TrabalhoFinal - ItaloCalvinoFabulas - AnaCarolinaNCavalheiro
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São Paulo
2022
A contação de histórias é um elemento cultural de grande abrangência na trajetória
da humanidade, e que foi e é responsável por eternizar as visões de mundo e traços
característicos de cada povo, revelando percepções diversas acerca da realidade.
Enquanto a historiografia se ocupa majoritariamente dos fatos concretos, o mito é
capaz de explicitar a subjetividade da mente humana, e transmitir o espírito de uma
época, sendo essencial para entender o mundo e o homem como elementos
complexos, multifacetados, que guardam em si toda a sorte de possibilidades, e que
justamente por estarem em constante metamorfose, jamais poderão ser definidos
por um único olhar. Desta forma, encara-se o mito como um grande auxiliar na
construção da capacidade crítica e imaginativa do homem, que através do contato
com mundos diversos apresentados pela literatura, pelo cinema e pela arte como
um todo, compreende a multiplicidade de perspectivas de se observar o universo a
sua volta. Como afirma Rocha, o mito
Pinheiro (2012) também aponta a contribuição das obras dos Irmãos Grimm para a
valorização da cultura tradicional de um povo e pela adoção de uma perspectiva
analítica em relação aos contos populares, que passaram a ser vistos como um rico
retrato do passado de uma sociedade:
Mas quais são os traços que poderiam delimitar o conto popular? Segundo Pinheiro
(2012, p.16), o conto popular se define como “uma narrativa breve cuja
sobrevivência se deve fundamentalmente à transmissão e circulação oral, sendo por
isso, muitas vezes denominada “conto de tradição oral”, e que “não tendo uma
autoria determinada, constitui na verdade uma criação coletiva, visto que cada
narrador vai introduzindo na narrativa algumas marcas específicas (pessoais ou da
comunidade)” (PINHEIRO, 2012, p.16). Deste modo, uma mesma fábula pode ter a
sua origem atribuída a diversos países, uma vez que estão sujeitas a “absorver
alguma coisa do lugar onde é narrada” (CALVINO, 1992, p.18), muitas vezes
compartilhando dos mesmos arquétipos e construções narrativas, mas pintados pelo
narrador com traços regionais, tais como paisagens, costumes e moralidades, como
afirma Calvino (1992, p.18).
Segundo Ferraz e Almeida Filho (2013, p.41), o gosto de Calvino pela fábula foi
observado pelo poeta Cesare Pavese, a quem o autor costumava confiar a primeira
leitura de seus escritos. Os críticos citam o comentário de Pavese acerca de Il
sentiero dei nidi di ragno: “Diremos então que a astúcia de Calvino, esquilo da pena,
foi esta, de se empoleirar sobre as plantas, mais por brincadeira do que por medo, e
observar a vida partigiana como uma fábula de bosque (...)” ( SIGRIST, 2007, p.155,
apud FERRAZ; ALMEIDA FILHO, 2013, p.45).
Sabe-se que uma grande extensão da obra calviniana é intensamente marcada pelo
tom fabular, e esse gosto é ainda mais explorado quando o autor é convidado para
participar de um projeto ligado às fábulas pela editora Einaudi. Diante da extensa
exploração do conto maravilhoso na Literatura Europeia, especialmente na França e
Alemanha, levantava-se a questão sobre a existência de uma obra que abrangesse
uma tradição semelhante também na Itália. Assim, surge a ideia da Einaudi de
publicar um volume que reunisse os contos populares italianos, para que
ocupassem um lugar ao lado dos grandes livros de contos franceses e alemães, já
tão difundidos ao redor do mundo. Para desenvolver este projeto, confiam em Italo
Calvino, que durante dois anos dedicou-se à pesquisa e seleção dos contos da
tradição oral de seu país, lidando com as narrativas em diferentes dialetos, e com
as múltiplas variações existentes de um mesmo conto, refinando-os e adicionando
os seus traços próprios em cada um. Assim, é publicado em 1956 o volume Fiabe
Italiane, que reúne diversas “lendas religiosas, novelas, fábulas de animais,
historietas e anedotas” (CALVINO, 1992, p.17)pro venientes das mais diversas
regiões da Itália, tais como “Joãozinho-Sem-Medo”, “A menina vendida com as
peras”, “O príncipe-canário” e “As três casinhas”, sendo alguns contos muito
semelhantes a histórias mundialmente imersas no imaginário comum, como Os Três
Porquinhos e Rapunzel, que exploram tópicas e arquétipos semelhantes aos
presentes nessas narrativas, mas com elementos próprios que constituem uma
fisionomia única. Esse processo de busca, seleção e síntese figurou um grande
desafio para o autor, que indagava-se acerca da melhor forma de recontar através
da escrita a pluralidade expressa pela longa tradição oral:
O apreço de Calvino pelo sincretismo e pelo jogo na literatura, que buscava explorar
diversas possibilidades de conceber a narrativa, nos trazem um indício do porquê de
seu interesse na fábula como modo de expressão. De acordo com Klein (2013, p.7),
Italo era um “espírito inquieto”, que se recusava a percorrer caminhos já
consolidados, e que procurava ‘tecer junto’ a diversidade do mundo” (KLEIN, 2013,
p.6). E não é justamente essa pluralidade de ideias que a fábula expressa,
questionando a realidade e proporcionando diversas interpretações do mundo?
Roberta Ferroni, em seu artigo acerca do uso dos racconti popolari na escola
primária, defende o papel basilar da fábula em introduzir às crianças a perspectiva
de mundos diversos:
Assim como a criança precisa passar pela fase de conscientização das outras
realidades que existem além da sua própria, ao se tornarem adultas apenas dão
continuidade a esse processo, o qual se estende por toda a vida, e que parece
nunca ser completo, já que tendemos a permanecermos imersos e estáticos em
nossas próprias visões de mundo. É justamente contra essa tendência que Italo
Calvino parece lutar através do seu experimentalismo, sempre defendendo o papel
da literatura como meio de se opôr a realidade e veicular a diversidade. Assim, em
seu trabalho de comparação e seleção para a composição de Fiabe Italiane, o autor
“tece junto” diferentes culturas e perspectivas, tendo como produto final um
verdadeiro mosaico da herança da tradição oral, constituindo uma obra que cumpre
com a missão que ele mesmo atribui ao gênero fábula, aquele de apresentar “uma
explicação da vida, pois para ele, elas são o catálogo do destino que pode caber em
um homem e a uma mulher e a infinita possibilidade de metamorfose que existe.”
(FERRAZ; ALMEIDA FILHO, 2013, p.43).
Assim, pode-se dizer que o trabalho de Italo Calvino com as fábulas foi crucial não
só para o resgate da valorização da tradição oral, mas para o desenvolvimento da
sua reflexão acerca do papel da literatura, que deveria revelar “a complexidade do
real, propondo respostas conscientes e ativas para os problemas apresentados pela
vida” (KLEIN, 2013 p.15). É claro que nem sempre essas ‘respostas conscientes’
são facilmente encontradas. A literatura proporciona uma grande variedade de
respostas para uma mesma questão, e na maioria das vezes, apenas nos traz mais
perguntas, e são essas perguntas que nos conduzem ao tão caro exercício
calviniano do deslocamento do olhar, essencial para a conscientização acerca dos
múltiplos modos de observar e experimentar a vida. O contato com o maravilhoso se
torna, desta forma, um caminho para sensibilizar o olhar sobre a complexidade da
vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Italo. Il sentiero dei nidi di ragno. 1.ed. Milão: Oscar Mondadori. 1993.
CALVINO, Italo. Fábulas italianas. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
KLEIN, Adriana Iozzi. Breve ensaio sobre o ensaio de Italo Calvino. In: Adriana
Iozzi Klein; Maria Elisa Rodrigues Moreira. (Org.). Escrever também é outra coisa:
ensaios sobre Italo Calvino. 1.ed. São Paulo: Nova Alexandria, 2013, v. , p. 13-27.
PINHEIRO, Nárgyla Maria Lourenço Pimenta. Como você está diferente, vovó!
Aspectos sócio-históricos dos contos populares. Tese (mestrado em Letras) -
Faculdade de FIlosofia, Letras e CIências Humanas, Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2012.
ROCHA, Everardo. O que é Mito. 1.ed. Editora Brasiliense: São Paulo. 1985.