Migração Forçada e Categorização: Entre A Ampliação Da Proteção e A Exclusão
Migração Forçada e Categorização: Entre A Ampliação Da Proteção e A Exclusão
Migração Forçada e Categorização: Entre A Ampliação Da Proteção e A Exclusão
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo analisar a complexificação do fenômeno
migratório atual e o modo pelo qual o processo de categorização tem a
potencialidade de afetar o acesso a direitos das pessoas migrantes e qual o papel
da academia nesse debate. Tem-se por foco a migração forçada, no cotejo com
o instituto do refúgio. Discute-se a necessidade de ampliação da proteção de
migrantes vulneráveis, no contexto da migração forçada e dos fluxos migratórios
mistos, não elegíveis ao instituto do refúgio através de novas categorias e se esse
procedimento pode servir de instrumento às políticas restritivas conduzidas
por muitos Estados centrais e mesmo periféricos. O método empregado será
predominantemente analítico-descritivo e de revisão bibliográfica.
Palavras-chave: Migração forçada. Refúgio. Fluxos migratórios mistos.
Categorização. Legislações restritivas.
RESUMEN
El objetivo del presente artículo es analizar la complejidad del actual fenómeno
migratorio y la forma como el proceso de categorización tiene el potencial de
afectar el acceso a los derechos de las personas migrantes y cuál es el rol de la
academia en este debate. Se enfatiza en la migración forzada, en comparación
con el instituto de refugio. Se discute la necesidad en la ampliación de la
protección de migrantes vulnerables, en el contexto de migración forzada y
de los flujos migratorios mixtos, no elegibles al instituto de refugio a través de
nuevas categorías, además, si ese procedimiento puede servir de instrumento
a las políticas restrictivas, dirigidas por muchos Estados centrales e incluso
periféricos. La metodología utilizada para este estudio fue un análisis descriptivo
y revisión bibliográfica.
131
Palabras clave: Migración forzada. Refugio. Flujos migratorios mixtos.
Categorización. Legislación restrictiva.
INTRODUÇÃO
Vivemos num contexto que pode ser denominado “globalização da migração”,
que implica na tendência de movimentos migratórios ocorrerem em cada vez
mais países e não apenas em países “tradicionalmente” considerados como “de
imigração” (Castles e Miller, 2014, p. 338).
A afirmação do parágrafo anterior foi confirmada pela pesquisa empírica realizada
em 2015 pelos professores de Oxford Mathias Czaika e Hein de Haas. Se trata de
um amplo estudo a fim de verificar as variações dos padrões migratórios entre
1960 e o ano da publicação. Valendo-se de cálculos estatísticos obtidos de banco
de dados públicos de organismo internacionais, verificaram que as principais
modificações dos padrões migratórios se concentram em três variáveis, quais
sejam, intensidade, diversificação e distância (Czaika e Haas, 2015, p. 290).
As constatações dos autores indicam que houve não só com o aumento
da população migrante em números absolutos, mas também em números
relativos. Também houve aumento na distância percorrida, de modo que os
fluxos migratórios passam a envolver cada vez mais países. Por fim, verificaram
que a migração tem se tornado cada vez menos “bilateral”, passando a abranger
mais países ao mesmo tempo, como etapas desse processo (Czaika e Haas, 2015,
p. 290).
Uma das principais características dessa mobilidade mais global é sua
complexidade, em comparação com os paradigmas clássicos, que tendiam
a ser bilaterais, com fluxos bem definidos e com motivação clara. Segundo
esses paradigmas, seria facilmente possível distinguir entre voluntariedade e
compulsoriedade.
Para ilustrar essa realidade cada vez mais complexa do fenômeno migratório
passou-se a falar, por exemplo, de jornadas fragmentadas, realçando o fato de
que os migrantes nem sempre estão seguros do destino para o qual se movem,
sendo que o local almejado pode ser modificado ao longo do trajeto, inclusive
por circunstâncias alheias à sua vontade. Nesse sentido, a própria motivação
do início da jornada pode variar drasticamente, e por diversas vezes, o que é
característico dos fluxos mistos, abordados mais adiante.
A fragmentariedade da jornada é cada vez mais verificável dado que a migração
contempla distâncias maiores e que os migrantes mais pobres não têm condições
de se deslocar, de uma só vez, para o local inicialmente em mente. A tecnologia
das telecomunicações tem permitido que esses migrantes consigam estabelecer
redes e percorrer jornadas maiores, mas de maneira fragmentada (Collyer, 2010,
p. 276).
O PROBLEMA DA CATEGORIZAÇÃO DA
MIGRAÇÃO FORÇADA NUM CONTEXTO
DE CRESCENTE COMPLEXIFICAÇÃO DO
FENÔMENO MIGRATÓRIO
Seja na academia, seja na elaboração de políticas públicas, a abordagem da
migração tem sido, tradicionalmente, pautada por categorizações binárias
e dicotomias. Collyer e Haas (2012, p. 469-470) observam que as principais
dicotomias utilizadas são:
2 “bring into the purview of the international protection regime those trapped in the
space between ‘refugee’ and ‘migrant’”.
133
Tabela 1: Dicotomias da migração forçada
Critério Categorização
Permanente x temporária
Tempo-espaço
Interna x externa
Imigração x emigração
Local – direção Origem x destino
“Home” x “host”
Legal x ilegal
Perspectiva do Estado
Regular x irregular
Trabalho x estudo x família
Causa
Forçada x voluntária
Fonte: Collyer e Haas, 2012.
135
Por outro lado, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), incorporou,
a partir de 2007 (Estratégia Global de 12 pontos), definitivamente a expressão. A
OIM vem buscando demonstrar que os desafios dos fluxos mistos se adaptam
perfeitamente ao seu mandato, oferecendo uma abordagem compreensiva ao
levar em conta as necessidades específicas dos migrantes. A organização chegou
a afirmar que “o futuro da migração é misto” (98º sessão).
Pode-se inferir que os organismos entenderam por bem deixar a temática dos
fluxos mistos a cargo da OIM, não obstante os pontos de contato, justamente
para evitar possíveis retrocessos no tocante ao sistema do refúgio.
Feito esse breve retrospecto, passemos ao conceito e suas implicações. A OIM
(2011) define os fluxos mistos como
“movimentos migratórios complexos de pessoas, que incluem
refugiados, requerentes de asilo, migrantes econômicos e outros
migrantes, em oposição a movimentos migratórios de pessoas que
consistem inteiramente em uma categoria de migrantes” (tradução
própria)3.
137
sido a principal sua principal voz na academia.
Richmond (1994) propôs que todo fluxo migratório pode ser inserido em
algum lugar de uma linha hipotética (continuum) fincada entre dois extremos
(raramente identificáveis na realidade): de um lado a compulsão absoluta e, de
outro, a liberdade de escolha absoluta. Conforme Van Hear, Brubaker e Bessa,
Richmond:
“reconhece um continuum em uma extremidade da qual os
indivíduos e coletividades são proativos e, na outra, reativos. Sob
certas condições, a decisão de mudar pode ser tomada após a devida
consideração de todas as informações relevantes, racionalmente
calculadas para maximizar a vantagem líquida, incluindo
recompensas materiais e simbólicas. No outro extremo, a decisão
de mudar pode ser tomada em estado de pânico durante uma crise
que deixa poucas alternativas, mas escapar de ameaças intoleráveis”
(Van Hear, Brubaker e Bessa, 2009, p. 3) (tradução própria)5.
5 “recognizes a continuum at one end of which individuals and collectivities are proactive
and at the other reactive. Under certain conditions, the decision to move may be made after
due consideration of all relevant information, rationally calculated to maximize net advantage,
including both material and symbolic rewards. At the other extreme, the decision to move may
be made in a state of panic during a crisis that leaves few alternatives but escape from intolerable
threats”.
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permaneceram no país de origem. E aí surgem outras nuances. Frequentemente
acaba sendo alocado em campos de refugiados em locais isolados, levando-o,
por vezes, a migrar, dentro ou fora do país, em busca de trabalho e renda.
Trata-se dos secondary movements (movimentos secundários), quando
o refugiado deixa o país de asilo. Aqui, mais uma vez, está-se diante das
complexidades dos fluxos mistos, na busca por soluções duradouras, já que
permanecer indefinidamente em um campo de refugiados não é uma solução
aceitável do ponto de vista dos direitos humanos. O refugiado não deseja apenas
segurança, mas perspectiva de vida, e vida digna.
Crawley e Skleparis (2018, p. 53) realizaram pesquisa empírica com migrantes
chegados à Grécia e tiveram conclusões semelhantes. A maior parte era
proveniente da Síria, dos quais 91% mencionaram causas que podem ser
descritas no contexto das migrações forçadas, como violência, ameaça à vida,
perseguição, conflito e demais violações de direitos humanos. Esses relatos
também eram comuns a pessoas oriundas do Afeganistão, do Iraque e do Iêmen.
Os pesquisadores ressaltam que as pesquisas empíricas por eles realizadas
revelam aquilo que já se vem aventando no presente artigo, qual seja, que, ao
analisar os fatores de expulsão, é impossível não verificar o modo pelo qual
fatores políticos e econômicos se unem para moldar as experiências daqueles
que vivem em tempos de guerra (Crawley e Skleparis, 2018, p. 53).
Tais parâmetros de análise e constatações também podem ser aplicadas e
verificadas ao caso do recente fluxo de migrantes venezuelanos, que têm se
deslocados para vários países da América do Sul, principalmente.
Se, de um lado, não é dificultoso afirmar que, de maneira geral, o atual fluxo de
venezuelanos pode ser entendido como migração forçada, por outro lado, as
definições de perseguição estabelecidas na Convenção de 1951 “não abordam
adequadamente a combinação de razões que podem fazer com que pessoas
abandonem um país em crise como Venezuela ou Nicarágua” (Selee e Bolter,
2020, p. 25) (tradução própria) 7.
De fato, apenas uma parcela dos migrantes venezuelanos poderia se encaixar
na premissa clássica do refúgio, que é a perseguição direta, atual ou iminente. A
maioria migra em razão de uma crescente deterioração das condições políticas,
econômicas e sociais (uma afetando diretamente a outra), tornando a vida
praticamente insustentável.
Há uma conjugação de causas estruturais que atuam como fatores de expulsão,
sendo impossível determinar uma causa isolada, a fim de se dizer que a categoria
pertinente é a do migrante econômico ou do migrante forçado, assim como
evidenciado pela mencionada teoria do continuum.
Ademais, como referido nos estudos de Crawley e Skleparis, quanto mais
7 “no abordan adecuadamente la combinación de razones que pueden hacer que las
personas abandonen un país en crisis como Venezuela o Nicaragua”
141
após o aumento das restrições, esse número saltou para 2.900.
No âmbito latino-americano, pode-se citar, ainda, os fluxos migratórios oriundos
de países da América Central, como Honduras e El Salvador, que têm como
fatores de expulsão causas complexas envolvendo violência generalizada por
ação de gangues de narcotraficantes, instabilidade política, falta de perspectivas
econômicas e de sociais. Ganharam destaque nas manchetes internacionais em
2019 as extensas caravanas de migrantes desses países percorrendo grandes
distâncias, na expectativa de chegar aos EUA.
O fato é que, embora tenham provocado grande atenção midiática, tais
caravanas não são algo novo ou isolado na região. Elas têm como antecedentes
as caravanas de mães hondurenhas em busca de filhos migrantes desaparecidos,
que foram ao longo do tempo se estruturando e ganhando certa organização,
com a finalidade de se fazerem ouvir e terem reconhecidas suas demandas por
justiça (Neira e Sanchiz, 2019, p. 2).
Tais migrações se dão em contextos marcados por “diversas formas de violência
social, estatal e criminal, que operam como parte de suas forças implicadas na
produção social do movimento” (Araya, 2019, p. 119) (tradução própria) 8.
Autores especializados destacam que a migração “em massa” ou em caravana
constituem estratégia de mobilidade com a finalidade de desafiar fronteiras e
soberania, de modo a perturbar a conjugação de fatores9 que, a um só tempo,
produzem e controlam a migração, gerando uma força que busca fazer frente a
tais mecanismos (Araya, 2019, p. 128).
Essa estratégia opera como uma complexa “máquina migrante”, sendo resultado
de ações individuais e coletivas geradoras de um aprendizado de grupos
subalternizados consolidado ao longo do tempo, como reação dos mecanismos
e forças que condicionam a migração no contexto centro-americano (Araya,
2019, pp. 129-130).
Contexto esse marcado por uma “insustentabilidade da vida” (Neira, 2019, p.
35), dadas as condições de extrema precariedade desses países, somadas dos
abusos das pandillas – que operam de maneira semelhante, em alguns aspectos,
às milícias no Brasil, sobretudo na região do Rio de Janeiro.
Os estudos mencionados concluíram que também se fazem presentes no
contexto latino-americano as transformações das características migratórias
expostas ao longo do presente trabalho, inclusive a inadequação das categorias
8 “diversas formas de violencia social, estatal y criminal, que operan como parte de las
fuerzas implicadas en la producción social del movimiento”
9 O autor utiliza o conceito de “ensamblajes”, que tem duas acepções: “formações
territoriais, políticas e jurídicas que configuram a globalização” (Sassen) ou “combinações
particulares de práticas técnicas e administrativas” (Deleuze e Guattari, adotada pelo autor no
estudo) formadas por uma heterogeneidade complexa que implicam em funções e formações
sociais e históricas concretas (Araya, 2019, p. 116) (tradução própria).
143
glossário, define migração forçada como
“um movimento migratório em que existe um elemento de
coerção, incluindo ameaças à vida e meios de subsistência, sejam
decorrentes de causas naturais ou provocadas pelo homem
(por exemplo, movimentos de refugiados e pessoas deslocadas
internamente, bem como pessoas deslocadas por desastres naturais
ou ambientais, químicos ou nucleares desastres, fome ou projetos de
desenvolvimento)” (tradução própria) 11.
Perrin, no mesmo sentido, nota que, a partir dos anos 1990 houve um incremento
expressivo da terminologia migratória, reconhecendo que isso se deve a dois
fatores: de um lado reconhece que houve uma inegável complexificação do
fenômeno migratório desde o fim da Guerra Fria, mas, por outro lado, acentua o
interesse daqueles que desejam controlar e restringir a migração, de forma que
as palavras empregadas nem sempre correspondem a seu verdadeiro sentido
jurídico, mas são instrumentalizadas politicamente (Perrin, 2011, p. 4).
O receio de Perrin com a multiplicação de conceitos e categorias assistida
recentemente é que, sob o pretexto de descrever novas realidades, seja usada
em prol da vontade política de identificar, separar, selecionar aqueles que o
Estado deseja receber (Perrin, 2011, p. 9).
13 “forced migration issues have today become part of a western project of global
dominance and that Forced Migration Studies is implicated in it. Its key elements: rights of IDPs,
protection of human rights, smuggling and trafficking of persons, a post-conflict liberal state
have been used by powerful states to justify unacceptable and unlawful intrusions (including
armed humanitarian intervention) into the developing world”.
145
A perspectiva negativa e, portanto, a crítica que Perrin tem do conceito de fluxos
mistos é que, a articulação entre migração voluntária e involuntária, serviria,
a seu ver, justamente para criar instrumentos para separar os migrantes que
precisam de proteção daqueles “meramente” econômicos, o que consistiria em
reagrupar num mesmo grupo indivíduos de características heterogêneas, com
a finalidade de justificar a recusa do direito de entrada no território do Estado.
(Perrin, 2011, p. 15).
Essa tentativa de instrumentalização das categorias viria justamente, e aqui se
aproxima de Chimni, na esteira do alarde dos países centrais contra os “falsos
refugiados” (bogus refugees), aqueles que, na visão desses países, buscariam se
valer indevidamente dos mecanismos protetivos do sistema do refúgio, pois não
podem ser consideradas “verdadeiros” refugiados.
O foco da preocupação de Perrin é sobre a dimensão dos fluxos mistos relativa
à utilização da mesma rota por diferentes tipos de migrantes, de modo que é do
interesse dos Estados distinguir quem é “verdadeiramente refugiado” e quem é
“mero” migrante econômico. Dessa forma, os centros de imigração nesses países
serviriam como centros de triagem. Aquilo que ela denomina de “nommer pour
combatter”, ou seja, nomear diferentes categorias para melhor selecionar.
14 “reflects causes and patterns of forced migration which are much more complex than
in the past; this contrasts with an essentially homogeneous and stereotypical connotation of the
label in the past”.
15 “are fleeing complex root causes in which persecution and socio-economic exclusion
are combined”.
16 “better captures the complexity of contemporary root causes, whilst at the same
time contextualizing refugees within the wider migratory processes of transnational social
transformations”.
17 “in the minds of policy makers and immigration officials it is necessary to fragment and
make clear cut labels and categories of the often complex mix of reasons why people migrate and
migrate between labels”.
18 “most countries in the developed world deploy a variety of labels for ‘temporary
147
A consequência acaba por ser a excepcionalização do instituto como o “mais
privilegiado” entre muitos status inferiores, de modo que requerer o status de
refugiado, segundo Zetter, deixa de ser direito e se torna um “prêmio” (Zetter,
2007, p. 189).
Assim agindo, os Estados acabam por colocar essas novas categorias à serviço
de suas políticas restritivas, de modo que
“o rótulo ‘refugiado’ agora é precedido por novos rótulos na
cadeia de processamento, como ‘solicitante de asilo’ e ‘proteção
temporária’: esses rótulos agem como reservatórios para conter a
entrada e interceptar o acesso ao pedido mais valioso. Uma análise
construída em torno do conceito de rotulagem enfatiza como esse
fracionamento leva o pedido de status de refugiado ainda mais
para trás no processo de migração – tanto metaforicamente quanto
geograficamente – reduzindo a oportunidade de alcançar o status
final, ou pior ainda criminalizando requerentes que tentam evitá-los
barreiras” (Zetter, 2007, p. 189) (tradução própria)19.
protection’, which keep the vast majority of refugee claimants in a transient state, often for
years. Yet there is no basis in international law for temporary protection. The purpose of this
new temporary protection label and the associated instruments is, of course, to enable the
bureaucracies to manage and, I would argue, to decline refugee claims”.
19 “the label ‘refugee’ is now preceded by new labels in the processing chain such as
‘asylum seeker’ and ‘temporary protection’: these labels act as reservoirs to contain entry and
intercept access to the most prized claim. An analysis constructed around the concept of labelling
emphasizes how this fractioning drives the claim to refugee status further back into the process
of migration-both metaphorically and geographically reducing the opportunity to achieve the
ultimate status, or worse still criminalizing claimants who try to avoid these barriers”.
20 “provides a more robust description of the complex of factors which impel forced
migration in the contemporary world”.
149
dos direitos humanos, como um todo, em muitos países.
Por outro lado, não é possível também permitir que o capital, sobretudo em
sua articulação global, avance sobre os demais migrantes, sobretudo os demais
migrantes forçados e vulneráveis, reduzindo-os a “meros” migrantes econômicos
suscetíveis de exploração e exceção de direitos.
A respeito, Bauman concebe como indissociáveis o processo modernizador
(podemos dizer, sustentado pelo capitalismo globalizado), com sua produção de
pessoas “refugadas” e “redundantes”, e os fluxos migratórios atuais. Com efeito,
“tanto as imagens dos migrantes econômicos e as das pessoas em busca de
asilo representam refugos humanos”, sendo que, “enquanto aquelas (pessoas)
em busca de asilo tendem a ser produzidas por sucessivas versões do zelo de
projetar e construir a ordem”, os chamados “migrantes econômicos são um
produto colateral da modernização econômica […] As origens de ambos os tipos
de ‘refugo humanos’ são agora globais” (Bauman, 2004, p. 76).
Graças à própria globalização tecnológica, principalmente dos meios de
comunicação e de transporte, essas pessoas “‘refugadas’, localmente ‘inúteis’,
excessivas ou não empregáveis em razão do progresso econômico; ou localmente
intoleráveis, rejeitadas por agitações, conflitos e dissensões causadas por
transformações sociais/políticas e subsequentes lutas por poder” (Bauman,
2016, p. 9) – são postas em movimento e agora podem bater às portas dos países
centrais.
Prosseguindo na análise, Castles destaca que
“quando se compreende que a migração forçada não é o resultado de
uma série de emergências desconexas, mas sim uma parte integrante
das relações Norte-Sul, fica evidente a necessidade de teorizar a
migração forçada de maneira vinculada à migração econômica.
Elas estão intimamente relacionadas (e de fato muitas vezes
indistinguíveis) às formas de expressão de desigualdades globais
e crises sociais, que cresceram em volume e importância desde a
superação da ordem mundial bipolar [...] Isso também resultou
na indefinição da distinção entre migração forçada e migração
econômica. Economias fracassadas e condições precárias de direitos
humanos muitas vezes caminham juntas, por isso migrantes e
requerentes de asilo têm múltiplas razões para mobilidade, tornando
impossível separar completamente as motivações econômicas das
de direitos humanos” (Castles, 2003, p. 17) (tradução própria)21.
151
O instituto da acolhida humanitária passou a ser previsto legalmente com o
advento da lei de migração brasileira n. 13.445/2017. Ele consta como princípio
e garantia da política migratória brasileira (art. 3º, VI) e foi contemplado em
duas modalidades: como visto temporário (art. 14, I, alínea “c” e § 3º) e como
autorização de residência (art. 30, I, alínea “c”).
Como critério de elegibilidade, estabeleceu-se que pode ser concedida ao
nacional de qualquer país ou ao apátrida em situação “de grave ou iminente
instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande
proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos
ou de direito internacional humanitário” (art. 14, § 3º da lei). Foi deixada aberta
a possibilidade de criação de outras hipóteses por meio do regulamento que
disciplinará a aplicação da lei.
Nota-se que a abrangência é mais extensa que aquela prevista na lei brasileira
de refúgio (lei nº 9.474/97), que prevê a concessão nas seguintes hipóteses:
fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade
e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; indivíduo que, não
tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência
habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias
descritas no inciso I; a grave e generalizada violação de direitos humanos, é
obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Observa-se, ainda, que a terceira previsão de refúgio prevista na lei nº 9.474/97
é uma aplicação direta dos termos da Declaração de Cartagena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perceber que a problemática da migração na atualidade se insere num contexto
mais amplo, inclusive de jogo de interesses políticos e econômicos, é essencial
para a honestidade científica e acadêmica, pois a consciência crítica é um
aspecto chave da pesquisa científica social, devendo ficar claro o modo pelo
qual “usamos dados construídos por instituições, como avaliamos as afirmações
de grupo feitas por comunidades sobre si mesmas e outras, mas também como
formamos e manipulamos nossas próprias categorias” (Polzer, 2008, p. 477)
(tradução própria) 22.
É inegável, conforme se verificou, que tem havido uma crescente complexificação
da migração, ocasionando situações em que é impossível separar motivações
econômicas da busca de proteção. É preciso trazer à luz esses migrantes
vulneráveis que, embora muitas vezes não classificáveis como refugiados,
necessitam de acolhimento e, sobretudo, ter garantido o tratamento digno
22 “we use data constructed by institutions, how we evaluate group claims made by
communities about themselves and others, but also how we form and manipulate our own
constructed categories”.
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