Pascal e Spinoza Os Conflitos Do Reconhecimento
Pascal e Spinoza Os Conflitos Do Reconhecimento
Pascal e Spinoza Os Conflitos Do Reconhecimento
1 O número dos fragmentos dos Pensamentos será citado após a página segundo a
numeração Brunschvicg.
terra [são] insuficientes sem o seu consentimento!” (pascal, 1973, p. 63, Br. 82/La. 44).
É preciso notar, porém, que esses afetos não são meros “eventos
privados”: simultaneamente ao encadeamento de afecções desdobra-se
um encadeamento de operações corporais, isto é, as afecções — embora
estejamos aqui no terreno dos afetos passivos — envolvem certa ação
do corpo, na medida em que a) ao imaginar alguma coisa, nós a consi-
deramos como presente; b) o esforço da mente é, por natureza, igual e
simultâneo ao esforço do corpo. Se é assim, segue-se que “esforçamo-
nos ao máximo para fazer com que isso [aquilo que imaginamos levar à
alegria] exista, isto é (equivalência que se segue do esc. da prop. 9), fazer
com que isso exista é o nosso apetite e a nossa inclinação” (spinoza,
4 Mas Spinoza acrescenta: “Se esse não for o caso, costuma-se chamá-lo de
humanidade”. Como tentaremos explorar na sequência dessa análise e, sobretudo, na
conclusão do trabalho, a imitação dos afetos é ao mesmo tempo o que aproxima
e separa Spinoza de Pascal: se, por um lado, ela será princípio de diversos tipos de
conflito na vida em comum, resta que, por outro, ela é ao mesmo tempo princípio de
união entre os homens.
5 Cabe aqui uma precisão: ainda que sejam afetos muito próximos, glória e satisfação
consigo mesmo, assim como vergonha e arrependimento não coincidem exatamente.
A satisfação consigo mesmo é a alegria proporcionada pela contemplação de si mesmo
e de sua potência de agir, ou seja, uma alegria acompanhada da ideia de uma causa
interior — simetricamente, o arrependimento é a tristeza acompanhada da ideia de
uma causa interior. Além disso, a força desses afetos vem do fato de que os homens se
julgam livres, de modo que o homem se satisfaz com ou se arrepende de uma ação
que ele acredita ter praticado por uma livre decisão. Já a glória e a vergonha, embora
se assemelhem aos dois afetos anteriores, possuem uma especificidade, na medida em
que introduzem um outro elemento que é o que imaginamos ser o julgamento de
outrem: eu me glorifico quando imagino que um ato meu é louvado pelos outros e me
envergonho quando imagino que meu ato é por eles vituperado.
Ora, visto que nós nos esforçamos sempre por realizar aquilo
que imaginamos levar à alegria e por destruir aquilo que imaginamos
levar à tristeza, “segue-se que cada um se esforça, tanto quanto pode,
para que todos amem o que ele próprio ama e odeiem também o que
ele próprio odeia” (spinoza, 2011, p. 119, iii, 31 cor.). Esse esforço não é
outra coisa que a ambição: com efeito, o esforço por agradar aos outros
6 Spinoza remete aqui à proposição 15: o ódio que teremos do outro se deve, pois,
a uma causalidade acidental, na medida em que associamos sua imagem ao afeto de
tristeza que a coisa amada nos causa.
7 Assim como na proposição 31, a rede afetiva se torna mais complexa na medida em
que entram em cena relações prévias: lá, o amor ou ódio por uma coisa; aqui, o amor
ou ódio por um terceiro.
Assim, vemos que o conflito assume uma nova forma. Se, ini-
cialmente, a relação de dominação era engendrada pelo amor recíproco
e pela frustração do desejo de retribuição do amor, agora ela se funda
no medo e na vingança gerados pela relação de ódio recíproco (cf. la-
zzeri, 1998, p. 95). No entanto, não necessariamente deve ser assim. A
proposição 41 exibe o caso inverso da proposição 40, isto é, que alguém
se imagine amado por um outro sem ter lhe dado motivo para isso, o
que gerará um amor recíproco. Todavia, mantendo nosso caso particular,
reencontraremos aquela flutuação do ânimo, mas agora de outra forma:
se antes ela surgia conjuntamente ao ódio pela pessoa amada, agora ela
aparecerá na medida em que nos imaginamos amados por quem odia-
mos, visto que, pela imitação, tenderíamos a amá-lo de volta (cf. iii,
41 cor.). Assim, se o amor prevalecer, o amor recíproco produzirá uma
situação de gratidão, ou seja, “o esforço por fazer o bem àquele que nos
ama e que... se esforça por nos fazer o bem” (spinoza, 2011, p. 126, iii,
41 dem.). Mas a gratidão parece pressupor uma ausência de motivos,
isto é, somos gratos e retribuímos um benefício quando somos amados
9 Cf. lazzeri, 1998, pp. 97-8: “Assim, parece que as relações inter-humanas se
organizam no modo da sujeição ou, mais precisamente, que este, sob a forma da
ambição de glória, lhes é imanente em todos os seus aspectos (…). Mas, se as alternâncias
entre vingança e comiseração afetam todas essas relações, disso decorre que as relações
sociais jamais são rompidas entre os homens, pois a guerra e a troca se alternam”.
10 Indiquemos, de passagem, que a singularidade não esgota essa proposição, pois ela
abrirá caminho para uma alegria que não está relacionada à imitação dos afetos, mas à
contemplação de si em sua essência ativa, o que depende de um conhecimento de si,
de uma ideia adequada de si — o que nos leva aos afetos ativos. Cf. iii, 58.
referências bibliográficas
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lazzeri, c. (1993). Force et justice dans la politique de Pascal. Paris: PUF.
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