Abuso Sexual Infantil em Laudos Psicolog
Abuso Sexual Infantil em Laudos Psicolog
Abuso Sexual Infantil em Laudos Psicolog
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312017000300011
580 O filósofo Ian Hacking (1992, 1999, 2000, 2013) aponta o fenômeno amplo
e explosivo que lançou, nos Estados Unidos e em outros países centrais, uma
| Denise Cabral Carlos de Oliveira, Jane Araujo Russo |
sexualidade
Vitimização
As categorias de “vítima” e “trauma”, com suas origens e resultantes na dinâmica
da medicalização através do “tipo” “transtorno de estresse pós-traumático”
(TEPT), são importantes para a visão determinista da psicologia do abuso sexual.
Alguns autores têm formulado o advento da vítima como “figura contemporânea
reveladora de nossa época”, e até mesmo como “herói contemporâneo”
(TRUCHON, 2007). O reconhecimento e a reparação, resultantes de ativismos
de vários segmentos que representam opções políticas e morais, levam a uma
concorrência entre as vítimas no plano jurídico, mas também no plano das
ações estatais (cf. SARTI,2009; 2011; SARTI; BARBOSA; SUAREZ, 2006).
Essa delimitação faz a violência sexual poder aparecer, na cultura ocidental
individualizante, como a forma mais brutal e invasiva da violência, definindo
vulnerabilidades e vítimas próprias, tornadas quase inerentes à noção – mulheres
e crianças – por sua própria identidade e não pelos contextos e circunstâncias.
A moldagem e expansão do tipo abuso sexual geraram, na psicologia e no
direito, categorias contrapostas, como a de falsas memórias, implantação de
memórias e falsas alegações ou falsas acusações de abuso sexual (AMENDOLA,
2009; 2013). Lutas judiciais de homens acusados, de um lado, questões teóricas
Notas
1
Utilizamos aqui o masculino, na referência à classe profissional. Em outros momentos, referimo-
-nos a “psicólogas”, por ser o gênero feminino fortemente preponderante na profissão (para análises
desse fenômeno, ver Castro e Yamamoto, 1998, e Conselho Federal de Psicologia (2013)) e na grande
maioria da amostra de laudos (OLIVEIRA, 2015).
2
Trata-se da pesquisa de mestrado de uma das autoras (OLIVEIRA, 2015). A pesquisa em processos
do TJERJ requereu concessão de autorização pela presidência do Tribunal e pelos juízes titulares
responsáveis por cada um dos 24 processos pesquisados, assim como contou com a colaboração de
psicólogas do TJERJ, a quem mais uma vez agradecemos.
3
Esses autores tecem hipóteses sobre as barreiras anteriores que impediam os médicos de reconhecer
os danos como abuso infantil, e porque e como a radiologia pôde ter esse papel (CONRAD; SCH-
NEIDER, 1992, p. 163ss.).
4
Na New York Radical Feminist Conference (17/4/1971). O “feminismo radical” é uma perspectiva
surgida e institucionalizada na segunda onda feminista dos anos 1960 (nos EUA, em seguida Ingla-
terra e Austrália), focada, inicialmente, na hipótese do patriarcado como sistema primário, trans-
-histórico de poder, que organiza a sociedade num complexo de relações baseadas na supremacia
masculina opressora das mulheres. A sexualidade masculina é vista como inerentemente opressora
das mulheres, porque visa à dominação, sendo o estupro o ponto máximo de uma série que embasa
essa opressão. Mulheres e crianças são, assim, vítimas da dominação masculina, em todos os aspectos.
5
Florence Rush foi uma “feminista radical”, ativista e ensaísta nas décadas de 1970 e 1980 no tema do
abuso sexual infantil, assim como nos da pornografia e erotização infantis e do estupro. Seu discurso
mencionado é um paper centrado na crítica a Freud pelo abandono da teoria da sedução infantil, o
qual, segundo ela, retirou as crianças do papel de vítimas reais da agressão sexual masculina.
6
Hacking (1999) localiza a conexão pública difundida entre abuso infantil e incesto em maio de
1977, quando a reportagem central da revista norte-americana de circulação nacional Ms. foi Incesto:
o Abuso Infantil Começa em Casa.
7
Embora a palavra “abuso”, em português, tenha também o significado de “uso indevido ou exces-
sivo”, sua utilização como conceito científico vem, sem dúvida, de uma tradução literal, direta e sem
mediação do “abuse” da categoria importada. Felipe (2006) põe em questão a expressão “abuso sexual
infantil”, por julgar que ela implica a admissão de um “uso sexual” aceitável.
8
A eleição do risco mais recente em relação à pedofilia na internet, com alertas propagados e analisa-
dos pela mídia, é a da publicação por mães e pais de fotos de seus filhos nas redes sociais. Um episódio
extremo é exemplar do embate entre a retórica (neste caso agressiva) do medo e do pânico moral e sua
crítica, calcada na valoração do bom senso e das liberdades individuais: em 2014, o fotógrafo norte-