O Deus Presente - D. A. Carson
O Deus Presente - D. A. Carson
O Deus Presente - D. A. Carson
Copyright © 2010 by D. A. Carson
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Sumário
Capa
Créditos
Depoimentos
Dedicatória
Prefácio
1-O Deus que Criou Todas as Coisas
2-O Deus que Não Destrói Rebeldes
Editora Fiel
Prefácio
S Se você não sabe nada sobre o que a Bíblia diz, o livro que agora
está em suas mãos é para você.
Se você se tornou recentemente interessado em Deus, ou na
Bíblia, ou em Jesus, mas, com franqueza, acha que grande
quantidade do material sobre o assunto é desanimador e não sabe
onde começar, esse livro é para você.
Se você tem frequentado uma igreja cristã por muitos anos, de
maneira indiferente — uma ótima atividade extracurricular e
ocasional —, mas chegou à conclusão de que realmente precisa saber
mais, esse livro é para você.
Se você tem algumas passagens da Bíblia guardadas em sua
mente, mas não tem a menor ideia de como o êxodo se relaciona com
o exílio ou por que o Novo Testamento é chamado de Novo
Testamento, esse livro é para você.
Se, em sua experiência, a Bíblia contém milhares de informações,
mas você não sabe como ela revela a Deus ou lhe apresenta Jesus de
um modo totalmente humilhante e transformador, esse livro é para
você.
Esse livro não é para todos. A pessoa que quer apenas uma breve
introdução ao cristianismo poderá achá-lo muito grande. O que tento
fazer aqui é passar pela Bíblia em 14 capítulos. Cada capítulo
focaliza uma ou mais passagens bíblicas, explicando e procurando
estabelecer conexões com o contexto maior, unindo as ideias para
mostrar como elas convergem em Jesus. No geral, pressuponho pouca
familiaridade anterior com a Bíblia. Entretanto, pressuponho que o
leitor pegará uma Bíblia e ficará com ela perto de si. No capítulo 1,
falarei como você pode manusear uma Bíblia.
Apresentei o material contido nesses capítulos em vários lugares.
No entanto, eu o apresentei recentemente como uma série de
mensagens pregadas em dois fins de semana, em Minneapolis e Saint
Paul. Essa série foi gravada em vídeo e está disponível em DVD. Cada
palestra pode ser baixada como um arquivo de vídeo gratuito de
thegospelcoalition.org. Os vídeos em série são paralelos quase exatos
aos capítulos aqui apresentados.
Meus calorosos agradecimentos àqueles que me ajudaram a
reunir essa série de mensagens. A lista dos nomes poderia ser
surpreendentemente longa. Gostaria de mencionar, em especial, Lucas
Naugle e sua equipe de vídeo, por sua competência e
profissionalismo; vários membros do ministério Desiring God, por
organizarem as palestras em Minneapolis e Saint Paul; Andy Naselli,
pela transcrição inicial; e Ben Peays, o diretor executivo da The
Gospel Coalition, por elaborar os detalhes. Sou especialmente grato
por aqueles que ouviram partes desse material em ocasiões anteriores
e fizeram perguntas inteligentes e perscrutadoras que me forçaram a
ser um pouco mais claro do que eu seria.
Tenho de dizer-lhe que não pretendo ser um observador neutro,
avaliando com frieza o que alguns considerarão como os prós e os
contras da fé cristã. Tentarei ser tão cuidadoso quanto possível em
lidar com a Bíblia, mas preciso dizer-lhe que sou um cristão. O que
tenho achado de Deus em Jesus Cristo é tão maravilhoso que estou
ansioso para que outros também o saibam — e conheçam a Deus.
Visto que, neste livro, tento explicar coisas, em vez de supor que
todos as saibam, começarei com uma pequena explicação agora
mesmo. Durante anos, tenho colocado à frente de meu nome, nos
prefácios dos livros que escrevi, a frase latina Soli Deo gloria. E a
usarei de novo aqui. A frase significa “Glória somente a Deus” ou “A
Deus somente seja a glória”. Foi uma das cinco frases cunhadas há
500 anos para resumir uma grande quantidade da verdade cristã —
nesse caso, a verdade de que tudo que fizermos deve ser feito para o
louvor de Deus, em exclusão da pompa e da autoglorificação
humana. O grande compositor Johann Sebastian Bach acrescentava
as inicias “SDG” aos manuscritos musicais de cada uma de suas
cantatas. Foi usado de modo semelhante por seu contemporâneo
George Frideric Handel (mais conhecido pelo que chamamos
comumente de “Messias de Handel”). É um pequeno reconhecimento
de algo que está na Bíblia que iremos agora ler, em 1Coríntios 10.31:
“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer,
fazei tudo para a glória de Deus”. E, se você não sabe o que
“1Coríntios” significa, continue lendo!
Don Carson
Soli Deo gloria
1
O Deus
que Criou Todas as Coisas
A Antes de nos engajarmos na primeira passagem da Bíblia, talvez
seja proveitoso dizer-lhe aonde chegaremos nessa série.
Houve um tempo em que, no mundo ocidental, muitas pessoas
liam a Bíblia toda e, por isso, sabiam como harmonizá-la. Mesmo
aqueles que se diziam ateístas eram, eu diria, ateístas cristãos. Isso
significa: o Deus no qual eles não acreditavam era o Deus da Bíblia.
O entendimento deles sobre Deus, que achavam inaceitável, era, em
alguma medida, moldado pela leitura da Bíblia que faziam. Contudo,
hoje, um número crescente de pessoas não conhece a Bíblia
realmente. Nunca a leram ou nunca o fizeram com atenção. Portanto,
o ponto de partida para procurar entender o que é o cristianismo e
quem é Jesus, é começar a lê-la novamente.
Há muitas maneiras pelas quais podemos apresentar o
cristianismo. Podemos, por exemplo, fazer uma breve investigação da
história da igreja cristã. Ou podemos começar analisando o que os
cristãos creem em diferentes partes do mundo. Todavia, a melhor
maneira de fazer isso é examinar os documentos de fundação do
cristianismo. Há 66 desses documentos. Eles variam em tamanho, de
uma página a pequenos livros. Foram escritos num período de 1.500
anos, em três idiomas. A maior parte deles foi escrita em hebraico.
Uma pequeníssima parte foi escrita em um idioma chamado
aramaico, semelhante ao hebraico. E a última parte foi escrita em
grego. Isso significa que todas as Bíblias atuais — as Bíblias que
temos, pegamos, lemos e valorizamos — são traduções do que foi
dado originalmente nesses idiomas.
Esses 66 documentos de fundação são muito diferentes em forma
e gênero literário: alguns são cartas; outros são oráculos de Deus;
alguns são escritos em forma de poesia; alguns são lamentos; alguns
contêm genealogias; alguns refletem intensa luta mental e espiritual
de crentes que tentam entender o que Deus está fazendo na terra;
alguns são escritos em um tipo de literatura que não usamos mais,
chamada “apocalíptica”, que emprega simbolismo admirável e
visivelmente impressionante. Além disso, esses 66 documentos,
chamados frequentemente de os “livros” da Bíblia, são
surpreendentemente variados em termos de acessibilidade: algumas
partes você pode ler com muita facilidade, enquanto outras estão
cheias de simbolismo antigo, que têm de ser explicado porque
pertencem a uma época e lugar bem diferentes do nosso.
Todos esses documentos de fundação, esses “livros”, foram
reunidos para constituir “o Livro”. Isso é o que a “Bíblia” significa.
Ela é o Livro. É o livro de documentos de fundação do cristianismo. E
nós, que somos cristãos, insistimos no fato de que Deus se revelou
supremamente nas páginas desses documentos. Visto que a maioria
das pessoas não lê os idiomas nos quais a Bíblia foi escrita
originalmente (hebraico, aramaico e grego), usam uma tradução para
o seu idioma. Existem muitas traduções na Bíblia para o Português.
Para nosso propósito, não faz muita diferença qual versão você
escolher. Normalmente usa-se a Nova Versão Internacional ou Revista
e Atualizada de João Ferreira de Almeida. Se em algum momento
houver diferença de linguagem entre as versões que sejam
significativas, gastarei um tempo explicando-as.
Nestes capítulos, descreverei o que a Bíblia diz, com a intenção
de mostrar o que o cristianismo significa e como ele é, quando
delimitado por seus próprios documentos de fundação. Algumas
vezes, os cristãos abandonam esses documentos e, assim, traem,
mesmo que involuntariamente, a herança que receberam. No entanto,
a afirmação cristã é que a Bíblia revela o Deus presente.
No primeiro capítulo, refletimos sobre “o Deus que criou todas as
coisas”. Começamos com o primeiro livro da Bíblia, chamado Gênesis.
Os livros da Bíblia estão organizados em capítulos e versículos. Isso
significa que, se você abri-la em qualquer de suas passagens, achará
uma separação marcada com um número grande (o número do
capítulo) e, em seguida, alguns números pequenos (os números dos
versículos). Assim, uma referência como “Gênesis 3.16” significa o
livro de Gênesis, capítulo 3, versículo 16. Se você não é familiarizado
com a Bíblia, a maneira mais fácil de orientar-se quanto à
organização dela é abrir as suas primeiras páginas, nas quais você
achará uma lista que contém os nomes dos livros em ordem: Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e assim por diante, até ao final — todos os
66 livros. Assim, você poderá achar a página para que localize o livro
e, quando abrir o livro, achar o número do capítulo e o do versículo.
Ao longo destes 14 capítulos, me referirei a muitos livros e a muitas
passagens específicas da Bíblia. Se você quiser olhá-los, poderá fazer
isso. Todavia, focalizaremos em uma passagem por vez e a
consideraremos — e, neste caso, será melhor você abrir sua Bíblia
naquela passagem e acompanhar-me.
Mais um pequeno detalhe. Uma olhada rápida na lista de
conteúdo da Bíblia mostrará que ela está dividida em duas partes
desiguais. Os primeiros dois terços são frequentemente chamados de
“Antigo Testamento”, que é constituído de 39 dos 66 livros. Abrange
a história desde a criação até o período de tempo anterior a Jesus. O
último terço da Bíblia é chamado de “Novo Testamento”; é
constituído dos 27 livros restantes. Começa com a história de Jesus e
se concentra resolutamente nele. Os livros do Novo Testamento
procedem, todos, dos primeiros 100 anos dessa era, embora o seu
conteúdo também aponte para o fim da História. As expressões
“Antigo Testamento” e “Novo Testamento” serão explicadas
posteriormente.
GÊNESIS 1-2
Comecemos com Gênesis 1. Talvez você queira ler estes dois
breves capítulos, porque as próximas considerações abordarão partes
deles. As linhas iniciais da Bíblia dizem isto:
No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém,
estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do
abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.
Disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que a luz era
boa; e fez separação entre a luz e as trevas. Chamou Deus à
luz Dia e às trevas, Noite. Houve tarde e manhã, o primeiro
dia.
Gênesis 1.1-5
Depois, em dias sucessivos, várias coisas foram criadas por
Deus. Ele disse: “Haja isto” ou: “Haja aquilo”. E, ocasionalmente, um
refrão é acrescentado: “E viu Deus que isso era bom” (Gn 1.10).
Assim, chegamos ao quinto dia, quando as águas ficam cheias de
seres vivos, e os pássaros voam acima da terra, no firmamento do
céu (1.20). “Criou, pois, Deus os grandes animais marinhos e todos
os seres viventes que rastejam, os quais povoavam as águas,
segundo as suas espécies; e todas as aves, segundo as suas espécies.
E viu Deus que isso era bom” (1.21).
Depois, no sexto dia: “Produza a terra seres viventes, conforme a
sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos,
segundo a sua espécie” (1.24). Outra vez, no final da descrição: “E
viu Deus que isso era bom” (1.25).
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que
rastejam pela terra.
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-
vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do
mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja
pela terra.
E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas
que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e
todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos
será para mantimento.
E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e
a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda
erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez.
Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom.
Houve tarde e manhã, o sexto dia.
Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu
exército.
E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que
fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha
feito.
E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele
descansou de toda a obra que, como Criador, fizera.
Gênesis 1.26-2.3
Em seguida, o restante do capítulo 2 oferece um tipo de
expansão referente à criação dos seres humanos, que consideraremos
no momento oportuno.
GÊNESIS 1-2 E A CIÊNCIA
Visto que grande parte da cultura do século XXI está convencida
que o pensamento científico contemporâneo é fundamentalmente
incompatível com os capítulos iniciais de Gênesis, devo dizer algo
sobre a abordagem que adoto neste livro. Há quatros coisas a
destacar:
1. Há mais ambiguidade na interpretação desses capítulos do
que alguns cristãos reconhecem. Por exemplo, alguns cristãos
presumem que os dois capítulos, lidos responsavelmente, afirmam
que o mundo não é mais do que 4.000 anos mais velho do que a
vinda de Cristo. Outros insistem que o relato desses capítulos é
totalmente compatível com vastas eras. Em específico, alguns acham
que cada “dia” representa uma era. Outros inferem que há um grande
intervalo de tempo entre os versículos 1 e 2 de Gênesis 1.
Outros veem a semana de sete dias, descrita em Gênesis, como
um artifício literário: a semana da criação está cheia de simbolismo e
se focaliza em outros pontos de interesse e não em descrever uma
semana literal.
Outros, ainda, dedicam sua energia em comparar esses dois
capítulos com outros relatos da criação, existentes no mundo antigo
em que o livro de Gênesis foi escrito. Na era babilônica, por exemplo,
houve um documento chamado Enuma Elish, descrevendo a criação
do mundo. Tem sido argumentado que o relato bíblico foi elaborado à
semelhança desses mitos babilônicos.
Em resumo, há diferenças de opinião significativas entre os
cristãos, sem mencionar aqueles que desejam anular todo o relato. O
que faremos com tudo isso?
Afirmo que o relato de Gênesis é uma mistura de gêneros que nos
dá realmente alguns detalhes históricos. Ao mesmo tempo, está cheio
de simbolismo demonstrável. Selecionar o simbólico e o não simbólico
é bastante difícil. Como lidaremos com essa tensão? Eu lhe direi logo
adiante.
2. Há mais ambiguidade nas afirmações da ciência do que
alguns cientistas reconhecem. Recentemente, os meios de
comunicação destacaram as novas aventuras literárias de pessoas
como Richard Dawkins (Deus, um Delírio), Sam Harris (A Morte da
Fé: Religião, Terror e o Futuro da Razão), Christopher Hitchens (Deus
Não É Grande: Como a Religião Envenena Tudo) e outros. Juntos, os
seus escritos constituem o que agora é chamado, algumas vezes, de
“o neo ateísmo”. De modo correspondente, respostas vigorosas, de
vários tipos, têm sido escritas. Podemos pensar, por exemplo, em R.
Albert Mohler — Ateísmo Remix; em David Bentley Hart — Atheist
Delusions: The Christian Revolution and Its Fashionable Enemies
(Ilusões Ateístas: Revolução Cristã e Seus Inimigos Modernos); em
Paul Copan e William Lane Craig, editores de Contending with
Christianity’s Critics: Answering New Atheists and Other Objectors
(Contendendo Com os Críticos do Cristianismo: Respondendo aos
Novos Ateístas e Outros Opositores); ou no ensaio de William Lane
Craig — “Five Arguments for the Existence of God” (Cinco
Argumentos em Favor da Existência de Deus), que interage em
específico com Richard Dawkins.
Todos os livros do novo ateísmo estão baseados na suposição do
materialismo filosófico: tudo que existe é matéria, energia, espaço e
tempo — nada mais. Portanto, qualquer coisa que afirme ir além
disso ou pertencer a algum domínio que não possa ser reduzido a
essas realidades tem de ser rejeitada, até mesmo zombada, como o
resquício de uma superstição que foi declarada tolice há muito tempo
e deve ser imediatamente abandonada.
Apesar disso, eu conheço pessoalmente muitos cientistas
proeminentes que são cristãos. Tenho falado em muitas
universidades. Uma das coisas interessantes que descobri foi isto: se
eu frequentasse igrejas locais nas proximidades e encontrasse alguns
dos professores universitários que pertencem a essas igrejas locais e
são crentes comprometidos, o número deles seria constituído mais de
professores de ciência, de matemática e de matérias semelhantes do
que de professores de artes, psicologia e literatura inglesa. Não é
verdade que um cientista não pode ser um cristão. Por isso, alegro-me
em recomendar-lhe alguns livros que falam sobre cientistas que são
cristãos. Por exemplo, posso recomendar um pequeno livro escrito por
Mike Poole, God and the Scientist (Deus e o Cientista), ou outro
editado por William A. Dembski, Uncommon Dissent: Intellectuals
Who Find Darwinism Unconvincing (Discordância Incomum:
Intelectuais que Acham o Darwinismo Inconvincente), ou a obra
escrita por Li Cheng, um ateísta e cientista chinês que se tornou
cristão, Song of a Wanderer: Beckoned by Eternity (Canção de um
Viandante: Atraído pela Eternidade). Está acontecendo mais debates
do que percebemos.
Se o seu entendimento das origens se enquadra no paradigma
moderno predominante, segundo o qual todo o nosso universo
desenvolveu-se de uma grande explosão que aconteceu há
aproximadamente 15 bilhões de anos, a partir de uma massa
inimaginavelmente condensada, ainda há uma pergunta óbvia a
fazer. Quer você apoie ou não a opinião de que essa grande explosão
aconteceu sob a direção de Deus, cedo ou tarde você é forçado a
perguntar: de onde surgiu aquele material altamente condensado?
É neste ponto que alguns teoristas mostram grande esperteza.
Alan Guth escreveu um livro intitulado The Inflationary Universe (O
Universo Inflacionário). Ele propõe que esse material altamente
condensado que, por fim, resultou na grande explosão surgiu do
nada. E, se você diz que a física não opera assim, ele responde: “Sim,
mas na grande explosão, há o que os físicos chamam de
singularidade”. Uma singularidade é uma ocorrência em que as leis
normais da física não operam. Isso implica que não temos acesso a
elas. Esse é o ponto de mais selvagem especulação, levando um
crítico chamado David Berlinski a escrever:
“Muita coisa que é publicada é simplesmente absurdo. A
derivação de algo a partir do nada, proposta por Alan Guth,
é simplesmente incandescente [esterco de cavalo]. [Ora, ele
usa outra palavra em lugar de ‘esterco’, mas quero poupar
você.] Não me diga que você deriva algo do nada, quando é
evidentemente óbvio a qualquer matemático que isso é um
absurdo impressionante”.(1)
Em outras palavras, há complicações no domínio da ciência que
mostram que ela não é um obstáculo ou uma barreira que
impossibilita aos cristãos, que se submetem à autoridade da
Escritura e querem realmente aprender da ciência, o diálogo
inteligente entre ambos.
3. Qualquer que seja a posição de alguém em relação aos debates
atuais sobre o design inteligente — um dos debates predominantes
em nossos dias —, há uma versão dele que acho quase inescapável.
Deixe-me explicar. Durante os últimos 25 anos, vários grupos de
pessoas — a maioria constituída de cristãos, mas há não cristãos
também — têm apontado para o que chamam de “complexidade
irredutível”, ou seja, estruturas na natureza e no ser humano tão
complexas, que seria estatisticamente impossível terem chegado à
existência por acaso. Apelar à mutação fortuita, ou à mera seleção
dos mais adaptados, ou a quaisquer outros apelos oferecidos nas
várias heranças que surgiram do darwinismo, simplesmente não faz
sentido. Sistemas vivos têm em si uma complexidade irredutível, que
torna estatisticamente impossível que todos os passos necessários,
mas altamente improváveis, tenham sido tomados ao mesmo tempo
— e, sem essa simultaneidade estatisticamente impossível, a vida
não poderia existir. O que isso sugere, argumenta-se, é a necessidade
de um designer.
Alguns argumentam em resposta — muitos incrédulos e alguns
crentes: “Sim, sim, mas esses desenvolvimentos vantajosos,
simultâneos e improváveis podem apenas significar que não
entendemos os mecanismos. Se começarmos a inserir Deus em tudo
que não pudermos explicar, acabaremos colocando Deus nos vazios
de nossa ignorância, e, à medida que aprendermos mais, os vazios se
encherão, e Deus será retirado. Não precisamos de um Deus dos
vazios. Um Deus dos vazios não é apenas péssima ciência, é péssima
teologia”. E assim o debate continua.
Qualquer que seja a sua posição nesse debate — e a literatura já
é imensa —, acho interessante o fato de muitos escritores, que não
afirmam ser cristãos, falarem, às vezes, sobre a sua admiração da
complexidade inimaginável e do esplendor do universo — uma
admiração que chega ao nível do que pode ser chamado de
“adoração”. Por exemplo, penso no livro fascinante Just Six Numbers:
The Deep Forces That Shape the Universe (Apenas Seis Números: As
Forças Profundas que Moldam o Universo), escrito por Martin J. Rees.
Se as realidades físicas que esses números descrevem gerassem um
número um pouco maior ou um número um pouco menor, o universo,
como o conhecemos, não poderia existir. Por exemplo, tem de haver a
distância exata entre uma partícula e outra no nível subatômico para
dar equilíbrio às várias forças em andamento. Apenas seis números,
tão rigidamente fixos em seus limites maiores e menores, tornam
possível o universo físico. Como isso aconteceu? Outros escritores
descrevem a extraordinária complexidade do globo ocular e, embora
sejam abertamente materialistas filosóficos em sua orientação, eles
são tão impressionados pela complexidade e maravilha de tudo, que
começam a tratar a natureza como um deus.
À luz de um ponto de vista cristão, os instintos desses cientistas
são muito bons, exceto que há um Deus que se revelou na glória do
que chamamos natureza. Não tenho certeza se é correto argumentar
com base na complexidade e glória dos seis números ou na rigidez
das penas da cauda do pica-pau ou na complexidade irredutível de
uma célula ou do globo ocular, para chegar à conclusão que Deus
existe. Afinal de contas, Deus não é apenas uma inferência, o fim de
um argumento, a conclusão obtida depois de harmonizar
inteligentemente as evidências. Todavia, se você começa com Deus, o
testemunho de sua grandeza em tudo que vemos ao nosso redor é
extasiante. É necessário um grande desejo por parte do mais cínico
dos cientistas para, ao invés de enxergar isso, apenas dizer: “Ora,
isso é apenas física. Parem de admirá-lo. Não façam isso. Não há
nenhum plano. São apenas moléculas se encontrando com
moléculas”.
4. Por último, deixe-me dizer de onde vim, enquanto
consideramos estes textos. Cerca de 30 anos atrás, um filósofo
cristão chamado Francis Schaffer escreveu um livrete intitulado
Genesis in Space and Time: The Flow of Biblical History (Gênesis em
Espaço e Tempo: O Fluxo da História Bíblica). Ele argumenta que
uma das maneiras de minimizar alguns dos intermináveis debates
que obscurecem as discussões sobre as origens é perguntar: “Qual é o
mínimo que Gênesis 1 e os capítulos seguintes devem estar dizendo
para que o resto da Bíblia faça sentido?” Portanto, eu me guardarei
de dizer-lhe tudo que penso que esses capítulos dizem. Certamente,
isso seria muito extenso. O que desejo sugerir-lhe é que, embora os
debates sobre o simbolismo e o gênero literário de Genesis 1-2 sejam
complexos e a relação deles com a ciência contemporânea seja
bastante discutida, há um mínimo irredutível que esses capítulos
dizem para que a Bíblia tenha coerência. E isso é o que mostrarei
para você nas páginas seguintes.
Então, o que Gênesis 1-2 nos diz?
ALGUMAS COISAS SOBRE DEUS
1. Deus simplesmente existe. A Bíblia não começa com um
grande conjunto de argumentos para provar a existência de Deus.
Não começa com uma abordagem profunda, nem com algum tipo de
analogia adjacente ou algo semelhante. A Bíblia apenas diz: “No
princípio... Deus” (Gn 1.1). Ora, se os seres humanos fossem o teste
de tudo, isso não faria sentido porque, neste caso, teríamos o direito
de assentar-nos e julgar sobre a probabilidade da existência de Deus,
avaliarmos as evidências e sairmos com certa possibilidade de que
talvez exista algum tipo de deus. Assim, nos tornaríamos juízes de
Deus. Mas o Deus da Bíblia não é assim. A Bíblia começa de maneira
simples, porém categórica: “No princípio... Deus”. Ele existe. Ele não
é o objeto que nós avaliamos. Ele é o Criador que nos fez, e isso muda
toda a dinâmica.
Essa maneira de ver a Deus está ligada a alguns
desenvolvimentos no pensamento ocidental que devemos apreciar. Na
primeira parte da Renascença (séculos XIV a XVII) e no tempo da
Reforma (século XVI), a maioria das pessoas no mundo ocidental
pressupunha que Deus existe e sabe todas as coisas. Os seres
humanos existem; e, porque Deus sabe todas as coisas, o que nós
sabemos tem de ser necessariamente um pequeno subconjunto do que
ele sabe. Em outras palavras, todo o nosso conhecimento — porque
Deus sabe todas as coisas — tem de ser um subconjunto do que ele
sabe exaustiva e perfeitamente. Nessa maneira de olhar a realidade,
todo o nosso conhecimento tem de vir a nós, em algum sentido, por
Deus revelar o que ele sabe — por Deus revelá-lo na natureza, pelo
seu Espírito ou pela Bíblia. Isso simplesmente era o pressuposto.
No entanto, a primeira metade dos anos 1600 testemunhou o
surgimento do que é agora chamado de pensamento cartesiano (sob a
influência de René Descartes e aqueles que o seguiram). A maneira
tradicional de pensar sobre o conhecimento mudou. Mais e mais
pessoas basearam seu conhecimento em um axioma que Descartes
tornou popular: “Eu penso, logo, existo”. Hoje, todo aluno de
primeiro ano de filosofia conhece o axioma de Descartes. O próprio
Descartes pensava que esse era um fundamento para todo o
conhecimento humano. Afinal de contas, se você está pensando, não
pode negar sua própria existência; o fato de você estar pensando
mostra que você existe. Descartes procurava um fundamento sobre o
qual cristãos, ateístas, mulçumanos, secularistas e espiritualistas
pudessem concordar e que fosse indisputável. A partir desse
fundamento e de outras abordagens, ele criou, gradualmente, todo
um sistema de pensamento para tentar convencer as pessoas a se
tornarem Católicos Romanos.
Observe, porém, como o axioma funciona: “Eu penso, logo,
existo”. Duzentos anos antes, nenhum cristão teria dito isso tão
facilmente, porque a existência de Deus e o conhecimento absoluto de
Deus eram pressupostos. Nossa existência era dependente dele, e
nosso conhecimento era um minúsculo subconjunto do conhecimento
de Deus. Começar com Deus, e não com “Eu” ou “Eu penso, logo,
existo”, era amplamente considerado apropriado. Se existimos, é por
causa do poder de Deus. Nosso conhecimento e nossa existência são
dependentes de Deus. Mas, deste lado do pensamento cartesiano,
começamos com “Eu”. Começo comigo mesmo. E isso me coloca na
posição de avaliar não somente o mundo, mas também a moral, a
história e Deus, de uma maneira que Deus se torna, no máximo, a
inferência de meu estudo. Isso muda tudo.
Entretanto, a Bíblia não segue essa maneira de pensar. Deus
simplesmente existe.
2. Deus criou tudo que não é Deus. Ele criou tudo que existe. Isso
estabelece uma distinção irredutível entre o Criador e a criatura. Deus
não é uma criatura; por correlação, nesse sentido absoluto, não
somos criadores. Se alguém perguntasse: “Sim, mas como Deus
surgiu?”, a resposta da Bíblia é que a existência de Deus não depende
de nada, nem de ninguém. A minha existência depende dele. A
existência de Deus é autoexistência. Deus não tem causa. Ele apenas
é. Ele sempre foi. Por contraste, todas as outras coisas no universo
começaram a existir em algum lugar, quer em uma grande explosão,
quer em concepção humana. Deus criou tudo. Isso significa que tudo
que existe no universo, à parte de Deus, é dependente de Deus.
3. Há apenas um Deus. Isso se evidencia poderosamente na
Bíblia. Deus falou claramente: “Haja isto”, “Haja aquilo”, “Deus fez
tudo”, “Viu Deus que era muito bom”. Depois, a Bíblia enfatiza essa
verdade repetidas vezes. Por exemplo, nos versículos chamados
Shemá que os judeus recitam até hoje (e estão no quinto livro da
Bíblia: Deuteronômio 6), lemos as seguintes palavras: “Ouve, Israel,
o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6.4).(2) Há apenas um
único Deus.
No entanto, mesmo neste primeiro capítulo da Bíblia há um
indício de complexidade na unicidade de Deus. É apenas um indício.
É difícil saber exatamente o que esse indício significa, mas ele é
impressionante. No relato da criação, lemos: “Deus disse isto”, “Deus
disse aquilo”, “Disse também Deus”. Porém, quando chegamos ao
relato sobre os seres humanos, lemos: “Também disse Deus: Façamos
o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26,
ênfase acrescentada). Isso poderia ser um “nós real”. Se você ouve a
BBC, talvez já ouviu Sua Majestade, a rainha Elizabeth II, dizendo
“nós” e “nos”, referindo-se claramente a si mesma. Até os quadrinhos
cômicos usam essa ideia e retratam a rainha dizendo: “Nós não nos
divertimos”. A Bíblia poderia estar usando um tipo de “nós” editorial
nessa passagem. Mas é interessante que ele seja apresentado nesse
ponto, quando os seres humanos são criados, e que o texto prossiga
falando na primeira pessoa do plural, não somente quando Deus diz:
“Façamos”, mas também nas expressões “à nossa imagem, conforme
a nossa semelhança”. Não ousaremos argumentar muito sobre esses
detalhes. Todavia, isso é uma linguagem estranha, especialmente
porque a Bíblia insiste, frequentemente, que há um único Deus e que
Ele é um só. Isso poderia ser um indício que esse único Deus é um ser
complexo, uma unidade complexa? Isso é algo que atrairá nossa
atenção repetidas vezes à medida que prosseguimos em estudar a
Bíblia.
Não importa como entendemos o plural, a Bíblia diz nessa
passagem que Deus fez criaturas que portam a sua imagem. Leiamos
novamente Gênesis 1.26-27:
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que
rastejam pela terra.
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os [plural] criou.
Retornaremos em breve ao que pode significar ser feito à imagem
de Deus.
4. Deus é um Deus que fala. A primeira ação descrita sob o título
geral “criou Deus os céus e a terra” é esta: “Disse Deus: Haja luz”
(1.3). Suponho que alguém possa imaginar que isso seja uma
maneira metafórica de afirmar que Deus trouxe os céus e a terra à
existência pelo seu poder e que ele não tenha proferido realmente
nenhuma palavra. A expressão é metafórica. Bem, poderia ser. Exceto
que, na criação de Adão e Eva, Deus lhes falou realmente e lhes deu
algumas responsabilidades: “Isto é o que vocês devem fazer. É assim
que o casamento deve ser”. Deus falou com Adão e Eva. Portanto, o
Deus da Bíblia, apresentado no primeiro capítulo, não é um
“impulsionador insensível” e abstrato, um espírito impossível de
definir, um fundamento de todos os seres, uma experiência mística.
Ele tem personalidade e ousa se revelar em palavras que os seres
humanos entendem. Esse retrato de Deus aparece constantemente em
toda a Bíblia. Embora ele seja grande e transcendente, ele é um Deus
que fala.
5. Tudo que Deus faz é bom — muito bom. À medida que o relato
prossegue, você percebe que não há em Genesis 1 e 2 qualquer sinal
de morte, decadência, carnificina, malícia, ódio, rivalidade,
arrogância, orgulho ou destruição. Não há qualquer sinal dessas
coisas. Tudo é muito bom. Apesar de toda a dificuldade que temos
para entender a soberania de Deus em um mundo em que há
sofrimento e mal — retornaremos a esses temas à medida que
avançamos no estudo da Bíblia — a Bíblia insiste que Deus é bom, e
as bases dessa afirmação se acham já no primeiro capítulo de
Gênesis.
6. Deus termina a sua obra de criação e descansa. Isso significa:
Deus para de fazer sua obra de criação. Quando a Bíblia nos diz que
Deus descansou de sua obra, isso não significa que Deus disse:
“Puxa! Estou cansado! Fico feliz por ter terminado. Conseguirei
sentar agora e pôr os pés para cima”. Pelo contrário, isso é uma má
compreensão do texto. Deus chega ao final de sua semana de criação
— não importa como entendamos esta “semana” — e, no fim de sua
obra de criação, ele para. Ele descansa e designa o sétimo dia de uma
maneira especial, uma maneira que consideraremos depois.
7. A criação proclama a glória e a grandeza de Deus. Outro
aspecto da automanifestação de Deus, nesses primeiros capítulos da
Bíblia, está apenas implícito no relato, mas é elucidado nos capítulos
posteriores da Bíblia. Quando você segura um Stradivarius em suas
mãos, quanto mais que você sabe a respeito da história de fabricação
do violino, mais impressionado você fica com o artesão que fez o
instrumento. De modo semelhante, quanto mais sabemos sobre as
coisas criadas — sua vastidão, sua complexidade, sua física, a
habilidade de um pequeno beija-flor em viajar 2.400 quilômetros, em
migração, e retornar para a mesma árvore, a amplitude desde as
dimensões inimagináveis de um universo que se expande até a
pequenez das partículas subatômicas, com suas meias-vidas
incrivelmente curtas — tanto mais a nossa reação deve ser de
adoração e temor genuínos diante do Criador. Essa reação aparece
muitas vezes na Bíblia. Por exemplo:
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento
anuncia as obras das suas mãos.
Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela
conhecimento a outra noite.
Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve
nenhum som;
no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as
suas palavras, até aos confins do mundo.
Salmos 19.1-4
Há algumas coisas sobre Deus que esses dois capítulos iniciais
dizem com clareza. Eles também nos dizem algumas coisas sobre nós
mesmos.
ALGUMAS COISAS SOBRE OS SERES HUMANOS
1. Somos criados à imagem de Deus. Visto que os seres humanos
são criaturas, não é surpreendente que tenhamos vários atributos em
comum com outras criaturas. Sabemos pela genética. Que
porcentagem de meus genes é compartilhada com um chimpanzé ou
com um leitão? Quando um leitão morre e volta ao pó, ele faz
exatamente o que eu faço: eu também volto ao pó. Você e eu somos
parte dessa ordem criada.
Se continuar enfatizando somente a continuidade que os seres
humanos compartilham com os animais, por fim você acabará
chegando ao tipo de posição que Peter Singer, da Universidade de
Princeton, adota. Ele argumenta que toda a vida animal deve ter,
mais ou menos, exatamente o mesmo tipo de direitos que os seres
humanos têm; os seres humanos não são intrinsecamente mais
importantes do que os golfinhos ou os chipanzés. Afinal de contas,
em termos de genética, somos quase o mesmo material. Somos seres
físicos; os animais são seres físicos. Eles nascem, vivem e morrem;
nós também nascemos, vivemos e morremos. Mas Gênesis não vê as
coisas dessa maneira. Gênesis insiste que os seres humanos, e
somente os seres humanos, são feitos à imagem de Deus.
Como você pode imaginar, essa expressão “imagem de Deus” tem
gerado, através dos séculos, discussão interminável. O que significa
ser feito “à imagem de Deus”? Filósofos e teólogos têm escrito livros
enormes dizendo: “Tem algo a ver com a facilidade de linguagem, ou
com nossa autoidentidade, nossos processos de raciocínio, amor que
pode ser altruísta, nossa capacidade de conhecer a Deus”, e assim
por diante. Mas, se você estivesse lendo a Bíblia pela primeira vez e
não soubesse nada sobre esses debates, acho que sua maneira de
entender a expressão “imagem de Deus” seria um pouco mais
simples. Ela se torna um tipo de conceito original que se completa
enquanto você lê a Bíblia. O ensino nessa primeira conjuntura é que,
como portadores da imagem de Deus, refletimos a ele. As maneiras
pelas quais refletimos a Deus se manifestarão à medida que a Bíblia
se abrir para nós.
De que maneiras os seres humanos começam a refletir a Deus,
nesse primeiro capítulo? Deus é um Deus que fala. Ele fala com os
seres humanos, e estes falam de volta com Deus. Existem atributos
comuns de discurso, proposições e conhecimento que podem não
somente ser sentidos, mas também articulados.
Há também algo de criatividade. É claro que nossa criatividade
não é semelhante à de Deus. Neste capítulo, Deus faz coisas; ele cria
as coisas a partir do nada. Não podemos fazer isso. Mas, implantada
no ser humano, como um reflexo de Deus, há certa criatividade.
Trabalhamos com as mãos. Minha esposa faz trabalho espetacular
com bordado, seda e linha metálica; ela faz colchas e vestidos para
meninas. Minha filha é uma cozinheira inventiva e criativa. Eu gosto
de trabalhar com madeira. Alguns escrevem. Alguns são
notavelmente criativos no uso de suas capacidades físicas. Eu tenho
um filho que estuda quase todo novo desafio físico que surge e se
envolve nele. Ele é quase um artista quando aprende a mergulhar, ou
explorar cavernas, ou qualquer que seja o novo desafio. De onde vem
esse impulso criativo? Em geral, a criatividade não é uma
característica de elefantes, viúvas-negras ou rochas.
Os seres humanos têm a capacidade de trabalhar. Deus é
retratado como envolvido no trabalho na semana da criação, que
termina com “descanso”, quando ele chega ao final da obra. O que
Deus dá ao homem e à mulher são certas responsabilidades de
trabalhar este mundo e cuidar do jardim. O trabalho é apresentado
em toda a Escritura como algo intrinsecamente honrável. Os cristãos
não devem chegar ao ponto de achar que trabalhar como operário ou
secretária ou como motorista de ônibus ou fazer pesquisa em química
seja algo “secular”, separado de Deus. Não devemos dizer: “Trabalho
como devo para pagar as contas, e o domingo é o dia em que devo ser
espiritual. Na segunda, eu retorno para tentar desenvolver um novo
remédio que combaterá o câncer. Isso é trabalho e nada tem a ver com
Deus”. Pelo contrário, se este é o universo de Deus, e se fomos criados
à imagem de Deus, então, quando trabalhamos, nosso trabalho
reflete a Deus, sendo oferecido a ele com integridade e gratidão. O
trabalho é significativo porque somos criados à imagem de Deus. O
trabalho realizado desta maneira muda nossa perspectiva sobre quem
somos.
Temos de reconhecer que há diferenças intransponíveis entre
Deus e nós. Já vimos que somente Deus é autoexistente. Nós não
somos, pois, como todas as demais coisas da criação, somos
criaturas dependentes. Deus nunca nos diz que sejamos algo que
somos intrinsecamente incapazes de ser. Ele nunca nos diz: “Sejam
autoexistentes, porque eu sou autoexistente”. Quando a Bíblia
descreve a onipotência de Deus — ou seja, seu poder ilimitado —, ele
não diz: “Sejam onipotentes, porque eu sou onipotente”. No entanto,
em muitos domínios, precisamente porque somos criados à imagem
de Deus, devemos refletir a ele. Essa é a razão por que, depois, Deus
nos dirá na Bíblia: “Sede santos, porque eu sou santo”. (Veremos
posteriormente o que é santidade.) Devemos refletir a Deus de certas
maneiras. Nestes capítulos de Gênesis, Deus é apresentado não
somente como Criador, mas também como o governante soberano de
tudo. E, em uma pequena medida, a função de Deus como o
governante soberano deve ser refletida pelos seres humanos criados,
o homem e a mulher, pois eles foram encarregados do resto da ordem
criada — não para destruí-la, explorá-la ou tornarem-se
economicamente egoístas com ela, mas para serem os mordomos de
Deus sobre o mundo excelente que ele criou. Fomos criados à imagem
de Deus e colocados sob a responsabilidade de cuidar da criação.
Quando fazemos isso, refletimos algo de Deus.
Até a capacidade de conhecer a Deus, deleitar-se nele, é
maravilhosa. Peter Williams escreveu um livro intitulado I Wish I
Could Believe in Meaning: A Response to Nihilism (Gostaria de
Acreditar em Significado: Uma Resposta ao Niilismo). O niilismo é a
opinião de que a vida não tem significado intrínseco ou objetivo.
Muitos caminhos serpeiam em direção ao niilismo, mas nenhum é
mais sedutor do que aquele que diz que os seres humanos não são
nada além de uma coleção de moléculas arranjadas de modo útil,
seres que surgiram por puro acaso da sopa primordial. Onde está o
significado em seres desse tipo? Do ponto de vista da Bíblia, o
significado da vida está vinculado ao fato de sermos criados por
Deus, à sua imagem, e para Deus, com um destino eterno. Isso muda
radicalmente nossa percepção do que os seres humanos são. Do
contrário, andamos em direção ao que um filósofo chamou de
“incoerência autorreferencial”. O que ele pretendia dizer com essa
expressão é que nos comparamos a nós mesmos. Não temos padrões
externos pelos quais alguma coisa deva ser julgada; não podemos
achar uma âncora para nosso ser, em nenhum lugar. Por isso,
mergulhamos em prazeres temporários, ou na busca de dinheiro, ou
na autopromoção, mas não temos uma âncora que nos firma e nos
dá um significado que esteja além de nós mesmos. Não há nenhuma
escala.
Os seres humanos foram criados à imagem de Deus, e, como
portadores dessa imagem, devem trabalhar, dominar e servir como
mordomos de Deus; devem ser abundantemente centrados em Deus.
2. Os seres humanos foram criados macho e fêmea. Em Gênesis
1, que contém o primeiro relato da criação, lemos: “Criou Deus, pois,
o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher
os criou” (Gn 1.27). Mas, em Gênesis 2, que expande a criação dos
seres humanos, tanto o que eles têm em comum como as suas
diferenças são expostas:
Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja
só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea
Havendo, pois, o SENHOR Deus formado da terra todos os
animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao
homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o
homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome
deles.
Deu nome o homem a todos os animais domésticos, às aves
dos céus e a todos os animais selváticos; para o homem,
todavia, não se achava uma auxiliadora que lhe fosse
idônea.
Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e
este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o
lugar com carne.
E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem,
transformou-a numa mulher e lha trouxe. E disse o homem:
Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne;
chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada.
Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher,
tornando-se os dois uma só carne.
Gênesis 2.18-24
Assim, enquanto os capítulos iniciais de Gênesis insistem que os
seres humanos, macho e fêmea, foram criados igualmente à imagem
de Deus, eles também insistem que a mulher foi criada como uma
auxiliadora. Mas homem e mulher se ajuntaram em uma união, uma
união sexual, uma união de casamento. Um padrão é estabelecido;
Gênesis 2 nos diz que, geração após geração, o homem deixará sua
família, a mulher deixará a sua família, e os dois estabelecerão um
novo relacionamento, um novo casamento: os dois se tornarão um.
Essa é uma figura do casamento bem diferente da que alguns
outros oferecem. O homem e a mulher não são apenas animais que
fazem sexo. Isso não é um quadro, digamos, de um harém do antigo
Oriente Próximo, no qual o mais poderoso monarca possui a maioria
das mulheres, e cada mulher não é nada mais do que uma
propriedade, um ser definitiva e intrinsecamente inferior. No quadro
bíblico, a mulher procede do homem. Ela é um com o homem. É
diferente — ela não é idêntica ao homem, é sua companheira sexual e
emocional, para que no casamento os dois se tornem “uma só carne”.
Mas neste quadro há uma visão do casamento que, em última
análise, se torna um modelo do relacionamento esclarecido em
capítulos posteriores da Bíblia.
3. O homem e a mulher eram inocentes. Lemos no último
versículo de Gênesis 2: “Ora, um e outro, o homem e sua mulher,
estavam nus e não se envergonhavam” (v. 25). Tenho certeza que
você já viu alguns quadrinhos de Adão e Eva no jardim, com uma
pequena serpente que desce por um galho, e uma maçã pendurada.
Nesses quadrinhos, não querendo mostrá-los indecentes, o cabelo da
mulher cobre apropriadamente os seus seios, e folhas de figueira e
outros galhos cobrem o homem nos lugares apropriadas. Algum
comentário engraçado é acrescentado nos quadrinhos, e todos nós
rimos. Mas o que a nudez significa neste final de Gênesis 2?
Você sabe que há uma teoria para as colônias de nudistas? Sim,
eu sei que algumas colônias de nudismo são apenas uma desculpa
para orgia sexual. Mas as melhores — se eu puder falar em colônias
de nudismo em uma escala moral — têm certa filosofia vinculada a
elas. A ideia é que, se você puder ser completamente aberto e
transparente em uma parte de sua vida, então, mais cedo ou mais
tarde, você poderá fomentar abertura e transparência em todas as
partes de sua vida. Portanto, começamos com transparência física —
abertura total, nudez total — e talvez ao longo do caminho nos
tornemos, todos, pessoas maravilhosamente abertas, cândidas,
honestas, cuidadosas, amorosas. Isso nunca funciona. Mas é a
teoria. A razão por que isso nunca funciona é que temos tantas
coisas do que nos envergonharmos. Há tanto que precisamos
esconder.
No entanto, nesse relato, Adão e Eva nada tinham a esconder e,
consequentemente, nada do que se envergonhar. Digam-me, homens,
vocês gostariam que sua mãe, esposa ou filha soubesse tudo que
vocês pensam ou sentem? E vocês, mulheres, gostariam que seu pai,
esposo ou filho soubesse tudo que vocês pensam ou sentem?
Escondemos todos os tipos de coisas, não escondemos? Por quê? Por
que temos muito do que nos envergonhar. O que seria nunca ter
contado uma mentira? Nunca ter nutrido amargura? Nunca ter
sucumbido a uma paixão dominante? Nunca ter sido tomado por
ódio? Nunca ter se enchido de arrogância? Mas, pelo contrário,
sempre amar a Deus com o coração, alma, mente e força e o próximo
como a si mesmo? Então, não teríamos nada do que nos envergonhar.
Poderíamos nos permitir andar nus. Não é surpreendente que a
palavra “Éden” signifique “deleite”.
ALGUMAS COISAS A RESPEITO DE COMO GENESIS 1-2
SE ENCAIXA EM TODA A BÍBLIA E EM NOSSA VIDA
Aqui, eu apenas instigarei o assunto. Estes poucos parágrafos
nos preparam para algumas das coisas elucidadas no resto do livro.
1. Estes dois capítulos da Bíblia constituem o contexto
necessário para Genesis 3. Sem entendermos que tudo era muito
bom, não podemos compreender plenamente o que acontece no
capítulo seguinte de Gênesis, que descreve o que às vezes é chamado
de “a Queda”, o começo de uma grande rebelião.
2. A doutrina da criação aparece novamente na Bíblia, em
passagens escritas depois da vinda de Jesus. Todavia, essa noção da
criação é transformada: o que é prometido é uma nova criação e, em
última análise, um novo céu e uma nova terra. A visão bíblica
quanto ao futuro olha para trás, para a velha criação, que sucumbiu
tragicamente à rebelião, ao ódio, à idolatria e ao pecado. É
necessário que Deus realize um novo ato criador, comece outra vez,
crie de novo pessoas, crie uma nova existência. Em alguns escritos do
Novo Testamento, essa perspectiva é chamada de “nova criação”.
Avançamos em direção a um novo céu e uma nova terra, o lar dos
justos. Examinaremos essa perspectiva mais atentamente no último
capítulo desse livro. No entanto, a terminologia para ela é extraída
de Gênesis 1 e 2.
De modo semelhante, Adão é retratado como o ancestral da raça
humana, nossa raça, que cai em corrupção, decadência e idolatria.
Mais tarde, Jesus é chamado de “o segundo Adão” — ou seja, Jesus
começa outra humanidade, uma nova raça, que opera em princípios
bem diferentes. Os cristãos têm de pertencer a este segundo Adão,
pois, do contrário, tudo que a Bíblia fala sobre “o evangelho”, as
boas-novas, não faz sentido. Por igual modo, o tema de descanso e o
tema de jardim também continuarão, como veremos.
3. Acima de tudo, essa visão molda a nossa cosmovisão. Por
exemplo, no politeísmo pagão (ou seja, em concepções do mundo em
que há muitos deuses), os deuses têm diferentes domínios de
atividade: há um deus ou deusa da guerra, um deus do mar, um deus
do amor e assim por diante. Na cosmovisão bíblica, há um único
Deus, que criou todas as coisas. Isso difere, por exemplo, do
hedonismo, em que a razão da existência humana é, em termos
simples, que a pessoa ache tanto prazer quanto lhe for possível, por
todos os meios possíveis, antes de morrer. Mas, na cosmovisão
bíblica, a busca do prazer está vinculada ao próprio Deus. Fomos
criados originalmente por Deus e para Deus, e o melhor e mais
elevado prazer é uma centralidade em Deus que os hedonistas
seculares não podem sequer imaginar. Os prazeres dos hedonistas são
muito efêmeros, insignificantes e limitados.
Alternativamente, o panteísmo nos ensina que todo o mundo e a
divindade material são parte da mesma coisa. Não há diferença.
Portanto, eu sou deus, e você é deus, e todos nós estamos juntos
nesta existência divina. “Eu sou realmente uma pessoa bastante
espiritual, você sabe, e para mim é a vibração dos cristais que me
capacita a estar em harmonia com o universo e me faz sentir
transcendentemente outro”. Isso é um modelo de referência que
muitos adotam. Mas não é a cosmovisão da Bíblia. Deus criou todas
as coisas, e nós, seres humanos, que fomos criados à imagem de
Deus, achamos nossa maior realização, propósito, felicidade e
integridade em estarmos relacionados corretamente com Deus.
4. O que a Bíblia diz sobre a criação é o que fundamenta a noção
de prestação de contas e de responsabilidade humana. Por que
devemos obedecer a Deus? Se ele quer me guiar em direções das quais
não gosto, quem é ele para me dizer o que fazer? Com certeza, sou
livre para escolher outros deuses ou inventar meu próprio deus. Posso
cantar a canção popular: “Eu o fiz do meu jeito”. Quem é Deus para
me dar ordens? Eu o desafio.
No entanto, se Deus me criou, se Deus me planejou, eu lhe devo
tudo — vida, respiração e tudo mais. E, se não vejo as coisas dessa
maneira, estou em desarmonia com o meu Criador. Estou em
desavença com aquele que me planejou e com o que Deus tencionou
que eu fosse. Estou lutando contra mim mesmo e contra o Deus que
me criou. Toda a responsabilidade e prestação de contas humana
diante de Deus estão fundamentadas, em primeira instância, na
criação. Deus nos criou, e somos devedores a ele. Se não
reconhecemos esta verdade simples, então, de acordo com a Bíblia,
essa cegueira é, em si mesma, uma evidência de quão alienados
estamos de Deus. É para o nosso bem que reconhecemos isso, não
porque ele é o intimidador supremo, e sim porque sem ele nem mesmo
estaríamos aqui. E certamente teremos de prestar contas a ele.
Agora estamos prontos para a análise bíblica do que está errado
conosco.
(1) Ron Rosenbaum, “Is the Big Bang Just a Big Hoax? David Berlinski Challenges
Everyone”, New York Observer, June 7, 1998. Este artigo que oferece um resumo sobre
Berlinski e sua obra pode ser achada online em: http://www.observer.com/node/40610.
(2) Às vezes, no Antigo Testamento, ou seja, nos primeiros dois terços da Bíblia, a palavra
“Senhor” se acha em letras maiúsculas, assim: SENHOR. Quando isso acontece, como na
sentença citada, há uma palavra hebraica específica por trás dela, um nome de Deus. O
nome significa algo como “Eu sou” ou “Eu sou o que sou”.
2
O Deus
que Não Destrói Rebeldes
A A passagem da Bíblia que focalizaremos aqui é Gênesis 3. No
final do capítulo anterior, eu disse que Gênesis 1-2 monta o palco
para aquilo que termina mal. Em termos gerais, isso está correto. O
que eu não disse é que há em Gênesis 2 um elemento específico que
monta o palco para Gênesis 3 — ou seja, Gênesis 2.17 relata uma
proibição que Deus deu a Adão e Eva: “Mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que
dela comeres, certamente morrerás.” Eles deviam trabalhar no jardim
e gozar de todos os seus frutos. Era um deleite perfeito. Mas havia
uma proibição: não deviam comer da árvore do conhecimento do bem
e do mal. E, se comessem dela, morreriam.
Consideraremos, em seu devido lugar, por que Deus emitiu a
proibição. Isso não era algo que preparava o casal para o fracasso?
Em qualquer caso, sem notarmos essa proibição, talvez não
possamos entender Gênesis 3.
Seguiremos tão de perto o texto bíblico, que vale a pena citá-lo
aqui. Em seguida, oferecei alguns comentários introdutórios. Antes
de mostrar como o material do primeiro livro da Bíblia é totalmente
essencial a qualquer entendimento correto de toda a Bíblia, explicarei
Gênesis 3 em quatro passos, e mostrarei por que isso é importante
para você e para mim.
Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos
que o SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que
Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?
Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim
podemos comer,
mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse
Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não
morrais.
Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos
abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e
do mal.
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer,
agradável aos olhos e árvore desejável para dar
entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao
marido, e ele comeu.
Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que
estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas
para si.
Quando ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no
jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do
SENHOR Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do
jardim.
E chamou o SENHOR Deus ao homem e lhe perguntou: Onde
estás?
Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava
nu, tive medo, e me escondi.
Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu?
Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?
Então, disse o homem: A mulher que me deste por esposa,
ela me deu da árvore, e eu comi.
Disse o SENHOR Deus à mulher: Que é isso que fizeste?
Respondeu a mulher: A serpente me enganou, e eu comi.
Então, o SENHOR Deus disse à serpente: Visto que isso
fizeste, maldita és entre todos os animais domésticos e o és
entre todos os animais selváticos; rastejarás sobre o teu
ventre e comerás pó todos os dias da tua vida.
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência
e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás
o calcanhar.
E à mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da
tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu
desejo será para o teu marido, e ele te governará.
E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e
comeste da árvore que eu te ordenara não comesses,
maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o
sustento durante os dias de tua vida.
Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a
erva do campo.
No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra,
pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.
E deu o homem o nome de Eva a sua mulher, por ser a mãe
de todos os seres humanos.
Fez o SENHOR Deus vestimenta de peles para Adão e sua
mulher e os vestiu.
Então, disse o SENHOR Deus: Eis que o homem se tornou
como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que
não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e
coma, e viva eternamente.
O SENHOR Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a
fim de lavrar a terra de que fora tomado.
E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim
do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para
guardar o caminho da árvore da vida.
Gênesis 3
ENTENDENDO GÊNESIS 3
Como entendemos este capítulo? Em outra parte da Bíblia —
uma parte que não poderemos explorar em detalhes — existe o relato
sobre o rei Davi seduzindo uma mulher vizinha, e, quando ele é
apanhado, arranja meios de matar o marido da mulher (ver 2Sm 11).
Nesse caso, você tem um homem poderoso (Davi), uma mulher fraca
(a mulher do homem) e algo que é desejado (a mulher).
O profeta Natã foi enviado por Deus para confrontar o rei Davi
quanto ao seu adultério e assassinato sagazmente ocultado (ver 2Sm
12). Pelo fato do rei ser um autocrata, o profeta se dirigiu a ele com
certa medida de cuidado e, por isso, começou com uma parábola. Ele
disse: “Vossa Majestade, algo muito triste aconteceu em nosso país.
Há um fazendeiro muito rico, que tem rebanhos e gado, tão
numerosos que o senhor nem acredita. Ao lado dele, vive um
agricultor pobre, que possui apenas uma ovelhinha — e não a possui
mais. Algumas pessoas chegaram para visitar o homem rico. E, para
preparar o banquete para os visitantes, o fazendeiro rico matou a
única ovelhinha do agricultor pobre”. Agora, temos um homem muito
poderoso (o fazendeiro rico), um homem fraco (o agricultor pobre) e
algo desejado (a única ovelha desse agricultor). A parábola tem o
propósito de demonstrar a traição de Davi. Inicialmente, Davi não viu
a conexão, mas, por fim, percebeu a ligação. Ele foi denunciado e
esmagado por sua corrupção idólatra.
É fácil perceber por que Natã contou a parábola e descobrir a
intenção dela: estabelecer uma situação análoga, contando algo
semelhante ao que acontecera, tendo os mesmos elementos
essenciais: um homem rico, um homem fraco e algo desejado.
Todavia, se você comparar as histórias em detalhes, verá algumas
diferenças. No primeiro caso, o que é desejado é uma mulher; no
segundo, uma ovelha. No primeiro caso, um homem fraco é morto,
para que Davi esconda o seu pecado; mas, no segundo caso, aquilo
que é desejado é morto (a ovelha). As histórias não são exatamente
correspondentes. Se fossem exatamente a mesma, não seriam uma
analogia ou uma parábola. Em outras palavras, às vezes as histórias
atingem o âmago da questão, mas contêm tantos símbolos que
precisamos labutar para estruturar os detalhes e entender a lição
principal.
Isso acontece em Gênesis 3. A serpente pode ser a incorporação
de Satanás ou pode ser o símbolo que o representa. E a Bíblia não se
preocupa realmente em explicar isso. O que ela diz realmente sobre
Satanás pode ser definido com bastante precisão, mas não podemos
entender exatamente que arranjos de comunicação havia no Éden, e
eles não afetam negativamente os principais pontos da narrativa.
Com essa introdução, quero sugerir quatro coisas que emergem
de modo inconfundível de Gênesis 3.
1. A VILEZA ARDILOSA DESSA PRIMEIRA REBELIÃO (GN 3.1-6)
O texto nos apresenta a serpente. De acordo com o último livro
da Bíblia, Satanás está, em algum sentido, por trás da serpente (ver
Ap 12). Além disso, sua conversa macia se harmoniza com outra
descrição de Satanás, na qual somos informados que ele se disfarça
de anjo de luz (2Co 11.14), enganando, se possível, os próprios
eleitos de Deus (Mt 24.24). Satanás é sarcástico.
Gênesis 3 nos diz também que ele foi criado por Deus: “a
serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR
Deus tinha feito” (Gn 3.1). Em outras palavras, a Bíblia não
apresenta Satanás ou a serpente como um tipo de antideus que se
levanta contra ele; igual a Deus, mas no polo oposto, como matéria e
antimatéria, tendo exatamente o mesmo poder, de modo que, se
colidissem, explodiriam em uma bola de fogo de energia que não
deixaria nada para trás. Na Bíblia, não há um quadro em que Deus é
confrontado por um antideus equivalente, como se houvesse um lado
bom e um lado negro da Força, em que os seres humanos inclinam-se
para um lado ou para o outro, determinando que lado da Força
vencerá. Esse não é o quadro bíblico. O quadro pintado pela primeira
sentença desse capítulo é que Satanás é um ser dependente, um ser
criado. Essa passagem não nos diz como ou quando ele caiu. Em
outra passagem, ele é retratado como parte dos seres angelicais que
se rebelaram contra Deus. Mas nada disso é descrito aqui. Ele apenas
aparece.
O texto bíblico nos diz que ele era o mais sagaz de todos os
animais selváticos que Deus tinha feito. A palavra sagaz sugere
dissimulação, clandestinidade. Ela tem essa conotação negativa para
você? Certamente, ela o tem para mim. Mas a palavra hebraica usada
nesse versículo pode ser negativa ou positiva, dependendo do
contexto. Em muitas passagens, ela é traduzida por algo como
“prudência”. Por exemplo: “O homem prudente oculta o
conhecimento” (Pv 12.23). Essa passagem não se refere a um homem
astuto, um sujeito esperto que guarda seu conhecimento para si
mesmo; pelo contrário, ela descreve alguém que é sábio e prudente.
Ou, novamente: “Os prudentes se coroam de conhecimento” (Pv
14.18). Isso não significa que os espertos são coroados de
conhecimento. De modo semelhante, no primeiro versículo de Gênesis
3, suspeito que o texto nos diz que a serpente, Satanás, foi coroada
de mais prudência do que todas as outras criaturas, mas em sua
rebelião a prudência se tornou astúcia; a mesma virtude que era um
poder foi convertida em um erro. Podemos lembrar a observação de
Sherlock Holmes: “Oh! Este mundo é perverso, e, quando um homem
inteligente volve a sua mente para o crime, isso é a pior de todas as
coisas!”(1)
A serpente se aproxima da mulher (quais eram os modos de
comunicação, não faço a menor ideia) e evita oferecer-lhe uma
negação ou uma tentação direta. Em vez disso, Satanás começa com
uma pergunta: “Deus disse realmente isso? Deus disse realmente:
Vocês não devem comer de toda árvore do jardim?” Observe o que
Satanás está fazendo. Ele expressa certa quantidade de ceticismo, faz
uma pergunta levemente incrédula: “Vocês acreditam realmente que
Deus diria isso?” — como um empregado que pergunta: “Vocês
acreditam no que o chefe fez desta vez?” A diferença é que a pessoa
cuja palavra está sendo questionada é o criador, o planejador, o Deus
soberano. De algumas maneiras, a pergunta de Satanás é tanto
perturbadora como bajuladora. Ela introduz sutilmente a suposição
de que temos a capacidade, e mesmo o direito, de julgar o que Deus
disse.
Em seguida, o Diabo apresenta exagero. Deus proibiu realmente
um fruto, mas a maneira como Satanás formula sua pergunta —
“Deus disse realmente: Vocês não devem comer de toda árvore do
jardim?” — Ele apresenta a Deus como o desmancha-prazeres
cósmico: “Deus existe basicamente para destruir minha alegria. Eu
posso querer um lanche, mas ele diz: ‘Não’. Eu quero fazer algo, mas
ele diz: ‘Não, não, não’. Ele é o desmancha-prazeres cósmico. Vocês
podem acreditar que Deus disse isso?”
A mulher responde com certa medida de discernimento,
sabedoria e graça — pelo menos, inicialmente. Ela corrige Satanás
em seus fatos, em seu exagero. “Do fruto das árvores do jardim
podemos comer” (3.2), ela insiste. E acrescenta, ainda corretamente:
“Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele
não comereis” (3.3, referindo-se a 2.17). O exagero de Satanás é
habilmente rejeitado. No entanto, Eva acrescenta seu próprio
exagero. Ela acrescenta: “Nem tocareis nele, para que não morrais”
(3.3, ênfase acrescentada). Deus não disse nada sobre não tocar o
fruto. Isso é quase como se a proibição de comer do fruto tivesse
irritado a Eva, deixando-a tão aborrecida com o fato, que ela tivesse
de estabelecer a insignificância da proibição. O primeiro pecado foi
um pecado contra a bondade de Deus.
Obteremos um pequeno discernimento quanto ao terrível deslize
que se processava na mente da mulher, se imaginarmos o que ela
deveria ter dito. Talvez algo assim: “Você está doido? Olhe ao redor!
Este é o Éden; é o paraíso! Deus sabe exatamente o que está fazendo.
Ele criou todas as coisas; ele me criou. Meu marido me ama, e eu o
amo — e somos, ambos, dominados pela alegria e a santidade de
nosso amado Criador. Meu próprio ser vibra com o desejo de refletir,
de volta para ele, algo da sua glória extraordinária. Como eu poderia
questionar sua sabedoria e amor? Ele sabe, de uma maneira que eu
nunca poderei saber, com exatidão, o que é melhor — e confio
totalmente nele. E você quer que eu duvide dele ou questione a pureza
de seus motivos e caráter? Como isso é insensato! Além disso, que
bem pode resultar de uma criatura que desafia o seu Criador e
Soberano? Você está doido?”
Em vez disso, a mulher flertou com a possibilidade de que Deus
pudesse ser nada mais do que um desmancha-prazeres cósmico, dado
a restringir o prazer de suas criaturas.
Então, surge a primeira negação descarada de Deus. A serpente
declara: “É certo que não morrereis” (3.4). De acordo com a Bíblia, a
primeira doutrina a ser negada é a doutrina do julgamento. Em
muitas disputas sobre Deus e o cristianismo, esse padrão se repete
frequentemente, porque, se pudermos livrar-nos desse único ensino, a
rebelião não terá consequências adversas, e, portanto, seremos livres
para fazer o que quisermos.
Em vez de reconhecer a ameaça do julgamento, a serpente afirma
que a rebelião ofereceria uma percepção especial, uma percepção
divina: “Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os
olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (3.5). Aqui
está a grande cilada, a tentação. O cerne do engano pecaminoso que
a serpente promete é o fato de que o que ela diz é parcialmente
verdadeiro e totalmente falso. Afinal de contas, é verdade: os olhos de
Eva serão abertos, e, em algum sentido, ela verá a diferença entre o
bem e o mal. Ela determinará isso por si mesma. Deus disse isso no
final do capítulo: “O homem se tornou como um de nós, conhecedor
do bem e do mal” (3.22).
No entanto, a promessa era totalmente subversiva. Deus conhece
o bem e o mal com o conhecimento de onisciência. Ele sabe tudo que
já foi, tudo que é e tudo que será, tudo que possa estar sob diferentes
circunstâncias — Deus sabe tudo, incluindo o que é o mal. Contudo,
a mulher aprenderá sobre o mal por experiência pessoal, aprenderá
sobre o mal por se tornar má.
Uma ilustração poderá ajudar-nos. Minha esposa é uma
sobrevivente de um câncer. Ela é uma sobrevivente de alto risco; por
isso, os médicos ainda a acompanham com atenção. Os oncologistas
conhecem muito sobre essa doença — do lado do fora. A minha
esposa conhece o câncer do lado de dentro. Deus conhece tudo que
precisa ser conhecido sobre o pecado, mas não por tornar-se um
pecador. A mulher achará o conhecimento do bem e do mal a partir do
seu interior. Nesse sentido, o que a serpente prometeu era uma
mentira total.
De fato, a expressão hebraica “o conhecimento do bem e do mal”
é usada frequentemente em passagens onde ter esse conhecimento
significa ter a habilidade de pronunciar o que é bom e o que é mau.
Se você lembra, isso foi o que Deus fez. Ele fez algo e declarou que
“isso era bom” (1.10). Ele fez mais uma coisa, e “isso era bom”
(1.12, 18, 21, 25). Deus terminou sua obra de criação, e “eis que era
muito bom” (1.31). Deus tem esta habilidade soberana, alicerçada em
conhecimento infinito, de pronunciar o que é bom. Agora, a mulher
quer essa função divina. De fato, Deus disse: “Não é bom vocês
comerem daquele fruto específico. Vocês morrerão”. Mas, se a mulher
faz isso, em vez de deleitar-se na sabedoria do seu Criador, ela
pronuncia de maneira independente suas próprias escolhas quanto
ao que é bom ou mau. Ela se torna “como Deus”, afirmando todo tipo
de independência que caracteriza somente a Deus, a autoexistência
que pertence somente a Deus, a plenitude moral que somente Deus
possui.
Ser como Deus, atingir isso por desafiá-lo, talvez sendo mais
esperto do que ele — esse é um programa estimulante. Isso significa
que Deus tem de ser considerado, a partir deste momento,
conscientemente ou não, como um rival e, talvez, um inimigo: “Eu
afirmo o meu próprio bem. Muito obrigado! Eu não preciso que você
me diga o que eu posso ou não posso fazer”.
Sem dúvida, precisamos pensar um pouco mais sobre essa
árvore. O que era o fruto? Não há nenhum texto bíblico que diz que o
fruto era uma maçã, como se Deus odiasse maçãs, mas fosse
imparcial com peras e abacaxis. Não é necessário supor que o fruto
fosse mágico, de modo que, ao ingeri-lo — não importando o que era
—, uma alteração se introduziria subitamente no cérebro, a química
mudaria, e a pessoa começaria a proferir, de modo repentino, o bem e
o mal. Esse não é o ensino da passagem. Qualquer que fosse o fruto,
era um teste inevitável. Se Deus cria portadores de sua imagem e
declara o que é bom e o que é mau; se ele ordena todo o sistema e, em
algum momento, alguém aparece e diz: “Agora, declararei o meu
próprio bem. O que você declara ser mau, eu declararei ser bom. O
que você diz ser bom eu declararei que é mau” —, essa é a razão pela
qual a árvore que dava esse fruto foi chamada de árvore do
conhecimento do bem e do mal. O que é essencial nesse caso não é a
árvore, e sim a rebelião. O que é tão horrivelmente trágico é que os
portadores da imagem de Deus se levantaram contra ele. Isso é
diminuir a Deus, para que eu seja meu próprio deus. Em resumo, isso
é idolatria.
Na história da igreja cristã, alguns cristãos têm argumentado
que a árvore é um símbolo do sexo. Mas isso sugere que há algo
intrinsecamente mau no sexo. Esse tipo de inferência se opõe ao que
a Bíblia diz. Quando Deus uniu homem e mulher no primeiro
casamento, ele mesmo estabeleceu a união e declarou que isso era
muito bom. Depois, na Bíblia, um escritor disse: “Digno de honra
entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem mácula” (Hb
13.4). Na Bíblia, não há nenhuma passagem que diz que o sexo é
intrinsecamente mau, embora, como todos os dons de Deus, o sexo
seja abusado, corrompido, distorcido e pervertido.
Não devemos pensar que a tentação por parte da serpente era
apenas um convite a quebrar uma regra, arbitrária ou não. Isso é o
que muitas pessoas pensam sobre o “pecado” — é apenas quebrar
uma regra. O que estava em jogo na tentação era algo muito mais
profundo, mais importante, mais infeliz, mais horrível, mais
detestável. Era uma revolução. Isso me torna Deus e, portanto, tira
Deus do trono.
“Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável
aos olhos e árvore desejável para dar entendimento” — isto é,
fisicamente atraente, esteticamente agradável, transformadora no
domínio da sabedoria —, “tomou-lhe do fruto e comeu” (Gn 3.6).
Para aqueles de vocês que conhecem a linguagem “tomai e comei”,
que os cristãos recitam na Ceia do Senhor, é impossível não lembrar
este último uso dos dois verbos. Ela “tomou... e comeu”. “Um ato tão
simples, um desfazer tão árduo”, disse alguém. “Deus provará a
pobreza e a morte, antes que ‘tomai e comei’ se tornem verbos de
salvação.”(2)
Ela “deu também ao marido, e ele comeu” (3.6). Aparentemente,
ele estava com ela durante tudo isso, era seu cúmplice, não menos
culpado do que ela no engano e vileza do deslize para a
autodestruição.
2. AS CONSEQUÊNCIAS INICIAIS QUE RESULTARAM
DESTA PRIMEIRA REBELIÃO (GN 3.7-13)
Acima de tudo, há uma grande inversão: Deus cria o homem que
ama sua esposa, procedente dele, e juntos eles devem ser vice-
regentes sobre a ordem criada. Em vez disso, um dos seres da ordem
criada, a serpente, seduz a mulher, que arrasta o homem, e juntos
eles desafiam a Deus — a ordem da criação é invertida. E há morte.
Isso não deve surpreender-nos. Se Deus é o Criador e nos dá vida,
então, se nos afastarmos dele, se o desafiarmos, o que restará, senão
morte? Deus é aquele que primeiramente nos deu vida. Ele não trouxe
à existência o universo e os portadores de sua imagem para que
fossem totalmente independentes dele, atingindo de algum modo a
autoexistência que somente ele possui. Portanto, se alguém se afasta
dele, o que resta, senão morte? Se afirmarmos o nosso próprio bem
ou mal e decidirmos que queremos ser um deus para nós mesmos,
apartando-nos assim do Deus vivo, que nos criou e nos deu vida, não
haverá nada além de morte.
Que tipo de morte? Os cristãos têm debatido essa pergunta. No
século IV, um pensador cristão chamado Agostinho escreveu:
“Se perguntassem com que tipo de morte Deus ameaçou o
casal, morte física, ou espiritual, ou a segunda morte [essa
linguagem é usada para referir-se ao inferno],
responderíamos: eram todas... [Deus] incluiu naquele
momento não somente a primeira parte da primeira morte,
na qual a alma perde a Deus [ou seja, morremos
espiritualmente; nos escondemos de Deus e nos tornamos
mortos para Deus], nem somente a última parte, na qual a
alma deixa o corpo... mas também... a segunda que é a
última das mortes, a eterna, que vem depois de tudo”.(3)
Você não pode separar-se do Deus da Bíblia sem ter
consequências. Deus mesmo ordenou que a tentativa de tirá-lo do seu
lugar tenha como consequência a punição de morte.
Observe, porém, os resultados imediatos que são destacados no
texto. Os olhos do homem e da mulher são abertos; eles percebem que
estão nus. Em consequência, cosem uma cobertura para si de folhas
de figueira (Gn 3.7). Em um nível, a serpente cumpre a sua
promessa, mas essa nova consciência do bem e do mal não é um
resultado feliz. Não há prazer nisso, antes, há perda do conhecimento
de Deus e, por fim, vergonha e culpa. Agora, eles têm algo a esconder;
por isso, cosem folhas de figueira, o que deve ser um tanto insensato.
Não podemos esconder vergonha moral com folhas de figueira.
Mas isto é também uma maneira de dizer que não há retorno
para o Éden. Não podemos desfazer a perda da inocência. Se
cometermos um roubo, poderemos devolver o que roubamos. Nesse
caso, poderemos desfazer o erro. Todavia, a mancha em nosso próprio
ser não poderá ser desfeita. Se cometermos adultério, não podemos
desfazê-lo, de maneira alguma. E, se afrontarmos a Deus, não
poderemos desfazer a afronta. Ela não poderá ser desfeita. Cobrimos
a nós mesmos com vergonha. Não há caminho de volta à inocência.
Na Bíblia, há apenas um caminho para frente — para a cruz.
Um dos resultados dessa culpa é o rompimento da comunhão
com Deus (ver Gn 3.8-10). Embora o prazer de desfrutar a intimidade
com Deus fosse espetacularmente maravilhoso, expresso na imagem
do andar com Deus na viração do dia (3.8), esse prazer se foi.
Podemos ter uma ideia dessa queda miserável usando analogias
humanas. Se você fosse casado há dez anos e tivesse um casamento
realmente bom, caracterizado por verdadeira intimidade, e não
apenas por alegria momentânea, e então, por alguma razão abismal,
você tropeçasse e dormisse com alguém com quem você não deveria; e
você soubesse disso, e sua esposa também, a velha intimidade seria
assolada. Vocês não poderiam mais olhar nos olhos um do outro. A
vergonha os dominaria. Vocês se escondem. Ainda que fossem feitos
bons esforços para curar a ruptura, há certas coisas sobre as quais
vocês não poderiam mais conversar. Essa é a razão por que, em toda
a Bíblia, o pecado humano diante de Deus é, às vezes, descrito como
algo semelhante à traição sexual. Um escritor do Antigo Testamento,
o profeta Oseias, observou a maneira como o povo traiu a Deus.
Oseias retratou — isso é difícil de acreditar — o Todo-Poderoso, como
esposo de uma adúltera, o marido traído. Afinal de contas, o povo de
Deus o abandonou e procurou outros deuses, embora ele lhes tivesse
dado vida e comunhão íntima.
Esse pecado resulta não somente em interrupção do
relacionamento com Deus, mas também em relacionamentos
humanos quebrados. O relato seria quase engraçado, se não fosse
triste e melancólico. Deus pergunta: “Comeste da árvore de que te
ordenei que não comesses?” (Gn 3.11). “A mulher que me deste por
esposa”, Adão responde — é culpa dela (3.12). Essa não é a última
vez que um homem culpa a sua esposa. Mas a mulher não é melhor:
“Não é culpa minha, Deus. Aquela serpente me enganou”. Uma das
coisas que habitualmente acompanha o desafiar a Deus é isto:
negamos qualquer responsabilidade pelo que aconteceu. Todos os
erros que cometemos é culpa de outra pessoa.
Em outras palavras, um dos resultados inevitáveis da culpa e da
vergonha é a autojustificação. Adão justifica a si mesmo culpando
sua mulher. Eva justifica a si mesma culpando a serpente. Nossa
única esperança de sermos reconciliados com Deus é que Deus mesmo
nos justifique, que Deus mesmo nos vindique. A autojustificação não
pode salvar-nos, porque somos culpados. De fato, a autojustificação é
apenas mais uma evidência de idolatria — a idolatria de pensar que
temos os meios de salvar a nós mesmos, a idolatria que ainda está
tão marcada pelo “eu” que não pode admitir prontamente a culpa. No
começo do século XX, quando os editores do jornal Times, de Londres,
pediram a alguns escritores eminentes que contribuíssem com alguns
artigos pequenos sobre o tema “O que há de errado com o mundo?”,
G. K. Chesterton respondeu:
Prezados Senhores,
Eu.
Cordialmente,
G. K. Chesterton
Isso reflete uma perspectiva profundamente cristã — mas o
homem e a mulher, em Gênesis 3, não chegaram nem perto de
reconhecer isso.
Estes são apenas os resultados iniciais que surgem como
consequência da rebelião.
3. AS MALDIÇÕES EXPLÍCITAS QUE DEUS PRONUNCIA (GN
3.14-19)
Em consequência desta rebelião, Deus pronuncia três maldições:
A PRIMEIRA MALDI O: PARA A SERPENTE
Deus diz à serpente:
Visto que isso fizeste, maldita és entre todos os animais
domésticos e o és entre todos os animais selváticos;
rastejarás sobre o teu ventre e comerás pó todos os dias da
tua vida.
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência
e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás
o calcanhar.
Gênesis 3.14-15
Algumas pessoas acham que isso é um tipo de lenda, um mito
sobre as origens, uma história fictícia sobre como a serpente perdeu
suas pernas. “Houve um tempo em que todas as serpentes tinham
pernas, e foi assim que elas perderam suas pernas.” É sobre isso que
fala esta passagem de Gênesis?
Eu sei isto: às vezes, Deus pega algo que já existe e o emprega de
uma nova maneira, carregada de simbolismo. No próximo capítulo
deste livro, conheceremos um homem chamado Abraão, sobre o qual
se diz, entre outras coisas, ter estabelecido a prática da circuncisão
para todos os homens de sua família e de sua casa. Devemos
entender que a circuncisão não foi inventada por Deus ou por
Abraão. Ela era amplamente praticada em todo o Oriente próximo dos
dias de Abraão. Porém, não era conhecida como um rito. Quando
Deus a impôs, como veremos, deu a ela uma nova e especial
conotação simbólica, no contexto de suas relações com Abraão. A
circuncisão, em si mesma, não era um fenômeno novo, mas ganhou
uma nova força que simbolizava a realidade do relacionamento. Isso
também acontece nessa passagem de Gênesis. A serpente podia muito
bem ter estado deslizando e se arrastando pelo chão, mas agora o seu
modo de se locomover se torna algo carregado de simbolismo. O
próprio Diabo é expulso, é rejeitado, uma coisa viscosa que anda pelo
chão.
Na Bíblia, os símbolos posteriores seguem esse mesmo padrão. O
profeta Isaías (no final do século VIII a.C.), por exemplo, descreveu
um dia por vir quando “o lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão
comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente” (Is 65.25).
Ele não disse isso porque as serpentes são, de algum modo, menos
morais do que os leões, e sim porque, no simbolismo daqueles dias, a
serpente estava conectada com o Diabo e tudo que era viscoso,
desprezível e repugnante.
Quando Deus disse: “Porei inimizade entre ti [a serpente] e a
mulher, entre a tua descendência e o seu descendente” (3.15), isso
não significa que todas as mulheres odiariam serpentes. Sei que
algumas mulheres odeiam serpentes, incluindo a minha esposa.
Minha esposa, embora tenha diversos talentos e dons, não foi
chamada para ser herpetologista. Mas há algumas mulheres que são
herpetologistas. A maldição relatada em Gênesis 3 vai além do nível
das mulheres e das serpentes. De fato, o texto prossegue
imediatamente para falar não somente da mulher, mas também da
descendência: haverá inimizade “entre a tua descendência e o seu
descendente”. Se essa expressão significa “toda a descendência da
mulher e toda a descendência da serpente”, então, a inimizade
pronunciada é entre todos os seres humanos e todas as serpentes; e
não existiria nenhum herpetologista! Esse não é o ensino do texto.
Da mulher, da raça humana virá, por fim, o descendente que
esmagará a cabeça da serpente. Você assistiu ao filme A Paixão de
Cristo, dirigido por Mel Gibson? Não importando as virtudes ou as
fraquezas do filme, a cena de abertura, em que Jesus está em agonia
e ora no jardim do Getsêmani, é verdadeiramente memorável.
Enquanto Jesus está orando, uma serpente começa a deslizar sobre
um de seus braços. Jesus se levanta e, repentinamente, pisa com
força a cabeça da serpente. O simbolismo é o de Gênesis 3. Indo à
cruz, Jesus destruirá, finalmente, a serpente, o Diabo, que mantém
pessoas cativas do pecado, vergonha e culpa. Ele esmagará a cabeça
da serpente por tomar sobre si mesmo a culpa e a vergonha dessas
pessoas.
Gênesis 3.15 é chamado nos círculos cristãos de
“protoevangelho”, ou seja, o primeiro anúncio do evangelho, o
primeiro anúncio das boas-novas. Após a Queda, o quadro é sombrio,
com ameaça de condenação, mas agora há uma promessa de que da
descendência da mulher — da raça humana — surgirá alguém que
esmagará a cabeça da serpente. De fato, essa promessa é estendida
no Novo Testamento, a última terça parte da Bíblia, de Cristo para os
cristãos. Em uma carta escrita em meados do século I aos cristãos em
Roma, o apóstolo Paulo disse: “O Deus da paz, em breve, esmagará
debaixo dos vossos pés a Satanás” (Rm 16.20). Há um sentido em
que os cristãos, por viverem sob os benefícios do evangelho e serem
reconciliados com Deus por causa do evangelho, estão destruindo o
Diabo e suas obras.
A SEGUNDA MALDI O: PARA A MULHER
Deus disse à mulher:
Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em
meio de dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o
teu marido, e ele te governará.
Gênesis 3.16
A primeira ordem categórica que Deus deu à mulher foi: “Sede
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a” (Gn 1.28).
Agora, porém, após a Queda, até esses direitos e privilégios mais
fundamentais — parte do próprio ser do homem e da mulher — se
tornam uma coisa dolorosa. Toda a ordem criada está caótica. Até
mesmo o dar à luz a uma nova vida está ligado a sofrimento.
“O teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (3.16).
Como você pode imaginar, esta passagem tem sido interpretada de
muitas maneiras diferentes. Vale a pena refletir sobre o fato de que os
dois verbos, usados juntos aqui, ocorrem como par somente em mais
uma passagem nos cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números, Deuteronômio), a saber, no capítulo seguinte. Se
um leitor estivesse em sua primeira leitura de Gênesis 3 e pensasse:
“Eu não tenho a mínima indicação do que isso significa”, e
prosseguisse alguns versículos adiante, se depararia com o mesmo
par de verbos. Nessa segunda instância, eles se acham numa
passagem mais clara. Isso levaria o leitor a dizer: “Ah! Isso faz
sentido” — e a aplicar o mesmo significado a Gênesis 3.16.
A segunda passagem está em Gênesis 4. Aqui, aprendemos que
um dos filhos de Adão e Eva, chamado Caim, quer matar seu irmão,
Abel. O capítulo retrata o primeiro homicídio. Quando Deus explica a
Caim por que ele, Deus, está irado com Caim, ele diz: “Se procederes
bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis
que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti [ou seja, o
pecado deseja controlar-te, manipular-te, dar-te ordens], mas a ti
cumpre dominá-lo” (Gn 4.7, ênfase acrescentada). Isso também se
aplica às consequências da Queda: a mulher deseja ter seu marido
para controlá-lo, e ele a governa com certo tipo de força brutal. Há
pecado em ambos os lados: ela quer controlar, e ele, sendo
fisicamente mais forte, bate nela. O que temos aqui, em Gênesis 3.16,
é a destruição do relacionamento conjugal. Os tentáculos da rebelião
contra Deus corroem todos os relacionamentos.
Quando você lê os capítulos seguintes de Gênesis, contempla
desde o primeiro homicídio a duplo assassinato, poligamia,
genocídio, estupro — constantemente - tudo porque no começo
alguém disse: “Eu serei Deus”.
A TERCEIRA MALDI O — PARA AD O
E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e
comeste da árvore que eu te ordenara não comesses,
maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o
sustento durante os dias de tua vida.
Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a
erva do campo.
No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra,
pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.
Gênesis 3.17-19
“Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore
que eu te ordenara não comesses” (3.17). Adão deu ouvidos à mulher
e não a Deus. Em última análise, a primeira lealdade tem de ser
prestada a Deus, somente a Deus.
“Maldita é a terra por tua causa” (3.17). Toda a ordem criada da
qual somos parte não está funcionando apropriadamente. Está sob
maldição, sujeita por Deus à morte e à decadência.
Poderíamos continuar desenvolvendo este tema, mas temos de
considerar o último assunto desse capítulo.
4. OS EFEITOS A LONGO PRAZO DESSA REBELIÃO (GN 3.20-
24)
“Fez o SENHOR Deus vestimenta de peles para Adão e sua mulher
e os vestiu” (Gn 3.21). Eles usavam folhas de figueira. Se Deus fez
vestes de pele, então, sangue foi derramado — um sacrifício de
animal. Nessa altura da história bíblica, não há ainda um sistema de
sacrifícios. Isso surge depois — um sistema sacerdotal com
sacrifícios e leis prescritas. Mas Deus sabia que o casal precisava ser
coberto. Eles tinham muita vergonha para ocultar. Deus não lhes
disse: “Tirem essas folhas de figueira estúpidas. Se vocês apenas
expuserem-se e forem honestos um com o outro, poderemos todos
viver juntos novamente e, depois, viver sempre felizes”. Não há
caminho de volta. Deus os cobriu com algo mais durável, ao preço de
um animal que derramou seu sangue.
Este é o primeiro sacrifício na longa trajetória de sacrifícios
sangrentos que acompanha toda a história até a vinda de Jesus.
Quando ele aparece, é declarado “o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” (Jo 1.29). Por meio de seu sacrifício de sangue —
por meio de sua morte — somos cobertos. Nossa vergonha e nossa
culpa são tratadas porque ele morre em nosso lugar. Um cordeiro não
pode fazer isso. Aqui, em Gênesis 3, a morte de um animal para
cobrir o homem e a mulher é uma figura do que está por acontecer, o
primeiro passo de toda uma instituição de sacrifícios que nos remete,
por fim, ao sacrifício supremo e ao que Jesus fez para tirar nosso
pecado e cobrir nossa vergonha.
CONCLUSÃO
Quero pensar agora em como este capítulo se encaixa na Bíblia e
em nossa vida.
O primeiro ensino importante é que Gênesis 3 descreve rebelião
obstinada. Algumas das questões difíceis que o darwinismo
estritamente materialista tem de enfrentar são: “De onde vem a
moralidade? De onde vem o significado? De onde vêm as noções de
certo e de errado?”
Durante as últimas duas ou três décadas, surgiu um campo de
esforço científico e filosófico que é agora rotulado comumente de
sociobiologia. Um escritor intitulou seu livro de The Selfish Gene (O
Gene Egoísta). Ele argumenta que, por causa da maneira como nos
desenvolvemos de acordo com as linhas evolucionárias, temos genes
que nos protegem. São esses genes que nos movem em direção a certo
comportamento que nos mantém vivos e, em se reproduzindo,
fortalecerão aquelas pessoas cujo comportamento é mais vantajoso.
Aqueles que não desenvolvem esse comportamento vantajoso
diminuirão, e, por isso, temos, estatisticamente, uma porcentagem
cada vez maior de seres humanos que possuem esses genes
adaptados a produzir o comportamento vantajoso. Até um gene
egoísta pode aprender ao longo da vida que, cooperação com as
outras pessoas de genes semelhantes é melhor do que seguir sozinho;
e até isso é um tipo de egoísmo expandido. Agora você tem uma
predisposição genética para trabalhar e compartilhar
cooperativamente, e isso pode não se harmonizar com algum ponto
de vista individualista sobre a sobrevivência dos mais adaptados,
mas no nível coletivo — no nível sociobiológico — esse ponto de vista
da função do gene egoísta faz bastante sentido. Em outras palavras,
pessoas podem desenvolver uma tendência para certo comportamento
que é, então, chamado de bem ou mal, o que é, porém, nada mais do
que seleções felizes de genes que equipam você, através das gerações,
com comportamento vantajoso. Em resumo, a sociobiologia se tornou
uma tentativa sistemática de explicar as noções de certo e de errado
não em um nível moral, e sim em um nível puramente genético e
naturalista.
Eu seria a última pessoa que desejaria argumentar que não há
nenhuma conexão entre nossa moralidade e nosso corpo, entre nossa
vontade e nosso espírito, entre nossa herança e nossa formação,
incluindo nossa constituição genética. Somos seres integrais; todas
as nossas partes interagem juntas. Todavia, é muito difícil imaginar
pessoas se voluntariando para sacrificar sua vida em benefício de
outras, sofrendo em lugar delas, a fim de melhorarem a raça. Por
exemplo, uma pessoa no campo de concentração em Auschwitz que
finge ter feito algo proibido para ser morto, a fim de que outro
companheiro seja liberto, não é explicado prontamente pela
sociobiologia. Por isso, em nossos dias, livros e ensaios têm começado
a responder às pretensões da sociobiologia, argumentando que essa
disciplina não pode explicar certos tipos de conduta.
Pete Lowman escreveu um livro intitulado A Long Way East of
Eden (Um Longo Caminho a Leste do Éden). O propósito de Lowman é
mostrar que o relato da Queda faz muito mais sentido quanto aos
dilemas morais e o viver pervertido no mundo do que qualquer outra
explicação. O sociólogo Christian Smith argumenta a mesma ideia em
seu livro Moral, Believing, Animals: Human Personhood and Culture
(Moral, Crer, Animais: Personalidade Humana e Cultura).
Um segundo ensino importante a obervar é que Gênesis 3 não
pensa no mal primariamente em termos horizontais, e sim em termos
verticais. Quando pensamos no mal, tendemos a pensar no nível
horizontal. Talvez nenhum de nós deseje negar que Auschwitz foi um
mal. Talvez não queiramos negar que estuprar uma criança seja
mau. Talvez não queiramos negar que operar um grande esquema
fraudulento que rouba bilhões de dólares das pessoas seja mau.
Certamente a Bíblia diz muitas coisas condenatórias sobre males em
nível horizontal, ou seja, males que perpetramos entre nós mesmos.
Entretanto, o que a Bíblia diz mais frequentemente é que Deus
detesta a idolatria. Isso é a dimensão vertical do mal. A pessoa mais
ofendida nesse capítulo de Gênesis é Deus. O principal problema não
é que Eva tenha sido realmente confrontada porque Adão a culpou. A
culpa primária é diante de Deus. Sim, você poderia ler passagens do
profeta Isaías, que condena males em nível horizontal, como os
patrões gananciosos que não pagam salários justos; contudo,
páginas e mais páginas do texto bíblico se dedicam à idolatria. Esse
é o mal supremo.
Em terceiro, visto dessa perspectiva, Gênesis 3 mostra o que
mais necessitamos. Se você é um marxista, você precisa de
revolucionários e economistas decentes. Se você é um psicólogo,
precisa de um exército de conselheiros. Se você pensa que a fonte de
todo distúrbio e desordem é médica, você precisa de grande número
de hospitais beneficentes de pesquisa médica. Mas, se a nossa
principal e mais solene necessidade é sermos reconciliados com Deus
— que agora está contra nós e pronuncia morte sobre nós, por causa
de nossa rebelião obstinada — então, aquilo que mais necessitamos,
embora possamos ter todas essas outras necessidades derivadas, é
sermos reconciliados com Deus. Precisamos de alguém para nos
salvar.
A Bíblia não faz sentido para você, se você não concorda com o
que ela diz a respeito de nosso maior problema. Se você não vê qual é
a análise da Bíblia sobre o nosso problema, você não pode concordar
com a sua análise quanto à solução do problema. O problema crucial
é nossa alienação de Deus, a tentativa de nos identificarmos apenas
em referência a nós mesmos, essa idolatria que diminui a Deus. E o
que precisamos ter é a reconciliação com esse Deus, ou não temos
nada. É à luz dessa análise que Gênesis 3 olha para frente, para a
vinda do descendente da mulher.
Pouco tempo atrás, estive em um funeral. Na placa que estava
fixada na porta da casa, minha esposa e eu lemos estas palavras
daquele vizinho: “Aqueles que nos amam continuem nos amando;
aqueles que não nos amam, que Deus mude o coração deles; e, se ele
não mudar o coração deles, que quebre o seu tornozelo, e os
conheceremos pelo seu manquejar”. Esperto. Não pude deixar de
pensar quão trágico era aquilo. O homem acabara de partir para
encontrar-se com seu Criador, e suas últimas palavras para nós,
presentes no funeral, eram severas, sobre pessoas que não gostavam
dele — pensando ainda em um nível horizontal.
No século XVII, o grande filósofo Blaise Pascal escreveu: “Que
tipo de anomalia é o homem? Quão novo, quão monstruoso, quão
caótico, quão paradoxo, quão prodigioso, juiz de todas as coisas,
verme frágil, repositório da verdade, mergulhado em dúvida e erro,
glória e refugo do universo”.(4) Ele entendeu Gênesis 1, 2 e 3.
Ou, nas palavras de um filósofo e escritor contemporâneo, Daniel
L. Migliore:
Nós, seres humanos, somos um mistério para nós mesmos.
Somos racionais e irracionais, civilizados e selvagens,
capazes de amizade profunda e hostilidade mortal, livres e
em escravidão, o clímax da criação e seu maior perigo.
Somos Rembrandt e Hitler, Mozart e Stalin, Antígone e Lady
Macbeth, Rute e Jezabel. “Que obra de arte”, diz
Shakespeare sobre a humanidade. “Somos muito
perigosos”, diz Arthur Miller em After the Fall, “estamos...
não em um jardim de fruto de cera e folhas pintadas que
fica a leste do Éden, e sim depois da Queda, depois de
muitas, muitas mortes”.(5)
Agora, começamos a entender o enredo de toda a Bíblia: quem
consertará isso?
(1) Sir Arthur Conan Doyle, “The Adventure of the Speckled Band”, em The Complete Works
of Sherlock Holmes (New York: Doubleday, 1930), 268.
(2) F. Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary, Tyndale Old Testament
Commentaries (Leicester: Inter-Varsity, 1981), 68.
(3) Augustine, The City of God, vol. 2, Everyman’s Library ed. (London: J. M. Dent, 1945), 9-
10.
(4) Blaise Pascal, Pensées, ed. A. J. Krailsheimer (London: Penguin, 1995), 34.
(5) Daniel L. Migliore, Faith Seeking Understanding: An Introduction to Christian Theology,
2nd ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), 139.
3
O Deus
que Escreve Seus Próprios Acordos
(1) Mil e quinhentos anos depois, o apóstolo Paulo formularia esse mesmo argumento sobre
a função da lei no âmbito da história bíblica (ver Gálatas 3).
(2) Lembre-se dessas duas palavras. Elas aparecerão de novo no capítulo 7.
5
O Deus
que Reina
(1) Isto é frequentemente atribuído a Daniel O’Connell, no século XVIII, seguindo Platão.
7
O Deus
que se Torna um Ser Humano
A Até agora, neste livro, me referi apenas infrequentemente àquele
grupo de livros que ostentam o nome de seus autores proféticos.
Mencionei Isaías uma ou duas vezes e alguns outros profetas, mas
isso foi tudo.
Gostaria de ter espaço para explicá-los em pelo menos alguns
outros capítulos. Embora estes livros contenham seções que são
obscuras, muitas partes dessas profecias estão entre os escritos mais
brilhantes e mais intensos da Bíblia. Sem comentá-las e explicar o
seu contexto, as seguintes citações ilustram isso:
Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois,
não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de
escultura....
Por muito tempo me calei, estive em silêncio e me contive;
mas agora darei gritos como a parturiente, e ao mesmo
tempo ofegarei, e estarei esbaforido.
Os montes e outeiros devastarei e toda a sua erva farei
secar; tornarei os rios em terra firme e secarei os lagos.
Guiarei os cegos por um caminho que não conhecem, fá-los-
ei andar por veredas desconhecidas; tornarei as trevas em
luz perante eles e os caminhos escabrosos, planos. Estas
coisas lhes farei e jamais os desampararei.
Tornarão atrás e confundir-se-ão de vergonha os que
confiam em imagens de escultura e às imagens de fundição
dizem: Vós sois nossos deuses.
Isaías 42.8, 14-17
Quando passares pelas águas, eu serei contigo; quando,
pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo
fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti.
Porque eu sou o SENHOR, teu Deus, o Santo de Israel, o teu
Salvador; dei o Egito por teu resgate e a Etiópia e Sebá, por
ti.
Visto que foste precioso aos meus olhos, digno de honra, e
eu te amei, darei homens por ti e os povos, pela tua vida.
Não temas, pois, porque sou contigo; trarei a tua
descendência desde o Oriente e a ajuntarei desde o
Ocidente.
Isaías 43.2-5
Prouvera a Deus a minha cabeça se tornasse em águas, e os
meus olhos, em fonte de lágrimas! Então, choraria de dia e
de noite os mortos da filha do meu povo.
Jeremias 9.1
Pareceu-me bem fazer conhecidos os sinais e maravilhas
que Deus, o Altíssimo, tem feito para comigo.
Quão grandes são os seus sinais, e quão poderosas, as suas
maravilhas! O seu reino é reino sempiterno, e o seu
domínio, de geração em geração.
Daniel 4.2-3
Vós que converteis o juízo em alosna e deitais por terra a
justiça
Amós 5.7
Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás?
Gritar-te-ei: Violência! E não salvarás?
Por que me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão?
Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há
contendas, e o litígio se suscita.
Por esta causa, a lei se afrouxa, e a justiça nunca se
manifesta, porque o perverso cerca o justo, a justiça é
torcida.
Habacuque 1.2-4
Tomara houvesse entre vós quem feche as portas, para que
não acendêsseis, debalde, o fogo do meu altar. Eu não tenho
prazer em vós, diz o SENHOR dos Exércitos, nem aceitarei da
vossa mão a oferta.
Mas, desde o nascente do sol até ao poente, é grande entre
as nações o meu nome; e em todo lugar lhe é queimado
incenso e trazidas ofertas puras, porque o meu nome é
grande entre as nações, diz o SENHOR dos Exércitos.
Malaquias 1.10-11
Às vezes, estes livros proféticos preservam o conflito espiritual
dos próprios profetas. Às vezes, eles predizem o futuro imediato:
Assíria invadirá Moabe, mas não será bem sucedida em tomar
Jerusalém; a aliança de Judá com o Egito é irresponsável e terá efeito
contrário ao esperado. Às vezes, os profetas predizem uma renovação
de tudo no final da História, um novo céu e uma nova terra. E, entre
estes dois finais profetizados, há profecias que antecipam a vinda de
Deus ou o alvorecer de uma nova aliança que ele inaugurará ou a
vinda de um novo rei davídico ou a vinda do Servo de Deus não
designado por nome.
Temos de pausar por um momento. O capítulo que você está
lendo tem o impressionante título de “O Deus que se Torna um Ser
Humano”. Esse título pressupõe que Deus está sempre nos dizendo,
no Antigo Testamento que ele está vindo. E agora ele chega realmente
— por tornar-se um ser humano.
Em um sentido, a narrativa do Antigo Testamento estabelece que
Deus veio a Abraão e o chamou em sua peregrinação. Deus veio a
Moisés e lhe deu certas tarefas. Ele veio a Davi e estabeleceu uma
dinastia. No Antigo Testamento, em grandes partes dos livros
bíblicos, diz-se repetidamente que Deus está vindo.
Às vezes, a vinda de Deus implica julgamento. As pessoas
falavam do “Dia do Senhor”, o tempo em que o Senhor viria, como
algo maravilhoso, um tempo de avivamento e bênção. Mas, às vezes,
Deus falava: “Para que desejais vós o Dia do SENHOR? É dia de trevas
e não de luz” (Am 5.18). A vinda do Senhor pode trazer consigo o
mais severo juízo. Este juízo se estende além do próprio povo da
aliança do Senhor, se estende a todas as nações, porque Deus é
soberano sobre tudo. “A justiça exalta as nações, mas o pecado é o
opróbrio dos povos” (Pv 14.34). Portanto, nos maiores profetas do
Antigo Testamento, Deus promete vir e visitar os babilônios com
juízo, ou as cidades pagãs de Tiro e Sidom, com juízo, e assim por
diante.
Deus também promete que virá com perdão e esperança. Em
algumas dessas passagens, há uma confusão — em retrospectiva,
uma confusão intencional — sobre quem está vindo. É Deus mesmo
ou é o último rei da linhagem de Davi? Vimos brevemente uma destas
passagens na profecia de Isaías 9, em palavras que nos são
familiares por causa do Messias de Handel. Este rei prometido reinará
no trono de Davi — mas, como vimos, a profecia diz sobre ele:
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o
governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será:
Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade,
Príncipe da Paz;
para que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim
sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o estabelecer
e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para
sempre.
Isaías 9.6-7
Nessa passagem, é claro que começamos com o rei davídico, e,
repentinamente, ele é chamado de “Deus Forte”. Em outras
passagens, a direção é invertida: começamos lendo sobre a vinda do
próprio Deus, para depois aprendermos que o rei davídico está em
foco. Uma das passagens mais notáveis neste sentido é do profeta
Ezequiel:
Veio a mim a palavra do SENHOR, dizendo:
Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel;
profetiza e dize-lhes: Assim diz o SENHOR Deus: Ai dos
pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não
apascentarão os pastores as ovelhas?
Comeis a gordura, vestis-vos da lã e degolais o cevado; mas
não apascentais as ovelhas.
A fraca não fortalecestes, a doente não curastes, a
quebrada não ligastes, a desgarrada não tornastes a trazer
e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com
rigor e dureza.
Assim, se espalharam, por não haver pastor, e se tornaram
pasto para todas as feras do campo.
As minhas ovelhas andam desgarradas por todos os montes
e por todo elevado outeiro; as minhas ovelhas andam
espalhadas por toda a terra, sem haver quem as procure ou
quem as busque.
Ezequiel 34.1-6
Em seguida, o que Deus diz em essência, de maneiras diferentes,
versículo após versículo, é isto: “Eu não somente julgarei os falsos
pastores. Eu mesmo me tornarei o pastor de meu povo”.
Assim diz o SENHOR Deus: Eis que eu estou contra os
pastores e deles demandarei as minhas ovelhas; porei termo
no seu pastoreio, e não se apascentarão mais a si mesmos;
livrarei as minhas ovelhas da sua boca, para que já não
lhes sirvam de pasto.
Ezequiel 34.10
Deus prossegue e diz:
Como o pastor busca o seu rebanho, no dia em que encontra
ovelhas dispersas, assim buscarei as minhas ovelhas; livrá-
las-ei de todos os lugares para onde foram espalhadas no
dia de nuvens e de escuridão.
Tirá-las-ei dos povos, e as congregarei dos diversos países, e
as introduzirei na sua terra; apascentá-las-ei nos montes
de Israel, junto às correntes e em todos os lugares
habitados da terra.
Apascentá-las-ei de bons pastos, e nos altos montes de
Israel será a sua pastagem; deitar-se-ão ali em boa
pastagem e terão pastos bons nos montes de Israel.
Eu mesmo apascentarei as minhas ovelhas e as farei
repousar, diz o SENHOR Deus. A perdida buscarei, a
desgarrada tornarei a trazer, a quebrada ligarei e a enferma
fortalecerei; mas a gorda e a forte destruirei; apascentá-las-
ei com justiça.
Ezequiel 34.12-16
Em outras palavras: “Todos esses falsos pastores estão apenas
arruinando o rebanho. Eu mesmo serei o pastor das ovelhas”. Depois
de dizer, repetidas vezes — cerca de 25 vezes —, que Deus mesmo
pastoreará seu povo, que Deus mesmo fará o trabalho de pastor, ele
acrescenta:
Suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o
meu servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de
pastor.
Eu, o SENHOR, lhes serei por Deus, e o meu servo Davi será
príncipe no meio delas; eu, o SENHOR, o disse.
Ezequiel 34.23-24
De algum modo, a promessa de que Deus mesmo virá e de que
um rei davídico virá se funde em uma só.
Outras promessas marcam a literatura do Antigo Testamento.
Por exemplo, seis séculos antes de Jesus, o profeta Jeremias relatou
que Deus faria uma nova aliança com seu povo (ver Jr 31.31-34).
Isso significa que a aliança em vigor, a aliança estabelecida no Sinai,
se tornaria a velha aliança. Se a aliança do Sinai é declarada velha,
em um sentido ou outro, ela fica obsoleta, visto que será substituída
pela nova aliança.(1) As pessoas que conheciam bem essas Escrituras
não podiam deixar de perguntar quando essa nova aliança surgiria,
de que maneiras ela preservaria as ênfases da velha aliança e de que
maneira as sobrepujaria. Podemos imaginar a excitação, a confusão,
a incerteza e a esperança que houve quando, na mesma noite em que
foi traído e levado à cruz, Jesus tomou um cálice de vinho, durante a
refeição que teve com seus seguidores mais íntimos, e disse: “Este é o
cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós”
(Lc 22.20). Posteriormente, teremos ocasião de considerar as
palavras de Jesus. No momento, basta reconhecermos alguns dos
padrões das profecias do Antigo Testamento que apontam para Jesus.
Em várias passagens da profecia de Isaías, Deus faz o anúncio
sobre Alguém que ele chama apenas de “meu servo”. Por exemplo:
Eis aqui o meu servo, a quem sustenho; o meu escolhido,
em quem a minha alma se compraz; pus sobre ele o meu
Espírito, e ele promulgará o direito para os gentios.
Não clamará, nem gritará, nem fará ouvir a sua voz na
praça.
Não esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que
fumega; em verdade, promulgará o direito.
Não desanimará, nem se quebrará até que ponha na terra o
direito; e as terras do mar aguardarão a sua doutrina.
Isaías 42.1-4
Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as
nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito,
ferido de Deus e oprimido.
Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído
pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz
estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.
Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um
se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a
iniquidade de nós todos.
Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como
cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda
perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca.
Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem
dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes;
por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido.
Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o
rico esteve na sua morte, posto que nunca fez injustiça,
nem dolo algum se achou em sua boca.
Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar;
quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a
sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do
SENHOR prosperará nas suas mãos.
Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará
satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento,
justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará
sobre si.
Isaías 53.4-11
É muito impressionante que, antes da vinda de Jesus, mais de
700 anos depois da profecia de Isaías, ninguém entendia claramente
que o servo prometido do Senhor seria também o rei davídico, cuja
vinda seria, ao mesmo tempo, a visitação de Deus. Em retrospectiva,
é fácil percebermos que as peças estão ali. Alguém pode suspeitar que
uma das razões por que as pessoas não harmonizavam as peças, era
por acharem difícil imaginar como um rei vitorioso e conquistador, da
linhagem de Davi, poderia também ser um servo sofredor que, de
algum modo, sofreria os tormentos dos condenados, para que estes
fossem justificados.
Os componentes do Antigo Testamento seguem juntos.
O NOVO TESTAMENTO
Assim chegamos ao Novo Testamento. Os primeiros quatro livros
do Novo Testamento são chamados frequentemente de “evangelhos”:
Mateus, Marcos, Lucas e João. Embora todos eles comecem de
maneira diferente, todos começam com a vinda de Jesus.
O evangelho de Lucas, por exemplo, descreve uma visita
angelical a uma jovem chamada Maria, prometendo-lhe uma
concepção virginal, de modo que a criança nascida seria chamada
Filho de Deus. Em seguida, a história familiar do Natal acontece em
Lucas 2.
No evangelho de Mateus, a situação é vista menos da
perspectiva de Maria e mais da perspectiva de José. Maria está
comprometida a casar-se com José, e ele descobre que ela está
grávida. Não esqueça que naquela sociedade, eles não podiam ir para
um lugar reservado e ter uma conversinha em que Maria tentaria
convencer José de que sua gravidez era um milagre operado pelo
poder de Deus e de que ela ainda era virgem. Naqueles dias, você não
podia ter esse tipo de conversa fácil sobre questões sexuais, antes de
ser casado. Damas de companhia e vigias estavam ao redor em todo
o tempo. Mas Deus visitou também a José e insistiu em que aquilo era
obra de Deus. Maria ainda era virgem.
Enquanto ponderava nestas coisas, eis que lhe apareceu,
em sonho, um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi,
não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela foi
gerado é do Espírito Santo.
Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque
ele salvará o seu povo dos pecados deles.
Mateus 1.20-21
Por isso, quando o bebê nascesse, José deveria dar-lhe o nome de
Jesus. Jesus é a forma grega da palavra Josué, que significa “Jeová
salva”. Jeová, você recorda, é o nome de Deus, no Antigo Testamento,
associado com “EU SOU O QUE SOU”. Este Deus salva, Jeová salva. Do
quê? José deveria dar ao seu bebê o nome de Jesus, que significa
“Jeová salva”, porque Jesus salvará seu povo dos pecados deles.
Ocorrendo, como o faz, no primeiro capítulo do evangelho de Mateus,
esse nome crucial anuncia que o resto do evangelho deve ser lido
como o livro em que Jeová salva o seu povo dos pecados deles. Todo
capítulo desse evangelho pode ser encaixado nesse tema. Os pecados
acumulados desde o tempo da Queda (Gênesis 3) serão tratados.
O que faremos deste Jesus?
JOÃO 1.1-18
O evangelho de João começa de maneira diferente. Não começa
com os desenvolvimentos históricos (José, Maria, Belém, a visita dos
pastores, etc.). Este evangelho começa pensando no que significa a
vinda do Filho eterno, a vinda de Deus. Vale a pena separar tempo
para ler com atenção os dezoito versículos inicias deste evangelho,
chamados, às vezes, o prólogo de João:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele,
nada do que foi feito se fez.
A vida estava nele e a vida era a luz dos homens.
A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram
contra ela.
Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.
Este veio como testemunha para que testificasse a respeito
da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele.
Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz,
a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a
todo homem.
O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu.
Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de
serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu
nome;
os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e
de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito
do Pai.
João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem
eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a
primazia, porquanto já existia antes de mim. Porque todos
nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.
Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a
verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no
seio do Pai, é quem o revelou.
João 1.1-18
Precisamos considerar o pensamento desse prólogo — muito
rapidamente, sem dúvida, mas em detalhes suficientes para
começarmos a sentir a maravilha e o poder de quem Jesus é e por que
ele veio.
O VERBO: A AUTOEXPRESS O DE DEUS (JO 1.1)
Aquele que veio é chamado apenas de “o Verbo”: “No princípio
era o Verbo , e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (1.1).
Podemos dizer: “No princípio era a autoexpressão de Deus [pois isso é
o que “Verbo” sugere neste texto], e esta autoexpressão estava com
Deus [ou seja, o companheiro idêntico do próprio Deus], e esta
autoexpressão era Deus [ou seja, o “eu” do próprio Deus]”. O seu
coração começa a palpitar, e sua mente pergunta: “O que é isso?
Como você pode pensar nesses termos?” Mas isso é o que o texto diz.
Esse “Verbo”, que, como você verá num momento, se torna um ser
humano, é descrito como o companheiro idêntico de Deus (ele já
estava no princípio com Deus) e como o próprio “eu” de Deus (ele é
Deus!).
Até o termo “Verbo” é uma escolha interessante. Que título ou
expressão metafórica deveria ser aplicada a Jesus nos versículos
iniciais do evangelho de João? Posso imaginar várias possibilidades
correndo pelos pensamentos de João. Mas, em algum ponto, João
lembra, por exemplo, que no Antigo Testamento lemos frequentemente
expressões como esta: “A palavra do Senhor veio ao profeta,
dizendo...” Portanto, Deus se revelou por meio de sua palavra, na
revelação. O apóstolo se lembra talvez de Gênesis 1: Deus falou, e o
mundo veio à existência ou, de outra maneira: pela palavra do
Senhor, os céus e a terra foram criados (ver Sl 33.6). Aqui, temos a
palavra de Deus na criação. Em outros textos, os escritores bíblicos
falam sobre Deus enviando a sua palavra para curar, ajudar e
transformar seu povo (ver, por exemplo, Sl 107.20). O verbo de Deus
faz todas estas coisas: por sua palavra, Deus revela, cria,
transforma. E João pensa consigo mesmo: “Sim, este é o termo
apropriado que resume tudo que Jesus é”. Ele é a autoexpressão de
Deus, a revelação de Deus. Ele é o agente de Deus na criação e veio
para salvar e transformar o seu povo.
Agora, chegamos a algo muito importante, algo
extraordinariamente importante sobre o Deus presente, o Deus que se
revela na Bíblia. Em todo o seu relato, a Bíblia insiste no fato de que
há apenas um único Deus, o Deus que é Criador, Sustentador e Juiz
de todos os homens. Mas, neste primeiro versículo do evangelho de
João, a Bíblia nos diz que a Palavra estava no princípio com Deus;
portanto, ele é tão eterno e autoexistente quanto Deus; ele é o
companheiro idêntico de Deus, estava “com Deus” desde o princípio,
uma equivalência admirável em face do que a Bíblia diz sobre a
unicidade de Deus. E ele é o próprio Deus, pois “o Verbo era Deus”. De
algum modo, esse Verbo é distinguível de Deus (ele estava “com
Deus”), mas ele é identificado como Deus (“o Verbo era Deus”). Pouco
depois, somos informados a respeito de como esse Verbo se torna um
ser humano, o ser humano que conhecemos como Jesus. Essa é a
razão por que os cristãos afirmam que Jesus é, ao mesmo tempo,
distinguível de Deus (companheiro idêntico do próprio Deus), mas
totalmente identificado com Deus. Nossa mente fica perplexa com o
paradoxo.
De fato, adiantando um pouco o assunto, os cristãos inventaram
uma palavra para se referirem a Deus. Este Deus único, afirmamos, é
a Trindade, o Deus três em um. Não somente o Pai é Deus, e Jesus, o
Filho, é Deus, mas também o Espírito Santo é Deus (como veremos).
Nenhum cristão, por mais erudito ou sábio que seja, assevera que
entende completamente tudo isso. Historicamente, os cristãos têm
achado maneiras de falar sobre estas coisas sem cair em contradições
tolas. Dizemos, por exemplo, que o Verbo compartilha da mesma
“substância” com o Pai, mas é uma “Pessoa” distinta. Também
aprendemos a não afirmar que entendemos mais do que realmente
entendemos.
A evidência para pensarmos em Deus como Trindade não é
construída apenas a partir do primeiro versículo do prólogo de João.
Por exemplo, no mesmo evangelho de João achamos diversas
passagens que apoiam esse entendimento a respeito de Deus. Em
João 5.19, Jesus insistiu em que fazia “somente aquilo que” o Pai
fazia — algo que nenhum mero humano jamais poderia dizer. No
mesmo capítulo, Deus mostra que ele resolveu que todos devem
honrar o Filho “do modo por que honram o Pai” (5.23) — algo que
não faz sentido se Jesus não é Deus. Em João 8.58, num contexto em
que Jesus estava envolvido numa disputa difícil a respeito de quem
ele é, Jesus insistiu: “Antes que Abraão existisse, EU SOU” (ênfase
acrescentada). Visto que Abraão já estava morto havia 2.000 anos, a
afirmação de Jesus era que ele existia por quase 2.000 anos além dos
trinta anos ou mais de sua existência física. E, o que é mais
importante, Jesus tomou para si o nome pelo qual Deus mesmo é
conhecido: Eu sou ou Eu sou o que sou.
Na noite em que Jesus foi traído, ele disse a um de seus
seguidores: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens
conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Isso era ou
blasfêmia arrogante da mais alta categoria ou brincadeira de doido
ou a pura verdade: o mais perto que os seres humanos chegam de
“ver” a Deus, neste mundo caído, é contemplar o Verbo que se fez
carne, o próprio Senhor Jesus. Também na noite em que foi traído,
Jesus insistiu em que, depois de ressuscitar e voltar para o Pai, ele
enviaria o Espírito Santo para ficar no lugar dele mesmo, outro
Advogado (ver Jo 14.15-17; 14.25-27; 15.26; 16.7-15). Esse Espírito,
esse Advogado enviado da parte do Pai, cumpre diversas funções
pessoais: ele ensina, lembra Jesus às pessoas, dá testemunho,
convence pessoas, sendo ele mesmo a própria presença do Pai e do
Filho. Depois que Jesus ressuscitou dos mortos, um de seus
seguidores, um homem chamado Tomé, foi tão impressionado que
disse sobre Jesus: “Senhor meu e Deus meu” (Jo 20.28). O fato de que
Tomé, um judeu do século I, falou com Jesus dessa maneira nos diz
algo bastante notável sobre a compreensão crescente de Tomé a
respeito de como o Deus único é um Deus complexo, o que os cristãos
chamariam posteriormente de Deus Trino. Não menos notável é o fato
de que Jesus aceitou a honra como algo que lhe pertencia por direito
— algo que nenhum judeu piedoso do século I faria se ele não fosse
Deus.
Na verdade, isso nos conduz a duas outras observações.
Primeira, desde o tempo da ressurreição de Jesus, os cristãos têm
adorado a ele como adoram a Deus. De fato, ao mesmo tempo em que
os cristãos se dirigem ao Pai e a Jesus como pessoas distintas, eles
adoram o Pai como Deus, Jesus como Deus e o Espírito como Deus.
Segunda, essa visão complexa de Deus como a Trindade nos ajuda a
compreender o que vimos antes nesse livro: isto é a razão por que,
mesmo na eternidade passada, antes que houvesse universo, o Deus
da Bíblia, o Deus presente, pode ser visto como um Deus que ama.
Pois a natureza do amor é que tem de haver um “outro” que possa ser
amado! De algum modo, no próprio ser desse Deus único, há a
complexidade que preserva amor: o Pai ama o Filho (ver Jo 3.35;
5.20), e o Filho ama o Pai (ver Jo 14.31). Na verdade, o amor entre as
pessoas da Divindade (como Deus, a Trindade, é frequentemente
chamada) se torna o modelo controlador que determina como os
cristãos devem amar uns aos outros (ver Jo 17.24-26).
No entanto, estamos indo além do que podemos. Precisamos
considerar em detalhes o resto do prólogo de João.
O QUE JO O DIZ SOBRE O VERBO (JO 1.2-13)
Os versículos iniciais de João estão repletos de reflexões
intercaladas sobre o Verbo, mas podemos facilmente isolar algumas
das mais importantes.
Primeira, a Palavra nos cria. Ele é o agente de Deus na criação.
“Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do
que foi feito se fez” (Jo 1.3). Isso significa que, se nós, seres
humanos, somos criaturas dependentes de Deus, não somos menos
dependentes do Verbo.
Segunda, o Verbo nos dá luz e vida. “A vida estava nele e a vida
era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não
prevaleceram contra ela” (Jo 1.4-5).
Alguns livros você lê apenas uma vez. Você tem um voo,
digamos, para Los Angeles. Então você obtém uma história de
detetive em uma livraria do aeroporto. E até chegar em Los Angeles
você descobriu quem cometeu o crime. Você decide que aquele não é
um livro que deve ser mantido em sua biblioteca, por isso o deixa no
bolso do assento à sua frente. Os faxineiros o jogam fora, e você
nunca mais o lerá.
Outros livros, é claro, você quer ler mais do que uma vez. São
livros nos quais você pode até meditar, talvez pela qualidade da prosa
ou do brilhantismo das descrições e caracterizações. Você pode ler
esse tipo de livro uma vez por causa do enredo e lê-lo outra vez pelo
prazer de todos os outros detalhes. Todo bom autor de narrativa
escreve de um modo que aspectos adicionais são descobertos quando
o livro é relido.
A pergunta é esta: João escreveu seu evangelho como uma obra
descartável para ser lida apenas uma vez? Ou esse evangelho é um
tipo de livro que ele desejava fosse lido repetidas vezes, com
discernimentos adicionais vindos em cada vez? Penso que podemos
mostrar que João escreveu o evangelho esperando que seus leitores
achassem novas coisas à medida que continuassem relendo sua obra.
A primeira peça de evidência está nos versículos 4 e 5 do primeiro
capítulo. Se você lê estes versículos sem ter lido o resto do evangelho
(ou seja, tudo que você leu até esta altura foi os versículos 1 a 3),
como você entenderá os versículos 4 e 5? O versículo 3 diz: “Todas as
coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi
feito se fez”. Isso fala certamente sobre a criação. O versículo 4 diz:
“A vida estava nele e a vida era a luz dos homens”; ou seja, ele tinha
vida em si mesmo e deu vida a todos os seres humanos. Essa era a
luz deles. Antes de Jesus, havia trevas, e ele introduziu a luz. Havia
as trevas do nada antes de ele criar tudo; e, depois da criação, havia
a luz e a vida. Em outras palavras, você pode entender os versículos
4 e 5 totalmente com relação ao versículo 3; e penso que, se você os
estivesse lendo pela primeira vez, essa seria a maneira como você os
entenderia.
Mas, depois, você lê os versículos seguintes:
Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.
Este veio como testemunha para que testificasse a respeito
da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele.
Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz.
João 1.6-8
Você começa a perceber como a “luz” tem agora nuança não de
luz física em contraste com o nada que existia antes da criação.
Agora, a luz tem uma nuança de revelação ou verdade — luz que é
revelada. À medida que você prossegue na leitura do evangelho, o
mesmo tipo de associação moral ou reveladora com a luz se tona
cada vez mais clara. Assim, lemos: “Os homens amaram mais as
trevas do que a luz; porque as suas obras eram más” (3.19). Os
homens escolhem as trevas porque têm medo de se achegar à luz:
“Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega
para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras. Quem pratica
a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam
manifestas, porque feitas em Deus” (3.20-21). Nesse contexto, a luz
não é a luz da criação; é a luz da revelação, da verdade. Quando você
chega a João 8, Jesus diz: “Eu sou a luz do mundo” (8.12).
Agora, volte e releia João 1.4-5: “A vida estava nele e a vida era a
luz dos homens. A luz resplandece nas trevas [ou seja, de corrupção e
rebelião], e as trevas não prevaleceram contra ela”. Agora você tem
outro conjunto de nuanças. Aqui, a luz é revelação e verdade da parte
de Deus, a verdade que está vencendo as trevas da corrupção e da
ignorância moral.
Então, os versículos 4 e 5 deveriam ser lidos à luz do versículo 3
ou à luz dos versículos 6 a 8? Qual é verdadeiro: o Verbo como agente
da vida e da luz física no tempo da criação ou o Verbo como aquele
que traz revelação e transformação e vence as trevas morais?
Evidentemente, a resposta é que ambas são verdadeiras.
Devemos ler o texto de ambas as maneiras. Essa foi a maneira como
o evangelho de João foi escrito: quanto mais o lemos, tanto mais
vemos conexões que estão no texto. A mesma luz que trouxe vida à
criação traz vida eterna a este mundo de corrupção e morte.
Terceira, a Palavra nos confronta e nos divide:
A verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo
homem.
O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu.
Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.
João 1.9-11
A maioria das pessoas não olhou para Jesus e disse: “Oh! Você
está finalmente aqui: a luz do mundo”. Muitos ficaram confusos.
Alguns ficaram cheios de repulsa, porque, ainda que vissem a luz,
ficaram envergonhados em sua presença e preferiram as trevas à luz.
Portanto, a vinda de Jesus não garantiu um avivamento universal em
que todos se converteram a ele.
Alguns o receberam, creram em seu nome:
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de
serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu
nome;
os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
João 1.12-13
Essas pessoas não são nascidas apenas do homem. São também
nascidas de Deus. (Esse é um tema ao qual retornaremos no próximo
capítulo.) Elas são diferentes porque Deus operou nelas algo novo. Há
uma nova criação. Há um novo nascimento. Ele está começando algo
novo nelas, fazendo que verdadeiramente creiam em quem Jesus é
realmente.
O VERBO SE TORNA CARNE (JO 1.14-18)
“E o Verbo se fez carne” (Jo 1.14). Isso significa que o Verbo se
tornou ser humano. Isso é o que os cristãos querem dizer quando
falam sobre a encarnação, literalmente, “o fazer-se carne”.
O Verbo se tornou algo que ele não era antes. Ele já existia; foi o
agente de Deus na criação, mas agora se torna um ser humano. Este
ser humano, como mostram os demais capítulos do evangelho, é
Jesus. O evangelho de João não nos diz meramente que o Verbo se
vestiu de humanidade ou fingiu ser um homem ou coexistiu com um
homem chamado Jesus. Também não pressupõe que tudo de Deus se
exauriu em Jesus (pois, assim, Jesus não teria um Pai celestial a
quem orar!). A linguagem é estranhamente precisa: o Verbo se tornou
carne; o Verbo, sem deixar de ser o Verbo (e, portanto, o companheiro
idêntico de Deus e o próprio “eu” de Deus, como vimos), se tornou um
ser humano. Não é surpreendente que os cristãos, através dos
séculos, se refiram a Jesus como o Deus-homem.
No entanto, o interesse de João na encarnação não é apenas
abstrato ou teórico. Imediatamente, ele acrescenta algumas linhas
para nos recordar uma passagem do Antigo Testamento que já lemos.
Recordar essa passagem do Antigo Testamento nos capacita a
entender melhor a importância da verdade de que o Verbo se tornou
carne. A passagem do Antigo Testamento é Êxodo 32 a 34, que
consideramos no capítulo 4. Esses capítulos de Êxodo descrevem o
que aconteceu quando Moisés desceu do monte e as pessoas estavam
em orgia e idolatria. Moisés orou a Deus e quis ver mais da glória de
Deus:
Então, ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória.
Respondeu-lhe: Farei passar toda a minha bondade diante
de ti e te proclamarei o nome do SENHOR; terei misericórdia
de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem
eu me compadecer.
E acrescentou: Não me poderás ver a face, porquanto
homem nenhum verá a minha face e viverá.
Êxodo 33.18-20
Os versículos que temos diante de nós, em João 1.14-18, reúnem
cinco grandes temas desses capítulos de Êxodo. Você sabe o que
acontece quando citamos uma parte de um livro ou filme que todos
conhecem: toda a cena retorna à nossa mente. Por alguma razão,
meu filho tem uma memória admirável no que concerne a filmes; se
você apenas lhe mencionar uma pequena parte, ele lhe descreverá
alegremente toda a cena. Para pessoas familiarizadas com as
Escrituras, como o eram os primeiros leitores do evangelho de João,
algo semelhante acontece quando você cita uma linha das Escrituras.
Portanto, se você conhece a Bíblia dessa maneira, quando você lê
João 1.14-18, sua mente deve retornar a Êxodo 32-34, por causa das
cinco alusões especificas que a passagem de João faz à passagem de
Êxodo. E isso é o que esclarece a importância da verdade de que o
Verbo se tornou carne. Permita-me mostrar-lhe.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e
de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito
do Pai.
João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem
eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a
primazia, porquanto já existia antes de mim. Porque todos
nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.
Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a
verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no
seio do Pai, é quem o revelou.
1. TABERNÁCULO E TEMPLO
“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (1.14). A palavra
destacada em itálico significa literalmente “tabernaculou entre nós”.
Não podemos deixar de lembrar que o tabernáculo foi o que Deus
estabeleceu no tempo do Sinai, um tabernáculo que tinha aquele
lugar especial chamado Santo dos Santos, onde somente o sumo
sacerdote podia entrar, em favor de si mesmo e de todo o povo, uma
vez por ano, levando o sangue dos sacrifícios. Era o lugar em que os
pecadores se encontravam com Deus, o grande lugar de encontro que
unia um Deus santo e seres humanos rebeldes. O tabernáculo era isso
até que o templo o substituiu. Agora, João nos diz que, quando o
Verbo se tornou carne, “ele tabernaculou entre nós”. Outra vez, no
capítulo seguinte de João, Jesus insistiu em que ele mesmo era o
templo final de Deus (ver Jo 2.19-21), o lugar final de encontro entre
os seres humanos e Deus. Era como se ele estivesse dizendo: “Se
rebeldes têm de ser reconciliados com Deus, eles têm de chegar a Deus
por meio do templo que Deus ordenou — eu sou o templo”.
2. GLÓRIA
“Vimos a sua glória”, escreve João, “glória como do unigênito do
Pai” (1.14). Temos visto a glória de Cristo? O que foi que Moisés
pediu ao Senhor?
Então, ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória.
Respondeu-lhe: Farei passar toda a minha bondade diante
de ti.
Êxodo 33.18-19
João aborda este tema de glória em todo o seu livro. Em João 2,
por exemplo, quando Jesus realizou o seu primeiro milagre —
transformou água em vinho, em um casamento em Caná da Galileia
— o evangelho nos diz, no final deste relato, que os discípulos viram
a glória de Jesus: “Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em
Caná da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos
creram nele” (2.11). As outras pessoas viram o milagre que Jesus
realizou; os discípulos viram a glória de Jesus. Em outras palavras,
eles viram que o milagre era um sinal que significava algo sobre
quem Jesus era; eles viram a glória de Jesus. Este tipo de uso da
palavra “glória” é repetido no evangelho de João. Então, chegamos
em João 12, onde lemos que Jesus deve manifestar a glória do Pai por
ir à cruz (ver 12.23-33). Onde a glória de Deus é mais manifestada?
Na bondade de Deus — quando Jesus é “glorificado”, levantado entre
os homens e pregado na cruz, mostrando a glória de Deus na
vergonha, degradação, brutalidade e sacrifício da sua crucificação e,
por este meio, retornando à glória que ele compartilhava com o Pai
antes que houvesse mundo (ver 17.5).
A manifestação mais espetacular da glória de Deus está num
instrumento de tortura sangrento, porque é nele que a bondade de
Deus é mais revelada.
É bom cantarmos o coro “Aleluia”, do Messias de Handel, mas
também devemos cantar “Rude cruz se erigiu como emblema de
vergonha e de dor”, porque ali Deus manifestou a sua glória em
Cristo Jesus, que se tornou nosso tabernáculo, nosso templo, o lugar
de encontro entre Deus e os seres humanos.
3. GRA A E VERDADE (AMOR E FIDELIDADE)
Ainda estamos lendo João 1.14: “O Verbo se fez carne e habitou
entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória
como do unigênito do Pai” (ênfase acrescentada).
Quando Deus proclama quem ele é, diante de Moisés, abrigado
na caverna, conforme Êxodo 34, ele se descreve de maneiras
diferentes. Incluídas entre estas, estão as palavras “grande [ou cheio]
em misericórdia [amor] e fidelidade” (34.6). No hebraico, os dois
substantivos traduzidos por “misericórdia e fidelidade” são
apropriadamente traduzidos por “graça e verdade”, que é a maneira
como João os traduz. Deus se manifesta não somente como o Deus
que pune pecadores, mas também como aquele que é “cheio de graça
e de verdade” e perdoa. João, pensando sobre quem é Jesus, este Jesus
que manifesta a bondade de Deus, sua glória na cruz, diz que Jesus é
“cheio de graça e verdade”, a graça e a verdade que o levaram à cruz
e pagaram por nossos pecados.
4. GRA A E LEI
João acrescenta: “Todos nós temos recebido da sua plenitude e
graça sobre graça” (1.16). Isso é exatamente o que o texto diz. Mas o
que isso significa? Significa “graça em cima de graça” ou “uma
graça após outra”, como presentes empilhados embaixo de uma
árvore de Natal, uma bênção após outra. Significa que todos nós
recebemos uma graça em lugar de outra graça já outorgada. O que
isso significa? O versículo seguinte nos diz: “Porque a lei foi dada por
intermédio de Moisés [o que nos leva de volta a Êxodo 32-34]; a
graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (1.17). Em outras
palavras, o dom da lei foi uma coisa graciosa, um dom maravilhoso e
bom da parte de Deus. Mas a graça e a verdade, por excelência,
vieram por meio de Jesus Cristo, não na manifestação de glória dada
a Moisés, numa caverna, e sim na manifestação de Jesus e no
sacrifício sangrento na cruz. A aliança da lei foi um dom gracioso de
Deus, mas agora Jesus introduz uma nova aliança, a graça e verdade
final. Isto é uma graça que substitui aquela antiga graça. Está unida
a uma nova aliança.
5. VENDO A DEUS
“Ninguém jamais viu a Deus”, João nos lembra (1.18). Não foi
isso que Deus falou em Êxodo 33? “Não me poderás ver a face,
porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá” (Êx 33.20).
João acrescenta uma exceção: “O Deus unigênito, que está no seio do
Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). Você percebe o que esse texto está
dizendo? Você quer saber como é Deus? Olhe para Jesus. “Ninguém
jamais viu a Deus”, e não poderemos ver a Deus em todo o seu
esplendor transcendente até o último dia. Mas o Verbo se tornou
carne; Deus se tornou um ser humano com o nome de Jesus. E
podemos vê-lo. Essa é a razão por que Jesus disse a um de seus
discípulos (como vimos antes neste capítulo): “Filipe, há tanto tempo
estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o
Pai” (Jo 14.9).
Você quer saber como é o caráter de Deus? Estude a Jesus. Você
quer saber como é a santidade de Deus? Estude a Jesus. Você quer
saber como é a ira de Deus? Estude a Jesus. Você quer saber como é o
perdão de Deus? Estude a Jesus. Você quer saber como é a glória de
Deus? Estude a Jesus em todo o seu caminho para aquela cruz
ignominiosa. Estude a Jesus.
HISTÓRIA CONCLUSIVA
Concluir com uma história que tenho contado inúmeras vezes
pode ajudar-nos a reunir estas coisas. Minha primeira graduação foi
em química e matemática na Universidade McGill, em Montreal.
Enquanto estudava ali, tornei-me amigo de um paquistanês
agradável e cordial. Ele era duas vezes mais velho do que eu. Viera à
McGill para obter um Ph.D. em estudos islâmicos. (McGill tinha, e
ainda tem, um excelente instituto de estudos islâmicos.) Ele deixara
sua esposa e dois filhos no Paquistão e, por isso, estava sozinho.
Com o passar do tempo, nos tornamos amigos. Depois de algum
tempo, comecei a perceber que ele estava tentando converter-me ao
islamismo. Pensei que deveria retornar o favor, mas logo me vi sem
profundeza no debate. Ele era um teólogo muçulmano bem treinado, e
eu estudava química.
Lembro que, certa noite, caminhava com ele, ao pé do Monte
Royal, pela University Avenue até a Pine Avenue, para tomarmos um
ônibus. Ele concordara em ir comigo à igreja. Queria ver como era a
igreja. Enquanto caminhávamos, ele me perguntou: “Don, você
estuda matemática, não é?”
“Sim.”
“Se você tem um copo e acrescenta outro copo, quantos copos
você tem?”
Bem, eu estava fazendo alguns cursos de matemática e disse:
“Dois”.
“Se você tem dois copos e acrescenta outro copo, quantos copos
você tem?”
Eu disse: “Três”.
“Se você tem três copos e tira um copo, quantos copos você
tem?”
Eu disse: “Dois”. Até esta altura, eu estava indo bem.
Então, ele disse: “Você crê que o Pai é Deus?”
“Sim.” Oh! pude ver onde ele queria chegar.
“Você crê que Jesus é Deus?”
“Sim.”
“Você crê que o Espírito Santo é Deus?”
“Sim.”
“Então, se você tem um Deus, mais um Deus, mais um Deus,
quantos deuses você tem?”
Eu estava estudando química, não teologia. Como eu deveria
responder isso? O melhor que pude dizer foi: “Ouça, se você está
usando um modelo matemático, então, permita-me responder com um
ramo da matemática. Falemos sobre infinitos. Infinito mais infinito
mais infinito é igual ao quê? A infinito. Eu sirvo um Deus infinito”.
Ele sorriu cordialmente. Esse era o nível de nossa discussão e
amizade. Por volta de novembro, ocorreu-me repentinamente que ele
nunca lera a Bíblia cristã. Não possuía uma Bíblia e nunca tivera
uma em suas mãos. Por isso, comprei uma Bíblia e lhe dei. Ele
perguntou: “Onde começo?”
Ele não sabia como a Bíblia se harmonizava. Não sabia sobre o
Antigo e o Novo Testamento. Não conhecia o evangelho. E eu não
sabia o que lhe sugerir. Então, eu disse: “Por que você não começa
pelo evangelho de João?” Mostrei-lhe onde estava, depois de Mateus,
Marcos e Lucas.
Ele viera da Ásia e não lia livros da maneira como eu leria.
(Quantas páginas posso ler hoje à noite? Quanto mais, melhor!) Não,
ele tinha um estilo de leitura que ia devagar, com muitas pausas
para reflexão, releitura e questionamento. E a passagem em que ele
começaria a pensar era o prólogo de João.
Naquele Natal, eu o trouxe à casa de meus pais, que, naquela
época, viviam na parte francesa de nossa capital, Ottawa, em um
lugar chamado Hull. Aconteceu que meu pai teve problemas no
coração; mamãe e eu gastamos a maior parte de nosso tempo no
hospital. Meu querido amigo Muhammad foi deixado sozinho. Perto
do final do recesso de Natal, papai se recuperou muito bem. Por isso,
eu lhe pedi que me emprestasse o carro e levei Muhammad para ver
alguns lugares na capital. Passamos em vários lugares e terminamos
nos edifícios do Parlamento. Naqueles dias, havia menos segurança
do que há agora. Juntamo-nos a um grupo de excursionistas —
trinta pessoas sendo conduzidas pelos edifícios — e seguimos para a
rotunda, nos fundos, onde se localiza a biblioteca, para o Senado, a
Câmara dos Deputados e para a galeria de retratos dos primeiros
ministros do Canadá, desde Sir John A. McDonald em diante.
Por fim, retornamos ao salão central, que é rodeado por alguns
pilares largos. No topo de cada pilar, existe um pequeno afresco no
qual há uma figura. E o guia explicou, enquanto apontava de uma
figura para outra: “Ali está Aristóteles, pois o governo tem de ser
baseado em conhecimento. Ali está Sócrates, pois o governo tem de
ser baseado em sabedoria. Ali está Moisés, pois o governo tem de ser
baseado em lei”. Andou por todo o salão. Depois, ele falou: “Alguma
pergunta?”
Meu amigo falou prontamente: “Onde está Jesus Cristo?”
O guia fez o que os guias fazem nessas circunstâncias. Apenas
dizem: “Não entendi, senhor”.
Portanto, Muhammad fez o que estrangeiros fazem nessas
circunstâncias. Admitem que foram mal entendidos por causa de seu
sotaque carregado e fez sua pergunta mais clara e audivelmente:
“Onde está Jesus Cristo?”
Ora, havia três grupos no salão central do Parlamento
canadense ouvindo um paquistanês mulçumano perguntar onde
estava Jesus. Procurei uma fenda no chão para cair nela. Eu não
tinha a menor ideia de onde vinha isso.
Por fim, o guia exclamou: “Por que Jesus deveria estar aqui?”
Muhammad parecia chocado. Tomando uma parte de versículos
bíblicos que estivera lendo, ele disse: “Li na Bíblia cristã que a lei foi
dada por Moisés e que a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.
Onde está Jesus Cristo?”
O guia respondeu: “Não sei nada sobre isso”.
Sussurrei comigo mesmo: “Pregue, irmão”.
Você percebe como Muhammad viu essa situação? Ele era um
mulçumano. Entendeu os fatos sobre um Deus que tinha leis e
padrões, opera terrores, julga as pessoas, um Deus que é soberano,
santo e poderoso. Muhammad entendeu tudo isso. Mas ele já havia
sido cativado por Jesus, cheio de graça e de verdade, que manifesta
sua glória profundamente na cruz e se torna o lugar de encontro
entre Deus e pecadores, porque ele morreu a morte dos pecadores.
(1) Ronald J. Sider, The Scandal of the Evangelical Conscience: Why Are Christians Living
Just Like the Rest of The Word? (Grand Rapids: Baker, 2005).
9
O Deus
que Ama
R Retornaremos brevemente a João 3 e ao relato sobre Nicodemos,
mas quero começar este capítulo por refletir, de maneira geral, sobre o
amor de Deus.
POR QUE AS PESSOAS ACHAM FÁCIL CRER NO AMOR DE DEUS
Se há algo que o nosso mundo imagina saber a respeito de Deus
— se, de algum modo, o nosso mundo crê em Deus — é que ele é um
Deus de amor. Isso não foi sempre assim na história da humanidade.
Muitas pessoas pensavam nos deuses como seres arbitrários,
incompassíveis, caprichosos e até maliciosos. Era por isso que as
pessoas tinham de apaziguá-los. Algumas vezes na história da igreja,
os cristãos colocaram mais ênfase na ira, na soberania ou na
santidade de Deus — temas estes que, em um grau ou outro, são
todos bíblicos. O amor de Deus não recebeu tanta atenção. Mas hoje,
se de alguma maneira as pessoas creem em Deus, elas acham, em
geral, ser mais fácil crer no amor de Deus.
No entanto, sentir-se satisfeito com a noção do amor de Deus
tem sido acompanhado por algumas noções superficiais quanto ao
significado desse amor. Ocasionalmente, ouvimos pessoas dizerem
algo assim: “Não gosto dos cristãos. Isso significa: Deus é amor, e, se
todos fossem como Jesus, seria maravilhoso. Jesus disse: ‘Não
julgueis, para que não sejais julgados’. Se todos fôssemos pessoas
que não julgam e fôssemos amáveis como Jesus o foi, o mundo seria
um lugar melhor”. Nessas palavras, há uma suposição sobre a
natureza do amor, não há? O amor não julga. Não condena ninguém.
Deixa todos fazerem o que quiserem. Isso é o que o amor significa.
É tragicamente verdadeiro que, às vezes, alguns cristãos são
incompassíveis — Deus nos ajude nisso. É verdade que Jesus disse:
“Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7.1). Mas, quando
falou isso, ele queria realmente dizer: “Não façam qualquer
julgamento moral discriminatório”? Então, por que ele nos deu
tantos mandamentos sobre falar a verdade? Esses mandamentos não
implicam numa condenação de mentiras e mentirosos? Jesus nos
ordenou amar o nosso próximo como a nós mesmos. Isso não
constitui, em si mesmo, um julgamento implícito daqueles que não o
fazem? De fato, no mesmo texto em que Jesus disse: “Não julgueis,
para que não sejais julgados”, disse também: “Não deis aos cães o
que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas” (Mt 7.6); e
isso significa que alguém deve determinar quem são os porcos.
Em outras palavras, quando Jesus disse algo tão importante
como “Não julgueis, para que não sejais julgados”, há um contexto
que precisa ser entendido. Afinal de contas, Jesus estabeleceu um
padrão moral extraordinariamente elevado em sua época. Portanto,
se as pessoas acham que “Não julgueis, para que não sejais
julgados” significa que Jesus estava abolindo toda moralidade e
deixando essas questões com o indivíduo, elas nem começaram a
entender quem é Jesus. Ele condena realmente o tipo de julgamento
arbitrário, cheio de justiça própria e hipócrita. Repetidas vezes, ele
condenou vigorosamente esse tipo de julgamento. Mas Jesus em
hipótese alguma condena o discernimento moral ou a prioridade da
verdade. Em qualquer caso, no amor de Deus e no amor de Jesus há
mais do que evitar o julgamento.
Isso significa que, ao pensarmos no amor de Deus, precisamos
pensar também nos seus outros atributos — sua santidade, verdade,
glória (a manifestação de seu ser e amabilidade espetaculares) e todo
os outros — e pensar em como todos eles operam juntos em todo o
tempo. Infelizmente, pelo fato de nossa cultura achar fácil crer que
Deus é um Deus de amor, desenvolvemos noções do amor de Deus que
são preocupantemente superficiais e sentimentais e, quase sempre,
alienadas de todo o âmbito dos atributos que fazem de Deus o que ele
realmente é — Deus.
CINCO MANEIRAS PELAS QUAIS A BÍBLIA
FALA DO AMOR DE DEUS
Meu livreto The Difficult Doctrine of the Love of God (A Difícil
Doutrina do Amor de Deus) tenta descrever (entre outras coisas) cinco
maneiras diferentes pelas quais a Bíblia fala do amor de Deus. Deixe-
me considerá-las rapidamente com você. Insisto em que essas são
maneiras pelas quais a Bíblia fala do amor de Deus, e não cinco tipos
diferentes de amor.
1. Existe o amor de Deus - não sei outra maneira de expressar
isso — na Divindade, no Deus trino. A Bíblia fala explicitamente
sobre o amor do Pai por seu Filho e o amor do Filho pelo Pai. No
capítulo 7, notamos que o evangelho de João, o quarto livro do Novo
Testamento, diz que o Pai ama o Filho e confiou todas as coisas às
suas mãos (ver Jo 3.35) e determinou que todos honrem o Filho do
modo como honram o Pai (ver Jo 5.23). A Bíblia diz, com clareza, que
o Pai ama o Filho. Também nos diz, com a mesma clareza, que o Filho
ama o Pai e sempre faz o que lhe agrada (Jo 14.31). A razão por que
Jesus foi à cruz é, antes de tudo, que ele ama seu Pai e faz a vontade
dele. Esse amor na Divindade (o que as pessoas chamam de amor
intratrinitário — se Deus pode ser referido como a Trindade, então
estamos pensando no amor que flui entre os membros da Divindade,
da Trindade) é um amor perfeito. Cada pessoa da Trindade acha a
outra gloriosa e perfeitamente amável. Não é como se o Pai dissesse
ao Filho: “Sinceramente, você é um caso sem esperança, mas eu amo
você”. O Filho é perfeitamente amável, assim como o Pai; e eles
amam um ao outro perfeitamente. Esta é uma maneira pela qual a
Bíblia fala do amor de Deus.
2. O amor de Deus pode se referir ao seu cuidado geral sobre sua
criação. Deus faz nascer seu sol e traz chuvas sobre justos e injustos.
Isso quer dizer que o amor de Deus é providencial e não
discriminatório. É um amor amoral (e não um amor imoral). Deus
sustém tanto os justos como os ímpios. De fato, no Sermão do Monte,
Jesus pôde usar o amor providencial de Deus para extrair uma lição
moral. Em essência, ele disse: “Se Deus envia o seu sol e sua chuva
tanto sobre justos como sobre injustos, por que vocês fazem todas
essas distinções terríveis entre os que são amigos e os que são
inimigos de vocês, escolhendo amar somente os amigos, enquanto
odeiam os inimigos?” (ver Mt 5.44-47). Portanto, há um sentido em
que o amor de Deus se estende generosamente a amigos e a inimigos.
Esta é uma segunda maneira pela qual a Bíblia fala do amor de
Deus.
3. Às vezes, a Bíblia fala sobre o amor de Deus em um sentido
moral, convidativo, categórico e anelante. Por isso, no Antigo
Testamento, achamos Deus se dirigindo a Israel quando a nação era
perversa, e dizendo: “Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso?
— diz o SENHOR Deus; não desejo eu, antes, que ele se converta dos
seus caminhos e viva?” (ver Ez 18.23, 32; 33.11). Ele é esse tipo de
Deus.
4. Às vezes, o amor de Deus é seletivo. Escolhe um e rejeita
outro. “Amei a Jacó, porém aborreci a Esaú” (Ml 1.2-3). Essa é uma
linguagem muito forte. Em passagens notáveis, em Deuteronômio 7 e
10, Deus fez a pergunta retórica sobre a razão por que escolhera a
nação de Israel. Ele apresentou as possibilidades. Por que eles eram
numerosos? Não. Por que eram mais poderosos? Não. Por que eram
mais justos? Não. Deus lançou suas afeições sobre eles porque os
amou — ou seja, ele os amou porque os amou. Ele não amou as
demais nações dessa maneira. No contexto, Deus lançou suas
afeições sobre Israel, contrário do que fez às outras nações, porque
ele amou Israel. Foi a escolha soberana de Deus.
5. Uma vez que Deus está em conexão com seu povo (em geral,
isso significa que Deus entrou em um relacionamento de aliança com
eles), o amor dele é frequentemente apresentado como condicional.
Consideremos, por exemplo, o penúltimo livro da Bíblia, chamado
Judas, um pequeno livro de uma página. Judas, um meio irmão de
Jesus, escreveu: “Guardai-vos no amor de Deus” (Jd 21); e isso mostra
que podemos não nos guardar no amor de Deus. Em passagens como
essa, há uma condicionalidade moral vinculada a sermos amados por
Deus. De fato, há muitas passagens, tanto no Antigo como no Novo
Testamento, que nos mostram que o amor de Deus ou o amor de Jesus
é, em algum sentido, condicional à nossa obediência. Até os Dez
Mandamentos são parcialmente moldados pela condicionalidade.
Deus mostra o seu amor, conforme ele mesmo diz, “até mil gerações
daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êx 20.6).
Portanto, na Bíblia, há contextos em que o amor de Deus é retratado
em termos condicionais.
Você percebe quão sutil isso se torna? Inevitavelmente, alguém
começa a perguntar como essas maneiras diferentes de falar do amor
de Deus se harmonizam. Pensar em analogias humanas pode ajudar-
nos nisso. Posso dizer com muita franqueza: “Amo guiar minha
motocicleta, amo trabalhar em madeira e amo minha esposa”. Mas,
se colocar muito frequentemente essas três coisas juntas, na mesma
frase, minha esposa, como podemos compreender, não ficará
contente. E elas realmente têm peso diferente. Ou eu posso dizer:
“Amo incondicionalmente os meus filhos”. Tenho uma filha na
Califórnia que trabalha com crianças necessitadas. Se em vez disso,
ela tivesse se tornado uma prostituta nas ruas de Los Angeles, creio
que eu a amaria da mesma maneira. Ela é minha filha. Eu a amo
incondicionalmente. Tenho um filho que é um fuzileiro naval. Se, em
vez disso, ele começasse a vender heroína nas ruas de Nova Iorque,
creio que eu o amaria da mesma maneira. Ele é meu filho. Eu o amo
incondicionalmente. Contudo, em outro contexto, quando eram
apenas adolescentes aprendendo a dirigir, se eu dissesse a um deles:
“Assegure-se de chegar em casa por volta da meia-noite”, e eles não
chegassem nessa hora, enfrentariam a ira de seu pai. Nesse sentido,
meu amor era bem condicional em relação a me obedecerem e
trazerem o carro para casa na hora determinada.
Em outras palavras, apesar do fato de que consideramos os
mesmos filhos e o mesmo pai, os contextos diferentes mudam o uso
da linguagem do amor. Não aconteceu que, em um sentido, o meu
amor por eles foi menos incondicional, porque há uma estrutura em
que o amor permanece constante. Mas pode haver outra estrutura em
que prevalecem acordos e responsabilidades familiares — ou, em
termos bíblicos, obrigações da aliança — e nisto as dinâmicas
mudam de alguma maneira.
Os cristãos têm sido conhecidos por promoverem chavões como
“Deus ama todos da mesma maneira”. Falso ou verdadeiro? Depende!
Há contextos em que a Bíblia retrata o amor de Deus como
moralmente neutro. Ele envia seu sol e sua chuva para justos e
injustos; nesse contexto, ele ama a todos igualmente. Mas há outros
contextos em que o amor de Deus é afirmado como condicional à
nossa obediência; e há outros contextos em que esse amor está
fundamentado na escolha soberana de Deus. Nesses contextos, Deus
não ama todos da mesma maneira.
“Você não pode fazer nada que leve Deus a amá-lo ainda mais.”
Verdadeiro ou falso? Depende! Em alguns contextos, isso é gloriosa e
completamente verdadeiro, porque, em última análise, você não pode
fazer por merecer o amor de Deus. Todavia, há contextos diferentes
em que o amor de Deus é descrito como condicional. A principal lição
a aprendermos nesta conjuntura é que temos de ser cuidadosos para
não cometer erros tolos quando lemos o texto bíblico, por tirarmos
um versículo do seu contexto, universalizando-o e ignorando a
maravilhosa diversidade de maneiras pelas quais a Bíblia fala sobre
o amor de Deus.
Aqui temos de retornar ao relato do encontro de Jesus com
Nicodemos.
JOÃO 3.16-21
No capítulo anterior, consideramos o dialogo entre Jesus e
Nicodemos sobre o assunto do novo nascimento. Vimos que, no final
da conversa, Jesus afirmou ter revelação especial. Ele podia falar com
autoridade sobre a nossa necessidade de novo nascimento e o seu
efeito poderoso e transformador, reconciliando-nos com Deus e
redirecionando nossa vida, exatamente porque ele viera do céu. Além
disso, para oferecer uma explicação da base sobre a qual as pessoas
são reconciliadas com Deus, Jesus apresentou uma analogia extraída
do Antigo Testamento — Moisés levantou a serpente de bronze em
uma haste —, mostrando que todo aquele que crê pode ter a vida
eterna nele, Jesus. Isso nos leva a João 3.16-21, que nos fala sobre os
motivos de Deus em buscar homens e mulheres com esse poder
regenerador:
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna.
Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que
julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por
ele.
Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.
O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens
amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras
eram más.
Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se
chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas
obras.
Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as
suas obras sejam manifestas, porque feitas em Deus.
João 3.16-21
Deixe-me tirar algumas inferências dessa passagem e de outras
relacionadas.
1. NA BÍBLIA, O FATO DE QUE DEUS NOS AMA É SIMPLESMENTE ADMIRÁVEL
]Em geral, não pensamos dessa maneira, mas a Bíblia se deleita
em maravilhar-se do amor de Deus. A razão por que não pensamos
dessa maneira é dupla: não somente pensamos que Deus tem de
amar (isso é amplamente aceito em nossa cultura), mas também que
“ele tem de amar especialmente a mim, porque sou bom, prestativo e,
talvez, atraente. Não bato nas pessoas. Sou uma pessoa decente. É
claro que Deus me ama. Quero dizer: não há nada em mim que ele
não possa amar, há?” Mas esse pensamento está tão distante do
ensino bíblico, que temos de reconsiderá-lo. Permita-me usar uma
ilustração que tenho usado às vezes com estudantes universitários.
Bob e Sue caminham pela praia. É o final do ano acadêmico. O
sol aqueceu a areia. Eles tiram as sandálias e sentem a areia úmida
penetrar entre seus dedos. Ele pega a mão de Sue e lhe diz: “Sue, eu a
amo. Eu a amo realmente”. O que ele pretende dizer? Talvez queira
dizer várias coisas. Pode estar apenas dizendo que seus hormônios
estão fervendo e que ele deseja ir para a cama com ela. O mínimo que
ele quer dizer é que se sente atraído por ela. Certamente, ele não quer
dizer que a acha desagradável, mas que a ama de qualquer maneira.
Quando ele diz: “Eu a amo”, está dizendo, em parte, que a acha
amável. E, se tem algum tipo de propensão romântica, ele talvez dirá:
“Sue, a cor de seus olhos — eu poderia mergulhar neles. O cheiro de
seu cabelo, as covinhas na sua face, quando sorri — não há nada em
você que eu não ame. Sua personalidade — é tão maravilhosa. Você é
tão encorajadora. Você deu esse sorriso que pode encher toda uma
sala; ele é tão contagiante. Sue, eu a amo”. O que isso não significa
é: “Sue, com muita franqueza, você é a criatura mais estranha que eu
conheço. Seu mau hálito poderia deter uma manada de elefantes
desgovernados. Seus joelhos me lembram um camelo aleijado. Você
tem a personalidade de Gengis Khan. Você não tem qualquer senso de
humor. Você é uma mulher horrível, narcisista, cheia de justiça
própria e detestável, mas eu a amo”. Quando ele declara seu amor
por ela, naquele momento ele está declarando que a acha amável.
Isso não é correto?
Ora, é Deus quem aparece em João 3.16: “Deus amou ao
mundo”. O que ele está dizendo ao mundo? “Mundo, eu o amo”? Está
dizendo: “Mundo, a sua personalidade cintilante, sua conversa
inteligente, sua hilaridade, seu talento — você é lindo! Eu o amo.
Não posso imaginar o céu sem você”. É isso que Deus está dizendo?
Em outras palavras, quando Deus diz: “Eu o amo”, ele está
declarando a natureza amável do mundo? Há muitos psicólogos que
usam o amor de Deus exatamente dessa maneira. Se Deus declara:
“Eu o amo”, isso tem de significar: “Tudo está bem comigo, tudo está
bem com você. Deus diz que tudo está bem conosco. Ele nos ama; isso
tem de ser porque somos dignos de amor”.
Conforme a Bíblia, isso não faz sentido. A palavra “mundo”, no
evangelho de João, se refere não a um grande lugar onde há muitas
pessoas, e sim a uma lugar mau onde há muitas pessoas más. A
palavra “mundo”, no evangelho de João, se refere à ordem de coisas
que Deus criou centrada no homem, mas que se rebelou contra ele em
ódio e idolatria, resultando na quebra de relacionamentos,
infidelidade e impiedade. Essa é a razão por que já nos primeiros
versículos deste evangelho, em uma passagem que examinamos no
capítulo 7, o chamado prólogo do evangelho de João (Jo 1.1-18),
lemos: “O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu” (Jo 1.10). É também a razão por
que lemos nesta passagem: “O julgamento é este: que a luz veio ao
mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as
suas obras eram más” (Jo 3.19). Ou seja, com a vinda de Jesus, veio a
autorrevelação graciosa de Deus, sua revelação, a luz que é boa,
limpa e pura — mas as pessoas amam as trevas, e não a luz. Tudo
que ela faz é mostrar a sujeira.
No entanto, o texto diz: “Deus amou ao mundo de tal maneira”
— este mundo caído e corrompido. É como se Deus estivesse dizendo
para o mundo: “No aspecto moral, vocês são pessoas de joelhos
aleijados. Vocês são pessoas de mau hálito moral. Vocês são pessoas
de personalidade violenta, semelhante à de Gengis Khan. Vocês são
odiosos, detestáveis e assassinos. Mas, sabem uma coisa? Eu os amo
apesar disso — não porque vocês são dignos de amor, e sim porque
eu sou esse tipo de Deus”. Essa é a razão por que na Bíblia, depois de
Gênesis 3, o amor de Deus é sempre motivo de admiração. O amor de
Deus é maravilhoso, surpreendente e, de algumas maneiras, não é
como deveria ser. Por que Deus não nos condena, em vez de amar-
nos?
2. A MEDIDA DO AMOR DE DEUS POR NÓS É JESUS
“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito” (Jo 3.16). Precisamos entender que o evangelho de
João é rico em expressões que falam do amor do Pai pelo Filho e do
amor do Filho pelo Pai. Há um maravilhoso capítulo, João 17, que é
às vezes chamado de “oração sumo sacerdotal de Jesus”. Nesse
capítulo, há um tipo de meditação ampliada sobre o fato de que na
eternidade passada o Pai amava o Filho com um amor perfeito. E, por
sua vez, o Filho amava o Pai com um amor perfeito, além de nossas
mais extraordinárias e generosas imaginações.
Já vimos que o Deus presente não precisa de nós. Ele
manifestava e gozava de um amor perfeito na eternidade passada.
Quando nos criou, nós o desprezamos e quisemos nos tornar igual a
ele. Ele resolveu amar, de maneira anelante e convidativa, esse
“mundo” (uma expressão favorita de João) perdido e autodestruidor.
Em outras passagens, João nos fala sobre o relacionamento peculiar
de Deus com seu povo, descrevendo-os como aqueles que o Pai deu ao
Filho (ver, por exemplo, Jo 6.37-40). Já vimos que a Bíblia fala de
maneiras diferentes sobre o amor de Deus. Nesse contexto imediato, o
objeto do amor de Deus é o “mundo” — homens e mulheres, cada
etnia, judeus e gentios, todos perdidos em uma determinação ímpia
que nos separa do Deus presente — e Deus nos ama apesar disso. É
admirável! E a medida deste amor é Jesus, este Jesus que, antes de se
tornar Jesus, como o Filho eterno, a Palavra eterna, era um com o Pai
num perfeito círculo de amor, na eternidade passada. Agora, o Pai dá
o seu Filho por nós. Essa é a maneira como ele escolhe nos amar.
Deus dá, em essência, a si mesmo.
De fato, quando dizemos que a medida do amor de Deus por nós
é Jesus, queremos, na realidade, dizer duas coisas:
Primeira, quanto custou ao Pai entregar a Jesus? Nós, que somos
pais, daríamos alegremente nossos filhos para que outras pessoas
fossem poupadas da morte? E mesmo esse tipo de amor seria uma
troca de uma criança por outra da mesma categoria, outro ser
humano. Mas Deus, o Pai, deu seu Filho em benefício de meras
criaturas, ingratas e egocêntricas.
Segundo, que amor Jesus mostra? A medida do amor de Deus por
nós é Jesus. Se quisermos ver a plena medida do amor de Deus,
observemos a Jesus.
Lembremos diversas ocasiões na vida de Jesus, conforme
relatada nos outros textos do Novo Testamento, que falam sobre o
amor de Deus ou o amor de Jesus.
Nós vemos a Jesus com um coração tão grande quanto a
eternidade, quando ele olhou para uma multidão que parecia sem
liderança, espiritualmente vazia e perdida. Ele os chamou de ovelhas
sem pastor, e o relato do evangelho nos diz que Jesus se compadeceu
deles (ver Mt 9.36).
Nós o vemos com as criancinhas, tomando-as como um tipo de
modelo do que os seus discípulos deveriam ser: semelhante a crianças
em achegarem-se a Jesus. Criancinhas não se achegam a alguém que
está irado. Nos evangelhos, nós as vemos brincando com Jesus e
subindo ao colo dele, e ele disse: “Deixai os pequeninos, não os
embaraceis de vir a mim” (Mt 19.14).
Ou podemos ler esta maravilhosa passagem de Mateus 12. Jesus
citou palavras referentes a ele mesmo extraídas do profeta Isaías
(mais de 700 anos antes):
Eis aqui o meu servo, que escolhi, o meu amado, em quem a
minha alma se compraz. Farei repousar sobre ele o meu
Espírito, e ele anunciará juízo aos gentios. Não contenderá,
nem gritará, nem alguém ouvirá nas praças a sua voz.
Não esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que
fumega, até que faça vencedor o juízo.
E, no seu nome, esperarão os gentios.
Mateus 12.18-21
Você pode visualizar essas imagens? Um vela: a chama
desaparece, e, em vez de esmagar a vela fumegante, ele a assopra
para que volte a chamejar. Ou imagine uma cana à beira de um lago,
um lugar em que melros de asa vermelha se reúnem, e a cana está
quebrada — não é muito forte. No entanto, Jesus não a destrói, ele a
fortalece. Essas são maneiras poderosas de dizer que o amor é gentil,
edificante, compassivo.
Mesmo quando Jesus repreendeu pessoas por causa de seus
pecados, usando às vezes linguagem bastante forte (ele disse
realmente a algumas pessoas: “Hipócritas... guias cegos... Serpentes,
raça de víboras!”, em Mateus 23.15-16, 33), no final de sua
repreensão nós o vemos chorando pela cidade. Há alguns pregadores
na literatura, como Elmer Grant, que são prontos para repreender,
mas são hipócritas. Há um tipo de pregação moralizante que
denuncia e critica, mas é frustrada pela decadência moral; ela é
sempre irada. Nunca é caracterizada por lágrimas de compaixão.
Essa insensibilidade de coração nunca caracterizou a Jesus.
Uma das coisas realmente maravilhosas sobre a demonstração
do amor de Jesus é a maneira como ele lidava com as pessoas como
elas eram, sem uma fórmula única para todos. Ele disse a um jovem
rico cujo dinheiro era um deus, que ele tinha de vender todos os seus
bens e dar o lucro aos pobres. Mas não foi isso que Jesus disse à
mulher samaritana que encontrou à beira de um poço. Ele lhe disse
que trouxesse seu marido, mas, é claro, ela não podia fazer isso, pois
já tivera cinco maridos, e o homem com que ela vivia não era seu
marido. Ela tinha de lidar com a barreira de seus relacionamentos
quebrados. O chefe gentio que tinha um filho cuja vida estava
ameaçada, a mulher contrita que lavou os pés de Jesus, o apóstolo
que duvidou publicamente de Jesus — em todos os casos, o amor do
Senhor era não somente profundo, mas também objetivo e abordava
com exatidão as necessidades das pessoas.
Igualmente maravilhosa é a maneira como Jesus se dirigiu aos
sobrecarregados com os cuidados da vida e disse:
Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de
coração; e achareis descanso para a vossa alma.
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve
Mateus 11.28-30 — ênfase acrescentada
O tema de descaso tem a sua trajetória em toda a Bíblia. Assim
como Deus “descansou” no fim da criação, e ordenou, nos Dez
Mandamentos, que seu povo descansasse no sábado, o descanso final
é garantido em Jesus — um tema expandido posteriormente no Novo
Testamento (ver Hebreus 3 e 4). Esse descanso que Deus provê é uma
função do amor de Deus por seu povo.
Depois, nós o encontramos na cruz. Você viu o filme A Paixão de
Cristo, dirigido por Mel Gibson? O filme retratou acuradamente uma
porção dos sofrimentos físicos. Açoitado, espancado e fraco, Jesus
clamou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc
23.34). E aquele tormento físico não foi todo o sofrimento de Jesus.
Quando ele tomou a culpa e a punição de outros, experimentou o
mais profundo sentimento de abandono do seu Pai celestial (ver Mt
27.45-46).
Para alguns escritores do Novo Testamento, tão comovente foi
esse amor de Deus, mostrado em Cristo Jesus, que, frequentemente,
eles irromperam em deleite em face desse tema. Podiam estar
descrevendo algo, em expressões teológicas precisas, que os levava a
pensar na cruz e, subitamente, irrompiam com outra reiteração
prazerosa de sua apreensão desse amor. Por exemplo, em uma das
cartas de Paulo, uma carta dirigida aos cristãos da Galácia, ele
desenvolveu um ensino profundo sobre o que a cruz realizou, o que é
a “justificação” (algo que consideraremos no capítulo 11); em
seguida, quando mencionou a morte de Jesus, Paulo irrompeu em
clamor: “Vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se
entregou por mim” (Gl 2.20). Em outra passagem, quando ele orava
por outro grupo de crentes (da cidade de Éfeso), o apóstolo Paulo lhes
disse pelo que orava, o que ele pedia a Deus em favor deles. Paulo
mencionou uma ou duas coisas e, depois, acrescentou que orava para
que eles pudessem “compreender, com todos os santos, qual é a
largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o
amor de Cristo” (Ef 3.18-19), usando metáforas de espaço para
retratar as dimensões ilimitadas do amor de Cristo. Em seguida, ele
usou um paradoxo: “Conhecer o amor de Cristo, que excede todo
entendimento” (Ef 3.19), ou seja, conhecer este amor que é
desconhecível, que é insondável, que excede o conhecimento —
conhecê-lo, experimentá-lo. A razão por que Paulo orou por isso, ele
disse aos efésios, era que eles fossem “tomados de toda a plenitude
de Deus” (Ef 3.19). Esta expressão significa: “Para que sejam tão
plenos quanto Deus os tornar, perfeitamente maduros. Vocês não
podem ser genuinamente maduros enquanto não estiverem ricamente
conscientes de que estão inundados do amor de Deus, expresso em
Cristo Jesus. E isso é o que peço em oração por vocês”.
A medida do amor de Deus por nós é Jesus.
3. O PROPÓSITO DO AMOR DE DEUS POR NÓS É QUE TENHAMOS VIDA
Considere a linguagem de João 3.16-18:
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna.
Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que
julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por
ele.
Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.
João 3.16-18, ênfase acrescentada
Observe os pares: (1) não pereça, mas tenha a vida eterna; 2)
não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo. Eles são
opostos. O propósito do amor de Deus por nós é claro e direcionado.
Ocasionalmente, algumas pessoas têm retratado o amor de Deus em
Cristo Jesus como se fosse, de algum modo, autossacrificante e sem
propósito: Jesus morreu na cruz para provar-nos o quanto nos ama.
Há mais de cem anos, certo homem inglês confrontou isso, dizendo:
“Haveria algum sentido em uma pessoa correr para o píer Brighton e
gritar: ‘Mundo, mundo, mundo, eu o amo! Mostrarei o meu amor por
você!’; e, em seguida, pular do final do píer e morrer afogado?” Isso
provaria amor ou provaria que tal pessoa perdera seu amor? Isso
pode ser triste, mas dificilmente é um exemplo de amor.
Jesus não foi à cruz porque foi uma vítima do destino. Ele não
foi à cruz como uma lição abstrata; não foi à cruz como um mero
exemplo (embora seja um exemplo). Ele tinha um propósito em ir à
cruz. O propósito era salvar um povo da condenação que permanecia
sobre eles. “Quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se
mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus” (Jo 3.36 — ênfase acrescentada); “O que
não crê já está julgado” (Jo 3.18 — ênfase acrescentada). Estamos de
volta à narrativa bíblica. Jesus não veio para pessoas neutras,
condenando arbitrariamente a alguns e salvando a outros. Pelo
contrário, ele veio para um povo que já estava condenado. Estamos
depois da Queda. Já estamos sob a condenação de Deus. Já somos
uma geração perdida e ingrata. O propósito da vinda de Cristo e de
sua morte na cruz não é condenar, e sim salvar o mundo (ver 3.17).
Esta passagem não descreve em profundidade como Jesus realiza
isso. Outras passagens no evangelho de João deixam isso mais claro.
Um poderoso exemplo é João 6. Nela, Jesus disse que ele é o Pão da
Vida, e, se não comermos dele, morreremos. Em um nível superficial,
a noção de comer Jesus pode soar bem próximo de canibalismo.
Outros de nós que são mais inclinados às coisas religiosas podem
pensar: “Talvez isso seja uma referência ao sacramento da santa
comunhão ou algo semelhante”. Originalmente, não era isso que
Jesus estava querendo dizer. Não devemos esquecer que, no mundo
antigo, quase todos trabalhavam com as mãos ou na agricultura, por
isso estavam mais próximos da natureza do que estamos hoje. Se
você perguntar hoje a crianças de cinco ou sete anos: “De onde vêm
os alimentos?”, elas responderão: “Do supermercado” ou de uma rede
de supermercados de sua região. Mas, se você perguntasse a crianças
do século I de onde vinham os alimentos, elas responderiam: “Das
plantas, dos animais, dos peixes”. Elas cresciam e apanhavam, elas
mesmas, o seu alimento. Por isso, todos sabiam, no século I, que você
vive porque a galinha morre. Você vive porque as cenouras foram
arrancadas e morreram. Todo o material orgânico que nos alimentam
— que temos de ter para não morrermos — deu sua vida por nós, em
substituição. Ou ele morre, ou nós morremos.
Talvez em breve pararemos em um restaurante fast food e
pegaremos um hambúrguer. O que comeremos? Vaca morta, alface
morta, tomate morto, cevada morta, trigo morto. Tudo que você
comer nessa refeição antes estava vivo, mas agora está morto —
exceto alguns minerais como o sal, talvez haja bastante dele na
comida. Isso é o que você comerá. Tudo deu a sua vida por você. Ou
eles morrem, ou você morre. Ora, é claro que a vaca não se
voluntariou. Nem a alface. A ênfase não é natureza voluntária dessa
substituição, e sim a sua realidade. Ou nós morremos, ou algo vivo
morre para que vivamos. Jesus lançou mão dessa linguagem e disse:
“Se vocês não comerem a minha carne, vocês morrerão. Eu morro
para que vocês vivam”.
O tema principal do Novo Testamento é que Jesus morre uma
morte vicária. Ele não merecia morrer. Mas, quando Deus o enviou
para fazer a vontade do Pai, ir à cruz e morrer, ele tinha um
propósito: morrer nossa morte, para que não tenhamos de morrer,
para que tenhamos vida eterna. Isso é o que o texto nos diz: “Deus
amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito...
Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse
o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.16-17),
para que todo aquele que crê em Jesus tenha a vida eterna. Não
ingerimos fisicamente este Cristo. Cremos nele, confiamos nele e
descobrimos que sua vida se torna nossa, como a nossa morte se
torna dele. A vida de Cristo se torna nossa! E grande parte do Novo
Testamento se dedica a esclarecer este assunto.
4. A FÉ É O MEIO PELO QUAL CHEGAMOS A GOZAR DESSE AMOR E DESSA VIDA
Considere mais uma vez estes versículos:
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna...
Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado
[ou seja, o veredito já foi anunciado], porquanto não crê no
nome do unigênito Filho de Deus.
João 3.16, 18 — ênfase acrescentada
No capítulo 11, falarei mais extensamente sobre a fé. No
momento, basta recordar o que já vimos sobre este assunto: o que
vimos no último capítulo. Assim como o povo de Israel foi salvo
apenas por olhar, por confiar, por crer na serpente de bronze que Deus
provera, assim também nós cremos em Cristo e obtemos vida (ver
3.14-15). O que Jesus deseja que façamos não é impressioná-lo,
tentar ganhar a sua atenção ou tentar pagar por nossos pecados. O
que ele deseja que façamos é que creiamos nele.
CONCLUSÃO
Terminarei dessa maneira. Se tudo isso é verdade (e, com todo o
meu ser, creio que é), então a minha primeira resposta a tudo isso
deve ser gratidão, contrição diante de Deus, gratidão pelo que ele fez
e fé sincera. Mas, em nosso mundo, há vozes altissonantes
argumentando que gratidão diante de Jesus mostra que nosso
cristianismo é inferior, superficial, emocional e fraco. Por exemplo, o
bispo Sprong, um bispo episcopal que se aposentou recentemente,
escreveu:
O que a cruz significa? Como ela deve ser entendida? É
claro que o velho padrão de ver a cruz como o lugar em que
o preço da queda foi pago é totalmente inapropriado. Além
de estimular a culpa, justificando a necessidade de punição
divina e causando um sadomasoquismo incipiente que tem
persistido com tenacidade incansável através dos séculos, o
entendimento tradicional da cruz de Cristo se tornou
inoperante em todo nível. Como observei anteriormente,
uma deidade que resgata resulta em gratidão, e nunca em
humanidade expandida. Gratidão constante, que a história
da cruz parece estimular, cria somente fraqueza,
infantilidade e dependência.(1)
Essa é uma posição muito comum em nossos dias. Uma das
melhores respostas que já vi para essa posição foi dada por John
Piper, que disse:
“Sim”, bispo Sprong, “uma deidade que resgata resulta em
gratidão”. Isso é verdadeiro. Não podemos impedir que a
misericórdia de Deus faça o que ela faz. Ele nos resgatou de
nosso egoísmo e de seu destino horrível, o inferno. Nosso
coração não pode deixar de sentir o que sente — gratidão.
Você diz que isso estimula “fraqueza”. Não exatamente.
Isso estimula sermos fortes de uma maneira que faz Deus
parecer bom e nos torna felizes. Por exemplo, Jesus disse ao
apóstolo Paulo: “A minha graça te basta, porque o poder se
aperfeiçoa na fraqueza”. Paulo respondeu: “De boa vontade,
pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim
repouse o poder de Cristo... Porque, quando sou fraco,
então, é que sou forte” (2Co 12.9-10). Portanto, a
dependência de Paulo o tornou mais forte do que ele seria
de outra maneira. Ele era forte com o poder de Cristo.
Você diz que esta “gratidão constante” produz
“infantilidade”. Não realmente. As crianças não dizem
naturalmente “muito obrigado!” Elas vêm ao mundo crendo
que o mundo lhes deve tudo que querem. Você tem de extrair
“muito obrigado” do coração egoísta de uma criança. Sentir
gratidão e expressar isso é frequentemente uma marca de
maturidade notável. Temos um nome para pessoas que não
se sentem agradecidas pelo que recebem. Nós as chamamos
de ingratas. E todos sabem que elas estão agindo como
crianças egoístas. Elas são crianças. Não, bispo Sprong,
Deus quer que cresçamos e nos tornemos pessoas maduras,
prudentes, sábias e agradecidas. O oposto é infantilidade.
De fato, o oposto é totalmente esquisito. C. S. Lewis, antes
de ser um cristão, não gostava da mensagem bíblica de que
devemos agradecer e louvar a Deus em todo o tempo. Mas
tudo mudou. O que C. S. Lewis descobriu não foi que louvar
e agradecer torna as pessoas infantis, e sim que isso as
torna saudáveis e amáveis. Ele disse: “As mentes mais
humildes e, ao mesmo tempo, as mais equilibradas e
capazes louvam mais, enquanto as mentes esquisitas,
desajustadas e descontentes louvam menos”. Essa é a
minha experiência. Quando sou ingrato, sou egoísta e
imaturo. Quando transbordo de gratidão, sou saudável,
direcionado para os outros, tenho mentalidade de servo,
exalto a Cristo e fico cheio de alegria.(2)
Você percebe, terminamos em Cristo. Deus é o tipo de Deus que
nos busca, e, por isso, terminamos em Cristo. Inúmeros cristãos,
através dos séculos, têm testemunhado sobre a maneira como Deus
os buscou. Há um poema maravilhoso, escrito por Francis Thompson,
que fala de Deus como se ele fosse o cão do céu que desceu para caçá-
lo. Eis alguns de seus versos:
Fugi dele, de noite e de dia;
Fugi dele, no passar dos anos;
Fugi dele por caminhos de labirintos
De minha própria mente; em meio a lágrimas
Escondi-me dele, sob divertimento incessante.
Corri em busca de esperanças ilusórias
E atirei-me, precipitado,
Em trevas titânicas de temores abismais,
Daqueles Pés que me seguiam, seguiam.
Mas, com busca incansável
E ritmo inalterado,
Velocidade deliberada, urgência majestosa,
Eles batem repetidamente — e uma Voz ecoa
Mais insistente do que os Pés —
“Todas as coisas traem a ti, que me trais”.(3)
Este é o Deus que ama. Ele é como o cão de caça do céu. E ele é o
único que nos dá significado, quando somos restaurados ao Deus
vivo. Nosso significado não vem de sermos independentes. Isso pode
destruir-nos. Nosso significado não vem de sermos ricos. Isso pode
destruir-nos. Em certo sentido, isso é impiedade e, por fim, nos
condenará. Nosso significado vem de nutrirmos um correto e bem
direcionado relacionamento com o Deus vivo, de sermos peculiar e
abundantemente amados por ele. A alternativa é morte — nem
sempre tão dramática como outro poeta, Edwin Arlington Robinson,
descreve, mas certamente do mesmo tipo:
Quando Richard Cory vinha à cidade,
Nós, na calçada, olhávamos para ele;
Ele era um cavalheiro de alto a baixo,
Bem vestido e imperialmente esbelto.
Estava sempre finamente arrumado,
Era sempre cordial quando falava;
Corações palpitavam sempre que dizia:
“Bom dia”, e cintilava quando andava.
Ele era rico — sim, mais rico que um rei,
Admiravelmente versado em toda graça.
Enfim, achávamos que ele era tudo
E nos fazia querer estar no lugar dele.
Saíamos a trabalhar e esperávamos a luz,
Seguíamos sem comida e xingávamos o pão.
E Richard Cory, numa noite calma de verão,
Foi para casa e pôs uma bala em sua cabeça.(4)
Como disse Thompson: “Todas as coisas traem a ti, que me
trais”.
Ou, mais uma vez, o testemunho de Malcolm Muggeridge, um
jornalista excêntrico e brilhante, cujos interesses e comentários
incluíam tudo no mundo. Ele era criativo, blasfemo, vitorioso,
frustrado e teve uma carreira espetacular. Ele se converteu em idade
avançada e escreveu:
Suponho que posso me considerar, ou passar por, um
homem relativamente bem sucedido. Frequentemente, as
pessoas me olham com admiração nas ruas — isso é fama.
Posso facilmente ganhar, com justiça, o suficiente para me
qualificar a ser incluído nas camadas mais elevadas do
Imposto de Renda Britânico — isso é sucesso. Possuindo
dinheiro e um pouco de fama, mesmo os idosos, se eles se
importam, podem ter parte nas diversões do momento —
isso é prazer. Talvez, em algumas ocasiões, eu disse ou
escrevi algo que as pessoas aceitaram a ponto de convencer-
me de que aquilo representava um grande impacto em nosso
tempo — isso é realização. No entanto, eu lhe digo e rogo
que creia em mim: multiplique esses triunfos insignificantes
milhares de vezes, ajunte-os todos, e eles são nada —
menos do que nada, um impedimento positivo — quando
medidos em contraste com um gole da água da vida que
Cristo oferece aos espiritualmente sedentos, não importando
quem ou o que eles sejam. Pergunto a mim mesmo: o que a
vida possui, o que há nas obras do tempo, no passado, no
presente e no por vir, que possa ser equiparado com o
refrigério de beber dessa água?(5)
“Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito” (Jo 3.16).
(1) John Shelby Sprong, Jesus for the Non-Religious: Recovering the Divine at the Heart of
the Human (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2007), 277.
(2) John Piper, “Ganging Up on Gratitude”, Desiring God, November 21, 2007,
http://www.desiringgod. org/ResourceLibrary/TasteAndSee/ByDate/2007/2504_Ganging-
Up_on_Gratitude/.
(3) Francis Thompson, “The Hound of Heaven”, disponível online em:
http://bartelby.net/236/239.html.
(4) Edwin Arlington Robinson, “Richard Cory”, in Colleted Poems (New York: MacMillan,
1921). Disponível online em: www.bartelby.com/233.
(5) Malcolm Muggeridge, Seeing Through the Eye: Malcolm Muggeridge on Faith, ed. Cecil
Kuhne (San Francisco: Ignatius Press, 2005), 97.
10
O Deus
que Morre — e Vive Novamente
Q Quando você pensa em biografias de pessoas importantes, quer
artistas, atletas, cientistas ou políticos, nunca há qualquer sugestão
de que eles nasceram para morrer. Se a pessoa não está viva, há sem
dúvida alguma menção de sua morte, que pode ser heroica ou
comum, demorada ou rápida, acidental ou resultante de
envelhecimento — pode ser todos os tipos de coisas. Mas nunca
falamos de alguém nascer para morrer. Isso é verdade no que diz
respeito a Maomé. É verdade no que diz respeito a Gautama, o Buda.
Há histórias sobre a morte deles, mas nenhuma sugere que o
propósito do seu nascimento tenha sido morrer.
Essa é razão por que os quatro evangelhos (os primeiros quatro
livros do Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João) são tão
difíceis de serem classificados. Pessoas escreveram volumes eruditos
sobre o gênero de literatura em que eles se enquadram. É uma
tragédia? Bem, Jesus ressuscitou dos mortos, e isso não parece
trágico. No aspecto literário, os evangelhos são comédia? Eles são de
espécie diferente. São muito sérios para serem comédia: a
centralidade da cruz, o que foi realizado e a atrocidade bárbara da
cruz em meio ao seu esplendor — os evangelhos não podem ser
reduzidos a categorias de uma única palavra. Eles são biografias?
Isso é talvez o mais próximo que você pode chegar de uma
qualificação apropriada. Um evangelho do Novo Testamento é, de
algum modo, similar às biografias helenistas do século I, eu
suponho. Mas não há outras biografias helenistas do século I em que
o enredo diz que morrer é a razão pela qual o personagem central
veio. Os evangelhos do Novo Testamento parecem muito diferentes de
seus análogos helenísticos do século I.
Você já observou algum dos livros promovidos todo ano na época
da Páscoa? Quando a Páscoa se aproxima, os publicadores gostam de
destacar o mais recente erudito que escreveu algo sobre o evangelho
de Judas, ou evangelho de Tomé, ou algum outro evangelho não
incluído na Bíblia. Várias pessoas se unem para dizer: “Estes
possuem tanta autoridade como os evangelhos do Novo Testamento.
Devemos incorporá-los também à Bíblia. Originalmente, o
cristianismo era muito mais aberto; agora, ele se tornou restrito,
ortodoxo e fechado. Mas originalmente ele era muito, muito mais
aberto. Há muitos evangelhos”.
Essa história revisionista não pode realmente resistir a um
escrutínio minucioso. Os mais antigos desses supostos evangelhos
são da metade do século II, e sua data de redação se estende até 150
ou 200 anos depois. Nenhum deles está conectado com a primeira
geração de testemunhas oculares, como os evangelhos canônicos
estão (ou seja, os evangelhos de nossa Bíblia) — nenhum deles.
Podemos falar mais um pouco sobre isso.
Considere, por exemplo, o evangelho de Tomé. É um pequeno livro
de 114 afirmações atribuídas a Jesus e inclui dois minúsculos
fragmentos históricos. Isso é tudo. Em outras palavras, é
completamente diferente dos evangelhos do Novo Testamento, os
quais se direcionam, todos, à cruz e à ressurreição de Cristo. O
evangelho de Tomé deixa fora esses acontecimentos cruciais. De fato,
no século I as pessoas não falavam em quatro evangelhos: Mateus,
Marcos, Lucas e João. Elas falavam sobre uma única mensagem do
evangelho: o evangelho de Jesus Cristo, o evangelho de Jesus Cristo
segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas e segundo João. Há
um único evangelho com vários testemunhos que descrevem o que
são as boas novas sobre Jesus Cristo e contam a notícia espetacular
sobre o Salvador que entrou na História para salvar o seu povo dos
pecados deles. Somente mais tarde as pessoas começaram a se referir
aos evangelhos mais livremente como “o evangelho de Mateus” ou “o
evangelho de Marcos”. No entanto, é importante observar que todos
estes quatro livros (Mateus, Marcos, Lucas e João) dizem algo sobre o
precursor de Jesus (João Batista, aquele que anunciou Jesus), as
origens e o ministério de Jesus (os evangelhos falam extensivamente
sobre o que ele fez, o que ele disse, como ele pregava, alguns de seus
milagres, suas parábolas, suas afirmações, alguns de seus sermões),
e depois, no final, ele foi crucificado e ressuscitou. Toda a história se
move em direção à morte de Jesus. Isso é essencial ao enredo de cada
livro.
Uma parte importante desse enredo é a maneira como Jesus
começou a falar a respeito de como morreria. Em Mateus 16, quando
Pedro confessou que Jesus era realmente o Messias prometido, aquele
que viera da linhagem de Davi, aquele que eles aguardavam, Jesus
disse algo assim: “Sim, vocês sabem, tenho de ir a Jerusalém e sofrer
muitas coisas, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia”. Um dos
discípulos respondeu em palavras que tinham este sentido: “De modo
algum. Isso não pode ser. O personagem davídico prometido, o
Messias prometido, é tão poderoso e alguém como você é capaz de
fazer milagres. Como eles pararão você?” No entanto, Jesus continuou
insistindo: ele seria traído e morto. E isto é o âmago do plano de seu
Pai celestial. Jesus veio para morrer. Essa é a razão por que cada um
dos evangelhos retrata Jesus insistindo em que viera com este
propósito.
Entretanto, Jesus acrescentou alguns esclarecimentos estranhos:
“Não morrerei como um mártir. Ninguém pode tirar a minha vida de
mim. Eu mesmo a entrego. Tenho autoridade para entregá-la e tenho
poder de reavê-la” (ver Jo 10.17-18). Ele não se classificou como um
mártir, e sim como um sacrifício. Ele não era apenas a vítima de uma
conspiração perniciosa ou de um sórdido erro histórico. Ele era um
sacrifício voluntário.
É por isso que os evangelhos parecem tão estranhos para aqueles
que leem biografias. Não há ninguém semelhante a Jesus. Mesmo
quando estava sendo preso e levado para julgamento, seus discípulos
questionaram se deviam lançar mão da espada e ferir os agressores.
A resposta de Jesus foi: “Acaso, pensas que não posso rogar a meu
Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?
Como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim
deve suceder?” (ver Mt 26.50-54). Ele não veio para ser resgatado.
Jesus veio para ser morto. Ele veio para morrer.
Além disso, nas biografias comuns, uma vez que as pessoas
foram colocadas tranquilamente no sepulcro, elas permanecem lá.
Jesus, porém, veio para morrer e ressuscitar. Esses dois
acontecimentos, a morte e a ressurreição de Jesus, são tão centrais
para tudo que a Bíblia diz sobre ele e para todo o propósito de sua
vinda, que o apóstolo Paulo, escrevendo algumas décadas depois da
ressurreição de Jesus, anunciou aos seus leitores, em 1Coríntios 15,
que lhes falaria sobre as coisas mais importantes (15.3) — e,
primeiramente, ele disse: “Antes de tudo, vos entreguei o que também
recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as
Escrituras” (15.3). Em seguida, Paulo gastou o restante do capítulo
falando sobre a ressurreição de Cristo. Estes são assuntos de primeira
importância. São a base de tudo na fé, na conduta e no entendimento
cristão. Temos de compreender bem isso, pois, do contrário, não
temos cristianismo verdadeiro.
Há muitas maneiras de estudarmos a morte e a ressurreição de
Jesus. Poderíamos, por exemplo, considerar todos os relatos e alusões
à sua morte. O que eu farei é dirigir a atenção para um dos relatos da
morte de Jesus, que está em Mateus 27. Depois, mudarei para uma
passagem em João que fala sobre a ressurreição de Jesus. Muitas
outras coisas mais poderiam ser ditas a respeito destas passagens(1)
(e, evidentemente, há várias outras passagens), mas centralizarei
esse capítulo nestas duas passagens, a fim de que tenhamos um foco
para o que estamos dizendo.
AS IRONIAS DA CRUZ (MT 27.27-51)
O relato da morte de Jesus foi elaborado cuidadosamente por
Mateus. Ele foi um escritor hábil, inspirado por Deus. Dos escritores
do Novo Testamento, os mais dados à ironia foram Mateus e João. Em
um aspecto, Mateus estava apenas descrevendo o que aconteceu, mas
ele o relatou de tal modo que nos mostra as ironias da cruz, o
verdadeiro significado que estava por trás dos acontecimentos. Por
“ironia” quero dizer que as palavras comunicam, em seu contexto, o
oposto exato do que elas formalmente dizem. Isso é ironia. O que você
descobrirá é que, em cada um dos vários parágrafos, Mateus delineou
o que aconteceu quando Jesus morreu, descrevendo tudo com uma tão
agradável inclinação para a ironia, que começamos a perceber o que
Deus estava realmente fazendo.
Em vez de transcrever todo o relato, apresentaremos o texto em
seções à medida que prosseguimos.
1. O HOMEM QUE É ZOMBADO COMO REI É O REI (MT 27.27-31)
Logo a seguir, os soldados do governador, levando Jesus
para o pretório, reuniram em torno dele toda a coorte.
Despojando-o das vestes, cobriram-no com um manto
escarlate;
tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha na cabeça e,
na mão direita, um caniço; e, ajoelhando-se diante dele, o
escarneciam, dizendo: Salve, rei dos judeus! E, cuspindo
nele, tomaram o caniço e davam-lhe com ele na cabeça.
Depois de o terem escarnecido, despiram-lhe o manto e o
vestiram com as suas próprias vestes. Em seguida, o
levaram para ser crucificado.
Mateus 27.27-31
Jesus já havia sido severamente espancado como parte de seu
interrogatório. Isso era um procedimento padrão. E, depois de
proferida a sentença de crucificação, ele foi, de novo, espancado
severamente. Isso também era um procedimento padrão. Uma vez que
alguém era condenado à crucificação, ele era espancado de novo
antes de ser levado e crucificado. Jesus sofreu tudo isso.
Mas o que aconteceu neste relato não foi um procedimento
padrão. Foi diversão de aquartelamento. Os soldados puseram em
Jesus um tipo de veste como se ele fosse um imperador. Em seguida,
teceram em coroa uma das videiras espinhosas que eles tinham no
Oriente Médio. Colocam-na na cabeça de Jesus. Puseram um caniço
em suas mãos, como se fosse um cetro, fingindo que ela era um
grande monarca. “Salve, rei dos judeus!”, eles diziam, prostrando-se,
cuspindo em sua face, rindo. Divertiam-se. Tomaram o caniço que
devia ser um símbolo de poder e bateram na cabeça de Jesus repetidas
vezes. Mais risadas. Diversão de aquartelamento
No entanto, cada vez que eles disseram: “Salve, rei dos judeus!”,
queriam dizer o oposto. No contexto, as palavras transmitem
realmente apenas zombaria e desprezo. Os soldados achavam que seu
divertimento era profundamente irônico e muito engraçado. Contudo,
Mateus sabia, Deus sabe e os leitores sabem que Jesus é o rei. O
homem que é zombado como rei é o Rei (Mt 27.27-31). Essa é a
primeira ironia profunda dessa passagem.
Afinal de contas, como começa o evangelho de Mateus? “Livro da
genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (1.1 —
ênfase acrescentada). Jesus é da linhagem de Davi. Ele tem o direito
legal ao trono. E em todo o evangelho de Mateus há alusão ao fato de
que Jesus é rei. Jesus contou algumas parábolas em que — para os
que são capazes de perceber — o rei na parábola é ele mesmo. De
fato, como parte dos procedimentos do julgamento de Jesus, o
governador romano, Pilatos, lhe perguntou: “És tu o rei dos judeus?”
Na perspectiva de Pilatos, se Jesus respondesse “Sim”, ele poderia ser
condenado: suas palavras seriam uma confissão de traição. Jesus se
colocaria contra a família de Herodes (que supriu os monarcas
subalternos da região) ou se coloria contra César, em Roma. Jesus
respondeu com um tipo de afirmação: “É como você falou. Você disse
isto”. Mas ele apenas queria afirmar enfaticamente: “Sim, eu sou o
rei prometido”; porque o que Jesus pretendia dizer com a palavra “rei”
não era exatamente o que Pilatos tinha em mente. Apesar disso,
Jesus era o rei dos judeus.
Na verdade, quando lemos todo o Novo Testamento, Jesus é não
somente o rei dos judeus, mas também o seu e o meu rei. Como
Mateus termina o seu evangelho? Jesus, ressuscitado dentre os
mortos, diz: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt
28.18). Com franqueza, ele afirma ser o rei do universo. Ele é
certamente o rei desses soldados que riram de seu suposto poder
como rei. Mateus quer que vejamos isto: o homem zombado como rei é
rei.
No entanto, que tipo de reino é esse? Que tipo de reino é esse
cujo rei deu a sua vida, não porque foi vencido por um competidor, e
sim como um ato voluntário de autossacrifício? A maioria dos reis
quer sair e lutar. Jesus recusou fazer isso. De fato, em uma passagem
notável, Jesus falou sobre a natureza de seu reino. Já me referi a ela
antes. Em Mateus 20, a mãe de Tiago e João, juntamente com eles
(dois discípulos de Jesus), se aproxima de Jesus. E o que eles desejam
é que um se assente à direita e outro à esquerda no reino de Jesus.
Eles querem poder político. Mas Jesus lhes diz:
Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os
maiorais exercem autoridade sobre eles.
Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se
grande entre vós, será esse o que vos sirva;
e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo;
tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
Mateus 20.25-28
Jesus não estava recomendando que seus seguidores adotem uma
postura de capacho de todos, útil apenas para as pessoas limparem
os pés (esse não é o ensino), nem que eles devem negar qualquer tipo
de autoridade, quando são colocados numa posição de autoridade
(esse não é o ensino). O problema é que neste mundo, quando
ganhamos autoridade, começando a assenhorear-nos das pessoas.
Começamos a pensar que isso é nosso dever. Mas Jesus é o tipo de
Deus — o Deus presente — que ama porque ele é como descrito em
Mateus 20.25-28. Seu alvo é servir. Ele não veio para ser bajulado,
mas para servir e servir, finalmente, por dar a sua vida como resgate
por muitos. Essa é a razão por que ele veio. Nos três primeiros
séculos da história da igreja, os cristãos comuns entendiam isso
muito bem, pois retratavam frequentemente a Jesus, com sua
agradável ironia, como o Rei que reina da cruz.
Esse é o tipo de reino em que Jesus reina, pois ele espera que
seus seguidores exerçam autoridade dessa mesma maneira.
Esta é a primeira ironia: o homem que é zombado como rei é rei.
2. O HOMEM QUE ESTÁ TOTALMENTE SEM PODER É PODEROSO
(MT 27.32-40)
Ao saírem, encontraram um cireneu, chamado Simão, a
quem obrigaram a carregar-lhe a cruz.
E, chegando a um lugar chamado Gólgota, que significa
Lugar da Caveira,
deram-lhe a beber vinho com fel; mas ele, provando-o, não o
quis beber.
Depois de o crucificarem, repartiram entre si as suas vestes,
tirando a sorte.
E, assentados ali, o guardavam.
Por cima da sua cabeça puseram escrita a sua acusação:
ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS.
E foram crucificados com ele dois ladrões, um à sua direita,
e outro à sua esquerda.
Os que iam passando blasfemavam dele, meneando a
cabeça e dizendo:
Ó tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas!
Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus, e desce da cruz!
Mateus 27.32-40
Eis um quadro horrível da mais desprezível fraqueza. Quando a
sentença era proferida, o condenado à crucificação era espancado
mais uma vez e tinha de levar uma haste da cruz (a horizontal), em
seu próprio ombro, para o lugar de execução, onde a outra haste
estava fixa no solo. O condenado era despido e pregado ou amarrado
à haste que ele levara; esta era, então, erguida e fixada na haste
vertical. O condenado ficava lá não somente em dores, mas também
em vergonha. Quando homens e mulheres eram crucificados, eles
eram crucificados nus.
Em tempos anteriores, houve ocasiões em que os soldados
deixaram alguém pendurado numa cruz e os amigos da vítima
conseguiram tirá-la de lá. Sabe-se que algumas vítimas
sobreviveram. Nesta época da história romana, isso era impossível. A
política imperial determinava que um grupo de quatro os soldados
permanecessem no lugar de crucificação, para guardar o corpo, até
que a vítima estivesse inequivocamente morta. A pessoa crucificada
puxava o corpo com os braços e o empurrava com as pernas para
abrir a cavidade do peito, para que pudesse respirar. Os espasmos
musculares começavam, de modo que a pessoa entrava em colapso e
não conseguia respirar. Por isso, mais uma vez, ela puxava o corpo
com os braços e o empurrava com as pernas para que pudesse
respirar; os espasmos começavam novamente, e a pessoa entrava em
colapso. Isso prosseguiria por horas, às vezes, dias; e os soldados
permaneceriam vigiando. Se, por alguma razão, os soldados
quisessem acabar mais rápido com a vida da pessoa crucificada (por
exemplo, por causa de um dia especial de festa que estava para
começar), o que eles fariam era quebrar a canela do crucificado.
Então, a pessoa não poderia mais erguer a si mesma com as pernas e
morreria sufocada em minutos.
Nessa altura, Jesus estava tão fraco quanto podemos imaginar.
Não havia escape. Não havia esperança. Estava tão fraco por causa
dos repetidos espancamentos, que não tinha forças suficientes para
carregar a haste em seus ombros e levá-la ao lugar de execução.
Mesmo sendo um carpinteiro por profissão, Jesus estava tão fraco que
não podia levantar um pedaço de madeira; por isso, foi necessário
intimar outra pessoa para levá-la por ele, um homem identificado
como Simão, da cidade de Cirene.
Após a crucificação, começou a zombaria: “Ó tu que destróis o
santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, se és Filho
de Deus, e desce da cruz!” (Mt 27.40). De onde veio esse insulto?
Parece estranho aos nossos ouvidos. Mas ele também apareceu no
julgamento — não o julgamento diante de Pilatos, e sim o
julgamento diante dos sumo sacerdote descrito no capítulo anterior
(Mt 26). Alguns tentaram fazer disso uma parte da acusação contra
Jesus. A razão por que poderia, em teoria, ter sido bastante perigoso
era esta: no que concerne à religião, o Império Romano era um
domínio altamente variado; por isso, uma das coisas que os romanos
fizeram para manter a paz entre religiões competidoras foi tornar um
crime capital a profanação de um templo. Se uma pessoa profanasse
um templo, qualquer templo, sob a lei romana, ela morreria. Então,
se alguém ouviu Jesus dizer: “Destruí este templo, e em três dias o
reedificarei”, talvez a primeira parte dessa afirmação poderia ser
desenvolvida em conspiração para um crime capital, ou seja, destruir
um templo. Pelo fato de que as testemunhas não puderam comprovar
seus fatos, essa acusação deu em nada. Por fim, Jesus foi acusado de
traição, de colocar-se a si mesmo como rei em oposição a César.
Aparentemente, alguns que ouviram essa acusação no julgamento
acharam-na divertida. Eles olharam para Jesus, em sua mais
desprezível fraqueza, e disseram, em essência: “Então, grande
tagarela — você é tão forte, não é? Você destruirá o templo e o
edificará em três dias — veja a sua própria fraqueza agora, homem
forte!”
Se você já ajudou na construção de uma casa em organizações
beneficentes, sabe que, com um bom alicerce lançado, bastante
planejamento, um bom engenheiro, certa quantidade de material pré-
fabricado e 40 voluntários bem fortes, você pode construir um casa
em um dia. Mas, no mundo antigo, você não poderia edificar um
templo em um dia. De fato, você não poderia edificar uma das
catedrais da Europa durante uma vida inteira. Nenhum dos
arquitetos originais das grandes catedrais da Europa jamais viu sua
obra concluída. Era necessário mais do que a duração de uma vida
para construir uma delas. Nos dias de Jesus, apenas o
embelezamento do projeto existente do templo de Jerusalém levou 46
anos. Além disso, pela lei judaica, um trabalhador não tinha
permissão de martelar uma pedra numa distância em que seria
ouvido do templo. Todas aquelas pedras tinham de ser medidas,
cortadas, trazidas e colocadas no lugar sem equipamentos
mecânicos. Não admiramos que o templo tenha demorado tanto para
ser construído. Contudo, Jesus disse: “Destruí este santuário, e em
três dias o reconstruirei” (Jo 2.19). Quando os escarnecedores
lançaram as palavras de Jesus de volta em sua face, pensaram estar
usando uma ironia para serem engraçados. Quando disseram: “Tu
que destróis o santuário e em três dias o reedificas”, eles pretendiam
dizer exatamente o oposto: ele não pode fazer isso. Ele está
terrivelmente fraco, morrendo, condenado numa cruz.
No entanto, Mateus sabia, Deus sabe e os leitores sabem que, por
meio desta morte e da ressurreição que aconteceria em breve, Jesus
estava destruindo o templo e reconstruindo-o. Quando, em seu
ministério, Jesus usou estas palavras: “Destruí este santuário, e em
três dias o reconstruirei” (Jo 2.19), seus discípulos não tiveram a
menor ideia do que ele estava dizendo. Talvez eles sussurraram:
“Jesus está falando novamente algo profundo, bastante misterioso”.
Mas João comentou: “Quando, pois, Jesus ressuscitou dentre os
mortos, lembraram-se os seus discípulos de que ele dissera isto; e
creram na Escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2.22).
A verdade é que no Antigo Testamento o templo era o grande
lugar de encontro entre o Deus santo e os seres humanos, como já
vimos. Era o lugar de sacrifícios. Agora, Jesus, se referindo ao seu
corpo, disse: “Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”.
Jesus queria dizer que pela destruição de sua vida e sua ressurreição,
ele se tornaria o grande lugar de encontro entre Deus e os seres
humanos. Por ressuscitar dos mortos, após a sua morte, Jesus se
tornou o grande templo, com todo o poder que é exigido para trazer
alguém de volta dentre os mortos. O grande lugar de encontro entre
Deus e os seres humanos não é mais um edifício em Jerusalém, com
seu sistema de sacrifícios. É o próprio Jesus.
Assim, enquanto os escarnecedores pensavam que sua zombaria
expressava ironia divertida, não podemos deixar de ver uma ironia
mais profunda, pois o homem que estava totalmente sem poder era,
de fato, poderoso. Ele era o templo do Deus vivo.
3. O HOMEM QUE N O PODE SALVAR A SI MESMO SALVA OS OUTROS
(MT 27.41-42)
A zombaria continuou: “De igual modo, os principais sacerdotes,
com os escribas e anciãos, escarnecendo, diziam: Salvou os outros, a
si mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel! Desça da cruz, e
creremos nele” (Mt 27.41-42).
O que pretendemos dizer hoje quando usamos o verbo salvar? O
que isso significa nas ruas de Mineápolis, Chicago ou Londres?
Depende de quem a está usando. Se você é um diretor de um banco,
salvar é poupar — algo que devemos fazer (se o mercado não destruir
todo o dinheiro) para proteger os investimentos e preparar-nos para a
aposentadoria. Se você é versado em esportes, salvar é o que o goleiro
faz para impedir um gol, quer no futebol, quer no hóquei. Se você é
perito em informática, salvar é o que você deve fazer para não perder
muitos dados, se o seu disco rígido estragar. Portanto, usamos o
verbo “salvar” em uma diversidade de contextos diferentes, não é
mesmo? O que Mateus estava querendo dizer?
Temos um vislumbre da resposta no capítulo 7. Quando José foi
informado de que Maria estava grávida, Deus lhe mandou que desse
ao menino o nome de “Jesus [Jeová salva], porque ele salvará o seu
povo dos pecados deles” (Mt 1.21 — ênfase acrescentada). “Salvar”,
no evangelho de Mateus, significa salvar pessoas de seus pecados:
das consequências do pecado, dos seus efeitos eternos e do seu poder
nesta vida. Foi por isso que Jesus veio. Mesmo quando Jesus “salvou”
pessoas curando-as, isso era uma indicação de sua determinação de
salvar seu povo dos pecados deles, incluindo os efeitos temporais do
pecado nesta vida (ver Mt 8;14-17).
A essa altura, os zombadores ecoavam: “Salvou os outros” — ou
seja, ele os ajudou, ele os curou, foi um salvador tão bom. “A si
mesmo não pode salvar-se!” Em outras palavras: “Olhem para ele.
Está completamente preso, completamente impedido. Não há meios de
salvar-se a si mesmo, e isso mostra que ele não é um salvador, de
modo algum”. Então, quando eles disseram: “Salvou os outros”, a
intenção deles era, novamente, transmitir uma ironia vulgar: “Ele
não é um salvador que deve ser respeitado, de maneira alguma”.
No entanto, Mateus sabia, Deus sabe, e os leitores sabem que é
por permanecer na cruz que Jesus salva aos outros. Estritamente
falando, ele não podia salvar a si mesmo e salvar aos outros. Se ele
salvasse a si mesmo, não poderia salvar aos outros. Quando eles
disseram: “A si mesmo não pode salvar-se”, estavam afirmando que
Jesus estava tão preso à cruz, tão cravado na cruz, que fisicamente
ele não podia descer. Todavia, Mateus sabia que Jesus podia descer.
Ainda podia chamar sua legião de anjos. Mas não podia salvar a si
mesmo, se tinha de salvar os outros, porque o propósito de ele estar
pendurado naquela cruz era levar meu pecado em seu corpo, no
madeiro. Se ele salvasse a si mesmo, eu seria condenado. É somente
por não salvar a si mesmo que Jesus me salva.
Então, mais uma vez, há uma ironia mais profunda escondida
nas entrelinhas do deboche dos zombadores. Diferente do que
pensavam, suas palavras eram verdadeiras. Ele salvou a outros; ele
não pode salvar-se.
Suspeito que parte da razão por que temos dificuldade para
aceitar essa verdade é o fato de que vivemos numa época da cultura
ocidental em que muito da conduta é compelida pela força da lei ou
apenas pela força. Em outras palavras, não temos muito lugar para
um tipo de imperativo moral interior.
Você assistiu ao filme Titanic, quando ele foi lançado? Enquanto
o grande navio afundava, pessoas começaram a brigar pelos poucos
botes salva-vidas. Havia muitos homens ricos no navio. Eles
começaram a brigar e a empurrar para o lado as mulheres e as
crianças, para que pudessem reservar seus próprios lugares. Os
marinheiros pegaram revolveres e começaram a atirar para o alto,
gritando: “Mulheres e crianças — os botes são para as mulheres e as
crianças”. Na história real, isso é mentira. Vários homens ricos
estavam naquele navio. John Jacob Astor, à época o homem mais rico
do mundo, o Bill Gates de 1912, estava lá. Ele colocou sua esposa no
bote e, quando outros lhe disseram: “Entre você também, senhor”, ele
recusou, dizendo: “O bote é para mulheres e crianças”. Ele ficou e
morreu afogado. Benjamin Guggenheim estava lá. Ele foi separado de
sua mulher e gritou para alguém: “Diga à minha mulher que
Guggenheim conhece o seu dever” — permaneceu no navio e morreu
no naufrágio. A mulher foi salva. Apesar do fato de que muitas
pessoas estavam trancadas na terceira classe, não há um único
relato de homens ricos, no convés, brigando para salvar a si mesmos,
arriscando a vida de mulheres e crianças.
Isso não é impressionante? Quando Fareed Zakaria comentou
sobre isso em um artigo no New York Times,(2) fez a perguntou óbvia:
por que o produtor e o diretor do filme distorceram a história e
contaram o que não era verdadeiro? Por que eles não contaram a
verdade sobre o que aconteceu naquele dia? Esta é a resposta de
Zakaria: se eles tivessem contado a verdade, ninguém teria
acreditado neles. Naquele tempo ainda existia tanto de uma cultura
de cavalheirismo nutrida frequentemente pela autorrenúncia cristã
em benefício dos outros, que um imperativo moral interior compelia
muitos homens a fazer, a partir de recursos do seu interior,
autossacrifício pelos outros.
Foi isto que motivou supremamente a Jesus: ele veio para fazer a
vontade do Pai; e a vontade de seu Pai era que ele se sacrificasse em
favor de todos que, por graça, creriam. Em um grau menor, é dessa
maneira que a motivação cristã tem de operar em nós, quando nos
tornamos cristãos, seguidores de Jesus. Nós somos mudados pelo
novo nascimento; somos fortalecidos pelo Espírito Santo que vive e
opera em nós. Há um imperativo moral interior, uma transformação
do coração — e, sem dúvida, um reflexo pálido de Jesus —, na mesma
direção, querendo sacrificar-se por amor aos outros.
4. O homem que clama em desespero confia em Deus (Mt 27.43-
51)
As pessoas continuaram escarnecendo:
Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se, de fato, lhe
quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus.
E os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que
haviam sido crucificados com ele.
Desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre
toda a terra.
Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo:
Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?
E alguns dos que ali estavam, ouvindo isto, diziam: Ele
chama por Elias.
E, logo, um deles correu a buscar uma esponja e, tendo-a
embebido de vinagre e colocado na ponta de um caniço,
deu-lhe a beber.
Os outros, porém, diziam: Deixa, vejamos se Elias vem
salvá-lo.
E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o
espírito.
Mateus 27.43-50
Jesus estava desistindo nesta altura, apanhado na rede de
circunstâncias infelizes, mergulhado em desespero? Essa é a
mensagem que devemos aprender? “Pressionem-me bastante, e eu
também desistirei”? O clamor de Jesus é muito mais profundo do que
isso. Por causa da morte de Jesus, por causa da sua disposição de
permanecer na cruz, lemos no versículo que segue essa passagem:
“Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a
baixo” (Mt 27.51) — o véu do templo que separava a presença de
Deus do resto do povo. Em consequência, o Santo dos Santos, onde
somente o sumo sacerdote podia entrar, uma vez por ano, foi exposto.
O véu se rasgou para indicar que você e eu — seres humanos comuns
que não têm pretensões sacerdotais — podemos realmente entrar na
presença de Deus, porque o sacrifício de Jesus pagou realmente todo a
dívida que o sangue de touros e de bodes jamais puderam pagar,
através dos sacrifícios que vimos em capítulos anteriores. Jesus
morreu, e o seu clamor: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?”, foi proferido com o mais desolado, sombrio e
ignominioso desespero, não porque ele não sabia que estava fazendo
a vontade do Pai, e sim precisamente porque ele sabia que estava
fazendo a vontade do Pai. Ele confiava em Deus. E a vontade de Deus
era que ele levasse meu pecado em seu corpo, na cruz, absorvendo a
maldição, pagando o culpa, quitando a dívida e rasgando o véu, para
que eu pudesse entrar no Santo dos Santos, na presença do Deus
vivo.
DEUS PODE MORRER?
Intitulei parcialmente esse capítulo de “O Deus que Morre”. De
algum modo, esse título é sutil e potencialmente enganador. Em sua
maior parte, o Novo Testamento não fala que Deus morre. Fala de
Jesus como Deus-homem e fala que Jesus morre. Não há, de modo
algum, qualquer indicação de que o Pai morre. É claro que não; ele
não é um ser humano que poderia morrer. Somente o Filho podia
morrer; somente o “Verbo se fez carne”. Jesus podia morrer porque ele
era um ser humano, um homem. Mas, se pessoas também
confessaram que ele é Deus e o adoraram como Deus (ver, por
exemplo, Jo 20.28), há um sentido em que podemos falar que Deus
morreu?
Em sua maior parte, a Bíblia evita essa escolha de palavras.
Todavia, achamos passagens que chegam perto disso. Quando o
apóstolo Paulo fez um discurso para alguns dos presbíteros da igreja
de Éfeso, ele disse: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual
o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de
Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28 —
ênfase acrescentada). Isso não é admirável? “Deus... com o seu
próprio sangue”? Ora, é claro que, se insistíssemos com Paulo, ele
esclareceria sua afirmação. Talvez diria: “É claro que a Pessoa que
tenho em mente não é Deus, o Pai, e sim o Filho de Deus, Jesus, que é
Deus. E, visto que ele é Deus, ele deu a sua vida e derramou o seu
sangue, é apropriado dizer que Deus derramou o seu sangue”. Se
você quer desenvolver a afirmação, isso é o que Paulo quis dizer.
No entanto, não permita que o choque da passagem o paralise.
Essa passagem descreve a ação de Deus em Cristo Jesus, o homem
que também é Deus. Não fala da morte de um indivíduo humano e
nada mais. É um indivíduo humano que é também o Deus vivo que
ficou pendurado na cruz, não porque foi obrigado pela circunstância
a fazer isso, e sim porque ele mesmo estava cumprindo toda a linha
do sistema de sacrifícios do Antigo Testamento, o sistema do templo
— toda a linha desde a Queda e a promessa do descendente da
mulher que esmagaria a cabeça da serpente, por meio de sua morte.
Em outra carta, Paulo escreveu: “Deus prova o seu próprio amor para
conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores” (Rm 5.8, ênfase acrescentada). Como diz o velho hino:
Levando o pecado e rudemente zombado,
Ele permaneceu em meu lugar condenado
Com seu sangue, o meu perdão ele selou!
Aleluia! que grande Salvador!
Phillip P. Bliss
É apropriado falarmos sobre o Deus que morre.
No fim da Primeira Guerra Mundial, a mais sangrenta e mais
estúpida das guerras, vários poetas ingleses (Wilfred Owen, Rupert
Brook, um ou dois outros) escreveram algumas poesias bem
comoventes sobre a terrível selvageria do conflito. Um dos poetas
menos importantes foi Edward Shillito, cujo poema “Jesus das
Cicatrizes” merece ampla circulação. O poema termina dizendo:
Outros deuses eram fortes, mas tu eras fraco;
Eles cavalgaram, mas cambaleaste até teu trono;
Somente Deus pode falar com as nossas feridas,
E nenhum deus possui feridas, além de ti.(3)
Portanto, quando enfrentamos as desolações da incerteza,
quando há sofrimento e agonia em nossa vida ou no mundo; quando
nos perguntamos o que Deus está fazendo, e não temos respostas, e
relemos o livro de Jó (aquela parte da literatura de sabedoria que
consideramos no capítulo 6), e ouvimos Deus falar por meio de
quatro capítulos de perguntas retóricas: “Aquiete-se, Jó, há muitas
coisas que você não entende de maneira alguma”, podemos agora
acrescentar algo mais que realmente entendemos:
Somente Deus pode falar com as nossas feridas,
E nenhum deus possui feridas, além de ti.
Podemos crer num Deus que não somente é soberano, mas
também sofre por nós. Às vezes, quando não há nenhuma resposta
para nossa culpa, nossos temores, incertezas e angústia, há um
lugar inabalável em que podemos nos manter firmes — o solo em
frente à cruz.
A RESSURREIÇÃO
Embora a cruz seja muito importante, ela não é o fim da
história. Todos os escritores do Novo Testamento focalizam,
igualmente, a ressurreição de nosso Senhor Jesus. Os relatos da
ressurreição são ricos e diversos. Não há meios de reduzi-los a mera
alucinação. Jesus apareceu a muitas pessoas, muitas vezes, em um
período de aproximadamente 40 dias. Ele apareceu a poucos e a
muitos. Apareceu a 500 pessoas de uma vez. Apareceu aos apóstolos
mais do que uma vez; apareceu em cômodos fechados. Apareceu à
beira-mar e comeu peixe que assara para eles. Os testemunhos se
multiplicaram. Apareceu quando eles não esperavam e quando
esperavam. Jesus não podia ser categorizado, rejeitado ou
domesticado. As aparições depois da ressurreição foram frequentes,
diversas e confirmadas por muitas testemunhas. O que você faz com
elas?
Se você pensa que os primeiros cristãos inventaram isso ou
foram, de algum modo, enganados ou vítimas de algum tipo de
psicologia de massas, é difícil explicar por que estavam dispostos a
morrer por sua fé. Se a ressurreição é um conto de fadas como “João e
Maria”, minha pergunta é: “Quantos já se ofereceram para morrer
por João e Maria?” Mas os primeiros cristãos estavam dispostos a
morrer por sua convicção de que Jesus ressuscitara dentre os mortos.
Tinham visto a Jesus, tocado nele, apalpado-o, comido com ele,
depois que ressuscitara dos mortos — e foram transformados por ele.
De fato, Jesus lhes prometeu a ressurreição de seus corpos um dia.
Eles creram que ele era Senhor.
POR QUE DUVIDAR DA RESSURREI O DE JESUS? (JO O 20.24-28)
Uma das mais comoventes cenas descrevem o que aconteceu no
segundo domingo, o domingo depois do domingo em que Jesus
ressuscitou dos mortos. No primeiro domingo, o domingo da
ressurreição, Jesus apareceu a algumas mulheres, a Pedro e a João, a
dois discípulos que caminhavam para a pequena cidade de Emaús e a
dez dos apóstolos. Sobre o segundo domingo, lemos estas palavras:
Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com
eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe, então, os outros discípulos: Vimos o Senhor.
Mas ele respondeu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos
cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu
lado, de modo algum acreditarei.
João 20.24-25
Esse é o tipo de dúvida que resulta de mágoa. Tomé não queria
ser enganado. Ele tinha crido que Jesus era o Messias, mas Jesus
morrera. Isso não fazia sentido. Tomé estava sozinho e triste. Ainda
era um judeu monoteísta e piedoso, mas fora enganado (ele pensava)
uma vez e agora não queria iludir a si mesmo crendo que, depois de
tudo, Jesus estava de volta à vida. Teria de ver por si mesmo. Não
teria uma fé fácil, que crê apenas no relato de outra pessoa. Não faria
isso. Em outras palavras, Tomé queria distinguir entre a fé e a
credulidade e, por essa razão, apresentou o teste mais extremo que ele
podia imaginar. Queria estar certo de que o corpo depositado no
sepulcro era o mesmo que supostamente saíra ou tinha algum tipo de
conexão orgânica e genuína com aquele corpo. Por isso, ele
especificou: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali
não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum
acreditarei” (20.25).
Sou presidente do ministério Gospel Coalition. Nosso diretor-
executivo é um homem chamado Ben Peays. Ele é um gêmeo idêntico.
Quando digo “gêmeo idêntico”, quero dizer “gêmeo idêntico”. Eles se
parecem nos traços gerais, mas têm as mesmas pequenas marcas,
sorrisos e coisas semelhantes — são imagens exatas um do outro.
Tenho certeza de que, se você os conhecesse muito bem, poderia
distingui-los. Eu só consigo fazer isso quando eles estão lado a lado.
No ano passado, quando tivemos nossa reunião do conselho, é claro
que Bem estava lá, mas não disse a ninguém do conselho que seu
irmão viria também. Em determinado momento da reunião do
conselho, eu disse: “Irmãos, devo contar-lhes que nosso diretor-
executivo tem trabalhado arduamente em tantas coisas, que
decidimos cloná-lo e ter dois dele”. Em seguida, eu apontei para o seu
irmão gêmeo.
Talvez Jesus tivesse um irmão gêmeo, que fingiu ter saído do
sepulcro. Talvez ele fosse o novo Jesus. Mas, onde estão as feridas,
não somente as feridas dos pregos, mas também o corte que
penetrara por baixo da sua cavidade torácica até ao pericárdio e
perfurara a carne, de modo a sair sangue e água? Onde estão as
feridas? “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não
puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum
acreditarei.” Esse era o teste.
Passados oito dias, estavam outra vez ali reunidos os seus
discípulos, e Tomé, com eles. Estando as portas trancadas,
veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco!
E logo disse a Tomé: Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos;
chega também a mão e põe-na no meu lado; não sejas
incrédulo, mas crente.
Respondeu-lhe Tomé: Senhor meu e Deus meu!
João 20.26-28
Numa primeira leitura da reação de Tomé, alguém poderia
questionar por que ele disse palavras tão significativas. Por que ele
não disse apenas: “O Senhor está vivo!”, ou: “Eu estava errado!”, ou
algo mais modesto? Por que ele inferiu tanto (“Senhor meu e Deus
meu!”) do fato de Jesus estar vivo? Afinal de contas, alguns dias
antes, Lázaro havia sido ressuscitado dos mortos, e ninguém dissera
a Lázaro, depois que ele ressuscitara: “Senhor meu e Deus meu!”
Então, por que Tomé disse isso para Jesus?
O que você tem de fazer é colocar-se no relato. Coloque-se no
lugar de Tomé — tanto quanto possível. Você tem uma semana
inteira entre os primeiros relatos da ressurreição e a segunda
aparição. Os outros apóstolos estavam dizendo: “Vimos realmente a
Jesus. Pedro o viu pessoalmente. Pedro e João viram o sepulcro vazio.
Os dois discípulos que iam para Emaús o viram. Juntos, nós o vimos
— dez de nós, de uma vez. E há os relatos das mulheres. Todos nós o
vimos”. Assim, durante toda a semana, Tomé estava dizendo:
Não pode ser. Não posso acreditar. Sei que o sepulcro está
vazio, mas, quem sabe, um ladrão de sepulcros pode ter ido
lá. Talvez examinamos o sepulcro errado. Ainda era escuro
quando o colocaram lá. Mas, supondo que ele esteja vivo, o
que isso significa? Oh! não, não pode ser! Não faz sentido.
Mas Jesus fez tantas coisas estranhas em sua vida. Quero
dizer, ele disse na noite em que se dirigia para a cruz: “Há
tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido?
Quem me vê a mim vê o Pai” (ver Jo 14.9). E houve aquela
estranha afirmação de Jesus, quando ele disse: “Antes que
Abraão existisse, EU SOU” (Jo 8.58). Isso é mais do que uma
péssima medição do tempo. Abraão está morto há mais de
mil anos. Por que ele não disse: “Antes que Abraão
existisse, eu era”? Isso afirmaria algum tipo de
preexistência, talvez — muito difícil de acreditar. Mas ainda
seria apenas preexistência. “Antes que Abraão existisse, EU
SOU”? Isso está falando do nome do próprio Deus!
O que você faz com passagens como essa? Durante todos os anos
do ministério de Jesus, quando ele disse coisas que eram difíceis de
entender, sem dúvida seus discípulos coçaram a cabeça, sorriram
piedosamente e pensaram: “Mais mistério. Talvez um dia entendamos
isso”. Eles podiam lembrar que Jesus insistira no fato de que era
determinação do Pai de que todos honrassem o Filho como honravam
o Pai (ver Jo 5.23). Você não diz isso sobre um mero ser humano.
Talvez durante aquela semana antes do segundo domingo, Tomé
tenha pensado também em algumas passagens do Antigo
Testamento, à luz das afirmações de que Jesus ressuscitara dos
mortos. Além disso, no que concerne à história, os outros evangelhos
narram ocasiões em que Tomé teve oportunidade de observar a Jesus.
Mencionarei apenas uma.
SOMENTE A PARTE OFENDIDA PODE PERDOAR
Há um relato espetacular em dois outros evangelhos (não em
João) que descreve uma ocasião em que Jesus pregava numa casa
lotada — não havia cadeiras, e as pessoas estavam apinhadas. Por
esse tempo, Jesus tinha reputação de pregador e mestre, mas também
de curador. Quatro homens levaram um amigo paralítico. Ele não
podia andar, por isso o levaram em um tipo de maca. Os quatro
homens tentaram entrar na casa em que Jesus estava pregando, mas
não puderam. As pessoas diziam: “Silêncio, silêncio, o mestre está
pregando. Esperem a sua vez. Ele está ocupado. Não o importunem”.
Mas os quatros homens, com sua maca, não parariam. Por isso,
subiram pela escada exterior (naqueles dias muitas casas tinham
escadas exteriores porque à noite as pessoas se refrescavam no teto
plano, beneficiando-se das brisas que bafejavam sobre a cidade).
Chegando ao teto plano, eles ouviram cuidadosamente para discernir
o lugar em que Jesus falava. Acharam a área correta e começaram a
abrir o teto. Em seguida, eles desceram seu amigo, por cordas, em
frente de Jesus. Se a multidão não lhe daria entrada pela porta, eles
achariam um jeito para o amigo, porque uma maca foi descida por
cima da cabeça daquelas pessoas. Assim, a maca e o paralítico
ficaram diante de Jesus, que disse: “Filho, os teus pecados estão
perdoados” (Mc 2.5).
Os teólogos ali presentes ficaram indignados. “Quem pode
perdoar pecados, senão um, que é Deus?” (Mc 2.7). Essa é uma boa
observação, não é?
Suponha (Deus não o permita) que em sua próxima viagem a
trabalho, você seja brutalmente atacado por uma gangue de
criminosos. Seja ferozmente espancado e deixado quase morto, talvez
violentado. O serviço de emergência o leva para o hospital. Passados
dois dias, eu lhe faço uma visita. Você está enfaixado, e suas pernas,
erguidas em roldana. Você mal pode falar. E eu lhe digo: “Sabe, você
pode ficar contente, achei os seus agressores e os perdoei!” O que
você me diria? Não ficaria indignado? “Quem você pensa que é? Você
não foi violentado por uma gangue. Você não está no hospital! Como
pode tê-los perdoado? A única pessoa que pode perdoar é a parte
ofendida. Somente a parte ofendida pode perdoar”.
No final da Segunda Guerra Mundial, um judeu chamado Simon
Wiesenthal ainda lutava pela vida em Auschwitz, mesmo depois de
toda a sua família ter sido destruída. Naquela altura, Wiesenthal
estava apenas a algumas semanas do fim do terror e horror de
Auschwitz; os russos avançavam do Leste. Wiesenthal estava num
grupo de trabalho quando repentinamente foi tomado pelos guardas
alemães e lançado numa sala. Ali havia um jovem soldado alemão,
nazista, talvez de 19 anos. Ele sofrera ferimentos graves, estava à
morte e desejava conversar com um judeu antes de morrer. Na
providência peculiar de Deus, Simon Wiesenthal foi o judeu tirado do
trabalho e introduzido naquela sala. O jovem soldado nazista
explicou por que queria vê-lo. Lutando para respirar, reconheceu que
os nazistas haviam tratado horrivelmente os judeus e que ele mesmo
estivera envolvido em coisas horríveis. Ele queria o perdão dos
judeus.
Em quietude, Wiesenthal ponderou isso em sua mente. Mais
tarde, ele escreveu suas reflexões em um livreto intitulado The
Sunflower. Muitas das páginas desse livreto descrevem o que passou
pela mente de Wiesenthal. Seu raciocínio foi este: quem pode perdoar,
senão a aqueles que foram ofendidos? A parte mais ofendida no
Holocausto estava morta. Em Auschwitz, os judeus haviam sido
queimados nos fornos. Como um sobrevivente como Wiesenthal
poderia proferir perdão em favor dos que estavam mortos? Como ele
poderia falar em lugar dos mortos? Se as vítimas mais brutalizadas
dos nazistas estavam mortas, não havia ninguém qualificado para
pronunciar perdão. Portanto, não havia perdão para os nazistas. Sem
dizer uma palavra, Wiesenthal ouviu o jovem soldado e, em seguida,
virou-se e deixou a sala.
Depois que a guerra terminou e Wiesenthal escreveu seu livro, ele
o enviou para especialistas em ética ao redor do mundo — cristãos e
judeus, vários contextos — e pediu-lhes que respondessem esta
pergunta: “Eu fiz o que era certo? Ele suscitou uma discussão furiosa
entre os especialistas ao redor do mundo.
Wiesenthal quase entendeu a questão corretamente. Ele estava
certo ao insistir em que somente a parte ofendida pode perdoar. Isso é
certo. Mas, de acordo com a Bíblia, Deus é sempre a parte mais
ofendida. Davi entendeu isso quando ousou escrever: “Pequei contra
ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos” (Sl
51.4).(4)
Aquele jovem paralítico foi descido diante de Jesus — um jovem
que não ofendera Jesus na carne, de homem para homem, de pessoa
para pessoa —, e Jesus olhou para ele e lhe disse: “Os teus pecados
estão perdoados” (Mc 2.5). Os teólogos perguntaram: “Quem pode
perdoar pecados, senão um, que é Deus?” (Mc 2.7).
Tomé lembrou isso também. Combinadas todas as outras
recordações do que Jesus dissera e fizera com todas as suas reflexões
sobre as Escrituras do Antigo Testamento, Tomé chegou à única
conclusão lógica: Jesus é não somente um homem ressurreto —
milagre tremendo! — mas também, incrível e maravilhosamente, ele é
Deus, com todos os direitos de Deus para perdoar pecados. Tomé se
curvou diante do Jesus ressurreto e disse: “Senhor meu e Deus meu”
(Jo 20.28).
Isto é o que todos nós devemos fazer: reconhecer que o que Jesus
fez na cruz foi sofrer em benefício de seu próprio povo, aqueles que
colocam sua fé nele, que reconhecem que ele levou o pecado deles.
Como o Deus-homem, somente ele pode perdoar. Precisamos ter o
perdão de Jesus para sermos reconciliados com Deus. Precisamos tê-
lo. Assim, podemos nos prostrar diante dele e clamar, com alegria e
gratidão, mistério, adoração e temor: “Senhor meu e Deus meu” (Jo
20.28).
ORAÇÃO CONCLUSIVA
Pai celestial, nos regozijamos na verdade de que Jesus
ressuscitou dos mortos. Começamos a ver que isso não é apenas uma
verdade manifestada na arena pública da história que deve admitida
imediatamente e, depois, deixada de lado. Pois, se, de fato, o teu
Filho querido, o Deus-homem, ressuscitou dos mortos, tudo muda. A
vitória dele sobre a morte é confirmada. O sacrifício que ele proveu foi
aceito. Ele é o cabeça de uma nova humanidade que, um dia,
compartilhará da semelhança de sua ressurreição. E o teu povo, Pai
celestial, se alegra em prostrar-se diante dele e clamar: “Senhor meu
e Deus meu”. Permite que todos os que leem estas páginas clamem:
“Perdoa os meus pecados como perdoaste o pecado daquele homem
paralítico, Senhor meu e Deus meu”. Em nome de Jesus, amém.
(1) Incluí uma exposição mais ampla destas duas passagens em meu livro Escândalo: a Cruz
e a Ressurreição de Jesus (São José dos Campos, SP: Fiel, 2011).
(2) Fareed Zakaria, “To Hell in a Handbasket”, resenha de A Thread of Years, por John
Lacaks, New York Times, April 19,1998, http://fareedzakaria.com/articles/nyt/041998.html.
(3) Edward Shillito, “Jesus of the Scars”, em Jesus of the Scars and Other Poems (London:
Hodder & Stoughton, 1919).
(4) Isso foi discutido no capítulo 6.
11
O Deus
que Declara Justo o Culpado
E Em certo nível, o título deste capítulo quase parece perverso. Eu
preferiria que as coisas fossem desta maneira:
Membros do júri, não estou pedindo misericórdia e perdão.
Quero justiça. Estou exigindo absolvição total. Sim, cometi
o assassinato do qual sou acusado. Mas não sou culpado.
Membros do júri, vocês têm de considerar todas as minhas
boas obras — não somente como circunstâncias que
abrandam a culpa, mas também como a razão para
inocentar-me. A bondade de minhas outras obras excede o
crime que cometi. Minhas boas obras exigem um veredito de
“inocente”. Se a justiça tem de ser feita, vocês têm de
declarar-me inocente.
Assim escreveu Todd Wiken.(1) Sorrimos disso porque o
argumento é tão ridículo. No entanto, inesperadamente percebemos
que uma aproximação de Deus que depende de nosso equilíbrio entre
boas obras e más obras não é menos ridícula. Isso é a mais
imperfeita de todas as formas de autojustificação — mas é o que
queremos argumentar diante de Deus. O argumento não é um apelo
por indulgência; pelo contrário, é uma asseveração ousada de
inocência. Presume que a culpa é cancelada pelas boas obras. Deus
tem de inocentar-nos e declarar-nos “inocentes” porque fizemos
muitas coisas boas compensadoras. Isso é autojustificação. E tão
inaceitável no tribunal de justiça de Deus como o seria em um
tribunal contemporâneo.
Sendo assim, o que deveríamos pensar sobre a avaliação que
Deus faz? Deus mesmo é espetacularmente santo e não vê as nossas
boas obras como coisas que são pesadas numa balança em contraste
com as más obras; antes, ele vê esse esforço inútil de autojustificação
como mais um exemplo de nosso desafio mortal contra ele. Qual é a
solução bíblica? Deus não designou que as boas obras compensem as
más obras. Pelo contrário, ele estabeleceu um meio de declarar justo o
culpado — e retém a sua integridade enquanto faz isso. Em lugar da
autojustificação, Deus tem uma maneira de justificar-nos. Ele tem
um meio de dar-nos justificação, que não é autojustificação, e sim a
justificação que procede dele mesmo, que é nosso Criador e Juiz. Isso
é o assunto desse capítulo.
Focalizaremos Romanos 3.21-26. Martinho Lutero, um
reformador que viveu há 500 anos, chamou este parágrafo de o
centro de todo o livro de Romanos e, de fato, de toda a Bíblia. Mas,
antes de examinarmos os versículos, devemos lembrar que eles fazem
parte da carta de Paulo aos crentes de Roma.
ROMANOS 3.21-26 À LUZ DE ROMANOS 1.18-3.20
A carta de Paulo aos cristãos em Roma integra o Novo
Testamento. O Novo Testamento começa com os quatro evangelhos
(Mateus, Marcos, Lucas e João), seguidos pelo livro de Atos (que
reconta os “atos dos apóstolos” desde a ressurreição de Cristo até às
três primeiras décadas da história da igreja) e, depois, um conjunto
de cartas escritas pelo apóstolo Paulo. A primeira das cartas de Paulo
no Novo Testamento é a escrita aos cristãos romanos. Antes de
considerarmos Romanos 3.21-26, que é o foco de nosso interesse,
temos de reconhecer que todo o argumento de Paulo em Romanos
1.18 a 3.20 nos mostra que somos culpados. O que estes dois
capítulos e meio fazem é explicar, em termos teológicos, o que a
Bíblia diz sobre os seres humanos de Gênesis 3 em diante.
Essa longa seção começa com as palavras:
A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;
porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre
eles, porque Deus lhes manifestou
Romanos 1.18-19
Os dois capítulos e meio seguintes mostram que, se você é da
descendência de Abraão, por meio da aliança feita com Moisés e
recebeu muitas revelações de Deus, ou se, alternativamente, você é de
fora dessa descendência, de algum tipo de herança gentílica, ambos
— judeus e gentios igualmente — sem exceção, são culpados diante
de Deus. Saber o que Deus quer não capacita ninguém a satisfazer os
padrões divinos. Por outro lado, se você pertence a um povo que foi
pouco exposto ao que Deus disse e que adota algum padrão mais
superficial, você também não vive de acordo com esse padrão. Em
qualquer caso, você é uma pessoa culpada.
Isso é tão discordante da autopercepção contemporânea, que, ao
lermos algo do que Paulo disse em Romanos, sem desenvolvermos um
pensamento quanto a todo o enredo da Bíblia, podemos facilmente
rejeitá-lo como algo exagerado. Paulo terminou esta seção em 3.9-18,
fazendo várias citações do Antigo Testamento:
Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de
forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos,
tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como
está escrito: Não há justo, nem um sequer,
não há quem entenda, não há quem busque a Deus;
todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há
quem faça o bem, não há nem um sequer.
A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem
engano, veneno de víbora está nos seus lábios,
a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura;
são os seus pés velozes para derramar sangue,
nos seus caminhos, há destruição e miséria;
desconheceram o caminho da paz.
Não há temor de Deus diante de seus olhos.
Romanos 3.9-18
Se você vem de um contexto secular e abriu esse livro nessa
página e leu o texto que acabei de citar, talvez você pense: “O autor
perdeu seu bom senso? Sim, sei que há algumas pessoas más neste
mundo — Stalin, talvez; Pol Pot, eu suponho, e Hitler, é claro — mas,
o que se pode dizer de organizações como ‘Médicos sem Fronteiras’?
Não há muitas pessoas fazendo o bem por aí?”
Em certo nível, Paulo concordaria com essa conclusão.
Historicamente, os cristãos têm visto nessas coisas boas os frutos da
graça comum, ou seja, a graça que Deus dá a todos os tipos de
pessoas. Mas a sondagem de Paulo analisa profundamente o coração
humano. A questão não é se muitas coisas boas são feitas (por
exemplo, obras de arte, uma sinfonia maravilhosa, médicos que se
autossacrificam nos limites de uma doença horrível e muito mais). Já
vimos que a Bíblia apresenta os seres humanos como contradições
horríveis: temos grande potencial de refletir algo da bondade da
criação e da glória de Deus; por outro lado, somos tão corruptos,
abusivos, pervertidos e, acima de tudo, egocêntricos. O âmago do
mal, de acordo com toda a Bíblia, é o relacionamento quebrado com
Deus que estabelece ídolos e detrata a Deus. Isso resulta em
destruição da beleza e da bondade da ordem criada. O âmago do mal
não é Auschwitz, embora ele seja bastante inconcebível. O âmago de
todo mal é, antes de tudo, nós, seres humanos, você e eu, que
queremos seguir nosso próprio caminho e rejeitamos a Deus, que nos
criou.
Quando você examina essa passagem de Romanos, linha por
linha, e discerne que isso é o que Deus pensa quando ele fala sobre o
mal, tudo faz sentido. “Não há justo, nem um sequer” (Rm 3.10).
Isso faz sentido se você lembra a citação de Todd Wilken com a qual
começamos este capítulo: a questão não é equilibrarmos boas obras e
más obras. Nenhum de nós pode reivindicar que é justo, “nem um
sequer” — e muitos de nós reconheceremos a verdade dessa
afirmação, se formos honestos.
“Todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis” (Rm 3.12) —
não inúteis no sentido de que não há nenhum valor intrínseco nos
seres humanos, nos portadores da imagem de Deus, mas inúteis no
sentido de que todos ofendemos nosso Criador, Deus. Isso é mais fácil
de entender quando lembramos o que Jesus disse no “principal”
mandamento: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a
tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc
12.30-31). Confesso, com vergonha, que não amo a Deus com todo o
meu coração, alma, entendimento e força. Se Jesus disse que este é o
mandamento mais importante, sou culpado de transgredi-lo. Você
não é? De fato, amar a Deus com todo o coração, alma, mente e força
pode ser considerado fanatismo em nossa cultura. Mas, em essência,
Deus disse: “Ouça, você não entende? Esta é a maneira como criei
originalmente o universo. Se você não vê, isso é uma evidência de
como este mundo está caído”. De modo semelhante, o segundo
mandamento, a ordem de amar o próximo como a nós mesmos, parece
muito exagerado, ridiculamente utópico. Mas Deus diz que essas
inferências mostram quão terrivelmente temos abandonado o que ele
vê como normal, saudável, bom, santo, correto, puro. Não é
surpreendente que estas citações digam:
Todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis... A
garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem
engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca, eles
a têm cheia de maldição e de amargura.
Romanos 3.12-14
Sim, eu sei que muitos de nós somos de culturas civilizadas em
que não há maldição e amargura, a menos que martelemos o polegar
ou sejamos demitidos do trabalho, quando pensamos que isso é
injusto. Apesar de todo nosso comportamento civilizado, quando
enfrentamos bastante pressão, achamos extremamente fácil em nossa
mente (se somos bastante disciplinados para não deixar escapar de
nossos lábios), nutrir amargura e amaldiçoar nossos oponentes. Isso
dificilmente é uma evidência de amar o próximo como a nós mesmos.
Não é uma maneira de louvar a Deus; não é um reflexo do shalom —
o completo bem-estar que só Deus pode estabelecer — que Deus
almeja que desfrutemos.
O cerne da questão é, como diz a última linha dessas citações
bíblicas: “Não há temor de Deus diante de seus olhos” (Rm 3.18).
Portanto, ainda estamos imergidos no problema central revelado no
drama de toda a Bíblia. Como os seres humanos são reconciliados
com Deus? Se, como vimos no início desse capítulo, a
autojustificação não serve, que tal a simples negação? Eis parte do
testemunho de um filósofo chamado Budziszewski, que escreveu:
Todas as coisas dão errado sem Deus. Isso é verdade até
quanto às coisas boas que ele nos deu, como a nossa mente.
Uma das coisas boas que recebi foi uma mente mais
vigorosa do que uma mente normal... O problema é que
uma mente vigorosa que recusa a chamada para servir a
Deus tem sua própria maneira de dar errado. Quando
algumas pessoas fogem de Deus, elas roubam e matam.
Quando outras fogem dele, usam muitas drogas e fazem
muito sexo. Quando eu fugi de Deus, não fiz nenhuma
dessas coisas. Minha maneira de fugir foi tornar-me
estúpido. Embora isso sempre pareça surpreendente aos
intelectuais, há algumas formas de estupidez que, para
atingi-las, a pessoa tem de ser altamente inteligente e
culta...
O apóstolo Paulo disse que o conhecimento da lei de Deus
está “gravado” em nosso “coração, testemunhando...
também” a nossa consciência [isso é uma citação de
Romanos 2.15]... Isto significa que, enquanto temos mente,
não podemos deixar de conhecer as coisas ali gravadas.
Bem, eu estava singularmente decidido a não conhecê-las.
Portanto, eu tinha de destruir minha mente...
Imagine um homem abrindo os painéis de acesso à sua
mente e jogando fora todos os componentes que contém a
imagem de Deus estampada neles. O problema é que todos
eles estampam a imagem de Deus; portanto, o homem
nunca parará. Não importa quantos ele jogue fora, haverá
sempre mais a jogar. Eu era esse homem. Porque joguei fora
cada vez mais componentes, havia cada vez menos sobre os
quais eu podia pensar. [Isso é que ele pretendia dizer
quando falou que se tornara estúpido. Os cristãos têm
tantas coisas em que pensar. Pessoas que rejeitam a Deus e
toda a sua verdade têm muito menos em que pensar. Elas se
tornam estúpidas.](2)
Ele prosseguiu dizendo que, antes de ser convertido, pensava que
estava se tornando mais focalizado, pensava que era mais brilhante
do que os tolos ao seu redor — até que entendeu ser ele mesmo o tolo.
Esse foi o contexto que Paulo estabeleceu e simplesmente o
pressupôs quando escreveu o parágrafo espetacular que Martinho
Lutero chamou de o centro de toda a Bíblia: Romanos 3.21-26.
Acrescentaremos alguns poucos versículos:
Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus
testemunhada pela lei e pelos profetas;
justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e
sobre todos] os que creem; porque não há distinção,
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus,
sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus,
a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação,
mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus,
na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos;
tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo
presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele
que tem fé em Jesus.
Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei?
Das obras? Não; pelo contrário, pela lei da fé.
Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei.
É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também
dos gentios? Sim, também dos gentios,
visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o
circunciso e, mediante a fé, o incircunciso.
Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma!
Antes, confirmamos a lei.
Romanos 3.21-31
Falando com franqueza, esses parágrafos soam tão condensados
que, se você já é um cristão por algum tempo, quando ouve a sua
leitura, começa a ouvir sequências da palavra de Deus sem poder
seguir o fluxo do pensamento. A única maneira de entender o
pensamento é ler com muita atenção essas linhas, para conhecer a
lógica e descobrir como toda a passagem se harmoniza. A passagem
compensará uma leitura cuidadosa: sei que, em toda a Bíblia,
nenhuma passagem é tão clara como esta no que diz respeito ao que
a cruz realiza. A passagem nos mostra o que Jesus fez na cruz.
Seguiremos o argumento primeiramente nos versículos 21 a 26
e, depois, nos versículos 27 a 31.(3)
ROMANOS 3.21-26
1. A REVELA O DA JUSTI A DE DEUS EM SUA RELA O COM O ANTIGO
TESTAMENTO (RM 3.21)
Lembremos que Paulo gastou dois capítulos e meio para mostrar
quanta culpa, ingratidão e idolatria existem — e fez isso em face da
verdade de que Deus é um Deus justo. Então, como podemos ser justo
aos olhos de Deus? Como viveremos diante dele?
“Mas agora” (3.21) significa neste ponto do fluxo da narrativa
bíblica, nesta altura da história de redenção: Jesus veio.
“Sem lei” refere-se à lei dada por Moisés, a lei da aliança sob a
qual os hebreus, os israelitas, viveram por 1.500 anos.
“Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus.” Isso quer
dizer: a justiça de Deus que transcende as épocas, o próprio caráter
de Deus, sua justiça perfeita, se tornou manifesta ou conhecida, não
na estrutura da antiga aliança da lei, com seu sistema de sacrifícios,
seus sacerdotes, etc. A justiça de Deus se tornou conhecida à parte
disso. Usando a linguagem que Paulo empregou em outra passagem,
o que ele estava dizendo era: “Chegamos agora à nova aliança;
agora, uma nova estrutura de referência, uma nova aliança chegou”.
Ele ainda não explicou em que ela se fundamenta, nem como ela
opera.
No entanto, isso não significa que esta nova situação é
totalmente desvinculada da antiga aliança da lei, visto que Paulo
acrescentou uma cláusula interessante no final do versículo 21: “Mas
agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei
e pelos profetas” (ênfase acrescentada). Ou seja, se você ler o Antigo
Testamento com cuidado e prestar bastante atenção, verá que a
aliança da lei que Moisés estabeleceu previa realmente o que chegou
agora. Por exemplo, o sangue de um novilho e de um bode que o sumo
sacerdote levava ao Santo dos Santos, no tabernáculo, no Yom
Kippur, o Dia da Expiação, apontava para o sacrifício final que
pagaria por nossos pecados, o sacrifício de Cristo.
Até aquelas leis que chamamos de leis morais (ou seja, “não
matarás”, “não adulterarás”) também apontavam para frente. Por
exemplo, imagine o estado final das coisas, um novo céu e uma nova
terra, justiça perfeita, existência ressurreta, sem pecado, morte e
decadência em qualquer lugar. Você acha que haverá pequenos avisos
fixados aqui e ali, que dirão: “Não matarás” ou: “Não adulterarás”?
Provavelmente será muito difícil cometer assassinato e adultério em
corpos ressurretos na perfeição do paraíso! Mas, à parte dessas
considerações, você acha realmente que leis como estas serão
necessárias? Se você disser sim, ainda não imaginou a perfeição. Se
disser não, deve perguntar a si mesmo: “Isso significa que a lei de
Deus mudou?” Não, isso é total incompreensão dos mandamentos,
porque, em última análise, as leis que dizem: “Não matarás” e “Não
adulterarás” antecipam um tempo em que assassinato e adultério,
ódio e concupiscência sexual egoísta, não mais existirão. Nesse
sentido, as leis apontam para a justiça perfeita, quando o povo de
Deus amará um ao outro, quando assassinato e adultério serão
inconcebíveis.
Portanto, a aliança da lei, que estabeleceu muitos mandamentos
e proibições, juntamente com seu sistema de sacrifícios e suas
estruturas para a nação — em muitas maneiras, essas coisas
apontavam para frente, para o que foi introduzido por Cristo. Se a
justiça de Deus é conhecida “sem lei”, essa mesma lei dava
testemunho deste novo estado de coisas e antecipava esse tempo.
2. A DISPONIBILIDADE DA JUSTI A DE DEUS PARA TODOS, SEM DISTIN O
“... se manifestou a justiça de Deus [que agora foi manifestada
de uma maneira nova] ...mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os
que creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da
glória de Deus” (Rm 3.22-23). Observe as duas ocorrências da
palavras “todos”; é esta dupla ocorrência de “todos” que conecta este
parágrafo com os dois capítulos e meio anteriores. Os capítulos
anteriores argumentaram, amplamente e em detalhes apropriados,
que todas as pessoas precisam dessa justiça. Somos todos culpados
diante de Deus. Mas agora há uma justiça de Deus que satisfaz as
nossas necessidades. Ela pode ser a nossa justiça. Ela é dada
“mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que
creem”, judeus e gentios, “pois todos pecaram”.
A antiga aliança era para os israelitas. É claro que, mesmo no
Antigo Testamento, Deus se apresentava como soberano de todas as
nações do mundo. No Antigo Testamento está escrito: “A justiça
exalta as nações, mas o pecado é o opróbrio dos povos”. E Deus
considera todos responsáveis. Essa é a razão, por exemplo, por que o
Deus de Israel, no Antigo Testamento, pode ser retratado como o Deus
que, digamos, considerou a Babilônia e a Assíria responsáveis. Hoje
ele considera a América e a China responsáveis. Deus ainda é o
soberano Senhor que considera todos responsáveis. No entanto, na
época do Antigo Testamento, a aliança da lei ligava Deus aos
israelitas, os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó.
Mas agora, a Bíblia nos diz, essa justiça de Deus, que, de
algumas maneiras, é dissociada da antiga aliança, é dada por meio
da fé em Jesus Cristo. Não é dada nas bases da antiga aliança,
conforme as quais uma pessoa deveria ser nascida em uma nação ou,
em algum sentido, ser adotada pela nação. Não, ela é dada
“mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que
creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da
glória de Deus”. Em outras palavras, a graça é dada conforme a
necessidade, e a necessidade está em todos, judeus e gentios
igualmente.
Uma das coisas maravilhosas sobre o último livro da Bíblia é que
ele mostra que, no último dia, ao redor do trono de Deus estarão
homens e mulheres de toda língua, etnia e nação. Milhões deles!
Naquele último dia, ao redor do trono, haverá muitos chineses, tutsis,
hutus, sérvios, russos, bolivianos, árabes, europeus — diferentes
cores, diferentes sensos de humor, diferentes línguas, diferentes
etnias. Deus reúne seu povo de todas essas nações. Hoje, cristãos que
viajam descobrem que, onde quer que vão, encontram cristãos,
mesmo em lugares surpreendentes. Estive em Papua Nova Guiné e
tive comunhão com irmãos e irmãs que, uma geração e meia atrás,
teriam sido canibais. Visitei Hong Kong. Que cidade espetacular! Ela
contém uma mistura de estilos: lojas luxuosas e, dois quarteirões
adiante, um mercado de carne ao ar livre. Grande diversidade de
pessoas — e muitos cristãos naquele lugar. E o mesmo é verdade ao
redor do mundo: africanos, asiáticos, europeus, americanos. Ao redor
do trono, naquele último dia, haverá pessoas de todo o globo e de
toda etnia, porque nos termos da nova aliança, Deus tornou
disponível a justiça que necessitávamos tão desesperadamente, para
todos que creem, porque todos pecaram e carecem da glória de Deus.
Paulo ainda não explicou como Deus fez isso. Mas esta é a força
do ensino que ele estabeleceu.
3. A FONTE DA JUSTI A DE DEUS NA GRACIOSA PROVIS O DE CRISTO JESUS
COMO A PROPICIA O PELOS NOSSOS PECADOS (RM 3.24-25)
Justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e
sobre todos] os que creem; porque não há distinção,
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus,
sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no
seu sangue, como propiciação, mediante a fé.
Romanos 3.22-25
Agora temos algumas palavras teológicas que precisam ser
esclarecidas.
REDEN O
O que significa redenção? Para nós, redenção é uma palavra que
pertence à linguagem teológica. Não a usamos muito em nossa
conversa comum. Uma ou duas gerações atrás, ainda usávamos a
palavra redenção em algumas transações financeiras. Se você fosse a
uma loja de penhores, empenhasse ali o relógio de seu avô, para obter
um pouco de dinheiro, e conseguisse ganhar algum dinheiro nas
semanas seguintes, você voltaria lá e redimiria o relógio. Você o
compraria de volta e o resgataria de onde ele estava. De modo
semelhante, pessoas falariam em termos financeiros sobre redimir
sua hipoteca, quitando-a finalmente.
No mundo antigo, a linguagem de redenção era usada mais
comumente. Não era restrita ao vocabulário teológico. Por exemplo,
no mundo antigo você poderia tornar-se um escravo porque não
havia leis de falência de bancos semelhantes às que temos hoje.
Suponha que você emprestasse algum dinheiro, começasse um
negócio, a economia tropeçasse, e seu negócio falisse. O que você
faria? No mundo antigo, o que você deveria fazer era vender a si
mesmo e/ou entregar a sua família à escravidão. Isso é o que você
faria. Não havia leis de proteção referentes à falência.
No entanto, suponha que você tivesse um primo abastado que
morava a quarenta quilômetros de sua cidade (talvez um dia de
viagem). E ele soubesse que você se vendeu à escravidão. Suponha
que ele se importasse com você e decidisse fazer algo a respeito disso.
O que ele poderia fazer era ir à sua cidade e comprar você de volta.
Ora, havia um processo complicado para fazer isso por meio de
templos pagãos — um processo que não precisamos abordar. Mas o
que ele estaria fazendo era redimindo você. Ele o compraria de volta
e, assim, o libertaria de sua escravidão.
O que Paulo estava dizendo era isto: “Nós também recebemos
uma redenção, uma libertação de nossa escravidão ao pecado. Fomos
comprados de volta e, como resultado, fomos libertos daquilo que, do
contrário, nos escravizaria”. De fato, o que Paulo estava afirmando é
que todos nós fomos “justificados gratuitamente, por sua graça,
mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (3.24). Isto é
impressionante: somos todos justificados — declarados justos, retos
diante de Deus. Como pode ser isso — quando não somos justos nem
retos? Acabamos de passar por dois capítulos e meio que nos dizem
que não somos justos. No entanto, agora, Paulo diz que a justiça de
Deus nos declarou justos. Somos justificados gratuitamente pela
graça de Deus, por meio da redenção, do comprar-nos de volta; a
nossa liberdade é garantida por Cristo Jesus, por meio da redenção
que vem através dele. Como isso se realiza? O que isso significa?
Para entender, temos de aprender o conceito de outra palavra que
Paulo utilizou.
PROPICIAÇÃO
“A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação,
mediante a fé” (3.25 — ênfase acrescentada). O que isso significa?
Precisamos deter-nos por um momento e considerar esta palavra
“propiciação”.
“Propiciação” é aquele ato sacrificial pelo qual Deus se torna
propício. Isso talvez não lhe diga muita coisa, não é? “Propício”
significa apenas favorável; isso implica que a propiciação é o ato pelo
qual Deus se torna favorável a nós. Ele estava contra nós em ira,
mas agora por este ato sacrificial Deus se torna favorável. Isso é
propiciação.
Outros preferem usar o termo “expiação”. A expiação é o ato pelo
qual o pecado é cancelado, banido, removido. Portanto, o objeto da
expiação é o pecado. O objeto da propiciação é Deus. Ele se torna
favorável.
No mundo pagão antigo, no século I, quando os pagãos
ofereciam sacrifícios aos seus deuses, muito frequentemente o desejo
deles era tornar os deuses propícios. Se você quisesse fazer uma
viagem marítima, faria um sacrifício propiciatório a Netuno, o deus
do mar, na esperança de que ele não fosse genioso e não ficasse irado
com você; assim, você teria uma viagem segura. Era um sacrifício a
Netuno, para torná-lo propício. Era um sacrifício propiciatório.
No entanto, este texto de Romanos nos diz algo mais
impressionante. Naquela antiga maneira pagã de ver as coisas, os
adoradores humanos ofereciam um sacrifício propiciatório aos
deuses. Mas este texto diz que Deus apresentou Cristo como um
sacrifício propiciatório. Isso significa que Deus, ao apresentar Cristo
como um sacrifício propiciatório, propicia a si mesmo? Como Deus
pode oferecer um sacrifício que propicia a ele mesmo?
Por causa da estranheza desse pensamento, muitos têm rejeitado
totalmente essa interpretação. Eles acham que é insensatez. Como
Deus pode propiciar a si mesmo? Além disso, alguns deles não
gostam da noção de sacrifício de sangue ou da ideia de que Deus se
ira. Nos anos 1930, um influente professor no Reino Unido, um
homem chamado C. H. Dodd, argumentou vigorosamente que
“propiciação” não faz sentido como tradução. Certamente, Deus não
pode propiciar a si mesmo. Portanto, isso tem de ser “expiação”, em
que, pelo sacrifício de seu próprio Filho, o pecado é cancelado.
Posteriormente, Dodd argumentou: Deus amou tanto o mundo, que
deu seu único Filho (ver Jo 3.16). Se Deus foi tão favorável ao
mundo, que deu seu próprio Filho, como podemos imaginar que o
Filho está propiciando a Deus, tornando-o favorável? Deus já é
favorável. Portanto, o que está acontecendo tem de ser expiação
(cancelamento do pecado) e não propiciação (afastamento da ira de
Deus).
Aqueles que responderam ao professor Dodd salientaram que, no
Antigo Testamento, quando a propiciação é mencionada, ela aparece
regularmente no mesmo contexto em que a ira de Deus é mencionada.
De fato, a palavra traduzida por “propiciação” é usada, na tradução
grega do Antigo Testamento, dois terços das vezes para se referir à
cobertura da arca da aliança, onde no Dia da Expiação era aspergido
o sangue de novilho e de bode — precisamente para afastar a ira de
Deus. Deus ordenou que esse sacrifício fosse oferecido para cumprir
esse propósito. E, nesta passagem de Romanos, temos dois capítulos
e meio que começam com a afirmação “a ira de Deus se revela do céu
contra toda impiedade e perversão” que nós, seres humanos, temos
manifestado ao deter a verdade (1.18 — ênfase acrescentada).
Portanto, a ira de Deus é o pano de fundo para o uso de propiciação
em Romanos 3.25.
A reação de Deus ao nosso pecado é profunda, pessoal e
inevitável. A ira tem de ser afastada, pois, do contrário, não podemos
ser “justificados”, declarados justos aos olhos de Deus. Como Deus
pode propiciar a si mesmo? A resposta é que toda a narrativa da
Bíblia nos ensina que Deus está contra nós em ira, por causa de sua
santidade, mas está sobre nós em amor porque esta é a natureza de
Deus. Ambas as atitudes são importantes.
Por um lado, se Deus não se manifestasse em ira contra nós,
quando pecássemos, ele seria imoral. “Oh! não me importo! Eles
podem blasfemar, matar, estuprar, roubar, mentir. Não me preocupo.
Não me importo. Não estou nem aí!” Mas Deus é justo; ele está
realmente contra nós em ira, em especial porque nós o temos
marginalizado. Temos menosprezado a Deus.
Deus sabe que é para o nosso bem que ele esteja no centro de
tudo. Isso não implica que ele quer ter certa preferência entre os
parceiros: ele não é nosso parceiro. Quando você e eu queremos ser
louvados por nossos semelhantes — pelos outros seres humanos, o
que desejamos é ser mais fortes, mais sábios, mais ricos, mais
bonitos do que eles; queremos ser reputados, em algum sentido, como
superiores. Contudo, Deus é superior. Ele não é como nós. Ele é Deus.
Além disso, Deus sabe, em amor, que temos de vê-lo no centro de
tudo, pois, do contrário, estamos perdidos, arruinados. Vê-lo dessa
maneira é para o nosso bem. É por amor que Deus insiste em que ele
seja Deus, que os ídolos sejam banidos. Por sua vez, ele se mostra
irado quando, por nossas ações, pensamentos e obras, declaramos:
“Não será assim”.
Deus está contra nós em ira por causa de sua santidade, mas,
por outro lado, ele está sobre nós em amor porque esta é a sua
natureza. Este texto de Romanos nos diz que Deus apresentou Cristo
como a propiciação por nossos pecados. De fato, não podemos ter
propiciação (ou seja, o afastamento da ira de Deus) sem expiação (ou
seja, o cancelamento do pecado). As duas se mantêm juntas na
Bíblia. Isso se aplica até ao sacrifício realizado no Dia da Expiação. É
também a razão por que algumas pessoas preferem a expressão
“sacrifício de expiação”, que é mais abrangente: “Deus propôs Cristo
como sacrifício de expiação” (3.25) por nossos pecados, cancelando o
nosso pecado e afastando a ira de Deus num mesmo ato. O que não
podemos perder de vista, no contexto de Romanos, é o fato de que a
ira justa de Deus tem de ser afastada sem macular a justiça de Deus.
Precisamos pensar um pouco mais a respeito disso. O que
acontece não é que o Pai se mantém contra nós em ira, realmente
irado, e o querido Jesus aparece e se coloca sobre nós em amor. Isso
seria uma noção bárbara: o Deus trino estaria fazendo um esforço
conjunto para, em harmonia, livrar seres humanos, portadores de
sua imagem, da tirania de nosso pecado. Toda a Trindade (Pai, Filho
e Espírito Santo) estão contra nós em ira e, igualmente, sobre nós em
amor.
Penso que uma das razões por que, no Ocidente, achamos difícil
imaginar isso é o nosso sistema judicial. Em quase todos os países
do Ocidente, o judiciário é independente. E o juiz não pode ser a
vítima de um criminoso que está sendo julgado. Imagine, por
exemplo, que alguém acusado de assalto seja trazido perante um
juiz. E acontece que o juiz é a pessoa que foi assaltada. Em nosso
sistema, o juiz tem de recusar-se a arbitrar o caso, porque não pode
julgar qualquer pessoa quando ele é a vítima do crime. Isso é assim
porque o juiz exerce a autoridade de um sistema judicial maior. Isso é
tudo que um juiz faz. Espera-se que o juiz exerça, de maneira
igualitária, a autoridade de um sistema maior. O criminoso ofende o
Estado, a lei, a Constituição, o povo. Se você mora em um país
monárquico como a Inglaterra, você ofende a coroa. Mas você não
pratica um crime contra o juiz. Espera-se que ele seja um árbitro
independente que usa a estrutura do sistema judicial para aplicar a
lei com justiça e imparcialidade à pessoa que está em julgamento.
Mas isso não se aplica ao tribunal de Deus. Como já vimos,
repetidas vezes, Deus é sempre a parte mais ofendida. Nós o temos
ofendido, e ele é o nosso juiz. Deus nunca se recusa a isso. Contudo, a
sua justiça não é injusta. Ele é perfeitamente justo, é a própria
incorporação da justiça. Ele é perfeitamente reto. Sabe todas as
coisas. Nada pode ser escondido dele, nem mesmo nossos
pensamentos. A justiça de Deus é perfeita. Mas ele é também a parte
mais ofendida. Sempre. Portanto, Deus exige, em ira, que a justiça
seja feita. E, na pessoa de seu Filho, ele pagou a penalidade.
Em nosso sistema de tribunais, isso é tão estúpido e
inacreditável. Talvez você já tenha ouvido ilustrações que retratam
pessoas trazidas diante de um juiz, que a declara culpada e ordena
uma fiança de cinco mil dólares ou, alternativamente, confina o
ofensor a cinco anos de prisão. Depois, o juiz desce do tribunal, pega
o seu talão de cheques e escreve um cheque de cinco mil dólares ou,
alternativamente, tira a sua toga e vai à cadeia por cinco anos em
lugar do criminoso culpado. Isso é chamado de substituição.
Suponho que essa ilustração esclarece a noção de substituição, mas
em nosso sistema judicial ela seria incrivelmente corrupta. Em nosso
sistema, nenhum juiz poderia fazer isso. O juiz deve ser um árbitro
independente cuja paixão é a aplicação justa da lei, a autoridade da
lei. Ele não tem o direito de tomar o lugar do réu. Isso seria uma
corrupção da justiça.
No entanto, nos tribunais do céu, Deus estabelece o sistema. Ele
é perfeitamente justo, mas é também a parte ofendida. E, na pessoa
de seu querido Filho, ele absorveu a penalidade em favor das pessoas
que colocam sua fé nele. Este último ponto é sobremodo importante.
4. A DEMONSTRA O DA JUSTI A DE DEUS POR MEIO DA CRUZ DE JESUS CRISTO
(RM 3.25-26)
A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação,
mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus,
na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da
sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o
justificador daquele que tem fé em Jesus
Romanos 3.25-26
Deus fez isso “para manifestar a sua justiça”, não apenas para
amar-nos, perdoar-nos e redimir-nos — mas para demonstrar a sua
justiça. Se Deus tivesse perdoado nosso pecado, sem que, em algum
sentido, o pecado tivesse sido pago, onde estaria a justiça? Se a
justiça não tivesse sido satisfeita, como Deus poderia dizer: “Eu
perdoo você”, sem promover a injustiça? O pecado tinha de ser pago.
“Na sua tolerância”, Deus deixou “impunes os pecados
anteriormente cometidos” (3.25). Isso se refere a todos os pecados do
povo de Deus da aliança no passado. Eles haviam recebido vários
tipos de punições temporais. Por exemplo, na justiça de Deus o povo
corrupto de Israel foi para o exílio. Eles enfrentaram vários tipos de
pressões e punições terrenas. Mas, aqui, Paulo ressaltou que eles
nunca receberam toda a força da condenação de Deus. Isso viria no
próprio Cristo. Eles foram poupados dessa condenação. De alguma
maneira profunda, Deus deixara impunes os pecados deles. Agora,
Deus demonstra sua justiça em mandar Cristo à cruz por haver, “na
sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente
cometidos”. Jesus levou o pecado deles, como levou o meu. Jesus fez
isso para manifestar a justiça de Deus “no tempo presente, para ele
mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm
3.26 — ênfase acrescentada). Em outras palavras, por meio disso,
Deus não somente declara justas pessoas culpadas como você e eu
(ou seja, ele nos justifica porque alguém pagou por nosso pecado),
mas também demonstra sua própria justiça ao fazer isso.
Você quer saber onde a justiça de Deus é mais poderosamente
demonstrada? Na cruz. Quer saber onde o amor de Deus é mais
poderosamente demonstrado? Na cruz. Ali, Jesus, o Deus-homem,
suportou o próprio inferno, e Deus fez isso tanto para ser justo como
para ser aquele que declara justos os que têm fé em Jesus. Há um
sentido em que Deus vê a mim, Don Carson, pelas lentes de Jesus.
Isso significa: meu pecado é agora visto como dele, que pagou por
meu pecado. E a justiça de Jesus, a retidão de Jesus, é agora vista
como minha. Deus olha para mim e me declara justo, não por causa
do que eu sou (eu sou culpado!), e sim porque ele propôs seu Filho
como a propiciação por nossos pecados.
ROMANOS 3.27-31
Repetidas vezes, em Romanos 3.21-26, Paulo nos diz que a fé é a
maneira pela qual recebemos essa justiça, a justificação de Deus. Nos
últimos versículos do capítulo, Romanos 3.27-31, Paulo ressalta três
ênfases sobre a fé. Em resumo:
1. A FÉ EXCLUI A VANGLÓRIA (RM 3.27; 4.1-2)
“Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das
obras? Não; pelo contrário, pela lei da fé” (Rm 3.27).
Isso significa que eu não posso aproximar-me de você e dizer:
“Sou uma pessoa superior. Por isso eu fui aceito por Deus”. Eu sou
declarado justo diante de Deus não porque fiz o máximo que podia, e
sim porque recebi o dom de Deus pela fé. A própria natureza da fé
exclui a vanglória. No novo céu e na nova terra, ninguém
argumentará sobre a maneira como seu mérito pessoal atraiu a
aprovação de Deus.
2. A FÉ É NECESSÁRIA PARA PRESERVAR A GRA A (RM 3.28; 4.3-8)
“Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei” (Rm 3.28).
Se, de alguma maneira, eu posso obter o perdão de Deus (ou
seja, Deus pode olhar para mim com favor) porque eu o mereço, não
existe mais graça. Já vimos que, ao lidarmos com um Deus com quem
não podemos fazer barganhas, a única maneira de sermos perdoados
é por sua graça soberana realizada na cruz. Essa graça é
demonstrada na cruz, e nós a recebemos pela fé. A fé preserva a
soberana graça de Deus. Se, de algum modo, merecêssemos o favor de
Deus, então, o favor de Deus não seria dispensado com base na graça
de Deus.
A fé não somente exclui a vanglória, não somente é necessária
para preservar a graça, mas também...
3) É NECESSÁRIA PARA QUE JUDEUS E GENTIOS SEJAM SALVOS
(RM 3.29-30; 4.9-17)
É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também
dos gentios? Sim, também dos gentios,
visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o
circunciso [ou seja, judeus] e, mediante a fé, o incircunciso
[ou seja, gentios].
Romanos 3.29-30
Uma das implicações necessárias do monoteísmo — a crença em
um único Deus — é que, em algum sentido, ele é o Deus de todos,
reconhecido ou não. Ele é o Deus dos judeus e dos gentios,
igualmente. É pela fé que você e eu recebemos essa afirmação ousada
de que somos justos diante de Deus; pois é somente com base na
cruz, e somente nessa base, que Deus justifica judeus (os circuncisos)
e gentios (os incircuncisos) crentes.
4. A FÉ CRIST , EM VEZ DE ANULAR O ANTIGO TESTAMENTO, CUMPRE-O E O
CONFIRMA (RM 3.31; 4.18-25)
“Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes,
confirmamos a lei” (Rm 3.31). Assim, Paulo fecha o círculo. Ele nos
leva de volta ao versículo 21, onde já havia estabelecido que esta
maravilhosa manifestação da justiça de Deus, embora pareça
separada da aliança da lei, foi antecipada e anunciada pela mesma
aliança da lei. Por dizer algo semelhante nesta altura, Paulo está
insistindo enfaticamente que toda a Bíblia é uniforme. Os propósitos
de Deus são unificados em todo o decorrer da história bíblica —
estratificados, complexos, entremeados, porém maravilhosamente
unificados, de modo que agora, na cruz e na ressurreição de Jesus, a
aliança da lei é cumprida e seu propósito em longo prazo, no plano de
Deus, é espetacularmente cumprido. Homens e mulheres culpados são
declarados justos e reconciliados com Deus, não porque sejam justos,
não porque equilibraram boas obras e más obras, e sim porque pela
fé creram no sacrifício de Cristo em favor deles — um sacrifício que,
ao mesmo tempo, paga a penalidade do pecado deles e estabelece a
justiça de Deus.
UMA PALAVRA FINAL SOBRE A FÉ
Não podemos deixar de observar que “fé” e “crer” são termos
cruciais neste capítulo de Romanos. No entanto, essas palavras
podem ser mal interpretadas, porque hoje, no mundo ocidental, a
palavra “fé” tem um de dois significados, nenhum dos quais Paulo
empregou:
1. Em alguns contextos contemporâneos, “fé” é equivalente a
“religião”. Dizemos que há muitas religiões, muitas formas de fé.
Você tem sua fé, eu tenho a minha; você tem a sua religião, eu tenho
a minha. Neste uso, “fé” é apenas um sinônimo de “religião”.
2. Mas, quando não é usada dessa maneira, “fé” significa, em
nossa cultura, algo como escolha pessoal, subjetiva e religiosa. Ou
seja, ela não está vinculada, em qualquer sentido, à verdade ou aos
fatos. É uma escolha pessoal, subjetiva, religiosa. Portanto, se você
diz a alguém hoje: “Você precisa ter fé em Jesus”, isso parece um
convite para um salto no escuro: alguns fazem opção por Jesus,
outros, por Alá e Maomé; e outros optam pelo budismo. Mas, embora
a palavra “fé” seja usada de maneiras diferentes na Bíblia, nem uma
vez ela é usada dessa maneira. Nem uma vez.
Na Bíblia, é crucial estabelecer o objeto da fé, ou seja, em que ou
em quem você crê. Por exemplo, em outra carta de Paulo, escrita aos
cristãos em Corinto, ele insistiu em que os cristãos cressem que Jesus
ressuscitou dos mortos (ver 1Co 15). Suponha, argumentou Paulo,
que Jesus não tenha ressuscitado dos mortos; suponha que isso seja
um absurdo histórico. Então, o que aconteceria com a sua fé se Jesus
não ressuscitou dos mortos?
Primeiro, as testemunhas originais estavam todas enganadas.
Você não poderia confiar em qualquer das 500 testemunhas de
lugares, tempos e circunstâncias diferentes. Eram todos mentirosos.
Segundo, você ainda estaria perdido, porque a Bíblia ensina que foi a
morte e a ressurreição de Cristo que trouxe a nossa redenção. É assim
que nos reconciliamos com Deus. Terceiro, a sua fé seria inútil. Em
outras palavras, se você crê que Jesus ressuscitou dos mortos,
quando de fato ele não ressuscitou, sua fé não tem valor, porque a
validação da fé depende, em parte, da veracidade do objeto da fé.
Essa é a razão por que a Bíblia nunca nos incentiva a crer em algo
que não é verdadeiro ou em algo que não está apto para ser
declarado verdadeiro. Por isso, na Bíblia a fé é fortalecida por
articularmos e defendermos a verdade. A Bíblia nunca diz: “Apenas
creia, creia, creia, creia, creia — não importa se é verdade ou não,
apenas creia. Contanto que você seja sincero em sua crença, isso é
bom”. Paulo vai além e diz que, se você crê em algo que não é
verdadeiro (como a ressurreição de Jesus, se ela não aconteceu), você
é a mais infeliz de todas as pessoas. Sua vida é uma piada. Você está
crendo em algo que é absurdo.
Se você não está convencido de que Cristo ressuscitou dos
mortos, eu serei a última pessoa a exortá-lo a esforçar-se para fingir
que crê nisso. Isso não é fé.
Nesse assunto, é importante que evitemos iludir a nós mesmos.
Se alguém dissesse em oposição: “Prefiro não ter fé nenhuma. Viverei
minha fé apenas com base em evidência comprovável”, a resposta
óbvia é que a fé é inevitável. Se você sustenta que qualquer
reivindicação de um conhecimento superior sobre Deus não pode ser
verdadeiro, isso é, em si mesmo, um objeto de fé, um objeto de crença
religiosa — ou seja, uma crença que molda sua estrutura de
referência a respeito de tudo que você afirma ser importante. Se você
insiste em que ninguém pode decidir que fé é verdadeira, você está
fazendo uma afirmação fundada em certo tipo de fé, uma percepção
da realidade em que você chegou a acreditar. Por que devemos crer em
você? Todos nós, sem exceção, fazemos um tipo ou outro de
reivindicações da verdade. Sem dúvida, é difícil avaliá-las. Mas não
temos outra alternativa, senão tentar.
Quando Paulo recomendou, em Romanos 3, a fé, o que ele
desejava de nossa parte era uma habilidade dada por Deus para
percebermos o que Deus fez ao pendurar Jesus na cruz, reconciliando-
nos consigo mesmo, colocando de lado a sua ira justa, demonstrando
seu amor e declarando-nos justos, embora não o sejamos, porque
agora a justiça de Cristo Jesus é reputada como nossa, e nosso
pecado é reputado como dele. E Paulo apoiou isso na graciosa
autorrevelação de Deus através dos enormes períodos de tempo,
através de toda a narrativa bíblica, culminando na impressionante
realidade de que o Deus que nos fez, o Deus que é nosso juiz,
derramou seu sangue, morreu por nós e ressuscitou.
Esse é o tipo de Jesus em que você pode crer. É o tipo de Deus em
quem você pode colocar sua fé.
ORAÇÃO CONCLUSIVA
Dilema infame: como pode a santidade
De vida resplendente e límpida tolerar
Fétida lama de rebelião e não abater
Em sua glória, comprometida ao máximo?
Dilema infame: como pode a verdade atestar
Que Deus é amor e não ser envergonhada por ódio,
Vontades escravizadas e morte amarga — a carga
De maldição merecida, o caos de rebeldes humanos?
A cruz! A cruz! O lugar de encontro sagrado
Onde, desconhecendo perda e comprometimento,
O amor e a pureza de Deus, em graça assoladora,
Solucionam o grande dilema! A cruz! A cruz!
Este santo, amável Deus cujo Filho querido morre
Por meio disso é justo — e aquele que justifica.(4)
Pai celestial, abre os nossos olhos para que vejamos a verdade do
que fizeste em Jesus e, vendo a verdade, creiamos. Por amor a Jesus,
Amém.
(1) Todd Wilken, “God Is Just: The Art of Self-Justification”, Modern Reformation 16/5
(Sept./Oct. 2007): 31.
(2) J. Budziszewski, “Escape from Nihilism”, re:generation Quarterly 4/1 (1998): 13-14.
(3) Quanto a uma exposição mais ampla de Romanos 3.21-26, ver meu livro Escândalo: a
Cruz e a Ressurreição de Jesus (São José dos Campos, SP: Fiel, 2011).
(4) D. A. Carson, Holy Sonnets of the Twentieth Century (Grand Rapids: Baker, 1994), 101.
12
O Deus
que Reúne e Transforma seu Povo
(1) Alister McGrath, The Twilight of Atheism: The Rise and Fall of Disbelief in the Modern
World (New York: Doubleday, 2004).
(2) Timothy Keller, The Reason for God: Belief in an Age of Skepticism (New York: Dutton,
2008), 57.
(3) Ver Thomas Sowell, Race and Culture: A World View (New York: Basic Books, 1994), 210-
14.
(4) Talvez porque foi extraída de um dos seus sermões, esta citação chegou até nós em
várias formas. Por exemplo, compare: Joseph Foulkes Winks, ed., The Christian Pioneer 10
(1856): 84; e Josiah Bull, The Life of John Newton (Edinburgh: Banner of Truth, 2007
[1868]), 289.
(5) Amy Carmichael, “No Scars”?, de Mountain Breezes: The Collected Poems of Amy
Carmichael, ©1999 Dohnavur Fellowship.
(6) National Review 60, no. 7 (April 21, 2008): 12.
(7) Matthew Parris, “As an Atheist, I Truly Believe Africa Needs God”, Times Online,
December 27, 2008,
http://timesonline.co.uk/tol/comment/columnists/matthew_parris/article5400568.ece.
13
O Deus
que É Bastante Irado
(1) O sermão já foi publicado muitas vezes em diferentes lugares. Uma versão está
disponível no livreto Sinners in the Hands of an Angry God (Phillipsburg, NJ: P&R
Publishing, 1992), 12.
(2) Ver, por exemplo, a proveitosa abordagem de Douglas A. Sweeney, Jonathan Edwards and
the Ministry of the Word (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009), 132-36.
14
O Deus
que Triunfa