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O Estranho

Mundo da
Economia
Para uma Crítica aos Manuais de
Introdução à Economia

Francisco J. S. Teixeira
Apresentação
Giovanni Alves
Prefácio
Aquiles Melo
Posfácio
Rodrigo de Almeida

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O Estranho Mundo da Economia

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Francisco José Soares Teixeira

O Estranho Mundo da Economia


Para Uma Crítica Aos Manuais de Economia

Rede de Estudos do Trabalho

Projeto editorial

2022

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Projeto editorial Praxis é a editora da RET
(Rede de Estudos do Trabalho)
(www.estudosdotrabalho.net)
Copyright© Projeto editorial Praxis, 2022
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Dr. André Luiz Vizzaccaro-Amaral (UEL)
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Dr. Francsico Luiz Corsi (UNESP)
Dr. Giovanni Alves (UNESP)
Dr. José Meneleu Neto (UECE)
Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP)
Dr. Renan Araújo (UNESPAR)
Capa: Giovanni Alves

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Sumário

Apresentação. de Giovanni Alves...............................9


Prefácio, por Aquiles Melo.........................................17

Introdução: Convite ao pensar..............................27


Parte I
O Estranho Mundo dos Homens
1. Um visitante de outro mundo..................................51
2. Arqueologia de uma memória esquecida..................84
Parte II
Formação e Desenvolvimento da Teoria Econômica
Introdução: Economia, um saber desinteressado?.......109
1. Teoria do Valor-Trabalho........................................115
2. Teoria do Valor Utilidade......................................133
Parte III
Spock: de volta para o futuro....................................201

Posfácio, por Rodrigo Cavalcante de Almeida........207

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Apresentação
Giovanni Alves

O
professor Francisco José Soares Teixeira é um exímio
mestre do ensino da Economia Política clássica (e
neoclássica). É autor de vasta obra de esclarecimento
da crítica da Economia Política, esforço mental que faz há
mais de trinta anos. Num país de pouca reflexão crítica
como o Brasil, isso é memorável. Teixeira é quase uma
“espécie em extinção” no cenário intelectual da Economia
Política brasileira, remando contra a corrente do pensa-
mento neoclássico, liberal-keynesiano e pós-modernista.
É um pensador obscecado com o rigor na explicação de
autores clássicos (e neoclássicos) da Economia Política e
da teoria social visando nos habilitar com o ferramental
critico-cognitivo necessário para entendermos o estranho
mundo do capital. Teixeira trata do básico fundamental
para passos mais largos de enfrentamento - no plano do
pensamento critico - da barbárie social que nos atordoa.
O professor Teixeira dedica-se há décadas à elaboração
teórico-critica. É um homem da teoria no sentido digno da
palavra. A reflexão teórico-critica (e metodológica) é um
esforço intelectual-mental desprezado pela Universidade
brasileira hoje completamente imersa no neopragmatismo
academicista de “especialistas sem espírito, sensualistas sem

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Apresentação • 9

coração, nulidades que imaginam haver atingido um nível de


civilização nunca dantes alcançado” (como nos disse Max
Weber). A Universidade brasileira hoje, depois de trinta
anos de capitalismo neoliberal, é um exemplo do triunfo
do capital manipulatório no Brasil, sucumbida ao neopo-
sitivismo empiricista e identitarismo pós-modernista, tão
irrelevantes quanto incapazes para nos dar uma visão critica
do estranho mundo do capital. No Brasil, o intelectual público
(como Darcy Ribeiro, Milton Santos, Paulo Freire, Francisco
de Oliveira, Celso Furtado, Florestan Fernandes, dentre
outros) é espécie extinta. Eles se extinguiram na medida em
que afundou-se o Projeto Nacional e triunfou o neolibera-
lismo. O Brasil neoliberal é um País Triste. Falta-nos uma
esquerda social e política e falta-nos uma intelectualidade
capaz de se comunicar com a sociedade civil. A tragédia
da Universidade pública é apenas um detalhe da catastrófe
da civilização brasileira. Os professores universitários em
sua maioria, tornaram-se meros especialistas e “burocra-
tas do espírito”, funcionários públicos em última instância
incapazes do pensamento totalizante e totalizador na luta
ideológico-politica contra o voraz movimento de manipu-
lação do poder da ideologia capitalista.
Francisco Teixeira nos brinda com mais um livro expli-
cando a crítica da Economia Política de modo claro e
didático e – o mais importante - rigoroso. A economia polí-
tica clássica e neoclássica é explicada de forma fascinante.
Este é o jeito brilhante da crítica de Teixeira aos Manuais
da Economia vulgar neoclássica que empestam o ensino da
“ciência triste” nas universidades públicas e privadas. Para
a tarefa de explicar a crítica da Economia Política, Teixeira
criou um visitante do espaço sideral. Pobre Planeta Terra
imersa na escuridão do sistema do capital. O mundo dos
homens é deveras estranho. Teixeira ensaia uma narrativa

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leve e gozadora para nos fazer entender o admirável (e mise-


rável) mundo estranho dos homens.
A critica da Economia Política é o ponto de partida –
necessário, embora insuficiente. Primeiro, porque categorias
de crítica da Economia Política são categorias materialis-
tas histórico-dialéticas que se transfiguraram - pelo menos
nos últimos 150 anos de desenvolvimento do capital social
total. É necessário ir além de Marx - mas para isso preci-
samos entende-lo (e isso Teixeira nos ensina). Segundo, a
problemática de crítica da Economia Política ampliou-se
para a crítica do Capital enquanto sistema estranhado de
metabolismo social. Enfim, a crise do capitalismo global
no século XXI é uma crise de civilização. Nas linhas abaixo
– para introduzir a reflexão de Francisco Teixeira – arris-
co-me a fazer uma provocação, delineando teoricamente,
o cenário histórico do século XXI que ameaça a todos nós,
pobres habitantes do planeta Terra – à espera do Sr. Spock.
A era da turbulência global é a era da crise estrutural do
capital. Desta singela constatação de natureza histórico-
-critica derivam consequencias radicais no plano da teoria
marxista - para além das categorias expostas originalmente
pela crítica marxiana da economia política. Este “para além”
é antes de mais nada, radicalmente dialético. A crise estru-
tural do capital fez com que o “sistema do lucro” operasse
um duplo movimento: por um lado, temos a exacerbação
da superexploração da força de trabalho nos países capita-
listas dependentes e países capitalistas centrais. E, por outro
lado, temos o processo de “produção destrutiva” do trabalho
vivo num patamar inédito da história humana. De modo
insaciável, o movimento do capital promove hoje - num
patamar global inédito na história humana - a destruição
física e mental da totalidade viva do trabalho ativa e inativa,

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Apresentação • 11

precária, envelhecida, redundante e excessiva para o sistema


senilizado do capital.
A superexploração da força de trabalho e a destruição do
trabalho vivo são processos da nova ofensiva histórica do
capital no século XXI. O primeiro, desvalorizando a força
de trabalho enquanto mercadoria; e o segundo, destruindo
física e mentalmente, o trabalho vivo enquanto elemento
compositivo da natureza, tornado obsoleto e descartável
pelo capital. Da precarização à redundância; e da redun-
dância à extinção – eis o movimento dúplice da “pulsão de
morte” do capital, que visa criar as condições históricas para
a reprodução histórica irracional do capitalismo enquanto
sistema de dominação total da humanidade.
Entramos na nova era da barbárie social que expõe, com
vigor insano e inédito, a “fratura metabólica” entre capital e
Natureza (interna e externa aos humanos). Paradoxalmente,
isto ocorre num patamar elevado do processo civilizatório
ou de “redução das barreiras naturais” (Lukács). As forças
produtivas do trabalho social foram intervertidas em forças
destrutivas da vida social que se voltam hoje contra a totali-
dade viva do trabalho. Esta é a nova “normalidade” capitalista
que se manifestou de modo voraz, a partir da crise capita-
lista global de 2008 e da longa depressão da década de 2010
– que se prolonga na década de 2020.
A próxima década do século XXI deve aprofundar a crise
da civilização do capital com a persistência da crise sanitária
global por conta da política de Estado “Convivendo com a
Covid-19”; a escalada da crise geopolítica inaugurada pela
OTAN com a guerra na Ucrânia (2022); e a perspectiva da
Recessão global da economia capitalista em 2023 como movi-
mento operado pelo Banco central estadunidense (Federal
Reserve) visando recompor o movimento de acumulação

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capitalista por meio da destruição de ativos, incluindo força


de trabalho e recursos sociais. Na verdade, o capital global
opera um tríplice choque contra a humanidade (choque
sanitário, choque geopolítico e choque econômico) visando
recompor num patamar elevado, o “sistema do lucro” sob
a hegemonia do capital financeiro. Pandemia, endemias e
o colapso ecológico são vetores heurísticos que revelam a
face necrófila do sistema sociometabólico do capital. E da
mesma forma, observamos a escalada da crise geopolítica do
Ocidente liberal conduzido por EUA-OTAN que nos colca -
como se não bastasse - o risco da guerra nuclear. Na verdade,
a máquina da manipulação das subjetividades opera coti-
dianamente para ocultar os riscos de extinção humana por
conta das operações de Choque do capital senilizado.
Mais do que nunca, o entendimento da crítica da econo-
mia politica é fundamental, embora não suficiente. Além
disso, o movimento das categorias elaboradas por Karl Marx
em sua crítica da economia política alcançaram um patamar
de “afetação negativa” na medida em que o processo histó-
rico contingencial, não operou o necessário “para além” do
capital. Pelo contrário, a experiencia do século XX demons-
trou que submergimos profundamente no movimento de
negatividade do valor “afetado de negação” com consequên-
cias socio-históricas nefastas neste século atual.
A inflexão histórica da década de 2020 é produto de movi-
mento cumulativos de décadas de capitalismo neoliberal
e imperialismo dos EUA/OTAN; e décadas de austeridade
neoliberal e precarização estrutural do trabalho que fez
emergir o sistema de mal-estar (e barbárie) social. Tornou-se
mais claro a destruição do complexo da Natureza interna
e externa ao homem, contribuindo de modo cumulativo,
para o impulsionamento do salto qualitativamente novo das
contradições do capital.

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Apresentação • 13

Não se trata de mera crise da economia capitalista


enquanto modo de produção imerso nas contradições funda-
mentais da lei do valor, mas sim, a crise de civilização onde
se manifestam, por um lado, a barbárie social (a destrui-
ção da subjetividade humana pela manipulação enquanto
ideologia); e a destruição ambiental da biosfera, pressuposto
fundante (e fundamental) da reprodução social humana.
Tais novos vetores históricos – barbárie social e destruição da
Natureza interna e externa ao homem - operam numa dinâ-
mica espaço-temporal qualitativamente nova, cumulativa e
acelerada que movimenta uma totalidade complexa cujas
partes estão interrelacionada, expondo de modo sistêmico,
a fratura metabólica entre o capital e a Natureza. Isto num
cenário histórico de transição de hegemonia global do capital.
Não podemos deixar de lado a crise do capital enquanto
crise do sistema interestatal de hegemonia global dos EUA,
um sistema estatal global do capital em transição geopolítica
e geoeconômica que se intensificou desde o fim da URSS em
1991. Tanto quanto as crises financeiras, as guerras organi-
zadas pelo complexo industrial-militar dos EUA, as “guerras
hibridas” e o espectro da Terceira Guerra Mundial compõem o
cenário da desordem mundial e do risco da hecatombe nuclear.
Portanto, ao lado da crise (e do debacle) da economia do
capitalismo global neoliberal por conta da agudização das
contradições fundamentais do modo de produção capita-
lista, presenciamos processos complexos e de longa duração
de transições civilizatórias, isto é, a (1) transição geopolítica
e geoeconômica do hegemon do capital (do Atlântico para o
Pacifico; ou ainda, dos EUA-União Européia para a China-
Eurásia); a (2) transição demográfica com o envelhecimento
da força de trabalho global; a (3) transição climática carac-
terizada pelo aquecimento global; e, por fim, a (4) nova

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transição epidemiológica com a proliferação de novas amea-


ças patogênicas. Cada transição contém riscos iminentes de
regressão civilizatória na medida em que as determinações
da destrutividade intrínsecas à relação-valor e às contingen-
cias e acasos da ação humana se impuserem.
Existe um complexo de crises que expõem contradições justa-
postas, interrelacionadas e imbricadas do modo de controle
sociometabólico estranhado do capital e do modo de produ-
ção capitalista. A dinâmica cumulativa de desvalorização da
força de trabalho própria do modo de produção capitalista
da qual faz parte a superexploração do trabalho, representa
o modo de consumo produtivo pelo capital.

Impõe-se no século XXI a processualidade histórica que


remete à “fratura metabólica” entre capital e Natureza e que
se manifesta no capitalismo senil do século XXI: a “produ-
ção destrutiva” do trabalho vivo, representando um processo
para além da superexploração do trabalho ou do consumo
produtivo do trabalho operado pelo capital. A “produção
destrutiva” do trabalho vivo não se trata de consumo produtivo
do capital, mas sim, do resultado qualitativamente novo da
acumulação do capital em sua fase senil, sendo ela, o anverso
da acumulação do capital, isto é, a destruição – levada a cabo
pelo capital - das suas condições de reprodução social interna.
Diante de seus limites internos absolutos, o capital expõe a
“negação” de seus próprios fundamentos (o trabalho vivo).
Desde a Revolução Industrial do século XVIII, o movi-
mento da acumulação do capital ocorre pela exploração da
força de trabalho humana com a extração da mais-valia, que
significa movimento de desvalorização da força de trabalho
(a produção da mais-valia relativa). De qualquer modo, a
extração de mais-valia absoluta e mais-valia relativa fazem
parte do consumo produtivo do capital. Com a desmedida

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Apresentação • 15

do valor e a explicitação dos limites internos absolutos do


capital, o consumo produtivo da força de trabalho e a desva-
lorização do trabalho vivo, “interverteram-se” em “produção
destrutiva” do humano como capacidade viva do trabalho.
István Mèszàros utilizou o conceito de “produção destru-
tiva” para caracterizar o cenário da crise estrutural do capital.
Produção do desperdício generalizado e aumento da taxa de
utilização decrescente do valor de uso (trabalho vivo) tornam-
-se movimentos endógenos do sistema do capital global em
sua fase de crise estrutural. O “desperdício generalizado” se
expressa também no desperdício de capacidade humana de
trabalho tal como encontramos no desemprego em massa,
subemprego e trabalho precário. Elas são manifestações do
aumento da taxa de utilização de crescente do valor de uso
do trabalho vivo.
Todas as contradições internas do capital que na sua expres-
são suprema é dada pela desmedida do valor, estão contidas
no movimento da forma-mercadoria força de trabalho. Por
exemplo, a lógica movente do complexo industrial-militar,
como observou Mészáros (em Para Além do Capital), também
opera com determinações do movimento da força de traba-
lho: “A grande inovação do complexo industrial-militar é a
supressão de modo prático efetivo da distinção literalmente
vital da distinção entre consumo e destruição” . O complexo
industrial-militar tornou-se paradigmático para identificar o
que ocorre com a força de trabalho diante do movimento da crise
estrutural do capital: consumo (da força de trabalho) é destruição
(do trabalho vivo). As massas do trabalho vivo desempregadas,
subutilizadas e excluídas se tornaram um “fardo improdu-
tivo” para o sistema do capital.
Com o capitalismo senil, explicitou-se enquanto determi-
nação da crise estrutural do capital, a “produção destrutiva” do

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16 • O Estranho Mundo da Economia

trabalho vivo por meio da destruição da biosfera e da corpora-


lidade viva da força de trabalho (mente e corpo). Em termos
figurados, trata-se do “envelhecimento” do trabalho vivo – não
apenas no sentido etário, mas no sentido da desefetivação da
capacidade física e mental do trabalho. É aquilo que deno-
minamos “precarização da pessoa humana que trabalha”. O
processo de envelhecimento da força de trabalho é o modo
cumulativo de destruição à prazo do trabalho vivo, tornan-
do-se isso a “nova normalidade” do capital no século XXI.
O sistema da necropolítica opera a gestão da descartabi-
lidade progressiva das massas humanas desamparadas pelo
capital. Ela ocorre de modo predominante nos países do capi-
talismo dependente de extração colonial, onde a destruição
da força de trabalho superabundante tem caracterizado há
séculos a dinâmica do sistema do imperialismo. Entretanto,
hoje, a “produção destrutiva” do trabalho vivo – ao lado da
superexploração da força de trabalho - manifesta-se com
vigor nos países do centro dinâmico do capital global como
Austrália, Canadá, EUA, Reino Unido e União Européia.
A forma-valor está “afetada de negação” e o capitalismo
liberal explicita seu declínio histórico irremediável. O que se
impõe no longo século de transição civilizacional é o capi-
talismo negado no interior do próprio capitalismo (Ruy
Fausto), o capitalismo do Anti-valor ou o socialismo de mercado.
Deste modo, o capitalismo global neoliberal é um sistema
de controle do metabolismo social estranhado comprome-
tido com a destruição da força de trabalho enquanto trabalho
vivo redundante e envelhecido. A função da necropolitica do
capitalismo neoliberal é impulsionar não apenas a superexplo-
ração do trabalho, mas a eliminação lenta, gradual e irrestrita
do “excesso” da superpopulação relativa face à nova dinâmica
de produção do mais-valor. A desvalorização da força de traba-
lho interverteu-se em produção destrutiva do trabalho vivo.

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Apresentação • 17

Como hipótese para reflexão entendemos que categorias


como “exploração” e “superexploração” da força de trabalho
que pertencem à lógica do “consumo da força de trabalho” e
do movimento de desvalorização da força de trabalho e por
portanto, da acumulação de capital, estão subsumidas no tempo
histórico da crise estrutural do capital, à lógica da “destruição
do trabalho vivo” enquanto nova determinação não-exclu-
siva do movimento do capital. Ela tornou-se determinação
sistêmica do capitalismo senil que nega paradoxal (e contra-
ditoriamente), as condições pressupostas de reprodução social.
Com a crise estrutural, o irracional do sistema do capi-
tal se expõe na medida em que a distinção entre “consumo” e
“destruição” tendem a serem suprimidas (isto se aplica para a
Natureza como um todo – biosfera e trabalho vivo). Portanto,
face à superprodução crônica do capital, impõe-se historica-
mente enquanto movimento lógico-histórico do sistema de
produção do excedente, a “produção destrutiva” da fonte de
mais-valor tornada “excessiva” na ótica do valor “afetado de
negação”.
Na era da Quarta Revolução Industrial, a superpopulação
relativa do trabalho vivo, tornou-se um fardo redundante para
o sistema do capital. Destruir física e mentalmente o trabalho
vivo tornou-se a “regra” e não a exceção do modo capitalista de
produção (e destruição) da vida social. A lógica movente do capi-
tal acumulado como trabalho morto, exige peremptoriamente
a sua (auto) destruição como condição para elevar a acumu-
lação num patamar superior – para além da humanidade.
Marilia (SP), 23 de outubro de 2022

Giovanni Alves é professor livre-docente da Universidade Estadual


Paulista (UNESP), Campus de Marília; pesquisador do CNPq e
coordenador-geral da RET (Rede de Estudos do Trabalho) - www.
estudosdotrabalho.net. É editor-chefe do Projeto editorial Praxis.

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Prefácio

Por um antimanual de economia

Aquiles Melo

É
sabido que a publicação, em 1890, da obra magna
do economista inglês Alfred Marshall, intitulada
de Princípios de Economia, inaugurou a transição
da antiga Economia Política para o que se convencionou
chamar hoje de Economia. Mas não apenas isso. Esta obra
foi também responsável pela instituição da Economia como
um campo de estudos específico – outrora a economia se
encontrava como um ramo da história – produzindo assim
uma profunda alteração no âmbito do ensino dessa ciência.
Em sua obra, Marshall realizava a síntese da economia
política clássica com os elementos centrais da doutrina
marginalista. No entanto, ele o fez de forma condensada e
sistematizada, onde toda a teoria econômica se encontrava
agora na forma de um compêndio. Seu livro viria a ser uti-
lizado como fundamento para os manuais de introdução à
economia por todo o mundo anglo-saxão e europeu.
Desde então, o ensino de economia em todo o mundo,
tanto em suas disciplinas básicas até mesmo as mais avançadas,
se baseia não mais na leitura e reflexão crítica das teorias e
seus fundamentos, mas sim numa apreensão concisa destes,

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18 • O Estranho Mundo da Economia

sendo seus pressupostos recepcionados de maneira bastante


acrítica. Não à toa conceitos simplificadores – e porque
não dizer mistificadores - da realidade, como equilíbrio
de mercado, expectativas racionais, fluxo circular da renda,
etc. fazem parte de um léxico de iniciação onde o sujeito da
história é intertemporal, dotado de uma natureza humana
racional propícia para a troca de mercado (homo economi-
cus), enquanto a história, bem, a história não existe para
os manuais. Essa metodologia para o estudo da economia,
e que já dura mais de um século, constitui o paradigma
dominante no ensino dessa disciplina.
Na contramão desse processo é que o professor Francisco
Teixeira nos brinda com seu novo trabalho intitulado O
estranho mundo da economia – para uma crítica aos manu-
ais de introdução à economia. Podemos dizer que esta obra
dá continuidade a uma antiga inquietação outrora iniciada
pelo autor em outro livro de sua autoria chamado Trabalho
e valor – Contribuição para a crítica da razão econômica
(CORTEZ, 2004). À época, Teixeira buscava realizar uma
“reconstrução do edifício conceitual da economia política,
tal como foi edificado por seus fundadores” ao analisar a
constituição da economia política enquanto ciência e sua
transformação no que se convencionou chamar hoje de
mainstream economics. Ali, já anunciava uma forma distinta
de tratar a teoria econômica, forma esta que se distanciava da
replicação manualesca comum aos textos e livros de história
do pensamento econômico. Não buscava uma exposição
sintética e abreviada seja do pensamento clássico ou da
chamada revolução marginalista, mas buscava conduzir o
leitor na compreensão da construção destes pensamentos,
ligando cada parte a um todo coerente numa reconstrução
“lógico-conceitual” da economia, algo hoje tão desprezado
pelos manuais.

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Prefácio • 19

Na presente obra, e conforme pode ser apreendido já em


seu subtítulo – Para uma crítica aos manuais de introdução a
economia –, Teixeira se reveste do mesmo espírito desbrava-
dor daquela obra anterior, só que, agora, volta sua mira às
grosseiras abstrações e simplificações com que os alunos se
deparam ao abrir seus manuais de introdução à economia.
A pertinente inquietação de nosso autor tem sua razão. A
forma contemporânea adotada por estes manuais reprodu-
zem conceitos e explicam processos econômicos partindo de
generalizações apriorísticas, pressupostos simplificadores e
modelos abstratos não apenas só estranhos à realidade, mas
até mesmo incompatíveis com a mesma. É este estranho
mundo da economia o qual Teixeira põe em questão.
Neste mundo não há história. Questões relacionadas
à propriedade, à mercadoria, ou mesmo ao dinheiro, já
estão pressupostas. Ao invés de encontramos uma teoria
para explicar a realidade, encontramos uma realidade à
parte, realidade esta que se permite moldar e adequar aos
modelos econômicos explicativos de cada uma das teorias
ali contidas. O modelo do fluxo circular da renda, apre-
sentado por Teixeira em sua introdução, é um exemplo
típico desta distorção da realidade a qual nos referimos.
Ora, quando este modelo divide a sociedade em um único
nível entre famílias e firmas, ele apaga as diversas distinções
que existem no interior destes próprios elementos. É como
se todas as famílias estivessem em um mesmo nível social,
partilhassem de uma mesma renda, apagando-se assim a
distinção óbvia entre famílias que são possuidoras das fir-
mas e as famílias que precisam trabalhar nestas firmas, ou
seja, as famílias que trabalham para outras famílias. Com
isso desaparecem as classes sociais, iguala-se os fluxos de
renda entre lucros e salários, elimina-se o papel de governos

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20 • O Estranho Mundo da Economia

e instituições, enfim, política e história tornam-se meros


empecilhos para a compreensão da suposta realidade.
Outro exemplo destas pressuposições simplificadoras
tratadas por Teixeira, e que atuam no intuito de adequar
a realidade ao modelo ao invés de explica-la, são as cha-
madas expectativas racionais. De forma simplificada, as
expectativas racionais partem do princípio que as ações dos
agentes econômicos são racionais, ou seja, que os agentes
econômicos tomariam suas decisões de forma racional,
baseados em um conjunto de informações disponíveis
e também a partir da própria experiência destes agentes.
Partindo deste princípio, podemos nos questionar se exis-
tiria uma dispersão uniforme da informação entre os agentes
(o que, em não existindo, violaria o equilíbrio walrasiano);
se suas ações, a partir desta distribuição não uniforme das
informações, tenderiam na mesma direção; se não haveria
comportamentos tidos como “irracionais” realizados por
estes agentes; ou mesmo se não existiria, por parte de uma
fração destes agentes, um poder de barganha ou de decisão
maior que de outros. Questões como estas são colocadas
aqui por nós para percebermos a que ponto se chega numa
simplificação de relações absolutamente complexas.
Mas há um ponto interessante a ser ressaltado e que
merece atenção. As expectativas racionais sempre são
pensadas levando-se em conta combinações com outros
modelos. Por exemplo, Mario Henrique Simonsen, famoso
economista brasileiro, aponta que, a depender das demais
hipóteses contidas dentro do modelo de expectativas racio-
nais, este pode levar a conclusões inteiramente diversas.
Ou seja,
de acordo com as hipóteses econômicas do modelo pode-se ter
uma visão do mundo monetarista, keynesiana, mista ou talvez

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Prefácio • 21

marxista. No fim das contas, expectativas racionais simplesmente


representam as hipóteses embutidas no modelo que se escolheu. 1

Como podemos constatar, aqui não é a realidade que


direciona o modelo, mas o modelo é quem direciona a rea-
lidade e, a depender das escolhas do modelo, a realidade se
altera. Isso pode ser verificado, por exemplo, no regime de
metas de inflação.
Vejamos...
Até a chamada síntese neoclássica era pacífico para esta
teoria que a política a ser adotada pela autoridade monetária
deveria ser discricionária, atuando a autoridade em cada
momento específico no tempo. No entanto, após a introdu-
ção da hipótese das expectativas racionais - associadas à curva
de Phillips aceleracionista proposta por Phelps-Friedman -, o
modelo de controle inflacionário passou a entender a política
discricionária como inconsistente no tempo, prejudicando
assim o controle da inflação. Com isso, a intervenção por
parte do governo se torna problemática para a solução do
problema.
Ora, como é fácil perceber, essa formulação se encaixou
como uma luva para substanciar teoricamente uma política
de independência da autoridade monetária, no caso, do
Banco Central. Se o modelo é alimentado com hipóteses
que direcionam seus resultados para um ponto específico,
não temos como esperar resultados diferentes. Caso se
retire do modelo as expectativas racionais, a proposição a
ser adotada é absolutamente distinta. Enfim, se alimenta o
modelo com aquilo que queremos que seja reproduzido na

1
SIMONSEN, Mário Henrique. Teoria econômica e expectativas
racionais. Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, vol. 34,
n. 4, p. 455-496, out/dez, 1980.

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22 • O Estranho Mundo da Economia

realidade. Não à toa a afirmação Simonsen de que as expec-


tativas racionais apenas representam as hipóteses adotadas
no modelo. O estranho mundo da economia é criado e
pensado a partir de hipóteses abstratas que tentam, a partir
de uma determinada visão de mundo, moldar a realidade
a seus pressupostos.
O livro de Teixeira procura justamente apresentar ao
leitor estas abstrações e generalizações a partir de questio-
namentos simples, lançados pela cativa figura de Spock,
nosso pequeno grande viajante do tempo. Estas questões,
que num primeiro momento parecem muito simples, leva-
vam Washington, o economista anfitrião, a aprofundar suas
reflexões para além do imediatismo cotidiano que imperava
em sua cabeça. Teixeira então conduz seu leitor a responder
junto com Washington às questões levantadas por Spock
sobre a natureza do dinheiro, da propriedade, da mercadoria,
elementos estes fundamentais para compreender as relações
econômicas, tão negligenciados pelos manuais dos cursos
de economia. Com isso, força para que a reflexão de seus
leitores também se afaste da aparência fenomênica e busque,
cada vez mais, apreender o conteúdo destas, conteúdo este
que não pode estar apartado da história, da filosofia, da
política, etc. Mas não para por aí...
Na segunda parte de seu livro, no texto deixado por Spock
para Washington, Teixeira vai procurar unir o que, outrora, a
própria teoria separou. Neste momento da exposição, nosso
autor não está preocupado em reproduzir uma breve história
do pensamento econômico, pinçando de cada autor trechos
que resumam um pouco sua vida, obra e pensamento. A
busca feita por Teixeira é mais pretensiosa. Trata-se de um
“rastreamento da gênese dos conceitos”, conceitos estes que
surgem nos manuais como que caídos dos céus. Não se sabem
suas origens, seus pressupostos, o que buscavam responder e,

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Prefácio • 23

muito menos, suas conclusões. Aparecem de forma súbita e


são lidos e entendidos como elementos quase que naturais,
que sempre estiveram ali, chegando a perder-se de vista
que estes cumprem um papel importante para fundamentar
esse estranho mundo da economia, estranho mundo este
parido a partir deste conceitos.
Assim, a partir de uma exposição que retoma desde o
pensamento dos fisiocratas, passando pela economia polí-
tica clássica em Smith e Ricardo, até chegar na escola do
valor utilidade com Menger e Jevons, o leitor acompanha
Washington em suas leituras ao passo que começa a com-
preender como a economia leu e interpretou o mundo.
Tem a oportunidade agora de conhecer os autores, seus
contextos e conceitos, sabendo que suas teorias são frutos
de um processo histórico inserido dentro de uma totalidade,
ainda que muitas vezes numa totalidade formal. Entenderá
que a economia está longe de ser um saber desinteressado
e que suas teorias – ou melhor, seus teóricos – não apenas
possuem interesses distintos como, muitas vezes, constroem
suas teorias a partir deste conjunto de interesses.
A operação realizada por Jean-Baptiste Say sobre a
transição da economia política clássica para a teoria do
valor-utilidade – que viria a formar as bases da econo-
mics – comentada por Teixeira, deixa claro ali como os
interesses de uma determinada classe começavam a se
sobrepor sobre um saber outrora crítico. O fenomênico
passa então a encobrir o real conteúdo das relações. Não
à toa, a moeda passa a ser vista como “coisas que podem
ser dadas em troca daquilo que se deseja adquirir”, o
preço como “a quantidade de moeda que concordamos
em entregar para obter uma coisa”, e que estas mesmas
coisas possuem seu fundamento “no uso que delas podem

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24 • O Estranho Mundo da Economia

fazer”2. Sai de cena o conteúdo - conteúdo este refletido


sobre uma totalidade processual, histórica, política e social
-, para dar espaço a uma abstração conceitual e tautológica,
onde o preço é a medida da utilidade e a utilidade também
é a medida do preço.
Ora, essa mudança necessitava ser feita, uma vez que uma
teoria que elucida a criação de riquezas a partir do trabalho
trás como consequências a compreensão do lucro como fruto
da exploração deste. Este rótulo não combinaria para uma
burguesia ascendente, pretensiosamente iluminada e que,
fundamentalmente, não trabalhava. Eram meros proprietá-
rios dos meios de produção. Como poderiam então explicar
a origem de suas riquezas? Era necessário que esta não fosse
vista como fruto de processos históricos de exploração de
uma classe por outra. Transpor a teoria do valor-trabalho para
a teoria do valor-utilidade cumpria esse papel. Apaga-se a
história, apagam-se as classes, apagam-se as relações de explo-
ração, apaga-se, até mesmo, o homem. Um novo mundo – e
estranho mundo – é criado a partir do olhar desta burguesia.
Por este motivo a teoria do valor-utilidade, aperfeiçoada
por Menger, vem a exercer um protagonismo dentre todas
as outras. O valor estaria centrado no sujeito econômico,
melhor ainda, na subjetividade destes sujeitos. Deixa de ser
algo objetivo para ser subjetivo, existente apenas em nossas
consciências. Em não se tendo como atender aos desejos de
todos ao mesmo tempo, constata-se a escassez destes bens.
Uma vez esses bens sendo escassos, os interesses por estes
são conflitantes. Como meio para solucionar este problema,
decorre a instituição da propriedade privada. Bingo! Fun-
damentada economicamente a necessidade da propriedade

2
SAY, Jean-Baptiste. Tratado de economia política. São Paulo, Abril
Cultural, 1983, pp. 67-68

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Prefácio • 25

privada, cabia agora formular um meio para que esta se


tornasse perene. As contribuições de William Jevons, no
sentido de dar um caráter matemático à economia, atuavam
nesse sentido. Esta inseria a economia no interior de uma
lógica formal, onde a verdade das premissas não importam,
desde que as conclusões não contradigam as mesmas. Com
isso, aliada à inserção da utilidade marginal e do cálculo
diferencial, Jevons não só encobria a origem destas premis-
sas, como também pavimentava o alicerce conceitual que
servirá de base para a formatação de toda uma nova teoria.
A partir de conceitos como utilidade e escassez, podemos
agora levantar as paredes do restante deste edifício teórico
o qual permitirá mensurarmos das preferências do consu-
midor à maximização dos lucros, da curva de demanda ao
excedente do consumidor, das externalidades ao equilíbrio
de Nash da teoria dos jogos... Tudo, tudo agora, pode e dever
ser quantificado. O quanto se consome de manteiga ou de
margarina é representada agora por uma curva de indife-
rença que possui sua concavidade apontada para a origem.
Nossas preferências enquanto consumidores assumem um
aspecto gráfico, podendo ser estabelecido a partir de um
conjunto de equações que mensuram a taxa marginal de
substituição destas. É com o acatamento acrítico de todos
estes pressupostos que toda a economia pode ser condensada
nos famosos manuais, em suas mais diversas áreas, sejam
estes de introdução a economia, de macro, micro ou mesmo
econometria.
Esta simplificação obtusa é a causadora da inquietação
de Teixeira. Nosso autor procura conduzir seus leitores na
trilha percorrida pelos protagonistas destas teorias, de forma
que se compreenda as premissas desta teoria, como esta
chegou até aqui, como esta produziu este estranho mundo.
Seu intuito não é o de construir uma crítica avassaladora

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26 • O Estranho Mundo da Economia

aos teóricos do estranho mundo da economia. Longe disso!


Seu intuito é o de permitir que seus leitores pelo menos
descortinem as origens conceituais deste mundo, entendam
que estes conceitos não caíram dos céus, não apareceram de
repente, mas que possuem uma origem própria, um contexto
específico e interesses bem definidos.
Mais importante: compreendida esta origem, seus leitores
nunca mais lerão os manuais de economia da mesma forma.
Ao se depararem com estes estranhos conceitos, ainda que
venham posteriormente a endossá-los, no fundo, saberão
que estes fazem parte de uma visão de mundo particular,
interessada, sem história, sem homem, sem alma.
Fica então aqui o convite ao leitor para que, junto com
George Washington Ferreira da Silva, adentre sem restri-
ções aos escritos de Spock e, com ele, desvende o estranho
mundo da economia. Elaborar este prefácio me permitiu
esse deleite. E que, ao fim dessa leitura, possamos penetrar
nos manuais de economia sabendo bem que mundo é aquele
que estamos adentrando.

Agosto de 2022

Aquiles Chaves de Melo é professor do Instituto Federal do Ceará


(IFCE) com mestrado e doutorando em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará (UFC). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Econo-
mia, Trabalho e Sociedade – NETS onde atualmente desenvolve pes-
quisa sobre o Dinheiro e Imperialismo. E-mail: aquiles_melo@yahoo.
com.br

Livro 1.indb 10 24/10/2022 09:49:53


Introdução
Convite Ao Pensar

O
s manuais de introdução à Economia pouco ou
quase nada diferem entre si. A forma de exposição
nem sempre segue um padrão rígido. No entanto, o
conteúdo é sempre a mesma coisa. Com efeito, partem da
suposição de que os recursos são escassos para, daí defende-
rem a idéia de que o mercado é a forma mais eficiente para
administrar o uso dos bens e serviços. Deve-se ao autor de A
Riqueza das Nações, Adam Smith, a defesa do livre-mercado
como condição necessária e incontornável para o desenvol-
vimento das nações. Afinal, para ele, o homem nasce com
certa inclinação natural, inscrita em sua própria natureza,
a viver do intercâmbio de uma coisa por outra. É por isso
que o homem é um ser da troca.
Para emprestar maiores razões ao seu conceito de homem,
Smith não tem cerimonia de apelar para ilustrações esdrúxulas,
como o fato de que “ninguém jamais viu um cachorro fazer
uma troca justa e deliberada de um osso por outro, com um
segundo cachorro. Ninguém jamais viu um animal dando
a entender a outro, através de gestos ou gritos naturais: isto
é meu, isto é teu, estou disposto a trocar isto por aquilo.”
(Smith, 1985, p.49). Ora, se o homem é um ser da troca,
é sua disposição natural viver numa sociedade de mercado,
somente assim poderá permutar, toda parte excedente da
produção de seu trabalho, que ultrapasse seu consumo, pelos
produtos de outros indivíduos que, como ele, levam para o

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28 • O Estranho Mundo da Economia

mercado o excedente de sua produção para comercializar,


isto é, para trocar, permutar ou intercambiar. O mercado
nasce, assim, como produto do desenvolvimento das
inclinações naturais do homem, que vem ao mundo para
viver numa sociedade na qual a troca se constitui como
relação social básica, isto é, como relação por meio da qual
os indivíduos interagem entre si. É por isso que qualquer
intervenção externa no mercado é vista como um ataque
à liberdade dos indivíduos de decidirem como e onde
aplicar seus capitais.
Daí, a defesa incondicional de Adam Smith da liberdade
de mercado para o desenvolvimento das nações. Sem isso,
as forças produtivas, como causa primária do crescimento
da riqueza, não se desenvolveriam. É o que o autor de A
Riqueza das Nações deixa transparecer ao se referir à Inglaterra.
Apesar da intervenção do estado, os altos gastos do governo
não foram capazes de impedir o progresso em direção à
riqueza e ao desenvolvimento daquele país. Prova disso é o
crescimento anual da economia inglesa, que é

muito maior hoje do que na época da restauração ou da revo-


lução. Em consequência, maior deve ter sido também o capital
empregado anualmente no cultivo da terra e para manter essa
mão-de-obra. Em meio a todas as exceções feitas pelo governo,
esse capital foi sendo silenciosa e gradualmente acumulado pela
frugalidade e pela boa administração dos indivíduos particula-
res, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no sentido de
melhorar sua própria condição. Foi esse esforço protegido pela
lei e permitido pela liberdade de agir por si próprio de maneira
mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra
em direção à grande riqueza e ao desenvolvimento em quase
todas as épocas anteriores, e que, como é de se esperar, aconte-
cerá em tempos futuros (Smith, 1985, p. 296).

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:49:53


Convite Ao Pensar • 29

Por isso, dirá Smith (1985, p. 378),

não há regulamentação comercial que possa aumentar a quanti-


dade de mão- de-obra em qualquer sociedade além daquilo que
o capital tem condições de manter. Poderá apenas desviar parte
desse capital para uma direção para a qual, de outra forma, não
teria sido canalizada; outrossim, de maneira alguma há certeza
de que essa direção artificial possa trazer mais vantagens à socie-
dade do que aquela que tornaria, caso as coisas caminhassem
espontaneamente.

Afinal,

é evidente que cada indivíduo [...] tem muito melhores condi-


ções do que qualquer estadista ou legislador de julgar por si
mesmo qual o tipo de atividade nacional na qual pode empre-
gar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar
o valor máximo. O estadista que tentasse orientar pessoas parti-
culares sobre como devem empregar seu capital não somente se

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30 • O Estranho Mundo da Economia

sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária,


mas também assumiria uma autoridade que seguramente não
pode ser confiada a alguma assembleia ou conselho, e que, em
lugar algum, seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa
com insensatez e presunção suficiente para imaginar capaz de
exercer tal autoridade (Smith, 1985, p. 380).

Liberdade de mercado é condição necessária não só


para o crescimento interno das nações, como também
para o desenvolvimento do mercado mundial. Que o diga
Ricardo, para quem,

num sistema comercial perfeitamente livre, cada país natural-


mente dedica seu capital e seu trabalho à atividade que lhe seja
mais benéfica. Essa busca de vantagem individual está admi-
ravelmente associada ao bem universal do conjunto dos países.
Estimulando a dedicação ao trabalho, recompensando a enge-
nhosidade e propiciando o uso mais eficaz das potencialidades
proporcionadas pela natureza, distribui-se o trabalho de modo
mais eficiente e mais econômico, enquanto, pelo aumento
geral do volume de produtos difunde-se o benefício de modo
geral e unem-se à sociedade universal de todas as nações do
mundo civilizado por laços comuns de interesse e de intercâm-
bio (Ricardo, 1985, p. 104).

Em todas os trechos citados acima deve ter ficado claro


que o mercado é, por excelência, a instituição mais eficiente
na alocação e distribuição dos recursos da economia. Com
mais razão ainda se se levar em conta o mito de que os
recursos são escassos. Com efeito, se cada indivíduo sabe
melhor do que ninguém onde e como aplicar, da maneira
mais vantajosa possível, seu bom dinheirinho, com certeza

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:49:54


Convite Ao Pensar • 31

agirá de forma diligente e parcimoniosa na administração


de seus negócios.
Não sem razão, os manuais de Introdução à Economia
partem da suposição de que os recursos são escassos, para
daí defenderem a ideia de que o mercado é a melhor insti-
tuição para administrar com parcimônia a escassez de bens
e serviços. Em seguida, apresentam o fluxo circular da renda
para mostrar que a economia se sustenta, a partir de trocas,
com as quais as famílias e negócios devem estar envolvidos.
A ideia de que os recursos são escassos coloca a sociedade sob
o dilema da curva de possibilidade de produção: produzir
mais alimentos e menos armas ou vice-versa.
Não seria exagero afirmar que a escassez, a defesa do livre
mercado e a escolha do que produzir são os temas que estão
na base da matéria dos manuais de Introdução à Economia.
Na verdade, são os alicerces sobre os quais se edifica a arqui-
tetura conceitual desses manuais. O livro de Paul Krugman
e Robin Wells é prova disso. Esses autores começam com a
apresentação do conceito de Economia.
Para tanto, valem-se de Alfred Marshall (1842–1924), de
seus Princípios de Economia (1890), para definir o objeto de
estudo dessa ciência. Tomam o primeiro capítulo do livro
Primeiro de Marshall, para afirmar, citando este autor, que a
economia é “um estudo da humanidade nos negócios comuns
da vida” (Marshall, apud Krugman e Wells, 2011, p. 1). Esta
é uma definição extremamente vaga. Melhor seria recorrer
ao próprio Marshal.
No capítulo II, do Livro Primeiro, de seus Princípios
de Economia, ele define a Economia como uma ciência
preocupada com o

estudo dos homens tal como vivem, agem e pensam nos


assuntos ordinários da vida. Mas diz respeito, principalmente,

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32 • O Estranho Mundo da Economia

aos motivos que afetam, de um modo mais intenso e cons-


tante, a conduta do homem na parte comercial de sua vida
[...]. Contudo, o motivo mais constante para a atividade dos
negócios é o desejo de remuneração, a recompensa material do
trabalho (Marshall, 1982, p. 33).

Uma leitura cuidadosa desta passagem revela que o homem


de que fala Marshall é, na verdade, um “mítico homem de
negócios”; um homem preocupado unicamente em admi-
nistrar sua empresa da forma mais racional possível. Ora,
se o que importa é analisar o comportamento do indivíduo
em sua vida comercial diária, como ele conduz e adminis-
tra seu negócio, é claro que a concepção dos Princípios de
Economia se fundamenta numa visão microeconômica da
sociedade capitalista.
Esta perspectiva microeconômica salta aos olhos quando
se examina como Marshall analisa a distribuição de renda,
isto é, a contribuição de cada fator de produção na geração
da riqueza. Joan Robinson, que foi uma dentre muito(a)
s ilustres aluno(a)s de Marshall, descreve como seu antigo
mestre pensa essa questão, isto é, a distribuição da renda.
De acordo com ela, o autor de o Princípios de Economia
entende que

as forças do mercado distribuíam os recursos da melhor maneira


possível entre os diversos usos alternativos. Daí o conceito de
distribuição da renda baseado na justiça natural dos trabalha-
dores baseados na justiça natural. Isto é, a contribuição dos
trabalhadores para a produção se refletiria nos salários, enquanto
a contribuição do capital para a produção estaria nos lucros.
Isso seria justo, direito e natural (Robinson, apud Ottolmy
Strauch, 1982).

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Convite Ao Pensar • 33

Mas como se mede a parte da riqueza que cabe a cada


fator de produção? Determinando a quantidade de bens e
serviços que os donos dos fatores de produção estão dispostos
a oferecer. Noutras palavras, como cada fator de produção
contribui para a produção e, em consequência, a parte que
lhe cabe da riqueza gerada. Tome-se como exemplo a oferta
de trabalho, isto é, a quantidade de trabalho que cada traba-
lhador está disposto a oferecer no mercado. Valendo-se de
Marshall, Krugman e Wells fundamentam sua exposição da
oferta de trabalho recorrendo ao capítulo I, do livro Quatro,
dos Princípios de Economia.
Para demonstrar como se determina a oferta de trabalho,
Krugman e Wells pressupõem o fluxo circular da renda, que
eles apresentaram no capítulo 2, página 32, do seu manual
de Introdução à Economia. Com efeito, eles começam com a
afirmação de que,

no mercado de trabalho, o papel das firmas e dos domicílios é


o inverso do que é nos mercados de bens e serviços. Um bem
como trigo é ofertado por firmas e demandado por domicí-
lios; mas o trabalho é demandado por firmas e ofertado pelos
domicílios (Krugman e Wells, 2011, p. 458).

Uma análise mais demorada do fluxo circular da renda


revela que, de um lado, estão as famílias, que demandam
bens e serviços e ofertam seus fatores de produção; de outro,
firmas que ofertam bens e serviços e demandam os serviços
dos fatores de produção. Tudo se passa como se as empresas
não tivessem donos, pois no universo das famílias estão
os donos dos fatores de produção, que vivem da venda de
seus serviços para firmas imaginárias, que produzem bens
e serviços para os donos dos meios de produção (trabalho,
capital e terra), isto é, para as famílias. Nem uma palavra

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34 • O Estranho Mundo da Economia

sobre como os possuidores da terra adquiriam suas proprieda-


des, nem como os donos do capital formaram seu patrimônio.
Não é preciso nenhum conhecimento de Economia para
saber que essa relação entre os fatores de produção, de um
lado, e as firmas, de outro, não passa de uma simplifica-
ção grosseira e, até mesmo distorcida da realidade. Com
efeito, o fluxo mostra que, de um lado, estão os donos
dos fatores de produção: terra, trabalho e capital, e, de
outro, as empresas, que contratam os serviços dos donos
dos fatores de produção.
Ora, se as famílias representam os donos dos fatores de
produção, quem são os donos das empresas?
Krugman e Wells não se dão conta de que ao descreverem
esse mundo do fluxo circular da renda estão, na verdade,
assumindo o papel de porta-vozes dos interesses das classes
dominantes, na medida em que não vão além da tradução das

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Convite Ao Pensar • 35

noções comuns numa linguagem doutrinária. Por isso, quanto


mais alienada a forma em que concebe as formações da produção
capitalista, tanto mais se aproxima da base das noções comuns,
tanto mais se acha no seu elemento (Marx, 1980, p. 1540).

Mas, vamos voltar ao final do trecho citado há pouco.


Krugman e Wells se perguntam: “como as pessoas decidem
quanto trabalho ofertar?”, para, em seguida, esclarecerem que

na prática, a maioria das pessoas tem um controle limitado


sobre os seus horários de trabalho: ou se aceita um emprego
que implica trabalhar um número estabelecido de horas por
semana ou não se tem emprego nenhum. Para entender a lógica
da oferta de trabalho, contudo, convém deixar o realismo de
lado por um instante e imaginar um indivíduo que possa esco-
lher trabalhar tantas horas quanto queira (Krugman e Wells,
2011, p. 458).

Ao pedir o leitor para deixar de lado o realismo, Krugman


e Wells estão de fato valendo-se de um tipo de abstração que
termina por matar o objeto que eles têm de explicar: a oferta
de trabalho. Realmente, não sentem nenhum constrangi-
mento em adulterar a realidade, quando afirmam que (1) os
indivíduos têm controle, ainda que limitado, sobre o número
de horas que desejam trabalhar; e que, (2) para entender a
lógica que rege a oferta de trabalho, pedem aos seus leitores
que esqueçam como as coisas acontecem no mundo real.
Isso que fazem Krugman e Wells é uma verdadeira agressão
à inteligência humana, por mais obtusa que seja uma cria-
tura. Qualquer trabalhador sabe muito bem que ele não tem
nenhum controle sobre o número de horas que despende em
seu trabalho, seja ele um trabalhador formal, com carteira de
trabalho assinada, ou um trabalhador de aplicativo.

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36 • O Estranho Mundo da Economia

Pior do que isso é pedir o leitor para que abandone, com


eles, o mundo real para se refugiar num mundo idealizado,
que só existe na cabeça deles. Pois, só assim, dizem eles, é
possível entender a lógica que rege a determinação da jornada
diária de trabalho. Sendo assim, é preciso criar um mundo
imaginário, uma ficção teórica, para dizer como de fato se
comporta o trabalhador no mundo real.
Mas, como Krugman e Wells determinam quanto de
trabalho os trabalhadores estão dispostos a oferecer no mer-
cado? Concedendo-lhes a palavra, eles abrem o parágrafo
seguinte, perguntando

por que um indivíduo assim não trabalharia tantas horas quanto


possível? Porque os trabalhadores são seres humanos também e
têm outros usos para seu tempo. Uma hora gasta no trabalho é
uma hora que não é gasta em outras atividades presumivelmente
mais prazerosas. Assim, a decisão sobre quanto trabalho ofertar
envolve uma decisão sobre a alocação do tempo: quantas horas
dedicar a diferentes atividades (Krugman e Wells, 2011, p. 458).

Em seguida, detalham melhor como age o trabalhador ao


ofertar mais ou menos trabalho no mercado. Sempre baseado
nos Princípios de Economia de Marshall, embora sobre isso,
nada digam; explicam que

trabalhando, as pessoas obtêm uma renda que podem usar


para comprar bens. Quanto mais horas um indivíduo traba-
lha, mais bens ele pode comprar. Mas esse aumento do poder
de compra ocorre às custas de uma redução no tempo de lazer,
o tempo gasto sem trabalho [...]. E, embora o bem comprado
gere utilidade, o lazer também. De fato, podemos imaginar o
próprio lazer, como um bem normal, que a maioria das pessoas

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Convite Ao Pensar • 37

gostaria de consumir mais quando sua renda aumenta (Krugman


e Wells, 2011, p. 458).

Krugman e Wells pressupõem que os agentes econômicos


são racionais, e como tais, estão sempre ponderando qual a
melhor escolha a fazer, seja na compra de um bem ou na oferta
de um serviço. Neste último caso, eles agem da mesma forma
como se comportaria um consumidor racional. Como assim?

fazendo uma comparação marginal, é claro [...]. Imagine Clive,


que gosta tanto de lazer quanto dos bens que o dinheiro pode
comprar. E suponha que seu salário seja $10 por hora. Ao
decidir quantas horas quer trabalhar, ele tem de comparar a
utilidade marginal de uma hora adicional de lazer com a utili-
dade adicional que ele obtém de $10 em bens. Se $10 em bens
acrescenta mais à sua utilidade total do que uma hora de lazer,
ele pode aumentar a sua utilidade total renunciando a uma
hora de lazer a fim de trabalhar uma hora adicional. Se uma
hora extra de lazer acrescentar à sua utilidade total mais do que
$10 de renda, ele pode ele pode aumentar sua utilidade total
trabalhando uma hora a menos a fim de ganhar uma hora de
lazer (Krugman e Wells 2011, p. 458).

Que bela demonstração! A imaginação de Krugman e


Wells só não é maior porque, de certa forma, é uma cópia
do que Marshall já havia idealizado. Mas, só mais uma coisa.
É preciso ainda, mostrar que o “ponto de escolha ótima de
oferta de trabalho de Clive, sua utilidade marginal de uma
hora de lazer é igual à utilidade marginal que ele obtém
dos bens que seu salário horário pode comprar” (Krugman
e Wells, 2011, p. 458). Da mesma forma, determina-se
a parte que cabe ao capital da renda gerada. Este estará
disposto a contratar uma unidade adicional de trabalho

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38 • O Estranho Mundo da Economia

até o ponto em que o seu lucro se igualhe ao valor do


produto marginal.
Que tal voltar agora ao início do livro de Krugman e
Wells, para acompanhá-los como eles pensam a relação
entre escassez e mercado? Depois de apresentarem o con-
ceito de economia, na página seguinte, imaginam o que
aconteceria se “você pudesse transportar um americano
do período colonial para os dias de hoje [...]. O que o
viajante do tempo acharia espantoso?” (Krugman e Wells,
2011, p. 2). A resposta vem carregada de um sentimento
de orgulho por tudo que a América do Norte fez para
transformar aquela colônia num dos mais ricos países do
mundo. É o que se depreende quando afirmam que

certamente o mais espantoso seria a prosperidade da América


moderna – o leque dos bens e serviços que as famílias comuns
podem adquirir. Olhando toda essa riqueza, nosso colono
transplantado do século XVIII indagaria: “Como posso ter
uma parte disso?” Ou talvez perguntasse: “Como minha socie-
dade pode obter uma parte disso?” (ibidem, p. 2).

Não é difícil imaginar qual seja a resposta. Diante do espanto


do viajante do tempo, Krugman e Wells não têm dúvidas de
que para chegar aonde chegou, a América do Norte precisou

de um sistema que funcione bem para coordenar as atividades


produtivas – as atividades que criam os bens e serviços que as
pessoas desejam e que fazem chegar aos que querem. É esse tipo
de sistema que temos em mente quando falamos da economia.
E a análise econômica é o estudo das economias, tanto no nível
do indivíduo como da sociedade em seu conjunto (ibidem, p. 2).

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Convite Ao Pensar • 39

O sistema de que falam Krugman e Wells não poderia ser


outro que não o mercado. Não por acaso, eles intitulam essa
parte do texto de “A Mão Invisível”, metáfora criada pelo
pai do liberalismo econômico, Adam Smith, para expressar
que o mercado é, por excelência, a instituição mais eficiente
na alocação dos recursos da sociedade. É isso mesmo o que
aqueles autores desejam externar. É verdade. Na passagem
que vem logo depois da citação acima, eles afirmam que

nossa economia deve estar fazendo alguma coisa certa e o viajante


no tempo gostaria de cumprimentar o responsável. Mas, adivi-
nhe. Não há ninguém responsável. Os Estados Unidos têm
uma economia de mercado em que a produção e o consumo
são resultados de decisões descentralizadas das empresas e dos
indivíduos. Não há autoridade central dizendo às pessoas o que
produzir e para onde transportar. Cada produtor individual faz
o que pensa ser mais lucrativo; cada consumidor compra o que
escolhe (ibidem, p. 2).

Não é difícil imaginar os pressupostos que estão aí


implícitos. Em primeiro lugar, sobressai–se a ideologia
de que o mercado é a melhor, senão a única, instituição
capaz de alocar os recursos da sociedade da forma mais
eficiente possível. Em segundo lugar, vem a ideia de que
os recursos da economia são escassos.
Quanto à defesa ideológica que esses autores fazem do
mercado, salta à vista quando afirmam que “a produção e
o consumo são resultado de decisões descentralizadas”, de
decisões de uma economia de mercado. Com efeito, no
parágrafo seguinte asseveram que “a alternativa para uma
economia de mercado é uma economia de comando. A
União Soviética, dizem eles, são uma prova do que dizem.

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40 • O Estranho Mundo da Economia

Lá, enquanto durou o chamado socialismo real, as coisas


não “funcionaram muito bem”.
Isso prova, certamente diriam eles, que a razão está com
Smith, para quem a economia progride com o tempo na
medida em que os indivíduos são livres para aplicarem o seu
capital como bem desejarem, sem interferência de nenhum
poder, que decida, por eles, como devem empregar seus capitais.
Quer dizer, então, que o estado não despenha nenhum
papel no funcionamento da economia? Se essa questão
fosse dirigida a Krugman e Wells, diriam que o estado é
importante para manter a estabilidade da moeda e pro-
mover políticas anticíclicas. Ir além disso, significa que a
intervenção estatal estaria interferindo em atividades que
são próprias do mercado; do setor privado.
Em seguida, Krugman e Wells começam a discorrer
sobre a escassez. Começam com a afirmação segundo a
qual “cada consumidor compra o que escolhe”. Mas, por
que ele é obrigado a escolher? Os autores do texto não têm
dúvidas. Respondem que a compra sempre impõe uma
escolha porque, diante da diversidade de bens existentes,
o consumidor não pode ter tudo o que deseja. Por que
não? Para responder essa questão,
Krugman e Wells (2011, p. 6) convidam o leitor para
que ele se imagine dentro de uma

grande loja de departamento ou supermercado. Há milhares


de produtos diferentes à disposição, e é bem pouco provável
que você, ou qualquer outro, tenha condições de comprar
tudo que deseja. De qualquer modo, o espaço que você tem
no seu dormitório ou apartamento é dado, não estica. Então,
você vai comprar outra estante de livros ou uma geladeira
pequena? Dadas as limitações do seu orçamento e do seu

Livro 1.indb 14 24/10/2022 09:49:54


Convite Ao Pensar • 41

espaço, você tem de escolher entre qual produto comprar e


qual deixar na prateleira.

Afinal de contas, por que o consumidor é mesmo obri-


gado a escolher quando decide comprar algum bem? Será, se
dispusesse de grande acomodação, seria obrigado a escolher
o que comprar? Se sua renda não fosse limitada, poderia
comprar tudo o que desejasse? Krugman e Wells não se dão
conta de que, aqui, tropeçam em seguidas contradições.
Ora afirmam que a escolha é uma necessidade imperativa
por conta de restrição de espaço; ora asseveram que é por
causa da limitação de renda. Assim fica difícil conhecer
a verdadeira causa porque a escolha se impõe toda vez que
um indivíduo decide comprar alguma coisa.
Krugman e Wells não se dão conta de que sua argumenta-
ção não explica a verdadeira causa que obriga o consumidor
a escolher. Resolvem então mudar o enfoque da questão.
Passam a defender a ideia de que os recursos são escassos e,
por isso, a “escolha” é uma necessidade que se impõe toda
vez que os agentes econômicos decidem comprar algum
bem ou serviços. Não por acaso, a próxima seção traz como
título Os recursos são escassos.
A partir daí, tudo parece indicar que Krugman e Wells
são mais cuidadosos. Mas isso não passa de uma impressão
à primeira vista. Com efeito, eles ainda continuam pondo
acento na limitação de renda como fator que obriga os
consumidores a escolherem que bens comprar. Vale a pena
acompanhar mais de perto o raciocínio que desenvolvem
a seguir. Começam com a seguinte afirmação: “Você não
pode ter sempre o que quer”. – Por quê? A resposta vem
em seguida, quando eles explicam que

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42 • O Estranho Mundo da Economia

todo mundo gostaria de ter uma casa bonita (e uma faxineira),


dois ou três carros de luxo e férias frequentes em hotéis chiques.
Mas, mesmo em um país rico como os Estados Unidos, não
são muitas as famílias que podem ter tudo isso. E, assim, elas
precisam escolher – ir à Disneylândia este ano ou comprar um
carro melhor, conformar–se com um jardim bem pequeno ou
aceitar muito tempo no ônibus e viver numa área em que o
terreno é mais barato (ibidem, p. 6).

Uma leitura mais cuidadosa deste trecho mostra que


Krugman e Wells continuam com raciocínios ambíguos.
Numa parte dessa passagem, eles afirmam que “não são
muitas as famílias que podem ter tudo isso”. Aí, está a pri-
meira ambiguidade cometida por eles. Aquelas famílias que
não têm limitação de renda podem ter tudo o que desejam.
Com efeito, não dá para imaginar um Bill Gates da vida
tendo que escolher entre comprar um frango de padaria
ou jantar no restaurante mais caro da cidade.
Depois que nossos autores afirmam que “não são muitas
as famílias que podem ter tudo isso”, alegam em seguida
que “elas precisam escolher ir à Disneylândia este ano ou
comprar um carro melhor”. Quando Krugman e Wells
afirmam que as famílias precisam escolher, à exceção
daquelas que são muito ricas, estão defendo a ideia de que
a escolha é uma necessidade universal incontornável por
que os recursos são escassos?
Se é isso que têm em mente, sua argumentação não
tem fundamento lógico. Com efeito, que necessidade
incontornável é essa que tem validade para algumas famí-
lias e para outras, não? Só pode se tratar de um enunciado
universal de extensão precária. De fato, como diriam
Hume e Popper, é logicamente impossível de um número
limitado de observações singulares extrair um enunciado

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Convite Ao Pensar • 43

universal. Que o diga Popper, para quem, “não importa


quantas instâncias de cisnes brancos possamos ter obser-
vado, isto não justifica a conclusão de que todos os cisnes
são brancos” (1980, p. 3).
Mas, isso é uma questão metodológica que não preocupa
Krugman e Wells. Por isso, terminam por ferir o princípio
de não-contradição, que é tão caro à racionalidade do
discurso, quando asseveram que os recursos são; mas não
são escassos para certas pessoas que não têm limitações de
renda, como no exemplo de Bill Gates. Krugman e Wells
não se dão conta, nem por um instante, que não se pode
dizer que uma coisa é e depois, nas mesmas circunstâncias,
afirmar que essa mesma coisa não é.
Como se encontra em Aristóteles, “é impossível para
qualquer pessoa supor que uma mesma coisa é e não é”. É
justamente isso que aqueles autores afirmam, quando dizem
que os recursos são escassos, para, em seguida, admitirem
o contrário, isto é, que os recursos não são escassos, ainda
que para um número limitado de famílias.
Depois do parágrafo que abre com a assertiva “Você não
pode ter sempre o que quer”, Krugman e Wells mudam o
tom do discurso. Agora, eles começam perguntando: “Por
que os indivíduos têm de fazer escolhas?”, para responder
que a razão disso se deve ao fato de

que os recursos são escassos. Recurso é qualquer coisa que pode


ser usada para produzir alguma outra coisa. Listas de recursos
de uma economia em geral começam com terra, trabalho (o
tempo disponível dos trabalhadores), capital (maquinaria, cons-
trução e outros ativos produtivos fabricados pelo homem) e
capital humano (as conquistas educacionais e habilidades dos
trabalhadores). Um recurso é escasso quando sua quantidade
disponível não é suficiente para satisfazer todos os usos que a
sociedade quer fazer deles (ibidem, p. 6).

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44 • O Estranho Mundo da Economia

Observa-se, agora, a restrição é geral. Todos têm de fazer


escolhas, não mais porque a renda é limitada, mas, sim, por-
que os recursos são escassos. Para aqueles autores, como se
pode observar neste trecho, os recursos escassos são: a terra,
o trabalho e o capital, isto é, os fatores de produção. Mas,
pode–se afirmar que o trabalho é escasso? Decerto que não.
Um exame das estatísticas da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), revela que, hoje, existem, no mundo,
mais de 200 milhões de pessoas desempregadas.
Um contingente do tamanho da população do Brasil. É
claro que a crise agravou o desemprego estrutural já bastante
expressivo a ponto de tornar inútil o papel do Exército Indus-
trial de Reserva (EIR) no movimento de ajuste do contingente
de trabalhadores do qual o capital pode lançar mão em épocas
de aceleração do crescimento da economia.
Ao contrário do que pensam Krugman e Wells, é o capital
que determina o tamanho da força de trabalho em atividade
e o volume de uma reserva de trabalhadores de prontidão
para ser utilizada nos períodos de prosperidade econômica.
Mas, quanto ao fator capital (maquinaria, construção e
outros ativos produtivos), tem sentido afirmar que se trata
de um fator escasso. O capital não é um estoque disponível
de máquinas e equipamentos que as empresas utilizam
para a produção de bens e serviços. Mesmo se assim fosse,
todas as empresas trabalham com capacidade ociosa; isto
é: nunca utilizam plenamente a sua capacidade produtiva.
Tendo chegado a esse ponto, Krugman e Wells apresen-
tam, no capítulo 2, alguns modelos econômicos, a partir
dos quais eles constroem uma representação ideal da rea-
lidade. Um economista interessado em investigar o que é
o dinheiro, imagina, por exemplo, um sistema de trocas
que se desenvolveu nos campos de prisioneiros durante a
Segunda Guerra Mundial, em que os cigarros se tornaram

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Convite Ao Pensar • 45

o meio, através do qual eles conseguiam as coisas deseja-


das. O cigarro passou a ser, portanto, a moeda de troca,
a moeda de compra, porque era o bem mais escassos nos
campos de concentração.
Mas, o primeiro modelo que eles apresentam é o da
curva de possibilidades de produção, com a qual preten-
dem oferecer uma ideia do crescimento econômico. Para
tanto, imaginam um gráfico no qual eles apresentam as
possibilidades de produção de uma economia simples. No
eixo das ordenadas, representam a quantidade de alimentos
produzida pela sociedade, medida em toneladas. No eixo das
abcissas, a quantidade de armas produzidas pela economia.
Pressupondo que os recursos são escassos, os desloca-
mentos ao longo da curva mostram que para se obter mais
alimentos, a sociedade terá de renunciar a certa quantidade
de armas. Se, ao contrário, preferem mais armas, terá de
reduzir a produção de alimentos.
Mas, como a sociedade decide o que deve ser produzido?
Mais alimentos ou mais armas? Krugman e Wells não têm
dúvidas. Até já responderam essa questão, quando o viajante
no tempo, o colono do século XVIII, imaginado por eles,
espantado com espetáculo de bens à disposição das pessoas,
pergunta quem é o responsável por toda aquela riqueza,
que enchia seus olhos de admiração. Krugman e Wells se
apressam em dizer para o viajante que “não há ninguém
responsável. Os Estados Unidos têm uma economia de
mercado em que a produção e o consumo são resultados
de decisões descentralizadas das empresas e dos indivíduos”.
Em seguida, Krugman e Wells apresentam um outro
modelo simplificado do sistema econômico. Lançam mão
do célebre e batido fluxo circular da renda, como visto
há pouco. Trata–se de uma representação tão distante da
realidade, que até mesmo a mais inocente criatura diria

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46 • O Estranho Mundo da Economia

que aquele fluxo nada tem em comum com o mundo em


que vivem as pessoas dotadas do mínimo bom senso.
Esse tipo de modelo é obtido abstraindo da realidade
tudo que possa perturbar a apresentação da circulação real
e monetária da economia. Aqui, o uso da abstração visa
a captar o objeto em sua pureza. Infelizmente, a força da
abstração vai tão longe que acaba por eliminar o objeto
que se pretende descrever. O que se tem, no caso do fluxo
circular da renda, é uma caricatura desfigurada da reali-
dade, que nem de longe lembra a dinâmica da produção e
distribuição da renda.
Veja-se, por exemplo, o conceito de demanda que expressa
a relação entre preços e quantidades, inversamente. Mas
isso, somente acontece caso não haja interferência da renda,
do gosto, da cultura, da religião etc. É a chamada restrição
coeteris paribus. Sem isso, não se pode expressar a demanda
como uma relação entre preços e quantidade que variam
inversamente. Aqui, da força da abstração resulta um con-
ceito de demanda que só existe no mundo da imaginação.
Assim também é conceito do agente econômico racional.
O consumidor, por exemplo, é uma abstração de um indi-
víduo que nasce sob o império da dor e do prazer. Sua vida
resume-se a agir como um agente racional que, por conta
da escassez, é obrigado a viver ponderando o que lhe causa
maior prazer e menor dor quando resolve vender ou com-
prar um bem ou serviço. O modelo de agente econômico é,
portanto, de um homem econômico, cuja vida é dedicada a
ponderar entre prazer e sofrimento; não em sua relação com
outros indivíduos, mas, sim, em sua relação com as coisas
que são objeto de seu consumo. Afinal de contas, o que está
em jogo é a mensuração da utilidade, o prazer decorrente do
consumo de coisas.

Livro 1.indb 20 24/10/2022 09:49:54


Convite Ao Pensar • 47

Ora, se o que está em jogo é unicamente o prazer que a


posse e o consumo das coisas proporcionam a cada indivíduo,
a economia acaba por se transformar numa forma de saber
irracional. Realmente, num mundo onde os fios invisíveis
da divisão social do trabalho prenderam os indivíduos numa
teia de relações recíprocas, de sorte que cada particularidade
só pode satisfazer suas necessidades se entrar em contato
com outras particularidades.
Considerar o indivíduo unicamente pela perspectiva de
sua relação unilateral com as coisas, é negar a sua própria
existência; é decretar a morte do homem, como ser carente;
como ser que só pode se afirmar pela mediação do outro,
ainda que o outro apareça apenas como meio para a reali-
zação de fins particulares.
Que mundo é esse o da Economia?!
Nele, o homem é reduzido a um abstrato agente eco-
nômico racional, que existe unicamente em sua relação
unilateral com as coisas. É um mundo, pois, no qual o ser
humano está ausente. É um mundo sem história, porque dele
o homem foi expulso; sem cultura, pois nele a tradição não
tem lugar; sem memória, porque nele não existe o tempo; é
um mundo onde não mora ninguém, porque o homem lá
não habita. Seu lugar foi usurpado por um estranho agente
econômico racional.
O Estranho Mundo da Economia: Para uma Crítica aos
Manuais de Introdução à Economia nasce como crítica direta
a essa forma de fazer Economia. Sua preocupação central é
compreender como nasce o mundo em que vivem os homens,
como organizam a produção e distribuição da riqueza. Assim
como o manual de Krugman e Wells convidam o colono do
século XVIII para visitar o presente, O Estranho Mundo
da Economia faz coisa semelhante.

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48 • O Estranho Mundo da Economia

Começa com a visita de um viajante no tempo a um


recém-formado em Economia, que atende pelo nome de
George Washington Ferreira da Silva; para os mais íntimos,
somente Washington. Sua primeira preocupação foi saber
por que as pessoas têm de pagar pelos bens e serviços que
desejam. É daí que começa seu diálogo com seu anfitrião,
o Sr. Washington. Inicialmente, as perguntas do visitante
deixam-no bastante irritado, pois fala de coisas tão conhe-
cidas que sobre elas não paira nenhuma dúvida.
Infelizmente, para seu desapontamento, o visitante con-
duz o diálogo com habilidade até que o recém-formado
descubra que vale a pena se ocupar do que já é conhecido,
pois o que o visitante desejava era conhecer de um modo
inteiramente diverso e até oposto ao que já é dado como
bastante conhecido.
Com o tempo, o anfitrião descobre que nem tudo que
reluz é ouro. Com muito cuidado, o visitante conduz a
conversação de tal modo que seu anfitrião se dê conta do
movimento mediador que se encontra, subjacente e esque-
cido, aos conceitos usados pelo senso comum. Como assim?!
Quando o homem fala do dinheiro, por exemplo, a única
coisa que lhe vem à cabeça é que se trata de uma matéria,
uma quantidade de papel, ou moeda metálica, que lhe serve
para adquirir os bens necessários à sua sobrevivência. Nem
desconfia que o dinheiro é, antes de tudo, um conceito que
expressa uma forma de relacionamento entre os homens, e
que, por isso, não é simplesmente matéria, é, também, uma
forma social e, como tal, expressão de diversas formas de
relacionamento entre os homens.
Com efeito, o dinheiro que o capitalista utiliza para con-
tratar trabalhadores é muito diferente do dinheiro que estes
utilizam para comprar os bens e serviços de que necessitam.
No primeiro caso, o dinheiro é capital, pois o seu proprietário

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Convite Ao Pensar • 49

o gastou, pagando salários, para poder ganhar mais dinheiro;


trata-se, portanto, de uma relação de exploração entre duas
classes: capitalistas e trabalhadores. Por sua vez, o salário,
que o trabalhador despende, para comprar roupa, calçados,
comida etc., é apenas um simples meio de troca com o qual
adquire o que necessita para viver.
Salta aos olhos que nem tudo que está aí, que pode ser
tocado, sentido e percebido, é o que parece ser à primeira
vista. Há muito mais coisas por trás do dinheiro do que
pensam as pessoas que dele se utilizam todos os dias. Por
quê? Porque tudo que está aí, aqui e agora, só o é pela media-
ção. Com efeito, até mesmo o fato de o autor deste texto
estar aqui e agora diante de um computador, esta sua ati-
vidade imediata é mediada por toda uma história de vida e
do contexto social em que ela se insere. Não há, portanto,
conhecimento imediato. Todo saber imediato é produto
do saber mediado.
Assim, prossegue o diálogo entre o visitante e seu anfitrião,
até que este último se dê conta de que o que aprendera em
Economia estava muito distante da realidade. Mas, para
conferir como o recém-formado em Economia vai repensar
tudo o que estudara até então, só mergulhando de corpo e
alma nas páginas de O Estranho Mundo da Economia.

Crato (CE), verão de 2021

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Parte 1

O Estranho Mundo dos Homens

1. Um visitante de outro mundo

E
ra noite alta quando Washington foi subitamente
arrancado dos braços de Morfeu. Banhado de suor,
correu para a janela do quarto. Abriu as portinholas,
escancarando suas duas bandas: cada uma para um lado.
Uma rajada de vento soprou seu rosto encharcado de suor,
causando-lhe uma sensação de alívio e frescor. Sentindo-se
mais confortado, Washington espichou o pescoço para fora
do quarto e olhou para o céu.
O brilho das estrelas iluminou o cubículo onde ele descan-
sava da longa viagem que fizera da capital até o alto sertão
central; lugar onde nascera e que sempre visitava nessa época
do ano, para matar a saudade dos pais e dos amigos que
ainda teimavam em viver naquelas brenhas quase desérticas.
Não demorou muito para a claridade das estrelas se apagar.
Um clarão incandescente desceu do céu e entrou quarto aden-
tro, deixando Washington praticamente às cegas. Tremendo
dos pés à cabeça, voltou para cama e ficou sentado até sua
visão começar a divisar as coisas ao seu redor. Passado algum
tempo, o medo se foi. Washington continuava sentado à
beira da cama, quieto; quase em estado catatônico.

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52 • O Estranho Mundo da Economia

Ficou assim até sentir a presença de alguém aproximando-


-se e se sentando ao seu lado. Quis falar, mas foi contido pelo
visitante que lhe pediu calma, pois não queria amedrontá-lo;
só desejava descansar um pouco da longa viagem que fizera
pelo espaço sideral até chegar ali. Era um viajante de outro
mundo que percorria as galáxias para aprender com os habi-
tantes de planetas diferentes do seu. Sabia que Washington
era recém-formado em Economia, pois viu pendurado na
parede da sala um quadro com seu diploma de formatura.
Por isso, foi logo perguntando-lhe:
- Meu bom rapaz, permita-me perguntar qual é o seu
nome?
- Sou conhecido por Washington, mas meu nome de
batismo é George Washington Ferreira da Silva.
- Hum... É um nome esquisito. – retrucou o visitante.
- É mesmo. Você tem razão, – respondeu-lhe Washington
- Mas essa bizarrice, que carrega meu nome, devo à minha
mãe. Quando ainda era moça, ganhou uma nota de dólar
e ficou muito impressionada com o retrato de um homem
estampado naquela cédula. Achou-o muito parecido com o
seu avô. Quando soube que se tratava da figura do primeiro
presidente norte-americano, seu coração quase saiu pela
boca de tanta alegria. Muito tempo depois, quando eu já
era menino feito, ela me contou que naquele dia prometeu
a si mesma que iria batizar o seu primeiro filho com o nome
de George Washington. Tinha extremo fascínio por tudo
que era dos Estados Unidos. Quem a conhece, sabe muito
bem que ela tem guardado, num baú, dois álbuns cheios de
fotos de atores e atrizes de Hollywood. Vez ou outra, eu a
vejo folheando as páginas amareladas de suas lembranças de
menina-moça. Tem retrato de tudo que foi e ainda é consi-
derado ícone do cinema Hollywoodiano. Tem retratos de
Ingrid Bergman, Audrey Hepburn, Sophia Loren, Olivia

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O Estranho Mundo dos Homens • 53

de Havilland, Elizabeth Taylor, Ava Gardner, John Travolta,


George Clooney, Kirk Douglas, Victor Mature, John Wayne,
Clarck Gable, Marlon Brando etc. Depois dessa rememo-
ração, Washington, em tom jocoso, diz que sua mãe lhe
dera um nome partido ao meio: metade norte-americano e
metade brasileiro. Que pena! Por que minha mãe não nasceu
nos Estados Unidos da América do Norte? Talvez, hoje, eu
fosse um egresso da Universidade de Chicago? O jeito é
me conformar... Quem sabe se um dia eu não consigo uma
bolsa de estudo para fazer o doutorado por lá?!
O viajante percebe o pesar de seu anfitrião e resolve desviar
o rumo da conversa. Pede-lhe licença para fazer mais algu-
mas perguntas sobre a forma de organização da produção
e distribuição da riqueza da sociedade em que ele vive. E
começa perguntando como as pessoas adquirem as coisas
que usam para se alimentar, vestir-se; casa para morar e tudo
mais do que precisam para viver.
- Como elas conseguem tudo isso?
Washington ficou intrigado com esse tipo de indagação.
Achou-a bastante bucólica. Por isso, não pensou duas vezes:
virou-se para seu curioso visitante com certo ar de deboche,
estufou o peito com toda força dos pulmões e disparou:
- Ora, ora essa... comprando. Como mais poderia ser?
- Comprando! – exclamou o visitante misterioso. Você
quer dizer que consegue as coisas que deseja pagando por
elas?! - E continuou, com certo ar de perplexidade:
- É isso mesmo, Washington? Vocês têm de pagar por
tudo que precisam para satisfazer suas necessidades, sejam
elas provenientes do estômago ou da fantasia? Se você deseja
ir ao cinema, há que comprar um ingresso para assistir ao
filme que pretende ver? Se sente vontade de comer pipocas,
para degustá-las enquanto se deslumbra com as aventuras de
um tal de Rambo, tem de pagar também por isso? Vocês são

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54 • O Estranho Mundo da Economia

muito esquisitos. Como alguém perde seu precioso tempo


assistindo a um personagem feito de um monte de múscu-
los, sem camisa, com uma faca, um arco e algumas flexas
matando qualquer pessoa que por acaso julgue inimiga do
Tio Sam, isto é, dos Estados Unidos da América do Norte?
Você não acha tudo isso muito estranho? – pergunta o
viajante com cara de quem considera muito bizarro o fato
de alguém ter que pagar para poder ter direito de usufruir
da utilidade das coisas que deseja consumir.
Washington não entendeu o porquê da indagação carre-
gada de espanto do seu misterioso visitante. Afinal, era uma
questão tão evidente, tão simples, matuta o jovem anfitrião
de nome partido ao meio. Com ar de bazófia, comenta com
seu botões:
- Quanta bobagem! Até mesmo as crianças não titubea-
riam em responder tamanha obviedade, pois quando querem
alguma coisa pedem aos seus pais para comprar. Como é
que um sujeito desses, que se diz conhecer quase todas as
galáxias do Universo, não sabe de uma besteira dessa?
Enquanto Washington continuava entregue às suas inda-
gações, seu visitante se perguntava:
- Será que essa criatura que vive num planeta em que o
homem já visitou a lua, Marte e outros tantos confins do
universo, não sabe que as coisas que as pessoas julgam conhe-
cer tão bem, não são verdadeiramente conhecidas? Foi então
que se lembrou da lição que um pensador do século XIX
deixou aos seus leitores advertindo-os de que “a ciência seria
supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas
coincidissem imediatamente”. Será mesmo que meu caro
anfitrião não sabe que o mundo conhecido pelas ciências é
muito diferente do mundo que todos acreditam conhecer?
Se alguém perguntasse por que os corpos caem, que diria ele?
Será que responderia que caem porque são pesados? Tenho

Livro 1.indb 4 24/10/2022 09:49:54


O Estranho Mundo dos Homens • 55

cá minhas dúvidas que insistem em continuar me incomo-


dando como se quisessem confirmar que estou certo. Será
que essa pobre criatura, que acaba de concluir um curso de
nível superior, não sabe que os corpos caem por causa da
lei da gravidade e não porque são pesados?
Ocupados com suas reflexões, Washington e seu visitante
pareciam esquecidos um do outro. O silêncio foi quebrado
quando o visitante voltou a lhe perguntar:
- Por que vocês precisam de dinheiro para comprar as
coisas que necessitam? Essa é de lascar” – pensou Washington,
xingando seu visitante celestial com todos os palavrões que
lhe viam à mente. Só depois de um esforço descomunal,
conseguiu conter os excessos de seu espírito irascível. Olha
para o viajante do outro mundo e lhe responde a contragosto:
- Porque sem dinheiro ninguém pode comprar as coisas
que precisa para satisfazer suas necessidades. Todo mundo
age assim! Dinheiro existe para facilitar a vida da gente.
“Será que eu precisaria de dinheiro para comprar escravos,
num mundo em que essa barbaridade já não mais existe?”
– pensa o visitante com seus botões. Temendo provocar a
ira de seu anfitrião, resolve não lhe perguntar nada disso.
“Melhor continuar com a conversa, com o devido cuidado
para não provocá-lo mais ainda”.
O viajante é um homem afeito às mais diversas situa-
ções, é um verdadeiro diplomata. Guardou para si mesmo
a certeza de que seu anfitrião não sabia por que é preciso
ter dinheiro para comprar as coisas necessárias à satisfação
das necessidades humanas.
Continuou a pensar que se Washington ao menos fizesse
um esforço para se recordar das aulas de História, quando
ainda cursava a escola de nível médio, certamente se lembra-
ria que na sociedade feudal, por exemplo, os produtos do
trabalho humano não eram produzidos para serem vendidos.

Livro 1.indb 5 24/10/2022 09:49:54


56 • O Estranho Mundo da Economia

E não eram porque nesse mundo quase toda produção era


destinada a satisfazer diretamente as necessidades dos seus
produtores...A maioria dos produtos do trabalho dos homens
não assumia a forma de mercadoria. Consequentemente,
dinheiro era uma coisa rara, praticamente a grande parte
da população dele não precisava, pois tudo o que desejava
era produzido diretamente para o consumo e não para ser
vendido. Tudo isso muda, quando o produto do trabalho
humano já traz em sua marca de nascença que foi produ-
zido para o mercado. É a partir daí que tudo vira mercado-
ria. É então que o dinheiro se impõe como uma necessidade
inexorável, pois quem não tem essa coisa não pode comprar
o que precisa para matar sua fome, para se vestir, para morar,
para matar a sede, para ir ao cinema, para viajar etc.
Essas meditações do visitante demonstram que as coisas
que o homem deseja para satisfazer suas necessidades nem
sempre foram mercadorias. Somente com a destruição do
feudalismo e com a chegada do capitalismo é que a riqueza
aparece “como uma enorme coleção de mercadoria”. Quando
tudo que existe, existe como mercadoria, ninguém pode
viver sem dinheiro, pois dele precisa para comprar coisas.
Como a maioria de seus colegas, Washington não tinha
a minha ideia de que existe uma diferença histórica abismal
entre o conceito bens e o conceito de mercadorias. Ele, como
todo mundo, está tão acostumado com o mundo em que
vive, que nem se dá conta de que é filho de uma sociedade
em que os bens e serviços assumem a forma de mercado-
ria. Por isso, Washington não questiona mais o fato de que
sem dinheiro, não se come, não se bebe, nem tampouco se
pode viajar, ir ao cinema etc.
Nem mesmo lhe causa indignação quando a justiça desa-
propria um pobre de sua palhoça para restituir ao proprietá-
rio o terreno sobre o qual o desgraçado construiu sua morada

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O Estranho Mundo dos Homens • 57

feita com compensado, lona e papelão. Muito menos lhe


causa ira saber que o dono do terreno mora numa cobertura
com mais de 500 metros quadrados e que vive da especu-
lação imobiliária. Ninguém diz nada, pois tudo isso virou
rotina. Contra esse estado de coisas a única saída é apelar
para a justiça divina, pedir a Deus que ampare os desvali-
dos,Como canta o grande Adoniram Barbosa, com sua voz
rouca, a “sua saudosa maloca”.

Se o sinhô não está lembrado Dá licença de contá


Que aqui onde agora está Esse adifício arto
Era uma casa velha
Um palacete abandonado Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca Construímos nossa maloca
Mas um dia, eu nem quero me alembrá Veio os homis c’oas
ferramenta Que o dono mandô derrubá
Peguemos tudo as nossas coisas E fumos pro meio da rua
Apreciar a demolição
Que tristeza que eu sentia Cada táuba que caía Doía no coração
Mato Grosso quis gritá Mas em cima eu falei Os homis tão cá
razão Nós arranja outro lugar
Só se conformemos quando o Joca falou Deus dá o frio conforme
o cobertor
E hoje nós pega páia nas gramas do jardim E pra esquecê, nós
cantemos assim Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossa vida Saudosa
maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas.”

- Você está certo, Adoniran, os “homis tá cá razão”. Num


mundo onde tudo que existe, existe como mercadoria, não
é a Bíblia que é sagrada, mas sim, a propriedade privada.
Desde o século XVI, quando os portugueses se abalançaram

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58 • O Estranho Mundo da Economia

mar adentro e aqui chegaram, dividiram esse imenso terri-


tório entre doze capitanias hereditárias, que foram dadas
aos nobres que gozavam da confiança do rei D. João III
(1502‐1557).
O visitante resolve dar asas à sua imaginação e começa
a aprofundar suas reflexões. Inicia destacando que foi a
partir de 1532 que teve início, de fato, a exploração das
terras da colônia portuguesa. Aqueles herdeiros, agracia-
dos com o título de proprietário pelo rei de Portugal, fize-
ram sua fortuna colhendo o que nunca plantaram. Com
efeito, chegaram aqui com seus trabalhadores acorrenta-
dos pelo pescoço: seus escravos, a quem cabia produzir a
riqueza, não para si, mas, sim, para seus donos.
Enquanto o Brasil permaneceu praticamente povoado
por senhores e escravos, os grandes proprietários não se
preocupavam em legalizar suas propriedades. As coisas
mudam quando a população de não escravos aumenta.
Depois da Independência, os senhores de escravos come-
çam a criar leis para proteger suas posses. Pouco tempo
depois da emancipação política do país, os donos de terras,
herdadas da corroa portuguesa desde os tempos memorá-
veis das capitais hereditárias, instituíram a lei n. 601, de
18 de setembro de 1850, amplamente conhecida como
Lei de Terras.
Esse dispositivo legal tratou de regulamentar a questão
fundiária no Império do Brasil. A partir daí, foi estabe-
lecido que a única forma de acesso às terras devolutas da
nação seria, através da compra ao estado em hasta pública.
Esta lei definiu também penas para aqueles que se apos-
sassem indevidamente de terrenos públicos ou privados
e neles pusessem fogo ou derrubassem mato, sendo estes
casos sujeitos à expulsão, prisão de seis meses a dois anos,
além de pesadas multas.

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O Estranho Mundo dos Homens • 59

Com a regulamentação legal da propriedade, como diria


Adam Smith, os proprietários podiam dormir à noite com
segurança. Afinal, como assim entendia Tomas Hobbes,
onde não há estado nada pode ser injusto. De modo que
a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos
válidos, mas a validade dos pactos só começa com a insti-
tuição do poder civil suficiente para obrigar os homens a
cumpri-los, e é também só aí que começa a haver proprie-
dade (Hobbes, 1979, p. 87). Logo, comete injustiça aquele
que se apropria das coisas alheias; quem invade a proprie-
dade alheia. Quem o faz está transgredindo a lei, comete
um crime, cuja reparação vem sob a forma de pena, com
restituição da propriedade a seu verdadeiro dono e castigo
àquele que se apossou do que não era seu...
Absorto em suas reflexões, o viajante se pergunta o que
significa representar a justiça com uma venda nos olhos:
- O que isso quer dizer? Que todos são iguais perante a lei?
É claro que, ainda que formalmente, todos indivíduos
são vistos com sujeitos do direito, isto é, como sujeitos
portadores de direito e, como tais, o estado existe para
garantir o direito de todos. No entanto, o viajante sabe que
a propriedade é um direito fundamental, uma instituição
inviolável, pois ela é a pedra de toque do mundo capita-
lista. Com efeito, no capítulo I, Artigo 5º da Constituição
Federal, de 1988, que dispõe sobre os Direitos e Garantias
Fundamentais do indivíduo, está escrito no inciso XXII
que ‘é garantido o direito de propriedade’. No inciso seguinte,
XXIII, lê‐se que ‘a propriedade atenderá a sua função social’.
Caso não o faça, o incisivo XXIV determina que ‘a lei esta-
belecerá o procedimento para desapropriação por necessidade
ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa
e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previs-
tos nesta Constituição’.

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60 • O Estranho Mundo da Economia

Não é preciso nenhum esforço intelectual para perce-


ber que o Artigo 5º da CF, notadamente os incisos XXIII
e XXIV, transformou-se num preceito escrito que não se
cumpriu, ou que nunca teve autoridade, nem valia. Numa
linguagem “pé no chão”: o que preceitua o inciso XXIV
não passou de letra morta, malgrada a luta dos movimen-
tos sociais pelo direito à terra. Por isso, não adianta lamen-
tar nem pedir conforto a Deus, pois o mundo tem dono.
Quem não é dono de terras, de bancos, de empresas, não
tem outra saída que não vender a propriedade que traz em
seu corpo: a sua força de trabalho. Essa é a única merca-
doria de que dispõem os despossuídos de propriedade
para vendê-la no mercado em troca de um salário; e isso
quando encontra quem a compre.
O viajante tinha conhecimento de tudo isso. Sabia
muito bem que o dinheiro só se tornou uma coisa inevi-
tável, sem o qual ninguém pode comprar o que precisa,
quando o produto do trabalho do homem virou merca-
doria. Sabia também que a propriedade não é produto do
trabalho pessoal; se fosse assim, os escravos seriam, hoje,
os donos do Brasil, pois foram eles que criaram a riqueza
dos barões do açúcar e do café.
A conclusão óbvia que daí se infere é a de que o traba-
lhador não é o dono das coisas que ele produz. Pergunte a
um padeiro de uma grande panificadora a quem pertence o
pão que ele produz. Ele não pensaria duas vezes: “pertence
ao meu patrão”, diria ele. “Se eu quiser levar algum pão
para minha casa, terrei que fazer o que todo mundo o faz;
tenho que comprar o pão que eu mesmo produzi”. Pior
do que isso, é o fato de que é com a venda do produto
criado por seus trabalhadores, que os patrões pagam seus
salários. Ao contrário do que pensa o senso comum, não

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O Estranho Mundo dos Homens • 61

é o patrão que paga o salário de seu empregado, mas, sim, é


este que paga seu próprio salário.
Receoso de que, se dissesse isso para Washington, ele o
chamaria de comunista, o viajante retira de uma maleta
metálica um exemplar de A Riqueza das Nações, de Adam
Smith, escrito em 1776. Abre-o no capítulo VI, do Volume
I, e lê para seu anfitrião a seguinte passagem:

no momento em, que o patrimônio ou capital se acumulou


nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente
empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, forne-
cendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro
com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que este
trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao trocar-se o
produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou por outros
bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos
materiais e os salários dos trabalhadores, deverá resultar algo
para pagar os lucros do empresário (Smith, 1985, p. 77- 78).

- Veja, meu caro Washington – diz o visitante – Smith


não poderia ter sido mais claro nessa passagem, que acabei
de ler para você. Aí, ele, que é considerado o pai do libera-
lismo econômico, diz com todas as letras que o valor criado
pelo trabalhador “além do que pode ser suficiente para pagar
o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deverá
resultar algo para pagar os lucros do empresário”. Mais dire-
tamente, o que ele diz é que o trabalhador é obrigado a criar
um valor para seu patrão, cuja grandeza deve ser suficiente
para pagar o seu salário e o lucro do seu empregador. Nesse
mundo em que o trabalhador não é dono das coisas que
produz, resta a canção “Cidadão”, na voz de Zé Ramalho,
tão somente lamentar a sorte daqueles vivem da venda de
sua força de trabalho, tal como o faz “Saudosa Maloca”:

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62 • O Estranho Mundo da Economia

Tá vendo aquele edifício, moço? Ajudei a levantar


Foi um tempo de aflição Era quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto Mas me vem um cidadão
E me diz, desconfiado Tu tá aí admirado
Ou tá querendo roubar? Meu domingo tá perdido Vou pra casa
entristecido Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer
Tá vendo aquele colégio, moço? Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento Fiz a massa, pus cimento Ajudei a
rebocar
Minha filha inocente
Vem pra mim toda contente Pai, vou me matricular Mas me
diz um cidadão
Criança de pé no chão Aqui não pode estudar Essa dor doeu
mais forte
Por que é que eu deixei o Norte? Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava Tinha direito a comer
‘Tá vendo aquela igreja, moço? Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo Enchi minha mão de calo Lá eu traba-
lhei também Lá foi que valeu a pena
Tem quermesse, tem novena E o padre me deixa entrar Foi lá
que Cristo me disse Rapaz deixe de tolice
Não se deixe amedrontar Fui eu quem criou a terra Enchi o
rio, fiz a serra Não deixei nada faltar Hoje o homem criou asa
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar
Fui eu quem criou a terra Enchi o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar Hoje o homem criou asas E na maio-
ria das casas
Eu também não posso entrar.

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O Estranho Mundo dos Homens • 63

- Esta canção termina com um apelo aos desfortuna-


dos para que eles parem de lamentar sua condição de vida,
pois até mesmo Deus, que criou a terra, encheu os rios,
não deixou nada faltar, “na maioria das casas/[...] também
não pode entrar”. Que pena que o mundo seja assim! No
entanto, pelo menos uma lição deixa esta canção. Ela mostra
que a cidadania não depende da Lei; não basta ter um regis-
tro civil de nascimento; tampouco uma carteira profissio-
nal sem registro de contrato de trabalho. Pois a realidade
ensina que cidadão é aquele que tem propriedade; que tem
casa para morar; que tem condições de oferecer uma boa
educação aos seus filhos; que possa dispor de bons advo-
gados para defender seus direitos etc. É assim mesmo que
o liberalismo vê o mundo! – diz o viajante olhando para
Washington.
Para dar prova do que diz, o visitante tem, entre as mãos,
um exemplar do Segundo Tratado Sobre o Governo, do filósofo
John Locke (1632-1704), considerado, por muitos, como
o verdadeiro pai do liberalismo político. Para este pensa-
dor, a propriedade privada é produto do trabalho indivi-
dual, do esforço pessoal que cada indivíduo realizou para
amealhar seu patrimônio, tal como pensa Smith. Foi assim
desde sempre; desde quando Deus expulsou Adão e Eva
do paraíso, e os amaldiçoou a viver, daí em diante, do suor
do seu próprio rosto. Mas “Deus é bom, nunca abandona
seus filhos”, dizem. Castigou Adão e Eva, mas, no entanto,
lhes deu a Terra e tudo que ela contém para sustentá-los e
prover o conforto de sua existência e a de seus descendentes.
Esse mito é o pressuposto de onde parte Locke para
explicar a origem da propriedade privada. Com efeito, para
este filósofo, Deus, quando deu “o mundo aos homens em
comum”, doou também, ao mesmo tempo, a cada homem
uma propriedade natural que se encontra inseparavelmente

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64 • O Estranho Mundo da Economia

ligada a ele: seu trabalho, ou seja, sua capacidade de trans-


formar a natureza para produzir os bens e serviços necessá-
rios à sua sobrevivência na face da Terra. Consequentemente,

seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forne-
ceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho,
juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornan-
do-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que
a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que
exclui do direito comum de outros homens (Locke, 1978, p. 45).

A propriedade aparece, assim, como uma instituição


natural, pois é, igualmente, produto de uma outra proprie-
dade natural do homem: o seu trabalho pessoal. Partindo
deste pressuposto, Locke passa, então, a investigar como
se determina o valor da propriedade. Por meio de um
raciocínio engenhoso, ele descobre que o valor das coisas,
as quais o homem retira da natureza, deve-se ao trabalho
despendido por ele (homem) para delas se apropriar. Para
demonstrar que o trabalho, é, portanto, a medida de valor
das coisas, ele recorre ao seguinte exemplo:

considere qualquer uma diferença que existe entre um acre


de terra plantada com fumo ou cana-de-açúcar, semente de
trigo ou cevada e um acre da mesma terra em comum sem
qualquer cultura e verificará que o melhoramento devido ao
trabalho constitui a maior parte do valor respectivo. Acho
que será cálculo muito modesto dizer que, dos produtos
da terra úteis à vida do homem, nove décimos devem-se ao
trabalho; ainda mais, se avaliarmos exatamente tudo quanto
nos chega às mãos para o nosso uso e calcularmos as diver-
sas despesas correspondentes, tanto o que se deve tão-só à
natureza quanto ao que se atribui ao trabalho, verificaremos

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O Estranho Mundo dos Homens • 65

que, em muito deles, noventa e nove centésimos têm-se de


levar à conta o trabalho (Locke, 1978, p. 50).

É interessante observar que o trabalho não é a única


fonte de valor. Como se pode notar no trecho acima citado,
além do trabalho, Locke computa, no valor das coisas, uma
parcela devida à natureza. Leva, portanto, em consideração
a utilidade que a mãe natureza dá aos produtos. Apenas
dessa dupla determinação do valor, Locke tinha consciên-
cia de que o trabalho tendia a crescer sua participação na
formação do valor, na medida em que a divisão social do
trabalho avançasse.
É o que se pode depreender numa passagem em que ele
distingue com clareza, embora não se refira explicitamente
aos conceitos, a diferença entre trabalho vivo e trabalho
morto. Depois de argumentar que é o trabalho que atribui
maior parte do valor à terra, ele conclui dizendo que

É a ele que devemos a maior de todos os produtos úteis da terra;


por tudo isso a palha, farelo e pão desse acre de trigo valem
mais do que o produto de um acre de terra realmente boa, mas
abandonada, sendo o valor daquele o efeito do trabalho. Não
é simplesmente o esforço do lavrador, a labuta do ceifador e o
suor do pedreiro que têm de concluir no pão que comemos; o
trabalho dos que amansaram os bois, extraíram e prepararam os
ferros e as mós, derrubaram as árvores e prepararam a madeira
empregada no arado, no moinho, no forno ou em outros uten-
sílios quaisquer, que são em grande parte indispensáveis a esse
trigo, desde que foi semente a plantar-se até transformar-se em
pão, terá de computar-se à conta do trabalho, e receber-se como
efeito deste; a natureza e a terra fornece somente os materiais
de menor valor em si (ibidem, p. 51).

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66 • O Estranho Mundo da Economia

- Daí se pode concluir, sem muito esforço intelectual,


que o trabalho é a fonte da propriedade, e que seu valor é
determinado pela extensão do trabalho de cada um, isto é,
pelo esforço que cada indivíduo despendeu para criar suas
coisas – sua propriedade. Ora, ora, se o valor da proprie-
dade depende da extensão do trabalho individual, isto é, do
esforço que cada um realiza para produzir seus bens, então,

nenhum trabalho do homem podia tudo dominar ou de tudo


apropriar-se, nem a fruição consumir mais do que uma pequena
parte, de sorte que era impossível para qualquer homem, dessa
maneira, usurpar o direito de outro ou adquirir para si uma
propriedade com prejuízo do vizinho, que ainda disporia de
espaço para a posse tão boa e extensa (ibidem., p. 48).

- Mas, se é assim, como se explica a desigualdade social?


- A resposta que se encontra em Locke é simples: para ele,
a concentração da propriedade em mãos de uma minoria
se deve a invenção do dinheiro. É o que ele deixa transpa-
recer nessa passagem, na qual afirma que

seja lá como for, ao que não quero dar importância, ouso afir-
mar corajosamente o seguinte: – a mesma regra de propriedade,
isto é, que todo o homem deve ter tanto quanto possa utilizar,
valeria ainda no mundo sem prejudicar a ninguém, desde que
existisse terra bastante para o dobro dos habitantes, se a inven-
ção do dinheiro e o tácito acordo dos homens, atribuindo um
valor à terra, não tivesse introduzido – por consentimento –
maiores posses e o direito a elas [...] (ibidem., p. 4/49).

- Se o homem não tivesse inventado o dinheiro, ah!, que


bom seria o mundo; não haveria desigualdade social, não
haveria fome, não haveria guerra, nem assassinatos etc.

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O Estranho Mundo dos Homens • 67

Infelizmente, esta invenção possibilitou que uns poucos


pudessem possuir mais do lhe permitia a extensão do seu
trabalho pessoal, individual. Noutras palavras, poderia
comprar a propriedade dos outros e, assim, construir um
enorme patrimônio. Bem que se poderia perguntar a Locke
por que somente uma minoria tem dinheiro para comprar a
propriedade dos outros indivíduos. Nem de longe Locke se
preocupou em formular tal questão. Para ele, o dinheiro é
um fato. Sua preocupação era de outra natureza. Sabia que
a desigualdade de riqueza poderia criar um estado de perpe-
tua inquietação social. Para evitar que isso tornasse impossí-
vel a vida em sociedade, Locke advoga a criação do estado,
pois somente sob proteção dessa instituição, os proprietários
poderiam dormir à noite sem medo de ver sua propriedade
invadida. Essa instituição nasce, portanto, com a função
proteger a propriedade. Que ele mesmo o diga, para quem:
“o objetivo grande e principal [...] da união dos homens em
comunidade, colocando-se eles sob o governo, é a preser-
vação da propriedade (ibidem, p. 82).
Ora, se a função primordial do Estado é proteger a proprie-
dade dos cidadãos, Locke entende a cidadania como um
atributo da propriedade. Obviamente, com o desenvolvi-
mento da sociedade e o aprimoramento das instituições,
as constituições ampliaram o escopo do direito, e, hoje, a
população em geral tornou-se detentora de alguns direitos
elementares. Tais como, direito à saúde (embora se morra
na fila de espera por um atendimento médico), à educa-
ção (embora a escola pública esteja longe da ideal), à liber-
dade de ir e vir (desde que a maioria reconheça seu lugar),
à inviolabilidade da intimidade, da vida privada (para aque-
les que não moram em favelas) etc.
Mesmo assim, a propriedade continua sendo reconhe-
cida como uma instituição natural e inviolável. Ninguém

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68 • O Estranho Mundo da Economia

pode se apossar da propriedade alheia, por maior que seja a


necessidade de quem pratica um ato desta natureza. Mesmo
considerando que a propriedade esteja em desuso há muito
tempo, se alguém se apossa dela, vem a lei e despeja o “inva-
sor” para reintegração de posse. Daí, talvez, se explique a
resignação que as canções “Saudosa Maloca” e “Cidadão”
deixam transparecer, diante da frieza da justiça que mandou
derrubar palhoça de um, e impediu o outro de matricular
a filhinha no colégio que ele ajudou a construir.
Depois dessa longa digressão, voltemos ao viajante que
não se conteve e brada com todas as letras:
– No mundo dos homens, nada é natural
Infelizmente, Washington via tudo de forma muito natural.
E assim tudo vê porque desde que se entende por gente,
o mundo sempre foi assim. Daí, a razão de sua irritação
com as perguntas, aparentemente triviais, do visitante, para
quem, no mundo dos homens, nada é como aparenta ser
à primeira vista.
Por isso, o viajante resolveu retomar a leitura de A Riqueza
das Nações, escrito em 1776. Só que, desta vez, retirou
também de sua maleta um exemplar de O Capital, de Karl
Marx, cuja primeira edição veio a público em 1867. Folheou
as páginas iniciais da primeira destas obras e encontrou, no
capítulo II, uma passagem em que seu autor diz que, num
mundo em que todos os produtos criados pelo trabalho do
homem são mercadorias, cada indivíduo

terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir


interessar a seu favor a autoestima dos outros, mostrando–
lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de
que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um
negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto
aqui, que você quer [...]. É dessa forma que obtemos uns dos

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O Estranho Mundo dos Homens • 69

outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não


é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro
que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm
pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humani-
dade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas
próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles
(Smith, 1985, p. 50).

Ao findar a leitura deste trecho, o visitante fechou o


livro e o guardou cuidadosamente... Após uma pequena
pausa, olhou para seu anfitrião e observou:
- Que mundo esquisito é esse de vocês, meu bom anfi-
trião? – e continuou fazendo referência à passagem que
acabara de ler – Agora, fica claro por que vocês têm de
comprar tudo o que precisam. É porque tudo o que vocês
produzem assume a forma de mercadoria, uma coisa desti-
nada à venda. Por isso, o mundo de vocês é tão desumano,
como diz o autor de A Riqueza das Nações. Solidariedade,
bondade, humanidade, são sentimentos que as pessoas não
levam em conta em suas relações umas com as outras. Que
coisa, meu bom anfitrião! O modo de agir de vocês, como
diria a filosofia, é uma verdadeira contradição performa-
tiva, pois suas ações são a negação do que afirmam. Pregam
o amor, a solidariedade, a humanidade, mas jogam fora
esses atributos em nome do interesse próprio.
Washington ouvia seu interlocutor calado. Envergonhado,
cobriu–se com as vestes da humildade e pôde perceber que
nem tudo que reluz é ouro. E não é mesmo, caro Washigton.
Se tudo que reluzisse fosse ouro, o mundo não precisa-
ria de geólogos. Passado algum tempo, o curioso visitante
lembra-se de que Washington havia lhe dito que o dinheiro
é um simples meio de troca e lhe pede mais explicações. Já

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70 • O Estranho Mundo da Economia

esquecido da vergonha que passara há pouco, Washington,


num tom professoral, acrescenta:
- O dinheiro é produto de uma convenção social, que
atribuiu ao ouro a função de servir de moeda de compra e
venda. Com o tempo, o ouro foi destituído de sua função.
Foi substituído por pedaços de papel, as chamadas cédu-
las impressas pelo estado.
Mais confiante, Washington foi mais longe. Todo empol-
gado com seu conhecimento sobre o dinheiro, acrescen-
tou que este, além de servir de meio de troca, é unidade
de conta e reserva de valor.
Extenuado pelo esforço que fizera, Washington se vira
para seu visitante e exclama:
- Aí está o que a Economia ensina sobre o dinheiro, meu
caro viajante!
Tomado pela sensação de quem havia respondido com
todo rigor o que lhe fora perguntado, Washington não
cabia em si de contentamento. Tinha certeza de que agora
seu visitante daria o assunto do dinheiro por encerrado.
Pobre coitado! Mal acabara de colher os louros de seus
ensinamentos sobre o dinheiro, foi sacudido com uma
enxurrada de outras questões.
- Certamente você deve ter lido A Teoria Geral do Emprego,
do Juro e da Moeda, de J. Maynard Keynes (1985), para
quem, o dinheiro é um ativo estratégico para a economia
monetária da produção. Você poderia me explicar por que
este autor diz que o dinheiro é um ativo estratégico?
Insiste o viajante que não se conformou com a explica-
ção que lhe fora dada pelo jovem Washington. E, como
não obteve resposta, o viajante resolveu apresentar seus
argumentos sobre o assunto. Porém, para não ferir o ego
do seu anfitrião, o visitante começa sua exposição assim:

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O Estranho Mundo dos Homens • 71

- Dizer que o dinheiro é um ativo estratégico parece que


tem a ver com o comportamento dos investidores. Durante
a viagem que fiz até chegar aqui, li que aquele autor consi-
dera que os investidores pensam duas vezes antes de tomar
suas decisões. Ponderam sempre se seria melhor não abrir
mão da liquidez, isto é, do dinheiro, ou se deveriam inves-
tir seu bom dinheirinho na esperança de receber futuros
rendimentos que, calculados a preços de hoje, podem se
mostrar bem mais vantajosos. – acrescenta – Se estou certo,
meu caro jovem, dinheiro é uma coisa muito mais compli-
cada do que você me ensinou. Você concorda com comigo?
O jovem Washington, que havia jogado fora as vestes
da humildade, volta a vesti- las e vê-se instado a dizer que
não se interessou muito pela questão do dinheiro. Sentiu-
se obrigado a confessar para seu curioso visitante que não
leu Keynes. Confessa a contragosto que nunca se deu ao
trabalho de ler um autor tão complicado como este. Diz
para seu visitante que só o título dessa obra, A Teoria Geral
do Emprego, do Juro e da Moeda, desanima qualquer leitor
a se dispor a lê-la do começo ao fim.
- É uma leitura muita chata e difícil –, acrescenta
Washington em seguida. – Quem precisa perder tempo com
um autor como este se há vários manuais de macroeconomia,
fáceis e didáticos? – conclui ele.
- “Pobre coitado!” – exclamou o viajante para si próprio.
“Meu pobre anfitrião nem de longe desconfia que os livros
didáticos trazem um dedo apontado para o leitor, com
uma mensagem insultante que poderia ser assim expressa:
‘você é burro. Deixe que eu penso por você; lhe dou tudo
mastigadinho. Você não precisa perder tempo com coisas
tão difíceis, traduzo-as para você’.”.
Washington não é uma exceção! Para ele, como também
para a maioria dos estudantes, esse tipo de insulto nem

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72 • O Estranho Mundo da Economia

sequer é percebido como tal, pois todos se habituaram a viver


num mundo em que a produção de saberes é uma produ-
ção feita de migalhas. Com efeito, o homem converteu-se
num homo ignotus, caiu num estado de anorexia intelec-
tual. Já não lê mais os grandes clássicos da Economia e da
Filosofia, que edificaram o pensamento político da moder-
nidade. Prefere os manuais didáticos, que lhe poupam o
aborrecimento de pensar.
Também não leu Machado de Assis, Graciliano Ramos,
Guimarães Rosa, Kafka, Drummond, Fernando Pessoa,
Shakespeare, dentre outros. Caso tenha oportunidade de se
deparar com um livro desses monstros da literatura nacio-
nal e mundial, desanima só de olhar o número de páginas
que tem de ler. Mesmo que consiga ler as primeiras pági-
nas, logo cai em desânimo e o abandona por um texto que
fale de bruxaria, esoterismo e coisas do gênero.
Há muito que o homem perdeu o gosto pela leitura. Já
não lê mais textos demorados que exijam, dele, o mínimo
esforço para compreendê-los; prefere textos que o dispen-
sem de pensar, pois é mais cômodo que outros o façam por
ele, que simplifiquem para ele tudo que demanda tempo
para ser compreendido; se possível, que reduzam as teorias
sistêmicas, complexas, em meia dúzia de enunciados, que
caibam em poucas páginas.
Num mundo assim, encontrar alguém que leia a Teoria
Geral, de Keynes é quase um milagre. Há muito que os
clássicos da Filosofia, da Economia Política, da Sociologia,
todos eles estão nas bancas de revistas, para serem lidos em
90 minutos. A obra de uma vida inteira, como a de Kant,
Hegel, Marx, Smith, Ricardo, por exemplo, é condensada em
poucas e ligeiras palavras. Alguns trechos de fácil compreen-
são são selecionados para o leitor citá-los e, assim, pousar
de intelectual diante de uma plateia tão ignorante quanto

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O Estranho Mundo dos Homens • 73

ele. Num mundo assim, em que quase todos se tornaram


cegos, quem tem um olho é rei. Daí, porque muitos autores
não precisam de muitos esforços para se tornarem conhe-
cidos do público.
Agora se explica por que simplificaram a teoria de Keynes
em poucas equações matemáticas! –, exclamou o viajante.
Sem mais se dirigir a seu anfitrião, comenta para si mesmo
o que fizeram com a obra deste autor:

“Em 1937, um economista britânico, John Richard Hicks, profes-


sor da universidade de Oxford, elaborou uma síntese entre a
Teoria Neoclássica e a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda, através de uma formalização matemática que ficou
conhecida como modelo IS/LM... Ora! Esse tipo de modelo
termina por desfigurar a teoria de Keynes.”.

Com um ar de descontentamento, o viajante resolve


resumir o que significa o modelo IS/LM. Explica que a
curva IS mostra a relação entre as diversas taxas de juros
e do produto, ao longo da qual a poupança (S) é igual ao
investimento (I). A curva LM, por sua vez, expressa a rela-
ção entre os diferentes níveis de produção e taxas de juros,
com a pressuposição de que a oferta de moeda (M) é igual
à demanda de moeda (L). Onde essas duas curvas se inter-
ceptam, tem-se o ponto de equilíbrio entre a produção (o
lado real da economia) e a taxa de juros (o lado monetário
da economia).
Depois deste resumo, o visitante do outro mundo olha
para seu anfitrião, o Sr. Washington e brada:
- Isto não passa de uma simplificação grosseira da Teoria
Geral de Keynes. No entanto – acrescenta, com certa ironia
–, há de se reconhecer que o modelo IS/LM é muito inte-
ressante para os alunos de macroeconomia, pois de maneira

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74 • O Estranho Mundo da Economia

lúdica, lhes ensina como se constrói essas curvas e como


podem, com elas, brincar de fazer políticas econômicas.
Deslocando a curva IS para cima ou para baixo, o aluno
aprende como se faz políticas fiscal e monetária. Este é o
lado bom do modelo, se é que há realmente alguma coisa
de bom nisso tudo, meu caro Washington – exclama o visi-
tante. No entanto, não se pode deixar de examinar o reverso
da medalha. O Keynes que aparece no modelo IS/LM é um
Keynes desfigurado, irreconhecível. Sua teoria não cabe em
poucas equações matemáticas. O princípio de demanda
efetiva, que é o ponto central em torno do qual gira a sua
teoria e a crítica que ele faz à economia neoclássica, é obli-
terado no modelo elaborado por John Hicks. Com efeitos,
uma leitura cuidadosa do capítulo 3 de sua obra, que traz
como título O Princípio de Demanda Efetiva, não deixa
dúvidas. Neste capítulo, o leitor encontra que esse princípio
revela que 1) o consumo de bens finais depende do cresci-
mento da renda (salários e lucros); 2) que o crescimento no
volume de emprego depende do aumento nos investimentos,
e estes, por sua vez, 3) dependem da eficiência marginal de
capital (taxa de lucratividade esperada) e das taxas e juros, e,
finalmente, que as despesas em bens de consumo e bens de
investimentos somam-se para determinar o nível de renda.
Visto que o consumo é uma variável dependente da renda,
esta passa a ser determinada, fundamentalmente, pelas despe-
sas em investimentos. Em consequência, o investimento é
a variável privilegiada na análise keynesiana do funciona-
mento da dinâmica da economia capitalista, e que, por isto
mesmo, o investimento é o elemento dinamizador na gera-
ção de emprego. Ao mesmo tempo que o nível de produção,
de consumo e de emprego depende do investimento, não se
deve esquecer que este é extremamente instável – ressalta o
visitante – E não poderia ser diferente! – continua.

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O Estranho Mundo dos Homens • 75

Explica que, numa economia monetária, as decisões dos


capitalistas em gastar na implantação de fábricas, equipa-
mentos e instalações, dependem das previsões que eles fazem
acerca do futuro, e tais previsões são extremamente precárias.
Keynes ressalta este caráter de incertezas da economia, enfa-
ticamente, no capítulo 12 de sua obra, quando assevera que

o fato mais destacado na matéria é a extrema precariedade dos


dados em que terão de basear-se os nossos cálculos das rendas
prováveis. O nosso conhecimento dos fatores que governarão
a renda de um investimento alguns anos mais tarde é, em geral,
muito limitado e com frequência desdenhável [...]. As bases do
nosso conhecimento para calcular a renda provável dos próxi-
mos dez anos, ou mesmo cinco [...], se reduzem a bem pouco
e, às vezes, a nada (Keynes, 1985, p. 203).

Esta instabilidade, na verdade, – comenta o visitante do


outro mundo – diz respeito ao fato de que as decisões de
investimentos, na sociedade capitalista, são decisões que
têm que ser tomadas numa economia monetária. - E o que
significa uma economia monetária? - Pergunta o visitante,
para responder que não se trata de uma economia no sentido
de que o dinheiro é considerado como uns simples meios
de troca, mas, sim, diz respeito a uma economia cuja fina-
lidade da produção é o lucro monetário. Por isso, arremata
o viajante:
- O dinheiro aparece como o ativo estratégico da socie-
dade. A decisão de investimento, portanto, é uma decisão
problemática porque investir significa renunciar ao dinheiro,
da posse desse ativo estratégico, pois, ao mesmo tempo, o
dinheiro é uma reserva de valor. Quando o capitalista decide
gastar para gerar emprego e gerar renda, ele está, perma-
nentemente, “avaliando a lucratividade produtiva desse

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76 • O Estranho Mundo da Economia

investimento com o uso que ele pode fazer para dizer, de


forma simplificada, do dinheiro, da liquidez, que está em
suas mãos, do capital monetário que possui”. Daí, caro
Washington, a extrema instabilidade nas decisões de investir.
É esta instabilidade que é responsável pelos ciclos econô-
micos da economia capitalista, que se manifestam alterna-
damente por fases de recessão-depressão-recuperação. As
crises que se fazem acompanhar por um incremento no
desemprego, não podem, portanto, ser atribuídas a uma
redução no consumo de bens finais pelos consumidores.
Elas são resultado, em primeira instancia, das oscilações
dos níveis de investimento. Entende-se, agora, porque
ocorre desemprego. Nas fases recessivas, a redução dos
investimentos (principal determinante do crescimento da
renda) implica queda no nível de renda e consumo, resul-
tando em desemprego. Sendo o investimento o principal
determinante do crescimento econômico, é ele a variável
chave explicativa da insuficiência da demanda efetiva, e
não o consumo de bens finais, como querem fazer crer as
teorias subconsumistas, que creditam ao consumo final o
elemento dinamizador do processo de acumulação. Para
Keynes, a produção de bens de consumo final é dependente
do que se passa nos setores de bens de capital (máquinas,
equipamentos etc). Isto está claro no próprio enunciado do
princípio de demanda efetiva, que afirma ser o consumo
dependente da renda e que esta última é determinada
pelos gastos capitalistas, pelos investimentos. Em síntese,
meu caro Washington, a dinâmica da economia é ditada
pelos gastos dos capitalistas. Quanto mais eles gastam
contratando trabalhadores, comprando matérias-primas,
máquinas etc., mais eles ganham. São eles, portanto, que
decidem se vale a pena ou não renunciar a seu bom dinhei-
rinho para investir e, assim, fazer crescer o nível de renda

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O Estranho Mundo dos Homens • 77

da economia, que se faz acompanhar pelo crescimento do


consumo e do emprego.
Deu o visitante uma pausa, olhando fixamente para
o jovem, em busca de reações ao que ele acabara de falar.
Satisfeito com o espanto de quem se depara com uma
maneira nova de entender uma ideia, continua:
- Por mais simplificada que tenha sido minha exposição
da teoria de Keynes, com certeza ela é bem mais rica do
que apresenta o modelo IS/LM. Este modelo mutila a sua
teoria. Mas isso, meu caro Washington, vou deixar para que
os futuros alunos de macroeconomia descubram! Espero
que não me julguem um esnobe, um presunçoso, que veio
do espaço para exibir conhecimentos em matérias que são
próprias de sua formação. Longe disso, caro Washington,
minha intenção foi mostrar o que se dá quando se pensa
com cabeça dos outros! Quero dizer, com livros didáticos!
Estes podem até ser de alguma utilidade, mas não devem
substituir a leitura do próprio autor.
Conclui o visitante para em seguida retomar o tema
dinheiro:
- Mas vamos voltar à questão do dinheiro, meu caro e
bom anfitrião. Você deve estar lembrado dos três livros de
O Capital, de Karl Marx, que eu havia tirado da minha
maleta, juntamente com um exemplar de A Riqueza das
Nações, de Adam Smith. Pois bem, deixe-me, agora expor
resumidamente porque, para Marx, o dinheiro é, antes de
tudo, poder de disposição privado sobre a riqueza social,
isto é, para Marx, dinheiro é poder!
O viajante sabe que a teoria do dinheiro em Marx é
bastante complexa. Por isso, tenta apresentar apenas os
aspectos mais gerais da teoria. Começa destacando que
a categoria dinheiro aparece já no livro I de O Capital,

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78 • O Estranho Mundo da Economia

capítulo I, da seção 3, que tem como título “A Forma de


Valor ou o Valor de Troca”. Como o próprio Marx diz, sua
intenção é

realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a


saber, provar a gênese dessa forma-dinheiro, portanto, seguir
de perto o desenvolvimento da expressão valor contida na rela-
ção de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e
opaca até a ofuscante forma-dinheiro. Com isso, desaparece, ao
mesmo tempo, o enigma do dinheiro” (Marx, 2017, p. 125).

- Vejo que você, caro Washington, não parece nada satis-


feito com o que Marx diz nesta passagem. Deve achá-la muito
abstrata, de difícil compreensão. E você tem toda razão. Mas,
vamos tentar esclarecer o que este autor quer de fato dizer.
O visitante começa sua exposição, esclarecendo que,
quando Marx diz que sua intenção é realizar o que a econo-
mia burguesa nunca tentou fazer, seu objetivo é demonstrar
que o dinheiro é uma necessidade nascida da contradição
interna da mercadoria.
- Todo mundo sabe – explica o visitante – que se alguém
deseja uma garrafa de água para matar sua sede, somente
poderá satisfazer esta necessidade se tiver dinheiro para
comprá-la. Não somente água, mas também qualquer outra
coisa destinada a satisfazer uma necessidade qualquer, tem
que ser comprada para poder ser utilizada. A utilidade de
uma coisa de nada vale, se, primeiro, não se pagar por ela.
É assim o mundo em que vocês humanos vivem! É um
mundo, como já dizia Adam Smith, onde tudo que é produ-
zido é produzido como mercadoria. Lembra daquela passa-
gem, Washington, que citei de A Riqueza das Nações, lá no
começo de nossa conversa? – pergunta o viajante. Naquela
passagem, o autor diz, com todas as letras, que as pessoas

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O Estranho Mundo dos Homens • 79

só podem desfrutar do valor de uso das coisas que precisam,


se, primeiro, pagar para obter essas coisas. Na verdade, o
que Adam Smith quer dizer é que tudo que existe tem um
valor de uso e um valor de troca. É daí que parte Marx para
demonstrar a necessidade do dinheiro!
Sabendo que estava por chegar ao ápice de um raciocí-
nio, o visitante dá uma pausa para saborear o momento. Em
seguida, continua com a explanação:
- Para Marx, a mercadoria tem um duplo aspecto: valor
de uso e valor. Essas duas propriedades das mercadorias se
incluem e se excluem mutuamente. Se incluem, porque
ninguém estaria disposto a produzir sapatos, por exemplo,
se eles não tivessem alguma utilidade. Se excluem, porque
seu produtor produz sapatos para vender, para trocá-los por
outras coisas. A única coisa que lhe interessa é o valor de
troca daquilo que ele produziu. O produtor de sapatos não
tem um pingo de amor pelo que produz; para ele é indife-
rente produzir sapatos ou veneno; ele quer produzir uma
coisa que tenha valor, que possa fazer com ela mais dinheiro
do que gastou para produzi-la. Foi para isso que ele investiu
seu bom dinheirinho, comprando matérias-primas, máqui-
nas, contratando trabalhadores etc. Consequentemente, os
sapatos não têm nenhuma utilidade para ele, não produ-
ziu para utilizá-los, mas, sim, para vendê-los. Por sua vez,
quem comprou os sapatos, comprou- os, porque eles têm
um valor de uso, têm utilidade para ele. Caso contrário, não
os teria comprado!
O visitante continua sua exposição, insistindo em deixar
claro que a mercadoria sapatos, por exemplo, é uma coisa
que tem duas qualidades distintas: ela tem valor de uso e
valor de troca. Para quem a produziu, só importa o valor
de troca; para quem comprou, o que interessa é o valor de
uso dessa mercadoria. Com um pouco mais de atenção,

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80 • O Estranho Mundo da Economia

percebe-se que o dinheiro nasce desta contradição da merca-


doria de ser valor de uso e valor de troca ao mesmo tempo.
Com efeito, se o produtor de sapatos não vende sua merca-
doria, ele terá prejuízos e poderá até mesmo vir a falir. Do
lado do consumidor, as coisas se passam de forma diferente.
Se ele tem dinheiro, ele poderá comprar seus sapatos de
outros produtores, pois são muitos os produtores de sapatos.
Mas, ele só poderá comprar seus sapatos, se tiver dinheiro.
É da contradição entre valor de uso e valor de troca, que
Marx parte para derivar a categoria de dinheiro. Nascido
dessa contradição, que toda e qualquer mercadoria carrega
dentro de si, o dinheiro se torna o representante universal
da riqueza geral, o equivalente geral, pois todas as coisas que
existem, precisam ser transformadas em dinheiro. Caso isso
não aconteça, não é a mercadoria que sofre as consequências,
mas, sim, o seu produtor.
O visitante do outro mundo sabe que sua apresenta-
ção da teoria do dinheiro em Marx está longe de esgotar a
exposição que o autor de O Capital apresenta na seção III,
capítulo I, do Livro I. Mesmo assim, dá-se por satisfeito
em ter mostrado que o dinheiro nasce da contradição entre
valor de uso e valor de troca das mercadorias. Enquanto a
riqueza da sociedade continuar dominada pela produção de
mercadorias, o dinheiro continua reinando de forma sobe-
rana. Sem ele, não se tem acesso a nada neste mundo, seja
comida, roupa, diversão, saúde etc. Até mesmo para quem
acredita no Deus do cristianismo, sabe que sem dinheiro,
ninguém poderá comemorar o aniversário de nascimento
de Jesus, pois não poderá comprar o peru da Sadia, a Coca-
Cola e os presentes para seus familiares e amigos.
O visitante do outro mundo sabe que sua tarefa está longe
ser concluída. Entretanto, se dá por satisfeito em ter mostrado
que o dinheiro dá ao homem o que ele não pode realizar com

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O Estranho Mundo dos Homens • 81

suas forças materiais e espirituais. Por ser assim, o homem


se torna escravo do dinheiro. E, para arrematar a discussão
apresentada, ilustra o visitante:
- Até mesmo o poeta e dramaturgo Shakespeare (1564-1616)
já tinha consciência disso! Não é sem razão que Marx cita um
trecho de uma de suas obras, o Timão de Atenas, onde se lê:

Ouro faiscante, ouro [...]. Só com isto eu deixaria o negro,


branco; o repelente, belo; o injusto, justo; o baixo, com nobreza;
o novo, velho, e corajoso, o pulha [...]. Este escravo amarelo, os
sacrossantos votos, anula e quebra, lança a bênção nos malditos,
amável deixa a lepra, dá estado aos ladrões e lhes concede títu-
los e homenagens lado a lado dos senadores, faz que novamente
se case a viúva idosa. [...] Vamos, poeira maldita, prostituta
comum da humanidade (ibidem, p. 205).

Num mundo assim, diz Marx (2010, p. 159):

O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum


[...] pela minha ninha individualidade. Sou feio, mas posso
comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio,
pois o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo
dinheiro. Eu sou – segundo a minha individualidade – coxo,
mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; não sou,
portanto, coxo; sou um ser humano mau, sem honra, sem
escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto,
também o seu possuidor.

Esta é a sociedade do ter: uma sociedade na qual o homem


somente é, se ele tem; se não tem, ele nada é. Por isso, de
acordo com Marx, o poder, que cada indivíduo exerce sobre
a atividade dos outros ou sobre a riqueza social, existe nele
como o proprietário de valores de troca, de dinheiro. “Seu

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82 • O Estranho Mundo da Economia

poder social, assim como seu nexo com a sociedade, [o


indivíduo] traz consigo no bolso” (ibidem, p. 157).
O viajante olha para seu anfitrião, e se dá conta de que
Washington parecia extasiado com o que ele acabara de
expor. Faz uma longa pausa à espera de algum comentá-
rio da parte dele. Como ele não se dispôs a falar, o visi-
tante se volta para ele e comenta:
- Por hoje, é bom pararmos por aqui. Vamos descansar
e amanhã, mais dispostos, continuaremos nossa conversa.

***********

No dia seguinte, o viajante acordou cedo. Procurou


Washington e o viu agarrado com seu notebook, pesqui-
sando artigos sobre o dinheiro. “Olha, parece que meu
anfitrião se interessou em estudar mais sobre o que discuti-
mos ontem à noite” – comenta o visitante consigo mesmo.
Logo em seguida, dirige-se ao seu anfitrião para suge-
rir uma nova pauta de discussão. Mas o faz perguntando-
-lhe o seguinte:
- Washington, o mundo sempre foi assim? Será que já
existiram sociedades em que o produto do trabalho do
homem não assumia a forma de mercadoria? O que desejo
saber é se o homem sempre teve de pagar pelos bens que
necessita para satisfazer suas necessidades.
Esperou pela resposta de seu anfitrião. Porém ela não
veio. – “Será que esse pobre doutor nunca estudou histó-
ria econômica?” – pergunta o visitante a seus botões. “Pelo
que demonstrou até aqui, sou obrigado a confessar que,
para ele, História e Economia são duas ciências distintas” –
pensou o visitante.
O silêncio de Washington já dizia tudo: ele nunca chegou
a estudar se existiu outras formas de sociedade onde nem

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O Estranho Mundo dos Homens • 83

tudo era mercadoria. Se o tivesse feito, ele teria descoberto


que a história registra a existência de civilizações em que
os bens não eram produzidos para serem vendidos, mas,
sim, para o consumo da própria comunidade. Aliás, nem é
preciso ir muito longe para saber que na sociedade feudal,
por exemplo, o grosso da produção era para o autocon-
sumo. Não era mercadoria.
Foi, então, que o visitante achou por bem convidar
Washington para acompanhá- lo numa rápida investiga-
ção sobre a gênese histórica da sociedade, dominada pela
produção de mercadorias. Ainda com seu notebook aberto
na página do Google, o paciente anfitrião concordou com
seu visitante. Antes, porém, lhe perguntou de onde ele veio,
que faz para viver, qual é o seu nome e um sem-número
de perguntas que fervilhavam em sua cabeça.
- Calma, meu bom doutor. Eu venho do futuro, do
ano 2090, mas já estive por aqui antes. Minha função, na
nave que viajo pelo universo, atravessando as mais diver-
sas galáxias, é colher dados sobre as formas de vida; costu-
mes, moral, organização política etc, dos países em que me
hospedei. Durante minha estada no seu planeta Terra, visi-
tei todas as grandes bibliotecas e guardei, no meu compu-
tador de pulso, todo conhecimento acumulados por vocês.
Voltei para o futuro e só agora estou de volta ao passado.
Retornei para ver como vocês evoluíram desde a última vez
que estive por aqui. Mas vamos nos concentrar na proposta
que acabei de te fazer. Vamos investigar como nasceu a
sociedade capitalista. Espero explicar com essa investiga-
ção o que os livros de Introdução à Economia nunca fize-
ram, nem tentaram fazer, que é demonstrar como nasceu
a propriedade capitalista e com ela a divisão da sociedade
entre capitalistas e trabalhadores, isto é, entre os donos

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84 • O Estranho Mundo da Economia

da propriedade dos meios de produção e os deserdados de


propriedade.
- Mas quando você esteve por aqui? – perguntou Washington.
- Ah! Já faz um bom tempo, preciso até atualizar os dados
que coletei antes de eu voltar para o futuro. Vim agora, já
com todo esse conhecimento que você pôde constatar.
Sorriu para o jovem e disse:
- Mas, deixe-me dizer o meu nome. Eu sou metade vulcano
e metade humano. Meu nome é Spock.
- Tudo bem – respondeu Washigton. Mas vamos logo
discutir como nasceu esse mundo em que nós terrestre vive-
mos. Estou curioso para ouvir suas explicações!
- Vamos lá, então. Vou só ligar meu computador de pulso
para investigarmos, juntos, o desenrolar da gênese que deu
origem a essa estranha sociedade em que vocês vivem. Pronto,
liguei o computador. Podemos nos sentar para ler o texto
que encontrei de um intrigante professor de Economia
daqui mesmo, do Ceará.
- Claro, claro que sim! – diz Washigton, sem medo de
esconder sua ansiedade.
Spock aciona uma tecla de seu computador de pulso,
e uma tela se abre diante dele e de seu anfitrião, com um
texto que se inicia com uma citação de um dos maiores
escritores da literatura mundial, Gabriel García Márquez,
que em 1982, recebeu o prêmio Nobel de literatura; pelo
conjunto de sua obra.

2. Arqueologia de uma memória esquecida

“Se não voltarmos a dormir, melhor”, dizia José Arcádio Buendia,


de bom humor. “Desse jeito a vida renderá mais”. A índia,
porém, explicou a eles que o mais terrível da enfermidade da
insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não

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O Estranho Mundo dos Homens • 85

sentia cansaço algum, mas sua inexorável evolução rumo a


uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer
que quando o enfermo se acostumava com seu estado de vigí-
lia, começavam a se apagar de sua memória as recordações da
infância, depois o nome e a noção das coisas, e por último a
identidade das pessoas e a consciência do próprio ser, até afun-
dar numa espécie de idiotice sem passado (Gabriel García
Marquez. 2014, p. 52).

Depois de ler esta citação, Spock olha para Washington e


diz que doravante ele irá deixar o texto falar por si só, uma
vez que ele já o leu por diversas vezes. Após uma pequena
pausa, Spock inicia a leitura do texto.
- Quem não já leu Thomas Morus (1478-1535), conside-
rado como um dos grandes humanistas do Renascimento?
Em 1516, ele escreveu um opúsculo que o intitulou de A
Utopia. Escrito em forma dialogal, Rafael aparece como o
seu Sócrates teórico. Convidado a participar de um banquete
em sua homenagem, organizados pelos grandes criadores
de carneiros, na Inglaterra, Rafael é interpelado a explicar a
causa que leva as pessoas a roubarem. Olha para seus anfi-
triões e lhes responde à queima-roupa: “Os inumeráveis
rebanhos de carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra”,
responde–lhes sem pestanejar. E complementa:

estes animais, tão dóceis e tão sóbrios em qualquer outra parte,


são entre vós de tal sorte vorazes e ferozes que devoram mesmo
os homens e despovoam os campos, as casas e as aldeias. “De
fato, a todos os pontos do reino, onde se recolhe a lã mais fina
e mais preciosa, acorrem, em disputa do terreno, os nobres, os
ricos e até santos abades. Essa pobre gente não se satisfaz com as
rendas, benefícios e rendimentos de suas terras; não está satisfeita
de viver no meio da ociosidade e dos prazeres, às expensas do

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86 • O Estranho Mundo da Economia

público e sem proveito para o Estado. Eles subtraem vastos


tratos de terra da agricultura e os convertem em pastagens;
abatem as casas, as aldeias, deixando apenas o templo para
servir de estábulo para os carneiros. Transformam em
desertos os lugares mais povoados e mais cultivados
(Morus, 2011, p. 28-29).

Thomas Morus enxergou longe. Pode-se dizer que ele foi


um contemporâneo teórico de um presente ainda muito
distante do tempo em que viveu. Seu gênio brilha, justa-
mente, porque foi capaz de identificar o fechamento dos
campos, essa forma embrionária da propriedade burguesa,
como a principal causa do empobrecimento do solo e do
despovoamento de vastas áreas, antes habitadas e ocupadas
com a produção de alimentos para o homem. Não está aí
a origem da questão ecológica, que hoje ameaça destruir
a vida no planeta Terra?
Quase dois séculos depois, Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), buscava as causas que deram origem à desigualdade
entre os homens. Encontra-as no surgimento da proprie-
dade privada, tal como assim Morus diagnosticara as maze-
las do seu tempo. Para Rousseau (2001, p. 29‐30),

o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que,


tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer, isto é, meu
e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-
-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores
não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as
estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus seme-
lhantes: defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos
se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não
pertence a ninguém!

Livro 1.indb 36 24/10/2022 09:49:55


O Estranho Mundo dos Homens • 87

Não sem razão, Rousseau busca na sociedade civil a causa


da desigualdade e da fome entre os homens. Sua crítica
teórica parte do pressuposto de que a sociedade que nasce
da propriedade privada

[...] manterá com ela um permanente conflito que, para ele,


é a fonte de todos os males e defeitos que os homens sofrem.
Para o autor, as enganadoras luzes da iluminação não só não
iluminam como ocultam a sua transparência natural. Na sua
compreensão, o desenvolvimento das ciências e das artes bem
como do comércio estreitam, por um lado, os laços da socie-
dade pelo interesse pessoal, mas, por outro lado, afrouxam os
verdadeiros laços sobre os quais deveria ser formada a socie-
dade que são a estima e a benevolência. Ou seja, se a estima e
a benevolência são os fatores que levam os homens a imedia-
tamente se ligarem, a interposição entre eles das coisas e dos
interesses, produzidos pelo progresso da ciência, das artes e
do comércio, apagam esse relacionamento imediato, pois os
homens, a partir de então, passam a se relacionar mediatizados
pelas coisas e os interesses delas decorrentes que tem origem
na instituição da propriedade. É daí que procedem os males
e as desgraças às quais os homens estão submetidos. A felici-
dade dos homens passa a depender dos objetos. Eis o caminho
ao qual o homem foi arrastado pelo processo de civilização. O
homem não procura mais a felicidade em si, na sua existência
compartilhada com os seus semelhantes. Tornou-se escravo das
coisas. A crítica central de Rousseau será a denúncia desta alie-
nação e a busca do retorno e da conciliação do homem com a
natureza. Este é o alvo permanentemente perseguido pela obra
rousseauniana, mas explicitamente formulada nos seus traba-
lhos de cunho político e sempre mesclada de ardor e paixão. Na
perspectiva de sua obra, Rousseau deixa transparecer a necessi-
dade de conceber a origem e as causas do mal, que produziram

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88 • O Estranho Mundo da Economia

o homem dividido e pervertido, além da crença na sua recon-


ciliação com a natureza e com seus semelhantes através da
construção de um modelo de comunidade que, corrigindo o
erro localizado da desigualdade, possibilite a recuperação de sua
humanidade mediante a construção de um projeto comum de
sociedade baseada na homogeneidade e na liberdade (Vicente,
1997 p. 46-47).

Rousseau não tem dúvidas. A propriedade privada é a


causa da miséria e da desigualdade entre os homens.
Pouco anos depois, Adam Smith (1723‐1790) mostra
como se origina a propriedade privada e, em consequência,
a divisão da sociedade entre proprietários e não- proprie-
tários. Parte da ideia de que trabalho pessoal é a fonte da
propriedade privada. Parte do pressuposto de que num
antigo e remoto estado da natureza havia duas espécies de
gente. De um lado, um bando de preguiçosos, e, de outro,
um grupo de pessoas laboriosas e parcimoniosas.
Aqueles que nasceram marcados pelo desejo da ambição
trabalharam e economizaram; os que vieram ao mundo,
inclinados a viver do ócio e da preguiça não acumularam
nem formaram nenhum patrimônio. Quem tinha ojeriza
ao trabalho, nada acumularam com o passar do tempo.
Diferentemente, aqueles que tinham amor ao trabalho
formaram seu patrimônio, que cresceu com o passar dos
anos, com a sucessão de várias gerações. Está assim justi-
ficada a divisão da sociedade entre proprietários e deser-
dados de propriedade. É o que sugere Smith ao justificar
a necessidade da interferência do estado para proteger a
propriedade privada contra a invasão por parte daqueles
que não têm nenhum patrimônio. Acompanhando sua
justificação, lê-se que

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O Estranho Mundo dos Homens • 89

os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau


aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado
civil que os proteja da injustiça [...]. Entretanto, a avareza e a
ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e
o amor à tranquilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres,
são as paixões que levam a invadir a propriedade [...] adqui-
rida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações
sucessivas (Smith, 1985, p. 164).

Não é sem razão, a crítica mordaz que Marx dirige a


Smith. Em tom anedótico, zomba do autor de A Riqueza
das Nações que acreditava que “numa época muito remota,
havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobre-
tudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissi-
par tudo o que tinham e ainda mais” (Marx, 2017, p. 785).
Os liberais se valem até mesmo de meios anedóticos para
justificar o direito de propriedade. Para Smith, seguindo as
pegadas deixadas por Locke, a propriedade tem um esta-
tuto natural, visto que é produto de uma propriedade natu-
ral que nasce com o homem: seu trabalho. Por isso, tudo o
que ele consegue amealhar com seu trabalho pode atribuir
o predicado de ser sua propriedade, constituindo-se num
direito sagrado, porque natural, e que, por isso mesmo, não
pode ser violado por aqueles que passaram a vida entregues
os prazeres e confortos imediatos do presente. Esse direito
natural há que ser velado e protegido pelo Estado, pois

a fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas


vezes são movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a
invadir a posse daqueles [proprietários]. Somente sob a proteção
do magistrado civil, o proprietário dessa propriedade valiosa
[...] pode dormir à noite com segurança (Smith, 1985, p. 164).

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90 • O Estranho Mundo da Economia

- Agora, tudo se esclarece de vez. Aqueles que trabalha-


ram e acumularam tornaram-se, no presente, os proprietá-
rios das terras e do capital; os que esbanjaram e dissiparam os
frutos do seu trabalho, devem pagar pelo pecado que come-
teram. Como? Trabalhando para aqueles que no passado
não mediram esforços para construir seu patrimônio. Por
isso, ao dar emprego a esse bando de vagabundos, que no
passado dissiparam tudo que produziam, os capitalistas têm
todo o direito de exigir deles uma recompensa, na forma de
lucro ou de renda, pelo suor que tiveram de derramar para
construir o seu patrimônio.
Em consequência, é mais do que natural que o estado
se ponha em defesa da classe proprietária. Esta pode até
mesmo fazer desta instituição um comitê de defesa de seus
negócios, como acontece nos momentos em que intervém
como mediadora do conflito entre empregados e emprega-
dores. Smith tinha plena consciência disto. Para ele, a rela-
ção entre capital e trabalho

depende do contrato normalmente feito entre as duas partes,


cujos interesses, aliás, de forma alguma são os mesmos. Os
trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões
pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se
entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem
o mesmo para rebaixá-los. Não é difícil prever qual das duas
partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de
forçar a outra a concordar com as suas próprias cláusulas. Os
patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com
maior facilidade; além disso, a lei autoriza ou pelo menos não
os proíbe, ao passo que para os trabalhadores ela proíbe. Não
há leis no Parlamento que proíbam combinar uma redução dos
salários; muitas são, porém, as leis do Parlamento que proíbem
as associações para aumentar salários. Independentemente das

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O Estranho Mundo dos Homens • 91

leis promulgadas pelo Parlamento, a luta de classes, no que


concerne à determinação do nível salarial, é, em geral, favorá-
vel à classe capitalista, pois esta tem capacidade para suportar
as conseqüências (sic) de uma paralisação, por exemplo, na
produção, por conta de uma greve por exemplo.

É o que diz Smith (1996, p. 118‐119), ao concluir seu


raciocínio:

Um proprietário rural, um agricultor ou um comerciante,


mesmo sem empregar um trabalhador sequer, conseguiriam
geralmente viver um ano ou dois com o patrimônio que já
puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores não
conseguem subsistir uma semana, poucos conseguiriam subsis-
tir um mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano.
A longo prazo, o trabalhador pode ser tão necessário ao seu
patrão, quanto este o é para o trabalhador; porém esta neces-
sidade não é tão imediata.

Nem por isso, Smith deixa de reconhecer que a maio-


ria daqueles que vivem do salário está condenada a uma
vida miserável, por conta dos efeitos negativos da divisão
técnica do trabalho. Num tom de indignação e reprovação
comenta que

a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho,


isto é, a maioria da população, acaba restringindo–se a algu-
mas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou
duas [...]. O homem que gasta toda sua vida executando algu-
mas operações simples, cujos efeitos também são, não tem
nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou
para exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar
meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde

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92 • O Estranho Mundo da Economia

naturalmente o hábito de fazer isso, tornando‐se geralmente tão


embotado e ignorante quanto possa ser uma criatura humana.
O entorpecimento de sua mente o torna tão somente incapaz
de saborear ou ter alguma participação em toda conversação
racional, mas, também, de conceber algum sentimento gene-
roso, nobre ou terno, e, consequentemente de formar algum
julgamento justo até mesmo acerca de muitas obrigações da
vida privada [...]. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua
ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas
virtudes intelectuais, sociais e marciais (ibidem, p. 213‐214).

Entretanto, essa denúncia de Smith não passa de uma


exigência moral, na medida em que se trata de uma denún-
cia sentimental. De fato, o autor de A Riqueza das Nações,
depois de revelar os efeitos perversos da divisão do traba-
lho, acrescenta que esse é o estado “em que inevitavel-
mente caem os trabalhadores pobres – isto é, a grande
maioria da população – a menos que o governo tome algu-
mas providências para impedir que tal aconteça.” (Smith,
1983, p. 215).
Será que o Estado não poderia intervir nesse estado de
coisas? A única coisa que o Estado poderia fazer seria dar
à classe dos trabalhadores educação básica. No entanto,
Smith é obrigado a reconhecer que os trabalhadores jovens,
em idade escolar,

dispõem de pouco tempo para dedicar à educação. Seus pais


dificilmente têm condições de mantê‐los, mesmo na infância.
Tão logo sejam capazes de trabalhar, têm que ocupar‐se com
alguma atividade, para sua subsistência. Este tipo de atividade
é geralmente muito simples e uniforme para dar‐lhes pequenas
oportunidades de exercitarem a mente; ao mesmo tempo, seu
trabalho é tão constante e pesado que lhes deixa pouco lazer

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O Estranho Mundo dos Homens • 93

e menos inclinação para aplicar‐se a qualquer outra coisa, ou


mesmo para pensar nisso (ibidem, p. 246).

Diante desse estado de coisas, não há outra saída senão


a de se curvar aos imperativos dos fatos. Daí, a crítica
resignativa de Smith, diante dos efeitos desumanizadores
da divisão do trabalho. E não poderia ser diferente, uma
vez que, para ele, não há possibilidades de uma sociabili-
dade alternativa ao mundo existente. Para ele, o homem
nasceu para viver numa sociedade comercial, na qual a divi-
são do trabalho é a mola mestra do seu desenvolvimento.
A sociedade capitalista é o melhor dos mundos possíveis.
Se é assim, o máximo que se pode esperar da sociedade é
que esta procure minimizar os efeitos negativos da divi-
são do trabalho. No entanto, a felicidade humana tem um
preço: a desumanização daqueles que são obrigados a viver
de salários. É o preço a se pagar pelo progresso.
Contra esse comportamento condescendente e piedoso
de Adam Smith, vale a pena perguntar se os homens devem
cumprir resignadamente o seu destino. Não deveriam eles
subverter radicalmente as relações sociais que eles mesmo
criaram? Claro que sim. Não se deve esquecer que o capita-
lismo “nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros,
da cabeça aos pés”. Esquecer o passado e aceitar passiva-
mente o presente, é o mesmo que eternizar o modo de
produção capitalista; é,

como diz Pecqueur, com razão, “decretar a mediocridade


geral”. [...] a pré‐ história do capital compreende uma série
de métodos violentos, dos quais passamos em revista somente
aqueles que marcaram época como métodos da acumulação
primitiva do capital. A expropriação dos produtores dire-
tos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob

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94 • O Estranho Mundo da Economia

o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinha-


mente execráveis (Marx, 2017, p. 831).

Fechar os olhos a essa herança, é esquecer que os milhares


de camponês expulsos de suas terras não podiam ser absorvidos

pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que


fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repen-
tinamente arrancados de seu modo de vida costumeiro
tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situa-
ção. Converteram‐se massivamente em mendigos, assaltantes,
vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos
casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento,
em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao
longo do século XVI, de uma legislação sanguinária contra
a vagabundagem. Os pais da atual classe trabalhadora foram
inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora
imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava
como delinquentes “voluntários” e supunha depender de sua
boa vontade que eles continuassem a trabalhar sob as velhas
condições, já inexistentes (Marx, 2017, p. 787).

Essa expropriação violenta está registrada na história com


letras indeléveis de sangue e fogo. Não se pode, portanto,
esquecer um passado no qual a transformação dos produtores

em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a


libertação desses trabalhadores da servidão e da coação corpora-
tiva, e esse é único aspecto que existe para nossos historiadores
burgueses. Por outro lado, no entanto, esses recém libertados só
se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem
sido roubados todos os seus meios de produção, assim como
todas as garantias de sua existência que as velhas instituições

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O Estranho Mundo dos Homens • 95

feudais lhes ofereciam. E a história dessa expropriação está


gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo
(Marx, 2017, p. 787).

A expropriação violenta dos meios de produção vem


acompanhada por um processo de transformação brutal
do modo de vida a que as pessoas estavam ocostumadas a
comportar-se, agir e interagir com seus semelhantes. No
Manifesto Comunista, Marx e Engels narram esse processo
de desenrizamento do homem do seu habitat natural em
que nasceu e foi criado. Para se afirmar com classe domi-
nante, a burguesia tinha não só que separar os produtores
dos seus meios de produção, como também imprimir-lhes
uma nova forma de vida completamente diferente da qual
foram edicados. Ainda que bastante longa a descrição desse
processo, não é deselegante deixar que seus autores narrem
essa “Cruzada” contra o antigo modo de vida. Concedendo-
lhes a palavra, em voz uníssona descrevem que

Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu


as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os comple-
xos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus
“superiores naturais”, para só deixar subsistir, de homem para
homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “paga-
mento à vista”. Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa,
do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-
-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade
pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas
liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade
sem escrúpulos: a do comércio. Em uma palavra, em lugar da
exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas, a burgue-
sia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal.

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96 • O Estranho Mundo da Economia

A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então


reputadas como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez
do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio seus
servidores assalariados.
A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as
relações de família e reduziu-as a meras relações monetárias. A
burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade
Média, tão admirada pela reação, encontra seu complemento
natural na ociosidade mais completa. Foi a primeira a provar o
que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores
que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais
góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as anti-
gas invasões e as Cruzadas.
A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente
os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de
produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação
inalterada do antigo modo de produção era, pelo contrário, a
primeira condição de existência de todas as classes industriais
anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo
constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e
essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas
as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e
cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secu-
larmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se
antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e
estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado
e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões
a sua posição social e as suas relações com os outros homens
(Engels & Marx, 1998.p.42/43).

E assim foi consumado o parto que deu origem ao nasci-


mento do capitalismo na Europa Ocidental. Do lado de
cá do Atlântico, as coisas se passaram de forma diferente,

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O Estranho Mundo dos Homens • 97

ainda que a dor do parto talvez tenha sido muito mais


sangrenta e inumana.
Com efeito, na Índia, na África e no Brasil, por exemplo,
o surgimento do capitalismo adquiriu singularidades próprias
desses países, que estão longe do processo histórico que teve
lugar na Europa. Nem por isso, a dor do parto foi menos
dolorosa. Desde o início, esse imenso continente, chamado
América Latina, teve suas veias rasgadas para escoar a riqueza
arrancada de seu solo. Seu destino foi traçado pelas grandes
metrópoles europeias, que impôs ao mundo uma divisão
internacional do trabalho, em que alguns países

especializaram‐se em ganhar, e outro sem que se especializaram


em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de
América Latina, foi precoce: especializou‐se em perder desde
os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se
abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta.
Passaram os séculos e a América Latina aperfeiçoou suas funções.
Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrota a
fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquis-
tas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região
continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a
serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo
e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias‐primas e alimen-
tos, destinados aos países ricos que ganham, consumindo‐os,
muito mais do que a América Latina ganha produzindo‐os
(Galeano, 2010, p. 10).

Não é exagero deste autor uruguaio afirmar que a América


Latina é “a região de veias abertas” por onde escoa, até hoje,
a sua riqueza para fora de suas fronteiras. Não sem razão, em
seu clássico Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado
Júnior (CPJ) inicia sua investigação sobre a formação do

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98 • O Estranho Mundo da Economia

Brasil com a pergunta pelo sentido da colonização. Como


Eduardo Galeano, CPJ entende que, no seu conjunto,

e vista no plano, mundial e internacional, a colonização dos


trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais
completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo cará-
ter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um
território virgem em proveito do comércio europeu. É este o
verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é
uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais,
tanto no econômico como no social, da formação e evolução
históricas dos trópicos americanos (Prado Jr., 1994 p. 31).

O Brasil nasce como uma imensa empresa comercial,


cujo principal objetivo foi o de produzir mercadorias que
tivessem valores no mercado internacional. A mineração
foi uma das atividades mais lucrativas para a metrópole
portuguesa. Não menos importante foi a produção de
açúcar, algodão e café.
Nascida para produzir riqueza para a burguesia mercanti-
lista europeia, a economia brasileira deveria assim continuar
a ser uma economia voltada para fora. Não sem razão, entre
1500 até o início dos anos 30 do século XX, a economia brasi-
leira foi de natureza, eminentemente, agrário‐exportadora.
Apesar do processo de industrialização pós‐30 até a
década de 1980, o Brasil ainda continua preso às malhas
daquela divisão internacional do trabalho de que fala
Eduardo Galeano. Com efeito, quase 70% da sua pauta
de exportações é constituída de commodities, isto é, de
produtos primários, tais como, café, soja, minério, carne
e petróleo. Com razão, CPJ pergunta, no adendo que fez,
em 1977, ao seu clássico A Revolução Brasileira, se “somos
os mesmos do passado?”. De certa forma, sim. Pelo menos

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O Estranho Mundo dos Homens • 99

qualitativamente, responde ele, uma vez que no contexto


do mundo moderno, o Brasil

não representa mais do que um setor periférico e dependente


do sistema econômico internacional sob cuja égide se insta-
lou e originalmente organizou como colônia a serviço dos
centros dominantes do sistema. E em função dessa situação se
estruturou econômica e socialmente. É certo que deixamos de
ser, em nossos dias, o engenho e a “casa grande e senzala” do
passado, para nos tornarmos a empresa, a usina, o palacete e
o arranha‐céu; mas também o cortiço, a favela, o mocambo, o
pau‐a‐pique, mal disfarçados, aqui e acolá, por aquele moderno
em que minorias dominantes e seus auxiliares mais graduados se
esforçam com maior ou menor sucesso por acompanhar apro-
ximadamente, com o teor de suas atividades e trem de vida, a
civilização de nossos dias (Prado,Jr. P., 2004, p. 239).

Para, em seguida, concluir que

[...] somos os mesmos do passado. Se não quantitativamente,


na qualidade. Na “substância”, diria a metafísica de Aristóteles.
Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasi-
leiro se perpetuou e continua muito semelhante. Isto é, na
base, uma economia fundada na produção de matérias‐primas
e gêneros alimentares demandados nos mercados internacio-
nais (ibidem, p. 240).

De lá para cá, já se passaram quase quatro décadas. Se


vivo fosse, CPJ ainda teria algo a dizer sobre o Brasil de
hoje? Manteria sua tese de que, em sua essência, o Brasil não
só continua a ser um país periférico e dependente, como
também caminha em direção ao passado? É óbvio que, se
vive noutro contexto, bem diferente daquele que ele tinha

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100 • O Estranho Mundo da Economia

diante dos olhos à época em que redigia seu clássico, A


Revolução Brasileira, traria novos elementos para sua análise
e novas deduções.
Mas, mesmo que o Brasil, atualmente, tenha alcançado
um novo patamar na divisão internacional do trabalho, bem
mais sofisticado e desenvolvido do que fora no passado, com
certeza, ele não teria dúvidas em afirmar que o Brasil mantém,
e até mesmo aprofundou, sua condição de país dependente,
na medida em que os principais centros decisórios de produ-
ção e de investimentos continuam fora de suas fronteiras. Sua
pauta de exportações dispensa maiores comentários.
Estaria, portanto, o Brasil voltando a ser uma colônia de
exploração? Não como fora no passado, isto é, uma econo-
mia organizada para servir exclusivamente aos interesses
de sua metrópole. No entanto, seu processo de industria-
lização não libertou sua economia dos grilhões da depen-
dência. Ao contrário, até mesmo reforçou sua condição de
país periférico e dependente, tal como assim pensava CPJ.
Esse é o destino da periferia capitalista, que nascera
para atender as necessidades do mercado externo e não as
do mercado interno. Fernando Novais concorda com CPJ
quando reconhece que

toda a estruturação das atividades econômicas coloniais, bem


como a formação social a que servem de base, definem‐se nas
linhas de força do sistema colonial mercantilista, isto é, nas
suas conexões com o capitalismo comercial. E de fato, não só
a concentração dos fatores produtivos no fabrico das merca-
dorias‐ chave, nem apenas o volume e o ritmo em que eram
produzidas, mas também o próprio modo de sua produção
define‐se nos mecanismos do sistema colonial. E aqui toca-
mos no ponto nevrálgico; a colonização, segundo a análise
que estamos tentando, organiza‐se no sentido de promover

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O Estranho Mundo dos Homens • 101

a primitiva acumulação capitalista nos quadros da economia


europeia, ou noutros termos, estimular o progresso burguês nos
quadros da sociedade ocidental. É esse sentido profundo que
articula todas as peças do sistema: assim em primeiro lugar, o
regime do comércio de desenvolver nos quadros do exclusivo
metropolitano; daí, a produção colonial orientar‐se para aque-
les produtos indispensáveis ou complementares às economias
centrais; enfim, a produção se organiza de molde a permitir
o funcionamento global do sistema. Em outras palavras: não
bastava produzir os produtos com procura crescente nos merca-
dos europeus, era indispensável produzi‐los de modo a que a sua
comercialização promovesse estímulos à acumulação burguesa
nas economias europeias. Não se tratava apenas de produzir
para o comércio, mas para uma forma especial de comércio – o
comércio colonial; é, mais uma vez, o sentido último (acelera-
ção da acumulação primitiva de capital), que comanda todo o
processo da colonização. Ora, isto obrigava as economias colo-
niais a se organizarem de molde a permitir o funcionamento
do sistema de exploração colonial, o que impunha a adoração
de formas de trabalho compulsório ou na sua forma limite, o
escravismo (Novais, 1979, p. 97‐98).

Como é de todos conhecidos, a escravidão foi a força de


trabalho, por excelência, utilizada para a exploração das colô-
nias no novo mundo. Ela ressurge no momento em que a
civilização ocidental dava passos decisivos para a supressão
do trabalho compulsório, e para a difusão do trabalho livre,
isto é, assalariado. Assim, enquanto na Europa dos séculos
XVI, XVII e XVIII, transitava‐se da servidão feudal para o
trabalho assalariado, que passou a dominar as relações de
produção, a partir da revolução industrial, no ultramar, isto
é, nas colônias, o monstro da escravidão reaparecia com uma
intensidade e desenvolvimento inéditos.

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102 • O Estranho Mundo da Economia

Como diz Novais (1979, p. 99), a escravidão foi, pois,

o regime de trabalho preponderante na colonização do Novo


Mundo; o tráfico negreiro que alimentou, um dos setores
mais rentáveis do comércio colonial. Se à escravidão africana
acrescermos as várias formas de trabalho compulsório, servil
e semi‐servil etc [...] resulta que estreitíssima era a faixa que
restava, no conjunto do mundo colonial, ao trabalho livre. A
colonização do Antigo Regime foi, pois, o universo paradi-
síaco do trabalho não‐livre, o eldorado enriquecedor da Europa.

Traduzido em termos numéricos, em três séculos foram


consumidos entre 4,8 milhões a 5 milhões de negros trazi-
dos da África. Arrancados de sua terra natal, foram acorren-
tados e jogados nos porões de navios negreiros e despejados
numa terra estranha e hostil. Não entendiam o que seus
feitores lhes diziam, mas o açoite de seus chicotes tradu-
zia suas ordens. Não só os negros, como também os índios
foram utilizados largamente pelos senhores de engenhos.
De acordo com Schwartz (1988, p. 51‐52), no seu clás-
sico Segredos Internos,

na Bahia, no início da década de 1580, as aldeias jesuíticas


forneceram cerca de quatrocentos a quinhentos trabalhadores
aos colonos, sob um sistema de trabalho contratado. Os índios
recebiam um parco salário de 400 réis, que mal chegava a um
terço do salário de um barqueiro comum, contudo até mesmo
essa quantia muitas vezes nunca era paga.

A utilização dos indígenas para o trabalho escravo se


fez presente de maneira precoce. Com efeito, “o contato
intensivo dos europeus nas aldeias e nos engenhos”, conti-
nua Schwartz (1988, p. 51),

Livro 1.indb 52 24/10/2022 09:49:56


O Estranho Mundo dos Homens • 103

tornava os índios crescentemente suscetíveis a doenças euro-


peias. A doença, provavelmente varíola (bexigas), alastrou‐se em
direção ao norte. Em 1559 ou 1560, matou mais de seiscen-
tos escravos indígenas no Espírito Santo em tão pouco tempo
que precisavam ser enterrados dois corpos em cada cova [...].
A mortandade atingiu um terço de todos os índios nas aldeias
jesuíticas.

Darcy Ribeiro, em um dos seus últimos livros, O Povo


Brasileiro, não deixa dúvida quanto a tais consequên-
cias. Para ele, quando o europeu chegou por aqui, havia
cerca de 5 milhões de indígenas. Segundo Ribeiro, esse
número caiu para 4 milhões em um século. No século
seguinte, continua Ribeiro (1995, p. 143), ocorre

a dizimação pelas epidemias das populações do litoral atlântico,


que sofreram o primeiro impacto da civilização pela contami-
nação das tribos no interior com as pestes trazidas pelo europeu
e pela guerra. No segundo século, 1600–1700, prossegue a
população provocada pelas epidemias e pelo desgaste no traba-
lho escravo, bem como o extermínio na guerra, reduzindo–se
a população indígena de 4 milhões para 2 milhões.

- Um verdadeiro genocídio! Quem o diz é o próprio Darcy


(1995, p. 144), para quem “a população original do Brasil
foi drasticamente reduzida por um genocídio de projeções
espantosas, que se deu, através da guerra de extermínio, do
desgaste no trabalho escravo e da virulência das novas enfer-
midades que os acharam”.
O resultado desse genocídio se expressa, hoje, no tamanho
da população indígena. Segundo dados do IBGE, em 2010,
o total de índios estava em torno de 800 mil. A conclusão
óbvia que daí se infere é simples: a colonização brasileira

Livro 1.indb 53 24/10/2022 09:49:56


104 • O Estranho Mundo da Economia

matou mais de quatro milhões de índios. E o que pior, a


exploração de garimpo e de outras atividades do homem
branco continuam matando a população indígena brasileira,
que é a verdadeira dona das terras sobre as quais repousa
esse gigante chamado Brasil.
Ignorar esse processo, que deu origem ao capitalismo,
varrendo para baixo do tapete do esquecimento, é acei-
tar o presente órfão de história. Quem ainda hoje sente na
pele as dores dessa acumulação primitiva, que acontece do
lado de cá das bandas do Atlântico, não esquece jamais a
sua origem. A escola de samba da Mangueira deu um tapa,
com luvas de pelica, na cara dos dirigentes das instituições
do trabalho e da sociedade em geral, quando desfilou na
avenida cantando o que a história “oficial” não conta e que
os movimentos sociais parecem não lembrar mais.

Brada Mangueira! Brasil, meu nego Deixa eu te contar


A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato.

Com suas singularidades que nunca podem ser esqueci-


das, assim nasceu o capitalismo nos dois lados do Atlântico,
“escorrendo sangue e lama por todos os poros da cabeça aos
pés”, como diz Marx.
Finalizada a leitura do texto, Spock, exultante, falou:
- Com isso, meu caro Washington, podemos dar por

Livro 1.indb 54 24/10/2022 09:49:56


O Estranho Mundo dos Homens • 105

encerrada a história de como nasceu a sociedade capita-


lista. Uma sociedade que, como vimos no início da nossa
conversa, é caracterizada por uma forma de sociabilidade na
qual os indivíduos só existem como possuidores de merca-
dorias. Quem não dispõe de nada para trocar por coisas
que precisa para satisfazer suas necessidades, só tem duas
alternativas: depender da caridade alheia ou simplesmente
roubar de quem tem!
E assim, Spock encerra a sua longa exposição sobre o
processo de acumulação primitiva que deu origem ao nasci-
mento da sociedade capitalista, aqui no Brasil, e fora dele; na
Europa. Em seguida, desliga o seu computador de pulso, e
convida seu anfitrião para acompanhá-lo numa outra longa
e mais demorada jornada, para investigar o desenvolvimento
e o progresso dessa ciência chamada Economia:
- Infelizmente, não vou poder estar presente nessa nova
empreitada. Vou te deixar outro texto que foi elaborado por
um professor da Universidade Regional do Cariri (URCA).
Talvez você o conheça. Peço desculpas por isso, mas tenho
outros planetas para visitar. A missão que me deram não
me deixa tempo para descansar. Mas, vamos assumir um
compromisso, meu amigo: que leia com cuidado o texto
que te deixei especialmente para isso. Quando eu estiver de
volta para o futuro, passo por aqui para conversarmos um
pouco sobre o restante de nossa discussão. Tudo bem, para
você, Washington?
- Sim, eu acho.
Spock despediu-se de seu anfitrião e se preparou para
partir. Enquanto acionava os motores de sua nave, olhou
para Washington e percebeu uma réstea de desapontamento
nos seus olhos. Imaginou que seu anfitrião esperava desfrutar
de mais tempo com ele. Foi então que Spock se lembrou de
Aristóteles e deixou, juntamente com o texto, um bilhete no

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106 • O Estranho Mundo da Economia

qual ele transcreveu as primeiras linhas que abrem a meta-


fisica daquele filósofo.
- É um texto que fala sobre quanto o homem deseja conhecer.
Deixou-o como incentivo para Washington se aventurar a ir
além da divisão intelectual de saber, que faz de cada ciência
uma ilha isolada do restante dos outros saberes.Quando
Washington abriu o texto, viu o bilhete deixado por seu
visitante. Nele, estava escrito que

todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento.


Isso é indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos,
pois independentemente do uso destes nós os estimamos por si
mesmos, e mais do que todos os outros sentidos, o sentido da
visão. Não somente objetivamos a ação, mas mesmo quando
não se visa nenhuma ação, preferimos a visão [...] a todos os
demais sentidos, isto porque, de todos os sentidos, é a visão o
que melhor contribuí para o nosso conhecimento das coisas e
o revela uma multiplicidade de distinções (2012, p. 41).

- Até breve, meu amigo!


Gritou Spock de dentro de sua nave:
Leia o texto que deixei. Quando eu passar de volta por
aqui, vamos ter muito o que conversar.
Washington correu para o seu quarto, ansioso para ler
o texto que seu visitante lhe deixara. Ficou surpreso com
o que viu. Spock lhe deixara um longo texto, que começa
expondo a teoria fisiocrata, para em seguida analisar demo-
radamente a teoria smithiana do valor-trabalho.
O jovem logo percebeu que não se tratava de uma simples
exposição tal como o fazem os livros de história do pensa-
mento econômico, e que sua professora de Economia Política
adotara no curso.

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O Estranho Mundo dos Homens • 107

Seguindo o texto com os olhos, percebeu que após aquela


análise, vinha David Ricardo, que se apropriando das conquis-
tas teóricas de Smith, corrige suas debilidades e contradi-
ções. Depois dessa longa apresentação vêm os teóricos da
chamada Economia do Valor-utilidade. Nas mãos dos teóri-
cos utilitaristas, a Economia transita para uma compreensão
meramente economics, despolitizando essa ciência ao trans-
formá-la num saber meramente técnico em que é decretada
a morte do homem, no sentido de que a concepção utilita-
rista da economia anula o sujeito e sua capacidade de escolha.
Washington conhecia aqueles autores que fizeram a
Economia. No entanto, não havia estudado a sua teoria,
tal como estava ali exposta no texto que seu visitante lhe
deixara para ler. Olhando para aquelas páginas, respirou
fundo e disse em voz alta para si mesmo:
- Mãos à obra, Washington!

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Parte 2

Formação e Desenvolvimento
do Pensamento Econômico

1. Introdução: Economia, um saber desinteressado?

A
Economia Política é filha de uma época em que o
capitalismo ainda estava longe de se constituir como
um modo de produção plenamente desenvolvido.
Com efeito, essa ciência começa a ensaiar seus primeiros
passos num tempo em que a França ainda era uma econo-
mia praticamente feudal. É aí que se desenvolve o que passou
a ser conhecido pela história do pensamento econômico
como Fisiocracia.
François Quesnay sobressai-se como um dos seus maio-
res expoentes, cuja genialidade faz lembrar Aristóteles. Se,
para Marx, o gênio desse filósofo brilha por descobrir uma
relação de igualdade na expressão de valor das mercadorias,
o talento de Quesnay notabiliza-se por sua investigação da
interdependência do fluxo circular de renda e das despesas
entre as classes sociais; como assim descreve no seu famoso
Quadro Econômico.
Referindo-se a Marx, Kuntz (1982, p. 20) destaca que,
para o autor de O Capital,

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:49:56


110 • O Estranho Mundo da Economia

a genialidade extrema dos fisiocratas foi descrever a produção do


capital como reprodução, discriminando como seus momentos
a circulação monetária, a geração da renda e os vários passos da
troca. Além disso, ao deslocarem da circulação para a produ-
ção imediata a pesquisa sobre a origem do excedente lançaram
os fundamentos da análise da produção capitalista.

Não seria despropositado afirmar que Quesnay e seus


pares realizaram uma verdadeira revolução copernicana, ao
deslocarem a análise do excedente econômico da circulação
para a produção. Não só por isso. Também porque foram
capazes de apreender a economia como uma totalidade em
que as diferentes formas da riqueza somente podem ser devi-
damente compreendidas em sua interdependência circular,
como assim mostra o Quadro Econômico. Apropriando-se
das conquistas teóricas da Fisiocracia, Smith, inicialmente,
preocupa-se em corrigir sua principal debilidade: a redução
da produção do excedente econômico a um único setor da
economia, isto é, à agricultura. Para os fisiocratas, somente
o trabalho investido na produção agrícola é um trabalho
produtivo, porque é o único capaz de aumentar a riqueza
da nação. De acordo com esses economistas, o trabalho
dispendido no comércio, na indústria, e nos serviços, pelo
contrário, não geram riqueza maior do que o dispêndio de
capital aplicado nessas atividades.
Para Adam Smith, porém, não só o trabalho dispendido
na agricultura é produtivo, isto é, trabalho que cria um
valor maior do que o valor que foi investido na compra de
materiais, máquinas, força de trabalho etc., como também o
trabalho empregado na indústria. É o trabalho socialmente
necessário à produção, independentemente dos valores de
uso em que se incorpore, que cria valor.

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Formação do Pensamento Econômico • 111

O valor excedente aparece, agora, em suas formas de lucro,


renda da terra e juros. Com isso, o edifício da Economia
Política amplia seu status de ciência da riqueza e de sua
distribuição entre as três classes da sociedade: trabalhado-
res, capitalistas e proprietários de terra.
Infelizmente, na construção do edifício teórico da
Economia Política, Smith incorre numa série de contra-
dições, notadamente, no que diz respeito ao conceito de
valor. Ora afirma que o valor é determinado pela quanti-
dade de trabalho incorporada na produção das mercadorias.
Ora defende a ideia de que o valor (neste caso, o salário do
trabalho) depende da quantidade de trabalho que ele pode
comandar.
Não sem razão, Ricardo toma como sua principal tarefa
livrar a Economia Política das incoerências em que esta ciên-
cia se viu enredada nas mãos de Smith. Sem isto a Teoria
do Valor estaria fadada ao descrédito; uma vez que Adam
Smith, ao fazer uso de dois conceitos de valor, acaba por ferir
o princípio lógico de não-contradição. Ora, quem desobe-
dece a esse princípio, põe em xeque a própria racionalidade
do discurso científico. Que o diga Aristóteles, para quem “é
evidente que é impossível, para o mesmo indivíduo, supor,
ao mesmo tempo, que a mesma coisa é e não é; posto que
o indivíduo que cometesse esse erro estaria mantendo duas
opiniões contrárias ao mesmo tempo” (Aristóteles, 2012,
p. 111).
Além desse erro lógico, Ricardo censura Smith por ter
limitado o princípio de que o valor é determinado pela
quantidade de trabalho a um rude e primitivo estado da
sociedade em que não há acumulação de capital nem apro-
priação da renda da terra. Ricardo intenta corrigir tais defi-
ciências e contradições da teoria de Smith, mas não é de todo

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112 • O Estranho Mundo da Economia

bem-sucedido. Seja como for, em suas mãos, a Economia


ganha um status mais rigorosamente científico.
Ainda que Ricardo não tenha sido de todo bem-suce-
dido ao intentar livrar a teoria smithiana do valor de suas
contradições, tanto ele, como Smith, não se deixou enfei-
tiçar pela forma aparente e imediata em que os fenômenos
econômicos se manifestam à consciência imediata dos indi-
víduos. Pelo contrário, eles partem da superfície imediata em
que aparecem as principais formas de riqueza (salário, lucro,
renda da terra e juros), fixas e independentes entre si, para
descobrir que todas essas formas têm como fonte o trabalho.
Vale dizer que essas formas de riqueza, independentes
umas das outras, têm em comum o fato de serem formas
de manifestação de uma única e mesma substância: traba-
lho humano, que foi o primeiro preço, como dizia Smith,
com o qual “foi comprada toda a riqueza do mundo”.
Assim, Adam Smith e Ricardo apreenderam o sistema
capitalista como totalidade, que é conexão dos diferen-
tes elementos que compõem a produção e reprodução da
riqueza social como um todo. Entenderam, assim, que a
participação na riqueza dos não- trabalhadores – capitalis-
tas, banqueiros e proprietários de terra – depende, exclusiva-
mente, da apropriação do trabalho realizado por quem vive
da venda de sua força de trabalho em troca de um salário.
É óbvio que essa totalidade é totalidade formal, porque
a conexão das diferentes formas de riqueza é pensada como
uma redução do pensamento. É este que, varando a superfície
imediata dos fenômenos, descobre o que está oculto por
trás das formas aparentes de riqueza. Mesmo assim, Smith
e Ricardo, partindo da desordem aparente que reina na
economia, conseguiram construir uma representação da
sociedade capitalista como totalidade, pois foram capazes

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Formação do Pensamento Econômico • 113

de compreender a regularidade imanente que rege os


movimentos irregulares do mercado – a lei do valor.
Assim, puderam mostrar que todas as formas de riqueza
repousam sobre um elemento comum – o trabalho, de onde
tudo emana: salário, lucro, renda da terra e juros. Não por
menos, Hegel, em sua Filosofia do Direito, parte justamente
dessa totalidade construída pelos clássicos da economia, para
compreender, a partir daí, como o sistema de carecimen-
tos produz, por sua própria dialética interna, um sistema
universal de interdependência, no qual cada particular só
se afirma como tal quando mediado pelo metabolismo da
troca, engendrado pela totalidade da divisão social do traba-
lho. Entende-se, assim, porque Smith e Ricardo recusaram-
-se a ser porta-vozes da consciência prática dos agentes de
produção em suas atividades diárias. Suas análises não se
deixam emaranhar nas malhas da esfera da circulação ou do
intercâmbio de mercadorias, que aparece como um verda-
deiro “éden dos direitos do homem”, esfera na qual o que
reina é unicamente liberdade, igualdade e propriedade.
Liberdade, pois cada um é livre para permutar suas
mercadorias por outras; Igualdade, pois os indivíduos se
confrontam no mercado e aí, somente, abrem mão de suas
mercadorias se, em troca, recebem outras de igual valor;
Proprietários, pois cada um dispõe apenas do que é seu,
uma vez que cada indivíduo é reconhecido por seus pares
com possuidores de mercadorias.
Esse saber crítico, por isso desinteressado, é posto em
xeque tão logo a luta de classes assumiu formas cada vez mais
ameaçadoras. A ideia de que o trabalho é a única fonte de
riqueza soava como um verdadeiro escândalo e horror aos
olhos da burguesia e de seus porta-vozes. Com efeito, se o
trabalho é a única fonte geradora da riqueza, o lucro, conse-
quentemente, só pode ser explicado como uma apropriação

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114 • O Estranho Mundo da Economia

não paga do trabalho alheio, como apropriadamente demons-


tra Adam Smith no capítulo VI de A Riqueza das Nações.
Diante dessa ameaça teórica, se fez ouvir por toda a Europa
o soar do sino fúnebre da economia cientifica burguesa. A
economia política clássica somente pôde desenvolver sua
pesquisa desinteressada durante

o período em que a luta de classes ainda não estava desenvol-


vida. Seu último grande representante, Ricardo, converte afinal,
conscientemente, a antítese entre os interesses de classe, entre o
salário e o lucro, entre o lucro e a renda da terra em ponto de
partida de suas investigações, concebendo essa antítese, ingenu-
amente, como uma lei natural da sociedade. Com isso, porém,
a ciência burguesa da economia chegara a seus limites intrans-
poníveis (Marx, 2017, p. 85).

A partir daí, abre-se uma nova página na história da econo-


mia política burguesa. O lugar da investigação desinteressada
“foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência
e as más intenções da apologética substituíram a investiga-
ção científica imparcial” (Marx, 2017, p. 86). Desde então,
os porta-vozes das classes dominantes se

dividiram em duas colunas. Uns, sagazes, ávidos de lucro e


práticos, congregaram-se sob a bandeira de Bastiat, o represen-
tante mais superficial e, por isso mesmo, mais bem-sucedido
da apologética economia vulgar; os outros, orgulhosos da
dignidade professoral de sua ciência, seguiram J. S. Mill na
tentativa de conciliar o inconciliável. Tal como na época clás-
sica da economia burguesa, também na época de sua decadência
os alemães continuaram a ser meros discípulos, repetidores e
imitadores, pequenos mascates do grande atacado estrangeiro
(Marx, 2017, p. 87).

Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:49:56


Formação do Pensamento Econômico • 115

De uma concepção outrora crítica, a Economia política


transforma-se numa forma de saber que toma a circulação
simples ou circulação de mercadorias como esfera, por exce-
lência, de onde extrai suas noções, conceitos e parâmetros
para julgar a sociedade capitalista. É uma forma de saber
que não vai além da aparência imediata da realidade. É um
saber do senso comum expresso numa forma refinada.
Vale a pena acompanhar esse processo de transformação
pelo qual passou a Economia, desde sua infância, com a
Fisiocracia, até seu desembocar numa forma de saber pura-
mente “pseudotécnico”, que decreta a morte do homem.

2.1 Teoria do Valor‐Trabalho

2.1.1 O sistema fisiocrático: a máscara feudal e a essência


capitalista

Em Teorias da Mais-Valia, Livro I, Marx afirma que foram


os fisiocratas os primeiros a lançarem os fundamentos da
análise da produção capitalista, pois deve-se a eles o deslo-
camento da pesquisa sobre a origem da mais-valia da circu-
lação para a produção. Antes dominava o Mercantilismo
que tinha como princípio básico a ideia de que a acumu-
lação de metais preciosos era principal forma de obtenção
de riqueza. De acordo com seus adeptos, uma nação rica
dependia, portanto, de uma balança comercial superavitá-
ria, do seu comércio com o resto do mundo.
Contra essa concepção, os fisiocratas estabeleceram o prin-
cípio segundo o qual o crescimento da riqueza das nações
dependia do trabalho investido na agricultura, posto que o
trabalho ali empregado criava valor maior do que os custos
de produção (salários, matérias-primas, instrumentos de
produção etc.). Pressupunham ainda que a sociedade se

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116 • O Estranho Mundo da Economia

dividia entre três grandes classes: a dos trabalhadores assa-


lariados, a dos proprietários de terra e a dos arrendatários
que, para contratar seus trabalhadores precisavam, primeiro,
arrendar terra dos grandes proprietários.
Como o valor criado pelos trabalhadores empregados na
produção agrícola era maior do que o valor que lhes era pago
na forma de salário; dessa diferença, diz Marx, nascia a mais-
-valia que era apropriada integralmente pelos landlords na
forma de renda. Consequentemente, a mais-valia, ainda de
acordo com o autor de O Capital, só podia vir do trabalho
não-pago, do trabalho excedente criado durante a produção.
Rolf Kuntz (1982) censura a leitura que Marx faz dos
fisiocratas, pois entende que este pensador atribui ao traba-
lho excedente, ao trabalho não-pago, à origem da mais
mais- valia. Ora, contra-argumenta Kuntz: o excedente
vem unicamente da fertilidade da terra; é um puro dom da
natureza e não do trabalho aplicado na produção agrícola.
Kuntz tem razão. Mas é preciso qualificar melhor a crítica
que ele dirige à leitura que Marx faz da Fisiocracia.
Marx não nega que, para os fisiocratas, o excedente econô-
mico é um presente da natureza. Reconhece, em diversas
passagens de suas Teorias da Mais-Valia, que a mais- valia é
um puro dom da terra cultivada pelo trabalho nela aplicado.
No entanto, esse presente da natureza não fica com quem
cultivou a terra, mas, sim, com os seus senhores, que vivem
da colheita do que nunca plantaram. O dom da natureza de
gerar mais riqueza do que os gastos necessários à sua produ-
ção não foi apropriado pelo trabalhador que cultivou a terra.
Mas, sim, pelos donos da terra. Por isso, Marx entende que
o excedente econômico, de que fala os fisiocratas, configura‐
se como apropriação do trabalho alheio não-pago.
Certamente, Kuntz não concordaria com essa análise
de Marx. Diria que o autor de O Capital se esquece de

Livro 1.indb 8 24/10/2022 09:49:56


Formação do Pensamento Econômico • 117

que, para os fisiocratas, os donos da propriedade são os


herdeiros legítimos do dom da natureza, uma vez que eles
estão amparados em princípios morais e legais. Como o diz
o próprio Turgot, inclusive citado por Marx, quando exis-
tia terra suficiente para cada indivíduo cultivá-la com seu
próprio trabalho, não havia pagamento de renda.
Este surge, a partir do momento em que toda a terra já está
ocupada. A partir daí, os que chegam depois não podem mais
reclamar sua porção. Veem- se, então, obrigados a vender sua
força de trabalho em troca de um salário. Estes não têm mais
direito de se apropriar dos dons naturais da terra; o presente
que ela oferece àqueles que chegaram primeiro.
Essa justificação moral, tão a gosto do pensamento liberal,
não é suficiente para negar a exploração de uma classe por
outra. Pode até escamoteá-la; jamais negá-la! Mais adiante,
teremos a oportunidade de demonstrar essa questão. Mas,
enquanto não se chega lá, adiante-se que Quesnay e seus
discípulos transformaram o proprietário de terra num verda-
deiro capitalista. Com efeito, para o desenvolvimento do
capital, a primeira condição é que o trabalhador se disso-
cie da propriedade fundiária e que a terra se contraponha
a ele como poder autônomo, independente, isto é, que
pertença a uma classe particular. Esta, para os fisiocratas,
é a classe dos proprietários, e a estes pertence todo o exce-
dente gerado pelo trabalho.
Os proprietários de terra não passam de uma classe de
parasitas; é uma classe ociosa no sentido de que nada fazem
para a produção da riqueza. Bem diferente da classe dos
arrendatários que, aos olhos de Quesnay, aparece como figura
central em sua teoria. Para ele, “são as riquezas do arren-
datário que fertilizam as terras, multiplicam os rebanhos,
atraem e fixam os habitantes dos campos e fazem a força e
a prosperidade da nação”.

Livro 1.indb 9 24/10/2022 09:49:56


118 • O Estranho Mundo da Economia

Que seja! No entanto, para Quesnay, são as despesas dos


proprietários, seu consumo, que faz a riqueza circular para
mantê-la ativa e crescente. Se eles desviam sua riqueza para
fins que não seja o consumo, poupam suas rendas, por exem-
plo; cessa o progresso e toda a nação se empobrece. Afinal,
de seu consumo depende a sobrevivência das demais classes
sociais. É o que retrata o Quadro Econômico que será, agora,
objeto de consideração.

2.1.2 O quadro econômico: origem, circulação e distri-


buição do excedente econômico

O Quadro Econômico descreve um esquema de repro-


dução simples, ou seja, sem acumulação. O estoque de
capital já está constituído e apenas se repõe, ano após ano,
enquanto a produção se repete sempre na mesma escala.
Que o diga o autor do Quadro! Ele parte da suposição de
um vasto reino cujo território, inteiramente cultivado de
acordo com as melhores técnicas, proporciona, anualmente,
uma reprodução no valor de cinco bilhões. Pressupõe ainda
que a economia funciona sob o regime de livre concorrên-
cia e com inteira segurança da propriedade.
Como se pode inferir das pressuposições anunciadas, o
Quadro descreve, na verdade, não a economia existente na
França, mas, sim, uma economia que ainda não era, mas
poderia vir a se tornar a economia que seu autor idealiza. É
neste sentido que Kuntz entende que a análise de Quesnay
é uma teoria do desenvolvimento econômico; do que a
economia deveria ser no futuro.
Mas como esses cinco bilhões são anualmente reproduzidos?
Quesnay supõe que no início do ano, toda a produção
agrícola do ano anterior, cinco bilhões, encontra‐se nas
mãos dos arrendatários, assim distribuídos: três bilhões de

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Formação do Pensamento Econômico • 119

alimentos e dois bilhões de matérias-primas. Para a repro-


dução desses cinco bilhões foram necessários custos de três
bilhões: dois bilhões para subsistência dos trabalhadores e
um bilhão para matérias-primas. O excedente que fica com
os proprietários resulta da diferença entre os cinco bilhões
de produto e os três bilhões de gastos, isto é: dois bilhões
de rendimentos. Por sua vez, a produção de manufaturas
tinha um valor de dois bilhões: um bilhão de alimentos e
um bilhão de matérias-primas. Os custos seriam também de
dois bilhões uma vez que essa classe não produz excedente.
Mas, como ocorre, então, a circulação desses dois bilhões?

1. Os arrendatários transferem os dois bilhões para as


mãos dos proprietários;
2. Estes compram um bilhão de alimentos da classe
produtiva e um bilhão de bens manufaturados da classe
estéril (artesãos, comerciantes, artífices etc.);
3. A classe estéril, por sua vez, com esse um bilhão rece-
bido dos proprietários, compra alimentos da classe produ-
tiva (arrendatários);
4. A classe produtiva compra um bilhão de matérias-pri-
mas da classe estéril;
5. Esta classe estéril tem, agora, o valor de sua produ-
ção reconstituído: um bilhão de alimentos e um bilhão
em moeda;
6. Resultado: todo o valor da produção se encontra, agora,
nas mãos da classe produtiva, para reiniciar o processo
de reprodução.

E assim se dá a reprodução anual da produção.

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120 • O Estranho Mundo da Economia

2.2 Conquistas e debilidades teóricas da Economia Política


Clássica

2.2,1 Adam Smith e o segredo da produção da mais-valia

Ao final do capítulo IV do Livro Primeiro, de A Riqueza


das Nações, Smith antecipa os passos, mediante os quais
intenta desvendar a conexão interna das formas aparen-
tes em que se manifesta a riqueza capitalista (salário, lucro,
renda e juros). Para tanto, ele desenvolve sua Teoria do
Valor-Trabalho. Sem essa teoria, ele não teria como dispor
de um instrumento para medir a riqueza de uma nação
entre dois períodos; não teria como saber se uma nação
progrediu ou não.
Para expor sua teoria, seu raciocínio se desenvolve mais
ou menos assim: depois de haver investigado, nos capítu-
los precedentes, as causas do crescimento da riqueza das
nações e a sua natureza, Smith se pergunta sobre quais são
as regras que determinam o valor relativo ou valor de troca
das mercadorias, para, então, se propor a mostrar: [1] qual
é o critério ou medida real desse valor de troca; [2] quais
são as diferentes partes em que constituem esse preço real
e, finalmente, [3] quais são as diversas circunstâncias que
fazem esses componentes subirem acima ou descerem abaixo
do preço natural ou normal. Planejado o caminho que o
leva a descobrir a fisiologia interna do sistema, Smith deixa
o mundo fenomênico das trocas mercantis e se dirige para
o coração da produção, onde vai investigar a essência do
valor: o trabalho humano. Para tanto, desafia seriamente

tanto a paciência quanto à atenção do leitor: sua paciência,


pois examinarei um assunto que talvez possa parecer desne-
cessariamente tedioso em alguns pontos; sua atenção, para

Livro 1.indb 12 24/10/2022 09:49:56


Formação do Pensamento Econômico • 121

compreender aquilo que, mesmo depois da explicação completa


que procurarei dar, talvez, possa ainda parecer algo obscuro.
Estou sempre disposto a correr um certo risco de ser tedioso,
visando à certeza de estar sendo claro; e após fazer tudo o que
puder para ser claro, mesmo assim poderá parecer que resta
alguma obscuridade sobre um assunto que, aliás, é por sua
própria natureza extremamente abstrato (ibidem, p. 61).

É um convite nada atraente! Mas, como “não há entrada


já aberta para a ciência”, o leitor, que tem amor pelo saber
científico, não teme em aceitar o pedido de Smith. Não
lhe resta outra opção senão enfrentar o desafio proposto
pelo autor de A Riqueza das Nações; acompanhá-lo na
jornada que o leva da superfície imediata dos fenômenos
econômicos, e o seguir até a essência do sistema, para aí,
descobrir a substância oculta (o trabalho) que subjaz por
trás das formas aparentes da riqueza capitalista (salário,
lucro, juro e renda da terra).
É um caminho longo e tedioso. Começa no capítulo
V, onde Smith investiga a formação do preço real (preço
em trabalho) e do preço nominal das mercadorias (preço
em dinheiro). É uma análise que inicia afirmando que o
preço real das mercadorias é determinado pela quantidade
de trabalho necessária à sua produção. Alguns parágrafos
depois, afirma que é mais natural e fácil estimar o valor das
mercadorias em ouro e prata.
Acontece que o valor destes metais varia. Logo, não são
uma boa medida do valor de troca das mercadorias. Smith
resolve, então, substituir esses metais pelo trigo, que é o
valor do salário de subsistência do trabalhador. Embora o
valor do trigo varie, como o valor de qualquer outra merca-
doria, o autor de A Riqueza das Nações conclui, recorrendo
a longos e tortuosos raciocínios, que o trabalho, não a sua

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122 • O Estranho Mundo da Economia

quantidade, mas o valor do trabalho (o salário), expresso em


trigo, é a única medida universal do valor das mercadorias.
Esta análise, porém, é meramente descritiva. Ela não
permite mostrar como se chega à fonte do valor, isto é, ao
trabalho. A solução vem no capítulo seguinte (o VI), quando
Smith resolve lançar mão de uma hipótese que descreve um
mundo ideal onde a liberdade, a igualdade e a propriedade
reinam de forma absoluta.
É um mundo [1] onde não existe propriedade privada
da terra nem acúmulo de capital em mãos de particulares.
Nestas circunstâncias, o valor do que cada indivíduo produz
se determina pela quantidade de trabalho necessária à produ-
ção de cada mercadoria; [2] sendo assim, a remuneração
que cada produtor recebe é proporcional ao valor de sua
mercadoria, pois, na inexistência de classes sociais, o valor
do produto é igual ao valor do trabalho despendido em sua
produção; [3] nestas condições, ninguém estaria disposto a
abrir mão do produto do seu trabalho se, em troca, não rece-
besse outro de igual valor; [4] consequentemente, a troca se
faz obedecendo ao princípio de equivalência; permutam-se
valores de iguais magnitudes.
Se nesse mundo ideal o trabalho é a fonte de valor, deve
continuar sendo no mundo real. Só é necessário, agora, fazer
a passagem desse mundo imaginado para o mundo concreto
no qual vivem os homens. Um mundo dividido em clas-
ses sociais: de um lado, os donos dos meios de produção e,
de outro, a classe operaria, que dispõe unicamente de sua
força de trabalho para vendê-la no mercado.
Ao tentar realizar essa passagem, Smith descobre que
a troca entre capital e trabalho não obedece ao princípio
da troca de equivalentes, pois, nessa troca, o trabalhador
é obrigado a criar um valor maior do que o valor que ele
recebe sob a forma de salário. Smith tem plena consciência

Livro 1.indb 14 24/10/2022 09:49:56


Formação do Pensamento Econômico • 123

dessa desigualdade da troca entre capital e trabalho. Tanto é


verdade que ele não procurou tergiversar o fato de que, nesse
ponto, ocorre uma ruptura: a lei do valor é abolida em seu
resultado, pois se troca mais trabalho contra menos trabalho.
Pelo contrário! Ele converte, conscientemente, essa contra-
dição que nasce daí, em ponto de partida de sua investiga-
ção da Teoria do Valor. Sem constrangimento, reconhece
que, a partir do momento

em que o patrimônio ou capital se acumulou nas mãos de


pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão
esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes
matérias-primas e subsistência a fim de auferir um lucro com a
venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que esse traba-
lho acrescenta ao valor dessas matérias-primas. Ao trocar-se o
produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou outros bens,
além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos mate-
riais e os salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para
pagar os lucros do empresário, pelo seu trabalho e pelo risco que
ele assume ao empreender esse negócio (Smith, 1985, p. 78).

Nesta passagem, Smith diz com todas as letras que o


valor que o trabalhador recebe na forma de salário é menor
do que o valor por ele produzido. O excedente de valor é
apropriado pelo dono do capital. Noutras palavras, Smith
não tem receio em afirmar que o lucro nasce de uma rela-
ção de exploração de uma classe por outra; isto é, da relação
entre os donos das condições de trabalho (máquinas, equi-
pamentos, matérias- primas etc.) e a classe que dispõem
unicamente de sua força de trabalho.
Essa contradição real não deixou de perturbar Adam
Smith. Com efeito, a Teoria do Valor parte do pressuposto de
que a troca, necessariamente, tem de obedecer ao princípio

Livro 1.indb 15 24/10/2022 09:49:56


124 • O Estranho Mundo da Economia

da equivalência. Com efeito, num mundo em que as coisas


são produzidas para o mercado, ninguém estaria disposto a
abrir mão do que tem se, em troca, não receber algo de igual
valor. Afinal, a troca é um ato voluntário entre dois indiví-
duos em que cada um aliena a sua mercadoria por outra de
igual valor. Sem essa pressuposição a troca não passaria de
uma roubalheira generalizada.
Mas, se a troca é troca de valores iguais, como se explica
a troca entre capital e trabalho? Smith não tem como resol-
ver esse problema. Por isso, sua Teoria do Valor cai em
contradições. Como assim?! Ora, ele afirma que o valor de
uma mercadoria é determinado pelo quantum de trabalho
necessário à sua produção. Ora, sustenta que o valor deste
mesmo objeto é determinado pela quantidade de trabalho
vivo (salário) que pode comprar ou comandar.
Quem isso afirma cai em contradição, pois, como diria
Aristóteles, é impossível supor que uma mesma coisa é e
não é. E o que é pior: fazer da quantidade de trabalho vivo
comandada a medida do valor das mercadorias significa fazer
do valor do trabalho (do salário) a medida dos valores. Por
isso, ele termina por encerrar a Teoria do Valor num círculo
vicioso: o valor determinando o valor.

2.3 Ricardo e a reconstrução da Teoria do Valor‐Trabalho

É então que Ricardo entra em cena para afirmar, em alto


e bom som, que o valor das mercadorias é determinado pelas
quantidades de trabalho, nelas, inseridas. Suprime, assim, o
conceito de valor comandado, segundo o qual o valor das
mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho vivo
que comandam. Assim procedendo, Ricardo não só elimina
as contradições de Smith, como também livra a Teoria do
Valor daquele círculo vicioso, há pouco referido.

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Formação do Pensamento Econômico • 125

Afirmando o princípio de que a quantidade de trabalho


despendida na produção é a única medida do valor, Ricardo
se põe a investigar até que ponto as diversas formas de riqueza
concordam diretamente com aquele princípio, ou dele se
desviam. Com efeito, Ricardo censura Smith por conta de
ter ele limitado a aplicação daquele princípio a uma socie-
dade ideal na qual não há apropriação privada da terra nem
tampouco acúmulo de capital em mãos de articulares.
Concedendo-lhe a palavra, afirma que o autor de A
Riqueza das Nações reconheceu plenamente o princípio de
que as proporções entre as quantidades de trabalho neces-
sário são a única regra para determinar a proporção de
troca entre as diversas mercadorias. No entanto, acrescenta
Ricardo (1985, p. 49), Smith erra ao limitar

a aplicação desse princípio àquele primitivo e rude estado da


sociedade em que antecede tanto a acumulação de capital como
a apropriação da terra, como se, quando tiverem de ser pagos
lucros e renda da terra, estes tivessem alguma influência sobre
o valor relativo das mercadorias.

Além dessa limitação imposta por Smith à Teoria do


Valor, Ricardo o reprova pelo fato de ele não ter analisado

em lugar algum, os efeitos da acumulação de capital e da apro-


priação da terra sobre o valor relativo. É importante, todavia,
determinar em que medida os efeitos – reconhecidamente
produzidos sobre o valor de troca das mercadorias pela quanti-
dade de trabalho empregada na sua produção – são modificados
pela acumulação de capital e pagamento da renda da terra
(1985, p. 4).

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126 • O Estranho Mundo da Economia

Infelizmente, a análise de Ricardo não é de todo bem-su-


cedida. Primeiramente, porque, ao definir o valor do trabalho
(da força de trabalho), pressupõe que o tempo de trabalho
contido nos meios de subsistência do trabalhador é igual ao
tempo de trabalho diário que ele realiza. Por isto, ele não
tem como explicar a origem da mais-valia.
Como se isso não bastasse, Ricardo termina, também,
por cometer certas contradições. Isto acontece quando ele
passa a investigar, nas seções III e IV, do capítulo I, do seu
Princípios de Economia Política, os efeitos da acumulação do
capital sobre a lei do valor. Aí descobre que capitais com
magnitudes iguais, que deveriam receber o mesmo montante
de lucro, têm lucros diferenciados.
Ora, isso é contra a lei da concorrência que estabelece
uma taxa geral de lucro para toda a economia, pela qual
todos os capitais devem ser remunerados. Se é assim, dois
capitais, de igual magnitude, não teriam por que receber
lucros diferentes. Mas, recebem. Mesmo que estes dois capi-
tais movimentem, em sua produção, as mesmas quantidades
de trabalho, se tiverem composições diversas, serão remu-
nerados diferentemente. Ricardo explica o porquê:
Um capital, que emprega uma grande quantidade de
maquinaria, tem um prazo de retorno dos seus investimen-
tos mais demorado do que um outro que emprega pouca ou
quase nenhuma máquina. Neste caso, continua sua expli-
cação, o capital que tem prazo de retorno mais demorado
deve receber um lucro maior do que aquele que tem menor
prazo. É uma recompensa pelo prazo de espera. Neste caso,
o princípio de que a quantidade de trabalho empregada
na produção das mercadorias regula seu valor relativo é
consideravelmente modificado pelo emprego de maquina-
ria e outros capitais fixo.

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Formação do Pensamento Econômico • 127

Conclusão: Ricardo não pôde sustentar, do começo ao


fim de sua teoria, que a quantidade de trabalho empregada
na produção é o único princípio que regula o valor de troca.
Sua crítica a Adam Smith não é, portanto, de toda conse-
quente. Ele só resolveu a contradição de Smith, porque elimi-
nou um dos dois conceitos de valor adotados por aquele
autor. Procede assim, porque entendia que o problema que
levou Adam Smith a se contradizer era de ordem lógica: sua
Teoria do Valor feria o princípio de não- contradição.
Realmente, como visto há pouco, Smith ora afirma que
o valor é, ora afirma que o valor não é determinado pela
quantidade de trabalho. Quem afirma e nega, ao mesmo
tempo, se contradiz. No entanto, deve-se ressaltar que Smith
só cometeu essa contradição aparente, porque não soube
distinguir a mercadoria trabalho das demais mercadorias.
A primeira é trabalho vivo, a segunda, trabalho mate-
rializado. Para esta, vige a lei do valor, segundo a qual as
mercadorias devem ser trocadas entre si segundo quantida-
des iguais de trabalho, nelas, incorporadas. Entretanto, esta
lei não vige para o caso da mercadoria trabalho. Com efeito,
o valor criado pela mercadoria trabalho, isto é, pelo traba-
lho despendido pelo trabalhador na produção, é maior do
que o valor que este recebe sob a forma de salário.
Mas o que leva o trabalhador a aceitar trocar mais valor
por menos valor? Porque a produção do mais-valor ocorre
depois que o trabalhador vendeu sua força de trabalho no
mercado. Como assim? O dono do dinheiro, o capitalista,
e o trabalhador se confrontam no mercado como homens
de negócio. O capitalista aparece para o dono da força de
trabalho como comprador e o trabalhador como vendedor.
Este último vende sua força de trabalho por seu valor e o
capitalista paga integralmente esse valor.

Livro 1.indb 19 24/10/2022 09:49:56


128 • O Estranho Mundo da Economia

Afinal, ambos vivem num mundo em que os indiví-


duos se reconhecem, reciprocamente, como possuidores de
mercadorias. Como tais, ninguém estaria disposto a abrir
mão de sua mercadoria se em troca não receber outra de
igual valor. Sem essa pressuposição da igualdade dos valo-
res permutados, a troca, enquanto relação social dominante,
não se sustentaria. Os próprios indivíduos não aceitariam
viver numa sociedade se soubessem, de antemão, que a troca
não obedece ao princípio da equivalência. Não aceirariam,
pois, viver numa sociedade em que a forma de apropriação
da riqueza fosse o logro generalizado de todos contra todos.
Daí, o drama de Smith quando descobre que o resultado
da compra e venda da força de trabalho se materializa num
produto cujo valor é maior do que o valor que o trabalha-
dor recebeu sob a forma de salário.
O drama de Adam Smith se deve, portanto, ao fato de
que ele, assim como Ricardo, não distinguiu o valor do
trabalho do valor criado pelo trabalho. São duas grande-
zas distintas. O trabalhador não vende trabalho, mas, sim,
sua mercadoria força de trabalho, cujo valor é determinado
como o de qualquer outra mercadoria: pelo tempo de traba-
lho necessário à produção dos bens; necessário a reprodução
do trabalhador como pessoa. Ao comprar essa mercadoria
no mercado, o capitalista paga integralmente o seu valor e,
na condição de comprador, faz valer o seu direito de dono
da mercadoria quando tenta prolongar o máximo possível
o tempo que o trabalhador trabalha para ele.
Agora, tudo se esclarece. O capitalista e o trabalhador se
confrontam no mercado como comerciantes: o trabalhador
como vendedor e o capitalista como comprador. Ambos reali-
zam suas transações, apoiados na lei da troca de mercado-
rias, segundo a qual, a troca é sempre troca de valores iguais.
Como qualquer outro comprador, o capitalista procura tirar

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Formação do Pensamento Econômico • 129

maior proveito possível do valor de uso da mercadoria que


comprou: a força de trabalho. É aí, durante o consumo, que
o capitalista arranca do trabalhador um valor maior do que
o valor que ele pagou pela mercadoria do trabalhador. E
tudo isso sem ferir o princípio da equivalência.
A troca entre capital e trabalho é, assim, a grande proble-
mática com a qual se defrontaram Smith e Ricardo. Esses
dois gigantes do pensamento econômico não conseguiram
explicar, compatibilizar a lei do valor com a troca entre capi-
tal e trabalho. E não conseguiram, porque não souberam
distinguir a mercadoria trabalho das demais mercadorias.
A primeira é trabalho vivo; a segunda, trabalho materiali-
zado, trabalho realizado. Mesmo assim, ambos tiveram os
seus méritos e deméritos.
Para Marx (1984, p. 66),

é grande mérito de Adam Smith ter intuído, precisamente nos


capítulos do Livro I [caps. 6,7, 8] nos quais ele passa da troca
simples das mercadorias e da sua lei do valor para a troca entre
capital e trabalho assalariado [...] – é seu mérito ter intuído
que, nesse ponto, ocorre uma ruptura, e [...] que a lei é de fato
abolida em seu resultado, que se troca mais trabalho contra
menos trabalho [...]; e é grande mérito seu ter salientado [...]
que, com a acumulação de capital e com a propriedade fundiá-
ria [...] verifica-se aparentemente [...] uma nova mudança, uma
inversão da lei do valor em seu oposto. Assim como sua força
teórica está em ter intuído e sublinhado essa contradição, do
mesmo modo sua debilidade teórica está no fato de que isso
o levou a engano no que se refere à lei geral, inclusive no que
tange à troca simples de mercadoria; está em não ter compreen-
dido como esta contradição surge do fato de que a própria
capacidade de trabalho se torna mercadoria, e que – para essa
mercadoria particular – o valor de uso, que nada tem a ver com

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130 • O Estranho Mundo da Economia

seu valor de troca, consiste precisamente na energia que cria


o valor de troca. A superioridade de Ricardo sobre Smith está
em não se ter deixado enganar por essas contradições aparentes,
mas reais quanto ao resultado. A sua inferioridade, com rela-
ção a Smith, está em não ter nem sequer que aqui se coloca
um problema; e, por isso, o desenvolvimento específico que a
lei do valor sofre com a formação do capital não o surpreende
e não o preocupa, nem mesmo por um instante.

A despeito dessas debilidades teóricas, a investigação reali-


zada por Smith e Ricardo empreendeu um grande traba-
lho que foi o de

reduzir as diferentes formas de riqueza, fixas e estranhas entre


si, à unidade intrínseca delas, despojá-las da configuração em
que existem lado a lado, independentemente uma das outras;
quer apreender a conexão interna que se contrapõe à diversi-
dade das formas da aparência. Por isso, [...] reduziu à forma
única do lucro todas as formas de renda (revenue) e todas as
figuras independentes que constituem os títulos sob os quais
os não-trabalhadores participam do valor das mercadorias. E o
lucro se reduz à mais-valia, uma vez que o valor na mercadoria
inteira se reduz a trabalho [...]. Nessa análise, a economia clás-
sica se contradiz em certos pontos, com frequência de maneira
direta, sem elos intermediários, tenta empreender essa redução
e demonstrar que as diferentes formas têm a mesma fonte. Mas
isso é consequência necessária do método analítico com que
a crítica e a compreensão têm de iniciar-se. A economia clás-
sica não tem interesse em analisar como nascem as diferentes
formas, mas em convertê-las, pela análise, à unidade delas, pois
parte dessa forma como pressuposto dado; mas, a análise é o
requisito indispensável para se revelar a gênese, para se compre-
ender o processo real de formação das diferentes fases. Por fim,

Livro 1.indb 22 24/10/2022 09:49:56


Formação do Pensamento Econômico • 131

a economia clássica é falha e carente ao conceber a forma básica


do capital – a produção destinada a se apropriar de trabalho
alheio – não como forma histórica e sim como forma natural
da produção social, e sua própria análise abre caminho para
que se destrua essa concepção (Marx,1984, p. 1538).

Além das determinações históricas que condicionaram


esse movimento de inflexão da economia, o próprio método
analítico dos economistas clássicos (Smith e Ricardo), como
assim ressalta Marx ao final da citação acima, abriu cami-
nho para que se destruísse a concepção defendida por Smith
e Ricardo.
Jean-Baptiste Say (1767-1832) não teve dificuldade em
substituir o trabalho, como fundamento do valor, pela
utilidade. Nem poderia, afinal a redução analítica, reali-
zada pelos clássicos, é operada pela força generalizante do
pensamento. Assim como os clássicos chegaram ao trabalho
como elemento comum que subjaz por trás de cada forma
aparente de riqueza, bem que poderiam ter chegado à utili-
dade, uma vez que é esta propriedade que confere às coisas
o poder de satisfazer as necessidades de consumo, seja este
um consumo produtivo ou pessoal.
Por isso, Say sentiu-se à vontade para mudar a teoria
smithiana do valor. Dizendo- se discípulo de Smith, Say se
propôs a corrigir alguns pontos em que Smith parece ter se
enganado, ou que deixou por esclarecer. Um desses equí-
vocos por ele apontado é o de que

Smith atribui somente ao trabalho a capacidade de produ-


zir valores [...]. Atribuindo pouca importância à ação da terra
e nenhuma aos serviços prestados pelos capitais, ele exagera
a influência da divisão do trabalho, ou melhor, da separação
das ocupações. Não que essa influência seja nula nem mesmo

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132 • O Estranho Mundo da Economia

medíocre, mas suas maiores maravilhas nesse gênero não resul-


tam da natureza do trabalho: devem-se ao uso que se faz das
forças da natureza. O desconhecimento desse princípio impe-
diu-o de estabelecer a verdadeira teoria das máquinas em relação
à produção da riqueza (Say, 1983, p. 54).

Partindo daí, Say (1983, p. 68) chega à conclusão de que


“o valor que os homens atribuem às coisas tem seu primeiro
fundamento no uso que delas podem fazer. Mais adiante,
conclui que “só há, portanto, verdadeira produção de riqueza
onde existe criação ou aumento de utilidade” (p. 69).
Com seu Tratado de Economia Política, publicado em
1803, Say abriu as portas para a revolução marginalista,
que substituiu a Teoria do Valor-Trabalho pela Teoria
do Valor-Utilidade. Desta perspectiva, é a utilidade que
determina o valor; não mais o trabalho empregado na
produção. Ora, se o trabalho perde sua centralidade na
determinação do valor, não se pode mais falar de explora-
ção; o lucro não aparece mais, como o era para os clássi-
cos, como uma apropriação gratuita do excedente de valor
criado pelo trabalhador.
Agora, com a Teoria do Valor-Utilidade, os donos dos
meios de produção encontram, na Economia, porta-vozes
que transformaram essa ciência numa teoria da mecânica
da utilidade, reduzindo o trabalho a um fator de produção
entre outros. A partir daí, a Economia se converte numa
ciência de uma harmonia, como diria Marx, “preestabele-
cida das coisas ou sob os auspícios de uma providência toda-
-astuciosa”, realiza o interesse geral de todos os indivíduos.
Washington finalizando aquele estudo, fica a pensar
nas aulas do curso de Economia recém‐finalizado. De
repente, ele se lembra das aulas peculiares de um professor,
e começa, finalmente, a entender as implicações daquelas

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Formação do Pensamento Econômico • 133

teorias. Corre até o quarto e vasculha sua estante em busca


de um texto. Finalmente, encontra‐o e, folheando aquelas
páginas, decide relê‐lo.

2.4 Teoria do Valor-Utilidade1

2.4.1 Karl Menger: a Economia como ciência da escassez


e da felicidade humana

2.4.1.1 Da doutrina da troca

Contra o autor de A Riqueza das Nações, Karl Menger


(1840-1921) não aceita a ideia da desumanização do homem
causada pela divisão do trabalho, visto que, para ele, a troca
é um meio e não um fim. De fato, em sua crítica a Smith,
acusa-o por ter pensado a troca como um dos princípios
constitutivos da natureza humana, como se daí pudesse
concluir, como de fato o fez, que intercâmbio de mercado-
rias é um fim que se justifica por si mesmo.
Partindo dessa conclusão, Menger julga que Smtih teria,
dessa forma, desvirtuado o próprio fim da Economia, que é
o de promover a produção da vida e do bem-estar geral dos
homens. Se o objetivo da Economia é satisfazer as necessi-
dades do homem, a troca só pode ser vista como um meio;
nunca como um fim. Diria ele, com mais razão ainda, que
se se considerar a Economia como uma atividade predeter-
minada pelo ser humano, de tal modo que estará nele, e não
nas coisas, a sua razão de ser. Quanto a isso, os Princípios não
deixam nenhuma dúvida. De fato, em uma de suas passagens
lê-se (Menger, 1983, p. 259):

1
TEIXEIRA, Fco. Trabalho e Valor: Contribuição para a Crítica da
Razão Econômica. São Paulo: Editora Cortez, 2004.

Livro 1.indb 25 24/10/2022 09:49:56


134 • O Estranho Mundo da Economia

as necessidades derivam de nossos instintos e impulsos, e estes


estão radicados em nossa natureza; o não atendimento das neces-
sidades tem como consequência o aniquilamento, levando o
atendimento insuficiente à mutilação de nossa natureza. Por
outro lado, atender às próprias necessidades significa viver e
prosperar. Por conseguinte, zelar pelo atendimento das nossas
necessidades significa o mesmo que zelar pela nossa vida e pelo
nosso bem- estar; isto constitui o mais importante dos empe-
nhos, pois representa o pressuposto e a base de todos os demais
cuidados e empenhos do homem.

Em seguida, Menger (1983, p. 259) precisa que

[...] se dispusermos de todos os bens necessários para atender


às nossas necessidades, o atendimento concreto dependerá
simplesmente de nossa vontade; com isso, nosso objetivo está
praticamente assegurado, pois nesse caso, a vida e o bem-estar
estão em nossas mãos.

Nestas duas passagens, Menger não poderia ter sido


mais claro: a economia existe em função do homem; não
este, em função daquela. Sem necessidades e desejos, não
teria sentido nem a economia nem um sistema econômico.
Daí, a razão de sua crítica a Smith, censurando-o por ter
considerado a troca como um dos princípios essenciais da
natureza humana e não como um simples meio a serviço
das necessidades humanas. Expressando esta crítica sob a
forma de questionamentos, Menger pergunta:

o pendor dos homens por trocar, negociar e ceder uma coisa


por outra constitui um dos princípios essenciais da natureza
humana? Ou será consequência necessária da inteligência

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Formação do Pensamento Econômico • 135

humana e da faculdade de falar? Ou seriam outras as causas


que levam os homens a trocar seus bens econômicos?

Dirigindo-se ao autor de A Riqueza das Nações, Menger


comenta que essas questões “não foram respondidas por Adam
Smith. Segundo afirma o excelente pensador, a única coisa
certa é que o gosto pela troca é comum a todos os homens,
não se encontrando em nenhuma espécie animal” (ibidem,
p. 321). Ora, argumenta Menger, se a troca constituísse, por
si mesma, um prazer, todo e qualquer excedente de produ-
ção seria destinado ao comércio, ao intercâmbio. Portanto,
diz ele, devem existir outras causas que levam os homens a
trocar seus bens econômicos.
Para demonstrar que a troca não é uma finalidade inscrita
na natureza humana, Menger lança mão de um exemplo,
extremamente, esdrúxulo que mostra dois agricultores com
excesso de cevada da mesma espécie. Em seguida, ele acres-
centa que, se o homem fosse movido pelo desejo inato de
viver da troca, com certeza os dois cultivadores de cevada
permutariam entre si os seus excedentes de produção; entre-
tanto não o fazem, pois, se o fizessem, seriam objetos de
crítica jocosa de seus pares, uma vez que não teria sentido
trocar coisas idênticas.
Outros exemplos dessa natureza se seguem, sempre com
o objetivo de demonstrar que a troca não é uma qualidade
inata dos seres humanos: estes não nasceram para viver da
troca, como se esta fosse uma finalidade imanente, cravada
em suas almas desde sempre, para sempre. Daí sua conclu-
são de que

a tendência dos homens para a troca de um bem para outro deve


ter outras razões, além do prazer que possa representar. Com
efeito, se a troca constituísse por si mesma um prazer, portanto,

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136 • O Estranho Mundo da Economia

um objetivo justificável por si mesmo (não uma atividade muitas


vezes penosa e cercada de perigos e sacrifícios econômicos), não
se veria por que motivo as pessoas, mesmo nos dois casos cita-
dos e em milhares de outros, deixariam de praticar a troca ou
não continuariam a permutar indefinidamente, quando, na
realidade, observamos em toda parte que as pessoas refletem
muito antes de fazer qualquer troca, chegando um momento
em que se estabelece um limite além do qual dois indivíduos
deixariam de permutar (ibidem, p. 322).

Por que a troca tem limites? Que impede que ela se


transforme numa atividade autônoma, que teria em si
mesma a sua razão de ser? Se estas questões fossem dirigi-
das diretamente a Menger, certamente responderia dizendo
que não é exclusivamente guiado pelo desejo de ganhar
dinheiro que os homens permutam seus produtos uns
pelos outros. Como Aristóteles, Menger vê a troca não
como uma finalidade em si mesma, cujo objetivo seria a
busca da riqueza pela riqueza. Mas sim, como um meio
mediante o qual os homens adquirem os bens necessários
para o atendimento de suas necessidades e do seu bem-estar.
É assim mesmo que ele analisa os limites da troca
econômica. Fazendo uso de um exemplo que mostra dois
indivíduos vivendo na selva, imagina, em seguida, que um
deles, o indivíduo A, dispõe inicialmente de 6 cavalos e
uma vaca, enquanto o indivíduo B, ao contrário de A, é
dono de 1 cavalo e 6 vacas. Esses dois conjuntos de bens
são distribuídos numa gradação de importância para o
atendimento de suas respectivas necessidades, que variam
de 50 a 0. Esquematicamente, as coisas podem ser assim
representadas:

Livro 1.indb 28 24/10/2022 09:49:56


Formação do Pensamento Econômico • 137

Indivíduo A Indívuduo B
Cavalos Vacas Cavalos Vacas
50 50 50 50
40 40
30 30
20 20
10 10
0 0

Que aconteceria se os indivíduos resolvessem permutar seus


bens uns pelos outros? Até onde iria a troca? Acompanhando
cada ato de troca, as coisas se passariam mais ou menos assim:
Primeiro ato de troca: ao trocar um cavalo por uma
vaca, A diminui sua riqueza de cavalos em uma unidade e
aumenta sua quantidade de vacas para duas unidades. B, por
sua vez, acresce seu patrimônio de cavalos de 1 para 2, e reduz
o de vacas de 6 para 5.

Individuo A Indivíduo B
Cavalos Vacas Cavalos Vacas

50 50 50 50
40 40 40 40
30 30
20 20
10 10

Segundo ato de troca: depois de realizada a troca, A ficará


com 4 cavalos e 3 vacas; B, com 3 cavalos e 4 vacas. A situação
em termos de graduação da importância dos bens para am-
bos os indivíduos será então de:

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138 • O Estranho Mundo da Economia

Indivíduo A Indivíduo B
Cavalos Vacas Cavalos Vacas
50 50 50 50
40 40 40 40
30 30 30 30
20 20

Terceiro ato de troca: efetuado este ato de troca, o


patrimônio de A será, agora, constituído por 3 cavalos e 4
vacas; o de B também: 3 cavalos e 4 vacas. A gradação de
suas necessidades terá, agora, a seguinte ordem:

Indivíduo A Indivíduo B
Cavalos Vacas Cavalos Vacas
50 50 50 50
40 40 40 40
30 30 30 30
20 20

Que aconteceria se houvesse um quarto ato de troca?


A resposta de Menger é que ambos os indivíduos sairiam
perdendo. Como assim? Ora, o indivíduo A receberia uma
quinta vaca que teria para ele um grau de importância em
suas necessidades de apenas 10. Para obter 10, teria de se
desfazer do quarto cavalo, cuja importância em sua escala
de necessidades é da ordem de 30.
Ora, em todos os atos anteriores de troca, tanto A quanto
B ganharam, pois permutaram bens que tinham valor menor
em suas respectivas gradações de necessidades por outros
de maior valor; um quarto ato de troca traria prejuízos para
ambos. Este é o limite da troca para A e B; um limite

Livro 1.indb 30 24/10/2022 09:49:56


Formação do Pensamento Econômico • 139

que não podem ultrapassar sem provocar uma situação econô-


mica mais desfavorável; em suma, perceberíamos que existe
sempre um limite no qual se esgota o proveito econômico pleno
auferível da operação de troca, e esse proveito pleno começa a
partir desse ponto, caso a permuta prossiga; um limite, portanto,
além do qual toda e qualquer troca de porções parciais se torna
antieconômica (Menger, 1983, p. 329).

2.5 Da Teoria do Valor

A doutrina da troca, assim exposta, pressupõe uma Teoria


do Valor. De fato, um dos princípios que movem a troca é,
justamente, o fato de que um dos indivíduos deve possuir
certa quantidade de bens que, para ele, tem utilidade menor
que as outras quantidades de bens que estão em mãos do
outro indivíduo, com quem estabelece uma relação de troca.
A troca prossegue, então, até o ponto em que cada um dos
parceiros do intercâmbio receba tanto quanto tenha de abrir
mão em termos de utilidade.
Vê-se, então, que a utilidade dos bens depende de uma
avaliação pessoal; cada indivíduo atribui maior ou menor
utilidade aos bens, conforme a importância que eles têm na
escala de satisfação de suas necessidades. Vale dizer: deter-
minado bem terá maior ou menor valor para um indivíduo,
dependendo da utilidade que este bem tem para ele; quanto
maior for a utilidade, maior será o seu valor; quanto menor
a utilidade, menor valor terá o bem em causa.
Aí está o cerne da Teoria do Valor de Menger. Para ele,
“o valor é a importância que determinados bens concretos –
ou quantidades concretas de bens – adquirem para nós, pelo
fato de estarmos conscientes de que só poderemos atender
às nossas necessidades na medida em que dispusermos deles”
(Menger,1983, p. 283).

Livro 1.indb 31 24/10/2022 09:49:57


140 • O Estranho Mundo da Economia

O valor assim definido é uma grandeza subjetiva; depende


da avaliação que cada indivíduo tenha de um bem em
causa. Sendo assim, determinado bem pode ter mais de
um valor, pois sua utilidade é em função da importância
que ele tenha para cada indivíduo. Quer dizer, então, que
o valor é uma grandeza puramente arbitrária? À primeira
vista, parece que sim.
O valor depende da avaliação que as pessoas fazem sobre
a importância dos bens de que dispõem para atender às
suas necessidades. Neste sentido, como diz Menger, o valor
só existe na consciência dos indivíduos; disto, poder‐se‐ia
concluir que o valor nada tem de objetivo. Não se pode,
entretanto, esquecer que o valor é uma relação; só existe
em conexão com as necessidades humanas, que, segundo
Menger, têm uma escala hierárquica objetiva
A este respeito, ele assim se expressa:

no que concerne à variação do grau de importância das diver-


sas necessidades às quais temos que atender, a experiência mais
comum do dia-a-dia nos ensina um fato: as pessoas costumam
atribuir grau mais elevado de importância àquelas necessidades
de cujo atendimento depende a conservação da vida; e o grau
de importância das demais necessidades escalona-se de acordo
com o grau (duração e intensidade) do bem-estar que depende
do atendimento das respectivas necessidades. Se portanto, as
pessoas se virem na contingência de escolher entre o atendimento
de uma necessidade da qual depende apenas a conservação de
sua vida e o atendimento de uma necessidade da qual depende
maior ou menor grau de bem-estar, costuma-se dar prioridade
à primeira; da mesma forma, darão prioridade à satisfação
das necessidades cujo atendimento lhes proporcionar maior
grau de bem-estar (portanto, para intensidade igual, duração
maior; para duração igual, maior intensidade), dando menor

Livro 1.indb 32 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 141

importância às necessidades, cujo atendimento lhes propor-


ciona menor grau de bem-estar (ibidem, 1983, p. 288‐289).

Ora, como o valor dos bens depende de sua relação com


as necessidades humanas e, sendo estas hierarquicamente
escalonadas segundo uma ordem objetiva, então, o valor,
mesmo dependente da avaliação subjetiva de cada indi-
víduo, pode ser visto como um fenômeno objetivo. Com
mais razão ainda, se se considerar que a hierarquização das
necessidades é um fato objetivo; na verdade, é uma impo-
sição da realidade.
Como assim? Para demonstrar essa imposição da realidade,
Menger admite que os bens são limitados em quantidade;
caso contrário, não seria preciso hierarquizar as necessida-
des. Como os bens econômicos são escassos por natureza,
dirá Menger: o homem vê-se, por isso, obrigado a escalo-
nar suas necessidades em ordem de prioridade. Justamente
porque os bens são escassos ou, para falar com Menger, a
oferta de recursos é limitada, sua utilidade vai depender
não do bem em si, mas, sim, de sua relação com as neces-
sidades humanas.
Daí, o porquê de o conceito de valor exigir que se dife-
renciem os bens econômicos dos bens não econômicos. É
o que faz Menger na seguinte passagem:

a utilidade é aptidão que uma coisa tem para servir à satisfação


de necessidades humanas, portanto (a utilidade reconhecida
como tal), um pressuposto básico para que uma coisa seja
um bem [...]. O que distingue bem não econômico de bem
econômico é o fato de o atendimento das necessidades huma-
nas não depender da disponibilidade de quantidades concretas
do primeiro, mas de quantidades concretas do segundo; assim
sendo, o primeiro tem utilidade, ao passo que o segundo, além

Livro 1.indb 33 24/10/2022 09:49:57


142 • O Estranho Mundo da Economia

de utilidade, também tem para nós a importância que deno-


minamos valor.

E conclui: “o valor dos bens está fundado na relação


que têm com nossas necessidades, mas não nos próprios
bens. Ao variar essa relação de interdependência, necessaria-
mente surge ou desaparece o valor” (ibidem, 1983, p. 287).
Em síntese, a Teoria do Valor poderia ser assim esque-
matizada: [1] o valor dos bens é determinado por sua
utilidade; [2] a utilidade de um bem qualquer decresce à
medida que unidades adicionais desse bem são consumi-
das; [3] os bens econômicos são escassos, sem o que seria
impensável a própria Teoria do Valor. De fato, se os bens-
fossem ilimitados em quantidade, não teriam valor, pois
os indivíduos não seriam obrigados a atribuir maior ou
menor importância a um bem com relação aos demais.
Mas, como se sabe que os bens são escassos? Se esta
questão fosse dirigida a Menger, ele responderia tratar-
-se de um princípio auto-evidente. Possivelmente, argu-
mentaria da seguinte forma: qualquer pessoa sabe que não
pode dispor de tudo o que necessita, pois a experiência
do dia-a-dia mostra que as coisas são limitadas. Há de se
considerar também que, se os bens fossem ilimitados, os
indivíduos não teriam por que escolher entre um bem e
outro ou ponderar em adquirir mais de um bem em detri-
mento de outro.
Em consequência, não haveria bens econômicos; os
homens não teriam por que se preocupar com o atendi-
mento de suas necessidades; não teriam por que entrar
em conflito uns com os outros, pois, se os bens fossem
ilimitados, a apropriação seria um ato livre; todos poderiam
dispor do que quisessem, sem prejuízo dos demais.

Livro 1.indb 34 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 143

Menger leva mais longe o princípio da escassez para


explicar a necessidade da propriedade privada. Para ele, essa
instituição nasce como solução prática para o problema da
oposição de interesses, decorrente da apropriação da riqueza,
que é, por natureza limitada. Daí, por que seria impossível
eliminar a instituição da propriedade privada. Esta só pode-
ria ser eliminada, diz Menger (1983, p. 271),

[...] se fôssemos capazes de aumentar a quantidade de todos os


bens econômicos ao ponto de se poder atender por completo
a demanda de todos os membros da sociedade, ou então, se
fôssemos capazes de diminuir as necessidades humanas até o
ponto em que as quantidades disponíveis desses bens fossem
suficientes para atender plenamente a todo.

Decorre, daí, que nenhuma ordem social poderá acabar


com a propriedade privada. Uma nova ordem social pode-
ria apenas

fazer com que, em lugar das atuais pessoas, outras viessem a


utilizar as quantidades de bens econômicos disponíveis para o
atendimento de suas necessidades, mas nunca conseguiria evitar
que houvesse outras pessoas cuja demanda não seria atendida, ou
só parcialmente atendida, e contra as quais a sociedade seria, de
qualquer forma, obrigada a colocar barreiras de proteção à legí-
tima propriedade adquirida por outros (ibidem,1983, p. 271).

A escassez não é somente um pressuposto sobre o qual se


estrutura o discurso teórico. Ela é, antes de tudo, um prin-
cípio da ordem das coisas; um princípio da natureza que
determina a economia e suas relações com as instituições
da sociedade: propriedade, estado, dinheiro etc.

Livro 1.indb 35 24/10/2022 09:49:57


144 • O Estranho Mundo da Economia

2.5 Menger e a racionalidade do saber moderno

Se, para Menger, o princípio da escassez é da ordem do


real, isso significa que sua teoria tem a pretensão de expres-
sar o que as coisas são na realidade. Posição estranha para
quem é filho de uma época em que as ciências já haviam se
constituído como uma forma de saber desligado de toda e
qualquer pretensão metafísica do mundo e ingressado no
rol da cientificidade.
Desde então, as ciências passam a ser entendidas como
forma de saber que parte da separação radical entre sujeito
e objeto do conhecimento, no sentido de que sem a ação
da subjetividade, não só é impensável o conhecimento
como também a própria ação do homem no mundo. Isso
não significa cair num subjetivismo ingênuo que faz tábua
rasa da experiência. Pelo contrário, sem o concurso da expe-
riência não haveria objeto a ser conhecido, uma vez que o
conhecimento humano, do ponto de vista cognitivo, não
pode ultrapassar o horizonte da experiência, pois as ciên-
cias modernas são filhas da experiência.
Entretanto, no horizonte aberto pelas ciências modernas,
a experiência deve ser interpretada, pois os objetos forneci-
dos por ela não trazem escrito em si o que são, isto é, não
revelam ao homem as suas determinações. O conhecimento
radica-se no homem; é ele que tem o poder de ordenar os
dados da experiência e, assim, transformá-los em objeto do
conhecimento. É assim que Kant vai entender e legitimar o
conhecimento produzido pelas ciências. Toda a sua filosofia

é uma tentativa de mostrar que a experiência não é um dado


inabalável, a partir de onde todo o conhecimento e ação
humanos encontram não só seu princípio, mas sua justifica-
ção. Sem dúvida, a experiência é o lugar do homem, como o

Livro 1.indb 36 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 145

chão fundamental no qual tudo se refere. Porém este chão não é


tomado, ingenuamente, como um dado, mas é pensado em sua
mediação, em sua estruturação interna (Oliveira,1989, p. 16).

Contra a antiga concepção metafísica de saber, para a


qual o conhecimento teórico nada mais seria do que um
conhecimento como reflexo da realidade transportada para
a cabeça do homem; para Kant, o conhecimento é uma
construção do sujeito; é ele que confere sentido à realidade
caótica dos fenômenos.
O conhecimento depende, portanto, da subjetividade e
não das coisas; é ela que imprime sentido a um mundo sem
sentido. E não poderia ser diferente, pois, conforme Kant
(p. 38), interpretando Hume:

a experiência não concede nunca aos seus juízos uma univer-


salidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta
e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade,
antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado veri-
ficar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra [...]. A
universalidade empírica é, assim, uma extensão arbitrária da
validade [...]. Necessidade e rigorosa universalidade são, pois,
os sinais seguros de um conhecimento a priori e são insepará-
veis uma da outra.

Com efeito, antes de Kant, Hume já havia demonstrado


que a experiência não pode conceder juízos rigorosamente
universais e verdadeiramente necessários, pois para ele, o
contrário de uma questão de fato é sempre possível, isto é,
que não implica nenhuma contradição. Como assim? Um
pouco de paciência e tudo se esclarece.
Hume divide toda forma de conhecimento em duas clas-
ses: relações de ideias que são próprias da geometria, álgebra,

Livro 1.indb 37 24/10/2022 09:49:57


146 • O Estranho Mundo da Economia

aritmética, lógica etc., e matérias de fato que se referem


a tudo aquilo que acontece no mundo, e que é dado ao
conhecimento do homem pelos sentidos, isto é, pela expe-
riência. Ele não se interessa pela investigação das ideias
de razão, uma vez que essas não permitem adquirir novos
conhecimentos; servem unicamente para garantir o rigor
do caminho seguido pelo pensamento, quando este pensa
sobre si mesmo.
Prova disto pode ser dada pelo silogismo aristotélico.
Com efeito, se alguém diz: “Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem. Sócrates é mortal”. Tal conclusão de que
Sócrates é mortal está contida na premissa maior “todos os
homens são mortais”. Consequentemente, a passagem do
todo (“todos homens são mortais”) para alguns (“Sócrates
é mortal”) é, portanto, de natureza puramente lógica, isto
é, demonstrativa, analítica.
Como se trata de deduções de natureza puramente lógi-
cas, operações do pensamento pensando sobre si mesmo,
essas relações não admitem contrários. Como assim? Bastar
pensar numa proposição do tipo, por exemplo, “a bola é
redonda”, para saber que o sujeito da proposição “a bola
é redonda” não admite outro predicado que não seja
“redonda”. Nem poderia, uma vez que o predicado “redonda”
já está contido no sujeito. Seria, pois, uma contradição
afirmar que “a bola é quadrada”.
O segundo tipo de objetos do conhecimento são as
questões de fato. Trata-se de questões que são próprias do
mundo real, isto é, são relações descobertas pela experiên-
cia; pelos sentidos. Diferentemente das relações de ideias,
o contrário de toda questão de fato, diz Hume (2004),
permanece sendo possível,

Livro 1.indb 38 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 147

porque não pode jamais implicar contradição, e a mente o


concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeita-
mente ajustável à realidade. Que o sol não nascerá amanhã não
é uma proposição menos inteligível nem implica mais contra-
dição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto,
tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativa-
mente falsa, implicaria uma contradição e jamais poderia ser
distintamente concebida pela mente (p. 54).

Mas o que significa conhecer as questões de fato? É conhe-


cer suas causas e seus efeitos. Saber o que é a água, por exem-
plo, é saber que ela pode ser usada para banho, para matar
a sede, para apagar fogo, entre tantos outros usos possíveis.
Saber que a água tem várias utilidades é um tipo de conhe-
cimento que se funda em relações de causa e efeito. De fato,
para Hume (2004, p. 54‐55),

é somente por meio dessa relação que podemos ir além da


evidência de nossa memória e nossos sentidos. Se perguntás-
semos a um homem por que ele acredita em alguma afirmação
factual acerca de algo que está ausente – por exemplo, que seu
amigo acha-se no interior, ou na França –, ele nos apresentaria
alguma razão, e essa razão seria algum outro fato, como uma
carta recebida desse amigo ou o conhecimento de seus ante-
riores compromissos e resoluções. Um homem que encontre
um relógio ou qualquer outra máquina em uma ilha deserta
concluirá que homens estiveram anteriormente nessa ilha. Todos
os nossos raciocínios relativos a fatos são da mesma natureza.
E aqui se supõe invariavelmente que há uma conexão entre o
fato presente e o fato que dele se infere. Se nada houvesse que
os ligasse, a inferência seria completamente incerta. Por que a
audição de uma voz articulada e de um discurso com sentido na
escuridão nos assegura da presença de alguma pessoa? Porque

Livro 1.indb 39 24/10/2022 09:49:57


148 • O Estranho Mundo da Economia

esses são os efeitos da constituição e do feitio do ser humano,


e estão intimamente conectados a ele. Se dissecarmos todos os
outros raciocínios dessa natureza, descobriremos que eles se
fundam na relação de causa e efeito, e que essa relação se apre-
senta como próxima ou remota, direta ou colateral. Calor e luz
são efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser legiti-
mamente inferido do outro.

Mas qual é a natureza da conexão entre causa e efeito?


Da resposta a essa questão depende o destino das ciências,
uma vez que esta depende do conhecimento dessas rela-
ções. Com efeito,

porque sei que a faísca faz a pólvora explodir, que a explo-


são produz uma dilatação do ar, que a dilatação, em um tubo
fechado, produz um aumento de pressão, sou capaz de cons-
truir uma arma de fogo. Porque sei que o vento exerce uma
pressão nas superfícies em que bate, sou capaz de construir
barcos à vela, moinhos, cata-ventos e papagaios... Saber sobre
causas e efeitos é saber o que certas coisas fazem com as outras.
E, sabendo isto, a tecnologia nasce quando combinamos as
coisas certas para obter os efeitos desejados (Alves, 1981, p. 8).

Ora, se a ciência e a tecnologia dependem da relação de


causa e efeito, mais do que nunca se impõe a necessidade
de se conhecer a natureza das relações de causalidade. Os
exemplos até aqui dados por Hume mostram que a cone-
xão que liga o efeito a sua causa foi obtida partindo da
observação de um evento presente que remete a mente a
pensar que este evento foi objeto de observação no passado,
como mostra o exemplo que ele dá de um relógio encon-
trado numa ilha deserta.

Livro 1.indb 40 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 149

Não somente se conhece um evento presente aos senti-


dos do qual dele se infere um outro fato passado, como
também, da observação sistemática de um número de fatos
observados, a partir dos quais se pode inferir que fatos seme-
lhantes, ainda não observados, guardam as mesmas carac-
terísticas dos fatos antes examinados. Noutras palavras, de
um número de casos singulares (de alguns) pode-se infe-
rir que os casos não observados (todos) são iguais aos que
foram examinados.
Trata-se de um tipo de inferência em que o todo está
contido em alguns. Como assim? A inferência é feita partindo
do fato, por exemplo, de que alguns gansos, que foram objeto
de seguidas observações, são brancos, para daí conclui que
todos os gansos existentes no mundo são brancos. Do conhe-
cido (“alguns gansos são brancos”) passa-se para o desco-
nhecido (“todos os gansos são brancos”).
Mas, o que dizer da natureza dessa inferência?! Lógica,
certamente não é. Com efeito, não se pode afirmar que a
totalidade é semelhante a alguns casos examinados, pois
o enunciado sobre todos não está contido no enunciado
alguns. Nem poderia, pois o todo é sempre maior do que a
simples soma de suas partes. Quando se afirma, por exem-
plo, “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem.
Sócrates é mortal, tem-se aí um raciocínio lógico, pois a
conclusão “Sócrates é mortal” está contida nas duas afir-
mações anteriores.
Ora, se a inferência do todo, a partir de alguns casos
observados, não é de natureza lógica, qual é então o seu
fundamento? “O hábito”, responde Hume. Como assim?
É o que se intenta demonstrar a seguir.
Para descobrir o vínculo entre causa e efeito, é necessário
recorrer a um princípio, a partir do qual se possa estabelecer
essa ligação. Para apresentar esse princípio, é interessante

Livro 1.indb 41 24/10/2022 09:49:57


150 • O Estranho Mundo da Economia

observar a ocorrência sistemática de um fenômeno da natu-


reza exposto na tabela abaixo2.

Ordem Tempo 1 Tempo 2 Conclusão


1° Raio Trovão O raio aconteceu antes do Trovão
2° Raio Trovão O raio aconteceu antes do Trovão
3° Raio Trovão O raio aconteceu antes do Trovão
... ... ... ...
n Raio Trovão O raio aconteceu antes do Trovão

Vê-se que na primeira observação tem-se, no Tempo


1, um evento antecedente, “raio”, que vem acompanhado
de outro evento (trovão) como consequência do primeiro.
Com base nessa primeira experiência, é possível inferir que
o raio é a causa do trovão? Claro que não. Se fosse aceitá-
vel, poder-se-ia concluir que a ideia de causalidade estaria
contida nessa primeira experiência.
A mesma coisa acontece se cada observação realizada, nos
tempos 2, 3... n, fosse tomada isoladamente. Assim, nunca
se poderá descobrir alguma conexão necessária entre aque-
les dois eventos, pois, como Hume faz questão de enfatizar:
“nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que apare-
cem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os
efeitos que dele provirão”.
Será necessário, pois, que as experiências se repitam até
que criem nas pessoas o hábito de que sempre que ocorrer
um raio, em seguida virá o trovão. Assim,

sempre que a repetição de algum ato ou operação particulares


produz uma propensão a realizar novamente esse mesmo ato
ou operação, sem que se esteja sendo impelido por nenhum

2
Exemplo retirado do livro A Filosofia da Ciência (Alves, 1981).

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Formação do Pensamento Econômico • 151

raciocínio ou processo do entendimento, dizemos invariavel-


mente que essa propensão é o efeito do hábito (Hume, 2004,
p. 74).

Embora o hábito crie o costume de esperar um deter-


minado evento, a partir do aparecimento e um outro, a
conexão que liga esses dois eventos não goza de nenhuma
necessidade absoluta. Com efeito, não se pode esquecer que
é sempre possível o contrário de toda e qualquer questão
de fato. Com efeito, porque as pessoas se acostumaram a
ver o sol nascer todos os dias, nada garante que elas sempre
verão o aparecimento dessa estrela. Não é de todo impossí-
vel que um belo dia uma hecatombe nuclear transforme a
Terra numa nuvem de poeira espalhada pelo universo.
Ora, se a experiência é incapaz de conceber juízos rigo-
rosamente universais e necessários, como ficam, então, as
ciências que dependem, fundamentalmente, da relação de
causa e efeito? Uma coisa já se sabe: as ciências, como já
havia demonstrado Hume, não podem se fundar em juízos
analíticos, isto é, em juízos concebidos por relações de ideias
de razão, uma vez que se trata de um tipo de saber que não
permite ampliar o conhecimento.
Restam os juízos sintéticos, isto é, juízos empíricos obti-
dos por meio da observação repetida da experiência. Mas,
esse tipo de juízo, como visto há pouco, não permite um
conhecimento fundado em conceitos rigorosamente univer-
sais e verdadeiramente necessários. A experiência é, portanto,
de justificar a validade ou verdade de enunciados universais
Não tendo como resolver essa questão, Hume apela
para a crença da continuidade do universo, pois, diz ele, é
razoável assim pensar, porque o costume mostra a obser-
vação de casos que se repetem cotidianamente. A ciência
passa a ser uma atividade de fé, de crença. Em vista disso,

Livro 1.indb 43 24/10/2022 09:49:57


152 • O Estranho Mundo da Economia

a atividade cientifica viu-se completamente arruinada nos


seus fundamentos.
Para arrancar as ciências do horizonte dos sentimen-
tos e dos hábitos, Kant procura fundar a atividade cienti-
fica em bases sólidas e inquestionáveis. A experiência, com
seus juízos sintéticos, é incapaz de justificar a validade de
enunciados rigorosamente universais. Kant apresenta uma
terceira forma de juízo, que não se confunde nem com os
juízos extraídos da experiência e nem com os juízos analíti-
cos, que não permitem ampliar o conhecimento.
Mostra ele que a razão tem condições de produzir juízos
capazes de ampliar o conhecimento – são os chamados
juízos sintéticos a priori. Sintético, porque permite novos
conhecimento, e a priori, porque não depende da experiên-
cia, uma vez que esta não é capaz de conceber proposições
universais e absolutamente necessárias. Consequentemente,
a razão é a fonte única de proposições universais e absolu-
tamente necessárias.

Mas, isso não significa dizer que conhecimento produzido


pela razão seja de natureza transcendente, isto é, uma forma
de conhecimento que está para além da experiência. Claro
que não. Os juízos sintéticos a priori são as formas do entendi-
mento, isto é, formas de conceber as coisas que lhes são dadas
pela experiência. A razão não tira de suas próprias entranhas
a matéria-prima do seu conhecimento; esta lhe é dada pela
experiência por meio do que Kant chama de formas a priori
da sensibilidade: tempo e espaço.

Noutros termos, o conhecimento nasce da interação


entre a receptividade do objeto pela faculdade da recepti-
vidade ou faculdade das intuições (isto é: da sensibilidade),
e faculdade da espontaneidade, isto é, da razão. Em síntese,

Livro 1.indb 44 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 153

o objeto do conhecimento é dado pela sensibilidade em suas


intuições sensíveis, e é pensado pela razão e seus conceitos.
Karl Popper (1902-1994) não concorda com essa solu-
ção dada por Kant ao problema de Hume, isto é, à questão
segundo a qual a experiência é incapaz de fornecer juízos
rigorosamente universais e necessários. Como ele mesmo diz,

Kant tentou escapar desta dificuldade considerando que o prin-


cípio de indução (que ele formula como princípio de causação
universal) era válido a priori. Mas não acredito que sua enge-
nhosa tentativa de proporcionar uma justificação a priori para
os enunciados sintéticos teve sucesso (Popper, 1980, p. 5).

Popper tenta resolver o problema da indução que consiste


em sua incapacidade de justificar juízos rigorosamente univer-
sais, deslocando a experiência, considerada pelo empirismo
como esfera de onde nasce todo conhecimento teórico, para
o campo de estabilidade das teorias. Para ele, o que importa
na produção do conhecimento científico não é a sua origem,
mas, sim, a validade desse conhecimento, que é demons-
trada por meio de teste de seus enunciados.
Resumidamente, para Popper, uma teoria para ser cien-
tífica tem que ser testável e refutável. Quanto mais uma
teoria resistir às inúmeras tentativas de refutá-la, mais ela
se afirma. Consequentemente, teoria irrefutável é dogmá-
tica, portanto, não pode ser considerada científica.
Bem diferente do método indutivo. A indução, como
assim entende Hume, é um procedimento inferencial que
legitima o sujeito a realizar raciocínios a concluir, partindo
de um determinado número de ocorrências observadas,
algo acerca de um fato não observado. Na indução as
premissas não são capazes de assegurar a verdade da conclu-
são, ao contrário do raciocínio dedutivo, segundo o qual

Livro 1.indb 45 24/10/2022 09:49:57


154 • O Estranho Mundo da Economia

sendo as premissas verdadeiras necessariamente a conclu-


são também o será.
Daí, a razão da recusa da indução, preconizada por Popper.
Diferentemente do empirismo humano segundo o qual o
conhecimento parte da experiencia, Popper assume uma
postura radicalmente distinta. Para ele, o conhecimento
parte de conjecturas a serem testadas, corroboradas ou
falseadas empiricamente, e a possibilidade de uma teoria
ser falseada é o que dá ao seu sistema de enunciados o seu
estatuto de científico.

2.6 Forma e matéria na compreensão da Economia

Diante do que foi, até então, exposto, qual é a posição


de Menger? Do ponto de vista metodológico, sua teoria
comunga com a concepção empirista de ciência? De certa
forma, sim. Para ele, o conhecimento não é uma constru-
ção do sujeito; o conhecimento é derivado da realidade.
Entretanto, diferente do empirismo moderno, Menger
entende que o conhecimento vai além da experiência
imediata, pois concebe a realidade como um todo estru-
turado de sentido, que escapa a simples observação. Por
isso, a indução seria insuficiente para captar as relações
de causalidade que estruturam e determinam a realidade.
Mas, como Menger sabe que a realidade é um todo estru-
turado, um todo pleno de sentido? Certamente, respon-
deria que o seu método é uma “aplicação” da Lógica de
Aristóteles à Economia. Da mesma forma que o estagirita,
para quem as leis que regem a articulação do discurso são
as mesmas que governam a ordem das coisas3, Menger

3
“Assim como a linguagem obedece a leis de uma gramática, que é a
Lógica, assim também o universo cósmico, o mundo das coisas, obedece

Livro 1.indb 46 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 155

pretende descobrir uma gramática ontológica da realidade


em sua dimensão econômica, o que significa fazer uma
metafísica da Economia.
Tudo isso se torna mais claro quando se tem presente
que Aristóteles dividiu as ciências em três grandes ramos:
[a] ciências teoréticas, que buscam o saber por si mesmo;
[b] ciências práticas, que visam ao saber com vistas ao
aperfeiçoamento moral do homem;
[c] ciências poiéticas ou produtivas, cuja finalidade é a
busca do saber para ensinar a fazer e a produzir coisas, obje-
tos e instrumentos, segundo regras e conhecimentos precisos.

a uma gramática, e é por isso que ele está perfeitamente ordenado. De


um lado temos a linguagem com suas leis exatas e claras [...], de outro
lado temos um cosmo também ordenado por leis. A grande tese de
Aristóteles é de que a mesma gramática, que é a gramática da lingua-
gem, é também a gramática do mundo. As mesmas leis que regem a
articulação do discurso lógico, regem também o curso das coisas e as
relações entre as coisas. As grandes leis da Lógica são também leis da
Ontologia. As coisas possuem, diz Aristóteles, a mesma estrutura que a
proposição bem formada. Na proposição, temos o sujeito e o predicado.
O sujeito lógico, sub-jectum, hypokeimenon, aquilo que está subjacente
à proposição predicativa, é indispensável para a proposição; sem ele não
se sabe de que se está falando. Da mesma forma tem que haver dentro
das coisas um núcleo duro subjacente. Ao sujeito lógico da linguagem,
suporte da articulação predicativa, corresponde nas coisas a substância,
que é aquilo que está por baixo da coisa mesma, dando-lhe sustentação,
a sub-stância. Ao substrato lógico, sub-jectum, corresponde nas coisas
a sub-stância. As coisas, em seu fundamento, em seu núcleo duro, são
primeiramente substâncias, em grego ousia. Por sobre este núcleo duro,
que a substância subjacente, podem existir outras determinações. Estas
são chamadas de acidentes. Elas acontecem às coisas, ou seja, às vezes
elas acontecem, às vezes não acontecem. Essas determinações ulteriores são
determinações não necessárias, por isso chamadas de acidentais, que exis-
tem sobre o substrato da substância que, por baixo, lhes dá suporte.”
[Cirne-Lima, Carlos. Op. cit.; p. 63/4].

Livro 1.indb 47 24/10/2022 09:49:57


156 • O Estranho Mundo da Economia

Menger, por sua vez, faz algo semelhante com a Ciência


Econômica ao dividi-la em três grandes ramos: [a] a Economia
teórica ou ciência pura, que tem por finalidade expressar as
leis da Economia, como uma totalidade orgânica e natural,
independente de fatores geográficos e históricos; [b] as ciên-
cias históricas, incluindo aí a História e a Estatística, que
têm por objeto de investigação o conhecimento de reali-
dades históricas determinadas; [c] as ciências práticas, que
têm como tarefa investigar e descrever os princípios bási-
cos e ações adequadas no campo das políticas econômicas.
A Economia pura estuda a natureza geral ou a conexão
geral do fenômeno econômico, fornecendo um conheci-
mento que transcende a experiência imediata. Trata- se de
um tipo de conhecimento que expressa a realidade última do
fenômeno econômico, a partir do estudo dos tipos [formas
empíricas] e das relações típicas [leis] que conferem aos fenô-
menos econômicos a sua razão de ser. Por formas empíri-
cas, Menger entende a natureza geral da troca, do preço, da
renda da terra, da oferta, da demanda. Por relações típicas
[leis], compreende a conexão entre esses fenômenos, tais
como o efeito do crescimento ou da redução da oferta e
demanda sobre os preços, o efeito do crescimento popula-
cional sobre a renda da terra etc.
As ciências históricas da economia, pelo contrário, ensi-
nam a natureza e desenvolvimento dos fenômenos de uma
determinada economia, que podem se aproximar ou se afas-
tar da configuração eterna da economia delineada pela teoria
pura. Noutras palavras, as ciências históricas investigam as
condições concretas da economia de um de um distrito
econômico, nação ou grupo de nações.
Insistindo um pouco mais nessa divisão da Economia em
ciência pura e ciência histórica, Feijó (2000, p. 78), com
propriedade, precisa que teoria pura

Livro 1.indb 48 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 157

trata da natureza ontológica essencial do fenômeno. Ela descreve


leis exatas que ocorrem sempre que os elementos que compõem
a realidade possam ser pensados isoladamente. A teoria pura
não diz respeito à realidade histórica concreta, mas também
não é um exercício de ficção analítica. Menger segue os precei-
tos aristotélicos ao aceitar a existência de uma realidade última
dos fenômenos. Há, portanto, a realidade histórica e a reali-
dade essencial dos fenômenos. No primeiro plano, operam as
incertezas e o problema do conhecimento subjetivo de que fala
Menger; no plano da teoria, investigam os fatos que decorrem
naturalmente dada a presença de bens, necessidades e conhe-
cimento. As vicissitudes históricas não alteram a forma básica
descrita pela morfologia do fenômeno, elas apenas apontam os
erros cometidos pelos agentes no devir concreto. Mas Menger
acredita que a ciência pura não teoriza sobre os erros huma-
nos e sim sobre as formas básicas que prevalecem na hipótese
de ausência de erros.

Para descobrir as diversas engrenagens dos fenômenos


econômicos, seus tipos ou formas empíricas e suas relações
típicas ou leis, Menger se vale de duas formas de pesquisa:
empírica ou realista, e exata. Não se trata de dois tipos de
pesquisas radicalmente diferentes. Mas, de que forma a
pesquisa empírica e a pesquisa exata contribuem para a
produção da teoria pura ou da economia teórica?
Como visto antes, este ramo da Economia tem como
preocupação a descoberta da conexão geral dos fenômenos;
conexão que é revelada por meio das formas empíricas e das
relações típicas, isto é, das leis dos fenômenos econômicos. A
pesquisa empírica e a pesquisa teórica devem estar a serviço
da descoberta dessas formas e de suas relações entre si, que
lhes conferem caráter de lei.

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158 • O Estranho Mundo da Economia

Embora Menger não seja de todo claro, tudo indica que


cabe à pesquisa empírica, mediante a observação, isolar as
formas empíricas que, qualitativamente, podem ser pensadas
como verdadeiros tipos, pela pesquisa exata. Se é assim, a
pesquisa exata se vale dos resultados da investigação empírica
para pensar a conexão dos fenômenos, a qual transcende a
experiência imediata.
Mediante a observação, a pesquisa empírica descobre as
regularidades dos fenômenos, suas relações, mas apenas como
leis empíricas e não como leis necessárias. Estas últimas são
descobertas pelo pensamento; é este que isola os tipos e suas
relações, produzidas pela pesquisa empírica, para chegar às
suas verdadeiras formas empíricas e conexões.
Tudo indica que é assim mesmo o modo pelo qual procede
Menger. A pesquisa empírica ou realista, mediante a obser-
vação, tem como objetivo descobrir regularidades nas rela-
ções entre as formas empíricas e, assim chegar às suas leis
empíricas, porque não- necessárias. Afinal de contas, para
Menger, formas e tipos rigorosos não podem ser encon-
trados na experiência, uma vez que os fenômenos econô-
micos nunca se apresentam de forma pura. Por isso, cabe
à pesquisa exata descobrir, a partir dos elementos mais
simples da Economia, suas formas rigorosamente típicas de
manifestação, que não podem ser observadas diretamente
no mundo empírico, pois essas formas, em parte, existem
apenas no pensamento.
Quer dizer, então, que as formas puras são meramente
subjetivas, isto é, não existem nas coisas? Não é bem isso.
Menger é um estudioso e discípulo da filosofia de
Aristóteles. Como para o estagirita, também para Menger,
as formas rigorosamente puras devem ser destacadas da
matéria, para serem apresentadas em sua pura universalidade,
que independe de suas condições imediatas de existência no

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Formação do Pensamento Econômico • 159

tempo e no espaço. Por exemplo: o dinheiro como forma,


como fenômeno econômico, independe de sua matéria, que
varia no tempo e no espaço: sal, gado, ouro, prata, papel etc.
Tais matérias vêm a ser dinheiro ou recebem a função
de servir de meio de troca mediante a forma dinheiro. Daí
torna-se meridianamente claro o conceito de Economia,
como ciência pura.

2.7 Economia: ciência da totalidade

Assim, Menger chega às formas rigorosamente típicas


e as suas leis exatas, que regem a conexão dos fenôme-
nos econômicos. Para chegar aí, apropria-se dos resulta-
dos da investigação da pesquisa empírica, mediante a qual
o observador descobre os tipos e suas regularidades empí-
ricas. Entretanto, esses tipos não são rigorosamente puros,
pois, em sua realidade empírica, ainda estão emaranhados
entre si; não se encontram em suas formas puras, “desliga-
das” de sua natureza sensível.
Para descobrir a real conexão entre eles, é preciso ir além
dos resultados alcançados pela pesquisa empírica; é preciso
ainda investigar, a partir dos elementos mais simples, como
tipos absolutamente puros, [necessidades, satisfação e os
bens de consumo e de produção], como se chega às suas
relações mais complexas. Tudo indica que é esse o procedi-
mento metodológico sobre o qual se apoia a exposição dos
Princípios de Economia Política. Nesta obra, ao explicar o
método aí utilizado, Menger (1983, p. 240) diz:

na exposição que se segue, procuramos reduzir os complexos


fenômenos da economia humana aos elementos mais simples,
ainda acessíveis à observação segura, dar a cada um desses
elementos simples o peso que, por natureza, lhes cabe e, com

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160 • O Estranho Mundo da Economia

base nisso, investigar novamente como os fenômenos econô-


micos mais complexos evoluem a partir de seus elementos
mais simples.

Descobrir como os fenômenos mais complexos evoluem,


a partir dos mais simples, consiste, para Menger (1983,
p. 246), em “[...] ordenar e concatenar as coisas segundo
critérios internos, em conhecer o lugar que cada uma delas
ocupa no encadeamento causal dos bens, e em pesquisar as
leis que as comandam, sob esse aspecto”.
Menger não poderia ter sido mais claro: o ordenamento
das coisas, o lugar que cada uma ocupa no encadeamento
causal dos fenômenos econômicos não é produzido pelo
sujeito cognoscente que, com suas categorias a priori, ordena
o material recebido da experiência; mas, tal ordenação
deve obedecer à ordem inscrita nas coisas mesmo; o sujeito
cognoscente deve se curvar diante da ordem interna das coisas
e reproduzi-la no plano teórico. O ordenamento deriva das
coisas; não é o sujeito que atribui sentido a uma realidade
considerada em si, sem sentido.
Para descobrir esse ordenamento causal das coisas, Menger
parte dos elementos mais simples, ou, para usar sua termi-
nologia, dos tipos simples: necessidades, satisfação, bens e
sua utilidade. Mas, como se descobrem as relações de causa-
lidade entre essas coisas? Noutras palavras, como se aplica o
princípio de causalidade aos fenômenos humanos?
Menger dá a entender que toda ação econômica do homem
é governada pelo desejo de substituir uma situação menos
satisfatória por outra mais satisfatória. Noutras palavras, o
homem age na direção de evitar o sofrimento e maximizar
o prazer advindo da posse e consumo de uma determinada
quantidade de bens. É o que se lê na seguinte passagem: “se
quisermos passar do estado de necessidade para o estado de

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Formação do Pensamento Econômico • 161

satisfação dessa necessidade, deve haver causas suficientes


que levem a essa mudança de estado” (ibidem, 1983, p. 243).
Mas, quais são essas causas que governam a ação humana
na passagem de um estado de necessidade para um estado
de satisfação dessa necessidade?! – A utilidade, entendida
como a capacidade que tem um bem qualquer de satisfazer
uma determinada necessidade.
Deixemos que o próprio Menger explique o nexo causal
das ações que movem a vida dos agentes econômicos:

as coisas capazes de serem colocadas em nexo causal com a


satisfação de nossas necessidades humanas denominam-se utili-
dades; denominam-se bens na medida em que reconhecemos
esse nexo causal e temos a possibilidade e capacidade de utilizar
as referidas coisas para satisfazer efetivamente as nossas neces-
sidades (ibidem, 1983, p. 243).

Uma leitura cuidadosa dessa citação deixa claro que a


utilidade não é uma propriedade inerente aos bens. Para
que um bem seja útil e assim possa estabelecer uma relação
de causalidade com as necessidades humanas, Menger assi-
nala quatro causas ou condições necessárias: [1] a existên-
cia de uma determinada necessidade, [2] que o bem possua
certas características tais que o tornem capaz de satisfazer
uma necessidade, [3] o reconhecimento pelo agente, dessa
necessidade e [4] sua capacidade de poder dispor do bem.
Na ausência de uma dessas quatro características, o bem
perde a sua utilidade. Como assim precisa Menger (1983,
p. 244),
se encontram certas coisas com referência ao homem, nexo que,
a qualidade que faz com que uma coisa seja um bem não é
inerente ao respectivo bem, ou seja, não constitui uma quali-
dade da própria coisa; constitui simplesmente um nexo no qual

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162 • O Estranho Mundo da Economia

se desaparecer, as respectivas coisas deixam evidentemente de


ser um bem.

Segue-se, daí, que a utilidade depende da circunstância


das coisas que surge da relação desta com as necessidades do
homem. Assim, um determinado bem não teria nenhuma
utilidade para o homem se não fosse objeto destinado a
satisfazer uma determinada necessidade. Portanto, o que
confere a uma coisa a qualidade de ser útil é sua relação
com as necessidades humanas.
Na ausência desta, nenhuma coisa pode adquirir a quali-
dade de ser um bem, pois a utilidade deriva da existência
de necessidades humanas; são estas que conferem quali-
dade às coisas. Se as necessidades mudam ou desaparecem
com o tempo, igualmente, muda ou desaparece a quali-
dade de uma coisa ser útil, isto é, de satisfazer uma deter-
minada necessidade.
É o que acontece, por exemplo, diz Menger, com o
consumo de fumo. Se, por uma razão qualquer, essa neces-
sidade desaparece, não somente o fumo perde sua quali-
dade de bem, como também todas as coisas que concorrem
para a sua produção. Nas palavras do próprio Menger
(1983, p. 252‐253),

não somente perderiam sua qualidade de bem todos os estoques


de fumo já prontos para o consumo, como também as folhas
de tabaco em estado natural, as máquinas, dispositivos e equi-
pamentos que só encontram emprego no processamento desse
produto, os serviços específicos utilizados nesse tipo de indústria,
os estoques disponíveis de sementes de tabaco etc. Deixariam de
ser bens, inclusive, os atualmente tão bem remunerados servi-
ços dos agentes de tabaco que, em Cuba, Manila, Porto Rico,
Havana etc., demonstram habilidade especial na compra desse

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Formação do Pensamento Econômico • 163

produto, bem como os serviços específicos de tantas pessoas


empregadas, nesses países longínquos e na Europa, na fabrica-
ção de charutos. Até mesmo grande quantidade de livros sobre
a cultura do tabaco e a indústria de fumo, hoje tão úteis para
os técnicos na matéria, deixariam de ser bens e permaneceriam
eternamente como peso morto nos almoxarifados dos editores.

Uma leitura mais atenta dessa passagem deixa claro que


a economia não é um sistema caótico; tem um sentido,
uma estrutura, uma ordem, tal como funciona o universo
com suas leis, tendo cada coisa sua trajetória desenhada
segundo as leis da matemática. Na economia, essa ordem
nem sempre é percebida pelas pessoas em sua vida coti-
diana; entretanto são obrigadas a reconhecer sua existên-
cia quando dela se afastam demasiadamente.
É o que acontece em um país em que a economia atinge
alto grau de desenvolvimento. Numa situação dessas, as
pessoas nem sempre se apercebem de que a satisfação de
suas necessidades depende de outros bens que se encon-
tram em mãos de outros indivíduos. Sua percepção da
dependência de suas necessidades com as dos demais indi-
víduos é esquecida; e somente é lembrada quando, por
uma razão qualquer [uma crise, uma guerra etc.], é inter-
rompido o fluxo de produção de certos bens que entram
diretamente em seu consumo. Diz Menger (1983, p. 251)
que, via de regra,

os produtores de cada artigo desenvolvem, de forma automática


e tranquila o seu negócio, e os produtores dos bens complemen-
tares tampouco se preocupam com o fato-lei segundo o qual a
qualidade de bens das coisas que produzem depende da dispo-
nibilidade ou não de outros bens que não estão em sua posse;
pode então ocorrer o erro de acreditar-se que os bens de ordem

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164 • O Estranho Mundo da Economia

superior conservam sua qualidade de bem independentemente


de se dispor, ou não, dos respectivos bens complementares; esse
erro ocorre com mais frequências nos países em que, devido a
um comércio intenso e a uma economia altamente evoluída,
quase todos os artigos são produzidos com a suposição implí-
cita (e geralmente inconsciente do produtor) de que outras
pessoas cuidarão a tempo para que não faltem os bens comple-
mentares necessários. Somente ao mudarem as circunstâncias, e
sobrevindo as crises comerciais visíveis a todos, é que as pessoas
despertam para as leis do nexo causal que comandam os bens
econômicos; somente então costumam interromper-se o anda-
mento automático dos negócios, e a opinião pública começa a
voltar sua atenção para esses fenômenos, ou para a análise das
causas que lhes deram origem.

Estaria Menger dizendo que as crises são causadas pelas


desproporcionalidades setoriais da produção dos bens, por
conta do caráter automático de funcionamento não plane-
jado da economia? De certa forma, sim.
Mas, tal desproporcionalidade não se deve ao caráter
anárquico do mercado, no qual os agentes econômicos não
passariam de simples suportes de uma estrutura, com suas
leis próprias e independentes da vontade dos homens, como
entende Marx, por exemplo. Ao contrário disso, a despro-
porcionalidade tem outra causa: o fator tempo. Como assim?
Para Menger (1983, p. 253‐254),

o conceito de causalidade é inseparável do conceito de tempo.


Todo o processo de mudança ou transformação significa um
vir-a-ser, um surgir, um tornar-se, isso só é possível dentro do
tempo. É, pois, certo que nunca compreenderemos plena-
mente o nexo causal existente entre os diversos fenômenos desse
processo – e o processo como tal –, enquanto não o situarmos

Livro 1.indb 56 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 165

no tempo. Por isso também o processo de transformação, por


meio do qual os bens de ordem superior são transformados
em bens de ordem inferior, até chegarmos àquele estado que
denominamos satisfação das necessidades humanas concretas,
o tempo constitui um fator essencial a ser observado.

Aí está a razão por que nem sempre são observadas as


relações de proporcionalidades entre os bens. Quanto mais
complexo se torna o processo material de produção, mais se
elastecem os laços entre os indivíduos envolvidos na ativi-
dade produtiva; mais distantes se tornam as transações de
produtos entre eles. Por conta disso, os agentes nem sempre
se dão conta de ajustar, a priori, suas atividades com as dos
demais indivíduos.
Se na produção de um bem de consumo imediato, concor-
rem diversos bens, como por exemplo, matérias-primas,
máquinas, transporte, importação de bens de outras regiões
e países etc., torna-se cada vez mais difícil os agentes ajusta-
rem suas respectivas quantidades de bens produzidos, de tal
modo que possam concertar suas diversas etapas de produção.
Na verdade, o que aí está em jogo é o crescimento e
complexificação da divisão do trabalho, que separa, no
tempo e no espaço, as diversas etapas do processo global de
produção. É neste sentido que o tempo se torna um fator
essencial a ser observado pelos agentes econômicos. Para
Menger, esse fator é responsável pela ausência de sincronia
entre as diversas etapas de produção, o que, segundo ele,
leva os agentes a experimentarem o sentimento de insegu-
rança em suas atividades.
Isto representa, segundo ele, um dos elementos essen-
ciais da incerteza econômica. Essa incerteza pode ser mini-
mizada devido ao progresso da técnica e da comunicação,
mas nunca eliminada, visto que, diz Menger (1983, p. 254),

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166 • O Estranho Mundo da Economia

é impossível transformar, por um simples gesto, bens de uma


ordem superior [bens de produção] nos correspondentes bens de
ordem inferior [bens de produção]; é absolutamente certo que
uma pessoa que dispõe de bens de ordem superior só consegue
vir a dispor dos correspondentes bens da ordem imediatamente
inferior após decorrido algum tempo.

Não há como eliminar a incerteza econômica, pois causa-


lidade e tempo são inseparáveis. Afinal de contas, todo e
qualquer processo de produção transcorre no tempo, que
aumenta quanto mais mediada se torna a atividade produ-
tiva. Assim,

a causa última desse fenômeno reside na posição peculiar do


homem em relação a esse processo causal que denominamos
produção de bens. É obedecendo às leis da causalidade que os
bens de ordem superior são transformados em bens de ordem
inferior, e assim por diante, até se transformarem em bens de
primeira ordem e atingirem o estado necessário para o atendi-
mento direto e imediato das necessidades humanas. Os bens
de ordem superior constituem os elementos mais importantes
desse processo causal, mas não representam a totalidade deles.
Além desses elementos pertencentes à esfera dos bens, influem
sobre a quantidade e a produção de bens, também os elementos
cujo nexo causal com o nosso bem-estar ainda não conhece-
mos, ou então os elementos cuja influência sobre o produto
final nós reconhecemos, mas cujo controle nos escapa por uma
razão ou outra (Menger,1983, p. 255).

Daí, a razão das crises. Estas não se devem à anarquia do


mercado; tampouco às incertezas decorrentes, por exemplo,
da especulação dos agentes no mercado. Ao contrário, as
crises são produto da inexorabilidade do fator tempo, que

Livro 1.indb 58 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 167

torna cada vez mais tênue a relação de causalidade entre os


bens de produção e os bens de consumo. Em decorrência
disso, crescem as incertezas quanto ao curso futuro da ativi-
dade econômica, advindo perturbações e crises econômicas.
Entretanto, para Menger, os agentes econômicos são
sujeitos de sua atividade, são conscientes de que deles
depende o seu bem-estar. Por isso, esforçam-se por conhecer
os nexos causais que regem a produção dos bens econômi-
cos, para que a economia possa funcionar harmoniosa-
mente, como assim acontece com as leis que governam
a ordem do universo. Para tanto, os agentes econômicos
devem participar ativamente do planejamento de suas
demandas presentes e futuras, pois em qualquer atividade
humana, diz Menger (1983, p. 266),

a consciência clara do objetivo dos esforços empreendidos cons-


titui fator essencial para o sucesso, por outro lado, é igualmente
certo que o conhecimento da demanda de bens disponíveis em
períodos futuros representa o primeiro pressuposto de qualquer
previdência orientada para o atendimento das necessidades
humanas. Quaisquer que sejam, portanto, as circunstâncias
externas em que se desenvolve a referida atividade humana, o
sucesso da mesma (sic) depende da exata previsão das quan-
tidades de bens requeridas nos períodos futuros, sendo claro
que a ausência total de previsão da demanda de bens torna-
ria impossível qualquer tentativa de prever o atendimento das
necessidades futuras concretas.

O planejamento da atividade econômica é uma neces-


sidade que se impõe a todos os agentes econômicos. Em
qualquer estágio da evolução da sociedade, as pessoas procu-
ram conhecer não só a quantidade de bens de que dispõem,
diz Menger, como também, cada pessoa se empenha em

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168 • O Estranho Mundo da Economia

conhecer as quantidades de bens de que dispõe ou outros


membros da sociedade, com os quais mantém intercâmbio.
Com mais razão ainda, continua Menger, quando a divi-
são do trabalho atinge um relativo grau de desenvolvimento,
em que cresce a interdependência entre as diversas ativida-
des produtivas,

surge uma categoria de profissionais, os agentes comerciais.


Essa categoria de pessoas possibilita e facilita o comércio, não
somente encarregando-se do mecanismo de operações comer-
ciais (embalagem, transporte, distribuição, conservação etc.
dos bens), como também fazendo levantamento do acervo de
bens disponíveis. Observamos, então, que essa categoria de
profissionais, além de uma série de atividades das quais ainda
teremos ocasião de falar, tem interesse especial em coletar e
divulgar dados e informações sobre os chamados estoques de
bens disponíveis; essa atividade, conforme a posição que os
respectivos agentes comerciais ocupem, pode abranger segmen-
tos comerciais mais restritos ou mais vastos, abarcando, por
vezes, províncias inteiras, e, em certos casos, até países ou regi-
ões inteira do globo (ibidem p. 267).

O planejamento da economia não é uma atividade exclu-


siva dos agentes econômicos. O estado joga um importante
papel no levantamento daquelas necessidades mais gerais da
sociedade, tais como terras, transportes, edifícios, animais
domésticos etc. Entretanto, dado o interesse que os agentes
econômicos têm no conhecimento mais exato do mundo
dos negócios, diz Menger (1983, p. 266),

é compreensível que a indústria e o comércio não se contentem


com levantamentos precários feitos pelos órgãos públicos – os
quais geralmente têm pouco tino comercial e, além disso, só

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Formação do Pensamento Econômico • 169

abrangem determinados países ou regiões desses países – mas


procurem [...] obter um conhecimento completo e o mais exato
possível de todos os estoques de bens existentes; essa necessi-
dade deu origem a órgãos e entidades de interesse especial para
a sociedade, sendo que a tarefa desses órgãos consiste, em boa
parte, em informar aos membros de cada setor comercial sobre
os estoques disponíveis nas diversas áreas.

O mercado não funciona sozinho; não é um mecanismo


automático, caracterizado por um renovado fluxo de merca-
dorias, por uma circulação de coisas que assume a forma
de um movimento renovado de compras e vendas, que se
desenvolve e se expande, em forma de espiral, às costas dos
agentes econômicos. Para Menger, o mercado não é um
mecanismo do qual os indivíduos participam como suporte
de uma lógica que funciona independentemente de suas
vontades. Para ele, os indivíduos não vão ao mercado com
a finalidade de comprar para vender e, assim, obter cada
vez mais dinheiro.
Diferentemente de Marx, para quem o motivo indutor
e a finalidade do mercado são o próprio valor de troca, em
que o valor de uso não passa de um mero meio para obter
mais dinheiro; para Menger, o mercado é apenas um meio
de que se servem os homens para atender às suas necessi-
dades de consumo. Se é assim, a finalidade da troca não é,
pois, comprar para vender e assim fazer mais dinheiro; mas,
sim, vender para comprar coisas que satisfaçam as necessi-
dades de consumo.
Daí a crítica de Menger aos economistas clássicos, em
particular Adam Smith, que, segundo Menger, entende a
troca como uma atividade que tem em si mesma sua fina-
lidade. Ao contrário disso, diria ele, a troca tem limites
bem definidos, que são determinados pela finalidade da

Livro 1.indb 61 24/10/2022 09:49:57


170 • O Estranho Mundo da Economia

produção – a satisfação das necessidades humanas. Menger


foi um leitor atento de Aristóteles; sua concepção sobre o
comércio de bens está muito próxima daquela defendida
pelo estagirita, para quem

cada coisa que possuímos tem dois usos, dos quais nenhum
repugna a sua natureza; porém, um é próprio e conforme a sua
destinação, outro desviado para algum outro fim. Por exemplo,
o uso próprio do sapato é calçar; podemos também vendê-
-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão, ou alguma outra
coisa, isto sem que ele mude de natureza; mas este não é o seu
uso próprio, já que ele não foi inventado para o comércio. O
mesmo acontece com as outras coisas que possuímos. A natu-
reza não as fez para serem trocadas, mas, tendo os homens uns
mais, outros menos do que precisam, foram levadas por esse
acaso à troca (Aristóteles, 1999, .p. 20).

Como Aristóteles, Menger vê a troca não como uma


finalidade em si mesma, cujo objetivo é a busca da riqueza
pela riqueza. Diferentemente de Smith e Ricardo, para quem
a troca tem como finalidade a obtenção do maior lucro possí-
vel, para Menger, não só a troca, mas, também, o dinheiro,
são meios de que se serve o homem para adquirir as coisas
necessárias a uma vida boa. E não poderia ser diferente. É
de Aristóteles o conceito de bem, de que faz uso Menger,
quando diz, citando o estagirita, que os bens são meios de
que necessita o homem para viver e realizar o seu bem-estar.

2.8 Menger e o conceito de homem

Menger herda não só o conceito de economia de Aristóteles,


mas, também, seu método de articulação de inteligibilidade
do real, como visto ao longo da seção 1.4. De fato, Menger

Livro 1.indb 62 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 171

partilha com Aristóteles o conceito de economia como uma


ciência que existe em função do homem; não este em função
daquela. Mas, entre eles há diferenças nada desprezíveis.
Para o estagirita, a economia deve estar a serviço da efeti-
vação do ser livre, enquanto meio do qual os homens lançam
mão para alcançar sua verdadeira liberdade. A economia está,
assim, a serviço de uma exigência ética. Com mais razão
ainda, considerando-se que Aristóteles é testemunha de uma
época em que a economia começava a se transformar numa
atividade voltada para a busca do lucro pelo lucro, impe-
dindo, assim, que ela cumprisse a sua função natural: estar
a serviço do homem, e não do enriquecimento.
Para Menger, diferentemente de Aristóteles, a economia,
desde sempre e para sempre, existe em função do homem.
Tudo leva a crer que é assim mesmo que ele pensa, pois, em
sua visão, uma economia voltada para a obtenção da riqueza
pela riqueza seria impensável. Em nenhum momento de sua
obra, chega a falar da economia como uma atividade que
tem o lucro como objetivo primeiro.
A economia pode até se afastar de sua ordem natural,
por falta de conhecimento adequado das devidas propor-
ções entre a produção de bens de ordem superior e bens de
consumo. Isto, porém, não significa um desvirtuamento
de suas funções originais no sentido de que a economia se
teria tornado uma atividade voltada, exclusivamente, para
a busca do lucro. Semelhante coisa seria impensável para
Menger, pois entende que a troca tem limites bem deter-
minados e não podem ser ultrapassados.
Não sem razão, considera a troca uma atividade cercada
de perigos e sacrifícios econômicos. Nenhum indivíduo esta-
ria disposto a ultrapassar aqueles limites, a partir dosquais
nenhum benefício traria para si. Talvez, por isso, em nenhum
momento, Menger faça referência à crematística, tão criticada

Livro 1.indb 63 24/10/2022 09:49:57


172 • O Estranho Mundo da Economia

por Aristóteles, que considerava tal atividade como uma


negação da verdadeira e natural função da economia.
Esta não é a única diferença entre Menger e Aristóteles.
Este último não dedicou nenhum estudo particular à econo-
mia; nem poderia, pois, para ele, a economia não tem leis
próprias que permitam pensá-la como uma ciência parti-
cular, com seu objeto específico de estudo.
Recorrendo à autoridade de quem fala com propriedade
sobre este assunto, Oliveira (1993, p. 71‐72) esclarece que

é preciso ter bem claro qual é a intenção de Aristóteles quando


aborda problemas econômicos: não se trata de elucidar leis
econômicas, mas de se perguntar sobre uma práxis racional,
no campo econômico, em vista de uma vida digna do homem,
ponto de vista hoje quase inexistente nos enfoques dos problemas
econômicos. É no plano geral de uma ciência política, cujo
interesse é a práxis racional, que se manifesta uma primeira
comunidade – a casa – e com ela o problema da economia.
Aristóteles não conhece a ciência econômica moderna, mas
elabora o que Koslowski denomina uma economia social, que
determina as considerações econômicas da comunidade polí-
tica como suprema comunidade humana. Sua teoria econômica,
portanto, só tem significação como momento de sua teoria polí-
tica. A economia não é, pois, um campo separado da ética e da
política, e que segue leis próprias. Tal separação, que Aristóteles
denomina crematística, é por ele considerada perigosa para a
comunidade.

Ao contrário de Aristóteles, para Menger, a Economia é


uma ciência com objeto próprio e distinto dos objetos dos
demais saberes. Trata-se de uma ciência preocupada com

Livro 1.indb 64 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 173

a investigação dos nexos causais entre os diferentes tipos


de bens necessários à satisfação das necessidades humanas.
A Economia, portanto, tem como tarefa a elucidação
das leis econômicas que regem a atividade humana orien-
tada para a satisfação de suas necessidades; é uma ciência
entre outras ciências, que tem como preocupação investi-
gar uma região específica da vida humana: as ações econô-
micas. Permanecem fora do seu campo de estudo questões
como a religião, a moral, a política e o direito. Tais questões
devem ser objeto de outros ramos apropriados do conhe-
cimento humano.
É claro que, em Aristóteles, há uma divisão social do
saber. Tal divisão, porém, não transforma o conhecimento
filosófico em saberes especializados e autonomizados. Na
filosofia primeira, Aristóteles tematiza os princípios últimos
do ser e do pensar do homem, para, então, de posse desses
princípios, pensar as ciências práticas e produtivas. Estas
últimas são saberes subordinados aos princípios da metafí-
sica; nunca saberes separados e autonomizados, como acon-
tece na modernidade.
Aristóteles é filho de uma época em que não havia ainda
uma diferenciação clara entre as esferas da economia, da
política e da arte, para falar numa linguagem sociológica.
Daí, porque sua definição de indivíduo ser bem diferente da
concepção moderna. Recorrendo mais uma vez a Oliveira
(1993, p. 61), ele esclarece que, para Aristóteles,

é a categoria da práxis [...] que medeia a autonomia do indivíduo


com a universalidade, realizando a unidade. Sem as instituições,
para Aristóteles, o indivíduo é impensável. A ética, enquanto
reflexão sobre a práxis humana, não se restringe, em Aristóteles,
jamais aos indivíduos isolados, mas a reflexão sobre o mundo

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174 • O Estranho Mundo da Economia

institucional, onde o indivíduo está inserido e através do qual


ele se eleva a individuo universal [...]

É bem diferente a concepção moderna de indivíduo. Para


a Ciência Política, a Economia e a Filosofia [da subjetividade]
modernas, o indivíduo é pensado independentemente de sua
inserção na sociedade. É assim mesmo que as teorias do direito
natural de Hobbes e Locke vão pensar o indivíduo. Para esses
teóricos, a comunidade é pensada a partir do indivíduo; este,
com seus direitos naturais, precede à comunidade política,
que nasce como um arranjo institucional dos fins privados
para tornar possível a vida em sociedade.
Em contraposição a essa concepção, para Aristóteles,
o indivíduo é um ser da pólis. Só na comunidade, ele se
descobre como indivíduo-membro; só aí, toma consciência
do que deve fazer: levar uma vida comunitária; por conse-
guinte, universal. Portanto, o agir individual já está de ante-
mão predeterminado pelas instituições sociais. O homem
é, por natureza, um zoon politikon, um ser comunitário.
Imaginar que ele possa prescindir da convivência dos demais
membros da sociedade; imaginar que ele possa bastar a si
mesmo, é pensá-lo como um deus, ou um ser bruto. É o
que diz o estagirita em A Política.
Não sem razão, para Aristóteles, a ética não é uma teoria
que deva ser posta em prática, no sentido de conduzir os
indivíduos de uma vida amoral para uma vida ética. Como
apropriadamente esclarece Oliveira, a ética de Aristóteles
se dirige a quem já vive inserido num ethos: os cidadãos.
Enquanto saber crítico, a ética nada mais faz do que pensar
a libertação formal do homem, visto que ele, de antemão,
é um ser da ética, porque um ser comunitário por natu-
reza. Num mundo em que o homem é, por natureza, ser
da comunidade, o que ele é e deve fazer é estabelecido pela

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Formação do Pensamento Econômico • 175

pólis; só nela, sua existência tem sentido. Trata-se, portanto,


de um ser que recebe do todo preexistente sua razão de ser,
tanto no que diz respeito ao seu agir como ao seu pensar;
consequentemente, o homem é receptador de sentido, que
transcende sua existência individual.
Para o pensamento moderno, o homem não é parte de
um todo dado, de uma comunidade ou de um mundo,
como ordem acabada. Pelo contrário, a comunidade existe
em função dos indivíduos; por isso, ele não pode ser mais
pensado como um ser comunitário; mas, sim, como sujeito
que, de receptador de sentido, transforma-se em doador de
sentido. Diferente do homem grego, o indivíduo moderno
não se submete incondicionalmente ao estado; pois não vive
para o estado e no estado. Ao contrário, o estado existe em
função de seus direitos naturais, que devem ser administra-
dos e preservados pela ação estatal.
É essa concepção de homem que Menger tem em mente.
Tudo indica que é assim mesmo, pois, diferentemente de
Aristóteles, ele pensa o indivíduo sem referência às institui-
ções, como indivíduo-mônada, dotado de poder de escolha,
que lhe permite alcançar o seu bem-estar individual. Neste
sentido, para ele, a essência da sociedade é pensada, a partir
do indivíduo. É claro que, para ele, o bem-estar individual
de cada um vai depender do esforço coletivo da sociedade,
uma vez que dela depende a criação de órgãos de planeja-
mento para minimizar as incertezas econômicas, criadas
pelo fator tempo.
A despeito disso, sua unidade de análise é o indivíduo.
De fato, todos os exemplos que ele dá em seus Princípios de
Economia Política têm como referência o indivíduo isolado
ou, atos individuais de troca. E não poderia ser diferente.
Sua metodologia, como visto antes, parte dos elementos
mais simples da realidade para, então, construir sua conexão

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176 • O Estranho Mundo da Economia

num todo organicamente articulado. Por isso, toma a ação


individual como exemplar do conjunto das ações dos indi-
víduos em sociedade.

2.9 Jevons e a morte do homem como subjetividade

2.9.1 Jevons e Menger: identidades e diferenças

W. Stanley Jevons (1835-1882) publica seu livro no


mesmo ano em que Menger traz a público os seus Princípios
de Economia Política; 1871. Ao lado de Walras, esses dois
autores partem da ideia de que o valor dos bens é determi-
nado pela utilidade, isto é, pela capacidade que as coisas
têm de satisfazer necessidades humanas. Embora haja uma
variedade infinita de necessidades, consideradas individual-
mente, cada necessidade tem limites determinados.
Se é assim, a capacidade de um bem para satisfazer certa
necessidade deve decrescer à medida que aumenta o seu
consumo. De forma um pouco mais clara, as coisas se
passam mais ou menos assim: com o aumento do consumo
de certo bem, por exemplo, a satisfação obtida tende a dimi-
nuir até o ponto em que a última quantidade consumida
não mais agregue nenhuma unidade adicional de utilidade
ao consumo total.
Neste ponto de saturação, isto é, de satisfação plena da
necessidade, a utilidade proporcionada pela última unidade
consumida determina o valor do bem em causa, o que equi-
vale a dizer que, em geral, o valor dos bens é determinado pela
utilidade marginal. Muito embora Menger e Jevons façam
da Teoria do Valor-Utilidade o fundamento de todo o seu
edifício teórico, há, entre eles, diferenças nada desprezíveis.
Destacando as que aqui se julgam mais importantes, convém
começar com a noção de utilidade marginal decrescente.

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Formação do Pensamento Econômico • 177

Para Menger, este conceito trabalha com variações discre-


tas para a mensuração do grau de utilidade. Por exemplo, se
um indivíduo adquire uma camisa, a segunda unidade deste
bem terá, para ele, menor utilidade que a primeira, e assim
por diante. Não é assim que Jevons entende o conceito de
utilidade marginal decrescente. Ao contrário de Menger,
ele admite a ideia da divisibilidade infinitesimal dos bens.
Isto porque, para ele,

se a economia deve ser, em absoluto, uma ciência, deve ser uma


ciência matemática [...]. Minha teoria de Economia é de cará-
ter puramente matemático. Mais ainda, acreditando que as
quantidades com as quais lidamos devem estar sujeitas à varia-
ção contínua, não hesito em usar o ramo apropriado da ciência
matemática, não obstante envolva a consideração ousada de
quantidades infinitesimais. A teoria consiste no cálculo dife-
rencial aos conceitos familiares de riqueza, utilidade, valor [...]
(Jevons, 1983).

Se o consumo de um bem está sujeito à variação contí-


nua, sua utilidade decresce à medida que quantidades
infinitesimais são consumidas. Tudo se passa como se
um indivíduo qualquer pudesse aumentar a sua satisfa-
ção global consumindo, por exemplo, doses sucessivas
infinitesimais de camisas, até atingir um ponto máximo,
a partir do qual nenhuma unidade adicional desse bem
aumentaria a utilidade total. Mais do que isto: qualquer
consumo além desse ponto reduziria a utilidade, podendo
até torná-la negativa. Sendo assim, um indivíduo poderia
atingir este ponto, consumindo duas camisas e uma infi-
nitésima parte de uma terceira, imaginando-se que, com
essa última unidade, sua necessidade de camisas estaria
plenamente saciada.

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178 • O Estranho Mundo da Economia

Raciocínio absurdo? – Não, para quem considera a


Economia uma ciência matemática; uma ciência que busca
explicar os fatos econômicos mediante a aplicação do cálculo
diferencial. É assim mesmo que procede esta ciência quando
analisa o comportamento do consumidor. Para tanto, é sufi-
ciente dispor das quantidades de bens consumidos por ele e,
então, mediante o auxílio do cálculo de derivadas, encon-
tra-se um ponto de equilíbrio no qual este indivíduo deverá
estar plenamente satisfeito.
Como assim? Não se pode esquecer que a economia cons-
trói seu edifício teórico sobre o pressuposto de que os recur-
sos são escassos. Para o consumidor individual, a escassez é
dada por sua renda; esta é restrição que o obriga a escolher,
dentre a diversidade de bens existentes no mercado, aqueles
que lhes proporcionarão o maior prazer, decorrente do seu
consumo, e o menor sacrifício, por conta do fato de ter de
pagar por esses bens. Assim, o consumidor estará em equi-
líbrio quando adquirir, de cada bem, certa quantidade em
que o ganho de utilidade daí decorrente se iguala a perda
de utilidade, correspondente às quantidades de utilidade da
moeda de que teve que abrir mão para adquirir sua cesta
de consumo.
Generalizando esse comportamento para os consumi-
dores, a Economia vê cada agente econômico preocupado,
unicamente, com a saciação do seu desejo de consumo, ou
seja, com a maximização de sua satisfação e a minimização
de seu sacrifício, visto que o prazer impõe aos indivíduos
certas cotas de sofrimento, pois os bens são escassos, não
caem do céu; há que se pagar por eles.
Em um mundo assim, tudo que se exige dos agentes
econômicos é que ajam racionalmente, isto é, sejam capazes
de escolher a melhor cesta de consumo, para que dela possam
extrair o máximo de prazer, com o mínimo de sacrifício ou

Livro 1.indb 70 24/10/2022 09:49:57


Formação do Pensamento Econômico • 179

sofrimento. Não sem razão, Jevons trata o prazer e o sacri-


fício [ou sofrimento] como as quantidades positivas e nega-
tivas trabalhadas na álgebra. Com ele, a palavra:

a soma algébrica de uma série de prazeres e de sofrimentos


obtém-se pela adição de todos os prazeres, de um lado, e de todos
os sofrimentos, de outro, achando-se então o saldo subtraindo-
-se do montante maior o montante menor [...]. Atingiremos
tal objetivo ao aceitar tudo e empreender toda ação cujo prazer
resultante exceda o sofrimento que foi suportado; devemos
evitar todo objetivo ou ação que altere o equilíbrio na outra
direção (Jevons,1983, p. 43).

Se a Economia é uma ciência matemática, seu objeto de


investigação, o comportamento racional dos agentes econô-
micos, deve ser purificado de toda e qualquer determinação
subjetiva, para ser tratado como uma grandeza puramente
analítica. Vale dizer, o comportamento dos agentes econô-
micos de carne e osso deve ser reduzido à mecânica de uma
máquina, para que se possa calcular o ponto de equilíbrio
em que um suposto consumidor maximiza sua satisfação e
minimiza seu sofrimento.
Menger pensa completamente diferente. Para ele, a
Economia não trabalha com quantidades, como assim
entende Jevons. Pelo contrário! Diria ele, a Economia inves-
tiga a essência dos fenômenos, que não pode ser revelada
mediante a aplicação de equações matemáticas. É o que
se depreende das objeções que dirige a Walras, censuran-
do-o por transformar a Economia numa ciência matemá-
tica, assim como fizera Jevons.
Kauder (1992) resume essas principais objeções, mediante
o uso de um quadro comparativo no qual contrapõe as
convicções de Menger ao que este autor austríaco julga de

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180 • O Estranho Mundo da Economia

errado em Walras. Este quadro pode ser apresentado mais


ou menos assim:

Erros de Walras Convicções de Menger

1. A Matemática trabalha com 1. A Economia não trabalha com


quantidades quantidades; sua tarefa é investigar
a essência do valor, da renda da ter-
ra, do lucro etc

2. As leis da troca são expressas 2. Equações matemáticas não per-


matematicamente mitem compreender as leis exatas da
Economia

3. A Matemática trabalha com 3. A Economia tem de construir um


fatores mensuráveis, com fun- sistema, do mesmo modo como se
ções ou fenômenos indepen- constrói uma casa com blocos, os
dentes quais correspondem aos elementos
simples da Economia, a partir dos
quais se reconstrói, no plano teóri-
co, a Ciência Econômica enquanto
um todo organicamente articulado

Como Walras, Jevons entende que a Economia é uma ciên-


cia matemática, por excelência; todos os seus conceitos
podem e devem ser representados analiticamente.
Acontece que a Economia é uma ciência que tem como
objeto de estudo o homem e não a natureza, que está
sujeita a regularidades uniformes e, assim, pode ser objeto
de experiência científica. Na sociedade, o homem não só é
marcado por uma diversidade de paixões, mas também em
sua atividade econômica, desempenha diferentes papéis:

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Formação do Pensamento Econômico • 181

de consumidor, empresário, dona de casa, proprietário de


terra, trabalhador etc.
Se é assim, como é possível, então, representar analitica-
mente o homem que é objeto da Economia? – Reduzindo
os diferentes indivíduos concretos à mera entidade abstrata:
o suposto agente econômico racional. Tal homogeneização
permite ao economista transformar todos os sentimentos
dos indivíduos em indicadores de prazer e sofrimento, para
que possa, então, analisar o comportamento do trabalha-
dor do mesmo modo que analisaria o da dona de casa ou
o do empresário.
É assim mesmo que procede Jevons, para quem o compor-
tamento do trabalhador não é diferente de como age o empre-
sário. De acordo com sua concepção de emprego do fator
trabalho, se o primeiro, por exemplo, resolve trabalhar mais,
terá que sacrificar parte do seu tempo livre. Entretanto, só
estaria disposto a abrir mão de parte do seu tempo ocioso,
se o desconforto de trabalhar mais for recompensado pelo
aumento de sua renda, de modo a lhe proporcionar melhor
bem-estar material. Assim também age o empresário, que
se priva do prazer de desfrutar de sua riqueza atual, para
aumentar seu patrimônio futuramente; portanto, o sacri-
fício da abstinência deverá ser recompensado com maior
riqueza no futuro.
Para representar, analiticamente, o comportamento do
agente econômico, Jevons é obrigado a lançar mão da hipó-
tese de que o gosto ou as preferências dos indivíduos perma-
necem constantes; não mudam com o tempo. Qual é a razão
desta hipótese? – Muito simples: se o gosto do consumidor
se alterar com o tempo, não seria possível representar, mate-
maticamente, seu ponto de equilíbrio no mercado, isto é, a
situação na qual ele estaria maximizando satisfação e mini-
mizando sacrifícios.

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182 • O Estranho Mundo da Economia

De fato, se o gosto muda com o tempo, se hoje o consu-


midor prefere chá, amanhã café, não haveria como calcular
os acréscimos de utilidade do primeiro bem, que deveriam
diminuir à medida que o consumo de chá aumentasse. Neste
caso, a lei da utilidade marginal decrescente cairia por terra,
desmoronado com ela a própria Teoria do Valor.
Já Menger não faz uso desse de tipo de restrições hipotéticas,
visto não trabalhar com representações idealizadas da
realidade. Diferentemente de Jevons, para ele, as neces-
sidades humanas são históricas, isto é, os bens podem até
perder sua utilidade se as necessidades mudam, por conta
de alterações no gosto das pessoas. É o que acontece, por
exemplo, com o consumo de fumo. Uma mudança no gosto
dos consumidores pode levar tanto ao desaparecimento da
necessidade de consumir esse bem, quanto também à neces-
sidade de consumir certos bens que entram direta e indire-
tamente na produção do fumo.
Neste sentido, a economia é uma atividade dinâmica, em
que o tempo joga papel determinante no curso dos fenô-
menos econômicos. Não só isto: como visto antes, Menger
considera o tempo um fator essencial a ser observado, pois
o conceito de causalidade é inseparável do conceito de
temporalidade. Por isto, quanto mais complexa se torna a
cadeia produtiva, mais se distanciam as conexões entre os
bens de produção e os de consumo final, advindo, então, a
incerteza econômica quanto ao curso corrente e futuro da
produção. Daí a necessidade de planejar a atividade econô-
mica, de modo que os agentes econômicos possam calcu-
lar antecipadamente,

tanto as quantidades dos diversos de que precisarão para aten-


der às suas necessidades, como os períodos de tempo nos quais
ocorrerá sua demanda concreta de cada bem; esse cálculo pode

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Formação do Pensamento Econômico • 183

ser feito com a exatidão exigida de conformidade com os fins


práticos visados, exatidão que é suscetível de aumentar cada
vez mais (Menger,1983, p. 266).

Para Jevons não há nenhuma relação entre o conceito de


tempo e o de causalidade; por conseguinte, o tempo não
poderá causar nenhum desencontro entre a produção de
bens de ordem superior e de consumo. Consequentemente,
não haveria incertezas econômicas, já que o tempo não pode
provocar nenhuma desproporcionalidade na produção de
bens. Daí, a hipótese teórica de um mercado perfeito, em
que não há lugar para incertezas nem expectativas quanto
ao curso corrente e futuro da economia.
Não poderiam ser tão diferentes os resultados a que
chegam Jevons e Menger. Para o primeiro, o mundo da
economia é um mundo totalmente transparente; nele não
há incertezas nem crises; todos têm perfeito conhecimento
de suas necessidades e de como satisfazê-las. Sendo assim,
nada é exigido do indivíduo; este age sob o império do prin-
cípio da utilidade, que manda que cada um maximize sua
satisfação e minimize seus sacrifícios. Por paradoxal que
pareça, porque age racionalmente, o indivíduo não pensa.
Realmente, num mundo de total transparência, o indiví-
duo não tem por que se preocupar com o curso presente e
futuro da produção e distribuição da riqueza. Muito menos
precisa tomar posição a respeito das coisas e das pessoas
com quem convive, uma vez que cada indivíduo concreto
é reduzido à figura de um consumidor abstrato, conceitual-
mente construído.
Não é assim que pensa Menger. Para ele, o mundo da
economia é marcado pela incerteza, que aumenta à medida
que a economia se desenvolve e se torna mais complexa.
Em consequência, ninguém tem perfeito conhecimento do

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184 • O Estranho Mundo da Economia

mercado, o que vai exigir dos indivíduos um comportamento


ativo e não passivo, como é o agente racional de Jevons.
Diante de concepções tão distintas da Economia, convém
perguntar: como dois autores, que fazem da utilidade a
medida do valor, isto é, que partem do mesmo paradigma,
chegam a conclusões tão diferentes sobre os acontecimen-
tos econômicos?
Uma explicação plausível para isto se deve ao fato, talvez,
de Menger e Jevons, por um lado, pertencerem a contextos
culturais distintos e, por outro, filiarem-se a matrizes filosó-
ficas divergentes. É assim mesmo que Oakley entende por
que Menger foi capaz de desenvolver uma teoria subjetiva
do valor com características próprias, que o diferencia dos
demais teóricos que fizeram da utilidade o fundamento do
valor. Para Oakley, o ambiente intelectual vivido por Menger
é a razão maior disto.
Em primeiro lugar, porque a vida intelectual da Áustria
não sofreu influência da filosofia kantiana e hegeliana; em
segundo lugar, onde a filosofia era importante, esta era de
origem pré-kantiana, isto é, de origem aristotélica. Daí, a
ênfase ontológica da teoria de Menger, que tinha como
preocupação básica os problemas da realidade vivida por
ele (Oakley, 1997, p. 31).
É nessa mesma direção que Feijó entende as razões que
separam a teoria subjetiva do valor de Menger da mesma
teoria partilhada por Jevons e Walras. Fundamentado em
estudos de muitos comentaristas da obra de Menger, Feijó
(2000, p. 41) assim se expressa:

Jevons, Menger e Walras, mesmo compartilhando elemen-


tos teóricos essenciais em suas teorias, pertenciam a distintos
paradigmas ou o que um importante economista denominou
de visões da Economia. Eles estavam inseridos em contextos

Livro 1.indb 76 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 185

culturais muito distintos e ligados a raízes filosóficas inteiramente


díspares: o utilitarismo empirista na Inglaterra, a filosofia aris-
totélica na Áustria e a filosofia cartesiana na França. Esses três
países possuíam diferentes níveis de desenvolvimento econô-
mico, de modo que é implausível relacionar os trabalhos desses
autores com mudanças na estrutura de produção nacional ou
nas relações entre as classes sociais.

Não há dúvida de que o contexto histórico-social contri-


buiu para que esses dois autores tivessem distintas concep-
ções da Ciência Econômica. Entretanto, a filiação filosófica
de cada um deles parece ter sido muito mais importante do
que tais condições.
Como discípulo confesso de Aristóteles, Menger estava
preocupado em descobrir a essência da vida econômica, as
leis que regem a conexão interna dos eventos econômicos.
Jevons, como será visto, transforma a economia numa
ciência voltada para a descrição dos fenômenos da vida
cotidiana, da ação dos indivíduos em sua vida comercial.
Ao invés de se preocupar com o que se esconde por trás da
aparência da realidade, para ele, a economia deve se aferrar
à superfície imediata da vida econômica, para descrevê- la
mediante o uso de modelos matemáticos.
Trata-se, portanto, de duas posturas metodológicas, diame-
tralmente opostas. Metodologicamente falando, e tão-so-
mente desta perspectiva, a proposta de ciência de Menger
não é muito diferente daquela defendida por Smith e Ricardo.
Como eles, Menger estava preocupado em descobrir a cone-
xão interna dos fenômenos econômicos; sua essência, que
se revela mediante a elucidação das leis que regem os even-
tos da vida econômica. Jevons, pelo contrário, transforma
a economia numa ciência descritiva dos eventos econômi-
cos, tais como aparecem aos olhos do observador imediato.

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186 • O Estranho Mundo da Economia

2.10 Para uma Ciência da Economia Política

Para Jevons, a Economia deve descrever a realidade tal


qual ela se apresenta ao observador. Desta perspectiva meto-
dológica, o fato enquanto tal, isto é, as coisas tais como se
apresentam no seu ser-aí para a observação, determina a
validade dos enunciados da teoria econômica. Se é assim,
acredita-se que, independentemente de qualquer posição
teórica, a realidade é capaz de falar por si, de revelar-se ao
observador independente de qualquer julgamento de valor.
A observação, isto é, a certeza sensível, garante a verdade
dos enunciados, pois, como se costuma dizer, contra fatos
não há argumentos.
Acontece que a experiência sensível não é considerada
o único critério de certeza do conhecimento. Ao lado da
certeza sensível, igualmente importante é a certeza metó-
dica; ou seja, os procedimentos mediante os quais o cientista
tem acesso ao mundo dos fatos; ou, se se preferir, as regras
metodológicas que devem ser observadas pelo pesquisador
em seu trabalho de investigação da realidade.
Para Jevons, certeza sensível e certeza metódica devem
andar de mãos dadas. É o que se revela num trecho da
crítica que ele dirige ao pensamento de Smith e Ricardo.
Censurando Stuart Mill, por considerar a teoria ricardiana
do valor como verdadeira e definitiva, Jevons (1983, p. 3)
contra-argumenta, dizendo: “Se tivesse ele [Mill] se conten-
tado em afirmar a verdade inquestionável das Leis da Oferta
e da Procura, eu teria concordado com ele. Como estão
apoiadas em fatos, essas leis não podem ser abaladas por
nenhuma teoria [...]”.
Jevons não poderia ter sido mais claro: as leis da oferta
e a demanda são verdades inquestionáveis, pois se apoiam
nos fatos, na experiência enquanto instância fiadora de

Livro 1.indb 78 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 187

certeza do conhecimento científico. Mas, isto não é tudo. A


exigência de exatidão no conhecimento requer mais do que a
certeza empírica conferida pela certeza sensível. Ao seu lado,
exige-se a certeza metódica, que confere ao conhecimento
validade intersubjetiva, isto é, reconhecimento universal.
Realmente, voltando à citação acima, o caráter indiscutí-
vel da lei da oferta e demanda deve-se, também, ao fato de
se referirem a relações entre quantidades de bens oferta-
dos e demandados no mercado. Ora, tais relações, porque
quantitativas, são objetos de análise matemática rigorosa,
inquestionável, como todos os outros conceitos econômi-
cos. É assim mesmo que pensa Jevons (1983, p. 4) quando
afirma o seguinte:

procurei chegar a conceitos quantitativos precisos sobre Utilidade,


Valor, Trabalho, Capital etc., e com frequência me surpreendi
ao descobrir quão claramente alguns dos conceitos mais difíceis,
especialmente o conceito mais intrincado, o de Valor, admi-
tem análise e expressão matemáticas.

Enquanto ciência matemática, a Economia é necessaria-


mente uma ciência positiva. Aliás, no próprio título do seu
livro, Jevon deixa transparecer o caráter de neutralidade
da Economia, ao defini-la como a ciência da Economia
Política. Não sem razão, ressalta que uma das alterações
que faz para a segunda edição do texto foi a substituição
do nome “Economia Política pelo termo simples e conve-
niente de Economia. Não posso deixar de pensar que seria
bom desfazer-se, o mais rapidamente possível, do obsoleto
nome composto e problemático de nossa ciência” (Jevons,
1983, p. 6).
Ora, uma ciência que parte da ideia de que a observação
dos fatos é capaz de reproduzir a realidade tal qual esta se

Livro 1.indb 79 24/10/2022 09:49:58


188 • O Estranho Mundo da Economia

apresenta ao observador; portanto uma ciência que pressu-


põe que o dado se impõe ao pesquisador, porque contém
tudo que é preciso ser conhecido; uma ciência assim é, por
natureza, neutra. Nela, não entra julgamento de valor, pois
se trata de uma forma de conhecimento preocupada, unica-
mente, com o que existe, com o que está aí e é, por conse-
guinte, passível de ser constatado por qualquer cientista.
Entretanto se, por alguma razão, acontecer de o pesquisa-
dor vir a ser traído pelos sentidos, os procedimentos meto-
dológicos podem superar tal falha, pois se trata de regras
que devem ser observadas por qualquer sujeito interessado
em conhecer a realidade; de regras que devem ser
reconhecidas intersubjetivamente pela “comunidade de
pesquisadores”, que deve assegurar a objetividade do conhe-
cimento, e com ela, sua neutralidade.

2.11 O método completo da Economia

Do ponto de vista filosófico, o pensamento de Jevons se


insere dentro da tradicional corrente do utilitarismo empi-
rista, desenvolvido na Inglaterra por J. Bentham (1989) e
seus discípulos, em fins do século XVIII e início do século
XIX. De fato, Jevons não se cansa de repetir que a Economia
é uma ciência que tem, como preocupação central, o cálculo
do prazer e do sofrimento, pois, como Bentham, admite
que o homem vive sob
o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer.
Se é assim, toda e qualquer ação econômica é, na verdade,
uma ação que se desenvolve sob o imperativo do domí-
nio desses senhores, que exigem do agente econômico um
comportamento racional, na medida em que não lhe deixa
outra alternativa que não a de ter de escolher entre menor
sacrifício e maior prazer.

Livro 1.indb 80 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 189

Assumindo o princípio da utilidade como fundamento


da vida individual e social, a Economia começa sua inves-
tigação da vida econômica, observando e descrevendo as
atividades correntes da vida, para, daí, inferir as leis que
governam o comportamento dos indivíduos em suas ações
econômicas. Se é assim, se o que está em jogo é a análise da
conduta do indivíduo no mercado, que deve agir de modo
a maximizar prazer e minimizar sofrimento, então, conclui
Jevons do alto do seu utilitarismo radical: a Economia é uma
ciência preocupada em descrever a “mecânica da utilidade
e do interesse individual”.
Se a observação é o ponto de partida, para se investigar
a conduta do indivíduo no mercado, a indução é, portanto,
o método utilizado pela economia. Acontece que a simples
observação do comportamento de um número finito de
indivíduos não permite concluir que todos os outros deve-
rão comportar-se do mesmo modo como agem aqueles que
foram observados. Se é assim, qual é, então, a legitimidade
da indução como método de investigação científica?
Se essa questão fosse dirigida a J. Stuart Mill, certamente,
ele responderia dizendo que toda indução pressupõe certos
axiomas como condição para garantir sua legitimidade. Se
é assim, se toda indução pressupõe certos axiomas como
condição de possibilidade para a observação dos fenômenos,
poder-se-á dizer, então, que toda indução é na verdade uma
dedução? De certa forma, sim, pois os axiomas são induções
prévias ou espontâneas, produzidas pelos homens em suas
relações com a natureza. Nesse intercâmbio, os homens apren-
deram que os acontecimentos que têm lugar na natureza são
regidos por leis, a que eles obedecem com certa regularidade.
É daí que parte Mill, para defender a ideia de que nada
acontece de graça na natureza; tudo tem uma causa. Vale
dizer, há uma uniformidade no curso da natureza. Sem tal

Livro 1.indb 81 24/10/2022 09:49:58


190 • O Estranho Mundo da Economia

pressuposição, a indução seria um salto no escuro, pois a


observação jamais pode esgotar todos os eventos dos fatos
investigados pelo pesquisador. Por isso, para Mill (1999),
toda indução é, na verdade, uma dedução. Vale dizer: a
observação de um fenômeno particular pode ser generali-
zada e, assim, gozar de valor de verdade, porque ela pres-
supõe a uniformidade da natureza. Com a palavra Mill
(1999, p. 167):

ao pretender constatar a ordem geral da natureza constatando


a ordem particular de cada um dos fenômenos da natureza, o
procedimento mais científico não pode ser senão uma forma
aperfeiçoada daquele que primitivamente foi seguido pelo
entendimento humano ainda não dirigido pela ciência. [...]
Nenhuma ciência precisou ensinar que o alimento nutre, que
a água mata a sede, que o sol dá luz e calor, que os corpos caem
no solo. Os primeiros requisitos científicos admitem esses fatos
e outros semelhantes como verdades conhecidas e partiram delas
para descobrir novas; não estavam errados ao proceder assim,
sujeitos, todavia, como depois começaram a perceber, a uma
revisão posterior dessas próprias generalizações espontâneas
quando o progresso do conhecimento estabeleceu limites a elas
ou lhes mostrou que sua verdade depende de alguma circuns-
tância originalmente não observada [...]. Não há nenhum vício
lógico nesse modo de procedermos já podemos ver que qualquer
outro modo é rigorosamente impraticável, já que é impossí-
vel instituir um método científico de indução, ou um meio de
garantir validade das induções, a não ser na hipótese de que
algumas induções dignas de crédito já foram feitas.

É assim mesmo que procede Jevons. Como Mill, de quem


toma emprestado o método da Economia, entende que o
método indutivo pressupõe certas induções prévias que se

Livro 1.indb 82 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 191

transformam em verdadeiros axiomas, a partir dos quais são


derivadas as leis gerais que governam os fenômenos econô-
micos. Dedução e indução se combinam assim, para formar
o que ele chama de Método Completo. Sempre seguindo
de perto o sistema de lógica de Mill, Jevons (1983, p. 36)
se dá conta de que o seu método

[...] não é em absoluto um método especial, mas simplesmente


a própria indução em seu aspecto essencial. Conforme expliquei
exaustivamente, indução é uma operação inversa, o inverso de
dedução, e pode apenas ser empreendida pelo uso da dedução.
Possuindo certos fatos observáveis, construímos uma hipótese
sobre as leis que governam esses fatos; raciocinamos, a partir
da hipótese dedutivamente até os resultados esperados; e, então,
examinamos esses resultados em relação aos fatos em questão; a
coincidência confirma o conjunto do raciocínio; a discordância
nos obriga a procurar as causas perturbadoras ou, alternativa-
mente, a abandonar nossas hipóteses. Nesse procedimento,
nada há de peculiar; quando entendido devidamente, verifica-
-se que é o método de todas as ciências indutivas.

Embora não muito claro nesta passagem, Jevons deixa


transparecer que as leis que regem os fenômenos econômi-
cos são obtidas dedutivamente, a partir de certas hipóteses
construídas por induções prévias. Para não deixar o leitor
com dúvidas, vale a pena citá- lo novamente, mesmo que
isto possa tornar o texto um tanto enfadonho. Entretanto,
por se tratar de um autor mais comentado do que lido, vale
a pena deixar que ele fale um pouco mais.
Na passagem que se segue, ele esclarece como combina
indução e dedução para o conhecimento das leis gerais
que governam o mundo da economia. Literalmente, diz
Jevons (1983, p. 36):

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192 • O Estranho Mundo da Economia

toda pessoa escolherá o maior bem aparente; que as necessida-


des humanas são mais ou menos rapidamente saciáveis; que o
trabalho prolongado se torna cada vez mais penoso, são algumas
poucas induções simples a partir das quais podemos continuar
a racionar dedutivamente com grande confiança. A partir desses
axiomas podemos deduzir as leis da oferta e da procura, as leis
daquele difícil conceito, o valor, e todos os intrincados resul-
tados do comércio, desde que os dados estejam disponíveis.
A concordância final de nossas inferências com as observa-
ções a posteriori ratifica nosso método. Mas infelizmente essa
verificação é com freqüência (sic) a parte menos satisfeita do
processo, porque, conforme J. S. Mill explicou exaustivamente,
as condições de uma nação são muito complicadas, e é raro
termos dois ou mais exemplos que sejam comparáveis. Para
preencher as condições da investigação indutiva, devemos ser
capazes de observar os efeitos de uma causa atuando isolada-
mente, enquanto todas as outras causas permanecem inalteradas.
Para provar plenamente os efeitos positivos do livre comércio
na Inglaterra, por exemplo, devemos ter a nação inalterada em
todas as condições, exceto pela abolição das taxas de restrições
sobre o comércio.

Uma leitura atenta desta passagem deixa claro que o


método utilizado por Jevons parte da experiência para cons-
truir suas hipóteses gerais, para, em seguida, confirmá-las
empiricamente, mediante a verificação de seus enuncia-
dos. Em síntese, o método completo faz da experiência o
ponto de partida e de chegada do conhecimento; trata-se,
na verdade, de um raciocínio circular que se fecha em si
mesmo, que faz do ponto de chegada o seu ponto de partida:
fatos-indução-hipótese-dedução-fatos.
É mister reconhecer que o método completo não chega a
ser um raciocínio definitivamente circular, pois as hipóteses

Livro 1.indb 84 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 193

obtidas, via indução, nem sempre podem ser confirmadas


pela experiência; regra geral, não o são. Ninguém melhor do
que o próprio Jevons para confirmar o que se acaba de dizer.
Referindo-se à doutrina do livre comércio, reconhece que
não se pode demonstrar sua verdade como exatidão. Mas
isso não significa, diz ele, que se deva invalidar essa doutrina;
seus enunciados gozam de valor de verdade.
Como assim? Com a palavra Jevons (1983, p. 36):

apesar de os efeitos benéficos do livre comércio serem grandes e


inquestionáveis, dificilmente sua existência poderá ser provada
a posteriori; devem ser aceitos porque o raciocínio dedutivo a
partir de premissas quase verdadeiras nos leva seguramente a
esperar tais efeitos, e não há nada na experiência que conflite
o mínimo sequer com as nossas expectativas.

Agora tudo se explica: a Economia é um saber hipoté-


tico. Seus enunciados devem ser tomados não como premis-
sas absolutas, isto é, como enunciados verdadeiramente
inquestionáveis, mas sim, como premissas quase verdadeiras.
Embora tais premissas não possam ser objeto de demonstra-
ção, mediante sua verificação empírica, devem, no entanto,
ser aceitas como verdades quase absolutas, pois, como acre-
dita Jevons, nada há na experiência que conflite com o valor
de verdade das hipóteses gerais da Economia.
Ora, se não é possível demonstrar o valor de verdade
dos enunciados econômicos, confrontando-os com a expe-
riência, como sabe Jevons que não devem ser questiona-
dos? Alegando simplesmente, que tais enunciados devem
ser tomados unicamente como premissas quase verdadei-
ras? Ao que tudo indica, Jevons não teria como responder
essa questão. De fato, considerando que, para ele, toda
indução é uma dedução; então, se não há como demonstrar

Livro 1.indb 85 24/10/2022 09:49:58


194 • O Estranho Mundo da Economia

o valor de verdade desta última, igualmente, não se poderia


provar a primeira.
Diante dessa situação aporética, de duas uma: ou Jevons
é obrigado a admitir que a Economia é um saber apriorís-
tico, isto é, um saber enquanto construção unicamente da
razão e, por isto, independente de toda e qualquer expe-
riência; ou, então, não há outra saída senão aceitar os enun-
ciados gerais, a partir dos quais são deduzidas as leis que
regem os fenômenos econômicos, como enunciados mera-
mente hipotéticos, cujo valor de verdade permanece de pé,
enquanto não for negado por novas proposições.
A primeira alternativa está fora de cogitação. Realmente,
se a Economia fosse um saber apriorístico, no sentido defi-
nido acima, ela deixaria de ser uma ciência empírica para se
transformar num saber metafísico, numa forma de conheci-
mento transcendente à experiência. Ora, a Economia, como
toda e qualquer ciência, é uma forma de saber antimetafí-
sico; uma forma de saber que faz da experiência critério de
demarcação científica, negando, portanto, toda e qualquer
afirmação que não seja derivada da experiência.
Resta a segunda alternativa: os enunciados deduzidos, a
partir de premissas quase verdadeiras devem ser tomados
como enunciados hipotéticos e, portanto, provisórios. Se é
assim, as premissas quase verdadeiras, de onde são deriva-
dos tais enunciados, não são afirmações metafísicas, isto é,
afirmações sem qualquer controle empírico. Embora não
se possa demonstrar o valor de verdade dessas premissas,
deve-se, no entanto, tomá-las como hipóteses, a partir das
quais são deduzidos enunciados suscetíveis de ser, ou não,
confirmados por seu confronto com a experiência. O valor
de verdade desses enunciados permanece de pé, enquanto
não for negado pela experiência.

Livro 1.indb 86 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 195

Assim, a Economia, nas mãos de Jevons, é uma forma


de saber hipotético- dedutivo: parte de premissas gerais,
para, delas, deduzir enunciados, que serão ou nãoconfir-
mados pela experiência. A concepção de ciência de Jevons
se aproxima em muito daquela defendida por Popper, para
quem as teorias científicas são falíveis, porque hipotéticas
e, portanto, provisórias.

2.12 O agente econômico racional e a morte do homem

Muito embora Jevons se confesse discípulo de Mill, diverge


deste quando atribui à Economia um caráter de ciência
hipotético-dedutiva, numa verdadeira antecipação à concep-
ção popperiana de ciência. Tal divergência, contudo, não
os separa em campos opostos: empiristas que são, ambos
compartilham da ideia de que o que é objeto de estudo da
Economia deve existir na realidade e existir aí para a percep-
ção. Acontece, diria Popper (1980, p. 68), que “toda e qual-
quer observação dos fatos se orienta por perspectivas teóricas”.
De sorte que todo conhecimento empírico é, na realidade,
uma construção do real. Se é assim, a ideia pressuposta pela
teoria da indução de que a alma humana é comparável a
uma tábula rasa não passa de um mito.
Partindo da ideia de que todo conhecimento é, de alguma
maneira, uma construção, é possível entender por que obser-
vações sobre determinados fatos, por exemplo, podem resul-
tar em diferentes interpretações desses mesmos fatos. Isto
ajuda a entender por que Jevons, que se confessa herdeiro
do método de Mill, tem uma concepção do homem econô-
mico radicalmente distinta daquela adotada por este filó-
sofo que fez da indução o único método adequado para a
descoberta da verdade em todos os campos do conheci-
mento. Com relação a Menger, as coisas não são diferentes.

Livro 1.indb 87 24/10/2022 09:49:58


196 • O Estranho Mundo da Economia

Ambos, Menger e Jevons, têm distintas concepções sobre o


homem econômico.
Nunca é demais lembrar que tanto Jevons como Menger
situa-se dentro de um mesmo paradigma: a teoria subjetiva
do valor. Mesmo assim, como visto antes, eles têm concep-
ções completamente diferentes sobre os agentes econô-
micos. Como se explica tal divergência? Isto é uma tarefa
nada fácil, principalmente quando se sabe que todo e qual-
quer conhecimento teórico é mediado pelos interesses e
perspectivas do pesquisador. Se é assim, então, se o conhe-
cimento teórico é sempre dirigido por determinados inte-
resses, como julgar desinteressadamente os conceitos que
Menger e Jevons têm do homem? É praticamente impossível
não tomar partido por um ou por outro. Afinal de contas,
o pesquisador é produto da sociedade e, por assim ser, ele
só conhece o mundoem que vive, a partir de determinado
ponto de vista. Mas isso não transforma o conhecimento
científico em simples opiniões. Existem critérios de cien-
tificidade que independem da mera opinião do pesquisa-
dor ou de suas inclinações políticas, sociais e ideológicas.
O método é um desses critérios. E é partir do modo como
eles entendem e aplicam o método da Economia que será
avaliado como cada um pensa o homem.
Sem mais demora, viu-se que Menger é um discípulo
confesso de Aristóteles. Deste filósofo, guarda a ideia de que
as leis que regem a articulação do discurso são semelhantes
às que governam a ordem das coisas. Seu empirismo é uma
forma de empirismo ontologizante; se é que se pode assim
falar. Por isso, sua teoria tem a pretensão de pensar a essên-
cia dos fenômenos econômicos.
Não é o que acontece com Jevons. Sua preocupação é de
outra natureza. Herdeiro do utilitarismo empirista inglês,
seu método de investigação se preocupa unicamente em

Livro 1.indb 88 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 197

descrever como os fenômenos econômicos se apresentam no


seu ser-aí para a observação imediata. Partindo deste corte
metodológico, pode-se entender por que Jevons e Menger
têm distintas concepções de Homem.
No caso de Menger, seu empirismo ontologizante o
leva a pensar o “homem econômico”, tal como ele é e se
comporta no mundo das instituições econômicas. Como se
viu antes, trata-se de um mundo no qual o agente econô-
mico é obrigado a lutar contra as incertezas e riscos, envol-
vidos em sua atividade, para satisfazer suas necessidades.
Consequentemente, da ação consciente do homem depende
a satisfação de suas necessidades.
Não é assim que Jevons define o agente econômico.
Entendendo que a Economia deve ser uma ciência mate-
mática, por excelência, sua preocupação é quantificar os
fenômenos econômicos, tomá-los tais como se apresentam
para a percepção imediata do observador, para traduzi-los
mediante o uso de equações matemáticas. Isto é possível,
diria Jevons, porque a economia lida com quantidades. Por
isso, diz ele, em matéria de Economia, “devemos raciocinar
matematicamente”.
Mas, que significa raciocinar matematicamente? –
Construir modelos para poder, assim, expressar os fenô-
menos do mundo da Economia. É o caso do conceito do
agente econômico. Esse agente é representado na forma de
um consumidor modelo, cuja função é expressar o compor-
tamento dos agentes econômicos de carne e osso. Por conse-
guinte, diferentemente do que pensava Menger, para Jevons,
os conceitos econômicos não guardam nenhuma relação
de correspondência ontológica com a realidade. Por isso,
o conceito de agente econômico não traduz o homem tal
como ele age no mundo real da Economia.

Livro 1.indb 89 24/10/2022 09:49:58


198 • O Estranho Mundo da Economia

Trata-se, isto sim, da construção de um abstrato homem


econômico, a partir do qual os economistas podem analisar
até que ponto o comportamento de determinado indivíduo,
ou grupo de pessoas, se aproxima ou se afasta do compor-
tamento racional exigido conceitualmente.
Com relação a Mill, as coisas não são muito diferentes.
Discípulo confesso deste filósofo, Jevons dele diverge total-
mente no que diz respeito ao conceito do homem econô-
mico. Herdeiro de Ricardo, o conceito de homem que Mill
tem em mente é o de um indivíduo pertencente a uma classe
social, cujos interesses são divergentes, pois os lucros, remu-
neração dos capitalistas, variam em direção oposta a dos salá-
rios, que representam a parte do produto social destinada
aos trabalhadores assalariados.
E não só isto: vivendo num mundo dominado pela produ-
ção do valor de troca, os indivíduos são obrigados a lutar
permanentemente para obter riqueza, pois quem não tem
o que dar em troca do que necessita não encontra lugar na
sociedade. Sob a influência desse desejo, o homem é levado
a acumular riqueza para empregá-la na produção de outra
riqueza; é obrigado a submeter sua vontade aos imperativos
da concorrência, que ordena a todo produtor de mercado-
ria desenvolver a produtividade do seu trabalho ao máximo,
só assim consegue se manter no mercado.
O homem econômico assim definido não é o mesmo
que Jevons tem em mente. Para este economista, o homem
que é objeto da economia não é o homem de carne e osso,
mas sim, um abstrato homem econômico, conceitualmente
construído. Realmente, partindo da observação dos indiví-
duos em sua vida comercial, diária, o pesquisador constrói
um tipo ideal, o agente econômico racional, que lhe serve
de referencial para avaliar as ações econômicas dos indiví-
duos reais.

Livro 1.indb 90 24/10/2022 09:49:58


Formação do Pensamento Econômico • 199

De posse desse conceito de homem econômico, a


Economia analisa como os agentes econômicos devem
se comportar, para obter o maior prazer possível com o
mínimo de sacrifício. Como teoria do prazer e do sofri-
mento, a Economia pode se concentrar unicamente na
análise do comportamento do indivíduo, não em sua rela-
ção a outros indivíduos, mas, sim, em sua relação às coisas
que são objeto de seu consumo. Afinal de contas, o que está
em jogo é a mensuração da utilidade, o prazer decorrente
do consumo de coisas.
Ora, se o que está em jogo é unicamente o prazer que
a posse e o consumo de coisas proporcionam a cada indi-
víduo; se é esta relação que deve ser o principal objeto de
estudo da Economia; então, esta ciência, nas mãos de Jevons,
termina por se transformar numa forma de saber irracional.
Realmente, em um mundo onde os fios invisíveis da divi-
são social do trabalho prenderam os indivíduos numa teia
de relações recíprocas, de sorte que cada particularidade
só pode satisfazer suas necessidades se entrar em contato
com outras particularidades, considerar o indivíduo unica-
mente pela perspectiva de sua relação unilateral com as
coisas é negar a sua própria existência. É decretar a morte
do homem como ser carente; como ser que só pode se afir-
mar pela mediação do outro, ainda que o outro seja consi-
derado apenas meio para a realizar de seus fins particulares.

Livro 1.indb 91 24/10/2022 09:49:58


Livro 1.indb 92 24/10/2022 09:49:58
Parte 3

Spock: de volta para o futuro

U
m ano se passou desde o dia em que Spock se encon-
trou com Washington. O sol começava a se despedir
do dia, quando a nave de Spock possou nos arre-
dores da casa em que encontrara Washington naquela noite
de verão escaldante. Sentiu o mesmo vento quente bater em
sua face, com bafo de mormaço.
“Será que o Sr. Washington se encontra aí?” – pensou
Spock. “Ele havia me dito que iria fazer um curso de pós-gra-
duação fora do país. Se a memória não me falha, ele iria
para os Estados Unidos da América do Norte. Talvez tenha
ido mesmo! É... parece que foi mesmo. Nem sequer ouviu
o barulho da nave quando eu cheguei!”
Enquanto pensava, Spock se aproximava do quarto de
Washington. Bateu na janela e esperou por algum tempo.
Nada! A janela continuava fechada. Foi então que Spock
resolveu empurrar uma das bandas da janela para ver se
tinha alguém lá dentro. Quão não foi sua surpresa, lá estava
Washington debruçado sobre uma pilha de livros.
Num dos cantos da mesa, viu o texto que havia deixado,
cheio de rabiscos à margem, certamente eram anotações
de passagens que lhe chamaram a atenção. Como ele pare-
cia alheado do mundo, Spock bateu com força na madeira

Livro 1.indb 1 24/10/2022 09:49:58


202 • O Estranho Mundo da Economia

da janela. Sobressaltado, Washington notou a presença do


viajante no tempo.
Olá, meu caro viajante, há quanto tempo você não aparece.
Já estava a pensar que você tinha voltado para o seu tempo
– exclamou Washington com ar alegria! – Vamos entrar!
Vamos lá! Esperava por você com certa ansiedade.
Não, meu jovem e bom anfitrião, eu ainda não voltei para
o futuro. Nesse meio tempo, resolvi visitar algumas biblio-
tecas das universidades de várias cidades.
Respondeu-lhe Spock, aproximando‐se, continuou:
Numa dessas visitas, assisti às aulas de um professor de
Introdução à Economia, conhecido por JR. Achei muito
interessante a forma como ele abordou a matéria. Não tive
reserva, apresentei-lhe o texto que deixei com você, junta-
mente com o nosso diálogo que eu, talvez por precaução,
resolvi gravar e digitar.
Spock contou-lhe de sua intenção de publicar aquele mate-
rial. Revelou, ainda, o pedido, ao professor JR, para que ele
lesse e fizesse as observações críticas que achasse pertinen-
tes. Para surpresa de Spock, no dia seguinte, o professor já
o convidou para assistir a sua aula.
Não hesitei, e pedi ao professor JR, permissão para gravar
sua aula, pois minha intenção era acrescentar a apresenta-
ção que ele faria dos meus escritos, ao livro. E eis aí o resul-
tado! Publiquei o livro que intitulei de O Estranho Mundo
da Economia: Para uma Crítica aos Manuais de Introdução
à Economia.
Que maravilha, meu amigo! Como você conseguiu essa
façanha em tão pouco tempo?! – perguntou admirado
Washington.
Conheci um professor que leu os manuscritos do texto.
Ele gostou muito e me pediu para enviar o material para
outro professor...

Livro 1.indb 2 24/10/2022 09:49:58


Spock: De volta para o futuro • 203

Spock narrou, então, o contato com Geovanni Alves,


professor da UNESP, em Marilha, São Paulo, cuja editora,
chamada Praxis Editorial, manifestou interesse em publi-
car o livro.
Mas, vamos falar um pouco sobre o texto que lhe deixei
– exclama Spock. – O que mais lhe chamou a atenção?
Washington ficou em silêncio por alguns instantes. De
repente, olhou para Spock com ares de quem passou a maior
parte do seu tempo com a cara enfiada nos livros.
Olha, meu caro Spock, fiquei maravilhado com o que li.
A forma como você apresenta o pensamento de Smith, com
suas conquistas e debilidades teóricas, é muito interessante.
E mais interessante ainda é a sua exposição da teoria ricar-
diana do valor. Com fundamento, você mostra como David
Ricardo intenta corrigir as contradições da teoria smithiana
do valor. E o que é melhor! Você faz tudo isso numa lingua-
gem sem floreio e sem a densidade do economês, que é
próprio de quem acredita que escrever difícil é sinônimo
de domínio intelectual. E tem outra coisa, você expõe a
teoria clássica do valor, convidando os seus epígonos, Smith
e Ricardo, para visitar o nosso tempo. Noutras palavras,
sua exposição não é uma visita ao passado desses pensado-
res, mas, sim, uma revisita de quem volta ao passado para
entender o presente.
Que bom, meu caro Washington, vejo que você apreen-
deu muito bem o cerne da exposição que eu fiz da Teoria
do Valor-Trabalho – comenta Spock.
O comentário de Spock despertou ainda mais o entu-
siasmo de Washington que não cabia em si de contenta-
mento. Segurando o texto entre as mãos, Washington pede
licença para continuar expondo sua leitura para o amigo
viajante no tempo.

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204 • O Estranho Mundo da Economia

Pois não, meu caro Washington, sou todo ouvidos. Pode


continuar – responde Spock.
Pois bem, do que eu expus até aqui, faltou ainda falar
como você, meu caro
Spock, mostra como se deu a substituição da Teoria do
Valor-Trabalho pela Teoria do Valor-Utilidade. Primeiro,
você expõe as determinações históricas que fizeram soar o
sino fúnebre da economia científica burguesa. Achei este
ponto de sua exposição muito interessante, porque ele mostra
que o homem, como assim expressa Marx em sua Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, “não é um
ser abstrato, acocorado fora do mundo”.
Washington foi discorrendo sobre o seu aprendizado:
Com esse texto do autor de O Capital, entendi que o
homem que faz ciência não é, desculpe pela analogia, meu
caro Spock, um marciano. Ele é o seu mundo, com seus
preconceitos, ideologias etc. Isso explica a luta dos teóricos
da Economia Neoclássica, que Marx chama de Vulgar, contra
a pesquisa desinteressada, contra a pesquisa científica impar-
cial desenvolvida por Smith e Ricardo. Compreendi que por
trás da crítica que o sr. Jean-Baptiste Say faz a Smith, subs-
tituindo o trabalho como fundamento do valor pela utili-
dade, desenrolava-se sob um contexto histórico, em que a
luta entre o capital e o trabalho assumia formas cada vez
mais explosivas. A partir de então, como diz Marx, já não
mais importava “saber se este ou aquele teorema era ou não
verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial,
cômodo ou incômodo, subversivo ou não”.
Washington interrompeu sua exposição, respirou fundo
e acrescentou:
Depois de toda essa leitura que fiz do seu texto, meu caro
Spock, pude compreender por que a Economia Neoclássica
se tornou dominante nos meios acadêmicos e políticos!

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Spock: De volta para o futuro • 205

Spock sorri sutilmente, mas permaneceu em silêncio


diante do entusiasmo de Washington.
Nesse confronto entre a Teoria do Valor-Trabalho e a
Teoria do Valor-Utilidade, me chamou atenção o fato de
dois autores, Menger e Jevons, dividirem a mesma concep-
ção da teoria valor-utilidade, e, no entanto, conceberem o
homem de forma radicalmente distinta. Em Jevons, você
mostra como a matematização da Economia acaba por
decretar a morte do homem. Em seu lugar, Jevons constrói
um modelo de agente econômico que vive unicamente em
função de sua relação unilateral com as coisas. Ainda que
Smith e Ricardo suponham que a relação entre os homens
é mediada pelas coisas, ainda assim, meu caro Spock, você
demonstra que o homem, para esses dois grandes pensadores,
pertence a uma sociedade dividida em classes com interesses
antagônicos. É um homem de carne e osso, portanto, bem
diferente da figura do agente econômico racional constru-
ído por Jevons, que não guarda relação com o mundo real.
Spock sorri e diz para si mesmo: “Missão cumprida,
fomentei o despertar do pensamento crítico neste econo-
mista, recém‐formado. Posso partir para novos ares!”.

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Posfácio

“Aquilo que é bastante conhecido não é,


portanto, reconhecido”
Aristóteles

Rodrigo Cavalcante de Almeida.

E
sta epígrafe de Aristóteles, “apossada” por Hegel em
duas das suas principais obras, Fenomenologia do
Espírito e A Ciência da Lógica, bem que poderia ser
a palavra de ordem que sintetiza a crítica de Teixeira ao
Estranho Mundo da Economia. Noutras palavras, muito
se tem falado sobre Smith, Ricardo, Keynes, Marx, dentre
outros autores importantes que compõem o “cânone” da
Economia. Todavia, o que se falam deles, na grande maioria
das vezes, principalmente nos manuais de Economia, os
tornam desfigurados, deformados, portanto, irreconhe-
cíveis. Não obstante, cabe se perguntar pelas causas da
desfiguração desses autores. Trata-se de um problema de
forma, visto que os manuais são resumidos? Ou será um
problema de conteúdo, de uma simplificação de autores
que, por natureza, são complexos? É tudo isso e muito
mais! O livro faz uma profunda crítica não só a formação
fragmentada e aligeirada que se tem hoje nos cursos de
Economia, mas, e talvez isso seja mais importante, é que o

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208 • O Estranho Mundo da Economia

estudante recém formado e o professor que o formou, não


conseguem reconhecer os pressupostos da sua formação,
vivem num Mundo Estranho, em que a investigação sobre
as causas dos fenômenos sociais em seu sentido geral não
é mais considerada importante. A Economia se tornou
um saber dogmático. Aqui, entendida no sentido em que
Hegel e Lebrun nos ensinou, em matéria de filosofia, ser
dogmático é não reconhecer os seus pressupostos. Não
por acaso, Teixeira invoca um personagem da cultura pop,
Spock, para exercer o papel de Sócrates.
Spock terá dupla função socrática, negativa e positiva:
primeiro, através do diálogo e “maiêutica spockiana”,
revelará as fraquezas na formação de George Washington
Ferreira da Silva (outra personagem do livro que o nosso
autor utiliza como recurso literário para manifestar a sua
crítica), mostrará que não se trata apenas de um problema
de redução de conteúdo e de formação fragmentada, mas
de uma reprodução do sensus communis (senso comum)
elevado ao status de conceito. Trata-se, na verdade, de uma
profunda crítica à visão de mundo liberal burguesa que se
tornou hegemônica e, por conseguinte, dogmática. Porém,
Spock não para no trabalho do negativo, mobiliza uma
plêiade de autores e saberes; literatura, música popular
brasileira, sociologia, história, pensadores como Gabriel
Garcia Márquez, Caio Prado Junior, Darcy Ribeiro, Adam
Smith, David Ricardo, David Hume, Kant, etc., com o
objetivo de discutir de modo mais pormenorizado a gênese
do pensamento desses autores inserido no seu contexto
social e histórico. Começa a reconstrução e o verdadeiro
convite aos clássicos.
Neste momento do livro há uma mistura entre o per-
sonagem Spock e o narrador onisciente (Teixeira), pois
quem já leu os seus trabalhos anteriores como Trabalho

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Posfácio • 209

e Valor e Marxismo no Século XXI (este em parceria


com Celso Frederico), percebe que há uma retomada dos
temas explorados nessas obras, mas agora, acrescido de
um horizonte novo, de um reconhecimento do papel da
historicidade para a compreensão e crítica desses pensado-
res. Em Trabalho e Valor, Teixeira nos ensina que toda a
discussão que lança as bases da arquitetura conceitual da
Economia Política Clássica se funda na investigação das
causas da produção (Smith) e distribuição (Ricardo) de
riqueza na sociedade. E essas, têm como pano de fundo as
categorias Trabalho e Valor. No Marxismo do Século XXI,
o debate gira em torno de apontar as contradições da teoria
do Valor-Utilidade, expondo os limites de autores como
Marshal, Menger,Walras e Jevons. No Estranho Mundo
da Economia, ele consegue ligar as duas obras; reconstrói
a teoria do Valor-Trabalho (Smith e Ricardo), e apresenta,
alicerçado em Marx, a ruptura provocada pela teoria do
Valor-Utilidade (Marshal, Menger, Jevons, Walras). Ressalta
que não se trata apenas de uma ruptura metodológica, mas
de uma mudança no processo histórico e no horizonte
ideológico da burguesia, que não possibilitava mais uma
investigação crítica dos fenômenos econômicos, sociais e
políticos. Também salienta que nem tudo é identidade no
paradigma subjetivista da teoria do Valor-Utilidade, que
Menger e Jevons, por exemplo, partem de um contexto
individual e filosófico diferentes, resultando em distintas
concepções de Homem. Apesar das diferenças específicas
entre esses pensadores da Economia, o comum, além de
estarem situados no paradigma do Valor-Utilidade, é a
inevitável morte do homem provocada pela unilateralidade
e simplificação dos seus modelos, ou redução do Homem
a um sujeito racional, abstrato e inexistente. Talvez seja
esse o verdadeiro sentido de estranho, um mundo em que

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210 • O Estranho Mundo da Economia

o ser humano é reduzido a uma parte, um mero apêndice,


alienado, resultado de uma simplificação brutal da com-
plexidade das relações sociais. Um mundo pintado pela
economia Neoclássica, em que a ciência econômica entro-
niza a propriedade privada e o mercado, sendo incapaz de
investigar a gênese dessa entronização. No máximo, produzir
ideologias em pele de teorias, tipificando, quantificando
e reduzindo tudo à pressupostos frágeis, pois carentes de
autorreflexão.
Por fim, cabe fazer um alerta ao leitor! O subtítulo do
livro, “Para uma crítica aos manuais de introdução à Eco-
nomia”, não condiz literalmente com a proposta do livro.
O autor destina basicamente a primeira parte do livro, em
especial o livro de Paul Krugman e Robin Wells (2011) à
crítica direta dos manuais de introdução. Não obstante,
o que o Teixeira faz no Estranho Mundo da Economia, é
muito mais importante do que um simples inventário crítico
dos manuais, que o modesto subtítulo deixa a entender. A
partir da sua experiência de anos como professor de Eco-
nomia e de seu profundo conhecimento dos clássicos da
Economia Política Burguesa, filosofia moderna ocidental
e, sobretudo, Marx, faz um verdadeiro convite à crítica
do Mundo Estranhado, mostrando que não há atalhos
quando se trata de ciência. Que não se pode jamais captar
a dimensão de um Keynes, por exemplo, pelos manuais.
Isso é demonstrado não diretamente nos manuais, mas na
reconstrução que faz do pensamento de Keynes, Smith,
Ricardo, dentre outros. É preciso gastar tempo e esforço
com os clássicos, elementos de uma crítica iluminista que
considero ainda em voga. Se formos levar ao pé da letra a
proposta do livro, devemos inclusive desconfiar da rigorosa
reconstrução conceitual que o autor fez e verificarmos nós
mesmos se essa reconstrução é realmente válida, ao invés

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Posfácio • 211

de reproduzirmos em tom papagaial a melodia de uma


nota só; “a economia é uma ciência da escassez”.

Fortaleza, agosto de 2022

Rodrigo Cavalcante de Almeida é professor do Instituto Federal do


Ceará, mestre em história (UECE) e doutorando em filosofia (UFC).
Tese Do conceito de história à totalidade provisória em Marx: limites e
possibilidades do método. Orientador Manfredo Araújo de Oliveira

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Livro 1.indb 6 24/10/2022 09:49:58
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