Mestiço

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Afro-Ásia

ISSN: 0002-0591
revista.afroasia@gmail.com
Universidade Federal da Bahia
Brasil

Mezzomo, Frank Antonio


Reseña de "O pensamento mestiço" de Serge Gruzinski
Afro-Ásia, núm. 33, 2005, pp. 333-338
Universidade Federal da Bahia
Bahía, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003310

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REVISITANDO TEMAS, ABORDAGENS E
CATEGORIAS HISTORIOGRÁFICAS

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Trad. Rosa Freire


d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Prefaciando a obra Apologia da his- gulares, exigências caras a Bloch e


tória, de Bloch,1 Le Goff lembra aos Gruzinski.
pesquisadores a necessidade de se fa- A preocupação com a finalidade da
zer a boa história para ensiná-la, fazê- escrita da história é também muito
la ser amada e não se esquecer de que, bem-vinda hoje: evitem retirar da
ao lado de suas necessárias austeri- ciência sua parte de poesia. Esse ape-
dades, a história tem seus gozos es- lo de Bloch parece ser pertinente aos
téticos próprios. Embora o autor de acadêmicos de graduação e pós-gra-
O pensamento mestiço diste mais de duação, aos pesquisadores enfim,
cinqüenta anos da obra de Bloch, fir- quanto ao cuidado para que a ditadu-
me algumas reticências aos fundado- ra das notas de rodapé e o localismo
res dos Annales e apresente severas temático não embruteçam a história
críticas ao europocentrismo acadêmi- e, conseqüentemente, a tornem odia-
co, a sintonia quanto à função da his- da, repugnante e supérflua. A liga-
tória, a concepção sobre o tempo pre- ção com o presente possivelmente a
sente, a erudição, o zelo e trato pelas tiraria do malogro de ser ciência do
fontes e o ruminar dos conceitos em passado. Mero capricho para torná-
torno do tema analisado tornam am- la midiática e vendável? Não, para
bos os historiadores muito próximos. atender a uma finalidade heurística,
Quer dizer, ao lado do necessário ri- possivelmente diria Gruzinski, por-
gor ligado à erudição e à investiga- que a volta ao passado é apenas um
ção dos mecanismos históricos, exis- modo de falar sobre o presente, pois
te a volúpia de apreender coisas sin- o estudo das mestiçagens de ontem

1
Jacques Le Goff, “Prefácio”, in Marc Bloch, Apologia da história ou ofício de historiador (Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 2001).

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levanta uma série de indagações que diversidade das fontes — filmes, car-
permanecem atuais (p. 19). tas, coletâneas de trechos poéticos de
Gruzinski é historiador francês, atua ibéricos, de nativos e de mestiços,
como diretor de pesquisa do Centre pinturas/esculturas em murais da
Nacional de la Recherche Cientifique igreja de Ixmiquilpan e da casa Del
(CNRS) e diretor de estudos na École Deán em Puebla, mapas como o da
des Hautes Études en Sciences cidade de Cholula e o códice de
Sociales (EHESS). Suas últimas pu- Bernandino de Sahagún etc. — e,
blicações têm permitido considerá-lo sobretudo, pela leitura inovadora e
como um dos melhores e maiores pelas teses provocativas defendidas.
americanistas internacionalmente Ao longo do livro, o autor provoca
reconhecidos.2 Sua obra é resultado um verdadeiro desmonte na produ-
da vivência e pesquisa por mais de ção acadêmica européia, assinalan-
sete anos no México. Conviveu não do sua estreiteza de horizontes e equí-
apenas com os arquivos, mas também vocos metodológicos, assim como o
com os mexicanos, a fim de conhe- isolamento das ciências, o enrijeci-
cer, não a alma, mas a riqueza cultu- mento teórico, a linearidade e/ou o
ral produzida pela mestiçagem das tempo evolutivo — embora utilize
tradições indígenas e européias. Esta fartamente o termo evolutivo no
produção acadêmica numa perspec- transcorrer do livro, podendo ser
tiva interdisciplinar, entre outras já interpretado pelo viés do ranço po-
publicadas, versa sobre o sincretismo sitivista (p. 87, 193, 214, 297) —, o
religioso, a história da Igreja e da fa- tratamento da história como bloco
mília, sobre as escrituras e as ima- homogêneo, a utilização exagerada
gens nas culturas ibérica e indígena. de categorias a-históricas e intem-
Lançada primeiramente na França porais, o uso abusivo de clichês exó-
(1999) e traduzida para o português ticos e preconceituosos, a busca da
dois anos mais tarde, a referida obra verdade e o conseqüente enquadra-
trata do processo da Conquista espa- mento maniqueísta que obscurece a
nhola empreendida na Nova Espanha visibilidade de interpretações discur-
a partir do século XVI. A grande sivas.
novidade ao destacar esse tema é a Acompanhemos o autor. Embora não
abordagem adotada pelo autor. Pos- seja este o propósito explícito, a obra
sivelmente tenha se notabilizado pela é um tratado teórico-metodológico.

2
Mary del Priore, “O primeiro choque de culturas da América: historiador francês mostra como a
Europa foi digerida”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13/03/2004. Disponível também em:
<http://www.jb.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2004/03/12/joride20040312006.html, acessado
em 06/08/2004.

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Tece ácidas críticas ao europocen- cruzem seus métodos e técnicas, por-
trismo e etnocentrismo da história que o nomadismo delas não conse-
pela pouca curiosidade pelo passa- guirá trabalhar a contento a temática
do e pela historiografia que excede da mestiçagem.
as fronteiras da Europa ocidental e A latente vinculação do autor às dis-
às vezes as fronteiras da sua própria cussões historiográficas produzidas
nação. Não é, portanto, o silêncio pela história cultural saúda as ino-
dos arquivos ou a ausência de fon- vações introduzidas desde a década
tes que explica, até data recente, as de 1980 pelos estudos culturais e
lacunas ou falhas das pesquisas, mas pós-coloniais, em que o Outro não é
uma tendência a esquecer a história visto mais numa relação de exclu-
de certas regiões do globo, ou a lhe são, porém como parte relacional do
conferir apenas uma parcela despre- Eu. O papel do historiador pode ser
zível no destino dessas regiões. o de exumar as ligações históricas
Ocultando a história, reverbera o ou o de explorar as connected
autor, somos privados de uma pro- histories. Ou, por outro viés, utili-
fundidade essencial e ignoramos os zando o método comparativo, busca
efeitos da colonização ocidental em encontrar sob as diferenças cultiva-
todas essas paragens e, por conse- das pelas tradições locais e visões de
guinte, as reações que aí se desen- inspirações antropológicas, conti-
cadearam (p. 35). nuidades, conexões ou simples pas-
Gruzinski reivindica que as fontes sagens. Longe das visões dualistas
de um modo geral e os afrescos por — micro/macro, local/global, peque-
ele analisados requerem uma maior no/grande — e maniqueístas —
atenção por parte dos pesquisadores. Ocidente/Outro, civilizado/selva-
É fundamental que as ciências sociais gem, bom/mau, certo/errado —,
comecem a fornecer pistas e luzes deve o historiador estabelecer rela-
sobre o material empírico. Uma an- ções convertendo-se numa espécie de
tropologia livre, enfim, de seu fas- eletricista encarregado de restabele-
cínio pelos povos selvagens e uma cer as ligações internacionais e in-
sociologia sensibilizada pela mistu- tercontinentais que as historiografias
ra dos modos de vida e imaginários nacionais e as histórias culturais
(p. 44). É o debruçar-se sobre as fon- desligaram ou esconderam, entai-
tes, a fim de que todas as ciências pando as suas respectivas fronteiras.3

3
Serge Gruzinski,”O historiador, o macaco e a centaura: a ‘história cultural’ no novo milênio”,
Revista Estudos Avançados, vol. 17, no 49 (2003), pp. 321-342.

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Metodologicamente, assegura o au- know-how colonial, provocou o
tor, optou-se por estudar não somen- irreparável: a febre do ouro, a impe-
te o “olhar europeu” sobre o resto do rícia, o desperdício. Os objetivos a
mundo ou as “representações do Ou- curto prazo, misturados com boa
tro”, como por considerar os olhares dose de indiferença e desprezo, pre-
e representações cruzadas. cipitaram a exploração desenfreada
Desta exigência o autor não se des- da mão-de-obra indígena. Seguiu-se
cuida. Dotado de conhecimentos que um genocídio sem premeditação (p.
passam pela literatura, humanidade 79), e a mestiçagem biológica e cul-
renascentista, filosofia ou cultura tural foi a conseqüência inevitável
greco-romana e mitos gregos, da formação desses que não fazem
Gruzinski faz uma verdadeira mun- parte da “república dos índios” nem
dialização intelectual pelo Brasil, da “república dos espanhóis”. São
México, Espanha, Portugal, China e os mestiços que, no Brasil, Darci
Grécia, a fim de estabelecer conexões Ribeiro chamou de “elementos per-
que caracterizam o modus vivendi das formativos da ninguendade”. Não
populações. Esses périplos intelectu- são lusos. Não são índios. São mu-
ais percorrem um objetivo bem pre- latos!
ciso, a saber, entender as mestiçagens Como pensar essa realidade a partir
dos mexicanos no período da Con- das ciências sociais? Categorias
quista. como identidade e cultura dão con-
Mestiçagem. Essa palavra pode ecoar ta dessa problemática? Descartando
nos ouvidos de uma forma estranha. como conceitos homogêneos e
Diferentemente da hibridação, que totalizadores e ciente dos embaraços
é entendida como um processo len- polissêmicos que a palavra mestiço
to pelo qual passou a Europa ao lon- assumiu historicamente — podendo
go de quatro séculos com a assimi- ser sinônimo de mistura, rejeição,
lação endógena de elementos cultu- confusão, impureza, contaminação
rais e políticos de uma mesma civi- etc. — e dos hábitos intelectuais que
lização, a mestiçagem teria sido mais preferiram conjuntos monolíticos aos
agressiva porque exógena e, sobre- espaços intermediários, dos blocos
tudo, marcada pela improvisação. sólidos aos interstícios sem nome (p.
Gruzinski é taxativo ao afirmar que 48) e, sobretudo, as determinações do
a capacidade dos invasores, combi- famigerado determinismo biológico
nada com a ausência absoluta de sobre as demandas sociais,4 o autor

4
Lílian Schwarcz e Renato da Silva Queiroz (orgs.), Raça e diversidade, São Paulo, Edusp/
Estação Ciência, 1996.

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propõe-se a compreender que toda ca dos mesmos e ficando o questio-
cultura é marcada, na carne e no namento: teria propositadamente
pensamento, pela miscigenação de utilizado um conceito de forma tá-
comportamentos, de crenças, de cita? Não merecem maior atenção
imaginários, de idéias e que, portan- uma vez que são também conceitos
to, não é um fenômeno exótico pró- polissêmicos e ligados diretamente
prio da América Latina, da Ásia ou a problemática da Conquista? —,
da África. É um processo generali- Gruzinski acentua o papel desempe-
zado que sempre esteve ligado ao nhado pela Igreja Católica como ele-
fazer-se do homem, mas que foi mento aculturador e aculturado. Em
acentuado acima de tudo com a torno da Monarquia católica — en-
ocidentalização do século XVI. tende-se aqui poder do Estado em
Ao apresentar a noção de ocidenta- união com a Igreja Católica —, as
lização, o autor entende como um interferências planetárias não se li-
conjunto de meios de dominação mitam somente ao viés político e
introduzidos na América pela Euro- econômico, como as vinculações re-
pa do Renascimento na esteira da ligiosas, literárias e culturais.
religião católica, dos mecanismos do Entretanto, longe de preocupar-se
mercado, da utilização do canhão, com as dicotomias das influências —
do livro ou da imagem como meios embora o autor utilize em um dado
persuasivos. Assumiu formas diver- momento a palavra “derrotados” (p.
sas e às vezes até em franca rivali- 100), podendo ser entendida dentro
dade, já que foi a um tempo caracte- da unilateralidade histórica, e a ex-
rizada pela intromissão material, pressão “para o bem e para o mal”
política e religiosa mobilizando to- (p. 109), podendo conotar uma
das as gentes de estirpes diferentes. valoração —, o autor percorre, nos
Ocidentalizar, por conseguinte, sig- instrumentos musicais — “sou um
nificou: mestiçagens biológicas, de tupi tangendo um alaúde” —, nos
línguas e crenças; mesclas de sabe- cantares — a melodia e o canto nati-
res e técnicas; sobreposição e imbri- vo —, nas pinturas de murais das
cação das formas de trabalho. igrejas — como a de Ixmiquilpan —
Tendo como cenário estas transfor- e nos afrescos — como o contido em
mações provocadas pela ocidentali- Puebla, com a figura do macaco e da
zação — é importante notar que por centaura Ocyrhoe —, os elementos
vezes o autor utiliza dois outros ter- que assinalam a formação de um pen-
mos, a saber, globalização e mundia- samento mestiço: nem ibérico, nem
lização, sem dar maiores detalhes nativo, mas a confluência formativa
sobre a implicação teórica e históri- de um modus vivendi. Dessa forma,

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a política de substituição não resul- mestiçagem com finalidades comer-
tou num efeito de tábua rasa, muito ciais. Ao analisar um dos filmes de
pelo contrário. Nem todo o antigo Wong Kar-Wai, Happy Together, o
foi substituído e, em geral, o que dele autor expõe a força das mestiçagens
resta se mistura ao que a Igreja con- num mundo em que imperam os flu-
seguiu impor, ao que os índios qui- xos de informação e o poder do ca-
seram conservar, ao que foram ca- pitalismo mundial.
pazes de assimilar ou ao que não ti- O desafio da leitura do livro de
veram força para rejeitar (p. 294). Gruzinski pode trazer ao leitor uma
Para finalizar a longa discussão em dupla sensação. Por um lado, o asco
torno da mestiçagem, Gruzinski pro- pela formação dicotômica em torno
põe-se a entender certas questões das figuras do bom/mau civilizado
contemporâneas como a Word e bom/mau selvagem e, por outro, a
Culture e a influência cada vez mai- provocação de que a leitura pode ser
or do capitalismo, que, mediante a o chamariz para a (in)formação ilus-
indústria cinematográfica e as trada.
mídias hodiernas, utilizam-se da “Sou um tupi tangendo um alaúde...”
(Mário de Andrade).
Frank Antonio Mezzomo*

*
Aluno do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina.
Atua como docente junto às instituições de ensino superior Universidade Paranaense e Centro de
Ensino Superior de Realeza.

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