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GEOGRAFIA POLÍTICA
Aula 3
Embora a geografia política tenha menor alcance que a geografia social, urbana ou
econômica, recentemente começou abrir-se a temas tais como as relações interestatais,
movimentos sociais, ecologia, violência e guerra, fronteiras, migração e cidadania,
políticas de identidade, organizações internacionais, democracia e justiça ambiental
(LOW, 2003:625). Em termos gerais, essa afirmação é igualmente certa para a chamada
“geopolítica crítica”, um enfoque moderno, mas cuja projeção se vê limitada na
América Latina devido ao peso dos temas elaborados nas escolas de guerra e pelas
contrapropostas críticas de acadêmicos de países como Argentina e Uruguai.
Desafortunadamente para ambas, nesse âmbito, a primazia do Estado continua
sobrecarregando a geografia política e a geopolítica.
Para certos efeitos, a geopolítica tem sido tanto a cara pública da geografia política,
quanto sua maior carga histórica. O uso diverso de seus conceitos conferiu ao termo um
caráter polissêmico e até certo ponto arbitrário, até se tornar moeda corrente da
linguagem de tomada de decisões, das relações internacionais e do jornalismo. Mais
ainda, embora o geopolítico implique uma miríade de fenômenos diferentes em cada
contexto e escassamente relacionados com alguma tradição intelectual reconhecível, e
apesar de suas contradições e ambiguidades, ele não parece preocupar nem aos políticos
nem aos “intelectuais da segurança” (ATCKINSON, 2001:426).
Pois bem, esse texto do geógrafo Pedro Castro nos incita a pensar a relação estreita entre a
geografia política e a geopolítica em seu período clássico. Desse texto, extraímos, logo de saída,
a informação básica sobre a primazia da figura do Estado, ou seja, sobre a primazia dos estudos
sobre as suas atividades, suas dimensões espaciais e a organização das relações de poder tanto
em seu interior quanto entre Estados. Esses estudos constituíam o tema central das análises
apresentadas pelos autores clássicos. Desse modo, parece-nos bem justificado o rótulo de
‘estadocêntrica” atribuído por Claude Raffestin a essa geografia política (e, por extensão, à
geopolítica) clássica, sem concessões à dúvida. Igualmente, extraímos a informação de que, nas
suas origens, tanto a geografia política quanto a geopolítica foram elaboradas em torno dos
interesses dos Estados que, à época, disputavam a hegemonia mundial. Daí a coerência da lista
de nomes europeus e norte-americanos que apresentamos e analisaremos. O texto de Pedro
Castro aponta também para um movimento de renovação dessa geopolítica que, afinal, não
ficou estagnada nos balizamentos clássicos. Por isso o autor se refere a uma geopolítica crítica,
como um enfoque moderno desse ramo do conhecimento. Esse enfoque será estudado por nós,
em aulas oportunas.
Então, é possível afirmar que a geopolítica tem sido a cara pública da geografia política?
Na geopolítica clássica, nomes como os de Halford Mackinder, Karl Haushofer, Alfred Mahan,
Nicholas Spykman foram cruciais devido às hipóteses geoestratégicas sobre o poder mundial
por eles apresentadas. Como veremos, essas hipóteses geoestratégicas tiveram desdobramentos
históricos notórios, além de influenciar autores importantes como Zbigniew Brzezinski, por
exemplo. Então, entender a geopolítica clássica implica examinar a contribuição desses autores
e suas ideias. Nesta aula, estudaremos especificamente as contribuições de Mackinder e
Haushofer.
Iniciemos por esclarecer o que era o pivô geográfico. Essa expressão foi empregada por
Mackinder para se referir a imensas extensões continentais existentes no território da Rússia
czarista, correspondentes, grosso modo, às terras siberianas. Em outras palavras, tratava-se uma
área geográfica localizada na Rússia. Posteriormente, Mackinder revê sua teorização e renomeia
esta área pivô com o termo heartland (que os franceses traduzem como coração mundial, e
outros a ele se referem como região pivô, região eixo, terra central ou coração continental).
Esse heartland é definido a partir dos parâmetros que mencionamos: a) a configuração de terras
e mares, constituindo uma área estratégica dentro da massa continental da Eurásia; e b) a
consecução de um espaço autárquico, isto é, dotado de recursos que o torna autossuficiente.
Acrescente-se que, sobretudo, o heartland é visto por Mackinder, como uma fortaleza natural,
inexpugnável, atravessada por cursos hídricos vitais (como o rios Ob, Ienissei, Lena, Volga,
Amudária e Sidária), pois sua posição geográfica lhe permite desfrutar dessa condição, já que,
ao norte, o acesso é dificultado pelo rigor do clima que, inclusive, congela os mares; a leste, o
acesso é dificultado pelas imensas distâncias preenchidas pela maior floresta do mundo, a taiga
siberiana; a oeste, o acesso é dificultado pela barreira orográfica interposta pela presença dos
Montes Urais; e, ao sul, o acesso é dificultado pelo horizonte amplo constituído pelas estepes
que ainda oferecem condições favoráveis de mobilidade para os povos nômades e pastoris da
Ásia Central. Por isso, a referência à imagem de uma fortaleza natural, obviamente,
considerando-se os limites tecnológicos do poder aéreo daquele início de século XX.
Nessa teorização, Mackinder chama a atenção de estudiosos e de estadistas para dois aspectos
teórico-metodológicos fundamentais. O primeiro é a visão que ele tinha sobre o poder terrestre,
reconhecendo a sua relevância e identificando geograficamente o seu núcleo estratégico no
heartland. Estavam em jogo duas visões estratégicas sobre o exercício do poder ao nível
mundial, de fato, duas cosmovisões sobre esse exercício: o continentalismo (apoiado no poder
terrestre) e o oceanismo (apoiado no poder marítimo). Mackinder admitia a importância da
relação entre ambos, tendo enfatizado, inicialmente, o continentalismo. O segundo aspecto diz
respeito à subversão que Mackinder provoca na percepção da posição geográfica da Europa.
Acostumados há mais de quatrocentos anos com a projeção cartográfica do geógrafo flamengo
Gerardus Mercator (1512-1594) cujo mapa-múndi exagera as dimensões das terras setentrionais,
além de situar a Europa em posição privilegiada, os europeus foram surpreendidos com a
apresentação das ideias de Mackinder, expostas numa projeção polar azimutal. Nessa projeção,
a Europa é configurada como uma pequena porção de terras integrante da Eurásia (termo
descritivo que aglutina as terras da Europa e da Ásia num único bloco geográfico).
Efetivamente, segundo Mello (1999:13):
O heartland fazia parte de uma estrutura geoestratégica definida por Mackinder, do seguinte
modo. As terras que circundavam esse heartland denominam-se crescente marginal ou interno e
comporiam com o heartland um bloco denominado ilha-mundo que abrangeria um enorme
conjunto supracontinental constituído pela Europa, Ásia e África. Para além dessa ilha-mundo,
por sua vez, amplas faixas de terras comporiam o denominado crescente insular ou externo.
Note-se que essas faixas denominadas crescentes constituem, de fato, anéis terrestres mais ou
menos distantes em relação ao heartland, como se pode confrontar no Mapa 1.
Essa estrutura geoestratégica criada por Mackinder permitiu-lhe que enunciasse a mais
conhecida formulação de hipótese sobre o poder mundial:
Revendo sua teorização, Mackinder reelaborou sua hipótese, expandindo-a, em 1919, quando
propõe o termo heartland como substituto de área pivô (lembrando que, posteriormente, o
próprio termo heartland será trocado por lenaland), e em 1943, no auge da Segunda Guerra,
quando reduz a extensão espacial do heartland e apresenta o conceito estratégico de midland
ocean ou oceano central. Entendido como a contraface marítima do heartland, esse novo
conceito se refere, descritivamente, à bacia do Atlântico norte, com seus mares subsidiários
(Caribe, Báltico e Mediterrâneo), suas áreas insulares de porte (Inglaterra, Islândia e
Groenlândia) e suas regiões marginais (Europa Ocidental e leste da América do Norte).
Mackinder apresentou os três elementos do midland ocean: a) uma cabeça-de-ponte, na França;
b) um aeródromo, na Inglaterra; c) uma reserva de forças, de recursos agrícolas e industriais, no
leste dos Estados Unidos e Canadá. O midland ocean é, assim, constituído por seus mares
dependentes e as bacias de seus rios, como se confronta no Mapa 2.
Embora, na década de 1960, o notável filósofo político francês Raymond Aron (1905-1983)
tenha criticado duramente a proposta de Mackinder afirmando que o geógrafo parecia “ter tido a
pior das sortes possíveis para um conselheiro do Príncipe: foi ouvido pelos estadistas, mas
ignorado pelos acontecimentos”, é possível contra-argumentar, reconhecendo a validade das
ideias mackinderianas em alguns desdobramentos históricos. Chamamos a atenção para dois
desses eventos. Um deles foi a operação do desembarque anglo-americano na Normandia, em
1944, a denominada Operação Overlood reproduziu o esquema de Mackinder ao arregimentar
recursos materiais e humanos nos Estados Unidos e no Canadá, concentrá-los na Inglaterra e
desembarcá-los na França. Outro desdobramento histórico foi a criação da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1947, que se aproxima claramente com o midland
ocean mackinderiano. O cientista político Leonel Mello (1999: 213-216), em seu livro Quem
tem medo da geopolítica? nos brinda com uma síntese muito refinada dos aspectos que
permitiriam afirmar a atualidade de Mackinder. Vejamo-la.
Além desses apontamentos sobre a atualidade das ideias de Mackinder, lembramos que a
geógrafa Bertha Becker empregou a expressão “heartland ecológico” para se referir à
Amazônia. Nesse caso, estaríamos diante de um resgate do conceito estratégico de Mackinder,
desta feita, aplicado em outro contexto geo-histórico. Que razões teria Bertha Becker para
justificar esse resgate? Rastrear uma resposta adequada parece bastante estimulante. Sugerimos
a leitura do livro da autora intitulado “Um futuro para a Amazônia” (e/ou da resenha escrita por
Gloria Maria Vargas, do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília, disponível
em: http://periodicos.unb.br/index.php/sust/article/viewFile/7188/5657).
Do mesmo modo que H. Mackinder, Haushofer estava preocupado com as mudanças que o
mundo experimentava na virada do século XIX. No caso da Alemanha, diferentemente de
Ratzel que viveu o período da unificação alemã e o expansionismo bismarkiano, Haushofer
vivenciou as duas guerras mundiais e a política expansionista de A. Hitler. Também por
influência das ideias de H. Mackinder, Haushofer seguia o raciocínio de que as potências
deveriam ter, no espaço mundial, sua esfera própria de influência que seria a solução para o
problema incontornável da competição pelo poder global.
O geógrafo e general Haushofer havia sido enviado em missão diplomática ao Japão, em 1908.
Dessa experiência emanou a percepção de Haushofer sobre a situação geográfica privilegiada do
Japão correlacionada a seu potencial para dominar os países próximos. A ideia de que uma
potência deveria dispor de uma área de influência, tal qual o Japão conduziu Haushofer à
elaboração de um esquema que representaria uma ordem mundial ideal, na qual cada uma das
quatro potências identificadas deteriam uma vasta área sob seu controle, no sentido dos
meridianos, a saber: Estados Unidos, Alemanha, Rússia e Japão. Cada uma dessas zonas de
influência seria denominada de pan-região. Tratava-se de uma configuração verticalizada, pela
qual diversas faixas latitudinais estariam sob o controle da mesma potência, permitindo a
obtenção de produtos complementares. Vê-se, nesse esquema, a aplicação dos parâmetros da
geopolítica clássica: configuração de terras e mares e busca por espaços autárquicos, como se
confronta no Mapa 3.
Mapa 3. As pan-regiões
Aproximando-se o final da Segunda Guerra com seus resultados desvantajosos para a Alemanha
nazista, Karl Haushofer, que já havia perdido o filho Albrecht, morto pelo regime nazista, acaba
por cometer suicídio, junto com sua mulher. À parte de sua contribuição para a promoção da
geopolítica, sobrepairam as conjecturas acerca da participação ativa de Haushofer no projeto
nazista de Hitler. Sobre esse tópico, A. Dorpallen (apud Costa, 1990:123) afirma ser duvidoso
que Haushofer tenha sido um ardente nazista, mas não hesita em declarar:
No curso dessa visita [de Haushofer], Hitler foi iniciado nos mistérios da Geopolitik.
Ali Haushofer pontificou sobre a necessidade do ‘espaço vital’ e deu a Hitler um de
seus mais efetivos argumentos para suas subsequentes loucuras.
Mapa 4. Império Britânico
Uma ideia para a nossa reflexão, a partir da observação do cartograma de Haushofer abaixo:
A potencial ameaça dos países vizinhos à Alemanha teria inclinado Haushofer à geopolítica?
Sugestões de leitura
Referências bibliográficas
CLAVAL, P. The coherence of political geography: perspectives on its past evolution and its
future relevance. In: Taylor, P. e House, J. (Orgs.). Political geography: recent advances and
future directions. Totowa, N. J.: Croom Helm, 1984.
DEAR, M. Editorial comment, “Theory and object in political geography”. Political Geography
Quarterly, n. 5, p 295-297, 1986.