Migração Forçada e Categorização: Entre A Ampliação Da Proteção e A Exclusão

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CAPELARI, Anselmo. (2021).

“Migração forçada e categorização: entre a ampliação da proteção


e a exclusão” PERIPLOS, Revista de Investigación sobre Migraciones. Volumen 5 - Número 1, pp.
131-156.

Artículo recibido el 24 de noviembre de 2020 y aceptado el 19 de enero de 2021.

Migração forçada e categorização: Entre a


ampliação da proteção e a exclusão
Migración forzada y categorización: Entre la
ampliación de la protección y la exclusión

Caio Alexandre Capelari Anselmo1

RESUMO
O presente artigo tem por objetivo analisar a complexificação do fenômeno
migratório atual e o modo pelo qual o processo de categorização tem a
potencialidade de afetar o acesso a direitos das pessoas migrantes e qual o papel
da academia nesse debate. Tem-se por foco a migração forçada, no cotejo com
o instituto do refúgio. Discute-se a necessidade de ampliação da proteção de
migrantes vulneráveis, no contexto da migração forçada e dos fluxos migratórios
mistos, não elegíveis ao instituto do refúgio através de novas categorias e se esse
procedimento pode servir de instrumento às políticas restritivas conduzidas
por muitos Estados centrais e mesmo periféricos. O método empregado será
predominantemente analítico-descritivo e de revisão bibliográfica.
Palavras-chave: Migração forçada. Refúgio. Fluxos migratórios mistos.
Categorização. Legislações restritivas.

RESUMEN
El objetivo del presente artículo es analizar la complejidad del actual fenómeno
migratorio y la forma como el proceso de categorización tiene el potencial de
afectar el acceso a los derechos de las personas migrantes y cuál es el rol de la
academia en este debate. Se enfatiza en la migración forzada, en comparación
con el instituto de refugio. Se discute la necesidad en la ampliación de la
protección de migrantes vulnerables, en el contexto de migración forzada y
de los flujos migratorios mixtos, no elegibles al instituto de refugio a través de
nuevas categorías, además, si ese procedimiento puede servir de instrumento
a las políticas restrictivas, dirigidas por muchos Estados centrales e incluso
periféricos. La metodología utilizada para este estudio fue un análisis descriptivo
y revisión bibliográfica.

1 Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São


Paulo (USP). Pesquisador associado do Núcleo de Estudos de Direito Internacional de Ribeirão
Preto (NEDIRP), do qual também é diretor do departamento editorial. E-mail: caiocapelari@
gmail.com

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Palabras clave: Migración forzada. Refugio. Flujos migratorios mixtos.
Categorización. Legislación restrictiva.

INTRODUÇÃO
Vivemos num contexto que pode ser denominado “globalização da migração”,
que implica na tendência de movimentos migratórios ocorrerem em cada vez
mais países e não apenas em países “tradicionalmente” considerados como “de
imigração” (Castles e Miller, 2014, p. 338).
A afirmação do parágrafo anterior foi confirmada pela pesquisa empírica realizada
em 2015 pelos professores de Oxford Mathias Czaika e Hein de Haas. Se trata de
um amplo estudo a fim de verificar as variações dos padrões migratórios entre
1960 e o ano da publicação. Valendo-se de cálculos estatísticos obtidos de banco
de dados públicos de organismo internacionais, verificaram que as principais
modificações dos padrões migratórios se concentram em três variáveis, quais
sejam, intensidade, diversificação e distância (Czaika e Haas, 2015, p. 290).
As constatações dos autores indicam que houve não só com o aumento
da população migrante em números absolutos, mas também em números
relativos. Também houve aumento na distância percorrida, de modo que os
fluxos migratórios passam a envolver cada vez mais países. Por fim, verificaram
que a migração tem se tornado cada vez menos “bilateral”, passando a abranger
mais países ao mesmo tempo, como etapas desse processo (Czaika e Haas, 2015,
p. 290).
Uma das principais características dessa mobilidade mais global é sua
complexidade, em comparação com os paradigmas clássicos, que tendiam
a ser bilaterais, com fluxos bem definidos e com motivação clara. Segundo
esses paradigmas, seria facilmente possível distinguir entre voluntariedade e
compulsoriedade.
Para ilustrar essa realidade cada vez mais complexa do fenômeno migratório
passou-se a falar, por exemplo, de jornadas fragmentadas, realçando o fato de
que os migrantes nem sempre estão seguros do destino para o qual se movem,
sendo que o local almejado pode ser modificado ao longo do trajeto, inclusive
por circunstâncias alheias à sua vontade. Nesse sentido, a própria motivação
do início da jornada pode variar drasticamente, e por diversas vezes, o que é
característico dos fluxos mistos, abordados mais adiante.
A fragmentariedade da jornada é cada vez mais verificável dado que a migração
contempla distâncias maiores e que os migrantes mais pobres não têm condições
de se deslocar, de uma só vez, para o local inicialmente em mente. A tecnologia
das telecomunicações tem permitido que esses migrantes consigam estabelecer
redes e percorrer jornadas maiores, mas de maneira fragmentada (Collyer, 2010,
p. 276).

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Um dos principais esforços tem sido a busca em superar as clássicas dicotomias
comumente atribuídas à temática migratória. Crawley e Skeparis (2018, p. 51)
citam, por exemplo, “people in distress (Goodwin-Gill 1986), distress migrants
(Collinson 1999) e survival migrants (Betts 2013)”, com a finalidade de “trazer
ao centro da proteção internacional aqueles indivíduos entre as categorias de
migrantes e refugiados” (tradução própria)2.
Percebe-se que, nesse contexto de complexificação da migração, e não apenas
de crescimento quantitativo, a academia passou a chamar a atenção para a
dificuldade em se verificar até que ponto determinada migração é voluntária ou
forçada, questionando os limites das categorias dicotômicas.
Sob esse pano de fundo, este artigo tem por objetivo geral discutir as nuances
da migração forçada, no cotejo com o instituto do refúgio. Nesse ponto,
busca-se contextualizar a discussão acadêmica acerca da pertinência da
dicotomia migração voluntária versus migração forçada. Essa discussão implica
necessariamente na abordagem das categorizações envolvendo a temática
migratória. As chaves de compreensão propostas são os conceitos de fluxos
migratórios mistos e de continuum.
Como objetivos específicos, discute-se se o sistema do refúgio faria parte de um
sistema mais amplo, compreendido pela migração forçada. Ademais, busca-se
discutir o reconhecimento de demais migrantes (enquanto categoria migratória)
em situação de extrema vulnerabilidade para além daqueles elegíveis ao
instituto do refúgio. Busca-se discutir, também, a conveniência da criação de
sistemas de proteção complementares ao refúgio, bem como se isso pode ter o
efeito colateral de enfraquecer o sistema do refúgio. Por fim, busca-se discutir o
papel da academia na proposição teórica de categorias migratórias, tendo em
vista suas implicações práticas e diante da possibilidade de instrumentalização
pelos mecanismos de controle dos Estados.

O PROBLEMA DA CATEGORIZAÇÃO DA
MIGRAÇÃO FORÇADA NUM CONTEXTO
DE CRESCENTE COMPLEXIFICAÇÃO DO
FENÔMENO MIGRATÓRIO
Seja na academia, seja na elaboração de políticas públicas, a abordagem da
migração tem sido, tradicionalmente, pautada por categorizações binárias
e dicotomias. Collyer e Haas (2012, p. 469-470) observam que as principais
dicotomias utilizadas são:

2 “bring into the purview of the international protection regime those trapped in the
space between ‘refugee’ and ‘migrant’”.

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Tabela 1: Dicotomias da migração forçada

Critério Categorização
Permanente x temporária
Tempo-espaço
Interna x externa
Imigração x emigração
Local – direção Origem x destino
“Home” x “host”
Legal x ilegal
Perspectiva do Estado
Regular x irregular
Trabalho x estudo x família
Causa
Forçada x voluntária
Fonte: Collyer e Haas, 2012.

Para a discussão aqui travada, interessa, principalmente, a dicotomia clássica


de migração voluntária versus forçada. Sob a perspectiva tradicional, a primeira
seria fortemente marcada por “fatores econômicos”, dispondo o migrante de
liberdade de escolha, dado que se movimenta para melhorar suas condições de
vida e as de sua família. Já a segunda seria marcada pela ausência de liberdade
de escolha, tendo como paradigma a figura do refugiado que deixa tudo para
trás, pois necessita salvaguardar, sobretudo, sua integridade física.
Nessa ótica tradicional, a migração forçada nada teria a ver com fatores
econômicos, ocorrendo independentemente deles; quando muito, a influência
seria secundária. O contrário valeria para a migração econômica, em que não faria
muito sentido falar sobre expulsão compulsória. Dessa forma, essas categorias
seriam mutuamente exclusivas. É dizer, uma pessoa migrante necessariamente
é considerada ou forçada ou econômica.
Todavia, transformações sociais complexas têm gerado formas mais complexas
de expulsão e de perseguição ao redor do mundo (Zetter, 2007, p. 188).
É justamente a partir da constatação de que há novas nuances a serem
consideradas, não só sob a perspectiva puramente acadêmica mas na realidade
dos migrantes, que pesquisadores e aqueles que lidam diretamente com a
assistência às pessoas migrantes começaram a ressaltar a crescente dificuldade
em estabelecer uma divisão nítida entre migrantes voluntários/as e forçados/as
(Vullnetari, 2012, p. 4).
Tem crescido a percepção de que essa visão dicotômica da migração não reflete
a realidade dos fluxos migratórios no “mundo real”. Isso porque pessoas com
diferentes motivações viajam juntas (Zetter, 2015; Richmond, 1993; Malkki,
1995), bem como porque um indivíduo pode ser encaixado em mais de uma
categoria, por diferentes critérios (Collyer e Haas, 2012), visto que, ao longo do
fluxo, o indivíduo pode transitar entre as categorias, dependendo do momento

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levado em consideração.
A seguir, são propostas as abordagens dos fluxos migratórios mistos e do continuum
como chaves de compreensão, de modo a melhor captar e compreender o que
se quer dizer por “complexidades”, para além das dicotomias.

O conceito de fluxos migratórios mistos


como primeira chave de compreensão
Por volta do início da década de 2000, ganharam corpo os conceitos de
“migration-asylum nexus” e “fluxos migratórios” mistos para sublinhar que
haveria elementos em comum entre as situações tradicionalmente denominada
como migração voluntária e migração forçada.
A expressão começou a aparecer nas consultas realizadas pelo Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) por ocasião dos 50 anos da
Convenção de 1951. Contexto em que o organismo verificou que havia uma
espécie de crise do sistema internacional de proteção dos refugiados, consistente
na crescente percepção por parte dos países centrais de que o sistema do refúgio
estaria sendo indevidamente “abusado” pelos “falsos refugiados”, ou seja,
por migrantes que supostamente buscavam brechas na legislação (Van Hear,
Burbaker e Bessa, 2009, p. 7).
O ACNUR adotou a expressão na Agenda de Proteção de 2002, ressaltando
a necessidade proteger o instituto do refúgio num contexto mais amplo. Essa
expressão também será mencionada na Convention Plus, bem como em diversas
publicações entre 2002 e 2007, como “Addressing Mixed Migratory Movements:
A 10-Point Plan of Action” (2006). Isso significa que o organismo reconheceu
que o sistema do refúgio, embora com suas especificidades (que devem ser
preservadas), não é uma ilha, mas se insere num contexto mais amplo.
Não obstante, a partir de 2008, o ACNUR começou a se distanciar da expressão,
considerando que, não obstante reconheça a importância do conceito dos fluxos
mistos para compreender o fenômeno migratório num contexto mais amplo, o
discurso associado ao nexo “Migração-Refúgio” poderia comprometer o núcleo
de seu mandato (Van Hear, Burbaker e Bessa, 2009, p. 7).
Isso pode ser explicado pelo fato de que o ACNUR, sem negar a validade e
importância do conceito, decidiu salvaguardar a essência de seu mandato, a fim
de garantir que não houvesse retrocesso. Sobretudo face às críticas de que a
expressão revelava justamente aquilo que os Estados centrais alardeavam, qual
seja, que o sistema do refúgio estava sendo “abusado” pelos “falsos refugiados”,
aqueles que se “aproveitavam” indevidamente de sua proteção. Além disso, o
organismo recebia críticas de outras organizações humanitárias, que afirmavam
que a incorporação da expressão era, justamente, reflexo de lobby dos países
centrais a fim de enfraquecer ou flexibilizar o refúgio.

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Por outro lado, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), incorporou,
a partir de 2007 (Estratégia Global de 12 pontos), definitivamente a expressão. A
OIM vem buscando demonstrar que os desafios dos fluxos mistos se adaptam
perfeitamente ao seu mandato, oferecendo uma abordagem compreensiva ao
levar em conta as necessidades específicas dos migrantes. A organização chegou
a afirmar que “o futuro da migração é misto” (98º sessão).
Pode-se inferir que os organismos entenderam por bem deixar a temática dos
fluxos mistos a cargo da OIM, não obstante os pontos de contato, justamente
para evitar possíveis retrocessos no tocante ao sistema do refúgio.
Feito esse breve retrospecto, passemos ao conceito e suas implicações. A OIM
(2011) define os fluxos mistos como
“movimentos migratórios complexos de pessoas, que incluem
refugiados, requerentes de asilo, migrantes econômicos e outros
migrantes, em oposição a movimentos migratórios de pessoas que
consistem inteiramente em uma categoria de migrantes” (tradução
própria)3.

Aprofundando o conceito, a primeira questão se refere ao que vem a ser,


propriamente misto nos fluxos migratórios, a revelar a complexidade a que tanto
se refere.
Mista pode ser a motivação inicial; a motivação inicial (mista ou não) pode
mudar drasticamente ao longo da jornada ou na chegada; misto pode ser o
fluxo quando diferentes categorias de migrantes, movimentando-se lado a lado,
frequentemente irregularizada, por meio de atravessadores, submetendo-se a
grandes riscos de violência, trabalhos forçados, exploração física, psicológica
e sexual. Ademais, as pessoas migrantes, nas jornadas cada vez mais longas,
tendem a viver em diferentes comunidades mistas ao longo do percurso.
Assim, sinteticamente, pode-se dizer que são mistas (1) as motivações e (2) o
contemporâneo fluxo das pessoas migrantes tomado em si mesmo. Quanto ao
primeiro aspecto, Van Hear e Castles (Van Hear, Burbaker e Bessa, 2009, pp. 11-
12), observam que o caráter misto se manifesta em 7 aspectos.
Em primeiro lugar, verificam que tanto a migração forçada quanto a voluntária
frequentemente decorrem dos mesmos fatores, especialmente da estreita
relação entre “subdesenvolvimento, empobrecimento, deslocamento
econômico, estados fracos, abuso dos direitos humanos e conflito” (Van Hear,
Burbaker e Bessa, 2009, pp. 11-12) (tradução própria) 4.

3 “complex migratory population movements that include refugees, asylum-seekers,


economic migrants and other migrants, as opposed to migratory population movements that
consist entirely of one category of migrants”. Recuperado de https://www.iom.int/key-migration-
terms#Forced-migration, acesso em 28.12.2020.
4 “especially the linkages between underdevelopment, impoverishment, economic
dislocation, weak states, human rights abuse and conflict”.

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Em segundo lugar, os autores observam que essa estreita relação entre os fatores
de expulsão pode se manifestar em “motivações mistas” de muitos migrantes,
de modo que fica difícil separar coerção de liberdade.
Em terceiro lugar, é possível verificar que as motivações podem se modificar no
curso da migração.
Em quarto lugar, pode-se notar os vínculos estreitos entre refugiados e migrantes
econômicos em alguns países de trânsito, onde se reúnem populações mistas de
migrantes, dado que frequentemente sofrem privações semelhantes.
Em quinto lugar, os autores observam que, à medida que a migração regular se
torna mais restrita, tanto os migrantes “voluntários” quanto os “forçados” são
levados a recorrer a atravessadores para cruzar fronteiras.
Em sexto lugar, notam que refugiados e trabalhadores migrantes podem ter
experiências semelhantes nos países de acolhimento, visto que as alegações de
que os requerentes de asilo seriam, na verdade, migrantes econômicos levam a
um clima de suspeita e exclusão que acaba por atingir a todos.
Por fim, em sétimo lugar, notam que a experiência de retorno ou repatriamento
pode ser semelhante.
A principal dificuldade surge exatamente no contexto no fluxo misto tomado em
si mesmo (2), quando as diferentes categorias de migrantes se encontram no
mesmo fluxo (Van Hear, Burbaker e Bessa, 2009, p. 12).
Para explicar esse segundo aspecto, propõe-se a teoria do continuum. A teoria,
ademais, ao propor a dialética entre agency (capacidade de escolha e de ação)
e structure (condicionantes estruturais, contexto socioeconômico, etc.), permite
aprofundar a discussão acerca das nuances da compulsão.

A teoria do continuum como segunda chave


de compreensão
Em razão do quanto discutido até aqui, verifica-se que a principal dificuldade
diz respeito ao problema da categorização da migração forçada, sobretudo
na dicotomia migrantes forçados (tendo como cerne a figura do refugiado) e
migrantes voluntários (na figura do migrante econômico) e as consequências
disso advindas, ao se analisar o fluxo misto por si próprio.
Enquanto a teoria dos fluxos migratórios mistos permite reconhecer as nuances
contemporâneas do fenômeno migratório atual, a teoria do continuum oferece
instrumentos para aprofundar essa análise especificamente da migração
formada. São, assim, complementares.
Essa abordagem busca explicar o fluxo migratório para além da dicotomia
“voluntário” e “involuntário”. A proposta teórica foi feita inicialmente por
Richmond e, posteriormente, encampada e desenvolvida por Van Hear, que tem

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sido a principal sua principal voz na academia.
Richmond (1994) propôs que todo fluxo migratório pode ser inserido em
algum lugar de uma linha hipotética (continuum) fincada entre dois extremos
(raramente identificáveis na realidade): de um lado a compulsão absoluta e, de
outro, a liberdade de escolha absoluta. Conforme Van Hear, Brubaker e Bessa,
Richmond:
“reconhece um continuum em uma extremidade da qual os
indivíduos e coletividades são proativos e, na outra, reativos. Sob
certas condições, a decisão de mudar pode ser tomada após a devida
consideração de todas as informações relevantes, racionalmente
calculadas para maximizar a vantagem líquida, incluindo
recompensas materiais e simbólicas. No outro extremo, a decisão
de mudar pode ser tomada em estado de pânico durante uma crise
que deixa poucas alternativas, mas escapar de ameaças intoleráveis”
(Van Hear, Brubaker e Bessa, 2009, p. 3) (tradução própria)5.

Não seria possível, assim, encaixar a pessoa migrante em duas categorias


mutuamente exclusivas, já que, entre esses dois extremos é possível identificar
uma combinação de fatores. De fato, de acordo com os autores anteriores,
Richmond acentua que uma grande proporção de pessoas que cruzam as
fronteiras combina características, reagindo a pressões socioeconômicas e
políticas sobre as quais têm pouco controle (Van Hear, Brubaker e Bessa, 2009,
pp. 3-4).
Van Hear, Brubaker e Bessa (2009, pp. 2-3) sugere, a partir da teoria do continuum,
fracionar a jornada migratória em cinco elementos, sendo que em cada um deles
haverá grau maior ou menor de liberdade e coerção: (1) movimento de saída
(outward movement), que tem por corolário o (2) movimento de entrada (inward
movement); eventualmente, quando possível, o (3) movimento de retorno (return
movement) ou (4) movimento de saída (onward movement) para um terceiro país,
que necessariamente envolverá outro movimento de entrada; há, ainda, um (5)
não-movimento (non-movement ou staying put), já que para cada migrante que
consegue se deslocar frequentemente há parte da família que permanece.
Fracionar as etapas do movimento permite verificar os fatores incidentes em
cada uma delas, visto que podem variar drasticamente ao longo do fluxo.
Pode, por exemplo, acontecer que determinado migrante saia de seu país
buscando melhores condições de vida, porém no curso da migração, sofra
violência, perseguição, passe por regiões de conflito armado. Nesse caso, o

5 “recognizes a continuum at one end of which individuals and collectivities are proactive
and at the other reactive. Under certain conditions, the decision to move may be made after
due consideration of all relevant information, rationally calculated to maximize net advantage,
including both material and symbolic rewards. At the other extreme, the decision to move may
be made in a state of panic during a crisis that leaves few alternatives but escape from intolerable
threats”.

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movimento de saída seria marcado por uma maior liberdade de escolha, já o
movimento de entrada no país de asilo, seria marcado por forte coerção e
limitações à liberdade de escolha.
Van Hear sugere que é a relação dialética entre agency (capacidade de escolha
e de ação) e structure (condicionantes estruturais, contexto socioeconômico,
etc.), em cada uma dessas fases, que vai determinar o grau de liberdade de
escolha a ser situado no continuum. Dessa forma, nenhuma migração é isenta de
condicionamentos econômicos e de fatores de coerção, havendo sempre uma
relação dialética entre eles.
A conexão entre a perspectiva do continuum e aquela segundo a qual a jornada
é mista (havendo diferentes motivações e condicionantes em seu curso) ajuda a
explicar porque “em algum ponto, então, a migração forçada pode transmutar
em migração econômica ou de subsistência e é esse reconhecimento que forma
a base para o discurso sobre ‘migração mista’” (Van Hear, Burbaker e Bessa,
2009, p. 5) (tradução própria) 6.

Exemplos fáticos de desafios da categorização


Antes de prosseguir com a análise, convém citar alguns exemplos, obtidos a partir
de pesquisas empíricas de outros pesquisadores, que ilustram as complexidades
e, por isso mesmo, as dificuldades em caracterizar determinados migrantes
como econômicos ou forçados, no contexto de fluxos migratórios mistos.
Van Hear, Burbaker e Bessa (2009, p. 13) citam o exemplo dos afegãos vivendo no
Irã e no Paquistão. Por um lado, quando tomados individualmente, os migrantes
têm características marcantes da “migração laboral”, inclusive porque se valem
de antigas rotas migratórias no contexto do Império Britânico. Não obstante, esse
fluxo não pode ser entendido sem considerar as instabilidades no Afeganistão
desde a década de 1970 e após os conflitos da chamada “guerra ao terror”.
Os autores citam, ainda, o migrante que, em razão do aumento dos custos da
migração decorrentes das crescentes restrições nos países centrais, desloca-
se para países vizinhos em busca de trabalho. Há casos em que ele é o único
responsável pelo sustento de todo o grupo familiar que ficou no país de origem.
Nesses casos, pode-se dizer que o objetivo da migração é, não diretamente sua
própria segurança, mas a de toda a família, (Van Hear, Burbaker e Bessa, 2009,
p. 15). Note-se que, nesse caso, segurança pode ser tomada num contexto mais
amplo do que ameaça a vida por um ato de violência.
Van Hear, Burbaker e Bessa (2009, p. 17) notam, ainda, que necessariamente
o refugiado se tornará, em alguma medida, um “migrante laboral”, sem que
perca, obviamente, a condição de refugiado. De fato, após conseguir segurança
no país de recepção, o refugiado necessita conseguir um meio de prover sua
subsistência e inclusive, o que não é incomum, fazendo remessa a familiares que
6 “at some point then, forced migration may transmute into economic or livelihood
migration and it is this recognition that forms the basis for the discourse on ‘mixed migration’”.

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permaneceram no país de origem. E aí surgem outras nuances. Frequentemente
acaba sendo alocado em campos de refugiados em locais isolados, levando-o,
por vezes, a migrar, dentro ou fora do país, em busca de trabalho e renda.
Trata-se dos secondary movements (movimentos secundários), quando
o refugiado deixa o país de asilo. Aqui, mais uma vez, está-se diante das
complexidades dos fluxos mistos, na busca por soluções duradouras, já que
permanecer indefinidamente em um campo de refugiados não é uma solução
aceitável do ponto de vista dos direitos humanos. O refugiado não deseja apenas
segurança, mas perspectiva de vida, e vida digna.
Crawley e Skleparis (2018, p. 53) realizaram pesquisa empírica com migrantes
chegados à Grécia e tiveram conclusões semelhantes. A maior parte era
proveniente da Síria, dos quais 91% mencionaram causas que podem ser
descritas no contexto das migrações forçadas, como violência, ameaça à vida,
perseguição, conflito e demais violações de direitos humanos. Esses relatos
também eram comuns a pessoas oriundas do Afeganistão, do Iraque e do Iêmen.
Os pesquisadores ressaltam que as pesquisas empíricas por eles realizadas
revelam aquilo que já se vem aventando no presente artigo, qual seja, que, ao
analisar os fatores de expulsão, é impossível não verificar o modo pelo qual
fatores políticos e econômicos se unem para moldar as experiências daqueles
que vivem em tempos de guerra (Crawley e Skleparis, 2018, p. 53).
Tais parâmetros de análise e constatações também podem ser aplicadas e
verificadas ao caso do recente fluxo de migrantes venezuelanos, que têm se
deslocados para vários países da América do Sul, principalmente.
Se, de um lado, não é dificultoso afirmar que, de maneira geral, o atual fluxo de
venezuelanos pode ser entendido como migração forçada, por outro lado, as
definições de perseguição estabelecidas na Convenção de 1951 “não abordam
adequadamente a combinação de razões que podem fazer com que pessoas
abandonem um país em crise como Venezuela ou Nicarágua” (Selee e Bolter,
2020, p. 25) (tradução própria) 7.
De fato, apenas uma parcela dos migrantes venezuelanos poderia se encaixar
na premissa clássica do refúgio, que é a perseguição direta, atual ou iminente. A
maioria migra em razão de uma crescente deterioração das condições políticas,
econômicas e sociais (uma afetando diretamente a outra), tornando a vida
praticamente insustentável.
Há uma conjugação de causas estruturais que atuam como fatores de expulsão,
sendo impossível determinar uma causa isolada, a fim de se dizer que a categoria
pertinente é a do migrante econômico ou do migrante forçado, assim como
evidenciado pela mencionada teoria do continuum.
Ademais, como referido nos estudos de Crawley e Skleparis, quanto mais
7 “no abordan adecuadamente la combinación de razones que pueden hacer que las
personas abandonen un país en crisis como Venezuela o Nicaragua”

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o conflito (ou, no caso venezuelano, instabilidades estruturais) perdura no
tempo, mais difícil fica separar os fatores econômicos dos fatores tradicionais
de compulsoriedade, inclusive porque o conflito impossibilita que as famílias se
dediquem às suas atividades econômicas (Crawley e Skleparis, 2018, p. 53).
Essa complexidade desafia os paradigmas do sistema de migração, impondo a
questão que tem sido posta no presente artigo: se as pessoas que migram a partir
de fatores complexos de expulsão, que tornam a vida insustentável, devem ser
consideradas migrantes forçados e receber proteção internacional de maneira
similar à conferida às pessoas refugiadas.
No âmbito latino-americano essa pergunta já foi respondida por meio da
Declaração de Cartagena de 1984, em que foi aceita uma definição mais
ampla de refúgio, compreendendo outros fatores de expulsão, como violência
generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação massiva de
direitos humanos e grave perturbação da ordem pública (Selee e Bolter, 2020,
p. 29).
Todavia, frente à migração venezuelana, poucos países adotaram esse
entendimento, podendo-se citar apenas o México e o Brasil (Selee e Bolter,
2020, p. 30). No caso brasileiro, a adoção do conceito ampliado começou apenas
formalmente em junho de 2019; algum tempo depois, passou a ser presumida a
condição de refugiado à pessoa solicitante de asilo venezuelana que se encontre
no Brasil. A finalidade foi facilitar sua concessão, desafogando a lista de espera.
Dessa forma, entre junho e dezembro de 2019, foi concedido refúgio a 26 mil
pessoas venezuelanas, contra apenas 5 em todo ano de 2018 (Selee e Bolter,
2020, p. 30).
Ainda a respeito do Brasil, a solicitação de refúgio acabou por se converter
na principal opção de regularização temporária para os venezuelanos no país
(Selee e Bolter, 2020, p. 2). Isso porque é a opção menos burocrática e, enquanto
aguarda-se a análise do pedido, o que pode levar bastante tempo, o solicitante
goza de status regular, recebendo autorização para trabalhar e um documento
de identificação que garante o direito de abrir conta em banco e exercer atos
ordinários da vida civil.
Situação que muitos venezuelanos não têm encontrado em outros países da
região. Após um período inicial de poucas exigências para o ingresso, certos
países passaram a aumentar as restrições sob o argumento de garantir uma
maior gestão e segurança da migração. Chile, Equador e Trinidade e Tobago, por
exemplo, passaram a exigir vistos prévios ao ingresso; Equador e Peru passaram
a exigir a apresentação de passaporte (Selee e Bolter, 2020, p. 9).
O efeito concreto foi, ao contrário, o aumento da insegurança na migração,
fazendo com que as pessoas migrantes lançassem mão de atravessadores, o
que os expõe a riscos de abusos e violações. Selee e Bolter (2020, p. 13) citam
o exemplo do Chile: enquanto que em 2018 foram registrados apenas 101
migrantes venezuelanos ingressando de forma irregularizada no país, em 2019,

141
após o aumento das restrições, esse número saltou para 2.900.
No âmbito latino-americano, pode-se citar, ainda, os fluxos migratórios oriundos
de países da América Central, como Honduras e El Salvador, que têm como
fatores de expulsão causas complexas envolvendo violência generalizada por
ação de gangues de narcotraficantes, instabilidade política, falta de perspectivas
econômicas e de sociais. Ganharam destaque nas manchetes internacionais em
2019 as extensas caravanas de migrantes desses países percorrendo grandes
distâncias, na expectativa de chegar aos EUA.
O fato é que, embora tenham provocado grande atenção midiática, tais
caravanas não são algo novo ou isolado na região. Elas têm como antecedentes
as caravanas de mães hondurenhas em busca de filhos migrantes desaparecidos,
que foram ao longo do tempo se estruturando e ganhando certa organização,
com a finalidade de se fazerem ouvir e terem reconhecidas suas demandas por
justiça (Neira e Sanchiz, 2019, p. 2).
Tais migrações se dão em contextos marcados por “diversas formas de violência
social, estatal e criminal, que operam como parte de suas forças implicadas na
produção social do movimento” (Araya, 2019, p. 119) (tradução própria) 8.
Autores especializados destacam que a migração “em massa” ou em caravana
constituem estratégia de mobilidade com a finalidade de desafiar fronteiras e
soberania, de modo a perturbar a conjugação de fatores9 que, a um só tempo,
produzem e controlam a migração, gerando uma força que busca fazer frente a
tais mecanismos (Araya, 2019, p. 128).
Essa estratégia opera como uma complexa “máquina migrante”, sendo resultado
de ações individuais e coletivas geradoras de um aprendizado de grupos
subalternizados consolidado ao longo do tempo, como reação dos mecanismos
e forças que condicionam a migração no contexto centro-americano (Araya,
2019, pp. 129-130).
Contexto esse marcado por uma “insustentabilidade da vida” (Neira, 2019, p.
35), dadas as condições de extrema precariedade desses países, somadas dos
abusos das pandillas – que operam de maneira semelhante, em alguns aspectos,
às milícias no Brasil, sobretudo na região do Rio de Janeiro.
Os estudos mencionados concluíram que também se fazem presentes no
contexto latino-americano as transformações das características migratórias
expostas ao longo do presente trabalho, inclusive a inadequação das categorias

8 “diversas formas de violencia social, estatal y criminal, que operan como parte de las
fuerzas implicadas en la producción social del movimiento”
9 O autor utiliza o conceito de “ensamblajes”, que tem duas acepções: “formações
territoriais, políticas e jurídicas que configuram a globalização” (Sassen) ou “combinações
particulares de práticas técnicas e administrativas” (Deleuze e Guattari, adotada pelo autor no
estudo) formadas por uma heterogeneidade complexa que implicam em funções e formações
sociais e históricas concretas (Araya, 2019, p. 116) (tradução própria).

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América Latina: Nuevos flujos
142 migratorios, nuevas territorialidades, nuevas restricciones | Vol. 5 - Nᵒ1 - 2021
tradicionais:
“encontramo-nos em uma conjuntura nova e complexa em relação
à migração, a mobilidade transnacional e os efeitos e funções
das fronteiras. Ante essa situação, mostra-se insuficiente o modo
convencional de entender a população em movimento a partir dos
conceitos de ‘fronteira’ e ‘migração’ que se tem usado nas ciências
sociais” (Neira e Sanchiz, 2019, p. 1) (tradução própria) 10.

A RAIZ DO DISSENSO: RECEIO DE


RETROCESSO
Conforme discutido, a partir da década de 1990, no mesmo contexto em que
surgiram as discussões acerca dos fluxos mistos, alguns autores começaram
a trabalhar o conceito de migração forçada para expressar que as pessoas
refugiadas compreenderiam apenas uma parcela daquela população migrante
“não voluntária”. Em outras palavras, haveria outras pessoas migrantes que,
embora não contempladas pela definição legal da Convenção de 1951, também
deveriam ser consideradas como migrantes não voluntárias.
Van Hear pode ser apontado como o principal expoente dessa visão integradora,
ao propor a imagem da matriosca (“boneca russa”) para referir que refugees
studies seria compreendido em forced migration studies, que, por sua vez, estaria
inserido no meta-concept migration studies, de modo a se obter uma melhor
leitura a fim de explicar as nuances entre força e escolha que interagem na
motivação de migrar (Van Hear, 2012, p. 12).
Ocorre que é exatamente nesse ponto que há um grande dissenso, ainda em
fase de superação. Deve-se notar que o consenso chega até o momento em
que se reconhece a existência de migrantes vulneráveis e involuntários que não
são, necessariamente, considerados refugiados segundo a definição clássica da
Convenção de 1951. O dissenso se estabelece no momento em que se discute
qual a posição que o Direito Internacional dos Refugiados ocupa em relação à
categoria de migrante forçado, principalmente quanto à última compreender a
primeira.
A primeira objeção à existência de uma supercategoria denominada migração
forçada consiste na ausência de uma definição legal em documentos
internacionais do conceito de migração forçada. Geralmente, os documentos
internacionais lidam mais com o combate ao tráfico e exploração de pessoas.
Nesse sentido, pode-se citar o Protocolo de Palermo à Convenção das Nações
Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional. A OIM, em seu
10 “nos encontramos en una coyuntura nueva y compleja en torno a la migración, la
movilidad trasnacional y los efectos y las funciones de las fronteras. Ante esta situación, resulta
insuficiente el modo convencional de entender a la población móvil a partir de los conceptos de
´frontera´ y ´migración´ que hemos usado en las ciencias sociales”.

143
glossário, define migração forçada como
“um movimento migratório em que existe um elemento de
coerção, incluindo ameaças à vida e meios de subsistência, sejam
decorrentes de causas naturais ou provocadas pelo homem
(por exemplo, movimentos de refugiados e pessoas deslocadas
internamente, bem como pessoas deslocadas por desastres naturais
ou ambientais, químicos ou nucleares desastres, fome ou projetos de
desenvolvimento)” (tradução própria) 11.

Apenas em níveis regionais há uma definição mais ampla do conceito de


refugiado, como a já mencionada Declaração de Cartagena, 1984, no âmbito
da Organização dos Estados Americanos (OEA) – que influenciou a lei brasileira
sobre refúgio, nº 9.474/97 –, bem como a Convenção da Organização de Unidade
Africana (OUA) sobre os aspectos de problemas específicos dos refugiados na
África, de 1974.
A principal crítica, representada por James Hathaway, é que essa supercategoria
ou categoria guarda-chuva denominada “migração forçada” colocaria em
segundo plano a característica fundamental do refugiado, que seria mais que
um migrante forçado, porque goza, inclusive, de um status ímpar de proteção
internacional. Em suas palavras, “refugiados não são apenas migrantes
involuntários, mas são, por definição, vítimas de privação social fundamental
e exclusivamente dentro do âmbito protetor da comunidade internacional”
(Hathaway, 2007, p. 250) (tradução própria) 12.
Essa visão tem sido, em alguma medida, esposada pela ACNUR, após se distanciar
da expressão “asylum-migration nexus”, como referido anteriormente, com o
receio de que ofuscaria o status especial dos refugiados no sistema internacional
de proteção que lhe é próprio, embora reconheça a importância e necessidade
de proteção de outras categorias de migrantes vulneráveis.
Chimni, outra voz contrária a essa inclusão de uma supercategoria que
compreendesse os migrantes forçados como um todo, reconhece que há uma
continuidade entre refugees studies e forced migration studies, ressaltando,
porém, que devem permanecer em campos separados (Chimni, 2010, p. 12). A
reticência é quanto à perda de autonomia do direito dos refugiados.
Tanto Hathaway (2007, p. 250) quanto Chimni (2010, p. 12) temem que essa
categoria mais ampla possa enfraquecer a proteção dos próprios refugiados,
visto que não há nenhum hard law a amparar essa definição (um eventual
11 “a migratory movement in which an element of coercion exists, including threats to life
and livelihood, whether arising from natural or man-made causes (e.g. movements of refugees
and internally displaced persons as well as people displaced by natural or environmental
disasters, chemical or nuclear disasters, famine, or development projects)”. Recuperado de
<https://www.iom.int/key-migration-terms#Forced-migration>, acesso em 11. out.2020.
12 “refugees are not just involuntary migrants, but are by definition the victims of
fundamental social disfranchisement and uniquely within the protective ambit of the
international community”.

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144 migratorios, nuevas territorialidades, nuevas restricciones | Vol. 5 - Nᵒ1 - 2021
“Direito Internacional da Migração Forçada”), tampouco estabelecendo um
regime jurídico próprio, ao contrário do sistema do refúgio, que goza de um status
jurídico próprio, constituindo verdadeira subdivisão do Direito Internacional
(Cohen, 2007, p. 371).
Note-se que as críticas desses autores não decorrem do não reconhecimento
de migrantes vulneráveis não elegíveis ao conceito tradicional de refúgio, mas
de temores quanto à possível instrumentalização desses novos conceitos para
enfraquecer o sistema do refúgio, já consolidado internacionalmente.
O principal argumento de Chimni (2010, pp. 12-13) e, de certa forma contempla a
visão de Hathaway, é que a mudança de foco do refúgio para a migração forçada
seria, em verdade, reflexo do interesse dos países centrais (hegemônicos, como
ele os denomina) a fim de aumentar sua capacidade de restringir a proteção,
inclusive, dos refugiados. Ele refere que, ao fazê-lo, há o risco de se passar do
direito para o humanitarismo, o que reforçaria novas formas de colonialismo e
imperialismo.
Chimni, embora reconheça que a questão dos refugiados está inserida num
contexto mais amplo, aduz que a preocupação central é que:
“as questões de migração forçada tornaram-se hoje parte de um
projeto ocidental de domínio global e que os Estudos de Migração
Forçada estão implicados nele. Seus elementos principais:
direitos dos deslocados internos, proteção dos direitos humanos,
contrabando e tráfico de pessoas, um estado liberal pós-conflito
têm sido usados por estados poderosos para justificar intrusões
inaceitáveis e ilegais (incluindo intervenção humanitária armada)
no mundo em desenvolvimento” (Chimni, 2010, p. 20) (tradução
própria) 13.

Perrin, no mesmo sentido, nota que, a partir dos anos 1990 houve um incremento
expressivo da terminologia migratória, reconhecendo que isso se deve a dois
fatores: de um lado reconhece que houve uma inegável complexificação do
fenômeno migratório desde o fim da Guerra Fria, mas, por outro lado, acentua o
interesse daqueles que desejam controlar e restringir a migração, de forma que
as palavras empregadas nem sempre correspondem a seu verdadeiro sentido
jurídico, mas são instrumentalizadas politicamente (Perrin, 2011, p. 4).
O receio de Perrin com a multiplicação de conceitos e categorias assistida
recentemente é que, sob o pretexto de descrever novas realidades, seja usada
em prol da vontade política de identificar, separar, selecionar aqueles que o
Estado deseja receber (Perrin, 2011, p. 9).

13 “forced migration issues have today become part of a western project of global
dominance and that Forced Migration Studies is implicated in it. Its key elements: rights of IDPs,
protection of human rights, smuggling and trafficking of persons, a post-conflict liberal state
have been used by powerful states to justify unacceptable and unlawful intrusions (including
armed humanitarian intervention) into the developing world”.

145
A perspectiva negativa e, portanto, a crítica que Perrin tem do conceito de fluxos
mistos é que, a articulação entre migração voluntária e involuntária, serviria,
a seu ver, justamente para criar instrumentos para separar os migrantes que
precisam de proteção daqueles “meramente” econômicos, o que consistiria em
reagrupar num mesmo grupo indivíduos de características heterogêneas, com
a finalidade de justificar a recusa do direito de entrada no território do Estado.
(Perrin, 2011, p. 15).
Essa tentativa de instrumentalização das categorias viria justamente, e aqui se
aproxima de Chimni, na esteira do alarde dos países centrais contra os “falsos
refugiados” (bogus refugees), aqueles que, na visão desses países, buscariam se
valer indevidamente dos mecanismos protetivos do sistema do refúgio, pois não
podem ser consideradas “verdadeiros” refugiados.
O foco da preocupação de Perrin é sobre a dimensão dos fluxos mistos relativa
à utilização da mesma rota por diferentes tipos de migrantes, de modo que é do
interesse dos Estados distinguir quem é “verdadeiramente refugiado” e quem é
“mero” migrante econômico. Dessa forma, os centros de imigração nesses países
serviriam como centros de triagem. Aquilo que ela denomina de “nommer pour
combatter”, ou seja, nomear diferentes categorias para melhor selecionar.

GARANTIR A INTEGRIDADE DO REFÚGIO


E PROTEGER OS DEMAIS MIGRANTES
VULNERÁVEIS: O PASSO NECESSÁRIO
As preocupações de Chimni, de Hathaway e de Perrin são profundamente válidas
e pertinentes. Estou de acordo com o receio, perfeitamente fundado diante
de políticas restritivas. Não obstante, proponho que o problema não são as
categorias ou o conceito de fluxos mistos e migração forçada, mas a perspectiva
restritiva por parte dos Estados, que haverá qualquer que seja a categoria
empregada.
Roger Zetter, professor emérito do centro de estudos migratórios da Universidade
de Oxford, e que há várias décadas se dedica ao estudo dos refugiados, reconhece
ambas os desafios.
Em dois artigos escritos com mais de 15 anos de intervalo (1991 e 2007), Zetter
deixa claro que é inegável que, de fato, houve uma complexificação da migração
nas décadas recentes, sendo que, conforme essa população foi conseguindo se
deslocar maiores distâncias e chegar às portas dos países centrais, tem havido
um esforço desses países em barrar a migração, valendo-se, inclusive, da
manipulação das categorias de migrantes, de preferência que sejam ambíguas
o suficiente para terem amplo espaço de ação, como referido por outros
pesquisadores anteriormente.

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146 migratorios, nuevas territorialidades, nuevas restricciones | Vol. 5 - Nᵒ1 - 2021
De fato, e nesse ponto ele concorda com os que defendem a categoria da migração
forçada, a complexificação “reflete as causas e padrões de migração forçada
que são muito mais complexos do que no passado; isso contrasta com uma
conotação essencialmente homogênea e estereotipada do rótulo no passado”
(tradução própria)14, os quais “estão fugindo de causas complexas nas quais a
perseguição e a exclusão socioeconômica estão combinadas” (Zetter, 2007, p.
174, p. 183) (tradução própria)15. Concluindo que o conceito de migração forçada
“captura melhor a complexidade das causas contemporâneas, enquanto, ao
mesmo tempo, contextualiza os refugiados dentro dos processos migratórios
mais amplos de transformações sociais transnacionais” (Zetter, 2007, p. 189)
(tradução própria)16.
Essa complexificação é, por assim dizer, ambivalente. Por um lado, é vista com
alarde pelos países centrais, por outro, como oportunidade de restringir o
acesso ao refúgio sob o discurso de “emergência” ou “crise” migratória e que
o instituto está sendo abusado por “falsos refugiados”. Assim, “nas mentes de
formuladores de políticas e funcionários da imigração, é necessário fragmentar
e definir rótulos e categorias claros da mistura frequentemente complexa de
razões pelas quais pessoas migram” (Zetter, 2007, p. 183) (tradução própria)17.
É justamente nessa segunda constatação que ele também concorda com a crítica
daqueles que temem o enfraquecimento da proteção por meio da manipulação
das categorias à mercê do interesse dos Estados e à revelia da perspectiva do
migrante como titular de direitos.
De fato, o pior resultado é os Estados instrumentalizarem essas novas categorias
como espécies de “subcategorias” de refúgio ou de “quase-refúgio”, sem o
mesmo grau de proteção e, como observa Zetter, frequentemente medidas
temporárias e provisórias:
“A maioria dos países do mundo desenvolvido usa uma variedade de
rótulos para ‘proteção temporária’, que mantém a grande maioria dos
requerentes de refugiados em um estado transitório, muitas vezes
durante anos. No entanto, não há base no direito internacional para
proteção temporária. O objetivo desta nova etiqueta de proteção
temporária e dos instrumentos associados é, obviamente, permitir
que as burocracias administrem e, eu diria, recusem os pedidos de
refugiados” (Zetter, 2007, p. 182) (tradução própria) 18.

14 “reflects causes and patterns of forced migration which are much more complex than
in the past; this contrasts with an essentially homogeneous and stereotypical connotation of the
label in the past”.
15 “are fleeing complex root causes in which persecution and socio-economic exclusion
are combined”.
16 “better captures the complexity of contemporary root causes, whilst at the same
time contextualizing refugees within the wider migratory processes of transnational social
transformations”.
17 “in the minds of policy makers and immigration officials it is necessary to fragment and
make clear cut labels and categories of the often complex mix of reasons why people migrate and
migrate between labels”.
18 “most countries in the developed world deploy a variety of labels for ‘temporary

147
A consequência acaba por ser a excepcionalização do instituto como o “mais
privilegiado” entre muitos status inferiores, de modo que requerer o status de
refugiado, segundo Zetter, deixa de ser direito e se torna um “prêmio” (Zetter,
2007, p. 189).
Assim agindo, os Estados acabam por colocar essas novas categorias à serviço
de suas políticas restritivas, de modo que
“o rótulo ‘refugiado’ agora é precedido por novos rótulos na
cadeia de processamento, como ‘solicitante de asilo’ e ‘proteção
temporária’: esses rótulos agem como reservatórios para conter a
entrada e interceptar o acesso ao pedido mais valioso. Uma análise
construída em torno do conceito de rotulagem enfatiza como esse
fracionamento leva o pedido de status de refugiado ainda mais
para trás no processo de migração – tanto metaforicamente quanto
geograficamente – reduzindo a oportunidade de alcançar o status
final, ou pior ainda criminalizando requerentes que tentam evitá-los
barreiras” (Zetter, 2007, p. 189) (tradução própria)19.

O ponto é que nem mesmo o instituto do refúgio, consolidado há 70 anos, fica


imune dessa práxis. A respeito, Georgia Colle, em sua tese de doutorado na
Universidade de Oxford, defende que o problema vai além da categoria. A partir
de conceitos da semiótica, verifica que toda palavra, no caso do estudo, refugiado,
pode adquirir uma série de significados de acordo com a interpretação, não
obstante a definição legal da Convenção de 1951 (Colle, 2016, p. 200).
Segundo Colle, na ausência de uma autoridade supranacional responsável
por interpretar o conceito de refugiado (ainda que restrito àquele previsto
na Convenção de 1951), cada ator – Estados, organizações internacionais,
organismos humanitários – disputam entre si a interpretação hegemônica, de
modo que é um conceito em contínua renegociação de sentido.
Portanto, se os Estados não poupam nem mesmo o instituto do refúgio (hard
law e instituto jurídico consolidado internacionalmente) nessa manipulação de
categorias, é imperioso concluir que o problema não são elas, em si mesmas,
como receiam Hathaway, Chimini e Perrin, mencionados anteriormente, mas
sua manipulação com fins restritivos.

protection’, which keep the vast majority of refugee claimants in a transient state, often for
years. Yet there is no basis in international law for temporary protection. The purpose of this
new temporary protection label and the associated instruments is, of course, to enable the
bureaucracies to manage and, I would argue, to decline refugee claims”.
19 “the label ‘refugee’ is now preceded by new labels in the processing chain such as
‘asylum seeker’ and ‘temporary protection’: these labels act as reservoirs to contain entry and
intercept access to the most prized claim. An analysis constructed around the concept of labelling
emphasizes how this fractioning drives the claim to refugee status further back into the process
of migration-both metaphorically and geographically reducing the opportunity to achieve the
ultimate status, or worse still criminalizing claimants who try to avoid these barriers”.

| PÉRIPLOS | GT CLACSO - Corredores migratorios en América Latina: Nuevos flujos


148 migratorios, nuevas territorialidades, nuevas restricciones | Vol. 5 - Nᵒ1 - 2021
Voltando a Zetter, apenas dois anos depois do segundo artigo, em 2009, quando
buscou fazer um prognóstico do futuro próximo da migração, o autor reconheceu
que a perspectiva dos fluxos mistos, apesar do debate em torno de sua validade,
“fornece uma descrição mais robusta do complexo de fatores que impulsionam
a migração forçada no mundo contemporâneo” (Zetter, 2009, p. 4) (tradução
própria)20.
Pode-se inferir que Zetter, logo após os efeitos da crise econômica de 2008,
parece ter percebido que, apesar da discussão – motivada principalmente
pelo receio de servir de pretexto para selecionar os desejáveis e, a contragosto,
aqueles que “realmente merecem proteção” - vê como inevitável a relação cada
vez mais estreita entre compulsão e fatores econômicos, o que só pode ser
bem compreendido pelos fluxos mistos (Zetter, 2009, p. 4). E é esse aspecto que
precisa ser enfatizado.

Categorização: tão inevitável quanto


problemática, mas não é ela a ameaça do
temido retrocesso
Como já adiantado no fim do tópico anterior, é notório que, se as novas categorias
têm problemas, ambiguidade, ausência de marco legal (dos quais se valem os
países para selecionar os migrantes desejáveis, sobretudo porque ainda estão
em desenvolvimento e consolidação), também é verdade que dicotomias
igualmente falham em capturar as nuances atuais, correndo-se o risco de deixar
pelo caminho, à margem do direito, grupos cada vez maiores de migrantes
(Zetter, 2007, p. 183).
Isso porque, como observam com perspicácia Rossa e Menezes, a visão
dicotômica traz sempre um efeito colateral inafastável, dado que a conceituação
de refúgio “não define apenas quem é refugiado, ela negativamente também
determina quem não ostenta este status e os insere em outra categoria”, sendo
que essa outra categoria “dos ‹não refugiados› é cada vez maior e inclui um
número crescente de situações” (Rossa e Menezes, 2018, p. 386).
Não é possível fechar os olhos para essas situações novas e crescentes. É por isso
que defendo a validade e importância da metacategoria migrantes forçados.
Nesse sentido, proponho que a perspectiva correta não é pretender que a
categoria “migrantes forçados” seja homogeneizante (como entende de Perrin),
inserindo todos os migrantes numa “vala comum”, amorfa, indistinguível, a fim
de que sejam dali retirados ao bel-prazer dos Estados, a partir da manipulação
de categorias restritivas. Isso, de fato, relevaria, as especificidades do sistema do
refúgio. Esse sistema precisa ser protegido de toda tentativa de enfraquecimento,
sobretudo num contexto de investidas contra direitos sociais e econômicos e

20 “provides a more robust description of the complex of factors which impel forced
migration in the contemporary world”.

149
dos direitos humanos, como um todo, em muitos países.
Por outro lado, não é possível também permitir que o capital, sobretudo em
sua articulação global, avance sobre os demais migrantes, sobretudo os demais
migrantes forçados e vulneráveis, reduzindo-os a “meros” migrantes econômicos
suscetíveis de exploração e exceção de direitos.
A respeito, Bauman concebe como indissociáveis o processo modernizador
(podemos dizer, sustentado pelo capitalismo globalizado), com sua produção de
pessoas “refugadas” e “redundantes”, e os fluxos migratórios atuais. Com efeito,
“tanto as imagens dos migrantes econômicos e as das pessoas em busca de
asilo representam refugos humanos”, sendo que, “enquanto aquelas (pessoas)
em busca de asilo tendem a ser produzidas por sucessivas versões do zelo de
projetar e construir a ordem”, os chamados “migrantes econômicos são um
produto colateral da modernização econômica […] As origens de ambos os tipos
de ‘refugo humanos’ são agora globais” (Bauman, 2004, p. 76).
Graças à própria globalização tecnológica, principalmente dos meios de
comunicação e de transporte, essas pessoas “‘refugadas’, localmente ‘inúteis’,
excessivas ou não empregáveis em razão do progresso econômico; ou localmente
intoleráveis, rejeitadas por agitações, conflitos e dissensões causadas por
transformações sociais/políticas e subsequentes lutas por poder” (Bauman,
2016, p. 9) – são postas em movimento e agora podem bater às portas dos países
centrais.
Prosseguindo na análise, Castles destaca que
“quando se compreende que a migração forçada não é o resultado de
uma série de emergências desconexas, mas sim uma parte integrante
das relações Norte-Sul, fica evidente a necessidade de teorizar a
migração forçada de maneira vinculada à migração econômica.
Elas estão intimamente relacionadas (e de fato muitas vezes
indistinguíveis) às formas de expressão de desigualdades globais
e crises sociais, que cresceram em volume e importância desde a
superação da ordem mundial bipolar [...] Isso também resultou
na indefinição da distinção entre migração forçada e migração
econômica. Economias fracassadas e condições precárias de direitos
humanos muitas vezes caminham juntas, por isso migrantes e
requerentes de asilo têm múltiplas razões para mobilidade, tornando
impossível separar completamente as motivações econômicas das
de direitos humanos” (Castles, 2003, p. 17) (tradução própria)21.

21 “understanding that forced migration is not the result of a string of unconnected


emergencies but rather an integral part of North-South relationships makes it necessary to
theorize forced migration and link it to economic migration. They are closely related (and indeed
often indistinguishable) forms of expression of global inequalities and societal crise. This has also
resulted in the blurring of distinction between forced migration and economic migration. Failed
economies and poor human rights conditions often go together because of which migrants and
asylum seekers have multiple reasons for mobility making it impossible to completely separate

| PÉRIPLOS | GT CLACSO - Corredores migratorios en América Latina: Nuevos flujos


150 migratorios, nuevas territorialidades, nuevas restricciones | Vol. 5 - Nᵒ1 - 2021
Os refugiados são, por assim dizer, a ponto do iceberg (ou, na imagem da
matriosca proposta por Van Hear, a boneca mais interna) dos migrantes forçados,
os mais vulneráveis dentre os vulneráveis e necessitam ter seu sistema especial
garantido como premissa básica (e inegociável) de qualquer discussão.
O desafio, a começar pela academia, é assegurar a integridade do sistema
do refúgio (para além e independentemente das propostas de ampliação
de seu conceito, discussão interessante, mas que não é objeto do presente
trabalho) e, concomitantemente, garantir que os demais migrantes forçados
e vulnerabilizados, no contexto dos fluxos mistos, tenham um status protetivo
satisfatório.
Como já adiantado, defendo que se deve garantir que esses regimes protetivos
complementares não sejam instrumentalizados pelas políticas restritivas
para fragilizar o sistema do refúgio. Isso poderia acontecer, por exemplo, ao
considerar o solicitante de refúgio como inelegível para concedendo-lhe a
proteção complementar, mas que não contém as regras protetivas fundamentais
do refúgio, como a não devolução ao país de origem e o dever de receber
independentemente do status de entrada.
Vê-se, portanto, que a questão não é tanto conceitual, como se os conceitos de
fluxos mistos, migração forçada e migrantes vulneráveis fossem capazes de, por
si só, fragilizar o sistema do refúgio. Até mesmo porque, como visto, as categorias
são inevitáveis (Colher e Haas, 2012, p. 468).
Independentemente dos conceitos usados, ressignificados, contestados,
debatidos e propostos na academia, é certo que as políticas restritivas vão buscar
meios de, no mínimo, fragilizar a proteção e, numa situação “ideal”, estabelecer
sua política migratória deliberadamente em termos vagos ambíguos. A questão
é que, não obstante sua inevitabilidade, é preciso ter claro o que subjaz a
determinadas propostas e empregos das categorias; em outras palavras, a
intencionalidade e a finalidade.
Antes de concluir o tópico, convém mencionar a experiência brasileira com a
proteção complementar.
Em 2011, ganhou notoriedade a criação de um instrumento de proteção
complementar denominado visto humanitário, instituído pela Resolução
Normativa n.º 97/2012 do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), para fazer
frente ao extenso fluxo de migrantes haitianos, decorrentes da deterioração das
condições socioeconômicas no Haiti após o terremoto de 2010, os quais não
eram reconhecidos como refugiados pelo Conselho Nacional para Refugiados
(CONARE). O instrumento foi alterado pela Resolução Normativa nº 102/2013,
que levantou a previsão inicial de cota anual.
Vale mencionar que já em 2010 o CNIg ja havia editado a Resolução Normativa nº
93, que previa a proteção complementar às vítimas do tráfico de pessoas.

economic and human rights motivations”.

151
O instituto da acolhida humanitária passou a ser previsto legalmente com o
advento da lei de migração brasileira n. 13.445/2017. Ele consta como princípio
e garantia da política migratória brasileira (art. 3º, VI) e foi contemplado em
duas modalidades: como visto temporário (art. 14, I, alínea “c” e § 3º) e como
autorização de residência (art. 30, I, alínea “c”).
Como critério de elegibilidade, estabeleceu-se que pode ser concedida ao
nacional de qualquer país ou ao apátrida em situação “de grave ou iminente
instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande
proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos
ou de direito internacional humanitário” (art. 14, § 3º da lei). Foi deixada aberta
a possibilidade de criação de outras hipóteses por meio do regulamento que
disciplinará a aplicação da lei.
Nota-se que a abrangência é mais extensa que aquela prevista na lei brasileira
de refúgio (lei nº 9.474/97), que prevê a concessão nas seguintes hipóteses:
fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade
e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; indivíduo que, não
tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência
habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias
descritas no inciso I; a grave e generalizada violação de direitos humanos, é
obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Observa-se, ainda, que a terceira previsão de refúgio prevista na lei nº 9.474/97
é uma aplicação direta dos termos da Declaração de Cartagena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perceber que a problemática da migração na atualidade se insere num contexto
mais amplo, inclusive de jogo de interesses políticos e econômicos, é essencial
para a honestidade científica e acadêmica, pois a consciência crítica é um
aspecto chave da pesquisa científica social, devendo ficar claro o modo pelo
qual “usamos dados construídos por instituições, como avaliamos as afirmações
de grupo feitas por comunidades sobre si mesmas e outras, mas também como
formamos e manipulamos nossas próprias categorias” (Polzer, 2008, p. 477)
(tradução própria) 22.
É inegável, conforme se verificou, que tem havido uma crescente complexificação
da migração, ocasionando situações em que é impossível separar motivações
econômicas da busca de proteção. É preciso trazer à luz esses migrantes
vulneráveis que, embora muitas vezes não classificáveis como refugiados,
necessitam de acolhimento e, sobretudo, ter garantido o tratamento digno

22 “we use data constructed by institutions, how we evaluate group claims made by
communities about themselves and others, but also how we form and manipulate our own
constructed categories”.

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através de novas categorias migratórias e por meios de sistemas de proteção
complementares.
Ao mesmo tempo, deve-se garantir que esse processo não seja instrumentalizado
pelos Estados para se restringir ou colocar sob suspeita o instituto do refúgio,
que deve ser sempre reafirmado em sua integralidade.
Portanto, de a acordo com as discussões feitas no presente artigo, o papel da
academia é apontar e denunciar a utilização e instrumentalização das categorias
com a finalidade de restringir direitos, de selecionar e discriminar migrantes. Seu
papel, complementarmente, é garantir e consolidar a perspectiva do migrante
como titular de direitos fundamentais e que deve, por isso, ser encarado como
sujeito com voz ativa na elaboração das normas e políticas públicas que lhe
dizem respeito e não como mero destinatário delas ou, o que é pior, como sujeito
ao arbítrio e discricionariedade do Estado.

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