COUTO, Mia - A Carta
COUTO, Mia - A Carta
COUTO, Mia - A Carta
A carta
1
tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma
nova carta surgia da velha missiva. E o Ezequiel, em minha
imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com
méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo,
houvessem em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela
embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de
uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos loucurando. Até,
um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a
existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos
bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei desconhecia-se o paradeiro
dela. Ficasse eu atribuído de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei.
Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em
minha casa. Assustei adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem
conhece os poderes de uma mãe em exercício de saudade? Decidi ir
ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda
cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho.
- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.
Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar
aquele luto? Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma
refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.
- E agora, diz porque vieste nesta minha casa?
Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o
silêncio.
- Me vens ler o meu filho?
Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar.
Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma
tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade.
Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais
bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em
qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria
sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão
do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro
relance, que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao
meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser
mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima
pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta
que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta
que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera.