Estudos Culturais em Educação - Livro

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do ^ biologia

• eratura Wácinema

marísa vorraber

organizadora
Os estudos apresentados neste
livro compõem um conjunto de análises
culturais, desenvolvidas no Programa
de Pós-Graduação em Educação da
UFRGS, voltados para o exame da pro-
dutividade dos artefatos da cultura na
constituição de identidades e subjeti-
i vidades. Eles se inscrevem no pano-
k rama de uma perspectiva de pes-
A quisa que se constituiu na segunda
metade do século XX, denomina-
9^ da Estudos Culturais. A marca
^^9 peculiar deste enfoque que
nos tem ajudado a pensar as
questões da educação e da
wÊm pedagogia neste limiar de
► milênio é a ceníralidade da
cultura, tomada não em perspectiva
estética ou humanista, mas política. Isto
quer dizer que não se trata de abordar a
cultura no sentido estrito de acumula-
ção de saberes ou de processo estético,
intelectual e espiritual, mas de compre-
endê-la, como nos ensina o jamaicano
Síuart Hall, a partir da enorme expan-
são de tudo que hoje está associado a
ela, e do seu papel constitutivo em todos
líSTU
feíQ/C.
2. *cÁ ,

culturais
em educação

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UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO
GRANDE DO SUL

Reitora
Wrana Maria Pani/zi
Vice-Reitor
José Carlos Ferraz Hennemann
Pró-Reitor de Extensão
Fernando Setembrino
Cruz Meirelles
Vice-Pró-Reitora de Extensão
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EDITORA DA UFRGS
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CONSELHO EDITORIAL
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Aron Taitelbaun
Carlos Alberto Steil
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Jusamara Vieira Souza, presidente
V

Editora da UFRGS • Av. Paulo Gama, 110, 2" andar - Porto Alegre, RS - 90040-060 - Fone/fax (51) 3316-4090
- editora@ufrgs.br - www.editora.ufrgs.br • Direção: Jusamara Vieira Souza • Editoração: Paulo Antonio da
Silveira (coordenador), Carla M. Luzzatto, Maria da Glória Almeida dos Santos e Rosângela de Mello; suporte
editorial; Carlos Batanoli Hallberg (bolsista), Fernando Piccinini Schmitt, Gabriela Carvalho Pinto (bolsista) e
Luciane Santos de Souza (bolsista) • Administração: Najára Machado (coordenadora), José Pereira Brito Filho,
Laerte Balbinot Dias e Maria Beatriz Araújo Brito Galarraga; suporte administrativo; Ana Lúcia Wagner, Jean
Paulo da Silva Carvalho, João Batista de Souza Dias e Marcelo Wagner Scheleck • Apoio: Idalina Louzada e
Laércio Fontoura.
estudos

culturais

em educação

mídia V arquitetura

brinquedo ^ biologia

'■•fratura ^ cinema...

alfredo veiga-neto
crístíanne famer rocha
elí henn fabris
luís Henrique dos santos
maria isabel bujes
marisa vorraber costa (org.)
marise basso amaral
norma regina marzola
rosa hessel silveira

segunda edição

4
UFRGS
EDITORA
© dos autores
Ia edição: 2000

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Carla M. Luzzatto


Revisão: Mônica Ballejo Canto
Editoração eletrônica; Jair Otharan Nunes

Estudos culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia,


literatura, cinema... / organizado por Marisa Vorraber Costa; Alfredo
Veiga-Neto... [et al.]. - 2.ed. - Porto Alegre; Editora da UFRGS, 2004.
Inclui referências.

1. Educação - Pedagogia. 2. Educação - Estudos culturais - Análi-


ses. 3. Educação - Magistério - Política cultural. 4. Estudos culturais -
Mídia - Educação. 5. Estudos culturais - Arquitetura. 6. Estudos cultu-
rais - Literatura. 7. Estudos culturais - Educação infantil - Brinquedo.
8. Estudos culturais - Biologia. 9. Estudos culturais - Cinema. I. Gostai
Marisa Vorraber. II. Veiga-Neto, Alfredo.

CDU 37.012(081.1):316.774
37.012(081.J):372
37.012(081.1):573
37.012(081.1):72
37.012(081.1):791.43
37.012(081.1):82

CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


(Ana Lúcia Wagner - CRB 10/1396)

ISBN 85-7025-748-1

uk j&moj
Ctata,: 'Hhal ooOQ?
Sumário

Apresentação 9

Parte 1 - Sobre os estudos culturais


1.Estudos Culturais - para além das fronteiras disciplinares 13
Ma risa Vorraber Costa
2.Michel Foueault e os Estudos Culturais 37
Alfredo Veiga-Neto

Parte 2 - Estudos sobre mídia e educação


3.Mídia, magistério e política cultural 73
Marisa Vorraber Costa
4.Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola 93
Norma Marzola
5.0 espaço escolar em revista 117
Cristianne Famer Rocha
6.Natureza e representação na pedagogia da publicidade 143
Marise Basso Amaral

Parte 3 - Estudos sobre literatura, brinquedo, biologia e cinema


7.Contando histórias sobre surdos(as) e surdez 175
Rosa Hessel Silveira
8. Criança e brinquedo; feitos um para o outro? 205 -
Maria Isabel Bujes
9. A Biologia tem uma história que não é natural 229
Luis Henrique dos Santos
10.Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante 257
Eli Henn Fabris

Autoras e autores 287

ÇESEUVATÉCNIO*
da o-
iKi^Ír$f^

u ri-
f.
Todos nós queremos o melhor para nossos filhos. Mas o que
é a educação senão o processo através do qual a sociedade
incute normas, padrões e valores — em resumo, a "cultura"
— na geração seguinte na esperança e expectativa de que, desta
forma, guiará, canalizará, influenciará e moldará as ações e
as crenças das gerações futuras conforme os valores e normas
de seus pais e do sistema de valores predominante da socie-
dade? O que é isto senão regulação — governo da moral feito
pela cultura? O que é a tentativa de construir uma "cultura
empresarial" no coração das organizações senão o empenho
de influir, moldar, governar e regular — mesmo que indireta-
mente, talvez à distância — a forma como os empregados se
sentem e agem na organização? Porque os moralistas tradici-
onais se importariam com o que as pessoas vêem na televisão,
a menos que, implicitamente, acreditassem que o que as pes-
soas assistem na TV, que as representações que elas vêem, e a
forma como o mundo é representado para elas — em resumo,
a "cultura da televisão" — influencie, modele, guie e regule
normativamente, por exemplo, a conduta sexual dessas pes-
soas? [...] Não estamos necessariamente falando aqui em do-
brar alguém por coerção, influência indevida, propaganda
grosseira, informação distorcida ou mesmo por motivos dú-
bios. Estamos falando cm arranjos de poder discursivo ou sim-
bólico. Toda a nossa conduta e todas as nossas ações são mol-
dadas, influenciadas e, desta forma, reguladas normativamente
pelos significados culturais.

(Hall, Stuart. Educação & Realidade, v.22, n.2, jul./dez., p.40-


41, 1997.)
Apresentação

Com a epígrafe da página anterior, pretendo introduzir as leitoras e


os leitores deste livro à perspectiva teórica de análise e reflexão que ins-
pira os trabalhos aqui apresentados.
Esta coletânea reúne um conjunto de estudos, realizados nos últi-
mos três anos, tendo como objetivo comum o de mostrar como operam
alguns dispositivos e práticas culturais para constituir nossas concepções
sobre o mundo e sobre as coisas e coordenar as formas como agimos.
Entendemos que isto configura uma política cultural com amplas e im-
portantes implicações para a educação neste final de milênio.
Os Estudos Culturais em Educação constituem um campo muito
novo de pesquisas, e este livro, certamente, se inclui entre as primeiras
publicações contendo estudos desenvolvidos por pesquisadores e pesqui-
sadoras de nosso país.
Todas as análises foram realizadas a partir de 1996, na linha de
pesquisa Estudos Culturais em Educação, no Programa de Pós-Gradu-
ação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cin-
co capítulos do livro (1, 3, 4, 7 e 10) se referem a trabalhos desenvol-
vidos no Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade —
NECCSO por bolsistas do CNPq e CAPES. Além destes, mais duas
autoras e um autor (capítulos 5, 6 e 9) contaram com o apoio destas
mesmas agências.
Há duas personagens importantes que, entre tantas outras ativida-
des de um núcleo de pesquisa, se incumbiram daquelas tarefas minucio-
sas de editoração, imprescindíveis para a organização dos originais de
um livro. Trata-se de Márcia Castiglio da Silveira e de Janaína Souza
Neuls, bolsistas de iniciação científica do CNPq, que começam cedo a
trilhar os territórios da pesquisa.
Em nome dos participantes desta obra coletiva, agradeço aos pro-
fessores, professoras e estudantes da pós-graduação pelas valiosas con-
tribuições oferecidas ao debaterem conosco em aulas, seminários e ban-

Apresentação • 9
cas as posições e argumentos que aqui apresentamos e defendemos.
Agradeço também ao CNPq e à CAPES pelo apoio concedido, e ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS por possibilitar
um espaço amplo e plural de discussões sobre educação.

Mansa Vorraber Costa


Organizadora
Parte 1

Sobre os estudos culturais


Capítulo 1

Estudos Culturais — para além

das fronteiras disciplinares

Marisa Vorraber Costa

Saberes nômades, que migram de uma disciplina para outra, de uma


cultura para outra, que percorrem países, grupos, práticas, tradições, e
que não são capturados pelas cartografias consagradas que têm ordena-
do a produção do pensamento humano — eis uma descrição que parece
provisoriamente adequada para me referir ao ethos contingente do que
tem sido denominado de Estudos Culturais, ou Cultural Studies, em sua
versão contemporânea.
Um passeio pelos relatos sobre seu aparecimento, no quadro dos
saberes que se constituíram nesta segunda metade do século XX, nos
permite registrar sua emergência em estudos inspirados num sentimento
que rompe com o fluxo — usualmente tomado como óbvio — das assim
chamadas "alta cultura'1 para a "baixa cultura". Tal como se pode obser-
var hoje, especialmente naquelas manifestações alinhadas entre as aná-
lises pós-modemas e pós-estruturalistas, os Estudos Culturais inscrevem-
se na trilha de deslocamentos que obliteram qualquer direção investiga-
tiva apoiada na admissão de um lugar privilegiado que ilumine, inspire
ou sirva de parâmetro para o conhecimento. Sua realização mais impor-
tante provavelmente seja a de celebrar o fim de um elitismo edificado
sobre distinções arbitrárias de cultura. Nesse sentido, os Estudos Cultu-
rais, ao operarem uma reversão nesta tendência naturalizada de admitir
um único ponto central de referência para os estudos da cultura, confi-
guram um movimento das margens contra o centro. Sua principal virtude

Lstudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 13


talvez seja a de começar a admitir que a inspiração possa advir de qual-
quer lugar, contribuindo para desfazer os binarismos tão fortemente ade-
ridos às epistemologias tradicionais.
Assim, é preciso admitir que está em atividade, neste final de século,
um novo campo de estudos que se apresenta como politicamente muito atra-
ente e promissor, e que se esboça conectado às variadas concepções e práti-
cas que vêm marcando os contextos destes tempos. As novas formações cul-
turais e políticas supranacionais, a reorganização das fronteiras nacionais,
as novas formas de organização da sociedade civil e suas intersecções com
o Estado, as novas configurações de classes sociais, entre outras composi-
ções contemporâneas, constituem o que poderíamos chamar de contexto
próprio para o surgimento de uma pós-disciplina que tem contribuído para
nos apontar a arbitrariedade de inúmeras demarcações historicamente con-
sagradas. Entre elas, podemos mencionar as fronteiras disciplinares e os
muros acadêmicos, certos conceitos teórico-filosóficos, além de outros fra-
cionamentos instituídos por categorias taxonômicas como raça, gênero, re-
ligião, etnia e também aqueles relacionados às disposições físicas e intelec-
tuais das pessoas. Poderíamos dizer que o que aproxima as diversas mani-
festações dentro dos Estudos Culturais é uma guerra contra o cânone.
Talvez a tentativa de descrição dos Estudos Culturais, esboçada por
Colin Sparks, em ensaio publicado originalmente em 1977, seja uma apro-
ximação inicial e adequada para introduzir uma abordagem sobre este tema;

E extremamente difícil definir os "Estudos Culturais" com qualquer grau


de exatidão. Não é possível fazer demarcações e dizer que esta ou aque-
la seja sua esfera de atuação. Tampouco é possível indicar uma teoria ou
metodologia unificada que seja característica deles ou para eles. Um ver-
dadeiro amontoado de idéias, métodos e temáticas da crítica literária, da
sociologia, da história, dos estudos da mídia, etc. são reunidos sob o rótu-
lo conveniente de estudos culturais. (1997, p. 14)1

1 As traduções, desta e de outras citações de autores e de autoras de língua inglesa, são


minhas.

14 • Estudos Culturais em educação


Origem

Inúmeros escritos abordando esta identidade cambiante e fluida dos


Estudos Culturais têm aparecido, nos últimos anos, sendo particularmente
numerosa e fecunda a produção em língua inglesa. Fato este que me pa-
rece compreensível face à "origem" britânica dos Cultural Studies e aos
seus focos de repercussão em países ultramarinos como Estados Unidos,
Canadá e Austrália.
Segundo relatos de inúmeros autores e autoras,2 as obras que inau-
guram esta nova tendência nos estudos sobre a cultura começam por ques-
tionar, nos anos 50, as concepções ainda vigentes inspiradas na tradição
amoldiana3 de cultura, amplamente conhecida como "a tradição da cultu-
ra e da civilização", corrente que dominava por mais de um século as aná-
lises culturais do Ocidente, posteriormente retomada pelos levisistas.4
O ponto mais contestado, dentre tantos outros, na análise cultu-
ral de Mathew Amold —'cuja agenda manteve-se em debate desde 1860
até a metade deste século — é a noção de cultura como um corpo de
conhecimento identificado, em palavras suas, como "o melhor que se
tenha pensado e dito no mundo" (Amold, citado por Storey, 1997, p.23)
e que estaria em oposição a tudo aquilo entendido como os "progres-
sos da civilização". De acordo com Forquin (1993), a concepção ar-
noldiana dá continuidade aos postulados de Coleridge5 para quem a res-
ponsabilidade social de preservar e desenvolver a cultura como dispo-
sição espiritual não compete à aristocracia fundiária, nem à burguesia
industrial e comercial e sim, a uma classe particular denominada de
classe dos clérigos, uma "espécie de igreja nacional constituída de to-

2
Cary Nelson, Colin Sparks, Graeme Turner, len Ang, John Fiske, John Frow, Lawrence
Grossberg, Meaghan Morris, Stuart Hall e Tony Bennet podem ser mencionados entre as
pesquisadoras e os pesquisadores da Austrália, Grã-Bretanha e Estados Unidos que têm
se dedicado à tarefa de descrever os projetos dos Estudos Culturais.
3
Expressão originada do nome de seu principal teórico, Mathew Arnold, cuja obra cen-
tral é Culíure and Anarchy.
4
Uesignação dos seguidores de Frank Raymond Leavis que adotam, em meados do sé-
culo XX, as políticas culturais de Mathew Arnold.
5
Samuel Taylor Coleridge foi poeta e crítico literário inglês. Viveu no período 1772-
1834 e foi um marco na crítica moderna, buscando sua inspiração na filosofia alemã que
interpretou e difundiu na Inglaterra. Dizem que de um só capítulo de sua Biografia lite-
rária (cap. XIV) derivou a maioria das especulações da nova crítica.

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 15


dos os homens instruídos nas ciências e nas 'artes liberais', devotada à
conservação da memória coletiva e à difusão do saber no seio da co-
munidade" (p.30). Com tal inspiração, Amold inscreve sua análise da
cultura no território polêmico da hierarquia e da distinção, sendo suas
manifestações sobre a cultura popular sempre tendentes a posicioná-la
como a outra face de uma suposta "verdadeira" cultura. Num quadro
teórico em que a cultura adjetivada como popular era sinônimo de de-
sordem social e política, ao passo que cultura era o mesmo que harmo-
nia e beleza — algo a ser cultivado para enfrentar a barbárie —, a
melhor expressão da sociedade seria conquistada através da subordi-
nação e da reverência cultural. As influências harmoniosas da suposta
verdadeira cultura — "o melhor que se tenha pensado e dito" — teri-
am o poder de suprimir a anarquia da classe trabalhadora e de coorde-
nar as massas parcamente instruídas (Storey, 1997). Por mais parado-
xal que possa parecer, segundo nos chama a atenção Storey, foi Ma-
thew Arnold quem inaugurou uma forma particular de situar a cultura
popular nos debates sobre a cultura, embora tivesse muito pouco a di-
zer, diretamente, sobre esse assunto.
Esta minha despretensiosa e muito incompleta menção à con-
cepção arnoldiana de cultura tem o único objetivo de fornecer uma
breve noção da teoria sobre a qual se forjou uma das mais influentes
análises culturais do século XX, desenvolvida pelo crítico literário
Frank Raymond Leavis6 e seus seguidores. O projeto levisista sur-
giu para fazer frente ao suposto "declínio cultural", em relação ao
qual, muitas décadas antes, Arnold havia feito tantas advertências,
prognósticos e prescrições. O século XX estaria testemunhando uma
cultura da padronização e do nivelamento por baixo, e era preciso lutar
contra isto. A obra de Leavis abarca um período de quarenta anos e
seu argumento central é a pressuposição de que a cultura sempre foi
sustentada por uma minoria que manteve vivos "os padrões da mais
refinada existência". O que estaria declinando no século XX, sob as
ameaças da civilização e da cultura de massa, seria o reconhecimen-

6
Em 1930, Frank Raymond Leavis publica o cnsaxoMass civilization and mmonty cul-
ture, cujo título já nos sugere sua remissão à concepção que, um século antes, nos apon-
tava para uma suposta oposição entre civilização e cultura.

16 • Estudos Culturais cm educação


to dessa minoria como uma autoridade cultural incontestada. A falên-
cia desta autoridade, segundo os autores levisistas, visível a partir dos
inúmeros movimentos de democratização, estaria afastando as pes-
soas dos cânones da literatura e das artes, transformando o mundo
inteiro em massas de indivíduos incultos ou semicultos. Um dos se-
guidores do levisismo chega a se referir a um texto de Edmund Gos-
se que fala da "revolta da ralé contra os mestres de nossa literatura".7
Convém destacar, aqui, que os debates culturais britânicos, em
andamento desde os começos do século passado, entre eles os que abor-
davam os fatores culturais da escolarização, estavam ligados à tradição
de pensamento dos chamados "intelectuais literários" que se ocupavam
da realização de uma reflexão sobre "a cultura" e de uma crítica à civili-
zação burguesa e industrial. A noção de cultura como um certo estado
cultivado do espírito aparecia em oposição à de civilização. Em um
trabalho de Coleridge, publicado em 1830, a civilização se encontra do
lado da exterioridade, das coisas, ao passo que a cultura, como exigên-
cia humana de perfeição, tem sua origem na intimidade da consciência
(Forquin, 1993). Segundo Forquin (1993), em um de seus trabalhos Ar-
nold argumentara que nenhuma classe social estaria apta para encarnar
c defender, no seio da sociedade democrática moderna, esta exigência
de perfeição interna. A aristocracia estaria imóvel e refratária ao novo;
as classes médias industriais estariam inteiramente tomadas pela civili-
zação exterior" do maquinismo e da eficácia econômica; as massas po-
pulares estariam fascinadas por esta mesma civilização, ambicionando
ascenderem às classes médias ou condenadas à cegueira e à violência.
Diante desses "temíveis avanços da cultura de massa" e da "hosti-
idade à cultura", que significava para os levisistas o risco do "irremedi-
ável caos , publicam um manifesto propondo introduzir nos currículos
escolares um treinamento de resistência à cultura de massa (Storey, 1997).
ara Lcavis e seus seguidores, as mudanças decorrentes da Revolução
Industrial haviam fragmentado em duas a vigorosa cultura comum inglesa
dos séculos XVII e XVIII. De um lado estava a cultura das minorias —
o que dc melhor se havia pensado e dito" — e de outro, em posição an-
tagônica, estava a cultura das massas, uma cultura comercial consumida

7
Este texto pode ser localizado em Leavis, 1978, p 190.

hstudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 17


pela maioria "inculta". Parte do projeto de Leavis era criar postos avan-
çados de cultura nas universidades e escolas, sob a responsabilidade de
um grupo seleto de intelectuais que atuariam como "missionários" em
defesa da tradição literária. Imaginavam que resguardando o contato com
o universo de harmonia rural presente na "boa literatura" inglesa, ainda
seria possível reverter a devastação da cultura e da tradição, produzida
por um suburbanismo quase universal. Tratava-se de uma curiosa con-
cepção segundo a qual a ordem — presente na "boa literatura" — seria
acionada para combater a desordem — típica da cultura das massas.
Segundo Storey (1997), embora a versão levisista da tradição da
"cultura e da civilização" tenha aberto um espaço para o estudo da cul-
tura popular, este não avançou, obstruído pela pressuposição funcional
de que a cultura popular é pouco mais do que uma amostra do declínio
cultural. As análises amoldianas e levisistas se desenvolviam desde as
"alturas" da cultura erudita em direção a uma cultura popular concebi-
da, inicialmente, como a cultura da classe operária e, gradativamente,
passando a ser representada como domínios do consumo frívolo, do mau
gosto e da superficialidade. Era o discurso do "culto" sobre aqueles su-
postamente "privados de cultura".
As obras consideradas pioneiras nos Estudos Culturais contempo-
râneos foram produzidas por autores provenientes de famílias de classe
operária, e que estiveram entre os primeiros estudantes desse segmento,
cujo acesso às instituições de elite da educação universitária britânica
foi possibilitado pelo paulatino processo de democratização. Surgidos
no período pós-guerra, esses estudos falavam de um lugar diferente da-
quele ocupado pelos autores da tradição levisista, ou seja, analisavam a
cultura popular como integrantes dela e não como quem a olha a distân-
cia, cautelosamente, sem qualquer ponto de contato.
Os trabalhos que inauguram os Estudos Culturais britânicos são dois
livros publicados no final da década de 1950 — The uses ofliteracy, de
Richard Hoggart, que apareceu em 1957, e Culture and society, de Ray-
mond Williams, de 1958 . De acordo com a análise de Stuart Hall (1997),
foram estas duas obras que ajudaram a incendiar os ânimos nos estudos
sobre a cultura, embora, pelo menos parcialmente, tenham sido trabalhos
de recuperação de teorias predecessoras. Elas expressavam, sobretudo,
as tensões de estudantes de origem popular que, ao completar sua for-
mação universitária, debatiam-se em uma ambivalente identidade cultu-

18 • Estudos Culturais em educação


ral constituída por dois mundos antagônicos. Muitos autores sugerem que
esta ambi valência seja a justificativa principal da consistência das refle-
xões contidas nas obras de Hoggart e Williams, bem como da repercus-
são posterior que elas tiveram.
The uses oj literacy compõe-se de duas partes: a primeira descreve
a cultura da classe trabalhadora dos anos 30, correspondendo à juventu-
de de Hoggart; a segunda examina a cultura da classe trabalhadora tra-
dicional ameaçada pelas novas formas de entretenimento das massas na
década de 1950. De certa forma, segundo nos conta Storey (1997), Hog-
gart é traído por uma certa nostalgia, o que ele atribui à força das lem-
branças de sua infância e não a uma simpatia pelo leavisismo. A cultura
popular dos anos 50 teria perdido a sua riqueza, atacada pelo poder ma-
nipulativo da cultura de massa que estaria deixando tudo pobre e insípi-
do. Parece que o que ele pretendia fazer era uma distinção entre "uma
cultura do povo'1 e "aquilo que é designado para o povo". Só que essa
cultura do povo que ele acolhe está matizada, na obra, pelas recordações
da sua infância, e a que ele critica — a cultura popular dos anos 50 — é
apresentada com base nas evidências do material obtido como pesquisa-
dor universitário. As duas compressões seriam decorrentes de tratamen-
tos diferenciados dados à cultura popular. Apesar da crítica que faz, Ho-
ggart não se desespera totalmente com o avanço da cultura de massa. Ele
diversas vezes enfatiza sua confiança na capacidade da classe trabalha-
dora de resistir às manipulações da cultura de massa (Storey, 1997). Para
Hall (1980), o problema com o trabalho de Hoggart é a utilização da
metodologia literária levisista, que o faz oscilar entre a continuidade de
uma tradição e a tentativa prática de modificá-la.
Por sua vez, toda a obra de Raymond Williams se estrutura no sen-
tido de rejeitar uma noção singular e dominante de cultura.8 Contudo,

A contribuição de Williams ao redirecionamento das análises sobre a cultura e aos estu-


os culturais tem sido de singular importância. Storey (1997), ao referir-se a ele, diz o
•seguinte. So a extensão de sua obra já é formidável. Ele tem deixado contribuições sig-
nificativas para a compreensão da teoria cultural, da história cultural, da televisão, im-
prensa, rádio e propaganda, A bibliografia que Alan 0'Connor preparou da obra publi-
cada por Williams apresenta uma lista que já chega a trinta e nove páginas. Sua contri-
buição é ainda mais notável se considerarmos suas origens na classe trabalhadora galesa
(seu pai era sinaleiro nas estradas de ferro) e se também considerarmos que, como aca-
dêmico, foi professor titular de teatro na Universidade de Cambridge" (p.54).

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciphnares • 19


da mesma forma que outros trabalhos similares deste período, Culture
and society está longe de ter uma significação social e política unívoca.
Como diz Forquin (1993), "a desconfiança dos 'intelectuais literários'
em relação ao mundo industrial e à 'civilização mecânica' era portadora
de potencialidades contraditórias" (p.29). Culture and society, de 1958,
e The long revolutíon, que surgiu em 1961, constituem o despontar de
uma vasta e diversificada produção intelectual do autor, assinalada por
uma tensão permanente entre os resquícios do mundo operário do País
de Gales — suposta origem dos matizes "populistas" da filiação socia-
lista de Williams— e o contexto da "grande tradição", materializado no
mundo universitário de Cambridge e na "grande literatura inglesa".
Essas ambivalências, também presentes na obra de Hoggart, regis-
tram oscilações que nos sugerem, às vezes, como aponta Hall (1997), que
tais trabalhos sejam simples atualizações das preocupações anteriores,
referidas, agora, ao universo do pós-guerra. É o próprio Hall quem sali-
enta, contudo, que as conseqüências das interrupções que elas provoca-
ram foram mais importantes do que qualquer continuidade que possam
ter sugerido. Para Storey (1997), é esta mistura contraditória de voltar-
se para a tradição levisista e, ao mesmo tempo, seguir em frente com sua
opção pela cultura popular que fazem estes três livros serem designados
como textos da "ruptura" e exemplos de "levisismo de esquerda" (p.45).
Alguns autores consideram que, a este mesmo movimento junta-se, mais
tarde, o conhecido trabalho de Edward P. Thompson, A formação da clas-
se operária inglesa {The making of the english working class, 1963).
Thompson descreve seu trabalho como marxista e algumas categoriza-
ções o posicionam no campo da historiografia marxista inglesa. Contu-
do, para grande parte de estudiosos desta mudança nas análises sobre a
cultura,9 a obra de Thompson apresenta uma certa coerência teórica com
as anteriores, operando uma ruptura decisiva em relação a um evolucio-
nismo tecnológico, a um economicismo reducionista e a um determinis-
mo organizacional. Para Storey (1997),

cada um, a sua maneira, rompe com aspectos-chave da tradição que her-
dou: Hoggart e Williams rompem com o levisismo e Thompson rompe com

9
Menciono, entre eles, Colin Sparks, John Storey, Stuart Hall, Cary Nelson, Raymond
Williams.

20 • Estudos Culturais em educação


as formas mecanicistas e economicistas do marxismo. O que os une é uma
abordagem que insiste em que, analisando-se a cultura de uma socieda-
de — os tipos de texto e as práticas documentadas de uma cultura — é
possível reconstituir os padrões de comportamento e a constelação de
idéias compartilhadas por homens e mulheres que produzem e consomem
os textos culturais e as práticas dessa sociedade, (p.46)

Institucionalização

São esses trabalhos mencionados que dão origem, na década de


sessenta, na Grã-Bretanha, ao conjunto de pesquisas denominado Estu-
dos Culturais, cuja institucionalização ocorre, inicialmente, no Centro
de Estudos Culturais Contemporâneos (Centre for Contemporary Cul-
tural Studies) da Universidade de Birmingham — fundado em 1964 por
Hoggart e Williams10 — e, posteriormente, nos cursos e publicações de
várias fontes e lugares. Esta localização em um espaço acadêmico não é
admitida tranqüilamente, uma vez que boa parte das pesquisas que de-
ram origem às novas abordagens das questões da cultura foram gestadas
em uma movimentação teórica, na qual as relações entre a academia e a
cultura do povo eram, no mínimo, tensas e problemáticas.
Ao fazer este relato, corro o risco de sugerir uma linearidade nas
análises que desencadeiam o surgimento dos chamados Estudos Culturais.
Por este motivo, destaco que se os Estudos Culturais constituem um cam-
po com demarcações tão tênues como as mencionadas no início deste tex-
to, são, igualmente, bastante numerosas e diversificadas as manifestações
que dão conta da emergência deste novo espaço de discussões sobre a
cultura. E o próprio Raymond Williams (1997) quem admite, em texto pu-
blicado originalmente em 1989, que os Estudos Culturais teriam sido extre-
mamente ativos já nos anos 40, na educação de adultos, com manifesta-
ções precedentes na educação militar, durante a guerra, e na década de
30. No entanto, eles só adquirem visibilidade e reconhecimento intelectual,
mais tarde, com a publicação desses livros. Williams diz lamentar que as
muitas pessoas que foram atuantes neste campo, e que fizeram tanto quanto

O primeiro diretor do Centro é Richard Hoggart, cargo que ocupou desde sua funda-
ção, em 1964, até 1969.

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 21


ele e seus colegas para consolidar este trabalho, não puderam tomá-lo vi-
sível por meio de publicações. Muitas pessoas, diz ele, que desenvolveram
cursos e projetos, já nos anos 40, abordando as artes visuais, música, fil-
mes, propaganda, rádio, etc., mas que não tiveram espaço nas publicações
nacionais ou nas universidades, permaneceram anônimas. Essas pessoas,
cujos nomes são desconhecidos hoje por muitos daqueles e daquelas que
ensinam Cultural Studies, escolheram, deliberadamente, espaços de atu-
ação alternativos onde pudessem fazer oposição ao grupo levisista. São
essas experiências tão variadas que talvez tenham aberto a possibilidade
para grande o leque de manifestações analíticas observado hoje.
Stuart Hall, um dos fundadores e diretor do Centro de Estudos Cul-
turais de Birmingham no período 1969-1979, admite que há ganhos e
perdas no processo de institucionalização dos Estudos Culturais (Hall,
1997). As décadas que se seguiram à fundação do Centro registraram
grande expansão e diversificação de temáticas e abordagens. Nesse qua-
dro, várias formas de institucionalização se configuraram, sendo que a
conquista de um lugar na academia parece ser a mais visível delas.
Para muitos, a institucionalização dos Estudos Culturais, seja na
forma de constituição de um espaço acadêmico de discussão ou na de
configuração de uma disciplina, significa o risco de subordinar sua con-
tundente e plurifacetada crítica política à formalização de algumas ques-
tões críticas sobre poder, história e política. Graeme Tumer (1997), por
exemplo, diz que esta consolidação da posição dos Estudos Culturais nas
universidades e sua aproximação com as configurações disciplinares
ameaça transformar seu caráter de crítica política em iniciativa pedagó-
gica. Por sua vez, Cary Nelson (1997), ao mesmo tempo que encoraja
os(as) acadêmicos(as) a sensibilizarem as instituições em relação à im-
portância dos Estudos Culturais, também reconhece que o preço da ex-
pansão poderá ser a despolitização. Ao se tomarem agradáveis e "dige-
ríveis" para atrair agências financiadoras, administradores e políticos, o
custo poderia ser a superficialidade e a ausência de posicionamento po-
lítico crítico em relação à vida social. Ellen Rooney (1997) e Elizabeth
Long (1997) argumentam em defesa da manutenção das ligações dos
Estudos Culturais com os movimentos sociais, vislumbrando aí uma for-
ma de preservar seu caráter de crítica política. Segundo elas, a ausência
de uma base fora da academia poderia deixar esse campo particularmente
vulnerável à neutralização política tão comum nas universidades.

22 • Estudos Culturais em educação


A posição sustentada por Long e Rooney é particularmente per-
tinente por serem ambas provenientes do campo dos estudos feminis-
tas e saberem da importância destes trabalhos nos estudos culturais.
A crítica radical de alguns feminismos à lógica que sustenta os cam-
pos disciplinares fez com que os Estudos Culturais, por sua oposição
ao cânone, se mostrassem um espaço adequado e fecundo para o de-
senvolvimento dessas análises. Nesse sentido, é evidente que vincu-
lações muito estreitas dos Estudos Culturais com a academia não sig-
nificam uma situação favorável ao desenvolvimento destes estudos.
O mesmo raciocínio pode ser estendido aos estudos sobre raça, etnia
e tantas outras categorias sociais que resultaram de classificações
arbitrárias fixadas em um lugar privilegiado que se toma como refe-
rência, e a partir do qual são nomeados os "outros" da cultura. Histo-
ricamente, a academia tem sido o lugar da legitimação dos saberes,
da definição do cânone.

Deslocamentos na concepção de cultura

A partir do que foi exposto anteriormente, fica evidente que uma


questão central nos Estudos Culturais são as transformações na concep-
ção de cultura. Aliás, toda a movimentação que tem caracterizado os
Estudos Culturais, delineando esta identidade cambiante que procuro
descrever, pode ser atribuída aos deslocamentos naquilo que se tem en-
tendido e tomado como cultura. Como também já relatados, o surgimen-
to de um conjunto de análises identificado como "estudos culturais" é o
corolário de uma movimentação teórica e política que se articulou contra
concepções elitistas de cultura — como era o caso das matrizes amoldi-
anas e levisistas. Não podemos esquecer que, naquelas tradições, "cul-
tura" e "civilização" estavam em oposição. Aquilo de que a palavra "cul-
tura" dava conta constituía algo qualitativamente superior ao que seria
proporcionado pelos ditos "progressos da civilização". Dar combate a esta
posição significou, desde o início, que a cultura, nos Estudos Culturais,
muito antes de dizer respeito aos domínios estético ou humanístico (do
espírito "cultivado"), está ligada ao domínio político.
A tentativa de Williams, em The long revolution, de definir cul-
tura, passa por três categorias. Na primeira, diz ele, há o "ideal" — a

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 23


cultura tomada como um processo de aperfeiçoamento, em direção a
valores universais e absolutos. A segunda se refere à cultura como
"o documentário", o conjunto da produção, do trabalho intelectual e
criativo. Em terceiro lugar está uma definição social de cultura — a
cultura como descrição de um modo de vida. É esta última definição
que inspirou e orientou os Estudos Culturais. Ela contém três novas
maneiras de se pensar a cultura; uma suposição antropológica, em que
a cultura é a descrição de um modo de vida; uma segunda, na qual a
"cultura expressa certos significados e valores"; e a terceira, em que
a tarefa da análise cultural é o exame das significações e valores
implícitos e explícitos em um certo modo de vida, em uma certa cul-
tura". Para Williams, é esta terceira definição, e as suposições que
ela contém, que permitirá tomar como cultura certos componentes de
um modo de vida que, segundo outras definições, jamais seriam con-
siderados como cultura (Storey, 1997).
Este é o caminho pelo qual Williams argumenta contra a oposi-
ção entre "cultura de massa" e "alta cultura" e entre "cultura operá-
ria" e "cultura burguesa". E é o próprio Williams quem já aponta para
um certo etnocentrismo cultural que descarta todas as expressões e
realizações humanas não submetidas à expressão escrita e à tradição
letrada.
John Storey (1997), na introdução do livro que organizou reunindo
textos que discutem os Estudos Culturais, faz um inventário de algu-
mas das concepções de cultura presentes nos trabalhos que inclui na
obra. Segundo ele, na análise de John Fiske (1997), a cultura, nos Es-
tudos Culturais, "em termos de ênfase, não é estética nem humanista,
mas política" (p.l). Esta definição já decorreria da acepção ampliada
utilizada por Williams e que também possibilitou a afirmação de Nel-
son (1997) de que "indivíduos com aversão à cultura popular jamais
compreenderão corretamente o projeto dos estudos culturais" (p.279).
Storey também menciona a concepção de John Frow e Meaghan Mor-
ris (1997) que tomam a cultura

não como uma expressão orgânica de uma comunidade, nem como uma
esfera autônoma de formas estéticas, mas como um contestado e conili-
tuoso conjunto de práticas de representação ligadas ao processo de com-
posição e recomposição dos grupos sociais, (p.345)

24 • Estudos Culturais em educação


Em dois textos de Hall (1997; 1997a), vamos encontrar contribui-
ções importantes para essa discussão sobre o conceito de cultura. Segundo
esse autor,11 os Estudos Culturais reconhecem as sociedades capitalis-
tas industriais como lugares de divisões desiguais no que se refere a et-
nia, sexo, divisões de gerações e de classes. A cultura é um dos princi-
pais locus onde são estabelecidas e contestadas tais divisões, onde se dá
a luta pela significação, na qual os grupos subordinados tentam resistir
a imposição de significados que sustentam os interesses dos grupos do-
minantes. Neste sentido, os textos culturais são muito importantes, pois
cies são um produto social, o local onde o significado é negociado e fi-
xado. Hall se utiliza do conceito de hegemonia de Gramsci para argu-
mentar que, nos Estudos Culturais, a cultura é o principal locus da luta
ideológica, o palco da "incorporação" e da "resistência"; um dos locais
onde a hegemonia será ganha ou perdida.
E neste sentido que Frow e Morris (1997), retomando Williams,
afirmam que cultura é

todo o meio de vida de um grupo social estruturado através da representa-


ção e do poder. Não é um domínio isolado de jogos de distinção social e
de "bom" gosto. É uma rede de representações — textos, imagens, con-
versas, códigos de conduta e as estruturas narrativas que os organizam —
que molda cada aspecto da vida social, (p.345)

Convém, contudo, prestar atenção no alerta de Frow e Morris (1997)


sobre a afirmação de que o conceito de cultura refere-se à formação,
manutenção e definição dos grupos sociais em relação a outros grupos e
ao constante processo de sua recomposição. Para esse autor e essa auto-
ra, isso significa complicar a questão sobre o tipo de unidade que os gru-
pos requerem. Ambos perguntam: "em que nível opera o conceito de
cultura — o de um estado-nação e/ou de uma cultura 'nacional'? O de
classe, gênero, raça, sexualidade, idade, etnicidade?" (p.345). E a res-
posta, dizem, é que o conceito opera em qualquer um destes níveis e eles

alvez seja elucidativo mencionar que Stuart Hall, um jamaicano que estudou na In-
g aterra, é, como seus contemporâneos Hoggart e Williams, uma identidade dividida e
cnsionada por sua situação de estudante negro de um país colonial que percorreu os de-
graus acadêmicos da "melhor tradição britânica".

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplmares • 25


necessariamente não encaixam um no outro. Esclarecem, ainda, que os
estudos culturais australianos estão conscientes

do perigo de situar as unidades sociais imaginárias como base explana-


tória dos relatos dos textos culturais. Seu constante ímpeto é o de pen-
sar as culturas como processos que se dividem tantas vezes quantas se
reúnem e de suspeitar daquelas noções totalizadoras de cultura que as-
sumem que, ao final dos processos culturais, sempre há a realização de
uma "sociedade" ou "comunidade" inteira e coerente, (p.346)

A expansão e os problemas das teorias viajantes

Em recente exposição num evento cultural,12 Heloísa Buarque de


Holanda chama a atenção para a força com que os Estudos Culturais es-
tariam tomando corpo na academia latino-americana. Ela faz referência
a um certo ethos de idéias com vocação "viajante" que se caracterizari-
am por transitar entre diferentes universos simbólicos ou culturais e aí
encontrar novos portos de ancoragem onde se deixam ficar. Essa me pa-
receu uma forma produtiva para discutir a expansão dos Estudos Cultu-
rais pelo mundo, e, especialmente, para abordar o que Hollanda chama
de "cartografia espacial de uma idéia em movimento". No caso dos Es-
tudos Culturais, trata-se das "viagens" de estudos que, ao mesmo tempo
em que abordam questões do âmbito da cultura global adquirem os con-
tornos e matizes das configurações locais, reinventando-se constantemen-
te nos seus questionamentos e perspectivas de análise. Os melhores exem-
plos que posso mencionar situam-se nas problematizações sobre gêne-
ro, raça e etnia, que, com uma fecundidade sem precedentes, têm recom-
posto todo o panorama dessas discussões em nosso País e em outros pe-
los quais têm circulado.
Parece que é esse caráter "contextualizável" e versátil que tem fei-
to desta "idéia em movimento" um território de embates, em que dife-
rentes interesses políticos entram em jogo. Por um lado, a vocação trans-
nacional ou mesmo global dos Estudos Culturais tem-lhes possibilitado
operar no âmbito muito amplo da política cultural na qual, por exemplo,

12
Publicada no texto Z( academia entre o local e o global da Z - Revista Eletrônica do
PACC - UFRJ, em http://www.ufrj.br/pacc/z.html.

26 • Estudos Culturais em educação


as conquistas das mulheres por igualdade — no mercado de trabalho, nas
comunidades locais, em suas vidas pessoais, etc. — produzem efeitos
para além das fronteiras nacionais ou das diferenças no tom das suas
peles, na cor de seus cabelos ou no formato de seus olhos. Certas hege-
monias não estão delineadas, muitas vezes, seguindo contornos limita-
dos, elas, como no caso do gênero sexual, são praticamente mundiais.
Subvertê-las pode requerer táticas adequadas a cada contexto; no entan-
to, os ecos de uma luta quase planetária, certamente, também surtem seus
efeitos no nível local. Por outro lado, como nos alerta Nelson (1997), a
grande expansão carrega sempre o risco da banalização, da utilização
oportunista, da despolitização.
Dentre os inúmeros pontos focalizados nas análises que examinam
a disseminação dos Estudos Culturais, vou comentar alguns daqueles que
se referem à circulação destes estudos nos Estados Unidos e mencionar,
muito brevemente, suas manifestações na Austrália. A razão desta esco-
lha é pragmática e casuística — a bibliografia a que tive acesso trata da
penetração desses estudos nesses países. Além disso, é essa produção
bibliográfica que tem começado a circular em nosso país, seja pelo sur-
gimento de algumas publicações com textos traduzidos, seja pela facili-
dade de rastreamento e aquisição dessa literatura nas livrarias virtuais,
via Internet. Declaro, no entanto, que me sinto desafiada a prosseguir
levantando dados bibliográficos, em futuro próximo, com o objetivo de
localizar trabalhos que abordem o desenvolvimento dos Estudos Cultu-
rais em outros lugares.
De acordo com a análise de alguns autores, a americamzação dos
Estudos Culturais tem sido um processo conflituoso de embates nos ter-
renos próprios de inúmeras disciplinas acadêmicas. Insinuando-se no
quadro das guerras curriculares acadêmicas, nas quais estão em jogo as
disputas em tomo do cânone, bem como as disputas sobre as minorias e
sobre "os outros" da cultura, estes estudos têm sido afetados, também,
pela competição no mercado acadêmico numa época de restrições e ajus-
tes das finanças universitárias.
Aqui cabe um registro curioso. Quando autores e autoras tratam da
americanização', isto não diz respeito à penetração dos Estudos Cultu-
rais no continente americano, mas refere-se à sua disseminação nos Es-
tados Unidos — país de língua inglesa onde os Estudos Culturais têm tido
uma imensa proliferação. Quase todas as análises que me subsidiaram

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 27


na elaboração deste texto registram esta explosão de estudos nos Esta-
dos Unidos e referem-se à ela como "a americanização". É evidente que,
seguindo a velha lógica (será velha?) do império cultural, aí não há ne-
nhuma alusão remota a países da América Central e do Sul — os "ou-
tros" da América. O etnocentrismo parece ter sua "naturalidade" asse-
gurada mesmo entre aqueles teóricos cujas análises pretendem levar a
efeito uma crítica oposicionista a qualquer supremacia.
Como um conjunto de estudos pluridisciplinares e, conseqüente-
mente, com complexa identidade, os Estudos Culturais têm percorrido,
por exemplo, os departamentos acadêmicos de comunicação, sociologia,
estudos literários e línguas modernas, entre outros. Segundo Grossberg
(1997), na relativamente nova disciplina de Comunicação, eles têm sido
cortejados e até fortalecidos — com limites, é claro — por posições in-
telectualmente marginalizadas e politicamente oposicionistas que preten-
dem legitimá-los e incorporá-los à corrente principal deste campo de es-
tudos. Contudo, outras correntes marginais, neste mesmo campo, tendem
a vê-los como uma tentativa imperialista de representá-las. Na Sociolo-
gia e nos Estudos Literários, por sua vez, eles têm aparecido com muito
pouca percepção do alcance do que eles representam como desafio radi-
cal às tradições disciplmares destas áreas. Um dos problemas, aponta
Grossberg, é que ao se configurarem no campo acadêmico com posição
definida e legitimidade estabelecida, os Estudos Culturais podem per-
der suas especifícidades, tomando-se politicamente arriscado seu distan-
ciamento das características muito singulares do corpo de trabalhos bri-
tânicos que lhes deu origem.
Nessa linha de raciocínio é que Nelson (1997) formula uma dura
crítica sobre a visibilidade crescente dos Estudos Culturais nos Estados
Unidos. Para esse autor norte-americano, quase nada da tradição dos
Estudos Culturais britânicos é simples e não-problematicamente trans-
ferido para os Estados Unidos. Um de seus argumentos é que o trabalho
de Williams, por exemplo, estava, pelo menos em parte, preocupado em
definir uma herança notoriamente britânica; ao fazer isto, freqüentemente
focalizou formas inteiras de vida. Uma teoria assim construída, diz Nel-
son, não está apta para descrever identidades parciais ou meras ativida-
des de lazer nos Estados Unidos. Ele ainda afirma, entre outras coisas,
que o trabalho do Centro de Birmingham, mesmo sendo interdisciplinar,
foi intensamente colaborativo, um estilo que tem pouca chance de ser

28 • Estudos Culturais em educação


bem sucedido e de sobreviver ao sistema acadêmico americano de prê-
mios" (p.273). A essas observações, acrescenta comentários sobre vári-
os episódios acadêmicos em que os Estudos Culturais têm sido objeto de
debate e nos quais as manifestações têm sido plurifacetadas. Da acusa-
ção de serem mais uma investida do império britânico, passando pela
inconseqüente e oportunista compreensão de que consistem numa van-
tajosa alternativa para estudos de cinema, artes gráficas e visuais, situa-
da fora das teorias concorrentes no panorama contemporâneo, chega-se
ao que ele diz ser comum ouvir-se de estudantes e professores de gradu-
ação: que é necessário um "reacondicionamento" como estudantes de
cultura para competirem no mercado de trabalho e "venderem sua pró-
pria imagem".
Os comentários de Nelson nos alertam para os riscos a que está
sujeita uma "idéia viajante" quando ancora em uma cultura cuja expan-
são e poder, em nível global, pode levar alguns norte-americanos, como
ridiculariza o autor, à superficialidade de "acreditarem que a Disneilân-
dia é a origem do mundo" (p.276). Face a essas apropriações completa-
mente inadequadas, Nelson pronuncia-se com o alerta de que nada im-
pede que os Estudos Culturais adquiram significações muito diferentes
em outro tempo e espaço, mas o descaso em relação a sua história não
deixa de revelar o interesse em despolitizar um campo de estudos cuja
constituição tem sido preeminentemente política e oposicionista. O pre-
ço da despolitização será o de não terem qualquer valor crítico para a
vida social desta nação americana.
Quanto aos Estudos Culturais em sua versão australiana, uma aná-
lise mais otimista, empreendida por Frow e Morris (1997), dá conta de
um quadro amplamente divergente em que os estudos não são teorica-
mente congruentes, não expressam continuidades políticas, mostram in-
compatibilidades e pontos de discordância, mas, simultaneamente, mes-
clam-se com registros de ressonâncias e de flexibilidade. Do meu ponto
de vista, este é um quadro compreensível diante da imagem do país ex-
posta ao mundo — o de uma sociedade bem-sucedida, apesar de marca-
da pelo colonialismo, e que constituiu um debate público extraordinari-
amente aberto sobre o poder, a propriedade e a representação. Isto não
significa, certamente, uma sociedade sem problemas, sem injustiças e livre
das desigualdades, mas pode significar uma sociedade em que as ques-
tões sociais mais graves são amplamente compartilhadas em seu cqua-

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 29


cionamento, e em que cuidado especial é dispensado a sua condição de
país multicultural, em relação à qual, segundo Frow e Morris, há "uma
política relativamente bem-sucedida, funcionando como modelo de uma
concepção de cultura idealmente baseada na diferença e no reconheci-
mento do outro, e não na identidade sociocultural" (p.346).
Frow e Morris (1997), no texto em que traçam um panorama dos
Estudos Culturais australianos, reportam à designação de cultura de Wi-
lliams — todo o meio de vida de um grupo social — para delinear a pers-
pectiva mais acentuada nas tendências desses estudos naquele país. Di-
zem que quando se fala em "mudar a cultura", hoje, na Austrália, está
subentendido, aí, um complexo de hábitos, valores e expectativas soci-
ais que afetam os modos de agir. A cultura é imaginada, assim, como um
modo de ser forjado na trajetória da constituição de sua identidade como
país, na qual sempre estiveram em jogo conflitos políticos em contextos
concretos e em grupos determinados. As narrativas sobre a nação — por
exemplo, da prosperidade, da economia aberta, da Austrália "branca",
de "tomar-se parte da Ásia" — sempre foram polemizadas face às histó-
rias e experiências sociais concretas das comunidades, das culturas ét-
nicas locais e das migrantes. Isto criou um ambiente muito singular para
análises inovadoras, mais interessadas no "desenvolvimento das impli-
cações de determinadas formas de ação simbólica e nas conseqüências
de determinados momentos da prática cultural, e não como contraponto
a teorias mais antigas da cultura" (p.351). Segundo o autor e a autora
australianos, isto não significa uma hostilidade à teoria, mas apenas que
as discussões teóricas e disputas doutrinárias que caracterizam o surgi-
mento e o desenvolvimento dos Estudos Culturais em outros países —
como o marxismo frankfurtiano e o pós-estruturahsmo, o desconstruci-
onismo e o novo historicismo, o "textualismo" e a etnografia — não ocu-
param, por muito tempo, o foco dos debates na Austrália, sendo amiude-
mente resolvidos por uma espécie de mistura rigorosa.

A dispersão

Vou tomar uma frase de Stuart Hall (1992) para finalizar este texto
comentando uma das perspectivas mais controvertidas dos Estudos Cul-
turais: a que diz respeito a sua dispersão teórica e metodológica.

30 • Estudos Culturais cm educação


Os Estudos Culturais têm múltiplos discursos; têm uma grande quantida-
de de diferentes histórias. Eles têm uma série de formações; eles têm suas
próprias e diversas conjunturas em seu passado. Neles estiveram incluí-
dos vários tipos de trabalho. Devo insistir nisto! Eles sempre foram um
conjunto de formações instáveis. O Centro de Estudos Culturais era "cen-
trado" apenas entre aspas [...]. Já teve diversos itinerários de pesquisa;
muitas pessoas já tiveram e têm diferentes posições teóricas, todas com
suas opiniões. O trabalho teórico do Centro seria mais apropriadamente
denominado tumulto teórico. Sempre esteve acompanhado de transtorno,
discussão, ansiedades instáveis e um silêncio inquietante. (p.278)

Como já expus, ao invés de aspirar assumir os contornos de uma


disciplina, os Estudos Culturais têm sido, e isto é particularmente váli-
do em relação a seus anos iniciais, um projeto político de oposição, cuja
movimentação ideológica adquiriu vários matizes. A centralidade desta
questão se toma evidente, hoje, nos pronunciamentos de vários autores.
OTonnor (1997) afirma que "os Estudos Culturais não são uma tradi-
ção de erudição inestimável, mas um comprometimento político" (p. 188);
Frow e Morris (1997) também concordam em que "os Estudos Cultu-
mis [...] são adeptos da insistência na dimensão política do conhecimen-
to [•■]. O projeto intelectual dos Estudos Culturais é sempre marcado [...]
por um discurso de envolvimento social" (p.354). Por sua vez, Johnson
(1997) diz que eles são políticos, mas não num sentido pragmático, o que
ê reafirmado na visão de Nelson (1997), ao argumentar que embora "os
Estudos Culturais aliem-se à teorização da ação política [...] ação políti-
ca e Estudos Culturais não são necessariamente inter-relacionados"
(p.278). Gestado no combate às concepções dominantes de cultura vi-
gentes até a Segunda Guerra, as quais, como já ressaltei, tinham um ca-
ráter eminentemente elitista, este projeto se configura a partir do pensa-
mento de acadêmicos da esquerda política britânica. Trazia, contudo, já
nas análises de seus primeiros pensadores, uma rejeição às formas mais
ortodoxas do marxismo, especialmente àquelas demasiadamente circuns-
critas à luta de classes e às relações de produção.
Segundo Storey (1997), nos anos iniciais do Centro de Birmingham,
Hall referia-se aos Estudos Culturais como "um outro jeito de fazer po-
lítica , o qual estaria, a partir dos anos 1970, marcado por uma práxis
institucional inspirada nos intelectuais orgânicos de Gramsci. Tony Ben-
net (1997) discorda desta leitura de Hall porque considera que os Estu-

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 31


dos Culturais são um projeto levado a efeito por intelectuais acadêmicos.
Precisamos considerar, porém, as várias menções de autores e autoras a
migrações dos Estudos Culturais de cursos de pós-graduação para cur-
sos de graduação, das universidades para diversificados grupos de pes-
quisa, seja vinculados a movimentos sociais, a federações de trabalhado-
res ou a grandes empresas da mídia.
Como se pode perceber, tanto por esses últimos relatos que faço
quanto por tantos outros apresentados ao longo do texto, parece que a
tônica, desde os primórdios, nos Estudos Culturais, tem sido uma gran-
de dispersão. Enquanto alguns vislumbram sua ênfase na política, ou-
tros a vêem na pesquisa e esses e outros, ainda, a situam na pedagogia,
isto tudo sem citar aquela perspectiva já rotulada como oportunista, fisi-
ológica e eleitoreira.
Fala-se de uma crise nos Estudos Culturais, conseqüência, segun-
do a análise de alguns dos autores e das autoras que venho mencionan-
do, do abalo do paradigma marxista — o maior ponto de referência dos
Estudos Culturais britânicos. A crise teria sido desencadeada não só pe-
las críticas pós-modemas às pressuposições teleológicas, essencialistas,
economicistas e eurocêntricas dos marxismos, como também à sua pre-
tensão metanarrativa e à sua posição no projeto iluminista. Além disso,
o descrédito de grande parte dos projetos socialistas do Leste Europeu
teria fustigado as discussões.
Mesmo assim, o debate sobre o marxismo nos Estudos Culturais
continua aberto. Angela McRobbie (1995) diz, por exemplo, que críti-
cas como as de Jameson (1996) e Harvey (1993) não são produtivas para
esses Estudos porque significam a volta a um tipo de marxismo que co-
loca as relações e as determinações econômicas acima das relações cul-
turais e políticas, posicionando estas últimas em um mecanicismo. A
perspectiva de McRobbie é, de certa forma, corroborada pelo esclareci-
mento de Hall (1992) de que nunca teria havido um momento anterior
em que marxismo e Estudos Culturais estivessem perfeitamente ajusta-
dos. Desde o início teria havido grandes madequabilidades teóricas e
políticas, pois temas preferenciais dos Estudos Culturais, como cultura
e linguagem, por exemplo, foram silenciados no marxismo. Na sua ori-
gem, os Estudos Culturais marcaram uma dupla rejeição: se opuseram,
por um lado, ao elitismo da "alta cultura" e da "grande tradição" e, por
outro, ao reducionismo do severo determinismo econômico marxista.

32 • Estudos Culturais em educação


Neste mesmo panorama de debates, contudo, o conceito gramsciano de
hegemonia continua sendo inspiração para alguns estudos, ocorrendo
paralelamente a isso um alerta à necessidade de revisá-lo. McRobbie
(1995) faz referência à oportunidade da crítica de Laclau a Gramsci, tendo
em vista dar conta de uma concepção mais democrática de mudança so-
cial na qual nenhum grupo social seja detentor de um lugar privilegiado
como agente de mudança. Segundo a autora, os escritos mais recentes
de Laclau — em que se verifica o abandono de certa rigidez e ausência
da tirania da teoria — estariam possibilitando um grau maior de abertura
nos debates de inspiração marxista dentro dos Estudos Culturais.
Para McRobbie (1995), os Estudos Culturais estão sendo radical-
mente transformados e os debates mais recentes de inspiração pós-mo-
dema estariam substituindo as abordagens mais triviais de ideologia e
hegemonia. Ela argumenta contra a volta a formas reducionistas de aná-
lises econômicas, contra aqueles estudos sobre o consumo interpretado
excessivamente em termos de prazer e construção do sentido e admite o
risco de um certo tipo de populismo cultural edificado sobre a noção de
que tudo que é consumido e é popular seja, necessariamente, de oposi-
ção. A desconstrução e o afastamento de concepções edificadas sobre os
binarismos são vistos por ela como formas de trabalhar no campo políti-
co com novos conceitos e com um novo conjunto de métodos nos estu-
dos culturais.
A respeito dos métodos, Nelson, Treichler e Grossberg (1995) afir-
mam que assim como os Estudos Culturais "não têm qualquer garantia
sobre quais são as questões importantes a serem feitas em dados contex-
tos, nem como respondê-las" (p. 10), nenhuma metodologia é especialmente
recomendada ou utilizada com segurança. Segundo suas observações,

A análise textual, a semiótica, a desconstrução, a etnografia, entrevis-


tas, a análise fonêmica, a psicanálise, a rizomática, a análise de conteú-
do, o survey — todas podem fornecer importantes insighís e conheci-
mentos. (p.10)

Nas inúmeras análises em circulação nas publicações mais recen-


tes, é possível perceber a fecundidade das abordagens pós-estrutura-
hstas que se utilizam das concepções de poder e discurso de Michel
Foucault, bem como daquelas tendências do pensamento pós-modemo
que, a partir da "virada lingüística", têm se concentrado nas questões

Estudos Culturais — para além das fronteiras disciplinares • 33


da linguagem e da textualidade. A qualidade política deste tipo de aná-
lise é ainda controvertida, particularmente em núcleos acadêmicos cris-
talizados em certa ortodoxia marxista que não consegue admitir qual-
quer tipo de luta política oposicionista fora da "experiência vivida" ou
das chamadas "práticas concretas". Contudo, considerar a análise dos
textos culturais como formas de expor mecanismos de subordinação,
controle e exclusão, que produzem efeitos cruéis nas arenas políticas
do mundo social,13 é uma posição que já tem extraordinária ressonân-
cia no cenário internacional.
O que podemos observar neste tumultuado panorama apresenta-
do é que os Estudos Culturais parecem ser intensamente permeáveis
às mudanças históricas, à diversidade de ênfases problemáticas em di-
ferentes momentos e geografias, e têm se caracterizado pelo debate
amplo, pela divergência e pela intervenção. As discussões iniciais, for-
temente impulsionadas pela centralidade da problemática de classes
sociais, foram sendo mescladas, diversificadas e até mesmo substituí-
das por outras questões e temáticas. A imensa disseminação e a sofis-
ticação tecnológica de artefatos culturais, como o cmema, a televisão
e a telemática, por exemplo, nos últimos trinta anos, instigaram o sur-
gimento de novas e produtivas formas de pesquisa e debate. Os estu-
dos feministas, os estudos sobre racismo e as polêmicas interdiscipli-
nares a respeito da construção social da sexualidade são algumas das
arenas da política cultural nas quais as discussões adquiriram grande
visibilidade e tiveram o leque de suas possibilidades de problematiza-
ção e estudo grandemente ampliado. Hoje, poderíamos afirmar com
segurança que o problema mundial das questões étnicas e raciais colo-
cou esta temática no centro das análises dos Estudos Culturais. Have-
ria outro campo temático em que a sensibilidade às "dores do mundo"
seja mais apurada? Além das questões raciais implicadas nos vários
conflitos que diariamente estão acontecendo em nosso país, a guerra
étnica em andamento no meio da Europa, às vésperas do novo milê-
nio, está dentro das nossas casas, com suas versões inventadas e rein-
ventadas pelos textos jornalísticos, televisivos e telemáticos. Não há
como não nos envolvermos com ela, de uma ou de outra maneira. Exa-

13
A esse respeito, ver Costa, 1998.

34 • Estudos Culturais em educação


miná-la como um texto cultural é uma das nossas formas de participar
das lutas políticas por uma sociedade menos discriminadora e exclu-
dente. Os Estudos Culturais e sua multiplicidade de possibilidades ana-
líticas são, certamente, uma das chances que temos de não nos tomar-
mos meros espectadores do extermínio que está sendo praticado em
nome da mediação de uma política racista com poucos precedentes.

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36 • Estudos Culturais em educação


Capítulo 2

Michel Foucault e os Estudos Culturais

Alfredo Veiga-Neto

Como o próprio título sugere, meu objetivo neste capítulo é discu-


tir algumas possibilidades de aproximação entre o pensamento de Mi-
chel Foucault e o campo que se estabeleceu há três décadas sob a de-
nominação de Estudos Culturais. Trata-se, como logo veremos, de um
empreendimento não muito simples mas cujo resultado espero ser de
alguma utilidade.
Assim, uma preocupação que me norteou desde o início foi a de
fazer um texto ao mesmo tempo acessível — aos leitores e leitoras que,
mesmo minimamente, já travaram algum contato com pelo menos um
dos dois lados: ou Michel Foucault ou os Estudos Culturais — e útil para
aquelas pessoas que, centradas em um ou outro lado, queiram explorar o
que o outro lado pode lhes sugerir ou tem a lhes oferecer. E mesmo se
esse não for o interesse dos meus leitores e leitoras, espero que este tex-
to possa servir como mais um comentário acerca das características ge-
rais e comuns que se encontram tanto na obra foucaultiana quanto nos
Estudos Culturais.

Dificuldade e produtividade

Fazer aproximações e tentar conectar autores e campos do conhe-


cimento que não se situam numa mesma matriz de pensamento, num
mesmo paradigma, pode ser produtivo tanto para aprofundar o entendi-
mento que se tem sobre cada um deles, quanto para retirar, dessas apro-

Michel Foucault c os Estudos Culturais • 37


ximações, novas maneiras de ver, descrever, problematizar, compreen-
der e analisar e de dar sentidos ao mundo. Mas, por outro lado, tais apro-
ximações e conexões envolvem um custo que muitas vezes é excessivo
a ponto de comprometer irremediavelmente essas tentativas. Isso costu-
ma ser tão mais evidente quanto mais distantes, ou mesmo "antagôni-
cas", são as perspectivas que se tenta aproximar.
Algumas vezes, nossas tentativas de conexão chegam a ser desani-
madoras; esse é o caso, principalmente, quando os autores ou os campos
em questão não seguem uma mesma matriz disciplinar. Outras vezes, a
dificuldade parece maior ainda; esse é o caso quando, independentemente
do partilhamento de qualquer paradigma, pelo menos um dos autores ou
dos campos não tem o compromisso de organizar um sistema de pensa-
mento próprio, de seguir uma doutrina gnoseológica, e nem mesmo de
ser fiel a alguma "estabilidade epistemológica" ao longo de sua própria
produção intelectual.
Penso que se tem na filosofia de Michel Foucault um excelente exem-
plo desse último caso. De fato, como "combinar" (com outras perspecti-
vas) a perspectiva de um autor que nunca quis ser modelo ou fundador de
uma discursividade, de um autor que recusou, até para si mesmo, as no-
ções de autor e obra? (Eribon, 1990; Miranda e Cascais, 1992). Na medi-
da em que ele queria que cada um de seus livros fosse não mais do que um
objeto-evento — que cada livro "desaparecesse, enfim, sem que aquele a
quem aconteceu escrevê-lo pudesse, alguma vez, reivindicar o direito de
ser seu senhor, de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro devia
ser" (Foucault, 1978, p.viii) —, as tentativa de conectar a perspectiva fou-
caultiana com outra qualquer é sempre problemática. E isso parece tão mais
difícil quando se constata que a filosofia de Foucault, afastando-se da tra-
dição sistemática, identifica-se muito mais com aquela postura filosófica
que Rorty (1998) denomina edificante — a saber, uma postura que quer
"manter o espaço aberto para a sensação de admiração que os poetas po-
dem por vezes causar — admiração por haver algo de novo debaixo do
sol, algo que não é uma representação exata do que já ali estava, algo que
(pelo menos no momento) não pode ser explicado e que mal pode ser des-
crito" (Rorty, 1998, p.286). Na esteira de Nietzsche, o que Foucault faz é
desenvolver uma filosofia da prática que nos pode ser útil "como um ins-
trumento, uma tática, um coquetel Molotov, fogos de artifício a serem car-
bonizados depois do uso" (Foucault, 1975, citado por Simons, 1995, p.93).

38 • Estudos Culturais em educação


Ao reconhecer Foucault como um edificante, estou situando-o como
um pós-estruturalista.1 Ora, na medida em que a condição pós-moder-
na~ implica a dissolução das metanarrativas, a fragmentação e o aban-
dono dos ismos, as conexões entre Foucault e outros autores ou perspec-
tivas — mesmo que também sejam pós-modemos — não são triviais.
Em suma, se operar com a perspectiva foucaultiana já apresenta,
por si só, algumas dificuldades, as tentativas de aproximação entre ela e
outros campos de saberes revelam obstáculos consideráveis. Isso é tão
mais problemático na medida em que também o campo dos Estudos Cul-
turais caracteriza-se por não ser — e não querer ser — um campo homo-
gêneo e disciplinar. Mas não é só isso; "os Estudos Culturais [também]
não são simplesmente interdisciplinares; eles são freqüentemente, como
outros têm dito, ativa e agressivamente antidisciplinares — uma carac-
terística que, mais ou menos, assegura uma relação permanentemente
desconfortável com as disciplinas acadêmicas" (Nelson, Treichler e Gros-
sberg, 1995, p.8).
Além do caráter não-disciplinar — ou talvez, pós-disciplinar —, o
campo dos Estudos Culturais passou, ao longo dos seus mais de trinta
anos de existência, por diferentes influências epistemológicas e políti-
cas: socialismos, marxismos, estruturalismo, pós-estruturalismo, etc. Isso
não significa, porém, que os Estudos Culturais tenham se submetido não-
problematicamente a essas influências; assim, por exemplo, mesmo as
vertentes mais comprometidas com o marxismo não reduziram a esfera
da cultura à esfera econômica.3
Sob o ponto de vista metodológico, os Estudos Culturais dividem-
se em duas amplas tendências; uma está mais voltada à etnografia —
principalmente no que concerne ao estudo de populações urbanas e dos
chamados grupos minoritários —; a outra, às análises textuais — envol-

1
Ainda que essas operações de "taxonomia filosófica" não tenham, na perspectiva
deste texto, muito sentido, não há como desconhecer as discussões acerca do
(des)enquadramento de Foucault. Para uma discussão dessas questões — cada uma
íeita a seu modo e com resultados antagônicos —, vide Rouanet (1989) e Veiga-Neto
(1995, 1996a).
Por motivos de ordem prática, neste texto estou usando pós-estruturalismo e pós-mo-
demo (e pós-modernismo) como expressões equivalentes.
Para uma análise acerca das influências dos marxismos nos Estudos Culturais, vide
McRobbie (1995).

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 39


vidas mais com o estudo da comunicação de massas e da literatura pro-
duzida por e para as classes populares. Como se tal dispersão não bas-
tasse, observam-se também diferentes focos de interesse: questões de raça
e etnia, de gênero, etc.
É claro que se, de um lado, os Estudos Culturais são um campo tão
heterogêneo, de outro lado eles não são tudo ou qualquer coisa. De fato,
como disse Tony Bennett, trata-se de um campo que reúne "uma gama
bastante dispersa de posições teóricas e políticas, as quais, não importa
quão amplamente divergentes possam ser sob outros aspectos, partilham
um compromisso de examinar práticas culturais do ponto de vista de seu
envolvimento com, e no interior de, relações de poder" (em Nelson, Trei-
chler e Grossberg, 1995, p. 11). Porque a cultura está imbricada indisso-
luvelmente com relações de poder, derivam dessas relações de poder a
significação do que é relevante culturalmente para cada grupo. Isso sig-
nifica, então, uma desnaturalização da cultura, isso é, significa que, para
os Estudos Culturais, não há sentido dizer que a espécie humana é uma
espécie cultural sem dizer que a cultura e o próprio processo de signifi-
cá-la é um artefato social submetido a permanentes tensões e conflitos
de poder.
Ao salientar o papel do poder — ou talvez se poderia até dizer: ao
colocar o poder no centro das significações e identidades culturais —,
esse campo abre uma frente para que se possa construir uma ponte com
o pensamento de Foucault. Voltarei a essa questão mais adiante. Antes,
quero fazer mais alguns comentários gerais acerca da aproximação en-
tre ambos.
Ao contrário de nos sentirmos desencorajados frente às dificulda-
des decorrentes da dispersão de Foucault e dos Estudos Culturais, é pre-
ciso ter em conta que tal dispersão pode ter um lado produtivo. O que
por um lado dificulta, por outro lado pode facilitar. Se a própria ausên-
cia de um sistema unifícador significa uma abertura de pensamento, nes-
ses casos teremos então, a nosso favor, a possibilidade de usar parcial-
mente as "porções" de pensamento que nos forem, digamos, úteis, sem
comprometer muito as demais "porções". De modo inverso, é fácil en-
tender que quanto mais estruturado e amarrado um conjunto de concei-
tos e relações, mais difícil será mexer em algum ponto sem comprome-
ter os demais, sem desorganizar o conjunto. De um modo geral, então,
quanto mais estruturado e coeso um pensamento, mais ele tem de ser

40 • Estudos Culturais em educação


tomado no seu todo; quanto mais fragmentário ele for, mais ele pode ser
tomado de modo parcial. Voltando a Rorty, podemos colocar os sistemá-
ticos no primeiro caso, e, no segundo, os edificantes.
E nesse segundo caso que se situa Foucault: tendo-se o cuidado
de manter mais ou menos intactos alguns elementos que atravessam o
pensamento do filósofo — como as questões da contingência, da fa-
bricação do sujeito, da ausência dos apriori kantianos, da relação ima-
nente entre poder e saber, do ethos crítico (para citar alguns) —, pode-
se fazer dele um uso mais livre e principalmente parcial, sem "com-
prometer' o restante. Tais liberdade e parcialidade não significam dar
um tratamento menos rigoroso ao pensamento do filósofo; é preciso ter
clara a distinção que existe entre rigor e exatidão. Lembro que não há
uma correlação necessária entre essas duas características. Assim, mes-
mo quando se discute um não-sistemático, não se pode pensar que es-
tamos num jogo de vale-tudo; afinal cada enunciado não está solto no
mundo, mas está ligado a — e mais ou menos validado por — outros
enunciados, numa série discursiva que institui um regime de verdade,
fora do qual nada tem sentido.
Nesse ponto, recorro ao comentário que Ewald (1993, p.26) faz
acerca do "uso ' de Foucault:

Nada de imposições, uma possibilidade entre outras; certamente que não


mais verdadeira que as outras, mas talvez mais pertinente, mais eficaz, mais
produtiva... E é isso que importa: não produzir algo de verdadeiro, no sen-
tido de definitivo, absoluto, peremptório, mas dar 'peças' ou 'bocados',
verdades modestas, novos relances, estranhos, que não implicam em si-
lêncio de estupefação ou um burburinho de comentários, mas que sejam
utilizáveis por outros como as chaves de uma caixa de ferramentas.

A metáfora da ferramenta é bastante útil, pois permite estabelecer


uma distinção entre usos que me parecem apropriados e outros usos, mais
problemáticos. Mas, na medida em que de alguns anos para cá tem au-
mentado consideravelmente o número de pesquisas e textos que vêm se
valendo das contribuições de Foucault — para descrever, analisar e pro-
blematizar as práticas sociais e as rápidas transformações que estão ocor-
rendo no mundo —, qualquer tentativa de fazer um inventário crítico
daquilo que eu considero acertos e desacertos dos usos do filósofo, por
mais sucinto que fosse, excederia o espaço e o propósito deste texto.

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 41


Desse modo, limitar-me-ei tão somente a comentar o quão problemático
me parece simplesmente agregar Foucault — algumas vezes, apenas
de passagem, superficialmente — a análises que são desenvolvidas se-
gundo perspectivas cujos fundamentos ou princípios gerais são até mes-
mo opostos ao pensamento do filósofo. A situação fica muito problemá-
tica quando essa agregação se dá a partir de aspectos que estão na base
da perspectiva foucaultiana e que são justamente contraditórios às pre-
tensões desses autores.4 Em outros casos, mesmo não havendo um com-
promisso completo com o pensamento de Foucault, ou seja, mesmo que
se utilizem apenas 'porções" desse pensamento, não se observam pro-
blemas maiores quando alguns lançam mão do filósofo — com maior ou
menor "intensidade" — para suas próprias investigações.5
E tendo em mente essas dificuldades, limitações, vantagens e des-
vantagens que pretendo discutir, neste texto, algumas das aproximações
que considero possíveis e úteis entre Michel Foucault e os Estudos Cultu-
rais. Ao invés de desenvolver a discussão num plano mais filosófico e ge-
ral, ou mesmo num nível ideológico,6 minha estratégia seguirá o caminho
de tomar algumas questões em tomo das quais me parece possível e inte-
ressante tentar estabelecer algumas pontes entre ambos e, a partir dessas

4
Femos bons exemplos desse "uso agregado" do pensamento de Foucault em vários au-
tores que analisam a Educação e a escola moderna. Ora são alguns (poucos, é verdade)
conservadores buscando, em Vigiar e Punir, elementos e vocabulário para descrever ou
prescrever, contraditoriamente, ações pedagógicas que seriam necessariamente confor-
madoras e disciplinadoras. Ora são autores da vertente crítica (mais numerosos) fazendo
uso do pensamento do filósofo para, também contraditoriamente, levar adiante suas res-
pectivas tentativas de alcançar uma razão e liberdade definitivas, de consumar o suposto
destino teleológico da história, de implementar uma ação docente progressista e consci-
entizadora, etc. Desse último caso, temos exemplos em alguns trabalhos de Peter McLa-
ren, He ri ri Giroux, Michael Apple, Jennifer Gore, Frank Pignatelli. Isso tudo, sem citar
outros "usos" que me parecem ainda mais problemáticos, como aqueles que ou psicolo-
gizam, ou engessam, ou transcendentalizam o pensamento de Foucault.
5
Considerando também a pesquisa educacional, temos bons exemplos desse uso -que
me parece apropriado, coerente — em Thomas Popkewitz, Julia Varela, Fernando Al va-
rez-Uria, Mariano Narodowski, Jorge Larrosa, Nikolas Rose, lan Hunter, Colin Gordon,
Graham Burchell.
6
Reíiro-me, aqui, àqueles estudos que conferem um rótulo à perspectiva foucaultiana
para simplificá-la e, a partir daí, estabelecer um apriori e descartá-la de qualquer possi-
bilidade de aproximação produtiva ou racional com os Estudos Culturais. Para exem-
plos e maiores detalhes, vide Billig (1997), Thomas (1997), Carey (1997).

42 • Estudos Culturais em educação


questões, ir discutindo — talvez meio fragmentariamente — alguns dos
pontos em que eles se aproximam e outros em que eles se afastam.
Tendo em vista que eu e talvez boa parte de meus leitores e minhas
leitoras temos nossos interesses voltados para o campo da Educação, as ques-
tões que escolhi estão, direta ou indiretamente, relacionadas com a escola,
com políticas educacionais e com a prática e teorização pedagógicas.

Crises e críticas

E fácil constatar que vivemos, neste fim de milênio, num mundo que
é bastante diferente daquele idealizado — e em parte até mesmo realizado
— pelos arquitetos do Iluminismo. Os ideais de uma Büdung — pela qual
se conduziriam os bons selvagens a um estado de maioridade, donos de
sua razão, por obra de uma pedagogia e de uma escolarização racionais —
mostraram-se, depois de mais de dois séculos, inatingíveis, tanto em ter-
mos globais quanto em termos locais. Como se não bastassem as grandes
guerras mundiais, passamos a viver num mundo em que a ameaça atômi-
ca geral coexiste com as tragédias generalizadas por centenas de conflitos
étnicos, religiosos, econômicos. Paradoxalmente, enquanto se dá o notá-
vel avanço da ciência e da tecnologia, bilhões de pessoas são cada vez mais
excluídas dos benefícios desses avanços. E mesmo aqueles muitos milhões
que se beneficiam diretamente do progresso tecnológico estão sendo co-
locados diariamente frente aos impasses e perigos gerados pelo próprio
progresso; ora é a crescente poluição, contaminação e degradação ambi-
entais, ora é o esgotamento desse ou daquele recurso natural, ora é o sur-
gimento de novas e devastadoras doenças ou o recrudescimento de outras
mais antigas. Vivemos num mundo estranho, em que muitos morrem por
comerem demais ou desequilibradamente, enquanto muitos mais morrem
simplesmente por não terem o que comer.
Esse inventário sombrio poderia se estender bastante; vários pro-
blemas que parecem estar aumentando — tais como a crise do desem-
prego, a miséria endêmica, a corrupção, as intolerâncias (sexistas, reli-
giosas, étnicas, políticas), o estresse, a violência e a feiúra das grandes
cidades — forneceriam um variado e imenso material para irmos adian-

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 43


te. Mas esse não é o objetivo do meu texto; além do mais, não quero pa-
recer alarmista... Isso tudo sem considerar que uma boa parte daquilo
que chamamos de crise, que sentimos como sendo uma crise, é, na ver-
dade, um conjunto de mudanças culturais que têm como resultado o es-
tabelecimento de novas percepções sobre a realidade e novas práticas
sociais. Fenômenos como a compressão espaço-temporaV (Harvey,
1996; Jameson, 1996) e a fantasmagórica (Giddens, 1991) — para ci-
tar apenas dois — estão atingindo em cheio nossos aparatos psíquicos e
cognitivos, de modo a mudar radicalmente nossa "estabilidade interna" e
nossas maneiras de perceber e significar o cotidiano. São fenômenos que
puxam as velhas e boas âncoras que nos mantinham mais estáveis (e,
conseqüentemente, presos...) à episteme de fundo da modernidade
Se aqui me refiro a tudo isso — que, afinal, todos conhecemos —
é para salientar o quão longe estamos dos ideais do Iluminismo e, com
isso, lembrar que podemos compreender o mundo atual como uma não
consecução do projeto moderno, como o resultado de um fracasso de
nossos esforços — algo que poderia ser assim expresso; "o projeto era
bom, nós é que não estamos sabendo executá-lo".
Para nós, professores e professoras, essa questão coloca-se de ma-
neira crucial, na medida em que está no âmago do projeto educacional
da modernidade fazer da escola o locus privilegiado para a consecução
dos ideais do Iluminismo. Como esclarece Silva (1995, p.245),

a educação escolarizada e pública sintetiza, de certa forma, as idéias e os


ideais da Modernidade e do Iluminismo. Ela corporiílca as idéias de pro-
gresso constante através da razão e da ciência, de crença nas potenciali-
dades de desenvolvimento de um sujeito autônomo e livre, de universalis-
mo, de emancipação e libertação política e social, de autonomia e liber-
dade, de ampliação do espaço público através da cidadania, de nivelamento
de privilégios hereditários, de mobilidade social. A escola está no centro
dos ideais de justiça, igualdade e distributividade do projeto moderno de
sociedade e política. Ela não apenas resume esses princípios, propósitos

Com essa expressão, Harvey (1996) refere-se à síntese do tempo e do espaço engendra-
da principalmente pelas novas tecnologias da informação e das telecomunicações.
Com essa expressão, Giddens (1991, p.27) refere-se à penetração de lugares remotos e
ausentes num outro lugar: "O que estrutura o local não é simplesmente o que está pre-
sente na cena; a forma visível' do local oculta as relações distanciadas que determinam
sua natureza".

44 • Estudos Culturais em educação


e impulsos; ela é a instituição encarregada de transmiti-los, de tomá-los
generalizados, de fazer com que se tomem parte do senso comum e da
sensibilidade popular.

Assim, é compreensível que boa parte da culpa pela crise seja jo-
gada sobre a educação; isso costuma ser expressado com a conhecida e
surrada frase "o nosso problema é, antes de mais nada, um problema de
educação". E é também compreensível que nós, "profissionais da edu-
cação", assumamos resignadamente parte dessa culpa... E quantas vezes
nós mesmos — professores, especialistas, pesquisadores, técnicos edu-
cacionais — procuramos dividir a culpa com a sociedade, com os políti-
cos, com os governos, argumentando que nossa culpa deriva dos baixos
salários, das más condições de trabalho, do não reconhecimento adequado
de nossa "missão".
Em suma, não apenas a educação escolarizada está envolvida
com a "crise" da modernidade como, também e "pior", ela é vista
como ocupando uma posição central e desempenhando a função de
causa da crise.
Mas também podemos pensar e agir de outra maneira; ao invés de
assumir a má execução do projeto moderno, podemos colocar em xeque
o próprio projeto. Não por ser algo de difícil consecução, mas como algo
que partiu de premissas falsas ou, pelo menos, não-generalizáveis — algo
que poderia ser assim expresso: "não adianta querer executar um proje-
to que, mesmo parecendo idealisticamente bom, está baseado em premis-
sas problemáticas".
Um dos primeiros autores que formulou explicitamente esse enten-
dimento foi Lyotard, ao dizer no início dos anos 70 que os pressupostos
sobre os quais se assenta a modernidade não são uma descoberta do Ilu-
minismo, mas uma invenção do próprio Iluminismo, isso é, uma cons-
trução geograficamente localizada e historicamente datada e, enquanto
tal, não são nem eternos, nem transcendentais, nem universais, nem in-
suspeitos. Ao contrário, esses pressupostos funcionam como narrativas,
semelhantes aos mitos, que acabam por legitimar as instituições, as es-
truturas e as práticas sociais. Para Lyotard (1988), é exatamente o cará-
ter legitimador das narrativas modernas que permite que ele as denomi-
ne grandes narrativas ou metanarrativas — a saber, um sujeito trans-
cendental que estaria desde sempre presente em cada um de nós, à es-

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 45


pera de um aperfeiçoamento pela emancipação progressiva da razão, da
liberdade e do trabalho; a dialética do espírito; a hermenêutica do senti-
do; a totalidade; um motor para a história; o aumento da riqueza pelo
avanço da ciência e da tecnologia; na parcela cristã, a salvação pela con-
versão à narrativa do amor mártir (Lyotard, 1993). Ao mesmo tempo em
que elas nos explicam como é o mundo, elas nos aprisionam dentro de
determinados enquadramentos. É fora do aprisionamento dessas meta-
narrativas que se situa o pensamento pós-modemo: "simplificando ao
extremo, considera-se pós-modema a incredulidade em relação aos meta-
relatos" (Lyotard, 1988, p.xvi).
O que Lyotard e vários outros autores têm argumentado é que não
apenas o mundo mudou radicalmente, mas que o fato de não termos atin-
gido os ideais iluministas não decorre propriamente do suposto insuces-
so dos esforços modernos, mas decorre, sim, das bases em que se assen-
taram aqueles ideais. Em outras palavras, nossa sensação de melancolia
e fracasso decorre muito mais do diferencial entre o mundo que temos
para viver e os ideais que sobre ele a modernidade construiu, do que do
mundo por si mesmo. De maneira alguma isso deve ser confundido com
uma atitude de resignação frente ao mundo, nem tampouco com uma ati-
tude de niilismo e abandono de todo ou qualquer ideal e projeto de mu-
dança do mundo. Ao contrário, o que eu quero aqui discutir situa-se numa
perspectiva para a qual tanto as análises sobre os problemas da atuali-
dade quanto as propostas para resolver, contornar ou minorar tais pro-
blemas não irão adiante do que já foram se continuarmos apegados às
metanarrativas que o Iluminismo construiu sobre a sociedade, a história
e a humanidade.
Para os autores que aqui me interessam, a sensação de melancolia e
fracasso parece funcionar não como um elemento imobilizador, mas sim
como um combustível capaz de alimentar seus esforços para inventar ins-
trumentos diferentes que sejam capazes de nos levar a compreender de
outras maneiras o mundo em que vivemos para, a partir daí, ser possível
criar novas formas de vida, novas maneiras de estar neste mundo.
Esse é, justamente, o caso de Michel Foucault e daquela parte dos
Estudos Culturais que vem produzindo fora dos enquadramentos da
modernidade. Ainda que se possa identificar desacordos entre eles e que
todos tenham se despedido das metanarrativas iluministas, eles se man-
têm fiéis à tradição crítica inaugurada por Kant. Não se trata propria-

46 • Estudos Culturais em educação


mente da crítica enquanto caminho para a dignidade e para uma suposta
maioridade humana; como explicam Kiziltan, Bain e Canizares (1993,
P-219), a crítica deve, nesse caso, ser entendida "como uma atitude filo-
sófica e cotidiana que precisa de 'permanente reativação' [e que] cor-
porifica uma relação baudelairiana com o mundo e com nós mesmos".
Trata-se, assim, de uma crítica — à qual costumo chamar de hipercriti-
ca (Veiga-Neto, 1995) — que se manifesta como uma permanente re-
flexão e desconfiança radical frente a qualquer verdade dita, ou estabe-
lecida. E aqui se incluem, é claro, como objetos dessa crítica radical, até
mesmo as verdades ditas e estabelecidas pelos próprios hipercríticos. Em
outras palavras, nada deve escapar à hipercrítica.9
Tal radicalismo não implica a negação abstrata ou irracional da
verdade mas, sim, a sua problematização constante, numa busca das po-
líticas envolvidas na produção dessa verdade, na medida em que as ver-
dades são inseparáveis das políticas que as instituíram. Conhecer essas
políticas — que é o mesmo que conhecer os jogos de poder que estão
envolvidos na imposição dos significados — nos ajuda a desconstruir
as verdades delas derivadas; isso certamente não implica "destruir" as
verdades, mas implica, sim, a tarefa de desnaturalizar e desvelar o cará-
ter sempre contingente de qualquer verdade. Além de isso ser importan-
te no campo teórico, no campo prático a hipercrítica tem nos ajudado a

J
Na literatura especializada, principalmente em língua inglesa, tem sido utilizada a ex-
pressão pós-críticas para designar as perspectivas que assumem o que eu estou denomi-
nando hipercrítica. Ainda que não me pareça muito relevante qualquer disputa em torno
da terminologia, penso que aqui cabe um registro: o prefixo pós denota após, que vem
depois, ora, dizer que o pós-moderno — que vem depois do moderno e se despede do
moderno — é o terreno da pós-crítica pode levar que, por analogia, se pense que a pós-
crítica não apenas vem depois da crítica como, também, que a pós-crítica se despede da
crítica. Mas se dá justamente o contrário! Se existe algo que o pós-moderno conserva do
moderno, trata-se, como já referi, do etos crítico fundado por Kant, da crítica como ati-
lude-limite (Rajchman, 1987), da crítica como um eixo para a pragmática da existência
(Rajchman, 1999, comunicação pessoal). Ainda que a crítica foucaultiana, por exemplo,
vire Kant de cabeça para baixo —pois a atitude-limite "inverte a problemática e o méto-
do kantianos [pois] rejeita o modo transcendental kantiano de crítica e o seu projeto de
identificar as estruturas universais de todo conhecimento e de deduzir da forma daquilo
que somos aquilo que é impossível, para nós, fazer e conhecer" (Kiziltan, Bain & Cani-
zares, 1993, p.219)— ela ressignifica a crítica moderna e confere a ela uma posição cen-
tral e um papel crucial para o seu pensamento e sua militância intelectual.

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 47


pensar e a experimentar novos arranjos e novas práticas sociais que po-
dem melhorar nossas condições de estar no mundo.
Assim, está sempre nas agendas dos hipercríticos uma preocupa-
ção não apenas em compreender o mundo como, também e muitas vezes
principalmente, em modificar o mundo. No caso dos Estudos Culturais,
está sempre patente o engajamento. Mesmo em suas versões mais recen-
tes e mais impregnadas com as concepções pós-estruturalistas que se
despedem da continuidade e da teleologia da história, os Estudos Cultu-
rais são, ao mesmo tempo, um campo de conhecimentos e de militância.
O mesmo acontece com Foucault: muito embora seja bastante comum
buscar-se na perspectiva foucaultiana as ferramentas para tão somente
descrever, analisar e entender determinadas práticas e configurações so-
ciais, justamente ao fazer isso fica-se diante da possibilidade de se arti-
cular algum novo arranjo, diferente daquele que estava sob escrutínio.
Em ambos os casos, está presente uma clara inconformidade, uma atitu-
de explícita contra as condições do presente ou, no mínimo, desconfia-
da dessas condições.
Mas tanto o engajamento do pensamento de Foucault, quanto o dos
Estudos Culturais — em suas versões mais pós-estruturalistas — tem pouco
a ver com, por exemplo, o engajamento do marxismo (pelo menos, do cha-
mado marxismo "tradicionar). Como a hipercrítica dirige-se a um mun-
do que é sempre contingente, não há como saber, antecipadamente, onde
se quer chegar. Para Foucault e para essas versões dos Estudos Culturais,
não há um modelo apriori de mundo, uma metanarrativa a nos guiar. Nesse
caso, para dar um "passo engajado" o rumo não é determinado a partir de
uma suposta estrutura de fundo ou de um final-feliz a ser atingido; cada
passo é decidido pelo exame das condições históricas (passadas) e das
condições de possibilidade (presentes), todas elas condições que são deste
mundo.10 Daí resultam algumas dificuldades práticas e, principalmente, uma
certa ambigüidade no que diz respeito à autoconfiança da hipercrítica; ela
é, ao mesmo tempo — mas não contraditoriamente —, arrogante e humil-
de. Arrogante, porque procura dar conta, sozinha, da problemática com a
qual se ocupa; na ausência de um outro mundo ou de uma estrutura de
fundo que nos guiariam, estamos deixados a nós mesmos, neste mundo e,

É claro, aqui, o caráter materialista, não-platônico e não-idealista desse engajamento.

48 • Estudos Culturais em educação


presos a ele, temos de descobrir não a saída do labirinto, mas as melhores
maneiras de nos movimentarmos nele. Humilde, justamente pelo mesmo
motivo; porque assume a limitação do nosso entendimento sobre o mundo:
porque lembrou-se que as verdades não passam de ilusões;11 porque apre-
endeu que "o filosofar histórico é necessário de agora em diante e, com
ele, a virtude da modéstia" (Nietzsche, 1996b, p.71); porque sabe que es-
tamos "irremediavelmente" dentro e junto daquilo que examinamos e que,
por mais que se faça, não há como sair para sempre da garrafa (Wittgens-
tein, 1979, § 309).
Encerrando esta seção, volto à educação escolarizada para lembrar
que, ao lado das produções decorrentes das pesquisas já feitas nos campos
dos Estudos Culturais e da perspectiva foucaultiana, são possíveis e parecem-
me promissoras as tentativas de articulá-los entre si para proceder a novos
estudos sobre as relações entre a escola e a assim chamada crise moderna.
Ema tal articulação poderia ter por objetivo, para citar um exemplo, examinar
alguns dos regimes de verdade que tomam a relação escola-crise como centro
de uma discursividade e, a partir daí — combinando ferramentas da análise
foucaultiana do discurso com os avanços da vertente etnográfica dos Estudos
Culturais — empreender uma desconstrução desses regimes. Afinando o foco
desse exemplo, sugiro que as investigações que os Estudos Culturais têm
realizado acerca das relações entre multiculturalismo e escolarização — uma
questão particularmente importante nesse cenário de crise — teriam a ganhar
ao meorporar elementos da arqueologia e da genealogia foucaultianas. Indo
no mesmo sentido, as investigações acerca dos mecanismos discursivos pelos
quais determinados saberes — inventados por um grupo social hegemônico
passam "naturalmente" a incorporar um currículo — e, por causa disso,
passam a ser vistos como saberes universais —, só têm a ganhar quando se
combinam elementos foucaultianos e os insights dos Estudos Culturais. Os
resultados de estudos dessa natureza teriam uma importância também
pratica', na medida em que permitiriam até mesmo algumas "intervenções"
sobre as práticas (discursivas e não-discursivas) que se dão no campo
educacional.

As verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram
gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consi-
eração como metal, não mais como moedas" (Nietzsche, 1996a, p.57).

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 49


O sujeito

Entre as metanarrativas que referi na seção anterior, talvez a que mais


tenha deixado suas marcas no pensamento pedagógico moderno seja aque-
la que nos fala de um sujeito transcendental que ocupa o centro tanto das
práticas educacionais quanto das análises que se fazem sobre essas práticas.
Como diz Larrosa (1995, p . 40-41), "a idéia do que é uma pessoa, ou um eu,
ou um sujeito, é histórica e culturalmente contingente, embora a nós, nati-
vos de uma determinada cultura e nela constituídos, nos pareça evidente e
quase "natural" esse modo tão "peculiar" de entendermos a nós mesmos".
A rigor, o entendimento que o pensamento moderno tem acerca do sujeito
representa a culminância de concepções bem mais remotas — que vêm so-
bretudo da filosofia platônica e da tradição hebraica — e que foram retoma-
das pelo cristianismo e, mais tarde, pelo Humanismo e pelo Idealismo Ale-
mão e seus respectivos desdobramentos. Como resultado, o sujeito passou a
ser visto como uma unidade racional que ocupa o centro dos processos so-
ciais; mas, dado que a sua racionalidade não estaria completada, faz-se ne-
cessário um processo pedagógico que o tire da menoridade e o transforme
num dono de sua própria consciência e um agente de sua própria história.
Nesse ponto, quero apontar duas questões acerca do sujeito moder-
no. Em primeiro lugar, como nos explica Williams (1976), a concepção
moderna de sujeito condensa dois significados complementares: o su-
jeito é entendido tanto como uma unidade indivisível — que tem num
"eu profundo" a sua essência de sujeito —, quanto como uma entidade
que é única, singular e que o diferencia de qualquer outro sujeito. Em
segundo lugar, uma questão que às vezes passa desapercebida é a de que
esses dois significados complementares de sujeito estão dupla e intrínse-
camente conectados à modernidade, na medida em que ela, tornando-os
uma "realidade discursiva", ao mesmo tempo se dedica a tomá-los uma
"realidade concreta".12

12 Com essas expressões não estou assumindo nem uma distinção entre o "discursivo" e
o "concreto" e nem mesmo uma "realidade" que estaria fora daquilo que pensamos/di-
zemos sobre ela. Afinal, "ao falarmos sobre as coisas, nós as constituímos. Em outras
palavras, os enunciados fazem mais do que uma representação do mundo; eles produ-
zem o mundo" (Veiga-Neto, 1996b, p.27). Meu objetivo é apenas apontar que a moder-
nidade idealizou uma concepção de sujeito e tentou realizar essa concepção.

50 • Estudos Culturais em educação


Ao dar as costas à metanarrativa do sujeito moderno, o pensamento
pós-modemo opera o descentramento do sujeito, ou seja, remove do centro
dos processos sociais — e, conseqüentemente, das análises que se fazem
desses processos — o sujeito ali colocado pelas filosofias da consciência;
com isso, elide-se o sujeito transcendental, que passa a ser visto como uma
invenção iluminista e não como uma sua descoberta. Ao invés de derivar as
práticas sociais, econômicas, culturais, políticas, etc. a partir do sujeito, a
questão passa a ser derivar o sujeito a partir dessas práticas. Assim, por exem-
plo, ao contrário de ver o sujeito como um fazedor da história, o historicis-
mo radical vai perguntar como a história constrói diferentes sujeitos em di-
ferentes épocas. Ou, como um outro exemplo, ao contrário de entender a
Pedagogia como um conjunto de técnicas e procedimentos capazes de "de-
senvolver" o sujeito desde sempre presente — pelo menos em potência —
em cada um de nós, o pensamento pós-modemo vê a Pedagogia como um con-
junto de práticas discursivas que se encarrega, antes de mais nada, de instituir
o próprio sujeito de que fala. É por tudo isso que, para o pós-modemo, adqui-
re importância escrutinar as diferentes tecnologias do eu, ou seja, maneiras e
caminhos pelos quais cada um se toma o sujeito que é (Foucault, 1991).
Como nos mostrou Elias (1989), a questão não é propriamente fazer
uma negação abstrata e tout court do sujeito. A questão não é "pôr em dú-
vida a autenticidade da autoexperiência que encontra sua manifestação na
idéia do homem como Homo clausus em suas múltiplas variantes" (Elias,
1989, p.36), senão é saber se a autoexperiência "pode servir de ponto de
partida fidedigno para a tarefa de conseguir uma compreensão objetiva dos
homens" (Elias, 1989, p.36). Também para Elias, o sujeito não é o ponto
de partida, mas é o ponto de chegada. E esse entendimento do sujeito é tão
mais radical na medida em que, diferentemente, por exemplo, do materia-
lismo dialético ou do materialismo histórico, ele não conta com qualquer
das Werden herdado do Idealismo, seja ele pensado como imanente à dia-
lética ou imanente a uma suposta natureza da história.
Nos últimos anos cresceu bastante a quantidade de investigações que,
tomando a escola como o locus privilegiado para a construção do projeto
moderno, procura examinar as práticas que aí se desenvolvem cujo objetivo
e a fabricação do sujeito desse projeto.13 É difícil exagerar a contribuição

Cito como exemplos, em língua portuguesa: Foucault (1989), Varela e Álvarez-Uria


0 992), Varela (1996), Larrosa (1995, 1998), Veiga-Neto (1995, 1996a), Popkewitz
(1994), Silva (1995).

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 51


de Foucault para essa questão. O filósofo foi claro ao dizer que o objetivo de
seu trabalho foi "criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa
cultura, os seres humanos tomaram-se sujeitos" (Foucault, 1995, p.231).
Como todos sabemos, as práticas escolares — como o disciplinamento, a
vigilância, o exame, a autonarrativa, etc. — inserem-se nesses modos de
subjetivação. Por isso, essas práticas não são tomadas, nos estudos foucaul-
tianos, como algo repressivo cujo resultado seria o constrangimento sobre
uma suposta natureza humana que seria, per se, livre. Ao contrário, tais prá-
ticas são vistas como produtivas:14 elas se instauraram para nos tomarem
sujeitos modernos, cidadãos de uma sociedade disciplinar e, por isso mesmo,
capazes de seu autogovemo. Ao fazerem isso, tais práticas fazem da escola
uma das condições de possibilidade da modernidade.
Ao dizermos que sem a escola moderna não teríamos o sujeito
moderno, concluímos que sem ela também não haveria a modernidade.
Mas isso é assim não porque a escola "aperfeiçoou" um sujeito natural a
ponto de tomá-lo civilizado e moderno. Isso é assim porque as próprias
práticas escolares — conectadas aos saberes específicos que se agrupa-
ram sob a denominação de Pedagogia Moderna — participaram e parti-
cipam da invenção desse construto que é o sujeito moderno. Um ponto
que precisa ser lembrado é o fato de que tal desnaturalização do sujeito
implica sua não universalidade, o que, por sua vez, implica perguntar:
qual foi, então, o modelo que o Iluminismo teve em mente nesse proces-
so de invenção? Por que foi tomado esse ou aquele modelo? Quais fo-
ram — e quais são — os efeitos que tal escolha produziu nos últimos
dois séculos?
E justamente ao tentarmos dar respostas a essas perguntas que ve-
mos o quanto uma, aproximação entre o pensamento de Michel Foucault
e os Estudos Culturais pode contribuir para descrevermos e compreen-
dermos melhor nosso mundo de hoje. Não se trata, simplesmente, de fa-
zer uma história do pensamento europeu e de seus desdobramentos uni-
versalizantes; isso é importante, mas é preciso ir mais longe. Basta pen-
sarmos acerca de quem eram os arquitetos da modernidade — brancos,
machos, eurocêntricos, colonialistas, burgueses, eventualmente cristãos

14
Esta palavra não implica um juízo de valor, mas tão somente dizer que "produz algu-
ma coisa".

52 • Estudos Culturais em educação


(ou de formação cristã), ilustrados, etc. — para que nos demos conta
das marcas que eles imprimiram ao modelo de sujeito que impuseram ao
mundo como natural, necessário e universal. Se, por um lado, aquela
imposição significou uma ruptura com o autoritarismo aristocrático e o
absolutismo, por outro lado, serviu para tornar hegemônico um conjun-
to de novas práticas sociais, econômicas e culturais cujos desdobramen-
tos se estenderam em nível planetário, persistem até hoje e compõem a
lógica de dominação, exploração e dependência da modernidade.
Chegamos, aqui, a questões que estão no centro dos interesses dos
Estudos Culturais. Seja na sua vertente mais voltada à etnografia, seja
naquela mais voltada às análises textuais, os Estudos Culturais já esta-
beleceram sólidos avanços na compreensão dos novos jogos de poder
pelos quais se estabelecem identidades, significados sociais e culturais
e pelos quais estamos, ao que tudo indica, sendo cada vez mais governa-
dos. De fato, como nos mostrou Hall (1997), não apenas a imaginada e
desejada unidade moderna — do espaço social, do sujeito, do conheci-
mento, da cultura, etc. — está cada vez mais fragmentada, como tam-
bém, justamente por causa dessa fragmentação, os Estudos Culturais se
apresentam como um campo capaz de articular disciplinas tradicionais
como a Sociologia e a Psicologia, atenuando suas tradicionais frontei-
ras, do que quase sempre resulta uma maior potência analítica e estraté-
gica. E esse caráter articulador que faz dos Estudos Culturais um campo
avesso ao reducionismo epistemológico. Centrar nossas análises nos fe-
nômenos culturais não implica reduzir tudo à cultura; significa, sim, as-
sumir que "a cultura é uma das condições constitutivas de existência de
toda prática social, que toda prática social tem uma dimensão cultural.
Não que não haja nada além do discurso, mas que toda prática social tem
o seu caráter discursivo" (Hall, 1997, p.33). Ou, como dizem Frow e
Morris (1997, p.345), entender a cultura como "todo o meio de vida de
um grupo social estruturado através da representação e do poder. Não é
um domínio isolado de jogos de distinção social e de 'bom gosto'. É uma
rede de representações — textos, imagens, conversas, códigos de con-
duta e as estruturas narrativas que os organizam — que molda cada as-
pecto da vida social".
Mesmo correndo o risco da redundância, vale fazer aqui um breve
parentese; não estou dizendo que na Modernidade havia uma unidade
do espaço social, do sujeito, do conhecimento, da cultura, etc. — e

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 53


que essa unidade agora está sendo rompida, mas sim que o Iluminismo
criou essa imagem e que a Modernidade se articulou na busca dessa uni-
dade, de modo que acabamos percebendo a realidade como unitária.
Estudos como os de Said (1990) podem nos servir como um exem-
plo do que estou dizendo: ao invés de estudar o Oriente a partir do que dele
se pensa e se diz no Ocidente, esse autor estudou o orientalismo como uma
invenção do Ocidente. No mesmo sentido vai Albuquerque (1999), que,
ao examinar a gênese da região nordestina do Brasil, nos mostra que o
Nordeste é uma invenção recente em nossa história. Esses estudos não se
encaixam bem em cada uma das disciplinas tradicionais: nem na Sociolo-
gia, nem na Antropologia, nem na Politicologia, nem na Análise Literária,
etc.; mas, ao mesmo tempo, encaixam-se bem em todas elas. Além disso,
eles assumem as narrativas européias e brasileiras, fosse para descobrir uma
suposta essência do Oriente ou da orientalidade, do Nordeste ou da nor-
destinidade, fosse para averiguar se tais narrativas eram verdadeiras ou
falsas, no sentido de representar bem ou mal uma suposta realidade — o
Oriente como um Outro, o Nordeste como o Outro — que estaria à espera
dessa representação. O que interessou a Said foi procurar "os estilos, fi-
guras de linguagem, cenários, mecanismos narrativos, circunstâncias his-
tóricas e sociais [na enunciação dos discursos sobre o Oriente] e não a cor-
reção da representação, nem a sua fidelidade a algum grande original"
(Said, 1990, p.32). O que interessou a Albuquerque foi "entender alguns
caminhos por meio dos quais se produziu, no âmbito da cultura brasileira,
o Nordeste" (Albuquerque, 1999, p.23). Isso significou, para ele, proceder
à "análise da superfície dos textos, sua exterioridade com relação ao que
descreve" (p.32), ou seja, ler os textos não como documentos, mas como
monumentos.15 Para Albuquerque, isso significou

romper com as transparências dos espaços e das linguagens, [pensar] as


espacialidades como acúmulo de camadas discursivas e de práticas soci-
ais, [trabalhar] nessa região em que linguagem (discurso) e espaço (obje-
to histórico) se encontram, em que a história destrói as determinações na-

15
Ao explicar o seu método arqueológico, Foucault (1987, p.159) diz que a leitura ar-
queológica "não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa, [...]; ela
se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata
de uma disciplina interpretativa: não busca um 'outro discurso' mais oculto".

54 • Estudos Culturais em educação


turais, em que o tempo dá ao espaço sua maleabilidade, sua variabilida-
de, seu valor explicativo e, mais ainda, seu calor e efeitos de verdade hu-
manos." (Albuquerque, 1999, p.23)

A questão que se coloca, então, é perguntar como fica a escola,


agora que sabemos que o sujeito moderno não é uma descoberta do Ilu-
minismo mas, sim, uma sua invenção, isso é, uma sua idealização que, a
rigor, nunca existiu, nem nunca existirá naqueles termos de uma unidade
universal e estável.
Essa questão admite muitos desdobramentos. Pode-se perguntar
acerca do futuro ("concreto") da escola, enquanto instituição destinada
a fabricar um sujeito fictício. Pode-se perguntar sobre como reorientar a
escola para que ela, assumindo o caráter fragmentário do sujeito, repro-
grame sua agenda no sentido de desempenhar novos papéis num mundo
mutante e em crise. Pode-se perguntar acerca de que novos papéis são
esses, principalmente no que se refere à participação da escola na cons-
tituição de identidades culturais localizadas — para tomar um pólo —
ou de uma suposta identidade nacional — para tomar outro pólo. Pode-
se perguntar sobre as novas orientações metodológicas para a pesquisa,
decorrentes do descentramento do sujeito.
Todas essas questões são importantes e urgentes; todas elas parecem
estar na medida certa do que nos pode oferecer uma articulação entre Fou-
cault e os Estudos Culturais. Ao eventual argumento de que a arqueolo-
gia, a genealogia e a ética foucaultianas trataram do sujeito pensado pela
modernidade — e não trataram desse sujeito descentrado e múltiplo —,
podemos responder que é justamente por isso que o pensamento do filó-
sofo nos é útil. Em primeirò lugar, na medida em que seu pensamento, se-
guindo Nietzsche, assume a contingência do sujeito moderno, ele assume
a contingência in totum do sujeito, de um sujeito em qualquer tempo. Em
segundo lugar, na medida em que ele nos oferece três "métodos" para ana-
lisarmos como se deu (e se dá) a fabricação desse sujeito moderno, nós
podemos assumir a tarefa de usá-los como fogos de artifício para ir adian-
te, combinando-o com outros campos e inventando novas maneiras de ana-
lisar a subjetivação fragmentária pós-modema.
A fragmentação do sujeito aponta para a necessidade de exami-
narmos os processos pelos quais se formam e se alteram os fragmentos
em cada um de nós e como eles se relacionam entre si e com os frag-

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 55


mentos dos outros. Trata-se de processos em que estão sempre envolvi'
das relações de poder, ou seja, relações que procuram impor determina-
dos significados (e não outros quaisquer). É como resultado desses pro-
cessos que se estabelecem as identidades. Mesmo reconhecendo que
"atualmente, identidade é um conceito marcadamente escorregadio e
multi-dimensional (Ferguson e Golding, 1997, p.xxvi), vejamos, de um
modo um tanto esquemático e segundo a perspectiva que importa para
este texto, como ela se estabelece.16 A discussão que segue também
serve como um exemplo da possível articulação entre alguns aspectos
do pensamento de Foucault — como discurso e sujeito — e alguns
conceitos tomados dos Estudos Culturais — como identidade, interpe-
lação e cultura.
Como ponto de partida, lembro uma das lições que apreendemos da
virada lingüística; os significados não existem soltos no mundo, à espera
de serem descobertos e formalizados lingüisticamente. Enquanto coisa
deste mundo, o significado não preexiste à sua enunciação. Ele só existe a
partir do momento em que foi enunciado, passando a fazer parte de um ou
mais discursos. Por sua vez, os discursos não são combinações de pala-
vras que representariam as coisas do mundo. Eles não são "conjuntos de
signos (elementos signifícantes que remetem a conteúdos ou a represen-
tações), mas práticas que formam sistematicamente os objetos de que fa-
lam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que eles fazem é
mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os tor-
na irredutíveis à língua e ao ato de fala" (Foucault, 1987, p.56).,
Os discursos podem ser entendidos como histórias17 que, enca-
deadas e enredadas entre si, se complementam, se completam, se justi-
ficam e se impõem a nós como regimes de verdade.18 Um regime de
verdade é constituído por séries discursivas, famílias cujos enunciados

16
Para uma discussão acerca das principais concepções de identidade —a concepção do
sujeito iluminista, do sociológico e do pós-moderno—, vide Hall (1998).
17
"Os nomes não se apreendem sozinhos; apreendem-se alojados em pequenas históri-
as" (Lyotard, 1993, p.45).
18
A virada lingüística passou a entender que "os discursos não são nem a externalização
de representações íntimas, [... nem, a rigor,] uma representação" (Rorty, 1988, p.287);
por isso, é preciso abandonar a noção de correspondência, tanto para as frases como
para os pensamentos, e ver as frases como estando mais ligadas às outras frases do que
ao mundo" (p.288).

56 • Estudos Culturais em educação


(verdadeiros e não-verdadeiros) estabelecem o pensável como um cam-
po de possibilidades fora do qual nada faz sentido —pelo menos até
que aí se estabeleça um outro regime de verdade. Cada um de nós ocu-
pa sempre uma posição numa rede discursiva de modo a ser constante-
mente "bombardeado", interpelado, por séries discursivas cujos enun-
ciados encadeiam-se a muitos e muitos outros enunciados. Esse ema-
ranhado de séries discursivas institui um conjunto de significados mais
ou menos estáveis que, ao longo de um período de tempo, funcionará
como um amplo domínio simbólico no qual e através do qual daremos
sentido às nossas vidas.
E esse dar sentido que faz de nós uma espécie cultural. Nessa pers-
pectiva, a cultura não se restringe às práticas materiais; não se restringe,
por exemplo, à produção e ao uso de ferramentas para realizar uma de-
terminada tarefa. Cada vez mais, a Etologia tem acumulado evidências
de que muitas espécies de animais usam "intencionalmente" objetos para
realizar tarefas relacionadas à sua sobrevivência; e mais; de que esse uso
é, em várias espécies, apreendido, isso é, de que se trata de um compor-
tamento que é transmitido socialmente, e não geneticamente. Na pers-
pectiva que aqui interessa, a questão, entretanto, é pensarmos a cultura
para além do domínio material — isso é, do domínio dos objetos e das
práticas envolvidas com esses objetos. A questão é pensarmos a cultura,
também e ao mesmo tempo, no domínio simbólico: como significamos
os objetos e as práticas e, ao fazermos isso, como abstraímos e transferi-
mos esses significados para outros contextos; e, ao fazermos essa trans-
ferência, como os ressignificamos.
E claro que nossa posição numa rede discursiva jamais é fixa, nem
mesmo estável. Jamais ocupamos um mesmo lugar ao sermos cruzados
por dois enunciados; ainda que seja um mesmo enunciado que volte a
nos interpelar, ele vai nos encontrar num outro lugar na rede. Em cada
caso, o resultado será sempre diferente; cada história sempre se impõe a
nós de maneira diferente.19 Além disso, essa imposição nunca é um ato
simplesmente cpistemológico, "puramente" racional; em outras palavras.

19
Ainda que esse entendimento seja visto, por muitos, como um neo-heraclitismo, cha-
mo a atenção para o fato de que na discussão que estou fazendo não está em cogitação
qualquer logos como princípio transcendente de unificação e harmonia.

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 57


não aceitamos uma verdade porque ela nos foi justificada racionalmente,
demonstrada plena e cabalmente como uma verdade verdadeiramente
verdadeira. Ou nós a aceitamos por um ato de violência visível — situa-
ção em que mais facilmente resistimos a ela — ou nós nos deixamos
capturar por ela, como um efeito do poder, o qual, sendo sutil e insidio-
so, nos impõe tal verdade como natural e, portanto, necessária.
Na próxima seção, voltarei à questão do poder. Mas, por enquan-
to, saliento que nesse caso estou me referindo à concepção foucaultiana
de poder, ou seja, poder como uma ação sobre ações e que é inseparável
de saberes, os quais — na medida em que "justificam" e encobrem o
poder — fazem com que ele, o poder, seja tão produtivo. Trata-se, as-
sim, de um poder que não vem de fora, mas que está indissoluvelmente
associado ao saber que o oculta enquanto poder.
Visto esse resumo sobre o processo de imposição dos significados,
voltemos à questão da identidade.
E a aderência a um determinado significado que um indivíduo —
digamos, I, —, uma vez "exposto" a esse significado, passa a se iden-
tificar com ele e, por extensão, ao sistema de significação — digamos,
S — ao qual pertence tal significado. Essa aderência só é possível por-
que esse significado se justifica para e essa justificação se dá por-
que o sistema de significação S está escorado num conjunto de enun-
ciados que "fazem sentido" para o indivíduo I,. Assim, um significado
só interpela aquele que pode ser interpelado, isso é, aquele que é ca-
paz de dar, para si mesmo, um sentido ao(s) enunciado(s) que escoram
tal significado — seja diretamente pelo(s) próprio(s) enunciado(s) en-
volvidos, seja pelo sistema de significação ao qual esteja(m) ligado(s)
indiretamente aquele(s) enunciado(s). Se quisermos usar uma imagem
deleuziana, podemos dizer que a interpelação só ocorre quando um
enunciado penetra na dobra do sujeito e se conecta produtivamente com
outros enunciados que ali já estavam.
A interpelação não opera tão somente no nível discursivo, isso é,
não se restringe no nível do que é dito e, depois, pensado por aquele que
foi interpelado. A interpelação se dá também no nível das práticas não-
discursivas; e, dado que sobre essas práticas sempre circulam discursos
que a elas se referem, há uma relação complexa entre as práticas (dis-
cursivas e não-discursivas) que interpelam cada indivíduo. Larrosa (1994,
p.43) assim explica essa relação complexa:

58 • Estudos Culturais em educação


a própria experiência de si não é senão o resultado de um complexo pro-
cesso histórico de fabricação, no qual se entrecruzam os discursos que
definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamen-
to e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interiori-
dade. É a própria experiência de si que se constitui historicamente como
aquilo que pode e deve ser pensado. A experiência de si, historicamente
constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser
quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se nar-
ra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo. E esse ser
próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no in-
terior de certas práticas.

Podemos ampliar a citação acima — sem, é claro, comprometer em


nada o argumento de Larrossa — acrescentando depois de "histórico" e
"historicamente" as palavras, respectivamente, "cultural" e "culturalmen-
te". Afinal, como vimos, a cultura é esse próprio "terreno real, sólido,
das práticas, representações, línguas e costumes de qualquer sociedade
histórica específica" (Hall, 1986, citado por Nelson, Treichler e Gross-
berg, 1995, p. 15).
E ainda nas palavras de Hall (1997, p.26),

o que denominamos "nossas identidades" poderia provavelmente ser me-


lhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas dife-
rentes identificações ou posições que adotamos e procuramos "viver",
como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um
conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências
única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identi-
dades são, em resumo, formadas culturalmente.

Aliás, é importante lembrar — se é que isso ainda é necessário —


que não há como pensarmos a identidade individual fora de um grupo
social, pois a própria interpelação só é possível quando o indivíduo se
confronta com outros indivíduos. Como explica McRobbie (1995, p.59).
"a identidade [...] está fundada na identidade social, em grupos sociais
ou populações com algum sentido de uma história e de uma experiência
partilhada". Assim, ao aderir a um sistema de significação S partilhado
pelos membros de um grupo G, o indivíduo I, ao mesmo tempo tanto re-
cebe a marca daquele sistema de significação quanto passa a fazer parte
do grupo G. Os In indivíduos desse grupo G têm em comum pelo menos
um atributo: o de terem sido, todos eles, interpelados por S. É esse "em

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 59


comum" que faz com que o grupo G seja visto, tanto pelos "de fora"
to pelos "de dentro" (pelos próprios g, como uma comunidade como
um grupo que tem em comum uma identidade. O que se costuma d
Cr 0
minar "sentimento de pertença" só existe nos "de dentro" ü aa
] ~
r- .• •, ..i-i ' Qo que eles
foram atingidos por uma interpelação de maneira completamente d f
rente do que aconteceu aos "de fora". É esse sentimento de pertença 1 e'
confere a identidade ao grupo e a cada um de seus indivíduos Mas d'^
que todos partilham do mesmo "sentimento" não significa dize/ ^
que eles têm em comum se esgota numa simples disposição afet^6 0
que eles têm em comum pode incluir um esprit de corps o uso cf^ 0
linguagem própria, determinadas produções materiais e simbóhc 6 "d^
terminadas disposições comportamentais e corporais etc tudo^8' ^
rando em tomo do s.gnificado, Além disso, o que passa de comumTnfrê
todos os membros de um grupo G, e que confere a eles uma dete " d
identidade, restringe-se ao(s) discursos(s) envolvidos na dete6™1111 -
do sistema de significação que está em jogo. Isso node
r . x* * j jj^ircccr obvio
mas e importante ser referido para que se tenha em conta que ' d '
duos de um dado grupo não partilham, necessariamente de al08 1 ^
além do sistema de significação que os identifica. Daí derivam0 ^d ^
corolários. O primeiro é: cada indivíduo tem várias identidades ~T
das quais o enlaça com esse, aquele ou aqueloutro grupo
corolário; não há um meta-significado identitário « segundo
t • • e, um Sltmifíradn
hierarquicamente superior aos outros, os quais seriam subordi d m
até podemos, por questões de estratégia ou de esquecimento1 0S ^0S
primazia a um sistema de significação; mas ele não será d 0' C0'?
se, (lomi
nante sobre os demais. ' "
Nesse ponto, é interessante referir aqui que Hall (1 Qqm
tando a importância de Michel Foucault para a compreens ~.COmen"
08 r0
cessos de subjetivação e identidade, bem como o "ext ^ '
seu pensamento" (p.14) - considera que há uma auesHo " j'" d0 0

qUeStao ainda
aberto, a saber.
saber, em

como fechar o fosso entre duas teorizações: de um lad


bre os mecanismos pelos quais os indivíduos, enquanto0 Uma te0rÍa S0'
tificam (ou não se identificam) com as posições para -k n SUJClt10s' se iden-
mados a ocupar um lugar; de outro lado, como eles modT S Sã0 Cha"
produzem e desempenham essas posições e por que nnn J™' estlllzam'
03 em isso de
modo completo, uma vez por todas, para semprepre, ec alô,,»
alguns nunca o fazem,

60 • Estudos Culturais em educação


ou permanecem num processo constante e agonístico de luta, de resis-
tência, de negociação, de acomodação com as normas e regulações, com
as quais se defrontam e que os regulam" (Hall, 1996, p. 15)20

Sendo todo esse processo altamente dinâmico, cuja velocidade e


complexidade parecem aumentar num mundo tomado pela telemática,21
cada indivíduo está exposto a muitas e variadas situações de interpela-
ção, cujo resultado produz sujeitos que têm pouco a ver com aquele ide-
alizado pelo Iluminismo — que seria o centro de uma identidade única,
estável, permanente. Como explica Hall (1998, p. 13), "a identidade ple-
namente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao in-
vés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cul-
tural se multiplicam, somos confrontados com uma multiplicidade des-
concertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente".
É ainda Hall (1996) que nos explica que, para os Estudos Cultu-
rais, a identidade deve ser entendida não como a essência interna de um
sujeito, como algo que ligue o sujeito a si mesmo, mas como um concei-
to estratégico e posicionai:

Eu uso "identidade" para me referir ao ponto de encontro, o ponto de su-


tura entre, de um lado, os discursos e práticas que tentam nos "interpe-
lar", dirigir-se a nós ou nos aclamar como sujeitos sociais de discursos
particulares, e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades,
processos que nos constróem como sujeitos que podem ser nomeados.
Assim, identidades são pontos temporários de ligação a posições de su-
jeito que as práticas discursivas constróem para nós (Hall, 1996, p.5-6).

Exemplificando como se forma a identidade nacional — no caso,


ser inglês , Hall (1997, p.26) comenta outros autores e nos explica que

:o
Devo a Maria Isabel Bujes — ao discutir seu pequeno (mas bem apanhado) inventário
(Bujes, 1999) — o alerta sobre essa questão levantada por Hall (1996). De qualquer
maneira, penso que a expectativa de Stuart Hall só se justifica a partir da perspectiva de
uma filosofia sistemática e da presunção — de raízes tipicamente modernas — de que é
Preciso explicar por que as nossas identidades não são atributos estáveis e acabados e
(desde sempre e para sempre) ancorados no mais profundo de nosso eu.
21
Para uma discussão acerca da telemática e das mudanças nos dispositivos ín/ormacio-
nais e comunicacionais, com as conseqüentes modificações sobre as sociedades pós-
modernas, vide Lévy (1999).

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 61


a identidade emerge não tanto de um centro interior, de um "eu verda-
deiro e único", mas do diálogo entre os conceitos e definições que são
representados para nós pelos discurso de uma cultura e pelo nosso de-
sejo (consciente e inconsciente) de responder aos apelos feitos por estes
significados, de sermos interpelados por eles, de assumirmos as posições
de sujeito construídas para nós por alguns dos discursos sobre a "ingle-
sidade" — em resumo: de investirmos nossas emoções em uma ou outra
daquelas imagens, para nos identificarmos.

Concluindo esta seção, vale fazer uma rápida referência às contri-


buições de Ernesto Laclau para a nossa compreensão do caráter fragmen-
tar, incompleto e instável da identidade. Fazendo uma certa analogia com
a incompletude do sujeito lacaniano, Laclau argumenta que uma identi-
dade final — seja individual, seja de um grupo — é uma ficção. Na me-
dida em que, como vimos, o processo de identificação é radicalmente
contingente, o simples fato de estarmos vivos faz de nós sujeitos/identi-
dades abertas, inacabadas. O fechamento é a morte.

O poder

Nessa última seção, discutirei a questão do poder como mais um ele-


mento de possível aproximação entre o pensamento de Michel Foucault e
os Estudos Culturais. Dado que nas seções precedentes já comentei vários
aspectos gerais de ambas as perspectivas, a partir daqui não voltarei a eles;
dessa maneira, esta seção será mais reduzida do que as anteriores.
Como ponto de partida, lembro que Foucault desenvolveu um con-
ceito muito particular de poder, que vai na contramão das teorizações
feitas tanto pelas tradições liberais — como em Galbraith —, quanto
weberianas e marxistas. Ao contrário dessas tradições, ele compreende
o poder não como alguma força que emane de um centro — o Estado,
por exemplo —, não como algo que se possua e que tenha uma natureza
e uma essencia próprias, algo unitário e locahzavel, mas como uma ação
sobre outras ações, todas elas pulverizadas, distribuídas, capilarizadas,
manifestações de uma vontade de potência cujo objetivo é estruturar o
campo das ações alheias.22 Assim, para o filósofo o poder não é entendi-

22
Deleuze (1991, p.78) explica que, ao pensar o poder em termos de Foucault, o impor-
tante não é perguntar: "Que é o poder? De onde ele vem? Mas: como ele se exerce?"

62 • Estudos Culturais em educação


do como uma ação direta e imediata sobre os outros, mas sobre as ações
dos outros. O poder "não é algo que se adquira, arrebata ou comparti-
lhe" (Foucault, 1993, p.89), pois "as relações de poder não estão em po-
sição de superestrutura [já] que o poder vem de baixo, isso é, não há no
princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição bi-
nária e global entre os dominadores e os dominados" (p.90).
Ao operar assim, o poder não é nem repressivo nem destrutivo, mas
sim produtivo; ele inventa estratégias que o potencializam; ele engen-
dra saberes que o justificam e encobrem; ele nos desobriga da violência
e, assim, ele economiza os custos da dominação.
Há, portanto, uma diferença entre poder e violência que não é de
grau, que não é quantitativa. Foucault (1995, p.243) assim explica essa
diferença;

Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas. Ela força,
ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não
tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aquele da passividade; e, se
encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação
de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indis-
pensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que o "outro" (aque-
le sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até
o fim como o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder,
todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.

É por isso que, para Foucault (id., p.245), "as relações de poder se
enraízam profundamente no nexo social; e [...] não reconstituem, acima
da 'sociedade', uma estrutura suplementar com cuja obliteração pudés-
semos talvez sonhar. Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver
de modo que seja possível a alguns agirem sobre a ação dos outros. Uma
sociedade 'sem relações de poder' só pode ser uma abstração". Disso se
conclui que não existe qualquer sentido em tentar construir uma socieda-
de livre das relações de poder; não porque isso seja difícil, mas simples-
mente porque o poder é imanente à lógica de viver em sociedade. Con-
clui-se, também, que as relações de poder se dão de modo cada vez mais
sutil e eficiente quanto mais livres forem os sujeitos.
Não há dúvida de que esse entendimento que Foucault tem acer-
ca do poder está muito distante das posições assumidas pelos primei-
ros autores do Centre for Contemporary Cultural Studíes at Birmin-

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 63


gham, na década de sessenta. Como argumentam Mattelart e Neveu
(1997), mesmo ainda hoje uma parte dos Estudos Culturais partilha do
conceito de poder que foi desenvolvido pela teoria crítica: a saber e
simplificando —, o poder como algo que se arrebata, se possui, a fim
de submeter os outros à vontade de uma classe social (dominante), de
uma instituição ou do Estado. Nesse sentido, o poder é visto como uma
função que se exerce verticalmente — de cima para baixo e que
emana de um centro e cujo limite é a violência. A violência é aí enten-
dida como a saturação e a agudização do poder, com o qual guarda a
mesma relação lógica, mas diferente intensidade. Em qualquer caso o
poder deriva de processos sociais e econômicos, tais como as lutas de
classe, os modos de produção, a ideologia, etc. Por causa dessa deri-
vação, o poder é entendido como de natureza mutável: ele é uma coisa
nas sociedades "primitivas", ele é outra coisa no mundo feudal, e ou-
tra mais no mundo capitalista. E, portanto, poderá se tomar outra coi-
sa bem diferente de tudo isso no futuro; é para construir esse futuro
que temos de agir no presente. Dado que, nesses casos, a História é vista
como um movimento intrinsecamente contínuo, progressivo e teleoló-
gico, há um "destino potencial" desde sempre impresso no poder, cuja
realização final é o abrandamento, a humanização ou até mesmo a ex-
tinção das próprias relações de poder. Nas versões mais ortodoxas ou
fiéis a esse entendimento, nossa militância teria — entre outros objeti-
vos e em relação ao poder — o objetivo de mudar "radicalmente o ca-
ráter do poder, dado que as aspirações individuais se coordenariam
sobre a base do reconhecimento voluntário, pelos homens, da prefe-
rência e o valor que representa seguir uma necessidade única para toda
a sociedade" (Razinkov, 1984, p.339).
Esse entendimento dos Estudos Culturais acerca do poder é sem
dúvida, tão mais importante na medida em que a principal novidade parti-
lhada por todos aqueles primeiros autores de Birmingham era, justamente
examinar as práticas culturais em suas relações com o conhecimento e com
o poder (Giroux, 1995). Em outras palavras, para eles — assim como para
os Estudos Culturais no seu conjunto, até hoje — o poder, mais do que
ocupar uma posição de destaque nos processos culturais, é indissociável
desses processos, de modo que para podermos compreendê-los, e poder-
mos intervir em tais processos, é absolutamente fundamental colocar o poder
em nossas equações e em nossas agendas.

64 • Estudos Culturais em educação


A questão que se coloca é: como aproximar, então, duas perspecti-
vas que, ao mesmo tempo em que colocam o poder como um operador
central, têm entendimentos sobre ele que partem, digamos, de dois luga-
res opostos? Lembro que vários autores de uma dessas perspectivas quer
levar o poder a uma transformação radical ou até mesmo erradicar as
relações de poder na sociedade —, enquanto que falar nisso nem faz sen-
tido para a outra perspectiva. Para tentar uma resposta a essa pergunta,
penso que podemos seguir pelo menos uma das duas alternativas com
cujo esboço concluo este texto.
Em primeiro lugar, podemos deixar um pouco de lado as vertentes
dos Estudos Culturais que estão mais identificadas com o conceito de
poder desenvolvido pela teorização crítica — isso é, aquele conceito as-
sumido pelos primeiros pesquisadores de Birmingham —, e voltarmos
nossa atenção para aquelas produções mais recentes, que não operam
necessariamente com a noção de um final-feliz para a História. Trata-se
de produções cujas análises são mais pontuais, particularizadas, e não
se escoram nas metanarrativas iluministas que comentei antes. Quando,
por exemplo, um autor como Clifford diz que os antropólogos estão
numa melhor posição, agora, para contribuir para um campo de Estudos
Culturais genuinamente comparativo e não-teleológico" (citado por Nel-
son, Treichler e Grossberg, 1995, p.33), ele aponta justamente para a
possibilidade de pautarmos nossas análises e ações pedagógicas a partir
dos Estudos Culturais, sem nos apegarmos às metanarrativas modernas.
Se valem os apelos de McRobbie (1995, p.59) — em favor da etnogra-
fia da identidade, em favor de uma pesquisa "sobre grupos e indivíduos
que sejam considerados mais que apenas consumidores de texto", em
favor de "uma nova metodologia, um novo paradigma, para conceptua-
lizar a identidade-na-cultura [...] ao incorporar um agudo sentido de his-
tória e de contingência (McRobbie, 1995) —, então poderemos buscar
no domínio da ética de Foucault alguns ínsights que nos ajudem a "com-
preender a vida cotidiana em suas flutuantes, fluidas e voláteis forma-
ções" (McRobbie, 1995).
Em segundo lugar, podemos continuar adotando o sentido foucaul-
tiano de poder, sem deixar de reconhecer as imposições verticais de do-
minação — vistas pela teoria crítica como relações de poder — de que
somos alvo intensa e constantemente, seja por parte de outras frações da
sociedade, seja por parte das instituições e do Estado (que, em geral, re-

Michel Foucault e os Estudos Culturais • 65


presentam os interesses dessas outras frações). Se quisermos seguir a
perspectiva foucaultiana, será preciso reconhecer que "sem dúvida os
mecanismos de sujeição não podem ser estudados fora de sua relação com
os mecanismos de exploração e dominação" (Foucault, 1995, p.236)- mas
será também necessário atentar para o fato de que esses mecanismos de
sujeição "não constituem apenas o 'terminal' de mecanismos mais fun-
damentais. Eles mantêm relações complexas e circulares com outras for-
mas". Será preciso atentar, outrossim, para o fato de que o Estado mo-
derno opera tanto no sentido totalizante — com o que todos concordam
—, quanto no sentido individualizante — conforme foi tematizado por
Foucault, nos seus estudos sobre a govemamentalização. Se o filósofo
centrou suas descrições e análises sobre a fabricação do sujeito moder-
no utilizando, entre outras coisas, um entendimento peculiar acerca do
poder, nada impede que se mantenha esse entendimento "aplicável"
no nível microfísico, horizontal, distribuído, capilar —, mesmo quando
se olha para as outras relações que se dão entre diferentes instâncias e
níveis sociais. A essas outras relações —macroscópicas, verticais cen-
tralizadas, maciças — daremos outro(s) nome(s) (violência, dominação
etc.), para que fique claro que há, entre essas e o poder, uma distinção
gue não é apenas de intensidade ou de lugar em que atuam, mas que é,
sobretudo, da própria natureza de cada uma.
Possibilidades como as que eu rapidamente apresentei, nos dois
parágrafos acima, estão sendo exploradas por pesquisadores e pes-
quisadoras que têm se ocupado na investigação acerca dos processos
de escolarização, das políticas educacionais e das relações entre cul-
tura e práticas e teorizações pedagógicas. Encerro este capítulo ci-
tando alguns estudos feitos entre nós e que servem como bons exem-
plos de como articular, entre outros, Michel Foucault e os Estudos
Culturais; Amaral (1997), Santos (1998), Klein (1999), Fabris (1999)
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Michel Foucault c os Estudos Culturais • 69


Parte 2

Estudos sobre

mídia e educação
Capítulo 3

Mídia, magistério e política cultural

Marisa Vorraber Costa

Inúmeros críticos contemporâneos têm chamado a atenção para


a centralidade dos artefatos da cultura na constituição de versões do
mundo. Entre eles, Jameson (1996) se refere aos produtos culturais
como mercadorias que colonizam tudo, da natureza ao inconsciente;
Baudrillard (1983) nos fala de uma variedade atordoante de superfíci-
es, signos culturais com vida própria, compondo uma hiper-realidade
que nos inebria em um jogo de fascinação e publicidade no qual qual-
quer resistência é futil e despreocupada; e Hall (1997) argumenta que
os Estudos Culturais o ajudaram a compreender que a mídia tem uma
função na constituição das coisas que ela reflete. Nesse quadro, pare-
ce oportuno e instigante investigar a pedagogia praticada por periódi-
co de tão ampla circulação nos meios educacionais, como é o caso da
revista Nova Escola.
Este estudo apresenta uma reflexão sobre as relações entre mí-
dia e fabricação de identidades sociais, focalizando, especificamen-
te, a produtividade de um artefato cultural da mídia impressa brasi-
leira na constituição de um discurso sobre a profissão do magistério.
A análise tem como referência uma pesquisa1 cujo objeto de investi-

1
Trata-se da pesquisa Produzindo subjelividades femininas para a docência - um estu-
do da revista Nova Escola, realizada juntamente com Rosa Hessel Silveira, no Núcleo
de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO), com o apoio da Fundação
Carlos Chagas, da Fundação Ford e do CNPq, concluída em 1997.

Mídia, magistério e política cultural • 73


gação é a revista Nova Escola,2 o mais conhecido periódico dirigido
ao segmento ocupacional do magistério.
O estudo se justifica, em primeiro lugar, porque chama nossa aten-
ção à fecundidade das análises que, a partir do que tem sido denomina-
do "virada lingüística", examinam a produtividade dos discursos, dos
textos, da linguagem na constituição de identidades sociais. Em segun-
do lugar, porque, em relação ao magistério, parece que alguns artefatos
da mídia escrita (mas também da mídia falada, merecendo registro a in-
cursão das novelas televisivas e do cinema por este campo) têm se mos-
trado intensamente produtivos na constituição de padrões e referências
sociais — como é o exemplo dos livros didáticos e de revistas para do-
centes. Chama a atenção, ainda — especialmente no contexto ocidental
contemporâneo em que importantes conquistas dos feminismos parecem
ter atenuado, em alguns territórios, a discriminação relacionada a gêne-
ro —, a forma como setores da mídia têm investido, recentemente, na

2
A revista Nova Escola, criada em 1986, é, seguramente, o mais conhecido periódico
dirigido a um segmento ocupacional específico. Sua tiragem é muito grande, por um lado,
devido à elevada demografia dos quadros do magistério e, por outro, devido às estratégi-
as promocionais adotadas. A capacidade de inserção e aceitação deste produto deve-se
em parte, à forma inicial de distribuição e divulgação. Durante os primeiros cinco anos
de sua criação, um convênio entre a Fundação Victor Civita e o Ministério da Educação
(FAE) sustentava um contrato de assinatura de 300 mil exemplares, arcando com cerca
de 70% de seu custo, para que ela fosse repassada gratuitamente às escolas públicas de
todo o território nacional. Grande parte da distribuição do periódico ocorria através des-
te convênio e a restante se efetivava através de bancas de revistas e assinaturas. A partir
de 1991, durante o governo Collor, o subsídio financeiro estatal foi retirado, dificultan-
do a aquisição da revista pelas escolas. A partir de fins de 1992, FAE e Fundação Victor
Civita voltaram a assinar um acordo, agora restrito ao envio de apenas um exemplar de
Nova Escola às escolas urbanas. Graças ao impacto editorial dos anos anteriores sus-
tentado por sua forma de distribuição inicial — e às suas ligações com a Editora Abril
cujos produtos editoriais gozam de eficiente sistema de distribuição e divulgação, a re-
vista vem garantindo sua fatia no mercado através da venda de seus exemplares em ban-
cas e por meio de assinaturas. Face aos desafios mercadológicos, Nova Escola vem re-
formulando seu projeto editorial. Introduziu minuciosos artifícios de diagramação alia-
dos a uma grande variedade de ilustrações: fotos coloridas de pessoas, de cenas de sala
de aula, de escolas ou de outros ambientes aludidos nas reportagens, desenhos ilustrati-
vos, montagens, gráficos, quadros, mapas, vinhetas, etc. Produtos de consumo geral-
mente objetos que fazem parte do aparato de influência esportiva consumido por crian-
ças e jovens das classes médias, como tênis, mochilas, raquetes, roupas, etc. têm apa-
recido na capa e na contra-capa para fins de merchandising e propaganda.

74 • Estudos Culturais em educação


restauração e revalorização de algumas representações cristalizadas re-
lativas à submissão e à docilidade feminina.3 Essa política cultural que
tem como alvo as identidades incide de forma particularmente intensa
em um campo ocupacional marcado por históricas vinculações com o
gênero feminino — a docência.
Além disso, é preciso considerar o que vêm nos contando as inú-
meras análises que, ao tratarem das complexas injunções presentes na
profissionalização do magistério, fazem referência, reiteradamente, a um
problema demográfico relacionado a gênero. Entre essas destaco Po-
pkewitz (1987), Apple (1987 e 1988), Louro (1989), Lopes (1991), Costa
(1995 e 1996), Costa e Silveira (1998). Não podemos esquecer que os
jogos políticos'e de poder implicados na profissionalização de carreiras
ditas femininas são muito fortes. Ainda vivemos em uma sociedade eli-
tista e discriminadora, tributária do patriarcado, em que protagonistas do
gênero feminino, entre outros(as), são alvo de variados mecanismos de
exclusão, constrangimento e coerção.
Assim, o objetivo deste trabalho é expor uma breve amostra de
como a revista Nova Escola opera na fabricação de uma representação
do magistério como ocupação feminina e no exercício de processos de
subjetivação das professoras. Obviamente, disso decorrem conseqüên-
cias importantes e politicamente estratégicas para a educação, o ensino,
o currículo e a política cultural.

Linguagem, poder e representação

Um dos pontos polêmicos das perspectivas pós-estruturahstas de


análise é a centralidade atribuída à linguagem. Afirmações como não
há nada fora do texto" ou "o sujeito é constituído na linguagem" têm
apontado, recorrentemente, para o poder dos discursos na constituição
daquilo que nas formas de pensar modernas, tem sido concebido como

3
Santomé (1995) analisa esta questão, chamando a atenção para a maneira como certos
meios de comunicação, como o cinema, têm investido na masculinização da sociedade,
celebrando a positividade de uma suposta natureza mais agressiva dos homens e exal-
tando, em relação às mulheres, atributos exclusivamente estéticos que as expõem como
objeto de consumo associado ao apelo sexual.

Mídia, magistério e política cultural • 75


"a realidade". Nas concepções modernas, "a realidade" é algo que exis-
te no mundo independentemente da consciência dos sujeitos, e que es-
tes vão descobrir e nomear de forma a obter uma suposta perfeita ade-
quação entre esse algo "realmente" existente e a idéia abstrata que lhe
corresponderia — "a verdade". O pós-estruturalismo faz implodir esta
noção de um mundo real preexistente e dotado de uma essência, ex-
pondo-o como inteiramente constituído pela linguagem. Nessa direção
foram importantes as contribuições de filósofos como Nietzsche Hei-
degger e Foucault. Tomo deste último a noção de verdade como um
efeito produzido por relações de poder. A "verdade" ou a "realidade"
são construções discursivas resultantes de epistemes situadas e data-
das. Não há nada de transcendental aí. A verdade ou as verdades são
coisas deste mundo, constituídas no seio de correlações de forças e de
jogos de poder. Aquilo que chamamos de "verdade" é produzido na
forma de discursos sobre as coisas do mundo, segundo regimes regi-
dos pelo poder. Discurso4, aqui, não se refere exclusivamente a texto
letrado; os discursos têm materialidade: artefatos e práticas também são
discursos que nos contam algo.
Também a noção foucaultiana de "regimes de verdade" (Foucault
1989) é fecunda para o argumento que desenvolvo nesta análise. De acor-
do com Gore (1994), a expressão — regimes de verdade — sugere uma
concepção de "verdade" entendida como maneira de regular e controlar
e que não diz respeito apenas àqueles discursos que reputamos "domi-
nantes" ou "dominadores". Segundo a autora, todos os discursos são
perigosos, pois "se a verdade existe numa relação de poder e o poder opera
em conexão com a verdade, então todos os discursos podem ser vistos
funcionando como regimes de verdade" (p.10). Nesta análise, tomo a
textualidade da revista Nova Escola e os recursos e estratégias discursi-
vas que utiliza como um regime de verdade que produz uma narrativa
sobre o trabalho docente, narrativa esta que naturaliza e fortalece as co-
nexões entre a docência e o gênero feminino.

4
Emprego o termo discurso na acepção foucaultiana, como aquilo que emerge enquan
to linguagem, a partir de uma episíeme; como conjunto de enunciados que se apoiam em
formações discursivas, que são definidos em um determinado quadro de condições de
existência; como práticas que falam sistematicamente dos objetos sobre os quais tratam
ou agem, como " prática que institui verdades".

76 • Estudos Culturais em educação


Emprego, freqüentemente, neste texto, os conceitos de discurso, lin-
guagem e narrativa com sentido similar, significando instâncias instituido-
ras de representações,5 de significados que vigoram e têm efeitos de verda-
de. Segundo Foucault, as narrativas constituem o aparato de conhecimen-
tos/saberes produzidos pela modernidade com a finalidade de tomar admi-
nistráveis os objetos sobre os quais falam. Conhecer o que deve ser gover-
nado é parte da estratégia que permite a regulação e o controle dos indivídu-
os e das populações que habitam os núcleos urbanos das sociedades organi-
zadas. Tomar-se cidadão, nesse sentido, é fazer-se parte integrante de um
corpus govemável porque disciplinado,6 regulado e normalizado por sabe-
res que dispõem sobre seus modos de ser e de agir. Quando alguém ou algo
é descrito, explicado, em uma narrativa ou discurso, temos a linguagem pro-
duzindo uma "realidade", instituindo algo como existente de tal ou qual for-
ma. Neste caso, quem tem o poder de narrar o outro, dizendo como está cons-
tituído, como funciona, que atributos possui, é quem dá as cartas da repre-
sentação, ou seja, é quem estabelece o que tem ou não tem estatuto de "rea-
lidade". Essa concepção dissipa a noção corrente de representação como sim-
ples correspondência a uma "realidade verdadeira". Não há realidade intrin-
secamente verdadeira, pois os enunciados tomados como verdades são cons-
truídos discursivamente segundo um regime ditado por relações de poder.
Representar é produzir significados segundo um jogo de correlação de for-
ças no qual grupos mais poderosos — seja pela posição política e geográfi-
ca que ocupam, seja pela língua que falam, seja pelas riquezas materiais ou
simbólicas que concentram e distribuem, ou por alguma outra prerrogativa
— atribuem significado aos demais e, além disso, impõem a estes seus sig-
nificados sobre "outros" grupos.
Essa política da representação, ou seja, essa disputa por narrar o
outro, tomando a si próprio como referência, como padrão de correção e

5
Entendo por representações noções que se estabelecem discursivamente, instituindo
significados segundo critérios de validade e legitimidade vinculados a relações de po-
der. As representações não são fixas e em suas transformações não expressam aproxima-
ção a um suposto "correto", "verdadeiro", "melhor".
6
Uma análise interessante sobre as disciplinas — como campos disciplinares de conhe-
cimento — e suas aproximações com a disciplina — como controle/governo/regulação
do corpo e da conduta moral — pode ser encontrada na tese de Veiga-Neto (1996), inti-
tulada/l ordem das disciplinas.

Mídia, magistério e política cultural • 77


normalidade é a forma ou o regime de verdade em que são constituídos
os saberes que fomos ensinados a acolher como "verdadeiros", como
"universais". Estes saberes são práticas, reguladoras e reguladas, ao
mesmo tempo produzidas e produtivas. São discursos que constituem os
sujeitos ao mesmo tempo em que fabricam sua identidade social, con-
trolam e regulam sua subjetividade.
Na pesquisa que realizei, as práticas discursivas da revista Nova
Escola foram minuciosamente examinadas na sua materialidade, ou seja,
procuramos investigar a forma como a revista opera e as tecnologias so-
ciais que utiliza, empregando os recursos de que dispõe como um arte-
fato da grande mídia impressa. A seguir, passo a apresentar e discutir al-
guns elementos analisados ao realizar esta tarefa naquela pesquisa.

Nova Escola e práticas de subjetivação

Como artefato cultural que ocupa um lugar singular do social, ar-


ticulando múltiplos discursos e acionando uma política de identidade
que diz respeito, especialmente, a relações de gênero, a revista exami-
nada constitui um sítio de exercício do poder. Nesse caso específico,
trata-se de práticas que empregam técnicas de subjetivação que inte-
gram as tecnologias sociais, produzindo o gênero como representação
e como auto-representação. E nesse sentido que a mídia pode ser en-
tendida como um campo discursivo constituído por conjuntos hetero-
gêneos de enunciados, demarcado por formas próprias de regularida-
de e por sistemas de coerção e subordinação que se exercitam e possu-
em materialidade. Especialmente em relação à revista Nova Escola, não
se trata de palavras e imagens apenas, mas de um conjunto de perspec-
tivas, métodos e "verdades", organizados e colocados à disposição,
constituindo práticas com propriedades prescritivas, moldadoras e fi-
xadoras. Estou falando de um sítio em que textos escritos e todo o tipo
de imagens, cores, formas e texturas, combinados entre si, divulgam,
reforçam, alimentam, produzem representações, constituindo terreno
de luta em uma política de identidade que implica como as professo-
ras e os professores estão sendo nomeadas(os), posicionadas(os),
desejadas(os) e descritas(os), e em quais textos e termos de referência
isto se verifica (Luke, s/d).

78 • Estudos Culturais em educação


No caso da Nova Escola, ao destacar e reverenciar certos mo-
dos de ser das professoras e dos professores, prescrever fórmulas de
trabalho, definir o que é o certo e o errado quando se trata da seleção
de conteúdos, de condutas em sala de aula ou em relação à profissão
ou à sociedade, etc., a revista vai colocando em prática uma cadeia de
validação de enunciados que acaba por produzir, com regularidade e
suposta legitimidade, um padrão social de referência — ou, como diria
Kellner (1995), "posições de sujeito desejáveis" —, que discrimina o
"normal" e o aceitável do "anormal". Apesar de parcial, arbitrário e po-
liticamente comprometido, tal padrão tende a ser exposto como univer-
sal e verdadeiro, produzindo todos os efeitos possíveis em uma tradi-
ção cultural edificada sobre o desejo utópico da perfeição e do ideal.
Seguindo a reflexão de Díaz (1998), poderíamos dizer que a "voz" da
Revista não é a de um falante autônomo, mas é algo que se constitui e
é assumido

a partir de uma ordem, a partir de um sistema de produção do discurso, a


partir de princípios de controle, seleção e exclusão que atuam sobre suas
(re)produções de significados e sobre suas práticas específicas. (Díaz,
1998, p.15)

Estou me referindo, aqui, a relações de poder, mas que se exercem


de uma forma muito especial, fazendo dos indivíduos "sujeitos". Fou-
cault (1995) apresenta dois significados para a palavra sujeito: "sujeito
a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade
por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma
de poder que subjuga e toma sujeito a." (p.235). Foucault também des-
vincula o poder de uma associação intrínseca com a violência ou com a
renúncia a uma liberdade. O exercício do poder pode suscitar tanto acei-
tação quanto resistência.
Nessa concepção, o poder é menos da ordem do afrontamento e da
violência e mais da ordem do governo; diz respeito à direção da conduta
dos indivíduos ou grupos:

governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos do-
entes. (...) Governar, neste sentido, é estmturar o eventual campo de ação
dos outros. (Foucault, 1995, p.244)

Mídia, magistério e política cultural • 79


É pela ação, a qual os discursos nos incitam, que exercemos o go-
verno de nós mesmos, tomando-nos agentes de nossa própria sujeição.
A influência da mídia sobre nós não se reveste de nenhuma forma de vi-
olência, pelo contrário, ela é, na maioria das vezes, prazerosa, contando
com nossa adesão. Essa internalização do discurso pelos indivíduos, as-
sumindo-o como seu, constitui uma disciplina não coercitiva, que integra
o conjunto de procedimentos denominado por Foucault (1995) de tec-
nologias do eu"'.
É assim que, quando freqüentam com regularidade e familiarmen-
te as páginas da revista Nova Escola, interagindo com suas vinhetas,
manchetes, ilustrações, textos, legendas, cartas, etc., professoras e pro-
fessores vão participando de uma estratégia de governo que estrutura seu
campo de ação, produzindo uma forma de sujeição, de subjetivação.
Um dos tipos de estratégia de governo utilizada pela mídia é a de
articular, de forma minuciosa, mecanismos de autolegitimação que a cre-
denciam diante de seus interlocutores e interlocutoras como autoridade
na formulação de discursos válidos. Em uma das matérias da Nova Es-
cola, quando trata da Chapada Diamantina (n.85, p.40), por exemplo, toda
a importância e a beleza natural do local são como que "descobertas" pelo
olhar que atravessa a lente da câmera do fotógrafo e "institui" a região
como um sítio geográfico com predicados que nunca antes teriam sido
percebidos. Como se todos os olhares precedentes não tivessem divisa-
do nada além de morros, pedra e mato sem nenhum atrativo. Além dis-
so, não é difícil acompanhar, pois trata-se de estratégia que permeia as
várias edições, a forma como vai sendo urdida uma representação do
periódico apresentando-o como veículo do novo, do válido, da inovação,
da competência. Chamadas como "Nova Escola é o braço direito do pro-
fessor" ou "para você acompanhar as mudanças em todas as áreas, nada
melhor do que contar com Nova Escola \ bem como frases do tipo "com
a participação de professores de todas as partes do país, a revista amplia
os horizontes e se aproxima mais dos problemas e da realidade da edu-
cação brasileira" — constantes de folhetos de divulgação encartados na
revista — vão tomando incontestáveis as "verdades" disseminadas por
suas páginas. Quem ousaria discordar dos(as) especialistas que formu-
lam suas sábias e contenciosas explicações, a convite da revista ou por
solicitação dos(as) próprios(as) leitores(as), diante do anúncio "Elabo-
rada e assessorada pelos profissionais mais competentes"?

80 • Estudos Culturais em educação


Fischer (1996), ao comentar sua pesquisa em que investigou a cons-
trução de um discurso sobre a adolescência, pela mídia brasileira, obser-
vou esta mesma estratégia. A autora ressalta que a mídia invoca a pala-
vra de autoridades científicas para orientar os(as) adolescentes e para
credenciar suas prescrições, mas, observa Fischer, "ela elege seus espe-
cialistas preferidos" (p.53).
Outra estratégia que integra as tecnologias sociais de governo que
produzem a subjetivação é a da imputação da carência ou déficit. Walker-
dine (1995) nos ajuda a compreender isso com seu argumento de que as
defasagens ou lacunas atribuídas a certos indivíduos ou grupos são fre-
qüentemente descritas como uma deficiência que diz respeito à carência
de racionalidade. A vitalidade argumentativa de algumas teorias que for-
mulam concepções sobre como se dá o desenvolvimento "normal" da
inteligência e da personalidade, por exemplo, criando "padrões univer-
sais" a partir de determinados grupos privilegiados, tem naturalizado estas
noções e patologizado tudo que aí não se encaixa. Isso tem implicações
profundas nos processos de subjetivação e na política da identidade. A
regulação e a coordenação das ações de certos indivíduos ou grupos têm
se efetivado exatamente sobre a suposição de que sofrem de carências
no campo do raciocínio, o que justifica, ao mesmo tempo, seus déficits
de autonomia, socialização, etc. e a conseqüente necessidade de "corre-
ção" e suprimento. Essa estratégia de imputação do déficit tem sido par-
ticularmente eficaz na fixação das identidades de gênero.
Embora lado a lado na mesma profissão, homens e mulheres são
atingidos diferentemente nesta política da identidade. Apesar de sujei-
tos à mesma ação subjetivadora e construtiva das narrativas, os homens
ocupam outra posição na política da representação, sendo, recorrente-
mente, vinculados à esfera do público, do visível, da racionalidade, da
objetividade, etc. Na revista Nova Escola, as fotos e reportagens envol-
vendo professores (do sexo masculino) — bem menos numerosas do que
as de professoras — apresentam as imagens destes predominantemente
associadas ao mundo exterior à escola e à sala de aula, em geral ligadas
ao uso da tecnologia, à idéia de ordem e diretividade, a posturas grandi-
loqüentes e a espaços teóricos e decisórios de reconhecida relevância
social. As professoras, por sua vez, são descritas, em muitas matérias,
empregando-se mecanismos discursivos que contribuem para fortalecer
o vínculo entre gênero feminino e déficit de raciocínio. Uma reportagem

Mídia, magistério e política cultural • 81


que tratava de computadores na escola, por exemplo, lança mão, ao de-
senvolver o tema, de inúmeras analogias entre computadores e utensíli-
os domésticos, numa visível alusão à idéia de que para se tornar com-
preensível para professoras era preciso simplificar a explicação de seu
funcionamento, de preferência, adicionando muitos elementos do que lhes
é próximo, familiar, concreto. Nada de grandes exigências que requei-
ram o domínio do pensamento abstrato. Mas este é apenas um exemplo
de mecanismos discursivos que tomam problemáticas as relações entre
mulheres e capacidade de raciocínio. Mais recorrentes e produtivas nes-
ta direção são as conexões entre magistério e afetividade o que, em uma
ordem social regida por regras, critérios e normas edificadas e mantidas
sob o signo da racionalidade técnico-científica, situa a ocupação em um
desprotegido e desvalorizado patamar social.
O magistério do ensino fundamental, campo profissional maciçamen-
te povoado por mulheres, tem sido pródigo na fabricação de representa-
ções que capturam as professoras em uma certa "ordem do coração",7 opos-
ta à "ordem da razão", e que tem contribuído para fortalecer as associa-
ções entre gênero feminino e déficits de raciocínio. Colocar em evidência
a afetividade no ensino pode ter um importante significado na política cul-
tural da identidade, naturalizando os vínculos entre gênero feminino e atri-
butos como sensibilidade, ternura, docilidade, paciência e coadjuvação e,
assim, contribuindo para manter representações que dissociam as mulhe-
res dos assuntos públicos e das instâncias que detêm o controle social.
A pesquisa indicou que nos movemos num território em que tanto
textos escritos quanto imagens são campos de luta e de prática de uma
política de representação. No quadro composto por uma certa economia
do simbólico é que se vão produzindo as identidades. As subjetividades
assim construídas não são fixas, unitárias e singulares. Elas estão sem-
pre em jogo, são feitas e refeitas em negociações que as reposicionam

7
Segundo Mattelart (citado por Fontcuberta, 1994) a "ordem do coração", culturalmente
situada na esfera do humano extratemporal e associai, instituiria uma ordem paralela à
ordem social, contribuindo para manter uma harmonia fictícia e reabsorvendo a dispari-
dade social. Assim, alimentaria a imagem de uma sociedade ideal na qual se invertem as
correlações de forças e se difunde um saber onipotente, chave do amor e da felicidade,
que subverte as regras vigentes: ser rico em amor vale mais que o dinheiro, ser feliz em
uma cabana é melhor do que viver num palácio sem afeto.

82 • Estudos Culturais em educação


no discurso e as reconstituem em novas composições. Como estão, en-
tão, posicionadas as professoras nessa economia do simbólico?

Nova Escola, magistério e mundo feminino

Em uma interessante pesquisa histórica intitulada Mulheres de papel,


que analisa a representação da mulher na imprensa feminina brasileira, Bui-
toni (1981) chama a atenção, entre outras coisas, para como o "ser mulher"
é apresentado como natural e portador de uma essência, salientado por ex-
pressões como "O eterno feminino sempre foi assim" (p.6), e para o fato de
a mulher aparecer, "metafórica e metonimicamente, ligada aos seus papéis
básicos: dona-de-casa, esposa, mãe" (p.135). Passados quase vinte anos do
referido estudo, muito desse quadro permanece inalterado e, como a própria
autora já alertava, a imagem de mulher que a imprensa feminina insiste em
apresentar inclui poucos elementos de inovação. Em relação a esse ponto,
Buitoni diz, ao analisar um texto publicado na revista Nova,8 na década de
80, que "por mais que esta revista publique artigos sobre libertação e maior
conscientização da mulher, nas páginas restantes — e na maioria delas —
desmente as atitudes inovadoras apresentadas" (p. 114). A autora aponta tam-
bém para o caráter conservador de padrões adotado pela imprensa femini-
na, e para a exacerbação de uma retórica de convencimento que impõe dire-
trizes de conduta na forma de um receituário: "Tudo vira receita de como se
deve fazer para ser o modelo de mulher apresentado" (p. 126-127).
Alusões a um trabalho sobre a imprensa feminina, quando estamos
tratando de uma revista dirigida a docentes, são invocadas, em primeiro
lugar, porque o magistério é hoje uma atividade quase totalmente femi-
nizada, e uma revista que se dirija ao professorado estará voltada, ne-
cessariamente, a um contingente majoritariamente composto por mulhe-
res, acionando mecanismos e políticas de representação similares aos
utilizados pela imprensa feminina.9 Em segundo lugar, e associada a esta

8
Conhecida revista feminina da Editora Abril, ainda em circulação.
9
Tal conduta foi confirmada pelo editor da Nova Escola, em entrevista realizada em 1996,
quando nos apontou para o fato de que esta revista era detentora do maior público leitor fe-
minino dentre os periódicos da Editora Abril, suplantando, inclusive, os índices de venda-
gem de revistas femininas como Capricho, Claudia, etc. Diante disso, segundo ele, a revista
passara a receber tratamento editorial diferenciado, especial para leitoras mulheres.

Mídia, magistério e política cultural • 83


primeira justificativa, está a semelhança das estratégias de produção de
subjetividades que são colocadas em prática nesses veículos.
Embora esteja sendo desconstruída (especialmente pelos movimen-
tos feministas) a representação de mulher calcada, entre outras coisas,
no estereótipo da fragilidade, sensibilidade, afetividade, etc.; e inúme-
ros campos de atuação povoados pelas mulheres estejam registrando a
emergência de um outro referencial representativo, no qual elas têm se
apresentado como lutadoras, intrépidas, fortes, corajosas10 e objetivas,
essa nova imagem, em nosso meio, parece não estar encontrando muitos
espaços disponíveis e favoráveis à sua disseminação. As mulheres esta-
riam capturadas numa certa "funcionalidade social do estereótipo" que
opera como uma forma de controle social, como "prisões de imagem"
(Walker, citado por Stam e Shohat, 1995). Parece que a representação
da mulher como guardiã das funções sociais reprodutivas persiste ainda
com muita vitalidade. Edificada com forte apelo a argumentos de cará-
ter essencialista — que atribuem à suposta "natureza" feminina a voca-
ção para a matemagem e para aquelas atividades que segundo a classifi-
cação de Bourdieu (1995)11 situam as mulheres no lado do interior, do
úmido, do baixo, do curvo, do contínuo, o que as relacionaria ao que é
privado, escondido, invisível — tal representação tem sido socialmente
preservada sob a proteção de padrões culturais sustentados, ainda, pela
lógica patriarcal.
Nova Escola se enquadra no panorama desse referencial simbóli-
co cristalizado, no qual a profissão do magistério, como trabalho exerci-
do por pessoas do gênero feminino, recebe um tratamento similar àque-
le dispensado pelos artefatos da comunicação dirigidos especialmente
às mulheres. Nesse sentido, Fontcuberta (1994) ressalta que estes cons-
tróem um discurso sobre a vida privada, distinguindo-se dos artefatos de
comunicação em geral que se dirigem à vida pública. Argumenta a auto-

10
Um exemplo disso pode ser encontrado na pesquisa de Costa (1995), em que o grupo
de professoras de uma escola situada em zona de periferia urbana, freqüentemente im-
plicado em conflitos em defesa de estudantes e em lutas políticas por melhores condi-
ções de trabalho, se autodenomina as guerreiras.
11
Apresentada, inclusive de forma gráfica, no ensaio/I dominação masculina, cuja pri-
meira versão em língua portuguesa foi publicada na revista Educação & Realidade (cf.
ref. bibliog.)

84 • Estudos Culturais em educação


ra que, desde o ponto de vista das mulheres, a esfera privada é um lugar
ambivalente de controle e sujeição em que, durante séculos, permane-
ceram reclusas e impedidas de assumir um papel público destacado.
Em Nova Escola, a disposição diferenciada de professoras e profes-
sores nos mundos público e privado, seja em matérias, fotos, ilustrações,
seções de humor, de cartas, etc., constitui uma evidência da perspectiva
distinta em que homens e mulheres estão posicionados na política cultu-
ral da identidade. Enquanto os professores são apresentados como habi-
tantes "naturais" dos espaços públicos — museus, teatros, bosques, can-
chas esportivas —, as professoras, por sua vez, são expostas, predominan-
temente, em ambientes escolares internos — sala de aula, biblioteca, ga-
binetes e outras dependências — estando, invariavelmente, envolvidas
muito proximamente com crianças. Além disso, em uma sessão intitulada
Obrigado(a) professor(a), que inclui sempre uma foto de quem agradece
e/ou é alvo do agradecimento, constata-se essa distinção em relação a pon-
tos interessantes. As descrições dos(as) homenageados(as) constantes das
legendas que circundam as fotos, ao referir-se a professoras, invariavel-
mente fornecem dados sobre sua vida pessoal — "mora com parentes",
"vive com a família", "é solteira", "casada", "tem netos". Quanto aos pro-
fessores homens lembrados, de nenhum deles é oferecida qualquer infor-
mação relativa à vida familiar ou privada.
A esse respeito, Michelle Perrot (1988) tem argumentado que im-
pelir as pessoas à esfera do privado é uma tentativa de diminuir seu po-
der na incursão sobre os assuntos públicos, reduzindo sua participação
no controle social. Corrobora esta asserção o fato de que nos textos es-
critos desta seção observa-se uma diferença substantiva em relação aos
atributos que são destacados em relação aos dois gêneros. Os professo-
res são reiteradamente lembrados como "rigorosos, exigentes, fascinan-
tes", enquanto às professoras reserva-se atributos como "paciência, de-
dicação; compreensão, afeto e aconchego".
Neste particular, quando observamos as fotos reproduzidas em Nova
Escola, percebemos que elas parecem acionar dois quadros referenciais
distintos na articulação de uma política de identidade relacionada a gê-
nero. Se observarmos o conjunto de fotos de professoras, perceberemos
que elas se encontram fisicamente muito próximas de seus alunos e alu-
nas, freqüentemente tocando-os(as), tendo-as(os) ao colo, outras vezes
apontando, ouvindo, abraçando ou sendo abraçadas, dirigindo a mão na

Mídia, magistério e política cultural • 85


escrita, brincando, olhando atenta e carinhosamente, ouvindo e lendo his-
tórias, vestindo, ajudando, enfim, de diferentes formas, estabelecendo
vínculos empáticos e afetivos. Se compararmos este primeiro conjunto
ao de fotos de professores do sexo masculino, constataremos uma signi-
ficativa diferença em relação às situações em que são fotografados. Além
de as fotos de homens serem bem menos numerosas — o que é plena-
mente explicável por sua reduzida presença, hoje, nos quadros do ma-
gistério do ensino fundamental — aquelas em que estão postados fisica-
mente próximos ou tocando os(as) estudantes são muito raras. É eviden-
te que tais representações se articulam àquelas ainda predominantes em
nossa cultura quanto às possibilidades consideradas "masculinas" da
expressão do afeto, e segundo as quais os homens seriam, por natureza,
dotados de maior capacidade de controle de suas emoções. Essa capaci-
dade, justamente, é que os colocaria em uma posição privilegiada no ter-
reno da racionalidade.
É nessa direção que segue nossa argumentação sobre a participa-
ção da revista no processo de subjetivação das professoras e na consti-
tuição da identidade feminina da profissão docente. Como campo povo-
ado pelas mulheres, o magistério está também situado em uma posição
desfavorecida no jogo de correlação de forças social em que o elemento
privilegiado é sempre o hegemônico e paradigmático mundo masculino.
Assim, por uma questão demográfica de gênero — que por conjunturas
socioculturais está também associada a classe social — a docência se
encaixa em uma posição social subalterna, situação hierárquica que ten-
de a se exacerbar se levarmos em conta o atual panorama político carac-
terizado pela investida neoliberal de inspiração conservadora, que traz
consigo a tentativa de restauração de padrões e condutas sociais que já
considerávamos descartados.
Entre os vários pontos que aproximam a revista para docentes que
examinamos e as revistas femininas apresentadas por Buitoni (1981) está,
ainda, a opção pelo receituário. Assim como as revistas femininas pres-
crevem, com o verbo conjugado no imperativo, fórmulas de beleza, ele-
gância e bem viver, a revista Nova Escola fornece receitas para o traba-
lho do ensino. Não há, neste caso, nenhuma preocupação em camuflar
este caráter prescritivo e, em tempos mais recentes, o anúncio da exis-
tência de receitas aparece inclusive em chamadas de capa — Uma recei-
ta de informatização para sua escola (n.90, dez. 1995) — circundadas

86 • Estudos Culturais em educação


por numerosas frases com efeito equivalente, como, por exemplo Expli-
que simetria com espelhos e decalques" (n.99, dez. 1996), "Use sucata
com a técnica do alinhavo" (n.95, ago. 1996) ou "Como aliviar a tensão
da chegada à quinta série" (n.99, dez.1996).12 Pratica-se, assim, uma
pedagogia.
O acento pedagógico-prescritivo, contudo, parece ser privativo de
revistas femininas e daquelas dirigidas a docentes do ensino fundamen-
tal, revelando uma conduta distinta da adotada em periódicos direciona-
dos a outros segmentos ocupacionais. Quem ousaria opinar sobre como
os médicos devem realizar seu trabalho, dar sugestões técnicas a enge-
nheiros ou conselhos a advogados? Certamente ninguém. Se em relação
a estas profissões isto é raro em situações coloquiais, é praticamente inu-
sitado em veículos impressos.13 Entre outras justificativas, uma seria
certamente de redobrada importância; o campo profissional. Profissio-
nais possuem um espaço de atuação demarcado, restrito e privativo, pre-
servado por códigos próprios que excluem qualquer possibilidade de in-
terferência de "profanos". Já em relação ao magistério e outras ocupa-
ções femininas isto não acontece.
Especificamente em relação ao magistério, a estratégia da revista
toma-se mais problemática na medida em que não apenas são prescritas
receitas e sugestões na forma imperativa, mas tal conduta decorre, ffe-

12
É interessante observar, nestas e em muitas outras frases, dentre as muitas sugestões,
conselhos e prescrições que aparecem nas capas da revista, a presença de palavras de fá-
cil associação com o universo simbólico feminino como, por exemplo; espelhos, alinhavo,
receita, etc.
13
Impelidas pela curiosidade, ao realizar a pesquisa, manuseamos alguns jornais e re-
vistas que circulam em outros campos profissionais, bem como conversamos com alguns
de seus representantes — uma médica, uma arquiteta e um engenheiro. Constatamos que
para essas áreas de atuação, pelo menos em nosso meio, não há veículos impressos de
grande circulação — similar à Nova Escola — com a finalidade de transmitir orienta-
ções técnicas e/ou científicas. O que existe são órgãos de divulgação de produtos e pro-
cessos tecnológicos, com objetivos de comercialização, como é o caso da apresentação
de medicamentos e equipamentos, na medicina, e de materiais para construção, decora-
ção e demais instalações, na arquitetura, ou periódicos produzidos por organizações cor-
porativas, como associações ou conselhos profissionais, que apresentam e debatera ques-
tões específicas das categorias, com caráter informativo. Embora concordemos com Ke-
llner (1995), quando afirma que a própria publicidade é uma pedagogia, entendemos que
há distinção entre a pedagogia prescritiva praticada pela Nova Escola e as sutis pedago-
gias da sedução para o consumo praticadas por outros veículos.

Mídia, magistério c política cultural • 87


qüentemente, de uma ampla e minuciosa exposição de incorreções, ina-
dequações e incompetência dos (as) docentes na execução de tarefas ine-
rentes ao seu trabalho e à sua formação, o que nos remete à estratégia da
imputação da carência, mencionada anteriormente, como parte integrante
das práticas de subjetivação. Tal invocação de "deficiências", ocorrendo
em relação a outros domínios, seria inaceitável e rotulada de anti-ética,
podendo, inclusive, dar origem a acirrados debates com a mobilização da
opinião pública em defesa da legitimidade da manutenção de redutos
privados do saber. Por que isso não acontece em relação ao magistério
do ensino fundamental, mesmo em uma época em que a maioria das pro-
fessoras e professores já é detentora de uma formação especializada?
Nossa suposição é que profissões feminizadas são alvo de discrimina-
ções — menor remuneração, menor valorização social, maior controle e
direção exercidos sobre seu processo de trabalho — que pressionam seus
agentes a manter-se em posições sociais com menor projeção e sujeitas
a determinações que têm origem dentro e fora de seu âmbito de ação.
Ser homem ou mulher é o corolário de uma produção social em que es-
tão imbricadas relações de poder nas quais diferenças geram hierarquia
e desigualdade. Scott (1990) nos ajuda a compreender que o ser "femi-
nino" ou "masculino" advém de posições distintas no mundo, das quais
decorrem diferenças de poder. E é certamente apropriado supor que o
atual recrudescimento de propostas que sugerem simplificação na for-
mação especializada para a docência tenha sua inspiração no discurso
do neoliberalismo e em seu entorno conservador, cuja retórica de igual-
dade de direitos e oportunidades não consegue dissimular seu compro-
metimento com uma interessada política de gênero que se articula con-
tra as históricas reivindicações das mulheres, tentando mantê-las cativas
das "prisões de imagem" de que nos fala Alice Walker (1989).

Cultura e educação — reinventando o hoje

Ao concluir a leitura de um ensaio em que se anunciou percorrer


as páginas de um periódico para mostrar como sua narrativa está impli-
cada em processos de subjetivação e na constituição de representações
que fabricam identidades, muitos leitores e leitoras poderiam perguntar
sobre as repercussões de um estudo como este para as graves questões

88 • Estudos Culturais em educação


educacionais que nos afligem. Minha resposta seria simples: talvez o que
ele traga de contribuição seja apenas o fato de que olhar para o magisté-
rio e para a cultura como espaços da nossa captura e sujeição possa tor-
nar-nos mais humildes e receptivos para tentar compreender aquilo que
nos circunda, nos constitui e nos aprisiona irrecorrivelmente. Talvez isso
nos ajude a descartar sonhos de onipotência e onisciência, legados de um
sujeito moderno que nos (com)formou em uma trajetória em que só pros-
seguir era possível, jamais retomar ou, simplesmente, vaguear. Talvez
perambular pelos fragmentos de subjetividades onipotentes nos permita
pensar em um mundo que existe aqui, e não lá, que pulsa hoje, quem sabe
amanhã, mas que nos desafia a viver o presente, a praticar a solidarieda-
de nas pequenas lutas de cada dia, agora e não apenas num futuro que só
existe na nossa imaginação. Nosso grande desafio é o hoje. Em meio a
tudo aquilo que nos captura e institui, é neste tempo e neste espaço que
precisamos inventar histórias de igualdade. O mundo é um texto e nele é
preciso inscrever ainda muitas histórias sobre as identidades.

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Arquitetura & Interiores: o jornal do arquiteto, v.II, n.13, jan. 1997.
Jornal Brasileiro de Medicina - JBM, v.70, n.4, abr. 1996.
Jornal do CREA/RS,\.5, n.l9,jan.fev. 1997.
Nova Escola, São Paulo: Fundação Victor Civita, n.37 a 99,1990 a 1996.
O Engenheiro: Jornal do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio Gran-
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Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no GT Educação e Comunica-


ção, na 2 Ia Reunião Anual da ANPEd, em Caxambu, MG, em setembro de 1998.

Mídia, magistério e política cultural • 91


Capítulo 4

Os sentidos da alfabetização
na revista Nova Escola

Norma Marzola

A questão da alfabetização, num país com históricos e elevados índices


de analfabetismo como o Brasil, tem merecido, há várias décadas, um lugar de
destaque nas pesquisas acadêmicas, nos discursos políticos e, por conseguinte,
nos vários veículos da mídia. Apesar da centralidade que o tema adquiriu nos
meios educacionais e do seu extravasamento para outros campos, pouco se
tem produzido de novo em relação a essa questão. E não, certamente, por falta
de preocupação com o tema ou, mesmo, por falta de recursos para enfrentar
a problemática que o envolve. Como explicar, então, o fracasso das sucessivas
campanhas de alfabetização deflagradas pelos órgãos públicos ou da busca
incessante por alternativas pedagógicas eficazes? E como explicar, ao mesmo
tempo, a insistência e a permanência de uma retórica que faz da alfabetização
um instrumento privilegiado para a solução dos problemas individuais e soci-
ais? São essas questões que estão na base do estudo que realizei sobre os sig-
nificados da alfabetização na revista Nova Escola.
Parto do princípio que todo discurso, sem exceção, aprisiona. O que
me preocupa, no entanto, é a unanimidade tão duradoura de um determi-
nado discurso sobre alfabetização, entre nós, ainda que ele mostre algu-
mas diferenças aparentes. Considero o discurso de Nova Escola — en-
quanto uma revista especialmente dirigida ao professorado de primeiro grau1

1 Utilizo a expressão primeiro grau, seguindo a nomenclatura adotada pela revista na época cor-
respondente aos números examinados. Hoje, a denominação oficial é ensinofundamental.

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 93


e a de maior circulação entre esses(as) professores(as) — como um dos
produtores privilegiados dessa unanimidade. Daí a escolha de meu objeto
de análise.
Dado o meu ponto de partida, minha pretensão não é demonstrar
se a revista ajuda ou não a resolver os problemas da alfabetização em
nosso País. A partir de uma perspectiva que se embasa nos Estudos Cul-
turais e na tradição pós-estruturalista, procuro analisar o discurso sobre
alfabetização da revista como constituidor dos seus significados, bem
como constituidor das subjetividades de alfabetizadoras e de alfabetiza-
dores. Isto significa deixar de ver o discurso de Nova Escola como um
mero transmissor e divulgador de concepções e propostas de alfabetiza-
ção tradicionais e inovadoras, para entendê-lo como uma linguagem que
produz os significados e os sentidos dessas concepções e, ao fazê-lo,
normaliza tanto essas concepções como a "adesão" dos alfabetizadores
e das alfabetizadoras a elas, além de regular sua "correta" aplicação.
Nessa perspectiva, o discurso da revista constitui, assim, identidades
profissionais com as quais seus leitores e leitoras procuram se identifi-
car e, com isso, ver reconhecidas suas posições enquanto alfabetizado-
ras e alfabetizadores.
A partir daí, trata-se, então, de ser ou de tornar-se tal ou qual
alfabetizador(a), de aplicar tal ou qual método de alfabetização, de con-
ceber a aprendizagem da leitura e da escrita de tal ou qual forma. Ou seja;
trata-se de produzir, no discurso e pelo discurso, determinados signifi-
cados de alfabetização e determinadas subjetividades alfabetizadoras.
Meu interesse, nesse estudo, é, portanto, analisar como se dá essa
produção no discurso de Nova Escola, tendo em conta que a revista é
um dos lugares de produção desse discurso. Ao fazer essa análise, pre-
tendo apontar para a possibilidade de outros discursos sobre alfabetiza-
ção e, portanto, de outras produções. Os estudos sobre alfabetismos so-
ciais, apesar de recentes entre nós, têm mostrado que isso é possível.
Para a análise que pretendo desenvolver nesse trabalho, vou tomar
como ponto de partida algumas das declarações feitas por um dos edito-
res da revista Nova Escola, em entrevista concedida em 1997.2 Quero

2
Ver relatório de pesquisa Produzindo subjetividades femininas para a docência. Ver-
são preliminar. Porto Alegre, NECCSO — Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura
e Sociedade, PPGEDU/UFRGS.

94 • Estudos Culturais em educação


justificar esse ponto de partida dizendo que a extensa citação, a seguir,
tem a vantagem de me abrir, de imediato, pelo menos três vias de abor-
dagem da temática que me preocupa, ao tomar como foco de análise o
discurso sobre alfabetização da mais conhecida revista brasileira dirigida
ao professorado de primeiro grau. Como um órgão da grande mídia
(Fundação Victor Civita da Editora Abril), com mais de 300 mil exempla-
res de tiragem mensal, sendo que 70% deles regularmente adquiridos pelo
Ministério da Educação (MEC) para distribuição nas escolas (pelo me-
nos até 1996), a revista Nova Escola é, sem dúvida, a mais disseminada
entre os professores e professoras de primeiro grau de todos os cantos
do país.
Nesse texto, as três vias de abordagem que selecionei serão desen-
volvidas, para os objetivos da análise, em três movimentos temáticos
subseqüentes, muito embora estes se apresentem atravessados, consti-
tuindo, desse modo, o próprio discurso sobre alfabetização da revista.
Estou certa de que o tema de cada um desses movimentos mereceria, por
si só, mais longas considerações. Ao tratá-los conjuntamente no corpo
desse texto, faço uma opção clara em favor de uma abordagem mais
abrangente da prática discursiva da revista.
Com a palavra, então, o editor de Nova Escola entrevistado:

É que a revista tinha que ter uma "fórmula Abril". E o que é "fórmula
Abril"? A revista é feita para ser lida pelo leitor. Aquilo que o leitor
quer ler é um parâmetro importante para quem faz a revista, que so-
mos nós. [...]. A gente acha que pode escrever sobre tudo, na medida
em que se escolheu um público. Um público que tinha uma carência
de conhecimentos muito grande... muito grande!... Descobrimos depois,
pelas cartas e pelo retorno, que essa carência era muito maior do que
se imaginava. Carta nunca é um retorno muito bom. [...1. Se o cara es-
creve uma carta para um jornal ou uma revista, ele é doido o suficiente
para a opinião dele não ser da maioria, porque é uma atitude muito inu-
sitada escrever. A revista é para ler, não para você escrever para ela.
[...]. Mas a gente incentiva... a gente acha que a pessoa que toma essa
iniciativa se destaca tanto da massa que ela não pode ser tomada como
parâmetro. É o ... falso amigo da gente. Quer dizer que a gente pode
sentir o pulso do leitor pelas cartas ou pelos telefonemas que recebe,
não é? [...]. Mas, enfim, pelo pouco que a gente tinha da revista que
foi feita logo no início, era claro que o professor sabia muito pouco
da profissão. [...]. No início dessa mudança, essa era a grande linha
que a gente tinha para poder determinar a maneira de fazer a revista.

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 95


A gente recebia carta de professor dizendo que o maior sonho dele era
se formar no primeiro grau, principalmente do Nordeste, que tem muito
professor leigo. Então achávamos que era um horror, que o professor
era quase uma tábua rasa. E a gente sentiu muita vontade de escre-
ver numa linguagem que qualquer pessoa entendesse. A gente vai
evitar o máximo possível os chavões da pedagogia. Vai evitar falar as-
sim; "O construtivismo, como todo mundo sabe...". [...]. Então, a idéia
era essa: a matéria boa para Nova Escola é a matéria que qualquer
pessoa pode entender, não necessariamente só o professor. Claro, com
o tempo passando, a gente começou a entender um pouquinho mais
as coisas, muito pouco. Realmente, não somos professores. E aí a gen-
te volta e meia se pega usando algum chavão, se pega achando que
aquele conceito o leitor tem que obrigatoriamente ter na cabeça, se-
não ele não é um professor. Mas a linha geral ainda é essa: tem que
ser muito simples, tem que ser muito claro, tem que ser muito recorta-
do... A apresentação gráfica das matérias tem que ser muito diferen-
ciada: ter muito texto, legenda, muita foto... [...]. Se você pegar as re-
vistas mais antigas, anteriores, vai perceber que elas têm basicamen-
te texto. [...]. Texto, texto, texto, texto... e a nossa idéia é resumir mes-
mo. A gente acha que ninguém lê. [...]. Acho que é a revista da Abril
que tem o público mais delimitado: a gente escreve para professores
de primeiro grau. [...]. Independente de achar que a revista é boa ou
mim, ela tem um alvo determinado. Todo mundo sabe para quem a
gente escreve!...3

São, portanto, essas declarações que tomo como inspiração para


os diversos movimentos nos quais vou desenvolver minha análise crí-
tica. Num primeiro movimento, procuro deter-me nos sentidos e sig-
nificados da alfabetização produzidos pela revista Nova Escola ao lon-
go de 10 anos de publicação (1986-96); no segundo movimento, pro-
ponho-me analisar a emergência e a conquista de hegemonia do dis-
curso construtivista sobre alfabetização em suas páginas (1987-96);
por último, e num terceiro movimento, pretendo analisar a produção
do leitor e da leitora pelo discurso sobre alfabetização da revista, ten-
do em vista que esse discurso não foi sempre o mesmo e que também
não foram os mesmos os leitores e as leitoras supostos(as) por ele.

3
Como este texto foi transcrito de uma gravação, suprimi as redundâncias e repetições
típicas da linguagem oral, substituindo-as por reticências.

96 • Estudos Culturais em educação


Os sentidos da alfabetização em Nova ^Escola

Nesse primeiro movimento, vou tomar o discurso sobre alfabetiza-


ção da 'Nova Escola como um modo de construir sentidos sobre a aqui-
sição da leitura e da escrita, sentidos esses que organizam e regulam tanto
a produção das ações alfabetizadoras como a subjetividade da alfabeti-
zadora e do alfabetizador.
A leitura dos textos sobre alfabetização, publicados pela revista
entre 1986 e 1996, mostra, de imediato, que os sentidos e significados
de alfabetização produzidos através de suas páginas não foram sempre
os mesmos, marcados que estavam por uma luta que se travou, nesses
anos, pelo poder de interpretar o que se deveria entender como alfabeti-
zação. Não estou tomando os textos publicados pela revista como refle-
xos dessa luta. Ao contrário, estou entendendo-os como parte ativa des-
sa mesma luta, ao produzirem os significados de alfabetização através
do discurso próprio a um artefato cultural da grande mídia, voltado para
o mercado ("fórmula Abril"). E evidente, portanto, que os cortes e rup-
turas que se podem observar em relação aos significados da alfabetiza-
ção não se devem apenas às mudanças de direção e da linha editorial da
revista, ocorridas durante aquele espaço de tempo. Trata-se de saber,
então, que condições históricas possibilitaram as mudanças e desconti-
nuidades desses significados e, em conseqüência, da linha editorial e da
direção da revista.
Quando a Nova Escola surgiu, em 1986, a questão da alfabetiza-
ção já se constituíra como um problema educacional especial — talvez
o mais relevante — no cenário de redemocratização que o País estava
vivendo. Desde 1979, com a Lei da Anistia, vinha se desenvolvendo todo
um conjunto de práticas de pesquisas e de ações, junto à academia e aos
movimentos sociais, visando alfabetizar crianças, jovens e adultos dos
meios populares. Não se tratava, no entanto, de deflagrar novas campa-
nhas nacionais de alfabetização, de custos elevados e resultados prati-
camente nulos, como os do extinto Mobral (1967-1983). Na visão peda-
gógica de então, tratava-se de buscar alternativas capazes de solucionar
efetivamente o problema do analfabetismo, "integrando" as populações
analfabetas no processo democrático. A partir daí, as teorias e o método
de alfabetização de Paulo Freire foram entusiasticamente retomados e
dividiram seu espaço com outras duas tendências pedagógicas que se

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 97


desenvolveram, principalmente nas universidades, a partir do início da
década de 80; o conteudismo, ligado à pedagogia crítico-social dos con-
teúdos, desenvolvida pelos teóricos da PUC/SP, e o construtivismo de
inspiração piagetiana, no qual estavam engajados, inicialmente, a UFR-
GS, a UNICAMP e grupos de pesquisa como o GEEMPA.
Naquele contexto de redemocratização, um contexto de grande exa-
cerbação política, a alfabetização transformou-se numa arena de lutas por
parte dos diversos partidos e grupos de esquerda que, ao pretenderem he-
gemonizar o processo de democratização, fizeram dela uma extensão da
militância política. Nem mesmo uma teoria de aprendizagem como o cons-
trutivismo, que sabidamente tinha na sua base "científica" (objetiva, uni-
versal, neutra, etc.) a justificativa para a sua postulada superioridade, pôde
ficar à margem desse processo. Para ter alguma possibilidade de reconhe-
cimento nessa arena política e poder, assim, participar do jogo, foi cons-
trangida a explicitar uma opção político-ideológica.
Postulando em comum a defesa dos interesses das classes popula-
res, essas três tendências pedagógicas diferiam, no entanto, quanto ao
sentido da alfabetização e ao tipo de ação alfabetizadora que mais favo-
receriam a luta em prol desses interesses. Assim, a pedagogia libertado-
ra tinha como trunfo principal a valorização da realidade sociocultural
do(a) alfabetizando(a), ao selecionar as palavras-geradoras (significati-
vas) do universo vocabular desses(as) alfabetizandos(as). O processo de
discussão que essa seleção implicava, favoreceria a conscientização dos
problemas daquela realidade, a qual, somada aos movimentos sociais,
garantiria a organização dos oprimidos para a luta política. Quanto à al-
fabetização propriamente dita, esta se resolvia pelo método analítico de
combinação das famílias de sílabas das palavras-geradoras, a fim de for-
mar novas palavras. Já a pedagogia crítico-social dos conteúdos preten-
dia instrumentar as classes dominadas através da alfabetização, garan-
tindo, assim, a essas classes, o acesso efetivo aos "conhecimentos uni-
versais". É famosa, nesse sentido, a seguinte passagem de Saviani (1982);
"Os dominados só deixarão de ser dominados no dia em que dominarem
os instrumentos que os dominantes dominam". Para os conteudistas,
portanto, a alfabetização era a chave para o domínio do "acervo dos co-
nhecimentos acumulados pela humanidade", os quais deixariam, assim,
de ser privilégio exclusivo das classes dominantes. O construtivismo pe-
dagógico, por seu lado, fundava o processo de alfabetização na experi-

98 • Estudos Culturais em educação


ência do(a) alfabetizando(a) no seu meio de origem, na medida em que o
nível psicogenético que atingira em seu processo de construção da leitu-
ra e da escrita dependeria dessa experiência. "Partir do ponto em que
o(a) alfabetizando(a) se encontra" em relação à alfabetização não signi-
ficava outra coisa senão detectar o seu nível de compreensão da língua
escrita para fazê-lo chegar, o mais rapidamente possível, à compreensão
da escrita alfabética.
A luta pela imposição desses diferentes significados de alfabetiza-
ção passa a ter, nas páginas de Nova Escola, um espaço privilegiado, pelo
fato mesmo de a revista se dirigir a um "professor que sabia muito pou-
co da profissão", um "professor que era quase uma tábua rasa" e que "não
lê". Tomando para si a "missão" de orientar esse professorado, sem per-
der de em vista um mercado cativo de centenas de milhares de professo-
res e professoras, a Revista, já em seu primeiro número (março de 1986),
publica uma reportagem intitulada^ cartilha que deu certo, tratando da
Cartilha da Ana e do Zé, nos seguintes termos;

Para escrever os textos, Luiza Teodoro baseou-se no Método Paulo Frei-


re, que tem a particularidade de estimular a criança a pensar sobre as pa-
lavras que está começando a conhecer, fazendo com que ela desenvolva
uma consciência crítica. Esse processo é indicado a partir das palavras
geradoras, compostas de fonemas que se desdobram para a formação de
outras palavras. A criança escreve e cria enquanto aprende, (p.58)
De acordo com pesquisas da Secretaria de Educação do Estado do Ceará,
o índice de alfabetização através da Cartilha anda em tomo de 80% no
prazo médio de um ano. (p.58)

Os interesses de Nova Escola em relação à alfabetização se confi-


guram tanto na seleção do tema (cartilha) como nos aspectos que a re-
portagem ressalta (método de alfabetização, forma de aprender, índices
de alfabetização). Ainda mais; sua referência a Paulo Freire — um autor
que era, por sua clara definição política, quase uma unanimidade na área,
na época — inclui, entre os benefícios do seu método de alfabetização,
a capacidade de produzir uma consciência crítica. No entanto, a cartilha
como instrumento de alfabetização e o método Paulo Freire, como gera-
dor de consciência crítica, seriam logo preteridos em favor da divulga-
ção de métodos que baseiam a eficácia da aprendizagem da leitura e da
escrita em "descobertas científicas".

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 99


Nos seus primeiros números, contudo, era como se a revista, para
bem informar seu público, apresentasse uma pluralidade de posições sobre
alfabetização, seja nas entrevistas com renomados especialistas, seja nos
depoimentos de diferentes profissionais ou nos relatos de experiência das
alfabetizadoras. Também as matérias ou referências sobre alfabetização,
publicadas em todas as demais seções da revista, procuram manter esse
mesmo critério "aleatório e objetivo", de meramente dar conta do assun-
to para os leitores e leitoras. Sua "neutralidade" parece obedecer ao prin-
cípio postulado pelo editor entrevistado: "Aquilo que o leitor quer ler é
um parâmetro importante para quem faz a revista, que somos nós". Essa
"neutralidade", que faria da revista um mero reflexo dos interesses dos
leitores e das leitoras, é extremamente produtiva: constituiu uma estraté-
gia mercadológica eficaz e passageira para cativar (tomar cativo) o pú-
blico da revista. Assegurado esse objetivo, seu discurso já pode começar
a mudar no segundo ano de publicação.
E com efeito, em seu número de maio de 1987, a revista publica
uma matéria crítica sobre o uso das cartilhas. E como a matéria atinge
inclusive a Cartilha da Am e do Zé, trata de individualizar a responsa-
bilidade da crítica, como se a opção por publicá-la não mostrasse, desde
logo, o engajamento da revista com essa crítica.

A autora de A Ideologia das Primeiras Letras no Interior do Pais não poupa


nem a Cartilha da Ana e do Zé, que já alfabetizou mais de 500 mil crianças no
Ceará. (Conforme reportagem publicada no n.0 1 de Nova Escola, p.40.)

Na continuação da matéria, contudo, a mudança de perspectiva que


irá informar, daí em diante, a produção editorial da revista, começa a se
fazer sentir, e a validação da crítica passa a ser feita por meio de com-
provação científica", a qual inclui, sobretudo, dados estatísticos e resul-
tados de pesquisas:

No Ceará, a Cartilha da Ana e do Zé também alcançou cifra expressiva:


60% das 533.038 cartilhas distribuídas pela FAE. [...]. Esse sucesso, po-
rém, pode estar ameaçado. O Ministério da Educação, também preocupa-
do com a qualidade dos textos distribuídos através da FAE, encomendou
uma pesquisa que deverá servir de base para um plano de reformulação
dos livros didáticos, (p.41)

100 • Estudos Culturais em educação


A questão do método — que definia a adoção de cartilhas, o levar
em conta a experiência dos alfabetizandos e alfabetizandas no seu meio
de origem e a eficácia da aprendizagem — passa a ser sustentada, a par-
tir de 1987, por uma base "científica". A "verdade" da ciência é, até 1996,
o critério maior do significado da alfabetização, sua justificativa e legi-
timação, o fundamento da sua política e das suas estratégias de luta. Esse
caráter metodológico anuncia, pois, uma mudança do sentido da alfabe-
tização produzido pela revista, cujos efeitos não se fazem esperar, tal
como se pode observar pela solicitação dirigida à redação por uma alfa-
betizadora de Botucatu (SP);

Fiquei sabendo da existência do método de alfabetização de Emilia Fer-


reiro através de Nova Escola (edição de abril). Gostaria que vocês me in-
dicassem livros em que eu pudesse ter mais contato com esse método, (n. 14,
agosto/1987)

A concepção construtivista de alfabetização começa, assim, a ser


produzida e articulada pelo discurso da revista, que a apresenta como uma
metodologia "científica" e, por isso mesmo, capaz de superar as insufi-
ciências das metodologias até então dominantes nas práticas alfabetiza-
doras. A estratégia de produção do significado da alfabetização e das
subjetividades das alfabetizadoras não se coloca mais, a partir daí, como
"aleatória" ou "neutra". Passa a ser declaradamente interessada e cen-
trada num determinado significado de alfabetização, o que permite que
a qualidade e a legitimidade "científicas" da concepção construtivista
comece a produzir seus efeitos através do discurso da revista.

A hegemonia do significado
de alfabetização construtivista

A construção da hegemonia do discurso construtivista sobre alfa-


betização, nas páginas de Nova Escola, tem seu início em 1988, através
do confronto com outros métodos e outras maneiras de conceber a apren-
dizagem da leitura e da escrita:

Léa afirma que a atenção individualizada não era dada no método tradici-
onal, em que todos os alunos da classe acompanham em conjunto uma

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 101


mesma lição da cartilha. "Num tratamento coletivo, os mais fracos acabam
ficando para trás. A gente acompanhava mais o ritmo dos fortes, que exi-
gem que você passe para frente, avance na cartilha. Por mais que você
tente dar atenção não dá tempo para resolver as dificuldades individuais",
avalia, (n.19, p.37, mar. 1988)

[...] supera anteriores metodologias de alfabetização, pois evita as falhas


já denunciadas nas tradicionais cartilhas, (n.23, p.54, jul. 1988)

Já nesses primeiros discursos, o confronto se expressa pela desqua-


lificação dos concorrentes ("método tradicional", "tratamento coletivo
dos alunos") e pela valorização de uma metodologia que prega a "aten-
ção individualizada", que respeita o ritmo de aprendizagem dos diferen-
tes alunos e alunas e que "evita as falhas já denunciadas nas tradicionais
cartilhas". A guerra contra as cartilhas começa a ser produzida pelo dis-
curso de Nova Escola, com vistas à imposição do significado construti-
vista de alfabetização.
Tal significado é explícita e decididamente adotado pela revista, a
partir de 1989, quando a hegemonia da alfabetização construtivista no
seu discurso transforma o domínio da leitura e da escrita numa tarefa
pedagógica de cunho "científico" e o constitui, ao mesmo tempo, como
a solução para os grandes problemas educacionais: "Ao mesmo tempo,
o Rio Grande atacou a questão pedagógica, abrindo espaço para o cons-
trutivismo na alfabetização como saída para reduzir a evasão e a repe-
tência." (ver n.34). Daí em diante, o significado construtivista de alfa-
betização passa a ser o parâmetro para comentar, avaliar, legitimar ou
criticar as reportagens publicadas sobre outros tipos de experiências de
alfabetização:

Apesar dos bons resultados obtidos no Distrito Federal, o Método Ludo-


Genético desconsidera tudo o que a criança já sabe quando chega à esco-
la, está distante do mundo dela e não tem nenhuma base científica em Pia-
get e em relação à gênese dos conceitos de aprendizagem. A avaliação é
da professora Marilice Pitaguaru, do curso de Pedagogia da Universida-
de de Brasília e especialista em alfabetização. Para ela — que desenvolve
uma pesquisa na favela do Paranoá (DF), aplicando as teorias descober-
tas por Emilia Ferreiro na área de alfabetização —, a técnica de Zélia Al-
meida peca por não supor uma forma de como a criança vê o mundo e de-
senvolve o processo de aprendizagem, (n.30, p.35,1989)

102 • Estudos Culturais em educação


A hegemonia do construtivismo na revista faz com que o seu dis-
curso sobre alfabetização produza classificações e hierarquias entre os
teóricos e teóricas da área ("Montessori teve uma visão romântica, se-
gundo a qual a criança adquiriria o conhecimento naturalmente, de for-
ma individualizada, sem o contraponto do grupo" — n.79, p.29, 1994).
Além disso, passa a regular o que se pode ou não se pode fazer em maté-
ria de alfabetização, para se ter legitimidade "científica"; "Ao fazer a
opção pelo construtivismo, nega-se tudo o que se fazia antes. Acaba-se
com o modelo"(n.65, p.9, 1993).
Tendo em conta o que é ("um veículo da grande mídia") e para quem
se dirige ("Todo mundo sabe para quem a gente se dirige!..."), o discur-
so da revista supõe e produz um(a) determinado(a) leitor(a), nessa fase:
o alfabetizador e a alfabetizadora construti vista:

Eles (os professores) recebem orientação ainda sobre a importância de se


criar um ambiente alfabetizador na sala de aula, com a colocação de car-
tazes e mobiles nas paredes contendo palavras, sílabas e letras. Aprende-
ram também a aplicar no início do primeiro semestre um teste de sonda-
gem para identificar o "nível de cognição" (pré-silábíco, silábico, silábi-
co-alfabético e alfabético) de cada criança que ingressa na escola, (n.35,
p.28, 1989)

[...] numa proposta construtivista de ensino, não entram cartilhas ou livros


didáticos, embora a sala de aula se transforme totalmente, criando-se o que
se chama de ambiente alfabetizador. Ou seja, valoriza-se a palavra escrita
através de livros, revistas, cartazes, rótulos. O ritmo da aula é dado pelos
alunos, cabendo ao professor manter o equilíbrio entre a liberdade e a ba-
gunça. Trabalha-se de forma a não inibir as tentativas do aluno com o lá-
pis e o papel, mesmo que ele leve meses fazendo sinais que pareçam es-
tranhos ao professor ansioso que ele aprenda. As expressões certo e erra-
do desaparecem do vocabulário e o professor não mais pode valer-se da
avaliação tradicional para acompanhar o desenvolvimento do aluno, (n.48,
p.ll, 1991)

Apesar de todas essas declarações, que constituem a base da dife-


rença que procura estabelecer em relação a todas as demais práticas al-
fabetizadoras, o discurso construtivista da revista, buscando se tomar
mais produtivo, toma-se claramente contraditório ao fazer prescrições e
indicar procedimentos úteis ("dar receitas") para o ensino da leitura e da
escrita:

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 103


Recomendações; Os autores das publicações explicam como você pode
tomar suas aulas mais produtivas. Confira:
• Ofereça o máximo de atividades e leituras que exemplifiquem os usos
da escrita. Para apresentar palavras novas, aproveite os acontecimentos
que estejam mobilizando a turma, como festas, músicas, brincadeiras e fatos
locais e nacionais.
• Dê o exemplo. Mostre que você é um leitor e que os livros são impor-
tantes em sua vida. Enquanto os alunos lêem, leia também. Fale de infor-
mações de jornais e livros que ajudaram a resolver problemas.
• Faça da sala de aula um ambiente propício à leitura. Espalhe cartazes,
revistas, figuras e jornais para serem lidos, colados ou recortados. Promova
o dia da leitura e monte um painel com as histórias trabalhadas pelas cri-
anças e as opiniões de cada uma. (n.97, p. 12, 1996)

É também no sentido de atingir uma maior eficácia, que a pro-


dução de alfabetizadoras e de alfabetizadores construtivistas pelo dis-
curso de Nova Escola inclui, além de orientações e "receitas", rela-
tos entusiasmados de professoras "tradicionais" que se "converteram"
ao construtivismo. Uma delas chegou a merecer uma capa da revista
(n.65, abril/1993) com a seguinte chamada; "Como consegui me tor-
nar uma construtivista".
Os efeitos produzidos pela hegemonia do discurso construtivista
no campo da alfabetização atingiram todas as hierarquias educacionais.
O MEC, por exemplo, procurou se precaver da acusação de ser "tradici-
onal" em matéria de alfabetização, ao incluir em suas compras anuais a
"cartilha construtivista" (sid), conforme notícia publicada na página 12
do n.97 de Nova Escola (1996):

1.500.000 cartilhas foram compradas pelo MEC neste ano, sendo 345 mil
do tipo construtivista. 187.226 exemplares comprados pelo MEC torna-
ram a cartilha construtivista Descobrindo a Vida a mais usada neste ano
na rede pública.

Para encerrar esse segundo movimento, gostaria de fazer breves


considerações sobre as estratégias de luta utilizadas pelo discurso cons-
trutivista da revista para se impor frente aos demais significados de al-
fabetização e para produzir alfabetizadoras e alfabetizadores construti-
vistas. Em outras palavras: quais os meios utilizados para a conquista dessa
hegemonia construtivista no discurso de Nova Escola e de onde vem sua
força de imposição?

104 • Estudos Culturais em educação


A "força" do discurso construtivista da revista decorre, em grande
parte, do fato de sua construção discursiva se dar por meio de oposições
binárias (método tradicional/método construtivista, uso da cartilha/cons-
trução de textos coletivos, alfabetizadora tradicional/alfabetizadora cons-
trutivista), sendo que o pólo construtivista dessa oposição é sempre apre-
sentado como o verdadeiro, porque legitimado por uma teoria de prestí-
gio científico e por uma retórica valorativa. Portanto, a partir da sua cons-
tituição como uma pedagogia "científica", o discurso construtivista pode
apresentar-se frente às demais pedagogias como a própria expressão da
"verdade" e, nesse sentido, válido universalmente. Tudo o mais pode,
então, ser confinado e condenado à condição de "pré-científico", a pon-
to de não se fazer distinção entre os diferentes métodos de alfabetiza-
ção, qualificando-os a todos, indiferentemente, como "tradicionais".
Criam-se, assim, as condições para se reduzir a oposição a uma forma
binária, bem ao gosto do pensamento moderno, na qual o não tradicio-
nal (o novo, o "científico", o "verdadeiro") se opõe ao tradicional (o ve-
lho, o superado, o "não-científico").
Ao constituir o discurso da alfabetização, o binarismo "alfabetiza-
ção construtivista/alfabetização tradicional" permite que a primeira se
defina e se afirme em oposição à segunda, num exercício de compara-
ção cujo objetivo é desqualificar o outro termo da relação:

Alfabetizar não é um luxo, é um direito. E é preciso garantir esse direito


às crianças deste continente. Mas isso não é o mesmo que pretender que
essas crianças saibam desenhar letras, ou que saibam pronunciar palavras
que não entendem. Isto não é estar alfabetizando, diz Emilia. Queremos é
dar-lhes o direito de saber ler criticamente a palavra escrita pelos outros e
o direito de, escrevendo seus próprios textos, colocar suas próprias pala-
vras, prosseguiu ela, enfatizando: Se a alfabetização não é concebida des-
ta maneira, não vale a pena lutar pela alfabetização. (n.34, outubro/1989)

É, então, através desse jogo discursivo que são constituídas, na e pela


revista, as práticas construtivistas e não-construtivistas ("tradicionais") de
alfabetização. Através de uma ótica maniqueísta, expressa pelo binômio
"método tradicional/método construtivista", a alfabetização não-construti-
vista é condenada. Essa condenação é crucial nesse jogo de poder que reduz
a alfabetização a uma questão de método (Qual o melhor? Qual o mais
avançado, mais moderno, correto, eficaz? Qual o mais verdadeiro9 Certa-

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 105


mente o que possui uma base "científica" mais sólida e incontestável!) e
centraliza sua prática na aprendizagem. Dessa maneira, toda a problemá-
tica da educação institucionalizada passa a girar em tomo das aprendiza-
gens dos alunos e das alunas, o que significa também reduzir aquela pro-
blemática à questão da aprendizagem. A partir daí, a responsabilidade
do sucesso ou do insucesso desses alunos e alunas passa a ser de única e
exclusiva responsabilidade do alfabetizador e da alfabetizadora.
O binarismo "alfabetizadora constmtivista/alfabetizadora tradicional"
é, portanto, parte desse jogo discursivo e uma estratégia fundamental para a
produção dessas subjetividades. De tal maneira que, longe de ser o sujeito
construtor dos sentidos de sua prática, como postula o construtivismo, essa
rede discursiva coloca as posições entre as quais as alfabetizadoras devem
situar-se, levando-as a se debaterem entre ser construtivista (avançada, efi-
ciente, "científica") ou ser tradicional (retrógrada, ineficiente, "pré-científi-
ca"). É entre essas duas posições que elas devem "optar":

Insegurança, resistência dos colegas, falta de formação adequada, mas


sobretudo a dúvida entre ficar com o tradicional — nem sempre eficiente,
mas seguro — ou buscar uma saída, mesmo correndo riscos; essa é a es-
trada do construtivismo. (n.65, p.8, abril/1993)

Cartas do(a) leitor(a): leituras do(a) professor(a)

Penso ser importante, agora, concentrar minha análise numa das


sessões da revista. A escolha da sessão Cartas como objeto preferencial
de meu exame deve-se não apenas à necessidade de definir e delimitar
um campo da análise, mas também a uma determinada maneira de con-
ceber o problema. Afinal, por que não se deter no conteúdo das grandes
reportagens, cujos textos expõem e até propõem novas concepções de
alfabetização e novas formas de ensinar a ler e escrever? Por que esco-
lher justamente a seção Cartas, que se propõe publicar manifestações das
leitoras e dos leitores e que, portanto, aparece como um espaço destina-
do a outras vozes? Ainda mais; por que privilegiá-las, afinal, se essas
Cartas — que se destinam a expressar opiniões, expectativas e interes-
ses das leitoras e dos leitores — são submetidas a um processo de sele-
ção e adaptação pela editoria da revista?

106 • Estudos Culturais em educação


É precisamente essa ambigüidade em relação à leitura do(a)
professor(a), que toma tão especial, para mim, o exame e a análise des-
sas Cartas. Como veremos, a seguir, este é um espaço discursivo pri-
vilegiado por Nova Escola para a constituição e a produção da leitura
que as professoras e os professores fazem da revista. No caso específi-
co da alfabetização, para a produção tanto de significados sobre a aqui-
sição da leitura e da escrita como das subjetividades da alfabetizadora
e do alfabetizador. E nesse sentido, tomo, aqui, as Cartas enquanto nar-
rativas de identidade profissional.
Não é minha intenção denunciar o grau de distorção sofrido pelo
conteúdo das cartas publicadas, ou mesmo a adequação a que elas foram
sujeitas nos processos de seleção e edição, que precederam sua publica-
ção. A análise crítica que proponho fazer das Cartas, a partir da constitui-
ção desse discurso pela revista, não está centrada no significado das suas
palavras, mas nos efeitos desse discurso nas práticas alfabetizadoras.
De acordo com Foucault (1987), os discursos são eles próprios "prá-
ticas que formam sistematicamente os objetos de que falam" (p.56). Ao
emergirem em formações sociais mais amplas — epistemes — e em es-
paços e usos locais, os discursos definem, constróem e posicionam os
sujeitos. É, assim, tanto pelo que diz, como pelo que limita ou exclui que
os discursos revelam os processos sociais de constituição e interpreta-
ção dos seus significados, das posições enunciativas dos sujeitos, bem
como das relações desses significados e sujeitos com as estruturas de
poder e os mecanismos de controle social.
A partir desse entendimento, já se vê o quanto a análise de uma se-
ção como Cartas — e como Sala de Professores que a substituiu defini-
tivamente a partir de março de 1988 —, ao possibilitar e regular o aces-
so de qualquer leitora ou leitor nas páginas da revista, é útil para revelar
os processos que resultaram na constituição e interpretação dos diferen-
tes significados sobre alfabetização incluídos (e excluídos) no discurso
de Nova Escola, ao longo desses dez anos de publicação (1986-1996).

a) Carta do Editor/Cartas do(a) leitor(a)


A Carta do Editor que abre o primeiro número da revista Nova
Escola, de março de 1986, termina com o pedido de que a leitora e o
leitor...

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 107


[...] nos escreva(m) sugerindo, criticando, esclarecendo, retificando ou
revelando alguma experiência de interesse do seu colega, (p.5)

Estão aí dados, de saída, os parâmetros estabelecidos pela editoria


para a participação das leitoras e dos leitores. E, portanto, nesse espaço
criado e delimitado pelo discurso do editor que as cartas serão, nesses
primeiros tempos de publicação da revista, viabilizadas e tomadas obje-
tos de publicação. Dessa maneira, as Cartas publicadas representariam
aquelas manifestações e opiniões devidamente reguladas pela editoria da
revista.
Ora, o processo de seleção ao qual as cartas são submetidas impli-
ca, efetivamente, a inclusão daquelas que se conformam aos padrões e
requerimentos estabelecidos pela revista e na exclusão das outras. Ou
seja: é óbvio que nem todas as cartas que chegam à redação da revista
são publicadas. Além disso, mesmo as que são selecionadas não apare-
cem na íntegra nas páginas da publicação, já que é preciso editá-las para
que se ajustem ao espaço da sessão e às necessidades da linha editorial.
Assim, a seleção e a edição das cartas das leitoras e dos leitores trans-
formam-nas não só em parte do corpus da revista, mas em parte do seu
próprio discurso.
Na pesquisa que realizaram sobre a constituição, pela revista Nova
Escola, das identidades femininas docentes, Costa e Silveira (1997) sa-
lientam que

[...] muitos dos traços que permeiam o discurso de Nova Escola e contri-
buem para a reprodução, fixação e produção de subjetividades docentes
têm um caráter persuasivo, infiltrando-se tanto nas imagens, quanto nos
títulos, nas seções fixas [...] ou mesmo nas reportagens, (p.27)

Não é surpreendente, portanto, que a seção Cartas soe de forma


harmônica com o restante da revista. Aliás, nesse caso, o caráter persua-
sivo começa por aparecer nos subtítulos sob os quais as Cartas eram tra-
dicionalmente agrupadas: Agradecimento, Apelo, Concordo, Denúncia,
Depoimento, Desabafo, Discordo, Elogio, Gostei, Parabéns, Recado,
Reflexão, Sugestão, etc. Tal classificação serve, ao mesmo tempo, de
indicador para o tipo de contribuição possível por parte da leitora e do
leitor, e para a produção de uma determinada maneira de ler a revista,
isto é, para a produção, fixação e reprodução de significados e subjetivi-

108 • Estudos Culturais em educação


dades. Para ilustrar esse caráter persuasivo do discurso das Cartas, basta
apresentar o conjunto de trechos de cartas publicadas na revista n.5, de
agosto de 1986, sob o título de Nova Escola está ajudando:

Gosto muito da revista Nova Escola. Aproveito quase todas as sugestões


de trabalho e as crianças estão adorando. Continuem assim. Através de
suas páginas encontramos incentivo para continuar nossa luta. (A. A.da C,
Alcobaça, BA)

Nova Escola tem nos fornecido meios para incentivar e dinamizar os mo-
mentos de leitura e, com isso, motivar as crianças para essa matéria tão
importante. (D.F., Lagoa Vermelha, RS)

Há revistas informativas, há revistas ilustradas. Nova Escola é uma Re-


vista Educativa. Tenho a impressão de que, se a colecionarmos, teremos
uma enciclopédia sobre Educação. Parabéns! (J.R., Camboriú, SC)

Todas essas manifestações corroboram a linha editorial assumida


por Nova Escola e sua seleção e publicação é para nos fazer ver o quan-
to a revista atende aos interesse de seus leitores e leitoras. Ainda um ou-
tro aspecto, já evidenciado por Costa e Silveira (1997.), que se encontra
presente em toda a revista é a didaticidade discursiva (receituário). Em
Cartas e, posteriormente, na seção Sala de Professores, certamente de-
vido à índole dessas seções, esse aspecto é especialmente relevante e
funcional, até porque o tom de apelo dos trechos de algumas cartas pu-
blicadas funciona como um poderoso álibi editorial para o caráter im-
primido à revista;

Fiquei sabendo da existência do método de alfabetização de Emilia Fer-


reiro através de Nova Escola (edição de abril). Gostaria que vocês me in-
dicassem livros em que eu pudesse ter mais contato com esse método. (V.S.,
Botucatu, SP) — (n.14, agosto/1987)

Sou professora de Ia. série e gostaria muito de receber livros de alfabeti-


zação, brincadeiras, historinhas e outros materiais que possam ser úteis
no meu trabalho. (R.N.M.B., Anguera, BA) — (n.30, maio/1989)

Outras cartas limitam-se a tecer elogios a esse caráter didático da


revista e, ao fazê-lo, corroboram e reforçam a "opção" feita:

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 109


Depois de ler Redação: Um Método para Desenvolver a Criatividade
(n.3), fiquei motivada a combater esse sério problema que é a falta de
criatividade dos alunos em suas redações. O artigo nos mostra com cla-
reza que é possível transpor essa dificuldade, desenvolvendo-se um
método adequado que estimule a fantasia e o gosto pela escrita. Obri-
gada, Nova Escola, pelo apoio ao nosso trabalho. (S.A., Olho D'Água,
PB) — (n.4, setembro/1986).

Espero que tenha ficado claro que essas citações não têm o sentido de
exemplificar as reações das leitoras e dos leitores às propostas editoriais da
revista, e que sequer estou entendendo as cartas publicadas simplesmente
como reações. O que pretendo salientar é que a revista cria um circuito fe-
chado, no qual seu caráter de didaticidade {socorro) se autojustifica, se re-
força e se reproduz; as leitoras e os leitores solicitam ajudas didáticas, a re-
vista publica matérias com essa característica, outras cartas de leitoras e de
leitores agradecem e louvam esse caráter assumido pela revista.
Contudo, tratando-se de cartas das leitoras e dos leitores, ou seja,
do discurso de outros(as), tudo se passa como se a revista permitisse de
fato a intrusão, no seu próprio espaço, de outras vozes e, portanto, de
outros pontos de vista e de outros discursos sobre ensino e educação. O
tom confessional, íntimo e pessoal, que caracteriza, de uma forma geral,
as cartas publicadas, corrobora essa impressão. Leitoras e leitores sen-
tem-se, efetivamente, como autoras e autores que criticam, elogiam,
emitem opiniões, dialogam, enfim, com a revista. Ainda que o estilo ho-
mogêneo e monocórdio de Cartas contradiga essa aparente pluralidade
de vozes e discursos, ou talvez por isso mesmo, logo aquele diálogo vai
parecer insuficiente à própria revista. E com efeito, tal modelo de parti-
cipação, sob administração e governo da editoria da revista, parece defi-
nitivamente esgotado no final de 1987, quando esta se dispõe a oferecer
novos mecanismos de participação, "abrindo generosamente" seu espa-
ço para favorecer o encontro, nas suas páginas, das vozes do conjunto
de leitoras e de leitores. Nessa nova forma de gerir a participação, os
leitores e as leitoras já podem "falar" entre si.

b) A Sala de Professores de Nova Escola


Para Vieira (1995), o título Sala de Professores "constitui uma
metáfora que pretende exercer, na Revista, um papel análogo ao desem-

110 • Estudos Culturais em educação


penhado por este espaço na escola: um lugar de interlocução" (p.15).
Ainda mais: tal metáfora também é — como apontam Costa e Silveira
(1997) — sutilmente persuasiva.
Com a substituição definitiva da seção Cartas por Sala de Profes-
sores, mudam os parâmetros que regulam a participação das leitoras e
dos leitores. O próprio nome da seção produz outros tipos de relação com
a revista: a interlocução agora inclui, além da revista e do(a) leitor(a),
outros(as) leitores(as) e se faz preferentemente entre os(as) leitores(as).
É como se a revista apenas cedesse o seu espaço para esse encontro. Sua
interferência se reduziria, assim, a por leitoras e leitores em contato, a
aproximá-los(as) para uma troca de experiência que se faz entre eles(as).
E ao fazê-lo, ou seja, ao instituir Sala de Professores como esse "espaço
de debates e trocas" entre os(as) professores(as), a revista não se coloca
mais em questão. Diminuem os elogios e as críticas, alguns títulos e sub-
títulos chegam mesmo a desaparecer: já não interessa tanto a opinião da
leitora e do leitor sobre a revista.
Essa mudança estabelecida nas relações entre a revista e seus lei-
tores e leitoras constitui-se, efetivamente, numa mudança na forma de
regulação dessas relações. Isso quer dizer que as novas relações que a
Sala de Professores institui não são mais "independentes e autônomas"
do que as relações que existiam anteriormente entre os(as) leitores(as) e
a revista. A regulação dessas relações é que se mostra agora menos apa-
rente, mais invisível e, portanto, mais disfarçada. Mas como se tomou
possível a emergência desse novo tipo de regulação das relações entre a
revista e seus leitores e leitoras, o qual se impôs definitivamente a partir
de março de 1988?
Penso que essa mudança não é de forma alguma alheia à emergên-
cia de um novo discurso sobre alfabetização nas páginas da Revista.
Anunciado no Editorial da Nova Escola, n.15, como uma "experiência
animadora [...], inspirada nas observações da psicóloga argentina Emi-
lia Ferreiro", esse novo trabalho de alfabetização "pede ousadia, imagi-
nação, um ambiente estimulador e, principalmente, respeito ao processo
de construção da escrita na criança" (set./87, p.3).
Ora, esse "respeito ao processo de construção da escrita na crian-
ça", ao sugerir que é a criança que aprende e não o(a) professor(a) que
ensina, pretende que tal aprendizagem se dê livre de qualquer interfe-
rência externa ao processo de construção. Assim, é a criança, enquanto

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 111


sujeito, que irá construir o seu conhecimento através da sua interação
com o objeto. Ao(à) professor(a) caberia a criação, com "imaginação e
ousadia", de um "ambiente estimulador" do processo de aprendizagem.
Entretanto, a criação de um ambiente que seja realmente estimulador do
processo de construção de conhecimentos pela criança, supõe que esse(a)
professor(a) "ousado(a) e imaginoso(a)" conheça todas as etapas desse
processo para poder conduzir, através delas, seus alunos e suas alunas
até a etapa final.
Percebe-se, assim, o quanto a Revolução na alfabetízação, tal como
o construtivismo foi denominado no número 28 da revista (março de
1989), não é outra coisa senão uma forma mais sutil, mais invisível — e
por isso mesmo mais especializada e econômica — de regular a apren-
dizagem da leitura e da escrita.
Construtivismo e Sala de Professores apresentam, portanto, mui-
tas afinidades; têm em comum não apenas a época de seu surgimento nas
páginas da revista, mas também todo um aparato de regulação e contro-
le que não se apresenta como tal. A partir desse lugar concreto — Sala
de Professores — os leitores e as leitoras passam a exercer eles(as)
próprios(as) a vigilância que lhes foi delegada pela revista e a "cuidar
de si" como alfabetizadores e alfabetizadoras construtivistas.

A produção de significados sobre alfabetização

Ao longo da sua história, o discurso de Nova Escola produziu dife-


rentes significados sobre a aquisição da leitura e da escrita e diferentes
subjetividades de alfabetizador e de alfabetizadora. Nesse estudo, identi-
ficamos alguns desses significados, os quais estão também eles encerra-
dos naquele circuito de persuasão que regula as manifestações do(a)
professor(a) e a leitura que ele(a) faz da revista. Dessa forma, persuade-
se a leitura que foi feita e a que vai ser feita, a leitura passada e a futura, o
que vem ao encontro da famosa "fórmula Abril", resumida pelo editor de
Nova Escola citado no início desse trabalho, com as seguintes palavras;
"a revista é feita para ser lida pelo leitor"(sic). Em outras palavras: é pre-
ciso produzir o leitor e a leitora da revista, para que ela seja lida.
Assim, nos primeiros anos de publicação da revista — 1986/88 —
as Cartas não apresentam um discurso hegemônico sobre alfabetização.

112 • Estudos Culturais em educação


Ainda que as referências ao método de Paulo Freire sejam relevantes
("É um grande prazer ler sempre lúcidas palavras do mestre Paulo Frei-
re. [...]. Pena que as autoridades do nosso país tenham medo de usar o
seu método." — n.5, 1986), o discurso da alfabetização reproduz e re-
força as preocupações das professoras e dos professores com as carti-
lhas ("O que mais me tocou foi a Cartilha da Ana e do ZéC — n.3,
1986) ou com a escrita ortográfica:

Tenho alunos que, apesar de estarem alfabetizados e saberem a grafia cor-


reta das palavras, passaram a escrever algumas palavras como vêem e ou-
vem no Programa da Xuxa (xou, xuper, xeguei, xabe, etc.), (n.12,1987)

Nessa fase, a estratégia mercadológica é visível e dominante: para


se constituir como a revista dos "professores de primeiro grau", Nova
Escola precisou "refletir" as tendências pedagógicas existentes no mer-
cado. Isso facilitaria a identificação com a diversidade das posições pe-
dagógicas dos professores(as), garantindo leitores e leitoras assíduos(as)
e fiéis.
Após a primeira manifestação sobre alfabetização construtivista,
em setembro de 1987, há uma grande expansão desse discurso nas car-
tas publicadas nos dois anos seguintes. Às publicações de reportagens
sobre o construtivismo na alfabetização ou sobre seus teóricos, princi-
palmente Emilia Ferreiro, segue-se sempre a publicação de um número
expressivo de cartas elogiando tais trabalhos, consolidando a qualidade
e atualidade da revista. E bem verdade que o mesmo processo ocorreu
em relação à publicação de uma entrevista de Paulo Freire, em junho de
1989. Contudo, o número de cartas referentes a Emilia Ferreiro e ao cons-
trutivismo cresceu ainda mais durante o ano de 1990, considerado o Ano
Internacional da Alfabetização. A hegemonia da alfabetização constru-
tivista na Sala de Professores, e mesmo em toda a revista, começava a
mostrar todo o seu vigor.
Nem mesmo a temática do analfabetismo como vergonha naci-
onal, estampada na capa do número 37, em 1990, e que fortalece o sig-
nificado da alfabetização como solução dos problemas individuais e soci-
ais, tal como é apregoado, historicamente, nos discursos da UNESCO e
do MEC, vai abalar aquela hegemonia. Efetivamente, a relação de causa
e efeito estabelecida entre o domínio da escrita e da leitura e o desenvol-

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 113


vimento do país, que aparece em matérias publicadas nas páginas de Nova
Escola (n.46, 47 e 61), reproduzindo o que Graff (1990) chama de mito
da alfabetização, passa a integrar, desde então, os diferentes significa-
dos de alfabetização produzidos pela revista, permeando inclusive a al-
fabetização construtivista. Não é diferentes na Sala de Professores, onde
esse significado alcança o seu auge, em 1993, com a criação do subtítu-
lo Constmtivismo pelos(as) editores(as) da seção, e cuja hegemonia quase
absoluta perdura até 1995.
A partir daí, a mudança do Editor e da linha editorial em função da
maior dependência de assinaturas e da venda avulsa da revista —já que
o MEC deixou de comprar 80% das edições com a regularidade de antes
fez com que sua circulação assumisse um caráter mais nitidamente
comercial, o que significou um maior acolhimento, em suas páginas, de
outros significados de alfabetização. É então que o discurso da alfabeti-
zação da revista deixa de ser ostensivamente militante (leia-se constru-
tivista e salvacionista) para se tomar "neutro", abrigando e produzindo
uma "diversidade" de significados.
Apesar dos diferentes significados da aquisição da leitura e da es-
crita aparecerem em momentos distintos na revista, esses significados
não chegam, de fato, a se excluírem uns aos outros. E isto não chega a
ser um fato surpreendente, na medida em que todos esses significados
partem de um mesmo pressuposto. Ou seja: todos supõem que o domí-
nio da leitura e da escrita é que pode trazer todos os benefícios ao indi-
víduo e à sociedade. O mito da alfabetização — tanto no período de he-
gemonia do discurso construtivista como nas fases em que não há o pre-
domínio explícito de um determinado significado — permanece não só
intocado, mas corroborado e reproduzido ao longo dos dez anos de his-
tória de Nova Escola, subjetivando alfabetizadoras e alfabetizadores
como responsáveis incontestes pela redenção da Nação.

Referências bibliográficas

COSTA Marisa C. V; SILVEIRA, Rosa M. H. Produzindo subjetividades femini-


nas para a docência. Relatório de Pesquisa. Núcleo de Estudos sobre Currí-
culo, Cultura e Sociedade (NECCSO), PPGEDU/UFRGS, 1997.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro; Forense Univer-
sitária, 1987.

114 • Estudos Culturais em educação


_. Agovemamentalidade. In: Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
GRAFF, Harvey. O mito da alfabetização. Teoria & Educação, Porto Alegre;
Pannonica, n.2, 1990.
REVISTA NOVA ESCOLA. São Paulo: Fundação Victor Civita, 1986/96.
VIEIRA, Martha L. Construtivismo: a prática de uma metáfora. UFMQ 1995.
(Dissertação de mestrado.)

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 115


Capítulo 5

O espaço escolar em revista

Cristianne Famer Rocha

0 tema proposto — o espaço escolar — é caro não somente aos


meus projetos futuros, mas também aos projetos daquelas pessoas que
buscam compreender o processo curricular muito além de métodos, téc-
nicas, conceitos, experiências ou dinâmicas. É caro, sobretudo, a to-
dos que, como eu, esperam compreender a escola enquanto instituição
(pedagógica, formadora, informadora, disciplinadora, educadora, en-
tre tantas outras acepções) que existe além de seus currículos, normas
e regimentos.
Compreender a escola em sua histórica complexidade — anali-
sando, percebendo, (re)considerando e (res)significando também aque-
les elementos do currículo que nos parecem (num primeiro olhar) in-
visíveis, indizíveis, insignificantes — supõe perceber as relações que
se estabelecem entre os vários componentes (sujeitos ou objetos) da
escola, suas funções, suas histórias, seus discursos, suas práticas e suas
condições de existência.
Um desses elementos do currículo — pouco comentado, pouco
descrito, pouco analisado e, por assim dizer, oculto (porque invisível,
indizível ou insignificante num primeiro olhar) — é justamente o es-
paço escolar, seja ele edificado ou não, aberto ou fechado, amplo ou
mínimo, com funções e lógicas específicas (ou não), que permite ou
não movimentos de ocupação e limitação, que institui práticas ou se-
quer as permite. Mais do que isto: espaço de produção e reprodução
de saber (e poder) na medida em que, ao ser convencionalmente consi-
derado como (senão o único, um dos) local privilegiado e legitimado de

O espaço escolar cm revista • 117


concentração do saber (visto como) cientificamente organizado, deli-
mita usos, provoca rupturas, mantém hierarquias, disciplina, controla,
vigia e produz subjetividades.1
O espaço, qualquer que seja, portanto, é um elemento importante na
determinação de nossas atitudes, permanências, resistências e convivên-
cias no mundo. Ele é constituidor, determinante, impositivo ou permissi-
vo. O modo como vemos o espaço e como nele nos vemos, diferente nas
diversas épocas e culturas, nos permite perceber essas sutis determinações.
Michel Foucault (1979) nos diz que:

[ ] seria preciso fazer uma história dos espaços que seria ao mesmo
tempo uma história dos poderes — que estudasse desde as estratégias de
geopolítica até as nossas pequenas táticas do habitat, da arquitetura insti-
tucional da sala de aula ou da organização hospitalar, passando pelas im-
plantações econômico-políticas. [Pois] [...] é surpreendente ver como o
problema dos espaços levou tanto tempo para aparecer como problema
sócio-político. [.. .] A fixação espacial é uma forma econômico-política que
deve ser detalhadamente estudada, (p.212)

Nilda Alves2 (1998), entre outros autores e pesquisadores que vêm


discutindo e escrevendo sobre o tema em questão, acrescenta:

Em cada pesquisa sobre o cotidiano da escola que coordenava, cm cada


trabalho que aí realizava, ia ficando claro, estranhamente claro, que aque-
le eSpaç0 _ o escolar — daria pistas importantes sobre o não-explícito
na escola, naquilo que entre nós que trabalhamos no campo curricular,
convencionamos chamar de "currículo oculto [...] e também do negado,
aquilo a que estamos chamando de "currículo vazio . (p. 12)

No espaço escolar, portanto, são determinadas relações de uso e


permanência dentro (ou fora) dele. Ao dispomos pessoas e objetos em

1
Produz subjetividades ao sustentar que indivíduos inteligentes, conscientes, educados
serão mais autônomos, mais livres, mais independentes, mais responsáveis, serão capa-
zes de promoverem transformações sócio-político-econômico-culturais que visem me-
lhoria de vida, progressos, avanços, humanizações.
^ No trabalho citado, a autora realiza uma pesquisa histórica sobre as escolas rurais do
Rio de Janeiro desde o período imperial até a década de 80, em que procura entender a
construção do espaço escolar de diversas maneiras, seja pela vertente de discussão do
espaço na cidade (Lefebvre), seja pela discussão das instituições vistas como espaço de
poder (Foucault).

118 • Estudos Culturais em educação


determinados ambientes/locais, ao delimitarmos o espaço de uso/circu-
lação, ao separarmos, hierarquizarmos, permitirmos ações, enfim, ao
determinarmos possibilidades e impossibilidades, percebemos o quão
comprometido o espaço está na constituição daquilo que freqüentemen-
te identificamos como escola. Pois o espaço, segundo Augustin Escola-
no, citado por Frago (s/d), é;

[...1 um programa, uma espécie de discurso que institui em sua materiali-


dade um sistema de valores, [...] uns marcos para a aprendizagem senso-
rial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéti-
cos, culturais e ainda biológicos.
No marco das modernas teorias da percepção, o espaço-escola é mais que
um mediador cultural em relação à gênese e formação dos primeiros es-
quemas cognitivos e motores, quer dizer, um elemento significativo do
curriculum, uma fonte de experiência e aprendizagem. Mais ainda: a ar-
quitetura escolar [...1 pode ser considerada inclusive como uma "forma
silenciosa de ensino", (p.54)

Portanto, creio que pesquisar o espaço escolar — a arquitetura que


o constitui, a lógica que o constrói, a pedagogia que em parte dele deri-
va e que ao mesmo tempo o sustenta e movimenta, e, claro, a mutação
que o mesmo vem sofrendo ao longo dos tempos e das pedagogias para,
dizem, melhorar o resultado obtido dentro e fora da escola — é um exer-
cício não somente útil como necessário.
Para realizar este exercício pretendo dividir o texto em duas partes:
na primeira, procuro descrever como o espaço e o mobiliário escolares
foram sendo constituídos naquilo que hoje conhecemos como tais, ao lon-
go do tempo; e, na outra parte, busco analisar e compreender como — com
quais rupturas, quais continuidades, quais relevâncias, quais discrepânci-
as — um determinado veículo de comunicação social (a revista Nova Es-
cola) apresenta e representa o espaço e o mobiliário escolares, através dos
textos e imagens ali publicados, num período de tempo determinado.

O espaço escolar

Uma casa é uma máquina para morar... uma poltrona é uma máquina para
sentar e assim por diante. (Le Corbusier, em Rybczynski, 1996, p. 181)

O espaço escolar em revista • 119


A concepção arquitetônica modernista previa, como afirma Le
Corbusier, soluções corretas, eficientes, padronizadas, modernas para os
mais diferentes problemas de construção, habitação e mobiliário. O es-
tilo deveria ser prático, com a rejeição total da arte decorativa. Idéias de
padronização, normalização, funcionalidade objetiva (forma idêntica à
função) são características inerentes à arquitetura modernista.
A escola, mesmo aquela anterior à época Moderna, desde a sua
constituição como forma e função, já tinha no seu seio embutida esta
concepção modernista. Coerente com sua função de educar, disciplinar,
manter, ordenar, regular; desenvolveu-se como um espaço de domesti-
cação, onde indivíduos (jovens, crianças e mais recentemente adultos)
menos sábios sujeitam-se aos mais sábios (professores e mestres) para
tomarem-se também eles homens de saber, que se crêem capazes, então,
de ocuparem os espaços reservados àqueles e àquelas que têm o direito
e o merecimento ao poder.3
Enquanto instituição, tal como a conhecemos e concebemos (públi-
ca e obrigatória), a escola possui pouco mais de cem anos de existência
(Varela eAlvarez-Uría, 1992). Ela começou, porém, alguns séculos antes
a se configurar para chegar ao nosso atual modelo institucional de ensino
e aprendizagem. A partir do século XVI, foram organizadas ao redor dos
"jovens de tenra idade" um certo número de condições que permitiram o
aparecimento da escola tal como a conhecemos. A primeira delas foi de
ordem religiosa, conseqüente das inovações impostas ao clero em função
da Reforma e da configuração dos estados administrativos modernos. Para
impedir o constante perigo do absolutismo monárquico, a Igreja se rees-
truturará e irá propor — através da formação de novos organismos e con-
gregações — a criação de mecanismos de extensão e intensificação da fé.
Inúmeras práticas educativas começam então a se desenvolver, inclusive
com a construção de seminários para a formação dos novos cristãos.

As instituições escolares se institucionalizaram no marco das guerras


religiosas como instrumentos de formação de bons cristãos e de socia-
lização de crianças e jovens de tenra idade nas respectivas ortodoxi-
as. (Alvarez-Uría, 1996, p.71)

3
Embora poder não seja uma coisa "em si", que as pessoas possam possuir, muitos crê-
em "ter poder" de escolha, de decisão ou de autonomia.

120 • Estudos Culturais em educação


A necessidade de disciplinar e educar os jovens e novos cris-
tãos produziria bons súditos e bons cidadãos. A disciplina produziria
corpos dóceis, capazes de se sujeitarem às exigências terrenas e de
manterem inalterados os privilégios daqueles que os detinham. A dis-
ciplina necessita, porém, da distribuição dos indivíduos no espaço (Fou-
cault, 1997b), já que o cerc(e)amento, a clausura, o espaço fechado,
a distribuição por filas, séries ou classes, desmobiliza os indivíduos,
isolando-os e transformando-os em forças autônomas e mais facil-
mente autocontroláveis.
Sujeitos que controlam a si mesmos em espaços e tempos por
eles mesmos determinados ou apreendidos são mais independentes,
eficazes e eficientes. Estes sujeitos são múltiplos organizados que,
ao serem distribuídos de forma específica no espaço, tornam-se res-
ponsavelmente obedientes, pois reconhecem a mobilidade possível
dentro do quadriculamento arquitetural funcional (prático, moderno
e fácil de usar), que permite saber onde e como encontrar o quê e quem
se quer,

estabelecer as presenças e as ausências [...], instaurar as comunicações


úteis, interromper outras, poder a cada instante vigiar [e autovigiar] o com-
portamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou
os méritos. (Foucault, 1997b, p.131)

Eis diante de nós o disciplinamento positivo moderno que permite


(a todos e a cada um) conhecer a si próprio e os outros, dominar-se e
dominar os outros, utilizar-se e utilizar os outros para melhor fazer fun-
cionar a engrenagem tecnopolítica moderna.
Mesmo tendo recebido críticas pela metodologia empregada, Ariès
(1981) salienta que, a partir do fim do século XVII, se inicia, então, um
longo processo de enclausuramento das crianças que se estenderia até
os nossos dias — ao qual se dá o nome de "escolarização" — cujas fun-
ções seriam aquelas de manter, ordenar, regular, doutrinar, isolar, contri-
buindo para demarcar e definir o espaço da infância.

Determinando lugares individuais, foi possível o controle de cada um e


o trabalho simultâneo de todos. Organizou-se uma nova economia do tem-
po de aprendizagem. (Foucault, 1997b, p. 134)

O espaço escolar em revista • 121


Desta forma, se hierarquizaram tais jovens, uns em relação aos
outros, permitindo de forma mais fácil e simples vigiar e também recom-
pensar os melhores e merecedores de maior atenção.
O espaço individual, celular, segundo Foucault (1997b), cria espa-
ços complexos, arquiteturais, funcionais, hierárquicos. Esses espaços
realizam a fixação e permitem a circulação, marcam lugares e indicam
valores, garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor
economia do tempo e dos gestos. Inicialmente, estes dispositivos disci-
plinares e disciplinadores — que regulam e delimitam os permitidos e
os não permitidos espaços a serem utilizados foram pensados para
manter sob controle mais fechado as populações, através das prisões, dos
patronatos e das polícias. Da mesma forma, com o passar do tempo, dis-
positivos disciplinadores de controle mais aberto foram sendo ajustados
às novas exigências sociais, como, por exemplo, o hospital, o manicô-
mio, a fábrica, o exército, a família, as agremiações e, acima de tudo, a
escola (Veiga-Neto, 1995).
Porém, não foi somente o espaço delimitado, fechado, que deter-
minou a concepção de escola como modelo de educação. Assim como
não bastou demarcar o espaço da infância e definir seu estatuto, caracte-
rizando-a como uma "etapa especial da vida". Foi preciso também cons-
tituir e manter dentro da escola um corpo de especialistas da infância
dotados de tecnologias específicas e de "elaborados códigos teóricos
(Varela e Alvarez-Uría, 1992, p.69), mestres, autoridades legitimamen-
te reconhecidas encarregadas de difundir os saberes, as descobertas, a
disciplina; de vigiarem e manterem a normalidade entre seus discípulos,
domesticarem, repetirem, doutrinarem, modelarem um novo indivíduo
e, sobretudo, satisfazerem-se com a função social que possuíam.
Estas e outras possibilidades históricas (nascimento da infância,
constituição de um espaço específico destinado à educação, aparecimento
de um corpo de especialistas, destruição de outros modos de educação,
institucionalização da escola com seus códigos e obrigatoriedades), as-
sociadas àquela do disciplinamento, permitiram o nascimento e a manu-
tenção da escola como local privilegiado de constituição e transmissão
do saber social (Varela e Alvarez-Uría, 1992).

A escola não é somente um lugar de isolamento em que se vai experimen-


tar, sobre uma grande parte da população infantil, métodos c técnicas a\ a-

122 • Estudos Culturais em educação


lizados pelo professor, enquanto "especialista competente", ou melhor,
declarado como tal por autoridades legitimadoras de seus saberes e po-
deres; é também uma instituição social que emerge enfrentando outras
formas de socialização e de transmissão de saberes, as quais se verão re-
legadas e desqualificadas por sua instauração, (p.83)

Assim, na medida em que forem mais fortes tais características dis-


ciplinadoras em relação à ocupação do espaço físico da escola, mais le-
gítima será a função social da escola com a dissociação entre formação
(trabalho intelectual) e aprendizagem (trabalho manual). A escola con-
tribuiu (e continua a contribuir) consideravelmente para a ruptura entre
saber intelectual e saber prático. Ao contrário das universidades medie-
vais, nos diz Varela (1996), onde a produção do saber estava intimamente
ligada à dimensão política, à organização, às questões públicas, ao fa-
zer; os colégios jesuítas, por exemplo, estavam separados do poder polí-
tico: o colégio é um local onde se aprendem conhecimentos neutros e
objetivos e não existe a possibilidade à manifestação, ao uso do poder, à
discussão.
A outra possibilidade histórica que se agrega a estas já citadas, dan-
do condições para que a escola se tome, então, institucionalizada, naci-
onal e obrigatória é a tutela do operariado através da instrução formado-
ra, formalizadora e profissionalizante na segunda metade do século XIX
e princípios do século XX (Varela e Alvarez-Uría, 1992). Os operários
seriam "ajudados" pelos educadores a fim de conseguirem ascender so-
cial, cultural e economicamente e terem mínimas condições de sobrevi-
vência, mesmo que tenham de, resignados, abdicarem sua própria cultu-
ra em detrimento de verdades absolutas e cientificamente comprovadas
apregoadas pela nova ordem sócio-econômica-cultural. Na medida em
que o operariado deve buscar na escola suas únicas e possíveis condi-
ções de ascensão, dá a esta instituição garantias de sua permanência e
relevância transcendental: quanto mais se busca, menos se acha. O ciclo
se fecha e a escola permanece, intocável na sua legitimidade redentora
e disciplinadora de saberes e poderes.
A escola — vista como necessária e útil para dar direito a todos de
poderem, através do saber, ascender socialmente e contribuírem para a
manutenção da ordem sócio-econômica-cultural vigente — traz consi-
go, sob a veste de instituição democrática — porque oculta e dissimula
— a sua dimensão domesticadora e reguladora.

O espaço escolar em revista • 123


Ao apregoar liberdades e igualdades (as máximas burguesas), a
escola perpetuou — e ainda hoje mantém suas contraditórias carac-
terísticas. Desde seu início, procurou através do próprio ambiente esco-
lar — enquanto espaço fechado — exercer e exercitar sua força de do-
mesticação e adestramento. Indivíduos sentados, isolados, condiciona-
dos, vigiados, são facilmente manipulados e hierarquizados. Indivíduos
que não sabem, que desconhecem o saber científico produzido nos gran-
des centros de saber (e justamente por este desconhecimento ocupam um
lugar na escola) serão sempre subjugados, aptos para permanecerem no
espaço predeterminado por aqueles que já são mais, que já possuem o
"direito/dever" de estar acima dos outros.
Esta lógica está inicialmente arquitetada e justificada nas próprias
construções escolares; o lugar da cátedra em posição de destaque; o lu-
gar do aluno (fechado, trancafiado na carteira escolar), salas ordenadas,
enfileiradas; corredores centrais e de fácil acesso, a posição central ocu-
pada pela direção e coordenação, pelos vigilantes superiores; enfim, toda
uma arquitetura que integre, componha, regule e discipline o currículo e
as práticas escolares.
O local da vigilância (enquanto espaço ocupado pelo professor e tam-
bém como espaço ocupado pela direção) sempre foi central, diante de to-
dos, para que todos vejam, sim; mas, sobretudo, para que um único olhar,
vigilante, possa ver a todos ao mesmo tempo. O espaço celular, individu-
al, destinado ao aluno, imobiliza-o, mas também dá ao mesmo a sensação
de independência e organização eficaz, eficiente, prática e moderna.
As práticas docentes também sempre foram as mesmas, o exame, as
provas, o venficar constante para justificar a normal hierarquia existente entre
aqueles que sabem, podem, têm direitos mais do que os outros que não con-
seguem superar as inerentes dificuldades impostas. O exame servindo, en-
fim, para normalizar, qualificar, classificar e punir (Foucault, 1997b).
A construçãopanóptica (em grego; Tiav^udo, otiGikoç—visível),
formulada e batizada por Bentham, idealizada por seu irmão (Foucault,
1979), foi um dos achados desta composição. Como um dos primeiros
modelos de visibilidade isolante, foi inicialmente colocado em prática
nos dormitórios da Escola Militar de Paris, em 1751, para tomar-se uma
tecnologia arquitetônica do poder, uma estrutura arqucotccnológica ca-
paz de manter, ordenar, vigiar, ideal para todas aquelas construções que
objetivassem tais propósitos.

124 • Estudos Culturais em educação


Foucault (1997b) assim se refere a esta concepção arquitetônica:

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O


princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro,
uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face in-
terna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atra-
vessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma
para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o
exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. [...] Cada ator
está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O
dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem
parar e reconhecer imediatamente. [...] [Cada um] é visto, mas não vê; ob-
jeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação, (p. 177)

O panóptico é uma máquina que dissocia o ver e o ser visto, pois


todos estão sempre sendo vistos pelo vigia, mas nunca vêem. "Na torre
central, vê-se tudo, sem nunca ser visto" (Foucault, 1997b, p. 178). Por isto,
passa a ser utilizado como tecnologia arquitetônica sempre que se queira
manter uma quantidade de indivíduos controlados, vigiados, sem que os
mesmos possam perceber quando e como estão sendo observados.
Muito embora os exemplos de arquitetura escolar moderna não tra-
gam consigo tal estrutura panóptica, os princípios fundamentais que or-
ganizam o espaço físico da escola se aproximam consideravelmente do
modelo de Bentham.
A escola — apropriando-me analogamente das palavras de Le Cor-
busier — é, assim, uma máquina para estudar. Uma máquina que, tal-
vez, continue (continuará?) produzindo indivíduos capazes e aptos a
manterem e perpetuarem tudo numa perfeita ordem sócio-econômica-
cultural moderna.

O mobiliário da escola

Móvel (do latim mobile) é, entre outras acepções, "aquilo que se


pode mover" (Ferreira, s/d, p.950),

que se pode deslocar de um lugar a outro, transportar sem que sofra da-
nos ou venha alterada a função [...], [aquilo que serve] para decorar uma
casa, uma escola, um escritório. (Zingarelli, 1996, p. 1085, trad. minha)

O espaço escolar em revista • 125


Assim como os ambientes fechados, quadriculados, práticos e úteis
nos parecem eternos (casas, escolas ou escritórios, por exemplo, sem
divisões funcionais, hierárquicas, arquiteturais parecem desorganizados,
improdutivos ou ineficientes), os móveis também carregam consigo (ape-
sar de reconhecidas suas marcas temporais através de estilos e modelos)
esta peculiar sensação de eternidade. Houve um tempo (não muito dis-
tante), porém, em que eles sequer existiam.
Foi somente a partir do século XVII que a nobreza européia come-
çou a conviver com o mobiliário propriamente dito. Até então, as casas,
consideradas como espaços públicos, não eram separadas em cômodos
com funções específicas e seus móveis eram utilizados de várias manei-
ras ao mesmo tempo; camas que serviam de bancos durante o dia, baús
que serviam de mesas. A partir de 1600, aproximadamente, os sentimentos
de "intimidade" e "domesticidade" presentes na Europa do Norte, por
causa das dificuldades territoriais (falta de terrenos para plantar), come-
çou a modificar os conceitos ligados ao mobiliário, espaços físicos da
casa e, sobretudo, a conforto e tecnologia (Rybczynski, 1996).
Na França do século XVIII, Luís XV, através de seu arquiteto Fran-
çois Blondel, começou a dividir os espaços do palácio em cômodos com
funções específicas. Este foi considerado o século da privacidade na
Europa. E a conseqüência direta disto foi a preocupação com o mobiliá-
rio propriamente dito: o rococó francês preocupava-se sobremaneira com
a decoração do interior das casas, criando móveis adaptados para diver-
sas exigências e circunstâncias.
Mas foi com a burguesia no poder que mais se desenvolveu este
sentimento pelos aparentes mínimos detalhes. Pois,

domesticidade, privacidade, conforto, o conceito do lar e da família; es-


tas são, literalmente, as principais conquistas da Era Burguesa. (Lukacs,
em Rybczynski, 1996, p.63) /

A casa (e as posteriores construções), como espaço único, se divi-


de em diversos pequenos cômodos (paulatinamente mobiliados) que per-
mitem a privacidade e a intimidade. Ao mesmo tempo, o controle femi-
nino nas rotinas caseiras introduz um sentimento de feminização e do-
mesticidade (conjunto de emoções sentidas relacionadas à família c à
devoção ao lar), que dá vida própria a cada elemento que constitui o es-
paço da casa ou que nele está contido.

126 • Estudos Culturais em educação


Muitas foram as transformações decorridas, tanto quanto à delimi-
tação do espaço quanto à sua forma e ocupação, de forma privada e tam-
bém pública. Quanto ao mobiliário, muitos foram os móveis que marca-
ram e demarcaram estilos e épocas. Móveis que se incorporaram inter-
namente à aparência das casas, móveis que se adequaram às modas e aos
gostos populares. Mas,

era de se esperar que as diversas invenções que contribuíram para o con-


forto humano na virada do século tivessem um impacto profundo sobre a
aparência da casa. Surpreendentemente, não foi este o caso. [...] A deco-
ração interior não apresentou grandes alterações. [...] As mudanças que
ocorreram deveram-se mais à moda e ao gosto popular e praticamente nada
à tecnologia. (Rybczynski, 1996, p. 181)

Também nos espaços públicos, dentre eles a escola, os móveis con-


tinuaram se adequando e readequando quanto à forma e ao estilo. Po-
rém, permaneceram e permanecerão senão os mesmos — apesar dos sé-
culos que passaram e continuarão a passar — inevitavelmente com as
mesmas funções.
Móveis escolares continuam a ser equipamentos com funções es-
pecíficas. Mudam de lugar no espaço físico, permitem maior mobili-
dade, mudam de nome; mas não rompem com as estruturas demarca-
das. No templo do saber, o professor continua no seu lugar privilegia-
do, mesmo que sua mesa tenha mudado de tamanho, mesmo que ele se
sente ao lado dos alunos ou até mesmo que se confunda no meio deles.
Ele permanecerá sempre acima de todos, numa posição cômoda (ou
não) de detentor do saber. Ele não precisa da cátedra ou do móvel de
maior dimensão para demarcar seu espaço central de ocupação.
Da mesma forma, parece que o espaço do aluno, na cultura es-
colar moderna, é e será sempre bem delimitado, mesmo que seus
móveis tenham se transformado, estejam mais leves e soltos. A car-
teira escolar que unia e trancafiava vários alunos em filas, impedin-
do-os de levantar, sair, ir ao banheiro, entre outras coisas, evoluiu,
segundo alguns. Poder-se-ia dizer também que atomizou ainda mais
alunos-indivíduos-autônomos. Se antes, unidos nas carteiras, existi-
am várias dificuldades para os movimentos individuais e o controle
da disciplina deveria ser mais rígido, com a individualização das car-
teiras, mesas ou cadeiras, as dificuldades de movimentação livre no

O espaço escolar em revista • 127


ambiente escolar permanecem, pois todos continuam vigiando e au-
tovigiando em todos os momentos.
Ao mesmo tempo, porém, os móveis antigos, mais pesados e ma-
ciços _ qUe pareciam tão inconvenientes ao movimento livre — permi-
tiam ousadias que hoje sequer imaginamos. A não visibilidade que tais
móveis proporcionavam e permitiam indisciplinas incontroláveis mes-
mo aos olhos do mais atento professor. Ao esconder-se atrás desses mó-
veis ou passar objetos proibidos por debaixo deles sem que o professor
percebesse, o aluno podia, menos visível, ser menos disciplinado. Hoje,
ao contrário, tudo visível, não é preciso sequer o controle do professor
para fiscalizar por entre móveis escolares: todos se vêem mutuamente e
se controlam recíproca e continuamente, impedindo e reprimindo aque-
las ousadias-indisciplinas do passado por antecipação.
A mudança ocorrida no convívio escolar com a individualização dos
móveis, associada a outras tecnologias de subjetivação e disciplinamento,
tomou ainda mais difícil a reunião e o contato (mesmo que físico). Depen-
dendo do número de alunos na sala e da disposição dos móveis na mesma,
sequer é preciso falar com o colega ao lado ou com o professor, pois cada
um tem o seu móvel particular, o seu espaço físico delimitado, suas práti-
cas escolares, seu currículo, sua grade, suas histórias e seu memorial. Em
comum, dividimos bem poucas experiências, objetos e espaços. Como
narcisos, olhamos continuamente para o próprio espelho, na esperança de
vermos ali refletido o ideal ao qual não ousamos questionar ou escapar.

A revista

Muitos são os veículos de produção e reprodução de discursos4 na


sociedade. Os de comunicação de massa ou (ditos) meios de comunica-
ção social ou simplesmente "mídia" são os considerados de maior pene-

4
Discurso para Foucault (1997a) "não é uma estreita superfície de contato, ou de con-
fronto, entre uma realidade e uma língua, o intrmeamento entre um léxico e uma experi-
ência; [não é] um conjunto de signos (elementos signifícantes que remetem a conteúdos
ou a representações), mas [...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que íazem é mais que utilizar
esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato
da fala. É esse 'mais' que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever" (p.56).

128 • Estudos Culturais em educação


tração e os que produzem e fazem circular mais rapidamente o maior
número possível de informações. Por terem desenvolvido esta capacida-
de e habilidade de falarem com inúmeros indivíduos nas mais diferentes
partes do planeta ao mesmo tempo, têm-se tomado constituidores de
verdades e certezas, inventando, reforçando e multiplicando formas de
viver e pensar o mundo.
São imagens, notícias, espetáculos, informações, invenções quo-
tidianas que dizem preencher o vazio da possível falta de emoções (e
opções) daqueles que vivem fechados em quatro paredes, sem grandes
convívios sociais, com medos contínuos e esperanças quase nulas. Este
mundo mítico-mágico reproduzido e produzido pela mídia é, além do
aparentemente único possível, aquele no qual, dizem, "se pode acredi-
tar e confiar".
Assim, estes aparatos que se apresentam nas mais diferentes for-
mas e contextos, permitindo a quase todos um acesso relativamente
fácil, se constituem num local de exercício de modos de vida. Ao apre-
sentarem, através de textos e/ou imagens, tais maneiras de viver e
pensar e não outras, privilegiam, incluem ou excluem uns em detri-
mento de outros.
E este local privilegiado de informação ou diversão é também um
local privilegiado de educação, onde determinadas pedagogias (ditas do
bem viver e do bem ser) sobrepõem-se a outras. Por tudo isto, a mídia
tem sido, sobretudo nas últimas décadas, um local pedagógico onde se
aprende e se ensina. Devemos, portanto, compreendê-la também a partir
destas suas potencialidades, como algo que legitima e constrói identida-
des, como um local de exercício de pedagogia (segundo a "pedagogia
cultural"5 na perspectiva em que trabalha Shirley Steinberg, 1997).
A escolha, porém, por um determinado veículo de comunicação,
mais particularmente a revista Nova Escola6 — publicação da Fundação

5
"O termo 'pedagogia cultural' refere-se à idéia de que a educação ocorre numa varie-
dade de locais sociais, incluindo a escola, mas não se limitando a ela. Locais pedagógi-
cos são aqueles onde o poder se organiza e se exercita, tais como bibliotecas, TV, filmes,
jornais, revistas, brinquedos, anúncios, videogames, livros, esportes, etc." (Steinberg,
1997, p.101-102).
6
A. xtwsia Nova Escola, que começou a ser publicada em 1986, é um periódico mensal
dirigido a professores e professoras. Uma descrição mais ampla de suas características
encontra-se na nota 2 do capítulo "Mídia, magistério e política cultural".

O espaço escolar em revista • 129


Victor Civita (São Paulo), com circulação nacional e mensal7 — foi de-
cidida em função dos mesmos motivos que Costa e Silveira (1997) ale-
garam no texto referido: primeiro, pela sua penetração junto aos profes-
sores e professoras "em exercício"; segundo, por ser uma revista que trata
sobre educação mas não de forma propriamente acadêmica, já que faz
uso de

uma linguagem mais próxima ao discurso do cotidiano escolar (ao invés


do jargão acadêmico), [...] mecanismos discursivos de envolvimento do
leitor ou leitora uma apresentação gráfica que inclui ilustrações e outros
recursos além do texto escrito (que invocam um) "caminho de atualiza-
ção constante". (Costa e Silveira, 1997, p.l)

Pelos motivos expostos, além do fato da Nova Escola permitir uma


leitura leve e agradável, entremeada por inúmeras fotos e ilustrações, é
que esta revista foi escolhida para o estudo que realizei: por ser um lu-
gar de construção e representação de discursos que envolvem e inven-
tam novos e diferentes "olhares" sobre espaços e móveis escolares.

A análise

Transformar documentos em monumentos, tentar deles extrair enun


ciados, definido-os e descrevendo-os segundo suas regras de formação,
suas características, suas funções enunciativas, não é tarefa das mais
fáceis e nem é o objetivo desta minha investigação. Ao contrário, cons-
ciente das rupturas discursivas propostas por Foucault, busco aqui con-
tar (a partir de algumas ferramentas por ele propostas) como foram sen-

7
São nove exemplares ao ano, porque nos meses de férias -janeiro, fevereiro ejulho - a
revista Nova Escola não é publicada. , ■ , ■
* "A importância das publicações periódicas endereçadas ao professor em exercício e
de todos conhecida [pois] partilham, com outras revistas de divulgação científica, de um
objetivo de redução e simplificação das novas tendências, pesquisas e descobertas da area
'científica' envolvida, para apresentação a um leitor ou leitora menos 'iniciado , como
também se aproximam a outro gênero de periódico 'popular' que se propõe a 'ensinar
como fazer', dar 'dicas', 'sugestões' de prática para a leitora ou leitor." (Costa e Silvei-
' Conceitos trabalhados exaustivamente por Foucault na Arqueologia do saber (1997a).

130 • Estudos Culturais em educação


do constituídos, através de textos e/ou imagens, o espaço e o mobiliário
escolares narrados pela revista Nova Escola.
A perspectiva temporal vertical (de 1986 a 1996)10 e o interrogar
sobre as condições de existência de um modo — contínuo ou descontí-
nuo — como são descritos, definidos, mostrados o espaço e o mobiliá-
rio escolares nesta revista (o "discurso" áz Nova Escola) me aproximam
da arqueologia foucaultiana. Ao mesmo tempo, dela me distancio por
realizar esta análise utilizando-me apenas de algumas das ferramentas
propostas por Foucault.
A revista Nova Escola, segundo seu editor/fundador, Victor Civi-
ta, no editorial do seu primeiro número, não é (nem pretende ser) uma
revista pedagógica:

Esperamos que a revista — que não é nem deseja ser uma publicação pe-
dagógica — cumpra os objetivos que inspiraram sua criação; fornecer à
professora informações necessárias a um melhor desempenho do seu tra-
balho; valorizá-la; resgatar seu prestígio e liderança junto à comunidade;
integrá-la ao processo de mudança que ora se verifica no país; e proporci-
onar uma troca de experiências e conhecimentos entre todas as professo-
ras brasileiras de 1° grau. {Nova Escola, n. 1, p.3)

Mesmo que Civita tenha afirmado que esta não seria uma revista
pedagógica — e eu já tenha sustentado, apoiando-me em Steinberg
(1997), o quão pedagógicos são os meios e locais de difusão de cultura
—, a Nova Escola tem continuamente ensinado aos seus leitores(as)
como realizar as atividades em sala de aula, como comportar-se, como
utilizar tais espaços e tais móveis, entre tantas outras coisas.
Ao propor uma leitura agradável e instrutiva (desde os primeiros
números), esta revista parece querer inaugurar um "novo" tempo e um
"novo" espaço de discussão. Nela tudo o que se refere à escola se faz
presente, e o modo de tratar tais questões é semelhante em todos os exem-
plares analisados: imperativo. A Nova Escola se autopromove como sen-

10
Os exemplares analisados foram os publicados nos anos de 1986 (números 1 a 9), de
1990 (números 37 a 45) e de 1996 (números 91 a 99). Por ser uma pesquisa histórica, e
tendo esta revista começado a ser publicada em 1986, decidi que estenderia a minha análise
por um período máximo de dez anos (1996) e que analisaria um ano de publicação no
meio destes dois (1990) para ter um recorte temporal eqüidistante entre eles.

O espaço escolar em revista • 131


do um mecanismo de salvação onde "idéias básicas", "essenciais", "ne-
cessárias", "importantes", "que fazem sentido" ajudarão aqueles(as) que
dela precisam para tomar o ambiente escolar, o currículo, o programa,
as aulas mais dinâmicas, interessantes, cheias de novidades. Verbos como:
"revele", "faça", "demonstre", "amplie", "use", dão as ordens de como
transformar para melhorar.
Nos vinte e sete exemplares analisados, porém, em nenhuma repor-
tagem, matéria, fotografia ou imagem o espaço escolar foi considerado uma
temática ou problemática importante a ser abordada. Embora ele esteja
presente, retratado, mostrado desde o primeiro exemplar, embora ele exista
demarcando lugares e posições, é mostrado sem que sejam questionadas
sua origem, sua permanência, continuidade ou temporalidade.
Nas primeiras publicações ele aparece — em fotografias ou dese-
nhos — como um espaço de organização, disciplina, ordem, independente
do local sociocultural onde está inserido. O espaço escolar da área rural
amazônica, precário em sua estrutura, por exemplo, parece ser o mesmo
relatado na charge da urbana e "moderna" professora "Cileuza" ou da
também precária "Escola Municipal Rural de Gereraú": alunos sentados
em fila, professor na frente explicando, direcionando e controlando a
disciplirla {NovaEscola, 1986, n.l, p.8, 11 e 60, e n.2, p.27).
Mesmo quando a "escola se move" (escolas itinerantes em Campi-
nas e Lages), o microônibus que faz as vezes de uma escola reproduz o
interno de uma sala de aula em todas as suas particularidades, sem mu-
dar absolutamente nada da sua conhecida organização interna: alunos
enfileirados em classes individuais, quadro-negro e espaço professoral
centrais {Nova Escola, 1986, n.2, p.6, 7 e 8).
Mesmo porque quando a escola deixa de ser aquele ambiente fecha-
do, dentro de quatro paredes, com alunos sentados diante de um quadro,
com um professor que é o único que pode se locomover dentro deste espa-
ço — uma estratégia metodológica que, dizem alguns, melhora a aprendi-
zagem, tomando o espaço mais livre —, a escola, segundo a revista, deixa
de ser séria e passa a ser brincadeira. Numa proposta "inovadora", a pro-
fessora de Estudos Sociais de uma escola paulista, propôs ao grupo de alu-
nos um programa prático para que se conheça a cidade onde se mora. A
matéria intitulada "Brincando de detetive, eles aprendem melhor" demons-
tra como a escola fora de seu espaço tradicionalmente reconhecido passa
a ser uma outra coisa: uma brincadeira {Nova Escola, 1986, n.3, p.22-24).

132 • Estudos Culturais cm educação


Na medida em que se sucedem os números da revista, alguns con-
selhos vão sendo dados para aqueles professores que parecem "não sa-
ber/não conseguir,, conviver com os "velhos" e "novos" utensílios do
espaço escolar. O quadro-negro, por exemplo, que parece ter sido inven-
tado junto com a escola (será?), precisa ser bem usado. Em uma matéria
intitulada "Como usar o quadro-de-giz" {Nova Escola, 1986, n.4, p.30-
32) muitas são as "dicas" para tomar o uso do velho quadro atrativo, mas
em nenhum momento se discute sua "necessária" permanência no espa-
ço escolar:

a evolução das técnicas de ensino determinou a modernização do velho


quadro-negro, elemento praticamente indispensável" numa sala-de-aula.
{Nova Escola, 1986, p.30)

Conforme a revista, ainda, a chegada dos computadores nas escolas


também provocou um misto de euforia, curiosidade e dúvidas. Sua ade-
quação no espaço, porém, deixa a desejar; são as mesmas posições que se
ocupam independente dele (os alunos em filas, uns atrás dos outros, com
um computador na frente). À frente de todos, o professor e o "necessário"
quadro-negro (para quê?) {Nova Escola, 1986, n.5, p. 12-14).
Ainda que sejam poucas as imagens apresentadas nos nove primei-
ros exemplares analisados sobre o espaço escolar fora da sala-de-aula,12
ele se repete em sua aparente simplicidade: a escola enquanto exterior é
narrada como um prédio simples, sem grandes pretensões, de arquitetura
linear, singela. Retrato da pobreza brasileira? Ou simplesmente as escolas
eram assim porque não precisavam de outros mecanismos de atração, além
do fato de serem um local privilegiado de saber (que ainda o são)?
E interessante observar que algo de diferente começa a ser retrata-
do quanto ao espaço escolar, no exemplar número 6 (setembro de 1986),
com a experiência de alfabetização de crianças pobres na periferia de
Porto Alegre. O "novo" e "revolucionário" método parece produzir uma
"nova" (mas não tão revolucionária) maneira de disposição do mobiliá-
rio no espaço escolar: "diferente, alegre, enfeitada, barulhenta". Na "Pe-

11
O grifo é meu.
12
Mais de 70% das imagens de espaço escolar são internas, de salas-de-aula propriamente
ditas.

O espaço escolar em revista • 133


quena Casa da Criança [...] as crianças jogam baralho, passeiam entre
as carteiras, falam alto, disputam brinquedos" (p.40). Esta maneira de
dispor mesas e cadeiras e como elas são ocupadas (ou não) mostra uma
"novidade" no trato do espaço escolar.
O segundo conjunto de revistas que examinei corresponde ao perí-
odo de março a dezembro de 1990. Este ano marca o início de uma nova
fase política no Brasil, com a primeira eleição direta para presidente da
República que permitiu ao vencedor das eleições, Fernando Collor de
Mello, assumir o governo com um grave problema, porém, a ser resolvi-
do e que causa uma "vergonha nacional, o analfabetismo (matéria de
capa da Nova Escola, n.37).
Esta edição, dedicada ao analfabetismo, mostra algumas imagens
de escolas (sobretudo salas-de-aula) pelo Brasil a fora. A maioria delas
em nada difere daquelas que ilustravam os exemplares de 1986, com
exceção de algumas matérias, entre as quais aquela intitulada "Escola
mineira entra em ação contra a repetência", onde "professores de Mate-
mática e de Língua Portuguesa implantam projetos com aulas especiais
para melhorar o rendimento escolar dos alunos (p.36). O caráter dra-
mático das repetências escolares precisa e exige, segundo esta matéria,
que as aulas sejam desenvolvidas de forma especial, com aulas especi-
ais, mais dinâmicas, em salas especiais e com matenais especiais. Em
síntese, problemas surgem e soluções, mesmo que isoladas e especiais,
propõem mudanças, seja no caráter e dinâmica dos conteúdos, como na
disposição e ocupação de mesas e cadeiras.
O número 38 também traz novidades e mostra o "sucesso dos gaú-
chos" com as "multisseriadas".13 Na sua matéria de capa uma imagem
diferente de sala de aula: alunos sentados no chão, espalhados pela aula
e a professora no centro explicando o conteúdo. Apesar da interessante
disposição e ocupação do espaço escolar na capa deste exemplar, durante
toda a matéria, no interior da revista (p. 10 a 17), mostra-se somente como
"didaticamente" o trabalho é desenvolvido no Rio Grande do Sul, sem
que o espaço escolar seja tematizado.

13
Segundo a matéria da xcwsiàNovaEscola, "o projeto desenvolvido no município de Ajuri-
caba iniciou em 1984 e envolve 47 escolas municipais rurais. Está centrado basicamente nas
seguintes questões: que tipo de escola se quer para que as crianças dela saiam preparadas para
a vida e o que deveria ser ensinado nessa metodologia de ensino (1990, n.38, p.10-17).

134 • Estudos Culturais em educação


Parece que somente dificuldades na aprendizagem poderão provo-
car um repensar sobre a ocupação do espaço. Nos números 39, 42 e 43,
a Nova Escola traz algumas alternativas na utilização do espaço como
fator de motivação à aprendizagem; espaços que se transformam em palco
para permitir, através da dramatização dos conteúdos, uma vivência e
compreensão dos mesmos pelos alunos (n.42, p.40); aulas de Matemáti-
ca que utilizam o pátio para que os alunos aprendam numeração (n.39,
p. 14); ou mesmo aulas que, por falta de móveis, permitem aos alunos fi-
carem diretamente no chão, nas mais diferentes posições, por falta de
carteiras. Mesmo que tais dificuldades sejam vencidas com "arranjos"
pouco elaborados, o importante é que elas "não tira[m] o entusiasmo das
crianças" (n.43, p.ll).
As novas disposições e usos tentam resolver os problemas de apren-
dizagem e permanência na escola. Ao mesmo tempo, novos contingentes
de alunos parecem buscar nela a possibilidade de acesso a um mundo cada
vez mais profissionalizado e competitivo. Se para as crianças buscam-se
alternativas à falta de interesse e motivação, aos adultos analfabetos não é
preciso oferecer arranjos e disposições diferentes dos habituais. Na revis-
ta de n.40 (junho de 1990) as imagens que acompanham a matéria intitu-
lada "Alfabetização de adultos; quem disse que 'papagaio velho não apren-
de a falar'?" (p. 10-29) confirmam tal situação: os adultos-trabalhadores-
analfabetos se acomodam nos lugares que o espaço escolar determina, sem
possibilidades de falta de motivação ou interesse, como "papagaios velhos"
que aceitam obstinadamente o único lugar possível que lhes resta ocupar
e nas condições (de papagaios e velhos) que se lhes determinam.
Idêntica análise pode ser feita quanto à escola dos trabalhadores
sem-terra dos assentamentos da região de Ronda Alta (RS): "A educa-
ção que eles queriam para seus filhos" (n.40, p.32). Apesar de o projeto
educacional estar voltado aos interesses do movimento, o espaço esco-
lar difere bastante dos acampamentos: a sala de aula é o único espaço
construído em alvenaria e madeira (diferente das barracas de lona utili-
zadas pelos sem-terra) e os alunos (e a professora) estão dispostos na
sala em uma organização — de filas lineares de frente para o quadro-
negro — dissonante em relação às dificuldades vividas num acampamento

(falta de água, falta de luz, falta de alimentos, etc.).


A única alusão à discussão do mobiliário escolar que se faz em
todos os exemplares analisados é aquela em que se discute a carteira

O espaço escolar em revista • 135


escolar; "em testes, modelo que preserva a saúde do aluno" (n.41, p.24).
Discutida em termos ergonômicos, a carteira não é colocada à prova
quanto à sua função, necessidade ou permanência;

Sentar direito em sala de aula é uma conquista que alunos e professores da


rede estadual de ensino de Io e T graus estão perto de alcançar, em Pernam-
buco. Para combater a má postura causada pelo uso de carteiras, mesas e ca-
deiras impróprias, que podem até provocar sérias lesões na coluna [...], a Se-
cretaria da Educação está testando desde o início do ano, em quatro escolas,
mobiliário especial desenvolvido por técnicos. {Nova Escola, 1990, n.41, p.24)

Desenvolvidas em material durável e flexível, as novas carteiras se-


rão condizentes com as medidas antropométricas dos alunos pernambu-
canos. Muda-se o material, o tamanho e até o modelo, mas as funções (e
os discursos que se fazem acerca) do mobiliário continuam os mesmos.
O terceiro conjunto de revistas analisadas corresponde ao período
de março a dezembro de 1996. Dez anos depois de sua primeira edição,
a revista Nova Escola mudou bastante sua programação visual. Aumen-
tou seu formato, mas diminuiu um pouco o número de páginas. A quali-
dade gráfica — decorrente dos avanços técnicos promovidos pela era da
computação — traz fotos mais nítidas, efeitos visuais mais constantes,
cores mais contrastantes, quadros, esquemas, resumos, diagramação mais
dinâmica. Os textos parecem ter diminuído um pouco, confundindo-se,
entrelaçados com as fotos.
A maior mudança, porém, diz respeito justamente a como o espa-
ço escolar passa a ser representado na Nova Escola: já na capa do pri-
meiro exemplar de 1996 (n. 1) aparecem tortas e doces, receitas de bem
viver; "Cozinhando e aprendendo: escola catarinense solta o lado mes-
tre-cuca das crianças e alcança excelente resultado de ensino de todas as
disciplinas". A escola deixa de ser aquele lugar sisudo, fechado em qua-
tro paredes, organizado com cadeiras e carteiras bem simétricas. Ela con-
tinua sendo o lugar do saber; é nela (dizem) que se aprende, mas até os
conteúdos se tomaram mais "digeríveis".
Esta matéria, particularmente, mostra que a escola também deveria
ser um local onde se aprende através do desenvolvimento de hábitos
culinários (p.9-13). Mas não é só na cozinha que se aprende... A sala-de-
aula precisa sair de si mesma, enquanto espaço físico, para continuar
sendo atrativa:

136 • Estudos Culturais em educação


Ponha sua turma em órbita: sugestões práticas para você colocar o céu
na sala de aula e explorar o ensino de várias disciplinas com a ajuda da
Astronomia, (n.92, capa)

Encha seu pátio de paralelos e meridianos: coordenadas geográficas e


pontos cardeais, conceitos de orientação espacial, são ensinados ao ar li-
vre e contribuem para a Geometria, (n.92, p.21-22)

Ensine arte diretamente na fonte: uma visita planejada a um museu ensina


mais sobre cores, fonuas e gêneros artísticos do que muitas aulas exposi-
tivas. (n.92, p.38-39)

Supermercado na sala de aula: professoras gaúchas apresentam as primeiras


operações matemáticas a seus alunos simulando uma atividade já conhe-
cida de todos: comprar e vender, (n.95, p.42-43)

As propostas didático-pedagógicas se modificam, assim como se


diversificam as técnicas e dinâmicas propostas em sala-de-aula:

Chame os avós de seus alunos para dar aula: turma de segunda série des-
venda o século XX entrevistando seus próprios parentes e percebe que a
História não existe só nos livros didáticos, (n.97, p.34-35)

Uma escola ligada na Pedagogia dos computadores; luzes vermelhas ace-


sas, começa a aula do futuro. Mas estamos no presente e no Brasil, num co-
légio onde o microcomputador é essencial para a educação, (n.97, p.46-47)

Uma boa conversa com uma especialista: alunos de uma escola de Tagua-
tinga entrevistam uma geógrafa em sala de aula e se empolgam com o es-
tudo das rochas, (n.93, p.38)

Pegue a publicidade e ensine, (n.93, p. 16-17)

ou

Ensine ciências diretamente no laboratório, (n.91, p.44-45)

ou ainda:

Explique simetria com espelhos e decalques, (n.99, capa)

O espaço escolar em revista • 137


Solte sua veia musical para ensinar História, (n.99, capa)

Enfim, a (pretendida) "(r)evolução" pedagógica mostrada na revista


Nova Escola diz ser preciso a criação de um novo espaço escolar, menos
limitado e mais dinâmico, para permitir tantas aventuras e diversões. Se
as funções espaciais continuam as mesmas, porém, que ao menos e as
seiam cada vez menos visíveis e mais parecidas com este mundo atem-
poral e sem fronteiras que se insinua diante de nós como a umca realida-
de possível. Pois, uma escola como extensão da própna casa, da rua, do
mercado, da vida da gente parece ser uma "saudável" invenção que da
menos fadiga e mais prazer em nela estar;

Uma cidade de brinquedo para ser levada a sério: no Colégio Osw^do


Cruz os alunos se habituaram a usar computador para quase tudo. Mas
na Coclândia - uma minicidade constmída para cnanças de pre-escola
a quarta série eles têm também outras atividades, como cuidar de
cenouras e alfaces e aprender a receber visitas em casa. {Nova Escola,
1996, n.97,p.48-49)

As (in) conclusões

Talvez a maneira menos redatora de apontar caminhos seja aquela


de não eliminar alternativas. No exercício de ir e vir, cruzar e negar afir-
mações, colocar em jogo tantas possibilidades, eliminar as certezas ab-
solutas, muito fica para trás, pelos lados, para frente.
Nesta análise, onde procurei investigar e compreender o modo como
a revista Nova Escola constituiu e continua a constituir identidades de
espaço escolar através de textos e imagens, é difícil perceber, de onde
parti, onde iria chegar.
Minhas idéias durante o percurso foram possibilitando, porem,
a concretização de dúvidas prementes e constantes relativas ao como
(e talvez ao porquê) foram sendo constituídas essas identidades apa-
rentemente tão diferentes de espaços escolares. Que motivos levaram
a Revista Nova Escola a representar os espaços de formas tão dife-
rentes em pouco mais de dez anos? Como os espaços escolares —
antes fechados e alinhados — passaram, em apenas dez anos, a ser
abertos lúdicos, cheios de fantasia e animação? Como os espaços

138 • Estudos Culturais em educação


"especiais" foram sendo redimensionados por problemas "especiais"?
Por quais tipos de transformações passamos, dentro e fora das esco-
las, que nos permitiram constituir outras identidades sobre espaços
escolares?
Para responder a todas estas questões, talvez fosse necessário reto-
marmos a história dos espaços fechados (disciplinares e disciplinarizan-
tes) para percebermos que esta "evolução humanizante" que nos retirou
do cadafalso (particularmente no caso das prisões) para nos colocar nas
"gaiolas" de vidro, de limites transparentes e visibilidades sem fim, é ex-
tremamente econômica14 (material e politicamente). Pois, pretensamente
mais "humanos", suavizamos e até eliminamos completamente uma série
de limites (físicos, estruturais, mobiliários, arquiteturais, etc.) que impos-
sibilitavam alunos e professores de manterem entre si (as desejadas) rela-
ções mais justas, igualitárias ou democráticas. Esquecemos, talvez, que tal
"evolução" (ou economia como nos diz Foucault) nos amordaça com ou-
tras amarras, mais finas, mais sutis, quase transparentes.
Como átomos pensantes (que se desejam autônomos, livres e celu-
lares) estamos organizados numa nova economia e tecnologia do poder
disciplinar, de quantidades mínimas, de certezas (ditas) perfeitas, de ver-
dades (tidas como) comuns, de idealidades suficientes e de especifica-
ções classificatórias.15 Convivemos pacificamente, produzindo, manten-
do e reproduzindo, eficaz e eficientemente, um modo de produção espe-
cífico, de máxima força útil e mínima força política, como numa grande
linha de montagem de composições precisas, mecanismos perfeitos e
extrema docilidade.

14
A palavra economia (do grego "oikonomia"; oikos - casa e nomus = medida), e suas
derivadas, foi constantemente utilizada por Foucault. Porém, ele a usa de maneira diver-
sa daquela geralmente definida como "ciência, doutrina ou teoria que estuda os proces-
sos de produção, troca e consumo de bens e serviços capazes de satisfazarem as necessi-
dades e os desejos humanos" (Zingarelli, 1996, p.584, trad. minha). Também aqui usarei
economia num sentido mais amplo e próximo do seu original grego: "arte de bem admi-
nistrar uma casa" (Ferreira, s/d, p.497); ou como: "tendência do homem de realizar o
máximo resultado com meios dados, ou um determinado resultado com o mínimo de
meios, motivada pela limitação dos meios em relação aos fins e à escassez dos bens em
relação às necessidades" (Zingarelli, 1996, p.584, trad, minha); ou então: utilização ra-
cional das fontes de utilidade de que se dispõe" (idem).
15
Foucault desenvolve as regras desta tecnopolítica em Vigiar epunir (1997b, p.86-89).

O espaço escolar em revista • 139


Vistos, vigiados c violados na escola e fora dela nos tomamos na
turalmente" obedientes, homogêneos, previsíveis, exemplares e, sobre-
tudo, govemamentalizados,16 sem precisarmos mais do soberano ou do
pastor para nos determinarmos, controlarmos e justificarmos em nossas
ações e mtenções.
A escola, portanto, esta grande maquinaria disciplinar moderna, tem
sua positividade justamente na medida em que colabora na produção de
sujeitos autogovemados (num estado govemamentalizado) que aprendem
desde cedo nas várias séries e ciclos (nos seus tempos), nas várias filas,
turmas, salas ou carteiras (nos seus espaços) e nos vários currículos, gra-
des, programas ou níveis (nas suas histórias, hierarquias e distribuições)
a estabelecerem autonomamente seus próprios limites, controlando e
permitindo, reciprocamente, uns aos outros.
Por tudo isto, e apesar disto e dos tantos outros problemas e críti-
cas com os quais a escola (enquanto espaço e tempo) tem permanente-
mente convivido, seria (talvez) contraproducente eliminá-la completa
mente, pois mesmo que ela não funcione como desejado (porque ainda
nela existem as evasões, as repetências, os castigos, as ausências, as ne-
cessidades contínuas e as faltas graves), ela tem uma certa utilidade eco-
nômico-política para as sociedades nas quais vivemos. Parafraseando
Foucault (s/d), talvez esta "utilidade" da escola possa ser facilmente ob-
servada se considerarmos que: quanto mais escolarizados formos, mais
indisciplinados existirão, quanto mais indisciplina houver, mais desorgani-
zada (despolitizada, mal educada, indisciplinada) será a sociedade c mais
necessidade e vontade de disciplina ter-se-á; mais aceitável e desejável,
então, será a escola e o sistema de controle disciplinar. Pois,

a existência deste pequeno perigo interno permaneiilc [a indisciplina] é


uma das condições de aceitabilidade deste sistema de controle. (Foucault,
s/d, p.65, trad. minha)

Outras condições de aceitabilidade poderiam ser pensadas, citadas,


enumeradas, postuladas. Talvez a lista nunca acabe. Ou delas se pudes-
sem falar muito mais. Fica o desejo da inconclusão.

16
Foucault desenvolve detalhadamente "a governamentalidade" no seu artigo homôni-
mo do livro "A microfísica do poder" (1979, p.277-293).

140 • Estudos Culturais em educação


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O espaço escolar em revista • 141


VARELA, Julia; ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Teoria &
Eí/MCflfão, Porto Alegre, n.6, p.68-96,1992.
VEIGA-NETO, Alfredo. Michel Foucault e educação; há algo de novo sob o sol /
ln; . (Org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Suli-
na, 1995. p. 9-56. „ , u v • u ir
ZINGARELLI, Nicola. Vocabolario delia lingua italiana. Bolonha: Zamcheüi
Editore, 1996.

Revista consultada

Nova Escola. São Paulo: Fundação Victor Civita. 1986, 1990 e 1996, n. 1,2, 3,
4, 5, 6, 7, 8, 9, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97,
98 e 99.

142 • Estudos Culturais em educação


Capítulo 6

Natureza e representação

na pedagogia da publicidade

Marise Basso Amaral

Introdução

0 presente texto apresenta algumas discussões engendradas a


partir de um trabalho de pesquisa1 realizado no campo dos Estudos
Culturais. Tal projeto, direcionado a uma temática específica — as
representações de natureza —, me permitiu operar um movimento de
relativização em relação ao papel fundamental que tem sido atribuí-
do à escola na construção de representações de natureza, tantas ve-
zes destacado em discussões mais restritas sobre este processo, que
o enquadram apenas em uma dimensão cognitivista-epistemológica.
Ao mesmo tempo, a partir das discussões deste campo de estudos pude
identificar novos educadores e novos domínios pedagógicos — repre-
sentados, por exemplo, pela mídia e suas produções — que persis-
tentemente produzem representações sobre o mundo.

1
Apresento algumas das considerações a partir do meu trabalho de dissertação de mes-
trado xnúiuXdiáo Representações de natureza e a educação pela mídia, Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPG-EDU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).

Natureza c representação na pedagogia da publicidade • 143


VARELA, Julia; ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Teoria &
Educação, Porto Alegre, n.6, p.68-96,1992.
VEIGA-NETO, Alfredo. Michel Foucault e educação: há algo de novo sob o sol?
In: . (Org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Suli-
na, 1995. p.9-56. .
ZINGARELLI, Nicola. Vocabolario delia língua italiana. Bolonha: Zamchelh
Editore, 1996.

Revista consultada

Nova Escola. São Paulo: Fundação Victor Civita. 1986,1990 e 1996, n. 1,2, 3,
4, 5, 6, 7, 8, 9, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97,
98 e 99. '

142 • Estudos Culturais em educação


Capítulo 6

Natureza e representação

na pedagogia da publicidade

Marise Basso Amaral

Introdução

O presente texto apresenta algumas discussões engendradas a


partir de um trabalho de pesquisa1 realizado no campo dos Estudos
Culturais. Tal projeto, direcionado a uma temática específica — as
representações de natureza —, me permitiu operar um movimento de
relativização em relação ao papel fundamental que tem sido atribuí-
do à escola na construção de representações de natureza, tantas ve-
zes destacado em discussões mais restritas sobre este processo, que
o enquadram apenas em uma dimensão cognitivista-epistemológica.
Ao mesmo tempo, a partir das discussões deste campo de estudos pude
identificar novos educadores e novos domínios pedagógicos — repre-
sentados, por exemplo, pela mídia e suas produções — que persis-
tentemente produzem representações sobre o mundo.

1
Apresento algumas das considerações a partir do meu trabalho de dissertação de mes-
trado intitulado Representações de natureza e a educação pela mídia, Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPG-EDU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 143


Assim, para além da discussões acerca do antropocentrismo2 no
ensino de Ciências e no currículo escolar como um todo, para além de
uma crítica à natureza reapresentada como recurso natural pelos livros
didáticos, existe, também, um conjunto de produções de valores e signi-
ficados em relação à natureza que atravessam o nosso cotidiano e que
não estavam e não estão, necessariamente, localizados apenas na esco-
la. Uma das contribuições desta perspectiva para o presente trabalho foi
justamente a possibilidade de, através de uma análise cultural, poder for-
necer um outro olhar para estes "novos" lugares e processos pedagógi-
cos que envolvem o estabelecimento das compreensões hegemônicas que
temos sobre a natureza — visões antropocêntricas que ressaltam a sua
utilidade e seu aproveitamento para a produção de artefatos tecnológi-
cos e bens de consumo, ou contemplativas e românticas que exaltam sua
beleza, pureza, perfeição, etc.
Neste sentido, o enfoque de análise desenvolvido neste trabalho —
pouco usual em abordagens que discutem compreensões de natureza, a
partir de referenciais mais centrados na ecologia, na defesa ambiental, e
até mesmo na educação, ou educação ambiental — não pretendeu inves-
tigar o que éa. natureza ou o que pensam (alunos, professores, ecologis-
tas, ambientalistas) sobre a natureza. Quais as dinâmicas de produção de
significados, valores e desejos em relação à natureza? Quais as instânci-
as culturais que se constituem como produtoras desses significados?
Como eles são produzidos? Enfim, quem esta falando de natureza,
quem e comol Estas foram as perguntas que passaram a habitar meu es-
paço teórico e que continuam a inspirar meus atuais estudos.
Como perguntas "pretensiosas" que são, além da necessária humil-
dade diante da possibilidade de construir alguns caminhos de respostas,

2
Segundo Grün (1995), uma das principais causas da degradação ambiental tem sido iden-
tificada no fato de vivermos sob a égide de uma Ética Antropocêntrica, onde o sistema de
crenças decorrentes da mesma colocam o Homem como o centro de todas as coisas, tudo o
mais no mundo existe em função dele. O mesmo autor ressalta ainda o fato de que a Ética
Antropocêntrica não é algo tão novo e a sua criação não pode ser única e exclusivamente
atribuída a Descartes, embora com ele esta Ética tenha envolvido outras dimensões, de-
monstrando, através de uma passagem bíblica do Gênesis 26:28, raízes culturais mais anti-
gas para este antropocentrismo: "Deus disse: Façamos o Homem a nossa imagem e seme-
lhança, e que ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos,
todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra (Grün, 1995, p.21).

144 • Estudos Culturais em educação


foi preciso também optar por um recorte na análise, concentrando o tra-
balho em uma das várias instâncias culturais envolvidas em processos
de produção de representações de natureza; a publicidade foi a produ-
ção cultural escolhida.
A instância de aprendizagem da relação ser humano/natureza se dá
de maneira poderosa através da mídia. A educação formal, através de seus
currículos, sob todas as suas formas (livros didáticos, programações, or-
ganizações do espaço-tempo na sala de aula e nas disciplinas escolares),
ou legitima estas representações, ou silencia sobre a discussão e a pro-
blematização destas. As representações da natureza produzidas pela pu-
blicidade, bem como aquelas transmitidas pelo currículo escolar, perpe-
tuam e ao mesmo tempo atualizam o paradigma da ciência moderna que
traz em seu centro a separação cultura/natureza. Ao mesmo tempo, o
paradigma moderno decreta a sua própria degenerescência3 ao revelar-
se incapaz de pensar a espécie humana e a natureza em conjunto. Assim,
o olhar hegemônico sobre a natureza continua a produzir representações
— através dos currículos escolares, das exposições de museus, dos li-
vros infantis, dos filmes de ficção científica, dos documentários de his-
tória natural, dos desenhos animados, das peças publicitárias, etc. — que
reforçam o produtivismo eurocêntrico e o antropocentrismo, os quais
vêm, constantemente, ameaçando reproduzir todo o mundo na imagem
do mesmo, do igual (Haraway, 1992). A constituição discursiva da natu-
reza como o "outro" nas histórias do colonialismo, racismo, sexismo e
dominação de classe se faz presente, ainda, no imaginário social onde é
continuamente renovada através do meios de comunicação de massa, que
apresentam a natureza como mais uma mercadoria de consumo.
Este olhar hegemônico sobre a natureza permitiu e justificou, segun-
do Rocha (1995), a tomada e a destruição de territórios — e dos povos —
do Novo Mundo, pelo fato destes mesmos serem nomeados discursivamente

3
Este termo está sendo utilizado segundo a concepção de Santos (1989). Este autor res-
salta que vivemos em meio a um pensamento de crise, ele denomina esta crise como cri-
se de degenerescência. Segundo o autor, as crises de degenerescência são crises do para-
digma que atravessam todas as disciplinas, ainda que de modo desigual, e que as atra-
vessam de um modo mais profundo, pondo em discussão não os instrumentos metodo-
lógicos e conceituais utilizados na prática científica, mas antes, a própria forma de inte-
ligibilidade do real que um dado paradigma proporciona.

Natureza c representação na pedagogia da publicidade • 145


como "espaços vazios ". A Sociedade Industrial moderna tomou-se, então,
para este autor, uma incomparável máquina de produção. Ao mesmo
tempo, tomou-se também uma inigualável máquina de destruição, onde
todo o'espaço ao redor e seus habitantes devem ser compulsóna e conti-
nuamente anexados dentro da categoria utilidade. Para Rocha (1995), essa
produção, característica da Sociedade Industrial, não conhece limites, tudo
é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve tomar-se produtivo, raças, soei
edades, mares, florestas, espaço, subsolo.
A identidade moderna foi e continua sendo construída através dos
processos de produção de identidade que invariavelmente reforçam o
antropocentrismo e criam as ferramentas teóricas e sociais que autori-
zam o ecocídio. O olhar hegemônico sobre a natureza, construído atra-
vés das representações hegemônicas dominantes de natureza que habi-
tam os livros de história e contos, os livros didáticos, as revistas cientí-
ficas e os meios de comunicação de massa continuam a construir uma
identidade social que vê na natureza o diferente, o oposto da cultura. A
partir daí, uma complexa trama de significados é construída pelas dife-
rentes representações de natureza produzidas por variadas instâncias
culturais Os termos primitivo, selvagem, perigo, aventura, riqueza, e,
ainda, beleza, tranqüilidade, paisagem/paraíso, nomeiam e resigmficam
uma natureza que é construída como alheia, distinta e distante do cotidi-
ano humano; como o "outro"' da cultura. ^ ,
A desconstrução/reconstrução da nossa relação, enquanto indiví
duos e coletividade, com a natureza é um importante desafio, entre os
vários que se colocam à humanidade, neste final de século. Este movi-
mento implica, entre outras coisas, em poder olhar com um certo estra-
nhamento para aquelas "representações-verdades" naturalizadas em nossa
sociedade e cotidianos que continuamente limitam, organizam e disci-
plinam aquilo que sabemos sobre o mundo. Essas representações, escon-
dendo totalmente seu processo de produção, omitindo seu caráter de cons-
trução histórica, de contingência, passam a ser lançadas neste mesmo
mundo que constróem como a própria realidade.
Na elaboração do meu trabalho de pesquisa tentei expenmentar este
estranhamento. Pude me afastar de um posicionamento que por algum
tempo mantive: aquele que se referia, de certo modo, à crença de que
existia uma natureza que não estava sendo adequadamente representada
pressupondo, portanto, a existência de uma natureza que poderia ser com-

146 • Estudos Culturais em educação


pletamente descrita e corretamente narrada. A partir da perspectiva dos
Estudos Culturais, pude compreender que a preocupação não é com o
contraponto da representação com algo que seja o real, portanto ques-
tões como o que é mesmo a natureza não são produtivas nem adquirem
sentido dentro deste referencial. Da mesma forma, a preocupação não é
o quanto essas representações se aproximam da realidade ou se distan-
ciam dela, mas antes, o reconhecimento de que a própria realidade, como
Pollock (1990) nos chama a atenção, se transforma em uma categoria que
precisa ser interrogada como sendo ela mesma produto resultante de re-
presentações, como sendo construída discursivamente em meio a dispu-
tas de poder, em meio a interesses históricos, econômicos, científicos,
sociais e políticos específicos.
Assim, nesta pesquisa busquei, a partir das considerações citadas, en-
tender o que estava sendo produzido sobre natureza, quando imagens da-
quilo que convencionalmente descrevemos como o mundo natural (cacho-
eiras, montanhas, cavalos selvagens, animais africanos, pingüins, paisagens
exóticas e distantes, borboletas, flores, pedras, desertos, etc.) apareciam ven-
dendo xampus, refrigerantes, cigarros, calçados, roupas e tantas outras coi-
sas. É preciso ressaltar que as análises que realizei sobre os anúncios publi-
citários foram desenvolvidas a partir do meu olhar sobre elas. Este exercí-
cio de relativização nas leituras dos anúncios não se deu no sentido de não
reconhecer a legitimidade ou os aspectos produtivos em relação à metodo-
logia e ao referencial de análise construídos e desenvolvidos ao longo do
trabalho; mas antes, no sentido de reconhecer que o meu olhar é perpassado
por histórias, experiências anteriores e constituído por diferentes discursos
que não podem — nem desejo fazê-lo — ser suprimidos por uma suposta
neutralidade científica. Esse movimento de relativização do olhar entende,
também, que toda imagem tem um caráter polissêmico, o que pressupõe uma
gama variada de significantes e significados, os quais podem ser escolhidos
ou ignorados pelo(a) leitor(a). Porem, ao mesmo tempo que este trabalho se
abre para outros olhares e interpretações, pressupõe, também, que os senti-
dos são negociados em meio a um contexto fortemente marcado pelos inte-
resse econômicos e por disputas de poder, em que alguns determinam como
imagens e significados serão tomados acessíveis a muitos.
Dyer (1993) entende que só podemos apreender a realidade atra-
vés das representações de realidade disponíveis para serem vistas e li-
das, e, embora reconheça que as formas culturais nunca têm significa-

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 147


dos restritos e determinados, ele enfatiza que simplesmente não pode-
mos fazer as representações significarem qualquer coisa que desejarmos.
Para este autor,

somos todos restringidos tanto pelos códigos de leitura e de visualidade


aos quais temos acesso (conforme onde nos situamos no mundo e na or-
dem social) e por quais representações existem lá para serem vistas e li-
das. (1993, p.2)

Imagem, pedagogia e o discurso publicitário

Ao analisar discursos publicitários, procurei mostrar como os pro-


cessos de produção de representações de natureza, por eles engendrado,
reproduz e reafirma relações desiguais de poder e de dominação, perpe-
tuando os binarismos culturais consagrados na modernidade como cul-
tura/natureza, construindo e delimitando nossas relações cotidianas com
o mundo vivo a nossa volta. Podemos tomar como exemplo deste movi-
mento o anúncio publicitário da Rádio Gaúcha FM, descrito a seguir;

A tela aparece toda escura; só se ouve a comunicação sonora de pererecas


na escuridão da noite, atividade vital em ações tão importantes como a
localização e o reconhecimento de co-específicos4 e acasalamento, o que
é interrompido pela "iluminação" do logotipo Rádio Gaúcha FM, agora,
em fundo claro e ao som de música clássica. O quadro é emoldurado pela
frase final: "Gaúcha FM, porque você tem coisa melhor para ouvir".

Participamos, muitas vezes desatentos, a mais uma tentativa de


vender civilização. Vender progresso em oposição à pnmitividade, ven-
der tecnologia em oposição à manufatura, vender cultura em oposição à
natureza. A escolha de representar, neste anúncio publicitário, um som
caracteristicamente entendido como natural, em detrimento à escolha de
sons mais corriqueiros e, obviamente, muito menos agradáveis, do coti-
diano urbano/humano (sirenes, buzinas, britadeiras, ônibus, etc.), reve-
la uma opção por determinadas representações de natureza que perpetu-
am o antropocentrismo e o ecocídio e legitimam um discurso que opõe

4
Designação dada a indivíduos da mesma espécie.

148 • Estudos Culturais em educação


natureza e cultura. Ou seja, não raro, a natureza é eleita como contra-
ponto às benesses de determinado produto industrializado, empacotado
e comercializado via mídia.
Ao longo do desenvolvimento do estudo processou-se, cada vez
mais fortemente, o reconhecimento desta instância cultural (a publici-
dade), como um local importante de produção de signos que, muitas ve-
zes, resignificam nossas ações cotidianas. Alguns autores destacam como
a publicidade se tomou um discurso público dominante neste século XX,
com seus textos imagéticos sobre mercadorias, estilos de vida, valores,
papéis de gênero, etc. Eles também apontam, freqüentemente, o caráter
ideológico desta instância cultural que é tanto mantenedora quanto par-
ceira do sistema capitalista, pois os anúncios publicitários divulgam idéias
mantenedoras da política e do sistema, que são ideológicas em sua "na-
tureza" (CTBarr, 1994).
Sinalizo, então, como uma das possíveis contribuições deste tra-
balho, a possibilidade de fornecer um outro olhar para os lugares e os
processos que envolvem o estabelecimento das compreensões que temos
sobre natureza. Tais representações têm eco em instâncias culturais como
a escola. Porém, a formação de nossas identidades e subjetividades, bem
como dos processos de relações que estabelecemos com o mundo social
e natural se dão, cada vez mais, para além dos muros escolares. Tal cons-
tatação remete à consideração da importância de se promoverem discus-
sões sobre "estratégias", ou talvez, sobre uma pedagogia que possa lidar
de outra forma com as novas perspectivas e as novas tecnologias multi-
mídia de aquisição de saberes sobre o mundo.
No exercício de análise dos diferentes anúncios publicitários que
empreendi, pude perceber que algumas temáticas são recorrentes nos
processos de representação de natureza, entre elas a naturalização, a
beleza, a saúde, a tecnologia e a "diferença". Pude constatar, também,
que o discurso dos diversos anúncios publicitários é extremamente
conectado, ou seja, um anúncio aparentemente "isolado" situa-se den-
tro de um fluxo maior de significados. Como afirma CTBarr (1994),
os novos anúncios não surgem nem existem em um "vácuo discursi-
vo", eles reconhecem e se referem àquilo que já vem sendo produzi-
do anteriormente a eles. Assim, os enfoques temáticos que identifi-
quei como recorrentes, repetem-se em outros anúncios que não serão
aqui examinados.

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 149


Tentarei demonstrar, então, que as representações de natureza pro-
duzidas pelo discurso publicitário constróem discursos ideológicos5 so-
bre a natureza. A construção desses discursos se dá em um contexto maior,
onde se travam disputas de poder pela manutenção, ou pela problemati-
zação da dominação da natureza pela cultura. As representações de na-
tureza veiculadas pela mídia (publicidade) perpetuam, ainda, essas rela-
ções de poder, uma vez que vão ao encontro daqueles significados já in-
teriorizados pelo imaginário social.
Uma pedagogia que se preocupe com o desenvolvimento de um
alfabetismo crítico da mídia (Giroux citado por Kellner, 1995), o qual
possibilite a discussão das políticas de identidade e políticas de repre-
sentação articuladas nas diferentes instâncias culturais com as quais in-
teragimos normalmente, precisa reconhecer, primeiramente, estes locais
como espaços legítimos de produção e divulgação do conhecimento. Para
Giroux (1995), os debates dominantes sobre o conhecimento e a autori-
dade fracassaram neste sentido. A diversificada gama dos modos simbó-
licos de produção que caracteriza as sociedades atuais — imagens ele-
trônicas, textos escritos, músicas, vídeo clip , não é reconhecida como
textos influentes que constróem significados e operam no contexto de
uma diversidade de lutas sociais e modos de contestação"1 (Giroux, 1995.)
A dinâmica da cultura e da política sofreram importantes modifi-
cações, ainda segundo Giroux (1995), em íunção "da emergência da mídia
eletrônica e sua capacidade global para criar novas imagens de domina-
ção". Neste sentido, a compreensão dos profundos efeitos que os meios
de comunicação estão tendo na moldagem da vida cotidiana é um dos
desafios que se coloca aos(as) trabalhadores(as) culturais progressistas.
Da mesma forma, neste contexto em que o poder está organizado atra-
vés dos mais variados aparatos culturais (bibliotecas, escolas, revistas,
Internet, publicidade, shopping centers, etc.), se faz necessária a percep-

5
O termo ideologia foi tomado aqui segundo a concepção de Williamson (1994). Esta
autora identifica ideologia com "[...] O constante processo de re-produção de idéias às
quais é negado um começo ou fim histórico, as quais são usadas ou tomadas como refe-
rência 'porque' elas 'previamente' existem na sociedade e continuam a existir na socie-
dade porque são tomadas como referência" (Williamson, 1994, p.99). Este processo de
re-produção da ideologia não é imposto aos sujeitos por alguma instância superior, mas
antes, opera através dos mesmos. Portanto, nós somos parte ativa deste processo e nesta
operação o recriamos.

150 • Estudos Culturais em educação


ção e o entendimento das novas possibilidades pedagógicas que se apre-
sentam nos diferentes meios. Este fato aponta para um movimento de
ampliação da esfera política, tanto para a hegemonização quanto para a
resistência (Giroux, 1995). Este movimento deve ser acompanhado de
um esforço, por parte dos(as) trabalhadores(as) culturais, no sentido de
tomar o político mais pedagógico e o pedagógico mais político.
Uma nova política cultural, no entanto, não deve se ater apenas a
esta esfera de ampliação dos locais de contestação e resistência. E ne-
cessário criar estratégias que possam dar conta daquelas instâncias ou
discursos que estão distantes dos domínios tradicionais do conhecimen-
to e, neste movimento de aproximação, poder analisar e aprender as di-
ferentes formas como o "conhecimento, não importa quão mundano e
utilitário, joga com imagens lingüísticas e produz práticas culturais"
(Morrison citado por Giroux, 1995).
Giroux (1995) enfatiza ainda, diante do poder da mídia eletrônica
na articulação e produção de representações e políticas de identidade, a
importância da pedagogia para o desenvolvimento de estratégias e alter-
nativas que possibilitem às pessoas "obter controle sobre a produção do
conhecimento e colocar a autoridade a serviço de uma política democrá-
tica crítica". Segundo este mesmo autor:

Os/as influentes pedagogos/as do século XX não são apenas os extenua-


dos/as professores/as do sistema escolar público, são também os agentes
culturais hegemônicos que medeiam as culturas públicas da publicidade,
das entrevistas de rádio, dos shopping centers e dos conjuntos de cinemas.
É nesses domínios representacionais, moldados de acordo com podero-
sas formas de interpelação, que a intersecção entre as necessidades não
satisfeitas e os mundanos desejos da vida cotidiana se torna concreta. No
contexto dessas culturas públicas, as pessoas se identificam e, ao mesmo
tempo, se perdem de forma diferente, em representações que lhes trazem
a promessa da esperança ou, mais provavelmente, a ilusão da satisfação.
(Giroux, 1995, p. 156)

Neste contexto de disputa cultural, o mundo das imagens tem um


papel importante, numa perspectiva pedagógica, por ser um terreno de
contestação e lutas entre aqueles conhecimentos que são incluídos e aque-
les que são excluídos pela mídia (Giroux e McLaren, 1995). Kellner
(1995) coloca como um dos insighís fundamentais da teoria pós-moder-
na a ênfase no papel crescentemente central da imagem na sociedade

Natureza c representação na pedagogia da publicidade • 151


contemporânea. O mesmo autor também aponta a importância de ampli-
ar o alfabetismo e as competências cognitivas para que possamos 'so-
breviver ao assalto das imagens, mensagens, e espetáculos da mídia que
inundam a nossa cultura" (Kellner, 1995).
A imagem publicitária é considerada como um campo privilegiado
de observação dos mecanismos de produção de sentido da imagem (Joly,
1996). Barthes (1990) também considera a imagem publicitária propícia
à investigação dos processos relacionados à significação da imagem
porque, segundo ele, esta se dá de maneira intencional:

são certos atributos do produto que formam a priori os significados da


mensagem publicitária, e estes significados devem ser transmitidos tão
claramente quanto possível; se as imagens contêm signos, temos certeza
que em publicidade eles são plenos. (Barthes, 1990, p.28)

Kellner (1995) aponta que a publicidade, a partir do século XX,


apresenta-se como um discurso público dominante, deslocando outras
formas de discurso público, em função de suas imagens de mercadorias,
estilos de vida, consumo, valores e papéis de gênero. O mesmo autor lo-
caliza a importância do desenvolvimento de um alfabetismo crítico da
mídia em relação à publicidade. Ele considera que, por si só, o volume
astronômico de investimentos nesta área deveria ser o suficiente para
preocupar os(as) educadores(as). A publicidade, segundo Kellner (1995),

constitui uma das esferas mais avançadas da produção da imagem, com


mais dinheiro, talento e energia investidos nesta forma de cultura do que
em qualquer outra na nossa sociedade capitalista. (Kellner, 1995, p. 112)

Para este mesmo autor, os anúncios publicitários são textos cultu-


rais multidimensionais e apresentam uma riqueza de sentido que exige
processos sofisticados de interpretação.
Assim como as demais imagens veiculadas pela mídia, as imagens
publicitárias são saturadas de posições e oposições que impõem resigni-
ficações. A publicidade ensina uma visão de mundo, valores e aqueles
comportamentos que são, ou não, socialmente aceitáveis. Os anúncios
comerciais analisados neste trabalho estão impregnados desses compo-
nentes. Eles apresentam em comum o estabelecimento de um paralelo
entre natureza e cultura, algumas vezes refletindo e, simultaneamente.

152 • Estudos Culturais cm educação


legitimando a histórica oposição existente na trajetória do conhecimento
moderno entre homem/mulher e natureza, cultura e natureza.
Assim, através da construção das imagens, da seleção de seqüên-
cias, da escolha das cores, dos sons e dos signos lingüísticos presentes
em cada um desses anúncios publicitários, o leitor/consumidor apreen-
de os significados dos produtos que estão à venda. Não somente isso,
ele(a) também "consome" o sentido das imagens de natureza que estão
sendo utilizadas para vendê-los. Neste movimento, o leitor/consumidor
se apropria não somente dos vários significados ligados a um produto
(beleza, conforto, liberdade de escolha, sucesso, riqueza), mas também
das representações de natureza que servem de referência ao seu estabe-
lecimento. Passo a analisar alguns discursos engendrados pelos proces-
sos de produção de representações de natureza em diferentes anúncios
publicitários.

O discurso "natural" da publicidade

O primeiro anúncio publicitário que inspirou este trabalho foi o da


campanha publicitária das Lojas Renner. Este anúncio foi especialmen-
te marcante por deixar explícita a idéia de que o "ser humano não é bi-
cho nem planta" (afirmado por um locutor ao final do anúncio), o que
colide frontalmente, não só com o conhecimento biológico contemporâ-
neo, mas reforça, mais uma vez, concepções antropocêntricas presentes
na cultura ocidental. A essas compreensões acresci o referencial da Se-
miótica que orientou, em parte, as análises dos anúncios publicitários
selecionados para minha dissertação, buscando compreender o modo
como a produção de significados se dá através destes anúncios e o pro-
cesso formador de representações de natureza que estes desencadeiam.
O trabalho de Williamson6 (1994), com anúncios publicitários,
demonstra a importância de perceber-se como as "formas de conheci-
mento" que eles utilizam acabam por se transformar em signifícantes.

f
' O trabalho de Williamson (1994), Decoding advertisements — ideology and meaning
in advertising, constitui-se em um importante referencial para este trabalho, principal-
mente no encaminhamento e construção de uma metodologia de análise dos anúncios
publicitários.

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 153


A autora exemplifica este processo analisando o modo pelo qual a na-
tureza tem sido usada como um referencial para a propaganda publici-
tária. Para Williamson (1994), significações anteriores, por exemplo,
têm produzido o significado "Natureza ; este mesmo pode ser esva-
ziado" e utilizado como um significante em relação a um produto. Um
produto é situado dentro de um conhecimento oco e extrai daí sua
significância (Williamson, 1994).
As peças publicitárias do whisky Chivas Regai7 constituem-se em um
importante exemplo do que foi dito anteriormente (vou tomar como exem-
plo apenas uma delas). Numa página inteira de uma revista aparecem, ini-
cialmente, uma garrafa translúcida dourada de Chivas Regai e, sobrepos-
ta a ela, uma linda borboleta azul. Na mesma página acetinada, mas do outro
lado, em proporções menores e cores menos conspícuas uma simples
lagarta verde, com o corpo levantado em direção ao estranho par whisky/
borboleta. O anúncio proclama: "Ou você tem, ou você não tem". Obvia-
mente, o escrito "você não tem" aparece sob a lagarta verde.
O presente anúncio publicitário chama o leitor, na interpretação dos
seus signos icônicos, a preenchê-lo com um conhecimento específico a
fim de que ao mesmo possa ser atribuído sentido. O conhecimento, am-
plamente disseminado na sociedade, e com o qual este anúncio trabalha,
reforçado pela mensagem lingüística, é aquele que considera muito me-
lhor ser borboleta do que lagarta. Esta é uma forma de conhecimento
estético e classificatório que aprisiona e reduz a diversidade do mundo
natural e os seus processos de transformação a um padrão humano de
beleza. Ainda, lagarta e borboleta, ao mesmo tempo que aparecem, são
negadas, sofrem um "esvaziamento" dos seus significados anteriores.
Assim, passam por um processo de desnaturalização, uma vez que o seu
processo natural de metamorfose foi negado pelo deslocamento da idéia
de transformação para o produto que está sendo vendido. Não apenas isso,
de representantes de diferentes estágios de vida de um mesmo ser vivo
elas passam a conotar, nesta peça publicitária, instâncias opostas, distin-
tas e independentes. A borboleta, de um lado, representa o sucesso, a

7
Para uma ampla descrição desta peça publicitária e sua análise, ver Amaral (\991) Re-
presentações de natureza e a educação pela mídia. Dissertação de mestrado, Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPG-EDU), Faculdade de Educação, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.

154 • Estudos Culturais em educação


Ou você tem ou não tem

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 155


elegância, o charme; a lagarta, no lado oposto, representa a negatividade
de todos esses atributos. Ou, pelo menos, o passado, o que foi deixado
para trás, o preterido.
A construção de um discurso sobre o natural é um dos aspectos exa-
minados detidamente por Williamson (1994) no seu trabalho com anúnci-
os publicitários. Segundo esta mesma autora, aproximadamente a partir do
século XVIII, é possível localizar uma mudança na compreensão e valo-
ração do natural por parte da sociedade. Esta é decorrente de uma altera-
ção nas condições materiais de vida das pessoas em geral; assim, quanto
mais a sociedade se distancia do mundo natural, em função de um maior
desenvolvimento tecnológico e científico, maior importância o natural
passará a ter para esta mesma sociedade. Porém, este conceito de natural
aprisiona e isola a natureza como um símbolo absoluto em si mesmo, o
qual passa a não ser mais representativo dos significados relacionados "ao
próprio mundo vivo", nem da nossa relação com ela.
Neste sentido, a maneira pela qual a cultura interage com a na-
tureza é totalmente reduzida ao nível de um processo de significação
o qual acaba por inverter, segundo Williamson (1994), o que ela de-
nomina de real, inverter a relação material com a natureza. Assim,
neste processo de significação, o que é socialmente aceito passa a ser
visto como natural e aquilo que é inaceitável como não natural; va-
lores morais são "colados" à natureza e esta passa a ser um simples
espelho da sociedade.
Um anúncio publicitário, no qual podemos localizar alguns dos ele-
mentos discutidos anteriormente, é o do Leite Parmalat.8 Este anúncio é
brilhante do ponto de vista da construção de cumplicidades, de subjeti-
vidades e do estabelecimento de empatia entre o leitor/consumidor e o
produto. Ele lida com aquilo que é mais apelativo para a maioria das pes-
soas: "filhotes humanos". Também os anúncios dos produtos Baygon e

8
O anúncio analisado aqui foi o primeiro que apareceu mostrando os filhotes da Par-
malat, em 1996, durante os Jogos Olímpicos. De lá para cá este anúncio veio se desdo-
brando em vários outros, em diferentes campanhas publicitárias, como a da Copa do
Mundo, Os filhotes da Parmalat apareceram (e aparecem) nas contracapas de várias re-
vistas e jornais, jogando futebol na floresta com o Rei Ronaldinho, ilustrando a capa de
cadernos escolares e ainda podem ser levados para casa para brincar como os nossos
outros filhotes na forma de bichinhos de pelúcia.

156 • Estudos Culturais em educação


do xampu Organics — que aqui não serão apresentados — realizam um
forte movimento na direção da naturalização de seus produtos.

"Afinal, somos todos mamíferos"

O Leite Parmalat é oferecido e bebido, neste anúncio, por uma variedade


de "filhotes", simultaneamente humanos e não humanos, todos perigosa-
mente lindos, meigos, fofos, enfim, sujeitos de todos aqueles predicados
que atribuímos àqueles bem nutridos, bem vestidos, bem tratados e bem
amados filhotes de nossa espécie. As crianças, provavelmente entre um ou
dois anos de idade, aparecem fantasiadas daqueles filhotes que tradicio-
nalmente despertam nossos sentimentos mais instintivos de afeto e prote-
ção: filhotes de mamíferos. À maioria de nós, portanto, nada resta além do
passivo "derretimento" em frente ao aparelho televisor. Assistimos as te-
letravessuras e a alegria virtual do leãozinho, da vaquinha, da foquinha, do
porquinho e outros que, embebidos em romântico e lácteo pano de fundo
composto de motivos campestres idealizados, vendem a felicidade e a na-
turalidade de beber Parmalat. Afinal, somos todos mamíferos. Ao som de
uma música infantil e de estilo próximo ao country, somos convencidos da
importância do Leite Parmalat para a saúde e alegria de nossas crianças.
Esta importância é expressa na letra da música que adverte: "...mantenha
seu filhote forte, vamos lá, trate seu bichinho com amor e Parmalat!!".

Assistimos a um complexo movimento de retomo à natureza, rea-


lizado por este anúncio. Este retomo se dá no sentido de conferir ao Lei-
te Parmalat o status de um produto natural. O leite é colocado em meio
a vários filhotes de mamíferos, os quais aparecem bebendo o leite ou
segurando o produto em meio a uma paisagem de fundo branco, com
nuanças que denotam, algumas vezes, paisagens campestres e, em ou-
tras, colinas e bosques. A "volta ao natural" é reforçada, também, pelo
jogo simbólico representado por estes filhotes, os quais são simultanea-
mente humanos e não-humanos, simultaneamente mamíferos e não-ma-
míferos, o que confere, ainda, um outro nível de complexidade a este
anúncio. Assim, a rede de significações envolvida neste vídeo publicitá-
rio pode ser também identificada na percepção de que a frase final "por-
que somos mamíferos" pode ser legitimada, pode ganhar um status de
verdade, em função das crianças que, romanticamente travestidas de fi-
lhotes de mamíferos, aparecem ao longo de todo o anúncio, e não pelo
reconhecimento, por parte do leitor/consumidor, de nossa própria condi-

Naturcza e representação na pedagogia da publicidade • 157


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158 • Estudos Culturais cm educação


ção de animais mamíferos. Ou seja, há a necessidade de fantasiar crian-
ças de mamíferos, para suscitar, então, o seu reconhecimento (e, conse-
qüentemente, do espectador co-específico) como mamíferos.
Assim, ao mesmo tempo que este anúncio localiza o produto dentro
de um contexto natural nos afasta da natureza, uma vez que nossa rela-
ção com a mesma, e não só isso, mas também o nosso reconhecimento
enquanto seres integrantes dela, só são possíveis se mediados simboli-
camente. O anúncio produz símbolos do natural (filhotes de mamíferos),
e o produto (Leite Parmalat) é colocado em justaposição a esse natural.
A realidade material destes filhotes mamíferos, que no início de suas vi-
das dependem única e exclusivamente do leite materno, é substituída por
uma realidade virtual romântica, onde nada se refere à natureza em si
mesma, mas antes à representação simbólica e, no caso, romântica do
natural, que é justamente um dos significados ideológicos dados à natu-
reza pela cultura. O natural, aqui, significa justamente beber o esterili-
zado e pasteurizado Leite Parmalat.
Essa valorização do natural também pode ser percebida, ainda, nos
vários anúncios de produtos que nos falam de cabelos naturalmente bo-
nitos, da ação natural de cremes e ervas, do emagrecimento natural, do
bronzeamento natural, etc. A cultura interage com a natureza através de
um processo de significação onde o natural pode assumir diversos sig-
nificados como: beleza, aventura, perigo, perfeição, etc., além da garan-
tia da salubridade/sanidade de um produto. Deve-se ressaltar que, assim
como a cultura branca, ocidental e eurocêntrica, o natural está situado
fora da natureza; natural e natureza são completamente distintos.
Um exemplo desta troca pode ser encontrado no movimento históri-
co realizado pela cultura em relação ao que se constitui como natural.
Williamson (1994) aponta que o artificial nem sempre teve o tom pejora-
tivo que atualmente lhe é atribuído, conseqüentemente, nem sempre o na-
tural foi tão fervorosamente pregado e vendido como na sociedade con-
temporânea, ironicamente caracterizada pela valorização da técnica, pela
racionalidade da produção, pela invasão do espaço virtual nas relações
pessoais e com o meio, enfim, irremediavelmente distante da natureza.
A nossa relação com a natureza só é possível, dentro da racionalida-
de moderna, mediada pela tecnologia, adquirida pelo consumo, justifica-
da pela investigação científica e amplamente propagandeada pelos anún-
cios publicitários, os quais conferem a todo este processo o status de na-

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 1 59


tural. Portanto, uma vez o natural sendo entendido como a justificativa
daquilo que uma sociedade aprova ou deseja, decorrente de um entendi-
mento que aponta a natureza como representando tudo aquilo que é bom,
que é perfeito, este natural passa a ser o significado conferido à cultura
pela natureza (Williamson, 1994), embora seja a cultura que, de qualquer
maneira, determina esse natural. Nas palavras de Williamson (1994):

A natureza é nosso ambiente espacial fundamental, o tempo (de maneira


óbvia) o nosso ambiente temporal. A ideologia funciona de maneira a nos
localizar equivocadamente em ambos: os anúncios publicitários referem-
se a este deslocamento como um fato inevitável e "natural", (p. 102).

O discurso planetário da publicidade

A expressão Comunicação de Massa e a respectiva busca de seu


significado tem sido objeto de uma discussão cada vez mais ampliada e
importante. Para Rocha (1995)

[...] a tendência entre vários pesquisadores é mesmo no sentido de acredi-


tar que entender a cultura contemporânea passa, de algum modo, por des-
vendar os conteúdos transmitidos pelos Meios de Comunicação, (p.23).

A Indústria Cultural9 é, indiscutivelmente, cada vez mais impor-


tante na sociedade ocidental contemporânea, pois dificilmente alguém
não está sujeito aos seus apelos ou pode deixar de ser dela receptor e tes-
temunha. Algumas constatações, a partir de observações do nosso coti-
diano, são suficientes para exemplificar que escapar à fruição dos meios

9
Rocha (1995) discute em seu trabalho a expressão Indústria Cultural. O autor aponta a
mesma como sendo problemática, uma vez que teve o seu "nascimento" marcado por um
projeto político que tinha por objetivo denunciar, no próprio nome, "as práticas massifica-
doras e totalitárias a que os meios de Comunicação submetiam as massas". Para ele, o mais
preocupante ainda é que a expressão Indústria Cultural carrega uma sutil suposição,..]
a existência de algum tipo de indústria não cultural" (Rocha, 1995, p.43). Assim, o autor
vai utilizar esta expressão como sinônimo de Comunicação de massa, mantendo suas acep-
ções mais simples, que sinalizam para "um sistema simbólico cujo 'raio de alcance' é mar-
cado pelo limite da própria midia que o veicula" (Rocha, 1995, p ).

160 • Estudos Culturais em educação


é tarefa árdua. Na medida em que nos afastamos dos grandes centros
urbanos, experimentamos um gradiente decrescente sim, porém de es-
copo cada vez mais extenso, das mensagens da mídia: outdoors que já
limitam a paisagem urbana das cidades, dividem nas beiras das estradas
espaço com os seres vivos daqueles locais, impondo sua estética própria,
alterando a paisagem e encerrando qualquer espaço aberto nas redes do
mercado e do consumo; pequenos lugarejos sem posto de saúde ou far-
mácia expõem anúncios da indústria multinacional de refrigerantes Coca-
Cola, que podem ser vistos a distância. Assim, a mídia vai, muitas ve-
zes, onde instituições como a escola e a saúde não chegam. A respeito
disso, é importante estar atento à complexidade dos processos relacio-
nados à compulsiva fruição dos meios de comunicação sob pena de pa-
recermos vítimas inocentes e indefesas das produções da Indústria Cul-
tural. Nas palavras de Rocha (1995);

Os Meios de Comunicação vão buscar qualquer um em toda a parte. Não


necessariamente como proposta de utopia controladora ao estilo "1984"
ou "Admirável Mundo Novo", mas com a singeleza radical que liga o es-
tranho e a diferença nas bem tecidas teias de códigos comuns. Um inces-
sante projeto de colocar regiões em contato performa seu destino na vida
social e trama o mosaico de uma amarração planetária, na qual experimen-
tamos participação compulsória, (p.34)

Podemos dizer, ainda, que a publicidade se constitui também em


uma importante forma de comunicação global. O processo de globali-
zação da economia guarda íntima e complexa relação com o processo
de planetarização da cultura. Ambos são francamente propagandeados
e alardeados pelos Meios de Comunicação e, nesta operação, tomados
corriqueiros e comuns em nossos cotidianos. É também nas instâncias
culturais propiciadas pelos Meios de Comunicação que organizamos,
substituímos e regulamos as narrativas que nos falam sobre quem somos
e como vivemos. Narrativas essas que encerram, geralmente, represen-
tações hegemônicas dominantes do masculino, do feminino, da cultura,
da natureza, da tecnologia, da ciência, etc. Estas narrativas auxiliam na
construção de identidades ainda fortemente ligadas a uma Sociedade In-
dustrial caracterizada pelo pensamento binário, pela intolerância com a
diferença e pela exploração da natureza. Como nos diz Rocha (1995);

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 161


[...] a Sociedade Industrial é uma forma planetária de se estar no mundo,
uma forma de imposição da cultura. Na realidade, é virtualmente possível
"ser" ocidental na ideologia e na prática em quase todos os lugares do
planeta. Uma outra importante dimensão é que a Sociedade Industrial só
admite a sua própria forma de viver no mundo. Existem sentidos desta
cultura inegociáveis com qualquer "outro" que, por ventura, ainda este-
ja disponível. Diferenças importantes tendem a ser abolidas de maneira
radical. A Sociedade Industrial é, irremediavelmente, etnocidária. Talvez
um pouco mais que isto: é uma sociedade que reuniu, pela primeira vez,
as condições de realizar não só uma destruição da alteridade, mas a pró-
pria destruição sumária e inapelável deste mundo. (p. 113-114)

As representações hegemônicas de natureza apresentadas pela mí-


dia, mais especificamente pelo discurso publicitário, discutidas aqui e em
minha pesquisa, acontecem num espaço e num tempo marcados pelos dis-
cursos da globalização da economia e planetarização da cultura, sendo
conseqüentemente, também formadas e constituídas por estes mesmos dis-
cursos. Os anúncios publicitários, além de apresentarem várias naturezas
(a bela, a pura, a primitiva, a perigosa, a natural, etc. — que não se refe-
rem necessariamente ao mundo vivo), auxiliam na construção de uma po-
lítica de identidade ligada a uma concepção de natureza externa e oposta à
cultura e, conseqüentemente, ao próprio ser humano.
Este olhar hegemônico sobre a natureza e sobre as relações cultu-
ra/natureza continua a ser reproduzido, reinventado e ensinado também
nas salas de aula; as relações entre a natureza, processo de produção e
consumo se constituem como uma "área de silêncio" do currículo esco-
lar (Grün, 1995). Neste sentido, a desconstrução do binarismo cultura/
natureza, também passa, como foi assinalado no início deste texto, pela
possibilidade de discutir as representações que instituem estas relações
em diferentes instâncias culturais como a mídia e a escola. O que per-
manece, com "cara" de novidade no campo pedagógico tradicional, é a
preocupação da escola com uma disciplina que, além de gozar de um sta-
tus acadêmico como a ecologia, tem se constituído como um tema da
moda. Preocupação essa materializada num discurso que fala da impor-
tância da manutenção dos recursos naturais e do cuidado com as (nos-
sas) "riquezas" da natureza. A lógica do consumo, implicitamente, con-
tinua a "ditar" os ritmos dos discursos.
A partir dos trabalho de Rocha (1995), pude entender que a publi-
cidade se constitui como uma importante forma de comunicação global.

162 • Estudos Culturais em educação


Entre os anúncios selecionados para meu trabalho de análise alguns cons-
tróem redes de significação que — além de produzirem discursos espe-
cíficos sobre a natureza, enfatizando a diferença, a superioridade e a tec-
nologia que permitem a dominação do "mundo da cultura" sobre a pri-
mitividade do "mundo da natureza" — apontam para algumas temáticas
comuns. Inspirada nos estudos deste autor, aponto a Planetahzação da
Cultura como uma delas. Os anúncios publicitários reunidos nesta te-
mática são aqueles que apresentam seus produtos em contextos planetá-
rios, em locais exóticos e pouco prováveis, geralmente num exercício de
superação das adversidades impostas pelo ambiente rústico e hostil, ou
numa direção diferente mas não oposta, no sentido de garantir um aces-
so seguro às distâncias e diferenças de um mundo tão exótico. Estas po-
dem ser anuladas pela utilização da tecnologia, aqui, mais especificamen-
te, pelo consumo dos televisores e computadores da Samsung, pelos car-
ros da marca Peugeot, ou pelo apelo à proteção de uma natureza global,
pois afinal "O mundo precisa de pessoas inteligentes" {slogan da com-
panha publicitária do cursinho Pré-vestibular Mauá).
Estes são os produtos cujas peças publicitárias apresentam vários
aspectos em comum em relação ao que foi discutido anteriormente, mas
o que se destaca em todos eles é como, através da construção dos
anúncios, se opera a transformação de qualquer local10 em local de
mercado, engendrada por nossa cultura e pelo nosso modo de produção
ocidental. Um desses anúncios, analisado a seguir, é o do carro francês
Peugeot, que pode ter sido fabricado na França — ou em qualquer outro
conveniente país de terceiro mundo, como o Brasil11 — e que no anúncio

10
Eu destacaria, como exemplo importante deste movimento, um quadro do anúncio
publicitário dos produtos Samsung, mostrado vária vezes pela televisão, onde em um
determinado momento sai do canto da tela uma tartaruga, com um controle remoto aco-
plado/grudado em seu casco. A mesma peça publicitária apresenta ainda cenas de televi-
sores em barcos, de computadores na neve e no gelo, de filmadoras sobre rochas, e um
chip de computador em meio as areias de um deserto.
11
Canclini (1996) fala da desterritonalização dos .objetos de consumo como resultado
da internacionalização daquilo que era o próprio e daquilo que era o alheio, promovida
pela globalização dos mercados. O autor nos dá um exemplo desse fenômeno. "[...] com-
pramos um carro Ford montado na Espanha, com vidros feitos no Canadá, carburador
italiano, radiador austríaco, cilindros e baterias inglesas e eixo de transmissão francês"
(Canclini, 1996, p.16).

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 163


publicitário aparece "caçando" entre e "correndo" com os típicos animais
das savanas africanas.

"O exercício da liberdade"

Ao som de um bela música que remete para ritmos étnicos, cantada por
um coral de crianças e misturada com alguns sons da natureza (grilos, aves,
cigarras), um carro vermelho, "sorrateiramente", vai invadindo um ambi-
ente selvagem, se aproximando de um bando de zebras. Ele é filmado de
frente; a câmera anuncia a sua chegada até o limite em que ele a "ultrapas-
sa". As imagens, por breves segundos, são mostradas a partir do interior
do carro, passando através do logotipo característico à marca Peugeot; a
figura de um leão. A perspectiva do predador se instaura na cena. Logo a
seguir, o carro/leão, vermelho, com vidros "fiimê" — que não permitem
ver o sujeito que o conduz — aparece na sua quase totalidade, passando
por cima da ossada de um animal morto. Sua imagem é refletida no olho
de uma zebra que observa e se assusta com sua aproximação, agora não
mais tão sutil. O leão salta à caça das zebras. Nas demais cenas, vai inte-
ragindo com aqueles animais localizados nos diferentes ambientes que
participam do seu "mundo" de leão — guepardo, gnus, aves africanas, ri-
noceronte, crocodilo. Acena final, filmada do alto, mostra o "Rei" no topo
da montanha de onde avista a imensidão do território. "Chegou Peugeot
306, um exercício de liberdade!" é a frase com a qual o locutor encerra o
anúncio. O nome do carro e o modelo aparecem na tela, logo abaixo do
carro/leão/rei, no topo da montanha.

Este anúncio publicitário retrata um automóvel, símbolo do desen-


volvimento científico-tecnológico da sociedade moderna e, portanto, da
cultura ocidental, como pertencente à natureza, interagindo com os demais
representantes do mundo natural. Este movimento inicial acontece no sen-
tido de estabelecer uma total identificação do produto com o seu logotipo;
um leão. Assistimos, então, a um "leão" caçando zebras, bem como inte-
ragindo com outros animais da savana africana. A natureza, neste contex-
to, passa a ser um referente que conota força, agilidade, ímpeto, liberdade
e potência, e o produto, a faceta tecnocultural que personifica esses atri-
butos. Ainda, esse movimento de "retomo à natureza" (Williamsom, 1994)
acaba por reforçar a faceta tecnológica/industrial do produto: ao mesmo
tempo que o aproxima da natureza (ao estabelecer a analogia com o leão),
afirma sua diferença e superioridade; sua velocidade, por exemplo, é su-

164 • Estudos Culturais em educação


perior a de um guepardo — o animal mais rápido do mundo —; o mesmo
não se aplica a um leão. A "ode" à liberdade operada por esse anúncio,
principalmente em seu final, quando o carro vermelho aparece solitário no
topo de uma montanha, remete para um desejo de experimentar aventuras
e perigos para justamente provar essa liberdade. E isto, o anúncio nos mostra
claramente, pode ser provido, com segurança, pelo produto Peugeot 306.
E quanto mais civilizadas e tecnologicamente controladas se tomam nos-
sas vidas, justamente devido à existência de produtos como este ou simi-
lares, mais o apelo do perigo, da aventura, do selvagem e do inóspito se
toma sedutor aos nossos sentidos.
Dessa forma, como no anúncio dos produtos Samsung, mais uma
vez reúne-se o distante e o próximo, o primitivo e o tecnológico. A natu-
reza, além de ser o local preferencial de "caça aos símbolos" da Indús-
tria Cultural, é também o espaço natural para a constituição de merca-
dos, bem como o palco, ou pano de fundo, dos processos de globaliza-
ção da cultura e da economia.

O virtual e a natureza faz-de-conta

O anúncio publicitário do produto Galaxy Ultra Lights nos remete


para o universo branco, puro e asséptico, característico aos anúncios de
cigarro, em clara oposição ao provável estado pulmonar de seus consumi-
dores. A utilização da natureza como referente de saúde e de pureza é uma
constante nas campanhas publicitárias de diferentes marcas de cigarro como
Marlboro e Derby, por exemplo. Esta construção da natureza como sinô-
nimo de saúde, pureza e bem-estar, é uma das construções discursivas que
mais se repetem naqueles anúncios publicitários, cujos produtos represen-
tam, exatamente, valores opostos a esses. Em alguns anúncios, como o do
cigarro Marlboro, as imagens de natureza (paisagens na neve, águas cris-
talinas e montanhas) aparecem em maior número de vezes do que aquelas
relativas ao cigarro, o qual quase não aparece. O anúncio publicitário do
cigarro Derby mostra, de quando em quando, a imagem de um homem
consumindo o cigarro, sobreposta às várias e belíssimas paisagens da na-
tureza do Brasil, ou seja, da natureza de Derby, já que, como o locutor anun-
cia, "este é o país de Derby". O anúncio a seguir também utiliza represen-
tações de natureza que conferem ao cigarro Galaxy Ultra Lights valores

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 165


específicos, além disso este anúncio é especialmente importante por anun-
ciar mudanças nos próprios processos de produção de representações de
natureza no discurso publicitário.

"Fumaça de borboleta"

Num íúndo branco, desfocado, alguns contornos se delineiam. Estes con-


tornos parecem aludir a esparsos galhos de árvores e a algumas folhas. É
possível identificar, com certeza, apenas o casulo de uma borboleta que
se destaca contra o fundo branco, asséptico. Testemunhamos seu singelo
nascimento ao som de uma música instrumental (música tema do produto,
executada ao piano). Ela sai do casulo e, ao esticar suas asas, confirma
aquilo que o tema musical deste anúncio já havia "sinalizado"; traz nas
asas a marca da sua diferença. Compondo seu padrão de coloração está o
logotipo dos cigarros Galaxy. Acompanha estas cenas iniciais a bonita voz
de um locutor que anuncia: "O primeiro baixos teores do Brasil apresenta
sua nova versão do prazer (...)". A "recém-nascida" borboleta realiza, en-
tão, seu primeiro vôo. lento, elegante e singelo, por entre o cenário bran-
co, asséptico e virtual. Ela impressiona por sua leveza. Neste momento,
aparece o produto; uma carteira do cigarro Galaxy Ultra Lights, que está
prestes a ser consumida. A cena é acompanhada pela voz do locutor: "Novo
Galaxy Ultra Lights com ultrabaixos teores e com sabor, 5mg de alcatrão".
Um homem branco, em mangas de camisa branca, aparece fumando, sa-
boreando encantado, seu cigarro Galaxy; neste momento, a borboleta volta
à cena. Ela voa "naturalmente" em direção ao produto, passando pelo con-
sumidor, que deixa de olhar a fumaça do próprio cigarro e, com o mesmo
encanto, passa a olhar a borboleta Galaxy. Por instantes, fumaça e borbo-
leta se confundem. Na cena final a borboleta pousa no seu destino: a car-
teira de cigarro Galaxy 5 Ultra Lights. No mesmo fundo branco aparece o
mesmo homem que olha para fora da tela confiante, enquanto o locutor
diz: "Novo Galaxy 5 Ultra Lights, a decisão inteligente". Acaba o anún-
cio, muda a cena, o cenário e o locutor. Em fundo azul e letras brancas
está escrito outro discurso em relação ao cigarro, narrado por um outro
locutor, com voz menos envolvente: "O Ministério da Saúde adverte: fu-
mar pode causar doenças do coração e derrame cerebral".

O anúncio publicitário do cigarro Galaxy Ultra Lights nos apresenta


o nascimento de um novo produto que retira da natureza, mais uma vez,
os atributos que lhe interessam; no caso, leveza, pureza e elegância. Além
da naturalização do produto, a imagem do nascimento de uma bela bor-
boleta, antes "confinada" em um casulo, também alude a uma idéia de

166 • Estudos Culturais em educação


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Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 167


liberdade e de transformação, esta última, inerente ao ciclo de vida do
ser vivo borboleta. As cores dominantes da propaganda, bem como a trans-
parência delicada da borboleta reforçam a idéia de saúde, bem-estar e
pureza. Ao se aproximar do cigarro, a borboleta se confunde com a fuma-
ça deste, em um movimento que reforça a idéia de baixos teores de nico-
tina e alcatrão. É um cigarro leve como uma borboleta. Este anúncio es-
tabelece um forte elo de ligação com os anúncios discutidos anteriormente,
uma vez que o apelo tecnológico se encontra também presente neste anún-
cio, remetendo para uma nova percepção nos processos de produção de
representações de natureza.
Como venho demonstrando ao longo deste trabalho, imagens de
natureza são transformadas pela cultura a fim de poderem participar
de um sistema simbólico, as quais, então, não se referem mais aos seus
significados anteriores, mas passam, dentro de um segundo plano de
significação, a funcionar como significantes para diferentes produ-
tos. Invariavelmente, estas imagens conotam, então, o sucesso, a be-
leza, a elegância, o caráter natural do produto, ou, em outras situa-
ções, a própria natureza como o contraponto negativo dos produtos
anunciados.
A propaganda do cigarro Galaxy leva ao extremo este movimento
de transformação e captura das imagens de natureza, presente em todos
os anúncios publicitários analisados. Ao mesmo tempo em que tudo re-
mete a um singelo e tranqüilo universo natural, sabemos que não exis-
tem borboletas portadoras do logotipo Galaxy na natureza. O movimen-
to realizado por esse produto é, então, de ordem diferente dos outros ana-
lisados até aqui (porém guarda semelhanças com aqueles realizados pe-
los anúncios do xampu Organics e do inseticida Baygon, aqui não dis-
cutidos mas presentes na pesquisa já referida). As imagens de natureza
não são só "capturadas" pela cultura (Williamson, 1994), mas são reor-
ganizadas, reordenadas, e mais especificamente neste anúncio, produzi-
das pela tecnologia. Assim como o mundo natural já foi descartado como
a interface constante e imprescindível de nossas vidas cotidianas, a na-
tureza também não é mais, necessariamente, o território privilegiado de
caça aos símbolos de uma cultura; estes já podem ser feitos pela tecno-
logia. As imagens reais do mundo vivo tomam-se desnecessárias. O mais
surpreendente é que, independentemente do caráter real ou virtual da
imagem, o processo de produção de significados, a partir da utilização

168 • Estudos Culturais em educação


de representações da natureza, acontece da mesma forma. Sabemos que
não é uma borboleta; podemos suspeitar que o natural, anunciado pela
publicidade, também não se refere à natureza propriamente dita, mas
antes, é um valor que a cultura atribui à natureza. Continuamos, no en-
tanto, a nos identificar, sensibilizar e aprender com essa natureza refor-
mada, produzida constantemente pelos Meios de Comunicação e vendi-
da nos anúncios publicitários.
A publicidade, como outras instâncias culturais (cinema, teatro,
vídeos, currículo escolar, novelas, livros, etc.), em que se engendram
os processos de construção e divulgação dos conhecimentos, valores e
subjetividades, portanto de representações do mundo, passa literalmen-
te a produzir uma nova natureza. Porém, continuam a existir as "ve-
lhas" representações hegemônicas, que nos remetem para a valoriza-
ção da tecnologia em contraponto ao primitivo, para a idealização do
natural, que nos vende uma falsa proximidade com a natureza, para a
perpetuação do antropocentrismo e para a manutenção do binarismo
cultura/natureza.

O que fica....

Nas sociedades contemporâneas a relação material entre cultura e


natureza se processa e se concretiza cada vez mais no consumo, e a rela-
ção simbólica entre cultura e natureza é construída amplamente pela pu-
blicidade. Williamson (1994) aponta que, se a cultura precisa se referir
a si própria, ela só pode fazer isso através da representação da sua trans-
formação da natureza. Segundo esta autora, a cultura adquire significa-
dos em termos daquelas mudanças provocadas na natureza. Ao apresen-
tar neste trabalho algumas das análises feitas durante minha pesquisa,
tentei mostrar como as imagens de natureza, uma vez "capturadas" pela
cultura, são transformadas para fazer parte de um sistema simbólico, onde
não se referem mais à natureza, mas antes se tomam referentes para a
cultura que a transformou, encerrando então uma importante faceta da
relação entre cultura e natureza.
Os processos de significação engendrados pelas diferentes instân-
cias culturais têm grande influência na maneira pela qual, em nossas vi-
das cotidianas, traduzimos o mundo, estabelecemos o legítimo e o falso.

Natureza e representação na pedagogia da publicidade • 169


estipulamos o consumismo do que se toma imprescindível aos sentidos e
o descartável, separamos a ciência e a não-ciência, o vivo do não-vivo, o
natural do artificial.
São nestas ações mais corriqueiras, assistindo a anúncios publicitá-
rios, comprando um bichinho virtual para nossas crianças ou para nós
mesmos, freqüentando espaços cinzas de concreto que "encerram" o
conhecimento sobre o mundo, contemplando as descobertas muitas ve-
zes assombrosas e incompreensíveis da Ciência, participando das fartas
distribuições de mudas de árvores no Dia da Árvore, escrevendo reda-
ções escolares sobre o índio e a floresta, vivendo com um marcapasso e
consumindo pacotes de ecoturismo, por exemplo, que as mesmas/novas
e complexas relações entre cultura e natureza vão sendo continuamente
resignificadas e produzidas.
Acredito ser este um tempo privilegiado para a investigação das
novas narrativas que têm sido construídas sobre a natureza. Os ambien-
talistas nos falam da iminente destruição da biodiversidade natural e do
ecocídio. A ciência e seus laboratórios nos falam da possibilidade de re-
formá-la e reconstruí-la, a partir das novas constatações que as também
novas tecnologias têm permitido/produzido. Os educadores nos falam da
possibilidade de reconstrução das relações entre cultura/natureza atra-
vés da educação ambiental, e os empresários nos vendem imagens de
natureza (publicidade), pacotes de natureza (turismo) e animais tecno-
lógicos (Tamagotchi); todas essas diferentes instâncias de produção cul-
tural também acabam por reorganizar, redirecionar, resignifícar e restrin-
gir as possibilidades de fertilização cruzada entre os assim construídos
mundo da cultura e o mundo da natureza.

Referências bibliográficas

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Nova Fronteira. 1990.
CANCLINI, Néstor G Consumidores e cidadãos - conflitos multiculturais da
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170 • Estudos Culturais em educação


dos: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petropólis: Vo-
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GIROUX, Henry Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney. In:
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GRÜN, Mauro. Questionando os pressupostos epistemológicos da educação
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WILLIAMSON, Judith. Decodimg advertisements: ideology and meaning in
advertising. lO.ed. London/New York; Marion Boyars, 1994.

Os sentidos da alfabetização na revista Nova Escola • 171


Parte 3

Estudos sobre

literatura, brinquedo,

biologia e cinema
Capítulo 7

Contando histórias sobre


surdos(as) e surdez

Rosa Hessel Silveira

Pressupostos do olhar: a literatura infantil

A literatura infantil, como produto cultural de contornos específicos, se


constituiu no mundo ocidental no momento em que o conceito de infância tam-
bém se consolidou, ou seja, quando a sociedade passou a representar as crian-
ças como seres em perspectiva, a serem formados e educados para uma pos-
tenor vida adulta. A utilização de narrativas de ficção, de maneira geral, ou dos
recursos que a indústria cultural mais recentemente associou à produção de
livros infantis (sofisticação dc projeto gráfico, uso de recursos sermóticos vari-
ados) com a finalidade de ensinar às crianças — qualquer que seja o signifi-
cado que se possa emprestar a essa expressão — se firmou como prática
cultural continuamente exercida, o que se pode constatar, por exemplo, com
um simples correr de olhos sobre as sinopses de livros em catálogos atuais de
pequenas, médias e grandes editoras de publicações infanto-juvenis.
Conforme lembra Stephens (1992, p.9), mesmo aqueles livros que
não se propõem explicitamente a ' ensinar ou a "ajudar a criança a en-
frentar problemas de sua vida ' têm "uma ideologia1 implícita, usualmen-

1
0 termo "ideologia" é usado pelo autor no sentido de um sistema de crenças com as quais se
faz sentido do mundo e que, além disso, confere sentido à vida social Não está em questão,
pois, a concepção de ideologia como um falso véu a encobrir uma verdadeira realidade.

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 175


te na forma de estruturas sociais assumidas e hábitos de pensamento .
Ainda segundo o mesmo autor, os livros não declaradamente pedagógi-
cos podem ser um veículo "mais poderoso de uma ideologia, porque de
forma implícita, e portanto invisível, as posições ideológicas são investi-
das de legitimidade através da implicação de que as coisas simplesmente
são "assim". Apoiando-se em Hallindale, o autor inglês refere três di-
mensões em que a ideologia (e ousaria dizer que isso ocorre também com
relação às representações2) atuaria em textos da literatura infantil. As-
sim, ela poderia aparecer através de elementos abertos e explícitos do
texto, correspondendo a intenções específicas dos autores e autoras, como
é o caso de escritores "progressistas" que se propõem a dar um tratamento
"subversivo" a temas tradicionais ou, mesmo, a abordar temas-tabu, an-
teriormente silenciados.3 Em segundo lugar, as representações poderi-
am operar através de concepções não-examinadas pelo autor ou autora,
que estão implícitas no texto e possivelmente são tomadas como dadas
nos grupos que produzem e consomem os textos. Por último, Hollindale
(citado por Stephens) relembra que a ideologia pode impregnar a pró-
pria linguagem, a constituição das palavras, o sistema de regras e os có-
digos que presidem a feitura do texto.
Ainda que não seja minha intenção esgotar as possibilidades de
análise que os apontamentos anteriores sinalizam em relação aos livros
de literatura infantil a serem estudados, certamente encontraremos repre-
sentações de surdez/surdo concretizadas em qualquer uma das formas de
operação antes referidas. E é nas representações de surdez que circulam
em nossos ambientes sociais e escolares, que nos deteremos a seguir.

2
Para conceituar "representações", valho-me aqui do verbete da obra de reíerência Key
concepts in communication and cultural studies, de O Sullivan et al. (1994). Entendo-
as, portanto, como produtos do processo social de representar, o qual coloca em formas
concretas (significantes) conceitos abstratos, produzindo sentidos e constituindo "reali-
dades"
3
A literatura infantil brasileira das duas últimas décadas é fértil em exemplos desse dire-
cionamento deliberado de autores e autoras, e talvez o melhor exemplo possa ser busca-
do na proposta da Coleção do Pinto da Editora Comunicação (Belo Horizonte), que pro-
curou, de forma programática e pioneira, abordar temas-tabu, como a morte, a separação
dos pais, os problemas ecológicos, as injustiças sociais, a marginalização do índio, o pre-
conceito de cor, etc.

176 • Estudos Culturais em educação


Pressupostos do olhar: a surdez

Ao adulto não acostumado a lidar com sujeitos surdos, a imagem


da surdez está automaticamente ligada à imagem da deficiência, da fal-
ta, da incompletude. Se, além disso, tal adulto viver em um ambiente
urbano e tiver algum contato com questões de educação, suas imagens
provavelmente estarão tingidas por nuances do chamado "modelo de
medicalização da surdez" (Skliar, 1998), pelo qual, definindo-se o sur-
do como um "deficiente", o caminho para sua humanização, reabilita-
ção, normalização, enfim, passa pela maximização de seus restos audi-
tivos, pelo treino da leitura labial e pela sua oralização.4
Skliar nos alerta contra o simplismo (e suas decorrências) de uma
oposição binária entre tal modelo clínico e uma visão mais antropológi-
ca da surdez, apontando para a existência de "matizes, os espaços vazi-
os, os interstícios, os territórios intermediários que não estão presentes
nesses modelos" (1998, p.9). Entretanto, apenas como âncora inicial de
análise, creio que vale a pena caracterizar tais modelos, não os toman-
do, contudo, como paradigmas monolíticos.
Dessa forma, o modelo clínico de surdez representa o surdo como um
objeto necessário da atenção médica e, em segundo lugar, da educação es-
pecial. O olhar clínico sobre a surdez pretende o "disciplinamento do com-
portamento e do corpo para produzir surdos aceitáveis para a sociedade dos
ouvintes" (Skliar, 1998, p. 10) e "supõe a existência de uma linha contínua
de sujeitos deficientes, dentro da qual os surdos são forçados a existir", co-
locados que estão num grupo indiscriminadamente patologizado. Skliar, a
partir da nomeação do "ouvintismo" como "conjunto de representações dos
ouvintes sobre a surdez e sobre os surdos" e da identificação do oralismo
como forma institucionalizada do ouvintismo, registra como ambos são ainda
hoje discursos hegemônicos em diferentes partes do mundo.
As representações de surdez que se inspiram num modelo antropo-
lógico e atualmente buscam um horizonte de legitimação nos Estudos Cul-
turais, vêem a comunidade dos surdos como possuindo uma cultura com
traços distintivos peculiares, com uma Língua própria (a Língua dos Si-

4
A breve exposição sobre as representações de surdez/surdo, será fundamentada na ex-
posição e discussão levada a efeito por Skliar em Skliar (1998) e por outras análises e
estudos constantes da mesma obra.

Contando histórias sobre surdos(as) c surdez • 177


nais) e, em conseqüência, formas particulares de organização (inclusive
social) e de representação, nas quais a visão adquire uma dimensão quan-
titativa e qualitativa diferente da sua função entre os ouvintes. Neste cam-
po de representações, constituem-se a legitimidade dessa específica cul-
tura visual, da Língua dos Sinais, como conjunto estruturado e significati-
vo de sentidos que se intercambiam dentro da comunidade, e o credencia-
mento da minoria surda como uma minoria diferente, mas não deficiente.
É evidente que a simples referência às abordagens clínica e antropo-
lógica da surdez não esgota outras conotações populares, histórica e social-
mente constituídas, que a ela se associam, como a do surdo como objeto da
piedade e compaixão, como detonador do riso — em função, principalmen-
te, das incompreensões e distorções na comunicação falada surdo/ouvinte,
e, finalmente, a representação do surdo como indivíduo intelectualmente li-
mitado. Produtos de outros esquemas representativos maiores — como aque-
le que associa de forma imediata a palavra falada à existência de pensamen-
to —, tais imagens presidem muitas de nossas ações cotidianas e adiante
veremos se e como elas comparecem nos livros que analisamos.
Com base em tais considerações, emergia minha expectativa de
encontrar em obras de literatura infantil em circulação representações
de diferença, deficiência e surdez que os adultos — escritores e escrito-
ras — julgavam ou consensuais ou as mais adequadas para serem pas-
sadas para as crianças. Para o objetivo de análise de tais representações,
considerei como obras de literatura infantil tanto aquelas em que um tom
mais ficcional, lúdico estava presente, quanto aquelas em que o ensina-
mento direto de informações e atitudes tomava um lugar central.

Objetos e formas do olhar

A partir de um conhecimento anterior da literatura infanto-juvenil


brasileira, tanto em ensino como em pesquisa,5 e de um interesse espe-
cífico sobre as representações da surdez, lancei-me ao desafio de procu-
rar na literatura infantil à disposição das crianças brasileiras obras que

5
Especificamente no campo da pesquisa, realizamos no NECCSO investigação sobre as
representações da professora e do professor na literatura infanto-juvenil mais recente.

178 • Estudos Culturais em educação


tematizassem a surdez em primeiro plano ou em que, de alguma forma,
personagens surdos estivessem presentes.
A primeira constatação dessa busca vai ao encontro do que Pinsent
(1995) registra com relação à literatura infantil britânica, ao abordar a re-
lação entre a literatura infantil e a idade e as deficiências, ou seja: o tema
da perda total da audição 6 é um tema menos comum do que a perda de
visão ou de mobilidade. Inclusive, as referências de livros infantis britâni-
cos que abordam as diferentes "deficiências" apresentadas pela autora re-
gistram 17 títulos para "deficiência física", oito títulos tanto para temáti-
cas de perda de visão quanto para dificuldades de aprendizagem e apenas
dois para a surdez. Ainda que eu não tenha feito qualquer estudo mais apro-
fimdado no âmbito da literatura infantil brasileira, o que julgo semelhante
é a escassez da abordagem da temática da surdez ou mesmo da presença
de personagens surdos nos enredos, que poderia ser tributada a diversos
fatores, como; a dificuldade de a própria literatura infantil lidar com te-
mas tabu7 como esse, a pouca atratividade que tal tema imprimiria ao li-
vro infantil (não podemos esquecer o quanto os parâmetros da vendagem
e da comercialização imprimem direção às linhas editoriais) ou, mesmo, a
invisibilidade dessa questão nas relações sociais cotidianas e no conjunto
de grandes temáticas que dominam a mídia e, em conseqüência, o imagi-
nário de grande parcela de populações urbanas.
Tal silenciamento, entretanto, não impediu a localização de sete
livros8 destinados ao público infantil em que, ora sob a égide da infor-

É evidente que Pinsent se alinha ao modelo mais tradicional de representação do surdo


como deficiente, entretanto, deve-se sublinhar que o esforço analítico de toda a sua
obra volta-se para a visão de como os livros infantis assumem (ou não) uma postura me-
nos discriminatória, em relação a vários tipos de diferença (gênero, raça, idade, etc.), sem
tender ao que se poderia chamar de "angelização" de tais personagens.
Ainda que a literatura iníanto-juvenil brasileira mais recente tenha se aproximado, como
já dissemos, de temas antes vedados a ela, outras questões como o homossexualismo e
as deficiências não encontraram —- possivelmente ainda — um espaço de abordagem.
Minha busca pela localização de livros que abordassem tal temática ou apresentassem
personagens surdos já vem de alguns anos, desde que comecei a trabalhar em cursos de
literatura infanto-juvenil. Especificamente para este trabalho, realizei buscas no acervo
de literatura infanto-juvenil do NECCSO (cerca de 250 títulos), em meu acervo pessoal,
em 20 catálogos recentes de editoras brasileiras de literatura infanto-juvenil, além de obras
de referência que fazem resenhas de publicações da área, como o Dicionário critico da
literatura infantil e juvenil brasileira, organizado por Nelly Novaes Coelho e publicado
pela EDUSP, que abrange os autores e livros publicados no Brasil entre 1808 e 1990.

Contando histórias sobre surdos (as) e surdez • 179


mação (Audição, os cinco sentidos) ou da socialização "cidadã" {A
gente e as outras gentes, Nem sempre posso ouvir vocês), ora con-
cebidos com um acento ficcional maior {A letreria do dr Alfa Beto,
Dor de dente real, O livro das palavras),9 a temática da surdez e do
surdo se faz presente.
Debrucei-me sobre o discurso escrito — nas suas artimanhas de
efabulação, nas suas escolhas lexicais e construções sintáticas —- e so-
bre as ilustrações, neles buscando marcas e pistas que nos remetessem
às representações que buscávamos.

Ensinando o que é ser surdo: Audição, os cinco


sentidos e Nem sempre posso ouvir vocês

O que se pode esperar de um livro mtiivXdiáo Audição, com muita


ilustração e pouco texto, traduzido10 e apresentado com revisão técnica,
senão uma aula ilustrada do que adultos bem informados julgam neces-
sário que uma criança saiba sobre este sentido ? Como a própria con-
tracapa comenta, estamos face a livros que se pretendem "ilustrados com
muito humor e escritos de maneira fácil e acessível" e se dizem capazes
de "ajuda[r] a descobrir o mundo ao nosso redor!".
E, na dimensão da audição, que mundo descoberto é esse? É um'
mundo cheio de sons, que ora "transmitem tranqüilidade e paz" ou "fa-
zem com que você se sinta feliz", ora nos "deixam com raiva". A anato-
mia da percepção do som pelo organismo humano é especialmente fo-
calizada, assim como a desvantagem da nossa audição em relação à de
alguns animais, a diminuição temporária da audição em virtude de res-
ffiados, os cuidados que devem ser tomados para preservar a audição e,
dentro desse contexto, a surdez, concretizada numa personagem próxi-
ma ao narrador^

9
Referências bibliográficas completas das obras analisadas encontram-se ao final do
trabalho.
10
A maioria dos livros informativos para crianças publicados pelas editoras brasileiras
consiste de traduções, ao contrário dos livros fíccionais, onde os autores brasileiros pre-
ponderam.

180 • Estudos Culturais em educação


Minha amiga Raquel é surda. Quer dizer, ela não consegue ouvir pratica-
mente nada. Ela usa um aparelhinho especial que a ajuda a ouvir e presta
muita atenção aos meus lábios quando estou falando com ela. Mas ela é a
melhor corredora da escola!

As duas ilustrações que acompanham o breve texto (ver figura 1)


não chegam a acrescentar novos elementos à questão da representação
da surdez, cuja visão se compõe a partir da representação "medicaliza-
da", como vimos: a surdez é vista do ponto de vista da deficiência ("ela
não consegue ouvir praticamente nada'y, é "compensável" pelo uso do
aparelho auditivo (aparato representado também na figura 2) e pela lei-
tura labial, conjugando-se tais aspectos a uma visão compensatória da
deficiência, não por acaso introduzida em frase iniciada pelo operador
"mas; Mas ela é a melhor corredora da escola!"11
Cumprindo sua missão "didática", o livrinho se complementa com
Notas para os adultos em que se apresentam "Sugestões de Atividades
complementares ao conteúdo de aprendizagem".12 Não se pode deixar de
registrar — entre as cinco atividades apresentadas — a ausência de qual-
quer sugestão que envolva a questão da surdez e dos indivíduos surdos.
Também o pequeno livro intitulado Os cinco sentidos/Os sentidos
explicados para crianças de 5 a 9 anos se insere nesta vertente "instru-
tiva" ao "jovem leitor", abordando o tema anunciado no título e, em con-
seqüência, a audição. "Um surdo pode ouvir!" é o nome da seção em que
a surdez é tematizada, em harmonia com a abordagem da cegueira, que
é focalizada em seção intitulada "Um cego também pode ler!". Como se

11
Em Silveira (1996, p.71-72), fiz breve exposição acerca das possibilidades de inter-
pretar o mas em seu caráter polifônico, ou seja; a afirmação introduzida pela conjunção
contrapõe-se ao "esperado pela voz do senso comum", ou, diria hoje, das representações
correntes. Nesse sentido, o fato de "ser a melhor corredora da escola" está discursiva-
mente contraposto à expectativa corrente, que poderia ser assim objetivada: "a deficiên-
cia pode atingir várias áreas de desempenho".
12
A inclusão de "Atividades complementares", ora no próprio livro, ora em encartes, ora
nos próprios catálogos de literatura infanto-juvenil, é prática habitual nas editoras de li-
vros infanto-juvenis, demonstrando o inequívoco casamento entre a literatura infantil e
a missão pedagógica. No caso específico, não há indicação da origem das atividades: se
foram traduzidas ou elaboradas no Brasil. De qualquer forma, é notável o acento indivi-
dualista das atividades sugeridas, que, à exceção de uma, investem numa criança que,
sozinha, "exercite habilidades", "crie", "use um bumbo" e "pesquise".

Contando histórias sobre surdos(as) c surdez • 181


182 • Estudos Culturais cm educação
comprovaria essa afirmação, cujo caráter surpreendente é sublinhado no
texto pelo uso do ponto de exclamação? Não há, especificamente, uma
resposta direta, mas o teor do primeiro parágrafo, apresentando breves
informações sobre a história dos aparelhos auditivos, ilustrada por figu-
ras em que se representa tanto a antiga cometa, usada por um ancião,
quanto um aparelho auditivo retroauricular, em vista lateral de uma cri-
ança, sugere que a possibilidade de ouvir referida remete ao uso de pró-
teses que "ajudam a aumentar o som".
Entretanto, a seguir, abre-se um espaço para a singularidade da cul-
tura surda, embora sob uma analogia que parece estranha: "Como os ce-
gos, os surdos têm sua própria maneira de falar. Eles falam fazendo ges-
tos. É a linguagem dos gestos"}* Apresenta-se, então, uma ilustração
canhestra de uma frase dita na "linguagem dos gestos";14 por fim, na li-
nha da "interatividade" que caracteriza a obra, sugere-se:

Tente! Você pode também inventar a sua própria linguagem dos gestos com
alguns amigos; ninguém entenderá o que vocês estarão dizendo.

A leitura dessa abordagem nos permite ver que, apesar da ênfase


no aspecto remediador da prótese auditiva, faz-se presente também o
reconhecimento da linguagem criada pela comunidade surda como uma
linguagem própria, de certa maneira igualada à dos ouvintes; observe-
se o uso do verbo falar na afirmação "Eles falam fazendo gestos".
Tal reconhecimento, embora tímido, não está presente no próximo
livro em que nos deteremos e que é, de todos os que encontrei, o único
em que a questão do indivíduo "deficiente auditivo" constitui o tema
central do livro; o uso da expressão "deficiente auditivo" é, aqui, inten-
cional. Explico-me: a partir do título Nem sempre posso ouvir vocês15 e,
à exceção da "carta dos editores" em que se faz referência ao "aluno

13
O destaque pertence ao texto original. Quanto à analogia feita com a "linguagem dos
cegos", uma interpretação possível é de que o autor esteja se referindo ao sistema Brail-
le, que consiste numa tradução para sinais perceptíveis ao tato, das letras das palavras,
visando a possibilitar a leitura pelos cegos.
14
A ilustração em questão apresenta, em vista frontal, um menino com as mãos na altura
do estômago, sem qualquer representação do movimento manual, que é uma das dimen-
sões significativas da Língua dos Sinais.
15
1 can 't always hearyou, no original.

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 183


deficiente auditivo", jamais os dois personagens surdos são nomeados
como surdos e creio que esta escolha se explica pelo caráter do livro e
da coleção em que ele se encaixa.
Assim, a coleção da qual a obra faz parte é traduzida do inglês,
intitula-se Série Sempreviva e compreende livros que pretendem tra-
tar de "assuntos difíceis" para as crianças, tais como a morte, as no-
vas configurações familiares, a obesidade infantil, a deficiência men-
tal, etc. A contracapa (possivelmente comum a toda a série) assume
esta intencionalidade:

Estas histórias propõem alguns recursos para lidar com problemas espe-
cíficos [...] e tão-somente indicar acidentes de percurso que, mal enfren-
tados, podem atrapalhar bastante a caminhada.

Como, de maneira geral, os enredos dos livros tendem a alguma


forma de "solução" a tais "problemas", os editores se previnem quanto
a possíveis críticas à edulcoração das situações (uma citação mais longa
se faz necessária e nela os grifos são meus):

Evidentemente os adultos — pais e professores — têm na vida real muito


mais falhas e incertezas que os personagens adultos destas narrativas. As
crianças, por sua vez, nem sempre reagem com a presteza e a flexibilida-
de destas crianças... de livro. Mas é justamente esse caráter modelar que
permitirá aos leitores tomar as histórias pelo que realmente são: meros
indicadores de padrões de comportamento que cada um enriquecerá com
sua vivência individual e insubstituível.

Uma leitura superficial desse alerta já nos apontaria para o jogo de


papéis que os editores atribuem ao livro, oscilando entre a humildade
{meros indicadores) e a pretensão {caráter modelar).
Se a contracapa tem uma intenção abrangente, de dar conta da to-
talidade da coleção, a carta/los pais e professores, assinada por Os Edi-
tores, pretende explicar e direcionar a leitura da obra particular e pode-
ria ser assim resumida: as diferenças entre as pessoas podem gerar hu-
milhação, que, entre crianças, assume contornos mais acentuados; a per-
sonagem central do livro não tem outros problemas além da deficiência
(boa relação mãe-filha e ambiente cercado por "adultos maduros") e, atra-
vés da atuação do professor, a questão do relacionamento da menina surda
com seus colegas é resolvida.

184 • Estudos Culturais em educação


Antes de passarmos à análise, vale a pena pmcelar o enredo: Kim, a
personagem central, possivelmente uma americana de origem asiática, en-
frenta, com nervosismo, seu primeiro dia de aula numa escola de ouvin-
tes. Na escola, é recebida por um professor receptivo, negro, que usa ócu-
los, cuja atuação "politicamente correta" parece pressupor um preparo pré-
vio para o enfrentamento de tal situação. Em sua primeira resposta oral,
Kim comete um erro de pronúncia, dizendo trando em vez de tirando; face
ao riso dos colegas, o professor faz uma breve exposição sobre a sua pró-
pria necessidade de usar óculos, comparando-a com a necessidade do apa-
relho auditivo da menina. Entretanto, ela ainda vai enfrentar duas outras
situações de estranheza dos colegas: a de um colega que a chama de robô,
e o fato de que, por não ter entendido a ordem do professor, entra na fila
dos meninos que queriam ir ao banheiro, provocando o riso dos colegas.
Após ter comunicado ao professor sua decisão de não mais ir à escola, em
virtude das chacotas que vem sofrendo, Kim é levada à sala da diretora
que, de forma amistosa, mostra a ela que também usa um "aparelho" e,
então, ambas conversam sobre dificuldades e "vitórias" de sua condição'
Após esse encontro de certa forma "redentor", Kim volta a interagir com
os colegas com os quais tem uma conversa sobre diferenças em que cada
um fala sobre sua "desvantagem";16 o livro, então, termina com duas fra-
ses-síntese do direcionamento e da solução dada ao conflito; "Quando sa-
ímos correndo para a aula, eu fui reparando como cada criança corria de
um modo diferente das outras. Não saí da escola, claro".
O que se ensina sobre surdez e surdos neste livro? Em primeiro lugar,
a surdez é colocada sob a égide da "diferença", de mais uma delas — não
por acaso, o professor é negro e usa óculos, Kim é de origem asiática, e há
outros meninos negros representados nas ilustrações; a frase inicial também
é emblemática: "Eu tinha medo de ser diferente demais das outras crianças
para poder ser feliz um dia". Se, por um lado, este enquadramento do surdo
como um simples diferente poderia nos apontar para uma saudável revisão
da questão da surdez como "deficiência", todo o desenrolar do enredo, a
caracterização das personagens, as gravuras... nos remetem à visão "ouvin-

16
A cena em que cada menino/menina confessa seu fator de inferioridade — usar apare-
lho de dentes, ser muito alta, ser filho adotivo, não ter televisão em casa — poderia ser
questionada no que diz respeito à facilidade com que tais fatores são assumidos publica-
mente por cada um/uma e aceitos pelos colegas.

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 185


tista" da surdez, em que a única saída é a normalização do surdo, através,
principalmente, da protetização. Não causa surpresa, neste contexto, que a
gravura que abre o livro (figura 2) represente em primeiro plano o aparelho
auditivo de bolso sobre uma mesinha, enquanto em segundo plano vê-se Kim
colocando o colete adequado para acomodá-lo! O aparelho auditivo — no
contexto da obra — é o símbolo concreto da surdez, o sinal visível dessa
"deficiência", que, ao contrário de outras, se esconde! Nesse quadro, se en-
caixa como uma luva a cena em que a diretora se declara "igual" à Kim, tan-
to na ilustração (figura 3) quanto na narração verbal: "Dona Nádia virou a
cabeça para um lado. - Elas riem porque você usa um destes ? Eu não podia
acreditar: a diretora usava um aparelho auditivo". Observe-se que nas falas
das duas personagens surdas do emedo quando se referem a si próprias, não
é utilizada nenhuma nomeação direta de sua "condição" ou "identidade" (pa-
la\ras como surdo, surdo-mudo, surdinho, deficiente, etc., estão ausentes).
Dessa forma, Kim, em uma conversa amistosa e doméstica com sua mãe,
diz; ' — Sou a única pessoa no mundo com um aparelho auditivo (...) — E
todos me tratam de maneira diferente, por isso". E quanto à diretora, já vi-
mos acima que, da mesma forma, é através da prótese que se identifica... A
própria pergunta de Kim para a diretora retoma tal identificação: "— E até
hoje a senhora tem problemas por causa do aparelho ? (e não tem problemas
porque é surda?)".
Mas há mais a dizer sobre a representação do surdo. Os episódios
de estranheza dos colegas e de chacota frente a reações inadequadas re-
sultantes da incompreensão de uma ordem são certamente habituais e
sobejamente conhecidos dos surdos e surdas que vivenciaram a "inte-
gração" nas escolas regulares. Entretanto, o que também emerge de uma
forma que se poderia dizer culturalmente inverossímil17 no livro é a in-

17
Gledhill (1997, p.360-1), em seu estudo sobre as soap opera, cita Steve Neale, para reto-
mar— da história literária — e reconceptualizar a categoria da verossimilhança. Ao propor
que se distingam, nos estudos culturais, a verossimilhança cultural e a verossimilhança do
gênero (cultural verisimilitude/ generic verisimilitude), ele observa que a verossimilhança
cultural nos remete a normas, costumes e senso comum do mundo social fora da ficção, ad-
vertindo, porém, para o fato de que a verossimilhança cultural "não é monolítica, mas fratu-
rada pelas diferentes práticas de significação e discursos através dos quais diferentes grupos
sociais demarcam suas identidades e fazem reivindicações sobre o real" (p.361). Dentro des-
se quadro de referência, quando, neste estudo, eu me referir a questões de verossimilhança,
estarei tomando como lugar de "julgamento" das mesmas minha experiência pessoal conti-
nuada com surdos/surdas que convivem numa sociedade urbana majoritariamente ouvinte.

186 • Estudos Culturais em educação


Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 187
dicação de que Kim — surpreendentemente oralizada à perfeição — co-
meta apenas um erro de pronúncia em todas as falas relatadas no livro!
Em se tratando de tradução, é difícil sabermos até que ponto a versão
original apresentava esse "aleijão ficcional" que consiste em apresentar
uma menina surda como capaz de relatar vários fatos em primeira pes-
soa, utilizando sintaxe e semântica perfeitas, incorrendo apenas num des-
lize fonético! Também a sua capacidade de compreensão dos diálogos
orais de que participa é culturalmente inverossímil: em nenhum momen-
to, a menina pede que o interlocutor repita o que disse ou é referida a
dificuldade de compreensão dos colegas face à sua pronúncia. Em suma:
a surdez é apresentada como consistindo de uma pequena diferença de
algumas pessoas, a qual se presentifica através do uso de um aparato ele-
trônico e de algumas (raras) incompreensões.
Para completar essa representação medicalizada da surdez, lança-
se mão de mais uma dimensão: a questão dos graus de deficiência audi-
tiva também diz presente no texto do livro. Lulkin (1998, p.40) nos lem-
bra que "A ciência biomédica, tomando como centro do problema a mai-
or ou menor capacidade auditiva, encarrega-se de traduzir em diagnósti-
cos os níveis de déficit (...)". O olhar clínico sobre a deficiência auditiva,
aí congregadas as "contribuições" dos médicos, fonoaudiólogos e tera-
peutas de fala, costuma(va) fazer prognósticos de oralização ("normali-
zação") a partir dos níveis de perda auditiva. Dentro desse quadro, regis-
tre-se a "quantificação" da surdez de Kim, que se traduz de diversas for-
mas no livro, a partir do título18 Nem sempre posso ouvir vocês. Assim,
Kim, ao se apresentar como narradora/protagonista, afirma: "Uso um apa-
relho auditivo porque ouço muito mal"; já ao advertir o professor de que
não era preciso falar tão alto, ela diz "Nem tudo eu posso ouvir, mas pos-
so ouvir bastante". Quase ao final da história, um diálogo entre Kim e um
colega focalizam especificamente o tema: "— Você não ouve nada sem o
aparelho? — Ouço um pouco. Ponha as duas mãos sobre os ouvidos e
tente ouvir assim. (...) E assim que eu ouço".
Ora: numa visão antropológica da surdez, a quantificação dos cha-
mados "restos auditivos" (e essa é uma expressão médica de uso gene-

18
Usarei negrito para enfatizar as expressões quantitativas, tanto referidas a tempo, como
a capacidade.

188 • Estudos Culturais em educação


ralizado), ou seja, o fato de um indivíduo ouvir um pouco mais ou um pouco
menos não acarretaria diferença substancial na sua identidade surda, já
que ela se construiria sobre outra perspectiva, a da eficiência do olhar e,
como observa Lulkin (1998, p.43), tal identidade se constitui em "uma
comunidade (ainda que dispersa) que tem no código sinalizado uma ma-
terialidade, uma representação sociocultural".19
Uma última palavra sobre o livro: seu grande tema ou, ao menos,
um de seus principais temas é a integração do surdo na escola regular,20
ou seja, todo o desenrolar da trama — com as dificuldades encontradas
por Kim, mais o apoio de adultos "maduros" e "esclarecidos", entre os
quais está o "modelo" de alguém que "também usa aparelho" e venceu
na vida, tomando-se diretora de uma escola de ouvintes — se encami-
nha para aquele que é o ensinamento "formativo" de uma obra que se
propõe a abordar problemas e indicar "padrões de comportamento" que
os resolvam — o melhor caminho para a criança surda (ou "usuária de
aparelho") é vencer os obstáculos da escola de ouvintes, aproximar-se o
máximo possível deles e nela se integrar. Dificuldades efetivas, vivênci-
as e experiências marcantes de exclusão e isolamento, como as que Per-
lin (1998) relata, a partir de depoimentos de experiências de surdos em
escolas de ouvintes e de sua própria experiência, seriam reduzidas a meros
acidentes de percurso...

O "surdinho": Agente e as outras gentes


e Dor de dente real

A partir desse momento, estaremos tratando de obras para crianças


em que a questão da surdez aparecerá não como tópico de conhecimento a
ser ensinado ou tópico de socialização a ser tratado, mas sim como ele-
mento que se incorporará ao enredo através de um ou mais personagens.

19
Curiosamente, a luta pela afirmação da identidade de algumas "etnias", nos movimen-
tos mais recentes, também contestou a quantificação dos atributos "raciais" que, antes,
classificava, por exemplo, um indivíduo em negro, mulato escuro, mulato claro, etc.
20
Cf. Lopes (1998, p. 110), este é um dos objetivos da nova LDB no que tange à Políti-
ca de Educação Especial, na qual são enquadrados os variados e tradicionais "tipos de
deficiências".

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 189


Em duas dessas obras, encontramos o "surdinho" — e o uso do su-
fixo diminutivo, aí, inspirado no uso popular, conota simultaneamente com-
paixão, desprezo (pelo déficit de "humanidade" ou capacidade do surdo)
e familiaridade. Detenhamo-nos, primeiramente, em A gente e as ou-
tras gentes, escrito pela conhecida autora infantil Edy Lima, livro per-
tencente a uma coleção denominada Opiniões Irreverentes. A obra con-
siste de uma reflexão exemplificada sobre um determinado tipo de indi-
víduo que, com muito humor, é denominado de "invasor" pela autora e
sobre a melhor atitude que se pode ter em relação a ele. Apenas para se
ter uma idéia do tom descontraído, mas ao mesmo tempo, "formativo"
do livro, citemos um trecho:

O invasor acha sempre que tem razão e que os outros foram feitos para
ceder tudo a ele. Repare que é assim em filme de faroeste, onde as carava-
nas dos brancos invasores entram no território índio e acham que os índi-
os são bandidos porque defendem a própria terra. / É preciso explicar para
os invasores que o tempo do faroeste já acabou até no cinema; afinal, quem
gosta de ver matança de índios?

O que um personagem surdo faria em um livro desse tipo? Veja-


mos. Na verdade, não há um personagem surdo, mas sim o próprio nar-
rador-conselheiro, que exemplifica como conseguiu se ver livre de um
"invasor" certa vez, assumindo a identidade de um "surdo-mudo". Dada
a necessidade de contextualizar a passagem, ela será aqui reproduzida
na íntegra:

Se a gente encontra um deles na praia — um tipo invasor, não um índio de


cinema —, o cara toma conta do lugar da gente e até da toalha. / Sabe o
que descobri? Fingir que nem me importo e dançar o frevo bem na cara
dele, jogando toda a areia do mundo nos seus olhos. (...) No caso da areia
o tal gritou; — Pare com isso! Dei uma de surdo-mudo e continuei a dan-
ça. Ele gritou mais alto: — Você está jogando areia em mim. Continuei a
mímica de surdo-mudo, mostrando a minha toalha em que o invasor es-
tava deitado. As pessoas em volta olharam feio para ele, que estava gri-
tando com o surdinho. Como se tivesse importância, pois, é claro, com
um surdo não é grosseria gritar, já que ele não escuta. Mas o pessoal por
ali não pensava assim e pressionou:
— Caia fora, a toalha é dele.
— Você não respeita ninguém!
— Fora, fora!

190 • Estudos Culturais em educação


O invasor é sempre um covarde, faz maldade mas não enfrenta a situação.
Daí o cara foi embora sem graça e sem dizer que eu estava fingindo de
surdo-mudo.

Em primeiro lugar, registre-se que as duas escolhas lexicais de no-


meação — surdo-mudo e surdinho — estão mais comprometidas com
as representações populares da surdez do que com o específico discurso
médico-terapêutico. A designação "surdo-mudo" é atualmente conside-
rada "politicamente incorreta", inclusive pelo discurso terapêutico, que
preconiza a possibilidade de o surdo falar e, portanto, não ser automati-
camente "mudo"; aquém ou além desse discurso, é indubitável que a
acoplagem de um adjetivo que se define pelo caráter negativo (mudo é o
que não fala) ao adjetivo básico "surdo" é apenas o outro lado da moeda
do uso do sufixo -inho: o digno de pena, o eterno "infante", o que deve
ser olhado na sua minoridade...
É evidente que a autora não deve ter tido tais preocupações ao mon-
tar a cena em que o narrador se "finge" de surdo; trata-se de um recurso
ficcional, possivelmente envolvendo o que Stephens classifica como
pertencente a concepções não examinadas, que "vão por si mesmas..."
na comunidade de autores-leitores. Também aparece naturalizada a no-
meação da forma de comunicação do pseudo-surdo: a mímica de surdo-
mudo, apontando para a concepção bastante presente no senso comum
de que os gestos corriqueiros que acompanham a linguagem oral dos
ouvintes, como o apontar com o dedo, correspondem à Língua de Sinais!
Ignora-se aí o quanto as línguas de sinais têm de especificidade e de com-
plexidade de organização (que têm inclusive atraído a atenção de lingüis-
tas de formação clássica), não podendo ser equiparadas à mímica e à
gestualidade cotidiana dos ouvintes.
Uma observação última ao livro: não deixa de ser, de certa forma,
irônico ou, no mínimo, paradoxal, o fato de que uma obra intitulada A
gente e as outras gentes, cujo foco promete ser a convivência em soci-
edade, numa dimensão formativa, utilize como representação do surdo
uma imagem tão tingida de nuances depreciativas!
Já em Dor de dente real, de Pierre Trabbold, estamos face a um
enredo notadamente ficcional, no qual, dentro de uma vertente bastante
copiosa na literatura ocidental das últimas décadas, situações e persona-
gens dos contos de fadas são revisitados sob um novo olhar, que desfaz
sua aura de encantamento e magia, produzindo efeitos humorísticos. A

Contando histórias sobre surdos (as) e surdez • 191


história se constrói em tomo de um personagem bizarro: um rei glutão,
choramingas, déspota, que se vê repentinamente acometido por uma dor
de dente "real" (daí o título do livro). Já que o único dentista do reino
está em viagem, sugere-se chamar o " ferreiro", que ananca. ferraduras
de cavalos e dentes de pobres e que, além disso, é surdo. Como isso se
dá durante a noite, a primeira dificuldade é acordar o ferreiro, que é tra-
zido dormindo para o castelo; ao acordar, ele olhou em volta com um
olhar meio ingênuo e concluiu que estava entrando num outro sonho .
Quando o rei berra com ele, o ferreiro solicita que fale mais alto,
explicando que "Quando falam baixinho, eu não ouço". Duas páginas após,
começam as dificuldades de um rei desesperado e pouco hábil em fazer
o ferreiro compreender que ele deve arrancar um dente em más condi-
ções. Inicialmente, o dentista improvisado não compreende (ou não
ouve?) o que o rei lhe diz e responde-lhe algo completamente diferente;
a um gesto do rei mostrando o dente na boca aberta, ele simplesmente
comenta o mau hálito do soberano. Então o rei choraminga pedindo que
alguém se faça entender pelo ferreiro. Nesse momento,

O pajem, que já estava morrendo de sono, esfregou os olhos, e na lin-


guagem dos gestos, tentou se comunicar com o surdo. Mas estava com
tanto sono, que nem sabia direito o que estava fazendo.
O que te mordeu, jovem? Ficaste lelé? — estranhou o surdinho, sem
nada entender.
Escreva um bilhete! Um bilhete — disse o rei, que só sabia mandar e
nada fazer.
O pajem escreveu um bilhete e o mostrou ao surdo.
— Que garranchos são esses, moço? Será um poema? Se for, terá de lê-lo
para mim, e bem alto, pois não sei ler, não sei escrever e ainda sou um
pouquinho mouco.

Após tal seqüência de mal-entendidos, o rei manda expulsar o "sur-


dinho", que se retira ofendido e reagindo com ameaças de não atender
os cortesãos quando dele precisassem. Efetivamente, com o desenrolar
da trama, o rei é expulso do reino, uma das ferraduras do seu cavalo cai
e ele vai procurar o ferreiro, que é encontrado cantarolando. Aí, afirma
o autor: "O ingênuo ferreiro cantarolava porque não sabia da crise que
assolava o reino. Afinal, não dava ouvido a conversas .
O rei aproxima-se do ferreiro e lhe pede que ferre rapidamente o
seu cavalo; ao ver a boca aberta do soberano, o surdo (seria uma ironia

192 • Estudos Culturais em educação


do próprio personagem ou a ironia é do narrador?) oferece-se para tam-
bém arrancar o dente de siso do rei, tão evidentemente cariado! O final é
deixado em suspenso pelo autor, que deixa que "imaginemos'' o último
encontro rei/ferreiro.
Registre-se, ainda, que as ilustrações, detalhadas e de caráter nar-
rativo, acompanham o tom humorístico do texto, acrescentando-lhe in-
terpretações hilariantes21 (Ver figura 4, para a representação das tentati-
vas do pajem em falar em Língua dos Sinais).
Como é representado este personagem surdo? Se à primeira vista,
ele pode parecer semelhante ao do livro anterior, ou seja, como um peão
no jogo da incompreensão resultante do intercâmbio ouvinte-surdo, que
é um dos motivos da trama, deve-se registrar a maior complexidade de
sua constituição. Surpreendentemente, é um surdo que fala, que oraliza,
e nenhum deslize de fala é registrado pelo autor; entretanto, ouve mal
— e por isso não acorda, não entende o que lhe dizem, etc. Reconhece-
se, entretanto, que pode se comunicar por "linguagem dos gestos" e o
pajem falha na sinalização; é analfabeto e tem consciência de sua condi-
ção de surdo, ainda que, certamente com intenções de humor, o autor
coloque na sua boca a afirmação "ainda sou um pouquinho mouco". E
descrito, ainda, como um homem do povo e um ingênuo ferreiro, que
ignorava as condições do reino por não ouvir conversas. Entretanto, sua
última atuação abre uma possibilidade de interpretação como não tão
ingênuo, já que, tendo reconhecido o rei, faz "uma cara de quem está
analisando e diz — Nossa, majestade. O senhor tem uma cárie enorme
no dente do juízo. Não quer que eu o arranque para o senhor? Também
sei fazer isso".
No universo ficcional narrado, o ferreiro surdo não é um persona-
gem tão ridículo como é o rei mandão e choramingas; ao final, o poder
está com ele, que sabe fazer coisas até mais úteis do que o soberano. Se,
por um lado, suas dificuldades de reagir aos sons e de compreender os
ouvintes geram uma série de situações de exasperação e irritação nos
ambientes apresentados, com o subproduto do riso por parte dos leito-
res, por outro lado, ele também tem sabedoria e poder, de tal forma que
o autor preferiu esboçar um final aberto a um desfecho pronto. Todo o

21
As ilustrações também são de responsabilidade de Pierre Trabold, autor do texto.

Contando histórias sobre surdos (as) e surdcz • 193


194 • Estudos Culturais em educação
texto tem um tom burlesco e nele o ferreiro é um personagem a mais,
como a rainha glutona e roncadora, como os cortesãos aproveitadores,
como as vacas que não conseguem dormir, etc. Talvez não seja por aca-
so que o próprio autor tenha escolhido representá-lo como um velho de
cabelos brancos, possivelmente sugerindo a associação de sua surdez aos
casos de perda auditiva freqüentes em pessoas mais idosas, que, entre-
tanto, mantêm uma oralidade típica de ouvintes, diferentemente de sur-
dos que assim nasceram ou se tomaram surdos antes da fase em que ge-
ralmente se adquire e desenvolve a linguagem oral.
Novamente frente a um personagem surdo que provoca riso, não en-
contramos no texto de Trabbold representações medicalizadas do surdo, o
que se poderia explicar pela ambientação histórica de que o autor lança
mão (possivelmente, séculos anteriores ao século XIX). O que não se ex-
plica simplesmente por esse condicionamento ficcional é a nomeação di-
reta do indivíduo — surdo, sem o gêmeo depreciativo mudo, e a escolha
por não vitimizá-lo ou apequená-lo frente aos outros personagens.

Outro lugar para o surdo:


A letreria do dr. Alfa Beto e O Uvro das Palavras

Dois outros livros de literatura infantil, ao tematizarem ficcional-


mente a questão das palavras e/ou letras — A letreria do dr. Alfa Beto e
O livro das palavras — incorporam no desenrolar da sua trama a ques-
tão do surdo/surdez.
Vejamos em que consiste A letreria do dr. Alfa Beto, escrito por
Stella Carr e ilustrado por Ricardo Azevedo. Trata-se de uma interessante
fabulação que se constrói em tomo da inesperada revolta das letras (ca-
pitaneadas pelo dublê de professor/doutor Alfa Beto) e uma conseqüen-
te greve das palavras, que subitamente desaparecem — no cotidiano das
pessoas — como realidade sonora e gráfica. Dicionários em branco, pági-
nas de jornal em que apenas as fotografias estão presentes, pessoas ten-
tando falar sem que suas vozes se façam ouvir são algumas das conse-
qüências da greve das letras, que provocam uma grande balbúrdia no
funcionamento "normal" das atividades da cidade! Neste contexto, em
que o Governo decreta "Estado de Emergência", são buscadas as pesso-
as que poderiam ajudar a solucionar os problemas;

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 195


Da noite para o dia os surdos-mudos se tomaram importantíssimos e fo-
ram logo chamados às pressas ! Eram eles que transmitiam as mensagens
e explicavam aos novos analfabetos (que agora era quase todo mundo) o
que estava acontecendo.

E, mais adiante:

Daí, só quem podia ler agora eram os cegos, porque os livros em "Braile"
são escritos com pontinhos. E, até o fim do dia, os cegos e os surdos-mu-
dos ficaram sendo as pessoas mais importantes da Cidade!
O Governo elegeu, então, às pressas, uma Comissão de surdos-mudos e
cegos pra botar ordem na confusão.

A busca de outras soluções alternativas, para enquanto durasse o


que a autora chama de a "epidemia do silêncio" também acontece com
outros grupos de pessoas, através da invenção de novos alfabetos, no-
vos gestos, da criação de linguagem nova pela turma da Informática, etc.
O desfecho da trama, enfim, apresenta o desconsolo das letras, ao
verificarem que não eram assim tão imprescindíveis, conforme tinham
podido observar com os resultados de sua greve. E o doutor Alfa Beto
passa-lhes uma "lição de moral"22, cujo teor interessa à nossa análise:

— Não é com palavras que se realizam as grandes coisas — o mestre foi


dizendo.
— E eu não acho que o esforço das letras tenha sido em vão. Vocês ensi-
naram aos Homens que eles podem se unir e resolver seus problemas de
outras formas, inclusive aproveitando pessoas que eles acreditavam pou-
co úteis para a comunidade.

Sublinhe-se, ainda, a ilustração de Ricardo Azevedo (ele mesmo au-


tor de numerosos livros infanto-juvenis), que escolheu colocar tanto o qua-
dro do alfabeto digital ao final do capítulo em que se relata a grande con-
fusão, como um desenho esquemático de apresentador de televisão que
exibe um painel com duas letras digitais formando a palavra PÔ! (figura 5).
A exemplo de outras ilustrações do livro, elas não se restringem a simples-

22
Mesmo tramas inusitadas e, de certa forma, questionadoras de conceitos estabelecidos
não resistem ao vezo pedagógico explícito da literatura infantil, que, neste caso específico,
comparece através da síntese explicativa de um adulto sábio, branco e cientista.

196 • Estudos Culturais em educação


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X\\ 3.

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 197


mente traduzir para um código imagético o que as palavras dizem, mas cons-
tituem um discurso paralelo que traz outros significados.
A representação do surdo e da surdez num livro infantil que não pa-
rece pretender ensinar a respeito dos mesmos pode nos reservar surpre-
sas. A despeito da nomeação dos surdos como surdos-mudos, a respeito
da qual já teci comentários, os surdos não estão aí nem medicalizados, nem
tomados pacientes a serem normalizados, nem protetizados; poder-se-ia
argumentar contra a artificialidade de uma solução ficcional em que dois
tipos de deficientes — cegos e surdos — são colocados como "salvado-
res" de uma comunidade ouvinte e vidente às voltas com dificuldades ex-
tra-ordinárias23, mas creio que se deva reconhecer que eles aí estão defi-
nidos e apresentados através do ícone que a sua comunidade advoga hoje
como "autêntica": a língua dos sinais. Nesse sentido, não foi apenas a au-
tora que direcionou seu trabalho, mas também o ilustrador que acrescen-
tou ao discurso escrito da trama principal um outro "enigma" a ser resol-
vido: a decodificação do cartaz do apresentador pelo recurso à tábua de
linguagem dos sinais! Também o título do capítulo em tela, qual seja. De
quantos jeitos a gente se entende remete, senão para a aceitação progra-
mática de uma diversidade cultural, ao menos para a possibilidade da exis-
tência de mais de um "jeito", não somente letrado, ouvintista, vidente!
Última obra que será aqui analisada, O livro das palavras é de
autoria — texto e projeto gráfico — de Ricardo Azevedo, o mesmo ilus-
trador do livro anterior. Seu tema central parte da soberba de um dicio-
nário, habitante de uma biblioteca, que julga tudo saber, mas, abalado em
seu orgulho pela conversa com outros livros, resolve sair a viajar para
conhecer o mundo.24 A cada capítulo, ele faz uma nova descoberta, mar-
cada por um caráter de "vitalidade autêntica", que é confrontada com sua
experiência anterior do conhecimento de significados estáticos. Assim,
ele toma contato com a morte e o amor, e, enquanto pensa no significa-

23
Na ficção, tanto na literatura quanto no cinema, não é rara a utilização de um evento
hipotético impossível para o desencadear de situações que de certa forma evidenciam
outras representações do cotidiano. Kafka, em sua Metamorfose, seria um exemplo clás-
sico; para ficarmos entre os clássicos brasileiros, as Memórias Póstumas de Brás Cu-
bas, de Machado, também poderiam ser lidas por esse ângulo.
24
A temática literária da viagem como momento de profundas experiências em que o
próprio herói se constitui é bastante utilizada na literatura ocidental, tendo sido exami-
nada detidamente no Capítulo 2 de Larrosa (1998).

198 • Estudos Culturais em educação


do deste último, ao seguir caminho por uma estrada, se depara com a
cena de um diálogo que não consegue entender:

De volta, subindo a serra, encontrou um menino de pé em cima de uma


pedra gesticulando sem parar.
(...) O menino não dizia uma única palavra. Apenas mexia as mãos. Os
braços. Fazia gestos. Às vezes ria e balançava a cabeça.

Intrigado, o dicionário percebe que o menino se dirige a um homem


distante, no topo de um morro, que também fazia gestos, e descobre:

Quando um gesticulava o outro parava. Era uma conversa. O homem e o


menino estavam usando o próprio corpo para falar!

Perplexo, o dicionário personagem conclui que os dois consegui-


am conversar sem as palavras que tão orgulhosamente ele continha. E
essa cena fica como um enigma a mais na sua experiência de mundo,
retomada mais adiante sob a simples descrição — O menino usando o
próprio corpo para conversar...
Esta é a única cena que aborda a questão da surdez no contexto do
livro e duas observações primeiras saltam aos nossos olhos. Em primei-
ro lugar, a "localização" dela como um dos "enigmas" ou, ao menos, como
um dos "fatos dignos de espanto" que se apresentam ao personagem
aprendiz. Diria até mais: o fato de a figura que a ilustra ocupar as duas
páginas centrais da obra aponta para uma maior ênfase a ela (figura 6).
Por sinal, tal figura conjuga tanto aspectos mais figurativos — como a
representação do homem e do menino sinalizando, cada um de cima de
um morro, enquanto o dicionário, de costas, em primeiro plano, os ob-
serva — como elementos simbólicos, como a reprodução, em tipos mi-
núsculos, do texto global do livro ocupando toda a superfície do dese-
nho, numa possível simbologia de que a sinalização dos dois estava aci-
ma de toda a expressão verbal.25 Em segundo lugar, se poderia objetar
que na cena ficcional não se trata de uma conversa de surdos, através da
Língua dos Sinais, uma vez que em nenhum momento tal nomeação é

25
É evidente que esta é apenas uma leitura, a minha, dos elementos da ilustração de Ri-
cardo Azevedo, ilustrador que tem se destacado pela fuga ao convencional e ao simples-
mente figurativo na ilustração de obras infanto-juvenis.

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 199


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2<X) • Estudos Culturais cm educação


claramente feita; entretanto, cremos que a descrição da cena exclui a
possibilidade de uma simples troca de sinais entre ouvintes, uma vez que
ela se desdobra numa certa continuidade temporal, provoca risos e ba-
lançar de cabeça e motiva uma manifestação do próprio dicionário, que
nos parece ganhar sentido apenas se se referir à comunicação gestual:
O homem e o menino estavam usando o próprio corpo para falar!
Através de uma alegoria, sem falar em surdez, surdo, surdo-mudo,
surdinho... Ricardo Azevedo nos mostra um outro código de comunica-
ção, apresentando-o tanto no que ele tem de comum com a linguagem
oral — a dimensão da troca, do diálogo, a potencialidade de fazer rir,
em suma, de significar — quanto noutro aspecto em que ela a suplanta
— na possibilidade de comunicação à distância, sem intermediação de
meios eletrônicos.

Atando pontas

Como já anunciei anteriormente, não foi meu propósito buscar uma


conclusão única quanto às formas de representação com que um grupo
que atualmente busca apagar uma identidade medicalizada que o no-
meia como deficiente, como paciente, como cliente, como reeducável,
integrável... para constituir uma identidade grupai que nele enfatize as
formas específicas de apreensão e organização de mundo, de modalida-
de de comunicação, etc. — é mostrado na literatura infantil.
Assim, o percurso feito através de sete livros destinados a crian-
ças, disponíveis no atual mercado brasileiro, em que — de uma ou de
outra forma — a temática da surdez aflora, mostrou-nos sobretudo uma
heterogeneidade das representações ali presentes, representações essas
que se constituíram tanto pela intencionalidade da informação, quanto
pelos conceitos pressupostos na trama e personagens e, ainda, pela utili-
zação de palavras e expressões específicas.
Não chega a ser surpresa o fato de que livros em que haja uma in-
tenção explícita de informar ou "formar" as crianças leitoras em relação
à surdez e aos sujeitos surdos, estejam dominados pelo paradigma clíni-
co, medicahzado, que, através dos tentáculos da pedagogia e da regula-
ção social, pretende normalizar o surdo. O discurso que representa os
surdos como grupo cultural que compartilha, principalmente, uma ex-

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 201


periência visual distinta e uma língua particular que se estrutura de for-
ma diversa, e não como uma comunidade de deficientes, não parece ter
encontrado ainda, nesse artefato cultural específico muito espaço para
vir à luz. Ou seja: as verdades que os adultos encapsulam em tais livros
para que sejam mostradas e consumidas pelas crianças estão dominadas
pela representação da surdez como incompletude, "doença", deficiência,
etc., feita ligeira ressalva à obra Os cinco sentidos.
Isso não impediu, entretanto, que nos livros em que o caráter fícci-
onal fosse predominante, concepções "não examinadas" de surdez, como
diria Stephens, circulassem. Assim, as possibilidades humorísticas de
aproveitamento da surdez — calcadas principalmente na dimensão gro-
tesca das situações de incompreensão surdo/ouvinte, tão freqüentes em
programas humorísticos de TV, nos quais o surdo, o velho, a mulher feia,
o gordo, o homossexual, o "fanha", etc. comparecem indefectivelmente
— também estão presentes na literatura infantil. O "surdinho" — este
personagem menor, digno de pena e/ou de riso — parece necessariamente
compor, ao lado daqueles outros personagens, o pano-de-fundo em que
os "normais", os "abençoados pela Natureza", os "perfeitos, graças a
Deus" se movimentam. Como deficiente, abrem-se duas portas a ele: a
normalização, o tomar-se um "pseudo-ouvinte", ou a compensação de
"talentos", pela qual a "mãe Natureza" lhe teria dispensado em dobro o
que lhe retirou de um lado...
Houve mais, ainda, no que examinamos. As duas obras que ana-
lisamos sob o título Outro lugar para o surdo, não se filiando nem
ao discurso medicalizante, nem àquelas representações populares da
surdez como mote de compaixão ou de mofa, parecem apontar para
um reconhecimento do surdo como o diferente, cujo ícone maior se-
ria a utilização da Língua dos Sinais. Neste sentido, a aprendizagem
do dicionário do Livro das Palavras poderia ser vista como a apren-
dizagem do ouvinte que apreende o diferente que há nesta outra for-
ma de comunicação.
Não se pode deixar de registrar, entretanto, que todos os livros ana-
lisados foram escritos por ouvintes, que narram a surdez a partir de seus
filtros sociais, de suas experiências de certa forma alheias ao cerne da
vivência culturalmente imersa na surdez. Ainda que não se possa negar
o quanto este travestir-se de outro, no campo da produção cultural, pos-
sa ter sucesso na simulação da experiência de outros grupos aos quais o

202 • Estudos Culturais em educação


autor não pertence,26 cabe perguntar onde estão as histórias que os sur-
dos contam ou podem/poderiam contar para seus filhos e para os filhos
dos ouvintes. Que histórias e experiências dessa cultura singular visual
poderiam se corporificar em livros para crianças? E que formas de lin-
guagem — uma vez que é impossível esquecer que a forma escrita das
línguas faladas constitui um freqüente obstáculo de comunicação para
os surdos — poderiam ser usadas para que essas narrativas se fizessem
sinal e indício? O caminho da auto-representação dos grupos nas lutas
pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades, da le-
gitimidade de sua linguagem, de suas formas de existência, associação e
formas de conceber e julgar, passa a meu ver pela apropriação dos vári-
os tipos de produtos culturais com que se constituem e se consomem
imagens, normas e "verdades".

Referências bibliográficas

BOTELHO, Paula. Segredos e silêncios na educação dos surdos. Belo Horizon-


te; Autêntica, 1998.
GLEDHILL, Christine. Genre and Gender: the case of soap opera. In; HALL,
Stuart (Ed.). Representation — Cultural representations and sigmfymg
practices. London: SAGE Pubhcations/The Open University, 1997.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana. Porto Alegre: Contrabando, 1998.
LOPES, Maura Corcini. Relações de poderes no espaço multicultural da escola
para surdos. In: SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez: um olhar sobre as dife-
renças. Porto Alegre: Mediação, 1998.
LULKIN, Sérgio Andres. O discurso moderno na educação dos surdos: práticas
de controle do corpo e a expressão cultural amordaçada. In: SKLIAR, Carlos
(Ovg.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.
CTSULLIVAN, Tim; HARTLEY, John; SAUNDERS, Danny; MONTGOMERY,
Martin; FISKE, John. Key concepts in communication and Cultural Studi-
es. London/New York: Roulledge, 1994.
PERLIN, Gládis. Identidades surdas. In: SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez: um
olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.
PINSENT, Pat. Children s literature and the polities of equality. London; Da-
vid Fullon Publishers, 1997.

26
Os exemplos são muitos e variados, mas um incessantemente citado tem sido o da "voz
feminina", ou melhor, de uma certa "voz feminina" de Chico Buarque em algumas de
suas letras de músicas, como "Com açúcar, com afeto", ou mesmo "Meu guri".

Contando histórias sobre surdos(as) e surdez • 203


SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. "Olha quem está falando agora!" A escuta das
vozes na educação. In. COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos Investi-
gativos: novos olhares na pesquisa em educação. Porto Alegre; Mediação,
1996.
SKLIAR, Carlos. Os Estudos Surdos em Educação: problematizando a norma-
lidade. In. SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças.
Porto Alegre; Mediação, 1998.
STEPHENS, John. Language and ideology in children 's fiction. London/New
York: Longman, 1992.
THOMA, Adriana. Surdo: esse "outro" de que fala a mídia. In: SKLIAR, Carlos
(Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.

Livros analisados
AZEVEDO, Ricardo. O livro das palavras. Belo Horizonte: Formato Editorial, 1993.
BOSMANS, Peter. Os cinco sentidos: os sentidos explicados para crianças de 5
a 9 anos. Blumenau; EKO, 1997.
CARR, Stella. A letreria do dr Alfa Beto. São Paulo: Editora do Brasil, 1988.
LIMA, Edy. A gente e as outras gentes. São Paulo: Scipione, 1995.
SUHR, Mandy; GORDON, Mike. Audição. São Paulo: Scipione, 1998.
TRABBOLD, Pierre. Dor de dente real. São Paulo: Edições Loyoía, 1993.
ZELONKY, Joy. Nem sempre posso ouvir vocês. São Paulo; Ática, 1988

204 • Estudos Culturais em educação


Capítulo 8

Criança e brinquedo:
feitos um para o outro?

Maria Isabel Bujes

Levando o brinquedo a sério

Lejeu et le jouetfont tellement partie de notre vie que 1'onfinit par n 'y
plusprendre garde, à tout les moins qu 'on arrive à ne plus leur donner
l'importance qu 'ils méritent, l 'attention qu 'ils exigent.1
Vial (1981, p.9)

O tema do jogo, do brinquedo, do brincar2 tem atravessado épo-


cas e culturas. Os brinquedos estão presentes na iconografia do século
XV, magistralmente representados nas cenas flamengas de Brueghel,
nos contos recolhidos pelos irmãos Grimm da tradição oral alemã, nas
reflexões de Walter Benjamin, na poesia de Vinícius de Moraes, nas

A citação da epígrafe pode ser entendida como; "O jogo e o brinquedo fazem de tal modo
parte de nossa vida que acabamos por não mais lhes prestar atenção, não dando a eles a
importância que merecem, a atenção que exigem".
Não farei neste trabalho distinção entre as ações de jogar e brincar, Apesar de existirem
em português os dois termos, é comum que haja em outras línguas apenas uma designa-
ção para elas. Em inglês e em francês, usam-se os verbos to play e jouer, respectivamen-
te, para designá-las. Para uma discussão sobre as possíveis distinções entre brincar e jo-
gar, ver G. Brougère, 1998.

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 205


canções de Chico Buarque, nas manifestações da arte popular e, so-
bretudo, na fantasia das crianças.
Mas eles não têm se constituído apenas como objetos de manifes-
tações que os exaltam, que promovem seu lado espontâneo, prazeroso,
descomprometido. Brincar e jogar têm servido para que sobre eles se
construam teorias, teses, trabalhos acadêmicos diversos, com o intuito
de precisar-lhes o sentido, aprisionar o seu significado.
Não pretendo, nos limites deste trabalho, discutir exaustivamen-
te as teorias sobre o assunto mas apenas fazer-lhes referência e reto-
mar alguns de seus pressupostos, na medida em que elas servirem ao
meu propósito de examinar o que a escola, e também as famílias, ins-
piradas nas pedagogias modernas, fazem com o brincar e o brinquedo
(ação e objeto). Como, ao transformá-los em instrumentos pedagógi-
cos, elas os utilizam para aprisionar, controlar, regular os sujeitos com
eles envolvidos.
Em que pesem algumas distinções que são feitas entre jogo e brin-
quedo, ao eleger o brinquedo (considerando-o, neste trabalho como si-
nônimo de jogo) como foco de atenção, tomo-o em seu caráter de objeto
cultural, comprometido ativamente na construção dos processos identi-
tários dos sujeitos infantis.
Pretendo aqui discutir como o brinquedo e de forma correlata as
brincadeiras, enquanto manifestações da cultura vivida, estão envolvi-
dos no processo de produção e imposição de significados. Isto significa
dizer que a dimensão discursiva ou de significado, como parte constitu-
tiva da cultura, está eivada de relações de poder que pretendem condu-
zir o processo de representação. Portanto, o processo de produção de sig-
nificados tem um caráter político. Assim, cultura e política são constitu-
tivas das práticas sociais pelas quais atribuímos significado às experiên-
cias, entre elas a do jogo e do brinquedo.
A trilha que seguirei nesta exposição considera que o sujeito in-
fantil, que tomamos como sujeito lúdico, é constituído nas práticas
culturais de significação em que se articulam, simultaneamente, cultu-
ra, economia e política, e mesmo o conhecimento que me conduz a ver
o sujeito infantil desta forma, é produto de uma construção histórica e
culturalmente contingente.

206 • Estudos Culturais em educação


Estabelecendo marcos

A proliferação do brinquedo, como objeto de consumo, é um acon-


tecimento bastante recente. Lembro da minha infância e da relativa li-
mitação das ofertas, só ampliada com a invenção de novos materiais que
vieram substituir o celulóide, na fabricação das bonecas, o couro e a bor-
racha, na confecção de bolas, e a madeira, nos carros e caminhões.
Os objetos que refiro são exemplos dos brinquedos mais popula-
res àquela época e estes eram de acesso relativamente limitado, mesmo
às crianças de classe média como eu. Isso não impedia que brincásse-
mos, criando nossos próprios brinquedos ou valendo-nos da produção
artesanal tão característica daquele momento, antes da expansão indus-
trial no Brasil.
Embora o brincar seja considerado amplamente como uma ativi-
dade "natural" da criança, algo que faz parte de uma "essência infan-
til"— espontâneo, prazeroso, ativo, desinteressado — com um fim em
si mesmo (temas aos quais me dedicarei mais adiante), os brinquedos
— e também as brincadeiras — são característicos de cada cultura e
de cada momento histórico, ainda que alguns guardem um caráter de
notável sobrevivência3.
Aries (1981)4 nos ajuda nesta retomada, mostrando-nos como, a
partir do século XV estão representados na iconografia os brinquedos
das crianças muito pequenas: o cavalo de pau, o cata-vento, um passari-
nho (vivo ou de madeira) preso por um cordão e, raras vezes, bonecas. E
afirma, referindo-se aos fatos minuciosamente registrados da infância de
Luís XIII, que no início do século XVII os mesmos jogos e brincadeiras
eram comuns a adultos e crianças. O autor dedica atenção também à mi-
niaturização e à replicação dos objetos do cotidiano como uma ativida-
de voltada ao gosto do adulto, com finalidades decorativas, que passa

3
Esse caráter de sobrevivência de certos brinquedos, o fato de que atravessam gerações,
precisa ser contraposto ao fato de que eles são constantemente ressignifícados, dada a
dinamicidade da cultura.
4
Em que pesem contestações mais recentes sobre a pesquisa empreendida por Ariès, que
permitiu a publicação de História social da criança e da família, creio que o panorama
que ele traça sobre o brinquedo é abrangente e serve aos propósitos deste texto. Para uma
revisão de alguns aspectos de sua obra ver Kuhlmann Jr. (1998).

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 207


também a ser apreciada pelas crianças e mostra como as bonecas en-
tram muito tarde na história. Elas constituíram, por muito tempo, um ins-
trumento perigoso do bruxo ou do feiticeiro, representação que ainda im-
pera em muitas culturas contemporâneas. E, por volta de 1600:

a especialização infantil dos brinquedos já estava então consumada, com


algumas diferenças de detalhe com relação ao nosso uso atual; (...) a bo-
neca não se destinava apenas às meninas. Os meninos também brincavam
com elas. Dentro dos limites da primeira infância, a discriminação moder-
na entre meninos e meninas era menos nítida (Ariès, 1981,p.91-92)

Desde aquela época, apesar da incorporação paulatina de novos


objetos, ocorreram poucas mudanças nas formas de concepção e apre-
sentação dos brinquedos, vindo este panorama a modificar-se de manei-
ra bastante notável no último século, com a industrialização e o uso de
novos materiais mas também com a introdução de dispositivos mecâni-
cos e eletrônicos nestes objetos.

Crianças e brinquedos: uma conjunção natural?

As teorias psicológicas sobre a infância enfatizam esta idade como


o domínio do lúdico. O brinquedo e o brincar teriam sua importância
determinada pelo fato de que seriam inerentes ã "natureza infantil", na-
tureza esta concebida inicialmente, nestas teorias, como de ordem bio-
lógica e, mais recentemente, como de caráter social.
No campo da psicologia do desenvolvimento, o jogo seria condi-
ção de possibilidade de determinados processos e relações, marco na
evolução cognitiva do sujeito. As teorias cognitivistas, valendo-se da
clássica associação que considera o jogo/brinquedo como indissociável
da condição humana, propuseram uma categorização para os mesmos,
indicando-lhes etapas, modalidades e associando-os de modo indelével
às conquistas e aos estágios do raciocínio infantil. As etapas do jogo/
brincar e do desenvolvimento estariam em íntima inter-relação. O de-
senvolvimento do pensamento infantil, concebido como evolutivo, ocor-
reria naturalmente desde que dadas condições estivessem presentes.
"O mapeamento dos estádios de transformação em direção à obten-
ção da racionalidade ocidental tomou-se visto como um processo evo-

208 • Estudos Culturais em educação


lutivo que ocorria naturalmente, e que não podia ser ensinado, mas que
poderia ser cultivado por meio do amor e de um ambiente propício"
(Walkerdine, 1995, p.211). E, nesta evolução, o brinquedo teria certa-
mente um papel privilegiado.
O que me proponho a fazer, deste ponto em diante, é tomar algu-
mas vivências pessoais/profissionais em relação ao jogo/brinquedo, para
exame neste trabalho. Vivências estas que se situam naquele terreno
movediço da rememoração: observações e reflexões relacionadas com
fatos de minha trajetória pessoal, como criança que fui, como mãe e como
professora — formadora de outras educadoras — que dizem respeito a
uma questão específica; que efeitos as práticas da família e da escola,
associadas com o brinquedo e o brincar, têm sobre a criança pequena
(menor de 7 anos). O que pretendo questionar é como os discursos psi-
cológicos mais especialmente, que parecem assumir uma direção tão
unitária, acabam por tomar-se o fundamento explicativo para as práti-
cas de jogar e de brincar. Como tais discursos, na medida em que são
instituidores de sentido, atravessam o campo pedagógico, pondo em ação
práticas envolvidas na produção de determinadas identidades dos sujei-
tos infantis mas também daquelas/es responsáveis pela sua educação.

Delineando pontos de partida

Meu interesse pelo brinquedo, como objeto de análise, remonta,


ainda que imprecisamente, a algumas experiências que vivi como mãe
de uma menina e de um menino.
Lembro com meridiana clareza — e aqui é preciso relembrar mais
uma vez que a memória é construída — de incursões aos supermercados
e às lojas de brinquedos, para escolher-lhes presentes ou para comprar
lembranças para os seus amigos e amigas nas datas dos aniversários, es-
pecialmente. Mas um destes episódios calou mais fundo. Foi aquele que
me propiciou o encontro com uma ex-colega, frente a uma gôndola de
um supermercado. Eu procurava apressada um brinquedo original para
as crianças (e desconfio que ali seria o lugar menos adequado para fazer
isto) quando ouço alguém me dizer, frente às cartelas de joguinhos para
chá; 'Tu já percebeste que até o feitio destas loucinhas não mudou des-
de que éramos criança? E o comentário foi mais além; "Por que será

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 209


que com os brinquedos para os meninos não aconteceu o mesmo? Já re-
paraste na variedade da oferta?"
Afinal, estávamos no início dos anos 70 e na indústria nacional rei-
navam soberanas as Estrelas5 da vida. Louças, bonecas e panelinhas re-
petiam os modelos de mais de vinte anos e as Suzies, antecessoras das
Barbies eram a grande novidade. O boneco que fazia pipi (e que, portanto,
estava "equipado" para isto) só fui encontrá-lo numa viagem fora do país
e ele constituiu a encomenda mais recomendada por minha filha.
Enquanto isso, apesar das bolas, chuteiras e raquetes serem os ob-
jetos mais reclamados pelo meu menino, havia à disposição carrões à
moda Cadillac, os Fuscas tão modernos, novas espingardas, ombreando
com o antigo "O pequeno engenheiro", o Lego, trazido de presente pela
avó, ou as miniaturas Matchbox.
No entanto, a grande novidade eram os brinquedos de pilha. E, en-
quanto as bonecas podiam andar de bicicleta, chorar, ou caminhar a du-
ras penas (o que de certa forma se entende pela dificuldade que consti-
tui replicar o movimento humano), havia novos aviões, carros, trens, ar-
mas, circuitos de corrida, todos produzindo movimentos, cores, sons, num
simulacro do mundo masculino: "ativo", "guerreiro", "decidido".
Parece quase inevitável, a partir do meu relato, associar o brinque-
do à questão das identidades de gênero. Quero, no entanto, começar si-
tuando-o como um objeto cultural: algo que faz parte das nossas con-
versas (como aquela com minha colega), que desejamos (o boneco que
fazia pipi), com o qual fazemos coisas (compramos, oferecemos de pre-
sente, abominamos....), com o qual certamente brincamos. Ele é cultural
porque está conectado com um conjunto de práticas sociais específicas
de nossa cultura, porque pode ser associado a grupos particulares de pes-
soas (neste caso, de forma especial com as crianças), a certos lugares e
porque adquiriu um certo perfil social ou identidade. Ele também pode
ser representado de diferentes maneiras, em diferentes linguagens, em
veículos de divulgação diversos. Podemos afirmar, como Du Gay e ou-
tros (1997, p.ll) que "estes significados, práticas, imagens, identidades
nos permitem situá-lo e estudá-lo como um artefato da cultura".

5
A Manufatura de Brinquedos Estrela era a maior fábrica de brinquedos da época, numa
posição privilegiada de detentora de parcela significativa do mercado, posição que se
modificou nos últimos anos.

210 • Estudos Culturais em educação


É, portanto, a cultura que nos permite dar significado ao objeto brin-
quedo, atribuir-lhe um sentido. E a construção do seu significado se faz
no âmbito das práticas discursivas, da linguagem. As representações de
brinquedo, preexistentes, num determinado universo cultural terão, por-
tanto, sobre crianças e adultos um forte papel modulador nos significa-
dos que estes mesmos sujeitos passam a atribuir a tais objetos.
No entanto, é preciso não esquecer que esta dimensão cultural do
jogo/brinquedo está intimamente articulada a suas dimensões política e
econômica. Du Gay e outros (1997) apontam que para estudar os artefa-
tos culturais precisamos não apenas explorar como são representados,
que identidades sociais estão a eles associadas mas também como são
produzidos, consumidos e que mecanismos regulam sua distribuição e
uso (o que denominam de circuito da cultura). Seria importante apontar
que jogo e brinquedo têm representado de forma crescente um impor-
tante veio de consumo. A indústria deste segmento tem aumentado ver-
tiginosamente seus investimentos não apenas na produção de novos e
mais sofisticados brinquedos, mas também na instalação de parques, na
publicação de filmes e revistas, na produção de material escolar, espor-
tivo e, até, de uma moda calcada em personagens, artistas, apresentado-
res, associados à indústria da mídia e da produção cultural. Portanto, ao
examinarmos os jogos/ brinquedos como objetos culturais precisamos
ter presente que seu papel na constituição de identidades está também
atravessado pelas questões de acesso a tais artefatos determinada de for-
ma bastante decisiva pela classe social.
Certamente as representações de brinquedo, para os meus filhos,
não podem ser associadas apenas à possibilidade de acesso a tais arte-
fatos disponíveis nas prateleiras dos supermercados e lojas da cidade
ou ao seu marcado caráter de identificação com determinado gênero.
O que toma o brinquedo parte de nossa cultura são as práticas sociais
às quais ele vai sendo associado. Ao tomá-lo disponível para as crian-
ças nós lhe imprimimos importância, sentido e valor na vida cultural. E
são as diferentes práticas (em que estão envolvidos mais que consumo
e gênero), que levam à expansão do seu significado e valor cultural (Du
Gay, 1997).
Volto, portanto, ao domínio do "lar" e às suas práticas para procu-
rar entender como o jogo/brinquedo está implicado na constituição dos
processos identitários dos sujeitos infantis. Tomo como referência para

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 211


este exame a minha conduta como mãe/educadora, como fazem alguns
analistas culturais, escrutinando alguns comportamentos particulares e
peculiares de um grupo de mulheres de minha geração, classe social e
nível de escolaridade.
Mães de classe média são consumidoras vorazes de teorias peda-
gógicas e seguidoras fiéis dos preceitos delas derivados. Uma pesquisa
realizada na França dos anos setenta6 mostra que a freqüência à pré-es-
cola e à escola maternal deve-se mais à escolaridade da mãe do que ao
trabalho fora do lar. Seriam as vantagens relativas da escolarização pre-
coce que estanam a explicar a expansão deste nível de ensino no siste-
ma escolar daquele país. Penso que não estamos longe disso. Cada vez
mais se expande a freqüência às escolas infantis, no caso das camadas
médias da população, no pressuposto de que as experiências ali vividas
são cruciais para garantir entre outras coisas um desenvolvimento inte-
lectual adequado às possibilidades "próprias" de cada idade da criança
e, também, para propiciar oportunidades de socialização pela convivên-
cia com seus coetâneos, coisa pouco comum nestes tempos de famílias
numericamente reduzidas e de rarefação dos espaços informais de con-
vivência. Mas mesmo nestes tempos de ida precoce para a creche ou para
a pré-escola, as famílias e muito especialmente as mães (relembro que
falo especificamente das mães de uma classe social particular) não es-
capam de certas exigências que lhes são impostas, a partir da dissemina-
ção de um discurso de responsabilização que coloca na figura materna o
peso pelo sucesso ou fracasso nas trajetónas escolares de seus filhos/as.
Portanto, é preciso começar cedo! O interesse pelos brinquedos, com
destaque especial para os jogos pedagógicos, é indício de conduta ade-
quada por parte das mães de classe média. E elas precisam estar atentas
ao que as crianças dizem e fazem (mas, também, lhes fazer as questões
pertinentes, levando-as a pensar acerca das possíveis relações que po-
dem ser deduzidas dos materiais postos à sua disposição). Neste senti-
do, a valorização dos brinquedos, a exploração caseira das relações que
podem advir dos jogos e materiais pedagógicos, a atenção às questões

6
A pesquisa a que me refiro foi realizada por Chamboredon e Prévot (1986) e discute,
entre outras coisas, as expectativas das diversas classes sociais em relaçao as institui-
ções de educação infantil.

212 • Estudos Culturais em educação


que as crianças fazem — tudo isso resulta num produtivo arsenal para
levar os seus filhos/as a assumir as condutas desejadas, manter um nível
ótimo de curiosidade, expressar com desenvoltura as suas dúvidas e as
suas hipóteses sobre o mundo que as cerca.
Os efeitos produtivos de tais condutas maternas são evidentes mas
também, evidentemente, estas são considerados nada mais do que o "cum-
primento do dever", nesta empreitada para produzir uma camada de su-
jeitos que cheguem mais confiantes à escola, que falem uma linguagem
comum, narrem com mais desenvoltura as suas experiências ou respon-
dam de forma menos tímida aos questionamentos que lhes são feitos. Com
este tipo de tratamento mais pedagogizado, característico da interven-
ção materna (e confesso que poucas vezes vi os pais darem o mesmo tipo
de atenção aos seus rebentos), parece não haver descontinuidade entre o
mundo da escola e aquele fora dela.
O jogo constitui um aparato pedagógico particular e as práticas de
jogo/brinquedo assentam-se em pressupostos sobre a aprendizagem e o
ensino que se baseiam no desenvolvimento da criança, descrito pela Psi-
cologia do Desenvolvimento. Portanto, não é sem razão que as condutas
maternas tanto quanto as infantis, que caracterizei acima, são tomadas
como "naturais" e constituem uma referência privilegiada para todas as
classes sociais, estando saturadas com a noção de uma seqüência nor-
malizada do desenvolvimento infantil7.

Flagrando um estranhamento:
escola infantil e brinquedo

Certamente jamais se chegaria à realidade ou ao conceito do brinquedo se


se tentasse explicá-lo unicamente pelo espírito das crianças. Se a criança
não é nenhum Robinson Cmsoe, assim também as crianças não constitu-
em nenhuma comunidade isolada, mas sim uma parte do povo e da classe
de que provêm. Da mesma forma, seus brinquedos não dão testemunho
de uma vida autônoma e especial; são, isso sim, um mudo diálogo simbó-
lico entre ela e o povo. (Benjamin, 1984, p.70)

7
A esse respeito, é interessante lembrar a prática de alguns fabricantes de brinquedos e
jogos que apresentam nas embalagens uma indicação com a idade da criança a qual aquele
brinquedo seria adequado.

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 213


Minha pretensão, neste trabalho, é a de não me ater apenas ao cir-
cuito doméstico, mostrando que não são apenas as experiências neste
âmbito e no do consumo que contribuem para a produção de sentido de
um determinado objeto cultural como o brinquedo e conseqüentemente
para a produção de identidades dos sujeitos conectados a estas práticas
de significação. Instituições em outras esferas operam ativamente nes-
tes processos de significação, sobretudo a escola. E neste ponto julgo
adequado citar Silva (1997) extensamente, para quem:

É na intersecção entre representação e identidade que podemos localizar


o caráter ativo de ambas. A representação não é um campo passivo de mero
registro ou expressão de significados existentes. A representação tampou-
co é simplesmente efeito de estruturas que lhe são exteriores; o capitalis-
mo, o sexismo, o racismo (...) Os diferentes gmpos sociais utilizam a re-
presentação para foijar a sua identidade e as identidades dos outros gm-
pos sociais. Ela não é, entretanto, um campo equilibrado de jogo. Através
da representação se travam batalhas decisivas de criação e imposição de
significados particulares: esse é um campo atravessado por relações de
poder. A identidade é, pois, ativamente produzida na e através da repre-
sentação: é precisamente o poder que lhe confere seu caráter ativo, pro-
dutivo. (p. 16)

Durante um certo tempo, como orientadora de estágios em insti-


tuições de educação infantil, pude fazer observações sobre tratamentos
dados aos brinquedos e às brincadeiras nestas instituições, todas elas de
natureza pública ou assistencial e via de regra destinadas a crianças oriun-
das de famílias das classes populares.
Mesmo assumindo o risco de toda seleção, vou privilegiar deter-
minadas histórias sobre os brinquedos e o brincar, coloridas pelas mi-
nhas formas de perceber, pelas minhas representações prévias acerca do
objeto, pela minha posição como profissional, pelo meu modo particu-
lar de ver, nem desapaixonado, muito menos inocente; creio que vale a
pena lançar um outro olhar sobre elas, no intuito de produzir uma narra-
tiva particular de como os sujeitos são produzidos nos signos, narrati-
vas, ficções e fantasias que constituem o mundo social.
Ao observar brinquedos e brincadeiras, nas práticas de educação
infantil, pude distinguir três formas correntes de tratá-los, que conside-
ro as mais características e mais usuais tanto no comportamento de pro-
fessoras quanto nas práticas institucionais, e que apresento a seguir.

214 • Estudos Culturais cm educação


É comum que os brinquedos sejam considerados como elementos
que desestabilizam e desorganizam o ambiente de sala de aula. São vis-
tos como elementos potencialmente desarticuladores das relações e das
normas de conduta. É usual, nas creches e pré-escolas, que haja um dia
determinado para que as crianças levem seus brinquedos para mostrá-
los na "rodinha" aos colegas, falando sobre eles. E os episódios recentes
sobre a proibição do Tamagotchi, em ambientes escolares — nas pré-
escolas e nas séries iniciais — são representativos deste tipo de regra-
mento que a escola infantil faz em relação ao brinquedo. Ocorre com
bastante freqüência, nas instituições que mencionei como campos de
estágio, especialmente nas de caráter assistencial, que os brinquedos dis-
poníveis estejam fora do alcance das crianças, em janelas ou em altas
estantes, servindo como elemento decorativo.
Outra forma de encarar o brinquedo é render-se a ele. Em termos...
Ele deve ser aproveitado, incorporado ao cotidiano escolar, deduzindo-
se dele relações úteis. Ele se toma um objeto a ser dissecado "cientifica-
mente" — um objeto de conhecimento que suscita problemas "resolví-

veis" nos limites dos conteúdos das disciplinas escolares. Nas creches e
pré-escolas em que atuei, é comum a introdução dos jogos e brinquedos
cuja finalidade instrucional é evidente, porém não explicitada ou, antes,
camuflada.
Brinquedos também são vistos como objetos que envolvem peri-
go. Seja por suas características físicas, seja por razões de ordem moral
ou ideológica. Constituem algo que deve ser desmistificado, analisan-
do-se, esclarecendo-se, desvelando seu lado anárquico, corruptor ou de
instrumento de poder e dominação. Nesta categoria entram os brinque-
dos que envolvem armas mas também aqui se registra o brinquedo de
faz-de-conta, quando envolve ações que os adultos consideram "perigo-
sas", por envolverem situações potencialmente difíceis de lidar, como
expressões da sexualidade ou de agressividade, principalmente.
O pensamento pedagógico moderno tradicionalmente enfatiza a
importância do brinquedo e do jogo nas práticas de sala de aula. Isto es-
taria associado ao seu efeito de canalizador de tensões, ao seu papel na
recuperação das exigências do trabalho de sala de aula, à sua função ci-
vilizadora pela conquista paulatina da autonomia (entendida enquanto
um comportamento pautado pela intemahzação das regras de convivên-
cia). Tais práticas ensejariam efeitos positivos sobre as crianças e, so-

Cnança e brinquedo; feitos um para o outro? • 215


bretudo, estariam comprometidas com a mediação de processos de de-
senvolvimento cognitivo e de aquisição de conhecimentos escolares.
Os discursos tradicionais sobre o brinquedo e a brincadeira (e aqui
parafraseio Larrosa, 1994, p.37) seriam espaços sociais ou instituciona-
lizados onde "a verdadeira natureza humana ^ — autoconsciente e dona
de si mesma — poderia se desenvolver. Jogo, brinquedo, brincadeira trans-
formar-se-iam, nesta perspectiva, em instrumentos de mediação, espa-
ços de desenvolvimento mas nunca de produção.
O papel da educação infantil se situaria, então, em promover o de-
senvolvimento da criança, a partir de uma disposição organizada dos
meios. A criança como aprendiz, e também como sujeito lúdico, encon-
traria, nesta organização "eficiente" porque "científica", condições para
seu desenvolvimento racional, o que corresponderia por certo a efeitos
positivos na ordem social.
As situações que acabo de descrever, que caracterizam práticas
docentes relacionadas com o brinquedo/brincar nas instituições de edu-
cação infantil, constituem, no meu entender, exemplos emblemáticos de
como estas práticas pedagógicas exibem nuanças que se desenham a partir
de um conjunto variável de contingências, tomando mais explícito que
a educação dispensada aos diferentes grupos sociais implica em: dife-
rentes concepções de espaço-tempo, diferenciadas formas de exercício
de poder, formas diferentes de saber, portanto, diferentes formas de pro-
dução de subjetividades, como nos ensinou Varela (1995).

Dando tratos à bôla

A atitude estética, a atitude do sábio, mesmo aquela do homem que refle-


te, se aproximam extremamente da atitude lúdica, e isso não deve nos sur-
preender, já que admitimos ser o jogo a fonte comum de todas as ativida-
des superiores. (Chateau, 1987, p.21)

Existe praticamente uma coincidência da maioria dos autores em


exaltar o brinquedo e a brincadeira. Dizem muitos deles que não é ne-
cessário que descrevamos o brincar. Todos sabemos quando alguém brin-
ca. O natural seria o brincar. A brincadeira é universal e própria da saú-
de (Winnicott, 1975). O brincar facilitaria o crescimento, a saúde (física
e mental), os relacionamentos grupais, constituindo uma forma de co-

216 • Estudos Culturais em educação


municação. O brincar seria um espaço de liberdade individual, um lugar
de sonhos, inerentemente excitante e precário:

A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre


realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos re-
ais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina na inti-
midade, num relacionamento que está sendo descoberto como digno
de confiança. (Winnicott, 1975, p.71)

"A criança que brinca habita uma área que não pode ser facilmente
abandonada, nem tampouco admite facilmente intrusões" (Winnicott,
1975, p.76). Este espaço, no entanto, em que a criança manipula os even-
tos externos a serviço do sonho e atribui a certos fenômenos um signifi-
cado onírico, admitiria uma evolução paulatina que implicaria uma pas-
sagem dos fenômenos transicionais — aqueles que se situariam numa
área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade
compartilhada do mundo externo — ao brincar como uma atividade in-
dividual, passando deste ao brincar com outros, até às experiências lúdi-
cas de cunho coletivo, de caráter comunitário e cultural.
O brinquedo poderia ser considerado como o espaço de possibili-
dade dos fenômenos criativos dos seres humanos. Seria no espaço lúdi-
co, no brincar, que a criança e os adultos teriam possibilidades de serem
criativos, de utilizarem sua personalidade integral e de descobrirem seu
próprio eu, segundo Winnicott (1975). Brincar, portanto, no campo psi-
canalítico, seria condição de estruturação da personalidade sadia.
No campo da Psicologia do Desenvolvimento, especialmente nas
psicologias de cunho cognitivo de raiz interacionista, a atividade lúdica
é considerada como representativa das interações que as crianças esta-
belecem desde muito cedo com os objetos do meio circundante, sejam
elas de ordem concreta ou simbólica, e também das situações comparti-
lhadas com outros parceiros, especialmente com outras crianças. Nesta
fase (até os seis anos, mais ou menos) a atividade predominante seria
aquela destinada a jogos e brincadeiras, especialmente, quando de inici-
ativa da/s própna/s criança/s. Para que considerássemos algo como brin-
cadeira/jogo algumas características deveriam estar presentes; o envol-
vimento voluntário, a orientação para o prazer, o descompromisso com
objetivos, o caráter de imprevisibilidade de seu desenrolar, a associação
de imaginação/realismo nas atitudes e ações. As interações lúdicas teri-

Cnança e brinquedo; feitos um para o outro? • 217


am, nesta perspectiva, uma importância crucial pois permitiriam que emer-
gisse toda uma gama de aspectos afetivos e cognitivos, possibilitados pelo
"caráter genuíno da interação" (Machado, 1994). Caberia ao educador
oferecer condições que tomassem as interações lúdicas viáveis para que
as crianças pudessem elaborar os conhecimentos que se manifestariam
nessas oportunidades. No entanto, seria importante diferençar jogo/ativi-
dade lúdica de outras formas de atividade da criança, propostas pelo adulto,
de caráter intencional ou premeditado. Neste último caso, se estaria então
no domínio do trabalho e não no do brincar:

A intencionalidade educativa modifica a direção das interações lúdicas


e o conhecimento que nelas se produz. Estes conhecimentos (...) pas-
sam a sofrer a interferência direta da opinião do adulto (...), mudando
não só os mmos da interação mas a sua própria substância: já não se
trata mais de interações lúdicas, mas sim de interações educativas. (Ma-
chado, 1994, p.45)

A partir destas duas perspectivas que acabei de enunciar, que situo


como aquelas que têm dado o tom predominante à discussão contempo-
rânea sobre a questão do brinquedo e do brincar, penso ser importante
chamar a atenção para um dilema que se coloca a partir das posições
apresentadas acima. Este dilema — entre intervenção e não intervenção
— em relação ao brincar, tem a meu ver marcado de forma indelével os
discursos sobre o tema e constitui uma das marcas importantes das prá-
ticas pedagógicas com crianças pequenas. E sobre as formas de interven-
ção de caráter pedagógico que me debruço a seguir, com a intenção de,
ao rever meus relatos anteriores, ir problemati^ando o significado de dis-
cursos e práticas relacionadas com o brinquedo na educação de crianças
pequenas e a implicação destes mesmos discursos e práticas na consti-
tuição das identidades dos sujeitos infantis.

Buscando finalizar o jogo

Faço parte da primeira geração em minha família a freqüentar o


jardim de infância. No final dos anos 40 este tipo de atendimento era
encontrado em umas poucas escolas em Porto Alegre. A escolhida por
meu pai e minha mãe era freqüentada por crianças de uma camada mé-

218 • Estudos Culturais em educação


dia emergente, filhos/as de profissionais liberais, de comerciantes de porte
médio, de alguns funcionários públicos e eventualmente de militares. Afinal,
pai e mãe, filho e filha de pais estrangeiros, tinham alcançado uma esco-
laridade bastante acima daquela de seus pais e o sonho de ascensão so-
cial se fazia presente nas suas aspirações para seus filhos e filhas. A
escola constituía uma marca das oportunidades diferenciadoras e ofere-
cê-la desde cedo, um privilégio que precisava ser garantido mesmo que se
abrisse mão de outros "investimentos'1. Essa educação infantil que surgia
e se disseminava na cidade era considerada um indicador de modernidade
e estava impregnada de uma visão da "pedagogia científica", que come-
çava a imperar nos cursos de formação de professoras, dando destaque à
idéia de que a infância era uma idade com características únicas, que de-
mandava uma forma apropriada de intervenção para fazer "desabrochar"
as condições naturais de cada criança. E não por acaso, tal experiência
ocorria em um jardim da infância8
Nesta época, ainda se pensava na maioria dos lares que o lugar de
crianças era junto das mães, educadoras "naturais", abnegadas, dedica-
das exclusivamente à sua prole — uma característica que parecia lançar
dúvidas sobre os reais objetivos daquelas outras que abriam mão deste
"sagrado dever" para delegá-lo à pré-escola, justificando a necessidade
de a criança freqüentá-la como uma oportunidade de socialização fora
dos limites estritos de sua casa/vizinhança e como uma preparação para
as exigências da escolarização primária que viria a seguir.
Nesse jardim de infância, voltado para as questões da sociabilida-
de, da religião e da moralidade, das habilidades consideradas necessári-
as para a alfabetização, mas também da história infantil, do desenho, da
dramatização, da "hora de arte", dos jogos e das brincadeiras de roda e
das cantigas tradicionais, vivi um ano da minha vida, de modo bastante
informal, aprendendo especialmente em atividades de caráter lúdico,
antes da entrada no então curso primário.
Ao fazer o contraponto entre a minha infância e a de meus filhos,
do surgimento das primeiras oportunidades de educação infantil à sua dis-

8
Os jardins de infôncia -Icindergaríen- surgem com Froebel, na Alemanha, no final da
primeira metade do século XIX. Constituem uma expressão da tendência romântica na edu-
cação. Fundamentam-se nos princípios do liberalismo e na defesa de uma educação infan-
til que favoreça o desenvolvimento natural da criança. Enfatizam a importância da ativida-
de da criança e a orientação para o prazer e a ludicidade, no cotidiano dessas instituições.

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 219


seminação inconteste, quero assinalar que a estratégia de historicizar as
experiências pessoais nos aponta as marcadas diferenças entre um e ou-
tro momento, com suas condições de possibilidade particulares, no que
reconheço de forma inegável que as significações acerca das mesmas
mudaram de forma dramática no espaço dos últimos cinqüenta anos (e
aqui eu incluo o momento presente). Este reconhecimento, no entanto,
me leva a perceber que historicizar as práticas supõe a possibilidade con-
comitante de colocar em questão os objetos destas mesmas práticas pe-
dagógicas, os sistemas de idéias que lhes dão sustentação e os seus mais
caros significados.
O que pretendo interrogar, apoiando-me nas perspectivas abertas
pela crítica pós-estruturalista no campo da educação, é que efeitos os sig-
nificados atribuídos aos brinquedos e ao brincar pela literatura pedagó-
gica acabam por imprimir às práticas a eles relacionadas, na educação
das crianças pequenas. Minha posição é a de que as concepções aí pre-
sentes, que vêem o brinquedo de forma naturalizada, têm servido à fixa-
ção de determinados sentidos para ele, os quais têm se tomado hegemô-
nicos na condução das práticas pedagógicas.
O que a teorização social pós-modema/pós-estruturalista tem apon-
tado é o caráter precário dos significados por nós tomados como incon-
testes. Destaco neste caso, como exemplo, em função do objeto do pre-
sente trabalho, a idéia de infância e das teorias relativas ao desenvolvi-
mento infantil, como dados atemporais, válidos para todas as culturas e
grupos sociais, que têm o poder de falar a verdade sobre o que é ser cri-
ança e sobre os processos que com ela ocorrem, nesta etapa de sua vida.
E busco, para reforçar, o argumento de Usher e Edwards (1994) sobre a
psicologia, que tem relação com os temas que acabei de referir:

A corrente principal da psicologia está (...) localizada no discurso da ci-


ência, um discurso que fala da descoberta de leis gerais pelo uso do méto-
do científico, uma instância objetiva e um conjunto de regras universais
para alcançar o verdadeiro conhecimento do mundo humano. Isso possi-
bilitou que se gerasse um certo tipo de conhecimento e talvez, de modo
especial, sua aceitação como uma disciplina com pretensão de respeitabi-
lidade científica, (p.39)

Ao fazer esta minha análise, voltada fundamentalmente para a ques-


tão do brinquedo, penso que se toma importante examinar três conceitos

220 • Estudos Culturais em educação


correntes associados ao brinquedo/brincar, no intuito de por em questão
algumas de minhas convicções, interrogando velhas certezas e procuran-
do sitiar algumas tradições que têm impedido a mim e, eu acredito, à lei-
tora e ao leitor de transpor os efeitos de algumas compreensões das prá-
ticas pedagógicas da educação infantil. São eles o conceito de sujeito
lúdico, associado às crianças, a idéia de liberdade e, por extensão, de
não intervenção nas práticas do brincar/jogar.
Com relação ao primeiro, quero afirmar, de saída, que não nego o
fato indubitável de que as crianças brincam (mas os adultos também o
fazem). O que não posso afirmar, no entanto, é que brincar esteja dispo-
nível na mesma medida para todos, tanto em oportunidades de tempo
quanto de possibilidades (o que pode ser claramente deduzido de meus
relatos ou de quantas observações se possa fazer nos ambientes freqüen-
tados por crianças). O que não se pode negar é que tanto o brincar quan-
to os brinquedos mudam, recebem diferentes tratamentos (assim como
o sujeito que neles age ou com eles interage). A disponibilidade de tem-
po para eles varia, pois, nos diferentes ambientes que as crianças freqüen-
tam e nas diversas formas de tratamento que a eles (os brinquedos) dis-
pensam os adultos. Creio que podemos coincidir em que a possibilidade
de brincar nem sempre está disponível, nem é igual para todos e não cons-
titui, a meu ver, uma característica que se relaciona apenas e mais espe-
cialmente com as crianças. E, mais do que tudo, que passar a compreen-
der a criança como um sujeito que brinca constituiu uma das tantas for-
mas de produzir uma subjetividade nova — no marco da constituição de
um estatuto para a infância — aquela de um sujeito infantil, diferencia-
do do adulto.
O que pretendo mostrar é que esta característica de ludicidade é as-
sociada à infância apenas muito recentemente e que está ligada de forma
indelével à constituição de um arcabouço teórico que pretendeu constituir
saberes sobre o humano. As ciências humanas, neste afa, passaram a con-
ceber o desenvolvimento dos indivíduos como fruto de um processo natu-
ral e progressivo, que podia ser explicado a partir da Biologia. Brincar se-
ria um atributo da natureza infantil, para distingui-la de formas peculiares
de comportamento adulto, que excluiriam esta possibilidade.
A Psicologia do Desenvolvimento e a Psicanálise tiveram papel cru-
cial no estabelecimento e na consolidação destes significados e muitos
experimentos pedagógicos constituíram fontes de registro e observação para

Criança c brinquedo: feitos um para o outro? • 221


reforçar ou redirecionar os discursos "científicos ' dessas áreas de conhe-
cimento. O jogo se tornaria um lugar para a observação e a normalização
da crianças, daí sua importância como dispositivo pedagógico;

Tudo o que é necessário, pois, é que à criança sejam dadas as condições


para uma atividade espontânea. É a observação, o monitoramento e acima
de tudo, a normalização da seqüência e dos efeitos do desenvolvimento
que se tomam o dispositivo pedagógico central. (Walkerdine, 1998, p. 182)

Michel Foucault nos ajudou a compreender que o sujeito não é uma


entidade ou participa de uma essência que lhe foi dada com anterioridade.
Ao recusar estas idéias, ele afirmava que o sujeito é produzido nos signos,
nas narrativas, nas ficções e fantasias que constituem o mundo social.
Associada à invenção da categoria "infância", também se inven-
taram formas de intervenção social, responsáveis pelo seu controle e re-
gulação. Assim, os saberes e os instrumentos pedagógicos têm um cará-
ter estratégico. Pode-se entender, neste registro, que as operações que
passam a conceber a criança como "aprendiz" e que prescrevem os mei-
os ou os instrumentos para garantir a formação do sujeito racional, nada
mais são que: "estratégias relacionadas às práticas do Estado, implica-
dos em sistemas de regulação, associados à noção moderna, científica,
de formação do cidadão racional" (Bujes, 1998, p. 18). Portanto, o sujei-
to lúdico a que me referi mais acima é uma ficção criada por essas práti-
cas de regulação. Uma ficção que tem efeitos materiais marcantes nos
corpos dos sujeitos que interpela.
O segundo tema que quero colocar em discussão nesta análise fi-
nal é a idéia de liberdade associada ao brincar, O domínio da brincadei-
ra constituiria um espaço dc liberdade; espontâneo, criativo, prazeroso.
"Sob pena de alterar e destruir o espírito do brinquedo é necessário dei-
xar à criança o máximo de liberdade de escolha em suas atividades lúdi-
cas" (Vial, 1981, p. 194).
As teorias de cunho psicanalítico advogam que o brincar/jogar
constituiria fator de equilíbrio da personalidade, uma necessidade vital.
A educação não poderia, assim, ignorar a importância destas ativida-
des, especialmente na infância, tanto no lar quanto na escola: "de fato,
no limite, poderíamos dizer que nas chamadas instituições pré-escola-
res, tudo é educativo por espírito, tudo é, por natureza, brinquedo/jogo"
(Vial, 1981, p.173).

222 • Estudos Culturais em educação


Em um certo sentido, estas concepções criariam para as instituições
escolares um dilema frente ao binômio jogo/desenvolvimento infantil; o da
necessidade de não intervenção, dada a "naturalidade" de tais processos.

A ciência descobriu que o desenvolvimento da mente e da espiritualida-


de é parte do plano da natureza para o ser humano e, conseqüentemen-
te, que elas se desenvolvem tão naturalmente quanto ossos e músculos
Descobriu-se que elas são governadas por suas próprias e naturais leis
as quais, quando não sofrem interferências e ficam livres, conduzem o de-
senvolvimento a planos muito mais altos do que quando são paralisadas
pela interferência humana (de Lissa, citado por Walkerdine, 1998, p. 185).

A partir destas referências, se toma mais fácil entender a defesa


dos princípios de não intervenção associados à atividade lúdica que pre-
ponderam na maioria dos discursos oriundos da área da psicologia. Estes
discursos têm reflexos que podem ser claramente detectados nas teorias
do desenvolvimento que apresentam as etapas do jogo/brinquedo como
uma sucessão natural que leva a um aperfeiçoamento da atividade men-
tal, dadas certas condições de livre exploração pela criança de materiais
e de situações instigadoras. Já dizia Piaget que o que se ensina a uma
criança ela não pode mais, por ela mesma, descobrir ou inventar.
Segundo de Lissa (citado por Walkerdme, 1998), o jogar/bnncar não
seria apenas uma atividade natural da criança mas uma "indicação" da
normalidade de seu desenvolvimento e de sua saúde mental e emocional,
É interessante apontar, no entanto, em que pese a defesa da autora da
não intervenção (vide citação anterior), sua afirmação de que "toda pro-
fessora de creche deveria continuamente vigiar suas enanças no jogo e
fazer algum registro disso (...)[o que lhe permitiriaj compreender quan-
do e como é preciso intervir e quando é preciso deixá-la sozinha" (Lissa
citado por Walkerdme, 1998, p. 192-193). O exercício continuado da ob-
servação também guiaria, segundo a citada autora, a escolha dos brin-
quedos e dos materiais mais adequados a cada fase do desenvolvimento
O conhecimento da psicologia constituiria, então, o ftmdamento
para a definição de estratégias pedagógicas; ele forneceria os elementos
para que estas fossem eficientes e racionais.

Através do estado e de outras formas institucionais como a educação, a


psicologia regula cm nome da ciência, racionalidade e eficiência. Associ-
ada como está à grande narrativa do "progresso", a psicologia toma-se

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 223


um poderoso mecanismo regulatório através de sua promessa de uma me-
lhoria da condição humana. (Usher e Edwards, 1994, p.39)

É difícil, portanto, aceitar um caráter não intervencionista para a


pedagogia e para as suas estratégias. Mesmo quando prega explicitamente
a não intervenção, a pedagogia moderna de base psicológica, que visa
promover o desenvolvimento sadio, tratando as crianças numa perspec-
tiva de liberdade e individualidade, apóia-se na idéia de classificação,
observação e monitoramento das seqüências de desenvolvimento. As
narrativas que privilegiei ao início deste trabalho, rememorando o trata-
mento dado ao brinquedo/brincar tanto nas condutas maternas quanto nas
práticas das instituições, são indicativas de práticas intervencionistas a
despeito de qualquer defesa em contrário que se queira fazer.
O que fica sempre elidido nos discursos sobre o pedagógico é o
papel produtivo das práticas pedagógicas, seu caráter ativo na produção
de certos tipos de subjetividade. Em certo sentido, ao serem concebidas
como instrumentos mediadores, neutros, atemporais, as práticas cultu-
rais como as relacionadas com os brinquedos, por exemplo, deixam de
lado compreensões de como operam na construção de nossas identida-
des, de como constróem nossos modos de pensar:

Constituída no marco iluminista, que concebe o conhecimento e o saber


como fonte de esclarecimento, libertação e autonomia, a pedagogia é vis-
ta como instmmento ou mediação para a libertação dos sujeitos do jugo
opressor de estruturas injustas e massificadoras e não como tecnologia para
individualizar e normalizar sujeitos, num processo de constituição de iden-
tidades pessoais e sociais, processo este de punho eminentemente políti-
co. (Bujes, 1998, p. 18)

Guarda, guarda, guarda, bem direitinho...9

Com efeito, o jogo que, às vezes, pode ser uma escola de conformismo
social, de adaptação estrita a situações dadas, também pode se tornar um

9
Este verso, parte de uma canção associada às rotinas de creche e pré-escola, constitui
o apelo ou o chamamento das professoras para que as crianças finalizem as atividades
de jogo ou brincadeira, devolvendo os materiais utilizados aos seus lugares de origem.

224 • Estudos Culturais em educação


espaço de invenção, de curiosidade, de experiências diversificadas, por
menos meios que a sociedade ofereça à criança. (Brougère, 1998, p.208)

Como já afirmei antes neste texto, é evidente que as crianças brin-


cam, seja por iniciativa própria, seja porque são incentivadas pelos ob-
jetos postos à sua disposição; elas brincam a despeito das limitações que
o ambiente social possa lhes impor. Evidentemente acontecem coisas com
as crianças nos intervalos dedicados ao brinquedo, em momentos dife-
rentes de sua infância.
O que quero trazer à discussão não é o fato de que o brinquedo
seja uma prática usual entre os humanos, mas as explicações hege-
mônicas que se constituíram sobre este fenômeno. Explicações estas
que se erigem como narrativas únicas, abrangentes, que pretendem
dar conta das diferentes manifestações do processo de brinquedo/jogo,
que o vêem como fator de normalidade, vida saudável, criativa, bem
ajustada. Narrativas que se constituem a partir do pressuposto de exis-
tência de um sujeito psicológico/sujeito epistêmico universal, ao qual
as ações de brincar e jogar serviriam de suporte nas diferentes etapas
de desenvolvimento cognitivo e emocional. Este sujeito, uma abstra-
ção, serviria de paradigma para o que ocorre no nível do desenvolvi-
mento individual. Com base nestas narrativas, erigiu-se um senso
comum que não apenas tem servido como discurso explicativo de
como devem decorrer e ser conduzidas as práticas lúdicas, mas tam-
bém do que pode ser tomado como normal e desejável nas condutas
dos sujeitos nelas envolvidas.
Como as experiências narradas neste trabalho pretendem ter ilustra-
do, as práticas de jogo/brinquedo carregam pressupostos sobre a aprendi-
zagem e o ensino que se baseiam em construtos teóricos da Psicologia do
Desenvolvimento. Desses pressupostos decorrem tanto as condutas ma-
ternas que descrevi antes neste texto — em que os brinquedos servem como
instrumentos privilegiados de desafio intelectual aos seus filhos/as — quan-
to as práticas institucionais, nas quais o acesso aos brinquedos (ou aos seus
sucedâneos) têm um tratamento inteiramente diferenciado.
Ao examinar as práticas de jogo e brinquedo, a partir de outra pers-
pectiva, considero que os sujeitos ao se constituírem enquanto tal, têm
suas identidades forjadas nos discursos e práticas que constituem o mundo
social e cultural e que estes discursos e práticas operam politicamente

Criança e brinquedo: feitos um para o outro? • 225


para regular subjetividades e relações sociais, articulando formas parti-
culares de diferenças (Luke, sd).
O que pretendi mostrar é que as necessidades induzidas pela mídia,
as oportunidades de consumo, os recursos diferenciados da classe mé-
dia, as pretensões intelectuais deste mesmo segmento e, certamente, seu
desejo de status e domínio político operam de forma diferenciada, quan-
do se trata de por à disposição de seus filhos os instrumentos que os
posicionam nas ordens simbólicas de conhecimento e poder.
Por outro lado, não fica difícil perceber, também, que os arranjos
espaciais no interior de creches e pré-escolas para as classes populares
(as altas prateleiras, por exemplo), o tempo destinado às atividades lúdi-
cas (é hora do trabalhinho!), os próprios brinquedos postos à disposição
ffcs crianças (tantos caminhões sem roda, tanta boneca sem cabeça!), todo
o aparato de controle e regulação de tais atividades (que também ocorre
para as outras classes sociais, mas de modos peculiares em cada uma)
constituem formas diferenciadas de exercício de poder e, implicam, por-
tanto, diferenciadas formas de saber (Varela, 1995), o que implica, por
certo, na formação de diferentes tipos de subjetividade.
Como fica explicitado em Hall, (1997):

Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação


social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a
observam: não em si mesma mas em razão dos muitos e variados sistemas de
significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as
coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos
outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações.

Meu argumento é de que as práticas sociais e culturais relacionadas


com os brinquedos/brincar se constituem em eficientes locais pedagógi-
cos nos quais as crianças realizam importantes aprendizagens. Locais onde
moldam suas identidades, onde constróem seus modos de pensar. Os brin-
quedos e as brincadeiras, portanto, são parte daquilo que Shirley Steinberg
(1997) denomina "pedagogia cultural", com seu correlato "currículo cul-
tural", responsáveis tanto pela constituição das identidades quanto pela
legitimação do conhecimento, não importando onde as experiências rela-
cionadas com eles possam ocorrer. Como qualquer prática cultural, aque-
las relacionadas com as atividades lúdicas tomam-se espaços no interior
dos quais os indivíduos compreendem a si e ao mundo.

226 • Estudos Culturais em educação


Neste sentido, parece adequado conceber as práticas discursivas relaci-
onadas ao brinquedo e ao brincar como espaços públicos onde diferentes inte-
resses sociais, econômicos e políticos competem pelo controle e pela imposi-
ção de significados, retirando a estas práticas qualquer pretensão à neutralida-
de ou à ingenuidade. Se o imaginário é concebido como o domínio das ima-
gens, das fantasias e das identificações e está implicado de forma visceral na
constituição da subjetividade, se é no terreno da linguagem e da cultura que
ocorre o processo que institui o sujeito, não se pode negar que as práticas cul-
turais associadas ao brinquedo não têm nada de gratuitas e que precisamos nos
tomar mais atentos aos seus interesses e compromissos.
Os brinquedos, enquanto elementos da vida social que se configu-
ram com determinados sentidos para as crianças, oferecem oportunida-
des para que elas percebam a si e aos outros como sujeitos que fazem
parte do mundo social, e acabam por se constituir em estratégias através
das quais os diferentes grupos sociais usam a representação para fixar a
sua identidade e a dos outros.

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228 • Estudos Culturais em educação


Capítulo 9

A Biologia tem uma história

que não é natural

Luís Henrique dos Santos

A articulação

A articulação conhecimento biológico e pesquisa em educa-


]
ção se constitui em um tema bastante amplo e vem sendo discutido a
partir das mais diferentes vertentes, com ênfases epistemológicas, fi-
losóficas, históricas, culturais etc. Seguindo cada uma dessas ênfases
toma-se possível contar/narrar diferentes histórias que podem ir com-
pondo diferentes entendimentos para tal articulação. Algumas dessas
vertentes, mais próximas às ciências de origem, ou empreendidas pe-
los próprios cientistas/metodológos-praticantes2 da ciência acabaram
por adquirir maior visibilidade e legitimidade, precisamente, por "imita-
rem" o status de cientificidade da ciência que lhe dá origem.

1
Este texto, em uma forma muito preliminar, serviu como base para minha apresentação
no Wokshop "Estudos Culturais, conhecimento biológico epesquisa em educação", re-
alizado na Faculdade de Educação da UNICAMP, em outubro de 1998, como um dos
trabalhos do III Congresso Aberto aos Estudantes de Biologia.
2
Entenda-se todos/as aqueles/as profissionais que, sejam cientistas ou não, escrevem,
publicam, apresentam propostas, projetos, metodologias etc., acerca de como se deve
ensinar ou como se aprende ciências na escola ou em instituições de pesquisa.

A Biologia tem uma história que não é natural • 229


Essa idéia de "imitação" toma-se interessante para entender os cri-
térios, os métodos e as didáticas3 próprias às ciências, que são transpos-
tos para a área da educação ou do ensino de ciências por aquelas pesso-
as que trabalham em atividades científicas nas instâncias de pesquisa.
Meu argumento vai na direção de considerar que as normatizações acer-
ca do ensino de ciências estabelecem-se como "especificidades" (Wort-
mann, 1998), ou como histórias que se contam sobre a(s) ciência(s), que
são feitas a posteriori, e que, portanto, se constituem em uma narrativa/
invenção que se constrói acerca de como a ciência (de origem) opera.
Além disso, é necessário também dizer que essa narrativa não guarda
nenhuma relação direta com aquilo que acontece no laboratório, ou na
prática de pesquisa, a não ser o fato de ser uma história que organiza e
dá sentido àquilo que se entende como ciência. Em outras palavras, es-
tou enfatizando o papel constituidor da linguagem na produção tanto
daquilo que se entende como ciência, como daquilo que se entende por
seu ensino. Tal ênfase se faz necessária para explicar o argumento da
imitação: os cientistas partem de uma suposta leitura da realidade do
mundo, constróem narrativas que dão sentido às suas descobertas... Es-
sas narrativas, entendidas como verdades do mundo, são imitadas no pro-
cesso de ensino da(s) ciência(s), conferindo, portanto, legitimidade a ele.
Fundados nesses pressupostos de imitação da ciência, grande parte
dos trabalhos iniciais na área de ensino de ciências dedicaram-se a "tra-
duzir" para a escola versões simplificadas dos procedimentos metodo-
lógicos4 consagrados pela prática da ciência normal5 (Santos e Ama-
ral, 1997). Junto à essa tradução/imitação havia (e há) a crença de que
a ciência seria (é) o privilegiado meio de "desvelar a realidade" do mun-

3
Talvez o termo 'didática' não seja o mais adequado já que poderia sugerir a existência
de uma didática intrínseca às ciências. Isso vai na contramão do argumento que pretendo
desenvolver, que entende que há um certo conjunto de discursos que, a posteriori, dida-
tizam — isto é, refazem os caminhos percorridos — a ciência.
"O que não significa que fossem só procedimentos metodológicos, junto a eles está todo
um conjunto de teorizações que dá ordem e sentido a eles.
5
O fato de eu usar o termo ciência normal não significa que haja uma ciência que, como
contraponto, seja anormal. O uso destes termos está fora deste registro usual do que en-
tendemos como normal ou anormal. Utilizo tais termos a partir da designação que lhes
atribui Kuhn (1971), que entende a ciência normal como a ciência pautada em grandes
realizações do passado.

230 • Estudos Culturais em educação


do. Como meio indiscutível de "desvelamento" do mundo não é de se
estranhar que a escola tenha adotado de forma irrestrita e acrítica as
especificidades ditadas por aqueles que estavam (e estão) fazendo ci-
ência. Nesse sentido, se investem de maior poder explicativo, para di-
zer como deve ser o ensino de ciências, precisamente, aquelas propos-
tas que se fundamentam nas ciências de origem (química, física, bio-
logia— as ditas hardscienceslúèncieis duras). Tais propostas ganham
legitimidade no campo do ensino em ciências, justamente, por se
constituírem em traduções/imitações das ciências de origem. Elas não
só "transferem" os conhecimentos "mais corretos", dando portanto, de
forma acabada, os conceitos, como, junto com isso, estabelecem o que
é verdadeiro e o que é falso no mundo e na ordem social, o que éfato
e o que é ficção, o que é ciência e o que não é, quais conhecimentos
são válidos e quais não são etc. Desta forma, como já se pode perce-
ber, tais propostas não trazem consigo somente as questões que dizem
respeito ao conhecimento "neutro", "verdadeiro", "sem intermediações"
e sem as "crenças" das pessoas que fazem as ciências. Antes, procuro
argumentar que através de seus currículos, essas propostas produzem
com suas narrativas tanto a(s) ciência(s) como os sujeitos que as pro-
duzem; essa maneira de apresentar, isto é representar a(s) ciência(s) e
o seu ensino, por sua vez, "impede-nos" de construir outros caminhos
explicativos para compor o mundo, bem como outros caminhos para que
se possa entender/constituir o que deve ser tema de estudo na sala de
aula e o que se deve entender como ciência.
Assim, cabe dizer, é ilusão acreditarmos que teremos acesso, atra-
vés de um modo (regime) de olhar, seja ele científico ou não, a todas as
verdades, eventos etc., desse mundo. São, como refere Veiga-Neto (1996,
p.27), "os olhares que colocamos sobre as coisas que criam os proble-
mas do mundo". Tais verdades estão em nossos olhos, ou melhor, encar-
nadas em nossos corpos, porque interpelados por tais discursos nos cons-
tituímos de uma dada forma e não de outra... Estamos encarnados pelo
próprio poder que percorre tais narrativas, portanto, questionar a ciên-
cia, ou o seu ensino, passa também por questionar a nós próprios, seus
sujeitos de encarnação.
Com essas colocações pretendo ir afastando-me de uma linha de
pensamento que possa ver o conhecimento biológico como algo inques-
tionável, cujas dificuldades de explicação e de solução para as suas per-

A Biologia tem uma história que não-é natural • 231


guntas, até então sem respostas, diriam respeito a uma questão de tempo
para o desenvolvimento do progresso científico e tecnológico (que se daria
por acúmulo), para me aproximar de uma idéia de conhecimento biológi-
co que vê o mundo como uma grande invenção, estabelecida em profun-
das e intricadas redes de poder e interesse, nas quais o conhecimento é
produzido não porque há uma "vontade" dos/as cientistas para que isso
aconteça, mas porque há interesses políticos e econômicos, há diferen-
tes idéias sobre o mundo, sobre o que deve ser investigado, sobre o que
é saúde e o que é doença, sobre o que é prioridade para determinadas
parcelas da humanidade, sobre quem deve ser investigado/a, entre tan-
tas outras questões. Em outras palavras, quero discutir o conhecimento
biológico como um conhecimento inscrito na política cultural, cujas "di-
ficuldades", em termos de ensino em sala de aula e nas questões que en-
volvem a pesquisa em educação e biologia, não se encontram em uma
melhor adequação de conteúdos, no estabelecimento de outras hierarquias
de aprendizagem, tampouco em quais métodos de aprendizagem devem
ser seguidos.
Na contramão dessa perspectiva — embora marcado por ela —
pretendo falar no conhecimento biológico como um conhecimento inte-
ressado que, nos dias de hoje, vem traçando, através de suas novas e atu-
alizadas narrativas6, fronteiras muito claras entre os sexos, as diferentes
orientações sexuais, o que se entende por raças, entre o que é um corpo
saudável e o que um corpo doente, entre o que é natural e o que é natura-
lizado etc. E tais coisas estão sendo feitas, precisamente, em nome de
uma ciência biológica que, segundo alguns entendimentos, não pode parar
de avançar, cujo desenvolvimento é tido como uma conseqüência natu-
ral de eventos, na qual aquilo que alguém deixar de fazer — por exem-
plo, por uma questão ética — , outro/a poderá fazer, porque a ciência é
entendida como "neutra", como "reveladora legitimada do mundo", ten-

6
Entendo por "narrativas" a continuidade de determinados padrões/histórias contadas
a partir de um determinado campo, o da biologia, por exemplo. Tais narrativas, mesmo
quando as formas de abordagem, os modos de entendimento, os instrumentos de investi-
gação etc., são modificados, permanecem contando/narrando uma mesma história que
se atualiza, se engata e faz sentido em uma trama de significados. A questão das diferen-
ças entre as raças é uma dessas narrativas, contadas não só pela biologia, mas fazendo
conexões em outros campos; sumariei tais questões em outro texto (Santos, 1998, p.167).

232 • Estudos Culturais em educação


do, portanto, compromisso com uma verdade — que já estaria no mun-
do. Ao procurar afastar-me de tal perspectiva, busco filiar-me a autores
e autoras como Haraway (1989, 1991 e 1997), Latour (1994), Lenoir
(1997) e outros/as, os/as quais acredito estarem questionando o lugar de
verdade "dado" à ciência. Para Latour (1994), por exemplo, a ciência nada
mais é do que a política por outros meios, devendo a mesma ser entendi-
da como uma produção cultural entre outras. Entendê-la de tal forma sig-
nifica portanto questionar as relações de poder que a constituem e lhe
dão uma "consistência" natural, um "aspecto" de verdade. A biologia tem
— como pretendo aqui mostrar — uma história que não é natural.
Obviamente, estou procurando discutir a disciplina biologia, deno-
minada há alguns anos atrás de história natural. Não é sem problemas que
faço isso, já que a biologia adquire especificidades que são diferentes da-
quelas atribuídas à história natural, Meu objetivo, porém, é usar como mote
(ou recurso narrativo) para essa discussão o termo natural como algo que
já estaria no mundo. Nesse sentido, estudar biologia, ou história natural,
seria ouvir as histórias (que acontecem no mundo mesmo) que teriam sido
apenas traduzidas/interpretadas pelos naturalistas/biólogos.
Feitas essas considerações toma-se possível, então, falar acerca de
minha intenção em apresentar alguns elementos de um campo que tem se
mostrado profundamente produtivo ao olhar que podemos lançar à biolo-
gia, (re)contando algumas histórias/narrativas já há muito estabelecidas
como verdadeiras por uma tradição de ciência que insiste em dizer, em
descrever, como já referi, o mundo tal como ele é mesmo (Veiga-Neto, 1996,
p.20). Em outras palavras, que o mundo é aquilo lhes define um nome, um
conceito... Tal campo, o dos Estudos Culturais, ao articular-se com conhe-
cimento biológico epesquisa em educação permite, então, que se olhe de
uma forma diferente para esses dois últimos. Para falar de Estudos Cultu-
rais, bem como para poder articulá-lo a esses outros campos quero anun-
ciar três questões que pretendo, ao longo deste texto, discutir. Elas são: que
são Estudos Culturais? Que significa ligar os Estudos Culturais a essa
temática do ensino de ciências, especificamente de biologia? Que altera-
ções traz, esta ligação, para a sala de aula ')
Pretendo abordar essas questões falando um pouco mais detidamen-
te sobre o que são Estudos Culturais, traçando algumas considerações so-
bre sua história, mas também caracterizando-o nas exemphficações que
darei adiante. Ao fazer isto estarei, já, apresentando elementos que podem

A Biologia tem uma história que não é natural • 233


ir respondendo à segunda questão. Para responder à terceira, no entanto,
procurarei mergulhar no risco necessário que é fazer uma reflexão/aná-
lise que fale de minha própria trajetória como biólogo, que atuou junto ao
GEMARS7, e de minha prática docente como professor de ciências e bio-
logia, mas mais especificamente, incorporando estas trajetórias à minha
(curta) experiência como professor de Prática de Ensino em Biologia . E
faço tais ressalvas porque, caso estivesse em outro referencial, talvez fos-
se necessário "realmente" comprovar minha experiência nesse campo,
demarcando metodologias utilizadas, objetivos gerais e específicos, refe
renciais de análise, resultados etc., mas penso que este não é o caso dos
Estudos Culturais. Não porque esse campo possa se configurar como qual-
quer coisa, ou porque tudo que venhamos a fazer de diferente possa ser
abarcado sob esta rubrica, mas porque essas não são preocupações perti-
nentes aqui. Quando se fala a partir dos Estudos Culturais fala-se sempre
de um lugar, de uma perspectiva situada, da qual faz parte dizer de nossos
envolvimentos, posições e identidades. Por outro lado, posso dizer, é um
risco necessário porque, como uma forma de avaliação, as práticas de sala
de aula, as noções de conhecimento, enfim, a biologia precisa ser pergun-
tada quanto àquilo que está produzindo.

Que são Estudos Culturais?

Apesar de os Estudos Culturais escaparem às definições, constitmn-


do-se como "um campo interdisciplinar, transdisciphnar e algumas vezes
anti-disciplinar" (Nelson, 1995), que se ocupà de discutir as questões cul-
turais das sociedades industriais modernas, é possível traçar pelo menos
dois "indicadores" que podem nos situar nas movediças fronteiras desse
campo. Um deles é, como refere Tony Bennett (citado por Nelson, 1995),
o compromisso de examinar práticas (e eu diria também, representações)
culturais do ponto de vista de seu envolvimento com, e no interior de, rela-
ções de poder. Em outras palavras, isso significa que tanto as pessoas en-

7
Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul, fundado em 1991,
que trabalha na pesquisa e conservação de mamíferos aquáticos.
8
Na Faculdade de Educação da UFRGS, no período compreendido entre março de 1998
e fevereiro de 1999.

234 • Estudos Culturais em educação


volvidas em pesquisas nesse campo precisam se questionar, constantemente,
quanto a posição que ocupam ao se situarem no lugar de quem tem auto-
ridade para falar sobre o grupo ou sobre a situação investigada, quanto os
professores e as professoras em sala de aula, ou não, de avaliarem as suas
práticas cotidianas. Significa, também, prestar atenção ao que se está pri-
orizando. ao tipo de conhecimento com o qual se está lidando, a quem se
está falando, enfim, e em outras palavras, significa questionar em que nar-
rativas se está imerso para ensinar e aprender biologia.
Um segundo indicador importante em um estudo cultural é justa-
mente aquilo que se entende por cultura. Ela tem se tomado central nas
análises que procuram discutir os modos pelos quais os diferentes gru-
pos tomam significativas as suas práticas cotidianas. Nesse sentido, a
cultura vem adquirindo um significado bastante distinto daquele que lhe
era atribuído nas análises realizadas em outros campos; ela deixa de ser
encarada como decorrência de processos econômicos e políticos para ser,
também considerada como constitutiva do mundo social tanto quanto
estes processos (Du Gay, 1997, p.2) - também entendidos como cultu-
rais. O viés dicotômico — alta (música clássica, obras de arte consagra-
das, literatura dos grandes nomes etc.) e baixa cultura (música popular,
grafites, videoclipe, arte moderna, literatura de folhetim, instalações etc.)
deixa igualmente de fazer sentido nessa perspectiva, já que cultura,
aqui, passa a ser entendida como todas as práticas culturais que, pelo
partilhar de determinados "códigos", dão sentido às coisas do mundo. Tal
entendimento traz consigo a contingência desses marcadores (classe,
'raçaVetnia, nacionalidade, cultura etc.) que acreditávamos estabeleci-
dos A cultura, assim como outros marcadores sociais, não só é cons-
truída ativamente, como os seus significados estão constantemente sen-
do modificados, "traduzidos" através dos usos cotidianos que damos a
cies (Du Gay, 1997, p.2). Afirmar, contudo, a contingência, a historicida-
de, ou a tradução dos significados partilhados em um dada cultura não é
o mesmo que dizer que eles podem ser aquilo que queremos que sejam,
pois, como resume Dyer (1993), estamos sempre conformados pela vi-
são e pela leitura dos códigos/significados aos quais já tivemos acesso e
são eles que nos permitem dar sentido ao mundo.
Traçados esses dois "indicadores", cabe situar brevemente alguma
história do campo dos Estudos Culturais, voltando o olhar especificamen-
te para o campo da educação e da biologia.

A Biologia tem uma história que não é natural • 235


Existem, como apontam Mattelart e Neveu (1997), várias retrospec-
tivas que se propõem a mapear a história dos Estudos Culturais, em seus
mais diferentes campos de inserção. Os autores referem, por exemplo, a
"origem" daquilo que hoje se denomina de Estudos Culturais a uma críti-
ca à pobreza da cultura de massas na sociedade (vitoriana) industrializada
— portanto, aos fins do século passado. Apontam ainda, assim como dife-
rentes autores/as (vide Nelson, 1995), como o marco fimdacional dos Es-
tudos Culturais a criação, em 1964, do Centre for Contemporary Cultu-
ral Studies (CCCS) at Birmighan. Esses autores propuseram-se a reali-
zação de um levantamento crítico acerca da institucionalização dos Estu-
dos Culturais e, para falar dela, contaram algumas "histórias". Entre elas,
cabe destacar, a comparação dos Estudos Culturais com uma pequena
empresa de fundo de quintal que, em menos de quarenta anos, viu várias
"franquias" suas sendo abertas em diferentes partes do mundo, transfor-
mando-se, assim, em uma grande multinacional acadêmica. Em especial,
Mattelart e Neveu (1997) alertam para a fragmentação e a trivialização
dos Estudos Culturais, destacando tanto suas ameaças de esterilidade como
suas potencialidades de análise cultural e engajamento político. Tal críti-
ca é oportuna na medida em que diferentes autores e autoras vêm mostrando
que diversas áreas do conhecimento, departamentos, grupos de estudo etc.,
vêm apenas mudando a denominação de seus campos de atuação — em
função da disponibilidade de verbas para tais estudos, por exemplo — sem,
no entanto, trabalhar "efetivamente" na perspectiva dos Estudos Culturais.
Junto com isso, há uma certa discussão acerca de uma possível despoliti-
zação (Mattelart e Neveu, 1997) dos Estudos Culturais, que estariam, em
função de sua ampla disseminação e das mudanças políticas mundiais com
o conseqüente "enfraquecimento" dos sindicatos, entre outros aspectos, per-
dendo o caráter político que foi sua marca original desde a sua formação
em 64 — as pessoas ligadas à sua formação, em Birmighan, tinham um
claro engajamento com a esquerda.
Segundo Tomaz Tadeu da Silva,9 no campo da educação (pedago-
gia) não há nada, de forma mais específica, sobre Estudos Culturais. Tal-

9
Anotações de aula do seminário avançado Introdução aos Estudos Culturais em Edu-
cação — Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, no segundo semestre
de 1998.

236 • Estudos Culturais em educação


vez, como refere Silva, o que mais se aproxime seja o texto Praticando
Estudos Culturais nas Faculdades de Educação, de Giroux (1995a).
Tal ausência, contudo, (naquilo que entendemos como o campo da edu-
cação/pedagogia) nos remete a um alargamento daquilo que entendemos
como educativo, pois na perspectiva dos Estudos Culturais são educati-
vas todas as práticas, produtos e espaços culturais nos quais o poder se
organiza e se exercita (Steinberg, 1997). Assim, as bibliotecas, os canais
de televisão, os filmes, os documentários, os jornais, as revistas, os brin-
quedos, os anúncios publicitários, os videogames, os livros, os esportes,
os programas de computador etc., são instâncias educativas produtoras
de significados que dão sentido e estabelecem posições e identidades no
mundo social. Steinberg (1997) reúne essas instâncias educativas sob a
denominação depedagogias culturais. Essas pedagogias estão assenta-
das em um currículo cultural "profundamente" tramado à "aquisição"
de identidades através do consumo — que é um dos processos culturais
que merecem destaque em uma análise cultural.10 As análises a partir
desse campo tomam-se ainda mais instigantes quando se constata que
estas "aprendizagens" estão sendo ditadas por uma variedade de dinâ-
micas comerciais que se apresentam como não educativas (Steinberg,
1997) e como inocentes demais para merecerem uma análise política
(Giroux, 1995b).
Assim, nessa perspectiva, práticas, produtos e espaços até então
tidos como "inocentes", como pura diversão, fuga do trabalho e da vida
urbana agitada (assistir televisão, ler revistas em quadrinhos, brincar com
a Barbie etc.), passam a ser analisados como produtores de representa-
ções que regulam nossas vidas. Tais práticas, produtos e espaços por es-
tarem ligados ao prazeroso, ao lúdico etc , estiveram, até recentemente,
no campo da educação, isentas de uma análise que discutisse as relações
de poder que aí se dão. Entretanto, argumenta-se, que é também neste
nível, o do entretenimento, que as pedagogias culturais, através da pro-
dução de significados, nos constituem e nos regulam. Um exemplo inte-
ressante a ser destacado, a partir do trabalho de Amaral (1997), é o da

10
Os demais processos são: a representação, a identidade, a produção e a regulação. Es-
ses cinco processos compõem aquilo que se denomina de circuito da cultura (vide Du
Gayet al., 1997; Hall, 1997).

A Biologia tem uma história que não é natural • 237


produção de representações de natureza pela mídia. A autora discute
como, para vender os mais diferentes produtos (carros, refrigerantes, ci-
garros, roupas, bebidas, equipamentos eletrônicos, peças de automóvel
etc.), os anúncios publicitários se valem de representações de natureza
bastante conhecidas (marcadores, significados circulantes), bem como
produzem outras que nos situam frente ao que é considerado natureza
para nos dizer/ensinar o que é natureza (vide capítulo 6).
A produção da natureza através da mídia é apenas um dos exem-
plos possíveis de análise quando se considera a articulação educação -
biologia - Estudos Culturais. O corpo,11 as sexualidades, as diferenças
entre as "raças", os comportamentos (inatos/biológicos e aprendidos)
animais e humanos, as histórias sobre a Terra e sua formação, a evolu-
ção dos demais seres vivos e de nós (humanos) etc., estão constante-
mente sendo construídos e reconstruídos em um campo de disputas nos
quais não se entrelaçam somente os significados científicos — como seria
de se esperar na narrativa científica hegemônica — , que se revestem
de maior autoridade para enunciar o que conta como verdade (fato), mas,
antes, se entrelaçam "profundamente" naquilo que se entende por cultu-
ra popular (ficção).

Problematizando a Biologia

Como já referido, uma das contribuições dos Estudos Culturais, tan-


to no campo da educação, como no das ciências em geral, é a "desconfi-
ança" de que qualquer um deles seja isento de interesses, esteja apartado
de relações de poder. Essa referida desconfiança permite problematizar as
narrativas hegemônicas sem, no entanto, desejar estabelecer um lugar se-
guro (de verdade) para qualquer uma delas; nem a ciência de tradição é a
detentora de todas as verdades, tampouco os outros conjuntos de práticas
e de discursos, tidos como não-científicos, o são. O importante, aqui, é dis-
cutir quais as relações que se dão entre eles: o quanto de crença, valores,
política etc., têm o conhecimento científico e o quanto "de científico" tem
os outros discursos e práticas. É a partir dessa perspectiva que podemos
tomar as "categorias" biológicas de organismo, corpo, natureza, "evoluí-

u
Vide Santos (1998).

238 • Estudos Culturais cm educação


do/não-evoluído (primitivo)",12 sexo, raça etc., como invenções, como
construções históricas, portanto humanas e contingentes, que são produ-
zidas a partir dos "próprios fatos" (já) imersos em teorias, com valores (já)
carregados de teoria (Haraway, 1991, p. 125).
Nesse contexto em que se fala sobre conhecimento biológico e pes-
quisa em educação é oportuno problematizar uma das "categorias" centrais
na Biologia, aquela sobre a qual se assentam vários conhecimentos profun-
damente estabelecidos no campo biológico, a da classificação dos seres vi-
vos. Tal problematização não deixa de considerar que tal categoria vem so-
frendo modificações a partir das contribuições da genética, da bioquímica,
da biologia celular, da ecologia, da zoologia, da botânica etc. Entretanto, pode-
se argumentar que ela não vem sendo problematizada enquanto uma cons-
trução/produção, empreendida nestes três últimos séculos juntamente com a
construção daquilo que hoje entendemos como Biologia, mas que, antes, vem
se mantendo e atualizando (nas diferentes narrativas) a partir das contribui-
ções dessas diferentes áreas. Em certo sentido pode-se dizer que tais contri-
buições só vieram adensar e ajudar a melhor delimitar o que se entendia por
"organismo" do que, propriamente, perguntar: Como se produz/fabrica um
organismo? A partir de que tramas ele começa a se constituir como um ob-
jeto de investigação? Que materialidades (discursos e instrumentos) o cons-
tituem? Que "limpezas" foram necessárias para que ele emergisse como um
"objeto" da ciência? Entre outras questões que não tenho, aqui, a pretensão
de responder, posto que minha intenção é apenas perguntar sobre coisas que
tomamos como naturais e não-problemáticas — ao menos no que se refere
ao ensino das "categorias" acima citadas.
Como se vê, a partir das contribuições dos Estudos Culturais, aquilo
que tomamos como natural, passa a ser olhado e entendido como cons-
truções que se dão sobre condições instrumentais (Barcellos, 1997, p.30)
— por exemplo, de práticas de coleta, da invenção do microscópio, mo-
delos estatísticos etc., que permitem que se construa o "objeto de inves-
tigação", o "fato", ou a "coisa em si", isolada das outras redes que, jun-
tamente com tais práticas a constróem.
E, além disso, penso que a partir de diferentes autores/as que se si-
tuam no campo dos Estudos da Ciência ou dos Estudos Culturais da

12
E aqui são postos entre aspas porque não sei se, efetivamente, podemos chamar isso
de categorias.

A Biologia tem uma história que não c natural • 239


Ciência, tais como Latour (1994), Haraway (1991, 1992, 1997), Lenoir
(1997a,b), Star (1996) e outros, é possível dizer que isso que entende-
mos como a Biologia, que nos produz como biólogos e biólogas, e que,
portanto, encarna em nossos corpos formas de ser e habitar o tempo e o
espaço e de ver/ler o mundo de um modo bastante particular — que não
é dado somente pela formação acadêmica, mas que se entrelaça nas mais
diferentes narrativas, como, por exemplo, a dos filmes de história natu-
ral (vide Crowther, 1995) — produz seus efeitos de verdade e encontra
sua materialidade no mundo de formas muito contundentes; os organis-
mos estiveram sempre aí desde que se iniciou a vida... Só que parece que
não nos damos conta de que, como um objeto de investigação da Biolo-
gia, os organismos não despontaram do nada, para figurar nas páginas
dos primeiros naturalistas e chegar aos nossos dias "reforçados" de sig-
nificações científicas e depurados de todos as "impurezas" que pudes-
sem situá-los em um mundo que não o científico. Como refere Latour
(1994), "os fatos científicos são como peixes congelados: nunca devem
ficar fora do congelador, por um instante que seja. (...) Tentem compro-
var o mais simples dos fatos, a menor lei, a mais humilde constante, sem
antes conectar-se às diversas redes metrológicas, aos laboratórios, aos
instrumentos" (p. 117).
Como um exercício, ou uma aplicação dessa passagem de Latour,
eu proporia: tentemos pensar em cadeias de DNA, em genes, em estru-
turas virais etc., sem pensar na técnica, na engenharia, no financiamento
de pesquisas, na concessão de bolsas, no uso de cobaias humanas e não-
humanas, no desenvolvimento da indústria químico-farmacêutica, no
desenvolvimento de microscópios, nas disputas de prestígio e poder en-
tre os diferentes países etc. Os conhecimentos não escapam disso e, no
entanto, quando se trata de ensinar o que é um organismo, por exemplo,
continuamos a fazer o recorte daquilo que nos interessa. Alguns dirão,
em contrapartida, que os recortes são necessários e que sem eles não
avançaríamos, pois tramados nos fios das redes que constituem/fabricam
tais "objetos", tais "fatos", tais "coisas" científicas, estamos destinados/
as a isso... O trabalho da ciência tem sido este, o de sempre renovar, to-
talizar e preencher "os buracos vazios deixados pelas redes, transforman-
do-as em superfícies lisas e unidas, absolutamente universais" (Latour,
1994, p. 116). Uma das conseqüências dessa universalização é, possivel-
mente, a própria forma como entendemos o conhecimento: cindido, frag-

240 • Estudos Culturais em educação


mentado. Ao ressaltar isso, no entanto, não estou advogando, em um outro
extremo, por uma totalidade do conhecimento, mas por uma problemati-
zação daquele que temos e que nos é "oferecido" pelas narrativas bioló-
gicas. Se este não é o lugar acerca do qual deve pensar o biólogo ou a
bióloga bem-formado/a — ou seja, aquele/a formado dentro da boa ciên-
cia, que a faz avançar porque não se pergunta sobre o por quê de as coisas
serem do jeito que são... — , penso que este é um dos lugares que os/as
biólogos/as-educadores/as podem e devem ocupar.
Feitas essas considerações retomo às colocações acerca do orga-
nismo, fundadas no trabalho de Haraway13 (1992, p.298), para dizer,
então, que os "organismos não nascem, [mas que] eles são feitos". E,
devo dizer que não foi sem espanto que me deparei com tal afirmação;
além disso, me custou pensar a partir desse registro, que se apresenta
como um exercício constante e necessário para tematizar a Biologia.
Pensava eu: "como pode ela dizer que os organismos não existem?".
Havia aprendido que eles existiam desde sempre, desde o momento em
que surgiu o primeiro ser vivo com capacidade de se reproduzir. Foi com
as leituras que vim empreendendo no campo dos Estudos Culturais, es-
pecialmente dos textos de Haraway, que passei a compreender a idéia
de que o mundo adquire sentido pela nomeação, pela classificação, en-
fim, pelo discurso. Junto com isso aprendi também que aquelas catego-
rias que aprendera como próprias/inerentes à biologia, eram, antes de
mais nada, construções/invenções.
O que Haraway faz é, de certa forma, considerar toda a rede — ou
mais exatamente aquilo da rede que ela consegue ler/suspender — que
produz os conhecimentos, a partir de discursos em disputa. Para Hara-
way, um organismo, ou uma parte deste, não é apenas um "objeto" de
investigação biológica. Ele é também político, econômico, ético; diz res-
peito às pessoas envolvidas com seus sentimentos e valores; diz respei-
to aos/às cientistas e às pessoas comuns.
Mas há também, nessas colocações, algo importante a ser ressalta-
do; quando se fala do organismo como invenção não se está negando sua
materialidade física, sua existência prévia no mundo, anterior à nomea-
ção; o que se busca dizer, entretanto, e que parece um tanto óbvio, é que

13
Tais considerações foram por mim desenvolvidas em um outro momento (Santos,
1998) e foram aqui retomadas com breves modificações.

A Biologia tem uma história que não é natural • 241


os fatos naturais são antes de mais nada discursivos.14 Independentemen-
te dos discursos que constituíram as categorias que classificam e nomei-
am os seres vivos nas construções biológicas, aquilo que chamamos de
"organismo" existe, no que Haraway (1992) define como o "próprio mundo
vivo". Com tais colocações essa autora quer, sobretudo, salientar que
também a categoria "organismo" é construída, como um objeto de co-
nhecimento, por um discurso científico particular e por um coletivo de
atores que fala de lugares e de tempos específicos. Para Haraway, os
organismos são incorporações biológicos, entidades tecnonaturais, e não
plantas, animais, protistas etc., preexistentes, com fronteiras já estabele-
cidas, aguardando apenas o instrumento adequado para notá-los corre-
tamente. "Os organismos emergem de um processo discursivo. A biolo-
gia é um discurso, não o próprio mundo vivo" (Haraway, 1992, des-
taque meu).
Mas o que há de produtivo no trabalho de Haraway é que ela não
discute essas questões isoladamente no campo da biologia, antes, ques-
tiona-a como produtora de significados no campo das diferenças entre
as "raças", entre os humanos e os não-humanos, os homens e as mulhe-
res etc. Também a ciência, o conhecimento, a tecnociência, a sociedade
etc., são analisadas em seu trabalho a partir de um discurso de verdade
muito particular, o da ciência da biologia.
Os marcadores sociais de gênero, raça/etnia, sexualidade, geração,
entre outros, vêm sendo tematizados no campo dos Estudos Culturais com
a intenção de se desconstruir narrativas hegemônicas dadas como naturais
e inevitáveis, a pârtir das quais se vê e se dá sentido ao mundo. Nessa pers-
pectiva, é quase comum referir, por exemplo, que o conhecimento bioló-
gico é masculino/de uma linhagem paterna, branco, e empreendido por
aqueles (homens) que tem valor (moral) e dinheiro.15 E necessário, então.

14
No texto "New reflexions on the revolution of our time" Laclau e Moufee (citado por
Hall, 1997), exemplificam essa questão da seguinte forma, uma pedra existe independen-
temente de qualquer relação social, mas ela se torna um projétil ou um objeto de estéti-
ca contemplativa somente nas configurações discursivas específicas. Segundo esses au-
tores, chamar algo de objeto natural é um modo de conceber que depende de um siste-
ma de classificação, que é histórico e contingente.
15
Para essa discussão em especial vide os textos "En el princípio fue la palavra: la gêne-
sis de la teoria biológica" (Haraway, 1991) e "Teddy Bear Patriarchy: taxidermy in the
Garden ofEden, New York City, 1908-1936" (Haraway, 1989).

242 • Estudos Culturais em educação


se compreender que embora algumas vezes tais questões tenham sido (e
sejam) abertamente discutidas pelas mais diferentes ciências no sentido
de mostrar os "'preconceitos" e os interesse aí colocados, nem sempre elas
são analisadas no que concerne à própria construção do conhecimento bi-
ológico. Em outras palavras, esse conhecimento (por sua tradição, pelas
pessoas que o fazem, pelo método que emprega etc.) tem sido entendido
como completamente imune a quaisquer idéias, valores, interesses, costu-
mes, crenças, políticas etc. Assim, os conhecimentos daí decorrentes que
passassem alguma forma de racismo ou sexismo explícitos, por exemplo,
seriam entendidos como "fruto" de uma má ciência, isto é, de uma ciên-
cia, cujos praticantes não seguiram corretamente os pressupostos científi-
cos. Contudo, várias análises têm questionado esse entendimento e apre-
sentado uma perspectiva diferente de entendimento. Nessa direção se en-
contra, por exemplo, o trabalho de Martin (1992), que estudou como os
óvulos e os espermatozóides, enfim, como a físiologia reprodutiva huma-
na era descrita de forma completamente diferente em homens e mulheres.
Martin ressaltou em sua análise como os óvulos e os espermatozóides eram
descritos (na literatura científica e de divulgação, em filmes científicos
destinados ao ensino e em filmes populares) a partir de características co-
mumente atribuídas em nossa cultura aos homens e às mulheres, assim, os
óvulos eram passivos, grandes, imóveis, enquanto que os espermatozói-
des eram ativos, ágeis, pequenos, velozes etc. Esse exemplo é elucidativo
de como o próprio conhecimento biológico — que se diz descrever a na-
tureza mesma das coisas — está "recheado" de significados que circulam
na cultura popular.

As outras redes de produção

A biologia não está sozinha na produção do mundo, mas suas nar-


rativas dão substrato para diferentes outras narrativas que, se não par-
tem dela, utilizam-se de e se reforçam com seus elementos. Não há tam-
bém uma distinção muito clara que possamos fazer entre o que é "fato"
do mundo (verdade) e o que seja ficção (criação humana); tais distinções
são, aqui, improdutivas. Cada vez se diz mais que essas coisas estão se
misturando, formando híbridos, dos quais vamos perdendo a noção dos
limites que guardam suas fronteiras, a pureza que supúnhamos possuir.

A Biologia tem uma história que não é natural • 243


Nesse tempo de hibridizações (de humano e máquina, cultura e nature-
za...) as fronteiras tomam-se tênues, não mais dando conta de nos situar
frente às multiplicidades do conhecimento, frente às polimórficas iden-
tidades desse tempo. Ao dizer isso quero pontuar, precisamente, o entre-
cruzamento dos discursos científico e popular em disputa na constitui-
ção do conhecimento.
Referindo-se ainda aos organismos, Haraway (1997) refere que nós
biólogos/as, não somos ventríloquos

...falando para a própria Terra e todos os seus habitantes, registrando como


a vida orgânica realmente é em toda sua diversidade evoluída e ordem
embebida de DNA. Nenhum objeto natural do mundo fala sua verdade li-
vre de metáfora e história através de uma racionalidade objetiva, e pres-
supondo uma ciência universal. A biologia não alcança o passado na ne-
blina do tempo, a Aristóteles ou além. Ela é, antes, uma complexa teia de
práticas materiais-semióticas que emergiram no decurso dos últimos 200
anos ou mais, tendo começado "no Ocidente" e viajado para todo o mun-
do. A biologia emergiu no centro das mais importantes invenções e rede-
finições das categorias de nação, família, classe, tipo, espécie, sexo, hu-
manidade, natureza e raça. Essa biologia (...) é um discurso com uma his-
tória contingente, o que não significa que seus relatos sejam matéria de
"opinião" ou meramente "histórias" (p.217-218).

Muito mais do que falar sobre organismo, Haraway nos fala acer-
ca de nossas posições, como biólogos/as, e eu acrescentaria; como edu-
cadores/as. Minha intenção ao apresentar tais considerações, mesmo sem
ter explorado outros aportes nesse campo, é perguntar: quais são as suas
implicações para o ensino de biologia? Algumas delas eu penso já ter
discutido, e não é objetivo, aqui, elencá-las, uma a uma, apresentando
as possíveis soluções ou alternativas apontadas pelo campo dos Estudos
Culturais, para propor modificações aos problemas detectados. Tais ques-
tionamentos não se apresentam como caminhos possíveis para se desco-
brir "impurezas" no conhecimento biológico, para a seguir limpá-las e
apresentar conhecimento "tal como ele é mesmo".
Talvez se configure como uma quase obviedade, mas todo o conhe-
cimento é uma representação acerca do mundo e das coisas, pois nunca
teremos acesso ao mundo real — ele mesmo, já, uma construção da lin-
guagem —, à verdade das coisas, exceto àquelas verdades que nós mes-
mos/as construímos e nas quais acreditamos, porque podemos entendê-

244 • Estudos Culturais em educação


Ias, quantificá-las, sentir seus efeitos etc., justamente porque construí-
mos as significações que nos permitem vê-las de tal forma.16 Penso que
trazer essas questões para a sala de aula, mesmo que elas não compo-
nham um currículo oficial/formal, propondo sua discussão, produz seus
efeitos... Sobretudo, penso que é importante referir, como já vem sendo
apontado, que essas questões necessariamente "escapam" ao domínio da
Biologia tal como a entendemos e aprendemos. Ver a Biologia com es-
ses olhos significa transitar pelos mais diferentes campos; História; Eco-
nomia; Política; Análises da Mídia; Semiótica; Lingüística; Crítica Li-
terária; etnografia; entre outros. Todos eles — no caso em questão —
vão compondo matéria para se poder enxergar os fios que vão compon-
do as tramas que produzem o conhecimento biológico. Sem dúvidas, é
preciso dizer que muitas vezes tais colocações são profundamente ques-
tionadas, e a principal pergunta talvez seja: a partir de que elementos se
pode fazer tais colocações? Essas coisas não estão e, ao mesmo tempo,
estão nos objetos/nas coisas, estão encarnados nos modos de fazer e con-
ceber, nas matérias-primas utilizadas, nas técnicas e nos instrumentos
desenvolvidos para sua produção, nas trajetórias das pessoas que as em-
preendem, enfim, nas histórias das coisas e das pessoas — que são, por
assim dizer, inseparáveis. Sendo assim, tais coisas também passam a es-
tar "nos olhos" de quem tem acesso a elas e, em razão disso, elas trans-
formam e constituem quem vê.

Problematizando a biologia da sala de aula

Uma das tarefas dos professores e das professoras das Práticas de


Ensino em Biologia é observar as aulas de seus estudantes, depois dis-
cuti-las. Dessa tarefa pude ir lendo um certo texto que, ao mesmo tempo
em que provocava a incorporação de novos elementos nas práticas des-
ses estudantes, isto é, "novos" discursos da biologia e da educação, tra-

16
E, talvez seja esta contingência da verdade, das coisas no mundo, o que mais tenha
sofrido os ataques daqueles/as que, a exemplo de Alan Sokal, têm "bombardeado" os
Estudos Culturais. Lenoir (1997a) enfatiza que tanto Sokal, como outros autores, "têm
argumentado que existe a verdade ou ao menos uma aproximação à verdade, e que os
intelectuais têm a responsabilidade de persegui-la" (p.36).

A Biologia tem uma história que não c natural • 245


zia consigo narrativas bastante arraigadas em nosso modo de aprender e
ensinar biologia. Essas narrativas não são tão evidentes, não estão, na
ordem do dia, tematizadas como "problemas" que devem ser discutidos
como pertinentes à biologia e ao seu ensino. Situo, assim, essa leitura
como decorrência de minhas incursões pelos Estudos Culturais. Foram,
sem dúvida, os estudos que desenvolvi nesse campo, a partir dos dife-
rentes autores e autoras já citados, e de outros como Pratt (1992) e Schi-
ebinger (1996), que permitiram que eu lesse nas práticas desses estudan-
tes, bem como na minha — uma vez que eu os/as orientava — as narra-
tivas da classificação, do progresso e da utilidade.
A seguir discutirei, brevemente, cada uma delas, para postenormente
me deter sobre uma em particular. Antes, porém, devo ressaltar, que tal
análise não passa por um entendimento que visa situar historicamente o
pensamento desses estudantes de acordo com momentos históricos ocor-
ridos nas respectivas ciências de origem, com vistas a modificá-los, tam-
pouco se assenta sobre evidências muito consistentes. Minha análise parte
de algumas "pistas" (posições dos/as estudantes frente a uma dada situ-
ação, o modo como organizavam as suas aulas, que tipos de abordagem
priorizam, entre outras) que permitiram estabelecer três conjuntos de te-
mas articulados a uma mesma questão: a discussão da biologia como
uma produção cultural. Denominei esses eixos de "Evolução é mudança,
não progresso", "Conhecer é dar nomes e classificar" e "Da utilidade
dos animais". A cada um deles destinei uma aula para discussão com um
conjunto de textos que permitiam problematizar tais questões. Uma per-
gunta, no entanto, atravessava esses eixos; "quais são os caminhos pos-
síveis para se pensar/transformar a narrativa biológica hegemônica (an-
tropocêntrica, utilitarista, progressivista, classificatória, masculina etc.) no
currículo — aqui entendido como todas as práticas que se dão no espaço
escolar?" Ao colocar tal questão, não tive qualquer pretensão de que eles/
as a respondessem, ou mesmo que eu pudesse dar-lhes um modo corre-
to, mais aproximado de tentar entender a Biologia — embora eu tenha
presente que este modo de apresentação já é, em si, um modo de produ-
ção. Com essa questão buscava problematizar o conhecimento biológi-
co, pensando-o como construção.
De forma muito breve devo dizer que estes eixos emergiram a par-
tir das seguintes questões:

246 • Estudos Culturais em educação


a) embora os/as estudantes estudem evolução e a entendam como uma
mudança que ocorre com as populações de organismos vivos, que se dá
ao acaso e sem direção, aproximando-se muito do entendimento que lhe
dá Futuyma (1992),17 pude ouvir, durante as observações, explicações do
tipo "ah, eles têm um cérebro, mas este não é como o nosso
b) muitos/as dos/as estudantes não conseguiram "escapar', em suas prá-
ticas docentes, da narrativa que situa em termos evolutivos os seres vivos
em relação aos humanos. Nesse sentido, foram freqüentes as abordagens
fundadas nos aspectos econômicos, tanto no que se refere à utilidade (pro-
dução de alimentos, por exemplo), como no que se refere à nocividade
(animais venenosos, vetores de doenças);
c) e, profundamente atrelada as essas duas encontra-se a narrativa da clas-
sificação, tanto na ordem das coisas, situando quem veio primeiro, quem
veio depois, quem é mais evoluí do/adaptado do que outro, portanto, quem
é superior e quem é inferior. Bem como estruturando no currículo a or-
dem dos conteúdos que devem ser tratados, da qual não é possível se es-
capar, justamente porque é preciso seguir uma ordem evolutiva que é tida
natural, dada pelo "próprio mundo vivo", portanto, plenamente legitima-
da. E, além dessa ordem das coisas, a classificação (dos seres) traz consi-
go um "mundo" de estruturas e, conseqüentemente, de nomes que devem
ser conhecidos para se ter acesso a elas, para que se possa dizer, com cla-
reza, o que é uma espécie e o que é outra, quais pertencem a que grupos e
assim por diante.

Penso que tais questões são importantes, no mínimo, para aque-


les/as de nós que trabalham na fronteira daquilo que se conhece como
os campos da Biologia e da Educação. Procurei discuti-las com meus/
minhas estudantes ressaltando que não estava apontando propriamente
"erros" em suas práticas (e, em última instância, em sua formação),
estabelecendo culpados/as, mas que minha intenção ao fazer tais co-
locações era discutir como elas vêm sendo dadas como naturais, não
problematizadas na própria biologia. A classificação dos seres vivos
(em reinos, filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies) é, por

17
Este autor refere que "...alguns igualaram evolução com 'progresso' das formas de vida
'inferiores' às 'superiores', mas é impossível definir quaisquer critérios não arbitrários
pelos quais o progresso possa ser medido. A própria palavra 'progresso implica direção,
se não mesmo o avanço em direção a um objetivo, mas nem direção nem objetivo são
fornecidos pelos mecanismos de evolução. (...) A errônea representação da evolução como
progresso era tão aparente para Darwin que ele escreveu em seu caderno de notas 'nunca
dizer superior ou inferior' em referência às diferentes formas de vida, ainda que nem sem-
pre seguisse sua própria admoestação" (Futuyma, 1992, p.8).

A Biologia tem uma história que não é natural • 247


exemplo, que estrutura as divisões curriculares adotadas nos própri-
os cursos de Biologia: zoologia do invertebrados inferiores e superi-
ores, zoologia dos vertebrados inferiores e superiores... Que critéri-
os devem ser seguidos? Em que tradições de pesquisa eles se fundam?
Que efeitos exercem nos dias de hoje, quando outros modos e outras
lógicas (a da genética, a da ecologia) não deslocam a sistemática do
cenário, mas incorporam-se a ela compondo outros arranjos, outras
formas de se classificar etc? A questão, no que se refere ao campo
da educação, talvez seja: não há outros modos possíveis de se produ-
zir, ou de se constituir entendimentos do mundo natural que não o da
classificação? Não tenho uma resposta para tal questão, mas uma outra
pergunta: ao se fazer tais deslocamentos não se estaria deixando de
fazer biologia tal como a entendemos e aprendemos? Não seria isso
uma "outra Biologia"?
Como sabemos, a narrativa fundada na sistemática tem seus efei-
tos, produz coisas materiais muito específicas que, ao mesmo tempo em
que se constituíam foram, já, produzindo seus saberes, estabelecendo seus
domínios. Ela, sobretudo, nos produz como sujeitos biólogos/as que pen-
sam que, ao se ensinar biologia, o dar nomes dá conta daquilo de que
falamos, em outras palavras, que um molusco é, por exemplo, "realmente"
um molusco. Esquecemo-nos, contudo, que um molusco não é um "bi-
cho" que exista já no mundo, mas como venho dizendo, ele passa a exis-
tir a partir de um conjunto de saberes (classificação, anatomia etc.), de
espaços (coleções, museus, laboratórios etc.) e de instrumentos (chaves
de classificação, bisturis, métodos de conservação etc.) que o situam no
mundo e lhe dão sentido por uma ordem que é produzida (pelas pessoas,
de acordo com o conhecimento de sua época), antes que desvelada, in-
terpretada da própria natureza. Um molusco é uma construção, é uma
categoria inventada.
Continuo, a seguir, com essa discussão acerca do uso da classifi-
cação dos seres vivos como algo não-problemático, ou como algo natu-
ral; uma classificação natural. Como já venho fazendo, quero enfatizar
o caráter de produção desse modo de ver "a natureza", os seres vivos, de
entender o conhecimento biológico etc., para tanto recorro a dois auto-
res: Schiebinger (1996) e Foucault (1987). A partir deles procuro reto-
mar minhas reflexões acerca do ensinar biologia.

248 • Estudos Culturais em educação


A (hetero)sexualidade das plantas18

Schiebinger (1996) vai direto à obra de Carl Lineu, "o pai da taxono-
mia". Neste trabalho, a autora mostra que Lineu imaginava que as plantas
possuíam pênis e vaginas e se reproduziam em camas matrimoniais. Ela
acentua, na esteira daquilo que discuti a partir de Haraway (1989)19, a
patrilinhagem da botânica que, embora também fosse praticada por mu-
lheres (coleta e secagem, preparação de ilustrações, bem como o exercí-
cio da apreciação de Deus e do seu universo a partir dessas práticas), era
uma prática (e nesse sentido tomava-se científica) masculina (a de classi-
ficar). Schiebinger acentua, ainda, que foi somente a partir dos séculos
dezessete e dezoito que os naturalistas europeus começaram a reconhecer
que as plantas se reproduziam sexuadamente, classificando-as em mascu-
linas ou femininas — todos queriam ter a honra de ter descoberto a sexua-
lidade nas plantas. Muitos, enfatiza ela, desenvolveram tal noção a partir
de seus conhecimentos zoológicos, a ponto de a analogia entre a sexuali-
dade de plantas e animais já estar completamente desenvolvida na primei-
ra metade do século dezoito. Em termos gerais, essas analogias compara-
vam as anteras aos testículos, o pólen ao líquido seminal, o estigma à vul-
va, o estilete à vagina e o tubo (interno) que percorre o pistilo às trompas
de Falópio. A medida que os estudos conduzidos por esses naturalistas
avançavam eles "descobriam" que muitas das flores não se enquadravam
nas classificações adotadas por serem hermafroditas... Entretanto, isso não
parecia ser um empecilho maior porque eles reconheciam a existência de
dois sexos (masculino e feminino), mas admitiam a existência de três ti-
pos de flores diferentes (masculino, feminino e hermafrodita) — como
acentua Schiebinger, era-lhes difícil reconhecer um tipo sexual que não
fosse familiar. A autora reconhece que os botânicos do século dezoito es-
tavam corretos em reconhecer que muitas plantas reproduziam-se sexua-

18
Este subtítulo se constitui em uma cópia daquele apresentado por Schiebinger (1996)
em seu texto.
19
Haraway (1989) refere que Lineu tinha a si próprio como um segundo Adão, aquele ao
qual cabia o trabalho de dar ordem as coisas do mundo. Ele era "...o 'olho' de Deus, que
poderia dar boas representações, verdadeiros nomes, assim, reformando ou restaurando a
pureza dos nomes perdidos pela primeira sina de Adão" (p.9). Renomear os animais era
um modo de dar crédito à ordem da natureza, "para purificar o olho e a palavra" (p. 9).

A Biologia tem uma história que não é natural • 249


damente, mas na sua opinião eles deram primazia inadequada à reprodu-
ção sexual e à heterossexualidade. Nessa direção, ela mostra o quanto a
sexualidade caracteriza a reprodução entre os chamados "organismos su-
periores" mas não a maioria dos organismos da Terra, e que o fato de a
reprodução nesses grupos ser denominada de assexual revela a preferên-
cia normativa dada à reprodução sexual.
Mas ainda mais do que isso, Schiebinger (1996) mostra como Li-
neu não só sexualizou e classificou as plantas como masculinas ou fe-
mininas como lhes deu atributos humanos: elas tomaram-se esposos e
esposas. Nessa direção, ela refere:

quando Lineu introduziu uma nova terminologia para descrever as relações


sexuais das plantas, ele não usou os termos estame e pistilo, mas andria e
gynia, que ele derivou do grego para esposo (aner) e esposa (gyne). Os no-
mes de suas classes de plantas terminam em "andria" (monandria, diandria,
triandria e assim por diante); suas ordens em "gynia" (monogynia, digy-
nia, trigynia e assim por diante). Um dos mais surpreendentes elementos
do sistema de classificação de Lineu é que a sexualidade das plantas toma
lugar quase exclusivamente em sua vinculação com o casamento (p. 167).

Continuando, a autora mostra como as plantas, nos grupos mais


representativos, estavam organizadas de acordo com o tipo de matrimô-
nio que contraíam: "público" ou "clandestino". Ela analisa como signi-
ficativo de sua época o fato de Lineu ter focalizado o casamento quando
pensava em sexualidade, uma época em que os casamentos arranjados
estavam dando lugar às escolhas pessoais.
Ao discutir a botânica moderna como uma política sexual, Schie-
binger propõe dois níveis para se entender a "troca" de significados en-
tre a sexualidade humana e a das plantas. Em um nível está o uso expli-
cito de metáforas sexuais humanas para introduzir noções da reprodu-
ção das plantas na literatura botânica, e de outro o uso implícito do gê-
nero para estruturar a taxonomia botânica. Com essa "troca" de signifi-
cações a taxonomia botânica de Lineu importou as noções tradicionais
acerca da hierarquia sexual. A "ardente" sexualização das plantas, refe-
re Schiebinger, é concomitante à cientifização da botânica.
Como sabemos, transformações têm ocorrido nas classificações bo-
tânicas, mas cada uma delas, em especial a de Lineu, da qual herdamos o
sistema binomial (gênero e espécie), conta a história de seu tempo. Lineu,

250 • Estudos Culturais em educação


para Schiebinger, leu a natureza através das lentes das relações sociais do
século dezoito, e o fez de tal forma que as incorporou à linguagem da bo-
tânica, incorporando, portanto, "aspectos do mundo social nos quais as
mulheres estavam legalmente subordinadas aos pais e aos esposos (p. 170).
Na opinião da autora, não é sem razão que, entre as inúmeras classifica-
ções existentes na época, é a de Lineu que é "escolhida para melhor re-
presentar o mundo das plantas. Segundo ela, a taxonomia de Lineu per-
maneceu porque dizia respeito àquela época, uma época em que. o sexo
começava a ser discutido e praticado mais abertamente quem faz ciên-
cia, enfatiza a autora, afeta o tipo de ciência que é feita.

O ver e o nomear da Biologia

Também Foucault (1987), em As palavras e as coisas, discute a


cientificização da botânica da qual fala Schiebinger. Mais do que isso,
Foucault se propõe discutir a História que se torna Natural. Em outras
palavras, ele pretende mostrar o deslocamento que se operou na forma
de se narrar o mundo; se antes se falava sobre histórias de seres vivos
(História da Natureza das Aves, História Admirável das Plantas, Histó-
ria Natural dos Quadrúpedes...), agora, cada vez mais se falará de uma
história que se separa disso. Nesse sentido, Foucault (1987) diz;

...a História era o tecido inextrincável e perfeitamente unitário daquilo que


se vê das coisas e de todos os signos que foram nelas descobertos ou nela
depositados; fazer a história de uma planta ou de um animal era tanto dizer
quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto as semelhanças que se lhe
podem encontrar, as virtudes que se lhe atribuem, as lendas e as histórias
com que se misturou, os brasões onde figura, os medicamentos que se fabri-
cam com sua substância, os alimentos que ele fornece, o que os antigos re-
latam dele, o que os viajantes podem dele dizer. A história de um ser vivo
era esse ser mesmo, no interior de toda a rede semântica que o ligava ao
mundo. A divisão, para nós evidente, entre o que vemos, o que os outros
observaram e transmitiam, o que os outros enfim imaginam ou em que crê-
em ingenuamente, a grande tripartição, aparentemente tão simples e tão
mediada, entre a Observação, o Documento e a Fábula não existia. H não
porque a ciência hesitasse entre uma vocação racional e todo um peso de
tradição ingênua, mas por uma razao bem mais precisa e bem mais cons-
tringente é que os signos faziam parte das coisas, ao passo que no século
XVII eles se tomam modos de representação, (p. 143, destaques do autor)

A Biologia tem uma história que não é natural • 251


Foucault mapeia, nessa obra, a cisão que começa a se estabelecer
entre as coisas e a forma como se fala dessas coisas. E neste sentido que
sua análise toma-se singular, pois ao mesmo tempo em que mostra que foi
tal cisão que permitiu que a história natural se desenvolvesse como ciên-
cia20 — dando ordem ao mundo e, com isso, permitindo uma série de coi-
sas que, nas narrativas da modernidade, entendemos como conquistas daí
decorrentes — , mostra que isso também representou uma "escolha" por
um modo de racionalidade que afunilou e constringiu o modo de se ver o
mundo. Esse outro modo de ver, vigente na contemporaneidade, parece
excluir, ou não considerar como válidas, outras formas de nomear e enten-
der o mundo que não aquelas que passam pelo enquadramento dos nomes.
Essa vinculação entre nomear e ver parece ser tão imediata que é
possível dizer que a história natural — ou a biologia nos dias de hoje —
nada mais é do que a nomeação do visível. Mas, como mostrou Foucault
(1987), tal nomeação não é estranha aos modos de visão, ou mais preci-
samente aos instrumentos e às técnicas de observação que se desenvol-
vem para aprimorar um modo de ver; não há olhar sem mediação de ins-
trumentos, seja a palavra, seja a luneta ou o microscópio.
O mundo ocidental ao dar primazia a um modo de visão se encolheu
e, ao mesmo tempo, se alargou. No caso das classificações, se encolheu
porque excluiu o gosto e o sabor, que eram, como refere Foucault, por de-
mais imprecisos, variáveis, e não dispunham de uma constância que pu-
desse ser quantificada e aceita; excluiu também o tato e algumas das coi-
sas que ao olhar não podem fornecer comparações úteis, tais como a cor.
Em seu lugar "emergem" linhas, superfícies, formas e relevos que podem
ser contadas, capturadas, traduzidas em números, em letras. O campo de
visibilidade, ressalta Foucault, não passa agora de um resíduo dessas ex-
clusões, de tudo o que saiu... Uma visibilidade parda que permite que qual-
quer coisa que venha a se descobrir sobre o mundo natural se encaixe ali.
Parece que seguimos essa lógica na biologia, de aprender e de en-
sinar, um certo modo de ver o mundo, de ver

...sistematicamente pouca coisa. Ver aquilo que, na riqueza um pouco di-


fusa da representação, pode ser analisado, reconhecido por todos e rece-

20
À página 143, Foucault (1987) diz que "a história natural encontra seu lugar nessa
distância agora aberta entre as coisas e as palavras..."

252 • Estudos Culturais em educação


ber, assim, um nome que cada qual poderá entender; "Todas as similitu-
des obscuras", diz Lineu, "só são introduzidas para desprestígio da arte".
(...) Perante o mesmo indivíduo, cada qual poderá fazer a mesma descri-
ção; e inversamente, a partir de tal descrição, cada um poderá reconhecer
os indivíduos que a ela correspondem (p. 148). (...) Limitando e filtrando
o visível, a estrutura lhe permite transcrever-se na linguagem. Por ela, a
visibilidade do animal ou da planta passa por inteiro para o que a recolhe.
E, no final, talvez lhe ocorra restituir-se ela própria ao olhar, através das
palavras (Foucault, 1987, p.149, destaque meu).

Contar histórias também é trabalho da biologia

Penso que é possível dizer, entretanto, que, se houve essa divisão


entre os nomes das coisas e as próprias coisas, muitos de nós enquanto
ensinamos biologia, hoje, pensamos que o nome das coisas representa
as próprias coisas: que um molusco é um molusco, isto é, que ao falar-
mos sobre os moluscos aquele conjunto de categorias, definições, con-
ceitos, estruturas etc., resume-se nesse nome. E quase o atrelamento da
coisa ao seu nome, como se fossem inseparáveis, mas agora em uma
operação inversa... Esquecemo-nos, então, de todas as práticas, sejam elas
materiais ou não, que constróem e naturalizam um molusco como sim-
ples molusco do "próprio mundo vivo".21 Embora pensemos falar dos
próprios organismos moluscos, não é deles que falamos... Falamos com
a boca e com os olhos de uma tradição de pelo menos quatro séculos que
nos ensinou um modo de ver e especificar o mundo que não é nem um
pouco natural — embora o "jogo" seja precisamente este. Assim, falar
de moluscos é falar também da história que os produziu.

21
É bastante elucidativo para este aspecto a compreensão dos museus, das coleções, das
exposições... Parece que os seres lá expostos estão organizados respeitando uma ordem
natural, ou antes seguindo uma história natural dos acontecimentos que revela uma pró-
pria história da natureza. "...Os documentos dessa história nova não são outras palavras,
textos ou arquivos, mas espaços claros onde as coisas se justapõem; herbários, coleções,
jardins; o lugar dessa história é um retângulo intemporal, onde, despojados de todo comen-
tário, de toda linguagem circundante, os seres se apresentam uns ao lado dos outros, com
suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus traços comuns e, com isso, já virtu-
almente analisados e portadores apenas de seu nome" (Foucault, 1987, p.145).

A Biologia tem uma história que não é natural • 253


E a biologia tem uma história que, longe de ser natural, é construída
no tempo, tendo suas marcas, compreensões, valores... O natural da His-
tória Natural/da Biologia é uma narrativa, entretecida por outras histórias,
que dá sentido e coerência ao mundo. Falar da biologia como narrativa
passa por entender que as suas histórias produzem seres materiais muito
específicos e que a forma como se fala deles não só os descreve, mas os
produz.

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256 • Estudos Culturais em educação


Capítulo 10

Hollywood e a produção

de sentidos sobre o estudante

EH Henn Fabris

Sobre a produção de sentidos

Neste final de século, a civilização ocidental está passando por im-


portantes transformações culturais que abrangem todas as dimensões da
vida social. Vários autores e autoras têm nos mostrado, em seus estudos e
análises, como essas mudanças têm repercutido na constituição dos sujei-
tos — entre eles, Hall (1997c), Harvey (1996), Canclini (1997), Sarlo
(1997). Hall (1997c) nos fala de uma "revolução cultural", entendida como
a expansão das atividades, instituições e práticas culturais nas quais a cul-
tura assume uma função determinante na organização da sociedade. As
novas tecnologias e a revolução da informação têm um papel crucial nessa
expansão das formas de produção, de circulação e de trocas culturais.
Nesse processo, a mídia vem assumindo um papel relevante, junto
às demais formas de dinamização e expansão da cultura. Harvey (1996)
denomina de compressão tempo-espaço o fenômeno de destruição do es-
paço pelo tempo, através do qual nossas relações se transformam drasti-
camente, pois já não dispomos dos referenciais seguros e determinantes
que essas concepções nos propiciavam. Mas o que temos agora, através
da mídia e das novas tecnologias, é um processo globalizante onde nossos
mundos se interconectam, se cruzam e o que se produz no mundo todo em

Hollywood c a produção de sentidos sobre o estudante • 257


termos de mercadorias ou informações está ao nosso alcance, e se toma
difícil saber o que é próprio de um lugar, de um povo, de uma cultura. Paul
Du Gay (citado por Hall, 1997c) ressalta esse processo quando diz;

(...) a nova mídia eletrônica não apenas possibilita a expansão das rela-
ções sociais pelo tempo e espaço, como também aprofunda a intercone-
xão global, anulando a distância entre as pessoas e os lugares, lançando-
as em um contato intenso e imediato entre si, em um "presente" perpé-
tuo, onde o que ocorre em um lugar pode estar ocorrendo em qualquer
parte (...). Isto não significa que as pessoas não tenham mais vida local
— que não mais estejam situadas contextualmente no tempo e espaço.
Significa apenas que a vida local é inerentemente deslocada — que o lo-
cal não tem mais uma identidade "objetiva" fora de sua relação com o glo-
bal (p.210).

Não há, desta forma, como determinar a procedência de nossos co-


nhecimentos e práticas culturais, pois está em andamento um esmaecimento
das fronteiras que na Modernidade nos faziam sentir como seres "autôno-
mos", "únicos", "essenciais". As características que nos constituem se
mesclam, se fragmentam, se associam; somos seres híbridos, constituídos
por múltiplas e diferentes identidades. Nestas mudanças que estão acon-
tecendo, nesta complexificação do social, é que as instituições tidas como
tradicionais, como a família, a igreja, a escola, parecem estar perdendo
espaço nos processos de subjetivação dos sujeitos, quando surgem novas
o diferentes instâncias que vêm contribuir nesse processo, como é o caso
da mídia. Aquelas instituições passaram a ser ressignificadas pela própria
mídia. Esses argumentos são desenvolvidos por vários/as autores/as que
estão preocupados em analisar a sociedade atual frente aos impactos das
transformações, entre eles/as Canclini (1997) e também Hall (1997a); este
último, desenvolvendo uma análise dessas transformações culturais no
processo de constituição das identidades sociais.
Desta forma, situando o cinema como mídia, como importante lo-
cal de produção e de transformações culturais e, portanto, de produção

1
Artefato cultural é qualquer objeto que possui um conjunto de significados construídos so-
bre si. Ao associarmos o objeto aos seus significados estamos em relação com um artefato
cultural (Du Gay, 1997). O cinema hollywoodiano é tomado aqui como um artefato cultu-
ral que possui um sentido de cinema universal, além de comercial e popular. Quando fala-
mos em cinema hollywoodiano, o significado construído sobre ele logo se faz presente.

258 • Estudos Culturais em educação


de significados na constituição dos sujeitos, é que o caracterizo como um
artefato cultural1. Ao mesmo tempo em que os filmes produzem signifi-
cados, entendo também que nesse processo eles criam certas "realida-
des", instituem "verdades", marcam posições, bem como "falam" e cons-
tituem essa "revolução cultural" anunciada por Hall (1997c).
Esse trabalho vincula-se a uma pesquisa em que analisei dezesseis
filmes hollywoodianos. Aqui estou utilizando como objeto de análise
cenas que descrevem e que narram o sujeito estudante em apenas quatro
desses filmes: Escola da Desordem (1984), Curso de Férias (1987),
Mentes Perigosas (1995) e O substituto (1996), sem deixar, no entanto,
de fazer relações com outras representações e com outros filmes que
possam contribuir para a análise.
O objetivo deste estudo é descrever de que modo o cinema ho-
llywoodiano, uma mídia que ocupa um espaço na subjetivação dos su-
jeitos, tem descrito os alunos e as alunas. Em outras palavras, procuro
discutir como alunos e alunas dos filmes hollywoodianos são represen-
tados e que significados são construídos sobre eles e elas nessas históri-
as. Para a análise sobre a produção de subjetividades pela mídia, estou
me apoiando em estudos de Hall (1997a), Fischer (1996), Giroux (1995,
1996) que, de forma confluente, analisam as transformações culturais.
O primeiro autor analisa a produção das identidades culturais na Pós-
modemidade, a segunda refere-se à mídia, mais especificamente em como
essa produz um discurso sobre adolescência, e Giroux analisa, respecti-
vamente, a influência dos filmes da Disney na cultura e o discurso sobre
a juventude no filme Kids.
A posição que apresento é de que a mídia tem descrito esse sujeito
estudante de formas distintas, conforme os processos culturais em curso
nos diferentes momentos históricos da sociedade, e que o cinema ho-
llywoodiano tem capturado esse sujeito em posições acentuadamente
marcadas pela tradição ocidental moderna, posições estas que são con-
gruentes com o significado da escola moderna desde sua gênese e com a
função civilizadora que a mesma vem desenvolvendo.
Considero essas discussões importantes para a educação na medi-
da em que buscam desnaturalizar os discursos considerados "verdadei-
ros", "válidos" e "permanentes" e também porque nos permitem ver o
cinema como uma pedagogia cultural no sentido utilizado por Steinberg
(1997), de que a educação ocorre numa variedade de locais sociais, além

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 259


dos escolares, tais como filmes, jornais, TV, etc. Esta análise pretende,
também, se inserir junto àquelas reunidas por Giroux e McLaren (1995),
sob a denominação de pedagogia crítica da representação, que "compre-
ende as representações da mídia — a fotografia, a televisão, a imprensa,
o filme, ou outra forma qualquer — como produtiva não apenas de co-
nhecimento mas também de subjetividade" (p. 144), análise esta em que
os autores utilizam o conceito de representação tal como utilizado por
Hall, como prática de significação. Igualmente toma-se importante dis-
cutir tal estatuto pedagógico da mídia nesse momento em que há uma
acentuada expansão desse espaço pedagógico. Fischer (1998), referin-
do-se a esse papel que a mídia vem assumindo, diz que ela tem se apre-
sentado como "a nova e moderna 'pedagoga'" (p.433).
Na primeira parte deste trabalho, procuro caracterizar o "olhar" de
Hollywood na produção de sentidos, situando-o como espaço cultural
privilegiado de poder para representar o outro. Descrevo, também, os
filmes que serão objetos de análise, bem como o referencial teórico que
estarei utilizando. Na parte seguinte, apresento o sujeito estudante como
uma produção cultural e faço uma rápida abordagem da gênese da esco-
la moderna e da figura do/a aluno/a. Dando continuidade, procuro des-
crever alguns enunciados2 a partir dos filmes pesquisados, analisando
os significados e as representações do sujeito estudante. Os filmes ana-
lisados não apenas apresentam os alunos e alunas, mas, ao fazerem isso,
criam verdades sobre esses personagens, dizem como é um aluno e uma
aluna no tempo e espaço escolares.
No final, deixo algumas questões sobre esse/a aluno/a hollywoo-
diano/a e sua relação com o estudante que habita nossas escolas.

O "olhar" de Hollywood

Ao escolher filmes produzidos por Hollywood, estou consideran-


do esse centro cinematográfico mundial como um espaço cultural em que
o cinema possui o poder de criar narrativas com sentido de universalida-

2
Estou entendendo enunciado a partir de Veiga-Neto (1996) que diz: "São os enuncia-
dos dentro de cada discurso que marcam e sinalizam o que é tomado por verdade, num
tempo e espaço determinado, isso é, estabelecem um regime de verdade" (p.75).

260 • Estudos Culturais em educação


de. As histórias que Hollywood conta se instituem como verdadeiras para
todo o mundo, não só para o povo dos EUA. Kaplan (1997) diz que Ho-
llywood se auto-representa tanto através de nomes que vão de Univer-
sal a Vital-Paramount, quanto por escolher cenas de grandiosidade e
poder para representar o nome dos estúdios. O símbolo do globo terres-
tre, de um pico elevado e do leão áa. Metro Goldwyn Mayer, usados como
logotipos na apresentação de cada filme, bem como os nomes preferen-
cialmente escolhidos pelos grandes estúdios quase falam por si mesmos.
Hollywood cria estratégias de autolegitimação, nas quais vai se impon-
do como o ^melhor', o mais "verdadeiro", o mais "eficiente", o mais
modelar modo de ver e de se estar no mundo. Hollywood não simples-
mente fala do mundo, mas o produz.
Hollywood passou por diversas fases de expansão e retraimento em
sua história. Uma dessas fases de grande expansão foi após a II Guerra
Mundial, quando se investia de poder para a reconstrução e educação da
humanidade, após os estragos causados pela guerra. Em uma conferên-
cia na Universidade da Califórnia, Darryl Zanuck3 (citado por Kaplan,
1997), representando os estúdios hollywoodianos, assim expressou a pre-
tensão dos mesmos. "Nós [os estúdios] podemos fazer isso, porque nós
temos o talento, o know-how, os recursos. Nós temos um meio incom-
parável para a educação e para o esclarecimento — o maior que o mun-
do já conheceu até hoje" (p.56). Essa afirmação nos mostra a pretensão
dos estúdios hollywoodianos em se constituírem como um local educati-
vo. Hollywood se pretende universal não apenas nas suas histórias "ver-
dadeiras ' para todo o mundo, mas também na sua ação pedagógica.
Diante de tais argumentos é que podemos compreender como a
mídia ocupa um espaço pedagógico em nossa cultura. Ela ensina, con-
trola, governa, exercendo, assim, o poder de subjetivação e objetivação
dos sujeitos. E nesse sentido que existe toda uma análise dos países eu-
ropeus frente a alta tecnologia e expansão dos processos audiovisuais
desenvolvidos pelos EUA, entre eles a produção cinematográfica.
Canclini (1989) chega a nomear a América Latina e a Europa como

3
Darryl Zanuck magnata americano, fundou em 1933 a Twentieth Century Producti-
ons, fez uma fusão com a Fox, dois anos depois, e tornou-se o diretor do estúdio em
1935 (/000filmes que fizeram 100 anos de cinema - Encarte da revista ISTO É, 1995)

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 261


subúrbios de Hollywood, tal a preponderância do cinema dos EUA nes-
ses territórios. O cinema é considerado um grande negócio, "constituin-
do para esse país a segunda fonte de rendimentos entre todas as suas ex-
portações, depois da indústria aeroespaciar (p.156).
Ao produzir histórias fílmicas sobre jovens que freqüentam as esco-
las, Hollywood vai narrando esses estudantes e, para isso, usa de sua ma-
gia cinematográfica, além de apresentar em suas histórias uma linguagem
própria de adolescente, com um apelo através da música, das roupas, dos
desejos, dos sonhos e das ilusões. Com essas representações de estudan-
tes adolescentes, os filmes de Hollywood produzem significados sobre o
que é ser adolescente, e mais, o que é ser um estudante adolescente.
Esses filmes possuem um discurso pedagógico que é apresentado
como modelar também para a família e a escola. A sinopse do filme So-
ciedade dos poetas mortos anuncia; "Sociedade dos poetas mortos pro-
vocou em todos os países um forte impacto nas relações entre pais e fi-
lhos, e entre professores e alunos". Hollywood ao produzir histórias so-
bre jovens que freqüentam as escolas, vai sugerindo certos padrões de
vida para eles, vai impondo sentidos e criando narrativas sobre os ado-
lescentes, narrativas estas que produzem efeitos, não apenas na produ-
ção de subjetividades adolescentes, mas também nos mais diferentes
sujeitos sociais, os significados que produz são múltiplos e diferenciados.
No processo de compor o significado, Hollywood utiliza diferen-
tes tecnologias: o uso da câmera, a iluminação, a edição, o cenário, o
som, etc.; com isso, pretende causar o efeito próprio dessa linguagem,
o efeito de realidade (Turner, 1997). A música, os atores e as atrizes
(estrelas-astros), as campanhas de divulgação dos filmes e os diferen-
tes gêneros são estratégias que Hollywood, como uma indústria, utiliza
na construção de significados, produzindo histórias que "vendam" que
tenham sucesso.
Com referência a essa produção de sentidos pelo cinema é possí-
vel trazer vários exemplos, mas vou me deter no caso referido por Sto-
rey (1993) em seu trabalho sobre a teoria cultural e cultura popular, quando
ele comenta a guerra do Vietnã. Ele refere que no lugar do silêncio da
derrota, os EUA proporcionaram um verdadeiro incitamento à discus-
são desse conflito e que, embora a América não tenha mais autoridade
sobre o Vietnã, é ela quem mantém o controle sobre os relatos ociden-
tais acerca da guerra americana no Vietnã. Declara ainda: Hollywood,

262 • Estudos Culturais em educação


como 'instituição corporativa', lida com o Vietnã apresentando afirma-
ções, autorizando pontos de vista, descrevendo, ensinando acerca do as-
sunto. Hollywood inventou um Vietnã como uma 'imagem contrastada'
e um 'substituto e...[um] eu underground' àz Améncz" (p.99). O que
Storey (1993) está mostrado com esse exemplo é o poder da indústria
cinematográfica de Hollywood, junto com outras práticas discursivas (mú-
sicas, novelas, séries de TV, etc.), na produção de um discurso sobre o
Vietnã. São esses discursos que pretendem contar ao mundo como é o
"ygffjadeiro Vietnã , descrevendo tudo que lá aconteceu sob a ótica de
quem tem o poder de narrar o outro.
É nesse sentido, o das relações de poder,4 que pretendo analisar as
representações do sujeito estudante presentes nesses filmes, questionando
assim as posições que esse sujeito vem ocupando e examinando os sig-
nificados que Hollywood tem produzido sobre ele. Como os discursos o
descrevem? Que imagens, palavras, cenas, músicas, sons o significam?
Que enunciados podem ser identificados a seu respeito? Que condições
privilegiam os discursos que o narram nesse tempo e espaço?

O sujeito estudante como produção cultural

É comum nos cursos de formação de docentes o estudante ser des-


crito como alguém dócil ou extremamente complicado, mas, em todos
os casos, dependente do "amor" do professor e da professora. Também
é descrito como constituído por uma essência, que basta ser tocado pe-
los conhecimentos e educação do/a mestre/a para que se transforme.
Cabe à escola, e mais especificamente ao professor e à professora, a
grande "missão" de educar esse ser que foi descrito, catalogado, classi-
ficado e explicado por diferentes e múltiplas teorias psicológicas e de
encontrar formas eficientes e eficazes de melhor "adestrar" e educar esse
que foi concebido como portador de uma falta, tanto no plano biológico
como no cognitivo. Essas concepções são encontradas também no dici-
onário Aurélio, que se constitui, em nosso país, em um repositório de sig-
nificados autorizados;

4
Estou usando o conceito de poder na acepção foucaultiana, que opera como uma rede
e não se situa numa coisa ou lugar específico, ele circula em todas as direções.

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 263


Do lat. Alumnu, primitivamente criança que se dava para criar. Pessoa que re-
cebe instrução e/ou educação de algum mestre, ou mestres, em estabelecimento
de ensino ou particularmente, estudante, educando, discípulo. Aquele que tem
escassos conhecimentos em certa matéria, ciência ou arte, aprendiz.

Analisando essas definições, encontramos referências a um sujeito


ao qual falta algo, tanto biológica (criança que se dava para criar) como
intelectualmente (que tem escassos conhecimentos). Conforme os diferen-
tes momentos históricos e as diferentes culturas, esse sujeito vai corres-
ponder a funções e características diferentes; os pagens, os escudeiros, os
assistentes e os aprendizes que serviam ao mestre não só nos ofícios, mas
também nas tarefas domésticas. Os aprendizes eram enviados a outras fa-
mílias para a aprendizagem dos ofícios, resguardando uma distância entre
o mestre e o aprendiz, entre o cavalheiro e seu assistente. Diferenciavam-
se também as funções conforme a classe social: para os nobres havia, nes-
ses casos, a figura do preceptor que se encarregava da educação dos jo-
vens (Enguita, 1989). É, pois, esse sentido tido como "natural" com que o
sujeito estudante vem sendo narrado que pretendo questionar.
Dizer que o aluno e a aluna são produzidos culturalmente pode gerar
diferentes conotações, conforme a concepção de cultura com que se está
trabalhando. Parto de um conceito de cultura comum aos Estudos Cultu-
rais, que a entende como significados compartilhados, os quais são produ-
zidos ativamente, através de relações de poder, aqui, neste caso, pelas re-
presentações de estudantes apresentadas nos filmes hollywoodianos.
A educação, a infância, a adolescência, os professores e as profes-
soras, os estudantes são produções de um determinado tempo/espaço
histórico que respondem às necessidades práticas daquele momento;
portanto, são conceitos contigentes, não possuem uma essência e nem
significado fixo. O processo educativo, desde as sociedades antigas, tem
sido de responsabilidade das gerações mais velhas que atuam sobre as
mais jovens, mas esse processo nem sempre narrou o/a personagem alu-
no/a com as representações que temos hoje. Vamos encontrar na Histó-
ria da Educação5 a figura dos discípulos, dos aprendizes e de outras for-

5
Na obra Trabalho docente e profissionalismo (Costa, 1995) a autora desenvolve, no
capítulo "Perspectivas históricas do trabalho docente", uma revisão das perspectivas his-
tóricas do trabalho docente, situando o/a aluno/a em diferentes momentos da história da
educação.

264 • Estudos Culturais em educação


mas pelas quais as diferentes culturas descreviam o sujeito estudante.
Até o surgimento do processo da escolarização, a educação acontecia
por impregnação cultural, isto é, aprendia-se diretamente no convívio so-
cial. A partir do momento que a sociedade começa a ser caracterizada
por uma maior complexidade, em que ocorre a pedagogização dos co-
nhecimentos, surge a necessidade de uma instituição que tome conta das
crianças; então, começamos a significar esse espaço como escola e o
aprendiz, como escolar; aquele que estou chamando de sujeito estudan-
te; o aluno, a aluna.
Com o surgimento da escola com o sentido que conhecemos hoje
— século XV6 — as solicitações sobre esse sujeito ganham outras defi-
nições, cada "modelo" pedagógico produz um tipo de sujeito estudante.
O sujeito pedagógico é uma criação do discurso pedagógico. Nesse sen-
tido podem ser esclarecedoras as palavras de Díaz (1998);

...não existe sujeito pedagógico fora do discurso pedagógico, nem fora


dos processos que definem suas posições nos significados. A existência
de um sujeito pedagógico não está ligada a vontades ou individualida-
des autônomas e livremente fundadoras de suas práticas. O sujeito pe-
dagógico está constituído, é formado e regulado, no discurso pedagógi-
co, pela ordem, pelas posições e pelas diferenças que este discurso es-
tabelece. O sujeito pedagógico é uma função do discurso no interior da
escola e contemporaneamente, no interior das agências de controle (p.49).

Conforme Narodowski (1998), são os discursos da pedagogia e


da psicologia educacional que constróem o conceito de aluno/a, situ-
ando os corpos das crianças e adolescentes nessa posição, corpos que
as famílias entregam aos/ás professores/as para serem educados. Po-
rém, segundo ele, hoje, as famílias ainda continuam mandando seus
filhos e filhas para a escola, mas o docente já não ocupa o espaço e as
atribuições que possuía, a legitimidade de sua posição é colocada sob
suspeita todos os dias e os alunos e alunas já ocupam outros espaços,
seus corpos e mentes são "chamados" não só pelo professor/a, mas por

6
Conforme Costa (1995). "embora tenha existido já na Antigüidade e na Idade Média,
a escola — no sentido como a entendemos hoje, e, progressivamente, com o formato e
funções que hoje possui — dedicada especialmente à educação das crianças, vai surgir
apenas no século XV" (p.73).

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 265


todo o aparato constituído pela mídia. Esse autor diz ainda que "a cul-
tura da mídia parece colocar em xeque alguns dos elementos constitu-
tivos da escola moderna" (p.176). Pois há uma acentuada diferença
entre esses dois espaços. Em outro lugar, Narodowski (1996) ressalta
a infância como uma construção pedagógica, em que a pedagogia cria
discursivamente esse conceito; "a infância moderna é essencialmente
dependente da ação adulta, não somente por sua constituição biológi-
ca ou psicológica mais débil (...), senão porque, graças a essa depen-
dência, o adulto pode atuar sobre a criança, educando-a e transforman-
do-a num ser independente; ou seja, transformando-a num adulto que
já não precisa ser educado" (p. 114).
Com estas breves pinceladas históricas tive o objetivo de mostrar
como o sujeito estudante se constitui como produção cultural, no inte-
rior de discursos e de práticas de governo. Pretendi também argumen-
tar que ser representado de uma determinada forma e não de outra de-
corre de quem está na situação ou no lugar de poder para narrar o ou-
tro. Digo isso não no sentido de que há algo sendo tramado maquiave-
licamente, mas no sentido das lutas por imposição de sentido, pois,
segundo Foucault (1996), não podemos nos situar fora das relações de
poder, isso seria uma abstração, e o poder não é algo malévolo, mas é,
sim, produtivo. Nesse sentido, tanto o discurso pedagógico escolar,
quanto tantos outros diferentes discursos, as narrativas propostas pelo
cinema hollywoodiano, contribuem para a constituição da identidade do
sujeito estudante.

Uma cultura "adolescêntrica"7

A instituição escola, que na sua gênese vem marcada com a função


de educar as crianças, de tomá-las adultas, aparece intensamente identifi-
cada, nos filmes hollywoodianos, com a educação de adolescentes.

7
Com o termo "adolescêntrica" estou fazendo uma analogia com o neologismo "adul-
tescência", citado em vários artigos no Caderno Mais da Folha de São Paulo, 20/09/98.
Neste texto, cultura "adolescêntrica" está sendo utilizada para marcar a preponderância
da adolescência e da cultura jovem nos filmes hollywoodianos e para indicar a centrali-
dade da adolescência na nossa cultura.

266 • Estudos Culturais em educação


Dos quatro filmes analisados, dois são da década de oitenta e dois
da de noventa; em todos eles, os sujeitos estudantes são representados
por diferentes atores e atrizes adolescentes. Também no conjunto dos
dezesseis filmes que analiso na pesquisa referida anteriormente, que vão
das décadas de sessenta a noventa, a predominância é das representações
do/a aluno/a adolescente. Apenas em um filme — Um tira no jardim de
infância — esses sujeitos são crianças de idades que variam entre qua-
tro e seis anos aproximadamente. Em^l história de Marva Collins, um
biofílme,8 há algumas crianças na sala de aula junto com adolescentes.
Em Sociedad? dos poetas mortos, na entrada do colégio, vêem-se alguns
meninos, mas a narrativa se desenvolve entre adolescentes.9
Como Hollywood constrói suas histórias sobre escolas, com estu-
dantes adolescentes? Os filmes hollywoodianos são, sobretudo, marca-
dos por sua característica comercial; são filmes que "vendem". Por que
filmes com uma narrativa sobre escola, professor/a e apresentando pre-
dominantemente alunos/as adolescentes se constituem em filmes de gran-
de apelo comercial, constando na lista dos filmes que têm boa saída no
mercado? Essa preferência se confirma pelo sucesso dos filmes que são
continuados em versões que se sucedem. Depois de trinta anos, Ho-
llywood produz Ao mestre, com carinho, Parte 2, com o mesmo ator
negro Sidney Poitier; também produz a continuidade do filme O substi-
tuto, este com outro ator no papel principal. Talvez investigando a quem
se destinam tais filmes, bem como o gênero dessas produções, possamos
encontrar algumas respostas nesse sentido. É com esse objetivo que en-
caminho as próximas análises.
Ariès (1981), desde uma outra perspectiva analítica, nos diz que,
durante um longo tempo, a sociedade viveu a infância como um longo
processo, e a adolescência consistia em uma preparação para a idade
adulta — o sonho de toda criança e adolescente. Nesse tempo, eram co-

8
Conforme Dalton (1996), são filmes que são baseados em material biográfico, muitas
vezes guardando pequena relação com esses dados.
9
Estou considerando aqui a classificação mais comum em nossa cultura que distingue
como criança os sujeitos até a idade de dez anos mais ou menos, puberdade ou pré-ado-
lescência dos onze aos treze e a adolescência até mais ou menos dezoito anos, ressaltan-
do que estas são convenções que as diferentes culturas estabelecem, mas para os fins aqui
identificados é necessária essa distinção.

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 267


muns as artimanhas dos jovens para parecerem mais velhos; o uso de
costeletas e de fraques pelos meninos e, pelas meninas, o uso de corpe-
tes e de saias com fartos forros e muitos enchimentos.
Hoje se observa o inverso. Esse mesmo historiador chama a aten-
ção para a ampliação do período da adolescência e designa o século XX
de "século da adolescência". Observamos, cada vez mais, uma precoci-
dade para o exercício das funções antes destinadas ao adolescente e ao
mesmo tempo uma longevidade no processo de "adolescer". Há um pro-
longamento desse período, em que pais, mães, tias e tios partilham com
os/as adolescentes os mesmos costumes, comportamentos, roupas, espa-
ços e ocupam-se em manter um corpo também jovem, "malhado", "es-
culpido". Há uma ampliação dessa fase do "ser adolescente", no sentido
em que as crianças são chamadas muito cedo a "adolescer", diminuindo
o período considerado culturalmente como infância, e os adultos, por sua
vez, são interpelados por discursos que falam de um retomo à adoles-
cência, ampliando, assim, esse período.
A psicanalista Kehl (1998) diz, em um artigo na Folha de São Paulo,
que se abriu um espaço nas relações: "isso significa que a vaga de 'adul-
to' em nossa cultura está desocupada" (p.7). Nesse mesmo Caderno, vá-
rios escritores/as e especialistas foram convidados para escrever sobre
esse fenômeno do nosso século, a adultecência 10. Com esse neologis-
mo é designada a "pessoa imbuída de cultura jovem, mas com idade su-
ficiente para não ser. Geralmente entre os 35 e os 45 anos, os adultecen-
tes não conseguem aceitar o fato de estarem deixando de ser jovens. Ao
mesmo tempo, ao jovem são delegadas cada vez mais cedo novas e im-
portantes responsabilidades, como é o caso, na sociedade brasileira, da
legislação que permite o voto aos dezesseis anos, bem como a recente
determinação que permite, em alguns Estados, aos jovens com quatorze
anos a direção de ciclomotores. Ao mesmo tempo, esses jovens têm per-
manecido por mais tempo no convívio de suas famílias.
O que desejei mostrar com esses exemplos são os múltiplos dis-
cursos que proliferam na sociedade sobre o "ser adolescente", discursos

10
O verbete foi extraído de Um glossário para os anos 90, de David Rowan publica-
do no Caderno Mais, de 20 de setembro de 1998, da Folha de São Paulo que, através
de diversos artigos, analisa por que os adultos copiam cada vez mais os adolescentes e
por que a cultura jovem tem se mostrado tão hegemônica.

268 • Estudos Culturais em educação


esses que são produtos de diferentes e múltiplas práticas sociais que se
estabelecem na cultura de diferentes povos e se diferenciam em dife-
rentes tempos e espaços. Esses discursos, através dos processos da glo-
balização e da mundialização da cultura, entre outras práticas, se tornam
cada vez mais uniformes e de grande força na imposição de sentidos.
Hollywood cria representações sobre o "ser adolescente" que contribui
na produção da identidade adolescente
Diversas análises da situação da sociedade capitalista atual têm nos
indicado que o mercado consumidor jovem é uma fatia desejada por to-
dos. Se essa é uma faixa de grande consumo, considerada uma parte do
mercado em que cada vez mais pessoas se enquadram, na lógica do mer-
cado, tudo indica que investir nela e chamá-la a consumir seus objetos de
desejo é a solução adequada. Tudo isso, aliado a outras práticas culturais
mostra a predominância da cultura jovem em nossa sociedade. Hollywood
ao representar intensamente em seus filmes os alunos e alunas como ado-
lescentes, reforça esse aspecto da cultura ocidental dessa época.
Hollywood, como indústria, aposta nesse filão do mercado. Os fil-
mes que selecionei para análise variam da comédia, da sátira, da ação-
aventura ao drama, mas todos eles apresentam astros famosos e com forte
apelo aos jovens adolescentes como uma forma de atrair esse público ao
cinema. Michelle Pfeiffer, Tom Berenger, Mark Harmon e Nick Noite
são alguns desses nomes. Tom Berenger de O substituto, atuou em Pla-
toon e Cães de guerra entre outros; Nick Noite, de Escola da desordem,
atuou em filmes do gênero como 48 horas, Sob fogo cerrado e Os três
fugitivos e Amold Schwarznegger, famoso pelos filmes de ação e ficção
científica, teve marcante atuação em filmes como Conan, o bárbaro, O
exterminador do futuro, O vingador do futuro e o O exterminador do
futuro 2. As sinopses apresentadas nas capas das fitas de vídeo e as ce-
nas escolhidas para ilustração nos mostram jovens, gangues, violência,
atores em ação, atriz sedutora, todos, considerados hoje como bons in-
dicadores para filmes que desejam atingir um público jovem. Com isso.
quero dizer que esses filmes têm um destino preferencial, e talvez essa
também seja uma das causas de não encontrarmos crianças em suas his-
tórias. Mas também a outra referência, já comentada anteriormente, ape-
nas reforça o argumento de que esses filmes são utilizados como "mo-
delo" também para as famílias e escolas, como forma de compreender
ou de se relacionar com esses jovens estudantes. Conforme Fischer

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 269


(1997), referindo-se aos filmes produzidos para adolescentes, "para os
meninos a combinação de violência e aventura também permanece como
fórmula de sucesso" (p.52). Canclini (1998), por sua vez, diz que o gê-
nero mais procurado nos videoclubes é o de ação-aventura.
Portanto, se o período da adolescência em nossa cultura passou a
ser um longo e desejado período e se o jovem é disputado nesse merca-
do, esses filmes, ao trazerem, preponderantemente, nas representações
de estudantes personagens adolescentes, de certa forma estão reforçan-
do essas posições. Se é possível dar um "adeus à infância", podemos,
com base em todos esses indícios culturais, saudar uma adolescência que
se estabelece na nossa cultura como uma fase prolongada e que se pro-
põe agregar tanto infantes como adultos. Podemos estar ingressando
numa cultura "adolescêntrica".

Gangues e Cia.

As cenas iniciais do filme Mentes perigosas são filmadas em preto


e branco e a câmera focaliza cenas de rua em que jovens perambulam,
picham paredes, correm. É um cenário que sugere degradação, sujeira, mi-
séria, imagens que são acompanhadas pela música de um rap11 e pelo som
de sirenes. Na linguagem fílmica, a filmagem em preto e branco é utiliza-
da para traduzir o sentido do "real" em toda sua intensidade; no caso deste
filme, recorre-se à essa técnica para mostrar o lado sombrio e trágico das
ruas. A música rap,12 originária das ruas e de grupos negros, vem auxiliar
na construção do significado de marginal, livre, violento, de não tradicio-
nal, de ruptura com o instituído. A cor aparece quando a escola entra em
cena. Os estudantes que aparecem na frente, nos corredores e nas salas de
aula são, em sua maioria, negros, mexicanos e pobres, mas todos/as ado-

11
Conforme indicação na própria ficha técnica, o filme recebeu o prêmio Grammy {rap
do ano) pelo rap Gangstas Paradise. RAP significa Rithym AndPoetry, ritmo e poesia.
Dados obtidos na home-page: http://www.infosim.com.br/gstyle e através de entrevis-
ta, pelo correio eletrônico, com um dos integrantes da página referida no seguinte ende-
reço: mútil@hydra.com.br
12
Rap é um gênero musical que surge no fmal da década de setenta nos EUA, corres-
pondente a uma postura desafiante ao sistema e considerado como a música característi-
ca dos líderes da comunidade negra. Cf.Revista Época, n.12, lOago. 1998.

270 • Estudos Culturais em educação


lescentes. Esses alunos e alunas reúnem-se em grupos, e os alunos do sexo
masculino são alvo da disputa de diferentes gangues.
Os estudantes de Escola da desordem são adolescentes de classe
média e enfrentam os desafios dessa condição social e dos questionamen-
tos próprios dessa fase da vida na nossa cultura. Há a aluna que pratica o
aborto após engravidar de um professor da escola e os jovens que se en-
volvem em roubos de carro, drogas e violência.
Curso de férias talvez seja o filme em que se observa uma maior
proximidade do professor com os/as alunos/as: usam o mesmo tipo de
roupas, freqüentam a mesma praia, os mesmos parques, etc. O espaço
do adulto professor é negociado com chantagens, o professor é um ado-
lescente entre adolescentes. Na maior parte do filme, o lugar do profes-
sor está vago, quem o ocupa é o amigo, o companheiro, o parceiro de
brincadeiras e de excursões. Não estaria a escola de Hollywood apresen-
tando o mesmo fenômeno da "adultecência" na figura do professor, onde
o adulto ocupa o lugar do adolescente e o seu lugar fica vago, nesse caso,
o lugar do professor e da professora?
Em muitas escolas são comuns as práticas pedagógicas que tentam
transformar o espaço escolar em um parque de diversões, o professor e a
professora em um/a companheiro/a, um/a amigo/a, um/a parceiro/a de fes-
tas e confidente. Teríamos de perguntar: qual é a função da escola? Não
estou com isso dizendo que o professor e a professora devam ser seres fri-
os, que não se relacionem bem com seus alunos e alunas, mas que isso
muitas vezes pode ser substituído pelo ensinar é a representação que Ho-
llywood procura construir na maioria de seus filmes. Varela (1996), refe-
rindo-se às pedagogias psicológicas, reforça esse aspecto, argumentando
que em muitas escolas, principalmente nas séries iniciais, há uma forte
rejeição à idéia de transmissão de conhecimentos. Essas escolas desenvol-
vem uma pedagogia psicológica em que mais importante do que os con-
teúdos são as referências ao lúdico-tecnológico, são aquelas que possibi-
litam à escola viver alguns deslocamentos no tempo e espaço escolares,
mas que não se constituem em transformações na concepção do espaço e
tempo moderno, pois continuam posicionando seus sujeitos em lugares
tradicionais da Modernidade. Há apenas um refinamento e uma transfor-
mação do poder que agora age flexibilizando as posições espaço-tempo-
rais e, portanto também os saberes. Essa autora mostra a estreita interde-
pendência das pedagogias psicológicas com o neoliberalismo consumista

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 271


"que tão bem se harmoniza com identidades moldáveis e diversificadas em
um mercado de trabalho cambiante e flexível que precisa de trabalhadores
preparados e disponíveis para funcionar" (p. 102).
Os/as adolescentes do filme O substituto são jovens que estão envol-
vidos no tráfico de drogas, em violência e em liberdade sexual. Em todos
esses filmes analisados, a linguagem adolescente é marcada por palavrões
acompanhados por gestos obscenos, como podemos observar nas seguintes
legendas traduzidas do í\\mQ Mentes perigosas : "Emílio comeu a professo-
ra anterior", "Merda!", "Vê como fala, sacana", "Vê como fala, peidorren-
to", "Bastardo", "Me lambe o rabo", "Diabo", "Que esporro".
Aqui, mais uma vez se observa a tentativa, não apenas dos estúdi-
os hollywoodianos, mas das distribuidoras, em adequar a linguagem ao
público a que se destina e na língua para a qual está sendo distribuído o
filme. Neste caso, o português do Brasil. No processo de dublagem e de
traduções de legendas se observam grandes discrepâncias com o sentido
produzido na língua original. Isso se nota não apenas nos títulos dos fil-
mes que, por exemplo, de expressões como Teachers (Professores) pas-
sa a significar Escola da desordem, Mr Holland's Opus (que numa tra-
dução literal poderia traduzir-se como Obra do Sr. Holland) passa a sig-
nificar Mr. Holland, adorável professor, mas também em muitas legen-
das, como aquelas referidas anteriormente, que são expressões com ou-
tra conotação nos EUA, adequada aos adolescentes daquele país. Com
isso não estou dizendo que há um sentido único e que a tradução deve
expressar esse esforço, captar o sentido "perfeito", ou que há qualquer
dificuldade demonstrada por essas empresas cinematográficas na ação
de traduzir, mas que isso é também um recurso na construção da signifi-
cação. Estou, com isso, apontando pára estratégias que, tanto os estúdi-
os hollywoodianos como as distribuidoras, utilizam para tomar seus pro-
dutos mais atraentes ao público a que se destinam e com um apelo mais
comercial, além de apresentar uma representação de jovem que só sabe
se comunicar através de palavrões e gírias.
Hollywood já foi denunciada por sua tentativa de impor aos ado-
lescentes um modelo estereotipado de jovens que atuam sempre em tur-
ma e integram o mundo da contravenção. O filme Kids, de Larry Clark,
sugere, segundo análise de Giroux (1996), uma demomzação da juventu-
de. Nele tudo converge para a sexualidade, as drogas e a violência. Os
jovens andam em grupos, são desocupados e não estudam. A câmera na

272 • Estudos Culturais em educação


mão de um estudante sugere que as imagens captadas apresentam a "ver-
dadeira" história dos/as adolescentes, a mais real delas, trazendo para as
telas de cinema o "verdadeiro" mundo desses adolescentes. A análise que
estou desenvolvendo foge das tradicionais formas de ver no filme a "ver-
dadeira adolescência", e tomá-la como expressão da realidade: ao con-
trário, faz com que questionemos essa imposição de sentidos. Será que
todos os jovens podem ser enquadrados na narrativa de demonização
criada por Larry Clark? A história de Kids vem reforçar visões, repre-
sentações que a sociedade criou para a juventude, entre elas a de que o
jovem só pensa em sexo, é violento e que a sociedade precisa encontrar
formas de defender-se, enfim, de exercer o poder disciplinar. Diferentes
análises, nesse campo, têm enfatizado que tais representações de ado-
lescência só tem contribuído para o estabelecimento de novos discursos
acerca do controle de uma juventude já tão acentuadamente vigiada.
Os estudantes adolescentes em filmes hollywoodianos que repre-
sentam a escola nas mais diferentes décadas, e no caso dos filmes agora
em análise, nas décadas de oitenta e noventa, são jovens que desafiam o
sistema; seja pelas roupas não convencionais, como em Curso de férias
seja pelo crime e rompimento com costumes tradicionais, como em À
escola da desordem, ou ainda pela violência e por gangues organizadas
como em O substituto. Giroux (1996), analisando a sociedade dos EUA^
diz que, nesse país, as políticas publicas não privilegiam os jovens prin-
cipalmente aqueles marcados pela exclusão social (pobres, negros, me-
xicanos, latinos) e que, ao mesmo tempo, os filmes hollywoodianos de-
sencadeiam uma política de demonização da juventude que vem refor-
çando uma imagem que desfavorece o jovem. Isso não ocorre apenas nos
EUA, já que as políticas públicas em todo o mundo, mas especialmente
nos países pobres, com grande concentração de renda, como é o caso do
Brasil, não privilegiam políticas para essa faixa da população.
Coelho13 (1991), no artigo em que descreve o funcionamento do
imaginário na mídia, exemplificado através do processo desenvolvido
pela televisão brasileira, declara que costumamos "esquecer que a força
e a violência são técnicas bem sucedidas de controle social (...). Autori-
dade, poder, força e violência, no Brasil, são sinônimos" (p. 120). O autor

13
Apesar de pertencer a outro referencial de análise, utilizo esse autor como interlocu-
tor desde um ponto de vista diferente.

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 273


afirma que a televisão usa a violência como forma de controle social, ate-
morizando a sociedade para que o autoritarismo apareça como recurso
salvador.
Hollywood ao eleger essas representações de jovens para apresen-
tá-las nas histórias sobre suas escolas, pode estar reforçando essa carac-
terística da nossa sociedade. Sabemos que as escolas vivem momentos
difíceis com o convívio com traficantes, usuários de drogas, gangues e
violência nas salas de aula, corredores e pátios. Uma recente pesquisa
de doutorado da PUC-Rio, que investigou a violência nas escolas —
transformada no livro Escolas, galeras e narcotráfico14 — mostrou que
os estudantes e docentes vivem dentro das escolas no limite da morte; as
pressões sobre professoras e professores com ameaças são constantes.
Além disso, estes/as entram no jogo de negociação com as diferentes
gangues em troca de proteção para seus carros e suas vidas.
Essas são condições não apenas brasileiras, constata-se, no mundo
todo, um aumento dos níveis de violência urbana. Mas, com certeza, há
outros modelos de alunos e alunas, como os descritos no trabalho de Fraga
(1997) sobre os "bons moços" e as "boas moças". As representações de
violência e de jovens violentos, tais como apresentadas nos filmes ho-
llywoodianos e na mídia em geral, parecem justificar as ações de vio-
lência por parte de professores/as, direções e seguranças. Essas repre-
sentações atuam no sentido de criar um modo de vestir, de andar, de fa-
lar, de se comportar e mesmo de "parecer" que produz na sociedade em
geral, uma certa identidade de grupos marginais, que acabam por justi-
ficar assassinatos como os ocorridos no Rio de Janeiro, na Chacina da
Candelária, em que muitas pessoas se posicionaram favoráveis aos ma-
tadores. Os assaltos, as constantes cenas de violência social, praticadas
por adolescentes, que são narradas pela mídia, parecem contribuir para
que se justifique a violência contra esses adolescentes.
Nesses filmes, podemos ver exemplificadas essas ações em dife-
rentes momentos: quando a professora de Mentes perigosas intimida a
turma dizendo ser da marinha dos EUA e saber lutar karatê; quando o
professor de O substituto luta com os alunos para desarmá-los e imobili-
zá-los. k Escola da desordem, por exemplo, apresenta um estabelecimen-

14
Trata-se do livro da professora Eloísa Guimarães, doutora em Educação pela PUC-
Rio, Editora UFRJ. Cf. Revista Veja, n.1495,27 maio 1998.

274 • Estudos Culturais em educação


to com muitos seguranças, onde a secretaria da escola mais parece uma
delegacia de polícia. Não podemos esquecer, entretanto, que o filme, neste
caso, se propõe a satirizar a situação da escola, onde um professor com
problemas mentais, fugitivo de um hospital psiquiátrico, se candidata e
ocupa o lugar de um professor da escola e transforma-se naquele que
melhor se relaciona com os alunos e alunas. Desenvolvendo as aulas de
uma forma ilustrativa em que os alunos e as alunas se interessam e parti-
cipam, suas aulas são dramatizações de fatos históricos em que ele agre-
ga a uma representação dos fatos uma vestimenta adequada aos perso-
nagens. Outro professor dorme durante o período de aula e morre na sala,
enquanto os estudantes realizam de forma automática os exercícios já
determinados. Esta morte só é descoberta após várias turmas entrarem e
saírem da sala deste professor, e este é o professor premiado por ter as
aulas mais disciplinadas. Assim, o filme se desenvolve satirizando mui-
tas situações da instituição. Mas a cena inicial do filme muito se parece
com uma delegacia de polícia: um aluno esfaqueado é colocado em um
banco, muitos entram, passam por ele como se fosse algo normal, que
fizesse parte do cotidiano da escola. Além dessa, há outras ocorrências
que apontam para situações de aparente insanidade, caricatas, para o
nonsense que se passa nos bastidores dessa escola, por exemplo, a psi-
cóloga que, na disputa pelo uso do mimeógrafo, tem um desequilíbrio
nervoso e ataca um colega agredindo-o e derramando-lhe tinta. Em Cur-
so de férias, a direção não permite saídas dos/as alunos/as do espaço es-
colar, justificando a proibição pelo mau comportamento destes.
Em filmes deste tipo, na posição de liderança estão sempre jovens
do sexo masculino, caracterizados simultaneamente pela violência e pelo
poder de sedução. Em Escola da desordem, Eddie (Ralph Macchio) é
um adolescente que usa roupas não convencionais (capa e chapéu),
protege seu amigo que é atrapalhado, colabora com a colega que está
grávida para procurar auxílio do professor e fazer o aborto, mas parti-
cipa da contravenção roubando carros. Em Curso de férias, os líde-
res são alunos inconseqüentes que têm muita criatividade para produ-
zir cenas macabras com maquiagem cinematográfica e criar cenas de
filmes de terror, usando motosserras para a mutilação do corpo huma-
no com o objetivo de atemorizar a professora substituta. Em O substi-
tuto, o líder faz parte de uma gangue e, além da roupa não convencio-
nal que usa, está sempre acompanhado de belas colegas. O filmeMcrz-

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 275


tes perigosas traz, no líder Emílio, o protótipo do sedutor e do líder que
tem relações com grupos violentos. Neste filme, há uma disputa de
domínios e espaços através da violência.
Em boa parte desses filmes, a mulher jovem, a aluna, desempenha um
papel de sedução em relação ao professor. Pam, de Curso de férias, tenta
seduzir o professor Shoupe. Os meninos, por sua vez, ocupam outro lugar,
em que a relação que se desenvolve é muito mais de violência do que de
sedução. Emílio devora com os olhos a professora (Michelle Pfeiffer) e com
atitude violenta afirma: "vou te comer". Em O substituto, a professora (Di-
ane Verona) é agredida gestual e verbalmente e é ameaçada pelo líder: —
"Sr. Laças, estou lhe falando por que é inteligente e é um líder. Quero que
preste atenção dois minutos", ao que o aluno responde: — "não estou a fim
de sermão". A professora retruca: — "Estou lhe falando com respeito", e o
aluno volta à carga; — "Pois eu não te respeito, piranha. Se não der o fora..."
Replica a professora; — "Se não der o quê?" Completa o aluno: — "Vai se
arrepender prá caralho!"
No primeiro filme Ao mestre, com carinho, o professor Mark é vá-
rias vezes abordado pela aluna Pamela, uma jovem loiríssima. Poderíamos,
em um primeiro momento, pensar que Hollywood estivesse tentando de-
senvolver alguma política anti-racista, pois Sidney Poitier é um ator famo-
so por atuar em filmes anti-racistas. Nesse filme freqüentemente o pre-
conceito é trazido para a cena principal, como nas falas do professor Wes-
ton que recepciona o novo professor com palavras tão animadoras: "Está-
vamos esperando você. O novo cordeiro do matadouro. Ou devo dizer
'ovelha negra'?" Também aparece nas falas dos alunos e alunas que cha-
mam o professor de tição. Ou, ainda, no desafio dos estudantes quando se
negam a levar as flores aos funerais da mãe de um colega negro, até a
cena onde o professor, ao pegar uma lata dé refrigerante no ar, se corta e
um aluno diz em brincadeira; "E sangue vermelho!", numa contundente
alusão à cor do professor que teria outra cor também para o sangue. Pa-
mela é uma mulher branca, loura, bela e, mesmo assim, interessada por um
negro. Hollywood só poderia dar a seqüência que o filme tomou, o profes-
sor vai aconselhar-se com uma professora mais experiente da escola, que
diz que ele não deve ficar sozinho com Pamela. Mas, como em todos os
filmes hollywoodianos, o politicamente correto e as distinções de raça e
sexo são representados e definem a narrativa; os negros devem manter
relações afetivas com negros, professores e professoras devem se manter

276 • Estudos Culturais em educação


afastados/as afetivamente de seus alunos e alunas. A diferença é que ao
professor é permitido o assédio por parte das alunas na dimensão de um
possível envolvimento amoroso; com as professoras isso não acontece, elas
são ameaçadas, ou apenas podem manter amizade com seus alunos.
Pode-se observar uma diferença entre os dois filmes da década de
oitenta e os dois filmes da década de noventa. Em Curso de férias e Es-
cola da desordem, da década de oitenta, além do gênero (comédia-sáti-
ra) que contribui para que os filmes dessa década sejam menos violen-
tos, os jovens são espertos, criativos, problemáticos, mas menos violen-
tos. As próprias trilhas sonoras utilizadas nos filmes de oitenta são mú-
sicas de preferência dos jovem da época, mas de gêneros mais conven-
cionais, já as músicas dos filmes de noventa são predominantemente o
rap que além de popular, carrega uma conotação de agressão ao siste-
ma, a marca das classes marginais, da vida das ruas, da etnia negra. Quan-
to ao gênero, são filmes de ação-aventura e com atores e atrizes que tra-
zem a marca da atuação em filmes mais violentos.
Parece que Hollywood incorpora uma política racista e sexista, em
que os homens podem ser desejados, mas resistirão às tentações; as mu-
lheres professoras continuam assexuadas, lembrando a gênese da escola
onde eram preferidas as mulheres sós, as viúvas ou solteironas para a
função de professora. Uma relação permitida aos professores dos filmes
hollywoodianos é com suas parceiras professoras. Sidney Poitier é dis-
putado pela colega loira no primeiro filme, já no segundo filme pela co-
lega morena. Em Escola da desordem, Nick Noite faz par romântico com
uma ex-aluna, que retoma à escola como advogada. Em Momentos de-
cisivos, o técnico do time de basquete e professor de história se apaixo-
na pela colega. Em Curso de férias, Shoupe conquista sua colega e em
Cm tira no jardim de infância, John Kimble também consegue conquis-
tar sua colega e mãe de um aluno seu. Os filmes hollywoodianos apre-
sentam como relações "normais" as heterossexuais e que não envolvam
estudantes e mestres. Certamente podemos fazer aqui uma relação com
a origem da escola moderna que surge como uma instituição ligada à re-
ligião, em que seus mestres deviam ser modelos de virtude e detentores
de uma moral rigorosa, além da política sexista da sociedade ocidental
que situa a sexualidade masculina e feminina dentro de certos padrões
estabelecidos do que é tido como certo e errado e do que é adequado ao
masculino e feminino.

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 277


Como referi anteriormente, os alunos e as alunas dos filmes de
Hollywood são representados como sujeitos estudantes característicos
da cultura de uma sociedade moderna, posicionados como participantes
de gangues, violentos, mas, ao mesmo tempo, à espera de um/a salva-
dor/a; são sujeitos estudantes que são objetivados e subjetivados pela
cultura moderna. O "olhar" de Hollywood representa esses alunos e alu-
nas em posições e com características próprias dessa sociedade.
Com essas narrativas, Hollywood reforça certos comportamentos
sociais da juventude como típicos e nesse quadro está a violência, repre-
sentada principalmente pelas gangues e pelo envolvimento com o tráfi-
co de drogas. Parece que Hollywood, ao eleger essas representações de
jovens e apontar como solução o discurso salvacionista do magistério
amplamente disseminado em nossa cultura, tem contribuído para acen-
tuar diferentes processos de inclusão e exclusão, em que os jovens, prin-
cipalmente posicionados em classes sociais menos favorecidas são os
mais estigmatizados.

Desorientados, desinteressados, sem


conhecimentos, à espera de salvação...

Os/as alunas dos filmes hollywoodianos são adolescentes, apre-


sentados como "bagunceiros", violentos, pertencentes a gangues, e,
além disso, são desorientados e têm muitos problemas: em Escola da
desordem, uma família entra com uma ação contra a escola porque o
filho concluiu o ensino médio e não sabia ler nem escrever; em Cur-
so de férias, o professor constata "üma aluna com dislexia, os alunos
não sabem nada de inglês, que é a disciplina que ele está ensinando,
são alunos e alunas com os mais diversos problemas — uma adoles-
cente está grávida e não sabe quem é o pai da criança, um menino é
alérgico e desajeitado. Isso também é comum no íúmz Mentes peri-
gosas em que a professora pergunta ao seu colega: "Quem são es-
ses jovens? Rejeitados do inferno? Não. São inteligentes, com pouca
ou nenhuma habilidade educacional. O que educadamente chamamos
de problemas sociais". Nos quatro filmes o desinteresse faz parte da
narrativa, os/as alunos/as não querem estudar, rejeitam a ação da es-
cola.

278 • Estudos Culturais em educação


O argumento que estou apresentando é que Hollywood, ao contar
histórias, constrói seus alunos e alunas de tal forma problemáticos que
eles ficam à mercê de alguma ação que os transforme, criando, assim,
uma expectativa para o salvamento; o professor ou a professora desem-
penharão essa função. Quando o professor Mr. Smith (Tom Berenger),
depois de várias demonstrações de agilidade e força (pois é ex-comba-
tente do Vietnã), questiona a turma sobre a violência, notamos o quanto
os/as alunos/as pedem, desejam um salvador/a; "O que querem para
vocês? Para os filhos de vocês? Quantos aqui têm filhos? (uma grande
maioria levanta a mão, até para a surpresa de alguns colegas) Querem
seus filhos em gangues? Se é tão legal, por que não?"
O professor substituto vai conversando com os/as estudantes que
declaram não querer ver seus filhos e filhas machucados/as, ao que ele
se alia, dizendo que também não quer isso para seus alunos e alunas, até
que eles fazem a pergunta que os posiciona como desej antes da ação do
professor; — "Então, o que devemos fazer?" A resposta do professor
vem em seguida: — "Não vou enganá-los, não tenho todas as respostas.
Mas quero que todos vocês sobrevivam". Com essas palavras, de um
roteiro que apela para a possibilidade de escapar daquele mundo, com o
enquadramento da câmera que focaliza ora o professor (em classe), ora
os/as alunos/as — provocando no público uma possível identificação —
, mais a música suave e calma, é construído o sentido de entendimento,
cumplicidade, salvação. A linguagem cinematográfica usa recursos que
facilitam a construção de diferentes significados para o público.
São muitas as cenas nas quais notamos essa ação dos/as alunos e alu-
nas que depois de desafiarem seus professores e professoras entram em
negociação. Em Mentes perigosas, a professora faz uma espécie de chan-
tagem sentimental, utilizando várias estratégias: sorteios, ensino de Karatê,
visitas ao parque, subsídio de jantares em restaurante e, assim, vai conse-
guindo aproximar-se deles. Em Curso de férias, o professor atende a um
pedido de cada aluno/a, também usa estrategicamente as excursões e saídas
da escola. Em O substituto, o professor desarma um aluno, revida o arre-
messo de uma lata de refrigerante. Os/as alunos/as esperam pela ação do/a
professor/a, respondem com criatividade e inteligência, mas isso só depois
da ação de salvamento, da estratégia que o/a professor/a utiliza para romper
com a apatia, desordem, violência, não aprendizagem. Até então nada acon-
tece, tanto na aprendizagem como na relação desses estudantes.

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 279


Hollywood posiciona os/as alunos/as de seus filmes em um lugar
de "não saber", do fraco, do incompetente, do desajeitado, do problemá-
tico, mas também como aquele/a que tem potencial desde que "se do-
bre" aos sentidos que a escola lhes apresenta, que são os sentidos hege-
mônicos na sociedade.
Historicamente, o/a aluno/a foi construído/ como aquele que não sabe.
A pedagogia e a psicologia construíram um sujeito estudante com certas
características, esse lugar está longe de ser um lugar de saber. É comum a
desconsideração das experiências desse sujeito; tudo e todos devem apren-
der na escola, é ela que ilumina, dá o conhecimento, os toma mais sábios.
A escola moderna desenvolve rituais através de sua organização curricu-
lar que posicionam esse sujeito estudante no tempo e espaço disciplinar,
em que o poder disciplinar rege e determina o quê e como deve fazer, o
quê e como deve saber, como e quando isso deve acontecer.
Hollywood permite que o/a salvador/a não dê conta de alguns pro-
blemas como é o caso dos traficantes (Emílio, o líder da turma ao dispu-
tar a namorada com um ex-presidiário é morto) e o caso do professor do
filme Escola da desordem que leva uma aluna a uma clínica para fazer
um aborto. O professor é despedido enquanto que aquele que engravi-
dou a moça é apenas repreendido. Ao mesmo tempo que Hollywood co-
loca no professor e na professora o papel de salvador afirma, por dife-
rentes formas, a incompetência da escola em resolver certos problemas
sociais. A escola fica à mercê das drogas, da violência, em que só um
herói, um outsider15 pode surgir com a solução.
Há uma ambivalência: ao mesmo tempo que Hollywood constrói
suas histórias com meninos e meninas violentos, "bagunceiros", nessa
mesma narrativa eles e elas se transformam e passam a ser dóceis com-
panheiros/as, amigos/as sinceros/as e ficam longe de confusões. São alu-
nos e alunas que voltam a se interessar pelo estudo, permanecem em si-
lêncio (qualidade desejada pela escola) e são participativos. Transfor-
mam-se em "bons moços" e "boas moças", produtivos, eficientes e inte-
grados à sociedade, aqueles que não "se dobram", são excluídos. Mas o
próprio "bom-mocismo" tem suas vantagens para esses adolescentes que

15
Com essa expressão, Dalton (1996) define os docentes que se situam fora do grupo
convencional, renegados.

280 • Estudos Culturais cm educação


passam a ocupar um outro espaço nas preocupações da sociedade, não
mais como grupos que precisam ser vigiados e punidos, se necessário,
mas como aqueles que já podem ser incorporados, pela sua boa conduta
e comportamento, ao mercado de trabalho e ao mundo dos adultos.
Hoje, alguns estudos tais como o de Fischer (1998) e de Fraga
(1998) estão mostrando que uma parcela dos jovens apresenta, em rela-
ção à sexualidade e à vida familiar, um comportamento que pode ser in-
terpretado como um retomo a alguns valores tradicionais^ como é o caso
da virgindade e da vida familiar, demonstrando um comportamento di-
ferente daquele apontado como usual para os/as adolescentes. A pesqui-
sa de Fraga (1998)lc fala sobre o bom-mocismo a partir de uma experi-
ência em uma escola onde a religião desenvolve um discurso que inter-
pela a maioria dos jovens e os subjetiva no processo de viver a adoles-
cência determinando posições específicas para a "boa-moça" e para o
"bom-moço ' dentro do núcleo familiar e da comunidade. Com isso, es-
tou também, com base no autor e autora mencionados, marcando a pos-
sibilidade de fissuras, de alterações nos discursos hegemônicos de de-
monização da juventude. Os/as adolescentes de Kids, como os dos de-
mais filmes hollywoodianos, não expressam o que é considerado social-
mente "ser adolescente" em todos seus possíveis matizes e facetas. Ho-
llywood seleciona algumas representações e com elas pretende fixar uma
identidade para esse adolescente. O adolescente pode ser descrito por
diversos e múltiplos discursos. Não é um único e imutável discurso so-
bre o adolescente que vai dar conta das múltiplas e diferentes identida-
des sociais que o constituem.
Hollywood, ao trazer essas cenas de retorno a um "novo" modo
de vida, de restabelecimento da "normalidade"* social, estaria apos-
tando no poder de transformação do/a aluno/a, ou estaria apenas mos-
trando que o lugar desse sujeito estudante é esse aí apontado pelos
filmes: um/a aluno/a conformado/a, disciplinado, obediente, estudio-
so, produtivo? Os filmes parecem dizer que é importante ser um bom
moço e uma boa moça para que, ao término do ensino médio, estejam
capacitados/as ao mundo da produção, mundo esse que parece, atra-

16
Trata-se da pesquisa realizada em uma turma de 8' série de uma Escola do municí-
pio de Cachoeirinha/RS.

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 281


vés de suas promessas, suprir as "causas" das carências adolescen-
tes antes apontadas. Mais uma vez é preciso trazer Foucault (1996)
à cena para reforçar o que entendo desse processo. Foi esse filósofo
francês quem chamou a atenção para a semelhança entre a escola, o
quartel e a fábrica, no sentido de que todas essas instituições estão
encarregadas de "normalizar", disciplinar, pois elas desenvolvem
políticas reguladoras das condutas.
Foucault (1996), ao estudar a prisão, o hospital, o exército, etc., de-
tecta um tipo de poder agindo sobre os corpos dos sujeitos, tornando-os
"úteis" e "dóceis", adequando-os ao funcionamento da sociedade capi-
talista e industrial. Nesse processo, uma tecnologia específica de contro-
le, de governo, entra em ação, constituindo o que ele vai chamar de po-
der disciplinar, poder que é característico da sociedade moderna. A es-
cola ao se constituir em um lugar que contribui para a organização e
manutenção do Estado moderno desenvolve o que Foucault (1979) de-
signa como govemamentalidade (gouvernementahté), isto é, as práti-
cas de governo ou de gestão governamental; as técnicas de dominação
sobre os outros e as técnicas de si. Produz, assim, um sujeito autogover-
nável. Um sujeito que é objetivado e subjetivado pelas práticas culturais,
que o "normalizam" através de práticas de governo que dizem o que é
bom e melhor para esse sujeito, "o que é" e o "que deve ser" a "realida-
de". É nesse processo de governo da ação dos outros que Foucault apre-
senta sua concepção de poder relacionai. O poder não se encontra só no
Estado, mas em todas as relações. Ele diz em Dreyfus e Rabinow (1995):

As formas e os lugares de "governo" dos homens (sic) uns pelos outros


são múltiplos numa sociedade: superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se
e anulam-se, em certos casos, e reforçam-se em outros, (p.247).

Os estudantes das escolas dos filmes hollywoodianos são jovens das


camadas populares, gente das ruas, com as marcas da exclusão social. São
adolescentes que já estão assumindo a paternidade e a maternidade, que
convivem com a gravidez precoce, com o aborto, com a violência das gan-
gues de narcotráfico, com os problemas familiares e com a pobreza. As-
sim, justifica-se o sacrifício, a missão do mestre como de um verdadeiro
herói ou heroína que terá de salvar rebeldes, renegados/as, e quea se pre-
ciso, poderá usar da repressão, pois estes são mesmo muito violentos.

282 • Estudos Culturais cm educação


O que há de "novo" nesse sujeito adolescente produzido por Ho-
llywood? Nesses filmes, observa-se a mesma matriz: muda o cenário,
mudam os atores e atrizes, o roteiro, mas os personagens estudantes são
os mesmos. O processo de subjetivação desses estudantes adolescentes,
alunos e alunas, pelo processo educativo, é marcante em todos os filmes;
o/a professor/a tem a solução para os seus problemas, basta enquadrá-
los em outro registro, eles se reconhecem em outro discurso e constitu-
em-se com a identidade de um/a aluno/a que estuda, toma-se criativo/a,
obediente, amigo/a, trabalhador/a, um bom-moço e uma boa-moça, um
"verdadeiro estudante , adequado, eficiente para o sistema que o quer
no processo de produção.
A escola dos filmes de Hollywood se parece em muitos aspectos
com a escola de nossos dias, assim como há muita semelhança entre os
alunos e alunas desses filmes e os/as de nossas escolas, mas nem tudo e
todos são também como mostra a mídia, no caso dessa análise, como
propõem os filmes hollywoodianos. A pedagogia que Hollywood desen-
volve sobre como é ser aluno/a não traz nada de novo, principalmente
quanto à posição de aprendiz, um jovem que a escola de Hollywood con-
segue "domar" e transformar em dócil e obediente, um jovem e uma jo-
vem encaminhados na vida e prontos para o mercado.
Vários filmes mostram em suas cenas o encaminhamento desses
alunos e alunas a partir da ação da escola após a formatura, como é o
caso de Mr. Holland, adorável professor, em que a aluna que mais di-
ficuldades apresentou no aprendizado da flauta, exigindo de Holland
uma dedicação especial e aulas particulares, é quem faz o discurso na
homenagem ao professor, trinta anos depois, e é apresentada como go-
vernadora do lugar onde a escola se localiza. A história de Marva Co-
llins é um filme em que as cenas finais mostram o destino da professo-
ra e dos alunos e alunas da primeira turma em que é anunciado, atra-
vés de breve currículo, o sucesso do trabalho de Marva Collins. Ao
mestre, com carinho, Parte 2, apresenta jovens preocupados com o
emprego, alguns já encaminhados. Todos eram da turma do Professor
Mark, antigos alunos problemáticos, e tomaram-se alunos e alunas bem
sucedidos e enquadrados no sistema. A escola cumpre, afinal, sua fun-
ção de controle social. Hollywood reforça essa função da escola. A es-
cola dos filmes de Hollywood tem o poder de garantir o sucesso para
todos e todas que "dobram-se" a ela. Parece que a tese de Narodowski

Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante • 283


(1998) se confirma: uma escola moderna só pode produzir dentro des-
sa tradição e, assim, penso que a máxima da escola moderna se confir-
ma nos filmes hollywoodianos: "civilizar", e conduzir todos e todas (que
tenham vontade) ao progresso.
Proponho como uma possibilidade de questionamento dessa narra-
tiva escolar apresentada por Hollywood pensarmos na direção proposta por
Green & Bigum (1995), que anunciam que os sujeitos estudantes possam
ser sujeitos encarnados no tempo e espaço pós-modemo, mas que haja a
possibilidade do encontro e trocas entre os cyborgs geracionalmente dife-
rentes. Parece que isso seria possível com um aluno e uma aluna que pu-
dessem ser respeitados/as em suas crenças, desejos, preferências sexuais,
aspirações políticas, raças. Que suas histórias diferentes e múltiplas pu-
dessem ocupar a cena principal em nossas escolas, e não esperar por um/a
salvador/a ou por alguém que fale por eles e elas nos espaços que ocupam.
Que esses alunos e alunas possam ocupar espaços de aprendizagem e de
construção do conhecimento sem as marcas que Hoollywood vem definin-
do como hegemônicas para a cultura adolescente. Uma escola com sujei-
tos estudantes que possam contar suas próprias histórias, talvez faça parte
do processo de desnaturalização desta instituição. Processo no qual talvez
possamos passar a entendê-la como uma instituição que não é eterna nem
natural. Este, talvez possa ser o desafio para os/as educadores/as compro-
metidos com a vida dos/das jovens de nossas escolas nesse milênio que se
aproxima. Tentar questionar as narrativas hegemônicas (raça, religião, sexo,
violência, classe social...) que são descritas, pelas mais diferentes formas
e meios, sobre os alunos e as alunas, pode ajudar nesse processo.

Referências bibliográficas

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Escola da desordem (Teachers). Diretor; ArthurHiller. 1984.
Mentes perigosas (DangerousMinds). Diretor; JohnN. Smith. 1995.
O substituto (The Substitute). Diretor; Robert Mandei. 1996.

286 • Estudos Culturais em educação


Autores e autoras

Alfredo Veiga-Neto é professor titular em Ensino e Currículo, atuando no Pro-


grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul. Graduado em História Natural e Música, é mestre em Genética e dou-
tor em Educação. Nos últimos anos, vem trabalhando numa perspectiva pós-
estruturalista —principalmente a partir do pensamento de Michel Foucault
sobre questões relacionadas a Estudos da Ciência, Currículo e Disciplinarida-
de. É autor de inúmeros artigos e capítulos de livros e organizador de Critica
pós-estruíuralista e educação (Editora Sulina, 1995), traduzido e publicado na
Espanha em 1997.
E-mail: veigato@portoweb.com.br; http://www.ufrgs.br/faced/alfredo
Cristianne Famer Rocha é mestra em Educação na linha de pesquisa Estudos
Culturais (UFRGS); onde recentemente concluiu pesquisa sobre o tema espaço
escolar e currículo. E graduada em Comunicação Social e cursou paralelamente a
Faculdade de Arquitetura (UFRGS), não tendo concluído o curso. E especialista
em Metodologia do Ensino Superior (PUCRS), professora de Italiano (com for-
mação na Università Dante Alighieri, Itália) e desenvolve diversas atividades re-
lacionadas ao ensino de língua italiana no Rio Grande do Sul.
E-mail: crisrocha@pro.via-rs.com.br
Eli Henn Fabris é mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS, na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educação. Atu-
almente é professora da Faculdade de Educação da UNISINOS. Organizou em
co-autoria o livro Espaço-educacional e autoria social e possui outros traba-
lhos publicados.
E-mail: fabris@bewnet.com.br
Luís Henrique Saeehi dos Santos é biólogo e mestre em Educação pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da UFRGS onde atualmente é doutoran-
do na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educação e bolsista do CNPq.
Tem textos publicados no livro Ciências na sala de aula (organizado por Daisy
Lara de Oliveira, 1997, Editora Mediação) e na revista Educação e Realidade
(v.22,n.2,1997).
E-mail: luishss@poa.sol.com.br
Maria Isabel Edelweiss Bujes é professora aposentada da UFRGS e doutoran-
da em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma Uni-
versidade. Atualmente coordena o Grupo de Estudos em Educação Iníantil (GEIN).
Tem realizado pesquisas na área da Educação Infantil com interesse específico
pela questão pedagógica — currículo e prática pedagógica — e a íormação de
professores. Atualmente desenvolve pesquisa na linha de Estudos Culturais em
Educação, voltada para a análise do discurso pedagógico na educação infantil.
E-mail: mibujes@zaz.com.br
Marisa Vorraber Costa é licenciada em Filosofia, doutora em Educação e pro-
íessora titular em Ensino e Currículo. Atua no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS onde atualmente coordena o NECCSO (Núcleo de Estu-
dos sobre Currículo, Cultura e Sociedade) e desenvolve pesquisas sobre tra-
balho docente, currículo e cultura. É autora de Trabalho docente e profissio-
nalismo (Editora Sulina, 1995) e organizadora de Caminhos investigaíivos - no-
vos olhares na pesquisa em educação (Editora Mediação, 1996), Escola bási-
ca na virada do século: cultura, política e currículo (Editora Cortez, 1996),
Educação popular hoje (Editora Loyola; 1998) e O currículo nos limiares do
contemporâneo (Editora DP&A, 1998). E pesquisadora do CNPq.
E-mail; vorraber@portoweb.com.br
Marise Basso Amaral é bacharel em Ciências Biológicas e mestra em Educa-
ção pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. Atualmente é
doutoranda na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educação, no mesmo
Programa, desenvolvendo estudos sobre mídia, natureza e educação. É bolsis-
ta do CNPq. lem artigos publicados nas revistas Episteme (v.2 n 4 1997) e Edu-
cação e Realidade (v.22, n.2, 1997).
E-mail: luishss@poa.sol.com.br
Norma Regina Marzola é graduada em Filosofia, mestra e doutora em Educa-
ção pela UFRGS. E professora do Departamento de Ensino e Currículo da Fa-
culdade de Educação da UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção. E bolsista do CNPq, desenvolvendo estudos sobre cultura e alfabetismo
lem vários trabalhos publicados, entre eles, um capítulo em Crítica pós-estru-
turalista e educação (Editora Sulina, 1995).
E-mail: nmarzola@netmarket.com.br
Rosa Maria Hessel Silveira é mestra em Língua Portuguesa e doutora em Educa-
ção. E professora titular aposentada da UFRGS e professora colaboradora convi-
dada do Programa de Pós-graduação em Educação da mesma universidade. Atua
como docente e em pesquisas relacionadas ao ensino de Língua Materna, com ên-
fase em leitura e produção textual, dedicando-se mais recentemente às questões de
analise discursiva e textual de revistas e de literatura infanto-juvenil, dentro da pers-
pectiva dos Estudos Culturais. Tem trabalhos publicados em revistas e livros; dentre
os mais recentes, destacam-se: Horizontes plurais - novos estudos de gênero no
Brasil (Editora 34), O currículo nos jimiares do contemporâneo (Editora DP&A),
Ensino de Língua Materna - para além da tradição (Editora Mediação).
E-mail; rosamhs@zaz.com.br

Fotolítos
Seleção Fotolitos
Av. Quintino Bocaiúva, 451 - Porto Alegre, RS
Fone/Fax (51) 346-2111
Impressão
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Rua Waldomiro Schapke, 77 - Porto Alegre, RS
Fone (51) 336-0422 e 336-2466
os aspectos da vida social. Trata-se de
abordd-la como um processo social de
significação, marcado por relações de
poder que produzem efeitos políticos,
que não estávamos acostumados a levar
em consideração.
Quando realizamos Estudos Cul-
turais em Educação, nosso objetivo é
examinar a educação, o currículo esco-
lar e outras manifestações civilizatórias
como campos em que estão em jogo
múltiplos elementos, implicados em re-
lações de poder, compondo terrenos da
política cultural. As escolas e seus currí-
culos, bem como os espaços culturais
que as circundam e com elas intersec-
cionam e íangenciam são territórios de
produção, circulação e consolidação de
significados, são espaços privilegiados
de concretização da política cultural de
identidade. Nesses espaços se produz o
governo e a regulação das pessoas, e os
mesmos têm sido, freqüentemente, o
lugar da subordinação, da desigualda-
de e das injustiças sociais.
alfredo veiga-neto

cristianne ffamer rocha

elí henn fabris


i

luís henrique dos santos

maria Isabel bujes

marisa vorraber costa

marise basso amaral

norma regina marzola

rosa hessel silveira

UFRGS
EDITORA

ISBN 85-7025-748-

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