seu caminho. Como Hobin Hood e Little John na ponte,
cada um permanecendo no caminho do outro, garantindo que um dos
dois terminasse no riacho. No hebraico, deter-se no caminho de
alguém significa calçar os sapatos da pessoa, fazer o que ela faz, ser
indistinguível dela. Você não a está obstruindo; você está onde ela
está, no caminho dela. Essa é a razão por que uma versão bíblica o
traduz com esta paráfrase: “Fica no caminho que os pecadores
tomam”. Você está onde os pecadores estão.
Se você faz isso por muito tempo, talvez chegue a “assentar-se
na roda dos escarnecedores”. Agora, você está descansando no seu
sofá reclinável, puxa a alavanca e pensa, com desprezo e justiça
própria, naqueles cristãos ignorantes, estúpidos, intolerantes e
conservadores, e todo comentário que você faz é um desdém
escarnecedor. O primeiro versículo diz, na realidade: “Bem-
aventurados são aqueles que não fazem estas coisas”. Descreve o
justo em termos negativos.
O versículo 2 descreve o justo em termos positivos. Ele tem
“prazer... na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite”
(1.2). É sobre isso que ele pensa. E isso o muda.
Quando comecei a ensinar no Trinity Evangelical Divinty School,
tivemos um palestrante — um homem já velho — que gostava de
proferir provérbios resultantes de mais de 50 anos de ministério.
Alguns de seus dizeres eram realmente bons. Um dos seus melhores
era este: “Você não é o que pensa que é, mas o que você pensa, você
é”. Não somos apenas o que dizemos ou fazemos, porque podemos
dizer e fazer coisas para encobrir o que realmente está se passando
em nosso íntimo. Mas o que pensamos, nós somos. Portanto, esse
texto bíblico nos diz que o justo aprende a pensar os pensamentos de
Deus como ele pensa. O justo tem prazer na lei do Senhor. Ele medita
na Palavra de Deus dia e noite. Não é uma questão de mágica: “Um
versículo por dia mantém o Diabo afastado”. Isso é muito mais do
que você ter um versículo da Bíblia à mão ou do que simplesmente ler
mecanicamente para assegurar-se de que fez a sua “devoção”. É uma
paixão tão grande por tudo que Deus diz, que tal paixão alimenta a
sua mente. Você sai para o horário de almoço e, enquanto para na
luz vermelha do semáforo à sua frente, assentado no banco do seu
carro, sua mente começa naturalmente a meditar no que Deus disse.
Esse tipo de meditação acontece em todo o tempo. Você medita dia e
noite na Palavra de Deus. E isso significa que agora você não está
ouvindo o conselho dos ímpios, ou desenvolvendo caminhos que são
semelhantes aos deles, ou caindo em zombaria dissimulada.
O versículo 3 descreve o justo em termos metafóricos: “Ele é
como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido
tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele
faz será bem sucedido”. A terra da Palestina — a terra de Israel — é
uma terra semiárida, um pouco semelhante ao sudoeste americano.
Por isso, durante algumas épocas do ano não há nenhuma chuva. Os
riachos secos no sudoeste parecem nos lembrar morte. Então,
repentinamente as chuvas vêm, os leitos se enchem de água e
abrigam torrentes perigosas. Esses riachos são chamados
frequentemente de wadis em Israel. Quando as chuvas vêm, a terra
que parece morta floresce repentinamente; surge vida com flores de
deserto. Mas, somente onde há uma confluência de rios, e não água
intermitente, você encontra árvores cujas folhas nunca murcham,
árvores que produzem fruto na estação própria. Nesse sentido, essas
árvores sempre florescem. Este versículo não está prometendo o que
muitos chamam hoje de “evangelho da prosperidade”: siga a Jesus e
você ficará muito rico. A linguagem de Salmos 1.3 está abrigada na
metáfora desta árvore que é “bem sucedida”, mesmo quando há calor
e sequidão, porque ela é bem regada; é sempre verde. No devido
tempo, ela produz o seu fruto.
Essa metáfora não é incomum na Bíblia, exatamente porque as
pessoas que a escreveram experimentavam esse tipo de coisa o tempo
todo, observando os ciclos das estações. Por isso, Jeremias 17, escrito
por volta de 600 a.C. ou pouco depois, diz:
 
Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal
o seu braço e aparta o seu coração do SENHOR!
Porque será como o arbusto solitário no deserto e não verá
quando vier o bem [ou seja, a prosperidade de vida e
crescimento]; antes, morará nos lugares secos do deserto,
na terra salgada e inabitável.
Bendito o homem que confia no SENHOR e cuja esperança é o
SENHOR.
Porque ele é como a árvore plantada junto às águas, que
estende as suas raízes para o ribeiro e não receia quando
vem o calor, mas a sua folha fica verde; e, no ano de
sequidão, não se perturba, nem deixa de dar fruto.
Jeremias 17.5-8
 
Portanto, aqui, em Salmos 1.1-3, o justo é descrito em termos
negativos, positivos e metafóricos.
 
OS ÍMPIOS (SL 1.4-5)
 
Nos versículos 4 e 5, o foco muda para os ímpios. O contraste é
bastante forte: “Os ímpios não são assim” (1.4). “Não são assim”,
como se nos dissesse que temos de negar em relação ao ímpio tudo
que é importante e cuidamos em afirmar sobre o justo. Os justos são
pessoas que evitam o conselho e os padrões de vida das pessoas
rebeldes e ímpias? Os ímpios não são assim. Os justos são pessoas
que têm prazer na lei do Senhor e meditam nela dia e noite? Os
ímpios não são assim. Os justos são pessoas que podem ser
comparadas a uma árvore plantada junto a correntes de água, que
produz fruto no devido tempo e cuja folha nunca murcha? Os ímpios
não são assim.
Como eles são? “São... como a palha que o vento dispersa” (1.4).
A imagem é a da antiga colheita de grãos em que alguém bate os
cachos de grão com uma pá de joeiramento. A palha se desprende, e o
vento a lança para longe, deixando o grão cair na eira para ser
recolhido e transformado em farinha, pão e outros derivados. A palha
voa para longe ou é queimada; não tem raiz, não tem vida, não
contém fruto, é inútil. É assim que o salmista descreve os ímpios.
 
UM RESUMO E CONTRASTE FINAL (SL 1.6)
 
O contraste final, falando especificamente, não é entre o justo e o
ímpio, e sim entre o caminho dos justos e o caminho dos ímpios:
“Pois o SENHOR conhece o caminho dos justos” (1.6), ou seja, o Senhor
o possui como seu, ele o protege. “Mas o caminho dos ímpios
perecerá” (1.6), como rastros feitos na praia quando a onda se
afasta. A onda vem e volta, e você não os vê mais. Daqui a cinco
bilhões de anos, se é que posso falar sobre a eternidade em categorias
de tempo, ninguém estará falando sobre o significado de Stalin e Pol
Pot, mas todo copo de água dado em nome de Jesus será lembrado e
celebrado, porque o Senhor atenta ao caminho dos justos; porém o
caminho dos ímpios perecerá.
Este é o primeiro salmo: duas maneiras de viver, e não há uma
terceira. Há muitos salmos como este. Às vezes, eles são chamados de
“salmos de sabedoria”. Esses salmos e literatura de sabedoria estão
algumas vezes unidos porque nesta, o caminho da sabedoria é
contrastada com o caminho da insensatez, em uma polaridade
simples e absoluta. A literatura de sabedoria nos oferece
regularmente uma escolha entre dois caminhos. Isso é o que este
salmo faz; é também a razão por que, às vezes, ele é chamado assim.
No Novo Testamento, o pregador de sabedoria mais notável é
Jesus. De fato, Jesus foi um pregador admiravelmente flexível, que
usou vários tipos de discurso: figuras apocalípticas, provérbios,
parábolas e muito mais. Contudo, em vários de seus discursos, ele
usou esta polaridade básica de sabedoria: dois caminhos. Por
exemplo, no final do Sermão do Monte (Mateus 5 a 7), Jesus ofereceu
várias ilustrações que seguem essa linha de pensamento. Em
essência, ele disse: “Imaginem dois homens: um construiu uma casa
sobre a rocha; o outro construiu uma casa sobre a areia. A casa sobre
a areia não é estável. As tempestades vêm, a água sobe, os ventos
açoitam o lugar, e a casa desaba. A casa que é construída firmemente
sobre a rocha permanece” (ver Mt 7.24-27). Observe bem: há apenas
duas casas. Você não compreende o ensino se diz: “Jesus, suponha
que a pessoa construa sobre argila bem firme”. Você não pode reagir
dessa maneira à pregação de sabedoria. No mesmo contexto, Jesus
disse: “Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o
caminho que conduz para a perdição, e são muitos os que entram por
ela), porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz
para a vida, e são poucos os que acertam com ela” (Mt 7.13-14).
Mais uma vez, ansiar por uma porta de tamanho médio significa não
entender o ensino. Não podemos fazer isso. Aqui temos literatura de
sabedoria, pregação de sabedoria. Há somente dois caminhos.
Agora, você percebe o que é amedrontador na linguagem de
sabedoria em geral e, em específico, no Salmo 1. Se formos realmente
honestos, teremos de encarar o fato de que nunca satisfaremos
totalmente o bom caminho. Há ocasiões em que nos deleitamos na lei
do Senhor e meditamos nela dia e noite. No entanto, há outras
ocasiões em que, francamente, enfrentamos uma verdadeira batalha
para deleitarmo-nos na lei do Senhor. Há ocasiões em que o conselho
dos ímpios parece muito atraente. Se existem apenas dois caminhos,
onde isso nos deixa?
O que a literatura de sabedoria faz é esclarecer nosso
pensamento e nos mostrar que há algumas polaridades absolutas
que não devem ser evitadas, embora a maioria de nós se ache no
meio, agindo às vezes deste modo, às vezes daquele modo. Isso é
verdadeiro a respeito de um homem como Davi, responsável por
alguns dos salmos. O rei Davi pode ser descrito como um homem
segundo o coração de Deus, mas ele também cometeu adultério e
ordenou um assassinato. Alguém pode perguntar a si mesmo o que
Davi teria feito se ele não fosse um homem segundo o coração de
Deus. Se há apenas dois caminhos, onde isso coloca Davi?
A literatura de sabedoria esclarece a polaridade entre santidade
e impiedade, entre justiça e injustiça. Mas, embora esclareça isso, ela
não pode salvar-nos. Se tudo que tivéssemos fosse a literatura de
sabedoria, ela tenderia a nos ensoberbecer, quando estivéssemos
agindo bem, e nos levar ao desespero, quando estivéssemos agindo
mal. Como a lei estudada no capítulo anterior, a literatura de
sabedoria não pode salvar-nos, embora seja um mestre poderoso.
No entanto, o Salmo 1 não é o único salmo da Bíblia. Temos de
examinar rapidamente alguns outros.
 
SALMO 8
 
Este salmo não somente louva a Deus por seu poder na criação
(“Expuseste nos céus a tua majestade” — v. 1), mas também admira
o fato de que Deus tem um relacionamento peculiar com os seres
humanos, com meros mortais: “Que é o homem, que dele te lembres, e
o filho do homem, que o visites?” (v. 4). Deus colocou os seres
humanos acima do resto da ordem criada.
 
Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e
de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés
tudo lhe puseste:
ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo;
as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as
sendas dos mares.
Ó SENHOR, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o
teu nome!
Salmo 8.5-9
 
Você percebe como estas palavras expressam adoração? Este
salmo é um hino composto como uma meditação em Gênesis 1 e 2.
Poucos salmos são meditações usadas na adoração coletiva do povo
de Deus, baseadas nas Escrituras. O povo de Deus medita nas
verdades de Deus e se une, em congregação, para cantar essas
verdades — ou seja, eles não apenas recitam ou leem certas verdades,
mas, em vez disso, eles as cantam.
 
SALMO 19
 
Este salmo é uma meditação sobre como a ordem criada reflete o
caráter de Deus.
 
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento
anuncia as obras das suas mãos.
Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela
conhecimento a outra noite.
Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve
nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a
sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. Aí,
pôs uma tenda para o sol,
o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija
como herói, a percorrer o seu caminho.
Principia numa extremidade dos céus, e até à outra vai o
seu percurso; e nada refoge ao seu calor.
Salmo 19.1-6
 
Depois da falar sobre como Deus se revela nessa ordem criada, o
salmista fala sobre como o Senhor se revela na Escritura.
 
SALMO 14
 
Para mudar o ritmo totalmente, dê uma olhada na linha inicial
do Salmo 14: “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus” (14.1).
Tenho um amigo na Austrália que tem a reputação de falar sobre
Cristo com uma ousadia que outras culturas poderiam achar
bastante agressiva. Certa vez, ele deu uma palestra intitulada “Os
Ateístas São Insensatos, e os Agnósticos São Covardes”. Não importa
o que você pense sobre esta maneira de agir, há um sentido em que
meu amigo está em harmonia com este salmo, que começa
afirmando: “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus” (14.1).
Isso não combina com as percepções modernas. Em alguns círculos
moldados pelo “novo ateísmo” contemporâneo, o insensato é o idiota
que crê na existência de Deus.
Mas veja isso sob a perspectiva de Deus. Admita por um
momento que o Deus da Bíblia é o Deus presente: quem é o
insensato? Isso não foi escrito com base na opinião de alguém que se
estabelece na tradição de René Descartes, um tipo de independência
cartesiana, e diz: “Eu penso que estou na posição em que posso
avaliar se Deus existe e que tipo de Deus ele é”. Esse é o Deus
presente, que deu nome a si mesmo e se revelou. Em sua misericórdia,
ele tem agido vez após vez para salvar seu povo e continua
prometendo um grande livramento ainda maior, por vir. Deus insiste
em que a razão por que as pessoas não veem é que, depois da Queda,
nós, seres humanos, sofremos corrupção moral e espiritual tão
profunda, que estamos cegos para o que é óbvio. É o insensato que
diz em seu coração: “Não há Deus”.
Isso não quer dizer que todos os cristãos são sábios. O que isso
significa é que todos que se tornaram cristãos saíram da insensatez.
E, se neste sentido não somos mais insensatos, isso também,
conforme as Escrituras, é uma marca de graça singular. Os cristãos
não têm o direito de dizer: “Sou mais esperto do que você”, porque
sabem, em seu íntimo, que não são mais do que insensatos, para os
quais Deus mostrou perdão e graça. Não somos mais do que
mendigos que dizem a outros mendigos onde há pão. Mas ouvir a
perspectiva bíblica sobre quem é o verdadeiro insensato nos faz um
bem extraordinário.
 
SALMO 40
 
Este é um salmo de tom bem diferente. É um salmo de
experiência pessoal que se desenvolve em algo mais. Não tenho
espaço para considerar todo ele, mas tentarei abordar seus ensinos
principais. A inscrição superior nos informa que este salmo foi
composto por Davi.
 
Esperei confiantemente pelo SENHOR; ele se inclinou para
mim e me ouviu quando clamei por socorro.
Tirou-me de um poço de perdição, de um tremedal de lama;
colocoume os pés sobre uma rocha e me firmou os passos.
E me pôs nos lábios um novo cântico, um hino de louvor ao
nosso Deus; muitos verão essas coisas, temerão e confiarão
no SENHOR.
Salmo 40.1-3
 
Não sabemos o que era esse poço de perdição, esse tremedal de
lama. É óbvio que era algo tão terrível na experiência de Davi, que ele
se sentiu como nos sentiríamos em um poço de lama: desesperados,
incapazes de sair, descendo à morte, acabados. E Deus o tirou dali.
A maior parte do restante do salmo fala sobre como o salmista
responderá dedicando-se ao Deus vivo e como ele dará testemunho
disso na comunidade do povo de Deus. Depois, na última parte do
salmo, ele reconhece abertamente que, por haver passado por esse
tipo de experiência, isso não significa que ele não passaria por outras
experiências desanimadoras. Apenas porque você passou por um
divórcio, não significa que você será poupado de câncer. Apenas
porque você teve um câncer, não significa que não perderá seu
cônjuge. Apenas porque você tem um filho rebelde, não significa que
você não terá outros problemas. A vida nesse mundo caído e
corrompido traz muitos sofrimentos, derrotas e desânimos. Davi deu
graças a Deus por sua ajuda e livramento daquele lamaçal específico,
mas ele foi bastante realista em olhar para o futuro e dizer, em
essência: “Há muitas outras coisas, Senhor Deus, para as quais eu
precisarei da tua ajuda”.
 
Não retenhas de mim, SENHOR, as tuas misericórdias;
guardem-me sempre a tua graça e a tua verdade.
Não têm conta os males que me cercam; as minhas
iniquidades me alcançaram, tantas, que me impedem a
vista; são mais numerosas que os cabelos de minha cabeça,
e o coração me desfalece.
Praza-te, SENHOR, em livrar-me; dá-te pressa, ó SENHOR, em
socorrer-me.
Salmo 40.11-13
 
Era como se Davi estivesse dizendo: “A pior coisa com a qual me
deparo não é a experiência do poço de lama pela qual passei, e sim
meu próprio pecado, que me prostra, me abate e me desanima, porque
olho para meu coração e não posso me enquadrar no lado bom do
Salmo 1”. “As minhas iniquidades me alcançaram, tantas, que me
impedem a vista.”
Mas ainda há outros problemas que Davi tinha de enfrentar, sem
mencionar as pessoas que zombavam dele e lhe causavam
dificuldades:
 
Sofram perturbação por causa da sua ignomínia os que
dizem: Bem feito! Bem feito!
Folguem e em ti se rejubilem todos os que te buscam; os que
amam a tua salvação digam sempre: O SENHOR seja
magnificado!
Salmo 40.15-16
 
Portanto, este é um salmo de grande intensidade, onde um crente
medita em como Deus o ajudou e antecipa a maneira como precisará
da ajuda de Deus no futuro.
 
SALMO 51
 
Antes de considerar esse salmo, é importante ler a inscrição
superior: “Salmo de Davi, quando o profeta Natã veio ter com ele,
depois de haver ele possuído Bate-Seba”. Isto se refere a quando Davi
seduziu uma mulher jovem, sua vizinha, esposa de um dos soldados
que lutavam na fronte, em uma de suas guerras. Quão insensível foi
isso? Aconteceu que Bate-Seba ficou grávida de Davi e o contou ao
rei. Por isso, ele arranjou as coisas para que Urias, o marido de Bate-
Seba, retornasse da batalha. Enviou uma mensagem dizendo que
Urias deveria retornar trazendo uma informação para o rei,
aparentemente para prover comunicação entre os oficiais no campo
de batalha e o comandante supremo. De fato, essa foi a maneira de
Davi conseguir que Urias viesse para casa, pois, se viesse, ele
certamente dormiria com sua esposa. Quanto ao tempo do
nascimento, ninguém estranharia um adiantamento de um mês ou
dois. Aconteceu, porém, que Urias se mostrou tão preocupado com
seus colegas na fronte que não pôde nem mesmo ir para casa; por
isso, dormiu no jardim do palácio e preparou-se para retornar à
batalha no dia seguinte.
Davi sabia que estava enrascado. Por isso, enviou uma
mensagem pelas mãos desse homem — uma mensagem selada —
para os comandantes da unidade. Deveriam arranjar um conflito, e
todos que integravam o pelotão receberiam um tipo de sinal ou
código para saberem quando recuar — exceto Urias. Eles tiveram o
conflito, o sinal foi dado, todos recuaram e Urias foi morto.
Davi pensou que tinha escapado das consequências de seu erro.
Então, quando o profeta Natã o confrontou, Davi se viu nas
profundezas da humilhação e vergonha pública. Suas ações foram
todas expostas. Que tragédia! No entanto, Davi foi quebrantado, e,
em meio ao seu profundo arrependimento, ele escreveu o Salmo 51.
Foi isso que ele quis dizer com o sobrescrito: o salmo foi escrito
“quando o profeta Natã veio ter com ele, depois de haver ele possuído
Bate-Seba”.
 
Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade;
e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as
minhas transgressões.
Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me
do meu pecado.
Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado
está sempre diante de mim.
Salmo 51.1-3
 
Você já se sentiu assim, quando acordou no meio da noite, e
lembrou um mal estúpido ou insano que praticou, e encheu-se de
ansiedade e inquietação, querendo desfazer tudo, sem poder faze-lo?
“Meu pecado está sempre diante de mim. Pequei contra ti, contra
ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que
serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar” (Sl 51.3-4).
Essa é uma afirmação impressionante. Em um nível, você quer dizer
que isso não é verdade. Davi pecou contra Base-Seba: ele a seduziu.
Davi pecou contra o marido de Bate-Seba: ele o matou depois de
dormir com ela. Davi pecou contra a sua própria família: ele os traiu.
Davi pecou contra o alto comando militar: ele os corrompeu. Davi
pecou contra o povo: não agiu como um rei justo. É difícil pensar
contra quem Davi não pecou.
No entanto, ele teve a coragem de dizer: “Pequei contra ti, contra
ti somente” (51.4). No nível mais profundo, as palavras de Davi
falam a verdade exata. O que torna o pecado tão abominável, o que
torna o pecado tão ímpio, é precisamente o fato de que ele afronta a
Deus. Certamente é horrível quando ofendemos nossos amigos. É
terrível quando magoamos outra pessoa. Por isso, quando acordamos
no meio da noite com aqueles sentimentos de grande vergonha, não é
surpreendente que fiquemos embaraçados por causa do que os nossos
amigos pensarão de nós agora, por conta do que dissemos ou
fizemos, que foi tão insensível ou cruel. Mas, além de toda essa
vergonha horizontal, há uma culpa muito maior da qual raramente
nos mostramos conscientes e pela qual raramente nos angustiamos:
a culpa diante do Deus vivo. Mas Davi entendeu bem isso. Ele se
angustiou por seu pecado porque o viu como ele é aos olhos de Deus:
“Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus
olhos”. O que dá ao pecado o seu tom mais horrível é precisamente o
fato de que ele é uma afronta ao Deus que nos criou e nos julgará no
último dia. Davi entendeu isso porque entendia os capítulos iniciais
de Gênesis. O âmago dos problemas de Eva ou dos problemas de
Adão, não foi que eles transgrediram uma pequena regra ou traíram
a confiança um do outro; antes, eles detrataram a Deus.
Em qualquer pecado que cometemos, quer seja genocídio, quer
seja trapaça em nosso imposto de renda, a parte mais ofendida é
sempre Deus. “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau
perante os teus olhos.” Essa é a razão por que, como temos visto
desde o começo da narrativa bíblica, aquilo que realmente precisamos
ter — embora tenhamos outras coisas — é o perdão de Deus, pois, se
não o tivermos, não teremos nada.
 
OUTROS SALMOS
 
Há muitos outros salmos, é claro. O Salmo 110 fala de alguém
que está por vir e que é, ao mesmo tempo, rei e sacerdote. É o capítulo
mais frequentemente citado no Novo Testamento. O Salmo 119, o
capítulo mais longo da Bíblia, está cheio de ações de graças a Deus;
é, também, uma meditação sobre a natureza das palavras de Deus,
da autorrevelação de Deus em palavras, da sua lei, seus decretos,
seus juízos, seu ensino, sua verdade. É totalmente a respeito do que
chamaríamos a Bíblia. Ele nos provê maneiras de pensar sobre o fato
de que Deus se comunica; ele fala e nos dá as suas palavras. O Salmo
139 também diz algo a respeito disso. “Que preciosos para mim, ó
Deus, são os teus pensamentos! E como é grande a soma deles!” (Sl
139.17).
Este é o Deus que faz seu povo cantar em agradecimento,
contrição, petição, lamento e meditação. Considerados juntos, esses
salmos indicam o tipo de relacionamento que Deus quer que seu povo
tenha com ele. É profundamente autêntico, não o tipo de religião
caracterizada por superstição; não é um relacionamento de meros
deveres religiosos, importância pessoal e arrogância religiosa, em que
tudo disfarça cuidadosamente uma hipocrisia desprezível.
A intensidade dos salmos ressalta que Deus não pode ser
enganado por rituais religiosos. Ele quer que os portadores de sua
imagem desfrutem de um relacionamento genuíno com ele, o Deus
vivo e verdadeiro. Isso é sabedoria.
 
A LITERATURA DE SABEDORIA
 
Vários livros constituem a literatura de sabedoria da Bíblia.
Veremos brevemente alguns deles.
 
PROVÉRBIOS
 
O livro de Provérbios contém um tipo de literatura: muitos
provérbios. Muitos desses provérbios não são reflexões isoladas, mas
estão ligados tematicamente. Por exemplo, muitos deles giram em
torno de duas mulheres metafóricas: a Sabedoria e a Loucura.
Estamos seguindo uma ou outra dessas mulheres. A literatura de
sabedoria nos força a escolher “este caminho” ou “aquele caminho”.
Ela comparará as duas coisas e dirá: “Este é o caminho da
sabedoria. Este é o caminho da loucura. Assegure-se de seguir o
caminho da sabedoria”.
No começo do livro, há um provérbio que se repete de várias
maneiras: “O temor do SENHOR é o princípio do saber” (Pv 1.7). Um
pouco depois: “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o
conhecimento do Santo é prudência” (Pv 9.10). O temor em vista
nestes versículos não é aquele temor paralisante que um cachorro
tem quando você pega o jornal e ele sabe que, sendo dono cruel e
arbitrário, você extrairá diversão barata apavorando a pequena
criatura. O temor referido nestes versículos é o temor de Deus que
reconhece que ele é incomparavelmente santo, reto e justo — e nós
não o somos. Deus é nosso juiz e a nossa única esperança. Esse
temor é o princípio da sabedoria. Isto é o oposto do que achamos em
Salmos 14.1: “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus.” Um
senso correto de como viver debaixo do sol começa com Deus e sua
autorrevelação. Isto é o princípio da sabedoria.
 

 
Um dos livros mais notáveis na coleção de sabedoria da Bíblia é
o livro de Jó. Não sabemos quando ele foi escrito, embora
provavelmente seja muito antigo. O livro retrata um homem que não
era perfeito, mas era admiravelmente bom: muito rico, generoso,
atencioso e amável. Ele orava frequentemente por seus dez filhos,
para que não cometessem pecado nem fizessem coisas más. Ele era
generoso com os pobres. E podia dar este testemunho: “Fiz aliança
com meus olhos; como, pois, os fixaria eu numa donzela?” (Jó 31.1).
Ele era admiravelmente piedoso, e sua piedade era genuína.
O que Jó não sabia era que, por trás dos acontecimentos, o
Diabo, que conhecemos como a serpente em Gênesis 3, fez uma
aposta com Deus:
 
Porventura, Jó debalde teme a Deus?
Acaso, não o cercaste com sebe, a ele, a sua casa e a tudo
quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste, e os seus
bens se multiplicaram na terra.
Estende, porém, a mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e
verás se não blasfema contra ti na tua face.
Disse o SENHOR a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está
em teu poder; somente contra ele não estendas a mão.
Jó 1.9-12
 
Ondas sucessivas de saqueadores vieram contra as propriedades
de Jó: seu gado foi roubado, seus rebanhos foram dizimados, um
vendaval destruiu a casa em que os dez filhos de Jó realizavam uma
festa e matou a todos. Jó reagiu dizendo: “Nu saí do ventre de minha
mãe e nu voltarei; o SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o
nome do SENHOR!” (Jó 1.21).
Satanás disse a Deus: “Pele por pele, e tudo quanto o homem
tem dará pela sua vida. Estende, porém, a mão, toca-lhe nos ossos e
na carne e verás se não blasfema contra ti na tua face”. Deus
respondeu: “Eis que ele está em teu poder; mas poupa-lhe a vida”.
Logo encontramos Jó sentado em cinza e usando cacos para raspar-se
com eles. Quando três amigos vêm para visitá-lo, ficam assentados
por uma semana e nada fazem, exceto permanecerem silenciosos — a
coisa mais sábia que podiam fazer.
O resto do livro é desenvolvido como um drama. Esses amigos de
Jó achavam que dominavam teologia e podiam oferecer a Jó todas as
respostas corretas de que ele necessitava.
Em essência, eles disseram: “Jó, você crê que Deus é soberano?”
“Sim.”
“Você crê que Deus é justo?”
“Sim.”
“Então, se Deus é soberano e justo, e você está sofrendo, a
implicação é...”
Jó respondeu: “Sei que Deus é soberano e justo, mas,
francamente, eu não mereço isto. Sou um sofredor inocente. Eu não
deveria estar sofrendo isto”.
“Jó, você sabe o que está dizendo? Está querendo dizer que Deus
está cometendo um erro ou que ele está sendo injusto com você?”
“Oh! não! Não estou dizendo isso. Sei que Deus é soberano. Sei
que ele é justo. Mas preciso dizer que o sofrimento por que estou
passando não é justo.”
A discussão se tornou mais intensa, até que os amigos
começaram a dizer: “Jó, você não entende. Você cometeu mais
pecados do que pode reconhecer — pecados que você cometeu e dos
quais não tem conhecimento, mais do que você talvez possa
imaginar. Do contrário, você está dizendo realmente que Deus é
injusto. O que você tem de fazer é confessá-los, embora não possa
mencionar pecados específicos. Confesse-os de modo geral a Deus. Ele
o perdoará, e tudo melhorará”.
Jó replicou: “Como eu faria isso? Como posso me arrepender de
algo que não sei se era errado? Como posso me arrepender e dizer que
estou pedindo misericórdia e perdão a Deus, quando penso que não
mereço isto? Agir assim me tornaria um mentiroso; e eu pecaria
contra Deus. Preciso de um advogado. Desejo ter alguém que fique
entre mim e Deus. Isso é o que eu preciso.”
A tensão no drama se intensificou. Não explicarei todos os níveis
de argumentação. Por fim, Deus entrou em cena, falou com Jó e lhe
fez uma série de perguntas retóricas: “Jó, você planejou a neve? Onde
você estava quando eu criei o primeiro hipopótamo? Jó, você me deu
algum conselho sobre como fixar a constelação de Órion no céu?” No
final de dois capítulos destas perguntas retóricas, Jó disse: “Sinto
muito. Falei tolices, reivindicando saber mais do que sei”. Sabe o que
Deus disse? “Cinge agora os lombos como homem; eu te perguntarei,
e tu me responderás” (Jó 40.7). Depois, há mais dois capítulos de
perguntas retóricas.
Os capítulos que descrevem o discurso de Deus são
impressionantes porque, ao final, Deus não deu nenhuma resposta
sistemática que solucionaria todo o problema do sofrimento inocente.
Todas as perguntas retóricas de Deus se combinam para significar:
nós, seres humanos, nem sempre teremos as explicações, mas Deus é
maior do que nós, e, às vezes, temos apenas de crer nele. Por fim, Jó
se arrependeu (ver 42.1-6), não de pecados imaginários que seus
“amigos” achavam que ele precisava confessar, para obter de volta o
favor de Deus, e sim de sua tendência presunçosa de insistir em
respostas, em vez de crer no Senhor.
No entanto, Deus ressaltou que, no geral, Jó entendeu as coisas
corretamente. Sem dúvida, Jó ficou impaciente perto do final da
história, mas o desprazer de Deus foi reservado para os três “amigos”
que achavam entender tudo sobre Deus.
No fim da história, Deus restaurou a situação de Jó. Isso não
deve ser surpreendente. Afinal de contas, no final dos tempos, de
acordo com a Bíblia, não somente toda a justiça será feita, mas
também nós veremos isso. A restauração da condição de Jó é um tipo
de miniatura da história maior, da história mundial sob o controle de
Deus: a justiça prevalecerá no final. Isso também é sabedoria.
 
ECLESIASTES
 
Em Eclesiastes, Salomão se propõe a achar significado para a
vida. Ele se engaja em grandes obras públicas e descobre, em última
análise, que isso não tem significado, pois nenhuma delas é
permanente. Ele se dedica à sabedoria, à literatura, à erudição e à
meditação, mas, depois de algum tempo, descobre que essas coisas
também não eram muito satisfatórias. Então, ele se dedica a
generosidade, ou ascetismo, ou hedonismo, mais isto e mais aquilo.
Por fim, nada satisfaz, nada permanece. Tudo feito aqui é ainda
“debaixo do sol”. E, no final do livro, quando Salomão olha para trás,
considera a sua vida e todas as coisas que tentou fazer para achar
prazer, significado e realização, ele conclui:
 
Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes
que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais
dirás: Não tenho neles prazer...
De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e
guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo
homem.
Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que
estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más.
Eclesiastes 12.1, 13-14
 
Isto quer dizer: o que Salomão descobre no final é uma visão
teológica, uma visão do que acontece no fim de tudo. Você tem de
viver à luz do final. Isto é sabedoria porque prestaremos contas a este
Deus.
 
CONCLUSÃO
 
Quando sentimos em nosso coração, à medida que envelhecemos,
que tem de haver algo mais — tem de haver algo mais satisfatório,
tem de haver algo maior —, estamos certos em dar ouvidos a essa
voz que nos deixa meditativos, porque fomos criados para Deus, e
nossa alma não tem descanso enquanto não o conhecemos. Essas são
as coisas que os livros de sabedoria nos ensinam à medida que o
Antigo Testamento avança em antecipação do dia em que a
Sabedoria encarnada — ou seja, a Sabedoria em forma de carne —
virá, quando haverá uma solução final entre as perfeições que Deus
exige em Salmos 1 e o comprometimento da má conduta em nossa
própria vida, entre Davi como um homem segundo o coração de Deus
e o Davi como um homem ímpio em profunda necessidade da
misericórdia de Deus. Uma solução ainda está por vir, e seu nome é
Jesus.

(1) Isto é frequentemente atribuído a Daniel O’Connell, no século XVIII, seguindo Platão.
7
O Deus
que se Torna um Ser Humano
A Até agora, neste livro, me referi apenas infrequentemente àquele
grupo de livros que ostentam o nome de seus autores proféticos.
Mencionei Isaías uma ou duas vezes e alguns outros profetas, mas
isso foi tudo.
Gostaria de ter espaço para explicá-los em pelo menos alguns
outros capítulos. Embora estes livros contenham seções que são
obscuras, muitas partes dessas profecias estão entre os escritos mais
brilhantes e mais intensos da Bíblia. Sem comentá-las e explicar o
seu contexto, as seguintes citações ilustram isso:
 
Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois,
não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de
escultura....
Por muito tempo me calei, estive em silêncio e me contive;
mas agora darei gritos como a parturiente, e ao mesmo
tempo ofegarei, e estarei esbaforido.
Os montes e outeiros devastarei e toda a sua erva farei
secar; tornarei os rios em terra firme e secarei os lagos.
Guiarei os cegos por um caminho que não conhecem, fá-los-
ei andar por veredas desconhecidas; tornarei as trevas em
luz perante eles e os caminhos escabrosos, planos. Estas
coisas lhes farei e jamais os desampararei.
Tornarão atrás e confundir-se-ão de vergonha os que
confiam em imagens de escultura e às imagens de fundição
dizem: Vós sois nossos deuses.
Isaías 42.8, 14-17
 
Quando passares pelas águas, eu serei contigo; quando,
pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo
fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti.
Porque eu sou o SENHOR, teu Deus, o Santo de Israel, o teu
Salvador; dei o Egito por teu resgate e a Etiópia e Sebá, por
ti.
Visto que foste precioso aos meus olhos, digno de honra, e
eu te amei, darei homens por ti e os povos, pela tua vida.
Não temas, pois, porque sou contigo; trarei a tua
descendência desde o Oriente e a ajuntarei desde o
Ocidente.
Isaías 43.2-5
 
Prouvera a Deus a minha cabeça se tornasse em águas, e os
meus olhos, em fonte de lágrimas! Então, choraria de dia e
de noite os mortos da filha do meu povo.
Jeremias 9.1
 
Pareceu-me bem fazer conhecidos os sinais e maravilhas
que Deus, o Altíssimo, tem feito para comigo.
Quão grandes são os seus sinais, e quão poderosas, as suas
maravilhas! O seu reino é reino sempiterno, e o seu
domínio, de geração em geração.
Daniel 4.2-3
 
Vós que converteis o juízo em alosna e deitais por terra a
justiça
Amós 5.7
 
Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás?
Gritar-te-ei: Violência! E não salvarás?
Por que me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão?
Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há
contendas, e o litígio se suscita.
Por esta causa, a lei se afrouxa, e a justiça nunca se
manifesta, porque o perverso cerca o justo, a justiça é
torcida.
Habacuque 1.2-4
 
Tomara houvesse entre vós quem feche as portas, para que
não acendêsseis, debalde, o fogo do meu altar. Eu não tenho
prazer em vós, diz o SENHOR dos Exércitos, nem aceitarei da
vossa mão a oferta.
Mas, desde o nascente do sol até ao poente, é grande entre
as nações o meu nome; e em todo lugar lhe é queimado
incenso e trazidas ofertas puras, porque o meu nome é
grande entre as nações, diz o SENHOR dos Exércitos.
Malaquias 1.10-11
 
Às vezes, estes livros proféticos preservam o conflito espiritual
dos próprios profetas. Às vezes, eles predizem o futuro imediato:
Assíria invadirá Moabe, mas não será bem sucedida em tomar
Jerusalém; a aliança de Judá com o Egito é irresponsável e terá efeito
contrário ao esperado. Às vezes, os profetas predizem uma renovação
de tudo no final da História, um novo céu e uma nova terra. E, entre
estes dois finais profetizados, há profecias que antecipam a vinda de
Deus ou o alvorecer de uma nova aliança que ele inaugurará ou a
vinda de um novo rei davídico ou a vinda do Servo de Deus não
designado por nome.
Temos de pausar por um momento. O capítulo que você está
lendo tem o impressionante título de “O Deus que se Torna um Ser
Humano”. Esse título pressupõe que Deus está sempre nos dizendo,
no Antigo Testamento que ele está vindo. E agora ele chega realmente
— por tornar-se um ser humano.
Em um sentido, a narrativa do Antigo Testamento estabelece que
Deus veio a Abraão e o chamou em sua peregrinação. Deus veio a
Moisés e lhe deu certas tarefas. Ele veio a Davi e estabeleceu uma
dinastia. No Antigo Testamento, em grandes partes dos livros
bíblicos, diz-se repetidamente que Deus está vindo.
Às vezes, a vinda de Deus implica julgamento. As pessoas
falavam do “Dia do Senhor”, o tempo em que o Senhor viria, como
algo maravilhoso, um tempo de avivamento e bênção. Mas, às vezes,
Deus falava: “Para que desejais vós o Dia do SENHOR? É dia de trevas
e não de luz” (Am 5.18). A vinda do Senhor pode trazer consigo o
mais severo juízo. Este juízo se estende além do próprio povo da
aliança do Senhor, se estende a todas as nações, porque Deus é
soberano sobre tudo. “A justiça exalta as nações, mas o pecado é o
opróbrio dos povos” (Pv 14.34). Portanto, nos maiores profetas do
Antigo Testamento, Deus promete vir e visitar os babilônios com
juízo, ou as cidades pagãs de Tiro e Sidom, com juízo, e assim por
diante.
Deus também promete que virá com perdão e esperança. Em
algumas dessas passagens, há uma confusão — em retrospectiva,
uma confusão intencional — sobre quem está vindo. É Deus mesmo
ou é o último rei da linhagem de Davi? Vimos brevemente uma destas
passagens na profecia de Isaías 9, em palavras que nos são
familiares por causa do Messias de Handel. Este rei prometido reinará
no trono de Davi — mas, como vimos, a profecia diz sobre ele:
 
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o
governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será:
Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade,
Príncipe da Paz;
para que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim
sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o estabelecer
e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para
sempre.
Isaías 9.6-7
 
Nessa passagem, é claro que começamos com o rei davídico, e,
repentinamente, ele é chamado de “Deus Forte”. Em outras
passagens, a direção é invertida: começamos lendo sobre a vinda do
próprio Deus, para depois aprendermos que o rei davídico está em
foco. Uma das passagens mais notáveis neste sentido é do profeta
Ezequiel:
 
Veio a mim a palavra do SENHOR, dizendo:
Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel;
profetiza e dize-lhes: Assim diz o SENHOR Deus: Ai dos
pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não
apascentarão os pastores as ovelhas?
Comeis a gordura, vestis-vos da lã e degolais o cevado; mas
não apascentais as ovelhas.
A fraca não fortalecestes, a doente não curastes, a
quebrada não ligastes, a desgarrada não tornastes a trazer
e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com
rigor e dureza.
Assim, se espalharam, por não haver pastor, e se tornaram
pasto para todas as feras do campo.
As minhas ovelhas andam desgarradas por todos os montes
e por todo elevado outeiro; as minhas ovelhas andam
espalhadas por toda a terra, sem haver quem as procure ou
quem as busque.
Ezequiel 34.1-6
 
Em seguida, o que Deus diz em essência, de maneiras diferentes,
versículo após versículo, é isto: “Eu não somente julgarei os falsos
pastores. Eu mesmo me tornarei o pastor de meu povo”.
 
Assim diz o SENHOR Deus: Eis que eu estou contra os
pastores e deles demandarei as minhas ovelhas; porei termo
no seu pastoreio, e não se apascentarão mais a si mesmos;
livrarei as minhas ovelhas da sua boca, para que já não
lhes sirvam de pasto.
Ezequiel 34.10
 
Deus prossegue e diz:
 
Como o pastor busca o seu rebanho, no dia em que encontra
ovelhas dispersas, assim buscarei as minhas ovelhas; livrá-
las-ei de todos os lugares para onde foram espalhadas no
dia de nuvens e de escuridão.
Tirá-las-ei dos povos, e as congregarei dos diversos países, e
as introduzirei na sua terra; apascentá-las-ei nos montes
de Israel, junto às correntes e em todos os lugares
habitados da terra.
Apascentá-las-ei de bons pastos, e nos altos montes de
Israel será a sua pastagem; deitar-se-ão ali em boa
pastagem e terão pastos bons nos montes de Israel.
Eu mesmo apascentarei as minhas ovelhas e as farei
repousar, diz o SENHOR Deus. A perdida buscarei, a
desgarrada tornarei a trazer, a quebrada ligarei e a enferma
fortalecerei; mas a gorda e a forte destruirei; apascentá-las-
ei com justiça.
Ezequiel 34.12-16
 
Em outras palavras: “Todos esses falsos pastores estão apenas
arruinando o rebanho. Eu mesmo serei o pastor das ovelhas”. Depois
de dizer, repetidas vezes — cerca de 25 vezes —, que Deus mesmo
pastoreará seu povo, que Deus mesmo fará o trabalho de pastor, ele
acrescenta:
 
Suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o
meu servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de
pastor.
Eu, o SENHOR, lhes serei por Deus, e o meu servo Davi será
príncipe no meio delas; eu, o SENHOR, o disse.
Ezequiel 34.23-24
 
De algum modo, a promessa de que Deus mesmo virá e de que
um rei davídico virá se funde em uma só.
Outras promessas marcam a literatura do Antigo Testamento.
Por exemplo, seis séculos antes de Jesus, o profeta Jeremias relatou
que Deus faria uma nova aliança com seu povo (ver Jr 31.31-34).
Isso significa que a aliança em vigor, a aliança estabelecida no Sinai,
se tornaria a velha aliança. Se a aliança do Sinai é declarada velha,
em um sentido ou outro, ela fica obsoleta, visto que será substituída
pela nova aliança.(1) As pessoas que conheciam bem essas Escrituras
não podiam deixar de perguntar quando essa nova aliança surgiria,
de que maneiras ela preservaria as ênfases da velha aliança e de que
maneira as sobrepujaria. Podemos imaginar a excitação, a confusão,
a incerteza e a esperança que houve quando, na mesma noite em que
foi traído e levado à cruz, Jesus tomou um cálice de vinho, durante a
refeição que teve com seus seguidores mais íntimos, e disse: “Este é o
cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós”
(Lc 22.20). Posteriormente, teremos ocasião de considerar as
palavras de Jesus. No momento, basta reconhecermos alguns dos
padrões das profecias do Antigo Testamento que apontam para Jesus.
Em várias passagens da profecia de Isaías, Deus faz o anúncio
sobre Alguém que ele chama apenas de “meu servo”. Por exemplo:
 
Eis aqui o meu servo, a quem sustenho; o meu escolhido,
em quem a minha alma se compraz; pus sobre ele o meu
Espírito, e ele promulgará o direito para os gentios.
Não clamará, nem gritará, nem fará ouvir a sua voz na
praça.
 
Não esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que
fumega; em verdade, promulgará o direito.
Não desanimará, nem se quebrará até que ponha na terra o
direito; e as terras do mar aguardarão a sua doutrina.
Isaías 42.1-4
 
Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as
nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito,
ferido de Deus e oprimido.
Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído
pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz
estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.
Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um
se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a
iniquidade de nós todos.
Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como
cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda
perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca.
Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem
dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes;
por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido.
Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o
rico esteve na sua morte, posto que nunca fez injustiça,
nem dolo algum se achou em sua boca.
Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar;
quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a
sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do
SENHOR prosperará nas suas mãos.
Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará
satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento,
justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará
sobre si.
Isaías 53.4-11
 
É muito impressionante que, antes da vinda de Jesus, mais de
700 anos depois da profecia de Isaías, ninguém entendia claramente
que o servo prometido do Senhor seria também o rei davídico, cuja
vinda seria, ao mesmo tempo, a visitação de Deus. Em retrospectiva,
é fácil percebermos que as peças estão ali. Alguém pode suspeitar que
uma das razões por que as pessoas não harmonizavam as peças, era
por acharem difícil imaginar como um rei vitorioso e conquistador, da
linhagem de Davi, poderia também ser um servo sofredor que, de
algum modo, sofreria os tormentos dos condenados, para que estes
fossem justificados.
Os componentes do Antigo Testamento seguem juntos.
 
O NOVO TESTAMENTO
 
Assim chegamos ao Novo Testamento. Os primeiros quatro livros
do Novo Testamento são chamados frequentemente de “evangelhos”:
Mateus, Marcos, Lucas e João. Embora todos eles comecem de
maneira diferente, todos começam com a vinda de Jesus.
O evangelho de Lucas, por exemplo, descreve uma visita
angelical a uma jovem chamada Maria, prometendo-lhe uma
concepção virginal, de modo que a criança nascida seria chamada
Filho de Deus. Em seguida, a história familiar do Natal acontece em
Lucas 2.
No evangelho de Mateus, a situação é vista menos da
perspectiva de Maria e mais da perspectiva de José. Maria está
comprometida a casar-se com José, e ele descobre que ela está
grávida. Não esqueça que naquela sociedade, eles não podiam ir para
um lugar reservado e ter uma conversinha em que Maria tentaria
convencer José de que sua gravidez era um milagre operado pelo
poder de Deus e de que ela ainda era virgem. Naqueles dias, você não
podia ter esse tipo de conversa fácil sobre questões sexuais, antes de
ser casado. Damas de companhia e vigias estavam ao redor em todo
o tempo. Mas Deus visitou também a José e insistiu em que aquilo era
obra de Deus. Maria ainda era virgem.
 
Enquanto ponderava nestas coisas, eis que lhe apareceu,
em sonho, um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi,
não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela foi
gerado é do Espírito Santo.
Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque
ele salvará o seu povo dos pecados deles.
Mateus 1.20-21
 
Por isso, quando o bebê nascesse, José deveria dar-lhe o nome de
Jesus. Jesus é a forma grega da palavra Josué, que significa “Jeová
salva”. Jeová, você recorda, é o nome de Deus, no Antigo Testamento,
associado com “EU SOU O QUE SOU”. Este Deus salva, Jeová salva. Do
quê? José deveria dar ao seu bebê o nome de Jesus, que significa
“Jeová salva”, porque Jesus salvará seu povo dos pecados deles.
Ocorrendo, como o faz, no primeiro capítulo do evangelho de Mateus,
esse nome crucial anuncia que o resto do evangelho deve ser lido
como o livro em que Jeová salva o seu povo dos pecados deles. Todo
capítulo desse evangelho pode ser encaixado nesse tema. Os pecados
acumulados desde o tempo da Queda (Gênesis 3) serão tratados.
O que faremos deste Jesus?
 
JOÃO 1.1-18
 
O evangelho de João começa de maneira diferente. Não começa
com os desenvolvimentos históricos (José, Maria, Belém, a visita dos
pastores, etc.). Este evangelho começa pensando no que significa a
vinda do Filho eterno, a vinda de Deus. Vale a pena separar tempo
para ler com atenção os dezoito versículos inicias deste evangelho,
chamados, às vezes, o prólogo de João:
 
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele,
nada do que foi feito se fez.
A vida estava nele e a vida era a luz dos homens.
A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram
contra ela.
Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.
Este veio como testemunha para que testificasse a respeito
da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele.
Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz,
a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a
todo homem.
O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu.
Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de
serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu
nome;
os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e
de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito
do Pai.
João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem
eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a
primazia, porquanto já existia antes de mim. Porque todos
nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.
Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a
verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no
seio do Pai, é quem o revelou.
João 1.1-18
 
Precisamos considerar o pensamento desse prólogo — muito
rapidamente, sem dúvida, mas em detalhes suficientes para
começarmos a sentir a maravilha e o poder de quem Jesus é e por que
ele veio.
 
O VERBO: A AUTOEXPRESS O DE DEUS (JO 1.1)
 
Aquele que veio é chamado apenas de “o Verbo”: “No princípio
era o Verbo , e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (1.1).
Podemos dizer: “No princípio era a autoexpressão de Deus [pois isso é
o que “Verbo” sugere neste texto], e esta autoexpressão estava com
Deus [ou seja, o companheiro idêntico do próprio Deus], e esta
autoexpressão era Deus [ou seja, o “eu” do próprio Deus]”. O seu
coração começa a palpitar, e sua mente pergunta: “O que é isso?
Como você pode pensar nesses termos?” Mas isso é o que o texto diz.
Esse “Verbo”, que, como você verá num momento, se torna um ser
humano, é descrito como o companheiro idêntico de Deus (ele já
estava no princípio com Deus) e como o próprio “eu” de Deus (ele é
Deus!).
Até o termo “Verbo” é uma escolha interessante. Que título ou
expressão metafórica deveria ser aplicada a Jesus nos versículos
iniciais do evangelho de João? Posso imaginar várias possibilidades
correndo pelos pensamentos de João. Mas, em algum ponto, João
lembra, por exemplo, que no Antigo Testamento lemos frequentemente
expressões como esta: “A palavra do Senhor veio ao profeta,
dizendo...” Portanto, Deus se revelou por meio de sua palavra, na
revelação. O apóstolo se lembra talvez de Gênesis 1: Deus falou, e o
mundo veio à existência ou, de outra maneira: pela palavra do
Senhor, os céus e a terra foram criados (ver Sl 33.6). Aqui, temos a
palavra de Deus na criação. Em outros textos, os escritores bíblicos
falam sobre Deus enviando a sua palavra para curar, ajudar e
transformar seu povo (ver, por exemplo, Sl 107.20). O verbo de Deus
faz todas estas coisas: por sua palavra, Deus revela, cria,
transforma. E João pensa consigo mesmo: “Sim, este é o termo
apropriado que resume tudo que Jesus é”. Ele é a autoexpressão de
Deus, a revelação de Deus. Ele é o agente de Deus na criação e veio
para salvar e transformar o seu povo.
Agora, chegamos a algo muito importante, algo
extraordinariamente importante sobre o Deus presente, o Deus que se
revela na Bíblia. Em todo o seu relato, a Bíblia insiste no fato de que
há apenas um único Deus, o Deus que é Criador, Sustentador e Juiz
de todos os homens. Mas, neste primeiro versículo do evangelho de
João, a Bíblia nos diz que a Palavra estava no princípio com Deus;
portanto, ele é tão eterno e autoexistente quanto Deus; ele é o
companheiro idêntico de Deus, estava “com Deus” desde o princípio,
uma equivalência admirável em face do que a Bíblia diz sobre a
unicidade de Deus. E ele é o próprio Deus, pois “o Verbo era Deus”. De
algum modo, esse Verbo é distinguível de Deus (ele estava “com
Deus”), mas ele é identificado como Deus (“o Verbo era Deus”). Pouco
depois, somos informados a respeito de como esse Verbo se torna um
ser humano, o ser humano que conhecemos como Jesus. Essa é a
razão por que os cristãos afirmam que Jesus é, ao mesmo tempo,
distinguível de Deus (companheiro idêntico do próprio Deus), mas
totalmente identificado com Deus. Nossa mente fica perplexa com o
paradoxo.
De fato, adiantando um pouco o assunto, os cristãos inventaram
uma palavra para se referirem a Deus. Este Deus único, afirmamos, é
a Trindade, o Deus três em um. Não somente o Pai é Deus, e Jesus, o
Filho, é Deus, mas também o Espírito Santo é Deus (como veremos).
Nenhum cristão, por mais erudito ou sábio que seja, assevera que
entende completamente tudo isso. Historicamente, os cristãos têm
achado maneiras de falar sobre estas coisas sem cair em contradições
tolas. Dizemos, por exemplo, que o Verbo compartilha da mesma
“substância” com o Pai, mas é uma “Pessoa” distinta. Também
aprendemos a não afirmar que entendemos mais do que realmente
entendemos.
A evidência para pensarmos em Deus como Trindade não é
construída apenas a partir do primeiro versículo do prólogo de João.
Por exemplo, no mesmo evangelho de João achamos diversas
passagens que apoiam esse entendimento a respeito de Deus. Em
João 5.19, Jesus insistiu em que fazia “somente aquilo que” o Pai
fazia — algo que nenhum mero humano jamais poderia dizer. No
mesmo capítulo, Deus mostra que ele resolveu que todos devem
honrar o Filho “do modo por que honram o Pai” (5.23) — algo que
não faz sentido se Jesus não é Deus. Em João 8.58, num contexto em
que Jesus estava envolvido numa disputa difícil a respeito de quem
ele é, Jesus insistiu: “Antes que Abraão existisse, EU SOU” (ênfase
acrescentada). Visto que Abraão já estava morto havia 2.000 anos, a
afirmação de Jesus era que ele existia por quase 2.000 anos além dos
trinta anos ou mais de sua existência física. E, o que é mais
importante, Jesus tomou para si o nome pelo qual Deus mesmo é
conhecido: Eu sou ou Eu sou o que sou.
Na noite em que Jesus foi traído, ele disse a um de seus
seguidores: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens
conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Isso era ou
blasfêmia arrogante da mais alta categoria ou brincadeira de doido
ou a pura verdade: o mais perto que os seres humanos chegam de
“ver” a Deus, neste mundo caído, é contemplar o Verbo que se fez
carne, o próprio Senhor Jesus. Também na noite em que foi traído,
Jesus insistiu em que, depois de ressuscitar e voltar para o Pai, ele
enviaria o Espírito Santo para ficar no lugar dele mesmo, outro
Advogado (ver Jo 14.15-17; 14.25-27; 15.26; 16.7-15). Esse Espírito,
esse Advogado enviado da parte do Pai, cumpre diversas funções
pessoais: ele ensina, lembra Jesus às pessoas, dá testemunho,
convence pessoas, sendo ele mesmo a própria presença do Pai e do
Filho. Depois que Jesus ressuscitou dos mortos, um de seus
seguidores, um homem chamado Tomé, foi tão impressionado que
disse sobre Jesus: “Senhor meu e Deus meu” (Jo 20.28). O fato de que
Tomé, um judeu do século I, falou com Jesus dessa maneira nos diz
algo bastante notável sobre a compreensão crescente de Tomé a
respeito de como o Deus único é um Deus complexo, o que os cristãos
chamariam posteriormente de Deus Trino. Não menos notável é o fato
de que Jesus aceitou a honra como algo que lhe pertencia por direito
— algo que nenhum judeu piedoso do século I faria se ele não fosse
Deus.
Na verdade, isso nos conduz a duas outras observações.
Primeira, desde o tempo da ressurreição de Jesus, os cristãos têm
adorado a ele como adoram a Deus. De fato, ao mesmo tempo em que
os cristãos se dirigem ao Pai e a Jesus como pessoas distintas, eles
adoram o Pai como Deus, Jesus como Deus e o Espírito como Deus.
Segunda, essa visão complexa de Deus como a Trindade nos ajuda a
compreender o que vimos antes nesse livro: isto é a razão por que,
mesmo na eternidade passada, antes que houvesse universo, o Deus
da Bíblia, o Deus presente, pode ser visto como um Deus que ama.
Pois a natureza do amor é que tem de haver um “outro” que possa ser
amado! De algum modo, no próprio ser desse Deus único, há a
complexidade que preserva amor: o Pai ama o Filho (ver Jo 3.35;
5.20), e o Filho ama o Pai (ver Jo 14.31). Na verdade, o amor entre as
pessoas da Divindade (como Deus, a Trindade, é frequentemente
chamada) se torna o modelo controlador que determina como os
cristãos devem amar uns aos outros (ver Jo 17.24-26).
No entanto, estamos indo além do que podemos. Precisamos
considerar em detalhes o resto do prólogo de João.
 
O QUE JO O DIZ SOBRE O VERBO (JO 1.2-13)

 
Os versículos iniciais de João estão repletos de reflexões
intercaladas sobre o Verbo, mas podemos facilmente isolar algumas
das mais importantes.
Primeira, a Palavra nos cria. Ele é o agente de Deus na criação.
“Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do
que foi feito se fez” (Jo 1.3). Isso significa que, se nós, seres
humanos, somos criaturas dependentes de Deus, não somos menos
dependentes do Verbo.
Segunda, o Verbo nos dá luz e vida. “A vida estava nele e a vida
era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não
prevaleceram contra ela” (Jo 1.4-5).
Alguns livros você lê apenas uma vez. Você tem um voo,
digamos, para Los Angeles. Então você obtém uma história de
detetive em uma livraria do aeroporto. E até chegar em Los Angeles
você descobriu quem cometeu o crime. Você decide que aquele não é
um livro que deve ser mantido em sua biblioteca, por isso o deixa no
bolso do assento à sua frente. Os faxineiros o jogam fora, e você
nunca mais o lerá.
Outros livros, é claro, você quer ler mais do que uma vez. São
livros nos quais você pode até meditar, talvez pela qualidade da prosa
ou do brilhantismo das descrições e caracterizações. Você pode ler
esse tipo de livro uma vez por causa do enredo e lê-lo outra vez pelo
prazer de todos os outros detalhes. Todo bom autor de narrativa
escreve de um modo que aspectos adicionais são descobertos quando
o livro é relido.
A pergunta é esta: João escreveu seu evangelho como uma obra
descartável para ser lida apenas uma vez? Ou esse evangelho é um
tipo de livro que ele desejava fosse lido repetidas vezes, com
discernimentos adicionais vindos em cada vez? Penso que podemos
mostrar que João escreveu o evangelho esperando que seus leitores
achassem novas coisas à medida que continuassem relendo sua obra.
A primeira peça de evidência está nos versículos 4 e 5 do primeiro
capítulo. Se você lê estes versículos sem ter lido o resto do evangelho
(ou seja, tudo que você leu até esta altura foi os versículos 1 a 3),
como você entenderá os versículos 4 e 5? O versículo 3 diz: “Todas as
coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi
feito se fez”. Isso fala certamente sobre a criação. O versículo 4 diz:
“A vida estava nele e a vida era a luz dos homens”; ou seja, ele tinha
vida em si mesmo e deu vida a todos os seres humanos. Essa era a
luz deles. Antes de Jesus, havia trevas, e ele introduziu a luz. Havia
as trevas do nada antes de ele criar tudo; e, depois da criação, havia
a luz e a vida. Em outras palavras, você pode entender os versículos
4 e 5 totalmente com relação ao versículo 3; e penso que, se você os
estivesse lendo pela primeira vez, essa seria a maneira como você os
entenderia.
Mas, depois, você lê os versículos seguintes:
 
Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.
Este veio como testemunha para que testificasse a respeito
da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele.
Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz.
João 1.6-8
 
Você começa a perceber como a “luz” tem agora nuança não de
luz física em contraste com o nada que existia antes da criação.
Agora, a luz tem uma nuança de revelação ou verdade — luz que é
revelada. À medida que você prossegue na leitura do evangelho, o
mesmo tipo de associação moral ou reveladora com a luz se tona
cada vez mais clara. Assim, lemos: “Os homens amaram mais as
trevas do que a luz; porque as suas obras eram más” (3.19). Os
homens escolhem as trevas porque têm medo de se achegar à luz:
“Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega
para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras. Quem pratica
a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam
manifestas, porque feitas em Deus” (3.20-21). Nesse contexto, a luz
não é a luz da criação; é a luz da revelação, da verdade. Quando você
chega a João 8, Jesus diz: “Eu sou a luz do mundo” (8.12).
Agora, volte e releia João 1.4-5: “A vida estava nele e a vida era a
luz dos homens. A luz resplandece nas trevas [ou seja, de corrupção e
rebelião], e as trevas não prevaleceram contra ela”. Agora você tem
outro conjunto de nuanças. Aqui, a luz é revelação e verdade da parte
de Deus, a verdade que está vencendo as trevas da corrupção e da
ignorância moral.
Então, os versículos 4 e 5 deveriam ser lidos à luz do versículo 3
ou à luz dos versículos 6 a 8? Qual é verdadeiro: o Verbo como agente
da vida e da luz física no tempo da criação ou o Verbo como aquele
que traz revelação e transformação e vence as trevas morais?
Evidentemente, a resposta é que ambas são verdadeiras.
Devemos ler o texto de ambas as maneiras. Essa foi a maneira como
o evangelho de João foi escrito: quanto mais o lemos, tanto mais
vemos conexões que estão no texto. A mesma luz que trouxe vida à
criação traz vida eterna a este mundo de corrupção e morte.
Terceira, a Palavra nos confronta e nos divide:
 
A verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo
homem.
O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu.
Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.
João 1.9-11
 
A maioria das pessoas não olhou para Jesus e disse: “Oh! Você
está finalmente aqui: a luz do mundo”. Muitos ficaram confusos.
Alguns ficaram cheios de repulsa, porque, ainda que vissem a luz,
ficaram envergonhados em sua presença e preferiram as trevas à luz.
Portanto, a vinda de Jesus não garantiu um avivamento universal em
que todos se converteram a ele.
Alguns o receberam, creram em seu nome:
 
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de
serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu
nome;
os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
João 1.12-13
 
Essas pessoas não são nascidas apenas do homem. São também
nascidas de Deus. (Esse é um tema ao qual retornaremos no próximo
capítulo.) Elas são diferentes porque Deus operou nelas algo novo. Há
uma nova criação. Há um novo nascimento. Ele está começando algo
novo nelas, fazendo que verdadeiramente creiam em quem Jesus é
realmente.
 
O VERBO SE TORNA CARNE (JO 1.14-18)
 
“E o Verbo se fez carne” (Jo 1.14). Isso significa que o Verbo se
tornou ser humano. Isso é o que os cristãos querem dizer quando
falam sobre a encarnação, literalmente, “o fazer-se carne”.
O Verbo se tornou algo que ele não era antes. Ele já existia; foi o
agente de Deus na criação, mas agora se torna um ser humano. Este
ser humano, como mostram os demais capítulos do evangelho, é
Jesus. O evangelho de João não nos diz meramente que o Verbo se
vestiu de humanidade ou fingiu ser um homem ou coexistiu com um
homem chamado Jesus. Também não pressupõe que tudo de Deus se
exauriu em Jesus (pois, assim, Jesus não teria um Pai celestial a
quem orar!). A linguagem é estranhamente precisa: o Verbo se tornou
carne; o Verbo, sem deixar de ser o Verbo (e, portanto, o companheiro
idêntico de Deus e o próprio “eu” de Deus, como vimos), se tornou um
ser humano. Não é surpreendente que os cristãos, através dos
séculos, se refiram a Jesus como o Deus-homem.
No entanto, o interesse de João na encarnação não é apenas
abstrato ou teórico. Imediatamente, ele acrescenta algumas linhas
para nos recordar uma passagem do Antigo Testamento que já lemos.
Recordar essa passagem do Antigo Testamento nos capacita a
entender melhor a importância da verdade de que o Verbo se tornou
carne. A passagem do Antigo Testamento é Êxodo 32 a 34, que
consideramos no capítulo 4. Esses capítulos de Êxodo descrevem o
que aconteceu quando Moisés desceu do monte e as pessoas estavam
em orgia e idolatria. Moisés orou a Deus e quis ver mais da glória de
Deus:
 
Então, ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória.
Respondeu-lhe: Farei passar toda a minha bondade diante
de ti e te proclamarei o nome do SENHOR; terei misericórdia
de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem
eu me compadecer.
E acrescentou: Não me poderás ver a face, porquanto
homem nenhum verá a minha face e viverá.
Êxodo 33.18-20
 
Os versículos que temos diante de nós, em João 1.14-18, reúnem
cinco grandes temas desses capítulos de Êxodo. Você sabe o que
acontece quando citamos uma parte de um livro ou filme que todos
conhecem: toda a cena retorna à nossa mente. Por alguma razão,
meu filho tem uma memória admirável no que concerne a filmes; se
você apenas lhe mencionar uma pequena parte, ele lhe descreverá
alegremente toda a cena. Para pessoas familiarizadas com as
Escrituras, como o eram os primeiros leitores do evangelho de João,
algo semelhante acontece quando você cita uma linha das Escrituras.
Portanto, se você conhece a Bíblia dessa maneira, quando você lê
João 1.14-18, sua mente deve retornar a Êxodo 32-34, por causa das
cinco alusões especificas que a passagem de João faz à passagem de
Êxodo. E isso é o que esclarece a importância da verdade de que o
Verbo se tornou carne. Permita-me mostrar-lhe.
 
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e
de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito
do Pai.
João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem
eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a
primazia, porquanto já existia antes de mim. Porque todos
nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.
Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a
verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no
seio do Pai, é quem o revelou.
 
1. TABERNÁCULO E TEMPLO
 
“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (1.14). A palavra
destacada em itálico significa literalmente “tabernaculou entre nós”.
Não podemos deixar de lembrar que o tabernáculo foi o que Deus
estabeleceu no tempo do Sinai, um tabernáculo que tinha aquele
lugar especial chamado Santo dos Santos, onde somente o sumo
sacerdote podia entrar, em favor de si mesmo e de todo o povo, uma
vez por ano, levando o sangue dos sacrifícios. Era o lugar em que os
pecadores se encontravam com Deus, o grande lugar de encontro que
unia um Deus santo e seres humanos rebeldes. O tabernáculo era isso
até que o templo o substituiu. Agora, João nos diz que, quando o
Verbo se tornou carne, “ele tabernaculou entre nós”. Outra vez, no
capítulo seguinte de João, Jesus insistiu em que ele mesmo era o
templo final de Deus (ver Jo 2.19-21), o lugar final de encontro entre
os seres humanos e Deus. Era como se ele estivesse dizendo: “Se
rebeldes têm de ser reconciliados com Deus, eles têm de chegar a Deus
por meio do templo que Deus ordenou — eu sou o templo”.
 
2. GLÓRIA
 
“Vimos a sua glória”, escreve João, “glória como do unigênito do
Pai” (1.14). Temos visto a glória de Cristo? O que foi que Moisés
pediu ao Senhor?
 
Então, ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória.
Respondeu-lhe: Farei passar toda a minha bondade diante
de ti.
Êxodo 33.18-19
 
João aborda este tema de glória em todo o seu livro. Em João 2,
por exemplo, quando Jesus realizou o seu primeiro milagre —
transformou água em vinho, em um casamento em Caná da Galileia
— o evangelho nos diz, no final deste relato, que os discípulos viram
a glória de Jesus: “Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em
Caná da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos
creram nele” (2.11). As outras pessoas viram o milagre que Jesus
realizou; os discípulos viram a glória de Jesus. Em outras palavras,
eles viram que o milagre era um sinal que significava algo sobre
quem Jesus era; eles viram a glória de Jesus. Este tipo de uso da
palavra “glória” é repetido no evangelho de João. Então, chegamos
em João 12, onde lemos que Jesus deve manifestar a glória do Pai por
ir à cruz (ver 12.23-33). Onde a glória de Deus é mais manifestada?
Na bondade de Deus — quando Jesus é “glorificado”, levantado entre
os homens e pregado na cruz, mostrando a glória de Deus na
vergonha, degradação, brutalidade e sacrifício da sua crucificação e,
por este meio, retornando à glória que ele compartilhava com o Pai
antes que houvesse mundo (ver 17.5).
A manifestação mais espetacular da glória de Deus está num
instrumento de tortura sangrento, porque é nele que a bondade de
Deus é mais revelada.
É bom cantarmos o coro “Aleluia”, do Messias de Handel, mas
também devemos cantar “Rude cruz se erigiu como emblema de
vergonha e de dor”, porque ali Deus manifestou a sua glória em
Cristo Jesus, que se tornou nosso tabernáculo, nosso templo, o lugar
de encontro entre Deus e os seres humanos.
 
3. GRA A E VERDADE (AMOR E FIDELIDADE)

 
Ainda estamos lendo João 1.14: “O Verbo se fez carne e habitou
entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória
como do unigênito do Pai” (ênfase acrescentada).
Quando Deus proclama quem ele é, diante de Moisés, abrigado
na caverna, conforme Êxodo 34, ele se descreve de maneiras
diferentes. Incluídas entre estas, estão as palavras “grande [ou cheio]
em misericórdia [amor] e fidelidade” (34.6). No hebraico, os dois
substantivos traduzidos por “misericórdia e fidelidade” são
apropriadamente traduzidos por “graça e verdade”, que é a maneira
como João os traduz. Deus se manifesta não somente como o Deus
que pune pecadores, mas também como aquele que é “cheio de graça
e de verdade” e perdoa. João, pensando sobre quem é Jesus, este Jesus
que manifesta a bondade de Deus, sua glória na cruz, diz que Jesus é
“cheio de graça e verdade”, a graça e a verdade que o levaram à cruz
e pagaram por nossos pecados.
 
4. GRA A E LEI
 
João acrescenta: “Todos nós temos recebido da sua plenitude e
graça sobre graça” (1.16). Isso é exatamente o que o texto diz. Mas o
que isso significa? Significa “graça em cima de graça” ou “uma
graça após outra”, como presentes empilhados embaixo de uma
árvore de Natal, uma bênção após outra. Significa que todos nós
recebemos uma graça em lugar de outra graça já outorgada. O que
isso significa? O versículo seguinte nos diz: “Porque a lei foi dada por
intermédio de Moisés [o que nos leva de volta a Êxodo 32-34]; a
graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (1.17). Em outras
palavras, o dom da lei foi uma coisa graciosa, um dom maravilhoso e
bom da parte de Deus. Mas a graça e a verdade, por excelência,
vieram por meio de Jesus Cristo, não na manifestação de glória dada
a Moisés, numa caverna, e sim na manifestação de Jesus e no
sacrifício sangrento na cruz. A aliança da lei foi um dom gracioso de
Deus, mas agora Jesus introduz uma nova aliança, a graça e verdade
final. Isto é uma graça que substitui aquela antiga graça. Está unida
a uma nova aliança.
 
5. VENDO A DEUS
 
“Ninguém jamais viu a Deus”, João nos lembra (1.18). Não foi
isso que Deus falou em Êxodo 33? “Não me poderás ver a face,
porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá” (Êx 33.20).
João acrescenta uma exceção: “O Deus unigênito, que está no seio do
Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). Você percebe o que esse texto está
dizendo? Você quer saber como é Deus? Olhe para Jesus. “Ninguém
jamais viu a Deus”, e não poderemos ver a Deus em todo o seu
esplendor transcendente até o último dia. Mas o Verbo se tornou
carne; Deus se tornou um ser humano com o nome de Jesus. E
podemos vê-lo. Essa é a razão por que Jesus disse a um de seus
discípulos (como vimos antes neste capítulo): “Filipe, há tanto tempo
estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o
Pai” (Jo 14.9).
Você quer saber como é o caráter de Deus? Estude a Jesus. Você
quer saber como é a santidade de Deus? Estude a Jesus. Você quer
saber como é a ira de Deus? Estude a Jesus. Você quer saber como é o
perdão de Deus? Estude a Jesus. Você quer saber como é a glória de
Deus? Estude a Jesus em todo o seu caminho para aquela cruz
ignominiosa. Estude a Jesus.
 
HISTÓRIA CONCLUSIVA
 
Concluir com uma história que tenho contado inúmeras vezes
pode ajudar-nos a reunir estas coisas. Minha primeira graduação foi
em química e matemática na Universidade McGill, em Montreal.
Enquanto estudava ali, tornei-me amigo de um paquistanês
agradável e cordial. Ele era duas vezes mais velho do que eu. Viera à
McGill para obter um Ph.D. em estudos islâmicos. (McGill tinha, e
ainda tem, um excelente instituto de estudos islâmicos.) Ele deixara
sua esposa e dois filhos no Paquistão e, por isso, estava sozinho.
Com o passar do tempo, nos tornamos amigos. Depois de algum
tempo, comecei a perceber que ele estava tentando converter-me ao
islamismo. Pensei que deveria retornar o favor, mas logo me vi sem
profundeza no debate. Ele era um teólogo muçulmano bem treinado, e
eu estudava química.
Lembro que, certa noite, caminhava com ele, ao pé do Monte
Royal, pela University Avenue até a Pine Avenue, para tomarmos um
ônibus. Ele concordara em ir comigo à igreja. Queria ver como era a
igreja. Enquanto caminhávamos, ele me perguntou: “Don, você
estuda matemática, não é?”
 
“Sim.”
“Se você tem um copo e acrescenta outro copo, quantos copos
você tem?”
Bem, eu estava fazendo alguns cursos de matemática e disse:
“Dois”.
“Se você tem dois copos e acrescenta outro copo, quantos copos
você tem?”
Eu disse: “Três”.
“Se você tem três copos e tira um copo, quantos copos você
tem?”
Eu disse: “Dois”. Até esta altura, eu estava indo bem.
Então, ele disse: “Você crê que o Pai é Deus?”
“Sim.” Oh! pude ver onde ele queria chegar.
“Você crê que Jesus é Deus?”
“Sim.”
“Você crê que o Espírito Santo é Deus?”
“Sim.”
“Então, se você tem um Deus, mais um Deus, mais um Deus,
quantos deuses você tem?”
Eu estava estudando química, não teologia. Como eu deveria
responder isso? O melhor que pude dizer foi: “Ouça, se você está
usando um modelo matemático, então, permita-me responder com um
ramo da matemática. Falemos sobre infinitos. Infinito mais infinito
mais infinito é igual ao quê? A infinito. Eu sirvo um Deus infinito”.
Ele sorriu cordialmente. Esse era o nível de nossa discussão e
amizade. Por volta de novembro, ocorreu-me repentinamente que ele
nunca lera a Bíblia cristã. Não possuía uma Bíblia e nunca tivera
uma em suas mãos. Por isso, comprei uma Bíblia e lhe dei. Ele
perguntou: “Onde começo?”
Ele não sabia como a Bíblia se harmonizava. Não sabia sobre o
Antigo e o Novo Testamento. Não conhecia o evangelho. E eu não
sabia o que lhe sugerir. Então, eu disse: “Por que você não começa
pelo evangelho de João?” Mostrei-lhe onde estava, depois de Mateus,
Marcos e Lucas.
Ele viera da Ásia e não lia livros da maneira como eu leria.
(Quantas páginas posso ler hoje à noite? Quanto mais, melhor!) Não,
ele tinha um estilo de leitura que ia devagar, com muitas pausas
para reflexão, releitura e questionamento. E a passagem em que ele
começaria a pensar era o prólogo de João.
Naquele Natal, eu o trouxe à casa de meus pais, que, naquela
época, viviam na parte francesa de nossa capital, Ottawa, em um
lugar chamado Hull. Aconteceu que meu pai teve problemas no
coração; mamãe e eu gastamos a maior parte de nosso tempo no
hospital. Meu querido amigo Muhammad foi deixado sozinho. Perto
do final do recesso de Natal, papai se recuperou muito bem. Por isso,
eu lhe pedi que me emprestasse o carro e levei Muhammad para ver
alguns lugares na capital. Passamos em vários lugares e terminamos
nos edifícios do Parlamento. Naqueles dias, havia menos segurança
do que há agora. Juntamo-nos a um grupo de excursionistas —
trinta pessoas sendo conduzidas pelos edifícios — e seguimos para a
rotunda, nos fundos, onde se localiza a biblioteca, para o Senado, a
Câmara dos Deputados e para a galeria de retratos dos primeiros
ministros do Canadá, desde Sir John A. McDonald em diante.
Por fim, retornamos ao salão central, que é rodeado por alguns
pilares largos. No topo de cada pilar, existe um pequeno afresco no
qual há uma figura. E o guia explicou, enquanto apontava de uma
figura para outra: “Ali está Aristóteles, pois o governo tem de ser
baseado em conhecimento. Ali está Sócrates, pois o governo tem de
ser baseado em sabedoria. Ali está Moisés, pois o governo tem de ser
baseado em lei”. Andou por todo o salão. Depois, ele falou: “Alguma
pergunta?”
Meu amigo falou prontamente: “Onde está Jesus Cristo?”
O guia fez o que os guias fazem nessas circunstâncias. Apenas
dizem: “Não entendi, senhor”.
Portanto, Muhammad fez o que estrangeiros fazem nessas
circunstâncias. Admitem que foram mal entendidos por causa de seu
sotaque carregado e fez sua pergunta mais clara e audivelmente:
“Onde está Jesus Cristo?”
Ora, havia três grupos no salão central do Parlamento
canadense ouvindo um paquistanês mulçumano perguntar onde
estava Jesus. Procurei uma fenda no chão para cair nela. Eu não
tinha a menor ideia de onde vinha isso.
Por fim, o guia exclamou: “Por que Jesus deveria estar aqui?”
Muhammad parecia chocado. Tomando uma parte de versículos
bíblicos que estivera lendo, ele disse: “Li na Bíblia cristã que a lei foi
dada por Moisés e que a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.
Onde está Jesus Cristo?”
O guia respondeu: “Não sei nada sobre isso”.
Sussurrei comigo mesmo: “Pregue, irmão”.
Você percebe como Muhammad viu essa situação? Ele era um
mulçumano. Entendeu os fatos sobre um Deus que tinha leis e
padrões, opera terrores, julga as pessoas, um Deus que é soberano,
santo e poderoso. Muhammad entendeu tudo isso. Mas ele já havia
sido cativado por Jesus, cheio de graça e de verdade, que manifesta
sua glória profundamente na cruz e se torna o lugar de encontro
entre Deus e pecadores, porque ele morreu a morte dos pecadores.

(1) Um documento do Novo Testamento subentende isso: Hebreus 8.13.


8
O Deus
que Dá o Novo Nascimento

A A narrativa bíblica, como já vimos, estabelece desde os seus


capítulos iniciais, em Gênesis, uma grande tensão — que é cósmica
em seu escopo, mas desce ao nível do indivíduo. A tensão se alicerça
no fato de que Deus criou tudo muito bom. Deus mesmo, o Criador, é
diferente da criação, mas tudo que ele fez era inicialmente centrado
nele e bom. A natureza do mal é revolução contra este Deus. Em
Gênesis 3, vimos que isso é retratado como um desejo obsessivo de
desafiar a Deus — de nos tornarmos Deus, usurpar para nós mesmos
as prerrogativas que pertencem somente ao Criador. Dessa idolatria
procedem todos os males sociais e todos os males horizontais que
conhecemos.
Onde todos querem ser o centro do universo, só pode haver
conflitos. Sei muito bem que ninguém sai por aí cantando: “Eu sou o
centro do universo”. Contudo, se eu segurasse sua foto de formatura
do ensino médio ou de graduação na faculdade e dissesse: “Aqui está
a foto de sua formatura”, qual rosto você procuraria primeiro? Ou
suponha que você tenha um debate árduo e prolongado (daqueles que
raramente nos ocorrem). Você vai embora fervendo. Lembra todas as
coisas que poderia e deveria ter dito se apenas tivesse pensado nelas
suficientemente rápido. Então, você organiza todas essas coisas
enquanto repassa todo o debate em sua mente. Quem vence?
Já fui derrotado em muitos debates, mas nunca perdi uma
reprise.
Esses tipos de reflexão são pequenos indicadores de como
queremos prevalecer, controlar, ser o centro. Mesmo Deus — se ele
existe —, deve servir-me ou, do contrário, acharei outro deus. Em
outras palavras, isso é o começo da idolatria.
Se a nossa vida vem de Deus e o vemos agora como nosso
inimigo, o que temos, senão morte? Entretanto, ao invés de destruir
instantaneamente os rebeldes, o Deus da Bíblia, em sua misericórdia
soberana, agiu de maneiras variadas para restaurar grande número
de rebeldes. Ele chamou um homem, Abraão, e sua família. Embora
eles fossem completamente falhos, Deus começou o processo de criar
uma nova humanidade por meio deles, estabelecendo uma aliança ou
acordo com eles, uma aliança que antecipava o que Deus faria para
salvar homens e mulheres de toda língua, tribo e nação ao redor do
mundo. No devido tempo, ele mostrou o que é uma boa lei e como
precisa haver sacrifício pelos pecados. Se o resultado inevitável de
nossa revolta contra Deus é morte, a justiça de Deus não exigiria
algum tipo de morte, mesmo quando Deus perdoasse o pecador? Por
isso, testemunhamos o início do sistema de sacrifícios, estabelecido
sob a antiga aliança. Deus prometeu, no momento apropriado, um
Redentor, um Messias, alguém da linhagem real de Davi. À medida
que as promessas se desenvolvem no Antigo Testamento, esse rei
davídico é apresentado como uma pessoa que possui mais do que
simplesmente os genes de Davi. A Bíblia nos dá vislumbres que
recitamos com prazer por ocasião do Natal:
 
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o
governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será:
Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade,
Príncipe da Paz;
para que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim
sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o estabelecer
e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para
sempre.
Isaías 9.6-7
Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus,
o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai.
Lucas 1.32
 
Um conjunto de textos bíblicos promete um rei que, apesar de ser
da linhagem de Davi, é identificado com o próprio Deus. Por isso,
vimos algumas das promessas do Antigo Testamento que
contemplavam o tempo em que o Verbo, a autoexpressão de Deus, se
tornaria um ser humano e viveria por algum tempo entre nós. Ele se
tornou carne. Ao se encarnar, ele se tornou aquele que é o perfeito
lócus da graça e da verdade. Ninguém jamais viu a Deus, em tempo
algum, mas vimos a Jesus. Ele é Deus, que se manifestou a nós. Esta
Palavra que se tornou carne tem um nome — e seu nome é Jesus,
Jeová salva, pois ele veio para salvar seu povo dos pecados deles.
E qual a implicação disso? Como isso nos ajuda? Ele veio. O
Deus presente revelou-se a si mesmo. Então, como exatamente a
vinda dele nos ajuda? Admitida a abrangência da narrativa bíblica
até aqui, isto é o que precisamos:
 
1. Precisamos ser reconciliados com Deus.
2. Precisamos ser transformados moralmente, pois, do contrário,
continuaremos nos rebelando.
3. Precisamos que todos os efeitos do pecados sejam, de algum
modo, revertidos e vencidos. Isso inclui não somente nossos
relacionamentos mútuos, mas também a própria morte. Doutro modo,
a morte continua vencendo. Esse ainda é um universo decadente.
Ainda existe traição, desapontamento, tristeza, sofrimento e morte.
 
Jesus confronta diretamente todas essas coisas. Em outras
palavras, a Bíblia sustenta a prospectiva de uma transformação
total. O cristianismo bíblico é muito mais do que simplesmente fazer
uma decisão por Cristo, para que tenhamos vidas felizes. Temos de
ser verdadeiramente reconciliados com o Deus santo e presente. Nós
temos de ser transformados, em certa medida agora mesmo, mas
também para o resto de nossa vida, e, por fim, com o tipo de
transformação completa que não deixará qualquer sinal de
egocentrismo e morte e nos introduzirá em puro deleite na glória e na
centralidade de Deus.
Isso é o que consideraremos no resto deste livro. Chegamos ao
que os cristãos chamam de “encarnação”, o Verbo vestindo-se de
carne, Deus se tornando um ser humano, um ser humano judeu do
século I, chamado Jesus. Então, de acordo com a Bíblia, como ele
satisfaz as necessidades que alistamos?
Pelo menos em parte, ele faz isso por dar-nos o novo nascimento.
 
APRESENTANDO O NOVO NASCIMENTO
 
Há várias passagens no Novo Testamento que falam sobre o
novo nascimento, mas focalizarei João 3. O evangelho de João é o
quarto livro do Novo Testamento. Devemos começar lendo os
primeiros quinze versículos de seu terceiro capítulo.
 
Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos,
um dos principais dos judeus.
Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos
que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode
fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.
A isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo
que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de
Deus.
Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer,
sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e
nascer segunda vez?
Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem
não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino
de Deus.
O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do
Espírito é espírito.
Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo.
O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes
donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é
nascido do Espírito.
Então, lhe perguntou Nicodemos: Como pode suceder isto?
Acudiu Jesus:
Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas?
Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que
sabemos e testificamos o que temos visto; contudo, não
aceitais o nosso testemunho.
Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como
crereis, se vos falar das celestiais?
Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu,
a saber, o Filho do Homem [que está no céu].
E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto,
assim importa que o Filho do Homem seja levantado,
para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.
João 3.1-15
 
Essa linguagem do novo nascimento: o que ela significa? Tenho
idade suficiente para lembrar quando as pessoas dirigiam
automóveis Datsun. Eram produzidos pela Nissan Motor Company,
mas o modelo-base era o Datsun. Então, ao passar dos anos, eles
decidiram mudar o nome para Nissan, e por toda a América havia
slogans sobre o “Datsun nascido de novo”. Então, o que significa
nascer de novo? Uma mudança de nome?
Ou, às vezes, um democrata se torna republicano, ou o contrário;
um liberal se torna um conservador, ou vice-versa. Alguém nos meios
de comunicação começará a criticar este republicano ou o que quer
que seja “nascido de novo”.
Não faz muito tempo que um pesquisador de opinião pública
chamado Barna fez uma pesquisa sobre pessoas que se
autodeclaravam nascidas de novo. Evidentemente, para realizar tal
pesquisa, você precisa definir o que significa nascer de novo. Ele
definiu uma pessoa nascida de novo como alguém que tinha um
compromisso pessoal com Jesus Cristo, um compromisso que é
importante para tal pessoa. Para ser incluída no grupo pesquisado, a
pessoa tinha de afirmar coisas assim: “Tenho um compromisso
pessoal com Jesus. Esse compromisso é importante para mim e creio
que irei ao céu quando eu morrer. Confessei meus pecados e aceitei
Jesus Cristo como meu Salvador”. Depois de realizar sua pesquisa,
Barna descobriu, infelizmente, que a moralidade e maneira de viver
daqueles que se autoidentificaram como nascidos de novo não difere
substancialmente do público geral. Ele descobriu que 26% deles não
pensam que o sexo antes do casamento é errado. Eles se divorciam
tanto quanto os não cristãos. Esse tipo de pesquisa resultou na
publicação de livros como The Scandal of the Evangelical Conscience:
Why Are Christians Living Just Like the Rest of The Word? (O
Escândalo da Consciência Evangélica: Por que os Cristãos Vivem
como o Resto do Mundo?),(1) escrito por Ron Sider.
Então, o que é o “novo nascimento” ou a “regeneração”?
Significa que você mudou seu nome? Sua filiação partidária? Passou
por algum tipo de experiência religiosa?
Nem por um momento estou sugerindo que a pesquisa desses
peritos em opinião pública está errada. No nível puramente
fenomenológico, ela é, sem dúvida, exata e preocupante. Contudo,
para chegar às suas conclusões, a pesquisa abusou horrivelmente da
linguagem de “novo nascimento” ou “regeneração” usada pelos
escritores do Novo Testamento. Os pesquisadores pensaram mais ou
menos assim: acharemos aqueles que fizeram certa profissão de fé
evangélica e os reconheceremos como nascidos de novo. Mapearemos
a moralidade e a falta de moral deles e, se descobrirmos que a
moralidade deles não difere da moralidade das pessoas da cultura
geral, seremos forçados a concluir que o novo nascimento não muda
radicalmente as pessoas.
Em contraste, o pensamento dos escritores do Novo Testamento é
algo assim: o novo nascimento é uma regeneração poderosa,
realizada por Deus mesmo, na vida humana; é tão poderosa que os
nascidos de novo são necessariamente transformados. A
consequência é que os cristãos professos cuja vida é indistinguível da
vida dos incrédulos, não têm fundamento bíblico para pensar que
nasceram de novo. Os pesquisadores guiam a sua lógica na direção
errada.
Na verdade, falar sobre o novo nascimento como se ele fosse
primariamente uma metáfora de um compromisso religioso específico
é, de certo modo, bizarro. A criança que está preste a nascer não faz
um compromisso de sair do ventre de sua mãe. Pelo que sei, é a mãe
que faz todo o trabalho e dá à luz o bebezinho. Os pais são a fonte de
um novo nascimento. A linguagem de novo nascimento é uma
escolha estranha se, de fato, é uma maneira de referir-se ao
compromisso daquele que nasceu de novo.
Pelo que sabemos, a palavra “nascer de novo” não era usada
(como mostram as fontes) no mundo judaico dos dias de Jesus até
que ele criou a expressão. Por isso, é importante tentarmos descobrir
o que ele queria dizer ao usá-la, se queremos adotar uma teologia do
novo nascimento. Procederemos em três pontos desiguais.
 
O QUE JESUS REALMENTE DISSE SOBRE SER NASCIDO DE
NOVO
(JOÃO 3.1-10)
 
O texto bíblico nos apresenta um homem chamado Nicodemos,
que é identificado como um fariseu. Isso significa que ele fazia parte
de uma ala conservadora do judaísmo do século I. Essa ala do
judaísmo era grandemente respeitada na comunidade, no que diz
respeito à disciplina, às boas obras e a certo tipo de ortodoxia,
embora, às vezes, fosse dado a regras excessivas. No topo de sua
filiação religiosa, ele era membro do conselho de governo dos judeus;
quase certamente isso se refere ao Sinédrio, o conselho supremo
formado de 70 ou 72 homens que governavam o país em sujeição ao
domínio romano. Isso significa que Nicodemos pertencia tanto a um
partido religioso ou político específico como à elite política. Essa
combinação de elite política e elite religiosa o colocava na classe mais
elevada em seu país. Jesus o chamou de “mestre em Israel” (Jo 3.10).
Esta expressão sugere que Nicodemos era reputado como “o mestre de
Israel”, o distinto professor de teologia. Portanto, ele tinha conexões
políticas e religiosas; era também um erudito e mestre. Depois, nesse
mesmo evangelho, parece que Nicodemos está conectado com notável
riqueza.
Ele foi ao encontro de Jesus à “noite” (Jo 3.2). Por quê? Tem
havido muitas sugestões. Talvez ele não quisesse se expor durante o
dia. Nicodemos pode ter sentido certo embaraço. Afinal de contas,
Jesus era um tipo de mestre itinerante da Galileia, uma região
relativamente menosprezada, e tinha um sotaque engraçado. Como
Jesus poderia se equiparar com Nicodemos, o distinto mestre de
teologia? Por que Nicodemos procuraria um pregador itinerante para
obter algum conselho teológico? Eu confesso que não creio nessa
teoria. Nicodemos aparece várias vezes nesse evangelho, e, cada vez
que é mencionado, ele não se preocupou com o que as pessoas
pensavam. Ele possuía um espírito independente. Então, por que
Nicodemos foi até Jesus à noite?
Para entendermos o que João queria dizer ao registrar que o
encontro se deu à noite, temos de obervar como o próprio João usou o
contraste de luz e trevas, noite e dia. Sem dúvida, o encontro
aconteceu à noite. João registrou o tempo apenas para acrescentar
um detalhe do fato? Certamente, ele fez isso porque gostava de fazer
jogo com as polaridades luz/trevas e dia/noite. Vemos um exemplo
disso quando, na ocasião da traição de Jesus, ele se despediu de
Judas, o homem que o traiu. Ao descrever a saída de Judas, o
evangelista João comentou: “E era noite” (Jo 13.30). Era como se
João estivesse dizendo: “Ele saiu para as trevas horríveis e para a
perdição sem luz e sem qualquer esperança”.
Se essa era a conotação de João nessa passagem, o texto está
dizendo que, quando Nicodemos veio a Jesus, durante a noite, ele veio
com certo tipo de confusão. Ele nem mesmo sabia como se dirigir
apropriadamente a Jesus. Nicodemos foi desconcertado por ele. Isso
se torna evidente quando lemos o texto. Por um lado, ele se
aproximou de Jesus com certo tipo de respeito. É notável que este
“mestre” de Israel se dirigiu àquele pregador itinerante com o
respeitável “Rabi” (3.2). No entanto, essa maneira de falar não pode
ocultar um vestígio de arrogância. Ele disse: “Rabi, sabemos que és
Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes
sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (3.2).
Podemos começar perguntando por que Nicodemos usou “nós”
(“sabemos”). Não há qualquer indicação de que ele trouxera consigo
os seus alunos: “Minha classe e eu, juntos, chegamos a essa
conclusão”. Não há qualquer indicação de que alguém mais estivesse
lá. Dificilmente isso pode ser um “nós” de realeza. Um “nós”
editorial, talvez? Depois observaremos que Jesus mesmo atraiu a
atenção para esse “nós”, levemente pretensioso. É quase impossível
evitar a conclusão de que, em todo o respeito formal que Nicodemos
mostrou para com Jesus, há um pequeno elemento de
autoimportância: “Rabi, nós o temos examinado e observamos que
você não é um mestre religioso ordinário. Há inúmeros charlatães por
aí, os quais declaram que fazem milagres, mas são fraudulentos,
passageiros ou irracionais. Mas observamos o tipo de coisa que você
faz e não podemos negar que isso é miraculoso. A única explicação é
que isso é de Deus. Por isso, chegamos à conclusão de que você é um
mestre vindo da parte de Deus”. Este parece ser o significado das
palavras de Nicodemos.
Em um sentido, o comentário é louvável. Pelo menos Nicodemos
via com honestidade o fenômeno. Não descartou Jesus como um
demente ou mais um enganador religioso. O antigo mundo religioso
tinha os seus charlatães, e nós temos os nossos. As coisas que Jesus
fazia eram superiores, e Nicodemos não descartaria o que era
evidente. No entanto, esse “nós” editorial, esse “nós, teólogos”,
talvez, esse “nós, fariseus”, esse “nós, líderes do Sinédrio”, parece um
tanto pomposo.
Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade te digo que, se
alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3).
De que modo isso é uma resposta ao que Nicodemos havia dito? Siga
a sequência novamente. Nicodemos dissera: “Sabemos que és Mestre
vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que
tu fazes, se Deus não estiver com ele” (3.2); e Jesus respondeu: “Em
verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não
pode ver o reino de Deus” (3.2-3). Qual é a conexão?
Alguns têm sugerido que devemos admitir que algo foi deixado
fora do texto, como se a conversa realmente seguisse deste modo:
Nicodemos dissera: “Sabemos que você é um mestre vindo da parte de
Deus; porque ninguém pode fazer o que você faz, se Deus não estiver
com ele. Então, diga-nos: você é aquele que estabelecerá o reino
vindouro? Você é aquele que inaugurará, finalmente, o reino de
Davi?” Jesus lhe respondeu: “A questão crucial não é se eu iniciarei
ou não o reino, mas se você está qualificado para entrar nele”. No
entanto, isso era uma quantidade impressionante de material para
que João deixasse fora de seu texto e tivéssemos de reinseri-lo para
dar sentido ao fluxo de pensamento da passagem.
Proponho que a conexão da passagem é muito mais simples.
Você pode lembrar que em um dos capítulos anteriores, no capítulo 5,
mencionei que a noção de “reino” pode ser bem variada, dependendo
do contexto. Em termos amplos, o reino de Deus estava relacionado
com seu reino dinâmico, com sua autoridade e poder. Às vezes, o
reino de Deus era uma referência específica à abrangente soberania
de Deus e, às vezes, se referia ao exercício do reino de Deus sobre os
israelitas da antiga aliança. Havia uma expectativa geral de que, por
fim, um grande descendente de Davi viria e introduziria o reino
restaurado e aguardado por muito tempo. E, agora, o que Nicodemos
vê? Ele vê Jesus realizando sinais miraculosos que não podiam ser
explicados como os truques de alguns charlatões. Ele vê isso como o
reino de Deus, o poder de Deus. “Chegamos à conclusão”, Nicodemos
disse, “de que Deus está com você”. Em algum sentido, isso tem de
ser o reino de Deus em operação. Nicodemos estava afirmando que
vira algo, que discernira, talvez, a chegada do reino prometido. E
Jesus lhe disse: “Meu querido Nicodemos, deixe-me falar a verdade.
Você não viu esse reino bendito. Você não pode ver o reino de Deus se
não nascer de novo. Você pode ver os sinais miraculosos, mas você
não entende, realmente, o significado deles. Você não está vendo o
reino de Deus, de modo algum”. Em outras palavras, o que Jesus
estava fazendo, embora cordialmente, era destruir firmemente as
pretensões de Nicodemos. Para ver o reino, o reino que Jesus está
introduzindo, você tem de nascer de novo, diz Jesus. Essa é a conexão
lógica entre os versículos 2 e 3.
Nicodemos respondeu com um pouco de zombaria: “Como pode
um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre
materno e nascer segunda vez?” (3.4). Alguns têm procurado
argumentar que com isso, Nicodemos se mostrou um arguto professor
de teologia. Ele imaginava, de fato, que Jesus estava sugerindo
seriamente que uma pessoa tinha de retornar ao ventre materno e
começar tudo de novo? Esse entendimento implica que Nicodemos
não pôde perceber uma metáfora que foi proferida para impactá-lo.
Ele era tardio e literalista. Mas isso não faz sentido. Nicodemos não
era estúpido. Você não podia ser mestre em Israel se não fosse capaz
de discernir uma estranha metáfora que lhe fosse dirigida. Penso que
Nicodemos estava apenas respondendo a Jesus nos próprios termos
de Jesus. Era como se Nicodemos estivesse dizendo: “É fácil prometer
uma porção de coisas. Você pode prometer que alguns terão um novo
começo; pode prometer satisfação no casamento. Pode dizer: ‘Se você
quer ficar rico, siga-me’. Você pode prometer todo tipo de coisa, mas o
que você está prometendo está além do possível. Você está
prometendo demais. Um novo começo? Um novo nascimento? Como
alguém pode começar tudo de novo? O tempo não volta para trás,
exceto em algumas histórias fictícias. Você não pode retornar ao
ventre de sua mãe e ter um novo começo de vida. Você está
prometendo demais. Como um homem pode nascer de novo?”
Na realidade, este sentimento não tem sido expresso por
inúmeros escritores e poetas no decorrer dos anos? Alfred Lord
Tennyson, poeta inglês do século XIX, escreveu: “Oh! que surja em
mim um homem/Para que o homem que sou não mais exista”. O
poeta John Clare escreveu: “Se a vida tivesse uma segunda edição,
como eu corrigiria as provas”. Mas a vida não tem uma segunda
edição. Como você pode começar tudo outra vez por ser nascido de
novo? Em essência, Jesus parecia estar dizendo: “O que precisamos é
um novo homem e uma nova mulher, e não novas instituições. O que
precisamos são novas vidas, e não novas leis. O que precisamos são
novas criaturas, e não novos credos. O que precisamos são novas
pessoas, e não meras demonstrações de poder. E de sua condição
vantajosa, Nicodemos, você não pode realmente ver muito. Você vê a
demonstração de poder, mas não vê o reino em nenhum sentido
transformador e salvador. Você não entende, de maneira alguma, o
que está acontecendo”.
“Jesus, você está estimulando o impossível. Não há novo começo.
Não há novo nascimento. Você pode ser o Messias, mas agora está
prometendo demais.”
Mas Jesus não desistirá: “Em verdade, em verdade te digo: quem
não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus”
(3.5).
O que Jesus quis dizer com essa expressão mais ampliada:
“Nascer da água e do Espírito”? Através das gerações, pessoas têm
entendido essa expressão “nascer da água e do Espírito” de muitas
maneiras diferentes.
Algumas pessoas acham que a expressão se refere a dois
nascimentos: o nascimento natural e algum tipo de nascimento
espiritual. “Nascer da água” talvez se refira ao rompimento da água
pouco antes do parto. Os dois nascimentos seriam, portanto, o
nascimento natural seguido pelo nascimento espiritual. A pessoa
teria de nascer da água e do Espírito.
Duvido que esse seja o significado da expressão, em parte porque
não tenho sido capaz de achar, em qualquer parte do mundo antigo,
lugar em que as pessoas falassem do nascimento natural como o ser
nascido da água. Além disso, se comparamos atentamente os
versículos 3 e 5, descobriremos um paralelismo crucial que ajudará a
explicar a passagem:
 
Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer
de novo, não pode ver o reino de Deus.
João 3.3, ênfase acrescentada
 
Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água
e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.
João 3.5, ênfase acrescentada
 
As duas sentenças são correspondentes. O versículo 5 muda
“ver” por “entrar”, mas a ideia em ambos os casos é semelhante. E o
mais importante é que o versículo 5 se move de “nascer de novo”
para “nascer da água e do Espírito”. Em outras palavras, “nascer de
novo” é correspondente a “nascer da água e do Espírito”. Portanto,
“nascer da água e do Espírito” não sinaliza dois nascimentos, e sim
um único nascimento — ou seja, toda a expressão “nascer da água e
do Espírito” é correspondente a “nascer de novo” e significa a mesma
coisa. Então, o que Jesus estava acrescentando ou explicando sobre
“nascer de novo”, quando ele o ampliou para “nascer da água e do
Espírito”?
Há outro pequeno detalhe que temos de levar em conta antes de
concluirmos o que isso significa. No versículo 9, depois de Jesus
haver dado sua resposta, Nicodemos ainda não entendeu bem: “Como
pode suceder isto?” Jesus respondeu: “Tu és mestre em Israel e não
compreendes estas coisas?” (3.10). Já sugeri que “mestre em Israel”
era provavelmente um título. Que coisas Nicodemos devia ter
entendido por ser “mestre em Israel”? O foco de sua especialidade era
o que chamamos de Antigo Testamento, os primeiros dois terços da
Bíblia, mais um grande conjunto de leis judaicas e outras tradições.
A pergunta agora é: onde o Antigo Testamento fala sobre o novo
nascimento? Por que Jesus considerou Nicodemos responsável por
entender o que ele estava falando?
A realidade é que o Antigo Testamento não fala explicitamente,
em nenhuma de suas passagens, sobre “novo nascimento”.
No entanto, um fato muito interessante é que, em algumas
poucas passagens, o Antigo Testamento fala realmente sobre água e
Espírito. Em outras palavras, quando Jesus disse: “O nascimento
sobre o qual eu falo é da água e do Espírito”, ele esperava que
Nicodemos compreendesse a linguagem, porque, afinal de contas, ele
era mestre em Israel e intimamente familiarizado com o texto do
Antigo Testamento.
Há várias passagens do Antigo Testamento nas quais água e
Espírito estão ligados, mas talvez a mais impressionante se ache nos
escritos de Ezequiel, um profeta do século VI a.C. Em Ezequiel 36,
Deus prometeu um tempo em que ele transformaria seu povo.
“Aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados” , indicando
uma purificação moral (36.25). “Porei dentro de vós o meu Espírito”,
indicando a vida e o poder de Deus mesmo (36.27). Portanto, o que
quer que seja este novo nascimento, ele está em harmonia com a
promessa anunciada por um profeta seis séculos antes, está ligado
como o início de uma nova aliança que seria caracterizada por
transformação moral (a água aspergida no coração) e pelo poder e
vida de Deus para transformar e renovar. Isso era o que Jesus queria
dizer quando falou sobre um novo nascimento da água e do Espírito.
Imediatamente, Jesus explicou um pouco mais: “O que é nascido
da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te
admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo” (Jo 3.6-7). O que
Jesus pretendia dizer com esta afirmação era que as coisas produzem
aquilo que lhes é idêntico: “Porcos geram porcos; baratas geram
baratas; morcegos geram morcegos; espécie produz espécie; carne
produz carne. Então, neste mundo, como seres humanos perdidos e
egoístas são conectados com a vida de Deus? Essa transformação
não é produzida pela seleção natural. Não produzimos uma revolução
moral apenas por tentarmos com muito empenho ou por criação
seletiva. O que precisamos ter realmente é o que Ezequiel disse: um
ato de Deus que nos purifica realmente e nos enche de poder do
próprio Deus, do seu Espírito, para que sejamos mudados,
transformados. Temos de ter isso, pois, do contrário, não poderemos
ser conectados com a vida de Deus. ‘O que é nascido da carne é
carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu
te dizer: importa-vos nascer de novo’”.
Em seguida, Jesus expressou outra analogia que depende, em
parte, do fato de que a palavra traduzida por “espírito” pode também
significar “vento” em certos contextos. No original, há um trocadilho:
“O vento [espírito] sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes
donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do
Espírito [vento]” (3.8). Talvez Jesus e Nicodemos estivessem em pé
numa esquina em Jerusalém, e um galho de sicômoro balançasse à
brisa da noite ou uma folha seca dançasse pela rua. Jesus,
apontando para esses fenômenos tenha dito: “Você vê os efeitos do
vento/espírito? Você sabe realmente de onde ele vem?” Mesmo
naquela época eles sabiam algo sobre meteorologia, mas não muito
— bem menos do que sabemos hoje. Ninguém ficava sentado e
pensando: “Deve haver elevada pressão atmosférica no deserto da
Arábia. Isso é ciclônico ou anticiclônico? Onde é o limite entre a
depressão e a massa de ar de pressão elevada?” Ninguém pensava
nesses termos. Mas isso não significa que as pessoas negassem a
existência e o poder do vento! Eles viam os efeitos. Talvez não fossem
capazes de explicar toda a dinâmica e todas as forças físicas que
produziam o vento, mas não podiam negar os efeitos.
E Jesus concluiu, dizendo: “Assim é todo o que é nascido do
Espírito” (3.8). Entenda isto: você e eu não podemos explicar toda a
mecânica do novo nascimento. Na Bíblia, podemos estudar muitas
passagens como essa e outras que falam sobre novo nascimento. Sem
dúvida, podemos inferir algumas coisas sobre como o novo
nascimento opera. Mas, ao final, não possuiremos uma análise
completa de como Deus opera em nós para transformar-nos. Apesar
disso, onde há novo nascimento genuíno, sempre vemos os
resultados. Não os podemos negar. “Assim é todo o que é nascido do
Espírito” (3.8). Essa é a razão por que a interpretação de Barna
quanto a “nascer de novo” é totalmente sem base. O novo nascimento
não aconteceu necessariamente porque “alguém fez um compromisso
com Jesus”. Onde há o novo nascimento — vindo genuinamente de
Deus — vemos transformação. Vemos mudança na vida. Isso não
significa que as pessoas atingiram repentinamente a perfeição; no
decorrer do tempo, teremos mais crescimento espiritual e falhas
cristãs. Mas, onde acontece o novo nascimento, há uma mudança de
direção, de origem. Há uma purificação na vida. Há uma
transformação. Há o começo da vida com Deus que molda nossa
existência em uma nova direção.
“Assim é todo aquele que é nascido do Espírito. E, meu querido
Nicodemos, você não pode ver o reino, o poder real de Deus, e não
pode entrar nesse reino se não nascer de novo. Isso é o que você
precisa ter. Você tem de nascer de novo.”
Esta passagem se opõe totalmente àqueles que pensam que o
cristianismo é uma questão de rituais, práticas religiosas, misticismo
ou moralidade convencional. A Bíblia continua dizendo isso
energicamente. O mesmo escritor, João, que relata esse encontro entre
Jesus e Nicodemos, também escreveu várias cartas que foram
incluídas no Novo Testamento. Em um delas, que chamamos de
1João, o escritor diz algo assim: “Se você não obedece a Jesus, você
não é dele. Você não é um cristão. Se você não ama os irmãos em
Cristo, você não nasceu de novo. Se você não vence o mundanismo ao
seu redor, sua vida mostra que você nunca experimentou o novo
nascimento” (ver 1Jo 2.29; 4.7; 5.4, 18). O novo nascimento indica
mais do que uma profissão de fé; indica poder transformador.
No século XVIII, houve um pregador famoso (talvez o mais
famoso pregador do mundo ocidental naquele tempo) chamado
George Whitefield. Ele era inglês, mas navegou através do Atlântico
13 vezes (cada viagem tomava de seis semanas a três meses). Por
isso, ele se tornou um pregador tão famosos nas 13 colônias norte-
americanas como o era na Inglaterra. Ele pregou para grandes
multidões sem um sistema de som. Ele devia ter pulmões e cordas
vocais espetaculares. Pregava muitas vezes sobre este texto:
“Importa-vos nascer de novo”, até que, finalmente, alguém ficava
irritado com ele, encurralava-o e lhe perguntava: “Sr. Whitefield, por
que você continua pregando repetidas vezes: ‘Você tem de nascer de
novo’. Você tem de nascer de novo’?”
“Porque”, Whitefield respondia, “você tem de nascer de novo”.
Se você não nascer de novo, não entrará nesse reino salvador e
transformador de Deus, nesse reino incipiente do Filho de Davi. Aqui
está a culminação da história do Antigo Testamento chegando ao seu
foco, em Jesus. E, se você ainda não nasceu de novo, não participará
desse reino.
Isto foi o que Jesus disse sobre o novo nascimento.
 
POR QUE JESUS PODIA FALAR SOBRE NASCER DE NOVO
(JOÃO 3.11-13)
 
O que deu a Jesus autoridade para falar dessa maneira?
 
Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que
sabemos e testificamos o que temos visto; contudo, não
aceitais o nosso testemunho.
Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como
crereis, se vos falar das celestiais?
Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu,
a saber, o Filho do Homem [que está no céu].
João 3.11-13
 
Ora, a princípio, essa passagem pode nos parecer um pouco
estranha. Você observou que Jesus começou com a primeira pessoa do
plural: “Nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto;
contudo, não aceitais o nosso testemunho” (3.11, ênfase
acrescentada). Depois, no versículo seguinte, ele muda para a
primeira pessoa: “Se, tratando de coisas terrenas, não me credes,
como crereis, se [eu] vos falar das celestiais?” (3.12, ênfase
acrescentada). Por que Jesus começou com a primeira pessoa do
plural?
Suspeito que Jesus fez isso porque estava respondendo
Nicodemos em seus próprios termos. Nicodemos havia dito: “Rabi,
sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus”. Jesus sorriu ao final
da troca de ideias e comentou: “Nicodemos, nós também sabemos
uma ou duas coisas, porque, francamente, ninguém jamais esteve no
céu para descrever o que acontece na sala do trono de Deus. Ninguém
jamais retornou para contar-nos. Mas foi de lá que eu vim”.
Não se engane: a razão por que Jesus podia falar tão
francamente sobre o novo nascimento está fundamentada em uma
reivindicação de revelação, ou seja, uma reivindicação de que o seu
ensino é revelação procedente de Deus mesmo. Isso não equivale a um
teólogo protegendo o seu domínio entre os teólogos que gostam de
disputar e escrever livros. Essa é a palavra de alguém que afirmava
ter vindo da presença de Deus, o companheiro idêntico a Deus, o
próprio ser de Deus — o que é, de fato, exatamente o que vimos no
capítulo anterior. Ele é o Verbo de Deus, a autoexpressão de Deus, um
com Deus, verdadeiro Deus, na complexidade de um único Deus que
se tornou um ser humano. Jesus viera de lá, por isso ele falava com a
autoridade de revelação.
Em essência, ele disse: “Nicodemos, se eu tentasse descrever a
sala do trono de Deus para você em toda a sua glória espetacular e
transcendente, você não teria o menor ideia do que eu lhe estaria
falando. Você já tem bastante dificuldade para crer em qualquer coisa
quando digo que descrevo as coisas que acontecem na terra — coisas
como o novo nascimento”. Afinal de contas, este é o lugar onde o
novo nascimento acontece. Ele acontece na terra. Isso é o que Jesus
queria dizer ao usar a expressão “coisas terrenas”. “Se você não crê
quando falo de coisas terrenas — coisas que acontecem aqui na
terra, como o novo nascimento —, como você creria se eu começasse
a descrever as glórias do Deus transcendente?”
Em última análise, para entender o cristianismo, temos de, mais
cedo ou mais tarde, aceitar as reivindicações de revelação do
cristianismo. O que você faz com Jesus, que reivindica vir de Deus,
ser um com Deus, que lhe fala sobre coisas que de outro modo você
não poderia saber? Ninguém fez uma viagem até ao céu, anotou as
coisas, retornou e fez uma reportagem. Ou isso é verdade, ou isso é a
mais completa insensatez, tolice blasfema. Mas você não pode
escapar deste pensamento: “Bem, Jesus é um excelente mestre
moralizador”. A razão por que Jesus podia falar sobre nascer de novo
com a autoridade e a confiança que ele mostrou está vinculada à sua
identidade. Rejeitar o que ele disse significa negar quem ele é.
 
COMO JESUS PRODUZ O NOVO NASCIMENTO
(JOÃO 3.14-15)
 
É evidente nesse contexto que a vida eterna, sobre a qual Jesus
falou, tem de ser o produto do novo nascimento. Se temos o novo
nascimento, temos a vida, e essa vida é vida eterna. Como podemos
tê-la? O que Jesus disse nos versículos 14 e 15 pode ter sido mais
compreensível para Nicodemos do que a princípio nos parece, porque
Nicodemos, com todas as suas fraquezas e virtudes, conhecia
realmente o Antigo Testamento. Jesus se referiu a uma passagem do
Antigo Testamento sobre a qual algum de nós talvez não saiba nada:
“E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim
importa que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que
nele crê tenha a vida eterna” (Jo 3.14-15).
A passagem referida por Jesus se acha em Números, o quarto
livro da Bíblia. E, é claro, Nicodemos deve ter percebido isso de
imediato, porque conhecia o Antigo Testamento. É um relato bem
curto:
 
Então, partiram [ou seja, os israelitas que haviam saído do
Egito, mas ainda não haviam chegado à sua própria terra]
do monte Hor, pelo caminho do mar Vermelho, a rodear a
terra de Edom, porém o povo se tornou impaciente no
caminho.
E o povo falou contra Deus e contra Moisés: Por que nos
fizestes subir do Egito, para que morramos neste deserto,
onde não há pão nem água? E a nossa alma tem fastio
deste pão vil.
Então, o SENHOR mandou entre o povo serpentes
abrasadoras, que mordiam o povo; e morreram muitos do
povo de Israel.
Veio o povo a Moisés e disse: Havemos pecado, porque
temos falado contra o SENHOR e contra ti; ora ao SENHOR que
tire de nós as serpentes. Então, Moisés orou pelo povo.
Disse o SENHOR a Moisés: Faze uma serpente abrasadora,
põe-na sobre uma haste, e será que todo mordido que a
mirar viverá.
Fez Moisés uma serpente de bronze e a pôs sobre uma haste;
sendo alguém mordido por alguma serpente, se olhava para
a de bronze, sarava.
Números 21.4-9
 
Isso é tudo que é dito, todo o relato. A natureza da murmuração
e do protesto, da reclamação e da lamúria estava ligada a uma
profunda insatisfação com Deus. Novamente, se recordamos Gênesis
3, achamos aqui o padrão estabelecido: você faz suas próprias
regras, se torna seu próprio Deus, decide o seu destino, não confia em
Deus, não se deleita em Deus ou em seu cuidado soberano, nem
depende dele para nada, dá orientações a Deus e, se não puder ter as
coisas do seu jeito, você lamenta e reclama. Isso significa morte
novamente. E eles morreram. Se quisessem escapar da morte
provocada pelas serpentes, somente Deus poderia prover a solução. A
solução de Deus foi um milagre imediato e evidente. Deus ordenou a
Moisés que fizesse uma serpente de bronze e a pendurasse em uma
haste. Aqueles que tivessem o veneno deveriam olhar para a serpente
de bronze e viveriam. Que estranho! Nada de: “Assegure-se de ter
rezado muitas ‘Ave Maria’. Assegure-se de que você fez muitas
penitências. Aflija-se com muitas chicotadas para mostrar que você
está realmente triste. Jejue. Faça uma porção de boas obras”. Nada
disso.
Era como se Deus estivesse dizendo: “Vocês não aprenderam?
Você cometem pecado. Eu lhes dou vida. Você trazem morte e
destruição. Eu dou perdão. A única maneira de sair desta sentença
de morte não é olharem para si mesmos, e sim usarem a provisão que
eu mesmo faço. Olhem para a minha provisão e viverão”. Esse é todo
o relato.
Um milênio e meio depois, Jesus disse: “E do modo por que
Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do
Homem [uma das maneiras de Jesus se referir a si mesmo] seja
levantado”. Jesus estava aludindo à sua crucificando em outra haste,
outro poste, um poste em forma de cruz, para que aqueles que
olhassem para ele, aqueles que cressem nele, vivessem. Como poderia
ser de outra maneira? Já vimos que não podemos barganhar com
Deus. Não podemos oferecer alguma coisa a Deus e fazer uma troca
com ele. Se pessoas são curadas, se pessoas ganham a vida eterna,
isso é o resultado da soberana graça de Deus: não há outra maneira.
Este ensino é ressaltado frequentemente na Bíblia e foi exemplificado
para eles novamente no episódio da serpente de bronze. Ora, esse
modelo chega ao seu cumprimento em Jesus. Em sua cruz, Jesus
proveu o meio pelo qual temos o novo nascimento. Por sua morte,
temos vida. Por sua crucificação, em uma haste, começamos a vida
eterna. O novo nascimento está fundamentado na morte de Jesus.
Isso era o que Jesus estava dizendo. Você e eu recebemos o benefício
disso não por nos esforçarmos ao máximo ou por sermos
ultrarreligiosos, e sim por crermos em Jesus.
 
CONCLUSÃO
 
Há muito mais a dizer sobre o que levou Deus a enviar seu Filho,
para morrer nossa morte e realizar o nosso novo nascimento. Os
versículos seguintes no texto do evangelho de João fundamentam os
motivos de Deus em seu insondável amor. Isso é o que exploraremos
no capítulo seguinte.

(1) Ronald J. Sider, The Scandal of the Evangelical Conscience: Why Are Christians Living
Just Like the Rest of The Word? (Grand Rapids: Baker, 2005).
9
O Deus
que Ama
R Retornaremos brevemente a João 3 e ao relato sobre Nicodemos,
mas quero começar este capítulo por refletir, de maneira geral, sobre o
amor de Deus.
 
POR QUE AS PESSOAS ACHAM FÁCIL CRER NO AMOR DE DEUS
 
Se há algo que o nosso mundo imagina saber a respeito de Deus
— se, de algum modo, o nosso mundo crê em Deus — é que ele é um
Deus de amor. Isso não foi sempre assim na história da humanidade.
Muitas pessoas pensavam nos deuses como seres arbitrários,
incompassíveis, caprichosos e até maliciosos. Era por isso que as
pessoas tinham de apaziguá-los. Algumas vezes na história da igreja,
os cristãos colocaram mais ênfase na ira, na soberania ou na
santidade de Deus — temas estes que, em um grau ou outro, são
todos bíblicos. O amor de Deus não recebeu tanta atenção. Mas hoje,
se de alguma maneira as pessoas creem em Deus, elas acham, em
geral, ser mais fácil crer no amor de Deus.
No entanto, sentir-se satisfeito com a noção do amor de Deus
tem sido acompanhado por algumas noções superficiais quanto ao
significado desse amor. Ocasionalmente, ouvimos pessoas dizerem
algo assim: “Não gosto dos cristãos. Isso significa: Deus é amor, e, se
todos fossem como Jesus, seria maravilhoso. Jesus disse: ‘Não
julgueis, para que não sejais julgados’. Se todos fôssemos pessoas
que não julgam e fôssemos amáveis como Jesus o foi, o mundo seria
um lugar melhor”. Nessas palavras, há uma suposição sobre a
natureza do amor, não há? O amor não julga. Não condena ninguém.
Deixa todos fazerem o que quiserem. Isso é o que o amor significa.
É tragicamente verdadeiro que, às vezes, alguns cristãos são
incompassíveis — Deus nos ajude nisso. É verdade que Jesus disse:
“Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7.1). Mas, quando
falou isso, ele queria realmente dizer: “Não façam qualquer
julgamento moral discriminatório”? Então, por que ele nos deu
tantos mandamentos sobre falar a verdade? Esses mandamentos não
implicam numa condenação de mentiras e mentirosos? Jesus nos
ordenou amar o nosso próximo como a nós mesmos. Isso não
constitui, em si mesmo, um julgamento implícito daqueles que não o
fazem? De fato, no mesmo texto em que Jesus disse: “Não julgueis,
para que não sejais julgados”, disse também: “Não deis aos cães o
que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas” (Mt 7.6); e
isso significa que alguém deve determinar quem são os porcos.
Em outras palavras, quando Jesus disse algo tão importante
como “Não julgueis, para que não sejais julgados”, há um contexto
que precisa ser entendido. Afinal de contas, Jesus estabeleceu um
padrão moral extraordinariamente elevado em sua época. Portanto,
se as pessoas acham que “Não julgueis, para que não sejais
julgados” significa que Jesus estava abolindo toda moralidade e
deixando essas questões com o indivíduo, elas nem começaram a
entender quem é Jesus. Ele condena realmente o tipo de julgamento
arbitrário, cheio de justiça própria e hipócrita. Repetidas vezes, ele
condenou vigorosamente esse tipo de julgamento. Mas Jesus em
hipótese alguma condena o discernimento moral ou a prioridade da
verdade. Em qualquer caso, no amor de Deus e no amor de Jesus há
mais do que evitar o julgamento.
Isso significa que, ao pensarmos no amor de Deus, precisamos
pensar também nos seus outros atributos — sua santidade, verdade,
glória (a manifestação de seu ser e amabilidade espetaculares) e todo
os outros — e pensar em como todos eles operam juntos em todo o
tempo. Infelizmente, pelo fato de nossa cultura achar fácil crer que
Deus é um Deus de amor, desenvolvemos noções do amor de Deus que
são preocupantemente superficiais e sentimentais e, quase sempre,
alienadas de todo o âmbito dos atributos que fazem de Deus o que ele
realmente é — Deus.
 
CINCO MANEIRAS PELAS QUAIS A BÍBLIA
FALA DO AMOR DE DEUS
 
Meu livreto The Difficult Doctrine of the Love of God (A Difícil
Doutrina do Amor de Deus) tenta descrever (entre outras coisas) cinco
maneiras diferentes pelas quais a Bíblia fala do amor de Deus. Deixe-
me considerá-las rapidamente com você. Insisto em que essas são
maneiras pelas quais a Bíblia fala do amor de Deus, e não cinco tipos
diferentes de amor.
1. Existe o amor de Deus - não sei outra maneira de expressar
isso — na Divindade, no Deus trino. A Bíblia fala explicitamente
sobre o amor do Pai por seu Filho e o amor do Filho pelo Pai. No
capítulo 7, notamos que o evangelho de João, o quarto livro do Novo
Testamento, diz que o Pai ama o Filho e confiou todas as coisas às
suas mãos (ver Jo 3.35) e determinou que todos honrem o Filho do
modo como honram o Pai (ver Jo 5.23). A Bíblia diz, com clareza, que
o Pai ama o Filho. Também nos diz, com a mesma clareza, que o Filho
ama o Pai e sempre faz o que lhe agrada (Jo 14.31). A razão por que
Jesus foi à cruz é, antes de tudo, que ele ama seu Pai e faz a vontade
dele. Esse amor na Divindade (o que as pessoas chamam de amor
intratrinitário — se Deus pode ser referido como a Trindade, então
estamos pensando no amor que flui entre os membros da Divindade,
da Trindade) é um amor perfeito. Cada pessoa da Trindade acha a
outra gloriosa e perfeitamente amável. Não é como se o Pai dissesse
ao Filho: “Sinceramente, você é um caso sem esperança, mas eu amo
você”. O Filho é perfeitamente amável, assim como o Pai; e eles
amam um ao outro perfeitamente. Esta é uma maneira pela qual a
Bíblia fala do amor de Deus.
2. O amor de Deus pode se referir ao seu cuidado geral sobre sua
criação. Deus faz nascer seu sol e traz chuvas sobre justos e injustos.
Isso quer dizer que o amor de Deus é providencial e não
discriminatório. É um amor amoral (e não um amor imoral). Deus
sustém tanto os justos como os ímpios. De fato, no Sermão do Monte,
Jesus pôde usar o amor providencial de Deus para extrair uma lição
moral. Em essência, ele disse: “Se Deus envia o seu sol e sua chuva
tanto sobre justos como sobre injustos, por que vocês fazem todas
essas distinções terríveis entre os que são amigos e os que são
inimigos de vocês, escolhendo amar somente os amigos, enquanto
odeiam os inimigos?” (ver Mt 5.44-47). Portanto, há um sentido em
que o amor de Deus se estende generosamente a amigos e a inimigos.
Esta é uma segunda maneira pela qual a Bíblia fala do amor de
Deus.
3. Às vezes, a Bíblia fala sobre o amor de Deus em um sentido
moral, convidativo, categórico e anelante. Por isso, no Antigo
Testamento, achamos Deus se dirigindo a Israel quando a nação era
perversa, e dizendo: “Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso?
— diz o SENHOR Deus; não desejo eu, antes, que ele se converta dos
seus caminhos e viva?” (ver Ez 18.23, 32; 33.11). Ele é esse tipo de
Deus.
4. Às vezes, o amor de Deus é seletivo. Escolhe um e rejeita
outro. “Amei a Jacó, porém aborreci a Esaú” (Ml 1.2-3). Essa é uma
linguagem muito forte. Em passagens notáveis, em Deuteronômio 7 e
10, Deus fez a pergunta retórica sobre a razão por que escolhera a
nação de Israel. Ele apresentou as possibilidades. Por que eles eram
numerosos? Não. Por que eram mais poderosos? Não. Por que eram
mais justos? Não. Deus lançou suas afeições sobre eles porque os
amou — ou seja, ele os amou porque os amou. Ele não amou as
demais nações dessa maneira. No contexto, Deus lançou suas
afeições sobre Israel, contrário do que fez às outras nações, porque
ele amou Israel. Foi a escolha soberana de Deus.
5. Uma vez que Deus está em conexão com seu povo (em geral,
isso significa que Deus entrou em um relacionamento de aliança com
eles), o amor dele é frequentemente apresentado como condicional.
Consideremos, por exemplo, o penúltimo livro da Bíblia, chamado
Judas, um pequeno livro de uma página. Judas, um meio irmão de
Jesus, escreveu: “Guardai-vos no amor de Deus” (Jd 21); e isso mostra
que podemos não nos guardar no amor de Deus. Em passagens como
essa, há uma condicionalidade moral vinculada a sermos amados por
Deus. De fato, há muitas passagens, tanto no Antigo como no Novo
Testamento, que nos mostram que o amor de Deus ou o amor de Jesus
é, em algum sentido, condicional à nossa obediência. Até os Dez
Mandamentos são parcialmente moldados pela condicionalidade.
Deus mostra o seu amor, conforme ele mesmo diz, “até mil gerações
daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êx 20.6).
Portanto, na Bíblia, há contextos em que o amor de Deus é retratado
em termos condicionais.
Você percebe quão sutil isso se torna? Inevitavelmente, alguém
começa a perguntar como essas maneiras diferentes de falar do amor
de Deus se harmonizam. Pensar em analogias humanas pode ajudar-
nos nisso. Posso dizer com muita franqueza: “Amo guiar minha
motocicleta, amo trabalhar em madeira e amo minha esposa”. Mas,
se colocar muito frequentemente essas três coisas juntas, na mesma
frase, minha esposa, como podemos compreender, não ficará
contente. E elas realmente têm peso diferente. Ou eu posso dizer:
“Amo incondicionalmente os meus filhos”. Tenho uma filha na
Califórnia que trabalha com crianças necessitadas. Se em vez disso,
ela tivesse se tornado uma prostituta nas ruas de Los Angeles, creio
que eu a amaria da mesma maneira. Ela é minha filha. Eu a amo
incondicionalmente. Tenho um filho que é um fuzileiro naval. Se, em
vez disso, ele começasse a vender heroína nas ruas de Nova Iorque,
creio que eu o amaria da mesma maneira. Ele é meu filho. Eu o amo
incondicionalmente. Contudo, em outro contexto, quando eram
apenas adolescentes aprendendo a dirigir, se eu dissesse a um deles:
“Assegure-se de chegar em casa por volta da meia-noite”, e eles não
chegassem nessa hora, enfrentariam a ira de seu pai. Nesse sentido,
meu amor era bem condicional em relação a me obedecerem e
trazerem o carro para casa na hora determinada.
Em outras palavras, apesar do fato de que consideramos os
mesmos filhos e o mesmo pai, os contextos diferentes mudam o uso
da linguagem do amor. Não aconteceu que, em um sentido, o meu
amor por eles foi menos incondicional, porque há uma estrutura em
que o amor permanece constante. Mas pode haver outra estrutura em
que prevalecem acordos e responsabilidades familiares — ou, em
termos bíblicos, obrigações da aliança — e nisto as dinâmicas
mudam de alguma maneira.
Os cristãos têm sido conhecidos por promoverem chavões como
“Deus ama todos da mesma maneira”. Falso ou verdadeiro? Depende!
Há contextos em que a Bíblia retrata o amor de Deus como
moralmente neutro. Ele envia seu sol e sua chuva para justos e
injustos; nesse contexto, ele ama a todos igualmente. Mas há outros
contextos em que o amor de Deus é afirmado como condicional à
nossa obediência; e há outros contextos em que esse amor está
fundamentado na escolha soberana de Deus. Nesses contextos, Deus
não ama todos da mesma maneira.
“Você não pode fazer nada que leve Deus a amá-lo ainda mais.”
Verdadeiro ou falso? Depende! Em alguns contextos, isso é gloriosa e
completamente verdadeiro, porque, em última análise, você não pode
fazer por merecer o amor de Deus. Todavia, há contextos diferentes
em que o amor de Deus é descrito como condicional. A principal lição
a aprendermos nesta conjuntura é que temos de ser cuidadosos para
não cometer erros tolos quando lemos o texto bíblico, por tirarmos
um versículo do seu contexto, universalizando-o e ignorando a
maravilhosa diversidade de maneiras pelas quais a Bíblia fala sobre
o amor de Deus.
Aqui temos de retornar ao relato do encontro de Jesus com
Nicodemos.
 
JOÃO 3.16-21
 
No capítulo anterior, consideramos o dialogo entre Jesus e
Nicodemos sobre o assunto do novo nascimento. Vimos que, no final
da conversa, Jesus afirmou ter revelação especial. Ele podia falar com
autoridade sobre a nossa necessidade de novo nascimento e o seu
efeito poderoso e transformador, reconciliando-nos com Deus e
redirecionando nossa vida, exatamente porque ele viera do céu. Além
disso, para oferecer uma explicação da base sobre a qual as pessoas
são reconciliadas com Deus, Jesus apresentou uma analogia extraída
do Antigo Testamento — Moisés levantou a serpente de bronze em
uma haste —, mostrando que todo aquele que crê pode ter a vida
eterna nele, Jesus. Isso nos leva a João 3.16-21, que nos fala sobre os
motivos de Deus em buscar homens e mulheres com esse poder
regenerador:
 
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna.
Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que
julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por
ele.
Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.
O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens
amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras
eram más.
Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se
chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas
obras.
Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as
suas obras sejam manifestas, porque feitas em Deus.
João 3.16-21
 
Deixe-me tirar algumas inferências dessa passagem e de outras
relacionadas.
 
1. NA BÍBLIA, O FATO DE QUE DEUS NOS AMA É SIMPLESMENTE ADMIRÁVEL
 
]Em geral, não pensamos dessa maneira, mas a Bíblia se deleita
em maravilhar-se do amor de Deus. A razão por que não pensamos
dessa maneira é dupla: não somente pensamos que Deus tem de
amar (isso é amplamente aceito em nossa cultura), mas também que
“ele tem de amar especialmente a mim, porque sou bom, prestativo e,
talvez, atraente. Não bato nas pessoas. Sou uma pessoa decente. É
claro que Deus me ama. Quero dizer: não há nada em mim que ele
não possa amar, há?” Mas esse pensamento está tão distante do
ensino bíblico, que temos de reconsiderá-lo. Permita-me usar uma
ilustração que tenho usado às vezes com estudantes universitários.
Bob e Sue caminham pela praia. É o final do ano acadêmico. O
sol aqueceu a areia. Eles tiram as sandálias e sentem a areia úmida
penetrar entre seus dedos. Ele pega a mão de Sue e lhe diz: “Sue, eu a
amo. Eu a amo realmente”. O que ele pretende dizer? Talvez queira
dizer várias coisas. Pode estar apenas dizendo que seus hormônios
estão fervendo e que ele deseja ir para a cama com ela. O mínimo que
ele quer dizer é que se sente atraído por ela. Certamente, ele não quer
dizer que a acha desagradável, mas que a ama de qualquer maneira.
Quando ele diz: “Eu a amo”, está dizendo, em parte, que a acha
amável. E, se tem algum tipo de propensão romântica, ele talvez dirá:
“Sue, a cor de seus olhos — eu poderia mergulhar neles. O cheiro de
seu cabelo, as covinhas na sua face, quando sorri — não há nada em
você que eu não ame. Sua personalidade — é tão maravilhosa. Você é
tão encorajadora. Você deu esse sorriso que pode encher toda uma
sala; ele é tão contagiante. Sue, eu a amo”. O que isso não significa
é: “Sue, com muita franqueza, você é a criatura mais estranha que eu
conheço. Seu mau hálito poderia deter uma manada de elefantes
desgovernados. Seus joelhos me lembram um camelo aleijado. Você
tem a personalidade de Gengis Khan. Você não tem qualquer senso de
humor. Você é uma mulher horrível, narcisista, cheia de justiça
própria e detestável, mas eu a amo”. Quando ele declara seu amor
por ela, naquele momento ele está declarando que a acha amável.
Isso não é correto?
Ora, é Deus quem aparece em João 3.16: “Deus amou ao
mundo”. O que ele está dizendo ao mundo? “Mundo, eu o amo”? Está
dizendo: “Mundo, a sua personalidade cintilante, sua conversa
inteligente, sua hilaridade, seu talento — você é lindo! Eu o amo.
Não posso imaginar o céu sem você”. É isso que Deus está dizendo?
Em outras palavras, quando Deus diz: “Eu o amo”, ele está
declarando a natureza amável do mundo? Há muitos psicólogos que
usam o amor de Deus exatamente dessa maneira. Se Deus declara:
“Eu o amo”, isso tem de significar: “Tudo está bem comigo, tudo está
bem com você. Deus diz que tudo está bem conosco. Ele nos ama; isso
tem de ser porque somos dignos de amor”.
Conforme a Bíblia, isso não faz sentido. A palavra “mundo”, no
evangelho de João, se refere não a um grande lugar onde há muitas
pessoas, e sim a uma lugar mau onde há muitas pessoas más. A
palavra “mundo”, no evangelho de João, se refere à ordem de coisas
que Deus criou centrada no homem, mas que se rebelou contra ele em
ódio e idolatria, resultando na quebra de relacionamentos,
infidelidade e impiedade. Essa é a razão por que já nos primeiros
versículos deste evangelho, em uma passagem que examinamos no
capítulo 7, o chamado prólogo do evangelho de João (Jo 1.1-18),
lemos: “O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu” (Jo 1.10). É também a razão por
que lemos nesta passagem: “O julgamento é este: que a luz veio ao
mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as
suas obras eram más” (Jo 3.19). Ou seja, com a vinda de Jesus, veio a
autorrevelação graciosa de Deus, sua revelação, a luz que é boa,
limpa e pura — mas as pessoas amam as trevas, e não a luz. Tudo
que ela faz é mostrar a sujeira.
No entanto, o texto diz: “Deus amou ao mundo de tal maneira”
— este mundo caído e corrompido. É como se Deus estivesse dizendo
para o mundo: “No aspecto moral, vocês são pessoas de joelhos
aleijados. Vocês são pessoas de mau hálito moral. Vocês são pessoas
de personalidade violenta, semelhante à de Gengis Khan. Vocês são
odiosos, detestáveis e assassinos. Mas, sabem uma coisa? Eu os amo
apesar disso — não porque vocês são dignos de amor, e sim porque
eu sou esse tipo de Deus”. Essa é a razão por que na Bíblia, depois de
Gênesis 3, o amor de Deus é sempre motivo de admiração. O amor de
Deus é maravilhoso, surpreendente e, de algumas maneiras, não é
como deveria ser. Por que Deus não nos condena, em vez de amar-
nos?
 
2. A MEDIDA DO AMOR DE DEUS POR NÓS É JESUS
 
“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito” (Jo 3.16). Precisamos entender que o evangelho de
João é rico em expressões que falam do amor do Pai pelo Filho e do
amor do Filho pelo Pai. Há um maravilhoso capítulo, João 17, que é
às vezes chamado de “oração sumo sacerdotal de Jesus”. Nesse
capítulo, há um tipo de meditação ampliada sobre o fato de que na
eternidade passada o Pai amava o Filho com um amor perfeito. E, por
sua vez, o Filho amava o Pai com um amor perfeito, além de nossas
mais extraordinárias e generosas imaginações.
Já vimos que o Deus presente não precisa de nós. Ele
manifestava e gozava de um amor perfeito na eternidade passada.
Quando nos criou, nós o desprezamos e quisemos nos tornar igual a
ele. Ele resolveu amar, de maneira anelante e convidativa, esse
“mundo” (uma expressão favorita de João) perdido e autodestruidor.
Em outras passagens, João nos fala sobre o relacionamento peculiar
de Deus com seu povo, descrevendo-os como aqueles que o Pai deu ao
Filho (ver, por exemplo, Jo 6.37-40). Já vimos que a Bíblia fala de
maneiras diferentes sobre o amor de Deus. Nesse contexto imediato, o
objeto do amor de Deus é o “mundo” — homens e mulheres, cada
etnia, judeus e gentios, todos perdidos em uma determinação ímpia
que nos separa do Deus presente — e Deus nos ama apesar disso. É
admirável! E a medida deste amor é Jesus, este Jesus que, antes de se
tornar Jesus, como o Filho eterno, a Palavra eterna, era um com o Pai
num perfeito círculo de amor, na eternidade passada. Agora, o Pai dá
o seu Filho por nós. Essa é a maneira como ele escolhe nos amar.
Deus dá, em essência, a si mesmo.
De fato, quando dizemos que a medida do amor de Deus por nós
é Jesus, queremos, na realidade, dizer duas coisas:
Primeira, quanto custou ao Pai entregar a Jesus? Nós, que somos
pais, daríamos alegremente nossos filhos para que outras pessoas
fossem poupadas da morte? E mesmo esse tipo de amor seria uma
troca de uma criança por outra da mesma categoria, outro ser
humano. Mas Deus, o Pai, deu seu Filho em benefício de meras
criaturas, ingratas e egocêntricas.
Segundo, que amor Jesus mostra? A medida do amor de Deus por
nós é Jesus. Se quisermos ver a plena medida do amor de Deus,
observemos a Jesus.
Lembremos diversas ocasiões na vida de Jesus, conforme
relatada nos outros textos do Novo Testamento, que falam sobre o
amor de Deus ou o amor de Jesus.
Nós vemos a Jesus com um coração tão grande quanto a
eternidade, quando ele olhou para uma multidão que parecia sem
liderança, espiritualmente vazia e perdida. Ele os chamou de ovelhas
sem pastor, e o relato do evangelho nos diz que Jesus se compadeceu
deles (ver Mt 9.36).
Nós o vemos com as criancinhas, tomando-as como um tipo de
modelo do que os seus discípulos deveriam ser: semelhante a crianças
em achegarem-se a Jesus. Criancinhas não se achegam a alguém que
está irado. Nos evangelhos, nós as vemos brincando com Jesus e
subindo ao colo dele, e ele disse: “Deixai os pequeninos, não os
embaraceis de vir a mim” (Mt 19.14).
Ou podemos ler esta maravilhosa passagem de Mateus 12. Jesus
citou palavras referentes a ele mesmo extraídas do profeta Isaías
(mais de 700 anos antes):
 
Eis aqui o meu servo, que escolhi, o meu amado, em quem a
minha alma se compraz. Farei repousar sobre ele o meu
Espírito, e ele anunciará juízo aos gentios. Não contenderá,
nem gritará, nem alguém ouvirá nas praças a sua voz.
Não esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que
fumega, até que faça vencedor o juízo.
E, no seu nome, esperarão os gentios.
Mateus 12.18-21
 
Você pode visualizar essas imagens? Um vela: a chama
desaparece, e, em vez de esmagar a vela fumegante, ele a assopra
para que volte a chamejar. Ou imagine uma cana à beira de um lago,
um lugar em que melros de asa vermelha se reúnem, e a cana está
quebrada — não é muito forte. No entanto, Jesus não a destrói, ele a
fortalece. Essas são maneiras poderosas de dizer que o amor é gentil,
edificante, compassivo.
Mesmo quando Jesus repreendeu pessoas por causa de seus
pecados, usando às vezes linguagem bastante forte (ele disse
realmente a algumas pessoas: “Hipócritas... guias cegos... Serpentes,
raça de víboras!”, em Mateus 23.15-16, 33), no final de sua
repreensão nós o vemos chorando pela cidade. Há alguns pregadores
na literatura, como Elmer Grant, que são prontos para repreender,
mas são hipócritas. Há um tipo de pregação moralizante que
denuncia e critica, mas é frustrada pela decadência moral; ela é
sempre irada. Nunca é caracterizada por lágrimas de compaixão.
Essa insensibilidade de coração nunca caracterizou a Jesus.
Uma das coisas realmente maravilhosas sobre a demonstração
do amor de Jesus é a maneira como ele lidava com as pessoas como
elas eram, sem uma fórmula única para todos. Ele disse a um jovem
rico cujo dinheiro era um deus, que ele tinha de vender todos os seus
bens e dar o lucro aos pobres. Mas não foi isso que Jesus disse à
mulher samaritana que encontrou à beira de um poço. Ele lhe disse
que trouxesse seu marido, mas, é claro, ela não podia fazer isso, pois
já tivera cinco maridos, e o homem com que ela vivia não era seu
marido. Ela tinha de lidar com a barreira de seus relacionamentos
quebrados. O chefe gentio que tinha um filho cuja vida estava
ameaçada, a mulher contrita que lavou os pés de Jesus, o apóstolo
que duvidou publicamente de Jesus — em todos os casos, o amor do
Senhor era não somente profundo, mas também objetivo e abordava
com exatidão as necessidades das pessoas.
Igualmente maravilhosa é a maneira como Jesus se dirigiu aos
sobrecarregados com os cuidados da vida e disse:
 
Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de
coração; e achareis descanso para a vossa alma.
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve
Mateus 11.28-30 — ênfase acrescentada
 
O tema de descaso tem a sua trajetória em toda a Bíblia. Assim
como Deus “descansou” no fim da criação, e ordenou, nos Dez
Mandamentos, que seu povo descansasse no sábado, o descanso final
é garantido em Jesus — um tema expandido posteriormente no Novo
Testamento (ver Hebreus 3 e 4). Esse descanso que Deus provê é uma
função do amor de Deus por seu povo.
Depois, nós o encontramos na cruz. Você viu o filme A Paixão de
Cristo, dirigido por Mel Gibson? O filme retratou acuradamente uma
porção dos sofrimentos físicos. Açoitado, espancado e fraco, Jesus
clamou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc
23.34). E aquele tormento físico não foi todo o sofrimento de Jesus.
Quando ele tomou a culpa e a punição de outros, experimentou o
mais profundo sentimento de abandono do seu Pai celestial (ver Mt
27.45-46).
Para alguns escritores do Novo Testamento, tão comovente foi
esse amor de Deus, mostrado em Cristo Jesus, que, frequentemente,
eles irromperam em deleite em face desse tema. Podiam estar
descrevendo algo, em expressões teológicas precisas, que os levava a
pensar na cruz e, subitamente, irrompiam com outra reiteração
prazerosa de sua apreensão desse amor. Por exemplo, em uma das
cartas de Paulo, uma carta dirigida aos cristãos da Galácia, ele
desenvolveu um ensino profundo sobre o que a cruz realizou, o que é
a “justificação” (algo que consideraremos no capítulo 11); em
seguida, quando mencionou a morte de Jesus, Paulo irrompeu em
clamor: “Vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se
entregou por mim” (Gl 2.20). Em outra passagem, quando ele orava
por outro grupo de crentes (da cidade de Éfeso), o apóstolo Paulo lhes
disse pelo que orava, o que ele pedia a Deus em favor deles. Paulo
mencionou uma ou duas coisas e, depois, acrescentou que orava para
que eles pudessem “compreender, com todos os santos, qual é a
largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o
amor de Cristo” (Ef 3.18-19), usando metáforas de espaço para
retratar as dimensões ilimitadas do amor de Cristo. Em seguida, ele
usou um paradoxo: “Conhecer o amor de Cristo, que excede todo
entendimento” (Ef 3.19), ou seja, conhecer este amor que é
desconhecível, que é insondável, que excede o conhecimento —
conhecê-lo, experimentá-lo. A razão por que Paulo orou por isso, ele
disse aos efésios, era que eles fossem “tomados de toda a plenitude
de Deus” (Ef 3.19). Esta expressão significa: “Para que sejam tão
plenos quanto Deus os tornar, perfeitamente maduros. Vocês não
podem ser genuinamente maduros enquanto não estiverem ricamente
conscientes de que estão inundados do amor de Deus, expresso em
Cristo Jesus. E isso é o que peço em oração por vocês”.
A medida do amor de Deus por nós é Jesus.
 
3. O PROPÓSITO DO AMOR DE DEUS POR NÓS É QUE TENHAMOS VIDA
 
Considere a linguagem de João 3.16-18:
 
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna.
Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que
julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por
ele.
Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.
João 3.16-18, ênfase acrescentada
 
Observe os pares: (1) não pereça, mas tenha a vida eterna; 2)
não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo. Eles são
opostos. O propósito do amor de Deus por nós é claro e direcionado.
Ocasionalmente, algumas pessoas têm retratado o amor de Deus em
Cristo Jesus como se fosse, de algum modo, autossacrificante e sem
propósito: Jesus morreu na cruz para provar-nos o quanto nos ama.
Há mais de cem anos, certo homem inglês confrontou isso, dizendo:
“Haveria algum sentido em uma pessoa correr para o píer Brighton e
gritar: ‘Mundo, mundo, mundo, eu o amo! Mostrarei o meu amor por
você!’; e, em seguida, pular do final do píer e morrer afogado?” Isso
provaria amor ou provaria que tal pessoa perdera seu amor? Isso
pode ser triste, mas dificilmente é um exemplo de amor.
Jesus não foi à cruz porque foi uma vítima do destino. Ele não
foi à cruz como uma lição abstrata; não foi à cruz como um mero
exemplo (embora seja um exemplo). Ele tinha um propósito em ir à
cruz. O propósito era salvar um povo da condenação que permanecia
sobre eles. “Quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se
mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus” (Jo 3.36 — ênfase acrescentada); “O que
não crê já está julgado” (Jo 3.18 — ênfase acrescentada). Estamos de
volta à narrativa bíblica. Jesus não veio para pessoas neutras,
condenando arbitrariamente a alguns e salvando a outros. Pelo
contrário, ele veio para um povo que já estava condenado. Estamos
depois da Queda. Já estamos sob a condenação de Deus. Já somos
uma geração perdida e ingrata. O propósito da vinda de Cristo e de
sua morte na cruz não é condenar, e sim salvar o mundo (ver 3.17).
Esta passagem não descreve em profundidade como Jesus realiza
isso. Outras passagens no evangelho de João deixam isso mais claro.
Um poderoso exemplo é João 6. Nela, Jesus disse que ele é o Pão da
Vida, e, se não comermos dele, morreremos. Em um nível superficial,
a noção de comer Jesus pode soar bem próximo de canibalismo.
Outros de nós que são mais inclinados às coisas religiosas podem
pensar: “Talvez isso seja uma referência ao sacramento da santa
comunhão ou algo semelhante”. Originalmente, não era isso que
Jesus estava querendo dizer. Não devemos esquecer que, no mundo
antigo, quase todos trabalhavam com as mãos ou na agricultura, por
isso estavam mais próximos da natureza do que estamos hoje. Se
você perguntar hoje a crianças de cinco ou sete anos: “De onde vêm
os alimentos?”, elas responderão: “Do supermercado” ou de uma rede
de supermercados de sua região. Mas, se você perguntasse a crianças
do século I de onde vinham os alimentos, elas responderiam: “Das
plantas, dos animais, dos peixes”. Elas cresciam e apanhavam, elas
mesmas, o seu alimento. Por isso, todos sabiam, no século I, que você
vive porque a galinha morre. Você vive porque as cenouras foram
arrancadas e morreram. Todo o material orgânico que nos alimentam
— que temos de ter para não morrermos — deu sua vida por nós, em
substituição. Ou ele morre, ou nós morremos.
Talvez em breve pararemos em um restaurante fast food e
pegaremos um hambúrguer. O que comeremos? Vaca morta, alface
morta, tomate morto, cevada morta, trigo morto. Tudo que você
comer nessa refeição antes estava vivo, mas agora está morto —
exceto alguns minerais como o sal, talvez haja bastante dele na
comida. Isso é o que você comerá. Tudo deu a sua vida por você. Ou
eles morrem, ou você morre. Ora, é claro que a vaca não se
voluntariou. Nem a alface. A ênfase não é natureza voluntária dessa
substituição, e sim a sua realidade. Ou nós morremos, ou algo vivo
morre para que vivamos. Jesus lançou mão dessa linguagem e disse:
“Se vocês não comerem a minha carne, vocês morrerão. Eu morro
para que vocês vivam”.
O tema principal do Novo Testamento é que Jesus morre uma
morte vicária. Ele não merecia morrer. Mas, quando Deus o enviou
para fazer a vontade do Pai, ir à cruz e morrer, ele tinha um
propósito: morrer nossa morte, para que não tenhamos de morrer,
para que tenhamos vida eterna. Isso é o que o texto nos diz: “Deus
amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito...
Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse
o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.16-17),
para que todo aquele que crê em Jesus tenha a vida eterna. Não
ingerimos fisicamente este Cristo. Cremos nele, confiamos nele e
descobrimos que sua vida se torna nossa, como a nossa morte se
torna dele. A vida de Cristo se torna nossa! E grande parte do Novo
Testamento se dedica a esclarecer este assunto.
 
4. A FÉ É O MEIO PELO QUAL CHEGAMOS A GOZAR DESSE AMOR E DESSA VIDA
 
Considere mais uma vez estes versículos:
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna...
Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado
[ou seja, o veredito já foi anunciado], porquanto não crê no
nome do unigênito Filho de Deus.
João 3.16, 18 — ênfase acrescentada
 
No capítulo 11, falarei mais extensamente sobre a fé. No
momento, basta recordar o que já vimos sobre este assunto: o que
vimos no último capítulo. Assim como o povo de Israel foi salvo
apenas por olhar, por confiar, por crer na serpente de bronze que Deus
provera, assim também nós cremos em Cristo e obtemos vida (ver
3.14-15). O que Jesus deseja que façamos não é impressioná-lo,
tentar ganhar a sua atenção ou tentar pagar por nossos pecados. O
que ele deseja que façamos é que creiamos nele.
 
CONCLUSÃO
 
Terminarei dessa maneira. Se tudo isso é verdade (e, com todo o
meu ser, creio que é), então a minha primeira resposta a tudo isso
deve ser gratidão, contrição diante de Deus, gratidão pelo que ele fez
e fé sincera. Mas, em nosso mundo, há vozes altissonantes
argumentando que gratidão diante de Jesus mostra que nosso
cristianismo é inferior, superficial, emocional e fraco. Por exemplo, o
bispo Sprong, um bispo episcopal que se aposentou recentemente,
escreveu:
 
O que a cruz significa? Como ela deve ser entendida? É
claro que o velho padrão de ver a cruz como o lugar em que
o preço da queda foi pago é totalmente inapropriado. Além
de estimular a culpa, justificando a necessidade de punição
divina e causando um sadomasoquismo incipiente que tem
persistido com tenacidade incansável através dos séculos, o
entendimento tradicional da cruz de Cristo se tornou
inoperante em todo nível. Como observei anteriormente,
uma deidade que resgata resulta em gratidão, e nunca em
humanidade expandida. Gratidão constante, que a história
da cruz parece estimular, cria somente fraqueza,
infantilidade e dependência.(1)
 
Essa é uma posição muito comum em nossos dias. Uma das
melhores respostas que já vi para essa posição foi dada por John
Piper, que disse:
 
“Sim”, bispo Sprong, “uma deidade que resgata resulta em
gratidão”. Isso é verdadeiro. Não podemos impedir que a
misericórdia de Deus faça o que ela faz. Ele nos resgatou de
nosso egoísmo e de seu destino horrível, o inferno. Nosso
coração não pode deixar de sentir o que sente — gratidão.
Você diz que isso estimula “fraqueza”. Não exatamente.
Isso estimula sermos fortes de uma maneira que faz Deus
parecer bom e nos torna felizes. Por exemplo, Jesus disse ao
apóstolo Paulo: “A minha graça te basta, porque o poder se
aperfeiçoa na fraqueza”. Paulo respondeu: “De boa vontade,
pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim
repouse o poder de Cristo... Porque, quando sou fraco,
então, é que sou forte” (2Co 12.9-10). Portanto, a
dependência de Paulo o tornou mais forte do que ele seria
de outra maneira. Ele era forte com o poder de Cristo.
Você diz que esta “gratidão constante” produz
“infantilidade”. Não realmente. As crianças não dizem
naturalmente “muito obrigado!” Elas vêm ao mundo crendo
que o mundo lhes deve tudo que querem. Você tem de extrair
“muito obrigado” do coração egoísta de uma criança. Sentir
gratidão e expressar isso é frequentemente uma marca de
maturidade notável. Temos um nome para pessoas que não
se sentem agradecidas pelo que recebem. Nós as chamamos
de ingratas. E todos sabem que elas estão agindo como
crianças egoístas. Elas são crianças. Não, bispo Sprong,
Deus quer que cresçamos e nos tornemos pessoas maduras,
prudentes, sábias e agradecidas. O oposto é infantilidade.
De fato, o oposto é totalmente esquisito. C. S. Lewis, antes
de ser um cristão, não gostava da mensagem bíblica de que
devemos agradecer e louvar a Deus em todo o tempo. Mas
tudo mudou. O que C. S. Lewis descobriu não foi que louvar
e agradecer torna as pessoas infantis, e sim que isso as
torna saudáveis e amáveis. Ele disse: “As mentes mais
humildes e, ao mesmo tempo, as mais equilibradas e
capazes louvam mais, enquanto as mentes esquisitas,
desajustadas e descontentes louvam menos”. Essa é a
minha experiência. Quando sou ingrato, sou egoísta e
imaturo. Quando transbordo de gratidão, sou saudável,
direcionado para os outros, tenho mentalidade de servo,
exalto a Cristo e fico cheio de alegria.(2)
 
Você percebe, terminamos em Cristo. Deus é o tipo de Deus que
nos busca, e, por isso, terminamos em Cristo. Inúmeros cristãos,
através dos séculos, têm testemunhado sobre a maneira como Deus
os buscou. Há um poema maravilhoso, escrito por Francis Thompson,
que fala de Deus como se ele fosse o cão do céu que desceu para caçá-
lo. Eis alguns de seus versos:
 
Fugi dele, de noite e de dia;
Fugi dele, no passar dos anos;
Fugi dele por caminhos de labirintos
De minha própria mente; em meio a lágrimas
Escondi-me dele, sob divertimento incessante.
Corri em busca de esperanças ilusórias
E atirei-me, precipitado,
Em trevas titânicas de temores abismais,
Daqueles Pés que me seguiam, seguiam.
Mas, com busca incansável
E ritmo inalterado,
Velocidade deliberada, urgência majestosa,
Eles batem repetidamente — e uma Voz ecoa
Mais insistente do que os Pés —
“Todas as coisas traem a ti, que me trais”.(3)
 
Este é o Deus que ama. Ele é como o cão de caça do céu. E ele é o
único que nos dá significado, quando somos restaurados ao Deus
vivo. Nosso significado não vem de sermos independentes. Isso pode
destruir-nos. Nosso significado não vem de sermos ricos. Isso pode
destruir-nos. Em certo sentido, isso é impiedade e, por fim, nos
condenará. Nosso significado vem de nutrirmos um correto e bem
direcionado relacionamento com o Deus vivo, de sermos peculiar e
abundantemente amados por ele. A alternativa é morte — nem
sempre tão dramática como outro poeta, Edwin Arlington Robinson,
descreve, mas certamente do mesmo tipo:
 
Quando Richard Cory vinha à cidade,
Nós, na calçada, olhávamos para ele;
Ele era um cavalheiro de alto a baixo,
Bem vestido e imperialmente esbelto.
 
Estava sempre finamente arrumado,
Era sempre cordial quando falava;
Corações palpitavam sempre que dizia:
“Bom dia”, e cintilava quando andava.
 
Ele era rico — sim, mais rico que um rei,
Admiravelmente versado em toda graça.
Enfim, achávamos que ele era tudo
E nos fazia querer estar no lugar dele.
 
Saíamos a trabalhar e esperávamos a luz,
Seguíamos sem comida e xingávamos o pão.
E Richard Cory, numa noite calma de verão,
Foi para casa e pôs uma bala em sua cabeça.(4)
 
Como disse Thompson: “Todas as coisas traem a ti, que me
trais”.
Ou, mais uma vez, o testemunho de Malcolm Muggeridge, um
jornalista excêntrico e brilhante, cujos interesses e comentários
incluíam tudo no mundo. Ele era criativo, blasfemo, vitorioso,
frustrado e teve uma carreira espetacular. Ele se converteu em idade
avançada e escreveu:
 
Suponho que posso me considerar, ou passar por, um
homem relativamente bem sucedido. Frequentemente, as
pessoas me olham com admiração nas ruas — isso é fama.
Posso facilmente ganhar, com justiça, o suficiente para me
qualificar a ser incluído nas camadas mais elevadas do
Imposto de Renda Britânico — isso é sucesso. Possuindo
dinheiro e um pouco de fama, mesmo os idosos, se eles se
importam, podem ter parte nas diversões do momento —
isso é prazer. Talvez, em algumas ocasiões, eu disse ou
escrevi algo que as pessoas aceitaram a ponto de convencer-
me de que aquilo representava um grande impacto em nosso
tempo — isso é realização. No entanto, eu lhe digo e rogo
que creia em mim: multiplique esses triunfos insignificantes
milhares de vezes, ajunte-os todos, e eles são nada —
menos do que nada, um impedimento positivo — quando
medidos em contraste com um gole da água da vida que
Cristo oferece aos espiritualmente sedentos, não importando
quem ou o que eles sejam. Pergunto a mim mesmo: o que a
vida possui, o que há nas obras do tempo, no passado, no
presente e no por vir, que possa ser equiparado com o
refrigério de beber dessa água?(5)
 
“Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito” (Jo 3.16).

(1) John Shelby Sprong, Jesus for the Non-Religious: Recovering the Divine at the Heart of
the Human (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2007), 277.
(2) John Piper, “Ganging Up on Gratitude”, Desiring God, November 21, 2007,
http://www.desiringgod. org/ResourceLibrary/TasteAndSee/ByDate/2007/2504_Ganging-
Up_on_Gratitude/.
(3) Francis Thompson, “The Hound of Heaven”, disponível online em:
http://bartelby.net/236/239.html.
(4) Edwin Arlington Robinson, “Richard Cory”, in Colleted Poems (New York: MacMillan,
1921). Disponível online em: www.bartelby.com/233.
(5) Malcolm Muggeridge, Seeing Through the Eye: Malcolm Muggeridge on Faith, ed. Cecil
Kuhne (San Francisco: Ignatius Press, 2005), 97.
10
O Deus
que Morre — e Vive Novamente
Q Quando você pensa em biografias de pessoas importantes, quer
artistas, atletas, cientistas ou políticos, nunca há qualquer sugestão
de que eles nasceram para morrer. Se a pessoa não está viva, há sem
dúvida alguma menção de sua morte, que pode ser heroica ou
comum, demorada ou rápida, acidental ou resultante de
envelhecimento — pode ser todos os tipos de coisas. Mas nunca
falamos de alguém nascer para morrer. Isso é verdade no que diz
respeito a Maomé. É verdade no que diz respeito a Gautama, o Buda.
Há histórias sobre a morte deles, mas nenhuma sugere que o
propósito do seu nascimento tenha sido morrer.
Essa é razão por que os quatro evangelhos (os primeiros quatro
livros do Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João) são tão
difíceis de serem classificados. Pessoas escreveram volumes eruditos
sobre o gênero de literatura em que eles se enquadram. É uma
tragédia? Bem, Jesus ressuscitou dos mortos, e isso não parece
trágico. No aspecto literário, os evangelhos são comédia? Eles são de
espécie diferente. São muito sérios para serem comédia: a
centralidade da cruz, o que foi realizado e a atrocidade bárbara da
cruz em meio ao seu esplendor — os evangelhos não podem ser
reduzidos a categorias de uma única palavra. Eles são biografias?
Isso é talvez o mais próximo que você pode chegar de uma
qualificação apropriada. Um evangelho do Novo Testamento é, de
algum modo, similar às biografias helenistas do século I, eu
suponho. Mas não há outras biografias helenistas do século I em que
o enredo diz que morrer é a razão pela qual o personagem central
veio. Os evangelhos do Novo Testamento parecem muito diferentes de
seus análogos helenísticos do século I.
Você já observou algum dos livros promovidos todo ano na época
da Páscoa? Quando a Páscoa se aproxima, os publicadores gostam de
destacar o mais recente erudito que escreveu algo sobre o evangelho
de Judas, ou evangelho de Tomé, ou algum outro evangelho não
incluído na Bíblia. Várias pessoas se unem para dizer: “Estes
possuem tanta autoridade como os evangelhos do Novo Testamento.
Devemos incorporá-los também à Bíblia. Originalmente, o
cristianismo era muito mais aberto; agora, ele se tornou restrito,
ortodoxo e fechado. Mas originalmente ele era muito, muito mais
aberto. Há muitos evangelhos”.
Essa história revisionista não pode realmente resistir a um
escrutínio minucioso. Os mais antigos desses supostos evangelhos
são da metade do século II, e sua data de redação se estende até 150
ou 200 anos depois. Nenhum deles está conectado com a primeira
geração de testemunhas oculares, como os evangelhos canônicos
estão (ou seja, os evangelhos de nossa Bíblia) — nenhum deles.
Podemos falar mais um pouco sobre isso.
Considere, por exemplo, o evangelho de Tomé. É um pequeno livro
de 114 afirmações atribuídas a Jesus e inclui dois minúsculos
fragmentos históricos. Isso é tudo. Em outras palavras, é
completamente diferente dos evangelhos do Novo Testamento, os
quais se direcionam, todos, à cruz e à ressurreição de Cristo. O
evangelho de Tomé deixa fora esses acontecimentos cruciais. De fato,
no século I as pessoas não falavam em quatro evangelhos: Mateus,
Marcos, Lucas e João. Elas falavam sobre uma única mensagem do
evangelho: o evangelho de Jesus Cristo, o evangelho de Jesus Cristo
segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas e segundo João. Há
um único evangelho com vários testemunhos que descrevem o que
são as boas novas sobre Jesus Cristo e contam a notícia espetacular
sobre o Salvador que entrou na História para salvar o seu povo dos
pecados deles. Somente mais tarde as pessoas começaram a se referir
aos evangelhos mais livremente como “o evangelho de Mateus” ou “o
evangelho de Marcos”. No entanto, é importante observar que todos
estes quatro livros (Mateus, Marcos, Lucas e João) dizem algo sobre o
precursor de Jesus (João Batista, aquele que anunciou Jesus), as
origens e o ministério de Jesus (os evangelhos falam extensivamente
sobre o que ele fez, o que ele disse, como ele pregava, alguns de seus
milagres, suas parábolas, suas afirmações, alguns de seus sermões),
e depois, no final, ele foi crucificado e ressuscitou. Toda a história se
move em direção à morte de Jesus. Isso é essencial ao enredo de cada
livro.
Uma parte importante desse enredo é a maneira como Jesus
começou a falar a respeito de como morreria. Em Mateus 16, quando
Pedro confessou que Jesus era realmente o Messias prometido, aquele
que viera da linhagem de Davi, aquele que eles aguardavam, Jesus
disse algo assim: “Sim, vocês sabem, tenho de ir a Jerusalém e sofrer
muitas coisas, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia”. Um dos
discípulos respondeu em palavras que tinham este sentido: “De modo
algum. Isso não pode ser. O personagem davídico prometido, o
Messias prometido, é tão poderoso e alguém como você é capaz de
fazer milagres. Como eles pararão você?” No entanto, Jesus continuou
insistindo: ele seria traído e morto. E isto é o âmago do plano de seu
Pai celestial. Jesus veio para morrer. Essa é a razão por que cada um
dos evangelhos retrata Jesus insistindo em que viera com este
propósito.
Entretanto, Jesus acrescentou alguns esclarecimentos estranhos:
“Não morrerei como um mártir. Ninguém pode tirar a minha vida de
mim. Eu mesmo a entrego. Tenho autoridade para entregá-la e tenho
poder de reavê-la” (ver Jo 10.17-18). Ele não se classificou como um
mártir, e sim como um sacrifício. Ele não era apenas a vítima de uma
conspiração perniciosa ou de um sórdido erro histórico. Ele era um
sacrifício voluntário.
É por isso que os evangelhos parecem tão estranhos para aqueles
que leem biografias. Não há ninguém semelhante a Jesus. Mesmo
quando estava sendo preso e levado para julgamento, seus discípulos
questionaram se deviam lançar mão da espada e ferir os agressores.
A resposta de Jesus foi: “Acaso, pensas que não posso rogar a meu
Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?
Como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim
deve suceder?” (ver Mt 26.50-54). Ele não veio para ser resgatado.
Jesus veio para ser morto. Ele veio para morrer.
Além disso, nas biografias comuns, uma vez que as pessoas
foram colocadas tranquilamente no sepulcro, elas permanecem lá.
Jesus, porém, veio para morrer e ressuscitar. Esses dois
acontecimentos, a morte e a ressurreição de Jesus, são tão centrais
para tudo que a Bíblia diz sobre ele e para todo o propósito de sua
vinda, que o apóstolo Paulo, escrevendo algumas décadas depois da
ressurreição de Jesus, anunciou aos seus leitores, em 1Coríntios 15,
que lhes falaria sobre as coisas mais importantes (15.3) — e,
primeiramente, ele disse: “Antes de tudo, vos entreguei o que também
recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as
Escrituras” (15.3). Em seguida, Paulo gastou o restante do capítulo
falando sobre a ressurreição de Cristo. Estes são assuntos de primeira
importância. São a base de tudo na fé, na conduta e no entendimento
cristão. Temos de compreender bem isso, pois, do contrário, não
temos cristianismo verdadeiro.
Há muitas maneiras de estudarmos a morte e a ressurreição de
Jesus. Poderíamos, por exemplo, considerar todos os relatos e alusões
à sua morte. O que eu farei é dirigir a atenção para um dos relatos da
morte de Jesus, que está em Mateus 27. Depois, mudarei para uma
passagem em João que fala sobre a ressurreição de Jesus. Muitas
outras coisas mais poderiam ser ditas a respeito destas passagens(1)
(e, evidentemente, há várias outras passagens), mas centralizarei
esse capítulo nestas duas passagens, a fim de que tenhamos um foco
para o que estamos dizendo.
 
AS IRONIAS DA CRUZ (MT 27.27-51)
 
O relato da morte de Jesus foi elaborado cuidadosamente por
Mateus. Ele foi um escritor hábil, inspirado por Deus. Dos escritores
do Novo Testamento, os mais dados à ironia foram Mateus e João. Em
um aspecto, Mateus estava apenas descrevendo o que aconteceu, mas
ele o relatou de tal modo que nos mostra as ironias da cruz, o
verdadeiro significado que estava por trás dos acontecimentos. Por
“ironia” quero dizer que as palavras comunicam, em seu contexto, o
oposto exato do que elas formalmente dizem. Isso é ironia. O que você
descobrirá é que, em cada um dos vários parágrafos, Mateus delineou
o que aconteceu quando Jesus morreu, descrevendo tudo com uma tão
agradável inclinação para a ironia, que começamos a perceber o que
Deus estava realmente fazendo.
Em vez de transcrever todo o relato, apresentaremos o texto em
seções à medida que prosseguimos.
 
1. O HOMEM QUE É ZOMBADO COMO REI É O REI (MT 27.27-31)
 
Logo a seguir, os soldados do governador, levando Jesus
para o pretório, reuniram em torno dele toda a coorte.
Despojando-o das vestes, cobriram-no com um manto
escarlate;
tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha na cabeça e,
na mão direita, um caniço; e, ajoelhando-se diante dele, o
escarneciam, dizendo: Salve, rei dos judeus! E, cuspindo
nele, tomaram o caniço e davam-lhe com ele na cabeça.
Depois de o terem escarnecido, despiram-lhe o manto e o
vestiram com as suas próprias vestes. Em seguida, o
levaram para ser crucificado.
Mateus 27.27-31
 
Jesus já havia sido severamente espancado como parte de seu
interrogatório. Isso era um procedimento padrão. E, depois de
proferida a sentença de crucificação, ele foi, de novo, espancado
severamente. Isso também era um procedimento padrão. Uma vez que
alguém era condenado à crucificação, ele era espancado de novo
antes de ser levado e crucificado. Jesus sofreu tudo isso.
Mas o que aconteceu neste relato não foi um procedimento
padrão. Foi diversão de aquartelamento. Os soldados puseram em
Jesus um tipo de veste como se ele fosse um imperador. Em seguida,
teceram em coroa uma das videiras espinhosas que eles tinham no
Oriente Médio. Colocam-na na cabeça de Jesus. Puseram um caniço
em suas mãos, como se fosse um cetro, fingindo que ela era um
grande monarca. “Salve, rei dos judeus!”, eles diziam, prostrando-se,
cuspindo em sua face, rindo. Divertiam-se. Tomaram o caniço que
devia ser um símbolo de poder e bateram na cabeça de Jesus repetidas
vezes. Mais risadas. Diversão de aquartelamento
No entanto, cada vez que eles disseram: “Salve, rei dos judeus!”,
queriam dizer o oposto. No contexto, as palavras transmitem
realmente apenas zombaria e desprezo. Os soldados achavam que seu
divertimento era profundamente irônico e muito engraçado. Contudo,
Mateus sabia, Deus sabe e os leitores sabem que Jesus é o rei. O
homem que é zombado como rei é o Rei (Mt 27.27-31). Essa é a
primeira ironia profunda dessa passagem.
Afinal de contas, como começa o evangelho de Mateus? “Livro da
genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (1.1 —
ênfase acrescentada). Jesus é da linhagem de Davi. Ele tem o direito
legal ao trono. E em todo o evangelho de Mateus há alusão ao fato de
que Jesus é rei. Jesus contou algumas parábolas em que — para os
que são capazes de perceber — o rei na parábola é ele mesmo. De
fato, como parte dos procedimentos do julgamento de Jesus, o
governador romano, Pilatos, lhe perguntou: “És tu o rei dos judeus?”
Na perspectiva de Pilatos, se Jesus respondesse “Sim”, ele poderia ser
condenado: suas palavras seriam uma confissão de traição. Jesus se
colocaria contra a família de Herodes (que supriu os monarcas
subalternos da região) ou se coloria contra César, em Roma. Jesus
respondeu com um tipo de afirmação: “É como você falou. Você disse
isto”. Mas ele apenas queria afirmar enfaticamente: “Sim, eu sou o
rei prometido”; porque o que Jesus pretendia dizer com a palavra “rei”
não era exatamente o que Pilatos tinha em mente. Apesar disso,
Jesus era o rei dos judeus.
Na verdade, quando lemos todo o Novo Testamento, Jesus é não
somente o rei dos judeus, mas também o seu e o meu rei. Como
Mateus termina o seu evangelho? Jesus, ressuscitado dentre os
mortos, diz: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt
28.18). Com franqueza, ele afirma ser o rei do universo. Ele é
certamente o rei desses soldados que riram de seu suposto poder
como rei. Mateus quer que vejamos isto: o homem zombado como rei é
rei.
No entanto, que tipo de reino é esse? Que tipo de reino é esse
cujo rei deu a sua vida, não porque foi vencido por um competidor, e
sim como um ato voluntário de autossacrifício? A maioria dos reis
quer sair e lutar. Jesus recusou fazer isso. De fato, em uma passagem
notável, Jesus falou sobre a natureza de seu reino. Já me referi a ela
antes. Em Mateus 20, a mãe de Tiago e João, juntamente com eles
(dois discípulos de Jesus), se aproxima de Jesus. E o que eles desejam
é que um se assente à direita e outro à esquerda no reino de Jesus.
Eles querem poder político. Mas Jesus lhes diz:
 
Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os
maiorais exercem autoridade sobre eles.
Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se
grande entre vós, será esse o que vos sirva;
e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo;
tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
Mateus 20.25-28
 
Jesus não estava recomendando que seus seguidores adotem uma
postura de capacho de todos, útil apenas para as pessoas limparem
os pés (esse não é o ensino), nem que eles devem negar qualquer tipo
de autoridade, quando são colocados numa posição de autoridade
(esse não é o ensino). O problema é que neste mundo, quando
ganhamos autoridade, começando a assenhorear-nos das pessoas.
Começamos a pensar que isso é nosso dever. Mas Jesus é o tipo de
Deus — o Deus presente — que ama porque ele é como descrito em
Mateus 20.25-28. Seu alvo é servir. Ele não veio para ser bajulado,
mas para servir e servir, finalmente, por dar a sua vida como resgate
por muitos. Essa é a razão por que ele veio. Nos três primeiros
séculos da história da igreja, os cristãos comuns entendiam isso
muito bem, pois retratavam frequentemente a Jesus, com sua
agradável ironia, como o Rei que reina da cruz.
Esse é o tipo de reino em que Jesus reina, pois ele espera que
seus seguidores exerçam autoridade dessa mesma maneira.
Esta é a primeira ironia: o homem que é zombado como rei é rei.
 
2. O HOMEM QUE ESTÁ TOTALMENTE SEM PODER É PODEROSO
(MT 27.32-40)
 
Ao saírem, encontraram um cireneu, chamado Simão, a
quem obrigaram a carregar-lhe a cruz.
E, chegando a um lugar chamado Gólgota, que significa
Lugar da Caveira,
deram-lhe a beber vinho com fel; mas ele, provando-o, não o
quis beber.
Depois de o crucificarem, repartiram entre si as suas vestes,
tirando a sorte.
E, assentados ali, o guardavam.
Por cima da sua cabeça puseram escrita a sua acusação:
ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS.
E foram crucificados com ele dois ladrões, um à sua direita,
e outro à sua esquerda.
Os que iam passando blasfemavam dele, meneando a
cabeça e dizendo:
Ó tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas!
Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus, e desce da cruz!
Mateus 27.32-40
 
Eis um quadro horrível da mais desprezível fraqueza. Quando a
sentença era proferida, o condenado à crucificação era espancado
mais uma vez e tinha de levar uma haste da cruz (a horizontal), em
seu próprio ombro, para o lugar de execução, onde a outra haste
estava fixa no solo. O condenado era despido e pregado ou amarrado
à haste que ele levara; esta era, então, erguida e fixada na haste
vertical. O condenado ficava lá não somente em dores, mas também
em vergonha. Quando homens e mulheres eram crucificados, eles
eram crucificados nus.
Em tempos anteriores, houve ocasiões em que os soldados
deixaram alguém pendurado numa cruz e os amigos da vítima
conseguiram tirá-la de lá. Sabe-se que algumas vítimas
sobreviveram. Nesta época da história romana, isso era impossível. A
política imperial determinava que um grupo de quatro os soldados
permanecessem no lugar de crucificação, para guardar o corpo, até
que a vítima estivesse inequivocamente morta. A pessoa crucificada
puxava o corpo com os braços e o empurrava com as pernas para
abrir a cavidade do peito, para que pudesse respirar. Os espasmos
musculares começavam, de modo que a pessoa entrava em colapso e
não conseguia respirar. Por isso, mais uma vez, ela puxava o corpo
com os braços e o empurrava com as pernas para que pudesse
respirar; os espasmos começavam novamente, e a pessoa entrava em
colapso. Isso prosseguiria por horas, às vezes, dias; e os soldados
permaneceriam vigiando. Se, por alguma razão, os soldados
quisessem acabar mais rápido com a vida da pessoa crucificada (por
exemplo, por causa de um dia especial de festa que estava para
começar), o que eles fariam era quebrar a canela do crucificado.
Então, a pessoa não poderia mais erguer a si mesma com as pernas e
morreria sufocada em minutos.
Nessa altura, Jesus estava tão fraco quanto podemos imaginar.
Não havia escape. Não havia esperança. Estava tão fraco por causa
dos repetidos espancamentos, que não tinha forças suficientes para
carregar a haste em seus ombros e levá-la ao lugar de execução.
Mesmo sendo um carpinteiro por profissão, Jesus estava tão fraco que
não podia levantar um pedaço de madeira; por isso, foi necessário
intimar outra pessoa para levá-la por ele, um homem identificado
como Simão, da cidade de Cirene.
Após a crucificação, começou a zombaria: “Ó tu que destróis o
santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, se és Filho
de Deus, e desce da cruz!” (Mt 27.40). De onde veio esse insulto?
Parece estranho aos nossos ouvidos. Mas ele também apareceu no
julgamento — não o julgamento diante de Pilatos, e sim o
julgamento diante dos sumo sacerdote descrito no capítulo anterior
(Mt 26). Alguns tentaram fazer disso uma parte da acusação contra
Jesus. A razão por que poderia, em teoria, ter sido bastante perigoso
era esta: no que concerne à religião, o Império Romano era um
domínio altamente variado; por isso, uma das coisas que os romanos
fizeram para manter a paz entre religiões competidoras foi tornar um
crime capital a profanação de um templo. Se uma pessoa profanasse
um templo, qualquer templo, sob a lei romana, ela morreria. Então,
se alguém ouviu Jesus dizer: “Destruí este templo, e em três dias o
reedificarei”, talvez a primeira parte dessa afirmação poderia ser
desenvolvida em conspiração para um crime capital, ou seja, destruir
um templo. Pelo fato de que as testemunhas não puderam comprovar
seus fatos, essa acusação deu em nada. Por fim, Jesus foi acusado de
traição, de colocar-se a si mesmo como rei em oposição a César.
Aparentemente, alguns que ouviram essa acusação no julgamento
acharam-na divertida. Eles olharam para Jesus, em sua mais
desprezível fraqueza, e disseram, em essência: “Então, grande
tagarela — você é tão forte, não é? Você destruirá o templo e o
edificará em três dias — veja a sua própria fraqueza agora, homem
forte!”
Se você já ajudou na construção de uma casa em organizações
beneficentes, sabe que, com um bom alicerce lançado, bastante
planejamento, um bom engenheiro, certa quantidade de material pré-
fabricado e 40 voluntários bem fortes, você pode construir um casa
em um dia. Mas, no mundo antigo, você não poderia edificar um
templo em um dia. De fato, você não poderia edificar uma das
catedrais da Europa durante uma vida inteira. Nenhum dos
arquitetos originais das grandes catedrais da Europa jamais viu sua
obra concluída. Era necessário mais do que a duração de uma vida
para construir uma delas. Nos dias de Jesus, apenas o
embelezamento do projeto existente do templo de Jerusalém levou 46
anos. Além disso, pela lei judaica, um trabalhador não tinha
permissão de martelar uma pedra numa distância em que seria
ouvido do templo. Todas aquelas pedras tinham de ser medidas,
cortadas, trazidas e colocadas no lugar sem equipamentos
mecânicos. Não admiramos que o templo tenha demorado tanto para
ser construído. Contudo, Jesus disse: “Destruí este santuário, e em
três dias o reconstruirei” (Jo 2.19). Quando os escarnecedores
lançaram as palavras de Jesus de volta em sua face, pensaram estar
usando uma ironia para serem engraçados. Quando disseram: “Tu
que destróis o santuário e em três dias o reedificas”, eles pretendiam
dizer exatamente o oposto: ele não pode fazer isso. Ele está
terrivelmente fraco, morrendo, condenado numa cruz.
No entanto, Mateus sabia, Deus sabe e os leitores sabem que, por
meio desta morte e da ressurreição que aconteceria em breve, Jesus
estava destruindo o templo e reconstruindo-o. Quando, em seu
ministério, Jesus usou estas palavras: “Destruí este santuário, e em
três dias o reconstruirei” (Jo 2.19), seus discípulos não tiveram a
menor ideia do que ele estava dizendo. Talvez eles sussurraram:
“Jesus está falando novamente algo profundo, bastante misterioso”.
Mas João comentou: “Quando, pois, Jesus ressuscitou dentre os
mortos, lembraram-se os seus discípulos de que ele dissera isto; e
creram na Escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2.22).
A verdade é que no Antigo Testamento o templo era o grande
lugar de encontro entre o Deus santo e os seres humanos, como já
vimos. Era o lugar de sacrifícios. Agora, Jesus, se referindo ao seu
corpo, disse: “Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”.
Jesus queria dizer que pela destruição de sua vida e sua ressurreição,
ele se tornaria o grande lugar de encontro entre Deus e os seres
humanos. Por ressuscitar dos mortos, após a sua morte, Jesus se
tornou o grande templo, com todo o poder que é exigido para trazer
alguém de volta dentre os mortos. O grande lugar de encontro entre
Deus e os seres humanos não é mais um edifício em Jerusalém, com
seu sistema de sacrifícios. É o próprio Jesus.
Assim, enquanto os escarnecedores pensavam que sua zombaria
expressava ironia divertida, não podemos deixar de ver uma ironia
mais profunda, pois o homem que estava totalmente sem poder era,
de fato, poderoso. Ele era o templo do Deus vivo.
 
3. O HOMEM QUE N O PODE SALVAR A SI MESMO SALVA OS OUTROS
(MT 27.41-42)
 
A zombaria continuou: “De igual modo, os principais sacerdotes,
com os escribas e anciãos, escarnecendo, diziam: Salvou os outros, a
si mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel! Desça da cruz, e
creremos nele” (Mt 27.41-42).
O que pretendemos dizer hoje quando usamos o verbo salvar? O
que isso significa nas ruas de Mineápolis, Chicago ou Londres?
Depende de quem a está usando. Se você é um diretor de um banco,
salvar é poupar — algo que devemos fazer (se o mercado não destruir
todo o dinheiro) para proteger os investimentos e preparar-nos para a
aposentadoria. Se você é versado em esportes, salvar é o que o goleiro
faz para impedir um gol, quer no futebol, quer no hóquei. Se você é
perito em informática, salvar é o que você deve fazer para não perder
muitos dados, se o seu disco rígido estragar. Portanto, usamos o
verbo “salvar” em uma diversidade de contextos diferentes, não é
mesmo? O que Mateus estava querendo dizer?
Temos um vislumbre da resposta no capítulo 7. Quando José foi
informado de que Maria estava grávida, Deus lhe mandou que desse
ao menino o nome de “Jesus [Jeová salva], porque ele salvará o seu
povo dos pecados deles” (Mt 1.21 — ênfase acrescentada). “Salvar”,
no evangelho de Mateus, significa salvar pessoas de seus pecados:
das consequências do pecado, dos seus efeitos eternos e do seu poder
nesta vida. Foi por isso que Jesus veio. Mesmo quando Jesus “salvou”
pessoas curando-as, isso era uma indicação de sua determinação de
salvar seu povo dos pecados deles, incluindo os efeitos temporais do
pecado nesta vida (ver Mt 8;14-17).
A essa altura, os zombadores ecoavam: “Salvou os outros” — ou
seja, ele os ajudou, ele os curou, foi um salvador tão bom. “A si
mesmo não pode salvar-se!” Em outras palavras: “Olhem para ele.
Está completamente preso, completamente impedido. Não há meios de
salvar-se a si mesmo, e isso mostra que ele não é um salvador, de
modo algum”. Então, quando eles disseram: “Salvou os outros”, a
intenção deles era, novamente, transmitir uma ironia vulgar: “Ele
não é um salvador que deve ser respeitado, de maneira alguma”.
No entanto, Mateus sabia, Deus sabe, e os leitores sabem que é
por permanecer na cruz que Jesus salva aos outros. Estritamente
falando, ele não podia salvar a si mesmo e salvar aos outros. Se ele
salvasse a si mesmo, não poderia salvar aos outros. Quando eles
disseram: “A si mesmo não pode salvar-se”, estavam afirmando que
Jesus estava tão preso à cruz, tão cravado na cruz, que fisicamente
ele não podia descer. Todavia, Mateus sabia que Jesus podia descer.
Ainda podia chamar sua legião de anjos. Mas não podia salvar a si
mesmo, se tinha de salvar os outros, porque o propósito de ele estar
pendurado naquela cruz era levar meu pecado em seu corpo, no
madeiro. Se ele salvasse a si mesmo, eu seria condenado. É somente
por não salvar a si mesmo que Jesus me salva.
Então, mais uma vez, há uma ironia mais profunda escondida
nas entrelinhas do deboche dos zombadores. Diferente do que
pensavam, suas palavras eram verdadeiras. Ele salvou a outros; ele
não pode salvar-se.
Suspeito que parte da razão por que temos dificuldade para
aceitar essa verdade é o fato de que vivemos numa época da cultura
ocidental em que muito da conduta é compelida pela força da lei ou
apenas pela força. Em outras palavras, não temos muito lugar para
um tipo de imperativo moral interior.
Você assistiu ao filme Titanic, quando ele foi lançado? Enquanto
o grande navio afundava, pessoas começaram a brigar pelos poucos
botes salva-vidas. Havia muitos homens ricos no navio. Eles
começaram a brigar e a empurrar para o lado as mulheres e as
crianças, para que pudessem reservar seus próprios lugares. Os
marinheiros pegaram revolveres e começaram a atirar para o alto,
gritando: “Mulheres e crianças — os botes são para as mulheres e as
crianças”. Na história real, isso é mentira. Vários homens ricos
estavam naquele navio. John Jacob Astor, à época o homem mais rico
do mundo, o Bill Gates de 1912, estava lá. Ele colocou sua esposa no
bote e, quando outros lhe disseram: “Entre você também, senhor”, ele
recusou, dizendo: “O bote é para mulheres e crianças”. Ele ficou e
morreu afogado. Benjamin Guggenheim estava lá. Ele foi separado de
sua mulher e gritou para alguém: “Diga à minha mulher que
Guggenheim conhece o seu dever” — permaneceu no navio e morreu
no naufrágio. A mulher foi salva. Apesar do fato de que muitas
pessoas estavam trancadas na terceira classe, não há um único
relato de homens ricos, no convés, brigando para salvar a si mesmos,
arriscando a vida de mulheres e crianças.
Isso não é impressionante? Quando Fareed Zakaria comentou
sobre isso em um artigo no New York Times,(2) fez a perguntou óbvia:
por que o produtor e o diretor do filme distorceram a história e
contaram o que não era verdadeiro? Por que eles não contaram a
verdade sobre o que aconteceu naquele dia? Esta é a resposta de
Zakaria: se eles tivessem contado a verdade, ninguém teria
acreditado neles. Naquele tempo ainda existia tanto de uma cultura
de cavalheirismo nutrida frequentemente pela autorrenúncia cristã
em benefício dos outros, que um imperativo moral interior compelia
muitos homens a fazer, a partir de recursos do seu interior,
autossacrifício pelos outros.
Foi isto que motivou supremamente a Jesus: ele veio para fazer a
vontade do Pai; e a vontade de seu Pai era que ele se sacrificasse em
favor de todos que, por graça, creriam. Em um grau menor, é dessa
maneira que a motivação cristã tem de operar em nós, quando nos
tornamos cristãos, seguidores de Jesus. Nós somos mudados pelo
novo nascimento; somos fortalecidos pelo Espírito Santo que vive e
opera em nós. Há um imperativo moral interior, uma transformação
do coração — e, sem dúvida, um reflexo pálido de Jesus —, na mesma
direção, querendo sacrificar-se por amor aos outros.
 
4. O homem que clama em desespero confia em Deus (Mt 27.43-
51)
 
As pessoas continuaram escarnecendo:
 
Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se, de fato, lhe
quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus.
E os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que
haviam sido crucificados com ele.
Desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre
toda a terra.
Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo:
Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?
E alguns dos que ali estavam, ouvindo isto, diziam: Ele
chama por Elias.
E, logo, um deles correu a buscar uma esponja e, tendo-a
embebido de vinagre e colocado na ponta de um caniço,
deu-lhe a beber.
Os outros, porém, diziam: Deixa, vejamos se Elias vem
salvá-lo.
E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o
espírito.
Mateus 27.43-50
 
Jesus estava desistindo nesta altura, apanhado na rede de
circunstâncias infelizes, mergulhado em desespero? Essa é a
mensagem que devemos aprender? “Pressionem-me bastante, e eu
também desistirei”? O clamor de Jesus é muito mais profundo do que
isso. Por causa da morte de Jesus, por causa da sua disposição de
permanecer na cruz, lemos no versículo que segue essa passagem:
“Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a
baixo” (Mt 27.51) — o véu do templo que separava a presença de
Deus do resto do povo. Em consequência, o Santo dos Santos, onde
somente o sumo sacerdote podia entrar, uma vez por ano, foi exposto.
O véu se rasgou para indicar que você e eu — seres humanos comuns
que não têm pretensões sacerdotais — podemos realmente entrar na
presença de Deus, porque o sacrifício de Jesus pagou realmente todo a
dívida que o sangue de touros e de bodes jamais puderam pagar,
através dos sacrifícios que vimos em capítulos anteriores. Jesus
morreu, e o seu clamor: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?”, foi proferido com o mais desolado, sombrio e
ignominioso desespero, não porque ele não sabia que estava fazendo
a vontade do Pai, e sim precisamente porque ele sabia que estava
fazendo a vontade do Pai. Ele confiava em Deus. E a vontade de Deus
era que ele levasse meu pecado em seu corpo, na cruz, absorvendo a
maldição, pagando o culpa, quitando a dívida e rasgando o véu, para
que eu pudesse entrar no Santo dos Santos, na presença do Deus
vivo.
 
DEUS PODE MORRER?
 
Intitulei parcialmente esse capítulo de “O Deus que Morre”. De
algum modo, esse título é sutil e potencialmente enganador. Em sua
maior parte, o Novo Testamento não fala que Deus morre. Fala de
Jesus como Deus-homem e fala que Jesus morre. Não há, de modo
algum, qualquer indicação de que o Pai morre. É claro que não; ele
não é um ser humano que poderia morrer. Somente o Filho podia
morrer; somente o “Verbo se fez carne”. Jesus podia morrer porque ele
era um ser humano, um homem. Mas, se pessoas também
confessaram que ele é Deus e o adoraram como Deus (ver, por
exemplo, Jo 20.28), há um sentido em que podemos falar que Deus
morreu?
Em sua maior parte, a Bíblia evita essa escolha de palavras.
Todavia, achamos passagens que chegam perto disso. Quando o
apóstolo Paulo fez um discurso para alguns dos presbíteros da igreja
de Éfeso, ele disse: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual
o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de
Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28 —
ênfase acrescentada). Isso não é admirável? “Deus... com o seu
próprio sangue”? Ora, é claro que, se insistíssemos com Paulo, ele
esclareceria sua afirmação. Talvez diria: “É claro que a Pessoa que
tenho em mente não é Deus, o Pai, e sim o Filho de Deus, Jesus, que é
Deus. E, visto que ele é Deus, ele deu a sua vida e derramou o seu
sangue, é apropriado dizer que Deus derramou o seu sangue”. Se
você quer desenvolver a afirmação, isso é o que Paulo quis dizer.
No entanto, não permita que o choque da passagem o paralise.
Essa passagem descreve a ação de Deus em Cristo Jesus, o homem
que também é Deus. Não fala da morte de um indivíduo humano e
nada mais. É um indivíduo humano que é também o Deus vivo que
ficou pendurado na cruz, não porque foi obrigado pela circunstância
a fazer isso, e sim porque ele mesmo estava cumprindo toda a linha
do sistema de sacrifícios do Antigo Testamento, o sistema do templo
— toda a linha desde a Queda e a promessa do descendente da
mulher que esmagaria a cabeça da serpente, por meio de sua morte.
Em outra carta, Paulo escreveu: “Deus prova o seu próprio amor para
conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores” (Rm 5.8, ênfase acrescentada). Como diz o velho hino:
 
Levando o pecado e rudemente zombado,
Ele permaneceu em meu lugar condenado
Com seu sangue, o meu perdão ele selou!
Aleluia! que grande Salvador!
Phillip P. Bliss
 
É apropriado falarmos sobre o Deus que morre.
No fim da Primeira Guerra Mundial, a mais sangrenta e mais
estúpida das guerras, vários poetas ingleses (Wilfred Owen, Rupert
Brook, um ou dois outros) escreveram algumas poesias bem
comoventes sobre a terrível selvageria do conflito. Um dos poetas
menos importantes foi Edward Shillito, cujo poema “Jesus das
Cicatrizes” merece ampla circulação. O poema termina dizendo:
 
Outros deuses eram fortes, mas tu eras fraco;
Eles cavalgaram, mas cambaleaste até teu trono;
Somente Deus pode falar com as nossas feridas,
E nenhum deus possui feridas, além de ti.(3)
 
Portanto, quando enfrentamos as desolações da incerteza,
quando há sofrimento e agonia em nossa vida ou no mundo; quando
nos perguntamos o que Deus está fazendo, e não temos respostas, e
relemos o livro de Jó (aquela parte da literatura de sabedoria que
consideramos no capítulo 6), e ouvimos Deus falar por meio de
quatro capítulos de perguntas retóricas: “Aquiete-se, Jó, há muitas
coisas que você não entende de maneira alguma”, podemos agora
acrescentar algo mais que realmente entendemos:
 
Somente Deus pode falar com as nossas feridas,
E nenhum deus possui feridas, além de ti.
 
Podemos crer num Deus que não somente é soberano, mas
também sofre por nós. Às vezes, quando não há nenhuma resposta
para nossa culpa, nossos temores, incertezas e angústia, há um
lugar inabalável em que podemos nos manter firmes — o solo em
frente à cruz.
 
A RESSURREIÇÃO
 
Embora a cruz seja muito importante, ela não é o fim da
história. Todos os escritores do Novo Testamento focalizam,
igualmente, a ressurreição de nosso Senhor Jesus. Os relatos da
ressurreição são ricos e diversos. Não há meios de reduzi-los a mera
alucinação. Jesus apareceu a muitas pessoas, muitas vezes, em um
período de aproximadamente 40 dias. Ele apareceu a poucos e a
muitos. Apareceu a 500 pessoas de uma vez. Apareceu aos apóstolos
mais do que uma vez; apareceu em cômodos fechados. Apareceu à
beira-mar e comeu peixe que assara para eles. Os testemunhos se
multiplicaram. Apareceu quando eles não esperavam e quando
esperavam. Jesus não podia ser categorizado, rejeitado ou
domesticado. As aparições depois da ressurreição foram frequentes,
diversas e confirmadas por muitas testemunhas. O que você faz com
elas?
Se você pensa que os primeiros cristãos inventaram isso ou
foram, de algum modo, enganados ou vítimas de algum tipo de
psicologia de massas, é difícil explicar por que estavam dispostos a
morrer por sua fé. Se a ressurreição é um conto de fadas como “João e
Maria”, minha pergunta é: “Quantos já se ofereceram para morrer
por João e Maria?” Mas os primeiros cristãos estavam dispostos a
morrer por sua convicção de que Jesus ressuscitara dentre os mortos.
Tinham visto a Jesus, tocado nele, apalpado-o, comido com ele,
depois que ressuscitara dos mortos — e foram transformados por ele.
De fato, Jesus lhes prometeu a ressurreição de seus corpos um dia.
Eles creram que ele era Senhor.
 
POR QUE DUVIDAR DA RESSURREI O DE JESUS? (JO O 20.24-28)
 
Uma das mais comoventes cenas descrevem o que aconteceu no
segundo domingo, o domingo depois do domingo em que Jesus
ressuscitou dos mortos. No primeiro domingo, o domingo da
ressurreição, Jesus apareceu a algumas mulheres, a Pedro e a João, a
dois discípulos que caminhavam para a pequena cidade de Emaús e a
dez dos apóstolos. Sobre o segundo domingo, lemos estas palavras:
 
Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com
eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe, então, os outros discípulos: Vimos o Senhor.
Mas ele respondeu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos
cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu
lado, de modo algum acreditarei.
João 20.24-25
 
Esse é o tipo de dúvida que resulta de mágoa. Tomé não queria
ser enganado. Ele tinha crido que Jesus era o Messias, mas Jesus
morrera. Isso não fazia sentido. Tomé estava sozinho e triste. Ainda
era um judeu monoteísta e piedoso, mas fora enganado (ele pensava)
uma vez e agora não queria iludir a si mesmo crendo que, depois de
tudo, Jesus estava de volta à vida. Teria de ver por si mesmo. Não
teria uma fé fácil, que crê apenas no relato de outra pessoa. Não faria
isso. Em outras palavras, Tomé queria distinguir entre a fé e a
credulidade e, por essa razão, apresentou o teste mais extremo que ele
podia imaginar. Queria estar certo de que o corpo depositado no
sepulcro era o mesmo que supostamente saíra ou tinha algum tipo de
conexão orgânica e genuína com aquele corpo. Por isso, ele
especificou: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali
não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum
acreditarei” (20.25).
Sou presidente do ministério Gospel Coalition. Nosso diretor-
executivo é um homem chamado Ben Peays. Ele é um gêmeo idêntico.
Quando digo “gêmeo idêntico”, quero dizer “gêmeo idêntico”. Eles se
parecem nos traços gerais, mas têm as mesmas pequenas marcas,
sorrisos e coisas semelhantes — são imagens exatas um do outro.
Tenho certeza de que, se você os conhecesse muito bem, poderia
distingui-los. Eu só consigo fazer isso quando eles estão lado a lado.
No ano passado, quando tivemos nossa reunião do conselho, é claro
que Bem estava lá, mas não disse a ninguém do conselho que seu
irmão viria também. Em determinado momento da reunião do
conselho, eu disse: “Irmãos, devo contar-lhes que nosso diretor-
executivo tem trabalhado arduamente em tantas coisas, que
decidimos cloná-lo e ter dois dele”. Em seguida, eu apontei para o seu
irmão gêmeo.
Talvez Jesus tivesse um irmão gêmeo, que fingiu ter saído do
sepulcro. Talvez ele fosse o novo Jesus. Mas, onde estão as feridas,
não somente as feridas dos pregos, mas também o corte que
penetrara por baixo da sua cavidade torácica até ao pericárdio e
perfurara a carne, de modo a sair sangue e água? Onde estão as
feridas? “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não
puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum
acreditarei.” Esse era o teste.
 
Passados oito dias, estavam outra vez ali reunidos os seus
discípulos, e Tomé, com eles. Estando as portas trancadas,
veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco!
E logo disse a Tomé: Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos;
chega também a mão e põe-na no meu lado; não sejas
incrédulo, mas crente.
Respondeu-lhe Tomé: Senhor meu e Deus meu!
João 20.26-28
 
Numa primeira leitura da reação de Tomé, alguém poderia
questionar por que ele disse palavras tão significativas. Por que ele
não disse apenas: “O Senhor está vivo!”, ou: “Eu estava errado!”, ou
algo mais modesto? Por que ele inferiu tanto (“Senhor meu e Deus
meu!”) do fato de Jesus estar vivo? Afinal de contas, alguns dias
antes, Lázaro havia sido ressuscitado dos mortos, e ninguém dissera
a Lázaro, depois que ele ressuscitara: “Senhor meu e Deus meu!”
Então, por que Tomé disse isso para Jesus?
O que você tem de fazer é colocar-se no relato. Coloque-se no
lugar de Tomé — tanto quanto possível. Você tem uma semana
inteira entre os primeiros relatos da ressurreição e a segunda
aparição. Os outros apóstolos estavam dizendo: “Vimos realmente a
Jesus. Pedro o viu pessoalmente. Pedro e João viram o sepulcro vazio.
Os dois discípulos que iam para Emaús o viram. Juntos, nós o vimos
— dez de nós, de uma vez. E há os relatos das mulheres. Todos nós o
vimos”. Assim, durante toda a semana, Tomé estava dizendo:
 
Não pode ser. Não posso acreditar. Sei que o sepulcro está
vazio, mas, quem sabe, um ladrão de sepulcros pode ter ido
lá. Talvez examinamos o sepulcro errado. Ainda era escuro
quando o colocaram lá. Mas, supondo que ele esteja vivo, o
que isso significa? Oh! não, não pode ser! Não faz sentido.
Mas Jesus fez tantas coisas estranhas em sua vida. Quero
dizer, ele disse na noite em que se dirigia para a cruz: “Há
tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido?
Quem me vê a mim vê o Pai” (ver Jo 14.9). E houve aquela
estranha afirmação de Jesus, quando ele disse: “Antes que
Abraão existisse, EU SOU” (Jo 8.58). Isso é mais do que uma
péssima medição do tempo. Abraão está morto há mais de
mil anos. Por que ele não disse: “Antes que Abraão
existisse, eu era”? Isso afirmaria algum tipo de
preexistência, talvez — muito difícil de acreditar. Mas ainda
seria apenas preexistência. “Antes que Abraão existisse, EU
SOU”? Isso está falando do nome do próprio Deus!
 
O que você faz com passagens como essa? Durante todos os anos
do ministério de Jesus, quando ele disse coisas que eram difíceis de
entender, sem dúvida seus discípulos coçaram a cabeça, sorriram
piedosamente e pensaram: “Mais mistério. Talvez um dia entendamos
isso”. Eles podiam lembrar que Jesus insistira no fato de que era
determinação do Pai de que todos honrassem o Filho como honravam
o Pai (ver Jo 5.23). Você não diz isso sobre um mero ser humano.
Talvez durante aquela semana antes do segundo domingo, Tomé
tenha pensado também em algumas passagens do Antigo
Testamento, à luz das afirmações de que Jesus ressuscitara dos
mortos. Além disso, no que concerne à história, os outros evangelhos
narram ocasiões em que Tomé teve oportunidade de observar a Jesus.
Mencionarei apenas uma.
 
SOMENTE A PARTE OFENDIDA PODE PERDOAR
 
Há um relato espetacular em dois outros evangelhos (não em
João) que descreve uma ocasião em que Jesus pregava numa casa
lotada — não havia cadeiras, e as pessoas estavam apinhadas. Por
esse tempo, Jesus tinha reputação de pregador e mestre, mas também
de curador. Quatro homens levaram um amigo paralítico. Ele não
podia andar, por isso o levaram em um tipo de maca. Os quatro
homens tentaram entrar na casa em que Jesus estava pregando, mas
não puderam. As pessoas diziam: “Silêncio, silêncio, o mestre está
pregando. Esperem a sua vez. Ele está ocupado. Não o importunem”.
Mas os quatros homens, com sua maca, não parariam. Por isso,
subiram pela escada exterior (naqueles dias muitas casas tinham
escadas exteriores porque à noite as pessoas se refrescavam no teto
plano, beneficiando-se das brisas que bafejavam sobre a cidade).
Chegando ao teto plano, eles ouviram cuidadosamente para discernir
o lugar em que Jesus falava. Acharam a área correta e começaram a
abrir o teto. Em seguida, eles desceram seu amigo, por cordas, em
frente de Jesus. Se a multidão não lhe daria entrada pela porta, eles
achariam um jeito para o amigo, porque uma maca foi descida por
cima da cabeça daquelas pessoas. Assim, a maca e o paralítico
ficaram diante de Jesus, que disse: “Filho, os teus pecados estão
perdoados” (Mc 2.5).
Os teólogos ali presentes ficaram indignados. “Quem pode
perdoar pecados, senão um, que é Deus?” (Mc 2.7). Essa é uma boa
observação, não é?
Suponha (Deus não o permita) que em sua próxima viagem a
trabalho, você seja brutalmente atacado por uma gangue de
criminosos. Seja ferozmente espancado e deixado quase morto, talvez
violentado. O serviço de emergência o leva para o hospital. Passados
dois dias, eu lhe faço uma visita. Você está enfaixado, e suas pernas,
erguidas em roldana. Você mal pode falar. E eu lhe digo: “Sabe, você
pode ficar contente, achei os seus agressores e os perdoei!” O que
você me diria? Não ficaria indignado? “Quem você pensa que é? Você
não foi violentado por uma gangue. Você não está no hospital! Como
pode tê-los perdoado? A única pessoa que pode perdoar é a parte
ofendida. Somente a parte ofendida pode perdoar”.
No final da Segunda Guerra Mundial, um judeu chamado Simon
Wiesenthal ainda lutava pela vida em Auschwitz, mesmo depois de
toda a sua família ter sido destruída. Naquela altura, Wiesenthal
estava apenas a algumas semanas do fim do terror e horror de
Auschwitz; os russos avançavam do Leste. Wiesenthal estava num
grupo de trabalho quando repentinamente foi tomado pelos guardas
alemães e lançado numa sala. Ali havia um jovem soldado alemão,
nazista, talvez de 19 anos. Ele sofrera ferimentos graves, estava à
morte e desejava conversar com um judeu antes de morrer. Na
providência peculiar de Deus, Simon Wiesenthal foi o judeu tirado do
trabalho e introduzido naquela sala. O jovem soldado nazista
explicou por que queria vê-lo. Lutando para respirar, reconheceu que
os nazistas haviam tratado horrivelmente os judeus e que ele mesmo
estivera envolvido em coisas horríveis. Ele queria o perdão dos
judeus.
Em quietude, Wiesenthal ponderou isso em sua mente. Mais
tarde, ele escreveu suas reflexões em um livreto intitulado The
Sunflower. Muitas das páginas desse livreto descrevem o que passou
pela mente de Wiesenthal. Seu raciocínio foi este: quem pode perdoar,
senão a aqueles que foram ofendidos? A parte mais ofendida no
Holocausto estava morta. Em Auschwitz, os judeus haviam sido
queimados nos fornos. Como um sobrevivente como Wiesenthal
poderia proferir perdão em favor dos que estavam mortos? Como ele
poderia falar em lugar dos mortos? Se as vítimas mais brutalizadas
dos nazistas estavam mortas, não havia ninguém qualificado para
pronunciar perdão. Portanto, não havia perdão para os nazistas. Sem
dizer uma palavra, Wiesenthal ouviu o jovem soldado e, em seguida,
virou-se e deixou a sala.
Depois que a guerra terminou e Wiesenthal escreveu seu livro, ele
o enviou para especialistas em ética ao redor do mundo — cristãos e
judeus, vários contextos — e pediu-lhes que respondessem esta
pergunta: “Eu fiz o que era certo? Ele suscitou uma discussão furiosa
entre os especialistas ao redor do mundo.
Wiesenthal quase entendeu a questão corretamente. Ele estava
certo ao insistir em que somente a parte ofendida pode perdoar. Isso é
certo. Mas, de acordo com a Bíblia, Deus é sempre a parte mais
ofendida. Davi entendeu isso quando ousou escrever: “Pequei contra
ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos” (Sl
51.4).(4)
Aquele jovem paralítico foi descido diante de Jesus — um jovem
que não ofendera Jesus na carne, de homem para homem, de pessoa
para pessoa —, e Jesus olhou para ele e lhe disse: “Os teus pecados
estão perdoados” (Mc 2.5). Os teólogos perguntaram: “Quem pode
perdoar pecados, senão um, que é Deus?” (Mc 2.7).
Tomé lembrou isso também. Combinadas todas as outras
recordações do que Jesus dissera e fizera com todas as suas reflexões
sobre as Escrituras do Antigo Testamento, Tomé chegou à única
conclusão lógica: Jesus é não somente um homem ressurreto —
milagre tremendo! — mas também, incrível e maravilhosamente, ele é
Deus, com todos os direitos de Deus para perdoar pecados. Tomé se
curvou diante do Jesus ressurreto e disse: “Senhor meu e Deus meu”
(Jo 20.28).
Isto é o que todos nós devemos fazer: reconhecer que o que Jesus
fez na cruz foi sofrer em benefício de seu próprio povo, aqueles que
colocam sua fé nele, que reconhecem que ele levou o pecado deles.
Como o Deus-homem, somente ele pode perdoar. Precisamos ter o
perdão de Jesus para sermos reconciliados com Deus. Precisamos tê-
lo. Assim, podemos nos prostrar diante dele e clamar, com alegria e
gratidão, mistério, adoração e temor: “Senhor meu e Deus meu” (Jo
20.28).
 
ORAÇÃO CONCLUSIVA
 
Pai celestial, nos regozijamos na verdade de que Jesus
ressuscitou dos mortos. Começamos a ver que isso não é apenas uma
verdade manifestada na arena pública da história que deve admitida
imediatamente e, depois, deixada de lado. Pois, se, de fato, o teu
Filho querido, o Deus-homem, ressuscitou dos mortos, tudo muda. A
vitória dele sobre a morte é confirmada. O sacrifício que ele proveu foi
aceito. Ele é o cabeça de uma nova humanidade que, um dia,
compartilhará da semelhança de sua ressurreição. E o teu povo, Pai
celestial, se alegra em prostrar-se diante dele e clamar: “Senhor meu
e Deus meu”. Permite que todos os que leem estas páginas clamem:
“Perdoa os meus pecados como perdoaste o pecado daquele homem
paralítico, Senhor meu e Deus meu”. Em nome de Jesus, amém.
(1) Incluí uma exposição mais ampla destas duas passagens em meu livro Escândalo: a Cruz
e a Ressurreição de Jesus (São José dos Campos, SP: Fiel, 2011).
(2) Fareed Zakaria, “To Hell in a Handbasket”, resenha de A Thread of Years, por John
Lacaks, New York Times, April 19,1998, http://fareedzakaria.com/articles/nyt/041998.html.
(3) Edward Shillito, “Jesus of the Scars”, em Jesus of the Scars and Other Poems (London:
Hodder & Stoughton, 1919).
(4) Isso foi discutido no capítulo 6.
11
O Deus
que Declara Justo o Culpado
E Em certo nível, o título deste capítulo quase parece perverso. Eu
preferiria que as coisas fossem desta maneira:
 
Membros do júri, não estou pedindo misericórdia e perdão.
Quero justiça. Estou exigindo absolvição total. Sim, cometi
o assassinato do qual sou acusado. Mas não sou culpado.
Membros do júri, vocês têm de considerar todas as minhas
boas obras — não somente como circunstâncias que
abrandam a culpa, mas também como a razão para
inocentar-me. A bondade de minhas outras obras excede o
crime que cometi. Minhas boas obras exigem um veredito de
“inocente”. Se a justiça tem de ser feita, vocês têm de
declarar-me inocente.
 
Assim escreveu Todd Wiken.(1) Sorrimos disso porque o
argumento é tão ridículo. No entanto, inesperadamente percebemos
que uma aproximação de Deus que depende de nosso equilíbrio entre
boas obras e más obras não é menos ridícula. Isso é a mais
imperfeita de todas as formas de autojustificação — mas é o que
queremos argumentar diante de Deus. O argumento não é um apelo
por indulgência; pelo contrário, é uma asseveração ousada de
inocência. Presume que a culpa é cancelada pelas boas obras. Deus
tem de inocentar-nos e declarar-nos “inocentes” porque fizemos
muitas coisas boas compensadoras. Isso é autojustificação. E tão
inaceitável no tribunal de justiça de Deus como o seria em um
tribunal contemporâneo.
Sendo assim, o que deveríamos pensar sobre a avaliação que
Deus faz? Deus mesmo é espetacularmente santo e não vê as nossas
boas obras como coisas que são pesadas numa balança em contraste
com as más obras; antes, ele vê esse esforço inútil de autojustificação
como mais um exemplo de nosso desafio mortal contra ele. Qual é a
solução bíblica? Deus não designou que as boas obras compensem as
más obras. Pelo contrário, ele estabeleceu um meio de declarar justo o
culpado — e retém a sua integridade enquanto faz isso. Em lugar da
autojustificação, Deus tem uma maneira de justificar-nos. Ele tem
um meio de dar-nos justificação, que não é autojustificação, e sim a
justificação que procede dele mesmo, que é nosso Criador e Juiz. Isso
é o assunto desse capítulo.
Focalizaremos Romanos 3.21-26. Martinho Lutero, um
reformador que viveu há 500 anos, chamou este parágrafo de o
centro de todo o livro de Romanos e, de fato, de toda a Bíblia. Mas,
antes de examinarmos os versículos, devemos lembrar que eles fazem
parte da carta de Paulo aos crentes de Roma.
 
ROMANOS 3.21-26 À LUZ DE ROMANOS 1.18-3.20
 
A carta de Paulo aos cristãos em Roma integra o Novo
Testamento. O Novo Testamento começa com os quatro evangelhos
(Mateus, Marcos, Lucas e João), seguidos pelo livro de Atos (que
reconta os “atos dos apóstolos” desde a ressurreição de Cristo até às
três primeiras décadas da história da igreja) e, depois, um conjunto
de cartas escritas pelo apóstolo Paulo. A primeira das cartas de Paulo
no Novo Testamento é a escrita aos cristãos romanos. Antes de
considerarmos Romanos 3.21-26, que é o foco de nosso interesse,
temos de reconhecer que todo o argumento de Paulo em Romanos
1.18 a 3.20 nos mostra que somos culpados. O que estes dois
capítulos e meio fazem é explicar, em termos teológicos, o que a
Bíblia diz sobre os seres humanos de Gênesis 3 em diante.
Essa longa seção começa com as palavras:
 
A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;
porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre
eles, porque Deus lhes manifestou
Romanos 1.18-19
 
Os dois capítulos e meio seguintes mostram que, se você é da
descendência de Abraão, por meio da aliança feita com Moisés e
recebeu muitas revelações de Deus, ou se, alternativamente, você é de
fora dessa descendência, de algum tipo de herança gentílica, ambos
— judeus e gentios igualmente — sem exceção, são culpados diante
de Deus. Saber o que Deus quer não capacita ninguém a satisfazer os
padrões divinos. Por outro lado, se você pertence a um povo que foi
pouco exposto ao que Deus disse e que adota algum padrão mais
superficial, você também não vive de acordo com esse padrão. Em
qualquer caso, você é uma pessoa culpada.
Isso é tão discordante da autopercepção contemporânea, que, ao
lermos algo do que Paulo disse em Romanos, sem desenvolvermos um
pensamento quanto a todo o enredo da Bíblia, podemos facilmente
rejeitá-lo como algo exagerado. Paulo terminou esta seção em 3.9-18,
fazendo várias citações do Antigo Testamento:
 
Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de
forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos,
tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como
está escrito: Não há justo, nem um sequer,
não há quem entenda, não há quem busque a Deus;
todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há
quem faça o bem, não há nem um sequer.
A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem
engano, veneno de víbora está nos seus lábios,
a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura;
são os seus pés velozes para derramar sangue,
nos seus caminhos, há destruição e miséria;
desconheceram o caminho da paz.
Não há temor de Deus diante de seus olhos.
Romanos 3.9-18
 
Se você vem de um contexto secular e abriu esse livro nessa
página e leu o texto que acabei de citar, talvez você pense: “O autor
perdeu seu bom senso? Sim, sei que há algumas pessoas más neste
mundo — Stalin, talvez; Pol Pot, eu suponho, e Hitler, é claro — mas,
o que se pode dizer de organizações como ‘Médicos sem Fronteiras’?
Não há muitas pessoas fazendo o bem por aí?”
Em certo nível, Paulo concordaria com essa conclusão.
Historicamente, os cristãos têm visto nessas coisas boas os frutos da
graça comum, ou seja, a graça que Deus dá a todos os tipos de
pessoas. Mas a sondagem de Paulo analisa profundamente o coração
humano. A questão não é se muitas coisas boas são feitas (por
exemplo, obras de arte, uma sinfonia maravilhosa, médicos que se
autossacrificam nos limites de uma doença horrível e muito mais). Já
vimos que a Bíblia apresenta os seres humanos como contradições
horríveis: temos grande potencial de refletir algo da bondade da
criação e da glória de Deus; por outro lado, somos tão corruptos,
abusivos, pervertidos e, acima de tudo, egocêntricos. O âmago do
mal, de acordo com toda a Bíblia, é o relacionamento quebrado com
Deus que estabelece ídolos e detrata a Deus. Isso resulta em
destruição da beleza e da bondade da ordem criada. O âmago do mal
não é Auschwitz, embora ele seja bastante inconcebível. O âmago de
todo mal é, antes de tudo, nós, seres humanos, você e eu, que
queremos seguir nosso próprio caminho e rejeitamos a Deus, que nos
criou.
Quando você examina essa passagem de Romanos, linha por
linha, e discerne que isso é o que Deus pensa quando ele fala sobre o
mal, tudo faz sentido. “Não há justo, nem um sequer” (Rm 3.10).
Isso faz sentido se você lembra a citação de Todd Wilken com a qual
começamos este capítulo: a questão não é equilibrarmos boas obras e
más obras. Nenhum de nós pode reivindicar que é justo, “nem um
sequer” — e muitos de nós reconheceremos a verdade dessa
afirmação, se formos honestos.
“Todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis” (Rm 3.12) —
não inúteis no sentido de que não há nenhum valor intrínseco nos
seres humanos, nos portadores da imagem de Deus, mas inúteis no
sentido de que todos ofendemos nosso Criador, Deus. Isso é mais fácil
de entender quando lembramos o que Jesus disse no “principal”
mandamento: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a
tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc
12.30-31). Confesso, com vergonha, que não amo a Deus com todo o
meu coração, alma, entendimento e força. Se Jesus disse que este é o
mandamento mais importante, sou culpado de transgredi-lo. Você
não é? De fato, amar a Deus com todo o coração, alma, mente e força
pode ser considerado fanatismo em nossa cultura. Mas, em essência,
Deus disse: “Ouça, você não entende? Esta é a maneira como criei
originalmente o universo. Se você não vê, isso é uma evidência de
como este mundo está caído”. De modo semelhante, o segundo
mandamento, a ordem de amar o próximo como a nós mesmos, parece
muito exagerado, ridiculamente utópico. Mas Deus diz que essas
inferências mostram quão terrivelmente temos abandonado o que ele
vê como normal, saudável, bom, santo, correto, puro. Não é
surpreendente que estas citações digam:
 
Todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis... A
garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem
engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca, eles
a têm cheia de maldição e de amargura.
Romanos 3.12-14
 
Sim, eu sei que muitos de nós somos de culturas civilizadas em
que não há maldição e amargura, a menos que martelemos o polegar
ou sejamos demitidos do trabalho, quando pensamos que isso é
injusto. Apesar de todo nosso comportamento civilizado, quando
enfrentamos bastante pressão, achamos extremamente fácil em nossa
mente (se somos bastante disciplinados para não deixar escapar de
nossos lábios), nutrir amargura e amaldiçoar nossos oponentes. Isso
dificilmente é uma evidência de amar o próximo como a nós mesmos.
Não é uma maneira de louvar a Deus; não é um reflexo do shalom —
o completo bem-estar que só Deus pode estabelecer — que Deus
almeja que desfrutemos.
O cerne da questão é, como diz a última linha dessas citações
bíblicas: “Não há temor de Deus diante de seus olhos” (Rm 3.18).
Portanto, ainda estamos imergidos no problema central revelado no
drama de toda a Bíblia. Como os seres humanos são reconciliados
com Deus? Se, como vimos no início desse capítulo, a
autojustificação não serve, que tal a simples negação? Eis parte do
testemunho de um filósofo chamado Budziszewski, que escreveu:
 
Todas as coisas dão errado sem Deus. Isso é verdade até
quanto às coisas boas que ele nos deu, como a nossa mente.
Uma das coisas boas que recebi foi uma mente mais
vigorosa do que uma mente normal... O problema é que
uma mente vigorosa que recusa a chamada para servir a
Deus tem sua própria maneira de dar errado. Quando
algumas pessoas fogem de Deus, elas roubam e matam.
Quando outras fogem dele, usam muitas drogas e fazem
muito sexo. Quando eu fugi de Deus, não fiz nenhuma
dessas coisas. Minha maneira de fugir foi tornar-me
estúpido. Embora isso sempre pareça surpreendente aos
intelectuais, há algumas formas de estupidez que, para
atingi-las, a pessoa tem de ser altamente inteligente e
culta...
O apóstolo Paulo disse que o conhecimento da lei de Deus
está “gravado” em nosso “coração, testemunhando...
também” a nossa consciência [isso é uma citação de
Romanos 2.15]... Isto significa que, enquanto temos mente,
não podemos deixar de conhecer as coisas ali gravadas.
Bem, eu estava singularmente decidido a não conhecê-las.
Portanto, eu tinha de destruir minha mente...
Imagine um homem abrindo os painéis de acesso à sua
mente e jogando fora todos os componentes que contém a
imagem de Deus estampada neles. O problema é que todos
eles estampam a imagem de Deus; portanto, o homem
nunca parará. Não importa quantos ele jogue fora, haverá
sempre mais a jogar. Eu era esse homem. Porque joguei fora
cada vez mais componentes, havia cada vez menos sobre os
quais eu podia pensar. [Isso é que ele pretendia dizer
quando falou que se tornara estúpido. Os cristãos têm
tantas coisas em que pensar. Pessoas que rejeitam a Deus e
toda a sua verdade têm muito menos em que pensar. Elas se
tornam estúpidas.](2)
 
Ele prosseguiu dizendo que, antes de ser convertido, pensava que
estava se tornando mais focalizado, pensava que era mais brilhante
do que os tolos ao seu redor — até que entendeu ser ele mesmo o tolo.
Esse foi o contexto que Paulo estabeleceu e simplesmente o
pressupôs quando escreveu o parágrafo espetacular que Martinho
Lutero chamou de o centro de toda a Bíblia: Romanos 3.21-26.
Acrescentaremos alguns poucos versículos:
 
Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus
testemunhada pela lei e pelos profetas;
justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e
sobre todos] os que creem; porque não há distinção,
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus,
sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus,
a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação,
mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus,
na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos;
tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo
presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele
que tem fé em Jesus.
Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei?
Das obras? Não; pelo contrário, pela lei da fé.
Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei.
É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também
dos gentios? Sim, também dos gentios,
visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o
circunciso e, mediante a fé, o incircunciso.
Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma!
Antes, confirmamos a lei.
Romanos 3.21-31
 
Falando com franqueza, esses parágrafos soam tão condensados
que, se você já é um cristão por algum tempo, quando ouve a sua
leitura, começa a ouvir sequências da palavra de Deus sem poder
seguir o fluxo do pensamento. A única maneira de entender o
pensamento é ler com muita atenção essas linhas, para conhecer a
lógica e descobrir como toda a passagem se harmoniza. A passagem
compensará uma leitura cuidadosa: sei que, em toda a Bíblia,
nenhuma passagem é tão clara como esta no que diz respeito ao que
a cruz realiza. A passagem nos mostra o que Jesus fez na cruz.
Seguiremos o argumento primeiramente nos versículos 21 a 26
e, depois, nos versículos 27 a 31.(3)
 
ROMANOS 3.21-26
 
1. A REVELA O DA JUSTI A DE DEUS EM SUA RELA O COM O ANTIGO
TESTAMENTO (RM 3.21)
 
Lembremos que Paulo gastou dois capítulos e meio para mostrar
quanta culpa, ingratidão e idolatria existem — e fez isso em face da
verdade de que Deus é um Deus justo. Então, como podemos ser justo
aos olhos de Deus? Como viveremos diante dele?
“Mas agora” (3.21) significa neste ponto do fluxo da narrativa
bíblica, nesta altura da história de redenção: Jesus veio.
“Sem lei” refere-se à lei dada por Moisés, a lei da aliança sob a
qual os hebreus, os israelitas, viveram por 1.500 anos.
“Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus.” Isso quer
dizer: a justiça de Deus que transcende as épocas, o próprio caráter
de Deus, sua justiça perfeita, se tornou manifesta ou conhecida, não
na estrutura da antiga aliança da lei, com seu sistema de sacrifícios,
seus sacerdotes, etc. A justiça de Deus se tornou conhecida à parte
disso. Usando a linguagem que Paulo empregou em outra passagem,
o que ele estava dizendo era: “Chegamos agora à nova aliança;
agora, uma nova estrutura de referência, uma nova aliança chegou”.
Ele ainda não explicou em que ela se fundamenta, nem como ela
opera.
No entanto, isso não significa que esta nova situação é
totalmente desvinculada da antiga aliança da lei, visto que Paulo
acrescentou uma cláusula interessante no final do versículo 21: “Mas
agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei
e pelos profetas” (ênfase acrescentada). Ou seja, se você ler o Antigo
Testamento com cuidado e prestar bastante atenção, verá que a
aliança da lei que Moisés estabeleceu previa realmente o que chegou
agora. Por exemplo, o sangue de um novilho e de um bode que o sumo
sacerdote levava ao Santo dos Santos, no tabernáculo, no Yom
Kippur, o Dia da Expiação, apontava para o sacrifício final que
pagaria por nossos pecados, o sacrifício de Cristo.
Até aquelas leis que chamamos de leis morais (ou seja, “não
matarás”, “não adulterarás”) também apontavam para frente. Por
exemplo, imagine o estado final das coisas, um novo céu e uma nova
terra, justiça perfeita, existência ressurreta, sem pecado, morte e
decadência em qualquer lugar. Você acha que haverá pequenos avisos
fixados aqui e ali, que dirão: “Não matarás” ou: “Não adulterarás”?
Provavelmente será muito difícil cometer assassinato e adultério em
corpos ressurretos na perfeição do paraíso! Mas, à parte dessas
considerações, você acha realmente que leis como estas serão
necessárias? Se você disser sim, ainda não imaginou a perfeição. Se
disser não, deve perguntar a si mesmo: “Isso significa que a lei de
Deus mudou?” Não, isso é total incompreensão dos mandamentos,
porque, em última análise, as leis que dizem: “Não matarás” e “Não
adulterarás” antecipam um tempo em que assassinato e adultério,
ódio e concupiscência sexual egoísta, não mais existirão. Nesse
sentido, as leis apontam para a justiça perfeita, quando o povo de
Deus amará um ao outro, quando assassinato e adultério serão
inconcebíveis.
Portanto, a aliança da lei, que estabeleceu muitos mandamentos
e proibições, juntamente com seu sistema de sacrifícios e suas
estruturas para a nação — em muitas maneiras, essas coisas
apontavam para frente, para o que foi introduzido por Cristo. Se a
justiça de Deus é conhecida “sem lei”, essa mesma lei dava
testemunho deste novo estado de coisas e antecipava esse tempo.
 
2. A DISPONIBILIDADE DA JUSTI A DE DEUS PARA TODOS, SEM DISTIN O

RACIAL, MAS SOB A CONDI O DE FÉ (RM 3.22-23)

 
“... se manifestou a justiça de Deus [que agora foi manifestada
de uma maneira nova] ...mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os
que creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da
glória de Deus” (Rm 3.22-23). Observe as duas ocorrências da
palavras “todos”; é esta dupla ocorrência de “todos” que conecta este
parágrafo com os dois capítulos e meio anteriores. Os capítulos
anteriores argumentaram, amplamente e em detalhes apropriados,
que todas as pessoas precisam dessa justiça. Somos todos culpados
diante de Deus. Mas agora há uma justiça de Deus que satisfaz as
nossas necessidades. Ela pode ser a nossa justiça. Ela é dada
“mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que
creem”, judeus e gentios, “pois todos pecaram”.
A antiga aliança era para os israelitas. É claro que, mesmo no
Antigo Testamento, Deus se apresentava como soberano de todas as
nações do mundo. No Antigo Testamento está escrito: “A justiça
exalta as nações, mas o pecado é o opróbrio dos povos”. E Deus
considera todos responsáveis. Essa é a razão, por exemplo, por que o
Deus de Israel, no Antigo Testamento, pode ser retratado como o Deus
que, digamos, considerou a Babilônia e a Assíria responsáveis. Hoje
ele considera a América e a China responsáveis. Deus ainda é o
soberano Senhor que considera todos responsáveis. No entanto, na
época do Antigo Testamento, a aliança da lei ligava Deus aos
israelitas, os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó.
Mas agora, a Bíblia nos diz, essa justiça de Deus, que, de
algumas maneiras, é dissociada da antiga aliança, é dada por meio
da fé em Jesus Cristo. Não é dada nas bases da antiga aliança,
conforme as quais uma pessoa deveria ser nascida em uma nação ou,
em algum sentido, ser adotada pela nação. Não, ela é dada
“mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que
creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da
glória de Deus”. Em outras palavras, a graça é dada conforme a
necessidade, e a necessidade está em todos, judeus e gentios
igualmente.
Uma das coisas maravilhosas sobre o último livro da Bíblia é que
ele mostra que, no último dia, ao redor do trono de Deus estarão
homens e mulheres de toda língua, etnia e nação. Milhões deles!
Naquele último dia, ao redor do trono, haverá muitos chineses, tutsis,
hutus, sérvios, russos, bolivianos, árabes, europeus — diferentes
cores, diferentes sensos de humor, diferentes línguas, diferentes
etnias. Deus reúne seu povo de todas essas nações. Hoje, cristãos que
viajam descobrem que, onde quer que vão, encontram cristãos,
mesmo em lugares surpreendentes. Estive em Papua Nova Guiné e
tive comunhão com irmãos e irmãs que, uma geração e meia atrás,
teriam sido canibais. Visitei Hong Kong. Que cidade espetacular! Ela
contém uma mistura de estilos: lojas luxuosas e, dois quarteirões
adiante, um mercado de carne ao ar livre. Grande diversidade de
pessoas — e muitos cristãos naquele lugar. E o mesmo é verdade ao
redor do mundo: africanos, asiáticos, europeus, americanos. Ao redor
do trono, naquele último dia, haverá pessoas de todo o globo e de
toda etnia, porque nos termos da nova aliança, Deus tornou
disponível a justiça que necessitávamos tão desesperadamente, para
todos que creem, porque todos pecaram e carecem da glória de Deus.
Paulo ainda não explicou como Deus fez isso. Mas esta é a força
do ensino que ele estabeleceu.
 
3. A FONTE DA JUSTI A DE DEUS NA GRACIOSA PROVIS O DE CRISTO JESUS
COMO A PROPICIA O PELOS NOSSOS PECADOS (RM 3.24-25)
 
Justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e
sobre todos] os que creem; porque não há distinção,
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus,
sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no
seu sangue, como propiciação, mediante a fé.
Romanos 3.22-25
 
Agora temos algumas palavras teológicas que precisam ser
esclarecidas.
 
REDEN O
 
O que significa redenção? Para nós, redenção é uma palavra que
pertence à linguagem teológica. Não a usamos muito em nossa
conversa comum. Uma ou duas gerações atrás, ainda usávamos a
palavra redenção em algumas transações financeiras. Se você fosse a
uma loja de penhores, empenhasse ali o relógio de seu avô, para obter
um pouco de dinheiro, e conseguisse ganhar algum dinheiro nas
semanas seguintes, você voltaria lá e redimiria o relógio. Você o
compraria de volta e o resgataria de onde ele estava. De modo
semelhante, pessoas falariam em termos financeiros sobre redimir
sua hipoteca, quitando-a finalmente.
No mundo antigo, a linguagem de redenção era usada mais
comumente. Não era restrita ao vocabulário teológico. Por exemplo,
no mundo antigo você poderia tornar-se um escravo porque não
havia leis de falência de bancos semelhantes às que temos hoje.
Suponha que você emprestasse algum dinheiro, começasse um
negócio, a economia tropeçasse, e seu negócio falisse. O que você
faria? No mundo antigo, o que você deveria fazer era vender a si
mesmo e/ou entregar a sua família à escravidão. Isso é o que você
faria. Não havia leis de proteção referentes à falência.
No entanto, suponha que você tivesse um primo abastado que
morava a quarenta quilômetros de sua cidade (talvez um dia de
viagem). E ele soubesse que você se vendeu à escravidão. Suponha
que ele se importasse com você e decidisse fazer algo a respeito disso.
O que ele poderia fazer era ir à sua cidade e comprar você de volta.
Ora, havia um processo complicado para fazer isso por meio de
templos pagãos — um processo que não precisamos abordar. Mas o
que ele estaria fazendo era redimindo você. Ele o compraria de volta
e, assim, o libertaria de sua escravidão.
O que Paulo estava dizendo era isto: “Nós também recebemos
uma redenção, uma libertação de nossa escravidão ao pecado. Fomos
comprados de volta e, como resultado, fomos libertos daquilo que, do
contrário, nos escravizaria”. De fato, o que Paulo estava afirmando é
que todos nós fomos “justificados gratuitamente, por sua graça,
mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (3.24). Isto é
impressionante: somos todos justificados — declarados justos, retos
diante de Deus. Como pode ser isso — quando não somos justos nem
retos? Acabamos de passar por dois capítulos e meio que nos dizem
que não somos justos. No entanto, agora, Paulo diz que a justiça de
Deus nos declarou justos. Somos justificados gratuitamente pela
graça de Deus, por meio da redenção, do comprar-nos de volta; a
nossa liberdade é garantida por Cristo Jesus, por meio da redenção
que vem através dele. Como isso se realiza? O que isso significa?
Para entender, temos de aprender o conceito de outra palavra que
Paulo utilizou.
 
PROPICIAÇÃO
 
“A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação,
mediante a fé” (3.25 — ênfase acrescentada). O que isso significa?
Precisamos deter-nos por um momento e considerar esta palavra
“propiciação”.
“Propiciação” é aquele ato sacrificial pelo qual Deus se torna
propício. Isso talvez não lhe diga muita coisa, não é? “Propício”
significa apenas favorável; isso implica que a propiciação é o ato pelo
qual Deus se torna favorável a nós. Ele estava contra nós em ira,
mas agora por este ato sacrificial Deus se torna favorável. Isso é
propiciação.
Outros preferem usar o termo “expiação”. A expiação é o ato pelo
qual o pecado é cancelado, banido, removido. Portanto, o objeto da
expiação é o pecado. O objeto da propiciação é Deus. Ele se torna
favorável.
No mundo pagão antigo, no século I, quando os pagãos
ofereciam sacrifícios aos seus deuses, muito frequentemente o desejo
deles era tornar os deuses propícios. Se você quisesse fazer uma
viagem marítima, faria um sacrifício propiciatório a Netuno, o deus
do mar, na esperança de que ele não fosse genioso e não ficasse irado
com você; assim, você teria uma viagem segura. Era um sacrifício a
Netuno, para torná-lo propício. Era um sacrifício propiciatório.
No entanto, este texto de Romanos nos diz algo mais
impressionante. Naquela antiga maneira pagã de ver as coisas, os
adoradores humanos ofereciam um sacrifício propiciatório aos
deuses. Mas este texto diz que Deus apresentou Cristo como um
sacrifício propiciatório. Isso significa que Deus, ao apresentar Cristo
como um sacrifício propiciatório, propicia a si mesmo? Como Deus
pode oferecer um sacrifício que propicia a ele mesmo?
Por causa da estranheza desse pensamento, muitos têm rejeitado
totalmente essa interpretação. Eles acham que é insensatez. Como
Deus pode propiciar a si mesmo? Além disso, alguns deles não
gostam da noção de sacrifício de sangue ou da ideia de que Deus se
ira. Nos anos 1930, um influente professor no Reino Unido, um
homem chamado C. H. Dodd, argumentou vigorosamente que
“propiciação” não faz sentido como tradução. Certamente, Deus não
pode propiciar a si mesmo. Portanto, isso tem de ser “expiação”, em
que, pelo sacrifício de seu próprio Filho, o pecado é cancelado.
Posteriormente, Dodd argumentou: Deus amou tanto o mundo, que
deu seu único Filho (ver Jo 3.16). Se Deus foi tão favorável ao
mundo, que deu seu próprio Filho, como podemos imaginar que o
Filho está propiciando a Deus, tornando-o favorável? Deus já é
favorável. Portanto, o que está acontecendo tem de ser expiação
(cancelamento do pecado) e não propiciação (afastamento da ira de
Deus).
Aqueles que responderam ao professor Dodd salientaram que, no
Antigo Testamento, quando a propiciação é mencionada, ela aparece
regularmente no mesmo contexto em que a ira de Deus é mencionada.
De fato, a palavra traduzida por “propiciação” é usada, na tradução
grega do Antigo Testamento, dois terços das vezes para se referir à
cobertura da arca da aliança, onde no Dia da Expiação era aspergido
o sangue de novilho e de bode — precisamente para afastar a ira de
Deus. Deus ordenou que esse sacrifício fosse oferecido para cumprir
esse propósito. E, nesta passagem de Romanos, temos dois capítulos
e meio que começam com a afirmação “a ira de Deus se revela do céu
contra toda impiedade e perversão” que nós, seres humanos, temos
manifestado ao deter a verdade (1.18 — ênfase acrescentada).
Portanto, a ira de Deus é o pano de fundo para o uso de propiciação
em Romanos 3.25.
A reação de Deus ao nosso pecado é profunda, pessoal e
inevitável. A ira tem de ser afastada, pois, do contrário, não podemos
ser “justificados”, declarados justos aos olhos de Deus. Como Deus
pode propiciar a si mesmo? A resposta é que toda a narrativa da
Bíblia nos ensina que Deus está contra nós em ira, por causa de sua
santidade, mas está sobre nós em amor porque esta é a natureza de
Deus. Ambas as atitudes são importantes.
Por um lado, se Deus não se manifestasse em ira contra nós,
quando pecássemos, ele seria imoral. “Oh! não me importo! Eles
podem blasfemar, matar, estuprar, roubar, mentir. Não me preocupo.
Não me importo. Não estou nem aí!” Mas Deus é justo; ele está
realmente contra nós em ira, em especial porque nós o temos
marginalizado. Temos menosprezado a Deus.
Deus sabe que é para o nosso bem que ele esteja no centro de
tudo. Isso não implica que ele quer ter certa preferência entre os
parceiros: ele não é nosso parceiro. Quando você e eu queremos ser
louvados por nossos semelhantes — pelos outros seres humanos, o
que desejamos é ser mais fortes, mais sábios, mais ricos, mais
bonitos do que eles; queremos ser reputados, em algum sentido, como
superiores. Contudo, Deus é superior. Ele não é como nós. Ele é Deus.
Além disso, Deus sabe, em amor, que temos de vê-lo no centro de
tudo, pois, do contrário, estamos perdidos, arruinados. Vê-lo dessa
maneira é para o nosso bem. É por amor que Deus insiste em que ele
seja Deus, que os ídolos sejam banidos. Por sua vez, ele se mostra
irado quando, por nossas ações, pensamentos e obras, declaramos:
“Não será assim”.
Deus está contra nós em ira por causa de sua santidade, mas,
por outro lado, ele está sobre nós em amor porque esta é a sua
natureza. Este texto de Romanos nos diz que Deus apresentou Cristo
como a propiciação por nossos pecados. De fato, não podemos ter
propiciação (ou seja, o afastamento da ira de Deus) sem expiação (ou
seja, o cancelamento do pecado). As duas se mantêm juntas na
Bíblia. Isso se aplica até ao sacrifício realizado no Dia da Expiação. É
também a razão por que algumas pessoas preferem a expressão
“sacrifício de expiação”, que é mais abrangente: “Deus propôs Cristo
como sacrifício de expiação” (3.25) por nossos pecados, cancelando o
nosso pecado e afastando a ira de Deus num mesmo ato. O que não
podemos perder de vista, no contexto de Romanos, é o fato de que a
ira justa de Deus tem de ser afastada sem macular a justiça de Deus.
Precisamos pensar um pouco mais a respeito disso. O que
acontece não é que o Pai se mantém contra nós em ira, realmente
irado, e o querido Jesus aparece e se coloca sobre nós em amor. Isso
seria uma noção bárbara: o Deus trino estaria fazendo um esforço
conjunto para, em harmonia, livrar seres humanos, portadores de
sua imagem, da tirania de nosso pecado. Toda a Trindade (Pai, Filho
e Espírito Santo) estão contra nós em ira e, igualmente, sobre nós em
amor.
Penso que uma das razões por que, no Ocidente, achamos difícil
imaginar isso é o nosso sistema judicial. Em quase todos os países
do Ocidente, o judiciário é independente. E o juiz não pode ser a
vítima de um criminoso que está sendo julgado. Imagine, por
exemplo, que alguém acusado de assalto seja trazido perante um
juiz. E acontece que o juiz é a pessoa que foi assaltada. Em nosso
sistema, o juiz tem de recusar-se a arbitrar o caso, porque não pode
julgar qualquer pessoa quando ele é a vítima do crime. Isso é assim
porque o juiz exerce a autoridade de um sistema judicial maior. Isso é
tudo que um juiz faz. Espera-se que o juiz exerça, de maneira
igualitária, a autoridade de um sistema maior. O criminoso ofende o
Estado, a lei, a Constituição, o povo. Se você mora em um país
monárquico como a Inglaterra, você ofende a coroa. Mas você não
pratica um crime contra o juiz. Espera-se que ele seja um árbitro
independente que usa a estrutura do sistema judicial para aplicar a
lei com justiça e imparcialidade à pessoa que está em julgamento.
Mas isso não se aplica ao tribunal de Deus. Como já vimos,
repetidas vezes, Deus é sempre a parte mais ofendida. Nós o temos
ofendido, e ele é o nosso juiz. Deus nunca se recusa a isso. Contudo, a
sua justiça não é injusta. Ele é perfeitamente justo, é a própria
incorporação da justiça. Ele é perfeitamente reto. Sabe todas as
coisas. Nada pode ser escondido dele, nem mesmo nossos
pensamentos. A justiça de Deus é perfeita. Mas ele é também a parte
mais ofendida. Sempre. Portanto, Deus exige, em ira, que a justiça
seja feita. E, na pessoa de seu Filho, ele pagou a penalidade.
Em nosso sistema de tribunais, isso é tão estúpido e
inacreditável. Talvez você já tenha ouvido ilustrações que retratam
pessoas trazidas diante de um juiz, que a declara culpada e ordena
uma fiança de cinco mil dólares ou, alternativamente, confina o
ofensor a cinco anos de prisão. Depois, o juiz desce do tribunal, pega
o seu talão de cheques e escreve um cheque de cinco mil dólares ou,
alternativamente, tira a sua toga e vai à cadeia por cinco anos em
lugar do criminoso culpado. Isso é chamado de substituição.
Suponho que essa ilustração esclarece a noção de substituição, mas
em nosso sistema judicial ela seria incrivelmente corrupta. Em nosso
sistema, nenhum juiz poderia fazer isso. O juiz deve ser um árbitro
independente cuja paixão é a aplicação justa da lei, a autoridade da
lei. Ele não tem o direito de tomar o lugar do réu. Isso seria uma
corrupção da justiça.
No entanto, nos tribunais do céu, Deus estabelece o sistema. Ele
é perfeitamente justo, mas é também a parte ofendida. E, na pessoa
de seu querido Filho, ele absorveu a penalidade em favor das pessoas
que colocam sua fé nele. Este último ponto é sobremodo importante.
 
4. A DEMONSTRA O DA JUSTI A DE DEUS POR MEIO DA CRUZ DE JESUS CRISTO
(RM 3.25-26)
 
A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação,
mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus,
na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da
sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o
justificador daquele que tem fé em Jesus
Romanos 3.25-26
 
Deus fez isso “para manifestar a sua justiça”, não apenas para
amar-nos, perdoar-nos e redimir-nos — mas para demonstrar a sua
justiça. Se Deus tivesse perdoado nosso pecado, sem que, em algum
sentido, o pecado tivesse sido pago, onde estaria a justiça? Se a
justiça não tivesse sido satisfeita, como Deus poderia dizer: “Eu
perdoo você”, sem promover a injustiça? O pecado tinha de ser pago.
“Na sua tolerância”, Deus deixou “impunes os pecados
anteriormente cometidos” (3.25). Isso se refere a todos os pecados do
povo de Deus da aliança no passado. Eles haviam recebido vários
tipos de punições temporais. Por exemplo, na justiça de Deus o povo
corrupto de Israel foi para o exílio. Eles enfrentaram vários tipos de
pressões e punições terrenas. Mas, aqui, Paulo ressaltou que eles
nunca receberam toda a força da condenação de Deus. Isso viria no
próprio Cristo. Eles foram poupados dessa condenação. De alguma
maneira profunda, Deus deixara impunes os pecados deles. Agora,
Deus demonstra sua justiça em mandar Cristo à cruz por haver, “na
sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente
cometidos”. Jesus levou o pecado deles, como levou o meu. Jesus fez
isso para manifestar a justiça de Deus “no tempo presente, para ele
mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm
3.26 — ênfase acrescentada). Em outras palavras, por meio disso,
Deus não somente declara justas pessoas culpadas como você e eu
(ou seja, ele nos justifica porque alguém pagou por nosso pecado),
mas também demonstra sua própria justiça ao fazer isso.
Você quer saber onde a justiça de Deus é mais poderosamente
demonstrada? Na cruz. Quer saber onde o amor de Deus é mais
poderosamente demonstrado? Na cruz. Ali, Jesus, o Deus-homem,
suportou o próprio inferno, e Deus fez isso tanto para ser justo como
para ser aquele que declara justos os que têm fé em Jesus. Há um
sentido em que Deus vê a mim, Don Carson, pelas lentes de Jesus.
Isso significa: meu pecado é agora visto como dele, que pagou por
meu pecado. E a justiça de Jesus, a retidão de Jesus, é agora vista
como minha. Deus olha para mim e me declara justo, não por causa
do que eu sou (eu sou culpado!), e sim porque ele propôs seu Filho
como a propiciação por nossos pecados.
 
ROMANOS 3.27-31
 
Repetidas vezes, em Romanos 3.21-26, Paulo nos diz que a fé é a
maneira pela qual recebemos essa justiça, a justificação de Deus. Nos
últimos versículos do capítulo, Romanos 3.27-31, Paulo ressalta três
ênfases sobre a fé. Em resumo:
 
1. A FÉ EXCLUI A VANGLÓRIA (RM 3.27; 4.1-2)
 
“Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das
obras? Não; pelo contrário, pela lei da fé” (Rm 3.27).
Isso significa que eu não posso aproximar-me de você e dizer:
“Sou uma pessoa superior. Por isso eu fui aceito por Deus”. Eu sou
declarado justo diante de Deus não porque fiz o máximo que podia, e
sim porque recebi o dom de Deus pela fé. A própria natureza da fé
exclui a vanglória. No novo céu e na nova terra, ninguém
argumentará sobre a maneira como seu mérito pessoal atraiu a
aprovação de Deus.
 
2. A FÉ É NECESSÁRIA PARA PRESERVAR A GRA A (RM 3.28; 4.3-8)
 
“Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei” (Rm 3.28).
Se, de alguma maneira, eu posso obter o perdão de Deus (ou
seja, Deus pode olhar para mim com favor) porque eu o mereço, não
existe mais graça. Já vimos que, ao lidarmos com um Deus com quem
não podemos fazer barganhas, a única maneira de sermos perdoados
é por sua graça soberana realizada na cruz. Essa graça é
demonstrada na cruz, e nós a recebemos pela fé. A fé preserva a
soberana graça de Deus. Se, de algum modo, merecêssemos o favor de
Deus, então, o favor de Deus não seria dispensado com base na graça
de Deus.
A fé não somente exclui a vanglória, não somente é necessária
para preservar a graça, mas também...
 
3) É NECESSÁRIA PARA QUE JUDEUS E GENTIOS SEJAM SALVOS
(RM 3.29-30; 4.9-17)
 
É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também
dos gentios? Sim, também dos gentios,
visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o
circunciso [ou seja, judeus] e, mediante a fé, o incircunciso
[ou seja, gentios].
Romanos 3.29-30
 
Uma das implicações necessárias do monoteísmo — a crença em
um único Deus — é que, em algum sentido, ele é o Deus de todos,
reconhecido ou não. Ele é o Deus dos judeus e dos gentios,
igualmente. É pela fé que você e eu recebemos essa afirmação ousada
de que somos justos diante de Deus; pois é somente com base na
cruz, e somente nessa base, que Deus justifica judeus (os circuncisos)
e gentios (os incircuncisos) crentes.
 
4. A FÉ CRIST , EM VEZ DE ANULAR O ANTIGO TESTAMENTO, CUMPRE-O E O
CONFIRMA (RM 3.31; 4.18-25)

 
“Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes,
confirmamos a lei” (Rm 3.31). Assim, Paulo fecha o círculo. Ele nos
leva de volta ao versículo 21, onde já havia estabelecido que esta
maravilhosa manifestação da justiça de Deus, embora pareça
separada da aliança da lei, foi antecipada e anunciada pela mesma
aliança da lei. Por dizer algo semelhante nesta altura, Paulo está
insistindo enfaticamente que toda a Bíblia é uniforme. Os propósitos
de Deus são unificados em todo o decorrer da história bíblica —
estratificados, complexos, entremeados, porém maravilhosamente
unificados, de modo que agora, na cruz e na ressurreição de Jesus, a
aliança da lei é cumprida e seu propósito em longo prazo, no plano de
Deus, é espetacularmente cumprido. Homens e mulheres culpados são
declarados justos e reconciliados com Deus, não porque sejam justos,
não porque equilibraram boas obras e más obras, e sim porque pela
fé creram no sacrifício de Cristo em favor deles — um sacrifício que,
ao mesmo tempo, paga a penalidade do pecado deles e estabelece a
justiça de Deus.
 
UMA PALAVRA FINAL SOBRE A FÉ
 
Não podemos deixar de observar que “fé” e “crer” são termos
cruciais neste capítulo de Romanos. No entanto, essas palavras
podem ser mal interpretadas, porque hoje, no mundo ocidental, a
palavra “fé” tem um de dois significados, nenhum dos quais Paulo
empregou:
1. Em alguns contextos contemporâneos, “fé” é equivalente a
“religião”. Dizemos que há muitas religiões, muitas formas de fé.
Você tem sua fé, eu tenho a minha; você tem a sua religião, eu tenho
a minha. Neste uso, “fé” é apenas um sinônimo de “religião”.
2. Mas, quando não é usada dessa maneira, “fé” significa, em
nossa cultura, algo como escolha pessoal, subjetiva e religiosa. Ou
seja, ela não está vinculada, em qualquer sentido, à verdade ou aos
fatos. É uma escolha pessoal, subjetiva, religiosa. Portanto, se você
diz a alguém hoje: “Você precisa ter fé em Jesus”, isso parece um
convite para um salto no escuro: alguns fazem opção por Jesus,
outros, por Alá e Maomé; e outros optam pelo budismo. Mas, embora
a palavra “fé” seja usada de maneiras diferentes na Bíblia, nem uma
vez ela é usada dessa maneira. Nem uma vez.
Na Bíblia, é crucial estabelecer o objeto da fé, ou seja, em que ou
em quem você crê. Por exemplo, em outra carta de Paulo, escrita aos
cristãos em Corinto, ele insistiu em que os cristãos cressem que Jesus
ressuscitou dos mortos (ver 1Co 15). Suponha, argumentou Paulo,
que Jesus não tenha ressuscitado dos mortos; suponha que isso seja
um absurdo histórico. Então, o que aconteceria com a sua fé se Jesus
não ressuscitou dos mortos?
Primeiro, as testemunhas originais estavam todas enganadas.
Você não poderia confiar em qualquer das 500 testemunhas de
lugares, tempos e circunstâncias diferentes. Eram todos mentirosos.
Segundo, você ainda estaria perdido, porque a Bíblia ensina que foi a
morte e a ressurreição de Cristo que trouxe a nossa redenção. É assim
que nos reconciliamos com Deus. Terceiro, a sua fé seria inútil. Em
outras palavras, se você crê que Jesus ressuscitou dos mortos,
quando de fato ele não ressuscitou, sua fé não tem valor, porque a
validação da fé depende, em parte, da veracidade do objeto da fé.
Essa é a razão por que a Bíblia nunca nos incentiva a crer em algo
que não é verdadeiro ou em algo que não está apto para ser
declarado verdadeiro. Por isso, na Bíblia a fé é fortalecida por
articularmos e defendermos a verdade. A Bíblia nunca diz: “Apenas
creia, creia, creia, creia, creia — não importa se é verdade ou não,
apenas creia. Contanto que você seja sincero em sua crença, isso é
bom”. Paulo vai além e diz que, se você crê em algo que não é
verdadeiro (como a ressurreição de Jesus, se ela não aconteceu), você
é a mais infeliz de todas as pessoas. Sua vida é uma piada. Você está
crendo em algo que é absurdo.
Se você não está convencido de que Cristo ressuscitou dos
mortos, eu serei a última pessoa a exortá-lo a esforçar-se para fingir
que crê nisso. Isso não é fé.
Nesse assunto, é importante que evitemos iludir a nós mesmos.
Se alguém dissesse em oposição: “Prefiro não ter fé nenhuma. Viverei
minha fé apenas com base em evidência comprovável”, a resposta
óbvia é que a fé é inevitável. Se você sustenta que qualquer
reivindicação de um conhecimento superior sobre Deus não pode ser
verdadeiro, isso é, em si mesmo, um objeto de fé, um objeto de crença
religiosa — ou seja, uma crença que molda sua estrutura de
referência a respeito de tudo que você afirma ser importante. Se você
insiste em que ninguém pode decidir que fé é verdadeira, você está
fazendo uma afirmação fundada em certo tipo de fé, uma percepção
da realidade em que você chegou a acreditar. Por que devemos crer em
você? Todos nós, sem exceção, fazemos um tipo ou outro de
reivindicações da verdade. Sem dúvida, é difícil avaliá-las. Mas não
temos outra alternativa, senão tentar.
Quando Paulo recomendou, em Romanos 3, a fé, o que ele
desejava de nossa parte era uma habilidade dada por Deus para
percebermos o que Deus fez ao pendurar Jesus na cruz, reconciliando-
nos consigo mesmo, colocando de lado a sua ira justa, demonstrando
seu amor e declarando-nos justos, embora não o sejamos, porque
agora a justiça de Cristo Jesus é reputada como nossa, e nosso
pecado é reputado como dele. E Paulo apoiou isso na graciosa
autorrevelação de Deus através dos enormes períodos de tempo,
através de toda a narrativa bíblica, culminando na impressionante
realidade de que o Deus que nos fez, o Deus que é nosso juiz,
derramou seu sangue, morreu por nós e ressuscitou.
Esse é o tipo de Jesus em que você pode crer. É o tipo de Deus em
quem você pode colocar sua fé.
 
ORAÇÃO CONCLUSIVA
 
Dilema infame: como pode a santidade
De vida resplendente e límpida tolerar
Fétida lama de rebelião e não abater
Em sua glória, comprometida ao máximo?
Dilema infame: como pode a verdade atestar
Que Deus é amor e não ser envergonhada por ódio,
Vontades escravizadas e morte amarga — a carga
De maldição merecida, o caos de rebeldes humanos?
A cruz! A cruz! O lugar de encontro sagrado
Onde, desconhecendo perda e comprometimento,
O amor e a pureza de Deus, em graça assoladora,
Solucionam o grande dilema! A cruz! A cruz!
Este santo, amável Deus cujo Filho querido morre
Por meio disso é justo — e aquele que justifica.(4)
 
Pai celestial, abre os nossos olhos para que vejamos a verdade do
que fizeste em Jesus e, vendo a verdade, creiamos. Por amor a Jesus,
Amém.

(1) Todd Wilken, “God Is Just: The Art of Self-Justification”, Modern Reformation 16/5
(Sept./Oct. 2007): 31.
(2) J. Budziszewski, “Escape from Nihilism”, re:generation Quarterly 4/1 (1998): 13-14.
(3) Quanto a uma exposição mais ampla de Romanos 3.21-26, ver meu livro Escândalo: a
Cruz e a Ressurreição de Jesus (São José dos Campos, SP: Fiel, 2011).
(4) D. A. Carson, Holy Sonnets of the Twentieth Century (Grand Rapids: Baker, 1994), 101.
12
O Deus
que Reúne e Transforma seu Povo

E Em um de seus mais recentes livros, God Is Not Great: How


Religion Poisons Everything (Deus Não É Grande: Como a Religião
Envenena Tudo), o expressivo e interessante ateísta Christopher
Hitchens argumenta que todo o registro religioso — toda religião —
se direciona à guerra, ódio e conflito, quer seja o conflito católico-
protestante em Belfast, em décadas recentes, quer seja em Beirute,
entre pessoas de herança cristã e mulçumanos, quer seja em
Belgrado, Bagdá ou Bombaim. Em todos os lugares do mundo, a
religião envenena tudo. Precisamos dizer que há alguma verdade na
acusação. Não foi por nada que, nos séculos passados, a Guerra dos
Trinta Anos foi, pelo menos em certa medida, uma guerra religiosa.
A razão por que há alguma verdade na acusação formulada por
Hitchens é que uma das coisas que a religião faz — toda religião — é
abordar alguns assuntos como questões de importância
extraordinária. Hoje, o grupo de terroristas predominante é
constituído de mulçumanos, e sem dúvida eles gostariam de ver a
cultura e a fé islâmica desfrutar de maior porção das finanças e da
cultura mundial. Mas o que torna a crença deles tremendamente
importante aos seus próprios olhos é a convicção de que eles
representam a mente de Deus.
Considere isto: Alister McGrath já mostrou em seu livro sobre
ateísmo(1) que, se você não tem religião para transcendentalizar as
coisas, você acaba transcendentalizando algo mais. Em outras
palavras, o ato de fazer que algo seja de importância transcendental
não é exclusivamente uma função da religião. Pode ser uma função
do desejo humano de controlar. No século XX, os poderosos
movimentos do nazismo e do stalinismo não eram impulsionados por
religião. Alguns, no partido nazista, afirmavam seu direito de
reconstrução do cristianismo, mas o propósito era controlar o
cristianismo e restringir suas energias. Na realidade, o que
impulsionava os dois movimentos — nazismo e stalinismo — eram
visões distintas da realidade: em um lado, havia a
transcendentalização da etnicidade — um senso intrínseco da
superioridade ariana, uma acusação cheia de ódio dos judeus e do
Tratado de Versaillles; no outro lado, havia uma
transcendentalização do Estado alicerçado no marxismo social e
teoria econômica. Então, o fato não é que a religião envenena tudo
quando tudo é bom. O século caracterizado pelo maior derramamento
de sangue, o século XX, gerou a maior parte de sua violência em
movimentos que eram distintamente antirreligiosos. O mundo não
perdeu um terço da população do Camboja por causa do cristianismo,
e sim por causa do comunismo.
O cristianismo tem tido os seus fanáticos. A noção de fanatismo
precisa ser considerada. Talvez a maioria das pessoas achem que os
cristãos podem ser colocados em um espectro entre o nominalismo
(cristãos apenas de nome) e o fanatismo (cristãos que são
extremamente intensos em suas crenças e moralidade). Nesta escala,
poderíamos ser mais atraídos ao seu meio, incluídos entre os
moderados. O problema é que a escala é, em si mesma, perniciosa.
Ela presume que o cristianismo seja basicamente esforço e
aprimoramento moral, de modo que o polo de mais elevada
intensidade da escala esteja repleto de pessoas cheias de justiça
própria, superconfiantes, superiores e desdenhosas, pessoas que, no
melhor, são terrivelmente repugnantes.
No entanto, o cristianismo não é isso. Onde quer que o
cristianismo seja vivido de maneira razoavelmente fiel à ênfase
bíblica sobre a salvação pela graça, o que Deus fez por nós em Cristo
e não sobre o que temos feito, uma mudança de tudo pode ser vista.
Tim Keller escreveu:
 
A crença de que você é aceito por Deus por meio de pura
graça é humilhante. As pessoas fanáticas são assim, não
porque são muito comprometidas com o evangelho, e sim
porque não são suficientemente comprometidas.
Pense em pessoas que você considera fanáticas. Elas são
orgulhosas, cheias de justiça própria, obstinadas,
insensíveis e rudes. Por quê? Não é porque elas são cristãs
demais, e sim porque não são cristãs na medida certa. São
fanaticamente zelosas e corajosas, mas não são
fanaticamente humildes, amáveis, sensíveis, empáticas,
perdoadoras e compreensíveis — como Cristo era... O que
nos impressiona como excessivamente fanático é um
fracasso em ser totalmente comprometido com Cristo e seu
evangelho.(2)
 
Se você compreende bem o que temos considerado na Bíblia e
admite que, em última análise, a nossa esperança é a graça de Deus,
isso muda tudo. Essa é a razão pela qual o cristianismo bíblico
sempre teve, em sua herança, a capacidade de desafiar e reformar a
si mesmo: ele retorna à graça de Deus. É por isso que, embora as
cruzadas tenham sido horríveis e indefensáveis, a herança cristã no
Ocidente tem se desculpado por elas inúmeras vezes. E, embora o
islamismo tenha dominado o Oriente Médio com a mesma sede de
sangue, não há na herança do islamismo traços de qualquer pedido
de desculpa por isso.
A escravidão que foi difundida e desenvolvida no Ocidente, da
qual os cristãos participavam, também foi, por fim, destruída pelos
cristãos que tentavam ser mais bíblicos e desafiaram todo aquele
empreendimento perverso. Thomas Sowell analisou o que aconteceu
na Inglaterra sob a influência de Wilberforce e outros líderes cristãos
até que, primeiramente, o comércio de escravos pelo Atlântico fosse
abolido e, por fim, a própria escravidão terminasse no Império
Britânico. Ele observou que o que impeliu o movimento de abolição
foi, inicialmente, cristãos evangélicos determinados a acabar com
aquele mal; por fim, bastante opinião pública foi mobilizada durante
sucessivas gerações de oficiais de governo, para que o movimento
abolicionista fosse levado adiante e chegasse à sua conclusão lógica.
(3)
Apesar dos argumentos revisionistas apresentados para provar
que os abolicionistas descobriram ser mais econômico abolir a
escravidão do que mantê-la, as realidades foram bem diferentes. Por
exemplo, quando a escravidão foi abolida definitivamente, o governo
britânico prometeu pagar a todos os grandes fazendeiros de cana-de-
açúcar, na Jamaica e em outros lugares sob domínio britânico, o
preço dos escravos para libertá-los. A promessa chegava até a metade
do PIB britânico, e eles resolveram isso não porque lhes pouparia
dinheiro, e sim por causa da influência cristã referente ao que é certo
e ao que é errado. Isso não justifica toda a impiedade que foi
cometida antes, mas nos lembra de que, embora a Bíblia possa ser
usada de muitas maneiras vergonhosas, ela pode firmar seguidores
de Jesus tão profundamente na graça de Deus, que todos os sistemas
éticos são transformados. Quando descobre o que é realmente o
evangelho, você se torna humilde. O evangelho não torna as pessoas
arrogantes. Ele as transforma.
Nos capítulos anteriores, vimos como a cruz de Jesus é a base de
nossa reconciliação. Deus propicia a si mesmo. Ele afasta a sua ira
porque é o Deus de amor. Satisfaz seu senso de justiça na pessoa de
seu Filho amado e, em graça, reconcilia consigo mesmo rebeldes
ingratos. O resultado é que eles vêm a Deus humildemente, não
imaginando, nem por um momento, que estão lhe fazendo um favor.
O que acontece é o contrário: eles se apropriam dessa reconciliação,
dessa justificação de Deus, pela fé. Vimos que essa salvação é dada
somente por graça e recebida somente pela fé. Isso se aplica tanto a
judeus como a gentios.
Em outras de suas cartas, Paulo, o apóstolo, desenvolveu seu
argumento de maneiras levemente diferentes. O que farei no resto
deste capítulo é um pouco diferente do que tenho feito
frequentemente. Em vez de focalizar uma passagem curta ou um
capítulo da Bíblia, citarei diversas passagens completas e oferecerei
alguns comentários breves, para que você ouça o argumento de
Paulo, com ênfases diferentes, de que as boas novas a respeito de
Cristo e de sua cruz, o que a Bíblia designa como “o evangelho”,
chama pessoas, as reúne e transforma . Qualquer cristianismo que
não incorpore essa realidade em sua visão não é digno do nome que
possui.
 
EFÉSIOS 2.1-22
 
Paulo escreveu aos crentes que viviam na cidade de Éfeso e
descreveu a conversão deles:
 
Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e
pecados,
nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo,
segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que
agora atua nos filhos da desobediência;
entre os quais também todos nós andamos outrora,
segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade
da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos
da ira, como também os demais.
Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande
amor com que nos amou,
e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida
juntamente com Cristo, — pela graça sois salvos,
e, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar
nos lugares celestiais em Cristo Jesus;
para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da
sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus.
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem
de vós; é dom de Deus;
não de obras, para que ninguém se glorie.
Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas
obras, as quais Deus de antemão preparou para que
andássemos nelas.
Efésios 2.1-10
 
Em outras palavras, os interesses de Paulo não se restringiam a
ver homens e mulheres declarados justos diante de Deus e nada mais.
Certamente, o problema da culpa tem de ser resolvido. O motivo da
ira de Deus tem de ser afastado. Deus mesmo tem de ser propiciado.
O pecado tem de ser expiado. Mas isso ainda me deixa
funcionalmente um pecador. É verdade que precisamos ser
reconciliados com este Deus, mas nós mesmos temos de ser mudados.
Falamos sobre esse tema quando examinamos o que é o novo
nascimento (no capítulo 8). Agora descobrimos algo semelhante, em
terminologia diferente, nos escritos do apóstolo Paulo. “Pois somos
feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus
de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10, ênfase
acrescentada). Tem de haver uma transformação, pois este é o
propósito de Deus na salvação, em sua “feitura”. Essa mudança, essa
nova criação, essa feitura de Deus em nós capacita-nos de tal modo
que faremos boas obras — não porque as boas obras garantam nosso
lugar em Deus, mas precisamente porque elas são o resultado
inevitável dessa nova criação.
Na verdade, se você recorda, Romanos 3 fala sobre judeus e
gentios, ambos sob a ira de Deus, ambos sendo salvos por graça,
mediante a fé. Nesta passagem, Paulo fala sobre judeus e gentios
novamente. Observe o que ele diz em continuação desse capítulo de
Efésios:
 
Portanto, lembrai-vos de que, outrora, vós, gentios na
carne, chamados incircuncisão por aqueles que se intitulam
circuncisos, na carne, por mãos humanas [isto é, os
judeus],
naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da
comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa
[ou seja, a aliança com Abraão e aliança da lei com Moisés;
vós, gentios, não sois parte desta herança], não tendo
esperança e sem Deus no mundo.
Mas, agora [com a vinda de Cristo], em Cristo Jesus, vós,
que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue
de Cristo [ou seja, a sua morte em nosso favor].
Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos [isto é, judeus e
gentios] fez um; e, tendo derribado a parede da separação
que estava no meio, a inimizade,
aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de
ordenanças [ou seja, não estamos mais sob essa aliança da
lei que era somente para os israelitas e, por isso, os
distinguia dos outros], para que dos dois criasse, em si
mesmo, um novo homem, fazendo a paz [um novo povo de
Deus constituído de judeus e gentios, pessoas tiradas de
toda língua, tribo, povo e nação, uma nova humanidade],
e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por
intermédio da cruz [ou seja, não somente reconciliando-os
uns com os outros e, assim, fazendo a paz, mas também
reconciliando-os com Deus e, assim, fazendo a paz, para
que a sua ira não caísse sobe nós; tudo isso a cruz realiza],
destruindo por ela a inimizade.
E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe
[ou seja, gentios] e paz também aos que estavam perto [ou
seja, judeus];
porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito.
Efésios 2.11-18, ênfase acrescentada
 
“Um Espírito.” Em um capítulo anterior apresentei brevemente o
tema do Espírito de Deus, o Espírito Santo. Um pouco de revisão nos
preparará para aprendermos mais sobre ele. Às vezes, a Bíblia nos diz
que Deus envia o seu Espírito, mas também mostra o próprio Espírito
falando. O Espírito é apresentado regularmente não como um poder
abstrato, mas como, de algum modo, semelhante à Palavra eterna, o
Filho eterno, a autorrevelação de Deus, a automanifestação de Deus.
De fato, na noite em que Jesus foi traído e levado para julgamento e
crucificação, ele falou em detalhes sobre o Espírito, que ele enviaria.
Ele o chamou de Espírito Santo; também o designou por outra
palavra que é mais difícil de traduzir: paraklētos, no original. Ela
significa alguém que vem para o lado e ajuda de várias maneiras.
Por exemplo, no evangelho de João, o paraklētos traz convicção de
pecado a pessoas que, de outro modo, seriam justas aos seus próprios
olhos. Ele vem para ser a presença e a manifestação de Deus naquele
momento em que o Filho se encaminha para a cruz, ressuscita e volta
para a sua habitação celestial. É o Espírito quem é derramado em
nós como a presença de Deus entre nós. A Bíblia diz que é o Espírito
quem toma residência na vida de pessoas, transformando-as, dando-
lhes poder.
De fato, nas cartas de Paulo, o Espírito Santo é, às vezes,
chamado — e isso é impressionante — o penhor ou a garantia da
herança prometida (ver 2Co 1.22; 5.5; Ef 1.14). Esta prometida
herança final que devemos receber é um novo céu e uma nova terra, o
lar dos justos, em corpos ressurretos transformados, um mundo
perfeito. O penhor ou a garantia dessa herança, conforme Paulo, é o
Espírito Santo. Realizar a transformação final, no último dia, exigirá
o imensurável poder de Deus, mas o seu poder formidável, o mesmo
poder que ressuscitou Jesus dentre os mortos (ver Ef 1.18-21), está
operando em nós pelo seu Espírito Santo, para nos transformar, para
começar a obra de mudar nosso coração e nossa mente.
Portanto, Paulo fala sobre esta nova humanidade que está sendo
formada por causa do que Cristo fez na cruz — uma nova
humanidade constituída de judeus e gentios; e o Deus trino está em
ação para formá-la. Cristo veio e pregou a paz aos judeus e aos
gentios (ver 2.17), para que, por meio dele, ambos os grupos tenham
acesso ao Pai, em um Espírito. O Pai, o Filho e o Espírito Santo estão
em atividade nesta nova humanidade. Paulo acrescenta:
 
Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas
concidadãos dos santos, e sois da família de Deus,
edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas,
sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular;
no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário
dedicado ao Senhor,
no qual também vós juntamente estais sendo edificados
para habitação de Deus no Espírito.
Efésios 2.19-22
 
Esta é uma visão de cristianismo que vai além do indivíduo; ela
se estende à igreja. A igreja é a “família” de Deus. Em outra
metáfora, a igreja é um edifício que está sendo formado para servir
como “santuário dedicado ao Senhor”, um edifício em que o Senhor
Jesus é a “a pedra angular”. No Antigo Testamento, o tabernáculo,
sucedido pelo templo, era o lugar em que Deus se encontrava com
seres humanos pecaminosos. Já vimos que, no evangelho de João,
Jesus é o templo, o lugar em que Deus se encontra com seres
humanos pecaminosos. Mas essa mesma linguagem é agora aplicada
à igreja: este é o lugar em que as boas novas do que Jesus fez são
anunciadas, o lugar em que seres humanos pecaminosos se
encontram com Deus. Assim como Deus manifestava sua presença no
templo do Antigo Testamento, assim também ele o faz na igreja, pois
Deus vive nessa habitação por meio de seu “Espírito”.
Uma das marcas dos crentes da antiga aliança era a
circuncisão. Esse sinal era tão importante que Paulo se refere
coletivamente aos judeus chamando-os de “a circuncisão”. Nesta
comunidade da nova aliança que Paulo descreve, constituída de
judeus, gentios e todas as outras etnias, a circuncisão não é mais um
sinal determinativo. De fato, em outras passagens, os escritores do
Novo Testamento nos ensinam que o batismo é o sinal público de
alguém se tornar um cristão e se unir com outros crentes, na
disciplina estimuladora da igreja local. No século I, era inconcebível
que alguém se tornasse cristão e, ao mesmo tempo, não se unisse à
igreja cristã e fosse batizado; pois essa comunidade, que foi libertada
pela morte e ressurreição de Cristo, recebe poder do Espírito Santo.
Essa comunidade, a igreja, é a matiz em que os crentes individuais
crescem, florescem, são encorajados e admoestados e,
frequentemente, se tornam líderes.
Algo desastrosamente errado acontece quando a palavra “igreja”
se refere a nada mais do que um edifício ou quando uma igreja local é
formada de muitas pessoas que não conhecem a Deus, não creem em
Cristo, nada sabem sobre o perdão de seus pecados e não
experimentam o poder do Espírito Santo na transformação de suas
vidas. Isso não é o que o Novo Testamento diz que a igreja realmente
é. Imagine o impacto que haveria no mundo se uma igreja local
vivesse os privilégios elevados que Paulo descreve nessa passagem.
E Paulo pode ser mais prático ainda, como veremos.
 
EFÉSIOS 4.17-5.10
 
Isto, portanto, digo e no Senhor testifico que não mais
andeis como também andam os gentios, na vaidade dos
seus próprios pensamentos [ou seja, os gentios em seus
dias antes de se tornarem cristãos],
obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por
causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu
coração [isso parece Romanos 1: detêm a verdade pela
injustiça],
os quais, tendo-se tornado insensíveis, se entregaram à
dissolução para, com avidez, cometerem toda sorte de
impureza.
Mas não foi assim que aprendestes a Cristo,
se é que, de fato, o tendes ouvido e nele fostes instruídos,
segundo é a verdade em Jesus, no sentido de que, quanto ao
trato passado, vos despojeis do velho homem, que se
corrompe segundo as concupiscências do engano,
e vos renoveis no espírito do vosso entendimento,
e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em
justiça e retidão procedentes da verdade.
Efésios 4.17-24, ênfase acrescentada
 
“Criados”? O poder de Deus manifestado na criação, conforme
Gênesis 1 e 2, é agora revelado novamente em uma nova criação que
é tão real como a primeira — ainda não consumada na
transformação da última criação, mas já operando na vida dos
crentes. Eis um quadro de vidas transformadas pelo evangelho:
 
Por isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade com o
seu próximo, porque somos membros uns dos outros.
Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira,
nem deis lugar ao diabo.
Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo
com as próprias mãos o que é bom, para que tenha com que
acudir ao necessitado.
Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e sim
unicamente a que for boa para edificação, conforme a
necessidade, e, assim, transmita graça aos que ouvem. E
não entristeçais o Espírito de Deus [isso pressupõe que o
Espírito Santo é uma pessoa; não entristecemos um poder],
no qual fostes selados para o dia da redenção.
Efésios 4.25-30, ênfase acrescentada
 
“Selados para o dia da redenção” significa marcados como
propriedade de Deus, porque ele já está em nós, já veio como o penhor
da herança prometida. Somos separados para ele, E, se vivemos como
se nada disso tivesse acontecido, entristecemos a Deus, que se
manifestou, por seu Espírito, em nós.
 
Longe de vós, toda amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e
blasfêmias, e bem assim toda malícia.
Antes, sede uns para com os outros benignos, compassivos,
perdoando-vos uns aos outros, como também Deus, em
Cristo, vos perdoou.
Efésios 4.31-32, ênfase acrescentada
 
Assim, somos levados de volta à cruz.
O cristianismo bíblico não vem acompanhado de uma porção de
regras pré-formuladas, como se isso fosse a essência do cristianismo.
Nós, que somos pregadores e pastores, muitas vezes entendemos isso
de modo errado. Talvez pensemos que discernimos sinais de
decadência em nossa cultura, e, se não formos cuidadosos, nosso
primeiro instinto será dizer: “Não faça isso; antes, faça isto”, e
daremos a impressão de que podemos consertar as coisas por
impormos um novo conjunto de regras. Você mostrará quão justo,
bom e disciplinado você é se adotar todas essas regras em sua vida.
Afinal de contas, essa passagem bíblica fala, certamente, de coisas
que devemos e não devemos fazer, como, por exemplo: falar a verdade
e livrar-nos da amargura e da malícia. É claro que há uma estrutura
moral nesta passagem.
A motivação fundamental do cristianismo, no entanto, não é a
adoção de novas regras. Pelo contrário, somos exortados: “Sede uns
para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos
outros, como também Deus, em Cristo, vos perdoou”. O Espírito de
Deus nos transforma por levar-nos de volta à cruz, para que toda a
nossa moralidade seja, antes e acima de tudo, uma função de
gratidão a Deus pelo que Cristo já fez. Vendo o quanto Deus nos
perdoou por meio do que Cristo fez na cruz, como podemos nutrir
amargura para com os outros? Vendo o que ainda está reservado
para o futuro, que já recebemos em parte, pelo penhor do Espírito,
que fortalece nossa resolução moral e nos dá vislumbres de um novo
céu e uma nova terra, como podemos ficar presos nos dolorosos,
agonizantes e limitados interesses de um mundo que passará?
Estamos destinados à eternidade com o Deus Todo-Poderoso. Isso
muda tudo. Quando há um deslize moral na igreja ou no mundo,
precisamos, acima de tudo, ter um entendimento exato, denso e rico
do evangelho, pois ele nos transforma. O Espírito Santo, que Jesus
enviou, nos capacita a viver de maneira diferente da que vivíamos
antes. Todo aquele que tem em si mesmo esta vida, não vive da
maneira que costumava viver. Como o vento misterioso cujos efeitos
podemos ver, mas cujo mecanismo é frequentemente obscuro,
podemos não entender as operações do Espírito, mas vemos os
resultados. E isso se aplica a todos os que são nascidos de Deus.
Por isso, lemos:
 
Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados;
e andai em amor, como também Cristo nos amou e se
entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a
Deus, em aroma suave.
Efésios 5.1-2
 
Você pode ver, de novo, o entrelaçamento do amor de Deus e o
amor de Cristo? “Sede, pois, imitadores de Deus [que nos amou tanto,
que deu seu Filho]... como também Cristo nos amou e se entregou a si
mesmo por nós” (5.1-2, ênfase acrescentada). Não podemos ter um
sem o outro. Eles estão juntos. E, porque recebemos tanto de Deus,
em Cristo Jesus, e somos objetos desse amor, como podemos não
amar? Cristo nos amou e se entregou por nós como uma oferta e
sacrifício de aroma agradável a Deus.
 
Mas a impudicícia e toda sorte de impurezas ou cobiça nem
sequer se nomeiem entre vós, como convém a santos.
Efésios 5.3
 
Ou seja, isso é inconveniente não apenas porque é contra a lei,
embora, sem dúvida, o seja. É inconveniente, também, porque fomos
comprados por um preço. Somos santos. Brincar com a imoralidade
sexual é desonrar o Senhor, o Senhor que nos amou até à morte de
cruz.
 
Nem conversação torpe, nem palavras vãs ou chocarrices,
coisas essas inconvenientes; antes, pelo contrário, ações de
graças.
Efésios 5.4
 
Ações de graças é o alicerce de toda a moralidade cristã, bem
como do falar cristão.
 
Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou
avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e
de Deus.
Efésios 5.5
 
Essa afirmação não é notoriamente penetrante? A avareza é
idolatria porque o que você mais quer se torna seu deus. O que você
busca mais urgentemente se torna o seu deus. A idolatria não exige
alguma pequena imagem feita de pedra, barro, cerâmica ou uma
imagem gigante de um deus esculpida de uma montanha. Idolatria é
qualquer coisa e tudo que toma o lugar de Deus, que me faz tentar
achar minha identidade e lugar no universo por apelar a algo ou a
alguém, e não a Deus. Portanto, a avareza estabelece quem são
nossos verdadeiros deuses. E quanto aos cristãos? Eles foram
reconciliados com Deus pela morte de Cristo e têm sido expostos à
maravilhosa glória e grandeza de Deus — inclusive na cruz.
 
Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou
avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e
de Deus.
Ninguém vos engane com palavras vãs; porque, por essas
coisas, vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência.
Portanto, não sejais participantes com eles.
Pois, outrora, éreis trevas, porém, agora, sois luz no
Senhor; andai como filhos da luz
(porque o fruto da luz consiste em toda bondade, e justiça,
e verdade),
provando sempre o que é agradável ao Senhor.
Efésios 5.5-10
 
Aqui, novamente, a mudança de coração e vida que faz parte do
ser um cristão não pode ser ignorada. A mudança de coração
acontece de tal maneira, que queremos agradar ao Senhor e anelamos
descobrir o que lhe agrada. O cristianismo bíblico transformacional
reúne homens e mulheres na igreja. Essas pessoas que foram
chamadas — judeus e gentios, não importa — e estão sob o senhorio
de Cristo olham para trás, para a cruz, e olham para frente, para o
que ainda está por vir. Pelo poder do Espírito e por causa da
mudança operada em sua vida, eles querem saber o que agrada ao
Senhor.
Deus nos ajude! Nós, que somos cristãos, ainda somos
terrivelmente incoerentes nessas questões. Ainda esperamos a
transformação final que está à nossa frente. Mas olhamos para trás e
vemos que não somos mais o que éramos. Isso foi muito bem
ressaltado por John Newton. Seu nome talvez signifique algo para
você, se já viu o filme Jornada pela Liberdade, sobre William
Wilberforce. John Newton era o velho traficante de escravos que se
tornara um pregador do evangelho. Revendo a sua vida, ele estimou
que havia transportado 20.000 escravos através do Atlântico. Ele
disse que em seus pesadelos ainda podia ouvir os gritos dos escravos.
Em certo momento, ele foi genuinamente convertido. Tornou-se um
cristão, e sua vida foi mudada. No devido tempo, ele se tornou um
pastor. Em sua velhice, ele declarou:
 
Não sou o que deveria ser — sim, quão imperfeito e falho!
Não sou o que desejo ser — detesto o que é mal e quero me
apegar ao que é bom! Não sou o que espero ser — em breve,
em breve me despirei da mortalidade e, com ela, de todo
pecado e imperfeição. No entanto, embora eu não seja o que
deveria ser, nem o que desejo ser, nem o que espero ser,
posso dizer verdadeiramente: não sou o que era antes —
um escravo do pecado e de Satanás. Posso me unir de
coração com o apóstolo e reconhecer: “Pela graça de Deus,
eu sou o que sou”.(4)
Pois, outrora, éreis trevas, porém, agora, sois luz no
Senhor; andai como filhos da luz
(porque o fruto da luz consiste em toda bondade, e justiça,
e verdade),
provando sempre o que é agradável ao Senhor.
Efésios 5.8-10
 
Vejamos mais uma passagem que expressa um contraste
semelhante.
 
GÁLATAS 5.13-26
 
Muito do argumento em Gálatas corresponde ao que Romanos
explica: o que é a justificação, o que a cruz realiza. Quando
enfatizamos essas coisas, temos de falar também sobre como as
pessoas precisam mudar. Não basta que sejamos justificados diante
de Deus e sejamos reconciliados com ele. Precisamos também ser
transformados. Por isso, lemos em Gálatas:
 
Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém
não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede,
antes, servos uns dos outros, pelo amor.
Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede
que não sejais mutuamente destruídos.
Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à
concupiscência da carne.
Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra
a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o
que, porventura, seja do vosso querer.
Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei.
Gálatas 5.13-18
 
Em seguida, Paulo distingue para nós as obras da natureza
pecaminosa e os frutos do Espírito. As obras da natureza pecaminosa
são listados em primeiro lugar:
 
Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição,
impureza, lascívia,
idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras,
discórdias, dissensões, facções,
invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a
estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora,
vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais
coisas praticam.
Gálatas 5.19-21
 
Em contraste com as obras da natureza pecaminosa está o fruto
do Espírito. Afinal de contas, Deus é o Deus que não somente reúne o
seu povo em uma comunidade, mas também o transforma. Em um
antigo hino cristão, nós cantamos: “Ele rompe o poder do pecado e
liberta o prisioneiro”. Ou seja, Deus anula o pecado por meio do que
Cristo fez na cruz, mas também derrama o seu Espírito e capacita os
crentes a viverem de maneira diferente: “Ele rompe o poder do
pecado”. Por isso, lemos:
 
Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei.
E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as
suas paixões e concupiscências.
Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito.
Não nos deixemos possuir de vanglória, provocando uns
aos outros, tendo inveja uns dos outros.
Gálatas 5.22-26
 
Em outras palavras, Cristo, por meio de seu Espírito, começa de
tal modo a obra de transformação no coração e na vida de seus
seguidores, que duas coisas resultam: (1) recebemos o incentivo para
andar “no Espírito”, seguir uma conduta e atitudes que se
harmonizam com o Espírito de Deus; por outro lado, (2) temos
pouquíssimas razões para acreditar que seja realmente um cristão,
aquele em quem a transformação não é evidente de maneira alguma.
 
TOMAR A CRUZ
 
Outra maneira de assimilarmos esse tema mais amplo da obra
de Deus em reunir e transformar seu povo é considerarmos como
Jesus diz aos seus seguidores que tomem a sua cruz. Muitas
passagens do Novo Testamento adotam expressões como essa. Uma
das mais notáveis vem do ensino do Senhor Jesus. Depois de
anunciar com clareza que ele mesmo tinha de ser crucificado, Jesus
disse que, se quisessem ser seus discípulos, os mesmos tinham de
negar a si mesmos, tomar a sua cruz e segui-lo (ver Mt 16.24). Hoje,
quando as pessoas usam expressões como “Todos devemos tomar a
nossa cruz”, a figura comunicada já não é tão significativa. “Oh! que
dor de dente horrível!”, alguns lamentam, “mas temos de tomar a
nossa cruz”. Portanto, tomar a cruz se torna nada mais do que
alguma irritação insignificante — talvez, um parente desagradável.
Mas, no século I, ninguém faria brincadeiras sobre a crucificação.
Naquele século, a crucificação era vista com tal horror que, nos
manuais de comportamento, os pais eram instruídos a não falar
sobre a crucificação para seus filhos. Se um local de crucificação
estava no caminho das pessoas, elas não levariam seus filhos por
aquele local, tomariam outro caminho. No mundo antigo, você não
faria brincadeiras com a crucificação, como não o faria hoje com
Auschwitz. Isso era simplesmente impensável.
Jesus teve a coragem de dizer aos seus discípulos: “Se alguém
quer vir após mim... tome a sua cruz e siga-me”. Tomar a cruz
naquele contexto não significava assumir a sua medida específica de
sofrimento. Significava tomar uma parte da cruz, a haste horizontal,
e levá-la ao lugar de crucificação onde você sofreria e morreria.
Significava morte para o interesse pessoal.
A maioria de nós não será crucificada num sentido literal, mas
seguimos um Senhor que foi crucificado literalmente. Era como se
Jesus estivesse dizendo: “Você não entende? Se eu fui crucificado, e se
você tem de ser meu discípulo, então, você tem de ser crucificado” —
para a maioria de nós, não na mesma maneira física como Jesus
sofreu, mas na morte para o interesse pessoal. Temos de tomar a
nossa cruz e seguir a Jesus, sujeitando-nos ao seu senhorio como ele
mesmo obedeceu perfeitamente a seu Pai celestial.
Por essa razão, Paulo pôde dizer em outra de suas cartas:
“Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não
somente de crerdes nele” (Fp 1.29). Essa afirmação é impressionante.
Foi concedido a você a graça (ou seja, um dom gracioso) não somente
de crer (a fé é um dom), mas também de padecer por Jesus
(igualmente, um dom!). Você toma a sua cruz, e, na maneira de
Cristo ver as coisas, isso é um privilégio. Na perspectiva dos
primeiros cristãos, era um privilégio tal que, quando os apóstolos
foram açoitados pela primeira vez, a seu respeito foi relatado: “E eles
se retiraram do Sinédrio regozijando-se por terem sido considerados
dignos de sofrer afrontas por esse Nome” (At 5.41).
Amy Carmichael, missionária que serviu na Índia resgatando
centenas de órfãos, em meio a muito sofrimento, escreveu este poema:
 
Não tens nenhuma cicatriz?
Cicatriz no pé, lado ou mão?
Ouço-te cantar como poderoso na terra;
Ouço-os saudar tua estrela brilhante e ascendente.
Não tens nenhuma cicatriz?
 
Não tens nenhuma ferida?
Eu fui ferido pelos soldados; esgotado,
Puseram-me numa cruz para morrer; velado
Por bestas vorazes que me cercavam, desfaleci.
Não tens nenhuma ferida?
Nenhuma ferida? Nenhuma cicatriz?
Mas o servo deve ser como o Senhor,
E feridos são os pés que me seguem.
Mas os teus são saudáveis; está me seguindo
Aquele que não tem ferida ou cicatriz?(5)
 
O discernimento contido neste poema resulta de uma vida que
transbordava de compaixão e estava pronta para o sacrifício de si
mesma, uma vida que evitou diligentemente nutrir autopiedade. Isso
é a marca de uma vida cristã normal, transformada.
Há algum tempo, li os seguintes parágrafos em um jornal:
 
Em abril de 1942, Jacob DeShazer era um bombardeiro no
ataque Doodlittle sobre o Japão [esse foi o ataque que
transformou Tóquio em uma fornalha]. Com quatro outros
tripulantes, ele saltou de paraquedas. Dois deles foram
executados. Os outros passaram o resto da guerra — três
anos e quatro meses — em campos de prisioneiros. Foram
espancados, torturados e passaram fome. Em algum
momento, DeShazer pediu uma Bíblia.
Trouxeram-lhe uma Bíblia, permitindo-lhe ficar com ela por
três semanas. “Comecei a ler suas página avidamente”, ele
escreveu depois. “E descobri que Deus me dera novos olhos
espirituais, quando eu olhava para os oficiais e guardas
inimigos que nos fizeram passar fome e espancaram tão
cruelmente a mim e aos meus companheiros. Percebi que
meu terrível ódio por eles foi mudado em amor
compassivo”. Ele sobreviveu e dedicou sua vida à obra
missionária no Japão. Um de seus convertidos foi Mitsuo
Fuchida — o piloto-comandante no ataque a Pearl Harbor.
Fuchida se tornou um evangelista. Jacob DeShazer morreu
em Salem (Oregon), aos 95 anos.(6)
 
Este é o Deus que reúne e transforma seu povo.
Tenho de incluir mais uma citação. Foi escrita por uma ateísta
confesso, Matthew Parris. Ele nasceu em Niassalândia, hoje Malauí.
Ele retornou depois de 45 anos e chegou a uma conclusão que, por
sua própria admissão, confundiu o seu ateísmo:
 
Isto confunde as minhas crenças ideológicas e se recusa
obstinadamente a se harmonizar com minha cosmovisão,
embaraçando a minha crença crescente de que não há
Deus... Tornei-me convencido da enorme contribuição que a
evangelização cristã tem feito na África: fortemente distinta
do trabalho de ONGs seculares, projetos governamentais e
esforços de ajuda internacional. Estes sozinhos não
produzem tal resultado. A educação e o treinamento
sozinhos não o produzem. Na África, o cristianismo muda o
coração das pessoas. Ele traz transformação espiritual. O
renascimento é verdadeiro. A mudança é boa...
Tínhamos amigos que eram missionários, e como criança
estive frequentemente com eles; também estive, somente
com meu irmão menor, em uma tradicional vila rural
africana. Na cidade, trabalhavam para nós africanos que
haviam se convertido e eram crentes firmes. Os cristãos
eram sempre diferentes. Em vez de ter acovardado ou
restringido seus convertidos, a sua fé parecia havê-los
libertado e tranquilizado. Havia uma vivacidade, uma
curiosidade, um envolvimento com o mundo — uma
objetividade em seus lidares com os outros — que parecia
estar faltando na vida tradicional africana. Eram
corajosos.
Aos 24 anos, viajar através do continente reforçou esta
impressão... Sempre que entrávamos em um território onde
missionários trabalhavam, tínhamos de reconhecer que algo
mudara na face das pessoas pelas quais passávamos e com
quem conversávamos: algo nos seus olhos, a maneira como
falavam de maneira direta com você, face a face, sem olhar
para baixo ou para longe. Não tinham se tornado mais
deferentes para com estrangeiros — e, em algumas
maneiras, menos deferentes — tinham se tornado mais
abertos.
Este tempo no Malauí foi o mesmo. Não conheci
missionários... Mas, em lugar disso, observei que alguns
dos mais impressionantes membros africanos da equipe da
organização Pump Aid (em sua maioria, do Zimbábue)
eram, privativamente, cristãos fortes... Seria conveniente
para mim acreditar que a honestidade, a diligência e o
otimismo deles em sua obra não estavam conectados com
sua fé pessoal. A sua obra era secular, mas afetada, com
certeza, pelo que eles eram. E o que eles eram foi, por sua
vez, influenciado por uma concepção do lugar do homem no
universo que o cristianismo havia ensinado.(7)
 
Ouça: o Deus presente, o Deus que se manifestou supremamente
em Jesus, reúne e transforma o seu povo. Sem esta transformação o
cristianismo não é cristianismo, pois este Deus reúne e transforma o
seu povo.

(1) Alister McGrath, The Twilight of Atheism: The Rise and Fall of Disbelief in the Modern
World (New York: Doubleday, 2004).
(2) Timothy Keller, The Reason for God: Belief in an Age of Skepticism (New York: Dutton,
2008), 57.
(3) Ver Thomas Sowell, Race and Culture: A World View (New York: Basic Books, 1994), 210-
14.
(4) Talvez porque foi extraída de um dos seus sermões, esta citação chegou até nós em
várias formas. Por exemplo, compare: Joseph Foulkes Winks, ed., The Christian Pioneer 10
(1856): 84; e Josiah Bull, The Life of John Newton (Edinburgh: Banner of Truth, 2007
[1868]), 289.
(5) Amy Carmichael, “No Scars”?, de Mountain Breezes: The Collected Poems of Amy
Carmichael, ©1999 Dohnavur Fellowship.
(6) National Review 60, no. 7 (April 21, 2008): 12.
(7) Matthew Parris, “As an Atheist, I Truly Believe Africa Needs God”, Times Online,
December 27, 2008,
http://timesonline.co.uk/tol/comment/columnists/matthew_parris/article5400568.ece.
13
O Deus
que É Bastante Irado

O O assunto deste capítulo é solene para aquele que acompanhou a


narrativa bíblica até essa altura; e não deve ser muito surpreendente.
Quaisquer ideias vagas sobre Deus como um grande avô sonolento, e
nada mais, não resistirão à maneira como a Bíblia retrata a justiça
de Deus, seu senso da mais profunda ofensa quando as suas
criaturas querem se distanciar dele. Quando você começa a pensar no
que a Bíblia diz sobre julgamento, percebe que há grande quantidade
de julgamento nas Escrituras de Gênesis 3 em diante. Há o
julgamento do Dilúvio, o sistema de sacrifícios com todos os seus
animais mortos, os ciclos de decadência na época dos juízes, em
Israel, quando a nação se corrompeu vez após vez e enfrentou vários
tipos de juízos, o julgamento que caía sobre os reis de Israel quando
eles eram crescentemente perversos e corruptos, e muitos outros
julgamentos na história bíblica. Vemos o Senhor Jesus com
linguagem severa, em Mateus 23, condenando alguns dos pecados de
seus dias. E o vemos também falando mais sobre o inferno do que o
fez qualquer outro personagem da Bíblia. Portanto, nada disso deve
surpreender-nos se seguimos a narrativa bíblica.
Em nossa cultura, é difícil pensar sobre esse assunto, porque, na
mente popular, a ira é frequentemente conectada com intolerância,
preconceito e dogmatismo. A ira justa não está no topo de nossa
escala de virtudes.
Neste capítulo, focalizaremos uma passagem específica do
último livro da Bíblia e refletiremos sobre o lugar da ira de Deus em
toda a Bíblia.
 
APOCALIPSE 14.6-20
 
Uma das passagens mais atemorizantes da Bíblia está em
Apocalipse 14. Chegamos ao último livro da Bíblia. Há muitas
passagens em que poderíamos explorar o tema da ira de Deus, mas
focalizaremos Apocalipse 14.6-20.
Esta seção é dividida em duas partes: os arautos (três anjos) e a
colheita (duas metáforas sobre colheita). E ambas as seções falam
sobre juízo em termos francamente horríveis. O gênero literário do
último livro da Bíblia é geralmente chamado de literatura
apocalíptica. Está cheio de simbolismo e figuras que não achamos em
outros tipos de literatura. Não podemos explicar aqui como
“funciona” todo o simbolismo no Apocalipse, mas os principais
pensamentos desse capítulo são muito fáceis de entender.
 
Vi outro anjo voando pelo meio do céu, tendo um evangelho
eterno para pregar aos que se assentam sobre a terra, e a
cada nação, e tribo, e língua, e povo,
dizendo, em grande voz: Temei a Deus e dai-lhe glória, pois
é chegada a hora do seu juízo; e adorai aquele que fez o
céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas.Seguiu-se
outro anjo, o segundo, dizendo: Caiu, caiu a grande
Babilônia que tem dado a beber a todas as nações do vinho
da fúria da sua prostituição. Seguiu-se a estes outro anjo, o
terceiro, dizendo, em grande voz: Se alguém adora a besta e
a sua imagem e recebe a sua marca na fronte ou sobre a
mão, também esse beberá do vinho da cólera de Deus,
preparado, sem mistura, do cálice da sua ira, e será
atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e
na presença do Cordeiro. A fumaça do seu tormento sobe
pelos séculos dos séculos, e não têm descanso algum, nem
de dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua
imagem e quem quer que receba a marca do seu nome. Aqui
está a perseverança dos santos, os que guardam os
mandamentos de Deus e a fé em Jesus.Então, ouvi uma voz
do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que,
desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para
que descansem das suas fadigas, pois as suas obras os
acompanham. Olhei, e eis uma nuvem branca, e sentado
sobre a nuvem um semelhante a filho de homem, tendo na
cabeça uma coroa de ouro e na mão uma foice afiada. Outro
anjo saiu do santuário, gritando em grande voz para aquele
que se achava sentado sobre a nuvem: Toma a tua foice e
ceifa, pois chegou a hora de ceifar, visto que a seara da
terra já amadureceu. E aquele que estava sentado sobre a
nuvem passou a sua foice sobre a terra, e a terra foi
ceifada. Então, saiu do santuário, que se encontra no céu,
outro anjo, tendo ele mesmo também uma foice afiada. Saiu
ainda do altar outro anjo, aquele que tem autoridade sobre
o fogo, e falou em grande voz ao que tinha a foice afiada,
dizendo: Toma a tua foice afiada e ajunta os cachos da
videira da terra, porquanto as suas uvas estão
amadurecidas. Então, o anjo passou a sua foice na terra, e
vindimou a videira da terra, e lançou-a no grande lagar da
cólera de Deus. E o lagar foi pisado fora da cidade, e correu
sangue do lagar até aos freios dos cavalos, numa extensão
de mil e seiscentos estádios.
Apocalipse 14.6-20
 
Como já indiquei, a passagem se divide nitidamente em duas
partes.
 
OS ARAUTOS (AP 14.6-13)
 
Anjos são achados frequentemente na literatura
apocalíptica. Neste caso, as proclamações que eles trazem
são progressivas e inter-relacionadas.No versículo 6, o
primeiro anjo convoca toda a humanidade a temer a Deus e
adorá-lo. “Vi outro anjo voando pelo meio do céu”, ou seja,
para ser visto e ouvido por todos. Ele faz uma proclamação
“aos que se assentam sobre a terra”. A sua proclamação
não é para hostes de anjos do céu, e sim para pessoas que
vivem na terra. Ele tinha “um evangelho eterno para pregar
aos que se assentam sobre a terra”. Era para isto que ele
estava lá: para proclamar “um evangelho eterno”. Para
quem? O autor estipula “aos que se assentam sobre a terra”
— e, caso o alcance dessa designação nos escape, ele
acrescenta “a cada nação, e tribo, e língua, e povo”. Mas o
que é este “evangelho eterno” que ele proclama? Há duas
opiniões:(1) Um grupo diz que o conteúdo do “evangelho
eterno”, mencionado no versículo 6, é dado no versículo 7.
Logo, o evangelho eterno é o que o anjo diz no versículo 7:
“Temei a Deus e dai-lhe glória, pois é chegada a hora do seu
juízo; e adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as
fontes das águas”. Nesse caso, parece que o evangelho
eterno é um tipo de ideia genérica como: “Talvez você tenha
ouvido falar de Jesus, talvez não tenha conhecido a
verdade, mas adore a Deus, que tem se manifestado na
natureza, e tudo ficará bem”. Embora essa seja uma
interpretação popular, ela não faz muito sentido, por duas
razões:(a) Quando Apocalipse foi escrito, por volta do ano
90 d.C., a palavra “evangelho” já desfrutava de um
significado fixo. Esse “evangelho” é as grandes boas novas
do que Deus fez na morte e ressurreição de Jesus Cristo em
favor dos desesperadamente necessitados portadores de sua
imagem.(b) Anteriormente, em dois capítulos espetaculares,
Apocalipse 4 e 5, João, o seu autor, teve uma visão que nos
mostra o que é realmente o evangelho. É espetacular.
Gostaria de ter tempo para expor esses dois capítulos.
Apocalipse 4 é para Apocalipse 5 o que um cenário é para
um drama. Em linguagem altamente apocalíptica, Deus é
apresentado no cenário como transcendente, tão
espetacularmente glorioso, que até a mais elevada classe de
anjos cobre sua face diante dele e clama: “Santo, Santo,
Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso” (4.8). Este
capítulo nos diz que ele é o Deus da criação e que toda a
ordem criada vive, se move e tem sua existência totalmente
por causa dele. Isso é Apocalipse 4.Em apocalipse 5, o
drama começa. Na mão direita de Deus, o texto nos diz, há
um rolo selado com sete selos, e este rolo é o livro que
contém todos os propósitos de Deus quanto a julgamento e
bênção para todo o universo. À medida que o drama é
realizado, um anjo proclama a todo o universo: “Quem é
digno de abrir o livro e de lhe desatar os selos?” (Ap 5.2).
Isso significa que alguém tem de ser digno de se aproximar
de Deus, pegar o livro de sua mão direita e servir como
agente de Deus para abrir os selos. No simbolismo da
época, abrir os selos significava fazer acontecer tudo que
estava escrito no rolo. Que anjo pode se aproximar de Deus
e ser o seu agente para fazer acontecer os seus propósitos?
Não se acha ninguém que é digno: nenhum ser angelical,
nenhum ser humano, ninguém nas habitações dos mortos,
ninguém. Afinal de contas, ele é o Deus que é descrito em
termos transcendentes no capítulo anterior. Se a mais
elevada ordem de anjos não ousa olhar para ele, quem se
apresentará e dirá: “Aqui estou, eu farei isso”?Por isso, João
chora, em sua visão. Ele chora não por ser um intrometido
que é frustrado por não ter permissão de ver o futuro. João
chora porque, no simbolismo da visão, se não aparecer
alguém com as devidas qualificações para se aproximar,
pegar o livro e abrir os selos, os propósitos de Deus quanto
a julgamento e bênção não se realizarão. Ou seja, a história
se tornará sem sentido. Não haverá um acerto final. Não
haverá justiça. Os sofrimentos da igreja terão sido inúteis.
Por isso, João chora.Então, uma das figuras interpretadoras
bate no ombro de João e lhe diz: “Pare de chorar, João. Veja!
O leão da tribo de Judá venceu para abrir o livro”. “Então,
olhei”, diz João, “e vi um Cordeiro”. Um leão foi
apresentado, porém João viu um cordeiro. Não devemos
pensar nos dois animais posicionados lado a lado. Isso é
literatura apocalíptica, e uma de suas características é que
metáforas misturadas são muito comuns: o leão é o
cordeiro. O leão da tribo de Judá significa “aquele que vem
da tribo real”. A tribo de Judá era a tribo de Davi, a tribo de
quem o rei viria, a tribo do Messias, o prometido. O leão é
da tribo de Judá. Ele é uma figura real. Ele “venceu”,
sugerindo que prevalecera depois de uma luta. Contudo, o
leão é um cordeiro — um cordeiro morto, um cordeiro
sacrificial. Como esse leão-cordeiro pode se aproximar tão
ousadamente do Deus transcendente? A resposta é que ele
mesmo não se aproxima de Deus vindo de fora, mas surge
do centro do trono (ver Ap 5.6). Ele é um com Deus.
Retornamos, por outro caminho, à complexidade do Deus
único. Quando ele se manifesta como o leão-cordeiro, ao
redor do trono, incontáveis milhões irrompem em um novo
cântico, quando se dirigem a esta figura de Cristo, este
leão-cordeiro, e cantam:
 
Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque
foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que
procedem de toda tribo, língua, povo e nação.
Apocalipse 5.9 — ênfase acrescentada
 
Em outras palavras, o evangelho é o mesmo evangelho que
achamos em Paulo. É o que Deus ordenou por meio de seu Filho, o
leão-cordeiro: pagar o preço do pecado, tomar os efeitos da maldição,
libertar seu povo, reunir e transformar homens e mulheres de toda
tribo, povo, língua e nação. Isso é a boas novas.(2) Portanto, em
Apocalipse 14.6-7, a conexão entre estes dois versículos tem de ser
vista de outra maneira. O fato não é que o versículo 7 nos dá o
conteúdo do evangelho. O conteúdo do evangelho é definido por Jesus,
na cruz, e já foi apresentado para nós em Apocalipse 4 e 5. A conexão
entre Apocalipse 14.6 e 14.7 é um pouco diferente. A conexão é
assim: “Visto que o evangelho está aqui, que ele está sendo
proclamado a todos e que é o único meio pelo qual os propósitos de
Deus quanto à salvação e ao julgamento se realizam, temam a Deus e
deem-lhe glória, porque chegou a hora de seu julgamento. Adorem
aquele que fez os céus, a terra, o mar e as fontes de água”.Em outras
palavras, o versículo 7 não nos dá o conteúdo do “evangelho”
mencionado no versículo 6, e sim o motivo para alguém responder ao
evangelho, uma vez que o fim está próximo. Pessoas de todos os
lugares são chamadas a responder em adoração ao seu Criador, pois
“é chegada a hora do seu juízo”.O segundo anjo anuncia a queda
iminente do paganismo. Esse anjo sai e diz: “Caiu, caiu a grande
Babilônia que tem dado a beber a todas as nações do vinho da fúria
da sua prostituição” (14.8). A cidade histórica de Babilônia era a
capital do Império Babilônico e se localizava no sistema dos rios
Tigres e Eufrates. Em certa época, ela foi a capital do superpoder
regional que destruiu a parte sul da terra de Israel, ou seja, as tribos
de Judá e Benjamim. Ela destruiu o templo em 587 a.C. No tempo em
que o livro de Apocalipse foi escrito, a Babilônia não era mais do que
ruínas e uma pequena vila de pescadores. No entanto, nas
Escrituras, a Babilônia se torna um tipo de símbolo do paganismo
que prossegue freneticamente e, por fim, é destruída. O livro de
Daniel relata que, em certa conjuntura, o rei de Babilônia se
vangloriou: “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei para a
casa real, com o meu grandioso poder e para glória da minha
majestade?” (Dn 4.30). Não é surpreendente que “Babilônia” tenha se
tornado sinônimo do espírito de impiedade que, em todas as épocas,
está naqueles que adoram a si mesmos, seu sucesso e seus bens —
qualquer coisa, exceto o Criador. Uma sociedade livre de Deus é o pior
inimigo de si mesma. Por isso, embora na época do Novo Testamento
a antiga Babilônia já tivesse sido destruída, o seu nome ainda era
usado para se referir à cidade de Roma, que, naquele tempo, era a
capital do superpoder regional e o centro de novas formas de
arrogância pagã.Isto é o que está sendo expresso pelo clamor do
segundo anjo: “Caiu, caiu a grande Babilônia”. Ou seja, isto é um
anúncio da destruição iminente de toda cultura, bem como da
própria Roma, que se estabelece arrogantemente contra Deus. A
Roma pagã havia “dado a beber a todas as nações do vinho da fúria
da sua prostituição”. Na linguagem bíblica, essa “prostituição” não é
primariamente sexual. Antes, a prostituição é uma figura de
linguagem que representa o rejeitar a Deus. Assim como na
prostituição comum uma esposa trai o esposo, na prostituição
espiritual as pessoas traem o Deus que está presente e seguem aos
ídolos. A proeminente voz pagã de Roma tem feito as nações beberem
do vinho da loucura de sua prostituição.O terceiro anjo retrata
vividamente os tormentos que aguardam aqueles que adoram a besta
(ver 14.9-11). A referência à besta procede dos dois capítulos
anteriores. Apocalipse 12.9 apresenta o próprio Diabo, aludido como
“a antiga serpente”, o que novamente nos lembra de Gênesis 3. Essa
antiga serpente chama duas “bestas” como seus agentes. A primeira
besta é tremendamente forte e poderosa, enquanto a segunda besta é
enganadora e, às vezes, chamada de falso profeta. E, na visão de
João, o Diabo, a primeira besta, e a segunda besta atuam juntos,
como um tipo de imitação da Trindade, pretendendo ser Deus,
tentando agir como o Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas somente de
maneira má e destrutiva, nunca sendo capaz de ser Deus. A besta
quer que todos sejam marcados por sua imagem e fiquem sob seu
domínio e controle. Isso é parte da linguagem do capítulo anterior.Por
isso, o terceiro anjo diz em voz alta:
 
Seguiu-se a estes outro anjo, o terceiro, dizendo, em grande
voz: Se alguém adora a besta [ou seja, o emissário de
Satanás] e a sua imagem e recebe a sua marca na fronte ou
sobre a mão,
também esse beberá do vinho da cólera de Deus, preparado,
sem mistura, do cálice da sua ira, e será atormentado com
fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na presença do
Cordeiro.
A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos, e
não têm descanso algum, nem de dia nem de noite, os
adoradores da besta e da sua imagem e quem quer que
receba a marca do seu nome.
Apocalipse 14.9-11
 
A ira de Deus preparada sem mistura? O que isso significa? A
figura é extraída da prática de beber vinho no mundo antigo. Quando
você produz vinho, ele sai com teor alcoólico de cerca de 15%. Pode
ser um pouco maior ou um pouco menor, mas ele não é um produto
destilado no qual a quantidade de álcool pode ser controlada. O vinho
é um processo fermentado, por isso ele depende do açúcar, da
temperatura, do tipo de uvas e assim por diante. Mas, em geral, o
teor alcoólico do vinho é cerca de 15%. Contudo, no mundo antigo,
era muito comum “abrandar” o vinho com água, algo em torno de
uma parte em dez (uma parte de vinho para dez partes de água) e
uma parte em três. A maioria dos vinhos de mesa que as pessoas
bebiam no mundo antigo era abrandado. A figura é uma maneira de
dizer que, no passado, a ira de Deus fora diluída. Como se o texto
dissesse: “Este é, agora, o vinho da ira de Deus preparado sem
mistura. Qualquer manifestação da ira de Deus que vocês viram até
agora — o exílio, por exemplo, as pragas no Antigo Testamento,
doenças, guerras — qualquer uma dessas coisas que vocês viram
como manifestações horríveis da ira de Deus era a forma diluída.
Agora, a ira de Deus será derramada sem mistura”.
Várias figuras são usadas para comunicar esta verdade: “E será
atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na
presença do Cordeiro” (14.10). Isso não significa que os anjos e o
Cordeiro estão assentados, sorrindo e dizendo: “Eu lhes disse isto”.
Significa que há nessas pessoas bastante consciência dos anjos e do
Cordeiro, a quem não poderão ter mais acesso, e consciência de que
isso é parte de seu tormento. Não poderão sair dali. “A fumaça do seu
tormento sobe pelos séculos dos séculos” (14.11).
 
A COLHEITA (AP 14.14-20)
 
A chegada do juízo de Deus é retratada em duas figuras da
agricultura.
 
1. A COLHEITA DE GR OS (AP 14.14-16)
O ensino destes versículos é muito simples: o tempo estabelecido
está chegando, a colheita acontecerá, e não há como escapar dela.
Aquele que é “semelhante a filho de homem” é o próprio Cristo, que
tem “na mão uma foice afiada”. E o anjo que sai do templo (ou seja,
de seu Pai celestial) diz: “Toma a tua foice e ceifa, pois chegou a hora
de ceifar, visto que a seara da terra já amadureceu! E aquele que
estava sentado sobre a nuvem passou a sua foice sobre a terra, e a
terra foi ceifada” (Ap 14.15-16).
Em outras palavras, a vida não continua para sempre,
interminavelmente. Isso não é hinduísmo em que há ciclos de
existência. A história na Bíblia é teológica — ou seja, ela se
encaminha para um momento, para um telos, um alvo, um fim. Ela
começa em um momento e termina em um momento; ela se
encaminha para o fim que Deus designou. Quando chegar o tempo, e
o próprio Senhor passar a sua foice, o tempo como o conhecemos
agora não existirá mais, e o julgamento será final.
 
2. O PISAR DO LAGAR (AP 14.17-20)
 
A visão final enfatiza a amplitude violenta da ira de Deus,
quando ela é finalmente derramada. No mundo antigo, os viticultores
pegavam as uvas que haviam colhido e as colocavam num grande
tanque de pedra. No fundo do tanque, havia pequenos buracos, e,
quando as uvas eram esmagadas, o suco corria por esses buracos,
através de canais de pedra, até vasos coletores. As uvas eram
colocadas no tanque, e as servas tiravam as sandálias, erguiam as
saias, pulavam e esmagavam as uvas. Isso fazia o suco fluir. Em
seguida, o suco era coletado, e dele saiam a fermentação e o vinho
que marcava a prosperidade do viticultor.
Ora, essa figura é usada para retratar pessoas sendo lançadas
no grande lagar da ira de Deus, pessoas que são esmagadas tão
completamente e em números tão elevados, que o sangue delas flui
dos canais até a uma altura de freios de cavalo, numa extensão de
quase 320 quilômetros.
Eu sei que isso é linguagem figurada. O enxofre também é uma
figura. Em outra passagem, trevas e cadeias são figuras, com
certeza. Em ambos os casos, as figuras são usadas para nos dizer
algo importante quanto ao pavor do julgamento final sobre aqueles
que desprezam o “evangelho eterno”. O principal ensino da
linguagem figurada aqui é a plenitude violenta da ira de Deus,
quando ela for derramada no final.
 
REFLEXÕES BÍBLICAS E TEOLÓGICAS SOBRE A IRA DE DEUS
 
O que devemos fazer com isso? Muitos crentes de nossos dias
querem dizer: “Certamente, é melhor pensar no inferno como um
lugar em que haverá punição temporária, até que todas as pessoas
percam, finalmente, toda a consciência: aniquilação”. Outros acham
que é manipulador e cruel pensar no inferno: “Fale apenas sobre o
amor de Deus”. Há diversas coisas que devem ser ditas. Este não é
um assunto fácil, mas tem de ser dito.
 
1. NA BÍBLIA, JESUS FOI A PESSOA QUE MAIS FALOU SOBRE O INFERNO
 
Jesus foi quem apresentou as imagens mais horríveis e mais
vívidas. Ele falou abertamente para os seus discípulos que estavam
em risco de serem crucificados, espancados e sofrerem outras
atrocidades: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a
alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a
alma como o corpo” (Mt 10.28). Ele falou sobre algemas, cadeias,
trevas exteriores. Às vezes, pessoas dizem: “Quero ir para o inferno.
Todos os meus amigos estão lá”. Não há amigos no inferno. Jesus
falou sobre choro e ranger de dentes. Portanto, não é surpreendente
que ele tenha chorado sobre a cidade quando as pessoas não se
arrependeram e creram.
Então, se pessoas acham que falar sobre o inferno é
manipulador, elas têm de acusar Jesus de manipulação. Contudo, a
acusação será sensível apenas se a ameaça do inferno não for real.
Advertir pessoas a abandonarem um prédio em chamas, contando-
lhes as consequências terríveis de permanecer ali e suplicar-lhes que
se apressem a sair dele, nunca seria chamado de manipulação. Visto
que o inferno é real, terrível e tem de ser evitado urgentemente, seria
falta de amor e compaixão de minha parte não advertir as pessoas,
exatamente como o seria da parte de Jesus não advertir as pessoas de
sua época.
A única coisa que muitos americanos sabem a respeito de
Jonathan Edwards, o puritano da Nova Inglaterra, é que ele pregou
um sermão intitulado “Pecadores nas Mãos de um Deus Irado”.
Muitos alunos de ensino médio leem este sermão como parte de suas
aulas de literatura americana ou de história americana. O principal
ensino do sermão é, nas palavras do próprio Edwards: “Não há nada
que mantenha os ímpios, a qualquer momento, fora do inferno, senão
o prazer de Deus”.(1) Nem um pouco da linguagem de Edwards é
ilustrativa. Inúmeras gerações de alunos têm lido e rejeitado o
sermão como bárbaro ou algo pior.(2) Mas o fato é que a pregação
sobre o inferno não constituía o cerne do ministério de Edwards. Ele
pregou e escreveu sobre uma ampla variedade de assuntos, e seu livro
que expõe 1Coríntios 13, conhecido como o capítulo do amor, é, ainda
hoje, uma leitura rica e prazerosa. Nisso, Edwards seguiu a Jesus,
que também pregou sobre uma ampla variedade de assuntos, mas
dedicou algum espaço para advertir sobre o terrível perigo de ir para
o inferno. Mesmo nos detalhes, Edwards não diferiu muito de Jesus.
Se Edwards foi bárbaro, Jesus também o foi. Se devemos agradecer a
Jesus por ter falado a verdade e apresentar uma advertência
necessária, também devemos agradecer a Edwards.
 
2. HÁ INDICA ES DE QUE ESTE LUGAR DE SOFRIMENTO CONTINUA PARA SEMPRE
 
Você observou as palavras de Apocalipse 14.11: “A fumaça do
seu tormento sobe pelos séculos dos séculos”? Isto não parece um
lugar em que o sofrimento chega ao fim. Ou, de novo, alguns
capítulos à frente:
 
Desceu, porém, fogo do céu e os consumiu.
O diabo, o sedutor deles, foi lançado para dentro do lago de
fogo e enxofre, onde já se encontram não só a besta como
também o falso profeta; e serão atormentados de dia e de
noite, pelos séculos dos séculos.
Apocalipse 20.9-10
 
É um consolo ilusório supor que as pessoas lançadas no inferno
serão, por fim, aniquiladas.
 
3. AS PESSOAS NO INFERNO N O PODEM MAIS SE ARREPENDER
 
O inferno não será cheio de pessoas que dirão: “Bem, bem, você
venceu! Sinto muito. Eu me arrependo. Eu gostaria realmente de
outra chance. Gostaria de crer em Jesus. Gostaria de ir para o céu”.
Não posso provar isso, mas creio que há muitas indicações
bíblicas para afirmar que isso é verdade. O último capítulo da Bíblia
diz: “Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda
sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo
continue a santificar-se” (Ap 22.11). Ou seja, você irá para o novo
céu e a nova terra — ou para o inferno — e permanecerá, em
princípio, o que você já era. Se, como um cristão, você já era visto
como justo em Cristo, e foi se conformando cada vez mais à
semelhança de Cristo, você irá para o novo céu e a nova terra, e a
justiça se tornará sua, sem observações, exceções, tendências de cair
ou as influências da velha natureza. “O justo continue na prática da
justiça.” A retidão será consumada. Ou você irá para o inferno e não
se tornará, repentinamente, uma nova pessoa, puro: “Continue o
injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo”. O
mal será consumado.
O inferno estará cheio de pessoas que não queriam ir para lá,
mas também não queriam se humilhar. Por toda a eternidade elas
ainda odiarão a Deus. Ainda desprezarão a cruz. Ainda fomentarão o
pecado; ainda odiarão outros no ciclo interminável de pecado,
iniquidade, ingratidão e idolatria autoescolhidos e suas
consequências. A perspectiva é horrível. O pecado incessante é uma
parte tão integrante do caráter e da constituição delas, que, se
fossem transportadas para o céu, o odiariam. Exatamente como
vimos em João 3, uma passagem que fala sobre o amor de Deus,
quando a luz vem, as pessoas amam mais as trevas do que a luz,
porque as suas obras são más. Este é o horrível pavor do inferno:
punição incessante e, ainda, nenhum arrependimento. Nunca. Essa é
a razão por que a Bíblia nos exorta a “fugir da ira vindoura” (Mt
3.7).
O cristianismo biblicamente fiel não se apresenta como uma
estrutura religiosa excelente que torna os pais mais felizes, os filhos
mais bem educados e que faz os bons cidadãos pagarem os impostos.
Pode produzir melhores pais e cidadãos que pagam os impostos, mas
a questão em jogo no cristianismo bíblico tem a ver com a eternidade:
céu e inferno, assuntos de importância crucial, o relacionamento do
homem com o seu Criador, o que Deus proveu em Cristo, o que a cruz
e a ressurreição significam. Em última análise, o que o inferno mede
é quanto Cristo pagou por aqueles que são livres do inferno. A
medida do sofrimento de Cristo (em maneiras que não pretendo
começar a entender) como Deus-homem é a medida do tormento que
merecemos e ele suportou. E, se você entender isso e crer nisso,
achará difícil contemplar a cruz por muito tempo sem verter
lágrimas.
 
4. TODO CRENTE QUE ENSINA ESTAS COISAS SEM LÁGRIMAS ESTÁ TRAINDO A
JESUS
 
A fé e o pensamento cristão não são favorecidos por pregadores
bravos cujo tom de voz quase sugere que eles não se entristecem com
o fim trágico de outros. Nós, cristãos, deveríamos ser os primeiros a
reconhecer, como Paulo em Efésios 2, que somos todos, por natureza,
filhos da ira — começando por nós, que nos tornamos cristãos. Se
experimentamos o perdão dos pecados e a reconciliação com o Deus
vivo, isso acontece somente por causa da graça do evangelho. Somos
apenas mendigos que dizem aos outros que há comida; somos apenas
condenados que acharam perdão e querem que os outros gozem deste
mesmo perdão.
 
ORAÇÃO CONCLUSIVA
 
Senhor Deus, abra os nossos olhos, para que vejamos a
importância eterna do glorioso evangelho de Cristo. Ajuda-nos a ver
que os terrores que se acham neste mundo, as ameaças e tormentos
mostrados frequentemente no decorrer da história do mundo são
nada, quando comparados com a ira do Cordeiro. Temos diante de
nós uma escolha: viver nossa vida com medo das pessoas e do que
elas pensam, pessoas que, no máximo, podem fazer-nos pouco mal
neste mundo, ou viver nossa vida em temor submisso daquele que
pode destruir tanto o corpo quanto a alma no inferno — e fazer isso
com justiça. Senhor Deus, ajude-nos a voltar-nos para o único
escape, para aquele que levou o nosso pecado, com sua culpa e
penalidade, em seu corpo, na cruz, para que fossemos feitos justiça
de Deus nele. Ajude-nos a cantar juntamente com aquele antigo e
convertido traficante de escravos, John Newton:
 
Vi um Homem pendurado numa cruz
Em agonia e ensanguentado;
Ele fixou o olhar amoroso em mim
Quando perto da cruz eu fiquei.
 
A consciência sentiu, admitiu a culpa
E lançou-me em desespero;
Meus pecados fizeram-no sangrar
E ajudei a pregarem-no na cruz.
 
Ele olhou segunda vez e disse:
“Perdoo graciosamente todo pecado;
Este sangue paga a tua redenção,
Eu morro para que possas viver”.
Sua morte expõe o meu pecado
Em toda a sua cor mais sombria.
O mistério da graça é tal,
Que também sela o meu perdão.
 
Oh! como pode ser que na cruz
O Salvador morreu por mim?
Minha alma rejubila, meu coração exulta
Em pensar que Ele morreu por mim!
 
Senhor Deus, seja misericordioso para mim, um pecador. Por
amor a Jesus, amém.

(1) O sermão já foi publicado muitas vezes em diferentes lugares. Uma versão está
disponível no livreto Sinners in the Hands of an Angry God (Phillipsburg, NJ: P&R
Publishing, 1992), 12.
(2) Ver, por exemplo, a proveitosa abordagem de Douglas A. Sweeney, Jonathan Edwards and
the Ministry of the Word (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009), 132-36.
14
O Deus
que Triunfa

C Chegamos agora a Apocalipse 21 e 22, os dois últimos capítulos


do último livro da Bíblia. No entanto, começaremos com outra
passagem.
No Sermão do Monte, que é registrado em Mateus 5 a 7, Jesus
disse:
 
Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde
a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e
roubam [ou onde o mercado de ações não pode erodi-lo];
mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça
nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem
roubam [ou onde o mercado de ações não tem qualquer
efeito];
porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu
coração.
Mateus 6.19-21
 
A última sentença é tremendamente importante. Observe com
atenção o que Jesus disse. Ele não disse: “Guardai o vosso coração”, e
sim: “Escolhei o vosso tesouro”. Há outras passagens em que somos
advertidos a guardar o coração: “Sobre tudo o que se deve guardar,
guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23).
Mas, nessa passagem do Sermão do Monte, não foi isso que Jesus
disse. O que ele propôs foi algo assim: “O teu coração seguirá o teu
tesouro, então, o escolha corretamente”.
Em outras palavras, se o que você mais valoriza são tesouros da
terra — coisas que podem ser boas em si mesmas, ser apreciadas e
pelas quais podemos dar graças — se isso é todo o horizonte de seu
tesouro, o seu coração seguirá essa direção. “Coração” não se refere
apenas às emoções ou aos impulsos românticos de alguém.
Frequentemente, na Bíblia, “coração” está relacionado com a essência
do ser humano: quem você é, o que pensa, o que ama. E, se o que
você valoriza no coração tem a ver com todas as coisas desta vida, e
isso é tudo, então, o seu coração seguirá isso. Sua criação
imaginativa se direcionará para isso. Sua energia será norteada para
isso. E seus pensamentos convergirão para isso. Você esperará por
isso e sonhará com isso. É claro que, se você for um cristão, também
crerá, em algum nível, que há um novo céu e uma nova terra a serem
ganhos. Todavia, essa crença não significará uma coisa boa em sua
maneira de viver, a menos que o novo céu e a nova terra sejam algo
que você anseia, algo que você entesoura. Se tudo que você valoriza
pertence a esta vida, a crença na vinda de um novo céu e uma nova
terra não o moldará de alguma maneira poderosa.
Se, por outro lado, embora possamos apreciar as coisas boas que
Deus nos dá nesta vida (e há tantas), o que você mais valoriza está
relacionado com o novo céu e a nova terra, a sua imaginação se
direcionará para isso, sua energia se voltará para isso, e seu coração
convergirá para isso. Os cristãos que vivem em partes do mundo onde
há muita perseguição, violência e sofrimento não têm, de modo
algum, dificuldade para entender essa verdade. Você encontra
cristãos no Sul do Sudão ou no Irã, e eles entendem imediatamente
este ensino.
Por contraste, se vivemos em lugares que abundam das coisas
boas deste mundo, nosso coração seguirá facilmente o que há aqui e
raramente se encantará com o que está por vir. Isso significa que
uma das coisas que temos de fazer, se temos de levar a sério a
exortação do Senhor Jesus, é separar tempo para pensar
frequentemente em passagens da Bíblia que nos dizem como são o
novo céu e a nova terra. Precisamos abastecer nossa imaginação
para que vejamos o que o Senhor nos ordenou entesourar, meditar,
valorizar, perseguir.
Há poucas passagens como Apocalipse 21 e 22 que foram
escritas intencionalmente para satisfazer esse propósito. Estes
capítulos são profundamente simbólicos, e há muito pouco espaço
para que eu considere cada versículo e explique todos os símbolos.
Entretanto, mesmo com uma consideração rápida, poderemos ver
sobre o que Jesus estava falando.
 
Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira
terra passaram, e o mar já não existe.
Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do
céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para
o seu esposo.
Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o
tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com
eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com
eles.
E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não
existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque
as primeiras coisas passaram.
E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço
novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas
palavras são fiéis e verdadeiras.
Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o
Princípio e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da
fonte da água da vida.
O vencedor herdará estas coisas, e eu lhe serei Deus, e ele
me será filho.
Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos
abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros,
aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe
será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a
segunda morte.
Então, veio um dos sete anjos que têm as sete taças cheias
dos últimos sete flagelos e falou comigo, dizendo: Vem,
mostrar-te-ei a noiva, a esposa do Cordeiro;
e me transportou, em espírito, até a uma grande e elevada
montanha e me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que
descia do céu, da parte de Deus,
a qual tem a glória de Deus. O seu fulgor era semelhante a
uma pedra preciosíssima, como pedra de jaspe cristalina.
Tinha grande e alta muralha, doze portas, e, junto às
portas, doze anjos, e, sobre elas, nomes inscritos, que são
os nomes das doze tribos dos filhos de Israel.
Três portas se achavam a leste, três, ao norte, três, ao sul, e
três, a oeste.
A muralha da cidade tinha doze fundamentos, e estavam
sobre estes os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro...
 
Nela, não vi santuário, porque o seu santuário é o Senhor, o
Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro.
A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe
darem claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o
Cordeiro é a sua lâmpada.
As nações andarão mediante a sua luz, e os reis da terra
lhe trazem a sua glória.
As suas portas nunca jamais se fecharão de dia, porque,
nela, não haverá noite.
E lhe trarão a glória e a honra das nações.
Nela, nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada,
nem o que pratica abominação e mentira, mas somente os
inscritos no Livro da Vida do Cordeiro.
Então, me mostrou o rio da água da vida, brilhante como
cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro.
No meio da sua praça, de uma e outra margem do rio, está
a árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto
de mês em mês, e as folhas da árvore são para a cura dos
povos.
Nunca mais haverá qualquer maldição. Nela, estará o trono
de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão,
contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome dele.
Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de
candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará
sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos.
Apocalipse 21.1-14; 21.22-22.5
 
Em um dos cursos de primeiro ano que ensino no seminário, às
vezes dou aos alunos um trabalho interpretativo no qual eles têm de
passar por Apocalipse 21 e 22 e separar toda alusão a qualquer coisa
do Antigo Testamento. E há muitas dessas alusões. O que esses dois
capítulos fazem é reunir grande quantidade de temas do Antigo
Testamento — muitos dos quais vimos nos treze capítulos anteriores.
Podemos examinar apenas uma pequena parte deles, mas são
maravilhosos.
O que João, o autor, vê em sua visão final? Ele vê o que é novo
(Ap 21.1-8), o que é especialmente carregado de simbolismo (21.9-
21), o que está ausente (21.22-27) e o que é central (22.1-5).
 
O QUE É NOVO (APOCALIPSE 21.1-8)
 
O que João vê inicialmente é nada menos que “novo céu e nova
terra” (21.1). É claro que isso nos recorda as palavras iniciais de
Gênesis 1: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”. Assim, o
começo da Bíblia se conecta com o seu fim. Mas, agora, esse novo céu
e essa nova terra (como veremos nos versículos seguintes) não são
maculados por qualquer resíduo do pecado de Gênesis 3. É um novo
céu e uma nova terra. Isso é o que João vê: uma transformação da
existência. João acrescenta: “E o mar já não existe” (21.1). Para
aqueles que amam o mar, isso parece cruel, não parece? Mas o que
devemos entender é que para os antigos israelitas o mar estava
associado com caos. Os israelitas não eram um povo marítimo.
Eu nasci no Canadá, mas os meus pais nasceram, ambos, no
Reino Unido. Os britânicos nascem com água salgada nas veias, por
ser uma nação que habita uma ilha. A realidade geográfica os tornou
um povo que viaja pelo mar, e como resultado disso, a literatura e a
poesia dos britânicos estão cheias de figuras do mar. Sendo um
menino que cresceu no Canadá, memorizei poemas como este:
 
Devo ir para os mares novamente, para o mar e o céu
solitário,
Tudo que peço é um navio pequeno e uma estrela para me
guiar,
A força do leme, a canção do vento e a vela branca a
tremular,
Uma névoa cinza na superfície do mar e a aurora
rompendo...
John Masefield(1)
 
No entanto, os israelitas da antiguidade não eram assim. Eram
como um povo encerrado numa terra, e, na ocasião em que tentaram
construir uma frota, sob o governo de Salomão, os navios tiveram de
ser operados por homens dos portos pagãos da região costeira. Por
isso, a poesia israelita é cheia de conotações negativas do mar; o mar
pode estar associado com caos, perigo e coisas semelhantes. Em
Isaías, “os perversos são como o mar agitado, que não se pode
aquietar, cujas águas lançam de si lama e lodo” (Is 57.20). Esta
passagem de Apocalipse não está falando das propriedades da água
nesta nova realidade, sejam elas quais forem. Está dizendo que neste
novo céu e nesta nova terra não há mais caos, não há mais
destruição, não há mais sujeira e lama.
Esta expressão “novo céu e nova terra” remonta a Isaías (ver Is
65.17) e aparece de vez em quando na Bíblia. Aparece, por exemplo,
em uma das cartas de Pedro (ver 2Pe 3.13). Às vezes, a mesma visão
essencial é descrita em outros termos. O apóstolo Paulo escreveu que
essa presente ordem mundial geme como uma mulher grávida e
espera a transformação final do povo de Deus, quando todo o
universo também será transformado (ver Rm 8.19-22).
É assim que a visão de João começa em Apocalipse 21. Quase
imediatamente ela muda. “Vi também a cidade santa, a nova
Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus” (21.2). Não devemos
pensar em uma nova criação em que a nova Jerusalém surge, unindo
assim as duas figuras. Pelo contrário, João está apenas mudando a
metáfora. A literatura apocalíptica sobrepõe com habilidade
metáforas diferentes. O ensino é que o estado final pode ser concebido
como um novo céu e uma nova terra ou pode ser imaginado como
uma nova cidade, uma nova Jerusalém. A mudança capacita os
leitores a vislumbrarem diferentes aspectos da mesma realidade.
A visão de uma “nova Jerusalém” traz à mente a velha
Jerusalém, que era a cidade do grande rei, a cidade do templo, a
cidade em que Deus se manifestou ao seu povo. Mas, agora, o que
João vê em sua visão é uma nova Jerusalém, sem mácula ou
corrupção. Esta nova Jerusalém nunca é derrotada pelos babilônios
ou por ninguém mais. É uma visão profundamente social. Muitos de
nós, ocidentais, pensamos em espiritualidade em termos altamente
individualistas, mas este é o povo de Deus em um contexto social:
uma cidade.
Sei que em parte de nossa literatura ocidental a cidade é
entendida como antro de iniquidade, mas na Bíblia a cidade pode ser
vista como um reservatório de mal ou como um glorioso lugar de
beleza onde Deus vive com seu povo. Como resultado dessa tensão
entre duas associações bem diferentes com a palavra “cidade”,
algumas pessoas, em tom de brincadeira, chamam o livro de
Apocalipse de “uma história de duas cidades”, porque este livro
contrasta duas cidades simbólicas: Babilônia, famosa por idolatria
pagã, e a nova Jerusalém.
João muda o simbolismo novamente. Ele vê a nova Jerusalém
descendo “do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada
para o seu esposo” (Ap 21.2, ênfase acrescentada). A cidade é agora
uma noiva. Se algum rapaz que lê essas páginas está prestes a casar,
recomendo-lhe fortemente que não diga à sua esposa na primeira
noite: “Oh! você é uma cidade tão amável” ou: “Você me lembra uma
grande cidade”. Suspeito que sua esposa ficará confusa. Fiel à sua
natureza, a literatura apocalíptica sobrepõe as figuras sem torná-las
interdependentes. João pula de uma figura para outra.
Diversas vezes, no Antigo Testamento, Deus se apresenta como
um tipo de noivo de seu povo, Israel. A figura é estendida ao Novo
Testamento. Neste, Cristo é o noivo, e a igreja, a noiva. E os dois
estão noivos até à grande ceia de consumação do casamento. Esta é
uma maneira poderosa de dizer, em essência: “A alegria, a
intimidade, o prazer, a união de alma, mente, coração e corpo, que
conhecemos melhor em um casamento bem ordenado, são apenas
uma indicação do tipo de intimidade e alegria que experimentaremos
quando a igreja estiver unida com Cristo para sempre”. Visto que
Jesus é também designado, em outra metáfora, como um cordeiro
sacrificial, o banquete final de casamento pode ser chamado de “ceia
das bodas do Cordeiro” (Ap 19.9). E ainda neste capítulo 21, a cidade
é, depois, referida como uma “noiva, a esposa do Cordeiro” (21.9).
“Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o
tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles” (Ap
21.3). Essa noção de Deus fazendo sua habitação com seu povo
aparece repetidas vezes no Antigo Testamento. Em Levítico 26,
quando o tabernáculo estava sendo montado no deserto, para os
antigos israelitas, antes que houvesse um templo fixo, Deus falou:
“Porei o meu tabernáculo no meio de vós, e a minha alma não vos
aborrecerá. Andarei entre vós e serei o vosso Deus, e vós sereis o meu
povo” (Lv 26.11-12). Neste caso, o lugar da habitação de Deus está
associado com o tabernáculo e, depois, com o templo. O fato de que
os israelitas eram o povo de Deus estava ligado aos rituais no
tabernáculo. Alguns séculos depois, quando Deus prometeu que
haveria uma nova aliança, ele disse: “Na mente, lhes imprimirei as
minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus,
e eles serão o meu povo” (Jr 31.33, ênfase acrescentada). Temos aqui
uma linguagem semelhante. Contudo, se na velha aliança a
habitação de Deus estava ligada à sua autorrevelação no
tabernáculo, nos termos da nova aliança a habitação de Deus está
ligada à sua autorrevelação na mente e no coração de seu povo. É a
mesma linguagem, mas toda a noção é aprimorada. Agora, no último
estágio, a mesma linguagem (“eu serei o seu Deus, e eles serão o meu
povo”) é aprimorada a um nível tal, que a intimidade é tão grande, e
Deus é tão presente com eles, que é inconcebível que algum resíduo de
pecado, decadência, julgamento, perda ou morte possa prevalecer. O
aprimoramento das expectações é tão intenso que a própria perfeição
é prevista. Por isso, lemos:
 
Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará
com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará
com eles.
E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não
existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque
as primeiras coisas passaram.
Apocalipse 21.3-4
 
Aqui, a bem-aventurança eterna é expressa em termos negativos
— ou seja, não haverá lágrimas, nem dores, nem pranto, nem morte,
nada que é mau. Esse é apenas o lado negativo da glória por vir. O
lado positivo é retratado na figura seguinte: estar com Deus em
glória e esplendor, ver as perfeições infinitas que toda a eternidade
não esgotará, porque ele é o nosso Deus, e nós, seu povo,
habitaremos com ele, e ele, conosco, para sempre. Prazer incalculável!
Como se a nossa fé precisasse ser reassegurada, João acrescenta:
 
E aquele que está assentado no trono [ou seja, Deus
mesmo] disse: Eis que faço novas todas as coisas. E
acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e
verdadeiras.
Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega [a
primeira e a última letra do alfabeto grego], o Princípio e o
Fim [desde a criação até à consumação, a nova criação;
desde a criação em sua perfeição, com sua terrível imersão
de pecado, destruição e decadência, até à obra que eu
realizei no envio de meu próprio Filho e no derramamento
do Espírito e até à consumação; eu sou o Alfa e o Ômega, e
o ponto crucial é Jesus; agora chegamos à consumação].
Eu, a quem tem sede, darei de graça [há graça novamente]
da fonte da água da vida.
O vencedor [em Apocalipse, isto se refere àqueles que
perseveram até ao fim na confiança em Jesus; não se refere
ao tipo de cristão que anda pela vida sem nunca se apegar
a estas coisas; ser vitorioso, em Apocalipse, significa que
você persevera em fidelidade, pela graça de Deus, até ao
fim] herdará estas coisas, e eu lhe serei Deus, e ele me será
filho.
Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos
abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros,
aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe
será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a
segunda morte.
Apocalipse 21.5-8
 
Então, o que é novo? O novo céu, a nova terra, a nova Jerusalém,
a união consumada entre Cristo e seu povo. Espetacular!
 
O QUE É CARREGADO DE SIMBOLISMO (APOCALIPSE 21.9-21)
 
Muito do que já dissemos era intensamente carregado de
simbolismo, mas nesses versículos os símbolos se acumulam um
sobre outro tão rapidamente que o leitor pode sentir-se saturado
pelas figuras. Eu precisaria de muitas páginas para considerar todos
os símbolos. Em vez disso, explicarei dois ou três deles.
O texto bíblico nos diz que a cidade que João vê brilha com “a
glória de Deus” (21.11). Ou seja, o povo, esta cidade que desce do céu
brilha com “a glória de Deus”. Sejamos bem francos: mesmo as
melhores igrejas de nossos dias (igrejas cheias do evangelho, nas
quais há disciplina e responsabilidade, e os crentes amam realmente
uns aos outros) são rebanhos defeituosos. A igreja ainda tem seu
quinhão de pecado. É constituída de pecadores como você e eu,
pecadores que, embora declarados justos, são pecadores que ainda
não foram aperfeiçoados e ainda estão longe do que serão. Contudo,
um dia a cidade resplandecerá com a presença de Deus. Nenhuma
mancha em lugar algum. A linguagem é extraída dos profetas do
Antigo Testamento que prenunciaram a Jerusalém que seria
construída depois do exílio, aguardando pela Jerusalém final. Estas
palavras foram dirigidas a Sião, a Jerusalém:
 
Dispõe-te, resplandece, porque vem a tua luz, e a glória do
SENHOR nasce sobre ti.
Porque eis que as trevas cobrem a terra, e a escuridão, os
povos; mas sobre ti aparece resplendente o SENHOR, e a sua
glória se vê sobre ti.
Isaías 60.1-2
 
Agora, a glória de Deus é manifestada na igreja, na nova
Jerusalém. Observe as estranhas dimensões desta cidade:
Aquele que falava comigo tinha por medida uma vara de
ouro para medir a cidade, as suas portas e a sua muralha.
A cidade é quadrangular, de comprimento e largura iguais.
E mediu a cidade com a vara até doze mil estádios. O seu
comprimento, largura e altura são iguais.
Mediu também a sua muralha, cento e quarenta e quatro
côvados, medida de homem, isto é, de anjo.
Apocalipse 21.15-17
 
O significado dos 12.000 e dos 144: a literatura apocalíptica
ama símbolos; e ela nos lembra as doze tribos de Israel e os doze
apóstolos: 12 multiplicado por 12 é igual a 144. Essa é uma maneira
de dizer que todo o povo da antiga aliança e todo o povo da nova
aliança constituem, juntos, este povo unificado (como “um novo
homem” em Cristo, em Efésios 2.15).
Mas, uma cidade construída como um cubo? Até as mais
espetaculares de nossas cidades não são como cubos. Novamente,
isso tem de ser simbólico. Então, você para e pergunta a si mesmo:
“Muito bem, onde há um cubo no Antigo Testamento?” Há apenas
um: o Santo dos Santos, no tabernáculo ou no templo. Você lembrará
que o tabernáculo tinha um cumprimento equivalente a três vezes a
sua largura; e dois terços do tabernáculo constituíam a primeira
parte, o Lugar Santo, e o último terço — semelhante a um cubo
perfeito — era o Santo dos Santos. Era neste lugar que ficava a arca
da aliança, incluindo a cobertura, onde o sangue de novilho e de bode
era aspergido na presença de Deus, no Dia da Expiação. Era neste
lugar que Deus se manifestava em sua glória quando o sangue era
derramado. Agora, somos informados de que a nova Jerusalém, toda
a cidade, é edificada em forma de um cubo. Isto é uma maneira de
dizer que todos nós estaremos para sempre na presença de Deus. Não
precisaremos mais de um sacerdote mediador. Não precisaremos mais
de sangue de sacrifícios. Isto é equivalente ao que descobrimos
quando Cristo foi crucificado: o véu do templo rasgou-se, o caminho
para o Santo dos Santos, a presença de Deus, foi aberto. E toda a
nova Jerusalém é construída em forma de um cubo.
 
O QUE ESTÁ AUSENTE (21.22-27)
 
João nos diz o que ele não vê na cidade, o que está ausente.
 
1. TEMPLO
“Nela, não vi santuário, porque o seu santuário é o Senhor, o
Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro” (Ap 21.22). Não há templo na
cidade porque toda a cidade é construída como um cubo: já estamos
no Santo dos Santos. Não podemos imaginar um templo dentro do
Santo dos Santos! Ou, mudando a linguagem, Deus mesmo, aquele
que se assenta no trono, e o Cordeiro são o templo, o ponto focal, o
âmago do universo, o centro do templo — é aqui que o seu povo está.
Não precisaremos mais de templos como os que nos serviram como
meios, através dos séculos, para nos prepararem para a vinda de
Cristo, porque Cristo já terá vindo.
2. SOL E LUA
“A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem
claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o Cordeiro é a sua
lâmpada” (Ap 21.23). Isto não é uma maneira de explicar-nos as
estruturas astronômicas do novo céu e da nova terra, assim como a
ausência do mar não revela as disposições hidrológicas. Como
sempre, a linguagem é simbólica. No mundo antigo, em uma cultura
que não contava com energia elétrica, as horas da noite traziam
grandes trevas, especialmente se não havia lua. Era costumeiro
fechar os portões da cidade para aumentar a segurança. Assim, uma
pessoa se sentia segura, porque a noite estava ligada a perigo e a
perversidade. Nesse tipo de cultura, o sol e a lua não somente davam
tempo estruturado, por proverem os ciclos normais da vida, mas
também sinalizavam relativa segurança. Agora, João nos diz:
 
A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe
darem claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o
Cordeiro é a sua lâmpada. As nações andarão mediante a
sua luz, e os reis da terra lhe trazem a sua glória. As suas
portas nunca jamais se fecharão de dia, porque, nela, não
haverá noite.
Apocalipse 21.23-25
 
Nenhum perigo, nenhuma maldição, nenhum pecado, nenhuma
rebelião.
 
3. IMPUREZA
Mais extensivamente, não haverá nenhuma impureza: “Nela,
nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que
pratica abominação e mentira, mas somente os inscritos no livro da
vida do Cordeiro” (Ap 21.27).
Você já tentou imaginar como seria não somente ser
perfeitamente puro e imaculado, mas também viver em uma cultura
imaculada e totalmente pura? É tão difícil imaginar isso. Como seria
nunca ter mentido a respeito de algo ou de alguém? Como seria ter
sempre, sempre amado a Deus de coração, alma, mente e força e o seu
próximo como a você mesmo? Como seria viver em uma sociedade em
que isso era verdadeiro quanto a todos ao seu redor? Você entende?
Isso é normal na mente de Deus. Era assim que acontecia no
princípio. É assim que acontecerá no final. Na existência pós-
ressurreição, sem qualquer possibilidade de cair de novo, nenhuma
impureza jamais entrará ali. Nenhuma. Nenhuma rivalidade.
Nenhuma cobiça. Nenhum holocausto. Nenhum ódio. Nenhuma
traição. Nenhuma inveja. Acima de tudo, nenhuma idolatria. Todos
os que entrarem ali serão completa, plena, total e alegremente
teocêntricos, porque é assim que as coisas deveriam ser. Achar todo o
nosso supremo gozo e contentamento no Deus presente, o Deus que se
revela para sempre, perfeita e inesgotavelmente diante de seu próprio
povo, comprado por sangue — isso significa que toda a cultura do
novo céu e da nova terra será impregnada com shalom, o bem-estar, a
prosperidade, a paz social cuja imensurável fonte é aquele que está
assentado no trono e é o Cordeiro.
 
O QUE É CENTRAL (AP 22.1-5)
 
Isto é o clímax da visão: vemos o que é central. Duas coisas são
enfatizadas:
1. A ÁGUA DA VIDA QUE FLUI DO TRONO DE DEUS E DO CORDEIRO
(AP 22.1-3)
 
A linguagem é novamente extraída, em parte, de Gênesis:
 
Então, me mostrou o rio da água da vida, brilhante como
cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro.
No meio da sua praça, de uma e outra margem do rio, está
a árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto
de mês em mês, e as folhas da árvore são para a cura dos
povos.
Nunca mais haverá qualquer maldição. Nela, estará o trono
de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão.
Apocalipse 22.1-3
 
“O trono de Deus e do Cordeiro” nos leva de volta à grande visão
de Apocalipse 4 e 5, mencionada no capítulo anterior. Este Cordeiro, o
próprio Jesus Cristo, é aquele que sai do trono e traz à realização
todos os propósitos de Deus, porque ele é o leão-rei. O trono é, por
assim dizer, um trono compartilhado: é o trono de Deus e do Cordeiro.
E tudo que necessitamos para a vida eterna procede do seu reino. A
água da vida procede de seu trono, plenamente dependente dele, em
suprimento puro. Os doze meses produzem doze frutos; o “doze” nos
lembra, novamente, as doze tribos e os doze apóstolos: todo o povo de
Deus.
Há uma transformação tão profunda, que há cura das nações.
 
2. A VIS O DE DEUS (AP 22.4-5)
 
De fato, a parte mais espetacular de toda a visão está nos
versículos 4 e 5. Às vezes, ela é chamada de visão beatífica, a visão
bendita — a visão de Deus.
 
Contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome dele.
Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de
candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará
sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos.
Apocalipse 22.4-5
 
“Contemplarão a sua face.” Você lembra Êxodo 32 a 34, onde
lemos que Moisés queria ver mais da glória de Deus, ver a face de
Deus? Deus lhe respondeu: “Não me poderás ver a face, porquanto
homem nenhum verá a minha face e viverá” (Êx 33.20). O mais
próximo que podemos chegar de ver a face de Deus, antes da
consumação, é o próprio Jesus, o Deus-homem. Agora, porém, fomos
transformados de tal modo que nossa pecaminosidade, talvez
possamos dizer isso, foi destruída, os últimos estágios da velha
natureza e seus desejos pecaminosos desapareceram. Agora, pela
graça de Deus, temos o privilégio de contemplar a Deus em toda a
sua santidade transcendente. Às vezes, cantamos essas verdades
mesmo quando não as entendemos bem:
 
Face a face com Cristo, meu Salvador,
Face a face — oh! o que será
Quando em êxtase eu contemplar
Jesus Cristo, que por mim morreu?
 
Agora eu o vejo vagamente,
Com um véu que obscurece,
Mas o dia bendito vindo está
Em que sua glória vista será.(2)
 
A maravilha do novo céu e da nova terra não é, em primeira
instância, que você pode estar com sua mãe, que já partiu. Sem
dúvida, haverá uma reunião do povo de Deus. Mas a Bíblia diz muito
pouco sobre tais reuniões, comparado com o que ela diz sobre a pura,
inimaginável e espetacular glória, centrada em Deus, que será nossa
para sempre, quando contemplarmos a Deus em todas as suas
perfeições. Todas as outras descrições bíblicas do estado final, tudo
que é dito em outras partes da Bíblia sobre o trabalho que faremos e
sobre nosso gozo e responsabilidade crescentes e sobre a
tranquilidade de tudo (“O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo
se deitará junto ao cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado
andarão juntos, e um pequenino os guiará”, diz Isaías 11.6) —
embora estas perspectivas sejam maravilhosas, todas perdem seu
brilho em comparação com esta visão da pura divindade de Deus,
esta visão que nos consome, nos capacita e nos deixa perpetuamente
transformados.
Parte de meu trabalho me leva a muitos lugares diferentes do
mundo. Voo muito frequentemente. Mas, de vez em quando, estou
viajando para algum lugar perto de casa; então, viajo de carro. Levo
bastante música; e meu gosto musical é bastante eclético. Pouco
tempo atrás, eu estava ouvindo Roger Whittaker, um cantor popular
cuja peculiaridade é cantar as músicas populares de muitas partes
diferentes do mundo. Naquela gravação, ele cantava uma canção
popular do Canadá, o que aguçou imediatamente meus ouvidos.
Cantava uma canção sobre Cape Breton. A canção descreve o lugar
em termos líricos extravagantes. Na última estrofe, Whittaker
cantava que, se pudesse terminar sua vida tranquilamente,
 
O céu, dom de Deus, seria três coisas:
Meu amor, Cape Breton e eu.(3)
 
Pensei comigo mesmo: “Meu querido Roger, você apenas definiu o
inferno”. Roger e seu “amor” reproduziriam como coelhos, ainda
pecadores. Logo eles teriam Caim e Abel novamente e outra espiral de
decadência. “O céu, dom de Deus, seria três coisas”? Roger Whittaker
ainda pensava em termos totalmente egocêntricos: seu amor, sua
preferência por Cape Breton e ele mesmo. Nada a respeito de Deus —
e isso significa que a idolatria reina.
Na Bíblia, o que esta música chama de “o céu, dom de Deus” é,
antes e acima de tudo, consumado na centralidade de Deus, de tal
modo que, pela primeira vez, sem quaisquer exceções, embargos e
falhas, conheceremos por experiência o que significa obedecer ao que
Jesus chamou de o mandamento mais importante: amar a Deus de
coração, alma, mente e força. E seremos transformados de tal modo
que, conforme esta visão de felicidade eterna, saberemos por
experiência o que significa amar nosso próximo como a nós mesmos.
Por isso, em cada geração e em todos os lugares, os cristãos se
reúnem e oram usando as palavras extraídas do final deste capítulo:
“Amém! Vem, Senhor Jesus!”
 
ORAÇÃO CONCLUSIVA
 
Quão limitada é a nossa visão, quão inadequadas, as nossas
palavras, quão diminuto, o nosso amor por ti, Senhor Deus, em
resposta a tudo que tens feito, em resposta a tudo que tens mostrado
de ti mesmo em teu Filho, por meio de tua Palavra. Encha nosso
coração de alegria, para que não somente nos envergonhemos do
pecado e o detestemos, mas também sejamos atraídos ao teu querido
Filho, à santidade, ao amor transparente uns pelos outros — tudo
isso foi garantido por Cristo e sua obra na cruz em nosso favor. Atrai-
nos ao novo céu e à nova terra, precisamente porque isso nos tornará
melhores mordomos de tua graça neste mundo. Conceda, agora
mesmo, que entendamos em nossa própria experiência, como o
Espírito Santo é o penhor da herança prometida, a antecipação
daquilo que um dia será realidade. Dá-nos o poder de assimilar,
juntamente com todo o povo de Deus, as dimensões infinitas de teu
amor por nós. Molda nossa vida por gratidão e adoração. Dá-nos
coragem e vigor e, com estes, alegria santa e amor por tudo que é
santo. Abra os nossos olhos para que vejamos a Jesus, o preço que ele
pagou e a graça que derramou sobre nós, até que sejamos cativados
por sua beleza, consumidos por um coração cheio de adoração. Por
amor a Jesus, amém.

(1) John Masefield, “Sea-Fever”, Salt Water Ballads, 1902.


(2) Carrie E. Breck, “Face to Face with Christ, My Savior”, 1898.
(3) Roger Whittaker, “My Love, Cape Breton, and Me”, Roger Whittaker’s Greatest Hits,
audio-cassette, RCA AYK1-4743, 1972.
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