Aula 3 A Natureza e o Ser de Deus - 2018

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Teontologia Básica

João Alves dos Santos

Aula 3: A Natureza e o Ser de Deus


Introdução

Vimos na aula anterior que é impossível à criatura compreender o criador. Portanto,


não temos a pretensão, nesta aula, de explicar a natureza de Deus. Ela está muito acima
da nossa capacidade de compreensão. Mas, por ter Deus se revelado, é possível
conhecer alguns aspectos dessa natureza, conforme a revelação dada. Este é o nosso
objetivo nesta aula, ao anteciparmos o estudo de algumas das qualidades que chamamos
de atributos divinos. Uma lista maior desses atributos, com uma tentativa de
classificação dos mesmos, será estudada a partir da lição 7, mas os que aqui
apresentamos servem ao propósito de introduzir o assunto do estudo de Deus.

1. Deus é um ser incomparável


Quando Deus se revela ao seu povo ele diz: “A quem me comparareis para que eu lhe
seja igual? E que coisa semelhante confrontareis comigo?” (Isa 46.5,cf. 40.18,25). A
Bíblia também não faz qualquer tentativa de definir o ser de Deus. Definir é traçar
limites, fazer comparações, etc., e isso não pode ser feito com Deus. Se todas as nações
são como um pingo que cai do balde, como um grão de pó na balança, como nada e até
menos do que nada, um vácuo, perante ele, conforme a descrição decrescente de Isaías
40.15,17, quem é o homem para tentar descrever a Deus?

Dada a sua natureza inigualável, qualquer comparação é proibida pelo próprio Deus,
porque será uma representação incorreta e ofensiva. Esta é a razão do 2º mandamento:
“Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima
nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Ex 20.4). Em
Romanos 1.22,23 Paulo fala da ignorância dos homens ao tentar imaginar Deus através
de seus raciocínios nulos: “Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos, e mudaram a
glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem
como de aves, quadrúpedes e répteis”.

Ao homem não é dado o direto de imaginar ou definir a natureza de Deus.E quando


tenta fazê-lo, o resultado é desastroso, como nos mostra o texto acima. Mas isso não
significa que não temos qualquer informação sobre quem ele é. Ele não é o “totalmente
outro”, para usar a expressão de Karl Barth, no sentido que não possa ser conhecido.
Alguns aspectos da sua natureza nos foram revelados e, através deles, podemos ter
conhecimento verdadeiro de Deus, embora limitado.

2. Deus é um ser espiritual

Uma das qualificações que a Bíblia dá à natureza de Deus é a de que ele “é espírito”
(Jo 4.24). Não nos é possível conhecer em profundidade o que é um espírito. É mais
fácil dizer o que ele não é. Em Lc 24.39 lemos que um espírito “não tem carne nem
ossos”. Isso quer dizer que Deus não tem corpo como os homens. A mesma ideia de
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incorporalidade está presente em Isaías 31.3: “Pois os egípcios são homens, e não Deus;
os seus cavalos carne, e não espírito”. Mas certamente isto não é tudo que está
implicado na qualificação de Deus como um ser espiritual. Os anjos também são seres
incorpóreos, mas nem por isso têm a mesma natureza de Deus. Eles sãos seres criados.
Deus é espírito não criado, eterno, infinito, no sentido metafísico mais puro que se pode
conceber. Ele é o “Pai dos espíritos” (Hb 12.9). A palavra “espírito”, tanto no Antigo
(ruah) como no Novo Testamento (pneuma) significa o ar em movimento; em
particular, o fôlego. Ela é usada também para denotar tanto o espírito do homem quanto
o Espírito de Deus. Faz referência, portanto, à própria substância, ao próprio ser, à sede
da autoconsciência, àquilo que realmente dá a identidade pessoal, onde se acham os
pensamentos, sentimentos e desejos (intelecto, emoção e vontade), o que faz do ser um
indivíduo. É por ser espiritual que se pode ser uma pessoa. A espiritualidade é a base da
pessoalidade. Quando a Bíblia diz que Deus é espírito está não só dizendo que ele não
tem corpo ou forma, que é imaterial e, por conseguinte, invisível e intangível, mas
também que é uma pessoa, como veremos mais adiante.

3. Deus é um ser simples

Uma outra discussão decorrente da espiritualidade de Deus é a da sua simplicidade.


Sendo espírito, Deus é um ser simples, isto é, não composto de partes e, portanto,
indivisível. O espírito humano (ou alma) também é simples, mas não imutável. Pode
desenvolver-se em conhecimento, santidade e senso de justiça. Isso significa que
podemos fazer uma distinção entre substância e acidentes, no caso do espírito humano.
Essas mudanças representam os acidentes na substância espiritual. No caso de Deus,
tais acidentes não existem. O ser de Deus é imutável, porque é perfeito. Nada se lhe
pode acrescentar ou tirar. O pensamento clássico, através dos anos, tem sido o de
identificar a essência com a existência, no ser de Deus. A crença na simplicidade de
Deus tem sido questionada nas últimas décadas por estudiosos, mesmo de linha
reformada [1]. Mas até que a questão seja mais esclarecida, se um dia puder ser, têm-se
aceito o princípio de que a espiritualidade de Deus implica a sua simplicidade.

Essa questão pode ser apresentada da seguinte forma: devemos conceber a essência de
Deus ou o seu ser como existindo à parte dos seus atributos ou devemos considerar os
atributos como sendo a própria descrição do seu ser? Pelo que nos parece, a Bíblia não
faz distinção entre o ser de Deus e os seus atributos. Expressões que usam atributos
divinos para revelar o seu ser, tais como “Deus é espírito” (metafísico), “Deus é luz”
(ético), “Deus é amor” (ético), “Deus é um fogo consumidor” (ético) parecem apontar
nessa direção. Equivalem a dizer que propriedade (atributos) e essência são a mesma
coisa para Deus.

Crer na simplicidade de Deus, porém, não é negar que haja distinções entre os seus
atributos. Essas distinções podem ser vistas como aspectos da sua infinita perfeição e
completude. Ele é perfeito (completo) como espírito, como luz, como amor, como fogo
consumidor, etc, etc. Seus inúmeros atributos expressam e revelam sua essência
absoluta e perfeita. Sendo a essência divina infinitamente rica, ela não pode ser
considerada sob um aspecto apenas. A soma desses aspectos (atributos) constitui a
representação dessa essência. Por causa de nossa finitude, tal essência nos é revelada
através de diferentes nomes e atributos divinos. Nenhum desses nomes ou atributos é
capaz de, por si só, descrever essa essência. Por isso, precisamos de uma multiplicidade
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deles para que tenhamos uma visão “do todo”. Cada um desses nomes ou atributos dá-
nos uma porção do conhecimento do que Deus é em sua infinita perfeição.

4. Deus é um ser auto-existente

Por auto-existência de Deus queremos dizer que ele não foi criado e não depende de
ninguém para existir. Ele é o principium essendi do qual se deriva toda forma de
existência (principium existendi). É a causa primária, a fonte de toda espécie de vida. É
a própria vida. João afirma isso falando da divindade de Jesus: “No princípio era o
Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com
Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito
se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens “ (Jo 1.1-4). Deus é o único que
tem vida em si mesmo porque é a vida: “Porque assim como o Pai tem vida em si
mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo” (Jo 5.26); “Eu sou o
caminho, e a verdade, e a vida” (Jo. 14.6). Por isso, é também independente. Essa
qualidade de auto-existência ou independência é também chamada de aseidade, ou seja,
a capacidade de existir por si só. A própria ideia de Deus exige essa noção de auto-
existência ou independência. Um deus criado ou dependente não pode ser Deus. Por
isso, também, não pode haver mais de um Deus. Admiti-lo, seria negar a própria
existência de Deus. Dois ou mais seres autônomos e auto-existentes são
necessariamente excludentes entre si. Quando a Bíblia afirma que há um só Deus está,
ipso facto, afirmando a sua auto-existência: “Porque, ainda que há também alguns que
se chamem deuses, quer no céu ou sobre a terra, como há muitos deuses e muitos
senhores, todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para
quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós
também, por ele” (1Co 8.5-6). Por essa qualidade queremos dizer que Deus é absoluto,
suficiente a si mesmo e em nada dependente de qualquer coisa fora de si mesmo. Paulo
se refere a ele como “o Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor
do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas; nem é servido
por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a
todos dá vida, respiração e tudo mais” (At 17.25). Esta é uma afirmação da sua
independência e aseidade.

5. Deus é um ser pessoal

Sendo espírito, Deus é também uma pessoa, pois um espírito é um ser racional e
moral. Ser pessoa significa ser capaz de autodeterminação. Parece estranho, e de fato é,
a criatura dizendo que o seu criador é pessoa. O natural é encontrarmos justamente o
contrário: Deus dizendo que nós somos pessoas, criados à sua imagem e semelhança,
como lemos em Gênesis 1.26-27. Não é o nosso conceito de pessoa que é atribuído a
Deus. É o conceito de Deus como pessoa que é atribuído a nós. Nós é que somos
criados à sua imagem e semelhança e não ele à nossa. Portanto, se nós somos seres
pessoais, dotados de racionalidade, é porque Deus é um ser pessoal, dotado de
racionalidade.

Com isto não estamos querendo dizer que o nosso ser é igual ao de Deus. O conceito
de “imagem e semelhança” não implica comunhão dos mesmos atributos ou da mesma
natureza. O ser de Deus é não só quantitativa, mas qualitativamente distinto de qualquer
outra forma de ser. Ele é auto-contido, absoluto, independente, ao passo que toda e
qualquer outra forma de ser é derivada e dependente. Mas há semelhança entre o
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homem e Deus, criatura e criador, neste aspecto da pessoalidade. E foi devido a essa
semelhança que a encarnação do Filho se tornou possível. Seria grosseira suposição
imaginar que Deus pudesse se encarnar em uma espécie de ser que não fosse pessoal e
racional, justamente porque ele é pessoal e racional. Também é por esta razão que Deus
pode relacionar-se com o homem e o homem com Deus. A pessoalidade é o atributo
mais exaltado que o homem possui, aquele que o distingue de todo o restante da criação,
exatamente porque espelha um dos aspectos da natureza de Deus. É por isso que no
Salmo 8.2 se diz que o homem foi feito um pouco menor do que Deus, (o termo ali
usado é Elohim e “Deus” é, ao nosso ver, a melhor tradução, à luz do contexto do
salmo) [2]. Acredito que se pode dizer que o homem está, na escala da criação, muito
mais perto de Deus do que qualquer outro ser criado, com exceção, talvez dos anjos.
Quem quiser considerar-se parente próximo do macaco que o faça. Nossa convicção é
que estamos muito mais próximos de Deus, na escala dos seres, do que de qualquer
outra espécie. E isto porque Deus, sendo pessoal, criou o homem como pessoa também
e com ele se relacionou. Deus falou com Adão, com Noé, com Abraão e com Moisés e
entrou em aliança com eles. A relação “Eu” “Tu” permeia toda a Bíblia no trato de Deus
com os homens. E esta relação só é possível entre pessoas.

Muitos procuram negar a pessoalidade de Deus e se referem a ele apenas como uma
força, um princípio, uma energia, ou uma parte do próprio mundo. Os panteístas
confundem Deus com tudo que existe e os panenteístas veem todos os seres em Deus,
numa relação de mútua dependência. Para o Panenteísmo [3], o mundo todo faz parte do
ser de Deus e com ele interage. Para ambos os sistemas, Deus não é um ser pessoal
autônomo e independente.

A pessoalidade de Deus é revelada nas Escrituras através dos nomes e atributos que ele
tem, assim como através do modo como age e se relaciona com as demais pessoas da
Trindade, com os anjos e com os homens. Própria desse atributo da pessoalidade (ou
personalidade) é também a autoconsciência. Quem já não viu uma ave bicando no
espelho a sua própria imagem? É um bom exemplo da falta de autoconsciência. A ave
tem consciência de que existe uma imagem refletida no espelho, e que a imagem é de
ave da mesma espécie, mas não sabe que é o seu reflexo. Por mais que os seus
movimentos sejam idênticos aos que vê refletidos, não tem consciência da sua própria
identidade, nem da sua própria existência. Não pensa, nem sabe que existe. Só pessoas
têm autoconsciência Moisés Deus se revelou como o “Eu Sou o que Sou” e “Eu Sou”
(Ex 3.14), expressões que revelam o sentido mais elevado de auto-existência,
autoconhecimento e autoconsciência. Só Deus pode dizer “Eu Sou”, e não só “Eu
existo”, em sua autoconsciência, porque só ele é independente e não criado. Todas as
demais pessoas podem ter consciência da sua existência (autoconsciência de que existe),
mas sua existência é derivada da fonte primária de todo o ser. Só Deus é, tudo o mais
apenas existe e subsiste nele, conforme o ensino de Paulo em Colossenses 1.16-17:
“pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as
invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi
criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste”.

O fato de Deus ter vontade (propósito), e executá-la, também mostra a sua


pessoalidade. Só seres com personalidade têm propósitos e autodeterminação. Em Isaías
46.10 lemos: “o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade”. É a
manifestação não só da autodeterminação, mas também da independência de Deus. Os
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atributos divinos, tais como sabedoria, santidade, justiça, bondade, etc., estão
diretamente ligados à sua pessoalidade.

Estes são alguns dos aspectos da natureza de Deus que nos ajudam a penetrar no
estudo do seu ser. Outros serão vistos, ainda, à medida que avançarmos neste estudo.

Aplicação prática:

Quando Deus apareceu a Moises, na sarça ardente, disse-lhe: Não te chegues para cá;
tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa (Ex 3.5). Ao nos
aproximarmos de Deus, mesmo que seja para um estudo acadêmico, não devemos nos
esquecer de que estamos tratando da pessoa na presença da qual os montes fumegam e
tremem (Ex 19.18; Sl 104.32) e os homens caem sem sentido, rosto em terra (Dn 8.18;
10.9; Ap 1.17). É preciso humildade para reconhecer a nossa limitação em não entender
completamente a Deus e fé para aceitarmos a revelação que ele nos dá. Não devemos
pretender ir além do que foi revelado, nem ficar aquém do que Deus quer que
conheçamos. É glorioso saber que, como criaturas, podemos conhecer o Criador e nele
nos deleitarmos. Que outro propósito maior haveria em Deus nos criar como seres
pensantes e racionais senão o de nos relacionarmos com ele em conhecimento e amor,
para a sua glória?

Leitura obrigatória:

A solidão de Deus, por Arthur Pink.

A divindade de Deus, por Arthur Pink.

Leitura opcional:

Como Deus é?, por John Blanchard.

Os Atributos ou Perfeições de Deus, por Bruce Milne.

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