Introducao e Cap I
Introducao e Cap I
Introducao e Cap I
1)INTRODUÇÃO .........................................................................................................P.2
1.2) PERSPECTIVA DA PESQUISA...........................................................................P.3
1.3) FALHAS E FRACASSOS NA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE...................................P.6
1.4) ALTAS CONFUSÕES NO CREAS......................................................................P.14
REFERÊNCIAS...........................................................................................................P.72
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Postura em que o analista se coloca em relação ao analisante. Consiste em saber que não se
sabe, percebendo o limite de seu conhecimento para que o próprio paciente produza suas
próprias associações e saberes (LACAN, 1999).
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De acordo com Teixeira (2020) deve-se levar em conta que o hospital e outros serviços públicos
foram ocupados pelos psicanalista devido as necessidades de sobrevivência. De fato, pelo menos
no meu caso isto é verdadeiro, mas também é um fato histórico inerente a nossa disciplina desde
seus primórdios como mostra Danto (2019) na análise das clínicas públicas de Freud. Trata-se de
um modelo que repensa fortemente as relações entre políticas públicas e psicanálise. A
sobrevivência é importante, mas o tom jocoso a que muitos analistas “socialite” é risível.
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clínicos liberais, enquanto para min, a porta de entrada para a práxis foram as instituições
públicas: o Hospital e o CREAS.
Visto que, “uma psicanálise, padrão ou não, é o tratamento que se espera de uma
analista” (LACAN, 1999, p.331) era concordando mais com a verve de Lacan que
ironizava a existência uma análise normativa que achava-me mais próximo e motivado do
que com meus companheiros lacanianos6. O sarcasmo lacaniano não defende que existe
uma única maneira de se fazer análise independente do contexto, campo ou instituição,
mas um convite para uma reflexão crítica, suas condições de possibilidade, seus objetivos
e suas finalidades, articulada as questões éticas, ao saber e verdade.
É daí que surge o eixo temático de minha pesquisa: examinar os objetivos e
finalidades da psicanálise lacaniana a partir da perspectiva de um analista mais envolto
com as ações hospitalares e em serviços sociais. O que nos leva a desdobrar a questão
do método em psicanálise lacaniana de uma forma pouco convencional: a) qual o cerne
do ato do analista diante de locais em que não há uma expectativa de controle quase
laboratorial de variáveis? b) qual o cerne do objeto que a psicanálise pode ter, na medida
em que as experiências de ordem mais coletivas são as inúmeras variações que acabam
por desestabilizar aqueles que buscam uma “segurança” na atuação?
Assim, o percurso pelas instituições que descreverei suscitaram a seguintes
questões que pretendo investigar: é necessário um discurso do método psicanalítico? O
que se deve entender por experiência analítica e se o sentido mesmo desta experiência
muda no decorrer de obra lacaniana? Quando se pratica psicanálise o método que nos
serve de guia deve ser colocado como uma categoria à priori e imutável ou está em
constante mudança? Quais são as relações entre experiência e método desenvolvidos
por Lacan.
Destarte, antes de iniciarmos esta investigação, ao explanar e descrever
momentos centrais da minha experiência no tocante ao campo da instituição de saúde e
na defesa social, quero com isto apontar os erros cometidos, impasses e os poucos
acertos que nos ajudarão a compreender a importância de analisar o método que são
6
Entrementes, esta citação não significa que exista uma psicanálise independente das
condições institucionais e das relações de poder imanentes ao campo social. Quanto a isto,
parece-me claro que o exercício do poder sempre foi um objeto em seu horizonte. Quanto a
isto, o artigo Direção do tratamento, seus princípios e seus poder (1999) é bastante claro ao
explorar o cuidado que o analista deve possuir na condução do tratamento, pois ali também é
lugar de exercício de poder.
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exercidos pelo psicanalista quando se supõe que o mesmo deseja uma maior
organicidade no horizonte de suas práticas. Quero com isto situar o leitor a partir de meu
ponto de vista, pois é dela que pretendo justificar as elaborações teóricas norteadoras dos
próximos capítulos.
Desta forma, apresentarei quatro situações autobiográficas, duas delas em uma
instituição de saúde e duas no âmbito dos programas das secretarias de defesa social, o
CREAS. Espero que no final desta pequena auto etnografia profissional consiga situar
algumas induções norteadoras da minha investigação que chamarei provisoriamente de
teórica. Tais experiências estão localizadas temporalmente entre 2008 e 2017 7.
café e em refeições coletivas, mas sobretudo minhas. Quando se olha outros profissionais
que historicamente se aglutinam ao saber médico como auxiliares com a função de que
este último se faça exercer, meu sentimento era de desnorteamento, anomia e
estranheza, minha questão no decorrer de vários meses era: sou concursado, mas para
fazer o que? A instituição ao me convocar seguia apenas critérios administrativos do
Estado, ou seja, não havia a priori um pedido mesmo que mal formulado pela instituição
(sic).
Dado o meu não-saber-fazer relacionado com um não-saber-pedir institucional,
lancei-me a um “fazer-tudo” sem critérios e a atender todo e qualquer pedido endereçado
ao “analista da instituição (sic)” com o intuito de responder, na prática, o que eu deveria
fazer. Quais problemas eu era capaz de responder e resolver? As supervisões clínicas
pouco me ajudaram, na medida que não havia psicanalistas em hospitais, ou com
experiência institucional na saúde ou na assistência social.
Rapidamente atendi a um pedido que era uma espécie “bomba atômica subjetiva”.
Aprendi da pior maneira possível os problemas iatrogênicos causados por um
atendimento desastrado na qual a pressa em fazer parte da equipe e se fazer “funcional”,
para a instituição acabava por saltar momentos necessários para a reflexão de nossa
decisão e ação. Logo, o paciente/familiares saíram arrasados por causa de um
acolhimento feito por min às cegas, mas que era resultado de minha referência teórica
imatura, pouco racionalizada, evidenciada e esclarecida quanto as suas condições de
possibilidade de seu exercício na instituição.
Ao chegar às 7 h para o início do plantão, inesperadamente um médico solicita os
meus serviços, isto me alegrara, pois, até o momento havia uma invisibilidade perante as
equipes de saúde no tocante aos meus serviços. Ele pediu pessoalmente que eu
atendesse uma paciente e, sem indagar muito os motivos, digo que sim. A paciente,
acompanhada por familiares me esperava na sala da assistência social. Ao entrar, de
forma veloz, a assistente social diz: “esta jovem perdeu o filho durante o parto, e, também,
perdeu à sua mãe já que a mesma sofrera um ataque cardíaco fulminante ao saber que
seu neto tinha falecido”: ou seja, todos os familiares sabiam do acontecido, menos a
jovem que perdera filho e mãe no mesmo dia. E eu seria aquele a dar a notícia deste
fatídico acontecimento.
Resultado: acolhi este pedido. Relatei a jovem a morte de seu filho, ao mesmo
tempo ela perguntara e exigia a presença da mãe. Apenas descrevi que sua mãe também
havia falecido e as circunstancias. Os familiares esperavam que o psicólogo fosse capaz
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Passo este queimado por mim com a desculpa “teórica de que se deveria ampliar o
conceito de demanda para-além do que era estabelecido até então”, isto acarretou efeitos
bastante negativos para a psicanálise e para o serviço de psicologia que viria a ser criado
posteriormente, acabei por não levar em conta ponderações importantes sobre o método
que poderia ajudar a efetuar melhores movimentos e deslocamentos na instituição. Logo
entender que efeitos meu discurso poderia produzir, erro este que moldaria uma certa
lógica coletiva e institucional de apreender profissional psi.
Infelizmente, este foi o meu primeiro trabalho num sentido multidisciplinar, o que
causou péssimos efeitos. Fazendo com que toda aquela efervescência da psicanálise e o
aumento das possibilidades dos pedidos atendidos fossem por mim relativizados.
Conclusão, do lado da instituição pedia-se que auxiliássemos o médico, dando notícias de
morte, de outro esperava-se que nós fossemos capazes de adaptar o sujeito a
normatividade da instituição o que corrobora, também, com a tese de Tourinho (2002) que
deixa este ponto bastante visível.
Aprendi a duras penas a começar a analisar os poucos pedidos endereçados, na
medida em que um outro obstáculo começava a se colocar: não existia uma constante
nas equipes hospitalares, era como se todo o dia encontrássemos novos profissionais
dado as mudanças de horário e de pessoal, o que dificultava a criação de “pontes
estáveis” com os profissionais. Desta forma, pelo menos dentro da minha experiência, um
trabalho longo de inserção de um analista parecia de difícil concretização, mais um ponto,
as questões econômicas faziam com que os profissionais tivessem múltiplos vínculos
empregatícios, daí a rotatividade dos plantões, e a impossibilidade de montar uma escala
de trabalho, consequência: não existe reuniões de equipe, cada profissional realiza o que
se esperaria de sua função quase que individualizada. Logo, uma das conclusões que
começara a chegar estava vinculado a uma concepção idealista de método que possuíra,
no sentido não só de que haveria possibilidade de se aplicar o método psicanalítica a um
contexto específico, como se o primeiro fosse uma categoria transcendental, mas também
como uma certeza que me garantisse o controle dos fenômenos e das variáveis em jogo
na experiência.
É dentro destas condições que comecei a tentar um esboço de atendimento
analítico aos pacientes acamados, ou seja, comecei ir escutar os pacientes em seu leito,
mas também conversar com médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, diferente de boa
parte dos psicólogos que acolheram a demanda médica e foram recompensados com a
sala de psicologia, onde o psicólogo exerceria sua “atividade de dar notícias sobre os
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mortos”, atividade esta que não os culpo, pois quem abriu estas portas foi a minha
presença e seus efeitos.
Foi a partir das visitas, acolhimentos e escutas dos circuitos dos sujeitos em cena
na instituição que comecei a sentir efeitos interessantes, mas ainda não era claro para
mim meus objetivos na instituição, ao mesmo tempo que as condições de inserção do
analista estavam difíceis pelas condições mencionadas, tentei me apoiar na escuta clínica
realizada de leito a leito para começar a dar pelo menos um outro norte e motivação para
o meu trabalho, tentando responder quais efeitos e modalidades de análise estava
realizando. Existem conceitos em Lacan que nos auxiliem a avaliar as evidências de
nossa experiência no âmbito clínico-institucional e, se possível, há possibilidade de
formalizar uma lógica desta modalidade de intervenção? Quais problemas deveríamos
acolher e resolver? Como conectar necessidades, pedidos e demandas institucionais com
o programa metodológico da psicanálise lacaniana?
Este ‘momento de compreender” no tocante a escuta dos pacientes possibilitou
entender a relação que este mantém com a equipe. Os pacientes “problemáticos” que se
recusavam a seguir as regras estabelecidas acabavam por fazer com que a equipe
chamasse o analista, ou seja, começava a ficar claro que a instituição vagamente queria o
silêncio dos pacientes e que os mesmos permanecessem disciplinados. Este meu
diagnóstico da demanda institucional foi explicitada por Tourinho (2002) que também
aponta para os critérios normativos da instituição.
Era necessário sair da posição que a instituição colocou-me (na qual em grande
medida fui responsável), pois se continuasse a acatar estaria agindo no registro da
psicoterapia, sugestionando os pacientes, com uma postura ética bastante questionável,
buscando uma harmonia e paz instituicional que inexiste, utilizando o saber na antítese do
acolhimento de determinado mal-estar, exercendo um tipo de poder que transformaria o
paciente em objeto a ser domesticado e adotando um conceito de saúde de
restabelecimento da condição humana antes do acontecimento-doença. Agindo a partir de
critérios éticos, de saber e poder avessos a inspiração lacaniana, a consequência seria o
esquecimento do que é realmente nossa preocupação que, de acordo com Lacan
(1964/2011): “ é sofrer demais (...) a única justifica de nossa intervenção” (p.164).
É o sofrimento e suas múltiplas relações com a instituição e coletivos que deveria
guiar as modalidades de minha intervenção. Alguns colegas acataram a “ilação”
institucional o que acabou por findar grandes fracassos, na medida em que, por não
conseguirem cumprir efetivamente com este imperativo, houve um contínuo descrédito
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por parte das equipes do serviço de psicologia que, na maioria das vezes, começaram por
optar por medicamentos como benzodiazepínicos para “acalmar” os pacientes, em vez de
chamar o psicólogo.
Dentro deste contexto nada animador, um atendimento que julgo eficaz por
produzir dois efeitos: uma melhora substancial na diminuição do sofrimento de
determinado paciente; a mudança de percepção que a equipe responsável por esse
paciente possuíra dos profissionais “psi”.
Ao iniciar as visitas aos leitos dos pacientes, comecei a ouvir queixas sobre uma tal
paciente que chorando muito acabava por irritar a equipe. E devido a estas mesmas
queixas, se recusava a receber alguns procedimentos básicos, como trocar de roupa, ou
mesmo o banho (devido à natureza das escoriações corporais o paciente estava
impossibilitado de fazê-lo). A equipe não sabia o que fazer, já que os remédios
benzodiazepínicos não surtiram o efeito desejado. Mesmo sem ser chamado, fui escutar
tal paciente (o atendimento durou cerca de uma semana).
“Ela na verdade era Ele”. Pois, de acordo com a história contada, o paciente que
chamarei de João, era hermafrodita, e as características fenotípicas dominantes
fenomenologicamente eram de uma “mulher”, logo, a equipe o percebia como a paciente,
contudo, João se sentia como homem, pois o nome de batismo era de “macho”, segundo
me disse.
Foucault (2008) relata que o hermafroditismo foi considerado no ocidente como
uma espécie de criação demoníaca, pois um mesmo corpo possuía os dois sexos, indo de
encontro a uma suposta natureza humana. João, que tinha cerca de 57 anos, foi tratado
desta forma em toda a sua vida, no qual teve que fugir de casa e da pequena cidade que
nascera para não morrer espancado. Seu sofrimento advinha de que o mesmo não era
tratado por João, mas como uma senhora, durante sua vida, e, agora, pela equipe
responsável, visto que, sua identidade continha seu nome e, logo, a sua masculinidade de
acordo com o mesmo.
Sabendo da história de João, me reuni com os técnicos de saúde, no qual pude
explicitar o “mal-entendido” entre equipe e João. Explanei a história concreta da qual o
paciente vivenciara, a complexidade da questão de seu corpo e também a vergonha que
o mesmo sentia em ser olhado, devido ao hermafroditismo, pois seu corpo sempre foi
tratado com uma aberração, assim, era plausível a hipótese de que o mesmo se sentira
até a data um estranho em relação a sua corporeidade. Esta singela atividade na qual a
especificidade do paciente era levada em conta, permitiu a equipe mudar e entender a
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pode ter sua histórica testemunhada e posta em circulação fazendo com que a equipe se
reconfigurasse, dentro de suas condições de possibilidade, às questões de João.
No acolhimento e escuta que fiz, questões que “poluem” o debate analítico
lacaniano como “gozo feminino ou mortífero”, “formulas da sexuação”, “devastação
feminina” me pareciam no mínimo exagerado e desnecessário para o sentido da
intervenção que ocorrera. Pois, muitas vezes, quando os analistas adentram neste debate
apenas endossam a crítica foucaultiana do “verdadeiro sexo”, de uma natureza sexual
anômala, incompreensível e fora da razão e do conceito. O que tentava promover com
João era de que o mesmo tecesse os fios de sua história a partir do lugar de uma escuta
para além do senso-comum, capaz de “não somente acolhê-la, percebe-la, mas também
responder a ela” (LACAN, 1955-1957/2011, p.80) Acolhimento este possível ou facilitado
pela posição metodológica que o analista é capaz de realizar que desdobra-se numa
forma sui generis de se relacionar com o saber e a verdade.
Este caso começou a me dar um norte de atuação, elementos básicos para praticar
a psicanálise começaram se tornar menos nebulosos dada a complexidade dos diferentes
atores em jogo durante a criação e/ou esvaziamento dos laços sociais. Era interessante
vislumbrar melhor as nuances metodológicas que podem ser abordadas em Lacan, haja
vista que podem ser uteis no desenvolvimento de mapas e guias para o analista,
esclarecendo nossos objetivos e, desta forma, facilitar a nossa lenta inserção.
Dado estas experiências iniciais, meus estudos e minha entrada na universidade
como professor reforçaram a necessidade de apreender este campo em franco
desenvolvimento e em extensão. Do meu ponto de vista, atendimentos no mínimo
questionáveis e concepções de clínica muitas vezes estereotipadas e canônicas,
poderiam ser atenuadas, a partir de uma investigação sobre os principais modos de
atuação que o campo lacaniano oferece. Com pressupostos mal estabelecidos, objetivos
e finalidades mal elaboradas a clínica se torna um potente criador de efeitos iatrogênicos
não só para o paciente ou analista, mas para a própria instituição. (ELDESZTEIN, 2013;
TOURINHO, 2019).
Dando continuidade as narrativas das experiências pelo qual passei no que tange à
relação psicanálise e corpo coletivo – e para que possamos adornar mais ainda a
necessidade de investigar as modalidades e formas de intervenção do analista –
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descreverei duas situações que atuei no CREAS. Se no relato acima objetivei descrever
problemas e algumas precárias soluções no campo específico da saúde concernente a
função da análise, agora, gostaria de tornar visível as questões que surgiram do tempo
vivenciado na secretaria de assistência social, mais especificamente no CREAS.
A título de informação ao leitor, este momento da minha vida profissional se
desenrolara temporalmente na mesma época de minha entrada na instituição de saúde. A
noção de entrada e inserção criada por Tourinho (20002) no contexto das instituições de
saúde, pode ser útil em outros contextos, especialmente naqueles que o analista se
propõe e se responsabiliza por participar como analista. Mesmo que as condições fossem
distintas no CREAS, pois já havia uma equipe estabelecida com psicólogos e assistentes
sociais e um trabalho em andamento, encontrei um lugar preestabelecido e bastante
complicado. A minha convocação no concurso e o lugar designado para atuar se dava em
virtude da sobrecarga de trabalho que o psicólogo do CREAS assumira: soube que o
mesmo estava atuando “como psicólogo” e também com a parte burocrática, e que eu
daria prosseguimento ao seu trabalho como psicólogo, enquanto que a mesmo ficaria no
CREAS desenvolvendo atividades como cadastramento e recadastramento das famílias
no programa Bolsa-família. A minha entrada para dar prosseguimento a um trabalho que
vinha sendo realizado se tornou inviável, ponto este passo a descrever.
A questão de “ficar no lugar” deixou-me pensativo, dada a complexidade e
multiplicidade das formas de se fazer psicologia, continuar e fazer o mesmo trabalho é,
para dizer o mínimo difícil. Pois a passagem da entrada a inserção do analista na equipe
exige posicionamentos éticos importantes para a condução ou promoção do método e da
técnica psicanalítica, posição esta que passa diretamente pelo analista. E, de certo,
prometer que faria igual ou mesmo daria continuidade a um trabalho que eu mesmo não
conhecia se tornava a resposta um problema.
Questão que acho pertinente ser colocada, diferente do campo Hospitalar, o CFP 10
já se ocupou do CREAS e produziu uma cartilha que orientava a atuação do psicólogo
que pode ser resumida da seguinte forma: preservar e respeitar os direitos e dignidade
da pessoa humana, valorizando soluções coletivas para problemas coletivos. Contudo,
existe um erro fundamental que muitos cometem ao ler a cartilha. A diferença entre
10
CFP. Referências técnicas para Prática de Psicólogas(os) no Centro de Referência
Especializado da Assistência Social - CREAS / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP,
2012 acessado em 07/08/2020
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/08/CREPOP_CREAS_.pdf
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para em seguida tentar elaborar conjuntamente com os outros profissionais (no caso dois
assistentes sociais) um plano de ação.
O pedido foi negado, e que ela iria me ensinar como se trabalha com a
comunidade e que bastava, depois, reproduzir o procedimento, na medida que como
psicanalista “eu estava preparado apenas para atender pessoas isoladamente e focar na
doença e que eu não iria fazer clínica! Vê-se aqui, que mesmo entre duas pessoas com
formação em psicologia, a comunicação era, a priori, bem difícil. Se no hospital o
conceito de saúde se articula através de um retorno a um equilíbrio orgânico antes do
acontecimento-doença, no CREAS tínhamos a concepção de saúde como bem-estar
biopsicossocial. Penso que tanto a primeira quanto a segunda não satisfazem aquilo que
o método e a experiência analítica, visto que um suposto equilíbrio entre as instâncias
psicológicas, biológicas e social podem ser problemáticas, pois podem mascarar divisões,
dificuldades e antagonismos sociais que uma visão holista tende a negar 11.
Estava numa situação complicada, acabando por acatar o pedido desde de que
conhecesse como o trabalho era realizado. Nas primeiras semanas participei como um
ouvinte da terapia grupal que a mesmo realizava, este grupo era constituído por mães
contempladas pelo bolsa-família. Quando havia cadastro ou recadastramento, antes do
procedimento burocrático a “atividade comunitária” era realizada com as mães. A
psicóloga colocava uma panela de pressão no meio de uma sala específica para estas
atividades, pedia as mães que fizessem uma roda de conversa. Uma música de fundo
que deveria ser “sensibilizadora” começava a tocar então a psicóloga falava da
importância de ser mãe, para a educação das crianças, para a estabilidade da violência
comunitária que este era um papel divino e que todas deveriam se orgulhar. Depois,
pedia para que todas as mães falassem, e as respostas eram iguais: ‘muito bom”, “um
pouco difícil”, “legal”….. Logo, terminara a reunião comunitária com as mães, e a
psicóloga respondia que a função era conscientizá-las de sua função, e também deixar a
vida delas mais felizes, deste modo não deveríamos focar no que ela chamava de
doença, e sim nos aspectos positivos da vida, a nossa proposta, de acordo com a mesma,
era, também propiciar momentos de descontração e um envolvimento com o cosmo (SIC).
Lacan é pontual ao dizer que uma propedêutica de infantilização geral é dizer
pouco, ao se constatar que a psicanálise já deixa que práticas de mistificação social em
larga escala se autorizem a partir de seu princípio (1999, p.434). A terapia comunitária
baseada no esquizodrama que de acordo com a psicóloga iria libertar os fluxos do desejo,
11
PARKER, I. (2017). Revolução na psicologia. São Paulo Línea.
17
fazendo com que a criatividade das pessoas surgissem, e assim, as mazelas sociais
acabassem, deixava claro algumas coisas: não apenas um rechaço a psicanálise, mas
uma negação quase absoluta sofrimento social que poderia perpassar aquela
comunidade, fundamentada em princípios que não se articulavam com a experiência. Não
obstante, havia um prejulgamento das necessidades, demandas e desejos por parte do
trabalhadores do CREAS no tocante a aquela população.
Daí que, se o meu papel não estava estabelecido, a dificuldade de criar
dispositivos para a minha atuação via institucional e coletiva era notável, comecei a
perceber como à equipe se colocava: era propiciar momentos de lazer a população: com
festas de socialização, oficinas sobre maternagem, corte e costura, psicoeducação sobre
bons comportamentos, combate as drogas e, principalmente, a conscientização sobre o
sexo no sentido da reprodução, ao ensinarmos sobre o uso de preservativos. O que
reforçava minha percepção de que os problemas mais candentes da população atendida
por este CREAS eram escamoteados em virtude dos preconceitos da equipe. Em resumo:
a economia da equipe multidisciplinar da qual estava participando organizava-se por um
lado em preencher e controlar a burocracia do programa assistencial (bolsa família) e, por
outro, nos momentos de cadastramento ou recadastramento das famílias havia terapia
grupal com fins pedagógicos, numa visão “biopsicossocial”, que, na minha opinião nunca
era justificada de maneira convincente.
A problemática daquela comunidade não era apreendida, logo a demanda e a
experiência de sofrimento social não eram compreendidas, desta maneira estava difícil
tomar decisões, direcionamentos e encaminhamentos que realmente trouxessem
benefícios coletivos e, cumprissem, os elementos básicos do que é proposto pelos
objetivos do CREAS, isto é, atendimento da população e pessoas em situações sociais de
risco e vulnerabilidade social, optando, sempre que possível por saídas que envolvam a
comunidade.
Assim, os primeiros meses atuei dentro das premissas da equipe na qual estava
lotado, que me ensinaram que este CREAS especificamente estava construído para se
defender sofrimento das pessoas, uma espécie de política de redução de danos sociais,
“já que não podemos mudar nada, vamos trazer um pouco de festa” (sic). Isto me
lembrou de alguns colegas que pensavam da mesma forma, adotando uma postura mais
lúdica em relação a alguns pacientes, especialmente os terminais.
Atuar de acordo com as premissas deste CREAS, dirigido por uma psicóloga,
levantou para min duas hipóteses que não se excluem: (a) a minha dificuldade de
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realmente explicar o que eu poderia fazer pelo serviço e pela população. Esta dificuldade
de inserção se deve em grande medida a uma dificuldade minha, em conseguir me situar
diante da equipe, de escutar de maneira mais atenta como a equipe estava organizada,
acompanhar seus movimentos. Ao colocar deliberadamente, de início uma proposta inicial
de trabalho, sinto que pulei um tempo necessário para compreender tanto o serviço,
quanto um tempo para que a equipe, pelo menos, relativiza-se o significante “clínica”, pois
me parece que existe uma confusão entre “avaliação psicológica” e a clínica.
(b) A segunda hipótese tem sua articulação exatamente neste ponto: se de acordo
com Tourinho (2013) na inserção do analista na equipe (de saúde) é importante saber as
diferenças entre os discursos médico e o discurso analítico e, como a mesma demonstra,
extremamente produtiva para a resolução eficaz de problemas específicos deste campo.
No meu caso enfrentara uma situação análoga que se refere as diferenças eram entre o
discurso das ciências humanas (psicologia e serviço social) e o psicanalítico.
De maneira bem resumida, enquanto que no campo hospitalar temos sempre que
estar atentos ao “furor sanandis”, a vontade de curar acima de tudo, as ciências do
homem tem como objetivo transformar o sujeito num objeto, no qual suas características,
a dimensão biopsicossocial, sua personalidade, seu grau de consciência crítica são
determinadas e sempre que possível universalizadas, pois é disso que elas se ocupam: o
homem tomado por outro homem como um objeto. O sujeito não é o homem. Se existe
alguém que não sabe o que é o homem, são exatamente os psicanalistas. E este é todo o
seu mérito (…). (LACAN, 1967-68, p.200). Se trabalhava supondo o que pessoas pobres
querem: um pouco de divertimento, quase como um entretenimento para fazê-las
esquecer da vida difícil que levavam.
Conclusão parcial: a minha inabilidade em conseguir comunicar com o que é o
método e a experiência psicanalítica para esta equipe, somada as posturas
diametralmente oposta da psicologia para com a psicanálise fez com que eu entrasse na
equipe, mas não estava inserido, não havia nenhuma contribuição nem efeito da
presença do analista. Trabalhamos a partir da prática que gera incertezas, dúvidas,
desvios, experiências de desconstrução e não com certezas e definições sobre o sentido
da essência humana e coletiva. Uma das posições éticas enfatizadas por Lacan (1999) é
a necessidade de se reconhecer os efeitos deletérios de práticas que tentam transformar
o sujeito num objeto, classificando-o em avaliações ou mesmo diagnosticando-os como
neuróticos, psicóticos e perversos. Seus textos sobre a agressividade e criminologia,
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ambos nos escritos, mostram o quanto que objetificar o sujeito pode resultar em violência
e barbárie, independente da “perspectiva” seja clínica ou “psicossocial”.
Não constatei efeitos interessantes do ponto de vista coletivo, as dinâmicas grupais
ligadas a “conscientização” da população, parecia-me mais próximo de uma descrição
feita por Zizek (2013) que coloca críticas interessantes as certas intervenções
comunitárias: que parecem fornecer um acolchoado macio aos pacientes para evitar seus
sofrimentos. É claro que perguntar se talvez algo possa mudar a regra inquestionada (…)
nem sequer é proibido, mas (…) fora de questão (p.345).
No contexto do meu trabalho inicial no CREAS se tratava exatamente disto: danças
corporais, massagens relaxantes, sensibilidade corporal para que as mulheres atendidas
conhecessem seu próprio “eu interior”. Nada de escuta das pessoas, nada de entender
quais demandas sociais poderiam ser trabalhadas e construídas e que podiam formar
agrupamentos que antes não existiam. Nada de explorar as contradições entre ser
mulher e não se reconhecer como mãe, por exemplo. O objetivo deste CREAS, como a
psicóloga gostava de enfatizar era propor uma experiência comunitária positiva que
valorizava o lado “sadio” das pessoas, o futuro delas, agenciar o desejo coletivo e não se
apegar ao passado ou a doença que denotava o campo analítico e clínico.
A situação começou a mudar a partir de um desastre. Ao propor uma vivência
corporal, no qual as mulheres deveriam se conectar com sua vagina, para melhor se
conhecer como mulher, a psicóloga desencadeou situações inesperadas na qual uma das
participantes começou a se sentir perseguida por “bucetas” (sic) no decorrer da dinâmica
grupal, ocasionando muitas confusões, brigas, até chegar ao ponto desta mesma
participante “intencionalmente” ferir seu cabeça de tal maneira que acarretou um
seríssimo traumatismo craniano.
Foi necessário um evento desta magnitude para que algum espaço fosse aberto a
outras posições que possibilitasse uma outra abordagem no CREAS e da comunidade por
nós atendida. Pela primeira vez desde que cheguei conseguimos realizar um debate
franco sobre os rumos do nosso trabalho, e não apenas preencher burocracia ou
participar de dinâmicas grupais impostas, tanto para os demais profissionais quanto para
os participantes.
Este evento, por mais traumático que fosse não só para os participantes, mas para
toda nossa equipe abriu o que poderíamos chamar, a partir de Lacan (1999) de tempo
para compreender que se revela como uma função essencial da relação lógica de
reciprocidade (p.211). Isto é, a equipe, antes um tanto quanto fechada, no qual cada um
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era responsável por efetivar papeis específicos que quase nunca se cruzavam e, por isto,
a não existência de reflexões sobre o nosso agir, foi condicionada a refletir não só sobre o
seu papel, mas sobre o próprio funcionamento da equipe enquanto tal. Lacan (1999) dá a
entender que este tempo para compreender compõe um tipo específico de racionalidade
coletiva, na qual seus membros produzem narrativas e significações a partir das
complexas conexões que mantemos com a alteridade. Era necessário aproveitar esta
nova temporalidade, para que pudesse passar da entrada puramente física e reprodutiva
de ações pre-configuradas, para uma inserção do analista (TOURINHO, 2019).
Desta vez insisti mais uma vez em sair do prédio para conhecer a população (todas
as dinâmicas eram realizadas no espaço do (CREAS) e/ou o coletivo de pessoas que
deveríamos e poderíamos acolher. Minha proposta foi aceita com a ressalva de “não fazer
clínica”, não respondi, e resolvi ir a campo. Junto de uma assistente social, visitamos os
lugares com o maior nível de pessoas, queríamos escutar, entender o que estas pessoas
estavam passando, quais questões, temas, debates que cortavam a comunidade.
Um adendo: ao atuar neste contexto, sabia do perigo de fazer a famigerada
psicanálise selvagem, tal como alertado por Freud. Por sorte, também, sempre fui um
leitor de Foucault e Derrida que são muito críticos a certos pontos da psicanálise. Então
fiquei sempre atento para não fazer um uso indiscriminado do dispositivo clínico, pois se
já havia tido dificuldade em explanar com clareza os fundamentos do meu objetivo no
CREAS (talvez minha falta de clareza fosse resultado de que eu também não sabia quais
eram meus objetivos), começar a realizar um “psicanalismo” era um dos meus maiores
medos: como atuar na comunidade, a partir de Lacan, sem extrapolar os conceitos, isto é,
fazer com que o método fosse guia de uma prática eficaz? Ou melhor, que este método
abrisse caminho para que eu pudesse entender o que era uma prática eficaz diante de
uma coletividade.
O trabalho então se dirigiu para o encontro e escuta de coletivos representativos da
comunidade. Sentia que o caminho metodológico interessante seria se livrar das
representações e conceitos que a própria equipe possuíra sobre o seu objeto
comunidade, deixando os sujeitos que eram interpolados nas ruas construíssem suas
próprias teorias sobre si próprias e os outros. O que não foi e não é tarefa fácil e rápida,
pelo contrário, inicialmente foi difícil de traçar caminhos viáveis. A condição de pobreza e
miséria eram gritantes, não existia uma escola no bairro, praças ou mesmo quadras de
esporte. Havia somente bares e uma constante vigília da polícia. Lembro que o carro que
nos levou até o local foi o do Instituto Médico Legal (IML). Assim que descemos na
21
comunidade fui perguntado sobre quem teria sido o próximo a morrer. Ou seja, parece-me
que, para aquela população, a maior experiência de inserção do Estado se dava via
repressão policial. Após me apresentar a algumas pessoas sobre quem era, houve um
receio, mesmo desconfiança, de que meu papel ali era fiscalizar as famílias atendidas
pelo bolsa família, afim de puni-las ou mesmo desvinculá-las do programa.
Logo, nada favorecia muito a minha inserção devido as condições a priori
relatadas. Era necessário circular mais pela área e apreender quais eram as demandas
comunitárias e seu papel num suposto ou mesmo hipotético sofrimento social. O volume
de informações, queixas, problemas era de uma grandeza infinita, isto é, os fenômenos
que chegavam ao meu conhecimento me assustavam, pois eram cortados a partir de
vários espectros sejam, políticos, históricos, econômicos e geográficos.
A pergunta era o que pode uma equipe do CREAS (com suas próprias
contradições) na figura do analista e da assistente social fazer? Como intervir diante de
uma gama aleatória de “influências” que eram incontroláveis (pergunta similar à que fiz
em momentos críticos no Hospital)?
Sentia-me incapaz de pensar uma atuação durante os primeiros meses de visita a
comunidade que também possuíam muitas contradições como, por exemplo, a luta por
território simbólico entre traficantes de craque e pastores das igrejas neopentecostais ou a
luta por moradia principalmente de mulheres abandonadas por seus parceiros. Desta
forma, o significante “comunidade” pode trazer para o analista ilusões teóricas, pois
criamos expectativas da existência de um grupo coeso e unido que não se confirma na
experiência haja vistas as divisões e antagonismos de várias espécies e graus. Talvez,
este “problema” em se situar diante das inúmeras divisões advenham justamente da
concepção de comunidade, sociedade e política que possuímos intuitivamente. Talvez,
nosso modelo seja essencialmente “idealista”, isto é, baseada ou na harmonia das
funções e locais do sujeito ou na luta entre indivíduos, com suas vontades, contra uma
força repressora advindas normalmente das instituições.
De maneira surpreendente, surgiu um pedido que poderíamos tomar inicialmente
como um fenômeno fora do campo da escuta analítica: a falta de água frequente que
começou a assolar o bairro. Esta comunidade, em específico, era a única na cidade que a
água faltava em momentos em que havia crises hídricas na região (sic). Foi discutindo um
problema que no início não parecia ser “o nosso objeto” que uma outra cena se
evidenciava. Da falta de água a falta de destino na vida, foi assim que uma das pessoas
ali reunidas na rua se expressou: perguntei: vocês não tem destino? A resposta foi: não
22
Dr.! Nem destino, nem vida, só temos nada. Perguntei se poderíamos nos reunir para
falarmos da água e da vida. Responderam que sim e marcamos um próximo encontros.
Esses debates eram realizados nas ruas inicialmente, um espaço que qualquer
pessoa que quisesse participar poderia ir sem compromisso de falar. Ou seja: reuniões
que dessem condição de possibilidade para que as pessoas falassem sem receio de
represaria, visto que o início de nossa entrada na comunidade foi marcada com
desconfiança e ambiguidade e as mesmas tinham medo que fossemos vigiar suas casas
(sic). Não havia a obrigatoriedade de presença, pois esperava que as questões surgissem
das pessoas e dos encontros (sugestão da assistente social). Confesso que foram tensas
e difíceis. Como servidores públicos, a população nos viam como extensão de figuras
análogas aos políticos e policias.
Numa das reuniões, uma pessoa na qual chamarei de Amelie questionou-me da
seguinte forma: você é psicólogo, meus filhos estão passando fome, nós não temos
banheiro, o que você pode fazer? Apenas olhei de volta para Amelie, sem resposta
alguma e fiquei calado. Deixei a mesma se colocar, o que fez com que muitos se
sentissem autorizados a falar também, muitas vezes com um tom agressivo. Contudo, era
justamente por que não trazia uma palavra de conforto, que seria mais fácil, que as
pessoas ali presentes tinham a capacidade de promover um saber e situar a experiência
de sofrimento para um outro (no caso o analista e a assistente social). O furor sanandi
não é específico do médico nem da área de saúde. Parece-me que qualquer significante
que surgisse por nossa parte, comportando uma resposta fácil aos pedidos e demandas
ali postas levariam o trabalho rapidamente ao descrédito.
Muitas questões surgiram: o alcoolismo na adolescência e na vida adulta, violência
doméstica, desemprego, a falta do estado, violência de gênero, suicídios principalmente
de idosos e mulheres, o racimo e suas consequências. Logo, dar um lugar para que as
pessoas falem, sem querer supor a melhor saída ou se colocar com expertise, fez com
que uma profusão de pedidos e reclamações pudessem ser nomeados e, isto não
bastava, era necessário que o CREAS começasse a reconhecer estas questões como
dignos de serem trabalhadas e destinadas para as instituições capazes de acolher o
sofrimento e a demanda social. Da falta de água se articularam metonimicamente,
digamos assim, outras demandas.
Estas primeiras reuniões em que houve uma construção positiva de conexões
entre nossa equipe e a população por nós atendida acabaram por oferecer situar algumas
premissas: fazer e suportar o lugar daquele que escuta sem colocar o próximo como uma
23
vítima, ou um objeto a ser assistido. Segundo, esta escuta também não visava elaborar
respostas fáceis para agradar o coletivo, pois, mesmo se alguém respondesse
provavelmente nada mudaria. Terceiro, as narrativas que eram elaboradas pelo coletivo
sobre sua situação, política, histórica, psicológica… não podiam ser apenas um “lugar de
fala” da população, ou instante de protagonismo como algumas abordagens psicológicas
e assistenciais gostam de enfatizar. Para Lacan (1999) o discurso não é um fim em si
mesmo, mas constitui uma prática social e, como analista, fazer com este circule
proporcionando mudanças talvez seja um indicativo interessante no tocante a nossa
finalidade do método e o norte da experiência
Uma questão que pode ser levantada neste ponto é a relação entre inserção e
metodologia. Na medida em que a economia da inserção era produzida ia-se montando
um dispositivo de acolhimento para as demandas da população. O método parece está
conectado ao processo de inserção, pois sem este último o primeiro não encontra um
fundamento ou mesmo uma razão suficiente. Será que o método de intervenção no plano
comunitário é um efeito performático da inserção do analista enquanto tal?
Não obstante, no debate com a equipe, as assistentes sociais diziam que eu não
era um psicólogo, pois a minha maneira de agir e escutar, não eram como a dos
psicólogos “sábios”. A minha resposta era de que eu só estava fazendo clínica! Pois, não
bastava escutar, era necessário fazer com o que o sofrimento social articulado nas
demandas se transformassem em práxis. Penso que a escuta promovida na comunidade,
sem restrição de temas ou pessoas, na rua, a céu aberto, foi capaz de articular uma
espécie de lógica da demanda comunitária. Na qual os problemas de várias esferas que
vão da falta material de água a violência passando pela venda e consumo de drogas eram
questionadas. Cronologicamente, este processo levou pelo menos dois anos.
Com efeito, um dos momentos mais marcantes foi construção de uma mobilização
coletiva contra o assassinato de uma mulher vitimada pelo próprio marido, causada, a
princípio, por ciúmes. Este crime não foi cometido na comunidade e nem na cidade em
que o CREAS se localizava, mas numa cidade vizinha. Tal atentado chocante pela forma
como foi cometido e pelo grau de agressividade, resultou numa comoção por parte de
moradoras da comunidade. Numa das reuniões, que começamos a chamar de “troca de
ideias”, pelo caráter voltado para a construção de pautas e queixas que circunscrevia
aquela comunidade. As participantes sentiram à necessidade de mobilizar a indignação
social, em virtude da identificação coletiva, pois muitas passavam por situação similar.
24
mulheres que se deslocavam para outros lugares afim de encontrar água para os maridos
e filhos. Queixas e denúncias contra políticos e contra os aparelhos repressivos do estado
foram explicitamente colocados na cidade, exigindo mudanças. Houve uma participação
considerável da comunidade.
Foi a partir desta gratificante experiência na qual participara que comecei a sentir
com maior “organicidade” os efeitos do analista na rua (literalmente): criar dispositivos
clínicos capazes de acolher, escutar e construir as demandas sociais. Contudo, foi
necessário um acontecimento disruptivo, não imaginado, um acaso (o assassinato brutal
de uma mulher desconhecida) que articulou, mais ainda, sentimentos e afetos causadores
da mobilização.
Esta questão foi debatida por nossa equipe, uma das assistentes sociais com uma
formação mais marxista ponderou que este tipo de mobilização, mais caudada na figura
da mulher, do que na luta de classes poderia ser um desvio ideológico das “verdadeiras
causas da violência”: a economia. Pontuei que a mobilização não foi fruto de uma teoria,
mas da clínica, da experiência vivida com aquelas mulheres e que, pelo contrário, uma
demanda não anulava a outra, mas se articulam e que, a partir do tempo e momento, tais
problemas podem vir a adquirir um certo protagonismo.
Tourinho (2013) enfatiza que a inserção do analista na equipe se constitui em
correspondência com o trabalho clínico que envolve uma dialética particular de cada
analista e equipe, bem como suas contingências. A minha entrada na equipe, bem como
as contribuições que a psicanálise pode oferecer, só foram possíveis na medida de em
que me inseria na comunidade.
Assim, dentro do complicado processo de inserção me parece que as questões
metodológicas advindas de Lacan sempre que bem colocados, podem resultar em
intervenções produtivas. Visto que este autor nos permite atuar na antíteses das práticas
que se colocam como juízes que definem a revelia dos sujeitos os significados de coletivo
ou sofrimento que compõe seu mundo. Quais consequências teóricas poderíamos tirar
destas experiências? Uma investigação sobre o método em psicanálise e, por ventura, as
posições e responsabilidades do analista podem ajudar a apreender a lógica da
intervenção analítica dentro de certos contextos e áreas que devem ser levados em conta
durante o exercício da experiência psicanalítica. Um outro elemento se refere a alteridade
que o analista encontra, nos parece que a relação que pode ser estabelecida entre o
ponto de vista analítico e o ponto de vista do outro pode ser mediada pelo conceito de
demanda, ou mesmo no tocante a lógica significante. Estas são, ao meu ver,
26
Itinerário
Logo, penso que uma investigação sobre o método em Jacques Lacan, tomando
como ponto de partida as experiências aqui explicitadas, podem oferecer uma gama de
possiblidades para a resolução de problemas mais diversos que encontramos nos
coletivos.
Talvez esta investigação nos ajude a cooperar com o debate já em curso em torno das
modalidades de intervenção do analista a partir de Lacan no campo social. Poderíamos
sugerir que uma das contribuições que a matriz lacaniana oferece seria uma espécie de
“materialismo do real” no qual conceitos calcados em estruturas topológicas conciliam o
inconciliável, simbolizando as complexas relações entre o sujeito e o Outro, sem torná-las
essencialmente dicotômicas ou idealizadas.
Diversamente da crítica tradicional à psicanálise de que a mesma é incapaz de
operar com multidões por desconhecer ou mesmo não valorizar traumas sociais 13, propor
saídas individuais para problemas políticos ou mesmo atuar no sentido da reificação do
sujeito, minha intuição inicial é a de que guias metodológicos, possam facilitar não só
uma maior apropriação da psicanálise lacaniana de “situações sociais limites”, mas
apresentar quais possíveis finalidades, objetivos e quais tipos de problemas o analista é
capaz de responder, responsabilizar e resolver 14. Dito de outro modo, a reflexão
metodológica pode possibilitar dar maior visibilidade as condições necessárias para o
exercício da psicanálise in context.
A palavra método foi escolhida pelo imenso domínio discursivo que a mesma
parece delinear: ao mesmo tempo que denota as modalidades de tratamento e cura de
uma análise, refere-se as formas de pesquisa e ao relacionamento com os saberes e
ciências em jogo para a psicanálise. Diferente de práxis, mais usual na teoria crítica, o
13
ALPERT, J. L. & GOREN, E. R. (eds.) (2017). Psychoanalysis, Trauma, and Community:
History and Contemporary Reappraisals. New York: Routledge
14
Pois, tanto nos cartéis (grupos organizados para o estudo e aprofundamento da teoria
analítica) quanto nas supervisões o que eu fazia no CREAS não era uma verdadeira clínica,
mas a psicanálise aplicada. Me parecia um completo contrassenso esta terminologia, pois
além de ml estabelecida, nas entrelinhas acabava por valorizar um tipo de tratamento, como
se existisse um tratamento-padrão, normativo e disciplinar, da qual os outros seriam pequenos
variantes, suplementos, mas não a verdadeira análise.
27
método pode promover uma ponte e articulações com outras disciplinas que coabitam o
mesmo espaço institucional como a psicologia, serviço social, enfermagem por exemplo.
A capacidade de construir uma paisagem de sua atuação, pontos de referência para uma
provável ação que pode muito bem ser conjunta.
O método nos parece sintagma amplo para os nossos propósitos, permitindo que
novas questões e problemas surjam no decorrer da tese. Logo, o método deve ser
entendido como uma entidade fragmentada e que, a depender do contexto e objetivos,
seu sentido pode variar. É necessário nos precaver de uma unicidade metodológica
interna ao campo lacaniano, para que novos acontecimentos e descobertas teóricas
possam advir. Portanto, trata-se de uma estratégia afim de suspender os significados e
sentidos pressuposto quando falamos de método e, em especial, ao circunscreve-lo como
clínico. De forma preliminar, trata-se de compreender o método de forma particular,
específica e singular na situação no qual foi expresso, estabelecendo as relações que o
método faz valer com outros conceitos e, desta forma, entendendo que tipo de questão,
discurso, problemas e soluções o método produz.
Um erro grave no que tange ao nosso itinerário seria tomar “o método” como
homólogo ao método clínico. Há estudos profícuos sobre este último que se detém a
investigar historicamente seus meandros e sua importância para a psicanálise. Um
exemplo disto é o nascimento da clínica de Foucault (1988) e estrutura e constituição da
clínica psicanalítica de Dunker (2011). Se partíssemos de uma concepção de método já
delineado por estes autores estaríamos cometendo o erro acima mencionado: tomar o
método como uma unidade discursiva estabelecida e não como um campo instável, onde
acontecimentos e querelas fazem parte. Entenda-se, não que estes autores
demarquem uma univocidade metodológica para a psicanálise, pelo contrário, mas
nosso receio esta em evitar a todo custo conceito de método por demais interior ao
campo clínico, partimos de uma postura filosófica inspirada em Hegel em que a
contradição é o elemento promotor do saber e, desta forma, esta posição se traduz
na aposta da pesquisa.
Contudo, mesmo não estabelecendo uma definição forte de método é preciso pelo
menos de forma parcial e mesmo precária (o que implica novos rearranjos conceituais)
alguns conceitos de método que nos possibilite um recorte da obra lacaniana. Já existe
uma tendência interpretativa chamada de orientação lacaniana em que o nome de
destaque é J-A Miller que, de certa forma, estabelece um recorte cronológico na obra a
partir de mudanças no regime do simbólico, imaginário e real. Ou seja, a ideia é a de que
28
existiria uma evolução no pensamento lacaniano que com o passar do tempo, na medida
em que o real possuiria uma maior relevância, os processos clínicos mudariam. Não é
nosso intuito avaliar a pertinência desta interpretação, mas marcar um pouco mais a
forma metodológica que desejamos avançar nas questões que são pertinentes a nossas
pesquisa.
Assim, em vez de adotarmos um conceito de método imanente a psicanálise ou
que fosse natural a mesma, optamos por trabalhar com o conceito de método que advém
da chamada epistemologia histórica de Hackinq (2018), Davidson (2019) e Daston (2017).
Para estes autores pensar a metodologia implica em organizarmos três nuances de
determinadas práticas científicas: o primeiro estaria ligado ao tipo de racionalidade que
determina os usos dos conceitos especificando seus arranjos e organizações; segundo,
esta investigação seria vazia se não houver uma demarcação ou delimitação da
experiência e práticas que corroboram o uso dos conceitos nas atividades cotidianas; e
por último as concepções de objetividade, fato e evidência que subjaz um saber. O
conceito de método adotado visa descrever estas estruturas, compreender as regras de
verificação, sua articulação com acepções do conceito de experiência. Ou seja, os
caminhos e trilhas que interligam o conjunto de conceitos, experiências e as evidências
são o método e, a partir dele, é que a obra lacaniana será revisitada. Portanto, seja pelo
uso dos conceitos, pela teoria da experiência ou pela concepção de evidencia em Lacan
que nossa pesquisa terá o seu norte.
Este conceito de método que não é frequente em Lacan pode ter uma relevância
interessante para a nossa experiência teórica: ele pode desenterrar concepções
obscuras, as vezes naturalizadas ou pouco usuais que podem, se bem colocadas,
desempenhar funções importantes em contextos específicos. Esta seria tarefa
metodológica de nosso conceito de método.
Logo, antes de dar os próximos passos da tese, quero elucidar como a mesma
esta organizada. O exame das questões metodológicas que permeiam o ensino lacaniano
terá como inspiração a análise historiográfica 15 presente nos estudos de Foucault
(1969/2013), Safatle (2005) e Dunker (2011). Desta forma, o meu ponto de partida é
15
Ao realizar uma análise histórica do método em Lacan três pontos devem ficar bem claros: a)
queremos resistir a ideia de uma evolução dos conceitos como se existisse um primeiro, segundo
ou terceiro Lacan e que quanto mais tardia, mais verdadeiro ou sábio é o autor; b) fazer uma
leitura propriamente psicanalítica da psicanálise seria imprudente e tautológica, visto que estamos
questionando e o método; c) a escolha mais diacrônica se deve pela procura da simplicidade e de
uma forma explícita para que os argumentos possam ser apresentados e criticados.
29
16
Questão debatida por Foucault em O que é um Autor (1992). Aqui o Foucault faz referência ao retorno a
Freud como como um tipo de leitura criativa, produzindo novos discursos.
30
17
Em A Visão em paralaxe (2008), Zizek realiza uma crítica contundente a Ética da psicanálise, afirmando que as
mesma é cheia de contradições não superadas por Lacan; ao contrário, Análise lacaniana de discurso: subversão e
pesquisa crítica, Junior; Dunker& Pavón-Cuéllar (2019) afirmam que a questão ética é mais importante do que
princípios metodológicos.
18
Há debates interessantes sobre a relação entre método e ética psicanalítica, talvez o mais sintomático seja encontrado
em A etificação da psicanálise de Jean Allouch. Aqui, o autor faz críticas a abordagens que privilegiam de maneira
exagerada a ética em detrimento do método psicanalítico.
19
O programa metodológico faz alusão aquilo que foi definido por Imre Lakatos(1983) como Programa de pesquisa.
Para Lakatos(1983) era necessário que um programa de pesquisa possuísse um núcleo teórico forte capaz de
permanecer estável mesmo através de críticas por um lado, e, por lado um cinturão protetor no qual poder-se-ia
acrescentar novas hipóteses, ideias e conceitos. Meu intuito é mais modesto, pois não desejo investigar o núcleo duro da
doutrina lacaniana do método, mas apenas quais as possibilidades metodológicas este autor nos possibilita pensar,
digamos assim.
31
20
Esta afirmação de modo algum quer significar que em textos, artigos e obras mais tardias a preocupação
em torno do método seja secundária ou incipiente. Apenas queremos ressaltar que a preocupação em torno
da técnica tem um tom de urgência.
21
Questão debatida por Foucault em O que é um Autor (1992). Aqui o Foucault faz referência ao retorno a
Freud como como um tipo de leitura criativa, produzindo novos discursos.
32
(2) A partir dos dados, fatos e evidências que a experiência analítica produz,
entender a complexa relação entre técnica e teoria antevendo um método de
tratamento eficaz, com fins e objetivos delineados.
Para que estas questões mais gerais, pois transcorrem a sua obra 22 como um todo,
possam adquirir um desenvolvimento plausível para psicanálise, Lacan começa a
discussão priorizando alguns temas centrais da experiência analítica neste momento: a
historicidade do sujeito e a importância de fundamentos metodológicos razoáveis para a
psicanálise. Com isso queremos enfatizar que no decorrer do Seminário I (1953-1954),
pelo menos em nossa interpretação, são estes os principais motes que alimentam suas
aulas. Naturalmente, não há como investigarmos estes tópicos separadamente, pois
Lacan as entrelaças sistematicamente, fazendo com que uma, no tocante ao seu
entendimento, dependa da articulação da outra.
A abertura do seminário I (1953-1954) enfatiza que a originalidade da experiência
analítica deve-se a inclusão de ações/intervenções/interpretações relacionadas a
produção de sentido. Ou seja, a prática psicanalítica ao valorizar a historicidade narrada
pelo paciente, acabaria por descobrir que as querelas e questões que estão presentes no
decorrer de sua vida estão entrelaçadas com uma história social que não se resume ao
seu passado, mas está atrelada a fatores que lhes são atuais. O método analítico ao
tomar esta diretriz, deve ser capaz de dar condições de intervenção que, neste momento,
favoreceria o reconhecimento deste emaranhado ou nós históricos que escapam ao
sujeito.
Se Lacan realiza uma analogia entre o mestre zen e o analista já bastante
conhecida, há uma outra que promove os conceitos como facas, ou seja, para o analista
se trata de dissecar o material discursivo expresso pelo sujeito operando transformações.
Aqui, temos que esperar para apreender como Lacan apresentará à finalidade e eficácia
que estas operações propõem.
Lacan é bem contundente sobre a importância do método, pois é em torno dele
que uma série de variáveis da experiência tomam forma e objetividade. Diferente de
outras modalidades de tratamento terapêutico, é a história do sujeito que pode vir a
condicionar a trajetória do tratamento, historicidade que se apresenta como desconhecida
22
No seminário 11 Lacan (1964/2003) confirma este ponto ao afirmar que todo o seu ensino tem
seu mote no “concreto” da experiência analítica.
33
e um outro que Lacan (1953-1954) parece querer resgatar, qual seja, os vínculos e os
acasos que fazem parte de uma vida podem produzir novos sentidos a partir de perdas de
antigas significações. É nesse liame muito tênue que o método opera.
Daí a complexidade que envolve o método lacaniano tem que responder, pois ele
deve especificar a psicanálise como uma ciência e técnica de tratamento, com o adicional
de que o paciente não deve ocupar o lugar de objeto, mas de sujeito, implicando que suas
questões e demandas sejam tomadas concretamente o que produzirá uma variedade de
experiências singulares que os métodos científicos clássicos tendem a desconsiderar.
O passo dado por Lacan (1953-1954) é apresentar a finalidade do método analítico
de forma mais específica no que tange ao campo psicanalítico em geral. O manejo das
técnicas como associação livre de ideias e a interpretação devem ser consideradas dentro
do objetivo de reconstrução da história do sujeito. Este processo visa restabelecer a
verdade elidida no discurso que surge através dos equívocos e incertezas, especialmente,
nos momentos em que as dúvidas sobre os acontecimentos vividos pelo paciente, por
exemplo, se constituem como materiais empíricos importantes e que, digamos assim,
prenunciam a importância da palavra plena em contraposição a palavra vazia.
De forma sucinta, pois este tema já foi bastante explorado, no contexto do
seminário a palavra plena deve ser compreendida como uma experiência ligada ao
reconhecimento de fragmentos importantes da história do sujeito capaz de realização da
verdade, opondo-se à palavra vazia em que pontos fundamentais para progresso da
análise acabam por estagnar ou entrar em inércia.
O que Lacan dar a entender nos pontos iniciais de seu seminário é que o método
histórico superaria o que os analistas apregoaram, mas incluindo-as. É como se as
técnicas desenvolvidas desde Freud pudessem ser agrupadas, com a precondição de ter
a seguinte finalidade metodológica: a psicanálise é um processo experimental que
recompõe a história do sujeito através de interpretações direcionadas para os momentos
mais ambíguos do seu discurso. A pergunta que devemos fazer é: quais são os efeito
deste método? Como a experiência histórica do sujeito que o método parece explorar se
encaixa no panorama lacaniano?
Tudo indica que a experiência clínica que Lacan vem procurando circunscrever,
com todos os problemas que uma ciência do particular pode acarretar, deve ser entendida
no bojo de processos ligados ao tema do desconhecimento. Aqui, esta questão
comparece ainda de forma tímida, mas Lacan confere o seguinte tom: “a todo instante
essa experiência consiste em mostrar ao sujeito que ele diz mais do que pensa dizer.
35
(p.77)”. Logo, esta experiência que escapa as intenções conscientes são frutos de
negações de momentos cruciais da vida do sujeito, logo, permanecem ainda no plano do
desconhecimento. É esta experiência que é produzida pela discursividade do diálogo
analítico que o método explora visando demarcar a importância decisiva que as negações
tiveram na vida do sujeito através do reconhecimento de histórias e dramas esquecidos.
Até o momento, questões concernentes as categorias Simbólico, Imaginário e Real
não tinham feito a sua estreia, mas a partir da aula intitulada “Análise do eu e análise do
discurso”, a tríade começa a ser utilizada de maneira mais contundente e, sobretudo,
como elementos capazes de organizar dados da experiência. Isto fica ainda mais patente,
visto que, quando Lacan (1953-1954) se detém em modalidades de psicanálise que
historicamente foram tidas como rivais como no caso de Anna freud e Melaine Klein, o
Simbólico, Imaginário, Real são as entidades utilizadas para diferenciar ambos processos.
Ou seja, ao seguir as trilhas de Lacan, distintas formas de intervir e seus efeitos clínicos
podem ser inferidos a partir de diferentes formas de se trabalhar com as categorias
Simbólico, Imaginário e Real. Anna Freud se detém na análise das resistências,
projetando e confundindo suas próprias intenções com as do paciente. Logo, temos uma
proposta caracterizada dentro do âmbito imaginário que Lacan (1966/1999) desde os
meados de 1940 vinha alertando sobre os problemáticos efeitos das abordagens clínicas
que enfatizassem exclusivamente o reforço das identificações do paciente com o
comportamento idealizado do analista. Tais problemas que foram bem descritos em
Agressividade em psicanálise (1946/1999), no contexto do seminário I é a incapacidade
mesma de apreender o discurso do sujeito e, em especial, na constituição de seu mundo
com seus discursos e leis.
Destarte, ao apresentar os problemas que experiências calcadas na relação
dual/imaginária podem acarretar no percurso da análise, Lacan (1953-1954) abre as
portas para delinear outra categoria: a função simbólica. A explanação que a mesma
recebe se dá através dos relatos de experiência de Melaine Klein. Diferente de Anna
Freud que enfatizava os aspectos e sentimentos que o analista sentia pelo paciente e que
se tornou uma linha de reflexão contundente e importante chamada de contra-
transferência. Melaine klein se situa numa espécie de antítese de Anna Freud, visto que,
para Lacan, a mesma faz uso mesmo sem saber da função simbólica no que tange os
processos terapêuticos. A ressalva feita no decorrer de uma discussão em torno do
clássico caso Dick se refere a intervenção no que poderíamos chamar de eixo simbólico.
De fato, Melaine Klein não se atém a centrar a análise na sua relação com Dick, mas se
36
orienta através da posição que o sujeito ocupa diante dos objetos que, pelo menos no
início, são qualitativamente pobres, ou seja, os vínculos com outras pessoas são difíceis
de se formar.
Lacan (1953-1954) argumenta que o progresso clínico de Dick se dá através da
vivaz intervenção simbólica que produz um alargamento das relações de objeto. É como
se, pela incapacidade de articular um espaço simbólico que estruturasse suas relações
com os conflitos Edípicos, que não apenas vinculam temas sobre a sexualidade, mas
também leis e histórias familiares que envolvem uma política da significação, Dick
possuiria uma série de dificuldades para a formação de laços sociais. Tais dificuldades
foram amenizadas a partir do momento que Melaine Klein interpreta os brinquedos de
Dick como representantes do Pai e da Mãe, inserindo-o num mundo de troca simbólica.
Temos aqui o ponto de Arquimedes que Lacan quer introduzir: uma experiência que
privilegie o imaginário só acarretaria mais problemas, alienando o paciente a um
tratamento moralizante, contudo uma clínica que entende o funcionamento simbólico só
tem a ganhar, pois resgataria momentos históricos fundamentais que podem estar
estagnando ou limitando as possibilidades de modificação dos sintomas.
Entretanto, para Lacan (1953-1954) não se trata apenas de valorizar uma categoria
da experiência em detrimento de outra, ao contrário, é de uma correlação ou
interdependência entre os registros Simbólico, Imaginário e Real que o método analítico
pode provar sua relevância. Assim, é na metade do seminário I que as definições e o
funcionamento sincrônico das três categorias serão expostos. Acompanhemos a essência
dos argumentos lacanianos para entendermos sobre as modalidades de ação analítica
subsidiada pelo método que se fia pelo simbólico, imaginário e real.
Lacan (1953-1954) apresenta o famoso modelo óptico que objetiva ilustrar como o
método analítico, que elucida as interações entre os planos simbólico, imaginário e real, é
capaz de produzir quando diz respeito a novos fenômenos e, principalmente, processos
de transformação que estão sempre em jogo na experiência. O modelo óptico funciona da
seguinte forma: o sujeito se coloca numa posição especular com um parceiro ou
semelhante que, como consequência, constitui a imagem corporal do primeiro. Logo, o
eu-corpo do sujeito se dá através desta relação com o outro fundamentalmente narcísica.
Partindo desta premissa de que a imagem corporal do sujeito é co-dependente da
imagem idealizada corpo do outro, Lacan (1953-1954) acaba por definir o simbólico como
o espelho, a lente ou vidro que de certa forma regula o acesso do sujeito aos objetos. O
conceito de real ainda nos parece incerto na forma como é definido, mas é possível
37
algumas divagações: (a) a primeira o real se confunde com a realidade; (b) a segunda o
real pode ser colocado como uma experiência de difícil acesso ou elaboração; (c) ou,
pode ainda, utilizando de maneira analógica algumas reflexões de Latour (2017), o real
seria um referente no sentido etimológico que a palavra possui em latim referre possui:
“trazer de volta”. O real é aquilo que designo com o dedo, fora do discurso, ou é aquilo
que trago de volta para o interior do discurso? (LATOUR, p. 48). Se o real pode adquirir
esta ambiguidade é necessário seguirmos as premissas que constroem a experiência
analítica.
Assim, se no início Lacan colocava como central a técnica proposta por Freud, o
seminário I não se desenvolve exclusivamente em torno de categorias freudianas, no qual
Lacan (1953-1954) chega a criticar, como, por exemplo, a associação livre de ideias pois
“esta define muito mal o de que se trata - são as amarras da conversa com o outro que
procuramos cortar (...) fazendo com que o sujeito encontre-se numa certa mobilidade em
relação a esse universo de linguagem (p.230)”. Desta maneira ao propor o Simbólico,
Imaginário e Real é como se Lacan (1953-1954) estivesse redirecionando o debate em
torno da técnica, mas, sobretudo, os efeitos que o método analítico é capaz de produzir.
Nos parece que o Simbólico, Imaginário e Real ganham uma relevância a tal ponto que o
método analítico que subsidia a experiência é inconcebível sem eles. Nas próximas aulas
do seminário I Lacan (1953-1954) se preocupará em demonstrar a importância destes
planos, articulando-os ao conceito de transferência, a ideia é acompanhar e comentar a
proposta lacaniana, visto que, é um projeto de ciência do particular que o método tem de
resolver.
Se entendemos que não há eu sem relação com o outro, isto é, a as identificações
formadoras do fundamento da identidade são dependentes do vínculo que mantemos com
a alteridade, Lacan (1953-1954) começará a pontuar que a técnica não visa fortalecer tal
vínculo imaginário. É neste laço que Lacan (1953-1954) situará inicialmente a
transferência, daí surge a ponderação sobre a posição do analista, na medida em que, o
fortalecimento da intersubjetividade imaginária ao mesmo tempo que promove a
possibilidade do engajamento do sujeito na análise e, desta forma, com o analista,
também produz fenômenos como a agressividade, amor e ódio. Pode-se deduzir os
problemas terapêuticos que uma análise ligada ao objetivo de fortalecer os vínculos
imaginários acarretam: alienação do sujeito numa imagem idealizada do outro.
Um incurso sobre o sentido de uma análise é no mínimo necessário para
apreendermos a lógica da metodologia que Lacan (1953-1954) emprega para transformar
38
pode ser interpretada da seguinte forma: a psicanálise opera através da história concreta
do sujeito, a partir do momento que essa história é reconstruída, certos fatos e dilemas
que num primeiro momento eram desconhecidos passam ao âmbito do reconhecimento e,
desta forma, as angústias e sintomas se desfazem ou atenuam, visto que, os sentidos dos
mesmos ao serem apreendidos os desfazem.
O analista engaja o sujeito numa espécie de pesquisa da verdade com clara
conotação ontológica. A verdade em jogo está nos momentos de dúvida, incerteza,
báscula que o sujeito experiência quando a imagem especular não responde do lugar que
se imagina. Da questão mais ontológica e até mesmo metafísica da verdade como
equivocação de fenômenos desconhecidos de sua vida, mas determinantes na
organização das formas de sofrimento, podem ser superadas desde que o analista
consiga manejar as lentes através do qual o sujeito se vê. Como na óptica, a maneira de
posicionar o espelho determina o modo como me reconheço ou sou enganado por um
truque de especular, o analista estará não como um parceiro especular, mas propiciará
que o sujeito experimente as contradições em voga em suas identificações.
Se no plano de fundo comparece a reflexão ontológica sobre a verdade e a
realização do ser que ela proporciona, no plano metodológico se refere ao modo e as
finalidades que a análise se propõe, ou seja, é por não afiançar a relação intersubjetiva na
qual o analista pode ser convocado a identificar-se empaticamente, que analise pode
cumprir uma finalidade mais dialética. O que nos leva ao ponto epistemológico: o objetivo
de uma psicanálise pode chegar a uma despersonalização, categoria frequentemente
usada quando se trata de transcrever fenômenos primários da esquizofrenia, mas no
contexto do seminário, conota a destituição das identificações, a ideia lacaniana é
aparentemente simples: não transformar o sujeito em objeto, que é um problema não
apenas da psiquiatria que desconsidera as significações dos fenômenos patológicos, mas
da psicologia que sem um projeto concreto acaba por reintroduzir todo o tipo de
misticismos.
Se tomarmos a perspectiva dos registros que estão mais firmados com a
experiência, as coisas se passam da seguinte maneira: os momentos de equivocação da
verdade presente na fala do sujeito acabam por ser valorizados pelo analista, sua atuação
é simbólica no sentido de que permite que as palavras amordaçadas (um outro nome para
o recalcado freudiano) desenlace o nó de significação que petrificou o sujeito em imagens
idealizadas que estão sempre em descompasso com o real. O tratamento visa uma
experiência dialética, a atuação simbólica do analista permite passar do desconhecimento
41
23
Não obstante há vários artigos publicados nos Escritos (1999) que objetivam aprofundar o
diagnóstico em torno da psicanálise de sua época.
42
Um passo dado por Lacan no seminário II (1954-1955), e que não tinha aparecido
pelo menos de forma tão contundente, é a importância do estruturalismo que veremos
mais à frente. Isso, de forma alguma, elimina todos os prolegômenos lacanianos no que
tange a função da história 24 do sujeito no tratamento, sobretudo, na dialética do
desconhecimento ao reconhecimento da experiência analítica. Mas, entre a elaboração da
função do eu em Freud até a crítica a técnica da análise atual, Lacan (1954-1955) parece
exprimir a necessidade de incorporar o registro simbólico ao debate de maneira mais
24
Há uma crítica ao estruturalismo Francês de que o mesmo enfatizaria os aspectos formais do discurso ou de narrativas
em detrimento ao conteúdo o que para alguns autores foi traduzido como a negação da história (DOSSÊ, 2007).
43
substancial. Ou seja, tudo indica que é em relação a este plano que Lacan (1954-1955)
fará girar as intervenções do analista.
Não obstante, por um lado, os desenvolvimentos sobre as finalidades da
psicanálise levadas a cabo no ano anterior tiveram um boa repercussão sendo
incorporados, por outro, existe um projeto que começa a se desvelar profundamente: a
ênfase dada a revolução coperniciana efetuada por Freud que é, também, resultado de
um conceito não muito bem aceito na época: a pulsão de morte. Resumindo, a concepção
que o método psicanalítico opera através das funções de rememoração dos conflitos
sobre o qual sujeito desconhece a princípio, será cruzada com uma reflexão sui generis
em torno da pulsão de morte, logo, tais desenvolvimentos possuíram consequências
interessantes para o método e nossa leitura tentará cercear este movimento.
A providência tomada por Lacan se refere a afirmar e argumentar que a
experiência analítica apresenta uma espécie de ruptura com o que até o momento se
concebia a conduta humana. Fazendo referência a Alexandre Koyré e, sobretudo, a Lévi-
Strauss, o primeiro tendo um papel importante nas considerações lacanianas sobre a
ciência, o segundo no que tange a inserção da categoria estrutura advinda da
antropologia.
Assim, se a revolução coperniciana estabelecida por Freud introduz um
descentramento do sujeito de tal forma que a noção de indivíduo fica insustentável, deve-
se justamente a concepção estrutural da subjetividade, visto que, para além do fenômeno
de uma consciência que se crê autônoma, várias camadas que envolvem laços sociais se
impõe de tal forma que o eu sendo apenas um objeto imaginário está em descompasso
com a esfera do sujeito.
Já havíamos estabelecido com Lacan no seminário I (1953-1954) que a
despersonalização do sujeito é um dos princípios para o exercício da psicanálise, e que,
agora, podemos acrescentar duas características intricadas deste processo uma de
ordem epistemológica, outra antropológica. Ou seja, o método deve prover modos ou
maneiras para contornar o problema epistêmico da objetivação do sujeito e, desta feita,
reposicioná-lo diante do reconhecimento das estruturas discursivas que constituem sua
experiência de sofrimento. O sujeito surge como um experiência de ruptura seja de
expectativas do eu ou do outro.
A dificuldade de prove-lo25 de uma definição quanto a sua novidade faz Lacan
(1954-1955) retomar o debate mais ontológico. Ao se referir ao sujeito como o núcleo do
25
A definição positiva do que é o sujeito foi observada por Olgivie (1991) e Simanke (1997).
44
entendimento, por parte do sujeito, desse circuito, com seus polos, suas contradições
impossíveis de se harmonizar, propiciando com que o sujeito entre em novos circuitos,
rodas e discursos.
Interessante aqui apontar para o caráter mais pragmático e materialista que Lacan
torneia os fundamentos da psicanálise. Ao mesmo tempo que recusa um idealismo
descontextualizado com o real, afirmando que a experiência analítica é acompanhada
seja de hipóteses, deduções e induções, por se tratar de uma prática (definida aqui como
interação entre simbólico e real) é necessário abrir as portas para o sujeito, talvez daí
surja as condições de possibilidade de um método analítico. Lacan (1954-1955) tenta
deixar claro que existe uma diferença entre o método analítico e o científico. Contudo, o
debate recai para uma discussão ontológica, visto que a questão é retomada através do
ponto de vista do ser do sujeito como uma espécie de experiência que conduz a um
“ponto de fuga” (p.135) no que tange ao método ciência. A objetivação do método
científico produz o indivíduo com funções psicológicas, com uma interioridade ou
essência. Logo, se não é um referente que a análise apreende, o que a experiência
analítica capta, digamos assim?
A ênfase é colocada no fenômeno “não apreensível” (p.138) da relação do sujeito
com o sistema simbólico, e, desta forma, é fulcral para Lacan (1954-1955) o vínculo entre
sujeito e a alteridade. Há duas formas de “presentificação” desse fenômeno, ou seja, há
níveis simbólicos e imaginários que se entrecruzam (como precisaremos ao comentarmos
o esquema Z). Portanto, enquanto poderíamos chamar de intersubjetividade a relação
entre o eu e o outro imaginário, a relação inter-humana estaria no plano simbólico, pois
não é necessariamente intersubjetiva, visto que não existise uma troca completa e
comunicativa entre sujeito e o polo do discurso do Outro. Nos parece que o método
analítico deve saber apreender este momento “absolutamente inelaborável” (p.138)
apresentado pela experiência. Mas como isto se dá?
É no decorrer deste fenômeno que a experiência analítica revela a “dialética
negativa” (p.150) que persiste para além da consciência ou eu do sujeito. A pulsão de
morte deve ser compreendida dentro deste escopo, na medida em que descreve a
relação conflituosa do sujeito com a realidade, ou, se quisermos adotar a terminologia
lacaniana teremos a ordem simbólica como conceito que denota o fenômeno que obrigou
Freud a realizar o descentramento coperniciano da subjetividade.
Desta forma, parece-nos importante salientar o quanto Lacan se esforça por
apreender a ordem simbólica dentro de parâmetros desordenados que passa ao largo de
47
interpretações mais estáveis desta categoria da experiência, isto é, não se deve confundi-
la com noções muito fortes e estáveis de social. A ordem simbólica é o vetor do
descentramento e da repetição como já explicamos, sua negatividade advém das suas
contradições dentro de determinada sociedade e cultura.
Poderíamos inferir algumas consequências no que tange nossa investigação de um
método lacaniano no contexto inicial de nossa pesquisa. O método é uma forma de
rastrear o discurso concreto e histórico do sujeito. É necessário na atuação analítica que a
técnica vá de encontro a objetivação do sujeito, e isto parece ser uma pauta essencial.
Desta forma, estamos a todo momento indo e advindo de debates epistemológicos e
ontológicos, na medida em que a prática exige e o método acompanha. A historicidade
permite produzir o discurso e suas repetições que exprimem o ser do sujeito. O método
cria condições para o reconhecimento dessas repetições, abrindo a possiblidade para
outras experiências. Contudo, as coisas não seguem de maneira tão fácil assim, existe
uma outra categoria que entra no cálculo do método como um tipo de bloqueio: o
imaginário.
De maneira mais assertiva que no seminário passado, aquilo que foi considerado
como resistência na análise será atribuição do imaginário. Lacan (1954-1955) retoma o
modelo cibernético realizando a seguinte analogia: a passagem de elétrons de um polo a
outro de um circuito pode ser dificultada, bloqueada ou mesmo distorcida por resistências.
Como sabemos o imaginário é uma instancia narcísica por excelência, ligada aos
processos de alienação e petrificação do sujeito a um parceiro ideal, assim, o eu como um
outro, ao ser reforçado, acaba por contribuir pela interrupção do discurso do inconsciente
e, por conseguinte, negar a experiência mesma de uma análise.
Já a instância do real que aparecia com nitidez no seminário I (1953-1954),
comparece aos argumentos lacanianos apenas em torno da metade do seminário II, o que
não quer dizer que o mesmo não tenha sua importância. Por exemplo, há uma ironia feita
às filosofias que creem que “tudo o que é real é racional” (SII p. 214). A psicanálise se
distingue destas, pois admite a incapacidade de se controlar as variáveis seja de sua
experiência ou da condição de constituição de seu sujeito. Daí que para Lacan (1954-
1955) o momento trágico do indivíduo é excluído, pois a capacidade de realizar uma
autoconsciência de sua vida e a plenitude de essência é por princípio perdida dada as
categoria simbólica e imaginária, por um lado, e real na medida em que ele se
“presentifica” como uma espécie de razão incapaz de ser dominada ou individulizada, por
outro.
48
como falta de ser, ou seja, não há um objeto específico ou um ser específico que seja
capaz de adaptar o sujeito ao objeto, assim, o desejo pode ser considerado como uma
experiência dissimétrica ou dessemelhante com os objetos. A falta pode ser interpretada
como a distância entre sujeito e objeto, e é em função desta que a experiência analítica
pode propor ao ser uma relação de si em relação ao ser. Desta forma, a revolução trazida
pela psicanálise se dá por uma nova forma do homem pensar sobre si e a sua experiência
cotidiana, para além do objeto.
O desejo como função elementar da experiência traz certos impasses a nível da
técnica. Ou seja, se estávamos em um debate mais ontológico sobre o desejo como falta,
Lacan (1954-1955) rapidamente retoma um debate mais técnico para apresentar as
modalidades de incorporação do desejo na experiência. A noção de resistência é
mobilizada. Para Lacan (1954-1955) a resistência faz parte da própria atuação do
analista, ou seja, está ligada a sua posição, logo a sua interpretação da resistência como
resistência já é uma resistência que leva a uma inércia do próprio tratamento. Daí a frase
clássica de que “só existe somente uma resistência, é a do analista” (SII, p.287) que
possui como causa o desconhecimento do analista do sentido de sua experiência.
Deve-se sair da resistência a insistência, isto é, o objetivo da experiência analítica
é fazer com que o sujeito possa reconhecer a insistência de um desejo não reconhecido
que por não possuir existência, insiste na falta de ser. Esta insistência se manifesta nos
sintomas e “se o desejo não ousa dizer seu nome, é, porque, este nome, o sujeito ainda
não o fez surgir” (SII, p.287). Como consequência da intervenção, nomear a experiência
do desejo é uma ação que caminha para a eficácia da análise, mais, ainda, ao falar o
sujeito cria novas possibilidades que não estavam dadas a priori.
Chegamos a um ponto em que ao nosso entender é crucial, pois Lacan (1954-
1955) elabora a demarcação27 da experiência analítica, ou seja, há uma criação de
operadores metodológicos que a diferenciaria de outras práticas terapêuticas. Assim,
talvez seja possível sustentar a ideia de que os dois primeiros seminários (SI e SII)
elaboram a concepção de que a experiência traduzida pelo método proporciona a
construção de novos conceitos e teorias. Se há uma teoria do método em Lacan ela está
consolidada nas três dimensões: simbólico, real e imaginário, esta é a camada
fundamental da qual a experiência é compreendida, explicada e transformada. A
Demarcação é um conceito utilizado por Popper (2017) que diz respeito a diferença entre ciência e não ciência. Neste
27
momento o objetivo de Lacan é diferenciar a prática analítica do que entrar em querelas de ordem mais epistemológica.
50
29
Para uma investigação sobre a formação da realidade em Lacan, autores como Simanke (2002) e Estevão (2009) são
fundamentais.
52
no fenômeno em si, mas nas articulações entre sintomas, desejos, ideais de vida,
casamentos e empregos por exemplo.
Cada elemento deve ser considerado como articulado a outros fenômenos, logo,
um sintoma não possui valor clínico isoladamente, como se uma conduta obsessiva ou
fóbica por si só respondesse pela totalidade do diagnóstico. Isto faz com que Lacan
(1953) introduza a noção de estrutura da linguagem composta pela significante e
significado por uma razão prática: aquilo que é o material da análise a fala do sujeito não
possui um único significado, mas a depender do contexto é possível inferir várias
significações. Ao começar a valorizar o significante, colocando o significado como um
produto de seu movimento, uma das consequências é apreender que os fatos da
experiência analítica são um conjunto articulado de significantes.
Uma das primeiras conclusões aparentemente óbvias que podemos circunscrever
deve-se ao fato de que o Simbólico, Imaginário e Real objetiva, também, a prática clínica.
Se tomarmos a tríade apresentada por Lacan (1953) como um esoço de um discurso do
método, ganhamos a possibilidade de organizar uma gama de fenômenos, investigando
suas conexões, instaurando um campo possível apara a intervenção e a resolução de
problemas.
Não obstante, Lacan (1983) faz questão de ilustrar os processos no qual
transcorrem uma psicanálise como se fossem etapas. O interessante neste momento é de
que o Simbólico, Imaginário e Real deixam de se comportar como entes ontológicos
ligadas a uma experiência da realidade, adquirindo um aspecto metodológico, ou seja, um
guia ou caminho no qual o analista pode percorrer. É este caminho que possibilitaria
chegar ao objetivo analítico de “realizar o símbolo (1953, p.39)” ou que pode ser
compreendido como dentro da esfera desconhecimento/reconhecimento dos seminários I
e II. A formalização da operação analítica se dará através da várias permutações e
transformações entre o Simbólico, Imaginário e Real, isto é, além de não existir uma
relação fixa entre os três registros, mas modificações que sugerem circuitos específicos
da clínica:
rS-rI-iR-iS-sS-SI-SR-rR-rS
verdade, entretanto, como já sabemos este lufar é uma “postura completamente ilusória
(p.39)”.
Em seguida entramos numa fase no qual o imaginário é o protagonista. Em rI
Lacan estabelece o momento em que há a realização da imagem que corresponderia ao
tempo da resistência entendida aqui como a identificação do analisante com o analista. A
transformação de rI para iR marca o limite da relação narcísica que nesta fase. Lacan
(1953) enfatiza que este momento no qual as relações entre analisante e analista
tencionam para um certo limite, marcando a incidência da transferência, assim, iR deve
ser entendido como os conflitos imaginários com a pessoa real do analista.
A maneira como este nível é resolvido possibilita a entrada na transferência
indicado pelo termo sS. Aqui Lacan (1953) fala de inversão visto que ela corresponde “a
travessia da fase imaginária (p.40). A superação dos conflitos e a resolução dos sintomas
via interpretação exercem seu efeito quando as relações imaginárias descritas em rI e iR
deixam de bloquear o diálogo analítico. As consequências deste processo nos levam a
três níveis bastante similares SR – rR – rS. Este ciclo compreende o processo no qual o
sujeito vem a simbolizar ou reconhecer o desejo por seus pares na medida em que o
analista ocupa uma posição na qual o real é racional (rR), daí a possibilidade de
simbolização do real (SR) seja formulada em realização do símbolo (rS).
Cabe aqui tecermos algumas ponderações sobre o percurso que estamos
trilhando. O simbólico, Imaginário e Real podem ser interpretados como o núcleo duro da
prática analítica, pois desde as várias idas e vindas de vários conceitos, a tríade
permanece seja como figurante, seja como protagonista no campo lacaniano. Uma outra
questão bem mais problemática é a dificuldade de situar estas categorias. Por exemplo, é
notório que no início da palestra que analisamos o Simbólico, Imaginário e Real sejam o
suporte daquilo que Lacan (1953) define como realidade humana e não como realidade
psíquica. Isto deveria nos alertar para uma acepção menos psicológica do que se crê. É
comum considerarmos as mesmas como o aparelho psíquico em Lacan de maneira
análoga as tópicas freudianas e esta hipótese, ao nosso ver, não se sustenta.
Se o Simbólico, Imaginário e Real funcionam no início da conferência como
constituinte da realidade humana, uma concepção mais metodológica nos parece
provável, visto que no final da mesma o processo psicanalítico terá seus passos descritos
através de um programa metodológico organizado pelas permutações entre o Simbólico,
Imaginário e Real, englobando os artifícios técnicos e os objetivos da prática analítica.
55
um autor historicamente30 crítico as teses orgânicas), mas também não advogará que a
causalidade das psicoses seja de ordem psicológica e psíquica ou mesmo interna ao
indivíduo. Qual argumento lacaniano revelaria uma outra perspectiva que não endossasse
uma teoria do aparelho psíquico e ou orgânica? A resposta pode ser buscada no âmbito
metodológico e Lacan se esforça por demarcar a diferença sobretudo da experiência
psicológica daquela que é inaugurada pelo método psicanalítico.
Para isto, Lacan começa a descrever a “experiência imediata” que constitui uma
das referências históricas iniciais quando falamos da psicologia científica ou experimental.
Os primórdios da psicologia científica são caracterizados pela assunção da “experiência
imediata” como o campo específico da experimentação psicológica. Trata-se de estudar
as sensações, pensamentos e volições que o sujeito apreende dos objetos, como, por
exemplo, ao comermos uma maçã não apenas percebemos sua forma/conteúdo, mas
cheiros e sensações internas ao sujeito que o retiram da objetividade científica, adotando
uma posição mais subjetiva e intuitiva (WUNDT, 2018). Na historicidade de seu
movimento, a psicologia científica formou parte importante dos psiquiatras alemães que
interpretavam a psicose paranoica como um problema nas relações entre sujeito e objeto
e, em especial, aos excessos hermenêuticos que esta entidade psicopatológica
apresentava (BERCHERIE, 1989)31.
Lacan (1955-1956) se contrapõem a estas diretrizes e, como salientamos, por
critérios metodológicos estabelecidos nos seminários anteriores. O método psicanalítico
numa primeira aproximação pode ser interpretado como uma articulação entre Simbólico,
Imaginário e Real. Assim, a prática clínica possui uma constituição em nada natural visto
que há pré-condições para o seu exercício. De tal forma que o Simbólico, Imaginário e
Real devem ser entendidos como uma espécie de demarcador da experiência
psicanalítica, tal que ela não se confunda seja com a psiquiatria ou com a psicologia.
Desta feita, Lacan (1955-1956) retomará o caso Schreber (1911) de Freud como
forma de avançar estas teses na medida em que “o caso Schreber objetiva (grifo nosso)
certas estruturas supostas corretas em teoria (p. 38)”. Contudo, que estrutura é esta que
Lacan enfatiza e que admite uma forma de objetividade? É a estrutura da fala e da
linguagem no qual o Simbólico, Imaginário e Real vem delimitar.
Entrementes, para avançarmos em torno da noção de estrutura é preciso entender
a posição lacaniana no que tange a definição do que pode ser considerado como
30
LACAN, J. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Forense Universitária; 2007.
31
BERCHERIE, P. (1989). Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro; Zahar.
57
pode ser entendida e sua intervenção que gira em torno da transferência ou das
resistências se efetiva. Logo, a objetividade em psicanálise não é dada de maneira a priori
ao tratamento, porém construído a partir do Simbólico, Imaginário e Real.
Não obstante, o Simbólico, Imaginário e Real, como Lacan (1955-1956) vem
elaborando, possui uma raiz dialética profunda na psicanálise, visto que são ferramentas
necessárias para a depuração dos fenômenos clínicos e, também, para orientar a
complexa rede empírica. Desta forma, a necessidade de uma método de intervenção,
mas que seja científico pode ser satisfeita, pelo menos hipoteticamente. O caso Schreber
apresenta-se como um modelo que pode satisfazer a esta dupla exigência de método que
desde o seminário I é aventado.
De forma sucinta, o fenômeno delirante de Schreber começará a ser entendido
inicialmente através de uma linha argumentativa genética, por mais que Lacan faça
ponderações sobre o abuso em se tentar determinar o início ou a origem dos fenômenos.
A tese básica se dá em torno da incapacidade do sujeito em simbolizar certas
significações provenientes do mundo exterior, isto é, sentidas como impostas de fora para
o sujeito que se sente perseguido. Neste momento, Lacan aproveita para distinguir
processos formadores da neurose e psicose. Esta última se caracteriza por um
“sentimento de estranheza total” (p.105) que irrompe no real. Assim, as significações e
falas que num determinado momento da vida de Schreber apresentam-se como
inassimiláveis ao seu mundo simbólico são incapazes de formarem sintomas e serem
recalcados como na neurose, acabando por retornar no real.
Mas o que isso significa? Na neurose a análise procede através da narrativa do
sujeito que faz uma rememoração de sua biografia, reconhecendo certas repetições e
desfazendo a sua sintomatologia, tendo como efeito a articulação da história do sujeito
com os seus sintomas atuais. Devido as dificuldades inerentes na rememoração do início
do quadro psicótico é difícil estabelecer a pré-história do delírio, logo, há complicações do
ponto de vista metodológico, pois, as coordenadas simbólicas entre história e delírio ficam
prejudicadas. Disto isto, um tratamento que prioriza a dialética entre desconhecimento e
reconhecimento na qual a historicidade do sujeito é essencial, torna-se bastante
questionável quanto a sua efetividade, o que não quer dizer que seja impossível ou
inviável como veremos mais a frente.
Dito isto, Lacan (1955-1956) ao priorizará outras nuances que não apenas história
do sujeito, abrindo novas possibilidades clínicas. O seu argumento vai girar em torno de
uma “não simbolização” de certos fenômenos que desencadeará novas nuances em torno
59
fenômenos linguísticos vão ganhar contundência no campo das psicoses, visto que é na
relação do sujeito com a linguagem que sua investigação prossegue, bem como com as
diversas alteridades do outro ao Outro.
No caso Schreber se trata de averiguar como um distorção concernente a expulsão
de um elemento essencial da estrutura é tratada. Como a estrutura é concebida através
da linguagem, a estruturação da psicose será dada a partir da deformação da mesma
causada por um distanciamento, ou mesmo, das dificuldades da relação entre significante
e significado. A análise do discurso concreto do sujeito no tocante a explicação dos
fenômenos alucinatórios e delirantes passam pelo vínculo chamado ponto de basta.
Metodologicamente, a história ou o testemunho veiculado pelo sujeito é apreendido no
campo da produção de sentido que, como já abordamos, se dá nas relações entre
significantes, logo, o significado é consequência da estrutura.
Os significados podem ser mais ou menos estáveis a depender do caso e da
história de cada paciente. Assim, poderíamos dizer que as categorias nosográficas, ou
seja, neurose e psicose, suas diferenças podem ser entendidas como formas ou
estratégias de produção de sentido: a neurose uma discursividade marcada pelo
desconhecimento de certos significados substituídos por significantes, mas que possuem
relação com primeiros, já a psicose revelaria a estrutura da linguagem tal como ela é
concernente a autonomia do significante, mas careceria de pontos de basta que
produzissem significações.
Por mais que no seminário III (1955-1956) exista uma espécie psicopatologia
comparada como se a neurose fosse a norma e a psicose o desvio, no fundo ambas são
modalidades discursivas e, no fim, variações covarintes de elementos significantes que
constituem o conjunto da linguagem.
A conclusão deste seminário é uma retomada daquilo que foi proposto nos
seminários anteriores, especialmente quando vislumbramos os princípios do método
psicanalítico: a experiência entendida ora como historicidade ou biografia ora como
palavra ou testemunho na qual o dispositivo analítico cria condições de possibilidade. A
psicose é entendida sobretudo como um “transtorno” das relações com o parceiro ou com
a alteridade, tal como ilustrado no esquema Z.
Logo, se é no campo do vínculo, ela é passível de ser vislumbrada como uma
transferência habilitando a operação analítica. O simbólico, Imaginário e real servem
como um guia de viagem para organizarmos o transcorrer do processo, mas também
ocupam um lugar ontológico quando Lacan se dirige a realidade, talvez os registros
64
O sistema Simbólico, Imaginário e Real bem como a estrutura que funda a relação
do sujeito e Outro, como sabemos, objetivam conciliar a teoria e a prática e, ao que
parece, também fazem a mediação entre a ordem dos fenômenos para o conjunto da
lógica de tratamento, devendo garantir condições explicativas e de intervenção ao
analista. Portanto, no decorrer do seminário I e II há um intenso debate sobre o que é a
experiência psicanalítica tendo como resultado a promoção das dimensões Simbólica,
Imaginária e Real como categorias fundamentais ao método, de tal forma que elas vão
ser responsáveis pela organização da “fenomenologia” clínica até épocas tardias do
desenvolvimento de seu ensino, já o seminário III ilustra a proficuidade do método na
psicose oferecendo ferramentas importantes para o trabalho analítico, na medida em que
o mesmo não estaria preso ao campo puramente descritivo da sintomatologia, mas
incluiria os aspectos explicativos e casuísticos que são necessários à terapêutica.
O seminário IV (1956-1957/1995) é uma incursão em torno do fenômenos fóbico e
do fetiche, levando em conta a dificuldade empírica que estes dois colocam para a teoria,
mas sobretudo para o método de tratamento. Para Lacan(1955-1956/1995), faz-se
importante definirmos três premissas que orientam a análise: (a) a hipótese de que o
sujeito abordado pela psicanálise já está marcado pela estrutura significante, implicando
toda a sorte de contradições, paradoxos e repetições que daí advenham: (b) a experiência
subjetiva que método permite repensar ao promover a falta de objeto como questão
central dos sintomas e sofrimentos (esta “experiência negativa” é oposta ao “experiência
vivida” que, mesmo não ficando claro, remete-nos concepções místicas e vitalistas): (c)
esta experiência da falta de objeto será metodologicamente diferenciada em três níveis, a
frustração, privação e castração.
Inicialmente, se é por meio da significante que a experiência do sujeito é acessível,
Lacan(1955-1956/1995) faz questão de frisar sua diferença com outros campos, pois este
ato de fala, que começou a ganhar uma sistematicidade teórica a partir o esquema L, é
capaz de explanar a dinâmica e movimentos próprio da estrutura subjetiva. Ao retomar
alguns pontos deste esquema, afirma que é no eixo S-A que a constituição do sujeito via
cadeia ou ordem simbólica se efetiva, ressaltando que o Outro (A) é visto como um lugar
de reconhecimento e acolhimento do sujeito. Já no eixo a-a’ toda a experiência narcísica
com os outros, bem como fixações libidinais em torno de determinados objetos.
Como foi bem estabelecido por Lacan, os tratamentos que favorecem as
identificações entre analisante e analista recairiam na objetivação do sujeito que está
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tal sorte que Hans tenta integrar através destes sonhos o índice de transformação, sendo
a girafa o significante que será o traço destas mudanças: “este progresso do imaginário
ao simbólico constitui uma organização do imaginário em mito ou, pelo menos, está a
caminho da construção mítica verdadeira” (p.273), o que significa a possibilidade para
Hans atravessar a intrusão do real. É a partir da criação dos mitos ou de narrativas que o
analista pode entrever as várias tentativas do sujeito em reconhecer o impacto do real que
“influencia toda a concepção do mundo do sujeito, e em especial sua concepção das
relações sociais” (p.278).
Contudo, Lacan (1995) é taxativo ao afirmar que o caráter significante que a girafa
adquiri “é uma questão de método” (282) visto que não representa em si nenhum
significado oculto. Não obstante, o analista deve proceder na sua investigação avaliando
em cada contexto o que significante girafa e sua relação com outros significantes. Girafa,
neste sentido, poderia ter uma significação em torno da mãe e/ou do pai, por exemplo. O
“não compreender imediatamente” (p.282) trata do analista não atribuir significados ou
intenções rápidas demais, optando por construir associações, cadeias e redes na qual
girafa possa ser capturada em suas várias significações.
É através desta mesma lógica que a fobia precisa ser rastreada.
Metodologicamente, o processo fóbico constitui um aparelho complexo de relações
significantes que devem ser investigadas em cada caso particular. Logo, quando Lacan
(1995) argumenta que a psicanálise opera a partir da lógica significante é no sentido de
que a fobia deve ser compreendida não como um sintoma individual ou interno a Hans,
mas como um sistema composto de laços, redes e vínculos sociais ou:
1) Nenhuma elemento significante nem sentido único, logo o sintoma fóbico não é
a representação de um significado recalcado, nem mesmo expressa conflitos
internos do indivíduo. Sua significação só adquiri legalidade em um sistema
significante e de maneira a posteriori.
2) “Nenhum elemento significante, objeto, relação ou ato sintomático, na neurose,
por exemplo, pode ser considerado como tendo uma importância unívoca”
(LACAN, 1995, p.295). Isto é, noções como personalidade, individualidade,
quadros clínicos e sintomatológicos não são considerados fatos clínicos quando
pensados de forma isolada ou independente.
3) Como decorrência de 1 e 2, a escuta analítica pode ser capaz de captar
ambivalência que a narrativa do sujeito apresenta. O cavalo em Hans possui
uma multiplicidade de significações, visto que pode se referir a algo análogo a
um carro por apresentar movimentar pela cidade, como se associar ao orgulho
paterno.
4) Por último, se trabalha em psicanálise com a noção de estrutura simbólica que
deve sintetizar as regras 1, 2 e 3, já que a mesma é definida como a articulação
de um significante não com um objeto imaginário, mas remetido a um outro
significante. Tal sistema deve ser localizado a partir da transferência e em cada
caso particular.
De acordo com Lacan (1995) deve-se ter em mente os seguintes elementos mais
gerais da estrutura simbólica:
P: indica a metáfora paterna.
M: a mãe
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Ç: o complexo de castração
s: significação
X: solução do processo
O lado esquerdo da equação (P/X) M indica a organização da estrutura edípica,
pois trata das relações familiares que adquirem um sentido a partir do lado direito da
fórmula (Ç + s). É a partir da correlação entre estes diversos elementos que a produção
da solução X pode ser aventada. Acompanhemos como Lacan (1995) sobrepõe a fórmula
ao caso Hans, ao mesmo tempo que apresenta o surgimento do elemento fóbico até a
sua solução.
Esta formalização do lado esquerdo (M) Mãe + (ϕ) falo + (A) Anna, implica o
impasse que Hans enfrentara a partir do nascimento de suas irmã (A)Anna e os cuidados
(ϕ) dispensados por sua (M)Mãe à mesma. Já no lado direito, apresenta uma outra
perspectiva relativa a experiência da angústia, visto que há uma profundo articulação ao
modo como a Mãe (M) distribuía seu lugar na estrutura a partir das ameaças a Hans de
cortar seu pênis (Π) em virtude da prática masturbatória (m). Lacan (1995) argumenta
que esta situação é impossível de sustentar, sobretudo pela incidência do “real que acaba
de ser revelado e não deixa de complicar a situação (...)” (391). Desta forma, não há, no
momento, um elemento da própria estrutura que possibilite a Hans uma mediação desta
situação, isto é, que produza novas significações reposicionando-o em um novo lugar
diante das questões que ele se defronta.
O advento da fobia tem por objetivo articular no sistema complexo do qual Hans
está inserido uma substituição de imagens e significações ambíguas, já que para o
pequeno elas são insuficientes na superação da angústia. Se realizarmos uma leitura
através do três registros, nossa ênfase recairia na relação simbólico e real. Enquanto que
este último vai estar em estrita sintonia com angústia que é considerada no contexto do
seminário um sentimento de estranheza, ou seja, aquele que sofre dela se sente
deslocado ou perdido, logo a simbolização permite circunscrever limites, traços e
caminhos que até então desarticuladas pela angustia, mas que, a partir da mediação
realizada pela fobia surge o “primeiro cristal de uma cristalização organizada entre o
simbólico e o real” (LACAN, 1995, p.392).
***
FREUD, S. (1921). "Psicología de las masas y análisis del yo". In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu
33
editores, 1979.
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entre poder e política, uma dialeticamente oposta a outra é o fio de Ariadne que Lacan
quer nos conduzir. Logo, esta teoria da prática 34 estará subsidiada por três campos.
O primeiro no qual vamos nos dedicar a examinar é a interpretação como tática.
Gostaríamos de frisar, desde logo, salta aos olhos o termo cunhado por Lacan para
destacar a especificidade desta categoria girará em torno da operação de transmutação
que possui uma dupla conotação no contexto de A direção do tratamento: a)
transmutação que modifica a simples palavras oferecidas pelo analista em uma
interpretação analítica propriamente dita; b) a capacidade de efetuar a transmutação no
sujeito ao mesmo tempo que evidencia o momento de transformação.
Assim, podemos entender inicialmente a interpretação como um procedimento
situado a partir da fala do analista, responsável pelas prováveis modificações que o
método provê, mas, adquiri uma complexidade especial: é dela que se deriva as provas,
evidências e fatos das transmutações promovidas pela experiência. Dito de outro modo,
se há uma teoria da objetividade em psicanálise é pela interpretação que podemos
circunscrevê-la. Quanto a isto devemos fazer uma ressalva: a objetividade aqui está
articulada a capacidade de evidencias as transmutações do sujeito, não dizendo respeito
ao objetivo ou finalidade analítica que serão expostas mas a frente quando tomarmos
especialmente a dimensão política. É justamente em torno desta diferenciação que Lacan
colocará a interpretação como uma tática em que o analista possui uma maior liberdade
relativa, diga-se de passagem, quando comparada a transferência e ao ser do analista,
pois estas últimas serão compreendidas como as condições de possibilidade para a
interpretação.
Dito isto, examinemos mais detidamente como a função da interpretação pleiteada
por Lacan.
É de suma importância as considerações realizadas por Lacan (1999) visto que
seu diagnostico essencial é a de que a interpretação não só do ponto de vista conceitual,
mas da experiência mesma que ela promove, pois a mesma vinha sendo considerada um
elemento senão secundário, mas tecnicamente em desuso, acabando por ser substituída
por práticas como conversações, confrontos e conversas. Estas práticas por se prestarem
a ambiguidades concernentes ao sentido mesmo de seu uso cotidiano não parecem as
mais indicadas a superarem ou substituírem a interpretação, passando à largo de um dos
objetivos fundamentais da psicanálise: a transmutação do sujeito.
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Uma das grandes influencias lacanianas é o teórico da estratégia e da guerra Clausewitz, entretanto, não é nosso
objetivo se deter nesta relação, para tal recomendamos o livro O Objeto em psicanálise: da análise profana à construção
do objeto a (2018) .
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Assim, é deveras importante pontuar que existe a necessidade por parte de Lacan
(1999) em delinear alguns pontos concernente à ontologia e demanda analítica antes de
entrarmos propriamente no debate em torno da transferência, mas por que isto acontece?
A resposta pode ser buscada quando um outro conceito entra e jogo: a identificação.
Invertemos um pouco o raciocínio lacaniano que parte do ser para a demanda para
ir da demanda para o ser objetivando com isto deixar mais evidente as articulações
teóricas por ele engendrado aqui. Deve-se entender a demanda como uma espécie de
pedido endereçado a um Outro, no caso o analista. Este pedido ponde conter inúmeras
conotações que vão da busca pela felicidade a vontade de ser analista, contudo, se tal
pedido não for minorado, ouvido em sua especificidade e, mais ainda, na relação que este
pedido possui com outras demandas desconhecidas pelo analisante até então, corre-se o
risco da demanda acabar por condicionar o sujeito a uma identificação com significantes
oferecidos por parte do analista. E, assim, aquilo que era demanda acaba por se
transformar em identificação o que estaria na contramão da proposta lacaniana da prática
analítica. O analista através de uma ação mal calculada responderia a esta demanda se
identificando com ela e, por fim, os objetivos analíticos estariam condicionados a uma
prática de psicoeducação.
É neste ponto que Lacan (1958/1999) começa a articular ou a enfatizar com maior
densidade a introdução do termo desejo e sua função na análise com o sentido de
demarcar as propriedades que determinam a prática e experiência analítica. Assim, é
necessário diante mão entendermos que ao palavra desejo não designa uma vontade ou
expressa uma emoção individual, pelo contrário, se trata de uma experiência ligada as
gramáticas que circundam em determinado momento e espaço as relações do sujeito com
o Outro. Dito de outro modo, o que Lacan (1958/1999) quer mostrar é que a experiência
calcada na fala permite desdobrar o quanto o sujeito é efeito do discurso, não podendo o
mesmo ser o diretor consciente do mesmo. Logo, se o desejo esta articulado ao que o
Outro diz, fazer com que o sujeito assuma ou se reencontre com este desejo
transformaria o tratamento analítico num conjunto de aporias, pois seria retirar o sujeito de
uma prisão imaginária e alça-lo numa petrificação simbólica. Pois “fazê-lo reencontrar-se
nele como desejante é o inverso de fazê-lo reconhecer-se ali como sujeito (...) O desejo
só faz sujeitar o que a análise subjetiva ”(p.629). Há, portanto, um descompasso ou
antinomia entre estes dois objetivos que Lacan (1958/1999) faz questão de ressaltar.
A subjetivação que a análise efetua acontece a partir do momento em que
compreendemos que o sujeito surge não como resposta ou significado ao desejo do
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Outro, mas como questão e pergunta. A estrutura do desejo é um sistema complexo que
só pode ser apreendido dentro dos vínculos entre sujeito e Outro. O desejo exprime este
vínculo a partir do momento que o analisante demanda ao analista a felicidade, cura ou
ser analista por exemplo, contudo, são nos momentos mais contraditórios, obscuros e
“hiantes” de sua fala que a interpretação incide produzindo momentos de
desestabilização. Daí a proposta de subjetivar defendida por Lacan (1958/1999) não deve
ser compreendida no sentido de construir um significado sobre a essência de cada
desejo, mas como uma localização que nos remete a uma instancia espacial que é o
sujeito no tempo evanescente e evasivo na qual a questão sobre o desejo como desejo
do Outro é posta. A interpretação é um cálculo entre o vértice do sujeito e do Outro que
incide e produz momentos de transformação das diversas posições subjetivas. Ou seja, “é
nessa questão que se transforma o sujeito aqui mesmo” (p.632)
A posição do analisante é apreendida em função de sua relação com a demanda, a
do analista implica em sustentar este lugar de Outro, mas sob a condição de ser o “lugar
dessa falta” (p.633). Daí a diferença entre a falta-a-ser entendida como lugar necessário
para as perguntas e questionamentos essenciais sobre as condições de sua vida são
colocadas e a as paixões do ser que são o lugar do amor, ódio e ignorância. Enquanto o
primeiro se baseia em sustentar um campo em que indeterminações possam ser
toleradas, na qual a demanda não é respondida pura e simplesmente pelo desejo do
próprio analista em ser amado, as paixões do ser produzem o efeito contrário: o
significado, o sentido e a alienação do sujeito ao um Outro que tido como modelo de
comportamento.
Para que este objetivo aconteça é necessário que o analista preserve o lugar do
desejo, dito de outro modo, a falta que conota a suspenção de seu eu empírico e, logo, a
capacidade de não responder as demandas que lhes são interessadas. Notemos que
sustentar este lugar deve corrobora com o alerta lacaniano de que os passos que são
dados no transcorrer do tratamento estão vinculados a transferência de onde o analista
responde. Ao situar a possível continuidade entre demanda-identificação-transferência,
Lacan (1958/1999) que circunscrever um problema clínico: a partir do momento em que o
analista atende ou se identifica com a demanda do analisante o processo transferencial
pode desembocar nas paixões do ser.
Mostra-se a complexidade que o analista deve manejar a fim de evitar resultados
que desemboquem na idealização e na agressividade. O desejo é este termo essencial
que deve evitar estes desdobramentos. A dialética entre desejo e demanda é um
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