Dança Movimento Orff
Dança Movimento Orff
Dança Movimento Orff
INSTITUTO DE ARTES
São Paulo
2022
1
São Paulo
2022
2
CDD 372.868
Assinatura:
4
5
Dedico este trabalho ao Kito, companheiro e pai dos nossos filhos Athos e Tim, às crianças de
todas as idades, à minha mãe Sandra (in memoriam) e ao meu avô “Papi” (in memoriam), que
mostram que a vida não acaba quando o corpo se vai. Dedico também aos sobreviventes da
covid-19.
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AGRADECIMENTOS
Vocês representam uma vida inteira. Um agradecimento especial à Clara Gouvêa, que me
encorajou a ingressar no mestrado em Artes.
Aos amigos da ABRAORFF, Mayumi Takai, Maristela Mosca, Gabriela Abdalla, Patricia
Cavicchioli, Sandra Kaetsu, Camila Ruiz, Sergio Tuck e todos os membros que por ali
passaram, por compartilhar e desfrutar do mesmo amor e admiração pela abordagem Orff-
Schulwerk, com valiosos ensinamentos e orientações.
Aos professores da SFOC, por me fazerem acreditar que era possível permear o universo da
música com o passaporte da dança.
À professora Christa Coogan, por inspirar minha alma com suas aulas de dança, e ao
professor Kofi Gbolonyo, que apresentou a complexidade rítmica da música e da dança
africanas como brincadeira.
Ao grupo de percussão corporal Barbatuques, com quem pude construir caminhos criativos
para a estreia do espetáculo Só mais um pouquinho, para crianças.
À Deise Alves, que compartilhou caminhos costurando e abraçando Barbatuques, Escola Viva
e Balangandança Cia.
À Maria Ignez Americano e à Heloisa Pavan por fundarem a Escola Viva, um projeto
educacional fruto de um sonho. Ao Francisco Ferreira pela direção pedagógica nos anos em
que lá trabalhei e ao Bruno Belliboni do Grupo Bahema pela liberação do uso da logomarca e
dos espaços da escola mencionados neste trabalho para fins acadêmicos. A equipe do Ateliê,
em especial à Leila Bohn, Gustavo Kurlat, Marina Caron, Carmem Orofino e Família
Botosso. A todos os professores e coordenadores pedagógicos da Educação Infantil e do
Ensino Fundamental da Escola Viva, pelas trocas no quintal, na sala dos professores e em
muitas salas de aula, trocas essas fundamentais para o desenvolvimento deste projeto. Aos
amigos Renato Steffany, Daniela Girotto, Katia Keiko, Mária Xavier de Camargo, Flora
Figueiredo, Naya Sá e Mariana e Renata Americano.
Aos autores e artistas parceiros nas elaborações de livros didáticos, Stella Ramos, Mairah e
Maucha Rocha, Auber Bettinelli, Tiago Luz de Oliveira e, em especial, à Camila Carrascoza
Bomfim, por evitar a reprodução do senso comum em termos musicais. À coordenadora
Maria Helena Webster, que nos manteve no caminho de construção de muitas trilhas,
articulando o ensino de artes com as exigências do MEC. À toda equipe da Editora do Brasil
nestes dois anos de empenho.
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RESUMO
Esta pesquisa aborda reflexões sobre dança para crianças através do entrelaçamento de
experiências da autora como artista da dança, professora certificada na abordagem Orff-
Schulwerk e professora especialista na área de dança dentro do currículo de uma escola
particular na cidade de São Paulo. Em diferentes esferas relacionais, a dança e a música
tinham como elementos comuns: o ritmo, a brincadeira e a imaginação. Assim, a pesquisa
trata do fluxo de atravessamentos práticos e teóricos ocorridos tanto nos palcos quanto nas
instituições do Ensino Básico, entendidos como lugares de encontros potentes para o fomento
à criação autoral, à expressão e à prática artística da dança. Ao situar histórica e teoricamente
as concepções que nortearam os princípios da Balangandança Cia., companhia paulistana
dirigida por Georgia Lengos, que pesquisa dança contemporânea para crianças de forma
contínua desde 1997, da Orff-Schulwerk, abordagem integrativa de música, dança e palavra
criada por Carl Orff e Gunild Keetman em 1924 e que, desde então, permanece em
construção, e da proposta construtivista da Escola Viva, fundada em 1974 como um ateliê de
artes e que, desde 2014, tem a dança como disciplina obrigatória no 3º ano do Ensino
Fundamental, buscou-se tanger assuntos passíveis de reverberações para outros profissionais
da área de artes e de educação em seus respectivos contextos. Por envolver um vasto material
vivenciado ao longo de 26 anos como artista-criadora junto à Balangandança Cia. e de 16
anos de atuação docente na Escola Viva, foram respectivamente selecionados como recortes
os espetáculos Brincos & Folias (1997), O Tal do Quintal: brincadeiras, medos e sonhos
(2006), a Festa das Cores (2010-2019) na Educação Infantil, e a sequência didática O ciclo da
água no corpo (2016) no Ensino Fundamental Anos Iniciais, intermediados por estratégias da
abordagem Orff-Schulwerk. O eixo dessa trajetória circular foi o de estimular estados
dançantes pelo ato de tocar, brincar e imaginar, guiados pelo respeito à infância e pela
responsabilidade na formação da sociedade. A pesquisa foi ancorada nos estudos de autores
como Gandhy Piorski, Carl Orff, Rudolf Laban e Jorge Larrosa. Com a presença de elementos
musicais, cinéticos e simbólicos em todo o percurso da dissertação, a pesquisa busca instigar a
criação de novas propostas pedagógicas e artísticas em dança através do corpo sensível,
poético e imagético de crianças e adultos.
ABSTRACT
This research addresses reflections on dance for children through interweaving the author's
experiences as a dance artist, a certified teacher in the Orff-Schulwerk approach, and a
specialist teacher in the area of dance within the curriculum of a private school in the city of
São Paulo, Brazil. In different relational spheres, dance and music had common elements:
rhythm, play, and imagination. Thus, the research deals with the flow of practical and
theoretical crossings (that took place both on stages and in Basic Education institutions),
understood as powerful meeting places for the promotion of self-expression, artistic creation
and artistic dancing. The author situates, historically and theoretically, the concepts that
guided the principles of Balangandança Cia., a São Paulo-based company directed by Georgia
Lengos, which has been continuously researching contemporary dance for children since
1997. Another pillar of this research is Orff-Schulwerk, an integrative approach to music,
dance, and word created by Carl Orff and Gunild Keetman in 1924 and that has been under
construction since then, besides the constructivist approach on which Escola Viva is based.
This school, founded in 1974 as an Arts Atelier, since 2014, offers dance as a mandatory
subject in the 3rd year of Elementary School, in which the researcher has 16 years of teaching
experience, and conducting the event Festa das Cores (2010-2019). This work sought to
address issues that could have repercussions for other professionals in the field of arts and
education in their respective contexts, as it involves a vast amount of material experienced
over 26 years of career as an artist-creator. We focus our research in the performances
Brincos & Folias (1997), O Tal do Quintal: brincadeiras, medos e sonhos (2006), besides the
didactic sequence O ciclo da água no corpo (2016) in Elementary School Early Years, all
mediated by strategies from the Orff-Schulwerk approach. The axis of this circular trajectory
was to stimulate dancing states through the act of touching, playing, and imagining, guided by
respect for childhood and responsibility in the formation of society. With the presence of
musical, kinetic, and symbolic elements throughout the text, this research seeks to instigate
the creation of new pedagogical and artistic propositions in dance through the sensitive,
poetic, and imagery bodies of children and adults. The research was anchored in the studies of
authors such as Gandhy Piorski, Carl Orff, Rudolf Laban, and Jorge Larrosa.
Key words: Contemporary dance for children. Balangandança Cia.. Orff-Schulwerk. Dance at
school.
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LISTAS DE FIGURAS
Figura 1 - Ensaio no Parque do Ibirapuera em 1997, antes da estreia. ..................................... 29
Figura 2 - Representação triangular dos tópicos da Balangandança Cia. ................................. 36
Figura 3 - Brincos & Folias com Anderson Leite, Dafne Michellepis, Lilian Vilela e Cristian
Duarte, o elenco criador. Inauguração do Sesc Vila Mariana – SP, 2019. ............................... 37
Figura 4 - Palavras e gestos. Brincos & Folias, BH e SP. ........................................................ 43
Figura 5 - Cena final de O Tal do Quintal, 2006...................................................................... 45
Figura 6 - Laboratório de experimentações. ............................................................................. 47
Figura 7 - Representação triangular dos tópicos da abordagem Orff-Schulwerk..................... 57
Figura 8 - Mapa sobre influências na formação da Orff-Schulwerk, de Elin Bergdahl. .......... 59
Figura 9 - Mary Wigman em Dança das Bruxas, Hexentanz I, 1914, e Hexentanz, Fragmento
4, 1926. ..................................................................................................................................... 67
Fi ura 0 - arbara Haselbach ensinando movimentos e estudo de tensão Orff-Institut,
Salzburg, 1976. ......................................................................................................................... 67
Figura 11 - Estudo de saltos em grupo e individual. Orff-Institut, Salzburg, 1976. ................ 67
Figura 12 - Imagens de Maja Lex............................................................................................. 71
Figura 13 - Primeiros exercícios de regência praticados na Escola Günther. .......................... 72
Figura 14 - Regência e improviso musical para a dança. ......................................................... 73
Figura 15 - Crianças no ensaio da Abertura do Festival Olímpico. Berlim, 1936. .................. 77
Figura 16 - Danças circulares “Juventude Olímpica” Abertura do Festival Olímpico erlim,
1936. ......................................................................................................................................... 78
Figura 17 - Ilustração de crianças tocando instrumentos ao ar livre. ....................................... 79
Figura 18 - Foto de crianças tocando instrumentos ao ar livre. ................................................ 79
Figura 19 - Crianças tocando na rádio as composições de Carl Orff e Gunild Keetman. ........ 81
Figura 20 - Cena do filme Weihnachtsgeschichte, História de Natal, 1964. ............................ 83
Figura 21 - Extrato da BR TV film, 1975. ............................................................................... 84
Figura 22 - Carl Orff com crianças. Keetman nos programas de rádio e televisão com
crianças. .................................................................................................................................... 85
Figura 23 - Godela Orff, Gunild Keetman e as crianças durante as gravações do programa de
televisão Música para Crianças, transmitido ao vivo entre 1957 e 1959. ............................. 106
Figura 24 - Risco no quintal. Ensaio para performance de abertura. ..................................... 113
Figura 25 - De fora para dentro. Ambientação feita pelos pais, 2013. ................................... 115
Figura 26 - Prólogo da Festa das Cores. Espiral no centro do quintal, 2015. ........................ 116
Figura 27 - Rodada de nomes e partes do corpo. Grupo Verde em 2019. .............................. 118
Figura 28 - Atividade individual e coletiva com barbantes no processo da festa, 2019. ....... 120
Figura 29 - Professoras, estudo de espaço e atividade com barbantes. Reunião pedagógica,
2019. ..................................................................................................................................... 121
Figura 30 - Ensaio com as crianças e cena noturna da estrela durante a festa em 2017. ....... 121
Figura 31 - Ensaio do Alumiou com grupos do período matutino. Festa das Cores, 2019. .... 124
Figura 32 - Alumiou de costas para as lanternas durante a festa em 2017. ............................ 124
Figura 33 - Dança de uma classe em 2012, à esquerda, e dança de uma classe durante a festa
em 2017, à direita. .................................................................................................................. 126
Figura 34 - Ensaio da Ciranda com 3 Grupos Verdes em 2019. ............................................ 127
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 19
CAPÍTULO 1 A natureza artística: a Balangandança Cia. ...................................................... 29
1.1 Brincos & Folias ............................................................................................................. 36
1.1.1 Brincadeira ............................................................................................................... 38
1.1.2 Imaginação e o gesto na dança ................................................................................. 40
1.1.3 Técnica corporal ....................................................................................................... 43
1.2 O Tal do Quintal ............................................................................................................. 44
1.2.1 Espaços do corpo, simbólico e concreto .................................................................. 46
1.2.2 Improvisação e prática somática na dança ............................................................... 48
1.3 A natureza do encontro com as crianças ......................................................................... 53
CAPÍTULO 2 A natureza pedagógica: A abordagem Orff-Schulwerk .................................... 57
2.1 A interpenetração do movimento e da música elementar ............................................... 62
2.2 A Escola Günther - 1ª fase da abordagem Orff-Schulwerk ............................................ 68
2.2.1 Regência: o gesto do corpo todo .............................................................................. 71
2.2.2 Carmina Burana: A popularização de uma fonte erudita ........................................ 75
2.2.3 Entrada e Dança Redonda das Crianças e Meninas ................................................. 76
2.3 A criança no firmamento - 2ª fase da abordagem Orff-Schulwerk ................................. 79
2.4 Meu encontro com a Orff-Schulwerk ............................................................................. 86
2.4.1 No início era o tambor .............................................................................................. 87
2.4.2 Os elementos do movimento .................................................................................... 93
2.4.3 Fundamentos pedagógicos da abordagem Orff ........................................................ 96
2.4.4 A formação na abordagem Orff-Schulwerk pela SFOC .......................................... 99
2.4.5 Reflexões sobre a dança na formação da SFOC e derivações................................ 101
CAPÍTULO 3 A natureza educativa: a dança na Escola Viva ............................................... 109
3.1 A semente da escola foi um ateliê................................................................................. 109
3.1.1 A dança no Atelier.................................................................................................. 111
3.2 A Festa das Cores: O evento do Grupo Verde .............................................................. 113
3.2.1 A dança no Infantil: A forma da festa .................................................................... 116
3.2.1.1 A entrada das lanternas .................................................................................... 117
3.2.1.2 Dança das réguas ............................................................................................. 120
3.2.1.3 Alumiou ........................................................................................................... 121
3.2.1.4 A dança da classe ............................................................................................. 124
18
INTRODUÇÃO
Por relacionar o verbo “ anhar” com um sentimento de ale ria e realização, ou seja,
por relacioná-lo mais com coisas boas do que ruins, por exemplo, ganhar um abraço, um jogo,
um prêmio, mas principalmente um presente, o “ anhar corpo” relacionado à infância pode
significar engrandecer-se simbólica e existencialmente.
Ganhar um presente cria uma marca no tempo linear, mas o “ anhar corpo” cultiva a
presença em camadas múltiplas da percepção no tempo cíclico e infinito. É assim que entendo
a corporeidade, como algo que amplia a percepção de um tempo atemporal, que não sentimos
passar. O corpo presente e integrado parece ter o poder de, por vezes, materializar o sutil,
tocar o invisível e ser eterno.
Será abordada a ideia do corpo não meramente biológico e/ou mecânico, mas sim o
corpo-sujeito apresentado por Lilian Vilela, que conceitua a dança como a pronúncia do
mundo (VILELA, 2010), considerando a existência de um corpo próprio engajado com as
20
1
Grupo de Estudos e Pesquisas em Gestualidade, Expressão e Educação, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, do qual participei efetivamente de 2015 a 2017.
2
Instituição de ensino particular situada na cidade de São Paulo, na Vila Olímpia, composta pelos três
segmentos da Educação Básica Formal – Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio e por um
Atelier. Disponível em: https://www.escolaviva.com.br/quem-somos. Acesso em: 13 out. 2022.
21
tema sem mudar o campo de estudo da pesquisa, sem perder o foco na relação entre criações
artísticas e pedagógicas de dança para crianças?
Após perder a Festa das Cores como campo de investigação para o mestrado, ingressei
como membro de uma equipe de artistas/autores de conteúdo para escrever sobre dança em
coleções destinadas ao Ensino Fundamental a concorrer no edital PNLD3. Interpretei o
convite para tal escrita como um desvio estranho dos chamados do mundo (LARROSA,
2018). Se minha prática sempre se pautou na experiência presencial, no contágio sinestésico e
sutil do corpo-sujeito, teria eu vocação para escrever a distância sobre dança para professores
e crianças do ensino formal dentro da censura e formatação que o mercado/edital/governo
atual tem exigido, concomitantemente ao mergulho na escrita somática a que me propus para
o mestrado? Seriam esses dois mundos distintos, sem conexão possível? O questionamento
sobre a vocação diante de tal exigência me levou às explanações sobre o ofício do professor.
Descobrir uma vocação não é apenas averiguar o que gostamos ou o que nos satisfaz,
mas o que ela exige de nós. Essa exigência tem a ver com co-responder ao que há aí
para aprender, para interpretar, para fazer, para pensar. Sem essa dimensão que, para
Deleuze, tem a ver com a verdade, com a exigência da verdade, a prática de qualquer
atividade, qualquer ofício, permanece na frivolidade, na superficialidade, na
aparência, no caráter convencional e vazio do meramente mundano (no sentido
convencional), ou no engano, na dissipação, no egocentrismo e nas insatisfações do
meramente amoroso (no sentido emocional).
Por outro lado, os diferentes mundos entre os quais descobrimos esse que nos
interessa, esse que nos chama, não estão separados, mas estão entrelaçados entre si de
maneiras misteriosas. Os mundos diferentes se interferem uns com os outros, reagem
uns aos outros, se recordam uns sobre os outros. É por isso que a descoberta de uma
vocação às vezes requer desvios estranhos. (LARROSA, 2018, p. 63)
Assim como Larrosa, o livro Como se faz uma tese (2014) de Umberto Eco também
oferece dicas para a escolha do tema da dissertação, considerando itens como a experiência e
a compatibilidade4: ser compatível com as memórias, compatível com a vida presente e com
projetos futuros. As colocações de Eco foram apontadas por Valquíria Prates (20 9) em seu
caminho acadêmico e me inspiraram a buscar a elaboração crítica de experiências,
identificando problemas e desafios para encará-los com método e melhor compartilhar os
saberes dela provenientes.
3
Sigla para Programa Nacional do Livro e do Material Didático, que avalia e a disponibiliza de forma
sistemática, regular e gratuita, obras didáticas, pedagógicas e literárias (entre outros materiais de apoio à prática
educativa), às escolas públicas de educação básica das redes federal, estaduais, municipais e distrital e também
às instituições de educação infantil comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e
conveniadas com o Poder Público. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/busca-geral/318-programas-e-acoes-
1921564125/pnld-439702797/12391-pnld. Acesso em: 13 out. 2022.
4
Entendido por funcionamento em conjunto, simultaneidade.
22
Um dos desafios foi o de comunicar pela linguagem escrita as premissas que me regem
na linguagem da dança. Parto do princípio de que qualquer um – no sentido de todos – pode
dançar, pode se expressar pela linguagem artística do corpo. Acredito na ideia de que o
conhecimento de si confere a presença e a intimidade necessárias para se criar, em tempo real,
estados intercessores5 de brincadeira e dança em diversos espectros de relacionamento, dentre
eles no âmbito intergeracional mediado pelo espaço físico em comum (VASCONCELLOS,
2005).
Confronto tal princípio com a escola como campo de atuação. É em torno de um
projeto educacional que a rotina escolar se estabelece, contando com pessoas de diversas
idades e bagagens culturais, para compartilhar o tempo e o espaço comum, destinado à
promoção do contato com e pelo conhecimento. A meu ver, tal fato torna a escola um campo
fértil para se trabalhar o ensino da dança. Mas sobre qual dança estou a falar? Definitivamente
não é sobre aquela que atende a uma técnica ou estética apenas, mas aquela que nasce de uma
ampla variedade de explorações, experiências e vivências, possibilitando criar espaços
colaborativos de saberes, através de corpos e seus relacionamentos. Seguindo a denominação
de Uxa Xavier, refletindo sobre a dança contemporânea para crianças:
Fico me perguntando, diante desse novo contexto, por que não Dança contemporânea
para crianças e adolescentes, se também temos Ballet, Dança moderna, Jazz e
Sapateado para crianças e adolescentes? Estou citando só alguns exemplos. São
estilos, são opções artísticas, são identidades. Afinal, eu não saberia dar uma aula de
sapateado, como também um professor de sapateado não saberia dar uma aula de
dança contemporânea. Isso, entretanto, não quer dizer que um dançarino
contemporâneo não deva sapatear. Se ele souber, ótimo, mais um instrumento de
investigação para seu trabalho. (XAVIER, 2007, p. 63)
A escola também pode ser um espaço para se refletir sobre o mistério e os segredos do
corpo e do conhecimento. A presença da dança como conteúdo curricular é recente, mas o
conceito da educação de corpos é antigo. Salas de aulas com carteiras e a conduta militar de
disciplinarizar os corpos (FOUCAULT, 1987) fazem parte da história da educação formal há
muito tempo e, apesar de atualmente as diretrizes da BNCC, Base Nacional Comum
Curricular6, contemplar propostas de Danças tanto na Área de Linguagens pelo componente
Artes quanto na área da Educação Física, o corpo parece seguir deslocado das prioridades do
5
A ideia de intercessores baseada em um conceito de Deleuze apresentado por Jor e asconcellos (2005), que
diz que sem eles não há criação, não há pensamento Se os intercessores direcionarem o pensamento, irei
considerar o pensamento do corpo formado com e pelo movimento dançante e brincante na formação do sujeito.
6
A BNCC é um documento normativo para as redes de ensino e suas instituições públicas e privadas que auxilia
na elaboração dos currículos escolares e propostas pedagógicas para a educação infantil, ensino fundamental e
ensino médio no Brasil.
23
7
Historiadores, antropólogos e críticos da dança.
24
8
Os instrumentos utilizados com mais frequência eram o atabaque, o saxofone e o piano.
9
Código EL 652, para a disciplina Didática para o Ensino da Dança, IA, Unicamp, em 1990.
25
10
O espetáculo Corpo Dócil fez parte do Projeto de Pesquisa Terpsichore, de autoria de Isabel Marques.
Desenvolvido com apoio da Bolsa Vitae de Artes 1993, foi apresentado em escolas de Segundo Grau, atual
Ensino Médio, da 14ª DRE da Rede Estadual de Educação de São Paulo e na 9ª Conferência daCi, que será
explicada na sequência. A análise crítica desse projeto forneceu a base para a tese de doutorado de Isabel
Marques, defendida e aprovada pela USP em 1996. Disponível em:
http://wikidanca.net/wiki/index.php/Caleidos_Cia._de_Dan%C3%A7a. Acesso em: 10 ago. 2022.
11
Escola Estadual Alberto Levy, situada na Av. Indianápolis, 1570, São Paulo.
12
daCi é a sigla para Dance and the Child International. Durante a conferência uma extensa programação reúne
educadores e professores de dança com seus grupos de crianças, jovens, artistas, acadêmicos e simpatizantes da
arte da dança, para experimentar a arte como criadores, performers, pesquisadores, participantes e espectadores.
Durante o período de uma semana, são oferecidos workshops, palestras, performances e espetáculos feitos com
ou para crianças e jovens.
13
Além da conferência na Austrália em 1994, eu participei da conferência de 1997 na Finlândia, de 2000 no
Brasil e de 2006 na Holanda.
26
novos pontos de vista sobre questões técnicas operacionais em relação aos corpos em
movimento.
Depois de sair da produtora participei de outros projetos de dança contemporânea com
as colegas, também veteranas da Unicamp, Marinês Calori e Jussara Miller no espetáculo de
dança Corpos de Rua, por meio do qual pela primeira vez tive contato com a pesquisa de
Klauss, Rainer e Angel Vianna. Participar do processo de montagem e das apresentações
desse trabalho reafirmaram em mim o apreço pelo entrelaçamento da dança com o teatro e a
música ao vivo, que sempre me interessaram.
Um dia recebi um telefonema de Georgia Lengos me perguntando o que eu achava de
experimentar fazer um trabalho de dança contemporânea para crianças. Aceitei
imediatamente, e assim foi lançada a primeira semente do que se tornou a Balangandança. A
ideia de Georgia surgiu em 1996 enquanto ela, professora de dança em uma escola de São
Paulo14, olhava as brincadeiras livres de crianças na hora do recreio. Foi ali o momento no
qual ela teve o insight sobre a relação proximal entre os procedimentos da dança
contemporânea e as dinâmicas observadas no brincar das crianças. Como não havia trabalhos
com esse foco no Brasil, resolvemos pesquisar como seria nosso jeito de dançar as
brincadeiras e brincar com a dança, postura esta que influenciou minhas escolhas desde então.
Eram ações que lidavam com a alternância de velocidade, com o uso do peso em impulsos
diversos, com as ocupações do espaço em todos os planos, níveis e direções, em fluxos livres
e controlados, proporcionando relacionamentos entre pessoas, arquiteturas, objetos etc.
Naquele tempo não se falava em culturas da infância15 como se fala hoje. Segundo
autores como James, Jenks e Prout (2004) e Qvortrup et al. (1994), as concepções
tradicionais, que durante tanto tempo dominaram os estudos da infância, conduziram ao
silenciamento das crianças e da infância, focalizadas como objetos passivos da socialização
imposta pelos adultos, e era justamente esse aspecto reducionista que tínhamos o intuito de
combater.
O impulso original de Georgia estava alicerçado na concepção de apresentar uma
dança autoral (LOUPPE, 2000) voltada ao público infantil, por isso, foi feita a escolha de se
criarem procedimentos a fim de possibilitar a pesquisa aprofundada no/do corpo-sujeito em
14
Colégio Oswald de Andrade, atual Oswald/Caravelas.
15
A cultura da infância é um campo temático recente nos estudos da sociologia da infância. Veio se estruturando
a partir da década de 90 em torno de alguns princípios, sendo o principal a concepção de infância como uma
construção social.
27
suas brincadeiras pelo viés da dança, considerando-o como fonte de elementos presentes e
acessíveis no repertório corporal, independentemente da faixa etária.
Essa era uma proposta diferente para a época. O que todos viam – principalmente pela
televisão – fortalecia o conjunto de diretrizes normatizadores dos comportamentos voltados
para a produção e o consumo, no conceito da sociedade disciplinar. Queríamos, assim,
verificar se nossa pesquisa em dança pensada para o público infantil iria atrair a atenção das
crianças. Nosso objetivo era ajudá-las a se reconhecerem de imediato, e fornecer referências
éticas e estéticas de estados dançantes enquanto modo de se expressar, agir e pensar o mundo.
Queríamos proporcionar referências diferentes daquelas conhecidas danças difundidas pelas
mídias de massa. Assim, foi o desejo de criação da Balangandança Cia., dirigida desde 1997
por Georgia Lengos, de unir arte e educação com trabalhos originais de dança contemporânea
dirigida ao público infantil, respeitando as crianças como espectadores criativos e
participativos. Sou artista-criadora integrante da Balangandança desde sua fundação e, nestes
25 anos, dançar junto com crianças me propiciou aprender a lidar com a vulnerabilidade
minha, dos outros e das relações, me ensinou sobre escuta e adaptabilidade, sobre a
necessidade de rever pontos de vista, a desfrutar seriamente do universo da brincadeira a zona
neutra onde tudo pode acontecer Afinal, “a dança nos lembra a todo instante a essência da
transição, da transformação e do prazer que as mudanças podem gerar, enquanto a arte do
movimento inerente à vida” (MICHELLEPIS, 2007, p 32)
Aliada à experiência artística da Balangandança, atuei como professora de dança
durante 16 anos na Escola Viva na cidade de São Paulo, o que formou grande parte de minha
experiência pedagógica com o ensino de dança para crianças dentro de uma instituição regular
de ensino. Entre os palcos e as salas de aula, realizei formação e certificação como professora
na abordagem Orff-Schulwerk, que me permitiu experimentar a natureza pedagógica ao criar
aulas de dança relacionadas com a música. Em diferentes esferas relacionais, a dança e a
música vividas nessas três experiências continham elementos comuns: o ritmo, a brincadeira e
a imaginação.
A reunião desses três pilares, de características complementares – a natureza artística
da Balangandança, a natureza pedagógica da abordagem Orff-Schulwerk e a natureza
educacional da Escola Viva –, está entrelaçada em meu modo de dançar e conceber aulas de
dança para crianças. Destaco, nessa teia emaranhada, as relações entre a brincadeira e a
ludicidade na linguagem corporal da criança, as relações rítmicas e pulsantes do corpo em
estado de dança e a imaginação inventiva de criar novos gestos, espaços e histórias.
Por estes caminhos, trilho os capítulos seguintes e convido você, leitor, a vir comigo.
28
29
Antes de apresentar dados sobre a companhia que embasa a parte artística desta
dissertação, apresento uma imagem em preto e branco com quatro pessoas em um parque. Em
uma pequena clareira entre as árvores, duas pessoas estão no ar e as outras duas brincam de
equilibrar um cabo de vassoura imaginário.
Sem revelar as cores, a imagem pode convidar o leitor ao adentramento, pode convocar
a atividade da imaginação de quem a vê para que, a partir do próprio repertório, possa, pela
memória da infância, compor junto o quadro desse registro e assim a interpretar de forma
pessoal. Para mim, essa foto suspende e atualiza no tempo a potente latência do que estava
para nascer: a Balangandança Cia.
A natureza artística da companhia nasceu de uma ideia (acredito eu da alma) de Georgia
Lengos, sua diretora, em fusão com nossas16 contribuições. Antes de ingressar na Faculdade
de Dança (Unicamp), Georgia frequentou os cursos de História (USP) e Jornalismo (PUC),
conferindo a ela foco e sensibilidade na construção de caminhos que buscam “compreender os
contextos das situações e os assuntos em questão” (LENGOS, 2008, p -12). No Ensino
16
Lilian Vilela, Anderson do Lago Leite, Cristian Duarte e Dafne Michellepis.
30
Médio, frequentei a mesma escola17 que Georgia, mas só a conheci de fato na Unicamp,
participando da concepção do espetáculo Flash e Queixa (1991), dirigido por João Carlos
Dalgalarrondo18, com foco na relação entre a dança e a música cênica19. Nesse trabalho, com
o bom humor do diretor aliado às contribuições de Márcia Strazzacappa, foi possível brincar
de dar corpo às ondas sonoras emitidas pelos instrumentos20, bem como conhecer pela dança
Georgia Lengos, Lilian Vilela, Sandra Cavalini e Valéria Franco, que alimentaram minha
imaginação. Anos depois, Lilian e Sandra aprofundaram o contato com as danças brasileiras e
Valéria fundou a Cia. Tugudum, com interesse em investigar a interação entre dança e
música, jogos de improviso e experimentos artísticos, desenvolvendo um modo
composicional autoral intitulado “Diálo o Corp reo Musical Cênico” (FRANCO, 20 8, p
133).
Anderson do Lago Leite assinou a direção do TCC (trabalho de conclusão de curso) de
Georgia Lengos e Lilian Vilela, que dançaram inspiradas na vida e nas obras de Clarice
Lispector. Voltei a ser parceira e a dançar com elas participando como intérprete no
espetáculo Corpo Dócil (1993), de Isabel Marques, conforme mencionado na introdução.
No período no qual trabalhei na produtora de comerciais, mantive a dança em segundo
plano, enquanto Georgia foi professora de dança no SESC Consolação 21, participou
intensamente como colaboradora, estudante, professora e dançarina22 do Estúdio Nova
Dança23, e foi professora de dança no Colégio Oswald de Andrade24, todos trabalhos
realizados na cidade de São Paulo. Em 1996, com toda essa bagagem vivenciada e movida por
uma sensação de falta (LENGOS, 2008), Georgia direcionou seus esforços para a
Balangandança na realização de um primeiro projeto de dança contemporânea pensando
especialmente nas crianças:
17
Colégio Galileu Galilei, em São Paulo, capital.
18
Músico e percussionista, então professor de Rítmica e Percussão na graduação em Dança da Unicamp, dirigiu
o NUCA, Núcleo Campinas.
19
Segundo Valéria Franco (2018, p. 133), o termo surgiu na segunda metade do século XX para se referir a
obras instrumentais nas quais materiais visuais e teatrais atuam conjuntamente aos elementos sonoros.
20
Violoncelo, flauta transversal, vibrafone, tambores, caixas e outros instrumentos percussivos.
21
Enquanto funcionária do SESC, Georgia teve a oportunidade de dar aulas para grupos de todas as faixas
etárias.
22
Georgia Lengos integrou a Cia. Nova Dança (1995-2000) e Cia Oito Nova Dança (2000-2009) dirigidas
respectivamente por Adriana Grechi e Lu Favoreto.
23
Estúdio de Pesquisa e de Criação de Dança, localizado no Bairro Bela Vista/SP, ativo de 1995 a 2007, que,
se undo al ria Cano ravi, fomentou “a função de intérprete criador, na qual abre-se o caminho [...] de operar
processos de criação de maneira independente” ( RA I, 202 , itálico da autora) Disponível em:
https://portalmud.com.br/portal/ler/estudio-nova-danca-espaco-de-referencia-na-producao-da-danca-paulistana.
Acesso em: 11 ago. 2022.
24
Georgia Lengos lecionou por mais de 10 anos a disciplina dança oferecida dentro do currículo do Ensino
Fundamental Anos Finais.
31
Grande parte do que me move a pensar e a dançar é o que me falta, ou o que penso
que faz falta. O que me impele a expressar algo para o outro é o que sinto, ou penso
que não é visto, que não é deflagrado e que, a meus olhos, é importante para vida,
para as pessoas, para o pensamento, para o movimento. (LENGOS, 2008, p.18)
25
Entende-se por falta o sentido de suprimido, ameaçado de não brotar ou findar.
26
Expressão presente na obra Sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han (2015).
32
cinematográficas tanto quanto nas brincadeiras das crianças, constituindo assim uma
“capacidade estritamente humana” (Harris, 2002), mas que radicalizada pelas
crianças. (SARMENTO, 2002, p. 3)
27
NASCIMENTO, C. T.; BRANCHER, V. R.; OLIVEIRA, V. F. A construção social do conceito de infância:
algumas interlocuções históricas e sociológicas. Revista Linhas, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 16, jan./jun. 2008.
28
A Companhia Giz de Cena é um núcleo de pesquisa e criação em dança e música para público infantil
formado por Cris Bosch, Gisele Penafieri, Lia Mandelsberg, Lívia Imperio e Nô Stopa. Disponível em:
https://www.facebook.com/gizdecena. Acesso em: 15 ago. 2022.
29
A estrutura de investigação e criação do Lagartixa na Janela, dirigido por Uxa Xavier, se ancora na construção
de relações ticas (“Criança performer” de Machado (20 0)), políticas (corpo como potência de
criação/transformação no espaço público) e na criação de dispositivos de encontro com o público (convite à
interatividade), incluindo também as memórias remotas dos adultos. Disponível em:
https://www.lagartixanajanela.com.br/. Acesso em: 15 ago. 2022.
30
Existem grupos em outros estados que desenvolvem danças para bebês e para crianças. Mencionei dois
exemplos localizados na cidade de São Paulo.
33
Ao escrever sobre dança para crianças para o Projeto Rumos Itaú Cultural Dança 2012-
2014, Lilian Vilela, autora, pesquisadora e também uma das fundadoras e intérprete-criadora
da Balangandança Cia., relembra que no final dos anos 1990, quando a companhia começou,
“seus primeiros espetáculos eram apresentados em festivais e mostras de teatro infantil, já que
não existiam mostras de dança para crianças” na cidade de São Paulo ( ILELA, 20 4, p 9)
Só depois foram sendo formadas curadorias específicas para que a dança para crianças
pudesse participar dos grandes festivais internacionais do Brasil, antes restritos
exclusivamente ao público adulto.
Aos poucos, surgiram espaços municipais, regionais e nacionais dedicados à dança para
crianças, permitindo que elas estivessem dançando de forma não profissional ou assistindo.
As Artes Cênicas passaram a incluir foco na infância por mostras de dança, tais como o Meia
Ponta (2000), no Festival de Dança de Joinville, o Dança Criança (2005), no Rio de Janeiro,
o Dança Rima com Criança (2009), do Sesc/SP, Dança para Crianças (2010), do Itaú
Cultural/SP, e o Próprio para Menores (2013), no Rio de Janeiro, entre outros.
Nos últimos quinze anos no Brasil, a produção profissional de espetáculos de dança
voltados ao público infantil cresceu e passou a promover a iniciação à educação estética em
dança e à formação de plateia. Em 2008, dentro do Festival Panorama da Dança, iniciou-se o
Panoraminha, no Rio de Janeiro; e o Fidinho, dentro do Festival Internacional de Dança
(FID), em Belo Horizonte. Também, desde 2011, a Bienal Sesc de Dança em Santos procura
contemplar espetáculos de dança para crianças, intensificando essa preocupação na edição de
2013 (VILELA, 2014).
Abordar a interatividade por meio da dança, o papel do artista-docente, criar espetáculo
de dança contemporânea com proposta artístico-educativa e contextualizar temáticas diversas
por meio da dança foram também os embriões do que, por caminhos distintos, vieram a
formar a Caleidos Cia. de Dança, concebida e dirigida por Isabel Marques, e a Balangandança
Cia., concebida e dirigida por Georgia Lengos.
Este texto autobiográfico memorialístico se propõe a apresentar as perspectivas
artísticas e educacionais que permearam a história dos processos de criação em dança
contemporânea junto à Balangandança Cia., aqui nominada como Balangandança. No
exercício de uma escrita sobre dança, procuro descobrir camadas de significado nas palavras
para embasar algumas passagens, sendo fiel ao tempo das concepções cênicas, procurando
ainda atribuir ao texto o ritmo outrora vivido no corpo, para conduzir o leitor pelos cenários e
situações reais experimentadas, bem como as imaginárias.
34
31
Na fundação da companhia, eu tinha 26 anos. As mudanças principais no meu corpo/espírito ocorreram
durante os dois períodos de gestação, parto e puerpério (entre 2001 e 2005) e ao completar 45 anos, com o
diagnóstico da Síndrome do Impacto Fêmoro-acetabular congênito.
35
pequenos (2013) pude perceber a força no agir composicional em espaços abertos (PRADO,
2021). Além desses espetáculos, após o projeto de circulação nacional Palco Giratório 2017,
promovido pelo SESC Central, do qual participei com a companhia, descobri que novos
caminhos poderiam ser construídos a partir da intervenção política da percepção. Voltei das
viagens encantada com os encontros poéticos e estimulada por ter a oportunidade de conhecer
melhor este imenso país Brasil.
Ao lon o do caminhar, os “forinhos”, apelido que demos ao Fórum32: o Brincar, a
Improvisação e a Dança para crianças, respaldam a importância de realizar pontes entre
prática e teoria O primeiro “forinho” aconteceu em 20 0 e desde então traz como proposta
refletir e debater sobre temas pertinentes à nossa pesquisa, junto a outros profissionais das
áreas de arte, cultura, educação, famílias e pessoas interessadas nas infâncias.
Para aprofundar alguns dos aspectos do ritmo, da brincadeira e da imaginação
vivenciados ao longo dos 26 anos junto à Balangandança Cia., elementos estes que foram
sendo construídos e desconstruídos no trabalho de dança com crianças na escola, foi elencado
como foco para esta dissertação um recorte a partir de dois espetáculos: Brincos & Folias
(1997), que aqui chamarei apenas de Brincos, e a primeira montagem de O Tal do Quintal:
brincadeiras, medos e sonhos (2006/2017), que aqui por vezes chamarei apenas de O Tal.
Considerando a relação do brincar com a improvisação e a corporeidade dançante para
e com crianças (LOUPPE, 2012), eu me propus a revisitar e discutir temas abordados durante
os processos criativos desses dois espetáculos, a fim de contribuir para a reflexão sobre a
produção artística e sobre o ensino de dança contemporânea para crianças.
32
Maiores informações em: http://balangandanca.com.br/?page_id=263. Acesso em: 14 out. 2022.
36
bolinhas de sabão. Tem histórias e danças para assistir e outras para interagir. O espetáculo
termina com duas coreografias: uma elaborada a partir das memórias das nossas casas e
quintais e, outra, gestual literal sobre as palavras da letra de uma música com perguntas e
respostas feitas em um movimento de expansão, um zoom out.
Figura 3 - Brincos & Folias com Anderson Leite, Dafne Michellepis, Lilian Vilela e Cristian Duarte, o elenco
criador. Inauguração do Sesc Vila Mariana – SP, 2019.33
33
Atualmente o elenco deste espetáculo é composto por Alexandre Medeiros no papel de Anderson Leite, Dafne
Michellepis é intérprete criadora, Anderson Gouvêa no papel de Christian Duarte e Clara Gouvêa no papel de
Lilian Vilela. Todos seguem recriando a partir das próprias experiências, no entanto, roteiro e coreografias se
mantém desde a criação.
38
1.1.1 Brincadeira
O brincar é corporal e imagético, lida com nossas bagagens ancestrais, com as matérias
primitivas e originárias do mundo e as atualizam, as despertam, as vivificam pela
manipulação (pelo contato, pela massagem) feita no tempo presente. Para Orff (1978), as
matérias primitivas são elementais e, para Gandhy (2016), o sujeito que se põe em contato
com a matéria elementar passível de manipulação pode transformar a matéria externa e
simultaneamente ser transformado internamente. Tal movimento pode gerar um conhecimento
interior, uma vez que “a criança, em contato com mat rias primitivas, ao mesmo tempo em
que experimenta e transfigura o mundo, repercute-o em si mesma” (PIORSKI, 20 6, p 63)
Eu fui uma criança que pôde testemunhar o fluxo da construção recíproca e inacabada
entre meu universo interno e o mundo exterior através das brincadeiras: meu território e
minhas armas para defender tal espaço. Nem sempre eram processos fáceis, nem prazerosos,
mas, hoje, os considero como qualquer outro processo criativo no sentido de plasmar a
realidade necessária para a saúde mental naquele momento. Um exemplo, talvez banal, mas
pertinente, foi ter brincado, inclusive, com matérias não palpáveis, com os fantasmas que me
assustavam. O fato de ver vultos (que poderiam ser pela baixa visão) não constitui
experiências fáceis de lidar e não sabia o quanto estaria pronta para abrir essas gavetas.
A partir da proposta de redescobrir a infância para fazer um espetáculo de dança para
crianças, repelindo por completo os jargões de infantilização34, foi preciso acessar memórias
das minhas brincadeiras, da minha infância para identificar e ressignificar o que das práticas
outrora vividas fariam sentido no corpo do presente. Quais experiências anteriores com jogos,
brincadeiras, esportes, e da minha ima inação poderiam “virar” dança? Como meu hist rico
de criança poderia contribuir para a dança contemporânea? O que ainda estaria impregnado
em mim, e, pela corporalidade, comunicaria com a criança a ponto de ela interpretar ou não
aquela brincadeira como uma dança, ou aquela dança como uma brincadeira?
Fizeram parte da pesquisa sobre a transformação da brincadeira em dança os
questionamentos prático-reflexivos sobre como manter o estado brincante, como
realizar mimeses de movimento, como coreografar a imagem de buscar alcançar um objeto
de desejo, como transformar um jogo ou brincadeira em cena, como perceber o tempo das
interações entre os dançarinos na cena e as reações do público, ou seja, o timing da atuação no
jogo entre os intérpretes e a triangulação com a plateia nos momentos interativos intencionais
34
Infantilizar no sentido pejorativo do termo, se valendo de estereótipos para falar de uma criança idílica,
romântica ou universal.
39
e nos imprevistos, novamente, sem infantilizar, sem cair em caricaturas do que significa o agir
ou se comportar como criança.
O mundo material tem repercussão direta no mundo simbólico. Um se comunica com
outro. A materialidade do brincar é do campo das significâncias da alma. Perpassa o
tato, o olfato, a audição e o paladar, alçando tais impressões sensoriais para o
dinamismo dos símbolos, acordando imagens e arcaísmos do ser, comungando a vida
presente com a memória longínqua das gerações. Exige do educador um estudo
cuidadoso e empático do alcance das impressões, uma audição musical para as
estripulias do eco imaginal em cada alma, uma visão para além dos limites da retina.
(PIORSKI, 2016, p. 85)
Com esse tipo de memória de nossas infâncias, exploramos temas contrastantes a partir
dos elementos da dança na montagem do espetáculo Brincos, principalmente em relação ao
fator espacial (nível alto e baixo, movimento central e periférico), ao fator temporal (rápido e
lento) e a fluência (livre e controlada). De forma subjetiva estávamos explorando qualidades
cinéticas e cognitivas em ações como pegar e largar, cair e levantar, correr e parar, brincando
com o sumiço e o aparecimento de cada um dos elementos da dança.
As oposições também acontecem nas mudanças de cenas, com inícios e fins bem
marcados. Como em roteiros de filmes, há um ritmo no todo, logo, ao terminar uma cena
enérgica com movimentos bem marcados, que enfatizam o acento do tempo forte no chão, por
exemplo na cena da bola, inicia-se outra cena cuja fluência predominante é livre, feita com
movimentos suaves, leves e contínuos que exploram mais a suspensão do que o peso, como na
cena da bolinha de sabão. Se considerássemos as classificações de Gandhy Piorski (2016) em
relação aos elementos da natureza, poderíamos dizer que há cenas que evocam as
40
características do fogo e da terra, e outras que evocam características da água e do ar, sem
buscar normatizar o que isso possa vir a significar para diferentes pessoas.
Indo mais a fundo sobre a interação, trabalhamos modos de convidar a plateia a
participar através do vocabulário da dança, como propor pelo corpo as brincadeiras no intuito
de transformá-las em dança nas cenas interativas, e como se relacionar com cada criança /
grupo de crianças em tempo real, a partir da sinestesia e dos estados energéticos.
Fez também parte da concepção desse espetáculo o uso de elementos cênicos que não
fossem meros objetos decorativos do cenário, mas que reforçassem a pesquisa de
movimentos, e de preferência que fossem facilmente transportados 35. Assim, tudo começou
com uma caixa média de papelão coberta com papel machê simulando uma TV de tubo, uma
caixa retangular pequena simulando o controle remoto, quatro bolas de ginástica infláveis, um
pandeiro, tubos pequenos com argola para produzir bolinha de sabão e os tubos plásticos
coloridos inflados com secador de cabelo para o cenário e as bordas da cena do videogame.
Os primeiros tubos infláveis utilizados no Brincos vieram da desmontagem de uma
exposição no lago do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, no fim dos anos 90. Logo nas
primeiras apresentações, reciclamos o plástico da obra de arte/intervenção, e abordamos as
questões ecológicas com as crianças sempre que possível.
35
Para facilitar o deslocamento, de preferência, deveriam caber junto com todo o elenco em um carro.
36
A história do Pacalhão faz parte do espetáculo Álbum das Figurinhas da Balangandança Cia.
41
Nas férias, brincava bastante com o Alexandre, outro amigo, que todos enxergavam,
mas que nem sempre escutavam. Filho de um casal de amigos dos meus pais, ele era um
menino quieto, parecido com o Pacalhão nesse quesito. Eu sempre gostei de falar muito e o
admirava pela diferença, por ele saber ficar em silêncio, bem como por usar bem as poucas
palavras para comunicar seus pensamentos. Nós inventamos vários passatempos, brincadeiras,
jogos e suas regras. Um desses jogos foi o “mata-mosca”, uma disputa de matar insetos
voadores37 quando eles pousavam na parede, com apenas uma palmada, para ver quem
conseguia matar mais. Um dia, quando estávamos subindo correndo uma escada para disputar
o “mata-mosca”, eu caí de um de rau alto e bati o rosto no chão. O tombo ocasionou um corte
fundo entre meu lábio inferior e o queixo. Pela reação dos adultos, imaginei que algo
realmente grave havia acontecido. No pronto-socorro foi bastante traumático o processo de
suturar, praticamente sem anestesia.
Tinha intimidade com meu corpo em relação aos machucados. Estava acostumada a
cair e acompanhar o processo de cicatrização, principalmente nos joelhos. Cuidava, lavando a
região, e olhava a pele se refazer feito casca de árvore que se formava da borda para o centro
das lesões. Previa a espessura que teria pela profundidade ou superficialidade das feridas,
administrando o tempo que levaria até ver a pele nova, avermelhada e refeita. Em pouco
tempo esquecia dos machucados, mas esse da minha boca interferiu por mais tempo na minha
rotina e marcou minha história. Precisei minimizar movimentos no maxilar por um bom
tempo: primeiro devia ingerir só líquidos, depois, alimentos pastosos, e procurar evitar ao
máximo falar para ajudar na cicatrização. Sem dúvida, ficar temporariamente muda foi a
maior dificuldade e também um dos aprendizados dessa situação. A nova condição, presente e
temporária, me obrigou a ajustar os gestos para comer e beber, trazendo-me novos
entendimentos de mundo não compartilháveis pela fala naquele momento.
37
Pernilongos, moscas-da-fruta.
42
são descritas comigo em primeiro plano falando e gesticulando, enquanto outra dançarina38
escondida atrás de mim compõe a movimentação também pelos gestos, exaltando a minha
tagarelice. A cena se desenrola pelo entendimento de palavras-chave aliadas à movimentação
estual dos braços Quando, na narrativa, eu entro na condição de “muda”, ocorre uma
mudança no foco da cena. A dançarina antes encoberta é descoberta e torna-se, em silêncio, a
protagonista da cena. A luz do palco, antes um foco, se abre e amplia a visibilidade do jogo
corporal entre nós duas, até que a brincadeira se transforma em uma briga. Os outros dois
dançarinos entram em cena, e, após uma discussão sobre os conceitos de brincar de brigar e
de dançar, o falatório se transforma na coreografia final do espetáculo.
Durante essa cena, percebo o gesto, inicialmente frontal e sem deslocamento, ocupar
tridimensionalmente o espaço cênico pela dança e levar ao público nosso discurso essencial.
Eu verdadeiramente me sinto multiplicada (pela parceria com os colegas artistas e com quem
nos assiste) e multiplicadora.
38
Originalmente, Lilian Vilela. Atualmente, Clara Gouvêa Prado.
43
rolamentos; movimentos feitos na cena das palmas usando peso e contrapeso pela pegada no
antebraço – similar à pegada de trapezistas —, fundamentais para gerar o impulso necessário
tanto para ir para o chão quanto para saltar; movimentos feitos na cena da casa, como aquele
que chamamos de “clipes”, em que um dançarino corre e se posiciona na transversal do corpo
de outro dançarino na altura do umbigo; e movimentos como estrela, cambalhota de costas e o
uso da bola como trampolim, que surgem distribuídos ao longo do roteiro.
Do repertório das inúmeras brincadeiras infantis vivenciadas, foi para o espetáculo o
jogo de escolha 2 ou 1; o pega-pega; uma simulação corporal do videogame; a brincadeira do
boneco articulado a bolinha de sabão o contar hist ria e “remendar” os outros o ato de se
esconder; a brincadeira de carrinho; a luta; o pula-sela; o cavalinho, entre outras brincadeiras
inventadas.
Pelas relações entre o brincar e a dança com uso da imaginação na construção de cenas,
o espetáculo Brincos & Folias foi um dos escolhidos para compor o recorte desta dissertação.
Também pela sua longevidade41. Segundo Alexandre Medeiros, pesquisador, ator e dançarino
da Balangandança, é pelo brincar e pela memória poética que o corpo abre possibilidades de
encontro e de troca (MEDEIROS, 2018), assuntos que nos são tão caros.
A companhia sempre buscou tratar da infância sem eufemismos, sem minimizar. Pelo
contrário, em respeito à infância, fase tão importante de formação e latência, buscamos
adentrar em nossas experiências corporais e afetivas de outrora, para atualizá-las e torná-las
matéria-prima e final da Balangandança.
41
Em março de 2020, momento no qual as atividades sociais foram interrompidas devido à pandemia, estávamos
em temporada com esse espetáculo nas Fábricas de Cultura de São Paulo. Apesar de ter sido concebido há mais
de 20 anos, ele segue atual. Convida a criança para sair de frente da tela e descobrir coisas com o corpo no
espaço, com os amigos, com imaginação. Ao longo dos anos, muitos dançarinos interpretaram o Brincos, mas o
“tom” permaneceu aquele dado pelo elenco ori inal, a saber, os int rpretes-criadores Anderson do Lago Leite,
Cristian Duarte Brasil, Lilian Vilela e a autora.
45
Nas relações com seus pares, as crianças desenham outros espaços, instauram outras
temporalidades e criam outros significados para suas ações, num entendimento mútuo
de uma cultura própria, em que nós adultos/as temos uma participação mínima,
dependendo do contexto. (SILVA; PRADO, 2020, p. 99)
Nesse caso, éramos nós, adultos, com a máxima participação das nossas memórias
corporais que incluíam nossas crianças internas, que estávamos a redefinir entendimentos
mútuos do contexto que habitamos. Todo o material desse laboratório ao ar livre foi
trabalhado nos estúdios de ensaio, transformado em cenas no Tal, e seguiu recheado de
intenções nos improvisos deste e de outros espetáculos da companhia.
42
Praça Boaçava, no Bairro City Lapa, em São Paulo.
43
Anderson do Lago Leite, Anderson (Ders) Gouvêa, Dafne Sense Michellepis, Georgia Lengos, Marco Aurélio
(Coré) Alberte Valente e Maristela Estrela.
47
44
Fui aluna da Prof. Regina Vaz, no Ballet Stagium, e na Joyce Ballet, em São Paulo, de 1983 a 1989.
49
vivência de outros espaços, como de casa, da rua e da escola, para interpretar as coreografias
que não eram criadas por mim.
O registro corporal durante os processos de ensino e aprendizagem tende a se enraizar
tornando-se hábito, e evidencia a influência que a forma com a qual aprendemos a dançar
exerce nos conceitos que passamos a carregar sobre dança. Quando me tornei professora,
exemplos foram presenciados em aulas de dança contemporânea para adultos que fizeram
aulas de balé durante suas respectivas infâncias. Na maioria das vezes, a desconstrução dos
gestos característicos da técnica clássica45 era perturbadora, abalava o universo interno da
pessoa. Talvez por ter tido na minha formação o contato com a dança por coreografias
predeterminadas, senti muito medo de dançar cenas improvisadas. A dança que não parte da
mimese de movimento foi sendo construída lentamente (PRADO, 2021).
No processo criativo do Tal, identifiquei, conforme nos mostra Cecília Salles, que, na
trama dos meus “prop sitos e buscas: problemas, hipóteses, testagens, soluções, encontros e
desencontros”, ou seja, na “rede de tendências que se inter-relacionam” ao lon o de percursos
de criação artística coletiva, a improvisação fazia parte do meu repertório técnico
incorporado, mas eu não a relacionava com a dança (SALLES, 2011, p. 44).
Os questionamentos que assolaram meu pensamento eram: E se eu não souber o que devo
fazer ou trombar com alguém? E se eu for correndo para saltar por cima de outra pessoa e ela,
sem me ver, se levantar na mesma hora? E se eu me lançar contando com o suporte de outra
pessoa e não o tiver? Eu me sentia se ura dançando no “meu quintal/quadrado” e me
relacionando a distância com os colegas de cena, mas a demanda era outra. Percebi com
nitidez minha limitação quando a diretora pediu para que eu saísse da minha zona de conforto,
para que eu buscasse dançar ocupando todo o espaço do palco e não ficasse tão restrita a
movimentos no próprio eixo, com poucos deslocamentos.
A situação tornou-se mais complexa após a estreia do espetáculo, quando as
explorações de movimento que eram sempre imprevisíveis, passaram a acontecer em tempo
real, entre os colegas de cena e a plateia. A insegurança para escolher o melhor a se fazer,
onde se colocar, quando mover e quando pausar foram algumas das inúmeras dúvidas que me
surgiram.
45
Entende-se por gestos característicos a posição de braços e pernas nas cinco posições básicas do balé e a
organização do eixo central (cabeça e tronco).
50
Um espaço de conforto e aconchego foi trazido pela educação somática, pelo corpo do
outro. As aulas de BMC®,46 tidas dentro do projeto, mostraram como o campo somático está
ligado às práticas de improvisação, pois validam a experiência pelo próprio movedor, e não
por referenciais externos.
Tocar a coluna para acordar o contato com o próprio corpo antes de improvisar no
processo do Tal foi uma estratégia para descondicionar o automatismo de movimentos
adquiridos pelos hábitos diários. Percutir é a ação base dos músicos que tocam instrumentos
de percussão e que, no diálogo rítmico com outros instrumentos, dançarinos ou consigo
próprio, afina seu universo interno com o externo. Seja pela música e/ou pela dança, o
encontro do corpo com outras materialidades quando gerador de conhecimento interior,
resultado do contato por movimentos como tocar, pressionar e soltar, tem a capacidade de
promover o que Piorski (20 6), pelo brincar, denominou de “sonhos de intimidade” Como
que friccionada com unguento, com óleos sagrados “de encantamento ima inal, ela [a
criança] traz para si, para sua própria lavoura mágica, as reentrâncias sociais, o poderoso e
impositivo halo de costumes e si nificâncias” (PIORSKI, 2016, p. 63).
Meses antes do processo de montagem desse espetáculo se iniciar, eu havia recém-
vivenciado o curso de Material para a Coluna oferecido por Steve Paxton, criador do contato
improvisação. Nessas aulas pude me reconectar com práticas corporais da época de escola e
com experiências da graduação em dança para acessar novas entradas do corpo cênico. Paxton
traz abordagens técnicas que ajudam a lidar com a segurança em diferentes estilos de
movimento: os que envolvem o corpo em quietude, como a meditação, e os que envolvem o
corpo em movimento, como o Aikido e a ginástica. Ao desenvolver a improvisação de
contato, Paxton procura ensinar os alunos a explorarem a improvisação como resultado da
comunicação por meio do toque.
O toque aproxima as pessoas de si mesmas, o que é fundamental para a improvisação,
pois conta com o interior de cada pessoa: seus reflexos, gosto, mente e temperamento. Toques
e retoques como tentativas de transformação (MICHELLEPIS, 2007) passaram a ser um dos
elementos fundantes da minha concepção de corpo. Sobre o acordar o corpo pela coluna,
Steve Paxton (2008) foca na relação entre o corpo e mente considerando o sujeito que pelo
movimento desenvolve o conhecimento do/no/pelo corpo. Fala que despertar fisicamente não
46
A sigla BMC®, por extenso Body-Mind Centering®, significa, em tradução livre, Centralização Corpo-
Mente. Técnica desenvolvida por Bonnie Bainbridge Cohen, pesquisadora norte-americana responsável por
articular os sistemas de autopercepção com os espaços, criando um método transdisciplinar de Educação
Somática. Educadores, artistas e pesquisadores no mundo todo continuam investigando e desenvolvendo os
princípios das descobertas dela.
51
significa apenas usar o corpo, mas sim aprender a estudar o corpo durante a dança,
concentrando a mente para reter as sensações enquanto o usamos, e fazer dele uma fronteira a
ser explorada.
Assim, procurei compartilhar com os colegas da Balangandança a conscientização que
tive pelos princípios do curso de Steve Paxton em descobertas sobre o eixo, alguns rolamentos
individuais e as relações envolvendo peso e contrapeso praticadas em dupla. Essas relações
serviram para iniciar experimentações de conexão entre duas pessoas através da linha da
coluna, escápula, mão – e o caminho inverso: mão, escápula e coluna – em exercícios que
geraram movimentos de pêndulo e balanço cada vez mais dinâmicos, até chegarem aos
carregamentos. Dessa maneira, o toque utilizado para sensibilizar a própria coluna e balançar
a coluna do outro foi o procedimento de aquecimento durante o processo de montagem do
Tal, em 2006, e passou a fazer parte das vivências da companhia.
Em termos de procedimentos específicos da dança, destaco o quão potente foi o
contato com a somática. O campo dos saberes somáticos é amplo, abarca desde o
conhecimento dos povos originários cuja integração do ser consigo e com o ambiente é uma
constante (ou seja, o corpo-sujeito carrega em si – em todas as suas células – a capacidade de
acessar e expressar a experiência vivida em qualquer tempo e espaço), até técnicas
desenvolvida por pesquisadores, tais como Feldenkrais47, Alexander48, Klauss Vianna49, entre
outras.
Convém esclarecer que o neologismo, definido pelo norte-americano Thomas Hanna a
partir do conceito grego de soma – eu/corpo vivo, é contextualizado por ele, da seguinte
maneira:
“Soma” não quer dizer “corpo” si nifica “Eu, o ser corporal”, “ ody” tem, para
mim, a conotação de um pedaço de carne pendurada em um gancho no açougue ou
estendida sobre uma mesa de laboratório, privada de vida e pronta para ser
trabalhada ou usada. O soma é vivo; ele está sempre contraindo-se, distendendo-se,
acomodando-se e assimilando, recebendo energia e expelindo energia. Soma é
pulsação, fluência, síntese e relaxamento alternando com o medo e a raiva, a fome e
a sensualidade. Os somas humanos são coisas únicas que estão ejaculando,
peidando, soluçando, trepando, piscando, pulsando, digerindo. Somas são coisas
únicas que estão sofrendo, esperando, empalidecendo, tremendo, duvidando,
desesperando. Somas humanos são coisas convulsivas: contorcem-se de riso, de
choro, de orgasmos. Os somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse
momento, nesse lugar onde você está. O soma é tudo o que você é, pulsando dentro
dessa membrana frágil que muda, cresce e morre. (HANNA, 1976, p. 28)
47
A técnica Feldenkrais foi desenvolvida pelo israelense Moshé Feldenkrais.
48
A técnica Alexander foi desenvolvida pelo australiano Frederick Matthias Alexander.
49
Técnica desenvolvida pelo brasileiro Klauss Vianna.
52
que ocupam os espaços50, para outros sistemas, como o orgânico e o linfático. Pela
consciência corporal, pelas imagens e pelos gestos desencadeados pelos toques no corpo
(Hands-on), na exploração para se criar as cenas do espetáculo, movimentos surgiam nos
segmentos corporais, nos órgãos e no corpo energético, induzindo a uma série de explorações
cinéticas, concretas, simbólicas e sutis.
No meu percurso enquanto artista e pesquisadora na Balangandança, a contribuição
maior advinda do campo somático foi ter tido contato com novas e infinitas possibilidades de
flexibilizar pontos de vista para trabalhar a criação em dança, foi poder associar a estrutura e
as formas do corpo com a estrutura psíquica e anímica dos colegas com quem eu estava
trabalhando, bem como das crianças no momento em que a obra era levada à cena.
Cada público é único, assim como são únicos os olhares de cada pessoa da plateia. Gosto de
olhar fundo nos olhos das pessoas, e não se trata de um olhar fixo, nem investigador. É, na
verdade, um olhar escorregador, às vezes um gira-gira. Quando fazia trabalhos como atriz
para publicidade ou filmes institucionais nos quais era preciso falar com o telespectador, eu
costumava exercitar o olhar. Primeiro no espelho falando para mim mesma e depois no
estúdio olhando para a lente da câmera como se fosse a lente dos olhos de alguém com quem
eu tinha muita intimidade, alguém bem próximo, com quem eu estabelecia uma relação
afetuosa.
A preparação para entrar em cena é também como um processo criativo. Qual faceta
irá emergir da minha personalidade para dançar hoje? Como o público vai se relacionar com a
proposta que estamos levando à cena? Antes de montar o palco, procuramos perceber o
espaço e conhecer um pouco do contexto no qual o espetáculo será apresentado. O contexto
varia tanto pelas influências geográficas quanto pelas bases sociais, políticas e econômicas
dos locais.
50
No processo do Tal investigamos ações como escalar (subir em árvore, muro, parapeitos de janela, em escadas
e nos colegas), lançar (jogar objetos, ser lançado por objetos, lançar partes do corpo para liderar o movimento e
se lançar com todo o corpo para ser amparado pelos colegas), pendurar (por partes do corpo como na cena do
varal), entre outras onde o equilíbrio dinâmico entre o alinhamento ósseo e o tônus muscular foram solicitados
com frequência.
54
Existem alguns formatos de apresentação. Elas podem ser feitas para público
espontâneo em espaço aberto (espetáculos gratuitos51 em praça pública), em escolas atrelado
ao projeto político-pedagógico da instituição ou para público pagante em espaço aberto ou
fechado (espaços culturais, SESCs ou teatros municipais). Quando há público pagante,
significa que houve venda de ingressos, mas quem pagou nunca foi o nosso público-alvo. A
criança chega sem ter pedido para ir a um espetáculo de dança, tampouco sabe que estilo de
dança vai ver. Por isso, afinar a comunicação com as crianças é uma parte específica desse
tipo de trabalho.
Apesar de haver cenas coreografadas cujo intuito é mostrar a dança, o ato de estar em
cena é sempre relacional. Cada configuração de público e cada lugar requer um tipo de atitude
interna para se colocar em estado de cena, afinal, a proposta não é palestrar uma dança pronta,
mas sim tocar a criança pela poética da dança, estabelecendo o encontro pelo corpo sensível.
A preparação para entrar no jogo cênico e incluir as crianças durante os espetáculos envolve a
abertura dos sentidos de forma incondicional. Ao mesmo tempo existe uma série de
procedimentos técnicos necessários a serem feitos antes das apresentações, para os quais os
sentidos estão a serviço de um determinado resultado. Dentre os procedimentos, geralmente
estão: montagem do linóleo, montagem de luz, montagem do cenário, preparação dos objetos
cênicos, aquecimento dos dançarinos, marcação do espaço, equalização do som, entre outros,
que tendem a distrair a frequência que costumo acessar internamente para estar em cena. Nem
sempre é possível passar com tranquilidade por todas essas etapas, o que tende a turvar o
acesso ao corpo sensível.
Para estar aberta às situações imprevisíveis que podem surgir na hora do espetáculo, a
preparação começa no mínimo um dia antes. Preparo meu corpo físico procurando garantir as
horas de sono na noite anterior e me alimentando de acordo com a demanda. No dia da
apresentação, preparo meu corpo sutil de várias formas. Como um ritual, ao chegar no local
da dança, adentro os espaços cumprimentando as energias sutis de cada lugar e pedindo
permissão a elas, para realizar o trabalho com sucesso, considerando que a apresentação será
bem-sucedida se transcorrer sem acidentes, mas, principalmente, se pelo impalpável campo da
arte ela tocar as crianças e contribuir para transformar a vida de quem ali estiver. Coloco o
coração a serviço de todo meu corpo para comunicar algo que já é.
Faz parte do meu ritual, olhar para a plateia ainda vazia e calcular o ponto de vista das
crianças. Eu costumo olhar para as poltronas imaginando em que altura estarão, em instantes,
51
Financiados por uma entidade, instituição contratante ou via verbas públicas advindas do recolhimento de
tributos municipais, estaduais ou federais.
55
os olhos do público. Aqueles cujo olhar estará no encosto da poltrona seguramente não
estarão com os pés tocando o chão, e provavelmente irão prestar pouca atenção nas palavras
do espetáculo. No colo de um adulto ou sentadas sozinhas, em apresentações para escola, as
crianças pequenas ocupam as fileiras da frente, e com os pais, geralmente, ocupam as
poltronas das pontas das fileiras do meio da plateia. Os adolescentes costumam ocupar o
fundo da plateia. Apesar de os espetáculos serem pensados para todas as idades, para mim o
público-alvo são as crianças maiores. Assim, eu estudo a arquitetura dos corredores do teatro
para saber como chegar perto delas nas cenas interativas. Ainda nesse aquecimento sutil e
pragmático, procuro imaginar que meus olhos se multiplicaram e passaram a ocupar os poros
da minha pele. Realizo alguns gestos para continuar vendo e sendo vista com todo meu corpo
e por todo meu corpo no espaço cênico.
Para mim é fundamental colher as primeiras impressões do público.
Independentemente de serem apresentações em teatro ou em espaço aberto, de serem
espetáculos nos quais iniciamos na cena, ou fora da cena, procuro sempre ouvir as conversas
da plateia. Tal momento funciona como um termômetro do ambiente, por meio do qual é
possível perceber se as pessoas estão com a energia alta, média ou baixa. Dependendo do que
sinto, procuro ajustar o tom do que vou levar para a cena.
Como nesta dissertação foi trazido o recorte de dois espetáculos idealizados para a
caixa preta, tendo eles cenas interativas determinadas no roteiro, não irei me aprofundar nos
demais trabalhos da companhia. Entretanto, em todas as obras, as cenas que propõem
interatividade são as maiores incógnitas dos espetáculos, por excelência, as mais instáveis, ao
mesmo tempo o nobre território dos encontros artísticos.
Desenvolvemos formas de convidar o público relacionadas ao tema da cena ou à
proposta do espetáculo como um todo, mas, para além da técnica ou das estratégias, há uma
questão magnética que, por vezes, se relaciona com as primeiras impressões, por vezes, surge
no exato instante do encontro. Qual criança convidar, aquela que está mais expansiva,
pedindo para participar, ou aquela tímida, que não está falando com palavras, mas sim com os
olhos? Convido pela intuição, e na ação brinco, jogo e danço com elas.
Nos espetáculos Brincos e Tal, as cenas interativas propõem a exploração de um
repertório de movimento mais ou menos estabelecido; mesmo assim, cada situação acaba por
indicar sua especificidade na dinâmica do encontro. O diálogo se estabelece pelos corpos em
movimento, sentindo a criança ou o grupo, lendo seus ritmos, e essencialmente dançando os
fluxos de seus pensamentos e de suas emoções.
56
Tudo é passageiro. Tudo é duradouro. No primeiro contato que tive com o texto de
Larrosa sobre a experiência (2014), a imagem que se formou em minha mente fora a de
inúmeros flashbacks de situações vividas com as crianças na dança. Encontros apaixonantes e
efêmeros. Mesmo em temporadas gratuitas, como certa feita aconteceu no Centro Cultural
São Paulo, quando algumas crianças assistiram várias vezes ao espetáculo52, a relação com
elas cada dia foi uma. No início da companhia, me sentia tão absorvida por esses momentos
de troca, que perdia a conexão com os espaços das cenas ou com seu tempo de duração. Era
como se pudesse passar o dia ali, brincando de dançar com aquelas pessoas, sem me
preocupar com nada além. Ao longo dos anos fui desenvolvendo a abertura para perceber a
interferência desses pensamentos e utilizá-los para compor a cena como um todo.
O tópico dos encontros com as crianças através da arte foi trazido como central na
pesquisa artística da Balangandança desde o início. No primeiro vídeo53 gravado para divulgar
o trabalho da companhia, mencionei as trocas com as crianças que ocorriam nos espetáculos,
tanto com elas na plateia, pela apreciação da obra, quanto dançando com elas nas cenas
interativas. A intenção que sempre mobiliza é a de contribuir na formação da personalidade de
cada pessoa. É uma intenção ambiciosa, talvez a mais ambiciosa da minha vida, mas na qual
acredito e para a qual me dedico.
Com o passar do tempo aprendi que o ato de estabelecer vínculos pode se dar em
relações de curta duração, mas intensas em suas verdades e princípios. Como dizem Larrosa e
Skliar (2009), mesmo se todos lerem um mesmo poema, a leitura será singular para cada um.
Assim, supunha que, mesmo assistindo a um mesmo espetáculo de dança, cada criança faria
um quadro da obra, mas eu não sabia até que ponto poderia acreditar nisso. Tinha registros em
minha memória de espetáculos de teatro que vi na minha infância, mas de dança, não. Será
que as crianças iriam absorver algo da experiência cênica pelo movimento que é efêmero,
some feito fumaça no ar? Seria importante que elas absorvessem ou apenas vivessem a
experiência? Agora, com 25 anos de Balangandança, é possível afirmar que a linguagem
direta do movimento comunica de forma integral mensagens para as crianças, que as
interpretarão de jeitos diferentes.
52
Temporada com o espetáculo Entranças: Descobrindo e Redescobrindo o Brasil.
53
Balangandança Cia. Disponível em: https://youtu.be/cBwYiclMJdw. Acesso em: 12 ago. 2022.
57
54
Carl Orff nasceu em Munique, capital do estado da Baviera, e foi um compositor alemão de destaque no
século XX.
58
criança “envolve-se com ela, passa a amá-la e permite que faça parte de sua vida”
(FONTERRADA, 2008, p. 177 apud BACH, 2016, p. 2).
Apesar de fazer parte dos denominados “M todos Ativos”, sur idos na primeira
metade do século XX, é mais apropriado chamar esse trabalho educacional de
proposta ou abordagem, uma vez que a Educação Musical sob perspectiva da Orff-
Schulwerk tem como intenção expandir a musicalidade humana, sem a rigidez de um
método ou técnica específica. Trata-se de uma abordagem com peculiaridades e
sequência lógico-didática, porém, não há sentido em utilizar suas ideias e conceitos
sem a devida contextualização a uma realidade particular. (FONTERRADA, 2008;
CUNHA; CARVALHO; MASCHAT, 2015 apud SANTOS, 2020, p. 35)
55
Para Kant, a experiência é a origem do conhecimento e o entendimento intelectual cumpre o papel de
organizador das informações fornecidas pela sensibilidade.
56
Considerava que o caráter natural evolutivo da linguagem teria surgido da imitação dos sons da natureza e que
através do homem a linguagem seria capaz de evolução e crescimentos contínuos.
57
Goethe é considerado o mais importante escritor alemão, no entanto, atingiu a excelência em diversas áreas do
conhecimento. Defendeu uma nova explicação para a teoria das cores diferente da teoria de Isaac Newton.
58
Publicou Fenomenologia do Espírito, obra na qual afirma a impossibilidade de separar o mundo do sujeito, o
objeto e o conhecimento, o universal e o particular.
59
Segundo suas ideias, o homem não é um ser unificado e racional, mas sim um ser fragmentado e passional no
qual o corpo faz a decifração ou objetivação da essência do mundo, interferindo na vontade (ou não) de viver.
60
Cantor, orador e filósofo francês que desenvolveu a Estética Aplicada, uma teoria sobre a expressão humana.
61
Elizabeth Mensendieck foi a primeira mulher na Alemanha a publicar livros sobre cultura física com foco no
corpo feminino. Dentre os títulos de suas publicações estão: A educação física feminina e a arte do movimento
(1912); Cantos praticamente higiênicos e praticamente estéticos (1920); Ginástica funcional feminina (1923), e
Meu sistema (1926) em Ludwig Pallat; Franz Hilker, Treinamento artístico do corpo, entre outros.
62
Dalcroze criou um sistema de ensino de música baseado no movimento corporal expressivo.
59
63
Nascida Angela Isadora Duncan, foi uma coreógrafa e bailarina norte-americana considerada a precursora da
dança moderna.
64
Nascido Rezső Keresztelő Szent János Attila Laban, foi um artista e pesquisador considerado o maior teórico
da dança do século XX.
65
Nascida Karoline Sophie Marie Wiegmann, foi uma coreógrafa e bailarina alemã que influenciou a formação
da Orff-Schulwerk.
66
Este mapa foi criado por Elin Bergdahl em 2019, enquanto aluna do Programa Europeu de Mentoria em
Pedagogia Orff-Schulwerk, após uma palestra sobre o tema Schulwerk. Disponível em
https://mentorshipprogramme.wixsite.com/mentorship. Acesso em: 18 ago. 2022.
60
A força do coletivo das danças corais facilitadas por Laban bem como a força do
coletivo presente nas danças tribais tinham a capacidade de fazer com que os participantes
pudessem se afinar entre si pelo movimento, como se estivessem todos sintonizados em uma
mesma frequência. É possível supor que tal prática facilitava o acesso à dança e à música
elementar, termo muitas vezes mencionado por Carl Orff como sua base filosófica. O termo
do latim elementarius significa67 básico, essencial ou fundamental, bem como rudimentar e
minimal. Os elementos da natureza suscitam o elementar, e a percepção de alguns ritmos
pode, também, ajudar nesse processo.
O ritmo pessoal, inato, e o adquirido podem ser percebidos em praticamente todos os
movimentos realizados pelo indivíduo desde muito cedo. A experiência com o momento do
nascimento, com a própria respiração, os modos de acalentar para ninar um bebê, a forma de
se relacionar com a alimentação e com o sono, bem como os modos de escovar os dentes,
descer uma escada, pentear os cabelos, atar os cadarços de um tênis, brincar com um animal
de estimação, entre outras ações menos evidentes, mas também imbuídas de ritmo, são
pessoais.
Todavia, na visão de Dorothee Günther (2011, p. 107, tradução nossa), o que parece
ser inexplicável ao mesmo tempo que fascinante é o desejo de agrupar esses atos rítmicos em
partes68 que podem ser repetidas; é o desejo que o ser humano tem de juntar frases rítmicas,
organizá-las em séries e fazer variações para criar uma forma, através de uma composição
musical ou de uma sequência de movimentos.
67
O verbete elementarium ainda dá o significado de pertencente aos elementos da matéria-prima original,
próximo da origem, conforme o começo, composto ou pertencente aos elementos água, ar, fogo e terra.
WordSense Online Dictionary. Disponível em: https://www.wordsense.eu/elementarium/. Acesso em: 18 jul.
2022.
68
Traduzi como partes o termo em inglês entities, entidades. Também poderia ser traduzido como ente, ser,
criatura, essência, ou como blocos, agremiação, associação, organização, sociedade.
61
A dança, a música e a poesia são baseadas nessa energia proporcionada por atos
rítmicos capazes de mobilizar o ímpeto elementar e criativo que vibra nos seres humanos e
direciona seus impulsos no sentido de gerar formas no tempo. Tudo isso pode ter relação com
os diversos mecanismos que ajudam a medir o fluxo do tempo e ser um dos motivos pelos
quais celebrações sociais como Ano-Novo, Páscoa, Natal, entre outros69, marquem os ciclos.
No âmbito individual ou na vida privada, a partir da vida adulta as marcas na pele 70 tornam
visíveis o tempo, e, em diversas culturas, as crianças inventam marcas para o dia do
aniversário e rituais para quando cai o dente de leite, por exemplo.
Para marcar o surgimento da Orff-Schulwerk na linha do tempo, reforçando sua
relação com temas nucleares desta pesquisa (a saber, com foco na relação rítmica entre
música e dança e na invenção de meios de despertar o senso estético e artístico na criança
através de propostas lúdicas que alimentam a imaginação), apresento dados históricos da
formação dessa abordagem, enfatizando a importância feminina na construção do trabalho
elementar com a arte, muitas vezes creditado apenas a Carl Orff. Indiretamente, os temas aqui
abordados corroboram criações autorais, a memória da própria infância e a formação de
professores, algo que pode contribuir para outras pesquisas nos dias de hoje.
69
Outros exemplos são as comemorações em épocas de colheitas, nos solstícios de inverno, ou entrada da
primavera, época em que se festeja o renascimento da vida que hibernou durante o inverno.
70
Algumas marcas na pele são as marcas de expressão e as manchas senis.
62
71
Semelhante ao que a BNCC apresenta como Artes Integradas, tópico que sugere trabalhar em uma mesma
proposta as corporalidades, visualidades, musicalidades, espacialidades e teatralidades de modo concomitante.
72
Foi professora e diretora do Orff-Institut em Salzburg. É autora e editora de livros e artigos sobre Educação
em Dança, Improvisação e Orff-Schulwerk.
63
Para ilustrar de outra forma a leitura de interpenetração das artes vivas, imagine esta
cena: você é apresentado a uma mulher que o convida a ir até seu estúdio ver uns esboços de
danças que ela está experimentando. Quando chega no endereço marcado73, se depara com
uma sala quase vazia, exceto por ter no canto um lugar para trocar de roupa e uns
instrumentos como tambores, chocalhos e flautas. Ela, então, se coloca em estado de cena,
instaurando inicialmente uma “eletricidade no ar” De súbito, sentada no chão, começa a se
mover com uma raiva real, uma fúria selvagem, e, em contraponto, interpreta movimentos
com uma ternura onírica. Foi assim que Carl Orff (1978, p. 7) relata como conheceu Mary
Wigman em 1914 e reconheceu na movimentação dela essa interpenetração das linguagens
enquanto unidade. Ela fazia isso pela dança e era o que ele buscava atingir pela música.
A arte de Mary Wigman foi muito significativa para mim e meu trabalho posterior.
Todas as suas danças eram animadas por uma musicalidade inédita, até a Dança das
Bruxas74 “sem música” Ela poderia fazer música com seu corpo e transformar a
música em corporeidade. Eu senti que sua dança era elementar. Eu também estava
procurando o elemental, a música elementar. [...] Tudo isso me deu novos insights e
uma nova perspectiva, mesmo que meu próprio trabalho pertencesse a outro lugar.
Como músico, eu obedeci a leis diferentes. (ORFF, 1978, p. 8-9)
Orff diz ter sentido que a dança de Wigman era elementar, e reconheceu na arte dela
aquilo que ele também procurava: criar a música elementar. Supostamente, foi no teor
engajado, integral, processual e experimental de Wigman – em direção ao que ela buscava
enquanto estado absoluto na criação coreográfica – que Carl Orff pôde vislumbrar a
configuração inicial da Orff-Schulwerk.
Naquela época, Mary Wigman havia terminado sua formação no Método Dalcroze em
Hellerau75, local de encontro de pedagogos e artistas da época, que favorecia a interpenetração
ou a interdisciplinaridade das artes. Segundo a pesquisadora Andréia Reis (2007), em 1910, o
músico suíço Émile Jaques-Dalcroze tornou-se diretor do recém-criado Instituto Educacional
para Música e Ritmo76 em Hellerau. O objetivo pragmático da escola preparatória de artes era
incentivar o ensino de “artes e artesanatos” na Alemanha e o prop sito idealista de Dalcroze
era o de harmonizar pela música a sociedade em geral. A escola atraiu estudantes de toda a
Europa para estudar com Dalcroze e seus colaboradores.
73
Rua Schwanthalerstrasse, no centro de Munique, Alemanha.
74
Um registro de 1926 pode ser visto em https://youtu.be/AtLSSuFlJ5c ou, contextualizando a dança
expressionista, em https://youtu.be/c-qfwHvyVTw. Acessos em: 28 de jun. 2022.
75
A Escola Internacional de Hellerau contava com três seções: uma escola alemã, a seção de eurythmia e a
escola livre de Summerhill. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hellerau. Acesso em: 28 de jun. 2022.
76
Tradução do alemão, Bildungsanstalt für Musik und Rhythmus. Laban teve contato com esse tipo de ensino
através de seu professor, o escultor Hermann Obrist.
64
Parecido com o que Carl Orff chamou de interpenetração, a rítmica de Dalcroze busca
ser “uma educação musical que ocorre atrav s da experiência corporal, ao mesmo tempo em
que tamb m uma educação corporal que ocorre atrav s da vivência musical” (MARIANI,
2012, p. 41).
Sobre o processo de aquisição de conhecimento, Dalcroze defende que (FINDLAY,
1971) a precisão79 de nossos sentimentos musicais dependerá da precisão de nossas sensações
corporais, uma vez que as lições de rítmica visam estabelecer relações entre música/ritmo e
gesto/expressividade do corpo.
77
Perspectiva na qual o aluno participa ativamente dos processos que oportunizam o contato com várias
dimensões do fazer musical.
78
A Escola Denishawn de Dança e Artes Relacionadas foi fundada em 1915 por Ruth St. Denis e Ted Shawn em
Los Angeles, Califórnia.
79
Tradução minha do original acuteness, considerando “precisão” sinônimo de “a udeza”
65
80
Clara Horbach participou do Programa de Mentoria em Orff-Schulwerk e publicou esse texto na internet.
Disponível em: https://mentorshipprogramme.wixsite.com/mentorship/about-orff-schulwerk. Acesso em: 4 jun.
2022.
81
Vilela (2010) considera o corpo que dança como sujeito histórico, ou seja, um sujeito/corpo encarnado em seu
contexto social, produtor de um discurso no e para o mundo.
66
Passados dez anos do encontro de Carl Orff com Mary Wigman, em 1924, foi fundado
por Dorothee Günther e o próprio Carl Orff o que pode ser considerado o berço do
nascimento da abordagem Orff-Schulwerk: a Güntherschule, ou Escola Günther.
Carl Orff tornou-se pedagogo musical sem ter cursado uma especialização na área da
pedagogia. Em vez disso, por suas observações e composições criou, juntamente com outras
pessoas, estratégias para ensinar música a partir de experimentações, conforme narrado em
sua obra autobiográfica The Schulwerk (ORFF, 1978), utilizada como referência principal
para este capítulo.
A abordagem Orff-Schulwerk nasceu dentro de um espaço de dança, com o apoio
fundamental de três mulheres, a saber, Dorothee Günther (1896-1975), Gunild Keetman
(1904-1990) e Maja Lex83 (1906-1986), sendo que a ignição foi dada pela alemã Mary
Wigman, conforme detalhado anteriormente.
O processo de elaboração e desenvolvimento da Orff-Schulwerk ocorreu em duas
fases distintas, uma sem e a outra com a presença de crianças. A primeira fase, sem a presença
de crianças, foi de 1914 a 1945, período iniciado no contato com Mary Wigman até a abertura
e o encerramento das atividades da Escola Günther. A segunda fase, com a presença de
crianças, foi de 1948 a 1975, período iniciado com composições para programas de rádio
escolar (1948), filmes (1954) e séries para televisão (1957), no qual se insere a publicação da
obra Music for Children entre 1950 e 1954, composta por Carl Orff e Gunild Keetman,
marcado, também, pela inauguração do Orff-Institut, em Salzburg (1963), e pela difusão da
abordagem Orff-Schulwerk em âmbito internacional através de conferências, seminários,
simpósios e cursos.
82
“Unlike Laban, Wigman believed that a superior value for dance depended on the ability of dance
performances to move audiences, not on a theoretical perspective that transcended dancers and dances. She had
no interest in establishing an alternative system for institutionalizing body culture, and pedagogical objectives
for her always remained subordinate to the task of discovering and perfecting her own artistic expression.”
83
Dançarina, coreógrafa e professora alemã.
67
Figura 9 - Mary Wigman em Dança das Bruxas, Hexentanz I, 1914, e Hexentanz, Fragmento 4, 1926.
Figura 10 - arbara Haselbach ensinando movimentos e estudo de tensão Orff-Institut, Salzburg, 1976.
84
P. 11 e p. 45. Disponível em: https://muse.jhu.edu/book/77791. Acesso em: 19 ago. 2022. Vídeo de Mary
Wigman ao interpretar Hexentanz, Fragmento 4, de 1926. Disponível em: https://youtu.be/AtLSSuFlJ5c. Acesso
em: 15 ago. 2022.
68
A escola foi inaugurada ocupando apenas o primeiro andar do casarão. Não havia
dinheiro para publicidade, mas o nome de Dorothee Günther era reconhecido e gerava
credibilidade, atraindo pessoas interessadas em estudar com ela nesse espaço. Devido ao
crescimento constante de alunas inscritas a cada semestre, a escola passou a ocupar todo o
prédio.
O corpo docente era formado por Günther, responsável pela direção da escola e pelo
ensino das disciplinas teóricas, por Orff, responsável pela parte musical, e por mais três
professores87 de ginástica, dança e rítmica que se embasaram no Método Dalcroze.
As disciplinas oferecidas na formação da Escola Günther eram: ginástica, formação
musical rítmica do corpo, formação do corpo em dança e dança artística moderna. O currículo
incluía também regência, canto, teoria da respiração e da voz, anatomia, fisiologia, exercícios
85
Em 1933 foi inaugurada uma filial da Escola Günther em Berlim.
86
Laban também desenvolve cursos de danças corais para aqueles que não tinham a intenção de se
profissionalizar.
87
Nas minhas pesquisas, não encontrei o nome dos três professores que estavam no ano inaugural da Escola
Günther.
69
88
Traduzido como Reforma de Vida, é o termo genérico para designar um conjunto de movimentos sociais que
ocorreram em meados do século XIX principalmente na Alemanha e na Suíça.
89
Em alemão, Carl Orff utilizou o termo regenerieren que significa regenerar, no entanto, para desvincular de
conceitos patológicos relacionados a doenças ou acidentes, proponho sinônimos. De fato, em outras culturas
regenerar também é aplicado a reformas de ordem moral e espiritual.
70
Ajudando a fazer pontes entre música e dança, o musicólogo Curt Sachs (1881-1959),
reconhecido por suas publicações antropológicas sobre dança e instrumentos musicais,
também contribuiu para a formação das ideias básicas da Orff-Schulwerk que nasciam na
Escola Günther. Sachs abordou o que chamou de poderes mágicos atribuídos à dança no livro
World History of the Dance (SACHS, 1963). A obra traz exemplos de ritmos e melodias
relacionados às danças feitas sob temáticas de fertilidade, guerra, casamento, entretenimento e
saúde, mostrando que, em diversas partes do mundo, havia danças para unir e para divorciar
casais, danças para dissipar a doença, para fazer a passagem entre mundos, entre outras. Sachs
analisa as formas de organizar90 tais danças, ultrapassando o caráter informativo e
comunicando na escrita seus próprios sentimentos e os que ele deduz sentirem os praticantes
das danças em questão, uma característica incomum em autores que se dedicam à pesquisa
histórica.
De todas as alunas que passaram pela escola, duas se destacaram e determinaram o
diferencial daquele espaço: Maja Lex e Gunild Keetman, ingressantes em 1925 e 1926,
respectivamente. Devido a mentoria e afinidade artística com Dorothee Günther, Lex e
Keetman foram colaboradoras fundamentais, responsáveis por fomentar e dar corpo à relação
entre dança e música que Carl Orff havia vislumbrado uma década antes.
Maja Lex trilhou um caminho parecido ao de Mary Wigman no sentido de direcionar
esforços para a construção de um conceito de dança elementar, explorando movimentos
simples, essenciais e não utilitários, embora com interesse em investigar a relação musical
para a formação do Schulwerk, algo inerente na escola. A partir da exploração de movimentos
em desenhos espaciais diversos, a dança de Lex não se subordinava à música, mas se colocava
em relação à ela. Uma vez que todas as alunas tocavam e dançavam, é possível supor que o
processo de construção coreográfica acontecia junto com o processo de construção musical,
nos quais ora o movimento se integrava à prática instrumental, ora era executado
independentemente.
90
Relatava a presença de danças sentadas, danças das mãos, danças solo, de casais e danças com formações
grupais diversas.
71
Uma das formas de integração entre o movimento e a música ocorria nas aulas de
prática de regência. Os experimentos com sonoridades e seus coloridos abriram caminho para
novas formas de improvisação, com ênfase na estrutura arquitetônica musical. A ambiência
sonora era construída por instrumentos de percussão, como caixas, bumbos e chimbaus, e
instrumentos de sopro, como as flautas doces, tocando a dança e movimentando a música
elementar.
A abordagem intercultural91 representou um desafio e exigiu atenção na parte
pedagógica, uma vez que seria preciso formar professores para trabalhar com a nova proposta:
além da execução técnica da dança e dos instrumentos era preciso incorporar a improvisação
na música e na dança, para as aulas estimularem o processo de proposição e escuta
simultânea.
As práticas exploratórias, criativas e fruitivas de Carl Orff desenvolveram-se por
meio de dinâmicas corporais baseadas na ancestralidade, instrumentação primitiva e
91
Interdisciplinar ou transdisciplinar.
72
92
Nomeado musicalmente como ostinato.
93
O que Carl Orff chama de antigas formas de dança são as galhardas, pavanas, sarabandas e mourescas.
74
94
O termo minimalismo faz referência a uma série de movimentos artísticos, culturais e científicos que
aconteceram ao longo do século XX utilizando como base expressiva poucos elementos fundamentais de suas
respectivas linguagens.
95
Em 1980, Maja Lex assistiu à apresentação de Ecstatic Circle ao lado de Gunild Keetman, Carl Orff e
Liselotte Orff (última esposa de Orff), no Simpósio Orff-Schulwerk em Salzburg. Imagens disponíveis em:
https://youtu.be/bd00zJdEaKA. Acesso em: 5 jun. de 2022.
96
A obra de autoria de Carl Orff, Gunild Keetman e Hans Bergese tem como título original Orff-Schulwerk.
Elementare Musikübung e foi lançado pela editora Schott Music de Mainz entre 1932-1935.
97
Nome do instrumento musical constituído por placas de madeira formando um teclado, que se toca com duas
baquetas, tendo cabaças como ressoadores.
98
Nome tanto do instrumento musical javanês semelhante à marimba, quanto da designação genérica de
orquestras indonésias com instrumentos como gongos, xilofones, tambores, entre outros.
99
A história dessa fábrica de instrumentos encontra-se disponível em: https://www.studio49.de/en/ueber-
uns/history-of-studio-49.html. Acesso em: 16 jul. 2022.
100
Orff teve ajuda de Carl Maendler na construção dos instrumentos para a escola.
75
metalofones, que contêm barras removíveis, são fáceis de tocar, e permitem que notas sejam
suprimidas para fins didáticos. A fábrica inaugurada em 1949 segue em funcionamento ainda
hoje.
A presença de uma orquestra de percussão na escola de Mary Wigman em Dresden e o
conhecimento antropológico de Curt Sachs sobre o significado da percussão nas culturas de
música e dança do mundo influenciaram Carl Orff e o levaram a formar seus conceitos
artísticos, expandindo conhecimentos originários da Europa central para enfatizar o
movimento percussivo dos eventos musicais de forma ampla, o que denota um movimento
parecido ao da perspectiva intercultural da atualidade.
101
A cantata Carmina Burana estreou em Frankfurt, na Alemanha, sob a direção de Bertil Wetzelsberger.
102
Soprano, tenor e barítono.
76
Entretanto, Orff também compôs uma segunda versão para dois pianos e percussão. Os 24
textos dessa cantata foram selecionados do Codex103 Buranus, uma coletânea de manuscritos
medievais. Carmina, do latim, significa poemas ou canções, e Burana vem de Benediktbeuern
(ou Beuern), nome do mosteiro alemão onde o antigo manuscrito foi encontrado.
Orff viu, em vida, Carmina Burana se tornar uma das obras mais famosas do
repertório musical do século XX. Assim, trabalhando os textos bastante políticos e plenos de
crítica social escritos pelos goliardos104, as palavras e a música ganharam movimentos. Os
textos exaltam o amor, o sexo, a bebida e a dança, juntamente com os elementos musicais
próprios da época. Com Carmina Burana, Carl Orff popularizou fontes eruditas,
transformando-as em uma criação artística atemporal.
A partir de 1933, Carl Orff foi reduzindo suas atividades presenciais na Escola
Günther, até estar disponível apenas para comparecer nos exames na escola. Possivelmente
nessa fase, Orff vivia plenamente seus impulsos criativos enquanto compositor. Conforme
relata em sua biografia, ele se dedicava quase exclusivamente à escrita musical, tarefa com a
qual seu subconsciente estava sendo ativado há muito tempo e, “naquele momento, exercia
uma pressão de dentro para fora” (ORFF, 978, p 209)
O desenvolvimento das aulas e projetos na escola seguiram sendo coordenados por
Günther, Keetman e Lex. Nessa relação ainda próxima entre essas mulheres e Orff, mesmo
que mais esporádica presencialmente, outro exemplo da interpenetração entre dança e música
se deu no evento de abertura das Olimpíadas de 1936, conforme descrito em um Boletim
Oficial da Cerimônia de Abertura do XI Jogos Olímpicos de Berlim 105. Nesse boletim é
possível notar a forte relação entre composição musical, composição coreográfica e o trabalho
corporal de regência de uma orquestra com o instrumental específico, fatos que reforçam as
artes integradas na abordagem Orff-Schulwerk.
103
Códex ou códice é o nome dado a coleções de manuscritos antigos, que utilizavam placas pequenas de
madeira ou marfim para registrar seus assuntos.
104
Grupo formado por membros do clérigo e egressos e intelectuais do século XII, autores da considerada
literatura marginal da época. O nome goliardo vem da devoção ao bispo Golias, de quem se diziam seguidores.
O lema dos oliardos era “Edamus, bibamus, gaudeamus” (Comamos, bebamos, festejemos)
105
O Boletim Oficial da Cerimônia de Abertura do XI Jogos Olímpicos de Berlim, com fotos e partituras,
encontra-se disponível em PDF, no endereço eletrônico:
https://docs.google.com/file/d/0B4Bi7QZNdhDYOWhfMFRJQXQ4Vmc/view?resourcekey=0-
CAVh3ye6TKJwH7X9XfHrCg. Acesso em: 1o jul. 2022.
77
Pelo registro fonográfico prévio, a música gravada pôde ser distribuída a todos os
núcleos escolares que teriam que participar do evento, estimados em aproximadamente 6.000
crianças e jovens das escolas de Berlim. Tal recurso foi de grande auxílio nas montagens e
ensaios da coreografia. No dia do evento, ela foi interpretada ao vivo pela orquestra com 30
músicos da Escola Günther, regida por Gunild Keetman.
A tarefa de composição musical foi confiada a Carl Orff e Werner Egk. Orff
escreveu a música para acompanhar, em ritmo simples, as formações de dança de
Dorothee Günther106. Todo o trabalho de ensaios, que durou muitos meses, só foi
possível por termos tido a música por Egk e Orff já no verão de 1935, gravado para
o gramofone107, de modo que todas as escolas tinham em mãos a música necessária
para [ensaiar] as danças redondas. (Boletim Oficial da Abertura dos Jogos
Olímpicos, 1936, p. 581-584, itálico e tradução nossos).
Foram necessárias estratégias para fazer funcionar de modo o mais objetivo possível o
ensaio geral e a coreografia108. O boletim traz algumas considerações estratégicas sobre como
montaram tal evento de grande porte, envolvendo crianças de 10 a 12 anos, em um local tão
amplo como a quadra do estádio onde aconteceria a Entrada e Dança Redonda das Crianças
e Meninas:
O senso de espaço ainda não desenvolvido de uma criança tinha que ser levado em
consideração; as distâncias proporcionais entre as crianças foram atingidas por meio
de meias argolas. As fileiras foram divididas em unidades únicas de 30 crianças
cada, o total efeito sendo obtido pelo espetáculo de muitos círculos dançantes se
movendo da mesma forma. Assim, toda a estrutura da peça do festival foi resultado
das mudanças cuidadosamente pensadas de espaço, efeitos de luz, efeitos de cor,
formações de dança, das palavras do recitador e da música. (Boletim Oficial da
Abertura dos Jogos Olímpicos,1936, p. 583)
106
Apesar de não citado neste trecho do Boletim, as danças foram feitas também por Maja Lex.
107
Aparelho elétrico para tocar discos que, em vez de caixa de som amplificada, tinha uma corneta acoplada ao
seu sistema.
108
Provavelmente, todas as coreografias e evoluções para serem feitas em uníssono, com pouco uso de
improvisos nas dança e demais ações corais.
109
Disponível em: orff.works/guenther-school. Acesso em: 19 ago. 2022.
78
Figura 16 - Danças circulares “Juventude Olímpica” Abertura do Festival Olímpico erlim, 936
Vale ressaltar que não acredito na ausência de senso espacial das crianças, muito pelo
contrário. O que se aponta aqui foram exemplos para solucionar uma demanda de organização
produtiva liberal, desvinculada da ideia de dança como pronúncia do mundo (VILELA, 2010)
e do conceito de dança para crianças que defendo. No entanto, diversas vezes, os professores
precisam organizar (e ensaiar) danças para crianças em formações tais como as quadrilhas
juninas, sendo que as crianças não têm necessariamente em seus repertórios as evoluções em
filas ou em linhas. Como fazer isso de forma harmônica e garantindo espaço para as
expressões das individualidades?
Historicamente, o regime nazista foi aniquilando todas as ideias que cultivavam a
liberdade de expressão, a investigação artística e a autonomia. Logo, o Schulwerk, assim
como outras pesquisas de linguagens artísticas, foi sendo gradativamente retalhado e
desestruturado à medida que eram enquadradas como indesejáveis, segundo as diretrizes
governamentais vigentes da época.
Nos anos se uintes aos Jo os Olímpicos, “o rupo de dança continuou a realizar suas
performances at os anos de uerra, muitas vezes sob as condições mais difíceis ” (ORFF,
1978, p. 210).
Em 1944, quando Dorothee Günther resistiu a alguma ordem política111, a resposta
imediata do governo foi uma ação que forçasse o encerramento das atividades da escola. O
prédio foi confiscado para o serviço militar, sem que se pudesse acessar nem remover nada
que estava nele. Em 7 de janeiro de 1945, a escola foi bombardeada e incendiada, resultando
na perda de todo o inventário gerado pelo trabalho coletivo desenvolvido até então, deixando
o local em ruínas. Os materiais da biblioteca, fotografias, todos os figurinos, todo o
110
Disponível em: 1936 Opening Ceremony Official Report. Pdf, p. 96. Acesso em: 1o jul. 2022.
111
Não foi encontrada fonte segura para mencionar com precisão qual teria sido a atitude de resistência de
Günther para com o regime nazista.
79
equipamento educativo e a maior parte dos instrumentos acabaram em cinzas “Esse foi o fim
da escola G nther, uma escola que ainda hoje uma lenda” (ORFF, 978, p 2 )
Tal proposta não representou o renascimento de algo que havia chegado ao fim, mas
sim algo completamente diferente. Pensar em música exclusivamente para crianças, que
poderia ser tocada, cantada e dançada por crianças, da mesma forma que poderia ser
inventada por elas, significava uma nova perspectiva de um olhar próprio e compartilhável.
Eu estava bem ciente de que o treinamento rítmico deveria começar na primeira
infância. A unidade de música e movimento, que os jovens na Alemanha têm de
aprender tão laboriosamente, é bastante natural para uma criança. Também estava
claro para mim o que faltava à Schulwerk até agora: na Escola Günther não
havíamos permitido à palavra ou à voz cantada seu lugar de pleno direito. O ponto
de partida natural para trabalhar com crianças é a rima infantil, toda a riqueza das
velhas canções infantis. O reconhecimento desse fato me deu a chave para o novo
trabalho educativo. (ORFF, 1978, p. 214, tradução nossa)
112
O maior público da abordagem Orff-Schulwerk são professores de música que a utilizam em propostas de
musicalização infantil.
113
Antígona é uma peça do dramaturgo grego Sófocles escrita em 442 a.C. Foi traduzida com fidelidade para o
alemão por Friedrich Hölderlin em 1804, e utilizada como referência para Carl Orff transformar em ópera a
partir de suas interpretações, tendo estreado em 1949, em Salzburg, Áustria.
114
O amigo era o Dr. Walter Panofsky.
115
A chefe, responsável pelas transmissões, era Annemarie Schambeck.
81
116
A obra apresenta a base harmônica elementar da escala de sete notas em uma progressão pedagógica musical.
O volume I traz a escala pentatônica presente em canções de ninar e em outras canções infantis, para
gradativamente chegar ao volume V, que apresenta arranjos musicais com o uso de tríades dominantes e
subdominantes em tons menores. O último volume foi publicado em 1954, mesmo ano em que foi feito o
primeiro filme com crianças, a partir das propostas da abordagem.
82
Na segunda fase, o trabalho com crianças foi bastante forte em termos musicais, e
cênicos, pela expressão teatral ocorrida juntamente com o desenvolvimento de peças
cinematográficas.
Em 1954, é realizado um primeiro filme com crianças atuando a partir da abordagem
Orff-Schulwerk, chamado Weihnachtsgeschichte, que significa História de Natal. Como as
festas católicas eram comuns no período medieval, e até hoje o são em algumas manifestações
tradicionais, inclusive no Brasil117, esse foi o assunto inaugural das obras. Na primeira
produção a história é narrada em dialeto bávaro e encenada por um grupo de meninos que
cantam e interpretam.
Grupos de meninos [...] falaram e cantaram. As cenas dos pastores nos campos eram
representadas na cripta, as do presépio, em um canto da igreja, e a Glória, na galeria
do órgão. Era meu desejo que o papel de Maria fosse assumido por um menino. A
fotografia deve tornar compreensível a justeza dessa decisão. (ORFF, 1978, p. 222,
tradução nossa)
117
Trazidas pelos portugueses, as festividades em homenagem ao Divino Espírito Santo, por exemplo, estão
presentes em quase todos os estados do Brasil e dentre as danças executadas destacam-se as cavalhadas, o
moçambique, o pau-de-fita e as pastorinhas (CÔRTES, 2000, p. 24).
118
Mesmo local onde um ano depois, em 1965, foi filmado o musical A Noviça Rebelde (The Sound of Music),
dirigido e produzido por Robert Wise, com roteiro de Ernest Lehman baseado no livro de memórias The Story of
the Trapp Family Singers, de Maria von Trapp.
119
Weihnachtsgeschichte, História de Natal, 1964, com música de Natal tocada no teremim, instrumento
eletrônico que se toca sem encostar nele. Disponível em: https://youtu.be/Iz20Eoq9bAs. Acesso em: 14 jul.
2022.
83
No segundo filme, relatado como marcante por Carl Orff, o tema ainda era sobre uma
História de Natal e o elemento experimental foi novamente central “As foto rafias preto e
branco só podem dar uma impressão pálida da vivacidade das cenas nas quais cor e luz
desempenham um papel importante” (ORFF, 978, p 226) O filme de 975 foi produzido
por Peter Grassinger que era também marionetista, e que filmou pensando que na edição
poderia se alternar os quadros que revelavam as crianças e os personagens feitos por
fantoches120.
120
Um pequeno extrato do filme pode ser visto em https://www.orff.de/en/life/educational-works/school-
broadcasts/. Acesso em: 14 jul. 2022.
84
Filmes sobre a Páscoa, o período natalino e sobre outros temas seguiram sendo
produzidos com as crianças atuando, interpretando, cantando, tocando e brincando em cena.
As produções deixam evidente como a visão de se trabalhar com a música, o movimento e a
palavra formam o tripé do Schulwerk. Nos filmes a dança pode ser interpretada por elementos
espaciais e temporais121. Espaciais pelas formações grupais quando, por exemplo, os meninos
do coro se colocam lado a lado, ocupando diferentes níveis, quando o grupo se senta em
círculo e nos pequenos movimentos para dar expressividade às marionetes de madeira;
temporais pelo ritmo com que as crianças entram e saem dos enquadramentos, pelo ritmo
constante com que a criança que faz o papel de Maria balança o berço do Menino Jesus, entre
outros.
Em 1957-58, o projeto que havia iniciado na rádio Baviera, com foco nas escolas, se
tornou uma série para a televisão.
Em todos os filmes e na série produzida para a televisão, o foco estava
prioritariamente na música e no teatro, e, evidentemente, a intenção não era fazer as crianças
dançarem a história natalina. O ponto é que a interpenetração das artes tem mais chance de ser
interpretada quando a fonte é elementar.
121
Elementos comuns às artes cênicas. A interpretação imaginando temas para a dança foi uma leitura da autora
a partir da apreciação de registros encontrados na internet.
85
Figura 22 - Carl Orff com crianças. Keetman nos programas de rádio e televisão com crianças.
122
Um videoclipe sobre o trabalho desenvolvido no Instituto Orff encontra-se disponível em: http://www.uni-
mozarteum.at/department.php?o=18645&l=en. Acesso em: 6 ago. 2022.
86
Eu não fazia a menor ideia de quem era Carl Orff nem havia ouvido falar em Orff-
Schulwerk até 2011, quando a coordenadora pedagógica123 da escola em que trabalhava,
observando meus esforços para melhor implementar a dança na educação e sabendo de minha
trajetória na Balangandança Cia., me recomendou conhecer a ABRAORFF124. Naquele ano
iria acontecer, em São Paulo, o I Simpósio e o V Curso Internacional Orff-Schulwerk no
Brasil.
A coordenadora comentou que, dentre várias pessoas, viria ao Brasil um professor de
danças africanas. Entusiasmada pelo tema, logo me matriculei no intuito de aperfeiçoar os
conhecimentos na área da dança.
Com o apoio da IOSFS125, o simpósio ocorreu no mês de janeiro de 2011. O objetivo
era apresentar e refletir sobre os caminhos da Orff-Schulwerk enquanto uma abordagem
integrativa das linguagens da música e do movimento na Educação. O evento era composto
por oficinas, mesas e palestras. Na mesa formada majoritariamente por mulheres, mediada
pela Prof.a Dr.a Maria de Fátima Barbosa Abdalla, estavam como palestrantes a professora e
pesquisadora Sofia Lopez-Ibor, Barbara Halsebach, a etnomusicóloga Lydia Hortélio 126 e
Helder Parente, conforme imagem nos anexos.
123
Gisele Milani, antes de ser coordenadora pedagógica de séries, era professora de música.
124
A ABRAORFF, sigla para Associação Brasileira de Orff ou Associação ORFF Brasil, foi formada em 2004
através de Verena Maschat, D. Gabriel Iróffy (1927-2016), Elisabeth Peissner Sertório e Mayumi Takai. Até o
ano desta pesquisa, Mayumi e uma equipe de colaboradores voluntários permanecem na associação,
intermediando ações formativas, de difusão e construção dessa abordagem no Brasil.
125
Sigla para International Orff-Schulwerk Fórum Salzburg, a sede internacional das associações de Orff-
Schulwerk e instituições pedagógicas afiliadas, cuja missão é coletar, documentar e publicar informações
internacionais sobre o trabalho com Orff-Schulwerk, bem como oferecer suporte sobre questões educacionais e
realização de eventos.
126
Em 2015, Lydia participou do Forinho, promovido pela Balangandança, para discorrer sobre o brincar na
infância. Disponível em: http://balangandanca.com.br/?page_id=1788. Acesso em: 16 ago. 2022.
87
“O tambor induz a dança A dança tem uma estreita relação com a música A minha ideia, e a
tarefa a que me propus, re enerar a música atrav s do movimento, atrav s da dança” Carl
Orff 129
A primeira aula que fiz na ABRAORFF foi com o Prof. Dr. J. S. Kofi Gbolonyo,
mencionado como prof. Kofi, que ensinou peças musicais, danças e brincadeiras ganenses do
127
A transcrição da palestra proferida pela Prof.a Dr.a Barbara Haselbach encontra-se publicada na Revista
Eletrônica Pesquiseduca, v. 2, n. 4, jul.-dez. 2010.
128
The San Francisco School (EUA).
129
Orff (1978, p. 17).
88
povo Ga-Adangbe, populares no oeste da África, onde cumprem múltiplos papéis sociais. Elas
estão presentes em diversos encontros, formais e informais.
Nas manifestações, podem estar ligadas a ritos e rituais de puberdade e casamento,
como o Kpatcha130 e o Gahu, e uma série de jogos e brincadeiras feitas pelas crianças das
comunidades131 de Gana, Togo e Benin.
O tempo da aula era dividido entre a música, a dança e alguns minutos finais para
apontamentos, esclarecimentos e reflexões sobre os encontros. As aulas começavam com um
breve aquecimento, sendo que jogos rítmicos de mão eram os mais frequentes.
Quando no aquecimento o professor ensinava as brincadeiras rítmicas de palma em
duplas, ele não explicava anteriormente nada sobre elas. Em uma atividade, perguntou se
alguém gostaria de se voluntariar para demonstrar com ele a brincadeira e, imediatamente, me
ofereci. Eu ainda não sabia o que deveria fazer, mas fui pelo impulso.
Guiada pelo ritmo do swing do corpo dele, eu segui seus gestos, lendo segundos antes
onde ele colocaria a mão no ar, para eu colocar a minha na mesma direção e encontrar com a
dele. Não precisava driblar minha dislexia de não saber falar qual é o lado direito ou esquerdo
do corpo. Ele estava a fazer os movimentos da brincadeira com todo o seu corpo e eu o
acompanhava. Isso era o suficiente para criar uma atmosfera propícia às trocas e aos
compartilhamentos dos estados dançantes pela brincadeira. No final, ele me perguntou se eu
já conhecia aquela canção e a brincadeira porque eu havia aprendido muito rápido. Relatei
que não conhecia aquela especificamente, mas conhecia outras parecidas, e já havia brincado
na infância e em diversas outras circunstâncias. Essas experiências haviam deixado registros
no corpo e essa memória provavelmente teria se atualizado naquele instante.
Para a música, o professor Kofi ensinou inicialmente toques muito simples no
atabaque para, ao final dos encontros, chegar às células rítmicas complexas132 das festividades
de sua cultura. Aprender era um grande desafio, principalmente para quem, como eu, não era
instrumentista. Além da execução que exigia uma coordenação motora específica, era preciso
ampliar a escuta para perceber a relação com os outros instrumentos da orquestra de
percussão.
130
Kpatcha em uma escola com jovens tocando e dançando: https://youtu.be/fk-Ao0wTN4w. Acesso em: 9
jun. 2022. Kpatcha com pessoas da comunidade e visitantes: https://youtu.be/FeQ2p6di1fc. Acesso em: 9
jun. 2022. Prof. Kofi na Capilano University em 2020, ensinando o Kpatcha, como ensinou em 2011 no I
Simpósio da ABRAORFF no Brasil: https://youtu.be/BaiDZ96rbW0. Acesso em: 9 jun. 2022.
131
Nas aulas ministradas em inglês o prof. Kofi chama de village: vila, aldeia, povoado.
132
As c lulas rítmicas nem sempre entram “na cabeça do tempo”, como se começassem em subdivisões dos
contratempos; e cada instrumento toca uma linha diferente do outro.
89
No processo pedagógico ele apenas fazia, passo a passo, cada pequena parte musical,
como se dividisse a linha rítmica às suas menores partes, e o grupo o imitava até aprender.
Com esse caminho de ver, ouvir e imitar o que ele fazia, o grupo aprendeu os toques e o lugar
de entrada de todos os instrumentos, a saber, agogô, atabaques agudos, médios e graves.
Após o grupo ter aprendido as partes iniciais, ele ensinou as “viradas”, uma convenção sonora
feita nos tambores que marca o momento em que os dançarinos mudam o tema do
movimento. Para mim, essa convenção funcionava como uma alavanca energética para a
dança, marcando o final dos movimentos feitos em uma sessão musical e iniciando o passo de
transição ou o próximo tema de movimento, que seguia junto com a música.
O professor fazia o mesmo tipo de procedimento para ensinar a letra e a melodia da
canção. Primeiro falava, quase declamando de forma bem articulada, as palavras na língua
original (fon, uma das línguas ewe133 do grupo Kwa), reforçando as sílabas tônicas e
enfatizando fonemas com o acento original. A seguir as cantava na afinação acrescentando,
assim, a linha melódica, para no final explicar a tradução literal, o significado implícito e as
palavras utilizadas como onomatopeias que fortalecem o ritmo.
Tudo isso era ensinado pelo corpo. As transcrições das letras das músicas eram
entregues para os participantes somente após todos terem aprendido pela oralidade e pela
repetição imitativa do som produzido pelo professor.
Após ensinar a estrutura musical e a letra da música sem o apoio de nenhuma notação,
Kofi ensinava a dança demonstrando os passos. Em linhas gerais, a estrutura de ensino da
dança era feita com divisão de frases de movimento com um tema central, em seções musicais
de 8 tempos com compassos binários, marcados pelo toque ao vivo dos tambores. Para as
“viradas” musicais, foi utilizado um salto no lu ar com as mãos ao alto e um grito de ei para
evidenciar as mudanças. Nas manifestações tradicionais, nota-se de forma mais sutil uma
pequena pausa, um pisar firme no lugar e um requebrado de quadril.
Para ensinar a dança, Kofi primeiro fazia os gestos e deslocamentos cantarolando
sozinho ou ao som do agogô que pedia para um dos alunos tocarem. Depois contava sobre os
significados de alguns gestos e movimentos espaciais. Na dança, há passos com significado
expressivo e/ou funcionais, por exemplo, aqueles cuja finalidade é ativar a força e a energia
interna – algo semelhante ao Qi134, sopro ou energia vital na filosofia oriental –, e outros que
133
Ewe é uma das línguas Kwa, também grafadas como cuás, falada por cerca de três milhões de pessoas,
principalmente na região oeste do continente africano. Tanto a língua quanto as pessoas que a falam são
tradicionalmente conhecidas no Brasil pelos nomes de jeje, gegê ou, ainda, jeje-nagô.
134
Qi também pode aparecer grafado como ch'i ou ki.
90
contribuem corporalmente para manter o ritmo do rupo com sons, onomatopeias, “caretas”,
saltos entre outros recursos.
Eles fazem menção a gestos imagéticos com significados múltiplos, como espanar
uma parte do corpo; levantar as mãos para o céu; aproximar e afastar lateralmente os joelhos;
permanecer com o quadril para trás, com o corpo inclinado para a frente e balançar o tronco
para cima e para baixo, entre outros.
Esses conjuntos de passos ou temas, eu chamava de células coreográficas, e minha
tendência era buscar palavras-chave que sintetizassem os temas de movimento. Pensava,
assim, em “natação” para o movimento que mantém a barriga para baixo com o tronco
inclinado para a frente e alterna braços alongados à frente do corpo para virar o torso e a
cabeça para as laterais, parecido com o que se faz ao aprender o nado livre 135. Outros apelidos
que dei para os temas de movimento foram “calça”, pelo jeito de levantar um joelho, se
equilibrar em uma perna e levar as mãos perto dos p s “mosquinha”, pela forma rápida de
irar as mãos à frente do peito “vidro”, por ser semelhante ao movimento de irar um pano
para limpar uma superfície lisa como a vidraça de uma janela e “boi”, pela semelhança a
passos feitos nas danças presentes no Auto do Boi.
Foi possível reconhecer nas danças ensinadas pelo professor Kofi elementos de
manifestações culturais brasileiras, principalmente por relações com movimentos do Maracatu
(CÔRTES, 2000, p. 90), do Moçambique (CÔRTES, 2000, p. 146) e do Frevo (CÔRTES,
2000, p. 86). As afinidades e ressonâncias com as danças do oeste da África se dão pelos
gestos com acento nos cotovelos, movimentos de tronco com ênfase nos ombros, nas
escápulas e/ou no quadril, e pelas formas diversas de pisar o chão com joelhos flexionados
para levar o tronco para frente, ora para afundar mais, como se o movimento fizesse o
dançarino aterrar, ora para pegar impulso e saltar.
Três anos após ter aprendido (e ensinado para meus alunos) o Kpatcha, participei de
outro curso136 oferecido pelo prof. Kofi para aprender o Gahu. Segundo o percussionista
Emmanuel Agbeli137, de Kopeyia, Gana, o Gahu é uma adaptação de um antigo estilo africano
de dança e música chamado Kokosawa, praticado pelo povo Iorubá, da Nigéria. Em seu
relato, o Ewe pegou Kokosawa e aumentou o ritmo de seu andamento original, aumentando
também a vivacidade da dança. O Gahu é uma manifestação social sem conotações religiosas
135
Também conhecido como estilo crawl.
136
VII Curso Internacional Orff-Schulwerk no Brasil, oferecido pela ABRAORFF e UniSantos, entre 13 e 17 de
janeiro de 2014 em São Paulo.
137
Informações disponíveis no site de Jeremy Cohen: https://thisworldmusic.com/gahu-african-drumming-and-
dance-from-ghana/. Acesso em: 9 Jun. 2022.
91
ou espirituais inerentes. Acontece em qualquer época do ano e é feita por qualquer pessoa da
comunidade.
Pelos princípios da abordagem Orff-Schulwerk, o prof. Kofi manteve a mesma
estrutura pedagógica utilizada no ensino do Kpatcha para ensinar o Gahu. Dividia o tempo da
aula para ensinar em uma parte a música, na outra, a dança, e, depois, juntar as duas. Em
relação à parte instrumental, agrupava os atabaques, ensinava as partes mais básicas, chamava
atenção para as diferentes afinações, repetia as coordenadas rítmicas com bastante clareza e
objetividade insistindo nos tempos fortes e fracos e nas viradas ou transições sonoras. Em
relação às canções, ensinava primeiro a letra da música na língua original em forma de verso,
proclamando as palavras com a pronúncia bem articulada, em seguida cantava a melodia
dando o colorido aos versos e, por fim, tratava de comentar aspectos da semântica ou função
onomatopaica da música quando necessário. Ensinava os passos principais mostrando em seu
próprio corpo para que depois os alunos o imitassem. Combinava, então, como seriam feitas a
entrada, as transições e a saída.
Para a parte da dança não era feito o mesmo trabalho minucioso como o que era feito
para as partes da música. Os movimentos, apesar de serem ensinados do simples aos
complexos, não eram repetidos várias vezes até que todos o executassem juntos, como
acontecia no momento de tocar os instrumentos musicais. Talvez porque o condicionamento
físico dos participantes das aulas, a maioria músicos, não favorecia a prática da dança por
muito tempo, ou simplesmente porque a interpretação na dança era mais livre, não solicitava a
precisão na execução como a música solicitava. Sendo assim, sem entrar em pormenores,
estar no ritmo era o suficiente.
A cerimônia de dança Gahu é organizada em quatro seções de movimentos: uma
entrada com saudações e orações aos ancestrais, e duas com a música e a dança feitas em
velocidade acelerada, intercaladas com uma dança de movimentos dramáticos. Geralmente
uma movimentação de base é utilizada para entrar em cena e na transição de uns passos a
outros. Antes de sair de cena, os dançarinos costumam repetir a movimentação de entrada,
porém com mais energia, fazem algum jogo de palmas com os vizinhos e, eventualmente,
cumprimentam os músicos em forma de agradecimento138.
138
Um registro para fins didáticos do processo de aprendizagem e compartilhamento do Gahu no final do curso
encontra-se disponível em: https://youtu.be/FguInWER_28. Acesso em: 6 ago. 2022.
92
139
O tempo é moderado para fins de ensino e aprendizagem. Disponível em: https://thisworldmusic.com/gahu-
african-drumming-and-dance-from-ghana/. Acesso em: 14 jun. de 2022.
140
Site que mostra os nomes relativos aos dias da semana em Ashanti Twi, o dialeto mais falado em Gana:
https://thisworldmusic.com/african-day-name-generator/. Acesso em: 9 jun. 2022.
141
African Children 's Game/08 . Disponível em: https://youtu.be/QCt5I2iIyqQ. Acesso em: 6 ago. 2022.
93
terminando com um tapa no próprio quadril. Na versão original da brincadeira traduzida por
“Todos que nasceram na Se unda”, a música se repete 7 vezes falando a cada vez um dos dias
da semana começando pela segunda-feira, pois convida a entrar na roda as pessoas nascidas
no mesmo dia da semana.
Aprendi o Kpatcha, o Gahu, a brincadeira dos nomes e outras brincadeiras, como
“dade me bee”142, parecida com o nosso “corre cutia”, e imediatamente levei aos meus alunos
da Escola Viva e de outras oficinas ministradas em instituições diversas143.
A forma de propagar tais conhecimentos se deu através da visualização, imitação,
resposta cinestésica e relação empática, iniciando pela prática, pela vibração do tambor, que
fez ressoar no corpo a ativação do ritmo do sangue.
Mesmo em poucos encontros, durante o curso foi possível sentir como a música e a
dança têm o poder de religar as pessoas, independentemente de suas histórias pessoais e
origens. Ao revisitar as passagens de 2011 e de 2014, percebo que o tambor atuou como um
agente do impulso primordial. Ele me fez reconectar com a música pela dança e reacendeu o
desejo de promover sensações de realização, comunhão e plenitude no maior número de
pessoas possível.
No mesmo ano que conheci o professor Kofi, tive algumas aulas com Barbara
Haselbach, que trabalhava com os elementos da dança moderna de Rudolf Laban144 como
referência para passar os ensinamentos sobre a dança elementar na abordagem Orff-
Schulwerk, mas o entusiasmo com a dança africana havia ocupado todo meu ser. A proposta
de Barbara foi, mais tarde, acionada pelas aulas da professora Christa Coogan, no curso
Dança na infância, oferecido em 2016 no XVIII Curso Internacional Orff-Schulwerk, com
foco em estimular modos de ensinar movimentos criativos e elementares para crianças em
idade escolar.
142
African Children’s Game/ 7 Disponível em: https://youtu.be/QCt5I2iIyqQ. Acesso em: 6 ago. 2022.
143
Todos os conteúdos trabalhados fazem parte dos objetos de conhecimento das Artes Integradas e da Dança
enquanto Unidades Temáticas dentro da área de Linguagens, assegurados pela BNCC.
144
Os elementos da dança por Rudolf Laban podem ser vistos em slides da plataforma Prezi, feitos para o
Evento Revoada, Escola Viva, em 2016. Disponível em: https://prezi.com/olnhhodorcil/movimento/?present=1s.
Acesso em: 15 jul. 2022.
94
Foi com Christa Coogan que entendi um caminho de mão dupla, equiparando valores
entre as linguagens de música e dança, e principalmente tendo como ponto de partida a dança.
Christa, dançarina, professora especialista em movimento na Orff-Schulwerk, conta que desde
1995, quando começou a lecionar para um curso especial, queria apresentar a dança aos
participantes como forma estética de comunicação, como fonte de musicalidade e paixão
(COOGAN, 2008).
No curso oferecido em 2016 nos encontros da ABRAORFF, o objetivo dela era
introduzir o vocabulário de movimento construído a partir dos estudos de Laban, assim como
considerar e explorar as relações entre música e dança. Nesse curso, Christa facilitou a
construção de um vocabulário comum àquele grupo, trabalhou pela prática, pelo pulso do
corpo conectado ao ritmo musical, explorou uma variedade de qualidades do movimento e
encorajou os participantes a criarem sequências de movimentos e músicas, envoltos em uma
atmosfera propícia para a expressividade individual pela expansão dos corpos.
Narrando as coordenadas de movimento de forma lúdica e imagética para despertar os
sistemas esquelético, muscular e respiratório, Christa fez os adultos voarem e varrerem o
espaço do ginásio esportivo da escola que acolhia o evento. Orquestrou a polirritmia de pés,
tronco e braços, que nos grupos numerosos pareciam se multiplicar exponencialmente.
Alimentando o mundo simbólico, ajudou a fomentar qualidades indescritíveis de
presença, mostrando aos participantes que a dança pode ser como um portal “que conduz a
uma profunda e poderosa interconexão com sua arte irmã145, a música” (COOGAN, 2008, p.
36, tradução nossa).
A partir do repertório estabelecido por essa energia coletiva, ou seja, pelas
experiências práticas compartilhadas através de aquecimentos, jogos lúdicos, exercícios de
exploração e criação em dança, os participantes desse curso construíram sequências
coreográficas.
Percebi os músicos participantes desses encontros sentirem-se à vontade para propor
suas ideias de movimentos na hora de compor as coreografias, assim como no curso do Kofi
eu me senti à vontade para tocar mesmo sem ter formação musical. Havia a clara intenção de
ensinar brincando. As conexões entre fazer arte e ensinar arte foram facilitadas pelo cultivo do
próprio movimento, da musicalidade, da presença e da própria imaginação. Christa ajudou os
145
Christa Coogan apresenta uma relação “fraterna e colaborativa” entre as linguagens artísticas. Disponível em:
https://www.yumpu.com/en/document/read/24283976/orff-schulwerk-informationen-orff-schulwerk-forum-
salzburg. Acesso em: 15 out. 2022.
95
alunos a observarem como o que foi vivido poderia contribuir para práticas em sala de aula
com crianças de 6 a 10 anos de idade.
Durante o curso, Christa trabalhou com duas principais abordagens para comunicar os
procedimentos de aula e ensinar a mover e explorar movimentos: o método imitativo e o
método criativo propostos por Barbara Haselbach (1978, p. 41-42), que revelam como a
abordagem Orff-Schulwerk propõe o trabalho com o movimento. A sugestão é que, a partir do
entendimento de um tema simples, primeiro se trabalhe com o aprendizado de estruturas pela
imitação ou pela exploração de uma ideia de movimento pela imaginação, e que, depois, se
trabalhe com a reelaboração criativa do material levantado através de improvisações e jogos
de composição.
Dentro dessa proposta, Christa iniciou tratando da classe como um todo. No modo
imitativo, fez algumas demonstrações de movimento cantarolando um ritmo, intercalando
com algumas frases faladas para reforçar suas intenções. Quase que simultaneamente, pedia
para o grupo fazer junto com ela. Repetiu até a maioria dos participantes terem decorado o
passo ou a sequência de movimentos e serem capazes de se moverem juntos. Segundo
Barbara, a execução padronizada do movimento que acontece pela imitação favorece a
aquisição de uma técnica objetiva (HASELBACH, 1978), um saber fazer aquilo para um
determinado fim.
A seguir, para explorar o modo criativo, a classe foi dividida em grupos e cada grupo
recebeu como proposta explorar na prática de criação um dos elementos da dança. As tarefas
específicas de cada grupo foram propostas para explorar experiências espaciais, dinâmicas e
rítmicas, utilizando o espaço pessoal e o espaço geral, explorando variações no tempo do
movimento, e desenvolvendo o acompanhamento musical para a dança do seu grupo. Sem um
modelo para imitar, as soluções para os problemas coreográficos que surgiram tiveram que ser
inventadas. Segundo Barbara, a exploração individual ou coletiva que acontece em práticas de
criação favorece a aquisição de uma técnica subjetiva (HASELBACH, 1978), um saber fazer
para vários fins que favorece o agir composicional (PRADO, 2021).
Durante todos os quatro dias do curso, discussões e reflexões sobre o que estava sendo
vivenciado, o que seria compartilhado no fechamento dos encontros em apresentação cênica e
a contextualização a partir dos estudos da Coreologia de Laban e das abordagens de
movimento na Orff-Schulwerk forneceram o suporte necessário ao trabalho físico e prático no
âmbito educacional e artístico.
Os elementos da dança foram trabalhados a partir das perguntas:
96
1- O quê? O corpo como instrumento: movendo partes do corpo, fazendo formas corporais e
explorando movimentos no espaço pessoal e geral, ou seja, no lugar sem deslocamento e com
deslocamentos em ações locomotoras.
2- Onde? No espaço: pessoal e geral explorando a extensão do movimento (pequeno e
grande), as direções (para frente, para trás, para os lados, nas diagonais, para cima e para
baixo), os níveis (alto, médio e baixo), os percursos (retos, circulares, com zigue-zague) e as
relações espaciais (perto, longe, acima, entre, através).
3- Como? Pela qualidade: pelos esforços utilizando variações no peso (forte / delicado), no
tempo (repentino / sustentado), no fluxo (livre / limitado) e no espaço (flexível / direto).
4- Quando? No tempo: utilizando o pulso marcado como as batidas no ritmo constante (beat),
medido (compasso, padrão ostinato146, acento147, anacruse148), não medido (respiração,
sentido, pulso interno), o tempo rápido, lento, o acelerar e o ralentar, e os relacionamentos de
tempo (uníssono, cânone, antes, depois, mais rápido ou mais lento que alguém).
5- Com quem? Com quem se pode relacionar: considerando a ação de envolver, de suportar o
peso de alguém, estar próximo, tocar, dançar com foco nos olhos ou nos movimentos de outra
pessoa.
Uma das possibilidades para que se entre em contato com os elementos da linguagem
artística e se possa fluir nela como se estivesse brincando é apresentada por Doug Goodkin
(2014) através de sugestões de como organizar os princípios da abordagem Orff-Schulwerk.
Em sete pontos, Doug relata o que considera ser processual para que as aulas aconteçam de
forma eficiente. De fato, após ter vivenciado as aulas do prof. Kofi e de Christa, identifiquei
como a proposta pedagógica deles estava embasada nesses princípios, favorecendo um
aprendizado com encantamento.
Acrescento nos pontos abaixo adaptações segundo minha prática enquanto professora
de dança, reforçando aquilo que criou mais relações com as dinâmicas das aulas no ensino
formal.
146
Ostinato vem da ideia de obstinado, que se repete. Em música é o nome dado a uma frase ou a um motivo
musical que repete o padrão rítmico, uma parte da melodia ou a melodia completa.
147
O acento é como a sílaba tônica da palavra, significa a marcação mais forte sonoramente.
148
Anacruse é a marcação rítmica, a nota ou sequência de notas que precedem o primeiro tempo forte do
primeiro compasso de uma música.
97
149
Para a abordagem Orff-Schulwerk, a ideia de corpo como instrumento está relacionada aos instrumentos
sonoros e a preparação física para se estar em cena e fazer a música elementar. Em minhas práticas desloquei o
foco para o aprendizado em dança.
150
O termo aural aparece em textos da Orff-Schulwerk e significa o que é relativo ao ouvido ou à audição. Para
mim, se relaciona também com a percepção espacial e com a diferença entre só escutar e ser atravessado pela
experiência significativa proporcionada pelo sistema sensório-motor e cognitivo, ou seja, a audição como
potência geradora de movimento e significado, como um sentido sinestésico que promove leitura do espaço
tridimensional.
98
participar, e o grupo coeso ajuda a manter a energia do evento, fornecendo sustentação para a
aula fluir. Dessa forma, os alunos aprendem rapidamente. Quando o grupo está confortável
com a atividade, responsabilidades individuais ou divisão do grupo em duas ou mais partes
contrastantes podem ser o próximo passo.
7- Do romance à precisão
Quando as crianças estão diante de objetos ou instrumentos, o impulso natural é o de
tocá-los, jogar e brincar com eles, explorando livremente suas possibilidades. Respeitando
essa curiosidade inata, criamos um espaço no qual os dois, aluno e objeto, podem chegar a
conhecer-se um ao outro152. Quando a criatividade da criança abraça o potencial do objeto ou
da ideia, algo amável como um romance pode florescer. Técnicas tradicionais e hipóteses
formuladas a partir das per untas “como isso foi feito antes e o que posso fazer a ora?”
assumem o maior significado depois de um período livre de exploração inicial. A criança por
si só buscará investigar detalhes sobre a precisão, ou seja, a justa medida no fazer, naquele
151
Peixoto; Jardim, 1980; Alfaya; Parejo, 1987; Lopes, 1991; Moura; Boscardin; Zagonel, 1989; Penna, 1990,
1995; Santos, 1994; Paz, 2000; Fonterrada, 2005; Bourscheidt, 2007.
152
É o que, por vezes, entendo como criar intimidade, e que está associado a percepções do corpo-sujeito com o
ambiente.
99
153
Sigla para San Francisco Orff Course.
154
A autora participou como professora da edição de 2020 oferecida pela ABRAORFF.
155
Informações disponíveis em: http://orff.moz.ac.at/index.php?id=1&L=-
1%20UNION%20SELECT%20%E2%80%93. Acesso em: 2 jul. 2022.
156
Informações disponíveis em: https://www.orff-spain.org/. Acesso em: 2 jul. 2022.
157
Informações sobre os cursos de formação na Califórnia ficam disponíveis no site
https://sforff.org/certification-program-2/. Acesso em: 17 jun. 2022.
100
seguido, mas, sim, indicou caminhos para estimular a criação de aulas de acordo com os
diversos contextos.
No Nível III, há um estágio interno de ensino no qual os participantes devem dar uma
aula para o próprio grupo, a fim de testar e demonstrar sua compreensão acerca da pedagogia
proposta pela abordagem. A verificação usa como critério os sete pontos apresentados por
Doug (2014). Ao completar o Nível III, os participantes recebem um Certificado Orff-
Schulwerk. O curso é ministrado por professores experientes158. As aulas são de segunda à
sexta-feira das 8:00 às 17:00. Nelas, são vivenciadas propostas com a fala rítmica, percussão
corporal, canto, dança, movimento159, flauta doce e prática de conjunto com os instrumentos
Orff160.
As noites são reservadas para as lições de casa, bem como para jam sessions informais
com partilha de músicas, danças e assuntos relativos às culturas diversas e nas quais se
estreitam as relações entre os participantes dos três níveis. Existem, no entanto, atividades
noturnas obrigatórias que são a Cerimônia de Abertura, a aula de Danças Folclóricas 161, o
UnTalent Show162 (apresentação optativa dos alunos participantes sobre temas livres) e o
Compartilhamento de níveis (apresentação dos trabalhos cênicos finais dos grupos). Durante
as duas semanas de contato intenso com a abordagem e entre pessoas de diversos lugares do
mundo, tem-se a sensação de estar em um outro período no qual o medo e a insegurança
gerados pela violência urbana são apaziguados. O ambiente que se instaura faz acreditar na
possibilidade de a escola ser o lugar ideal da comunhão, da troca, do aprendizado. Todos os
presentes estão dispostos a aperfeiçoarem suas práticas de ensino, e, de fato, a formação
consegue engajar a pessoa com a própria imaginação no sentido de construir propostas de
aulas que ajudem a liberar a criatividade inata de seus alunos.
158
Em 2022, os professores no |Nível I foram: Sofía López-Ibor, Andrea Donahoe, Christa Coogan, Michael
Chandler; no Nível II: James Harding, Paul Cribari, Estevao Marques, Eloi Fuguet; e no Nível III: Doug
Goodkin, Christa Coogan, Eloi Fuguet.
159
Diferenciado da dança, o objetivo das propostas de movimento é facilitar a aula de música.
160
Os instrumentos, como xilofones, glockenspiels, marimbas e metalofones, contêm barras removíveis, são
fáceis de tocar, e permitem que notas sejam suprimidas para fins didáticos.
161
Não irei problematizar aqui o emprego do termo folclore, uma vez que ainda não o fiz com os organizadores.
Assim, por ora, reproduzo conforme divulgado pelos meios de divulgação das Associações Internacionais.
162
Trocadilho fon tico si nificando Show de “destalentos”, para desvincular a necessidade de serem
apresentadas demonstrações virtuosísticas.
101
Antes do fechamento de cada curso havia uma reflexão coletiva feita com cada um dos
professores do respectivo nível e havia a avaliação individual final. Além de darmos as
devolutivas sobre os aspectos gerais da organização, didática e aproveitamento do curso,
havia um espaço para escrever comentários pessoais. Em 2016, ao final do Nível I, escrevi:
“O Level I do Orff influenciou positivamente as dinâmicas das aulas que ofereci como
professora. O momento ‘aha’ é o de separar grupos de trabalho. Nunca mais tive problemas
com isso. Através de jogos previamente planejados, ou mesmo de situações que ocorrem
durante o desenvolvimento da aula, lanço a próxima proposta. Isso facilitou um fluxo mais
orgânico de aula, levando-nos, professores e alunos, a caminhos novos, surpreendentes.
Sinto ainda precisar aperfeiçoar a apresentação das propostas criativas quando ministro
workshops ou cursos não continuados de curta duração. Nestes casos, observei algumas
vezes, alunos, principalmente crianças, reproduzindo exercícios da aula. Por um lado,
reforçou a eficiência da vivência, porém busco ainda o ajuste entre o processo didático e o
estímulo artístico para criação. Sigo interessada em conhecer melhor a linguagem musical,
porém para seguir aperfeiçoando os estudos com o movimento e a educação. Na busca do
essencial, gostaria de investigar como a educação somática, o imaginário e o sensível podem
melhorar as aulas de dança e se as escolas regulares são mesmo o local mais apropriado
para realizar a intervenção política da percepção.”
“O capítulo Bells on her toes163 apresenta um relato minucioso do poder da percussão nas
aulas de música. Meu primeiro contato com Orff-Schulwerk foi com o Prof. Kofi, no Brasil,
onde rapidamente, eu e outros estudantes com pouca ou nenhuma prática prévia, estávamos
tocando como se fôssemos experientes. Imersos na vivência, o tempo cronológico foi
suspenso, e ali lembrei como estar presente é fundamental. Eu me senti criança amando fazer
aquilo. Foi como reencontrar algo que nunca tinha feito, mas que sabia fazer desde antes de
163
Goodkin (2004 p. 79).
102
nascer. Pensando nas crianças e nos instrumentos, especificamente o tambor, também deixei
o pensamento vagar por analogias como o corpo / tronco que oferece a estrutura sólida, que
tem buracos que proporcionam trocas e comunicações, que através da pele é capaz de
distinguir diferentes níveis de pressão. Nos tambores, há um grande buraco que ‘fala para a
terra’ pela vibração, por ondas. Mão e baquetas tocam sua pele. No corpo humano, a pele é
nosso maior órgão, que pelas fáscias envolvem os outros órgãos e o esqueleto, além de
representar a fronteira tridimensional entre o nosso universo ‘de dentro e o de fora’. A pele é
um órgão poroso, porém impermeável, é capaz de nos proteger, nos expor e de comunicar
estados e sensações. A pele, esse grande manto sem emendas, contém alguns buracos: boca,
ouvidos, nariz, poros, entre outros mais íntimos, pelos quais as crianças processam o mundo
ao redor antes mesmo de aprenderem a falar. Os tambores e diversos instrumentos
percussivos, confeccionados por um mestre artesão ou pelas crianças, têm o poder de
conectar, convidar, envolver e manter um nível de atenção plena. Com essa consciência,
passei a levar meus instrumentos, principalmente o tambor pequeno para todas as aulas na
escola.
Foi interessante ler sobre a história do xilofone e entender sobre a adaptabilidade e
versatilidade do instrumento. Quando li sobre como os timbres compõem um elemento
integral na forma de uma peça musical, comecei a questionar o caminho que buscava trilhar
entre paralelos da música e dança. Suponho que não é possível transpor diretamente
elementos da linguagem musical para a corporal, como a princípio imaginei fazer. O estudo
da forma na música para mim foi extremamente libertário, uma vez que reconhecer a forma
das estruturas musicais foi como ver a música por dentro – um pouco parecido com a
ideokinesis –-, enquanto na dança, se ater a estudar o movimento pela forma (construída de
fora para dentro e com muita rigidez) ocupa um ‘perigoso’ terreno 164. É comum vermos
adultos, que quando crianças tiveram contato com a dança clássica, carregarem em seus
corpos trejeitos estereotipados desse estilo, e depois não conseguirem mais fluírem na dança,
limitando, assim, sua capacidade expressiva. Ou, pior, aqueles que não se sentem mais
capazes de dançar por não ter mais o corpo que foi construído dentro de determinados
parâmetros ideais165. Aprender sobre a extensão dos instrumentos foi um estudo de geometria
tonal relativo ao corpo dos instrumentos (madeira, metal, tamanho da barra etc.). Foi
164
Como a dança clássica é a mais difundida no mundo, na ocasião, estava me referindo às marcas rígidas que a
técnica do balé tende a deixar nos corpos de quem o pratica com profundidade, em comparação a outras
aborda ens de dança onde a “não forma” central na reavaliação de valores corporalmente inscritos. Exemplo:
Formless, de Bruno Caverna. Disponível em: https://formless-arts.com/talks. Acesso em: 17 jun. 2022.
165
Modelo de ideal nas premissas de algumas danças que têm o pressuposto de que existem corpos específicos
para realizá-las, tais como o balé.
103
esclarecedor ler que Orff-Schulwerk não é um método para ensinar crianças a tocar xilofone
ou outro instrumento, mas sim uma abordagem que desenvolve por completo a musicalidade
da criança. Foi incrível rever que na origem de toda a trajetória de Carl Orff suas ideias
sobre compor e ensinar música brotaram em uma escola de dança e ginástica iniciada em
1924, com 17 estudantes. Depois disso, busquei no YouTube registros de dança dessa época,
mas não encontrei. Frustrou-me.”
166
Dentre os elementos da dança pode-se citar ocupação espacial, uso das pausas, dinâmicas de saltos e giros, o
uso das partes do corpo, suas combinações, entre outros.
167
Do alemão, Círculo Extático.
168
O foco não é analisar obras de Dança Elementar criadas a partir da Orff-Schulwerk, mas sim identificar
elementos que podem contribuir com o ensino de dança na educação para crianças.
169
Maja Lex, Gunild Keetman, Carl Orff e Liselotte Orff, então esposa de Orff, estavam na plateia e puderam
rever essa coreografia. O vídeo encontra-se disponível em: https://youtu.be/bd00zJdEaKA. Acesso em: 5 out.
2022.
170
A fonte dessas informações históricas e conceituais encontram-se no site da Escola Superior de Desportos da
Alemanha - Deutsche Sporthochschule Köln, Colônia, disponíveis em:https://elementarertanz.de/?page_id=223.
Acesso em: 5 out. 2022.
105
Utiliza estruturas de improvisação como método para o trabalho corporal, que se desenvolve
fluidamente a partir de imagens, ideias, objetos, sonoridades, entre outros estímulos.
De 1955 a 1974, após a destruição da Escola Günter, Maja Lex retomou o trabalho
criativo na Escola Superior de Desportos da Alemanha, Colônia. Em 1958, ela fundou a
disciplina Dança Artística Moderna171, posteriormente denominada Dança Elementar172. Em
vídeos tutoriais173 de Dança Elementar, é possível notar como ela se relaciona com princípios
somáticos e de Laban. Os conteúdos centrais das aulas de Dança Elementar são técnica,
composição, trabalhos rítmicos e musicais e a teoria que embasa os processos das aulas. O
estilo de ensino segue um conceito propositivo por parte do professor e oferece ao mesmo
tempo liberdade para individualidades e trocas, se colocando aberto a receber as sugestões e
críticas dos participantes como recurso construtivo coletivo.
Mas, de fato, no momento em que a abordagem musical Orff-Schulwerk foi se
fortalecendo, a Dança Elementar não a acompanhou. Nos programas de rádio e depois na
série para televisão, era Godela Orff174 e Gunild Keetman que estavam em contato com as
crianças. Godela era a apresentadora e Keetman foi quem, de fato, desenvolveu estratégias
para ensinar as crianças a sentirem o ritmo e executarem os arranjos musicais escritos para
xilofones, tambores e outros instrumentos percussivos, incluindo, eventualmente, o próprio
corpo como instrumento. No entanto, apesar de Keetman ter habilidades também para o
movimento, ela não ensinava “dança-dança”, conforme depoimento de uma de suas alunas,
Verena Maschat (informação verbal)175. O movimento que Keetman utilizava era com pouco
ou nenhum deslocamento, usando palmas e pés para marcar o ritmo. As jovens que aparecem
dançando e tocando em um dos programas, remetendo a similaridades ao que havia
acontecido na Escola Günther, eram alunas do estúdio de dança de Suse Böhm, professora de
dança.
171
Em alemão, Moderner Künstlerischer Tanz.
172
Em alemão, Elementarer Tanz.
173
Os vídeos tutoriais, narrados em alemão, encontram-se nos anexos e disponíveis em:
https://elementarertanz.de/?p=555. Acesso em: 5 out. 2022.
174
Godela Büchtemann-Orff foi filha do primeiro casamento de Carl Orff com Alice Orff (nascida Solscher).
175
Quando criança, Verena Maschat participou das transmissões dos programas para televisão Música para
Crianças e contou que Keetman ensinava os movimentos em função da execução musical e não da arte da dança.
Os depoimentos de Verena foram fornecidos no dia 17 de setembro de 2022, das 15:00 às 17:00, no Módulo 6 do
Ciclo de Estudos da A RAORFF / UFRN, com o tema “Gunild Keetman e a essência da aborda em Orff-
Schulwerk” O encontro virtual foi realizado pela plataforma Zoom.
106
Figura 23 - Godela Orff, Gunild Keetman e as crianças durante as gravações do programa de televisão Música
para Crianças, transmitido ao vivo entre 1957 e 1959.
Verena Maschat conta que foi Keetman quem realizou o que Carl Orff idealizou.
Dentre os atributos de Keetman como professora, Maschat exalta sua “seriedade ami ável”,
capaz de direcionar o ensino de música elementar ao mesmo tempo que, de forma empática,
era capaz de entender ideias advindas das crianças e colocá-las em prática. Keetman era
diretiva, no sentido de propor ações para as crianças imitarem, mas com intuito de formar
repertório e logo abrir espaço para elas criarem também. Talvez tenha sido essa atitude de
Keetman que verdadeiramente inspirou outros profissionais, não só da música, a atuarem de
forma semelhante, afinal, ela tinha incorporado a espontaneidade, a criatividade e a prática da
improvisação em grupo que fora cultivado na Escola Günther.
Ver crianças alemãs do meio do século passado, sentadas em silêncio aprendendo
música, parece ser diametralmente oposto à realidade da escola brasileira, frequentada, de
modo geral, por crianças que se mostram mais agitadas e eloquentes nas aulas convencionais,
quiçá em espaços para a arte na escola. Em que ponto os interesses se encontram na minha
prática? Sem saber de tais detalhes anteriormente à pesquisa, foi esse o teor que senti vibrar
nos professores da Schulwerk e que passei a levar para minhas aulas. Quando dava aula para
criança, procurava perceber (por vezes, descobrir ou decifrar) para onde os movimentos das
crianças apontavam em termos expressivos. Assim que identificado, eu sugeria possibilidades
para que explorassem sozinhas dinâmicas acerca das ideias iniciais. Quando dava aula para
professores, por vezes pedia que agissem como um de seus alunos. Essa era uma forma de
107
ajudar o adulto a sintonizar em uma frequência presente para viver a experiência da dança no
espaço, e não apenas procurar levar conteúdo das oficinas para suas respectivas classes.
Exceto pelas aulas de Christa Coogan, o movimento trabalhado dentro das aulas da Schulwerk
hoje em dia não tem muita relação com a dança elementar desenvolvida por Maja Lex em seu
caráter expressivo. São trabalhados jogos e brincadeiras simples que me contemplam
enquanto professora de dança até certo ponto, pois ajudam a agrupar a atenção de crianças em
sala de aula heterogênea e ajudam a estimular o senso estético e de ritmo, mas não
necessariamente levam as crianças a dançarem. Pensando em termos práticos, e não
conceituais, a dinâmica proativa dos professores aliada à escuta sensível e à capacidade de
improvisar e estimular criações por parte dos alunos é o diferencial dessa abordagem que me
contempla.
O que pude experimentar foi a mistura que fui inventando com ingredientes das
brincadeiras e da imaginação, pelas vivências da Balangandança, temperadas pelas trocas com
pessoas que foram cruzando o meu caminho. Trabalhei com minha leitura da Dança
Elementar quando atuei como professora de Corpo e Movimento em 2020 no X Curso
Internacional Orff-Schulwerk em São Paulo176, e em 2021 nas oficinas do Grupo de Estudos
Virtual Orff-Schulwerk. Ao vivo e pela tela, pude dançar com os participantes e fazê-los
dançar com autonomia, sem a minha presença condutiva o tempo todo. Pude falar sobre a
linguagem da dança na BNCC, e ouvir depoimentos das pessoas sobre ressignificar conceitos
do cuidado de si e do papel do professor em sala de aula. Eles identificaram que o contato
com sensações, sentimentos e pensamentos próprios auxiliou na construção da dança, e, o
melhor, a partir da nossa cultura, do nosso sotaque, afinal, a história da dança europeia é uma
das muitas histórias, e existem outras a serem descobertas e inventadas. Nesses dois encontros
foram promovidos jogos de exploração de movimento para levantar um vocabulário cinético e
significativo para os participantes, que depois poderia ser utilizado para compor coreografias
com os elementos da dança levantados pelos grupos. Exercícios técnicos de movimentos para
a coluna, rolamentos no chão, o trabalho de percepção do eixo, o uso de diversos apoios e
articulações, a vivência de brincadeiras tradicionais (como “corrupio”, “escravos de J ”, o
“trem”) e outras criadas (como prolon ar o impulso de partes do corpo para erar novos
movimentos) foram explorados. Foi feito o uso de diagonais para deslocamentos mudando a
frente do corpo, ou seja, dançando, andando e saltando para a frente, para os lados, de costas,
em círculos e suas combinações; iniciando alternadamente passos com a perna direita e
176
O prospecto da proposta do X Curso Internacional Orff-Schulwerk encontra-se nos anexos.
108
esquerda. Ritmos diversos embalaram as aulas: cantos indígenas, batuques africanos, canções
infantis, MPB e músicas instrumentais eruditas e populares de compositores brasileiros. Em
todos os encontros, o foco do trabalho era vivenciar a dança como conhecimento,
reconhecendo suas estruturas e seus modos compositivos, fazendo com que os participantes se
sentissem apropriados de seus corpos, entendedores do espaço, e autores de suas obras, sendo
a música uma forte aliada durante o processo.
A formação na San Francisco Orff Course (SFOC) e os encontros promovidos pela
ABRAORFF e UFRN ampliaram meu repertório nas linguagens de um modo geral e
trouxeram outras possibilidades de leitura de obras de artistas, de situações ordinárias
passíveis de se tornarem significativas, trouxeram inspirações para improvisações e para
novas composições coreográficas. No entanto, ainda sigo com inquietações acerca de como
desenvolver o movimento elementar contemporâneo para professores e crianças se
beneficiarem do desenvolvimento estético e artístico na formação. Isso sem perder de vista a
possibilidade de brincar com a arte dos encontros, de perceber que se pode recriar e forjar
novos símbolos, por todos e quaisquer meios de expressão.
109
O Atelier foi a semente da Escola Viva, que teve como matriz a amizade entre suas
fundadoras. Nos anos 70, três mulheres com afinidades artísticas e interesse na educação
inauguraram esse espaço para conectar pessoas e saberes, valorizar a cultura, a arte e o
desenvolvimento sustentável.
Segundo uma de suas fundadoras, Maria Ignez Americano180 (apud FIGUEIREDO,
2015, p. 21), foi pela área de artes visuais que se encontraram e perceberam um sonho em
comum. Por terem se formado durante a ditadura militar, período de cerceamento das
expressões artísticas, viam no Atelier a possibilidade de fomentar através da arte uma
177
O lo otipo foi criado nos anos 970 e se uiu sendo adotado tanto nos uniformes dos alunos como em todos
os materiais que veiculam informações sobre a escola at 202
178
Richard Wilhelm (1995), I Ching – O Livro das Mutações.
179
Heloisa Pavan, Mariângela Fiorini (in memoriam) e Maria Ignez Americano.
180
Maria Ignez Americano em entrevista concedida à Flora Fi ueiredo em 20 4
110
sociedade com mais autonomia e liberdade criativa. O Atelier sempre foi a força do projeto
educacional da Escola Viva. Devido ao reconhecimento das famílias que frequentavam aquele
espaço e desejavam uma formação equivalente para seus filhos, foi inaugurada a Educação
Infantil e depois o Ensino Fundamental e Médio.
O princípio estruturante da proposta político-pedagógica da escola foi fundado na
linha construtivista do pedagogo Célestin Freinet (1896-1966), apoiado na livre expressão, na
autonomia, na cooperação e no trabalho. Com base nesses quatro pilares com os quais Freinet
(1977a, b, c, 1998, 2004) organizou sua pedagogia, a Escola Viva sempre trabalhou com o
desenho livre, o texto livre, as aulas-passeio, os estudos de meio, o jornal, o livro da vida e os
portfólios, a construção de glossários, entre outros. A dança não aparecia como foco, mas a
leitura e a interpretação dos movimentos das crianças através de tais instrumentos, sim.
Desde a sua fundação, a escola parecia apontar também firme simpatia por abordagens como
da médica húngara Emmi Pikler (1902-1984), que reúne princípios e metodologias para
incentivar atividades autônomas da criança, respeitando seu ritmo de desenvolvimento, e por
alguns aspectos da pedagogia Waldorf, método de ensino baseado nas ideias do filósofo
austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), que trabalha o desenvolvimento da criança (físico,
social e individual) por meio de atividades manuais e do contato com a natureza. Sobre a livre
expressão e a relação do corpo docente com as crianças, Heloisa Pavan reforça a importância
peda ica na formação do professor e comenta em entrevista concedida à Flora Fi ueiredo
(20 5) que o adulto deve observar as escolhas da criança, para pensar em como fazer as
conduções e as intervenções a partir dessas escolhas e de sua livre expressão como se a
pr pria criança oferecesse ao adulto pistas do seu desenvolvimento e de suas condições
Os educadores da escola, por sua vez, deveriam oferecer às crianças diferentes possibilidades
de escolhas, e, a partir de suas observações e análises, fazer as conduções e intervenções que
considerassem necessárias, levando em conta tamb m as possibilidades de determinada idade
e características do rupo Esse sempre foi um rande estímulo à autonomia dos educadores
tanto em relação a seu fazer, quanto em relação aos estudantes Tais ideias estavam ancoradas
no que as educadoras-fundadoras chamavam de “atmosfera Freinet” ou “clima Freinet”
(SAMPAIO, 989), que conta com um professor atento, disponível, pr ximo e aberto à escuta
dos interesses dos alunos. Como Freinet ressaltava a importância de se trabalhar em espaços
de natureza ou em “condições naturais”, o fator espaço sempre foi considerado um a ente
educador na Escola Viva.
111
Pela formação artística das fundadoras da escola, as Artes Visuais sempre foram
valorizadas no Atelier. Os primeiros cursos oferecidos no Atelier foram os de Artes Visuais e
Música. Depois iniciaram as aulas de dança, circo, entre outras.
No início, as aulas de dança ofertadas no Atelier não contemplavam uma discussão
sobre qual tipo de dança deveria ser ensinado naquele espaço. Assim, eram oferecidas aulas
de balé clássico no formato parecido ao que podia ser encontrado em academias e escolas de
dança.
Em 1999, a professora e dançarina Marina Caron181 ingressou na equipe do Atelier e
passou a oferecer aulas de dança contemporânea que traziam implícitas a valorização da
consciência corporal e a importância do brincar na formação da criança. Entre 2002 e 2003,
Marina iria se ausentar para aperfeiçoar seus estudos no exterior e me convidou para substituí-
la. Quando assumi temporariamente as turmas, mantive a pedagogia iniciada por ela para
abordar a dança com/para/das crianças em consonância tanto com o andamento das atividades
do Atelier, quanto com a pesquisa da Balangandança.
Segui desenvolvendo estratégias para cultivar a consciência do movimento, preservar
o brincar livre como fonte de inspiração, incentivar a autonomia para criações autorais das
crianças, e, principalmente, fazê-las vivenciar propostas rítmicas e lúdicas para estimular a
imaginação e criar danças. Eu desfrutava de total liberdade para ajustar os planejamentos de
aula sempre que necessário, e me mantinha aberta para acolher, escutar e considerar o
vocabulário simbólico trazido pelas crianças como material para suas criações.
Quando Marina Caron retornou de viagem pudemos permanecer ambas como professoras do
Atelier, pois havia aumentado o número de inscritos e de pessoas interessadas na dança. Além
das aulas de dança para crianças, também dei aulas de dança para adolescentes e para adultos,
sempre inspirada pelo universo lúdico da pesquisa artística da Balangandança e pelo chão do
quintal.
A educadora Renata Meirelles (2008) faz considerações sobre o chão enquanto base
em suas pesquisas no universo lúdico da infância, e foi a partir do preceito de retorno ao chão
simbólico que meu trilhar enquanto professora de dança para crianças foi abrindo portais ad
infinitum. Toda a concepção de escuta em relação ao que a criança traz para as aulas, bem
181
Marina Caron é pesquisadora e artista de dança, trabalhou com Georgia Lengos na Cia. Oito Nova Dança, e
defendeu sua tese de mestrado em 2022.
112
como a construção do corpo para a dança no Atelier dessa escola tiveram íntima relação com
o espaço físico do quintal da Educação Infantil.
Em 2021, no Dia Mundial da Infância, Kátia Keiko Matunaga, coordenadora da
Educação Infantil da Escola Viva, trouxe o quintal nas suas reflexões sobre a importância de
brincar na escola como um direito das crianças, com a presença da pesquisa de movimento na
aprendizagem de si, do outro e do espaço, aspectos que sempre procuro cultivar na dança
contemporânea para crianças.
O quintal foi e continua sendo palco e testemunha de histórias vivas. É nele que o
entrelaçamento entre “as cem lin ua ens”183 de Loris Malaguzzi (EDWARDS, GANDINI,
FORMAN, 2015) ocorre em tempo real, nos corpos presenciais, inteligentes e sensíveis,
fazedores de causos e de mirabolâncias inenarráveis. Muitas apresentações de final de ano,
com performances de dança e circo foram feitas no quintal ao som de música ao vivo
executada por alunos e professores do Atelier, algo parecido com as vivências propostas pela
abordagem Orff-Schulwerk.
Além das aulas de dança, o Atelier oferecia e ainda oferece Projetos de Grupos para
crianças de 3 a 6 anos no contraturno da escola, tamb m como opções extracurriculares Na
Escola iva, cada faixa etária usa um uniforme184 de uma cor, sendo que os rupos
Amarelinhos correspondem às crianças de um ano os Amarelos são das crianças de dois
anos os Laranjas das de três anos os Azuis das crianças de quatro anos os ermelhos das de
cinco anos; e os Verdes/1o ano das de seis anos (FIGUEIREDO, 20 5, p 57) Os rupos
comportam, em m dia, at 22 alunos por sala
182
Kátia Keiko Matunaga é coordenadora pedagógica da Educação Infantil da Escola Viva, onde é responsável
pelas crianças de 01 a 04 anos. Texto publicado no site da escola. Disponível em:
https://www.escolaviva.com.br/blog/escola-e-lugar-de-brincar. Acesso em: 6 out. 2022.
183
A perspectiva de educação apresentada na obra por Loris Malaguzzi incentiva que crianças de zero a seis
anos possam explorar seus ambientes e se expressar por múltiplos caminhos, por todas as suas linguagens, entre
elas, expressiva, comunicativa, simbólica, cognitiva, ética, metafórica, lógica, imaginativa e relacional.
184
Os uniformes são compostos por camisetas iguais, com o logotipo da escola, e os casacos, shorts, saias,
calças ou vestidos são da cor correspondente a cada faixa etária ou rupo ao qual as crianças pertencem
113
A Festa das Cores, como é chamado o evento do Grupo Verde/1º ano, comemora a
passagem dos Grupos Verdes/1º ano para o 2º ano do Ensino Fundamental. Até o ano de
2019, o evento marcava a importante mudança do espaço onde tem o quintal do Infantil, para
outro imóvel situado na mesma rua.
Por se tratar de uma construção coletiva, intergeracional e presencial, o processo de
montagem desse evento do Grupo Verde/1º ano era inicialmente o tema da minha pesquisa de
campo para esta dissertação. Com o isolamento social necessário decorrente da pandemia da
covid-19, a partir de março de 2020, e a impossibilidade de concretizar os estudos de campo
previstos no projeto, menciono aspectos vividos no período de 2009 a 2019, anos nos quais
participei coordenando a performance de abertura da parte cênica e as danças apresentadas na
Festa das Cores da Escola Viva.
O processo de criação desse evento ocorre ao longo de todo o segundo semestre do
ano letivo, envolvendo toda a comunidade escolar até sua realização na primeira semana de
dezembro. Além das crianças do Grupo Verde, participam do processo seus pais e pessoas
114
que têm contato com a turma: professores polivalentes, professores especialistas, professores
de apoio, auxiliares e estagiários, funcionários das equipes de manutenção, limpeza e cozinha.
O enredo da festa é embasado em autobiografias dos alunos. Assim, do meio de agosto
até fim de novembro são escolhidos elementos representativos de cada criança e das classes
dos períodos matutino e vespertino, para compor as mostras do Grupo Verde do ano vigente.
Professores de sala e professores especialistas responsáveis pelas oficinas artísticas ao longo
do ano trabalham junto com os alunos para escolher o que é mais representativo para o dia da
festa.
Na função de coordenar as danças, eu ficava encarregada de trazer o significado
simbólico do evento e preparar o estado de atenção das crianças para a integração, pelo corpo
e movimento, na realização da primeira parte cênica.
No início, a festa era pequena, mas não menos marcante. Havia dois grupos de Verdes,
um matutino e um vespertino. Ela já acontecia no quintal e se usava a estrutura da escola: um
microfone na caixa de som, e esteiras e cadeiras da escola para se sentar. Quando a escola
cresceu185 tornou-se necessário uma infraestrutura maior, com equipes terceirizadas
responsáveis pela montagem de cobertura e arquibancada, além de equipes especializadas
responsáveis pelos serviços de áudio, iluminação e registros audiovisuais186. Para gerenciar
tais equipes técnicas que não participavam do processo criativo, mas tornavam-se
responsáveis pelo acabamento cênico do evento durante as três horas de festa, foi formatado
um roteiro de apresentação que se repetiu de forma parecida ao longo dos 10 anos em que
participei do processo.
Do formato, pode-se dizer que a Festa das Cores acontece em dois momentos. No
primeiro momento, a escola se transforma em uma galeria de exposições, sendo que da
calçada até o espaço da secretaria vê-se a decoração pensada pelas famílias das crianças para
homenagear os filhos. No galpão do refeitório e no fundo desse espaço são expostas as obras
bidimensionais ou tridimensionais feitas pelas crianças com os professores de Artes Visuais.
Nos espaços pedagógicos os professores montam cantos que contam parte da história dos
grupos.
No segundo momento, se inicia a parte cênica da festa, com as apresentações de
danças, de músicas e com as falas institucionais. Para compor essas danças são levantadas
ideias junto aos professores de sala, auxiliares e quem trabalhou nas oficinas de Corpo e
185
Em 2011 havia cinco classes de Verde/1º ano.
186
Era fortemente recomendado aos pais o não uso de câmeras durante as apresentações, para que vissem
através dos olhos.
115
Movimento187. A parte das danças foi coordenada pela autora188 sempre em parceria com
Carmen Orofino, e a parte das músicas por Gustavo Kurlat em parceria com os professores de
música da escola. As professoras de arte, as coordenadoras do Infantil e as comissões de pais
que se responsabilizam pela concepção e produção da exposição da entrada ensaiam uma
música a ser cantada pelos pais para os filhos.
No campo do simbólico e poético, o evento permanece vivo na memória como o rito
construído a partir de pequenos e emocionantes detalhes: a travessia de pais e alunos pela
exposição dos trabalhos pessoais de artes visuais, o espaço de alimentação para aconchegar, e
a chegada no quintal enquanto espaço público de convivência.
Meu trabalho ao longo do segundo semestre, era, a princípio, coordenar as danças das
crianças, no entanto, com o passar do tempo passei a me responsabilizar pelo papel de
contextualizar o sentido da comemoração pelo corpo, mensurando a importância da memória
e das vivências na conversão das experiências de diversas linguagens em poéticas de dança.
Para isso, o espaço era novamente o grande agente. Estratégias de demarcação do espaço
cênico como os locais onde seriam colocadas as esteiras para os grupos das classes se
187
As oficinas de dança, teatro, culinária e leituras e escritas acontecem ao longo de um bimestre ou trimestre,
misturando crianças de classes diferentes. As aulas de música não seguem o formato. Elas são oferecidas por sala
e acontecem o ano todo. O músico e artista Gustavo Kurlat foi por muitos anos o coordenador das equipes de
Música e de Corpo e Movimento.
188
Antes da autora, as danças foram coordenadas por André Trindade e Deise Alves.
116
sentarem e os limites que seriam dados pelas arquibancadas – montadas dias antes da festa –
eram uma constante nos encontros de preparação das crianças para o evento.
Ao criar referências para que todos pudessem se situar no espaço externo, o objetivo
era ajudar na organização dos espaços internos, por isso, durante os preparativos, procurava
meios para que as crianças pudessem perceber no corpo tais marcações e, assim, otimizar o
tempo dos encontros que eram curtos e poucos.
Para caber na grade de horário escolar, repleta de outras demandas rotineiras, eram
reservados dois encontros de 30 minutos por classe, mais dois encontros de 30 minutos
juntando as turmas do mesmo período e um ensaio geral com 3 horas de duração na véspera
da festa com todas as turmas juntas189 no espaço do quintal.
Nos ensaios e na noite da Festa das Cores, as danças e as músicas enquanto artes vivas
preenchem o espaço com ritmo, brincadeira e imaginação. Parte de sua poética foi traduzida
em palavras na letra da música Marcha das Cores feita para comemorar o aniversário de 20
anos da Escola Viva e na música Nosso olhar, composta alguns anos depois como um
presente para os professores e dos professores para os alunos.
Como inspiração para as composições musicais, o autor Gustavo Kurlat pediu para os
professores depoimentos em frases sobre as quais se baseou para escrever a letra das canções
e depois musicar: as frases sobre a escola estão na Marcha das Cores e as frases sobre a
relação professor/aluno estão em Nosso olhar, ambas na íntegra nos anexos.
189
Nessa junção havia em média 120 crianças, mais professores, auxiliares, convidados de outros setores da
escola, além das pessoas das equipes de luz, som e filmagem. Do total das 3 horas, 1 hora era reservada para
ensaiar as danças.
117
Olhamos as estrelas para fazer um desejo e para projetar a visão em um espaço maior.
Como escrito no Livro dos Símbolos (KATHLEEN, 2012), não há povo no mundo que não
tenha projetado nos céus estrelados as principais forças e mitos do seu cosmo. Por gostar de
investigar a vida interior conectada à vida exterior, eu desejava, de alguma forma, levar
assuntos relacionados aos símbolos para as crianças. A Lua e as estrelas, astros que ocupam
um espaço maior, foram temas centrais nos encontros com as crianças. A Lua é um astro que
reflete a luz do Sol, e as estrelas são astros com luz própria.
A parte cênica começava com a entrada das lanternas190, simbolizando a estrela guia
de cada criança. Elas são confeccionadas pelas crianças junto de seus pais na escola 191. Cada
uma das crianças iria carregar sua própria lanterna decorada com desenhos e pinturas feitos
por eles, iluminada com fogo de uma pequena vela. Após caminharem em filas duplas, todos
penduravam a lanterna nos ganchos dispostos em uma ripa de madeira nomeada de régua,
para depois serem suspensas por um varal que as manteriam iluminando a festa, como a lua e
as estrelas brilham nas noites de céu aberto.
Era preciso cuidado e autonomia para que, na entrada com as lanternas, as crianças
não se queimassem nem deixassem queimar seus desenhos. Era necessária uma preparação de
conscientização nessa entrada ritualística. A festa com plateia, pouca luz, e o chão irregular,
todos esses elementos interferem na concentração das crianças e seria impossível que as
professoras cuidassem de cada passo de seus alunos nesse momento. Implicitamente, focava
em ajudar os docentes a praticarem a confiança no aprendizado das crianças pelo corpo.
Em filas duplas puxadas pelo professor e seu auxiliar lado a lado, elas iriam olhar para frente
para circular pelo quintal ocupando os espaços vazios e parar quando precisasse deixar outro
trem de crianças passar, sem dar coordenadas verbais a ninguém. Era uma fala e escuta de
corpo coletivo no espaço do quintal.
Por essa razão, antes de propor movimentos pelo espaço, ao longo dos anos, no meu
primeiro encontro com as crianças, fazia uma roda de preparações na qual propunha
190
As lanternas eram feitas com uma lata vazia com um recorte providenciado previamente pela escola e uma
alça de arame para as crianças segurarem sem se queimar. Era agendado um dia para os pais irem na escola e
participarem desse momento de confecção das lanternas com seus filhos. Elas se tornaram uma insígnia.
191
Em uma sala, era montada uma grande mesa, disponibilizando materiais como lápis de cor, canetinhas, giz de
cera, tintas e papéis para a lanterna. Em turnos, era agendado um dia para que os pais fossem na escola no
horário de aula e acompanhassem seus filhos nesse ateliê.
118
conversas sobre os si nificados do termo “comemoração” para abordar a mem ria, as ale rias
e os temores gerados pela experiência de crescer. Eu me colocava disposta a ouvir as ideias
delas e em algum momento abordava as estrelas do céu, guias para os navegantes, e o
elemento fogo, fundamental para a sobrevivência dos povos originários e ancestrais. Nessa
construção pela fala e pelo imaginário das crianças, o objetivo era comentar que a palavra
“comemoração” vem de Mnemosine, a deusa grega da memória.
Perguntas aqueciam o diálogo: Quando você percebeu no seu corpo que você cresceu?
Quais datas comemorativas você conhece? O que é comemorado nelas? Algum ritual é feito
nesses dias? Como você se sente antes de o dia chegar? Como se veste e como se prepara para
a ocasião? Será que essas comemorações aconteceram na época que seus avós tinham 6 anos?
Será que essas comemorações aconteceram bem antes de eles nascerem? No passado, como
será que as pessoas se comunicavam? Como será que os navegadores faziam para ir de um
continente a outro quando não havia luz elétrica nem G.P.S.?
Pelas respostas das crianças, conexões sobre a energia que temos/somos no corpo, e
que pode ser percebida pelo corpo todo, inclusive pelo brilho no olhar, se estabeleciam. O
brilho pode alterar sua intensidade, por exemplo, quando se adoece, mas ele não é
exclusividade de al umas pessoas Todas as pessoas têm uma “estrela” que brilha dentro, que
de alguma forma as acompanha e guia em travessias, mesmo na escuridão.
Após esse prólogo era feita uma dinâmica circulando na roda uma vela acesa dentro de
um pequeno copo, para que, enquanto o brilho estivesse em suas mãos, passando na altura de
seus corações, as crianças falassem, uma por vez, seu nome e uma parte do corpo que
gostavam.
No final da rodada, deixava o copo em um local alto, acima de nossas cabeças, para
que, assim como a Lua ilumina o céu, a vela nos iluminasse. Na festa, assim que todas as
119
crianças penduram suas lanternas, elas se sentam nas esteiras e assistem à dança das réguas
feita pelos professores.
Para assegurar o espaço da imaginação e, ao mesmo tempo, tornar as etapas do roteiro
da festa concretas, propunha brincadeiras para preparar a entrada das lanternas. Antes de
todos os alunos terem suas lanternas prontas, um pedaço de barbante por aluno era o pretexto
para se caminhar lentamente. No dia da festa, os barbantes seriam o arame que mantinha a
lata quente da lanterna na distância segura para a criança não se queimar. Na parte alta do
arame havia uma argola para, na festa, pendurarem a lanterna no gancho de uma régua
determinada.
A proposta de ensaio só funcionaria se o barbante estivesse preenchido de significado
pelas crianças, caso contrário seria só um pedaço de barbante. Por isso, uma atmosfera lúdica
e afetiva era criada para desenvolver nas crianças o cuidado com o gesto e, talvez, ajudar
nesse processo que era também estético. Ao animar e estabelecer uma relação de intimidade
com esse pedaço de barbante, o objetivo era fornecer à criança recursos internos para cuidar
bem de si, dos outros, do espaço coletivo e da própria lanterna.
A ignição era ativada por diversas explorações de movimentos. Em experimentações
com o grupo sentado em roda, o barbante era esticado e tensionado como uma corda de
violão, enrolado como um fio de macarrão na palma da mão, trançado entre os dedos,
arrastado como uma serpente pelo braço e apoiado em diferentes partes do corpo, tais como
na testa, na nuca, no cotovelo e nos ombros.
Depois de explorar as possibilidades do barbante sem sair da roda, os alunos
exploraram levar os barbantes pelo espaço geral da sala em ações básicas como andar, correr,
girar, torcer e saltar.
O barbante/criança dançou no ar até servir de marcador no chão. Cada um fazia um
desenho com a linha móvel a partir do tema que quisesse. Ajustava até chegar a uma forma
satisfatória para si. Quando todo o grupo terminava a confecção de um desenho de barbante
no chão, eu pedia para se deitarem e olharem o desenho por outro ponto de vista. A seguir,
pedia para ficarem em pé para observar por outro ângulo até girar em torno dele. Com
cuidado para não esbarrar nos desenhos, todos passeavam na sala para observar o que os
colegas haviam feito e quando, mais contemplativos, voltavam para seus desenhos, podiam
pegá-lo para levar gentilmente para o ensaio do trem de entrada das lanternas.
120
192
Em 2019 a equipe de professoras de sala do Verde era composta só por mulheres.
193
Na parede são fixadas roldanas e cordas que suspendem as réguas em um mecanismo semelhante aos dos
varais. Elas permanecem acesas e no alto até o final da festa.
121
Figura 29 - Professoras, estudo de espaço e atividade com barbantes. Reunião pedagógica, 2019.
Figura 30 - Ensaio com as crianças e cena noturna da estrela durante a festa em 2017.
3.2.1.3 Alumiou
O tempo dos ensaios era dividido em três partes: uma para a construção das danças
criadas por cada classe; outra para o aprendizado da dança Alumiou194, que aqui será chamado
apenas de Alumiou; e, finalmente, a parte do ensaio da Ciranda das Cores.
A dança do Alumiou tornou-se uma coreografia tradicional, uma espécie de emblema
corporal da festa. A dança coletiva em uníssono entrou para o repertório da festa porque
alunos dos Grupos Azul (crianças de 4 anos) geralmente compartilham o quintal em horário
de recreio com os Grupos Verde enquanto estes últimos ensaiam as danças. Ao vê-los,
imediatamente as crianças menores imitavam os movimentos e quando, no ano seguinte,
chegavam ao Grupo Verde, logo queriam saber que horas iriam dançar o Alumiou.
Na primeira festa em que participei, em 2009, criei essa sequência coreográfica junto
com as crianças. Nas festas seguintes, ensinava-a pedindo para que cada grupo nomeasse o
que parecia ser cada um dos gestos. Entre as várias sugestões, um nome para cada movimento
era escolhido. Elas, então, faziam junto comigo os gestos e falavam as palavras escolhidas,
194
Essa música havia sido proposta no ano anterior por Deise Alves, que, até o ano de 2009, coordenava as
danças da Festa das Cores na Escola Viva. Deise também participou do Grupo de Estudos do Projeto Põe o dedo
aqui proposto pela Balangandança Cia. (Georgia Lengos) em parceria com Na Dança (Uxa Xavier) em 2007.
122
como foguete (para cima), flor (para baixo), binóculo (para os lados), nado de costas (um
braço), pisa na barata (pulo no lugar) e onda (para os lados).
Nas repetições, conforme aprendi com o prof. Kofi, eu acrescentava a melodia e a
divisão da música adaptando a letra da canção às palavras escolhidas pelos alunos. Aos
poucos misturava a letra da música com as palavras deles até cantarmos e dançarmos a música
Alumiou, cuja letra oficial diz:
Alumiou
Tornou alumiar
Alumiou
Tornou alumiar
Quem quiser que venha ver
A Lua alumiar
Venho de tanto e tão longe
Venho de campo maior
Eu vim trazer o meu brinquedo
Na baía do Lençol
(Baião de Princesas)195
195
O Álbum Baião de Princesas foi ravado pelo rupo A arca em 2002 “ uma coletânea musical sobre os
encantados em homenagem às entidades femininas e faz referência à festa realizada pela Casa Fanti-Ashanti nos
finais de ano, em São Luís do Maranhão” (MARTINS, 20 , p 65) A música Alumiou, faixa 10 do CD Baião
de Princesas, pode ser ouvida nesta plataforma de áudio:
https://open.spotify.com/track/2hjTEvzLJ5PHAQxPl0nVgM?si=d0a7952cee704b4f. Acesso em: 31 jul 2022.
123
olhando para os amigos. Na parte B, 16 compassos quaternários são para improvisar em todas
as direções. Nesse intervalo de tempo, as crianças dançam as brincadeiras que mais gostaram
de fazer ao longo do ano no quintal, ou os movimentos que sentem vontade de fazer no
momento. A maioria procura os amigos mais próximos para fazer roda, brincar de pega-pega,
fazer brincadeiras de mão, simular um futebol, entre outros. Alguns exploram suas
movimentações em solos de dança.
A coreografia termina com todos dirigindo-se para as esteiras de suas respectivas
turmas que estão dispostas no chão, sentando-se suavemente a partir da imagem poética de
passarinhos que retornam às palhas de seu ninho. No roteiro, assim que termina a dança coral
do Alumiou, um grupo por vez irá apresentar a dança autoral de sua classe.
Força ancestral. Não à toa a música Alumiou combinou com a abertura desse evento. Ao
cantar, dançar e brincar esse canto de encantamento, prestava-se honrarias às raízes africanas
e se pedia permissão para seguir a jornada.
Trabalhar a canção Alumiou durante todos os anos em que coordenei a Festa das Cores
possibilitou realizar aproximações com a cultura afrodiaspórica196. Ao colocá-los em contato
com a letra e a melodia da música, fazê-los ouvir, imaginar seus significados de acordo com a
vivência que já tinham, relacioná-la a um ritual de passagem (ou de formatura, no caso da
Escola Viva, mesmo que fora dos padrões das outras escolas) e brincar com ela, tudo isso
ajudou a diminuir visões eurocentristas e opressoras em relação às outras culturas.
A literatura indica que na umbanda, religião de matriz africana, os encantados são
seres que se manifestam com múltiplas funções. A pesquisadora Júlia Ritez Martins (2011)
menciona que foi através das músicas do CD Baião de Princesas (A Barca, 2002), no qual
encontra-se a faixa Alumiou, que ela começou a entrar em contato com o mundo dos
encantados (MARTINS, 2011, p. 67). Ela afirma que os encantados ficam entre o plano etéreo
e o material, nem lá nem cá, eles fazem a ligação de ambos. Por isso podem ter ou não ter
corpo, mas se a rupam em linhas por possuírem “energias afins” (MARTINS, 20 , p 69)
No terreiro que apoiou sua pesquisa acadêmica, os encantados chegaram para mobilizar
aquilo que estava se enrijecendo ou sem significado, trazendo novos sentidos para recomeçar
ciclos (MARTINS, 2011).
196
Conforme o parágrafo 2º, artigo 1º, da Lei nº 10.639/03, os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-
Brasileira devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística, Literatura e História Brasileiras (BRASIL, 2015, p. 1). A primeira lei que traz a obrigatoriedade do
ensino da Cultura Afro-Brasileira nos currículos das escolas públicas e privadas do Brasil foi aprovada em
janeiro de 2003.
124
Figura 31 - Ensaio do Alumiou com grupos do período matutino. Festa das Cores, 2019.
O repertório para montar as danças de cada uma das classes é levantado previamente
pelos professores das oficinas de Corpo ao longo do ano. Essas oficinas são curriculares e
197
Imagens disponíveis no Facebook da Escola Viva: https://youtu.be/dwyPM3O8UL0. Acesso em: 3 ago.
2022.
125
montar, pelas proposições das crianças, uma narrativa a fim de proporcionar um fluxo cênico,
ao inv s de fazer uma cola em de “números de dança” Queria que os alunos desfrutassem do
palco e das cenas, e, guiada por esse pensamento, procurava fazer com que cada ensaio fosse
uma experiência cênica, um momento simbólico, tanto quanto a festa em si. Era importante os
grupos de crianças, bem como os professores, saberem as evoluções no tempo e no espaço
para poderem opinar, sendo autores da obra como um todo.
Nos ensaios que ocorriam na semana anterior à festa, eram reforçados os lembretes
sobre o pedido geral de se usar roupas coloridas de uma cor só, sem estampas, para todos os
participantes: crianças, famílias, professores e funcionários de apoio. Eu pedia para ensaiarem
com os sapatos que pretendiam usar no dia da festa, além de eventuais enfeites de cabelo, a
priori, desaconselhados.
Figura 33 - Dança de uma classe em 2012, à esquerda, e dança de uma classe durante a festa em 2017, à direita.
A parte das danças na Festa das Cores terminava com a Ciranda das Cores198. Com as
mãos dadas, os umbigos voltados ao centro vazio e os corpos em cima dos próprios pés que
pisavam o chão do quintal, a roda rodava para um lado, rodava para o outro, enrolava para
dentro de olho nas costas de quem passasse pela frente, tornava a voltar olhando passar os
olhos de todo mundo da roda, para então ela abrir e fechar antes de terminar em um caloroso
abraço.
198
A música utilizada para essa parte é a Ciranda de Gilberto Gil, gravada no álbum O Sol de Oslo de 1998.
127
Durante os processos de montagem, ensaio e apresentação das Festas das Cores foi
possível trabalhar os elementos da dança de diversas maneiras. As relações de espaço, tempo
e energia que vibravam dos corpos eram a força maior do evento. Ao longo dos 10 anos como
coordenadora da abertura cênica e das danças, me parece que, mesmo nas partes repetidas do
roteiro, elas nunca aconteceram iguais. Como apontam os estudos de Godard (2002), em
alguma instância foi possível tanger análises do corpo cênico de maneira antropológica e
plural, considerando os contextos temporais e culturais, bem como fatores filogenéticos, para
abordar o fenômeno do movimento.
Segundo Daniela Girotto199 (2013), para o espaço ser compreendido como agente
educador, deve se levar em conta as condições da criança, aquilo que pode ser acessado por
ela, ser reconhecido e, ao mesmo tempo, ajudar a instigá-la em direção a novas descobertas, à
ação, a uma diversidade de linguagens que ampliem o seu repertório de relações com o
mundo (GIROTTO, 2013, p. 49). Entretanto, os espaços educativos nem sempre precisam ser
concebidos e planejados a partir de temáticas e objetivos específicos. O ambiente que será
explorado pelas crianças deve favorecer o desenvolvimento de sensações e afetos, a
expressividade e a cognição.
Girotto coloca o papel do educador/adulto como central na significação das relações
da criança com o brinquedo. O professor é o meio, a mídia pela qual a criança aprende os
códigos e amplia o repertório de brincadeiras que contém em si elementos de diversas
linguagens (GIROTTO, 2013, p. 53). O professor atua direta ou indiretamente na capacidade
da criança se comunicar, atuar e significar suas relações com o mundo. Portanto, é importante
que o adulto esteja aberto para sintonizar com a sua criança interior a fim de compreender
verdadeiramente a importância da brincadeira e relacionar-se nesse espectro vivencial com
ela.
Por serem preceitos fundantes da Escola Viva, a Proposta Político-Pedagógica (PPP)
buscava incentivar a participação, a motivação e a perseverança dos alunos, no sentido de
atuar pela pedagogia diferenciada. A pesquisadora e educadora Daniela Jungles (2011) diz
que, para Prud’homme (2005 apud JUNGLES, 2011), não existe um senso comum sobre a
definição do termo pedagogia diferenciada, ela realmente difere, caso a caso. O termo pode
ser entendido como uma abordagem, uma atitude, um instrumento, uma filosofia, uma
estratégia de adaptação do currículo ou um modelo de gestão de sala de aula. Nessa visão
busca-se considerar a diversidade dos alunos para proporcionar a todos as condições
fundamentais de aprendizado.
Já para Tomlinson (2004 apud JUNGLES, 2011), a diferenciação pedagógica inclui
um esforço por parte do professor quanto à diversidade dos alunos na sala de aula. Ao adaptar
ou modificar seu ensino para criar a melhor situação de aprendizagem possível, ele está no
processo de diferenciação de sua pedagogia. A autora argumenta que o professor não deve
impor planos de ensino e aprendizagem preconcebidos sem levar em conta o nível de
desempenho dos alunos, seus interesses e perfis de aprendizagem.
199
Daniela Girotto foi coordenadora pedagógica no Infantil e no Fundamental da Escola Viva, tendo contribuído
substancialmente para instituir a dança nessa escola.
129
E Caron (2003 apud JUNGLES, 2011) define essa prática pedagógica como uma
forma de compreender e explorar as diferenças, tanto quanto de aprender a viver com elas. Foi
pelo corpo a corpo que constantemente fiz e refiz os meus planos de aula, buscando me
ajustar à proposta pedagógica da Escola Viva.
Finalmente, apresento três propostas em tripés para nomear as abordagens metodológicas que
mais fundamentaram as práticas. Nas três abordagens, a criança está no centro e nas
extremidades da pirâmide.
O tripé da Proposta Triangular para o Ensino das Artes, cunhado por Ana Mae
Barbosa (1975, 2005, 2011) inicialmente para as Artes Visuais, adaptado aqui para as demais
áreas artísticas, apontam em seus vértices o:
1. Fazer, o mesmo que PRODUZIR; CRIAR; COREOGRAFAR e COMPOR.
2. Apreciar enquanto FRUIR; LER; INTERPRETAR movimentos.
3. Contextualizar na HISTÓRIA DA ARTE, mas também na história local.
Na abordagem Orff-Schulwerk (ORFF, 1932200), o tripé elencado por mim, a partir
dos sete pontos apresentados por Doug Goodkin (2004), sugere como os conteúdos da arte
podem trabalhar com o ritmo, a improvisação e a imaginação para ensinar dança brincando,
considerando ir:
200
Considerando o ano da primeira publicação da obra Orff-Schulwerk: Música Elementar.
130
201
Função apresentada por Loris Malaguzzi, inspirado nas propostas pedagógicas de Reggio Emilia, Itália.
131
trabalha lado a lado com professores polivalentes, completando a carga horária destinada às
linguagens artísticas. A área Corpo oferecia como disciplinas obrigatórias aulas de Jogos e
Brincadeiras para o 2º ano, Dança para o 3º ano, Capoeira para o 4º ano e Educação Física
para todas as séries no Fundamental 1.
Inicialmente trabalhei no Integral202, no período do contraturno com aulas de Jogos e
Brincadeiras para o 2º ano, e de Dança para o 3º, 4º e 5º anos, uma vez por semana com uma
hora e meia de duração. Com o passar do tempo, me concentrei nas aulas de dança do 3º ano,
ofertadas no período regular, uma vez por semana com uma hora de duração.
Nas reuniões pedagógicas com professores especialistas de Educação Física, pude
aprender sobre os estágios do desenvolvimento motor humano segundo teóricos de notório
saber203 que relacionam as habilidades corporais às faixas etárias, bem como pude contribuir
com visões sobre o campo sutil, o qual pouco se discute e muito interfere nas dinâmicas
escolares. O fluxo poético existente nas passagens dos estados de corpo e mente são matéria
nos processos de maturação trabalhados nas artes. Logo, aqui não busco discorrer apenas
sobre o desenvolvimento motor204 das crianças do ensino fundamental nas séries iniciais, mas
sim sobre estratégias para ampliar sua consciência sobre o potencial expressivo que tais
habilidades favorecem.
Em termos físicos, o trabalho com o 3º ano abrangia o controle corporal no uso do
espaço pessoal e geral, a percepção das partes que compõem o corpo, a percepção do
esqueleto axial e apendicular com as principais articulações, a prática da expressão corporal
intencional em formas e movimentos, a fluência em gestos e ações globais, a memória motora
e a autoexpressão criativa para estimular a criança a compor frases de movimento.
Quanto às competências emocionais e competências atitudinais no exercício da
autonomia, elas estavam alinhadas às demais disciplinas no cultivo do respeito ao outro e do
respeito com espaços da escola.
Assim, desde 2009 quando ingressei no Ensino Fundamental 1, meu objetivo foi
promover pela dança o entendimento de um saber amplo, transponível inclusive para outras
linguagens e saberes. Pelos elementos da dança buscava a matéria energética do corpo no
202
Integral era o nome dado ao dia da semana determinado para a série ter aulas em dois períodos letivos, no
regular com o professor polivalente, auxiliar e especialista de música e ciências de segunda-feira à sexta-feira, e
no Integral, contraturno com professor especialista de Educação Física, dança e inglês, em apenas um dia da
semana, compondo uma média de 12 aulas por trimestre letivo. Apesar de ser no contraturno, era obrigatória a
presença dos alunos, mas não era controlada a presença, nem gerava nota final.
203
Gallahue e Ozmun (2005), Fonseca (1995) e Tani (1988).
204
Em associações às habilidades motoras e ao nível de desenvolvimento motor esperado para cada faixa etária.
132
espaço e tempo. Para isso, criava modos de dar as aulas e observar os alunos a partir dos
seguintes procedimentos:
fornecer elementos para ampliar a consciência corporal pela percepção do próprio
corpo – principalmente pela própria estrutura óssea e muscular;
estimular a percepção do espaço externo e do espaço interno do corpo;
estimular a percepção das intenções de movimentos pelas qualidades a partir das
organizações de Valerie Preston-Dunlop (1987) a partir da teoria e estudos do
movimento de Rudolf Laban – perguntando sobre o como fazer as ações, e;
registrar, inclusive no corpo, as práticas e experiências, além de criar modos de anotar
graficamente por desenhos, registrar em fotos e vídeos para revisitar e ampliar os
movimentos e formas praticadas.
O Ciclo da Água: da Terra ao Céu205 era o título original da sequência didática que
procurou, em alguma medida, contemplar todos esses itens.
Houve a preocupação de tanger com significados o enfoque relacional entre
professor/planejamento, levando em consideração os aspectos gerais e específicos da dança
para planejar as aulas – os ideais e aquilo que deduzia ser possível de executar; entre
professor/aluno, levando em consideração aspectos variantes que poderiam surgir nas
dinâmicas específicas de cada classe –, incluindo alunos com necessidades especiais; entre
aluno/aprendizagem, levando em consideração facilidades ou dificuldades cognitivas
individuais; e a relação dança/outros conteúdos, ou seja, trabalhar a interdisciplinaridade e/ou
a transdisciplinaridade. A intenção não era colocar a dança em função de outra disciplina, era
transformar contextos de outras disciplinas em dança, que também é uma disciplina
importante.
O foco não estava em abordar especificamente uma estética de dança, mas sim em estudar
o movimento e suas possibilidades expressivas e conseguir criar coreografias em grupo.
Como estratégia da Orff-Schulwerk (do coletivo para agrupamentos), sempre que
possível, iniciava a aula de dança na sala do professor polivalente com proposta simples para
tornar possível voltar a atenção de todos para a aula de dança, bem como para observar como
os alunos iriam relacionar no corpo os conteúdos vistos nas outras disciplinas, como
Português, Ciências e Matemática.
Cultivar o estudo da linguagem do movimento nos remete a uma memória remota, por
isso propunha iniciar o caminho aperfeiçoando as bases no contato com o chão para facilitar
experiências com o controle do eixo, de apoios diversos, o uso do peso e as transferências
dele no movimento dançado. Esses tópicos são complexos para discorrer verbalmente, mas,
na prática, as crianças lidam com eles com facilidade e alguns dominam plenamente.
205
O Ciclo da Água: da Terra ao Céu foi finalista no XVIII Prêmio Arte na Escola Cidadã, em São Paulo, em
julho de 2016.
134
principalmente com Ciências, para tornar a matéria passível de atuação e transformação pelo
corpo poético.
Para desenvolver a sequência didática O ciclo da água no corpo, procurei fluir nas
seguintes etapas:
1. Apresentar a proposta da aula na classe do professor polivalente a partir do conhecimento
prévio dos alunos e do trabalho rítmico, brincante e imaginativo conforme a abordagem Orff-
Schulwerk, estimulando o contato com o próprio corpo no espreguiçar e a organização
proprioceptiva das crianças pelos padrões de desenvolvimento do movimento humano através
dos estudos do Body-Mind Centering® (BMC206). O objetivo era chamar a atenção de todos
os alunos pelo movimento, estabelecendo coletivamente o início da aula.
2. Fomentar junto aos alunos a criação de um vocabulário de movimentos com significado
através de atividades como as vogais da euritmia207, criando gestos e formas a partir do
próprio nome e conhecendo jogos e danças de outras partes do Brasil e do mundo. O objetivo
era mostrar diferentes contextos e práticas e suas respectivas formas de expressão.
3. Realizar a troca de espaço a partir da sala de aula do professor polivalente até o galpão,
espaço da aula de dança, com atividades lúdicas, por exemplo, com o deslocamento coletivo e
ritmado pela brincadeira do trem. O objetivo era fornecer aos alunos referências concretas
sobre conceitos e procedimentos utilizados na dança considerados como instrumentos
avaliativos.
4. Ampliar o repertório vivencial dos alunos pelo movimento e pela imaginação através de
aquecimentos centrados nos fatores de movimento peso, espaço, tempo e fluência, com
atenção ao próprio corpo e aos corpos dos colegas. O objetivo era praticar os elementos da
dança.
5. Apresentar aos alunos propostas com improvisação em dança para reforçar o valor da
construção autoral, apresentar estímulos de diferentes matrizes estéticas, e estimular
agrupamentos em duetos, trios, quartetos e grupos maiores para a criação coletiva de
sequências coreográficas. O objetivo era ajudar os alunos a construírem seus processos
criativos.
206
O BMC® é uma abordagem somática desenvolvida pela estadunidense Bonnie Bainbridge Cohen que age
através da educação e reeducação do movimento baseado em princípios de anatomia, fisiologia e
desenvolvimento, utilizando movimento, toque, voz e mente. Disponível em: https://bmcnobrasil.com.br/o-body-
mind-centering/. Acesso em: 9 ago. 2022.
207
Euritmia é uma arte expressiva em movimento originada por Rudolf Steiner em conjunto com Marie von
Sivers no início do século XX. Enquanto arte performática, é usada na educação, especialmente nas escolas
Waldorf, e, como parte da medicina antroposófica, para fins terapêuticos. Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Eurythmy. Acesso em: 9 out. 2022.
136
6. Garantir espaço para que os alunos compartilhassem com a própria classe os exercícios
cênicos praticados na aula. O objetivo era fazer com que os alunos gerenciassem o tempo e o
espaço para a estruturação do que seria mostrado e soubessem se colocar democraticamente
ouvindo e fornecendo críticas construtivas.
7. Recapitular o processo vivido para eventualmente ampliar ou ajustar as ações em uma
próxima etapa ou sequência didática. Avaliar individual e coletivamente. O objetivo era
refletir sobre a prática e problematizar estereótipos e preconceitos assim que eles surgissem.
Ao longo das etapas, gravações dos alunos em aula, e, posteriormente, a análise de tais
gravações eram presentes e auxiliavam nas avaliações como um processo contínuo.
O primeiro semestre findava com as festividades do Ciclo Junino, por isso, perguntei
na primeira aula daquele ano o que os alunos achavam que significava a palavra ciclo. Eles
associaram o som do ciclo com círculo, e compararam com pneu de bicicleta, com o que é
redondo, que gira rápido ou devagar, que pode nos levar para vários lugares e com algo que
sempre recomeça, acontece de novo, mas nunca exatamente igual.
Como o projeto de ciências sobre o ciclo da água já havia se iniciado, procurei
estimular a imaginação das crianças para que elas explorassem formas dançantes de evaporar,
condensar e precipitar até encontrar novamente o chão, esta superfície que nos oferece a base
para que se possa voltar a subir. Busquei relações paralelas entre os saberes, que se tornaram
transversais e tridimensionais, por exemplo, dizendo que o solo estava para as ciências assim
como o chão e o nível baixo estava para a dança. Iniciei as reflexões e práticas explorando o
nível baixo a partir de pedras e rochas.
Para pensar nas formas na dança e em dinâmicas corporais pelo elemento água, fiz um
levantamento do repertório dos alunos sobre o que sabiam acerca do formato de objetos
sólidos e sobre os estados corporais, que são também os humores, estados mentais,
emocionais e energéticos.
A partir das perguntas gerais da série, procurei elaborar novas perguntas para a Dança.
As perguntas gerais eram: De onde vem a água? Quais as transformações dos rios em São
Paulo? Quais as relações entre os rios e as culturas ribeirinhas?
As questões que serviam de ignição para as aulas de dança buscavam abordar a
Coreologia de Rudolf Laban, segundo estudos de Valerie Preston-Dunlop (1987). Assim,
137
começaram pelas rochas presentes na formação dos solos como pretexto para abordar o
espaço na dança segundo a Corêutica, e seguiram até sugerir as combinações de qualidades
expressivas do movimento segundo a Eucinética, relembrando que o objetivo era transformar
as brincadeiras e as investigações em vocabulário para criar composições em dança e
coreografias. As perguntas específicas da Dança eram: A rocha tem uma forma definida?
Pensando nos estados sólido, líquido e gasoso, é possível dizer que a água tem uma forma
definida? A dança tem uma forma definida, ou seja, ela é sempre igual? O que vocês acham
que significa fluência e o que tem a ver com influência? O que acontece no movimento
quando ele sofre a influência de um esforço externo? Será possível produzir e expressar
diferentes estados corporais através do movimento? Como isso se relaciona com a nossa
percepção e os estados de ânimo? O que muda na sensação do corpo do início para o fim da
aula?
Os conteúdos de Geografia também poderiam conversar com os conteúdos da Dança.
Assim, o trabalho interdisciplinar com Geografia buscou ampliar a consciência do corpo por
perguntas sobre a territorialidade. As perguntas relacionadas aos conteúdos da Geografia
faziam paralelos entre o planeta e o corpo humano: O que é beira, borda e costa? Onde está o
centro? O que há dentro, no interior, e o que está na margem? Onde fica a água que está
dentro do corpo e como ela circula? Como ela entra e sai? Como brincar de transportar? Por
onde chovemos e evaporamos? Quais são nossos rios internos?
Enquanto o trabalho com Ciências e Geografia no primeiro bimestre iniciou no estudo
do solo como uma referência concreta sobre base, níveis, localização espacial e as formas na
dança, o trabalho interdisciplinar de Dança com Português buscou corporificar a divisão
silábica, o uso de letra maiúscula em nomes próprios e no início das frases e o uso do ponto-
final no término. Transpondo para a linguagem da dança, foi trabalhado no ponto de partida a
criação de movimentos a partir do nome próprio separado em sílabas, sugerindo a ênfase nas
sílabas tônicas pelo tônus corporal e na grafia atentando ao uso da letra maiúscula na primeira
letra. Visando fornecer dados para os alunos construírem suas noções espaciais a partir do que
já era conhecido, o objetivo era reforçar o aprendizado tendo o aluno no centro da proposta
para, pelo desenvolvimento da identidade, criar significado na movimentação.
Para alinhavar os procedimentos estruturais da sequência didática e relacionar a
descrição abaixo com a que será apresentada de forma sintética nos diários de classe, as
atividades foram divididas em quatro blocos. Os números que se encontram entre parênteses
significam os respectivos blocos: (1) atividades variadas realizadas na sala do professor
polivalente, (2) procedimentos repetidos na rotina, tais como a brincadeira do trem, entrada no
138
208
A Ginástica Cerebral foi criada pelo casal Paul e Gail E. Dennison na década de 1980. O livro Brain Gym:
Teacher's Edition (1989), de sua autoria, apresenta sugestões para professores.
139
209
Entenda-se moldes convencionais por exemplo o professor ler o nome do aluno e ele responder “presente”
Muitas vezes as crianças estavam dispersas e falando muito alto, logo, gritar seus nomes não era o jeito que eu
gostaria de convidá-las a estados de presença. Mostrava-se contraproducente e ocupava um tempo excessivo da
aula.
141
A montagem do trem era também um recurso para fazer a chamada de presença, não
necessariamente em ordem alfabética. Como havia na brincadeira a intenção de trabalhar
conteúdos do espaço, além de o circuito passar por escadas que poderiam oferecer risco aos
alunos, eu era a maquinista. Propunha o rodízio entre os alunos que ocupariam a primeira
metade da fila e os que ocupariam a segunda metade da fila, responsáveis por controlar com
mais habilidade os movimentos rápidos nas curvas para não sair pela tangente e romper ou
descarrilhar o trem.
Em dias quentes, havia uma primeira parada feita do lado de fora do galpão para tirar
os sapatos e colocá-los com os calcanhares tocando a parede, mantendo as bordas internas dos
pés esquerdo e direito se tocando. Em dias frios não se tirava os sapatos, no entanto era feita
142
uma pausa de segundos para ser disparada a música Trem de Ferro, de Tom Jobim210,
marcando a entrada no espaço sincronizada com a cadência do som que fornecia suporte para
as orientações da dança imbuídas nas viagens imagéticas causadas pela brincadeira.
Após percorrer um circuito com deslocamentos em linhas retas e mudanças de direção
em ângulos retos de 90º, semelhantes à cena do videogame do espetáculo Brincos & Folias da
Balangandança Cia., iniciava-se a preparação para a roda. Nesse momento, a segunda metade
da fila deveria colaborar para fechar o círculo.
A roda acontecia no momento em que a música ralentava. Na roda, as mãos deveriam
soltar da camiseta do colega da frente para fazer as vogais da euritmia, os movimentos de
abrir e fechar o corpo tendo como referência a linha medial e o desafio de saltar em um pé só
segurando no pé do colega à frente, nomeado de Saci-Pererê.
Findada essa parte, o trem voltava a deslocar pelo espaço do galpão agora em espirais
e curvas aleatórias até terminar com o grupo sentado em roda no centro da sala ou na
organização espacial favorável à próxima atividade.
210
Trem de Ferro é uma composição de Antônio Carlos Jobim sobre poema de Manuel Bandeira, gravada com a
Nova Banda, presente no álbum Antonio Brasileiro, 1994. Disponível em: https://youtu.be/7izwaQy3AdU.
Acesso em: 2 ago. 2022.
211
As gravações fonográficas em mono têm só um canal, o som estéreo tem dois canais e os sistemas surround
têm pelo menos quatro canais, permitindo-se criar um campo sonoro de 360 graus.
143
para trabalhar a lateralidade e ações coletivas, como as que chamava de brincadeira do saci,
jogo de dominó e a batucada nas costas antes de pedir para os alunos se sentarem na roda.
Sentados e deitados, era possível entregar o peso ao chão, sentindo os pontos de
contato e brincar de aproximar e afastar as partes do corpo. As crianças tocavam os próprios
pés e os dos colegas, caminhavam por circuitos de texturas diferentes e exploravam os apoios
de ponta, calcanhar e bordas dos pés ao andarem para todas as direções explorando ações
diversas. Assim, exercícios de toque nos próprios pés, nos pés dos vizinhos e exercícios de
sensibilização da coluna, princípios aprendidos com Steve Paxton que fizeram parte do
processo criativo do espetáculo O Tal do Quintal (Balangandança), foram praticados e
ensinados aos alunos.
Para algumas crianças, tirar o sapato e se deitar no chão durante as aulas de dança não
era uma tarefa fácil. O chão era sinônimo de sujeira e de causador de resfriados, bem como
lugar de inferioridade ou que gerava o medo de ser pisoteado. Para abordar essas questões
junto aos 3ºs anos, começamos o bimestre ampliando a consciência corporal pela percepção
das relações do corpo com o chão, a fim de gerar novos pontos de vista, concepções e, quem
sabe, um novo paradigma corporal. Para ajudar as crianças a construírem novas referências
para se situar no próprio corpo e no espaço, utilizei em aula diversos recursos.
Desenhar, por exemplo, faz parte da prática final das aulas, pois é a encenação
gráfica de tudo que elas fizeram com seu corpo. Usar bambus, bolinhas, elásticos,
até criar trajetos com seixos no chão são pontes incríveis para que as crianças
possam acessar esses arquivos imaginários tanto para criar como para sentir sua
estrutura corporal. (XAVIER, 2007, p. 63)
O baralho Yoga dos Bichos212, metodologia educacional usada para ensinar yoga para
crianças, apresenta a sequência de posturas da “Saudação à Terra” sendo realizada por um
tatu-canastra, um simpático animal que habita toda a América do Sul. No nível baixo, com
nossos corpos próximos ao chão, pensamos nas coisas com as quais os tatus se relacionam: a
terra em si, as pedras, as rochas e seus alimentos, dentre eles, formigas e cupins. Para esse
animal, o solo representa sua casa, seu restaurante, sua estrada e seu esconderijo. Inspirados
pelas cartas, praticamos al umas vezes a sequência da “Saudação à Terra”, simulando a
sonorização de algumas passagens, como um suposto roncar do tatu no momento da sua
digestão.
Dando continuidade à pesquisa, fizemos no corpo a forma de outro animal: a estrela-
do-mar com cinco pontas, ser aquático que se alimenta pelo seu centro. Com o objetivo de
fornecer dados relativos à orientação espacial e aos movimentos de contração e expansão
corporal, a figura da estrela era vivenciada pelos alunos que colocavam seus corpos deitados
no chão de barriga para cima, fazendo-os experimentar a amplitude física e sutil através do
espaço entre as mãos, os pés e o centro do corpo. Ao alternar de posturas corporais grandes e
abertas para pequenas e fechadas, era possível perceber a força de extensão e expansão bem
como o potencial de recolhimento, de delicadeza e proteção. A estrela-do-mar é um exemplo
bastante elucidativo utilizado em aulas de educação somática presente na abordagem do
BMC® para tratar de um dos padrões do desenvolvimento do movimento anterior à fase
212
Mais informações sobre os fundamentos do baralho Yoga dos Bichos, de João Caré, estão disponíveis em:
https://www.yogadosbichos.com.br/. Acesso em: 2 ago. 2022.
145
espinhal: a radiação central ou umbilical nos vetores do centro para as periferias e das
periferias entre si através do centro do corpo.
3.4.2.5 “Pego tudo…”: encerrando com a conexão entre palavras, gestos e intenções (4)
Sempre que possível, no encerramento era feito uma reflexão sobre a prática da aula.
As dinâmicas poderiam variar de acordo com o andamento das atividades anteriores, indo de
longas conversas existenciais até, na versão mais sucinta, uma rodada para cada aluno dizer
uma palavra-chave sobre suas sensações sobre a aula que estava terminando. Entretanto, no
minuto final antes de os alunos saírem do espaço, era feita a declamação dos versos ligados
aos gestos de fechamento: “Pe o tudo que está no C u e ponho na Terra Pe o tudo que está
na Terra e ponho no Céu. No meio disso estou eu. No meio disso está você. No meio disso
está todo o Mundo ”213 e “Essa aula de dança entrou por uma porta e saiu pela outra, quem
quiser que dance outra ”214
Uma vez apresentada a estrutura geral das aulas, esta parte destina-se a aprofundar nas
relações da dança enquanto fonte de conhecimento e nas estratégias que foram utilizadas na
tentativa de fazer com que todos os alunos pudessem se sentir parte do todo, no caso, do
organismo social que a comunidade escolar representa.
Procurei trabalhar aspectos da água e do solo pelos elementos da dança enquanto
linguagem. O estudo da Eucinética, ou seja, das combinações expressivas dos fatores de
movimento – tempo, espaço, peso e fluxo – proposto por Rudolf Laban, aconteceu na prática
através de estímulos fornecidos ao corpo emocional para a realização de movimentos
impetuosos, estabanados, cuidadosos, gentis, agressivos, entre outros.
Em aula, foi experimentado também o fator peso nos estados sólido, líquido e gasoso.
O fator espaço foi experimentado no nível baixo através da imaginação em ser poça, lago,
mar, rio e córrego; no nível médio através da imaginação em evaporar e coletivamente formar
213
Versos criados pela autora.
214
Versos adaptados do jargão utilizado em contação de histórias.
146
uma eclusa, e no nível alto através da imaginação em formar nuvens carregadas de água
líquida e gelo e percorrer caminhos como fazem os rios voadores, entre outras explorações.
As qualidades de movimento eram trabalhadas tanto nas formas que as crianças iam
propondo corporalmente quanto nos modos diversos de se fazer as transições de uma forma
para outra, brincando com velocidades e pausas entre fluxos livres e contidos de movimentos.
As propostas nas aulas de dança passaram por balançar-se gentilmente com as mãos
tocando o próprio corpo na altura dos rins215 e da bexiga216, por serem os órgãos relativos à
filtragem (do sangue, que também tem água) e armazenamento (de urina) no nosso
organismo. Rolamentos simples no nível baixo foram praticados, para que as crianças
atentassem a formas fluidas de passar o umbigo e os rins pelo chão da sala e estudassem os
apoios para gradualmente irem se desenrolando até atingir o nível alto. Para essa prática,
geralmente era feita uma ambientação sonora com instrumentos acústicos, tais como o pau de
chuva, calimba, metalofone e a flauta doce.
Para estimular a consciência corporal e o contato com o controle do corpo a partir de
estudos sobre a forma, o estado dançante passou pela brincadeira da estátua. Foram feitas
posições similares ao formato das pedras previamente conhecidas pelo tato e relacionadas
com a representação das vogais da euritmia.
215
A filtragem do sangue para formação da urina ocorre nas estruturas funcionais do rim chamadas de néfrons, e
os rins localizam-se nas costas, um pouco acima da linha medial do umbigo, em ambos os lados da coluna
vertebral. Anatomicamente, estão junto à parede posterior do abdômen, abaixo do diafragma.
216
A bexiga é um órgão flexível, de paredes musculares, localizado na pelve.
147
“Posso ser represa e despencar como cachoeira. Posso ferver, evaporar e fazer chuva. Onde
rio? Por todo meu corpo ” (Palavras das crianças)
O que é isso? Posso sentir? Após as questões disparadoras sobre o ciclo da água terem
sido apresentadas, a ideia nessa etapa era fornecer estímulos para que os alunos criassem
novas perguntas, bem como suas coreografias a partir de elementos que tivessem significado
para eles.
Em uma aula, ao chegar no galpão, os alunos se depararam com sacos coloridos
estrategicamente217 dispostos no chão. Havia exatamente o mesmo número de sacos e de
crianças, logo, cada uma deveria escolher um para se sentar perto, sem ainda poder tocá-lo.
Quando todos já estavam sentados, foi dado um tempo para sentir pelo tato um objeto, até
então misterioso, que se encontrava dentro desse saco fino. Manuseando com cuidado como
se fosse uma pele muito fina que não deveria ser rasgada, elas precisavam imaginar a forma
do que se encontrava encoberto e expressá-la corporalmente com o máximo de detalhes
possíveis. Cada saco continha um objeto de um tamanho diferente que convidava a
manipulações específicas: os objetos grandes convidaram o uso da palma da mão e os objetos
pequenos convidaram as pontas dos dedos das crianças a sentirem a forma, sugerindo o
refinamento do mesmo gesto utilizado para manipular as telas de celular. Concluída essa
etapa, poderiam trocar de lugar se dirigindo até outro saco cuja cor fosse diferente do saco
anterior. Repetiram mais duas vezes o procedimento de tatear e interpretar corporalmente,
somando para o vocabulário de formas 3 figuras distintas. Na última troca, os alunos
deveriam retornar ao primeiro saco, o invólucro de origem da rota, onde finalmente poderiam
abrir o saco e ver o objeto misterioso para repetir a forma inicial, fazendo os ajustes a fim de
interpretar a pedra da melhor forma possível. Em todas as turmas, expressões de espanto
brotaram nos corpos das crianças. Os alunos reconheciam exteriormente algo que já lhes
parecia íntimo e familiar, algo que, de algum modo, já lhes fazia parte.
Para a semana seguinte foi pedido como lição de casa que os alunos desenhassem o
contorno de uma pedra imaginária. Ela poderia ter relação com a pedra que eles haviam
217
Os sacos de cores iguais ficavam próximos uns dos outros, pois continham tipos de pedras parecidos, a saber,
pedras lisas e arredondadas (cachoeira), pedras lisas e com ângulos (cristais lapidados), pedras coloridas,
transparentes, pretas e aglomerados de pedras de construção (brita).
149
imitado em aula ou não. O exercício decorrente foi mimetizar no corpo a forma desenhada no
contorno e fazer um registro fotográfico para misturar as imagens do desenho com a foto.
Sentir a forma, a temperatura, o volume e a textura de um objeto, associados às imagens
poéticas que surgiram das observações das crianças enquanto traziam as características das
pedras para seus corpos, foi gradualmente conferindo significado às formas corporais.
Figura 45 - Práticas de sensibilização. Momento de ver o objeto que estava dentro do saco.
Figura 46 - Forma a ser descoberta representada no corpo pela percepção do tato, e forma após ser descoberta
sendo representada pela percepção do tato e da visão.
Nas aulas seguintes, o exercício partiu do repertório corporal pessoal dos alunos
proveniente da lição intitulada Corpo Mineral, acrescentando itens de atenção como a
adaptabilidade para o trabalho em grupo, a tarefa de ensinar aos demais membros do grupo
como foi feita a forma corporal inspirada na pedra imaginária e a criação de caminhos para se
passar de uma forma a outra dançando. O objetivo do exercício era praticar coletivamente
uma primeira etapa para compor uma sequência ou célula coreográfica a partir do tema
“Formas”'
Em ordem alfabética218 quatro grupos por classe foram organizados. As crianças
relataram desafios de diversas naturezas que surgiram nessa tarefa, indagando: Como ensinar
a forma da minha pedra e aprender outras diferentes? Como adaptar meu corpo a novas
posições? Como passar de uma forma para outra? Como estar em um grupo que não escolhi?
Tão logo todos entenderam a proposta e em questão de minutos todos os grupos estavam
prontos tanto para compartilhar suas montagens quanto para assistir aos colegas.
Na aula seguinte, a mesma proposta de composição de uma célula coreográfica foi
feita substituindo as pedras por palavras presentes na letra da música Água219, de Paulo Tatit e
Arnaldo Antunes, que revelam alguns caminhos narrando lugares por onde a água passa.
218
Os grupos representados na tabela, a seguir, por G1 a G4 foram divididos de A-F, G-L, M-R e S-Z, mas
podiam variar de acordo com os nomes das crianças da classe, buscando manter a quantidade de participantes
por grupo em números parecidos.
219
A música Água é a faixa 7 do álbum Canções de Brincar, da Coleção Palavra Cantada.
151
Mantendo os mesmos agrupamentos da aula anterior, cada grupo recebeu uma estrofe da
canção para criar uma movimentação autoral para a sequência de palavras sugeridas, sendo:
Ao longo do processo uma série de registros em fotos e vídeos foi feita, e, após o
término da sequência didática, foi realizada uma edição contendo imagens do processo e das
apresentações internas de cada classe para enviar às famílias dos alunos. O vídeo mostra que
nesse processo uma pedra real virou desenho de uma pedra imaginária, que ganhou um corpo
redondo, outro pontiagudo, assimétrico, e também um corpo alongado, que pode se equilibrar,
que soube usar as diagonais e tocar o céu.
O espaço da sala era dividido e compartilhado durante as montagens das células
coreográficas, que tinham um tempo determinado para serem ensaiadas: no máximo 10
minutos.
Com o vocabulário de movimento sendo interpretado ora de forma mais abstrata, ora
mais literalmente em coreografias com uníssono e partes improvisadas, foi comum a
utilização do repertório das brincadeiras. Reforçando a ludicidade cultivada nos
procedimentos, as danças apresentaram ações de passar por baixo das pernas dos colegas
como na brincadeira da História da Serpente, exploraram apoios ao fazer o carrinho de mão,
utilizaram o ato de manipular partes do corpo como feito nas brincadeiras de marionetes ou
bonecos. As crianças dançaram os caminhos das águas que descem pelos canos da caixa
d’á ua, que se elevam na evaporação, que circulam pelos rios aéreos, que se agrupam na
condensação, e rodopiam nos maremotos.
O compartilhar dos trabalhos criativos era uma prática constante, tanto quanto
fornecer e ouvir as devolutivas da plateia formada pelos próprios colegas.
153
O vídeo foi enviado para as famílias no final do semestre junto ao relato de trabalho
contendo os conteúdos específicos da dança e esclarecendo os critérios dos instrumentos
avaliativos que compunham a nota final da disciplina, dentre eles a colaboração nessa criação
coletiva, a nota da prova teórica e a autoavaliação, apresentadas a seguir. Os nomes dos
alunos aparecem nos créditos finais como intérpretes-criadores, e realmente todos os
movimentos foram criações 100% autorais das crianças.
Através dos diários de classe, foi possível perceber como um mesmo planejamento
acontecia de formas diferentes dependendo das características de cada uma das turmas e do
154
horário da aula na grade escolar. Como o diário de classe era um documento interno
obrigatório, ele seria consultado apenas por outros professores e coordenadores, não sendo
enviado para as famílias. Sua função era auxiliar na organização do material planejado e de
sua efetiva ou não aplicação.
Nos diários eram feitos apontamentos sobre os alunos com necessidades especiais220,
aqueles com diagnósticos específicos encaminhados por médicos, bem como anotações sobre
outros alunos para os quais, eventualmente, era necessária uma atenção maior. Essas
anotações feitas no diário forneciam uma visão específica de como tais alunos se
relacionavam com os saberes da dança e lidavam com suas questões mais latentes, seus
desafios e superações. Particularmente, os diários auxiliavam nas reuniões pedagógicas
semanais e nas reuniões de conselho de classe no final do ano letivo.
Suprimindo os comentários sobre os alunos especiais por não ser o foco desta pesquisa
e a descrição minuciosa de atividades que se repetiram na rotina, apresento abaixo partes do
diário de uma das turmas do 3º ano, em 2016, elencando as práticas por onde foi possível
trabalhar questões acerca do ritmo, das brincadeiras e da imaginação que permearam as aulas
da sequência didática O ciclo da água no corpo.
Dentre as cinco turmas que faziam as aulas de dança, separei o diário da última turma
do período matutino, que fazia aula entre 11h30 e 12h30221.
220
Conforme prescrito na Lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (LBI / 13.146), capítulo IV, a
Escola Viva adota em sua Proposta Político-Pedagógica a postura inclusiva em todos os níveis de ensino.
221
Esse diário menciona os ocorridos na turma do 3ºA, que tinha como professora polivalente Maria Cristina
Pires, como auxiliar de classe, Luiza Yuba, e, como professora especialista em Ciências, Patricia Freitas, comum
a todas as turmas.
155
3. No dia 16/02/16 – (1) As vogais da euritmia: Aprender no corpo as formas das cinco
vogais. Realizar a transição de uma para outra em diversos ritmos e brincar com palavras ou
expressões que contenham apenas vogais, por exemplo, eu, ai, ei, oi, ou, uia. Forca: Ao ouvir
seu nome, se colocar diante da lousa para completar a palavra escrita com as vogais faltantes.
Lição de casa para ser entregue na semana seguinte: O caminho da água no corpo.
Orientação: Imagine seu corpo transparente e desenhe como você acha que a água entra, por
onde ela passa e como sai do nosso corpo. (2) Aula semelhante à primeira para reforçar
procedimentos específicos e estimular a integração social afetiva via linguagem corporal. (3)
Roda dos nomes próprios com flecha imaginária, enfatizando o início do movimento como a
letra maiúscula conforme conteúdo de Português. Brincadeira de tocar partes específicas do
corpo nas cores do espaço do galpão. Corrida feita em 2 grupos para um observar o outro
correr até uma marca determinada. (4) Fechamento com os versos.
4. No dia 23/02/16 – (1) Recolher a lição de casa. (2) Semelhante à aula anterior. (3)
Atividade: Território rápido e território lento com fronteiras fechadas entre os dois espaços.
Quando um grupo se movia, o outro deveria ficar imóvel. Iniciar a atividade na postura da sua
pedra, terminar sustentando a pausa por três segundos como marca de um ponto-final.
Instrumentos associados: rápido/tambor, lento/flauta doce. Repetir trocando o lado, quem
estava no lado lento iria experimentar o lado rápido e vice-versa. Na terceira vez, poderia
repetir a atividade sem fronteiras, ocupando o espaço geral explorando o deslocamento, as
pausas e as dinâmicas opostas em uma prática de improvisação. Pedido de lição de casa para
semana seguinte: desenhar com uma linha contínua o contorno de um Corpo Mineral,
marcando sua fronteira entre o dentro e o fora. (4) Roda final para a turma refletir e conversar
sobre como se sentiram fazendo a atividade Território rápido e território lento. Repetição do
verso Pego tudo de fechamento para encerrar a aula.
5. No dia 01/03/16 – (1) Separar a lição de casa para descer com ela até o galpão. (2) Registro
em fotos dos alunos em uma forma semelhante ao desenho entregue na lição de casa Corpo
Mineral, rememorando conteúdos da dança e fazendo menção às rochas estudadas em
Ciências. (3) Brincadeira de Adoleta para escolher quatro grupos e brincar com a música
História da Serpente. (4) Fechamento com os versos.
6. No dia 08/03/16 – (1) Orientações para ajudar os alunos a entrarem com calma no galpão,
contextualizando que o espaço estava preparado para uma atividade específica. (2)
Aquecimento feito na sala de aula despertando a curiosidade pelo tato. (3) Atividade com
objetos nos saquinhos coloridos. Tatear e procurar fazer a forma. A partir da investigação
pessoal, ocupar o espaço geral e fazer a sua pedra. Trocar de lugar e fazer a pedra de outra
156
Na atividade final dessa sequência, quando os quatro grupos dançaram juntos, foi
sugerida uma série de variações coreográficas, tais como, todos fazerem em uníssono as
palavras que se repetem, como cano, rio e nuvem; um grupo ensinar sua sequência ao grupo
157
vizinho, ao grupo da frente e depois ao grupo da sua diagonal, até todos fazerem a sequência
de jeitos diferentes; misturar os grupos no espaço da sala, sem perder a conexão pelo olhar.
Algumas variações foram postas em prática, porém, no fim do bimestre, o planejamento
mudou para contemplar o Ciclo Junino.
Na primeira aula do segundo semestre, marquei a presença dos alunos fazendo a
interdisciplinaridade com conteúdos das Artes Visuais a partir de imagens do livro Folias e
Folguedos do Brasil (REIS, 2010). Na sala do professor polivalente, era chamada por ordem
alfabética a quantidade de pessoas que apareciam representadas nas xilogravuras projetadas
na tela diante da lousa. A proposta era reproduzir as formações espaciais e os gestos de
algumas das manifestações populares brasileiras, como, por exemplo, do Jongo, a Cana-
Verde, a Ciranda, o Coco, o Fandango, o Vilão, entre outros. Assim, recomeçamos cultivando
na prática o conceito de ciclo através do lugar onde nos encontramos presentes: nosso corpo
físico e mental, emocional e sutil. O corpo-sujeito, que se relaciona com os outros, que brinca
com os ritmos, e com os acentos, bulindo com a gravidade, com essa força que nos mantém
em contato com o chão, seria novamente o assunto central para a nova sequência didática.
Os elementos da linguagem da dança trabalhados no processo criativo da sequência didática O
ciclo da água no corpo contribuíram na escolha e na elaboração das danças feitas pelos alunos
para a Festa Junina222. Foi possível observar a agilidade com que os grupos organizaram suas
escolhas, ensaiaram e apresentaram as danças Chula, Catira e Pau de Fita com as classes do
período matutino, e Coco e Auto do Boi com as classes do período vespertino.
Durante os anos de trabalho na Escola Viva, a avaliação em dança sempre foi uma
questão. Acredito que a questão se estenda a todas as escolas, linguagens artísticas e também
às demais disciplinas.
Até 2011 as aulas de dança aconteciam no contraturno, no período estendido da
escola, nomeado integral, que oferecia aulas de Corpo (jogos e brincadeiras para o 2º ano,
dança para o 3º ano, capoeira para o 4º ano, jogos teatrais para o 5º ano e Educação Física de
2º a 5º anos) e inglês. No integral, exceto para Educação Física e inglês, nas demais aulas não
se aplicavam, oficialmente, provas. Enquanto dei aula no integral não havia a possibilidade de
222
A Festa Junina da Escola Viva é um evento feito com e para os alunos e funcionários, sem a presença dos
pais e familiares.
158
usar a sala de aula do professor polivalente, em 2012, no entanto, pude acompanhar como
professora de Jogos e Brincadeiras e Dança turmas de 2º a 5º anos223.
Quando as aulas de dança migraram para o período regular, surgiu a demanda do
lançamento de uma nota composta para a área Corpo. No 2º ano, não havia lançamento de
nota. No 3º ano, era feita a média entre as notas finais que o aluno tinha em dança e Educação
Física, no 4º ano, entre capoeira e Educação Física e, no 5º ano, apenas da Educação Física.
Essas notas finais poderiam parecer deveras arbitrárias para os alunos e famílias. Não era
possível saber, por exemplo, se a nota baixa de um aluno do 3º ano tinha relação com sua
participação em dança ou em Educação Física.
Em um processo de construção coletiva, após várias reuniões com as orientadoras
pedagógicas224, acabei propondo instrumentos avaliativos para as aulas de dança com base em
outros documentos pedagógicos da escola com as devidas adaptações. Tais instrumentos de
avaliação e autoavaliação já eram utilizados por outros professores especialistas da equipe,
como os de inglês225 e música226; apenas a área de Corpo não comunicava seus processos nem
para a comunidade escolar, nem para os próprios alunos. Senti que tal invisibilidade precisava
ser combatida. Assim que consegui que a dança entrasse na grade curricular regular, foi
possível mostrar melhor o trabalho desenvolvido na escola, inclusive através desse
instrumento de avaliação.
Nas escolas de educação básica as últimas semanas dos semestres são tensas devido às
demandas de provas e fechamentos de notas. Deixar para pensar em avaliar aula de artes
nesse período não parecia uma boa ideia, além do mais era preciso se perguntar: como avaliar
e para quem avaliar?
Diante do prazo para se lançar as notas no sistema da escola, constantemente surgiam
reflexões sobre como tornar os processos avaliativos um assunto motivador tanto para os
professores quanto para os alunos. A tarefa de manter em dia os registros consumia tempo e
energia. Os diários de fato auxiliavam, mas, nas trocas rápidas de turma, nem sempre o
essencial cabia em tais relatos. No entanto, era algo exigido pela instituição, que passava por
visitas surpresas da delegacia de ensino, para verificar a presença dos documentos,
ameaçando aplicar multa, caso a escola não estivesse em dia. Tratava-se do controle
burocrático que nada tem a ver com as necessidades internas do corpo docente nem discente.
223
Ocasião em que a escola ofereceu um curso de informática para os professores, e foi feito o blog para
registros de aula de dança: http://dancaintegral5ano.blogspot.com/p/pau-de-fita.html. Acesso em: 11 out. 2022.
224
Carolina Queiroz e Daniela Girotto.
225
Bettina Boop, Cristina Trota e Mariana Bianchini.
226
Leandro Paccagnella, Roberto Botosso e Luciano Botosso.
159
Devido a uma preocupação constante em cumprir as exigências de lançar nota sem reduzir os
processos criativos e em manter os alunos cientes dos critérios para poderem balizar seu
desenvolvimento com autonomia, motivando os processos de trabalho, propus a avaliação em
dança com referência nos moldes aplicados nas outras disciplinas dessa escola. Hoje, ao
refletir sobre essa parte do trabalho realizada na escola, é possível sentir a ressonância em
falas sobre a tendência ao controle trazidos por Caio Paduan:
Para mensurar e mostrar aos alunos que não era eu, a professora, quem daria a nota
como um presente para eles, mas sim que os índices estariam diretamente relacionados ao
desenvolvimento de cada um, tendo a si próprio como referencial de evolução ou estagnação,
bem como sua relação com o grupo, propunha observarem o envolvimento que eles tiveram
nas etapas relacionadas à lição de casa, nas atividades de procedimento de aula e
principalmente nos exercícios de criação.
Os processos avaliativos aconteceram dentro da rotina das aulas de dança. No caso da
sequência didática do Projeto O Ciclo da Água no corpo, foram apresentados os conteúdos
das aulas, praticados corporalmente, registrados por meio de fotos, vídeos ou desenhos dos
alunos, bem como foram feitas as devolutivas para as classes sobre o percurso em
desenvolvimento e o estágio em que se encontravam.
Utilizei estratégias, tais quais comunicar com antecedência o cronograma de ensaio e a
prova prática, apresentar PowerPoint com o histórico das aulas como forma de roteiro de
estudo e registrar em vídeo a coreografia/prova de cada um dos quatro grupos das cinco
classes. Na semana seguinte após a realização da prova prática, mostrei os vídeos da classe
para que, em plenária, refletissem e fizessem uma autoavaliação com críticas construtivas.
Retomar a dança para aperfeiçoar e compartilhar com colegas, sendo intérpretes, criadores e
diretores em uma espécie de coletivo de dança, em que um grupo podia ensinar para os
demais a sua sequência coreográfica, foi um exercício enriquecedor para os alunos.
160
No Ensino Fundamental 1 da Escola Viva, são atribuídos pesos diferentes aos aspectos
cognitivos nas relações de aprendizagem, sendo 60% para o item um e 20% para os itens dois
e três, descritos abaixo, exceto para alunos em REA227 (Regime Especial de Avaliação):
Os critérios para verificar o domínio psicomotor e afetivo são observar se, na rotina
prática e/ou na criação, o aluno apresentou boa relação com movimentos de locomoção e não
locomoção; fluência nas atividades com estímulos sonoros, música ou palavras; se houve
aplicação dos conceitos abordados; e se houve participação na criação da célula coreográfica
com propriedade criteriosa na atividade proposta. Observar aspectos emocionais que são
manifestados ao longo dos encontros, para avaliar em quais medidas as tendências individuais
contribuem ou afastam a criança de seus potenciais artísticos.
As considerações para nota no aspecto cognitivo e psicomotor têm como referência a
relação do aluno/ele mesmo em seu estágio inicial. Se ele apresenta dificuldade em executar
sozinho os movimentos, exercícios, passos e suas combinações é considerado iniciante (nota
6,0 a 7,5); se está em processo ou já executa corretamente e com precisão todos os
componentes, como princípios do movimento, estilo e transições em relação à música e/ou à
proposta é considerado em desenvolvimento (nota 8,0 a 9,5); se está amadurecendo suas
colocações ou já demonstra segurança técnica e maturidade para performance artística é
considerado excelente (nota 10,0).
A seleção de critérios para verificar o domínio social e afetivo observa se o aluno
apresenta movimentos confiantes; postura adequada; se participa e contribui; se coopera e se
apresenta uma atitude propositiva e de escuta na classe. Considera também, e principalmente,
227
Os alunos com necessidades especiais (REA) não passavam pelo mesmo processo avaliativo que os demais.
Esses casos eram discutidos com a equipe e professores que davam apoio pedagógico e psicológico ao aluno e
devolutivas específicas para as respectivas famílias.
161
suas capacidades de realizar ajustes para melhor aproveitamento nas atividades propostas
durante as aulas de dança.
Sobre a performance de dança é observado se nos exercícios cênicos, nos improvisos e
nas coreografias, o aluno/grupo se apropria dos elementos abordados em aula, por exemplo,
se apresentou a estrutura início, desenvolvimento e fim; se trabalhou apoios, níveis e ritmo; se
utilizou formas estudadas (formas abertas, fechadas, pontiagudas, alongadas, espalhadas,
torcidas, redondas e espiraladas); e se apresentou expressividade no processo de transformar
em dança as imagens e sugestões sobre o ciclo da água.
Dentre o material que embasa a nota final, há uma ficha de autoavaliação preenchida
pelos alunos ao lado da avaliação dos professores acerca dos mesmos critérios, que se
propõem a refletir sobre os aspectos cognitivo, psicomotor e afetivo. Essa ficha é um dos
instrumentos avaliativos padronizados pela escola, sendo adaptada às especificidades de cada
disciplina. Nela, existem duas colunas com 5 quadrados. A primeira é preenchida pelos alunos
e a segunda pelo professor. Pinta-se de 1 (mínimo) a 5 (máximo) quadrados de acordo com a
avaliação de cada tópico. Ao final de cada semestre, a ficha era enviada para o portfólio do
aluno para que as famílias pudessem acompanhar o processo que levava à nota final lançada
no sistema.
Conforme mencionado anteriormente, a Escola Viva tem professores atelieristas. É
uma tradição, desde o infantil, a construção do álbum do aluno, que no ensino fundamental
recebe o nome de portfólio do aluno. A cada fim de semestre o portfólio apresenta a produção
artística e os relatórios de todas as disciplinas. A escola incentivava as famílias a lerem junto
com as crianças os registros quando enviados para as casas. Nesses relatórios há um espaço
reservado para se falar especificamente do aluno. Esse é o momento em que os pais podem se
apropriar de e ter contato com o que acontece na especificidade de cada aula dentro da
dinâmica escolar.
Assim como nas outras disciplinas, no final do semestre, os comentários sobre o aluno,
sua autoavaliação e a nota da dança eram lançados no sistema e apresentados no relato de
trabalho enviado no portfólio.
Instrumentos avaliativos registrados no papel, ou seja, a prova escrita, a autoavaliação e o
quadro de retorno sobre as expectativas de aprendizagem, mostravam como algumas vezes a
impressão que o aluno tinha de si era parecida com a do professor, e como às vezes era
diferente. Tais apontamentos concretizavam os argumentos para o diálogo que ajudava no
amadurecimento da relação dos sujeitos com a matéria do corpo, e na criação de soluções
específicas para alguns estudantes.
162
Como o arquivo acima é de 2017, esclareço que as perguntas elaboradas para a dança
ao término do 1º semestre de 2016 foram:
1. Participa com atenção durante a explicação da aula na classe.
2. Controla seu corpo, cooperando com as regras para a boa execução do trem.
3. Esforça-se para superar suas dificuldades.
4. Colabora com o grupo nos momentos de criação no galpão.
5. Concentra-se na roda quando há atividade de finalização: gestos em versos e/ou reflexão.
No verso dessa mesma página estavam as expectativas de aprendizagem (ver quadro
abaixo) a serem sinalizadas apenas pelo professor, sendo 1: Apropriou-se; 2: Apropriou-se
parcialmente; 3: Apropriou-se parcialmente, necessitando de ajuda; 4: Ainda não se
apropriou. Geralmente eu escrevia um bilhete pessoal nessa página para a criança, quando
necessário.
A expectativa de aprendizagem se propunha a tornar evidente os elementos da dança
pelo conhecimento de si e do espaço, pelo desenvolvimento das habilidades propostas nos
163
documentos regulatórios e pelo contato com o vocabulário da dança, para que eles, assim,
pudessem ao menos ter garantido o contato com os elementos da linguagem da dança.
Quadro com modelo da ficha de expectativas de aprendizagem no 1 º semestre de 2016.
Expectativas de aprendizagem 1 2 3 4
Dançar em grupo, sabendo executar sua parte em conjunto com as demais pessoas.
Perceber a relação entre a dança popular e seu contexto no Ciclo Junino Brasileiro.
O principal momento de troca entre as famílias e a escola era nas reuniões de pais, que
aconteciam por classes, à noite, uma vez por semestre. Os professores especialistas da área
Corpo não participavam dessas reuniões, logo, as aulas de dança raramente ocupavam uma
pauta em tais encontros. Fazia parte da realidade escolar lidar com o corpo ainda ocupando
um lugar menos privilegiado que as disciplinas duras: matemática, português, ciências,
história e geografia.
Assim, para semear a arte nas fendas do concreto, me propus a realizar registros de
aula e colher depoimentos das crianças a partir das per untas “O que dança para você?” e
“Do que você mais ostou de fazer nas aulas de dança?”, para editar um vídeo por classe e
copiar no pen drive de cada aluno. O material era enviado para as famílias junto com o
portfólio no final do semestre.
Solicitava aos pais que assistissem junto com seus filhos ao material da dança a fim de
compartilharem impressões, as de quem viveu os processos de dentro e as de quem assistia
164
como público. Apesar de me colocar à disposição para esclarecer dúvidas que poderiam surgir
acerca da criança, sua expressão espontânea diria melhor sobre seus processos pessoais. Após
o envio do material da dança em pen drive, era pedido para que os pais de cada criança
escrevessem um pequeno depoimento sobre as impressões do material. A maioria das famílias
davam retornos positivos, mas os negativos eram fundamentais para ajudar a balizar ações
para o próximo período letivo, conforme ocorrido em 2015, refletindo em mudanças de rota
na sequência didática de 2016.
Dentre as várias devolutivas positivas, elenco a que falava sobre ter testemunhado “o
aprendizado efetivo vindo de um corpo ativo”, mencionando que “é o gesto intencional que
traz autoria e autonomia”, reconhecendo a relação “de dentro para fora na construção do
movimento” expresso pelas crianças. Entre as devolutivas negativas, uma falava de um aluno
que “não se sentia à vontade nas aulas de dança”, e trazia questionamentos para minha
avaliação, por não reconhecer a dança como um saber acadêmico e por ainda imperar um
certo preconceito relacionado ao incentivo de meninos fazerem dança.
Como apresentar os conteúdos da dança de forma que eles possam se comunicar com
conteúdos de outras disciplinas? O que mudar para acolher o grupo como um todo,
respeitando as individualidades?
Tais questionamentos trazem à tona uma realidade de toda sala de aula: a dificuldade
de lidar com grupos heterogêneos. Diante de tais devolutivas, foram desenvolvidas estratégias
para abordar as situações que demandam uma atenção pontual, levando em conta a relação do
aluno com ele mesmo, com o grupo, com a professora e com os conteúdos de aula.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dança para crianças na educação foi observada pela ótica da brincadeira, com foco
no ritmo e na imaginação em uma relação de interpenetração (ORFF, 1978) levando em conta
suas naturezas artísticas, pedagógicas e educacionais. A contribuição acadêmica do trabalho
visa propagar a ideia do corpo-sujeito, aquele capaz de trazer a dança como a pronúncia do
mundo (VILELA, 2010), ou seja, o corpo engajado nas vivências, capaz de se arriscar a ser
atravessável e descobrir no imprevisível os caminhos para se relacionar integralmente com o
momento presente; um corpo-sujeito apto a inventar meios de não se enrijecer, não perder a
capacidade de flexibilizar pontos de vista, de escutar e de se colocar no lugar do outro.
Em hipótese, estava interessada inicialmente em investigar a dança na relação da
criança com o adulto, sendo ele um agente catalisador do acesso da criança a seus impulsos
primordiais, para criar danças na Festa das Cores, evento de passagem do 1º para o 2º ano do
Ensino Fundamental da Escola Viva, de São Paulo. Com isso, desejava abrir um campo de
exploração, validação e nomeação dos elementos da dança para pessoas que não
necessariamente fossem artistas da dança, mas que atuassem na formação de crianças.
Finalmente, estava interessada em investigar como ajudar adultos e crianças a transformarem
a conexão entre o conhecimento interior e o mundo exterior como fonte de pesquisa para as
descobertas das singularidades, do universo pessoal de cada um. Com a pandemia, o foco
migrou para a relação artístico-pedagógica que levou ao processo criativo de uma sequência
didática realizada em 2016.
As problemáticas no sistema educacional brasileiro podem ser de diversas naturezas:
organizacional, estrutural, política, pedagógica, entre outras. Ao abordar a temática da dança
para crianças no ensino formal com proposição de incentivo da autonomia do professor de
educar para a liberdade, os problemas a serem enfrentados podem ser diversos, o que descarta
qualquer intenção de fornecer respostas prontas. Logo, ciente de não perseguir um conceito
universal para a dança, tampouco um princípio unificador para práticas com crianças, esta
pesquisa não se desenvolveu a partir de um único caminho.
A pesquisa ocorreu dentro de um quadro favorável, em situações privilegiadas que a
apoiaram, uma vez que foi possível desenvolvê-la a partir do trabalho artístico contínuo da
Balangandança Cia., a partir da formação com recursos financeiros pessoais em uma
abordagem artístico-pedagógica – a Orff-Schulwerk –, e a partir de aulas oferecidas em uma
escola particular que valoriza as linguagens artísticas – a Escola Viva. Ao buscar entender os
porquês da sequência didática apresentada na dissertação ter sido bem-sucedida e
166
compartilhar os princípios que a embasaram, o intuito foi o de propagar ideias sobre algumas
possibilidades de se abordar dança para crianças na educação.
Algumas dificuldades ocorreram para a coleta de dados do Capítulo 2, principalmente
sobre a presença da dança na formação da Orff-Schulwerk, bem como sobre os movimentos
atuais da Escola Viva. Há poucas publicações em português sobre a dança na Schulwerk e não
atuo mais como docente na Viva desde 2019. No entanto, os princípios fundamentais
elencados no estudo, a valorização do entendimento rítmico, a importância da brincadeira e a
presença imaginativa nos estados dançantes, seguem sendo vivenciados junto às
apresentações da Balangandança Cia., e isso pode representar uma coleta de dados em
constante andamento, passíveis de serem transpostos para cursos de formação de professores e
suas respectivas salas de aula.
Quando Manuel Sarmento reflete sobre o Imaginário e Culturas da Infância
(SARMENTO, 2002), ele nos lembra que a transposição imaginária do real faz parte do
universo humano, intergeracional e é radicalizado pelas crianças. Mas em que momento foi
dito que o adulto não pode imaginar? Pior ainda: por que a capacidade de radicalizar na
imaginação se dilui à medida que crescemos?
A falta de liberdade no pensamento e na imaginação parece ter correspondência com
barreiras que nos impomos228 social e corporalmente, por isso procuro atuar pela intervenção
política da percepção como resistência a tal tendência. Enquanto professora adulta que sou,
quando me sento no nível baixo, ando sobre os ísquios, rastejo e rolo no chão com as crianças,
demonstro minha intenção de encorajá-las a imitar e inventar o jeito delas para criar novas
possibilidades de se mover e de expressar seu imaginário. Realizo tais ações com
responsabilidade e controle, geralmente com propostas simples, dentro de um ritmo marcado.
Pontuo a questão do controle, pois, ao estimular em grupos de crianças na escola o impulso
físico e mental com limites muito flexíveis, correm-se riscos maiores de ocasionar acidentes.
Convido a minha criança interna despertada pelas memórias e ativadas pelas histórias
de meus gestos a mover brincando com a imaginação, assim, convido a imaginação dos
alunos a entrar na mesma sintonia Ao demonstrar “o meu jeito” de fazer o rolamento
narrando imagens poéticas ou sonorizando onomatopeias, o que estou ensinando pelo/com o
corpo é o acionamento do tato em toda a superfície corporal, é o entendimento de leis da
física – peso, gravidade, atrito e aceleração –, é uma forma de automassagem na coluna, nos
órgãos, além de ser um convite a mudar um ponto de vista pela experiência corporal: o chão
228
Em vez de uma autoimposição poderia ser refletido o quanto nos tornamos vítimas ou atuantes diante dos
sistemas normativos sociais.
167
passa de vilão sujo que traz doença e deve ser evitado para um amigo que acolhe, promove a
saúde e deve ser reverenciado. De forma prática, intenciono passar a mensagem: Se isso for
bom para vocês, vocês podem desfrutar do corpo todo no chão inclusive quando forem
adultos.
As crianças tendem a apreender sobre si e o mundo mais pela sinergia do que pelas
informações captadas pelos sentidos de forma independente. Assim, pelo movimento,
cantarolando as ações (informação sonora, visual e cinética), a possibilidade de eles criarem
suas próprias conexões com a matéria será maior do que se ouvissem a leitura de um
enunciado de um livro didático ou assistissem a um tutorial em vídeo. O contágio cinestésico
pode promover um “espelhamento que produza conhecimento” (MOURA, 2007, p. 68).
Poucas são as crianças que não ostam de viver e “a dança nunca esteve dissociada da vida”
(MOURA, 2007, p. 73).
Os elementos que sintetizam o ensino de dança na escola investigados na pesquisa
dizem respeito a se relacionar com as diferenças, a saber olhar para o outro em sua
individualidade, dentro de sistemas coletivos. Cada público é único, assim como são únicos os
olhares de cada pessoa da plateia, de cada professor que faz parte do quadro docente de uma
instituição de ensino, de cada aluno dentro do grupo de uma classe na escola. Poder-se-ia
pensar ainda que cada um é único em suas múltiplas expressões, a se perder de vista: em sua
capacidade de imaginar histórias e transformar o corpo em figuras, em seres reais ou fictícios;
em sua forma de mover o temperamento das cores, de se transmutar em elementos da natureza
e poder escorrer, evaporar, incendiar e enrijecer-se. Tudo isso recheado de muita intenção no
espírito da brincadeira para gerar saberes com sabores.
O ritual foi uma conduta importante como procedimento de entradas e “che anças”
presentes nas práticas junto à Balangandança Cia., na Festa das Cores no Infantil e nas aulas
no Fundamental. Na formação da Orff-Schulwerk inúmeros encontros pareciam formar a
egrégora por rituais pelo canto e pela brincadeira. Ao adentrar os espaços respeitando cada
lugar, fazia o ritual de afinação da presença, semelhante ao que um músico faz ao afinar seu
instrumento antes de tocar em uma orquestra. Buscava cultivar a dança e os encontros como
elementos do rito da vida. Tudo que procurava ensinar era pelo corpo: pela oralidade, por
músicas, por palavras-chaves, pelo movimento, pelo olhar, pelo toque.
Os ensinamentos da abordagem Orff-Schulwerk recebidos através de Christa Coogan
(2016a, 2016b, 2016c, 2018) foram importantes para me ajudar a organizar conteúdos e
elaborar estruturas pedagógicas para o ensino de dança contemporânea para crianças, segundo
as práticas de pesquisa artística da Balangandança Cia. (LENGOS, 2007, 2008), oferecendo
168
questionamentos que balizaram meios de transpor a experiência de mais de duas décadas entre
estúdios de ensaio e trabalhos de palco para as salas de aula e o trabalho da dança na escola.
Tais questionamentos levam em consideração tanto o ofício do dançarino quanto o do
professor, razão pela qual sua escolha foi importante para o recorte desta dissertação.
Nas aulas de corpo na Orff-Schulwerk, a proposta estava em promover entre os
participantes estímulos para explorar e pesquisar movimentos, e, a seguir, compor e brincar
com peças musicais. Uma vez que o ambiente instituído nos encontros era lúdico e
colaborativo, utilizei algumas estruturas que aprendi para ensinar dança na escola. Nesse
processo foram as corporeidades em seus agenciamentos e congregadas à uma ação em um
encontro coletivo que deram sentido à sequência didática (PRADO, 2021).
Alguns dos questionamentos que me inspiraram para criar, junto com os demais
professores e alunos do 3º ano, a sequência didática O Ciclo da Água no Corpo foram: Como
a linguagem imaginativa e metafórica pode desencadear impulsos criativos? Como os
elementos do movimento ou como a linguagem cinestésica podem ser aprendidos? Como a
expressividade pode se manifestar no corpo? Como ideias poéticas e musicais de dança
podem ser estimuladas nos alunos e integradas em um processo coreográfico? Como nossos
hábitos de percepção podem ser desafiados e expandidos através dos encontros com as
crianças (COOGAN, 2016a, 2016b, 2016c, 2018)? As perguntas mencionadas no Capítulo 3
foram derivadas dessa fonte, acrescidas pelo interesse na interdisciplinaridade com outras
áreas do saber, como Ciências, por exemplo.
Após refletir sobre as danças criadas pelas crianças nos processos coreográficos da
escola, foi possível notar que os elementos trazidos em seus corpos tanto poderiam estar em
seu cotidiano, como poderiam também ter sido concebidos como experiência estética na ação
conjunta com colegas de classe, com o espaço da aula, com os adultos, entre outras relações
(SILVA; PRADO, 2020). Estabelecer um tipo de ritmo entre agir e pensar – em que a
brincadeira se transforma em movimento que gera imagem, e isso faz imaginar uma outra
brincadeira, que gera novos movimentos e novas imagens, em ciclos que se retroalimentam –
pode conferir relações inusitadas na imaginação da criança. Ao brincar com o movimento, a
criança pode enviar mensagens abertas ou secretas, em códigos padronizados ou indecifráveis,
mas repletas de significados para ela: mensagens de resistência, de raiva, de amor, de
frustração, de tristeza, entre outras.
Ao instaurar nas aulas de dança um ambiente de cooperação e de segurança, no qual a
voz pode se movimentar e silenciar tanto quanto o corpo, no qual se estabelece que
movimentos “feios” ou “errados” são apenas aqueles que podem machucar a si ou ao
169
próximo, a construção do repertório de movimentos se faz a partir do que foi vivenciado pelas
crianças, e não apenas do apresentado previamente pelo professor. Os movimentos para
compor tal repertório podem surgir na exploração individual ou a partir de brincadeiras com o
grupo; a partir dos elementos da dança segundo os fatores de movimento de Laban; a partir do
estudo das formas trabalhadas como posições estáticas, até que os alunos construam pequenas
sequências de movimentos e formem frases de dança como um dos dispositivos de
manipulação coreográfica.
Todo processo artístico, de início, adentra-se em uma trilha de descoberta, surpresa,
incerteza e prazer; um caminho a ser criado, com balizas, mas sem passos definidos. Assim,
as considerações a serem propagadas, os desafios a serem enfrentados, e/ou os
questionamentos pertinentes ao trabalho artístico de dança na educação para e com as crianças
vão no sentido de levantar as próprias questões e descobrir meios de lidar com elas.
Se somos capazes de fazer a transposição do imaginário para o real, imaginemo-nos arte para
cuidar dessa linguagem como devemos cuidar de nós mesmos. Sejamos arte, sejamos prenhes
de significado, sejamos igualmente a alma cujas cores são o corpo, ou corpo cujas cores são a
alma (DEWEY, 2010).
No exercício desta escrita busquei seguir aprendendo o ofício de ser professora
(LARROSA, 2018). O vento e a maré por vezes apresentaram-se desfavoráveis, mas, ao tirar
este texto do computador e colocá-lo na vida, espero semear leveza para acessar o estado
brincante e improvisacional nas atividades docentes, bem como fecundar novas escritas,
novas histórias de movimentos e pensamentos. Espero, ainda, encorajar outros artistas da
dança e profissionais da educação a continuarem criando seus percursos, cultivando a
intimidade com seus ritmos próprios para brincar com a imaginação e dançar a vida.
170
171
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181
APÊNDICE
182
183
ANEXOS
ANEXO A – Balangandança Cia.
Figura 53 - Brincos. Palco e plateia. Virada Social. Brasilândia, São Paulo - SP.
Figura 56 - O tal. Praça Boaçava, São Paulo-SP. À direita, toque na coluna. Aeroporto de Belo Horizonte, 2006.
Figura 57 - O tal. Varal e chuva. Estúdio Nova Dança. São Paulo-SP, 2006.
ANEXO B – Orff-Schulwerk
Os tutoriais de dança da série Tanzen@home de Dança Elementar são apresentados, na
maioria, por Krystyna Obermaier, contam com a participação de Tim Servos, Derya Katan,
Friederike Gunther, Kati Burchart, e estão listados aqui:
1. Stop Shake Lead (Chacoalhar, Parar e Liderar)
https://youtu.be/9uIwibsxBAY
2. As mãos entendem
https://youtu.be/8lTttgsw6f4
3. Pegadas Parte 1 (sensibilização dos pés)
https://youtu.be/U9PFLMxTXDg
4. Equilibre o corpo e a mente
https://youtu.be/w3Rb3_pdjVo
5. Pegadas Parte 2 (Desenho dos apoios dos pés)
https://youtu.be/hWVqEoN2NGQ
6. Roll up Roll down: lateral, acima, paralelo, contração, enrolar e desenrolar
https://youtu.be/pNfyvaf4rJw
7. Rotação de esticamento de patch (tapear, torcer e alongar)
https://youtu.be/eGw3M_U9O5I
8. A cintura escapular móvel
https://youtu.be/wLtQlWJQBIo
9. Do isolamento ao eixo
https://youtu.be/jxmc9zza7Yg
10. A estrela do elemento de chão
https://youtu.be/oi6unZJ_M_M
186
Figura 59 - Cartaz de divulgação e foto na conclusão do X Curso Internacional Orff-Schulwerk no Brasil, 2020.
Figura 60 - Oficina Novas narrativas para conhecidos movimentos. Ciclo do Grupo de Estudos Virtual Orff-
Schulwerk, 2021.
Figura 61 - Dança e música com quatro dançarinas núbias. Foto retirada do capítulo “Música Elementar” da
biografia de Carl Orff. Foi feita uma pesquisa de imagens que tornassem mais evidente a relação entre dança e
música sendo tocada no tambor, remetendo-se à frase “o tambor induz a dança” (ORFF, 978, p 7)
Arte e a BNCC
A Base Nacional Comum Curricular é um documento de caráter normativo que define o
conjunto progressivo de aprendizagem que todos os alunos devem desenvolver ao longo das
etapas e modalidades da educação básica. Os fundamentos pedagógicos da BNCC focam no
desenvolvimento de competências que orientam a construção curricular da maioria das
escolas brasileiras. A BNCC indica aquilo que os alunos devem saber/fazer para que por meio
de suas mobilizações sejam capazes de resolver demandas da vida cotidiana, do mundo do
trabalho e do exercício da cidadania, levando em consideração a formação de conhecimentos,
188
Entendendo a base
Quando você ouve o termo dança, qual a primeira ideia que lhe vem à mente? Se, dentre
outras, você visualizou algo como corpos magros, alongados, leves, capazes de girar na ponta
dos pés e saltar driblando a gravidade em luxuosos palcos italianos, está tudo certo. A maioria
das pessoas associa isso à dança. Desde a corte do Rei Luís XV até os dias de hoje, o termo
italiano balletto (“dancinha”), traduzido em francês para ballet, faz parte do inconsciente
coletivo, tornando senso comum associar o estilo do balé clássico com a arte da dança. Mas
esse é um pré-conceito que deve ser esclarecido. Para dançar, não necessariamente o corpo e a
mente devem seguir os padrões clássicos.
Jeitos de corpos e manifestações de dança ocorrem em todas as regiões habitáveis do planeta,
desde épocas remotas até o presente instante. As que se repetem por longos períodos tornam-
189
e analisar formas de expressão que não se alicerçam apenas nessa racionalidade é uma das
potencialidades do corpo e movimento na educação, é um dos motivos centrais da sua
condição de direito dos estudantes de todo o Brasil.
Que o estado dançante seja testemunhado constantemente e possa permear a vida dentro e
fora da escola!
Dança das réguas. Professores, No quintal, adultos conduzem as lanternas das crianças
coordenadores e pelo suporte de madeira (régua), em evoluções
convidados. determinadas e improviso.
Danças das classes: Uma Crianças, professoras No quintal, crianças, professoras e auxiliares
classe por vez. e auxiliares. apresentam a dança feita pelo grupo da própria classe.
Ciranda das cores: Crianças, professoras, Formação de uma roda por classe com crianças,
Dança final. auxiliares e professoras, auxiliares e convidados para dançar a
convidados. ciranda e o caracol.
Cantoria das classes: Crianças, professoras No tablado, crianças, professoras e auxiliares cantam a
Uma classe por vez. e auxiliares. música escolhida pelo grupo.
Discurso institucional. Diretora e Fala sobre a escola e o ano em questão. Leitura de uma
coordenadora do carta para os alunos.
Verde.
Cantoria dos pais. Pais. Das arquibancadas os pais cantam para os filhos nas
esteiras.
Quadro com roteiro da parte cênica da Festa das Cores elaborado pela autora.
191
Reunião de pais
Figura 63 - Devolutiva dos pais sobre vídeo com material das aulas de dança. 2015.
Figura 64 - Devolutiva dos pais sobre vídeo com material das aulas de dança. 2015.
Figura 65 - Devolutiva dos pais sobre vídeo com material das aulas de dança. 2015.
https://youtu.be/lf7fKuACgag