So Hoje Te Quiz Mil Vezes Ebook Mcestari

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S ó hoje eu te quiz mil vezes , o novo

livro de contos de M.C estari , foi


escrito para os que ainda se afligem
com os conflitos humanos , para os
sensíveis que encaram as pichações en -
tranhadas nos muros como cicatrizes ,
gritos de fissuras humanas que aguar -
dam serem colhidos por quem sabe
ver , ouvir , mas sobretudo escutar . O
Nascido em 1972, M.C estari brilho , as tintas , mas sobretudo as
tardou entender a sua real vo - nuances de uma alma .
cação artística na lida com a
escrita . M.C estari vê e escuta o chama ­m ento
dos muros . T ambém a matéria humana
Enquanto cursava Geologia
por trás das letras e das tintas e , com
na U niversidade de S ão P aulo ,
notou que os números em uma esse material apenas esboçado , ele vai
faculdade de exatas se transfor - além , tecendo narrativas como quem
mavam em letras , e assim sendo , entende as fendas e as entranhas ,
migrou para a área de humanas . revelando a essência mundana em
Na Publicidade descobriu que estimulante materialidade que , ao
a sua criatividade não habitava final , acaba tingindo de verdade a sua
ali , e que as relações humanas ficção .
poderiam extravasar pela máscara
que menos esconde e mais revela ;
C onvido o leitor para um
mergulho nessas vidas , ora interrom -
o C lown .
pidas , ora retomadas , sem o risco de
Fundou a companhia de palha­-
ços C onfraria dos P ândegos , e ao
se decepcionar . S ininho é a história
de uma mãe em busca de sua filha ,
­ ar na teoria, iniciou
se aprofun d
a tradução do livro - C lowns - T rautmmann conta - nos sobre uma
1974 - para o professor, escritor lembrança esquecida , E sse muro é meu
e palhaço de N ova Y ork , J. H. relata o resgate de um pai , ainda que
Towsen. seja em memória , Q ual é o nome da sua
A paixão pela escrita sedimen- saudade ? traz a melancolia de uma
tou com o lançamento do seu senhora a se perder do tempo , mas há
primeiro livro - C adafalso D es - tantos outros .
pertar - 2019. E na cidade em
que reside - S anta R ita do P assa
A lguns contos laceram feito lâmi -
na , outros nos fazem esperançar ,
Quatro - flertou com a fagulha
criativa deste novo projeto . outros ainda transcendem , mas todos
desvelam uma literatura de rara bele -
As cicatrizes dos muros trans-
za , tanto em termos estéticos quanto
­ adas
form em contos. Dez
pichações , dez histórias diferentes . estilísticos . C onvido a se atirarem à
“Só Hoje Te Quiz Mil Vezes” a leitura para entender as paredes que
segunda obra do autor . A segun - nos cercam , protegem , mas muitas
da obra autopublicada pela L adra vezes podem tão simplesmente libertar .
Livros Editora Independente.
Boa Leitura ! S andra G odinho
SÓ HOJE
TE QUIZ
MIL VEZES

M. Cestari

1ª edição - autopublicação

Ladra Livros
Copyright © 2022 by MCestari

Capa, Diagramação e Fotografias


Marcos Cestari — @mcestari

Leitura Crítica e Revisão


Sandra Godinho — @smgg396

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser


utilizada, copiada ou reproduzida sem o consentimento por escrito
do autor.

email: contato@mcestari.com

Os personagens e situações contidos nesta obra pertencem apenas


ao universo da ficção criado pelo autor, não se referindo a fatos,
pessoas ou eventos reais.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cestari, M.
Só hoje te quiz mil vezes / M. Cestari. --
Carapicuíba, SP : Ed. do Autor, 2022.

ISBN 978-65-00-39299-9

1. Contos brasileiros I. Título.

22-100648 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:

1. Contos : Literatura brasileira B869.3

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

cel/whatsapp: (16) 9.9325.0203


www.mcestari.com
instagram.com/mcestari
facebook.com/MCestariAutor
twitter.com/MCestari
Agradecimentos

Esta obra brotou de um muro que por três anos era


a minha chegada querendo ficar; que por três anos era a
minha partida querendo voltar. Morava em Ribeirão Preto,
passava todos os finais de semana em Santa Rita do Passa
Quatro. E estes finais de semana foram ficando mais longos
até que criei raiz, brotei. Agradeço ao muro pelo abraço
carinhoso que me acolheu. Mas esse abraço tem nome.
Agradeço à minha amiga, cônjuge, companheira,
Malu, por ter escancarado essa porta que entrei para não
mais sair. Laço de apoio e motivação em que as encruzi­
lhadas se tornam caminhos, jornadas, amor. Obrigado
por ter me aberto os olhos para as novas paisagens, seres e
estares desta cidade. Aos novos amigos que se instauraram,
aos velhos que nunca deixaram de acreditar em mim. Aos
colegas de lida.
Agradecimento mais que especial à professora, escritora
e amiga Sandra Godinho, que lá de Manaus, transbordou
uma simples revisão. Realizou a leitura crítica do original,
orientando, apontando mais que caminhos, vícios em que
a narrativa se perdia, ou exageros linguísticos, no qual uma
bela frase esmaecia em meio ao ego deste escritor. Há de
se ter um mestre, uma referência que afronte a borracha,
apague seu texto, rescreva e diga com todas as letras que
não estava bom. O processo é doloroso, confesso, mas se
houve um salto literário em meu texto - como a própria
amiga disse - obrigado, você foi a “irresponsável” direta
pela qualidade dos contos que compõe este livro.
Livro viabilizado pela Lei Aldir Blanc, conquistada pela
competência do departamento de cultura do município, e
que fomentou diversos projetos e artistas locais, colocando
a cultura no lugar onde ela deve estar; acessível a todos.
E sustentando os demais agradecimentos o chão sólido
em que tenho a oportunidade de me erguer. Obrigado “mil
vezes” aos meus pais, que nunca deixaram de me incentivar
nos inúmeros despertares de vida, profissão, sonho e razão.
Agradecido também aos meus irmãos, respectivos cônjuges,
tios, primos, sobrinhos, família.
E não poderia deixar de agradecer à tinta despejada
sorrateiramente nos muros da cidade. Ao anonimato que
inspirou cada pedaço de ficção que compõe esta obra.
Obra que, por fim, só existe graças a vocês leitores, a parte
mais importante de todo processo. Que tal qual este autor
queiram mil vezes, amem mil vezes e mil vezes façam tudo
de novo.

“Só hoje te quiz mil vezes” e ei de querer muito mais.

Muito Obrigado

M. Cestari
A p r e s e n ta ç ã o

Escrever ficção é um ato de observação e escuta. É a


capacidade do escritor de se apropriar dos fragmentos que
colhe, absorvendo os retalhos de vida em seu entorno, criando
um mosaico de situações cotidianas, estruturando a vida,
dando luz aos personagens e ao seu novo mundo ficcional.
A questão recorrente dentro da cabeça do leitor, e que
sempre aparece nas rodas de conversa acerca da obra, é so­
bre o processo criativo. Se somos o personagem, se vivemos
aquela situação, se aquele é o mundo do escritor?! Somos
o mundo onde vivemos. Criamos a partir dessa experiência
mas não criamos verdades, inventamos possibilidades.
O fio condutor deste livro é o muro. E, no meio do muro,
havia uma frase, havia uma frase no meio do muro. Quan­
tas vezes a vida cotidiana desfila a sua rotina sem se dar
conta de que uma palavra brotou no concreto, ainda que
desbotada em sua grafia, insignificante, diminuta, diluída
pela rotina ou pela pressa, a palavra permanece ali, a flertar
com o cinza urbano. Como é bom parafrasear Drummond.
Estes contos brotam respondendo ao processo criati­
vo deste autor, que se propôs a esculpir o muro, retirando
dele um pedaço de inspiração que há tempos lá está. Um
processo alquímico de transformar concreto em histórias.
De treinar os sentidos, transformando aquilo que colhe em
arte, seja ela qual for.
“Só hoje eu te quiz mil vezes” - Com a palavra “quiz”
grifada, destacando um erro ortográfico, ou, respeitando a
forma original pichada no muro. Já este, “eu”, foi adiciona­
do. É o “eu” autor se apropriando desse alvoroço criativo a
ser transformado em prosa.
Foram fotografadas vinte e uma pichações pelos muros
da cidade de Santa Rita do Passa Quatro - SP – somente
dez foram escolhidas. São frases ou palavras como: “queria
que você pudesse sair de você para saber como é bom te ver”, “se o vento
bater nos vamo tá junto pra sempre”, “caso perca o telhado se contente
com as estrelas”, “Traautmman”, “Qual é o nome da sua saudade?”.
Dez intervenções com um ponto em comum. O muro.
Não entramos aqui em um julgamento ou juízo de
valor acerca das pichações. A proposta é a transmutação
criativa dessa voz anônima da cidade para as páginas do
autor. A metáfora do que nos separa, nos protege ou nos
guia, sendo desenvolvida em cada um dos dez contos que
compõem esta obra. Contos, cujos títulos, são as pichações
escritas conforme aparecem nos muros. São as inspirações
a fomentar a criatividade e a escrita.
A tinta anônima da pichação é aqui transformada
e publicada em um livro. A arte, se reciclando e se rein­
ventando. Da breve frase ou palavra se constrói a prosa, e
da prosa, a poética urbana recria a sua própria página. “Só
hoje te quiz mil vezes” são as diversas histórias e narrativas
que compõem a cidade e seus seres. Tal qual “As Cidades
Invisíveis”, narradas pelo aventureiro Marco Polo na obra
de Italo Calvino, aqui cada conto parte de um muro bruto
a ser lapidado em prosa.
Cada muro uma história, um ponto de vista, uma lem­
brança, uma saudade. As histórias são inventadas, já o que
elas nos despertam, são vivências subjetivas e reflexões. “Só
hoje te quiz mil vezes” é um muro que não separa nem cer­
ca, simplesmente abraça o leitor.
Sumário
Traautmman 13

Só hoje te quiz mil vezes 21

Esse muro é meu 27

Meu memo 33

Caso perca o telhado se


contente com as estrelas
37

Queria que vc pudesse sair de


vc pra saber como é bom te ver
41

Qual é o nome da sua saudade? 47

Sininho 51

Se o vento bater nos


vamo ta junto pra sempre
57

Sejam vadias mágicas 63


T
T
N
R A
A M
A M
U

Palavra medonha. Disseram que eu estava com


Traautmman, filha. Foi assim que rebatizei a mazela. Só eu e
a sua mãe suspeitávamos. Até que os sucessivos sóis poentes
transformaram a desconfiança em certeza. Foi quando
comecei a rabiscar esse meu diário, que se tornou minha
única e inequívoca certeza. A minha identidade, o pedaço
de vaidade que ainda me restava. Prestes a se consumir e, ao
se consumir, me apagar para sempre.
Esse apagamento precoce me impôs uma certa urgên­
cia. Algo faltava. Algo que estatelasse seus olhos, fizesse
brilhar sua mente, rejuvenescesse a semente que eu estava
prestes a deixar. Eu precisava ser mais incisivo, invasivo,
talvez até um pouco galhofa. Precisava me impor presente,
até mesmo à revelia, me forçar a lembrar de coisas que iam
se derretendo a cada sinapse. Entenda, filha.
O momento, para mim, virou um eterno agora. Nem
antes e nem depois, só o instante passou a existir; provisório,
fugidio. E mais do que tudo, eu precisava te acolher em
meus laços, filha. Mas só me restou a eternidade de um in­
stante.
Faltava algo com que flertasse, do primeiro suspiro do
dia até o derradeiro bocejo da história inacabada, adorme­
cida no travesseiro. Faltava algo que te beijasse com o amor
inerente a qualquer pai, te assoprasse uma brisa que afaga.
E que te olhasse, te olhasse, te olhasse.
Hoje, o Traautmman me deu uma vela, rela, não, isso
não, qual o nome da palavra?! Ele me deu uma trela, um
pedaço de vida comum. E se fosse ontem? Ontem é outra
história. Hoje, ser comum é o que importa. Hoje, nada mais
é meu. Nada me pertence. A vida quis assim, a vida é uma
encruzilhada, uma trivia sem fim, um jogo, uma bravata.
Desconfio que a vida gosta mesmo é de debochar da gente.
Sei muito bem, filha. Nem você me pertence mais. A
vida me arrasta - ou vem me arrastando. Eu entendo as
arestas e me farto com as beiradas. Mas eu queria também
esse resto. Esse resto de tempo, enquanto eu ainda sou eu.
Quem me explica o resto? Ah, o resto é esquecimento, só
importa o agora, o momento. Já disse isso antes, não disse?
Mesmo assim eu me lembro. O dia em que ousei me tornar
um herói, seu pai. Que dia foi mesmo, hoje? Sim, sempre
é agora.
E te digo agora e o dito hoje é sem fim. Sei que vou
antes, bem antes de você, já estou a caminho da ida sem
volta. Sei que quando seus olhos adultecidos aqui pairarem,
já fui. Vou antes mesmo do meu corpo sucumbir à vala,
bem antes da alma seguir seu destino em prumo. Vou antes
dos laudos médicos se fartarem de hipóteses, ou mesmo de
certezas?! Já terei ido.
E não é um achismo, eu já estou indo. Entenda, não
estou desistindo ou me entregando. A morte é a consequên­
cia tardia de algo já plantado dentro de mim. Mesmo o
esque­cimento?! Quem sabe, um dia, também ele se esqueça
de viver. O que me mata aqui é o tempo seguinte, a hora
seguinte, a semana seguinte. O Traautmman é uma roleta
russa, filha.
Desgraçado é o dia se esvaindo escorregando escorren­
do pelos vãos dos dedos, é como me sinto. Uma fresta de
janela a dormir um mormaço, uma tarde esperando uma
novidade nas folhas em branco desse diário que me destes.
Se ele se escreve ou se deixa de escrever, é um tanto faz. Esse
diário nunca vai se completar. Então sigo mesmo é pelas
margens, pelas palavras vazias de um outro tempo, levadas
para longe de mim em questão de meses ou semanas. Nesse
momento, os minutos vão se fazendo, as horas, o dia inteiro,
o ponteiro dos segundos a se perder das minhas vistas. E da
minha lembrança.
As datas dos cabeçalhos passaram a me guiar. Jornais
e outros periódicos, surgem em um calendário irreal de
validade. Como ousam ignorar as minhas datas, as que
escrevo neste diário? Em represália, também as ignoro. Sigo
apenas uma ordem numérica, isso se, porventura, me lem­
bro de alguma ordem. Perdi os nexos, vivo de lapsos. Só nos
lembramos do que esquecemos no momento em que vem a
vontade de lembrar. E nos surpreendemos.
Tais lapsos de lembrança em um mundo onde tudo é
muito vago. E hoje emergiu-me uma delas. Você. Tomei as
minhas anotações, vasculhei o profundo lugar cujo único
conforto é saber que as coisas se escondem de mim e que
toda lembrança é um sopro. E, nesse pouco, vos escrevo. É
esse meu fim que deve ser guardado até que a vaidade brote
dentro da minha menina.
Lembro e esqueço seu olhar. As lágrimas deixam tudo
nebuloso. A vista turva, o sal escorre e a intolerância mas­
cara-me a face. Fui injusto eu sei, me desculpe. Pouco me
lembro do quanto chorou quando seu abraço, o abraço de
um estranho, me apunhalou aquela tarde. Mesmo o seu
beijo de menina não me pertencia. Não me reconhecia. Fui
frio, vazio e abstrato. Fui bruto, certamente a machuquei
com a minha insensibilidade, mas não sei, e infelizmente,
nunca saberei. Já não sabia mais quem era você. Mas esse
não-saber passava, o tempo suficiente de me arrepender,
depois que sua mãe me avisava sobre o acontecido. O arre­
pendimento também passava. Eu evaporava.
São tardias essas desculpas, eu sei. O sentimento à
deriva é vadio. Me desculpe o tardio e a falha. Sou alguém
que agora se furta à responsabilidade. Isso nunca foi nem
nunca será plenitude.

Sou aqui, sou ali e ponto


Sou ali, sou pranto

Pronto, ali, e parto

Partido sou, a voz ecoa


A mim, a nós, a quem
A vós

Entende, filha.

Enfrenta, figas, se veste, ora decora


A fome se acentua nessa minha intenção
Quero devorar a vida, mas é a vida que me devora

As veSes, me desapercebo do resto


Na maioria, eu me reencontro
Sozinho

Noutras, sou viés


Hoje, sou esquecimento
Injustiças. Nunca foi minha arte causar a sua dor. Mas
a labuta de um ser pode selar um destino. O meu veio de
forma galopante, levou de mim a coisa mais importante que
uma alma poderia ter. A memória. Não a completa, mas a
lembrança daquilo que nos torna vivo.
Deram um nome medonho a isso, meu Deus! Um nome
alemão desses que eu nunca ousei pronunciar, com medo de
que o invocasse para dentro de mim. E aqui, enquanto uma
espada de luz me assanha a escrever para ti, enquanto o
entendimento ainda flerta com a lucidez, enquanto ainda
sinto a dor de uma deslembrança que, em breve, será uma
imensidão vazia e gélida, o nome que inventei reverbera.
Traautmman.
Decerto, você já sabe o nome disso, o tal nome alemão.
Hoje ele me deu folga. Não o tenho situado no tempo, no
espaço, no abraço ou no reconhecimento que faço de ti,
ou dessas linhas que vão te encontrar quando minha
memória já estiver apagada. Quero que guarde de mim,
meu melhor. Lembranças.
Quando o jaleco branco sentenciou-me, chorei uma
calamidade. Ainda choro quando me lembro, mas logo me
esqueço do meu próprio aniquilamento. Meu choro esque­
cido é o prelúdio de um concerto sem orquestra. Minha
batuta já não mais aponta, apenas rege esse espaço corpóreo
em que minha alma ainda habita.
Veredito dado, não tem cura. Traautmman. Você deve ter
me escutado dizer, ainda que de forma jocosa. A gramática
foi um propósito para retardar a realidade. Um trocadilho
válido e preciso que nunca me permiti em vida, um teste,
um “quiz”. O meu “quiz” diário, a minha trivia, a minha
esperança de ter sido o autor de algum jogo que espalhasse
a resiliência e o amor. Até onde eu puder, lembrarei de ti.
O tempo escasseia minha memória, mas enquanto houver
uma réstia dela, serei apaixonado por você, minha filha. E
essa certeza irá me confortar até que a vida passe pelo vão
da porta. Pela janela da sala. Pela enxada ou pela pá que
derrada sulca cava a terra.
Hoje, não. Hoje já comprei a tinta, escolhi a cor, o azul
dos seus olhos. Queria que refletisse, de fora para dentro,
um brilho especial para te iluminar sempre, de propósito,
no intento de me consolar. Escolhi o muro bem na frente
da sua janela, o muro da fábrica que você sonhava: “A
Fantástica Fábrica de Fabricar Coisas”, história que eu in­
ventava para você, quando ainda era uma criança, sempre
mudando o que era fabricado ali dentro, aguçando a sua
curiosidade em conhecer coisas diferentes.
A frase foi um improviso que brotou dentro do peito,
veio de viés e assalto. Plantei, ali, naquele muro, a minha
semente. Saiba, filha, sempre e cada vez mais, estarei por
perto, esperançando. Neste muro, nunca me levarão de
você.

“Só hoje te quiz mil vezes”

Eternamente

Pai
Vídeo Traautmman - Youtube
SÓ HOJE
TE QUIZ
MIL VEZES

A rua acabava no muro, e o muro nunca acabava.


Infinita era a abstração. Diminuía a voracidade da mente
em chegar logo ao destino, à labuta, à rotina. Ia bem
devagar, contemplando cada frase, cada palavra, o contexto,
a crítica; a cabeça iluminava, vadia, em um mundo abstrato
chamado criatividade. E quando nem percebia já acelerava
na estrada.
A semana passava e lá estava eu de volta ao muro. Dessa
vez chegando, não partindo. Reduzia a velocidade dos dias
corridos e, mais uma vez, mergulhava naquele desfile de in­
quietações tatuadas na tez da cidade. Meus finais de semana
começavam no muro, minhas semanas começavam no
muro. Ir e vir era o meu rumo. E sempre querendo vir mais.
Querendo entender aquele processo contínuo e perene
de sedução. Entender cada contexto, cada frase; entender
que no começo eu voltava para casa toda semana, mas que,
aos poucos, eu voltava para casa era no final de semana. O
muro flertava comigo às segundas, pedindo para eu voltar
logo, e às sextas, me recebia tal qual braço aberto de mãe no
retorno da prole ao lar.
Fui sendo acolhido. Aceitei o convite, o convívio, o
cotidiano. Fui, enfim, tendo um plano. Escrever é um
exercício de observação; observei. Deixei-me tocar por
outros muros, outras frases, vidas. Veio guarida, diversão e,
principalmente, o amor somado, multiplicado, escancarado
ao destino do qual somos os escolhidos e não quem escolhe.
Porém continuei colhendo as imagens. A cada ida ou
chegada; corrida ou caminhada a hesitação não deixava
o momento passar. Outrora a fotografia era capturar o
instante e revelar. Hoje o instante já está revelado à nossa
frente, basta saber se teremos o tempo morando dentro da
gente. O tempo de observar, respirar, deixar aquelas ne­
nhumas urgências que nos consomem aquietar e perpetuar
uma foto.
Mas de nada serviria a fotografia se a ela não se destinasse
uma ousadia. Existe um dito comum de que “nada se cria,
tudo se copia”. Sempre entendi que tudo se recria. Criativi­
dade é o espaço de se encontrar um caminho, uma solução
com as ferramentas que você inventa na hora, não as que
você quer usar. E recriamos sobre um alicerce de conheci­
mento chamado vida. Do que aprendemos, fizemos, e mais
uma vez, observamos. Não existe alquimia em fazer um
pão. Existem processos físicos e biológicos que podem ser
usados, replicados e recriados em diversas formas. Criativas
formas.
Ousei roubar, ou melhor, apropriar-me daquela fagulha
carimbada nas paredes. Entender que a folha em branco,
cuja ponta do grafite calca, são os sulcos do entalhador, as
notas da partitura, as pinceladas nos quadros, nos muros,
no corpo. A frase ou palavra é um pedaço de inspiração,
uma inquietação derramada sorrateiramente no concreto
urbano. Resolvi derramar no papel.
O muro era bem comprido e no meio dele morava um
motivo. Sobrava um espaço antes, faltava um espaço de­
pois. Bem como uma história, a ideia solta a se desenrolar,
ganhar corpo, voz, ganhar direção. Minhas idas e vindas
ganhavam cada vez mais sentido. Sentido horário é partir
com o ponteiro do zero e chegar no doze. Anti-horário é
partir do doze e chegar no zero. Eles chegam no mesmo
lugar. Eu chegava sempre no mesmo lugar. Eu já pertencia
ao lugar.
Eu já tinha o sentido, a forma, o conto. A cada chapisco
de vida tatuado no muro, uma história diferente que sentia
no flerte e no acolhimento. Arte é um pedaço de sentimento
transformado em uma sensação. Passou a ser homenagem e
redenção. Homenagem à cidade que me inspirou, redenção
ao amor.
“Só hoje te quiz mil vezes”, essa era a frase a me ator­
mentar. Um tormento bom, o fomento que inquieta o
coração do artista. Uma cidade que inquieta o coração do
artista. E coração de artista inquieto, cria. Era essa a frase a
me querer na ida, entendi, não era para ir, fiquei. Era essa
frase a me receber na volta, e então não mais fui, fiquei.
E passei a querer mil vezes hoje, amanhã, ontem eu já
mil vezes quis. Querer mil vezes um dia para no outro dia
querer mil vezes de novo. E o ventou bateu, o sino tocou,
a vida vadiou, mágica, o telhado se foi, concedendo-me as
estrelas. De uma mazela um Traautmman, a capacidade de
sair de dentro de mim para ver a cidade por fora nesse muro
que é meu, meu memo. Qual é o nome da sua saudade?
Saudade é querer sem ter. Hoje tenho a cidade e a ci­
dade me tem. Tenho a cama aquecida por outro coração
que é parte do meu. Tenho esta obra. Muitos destes suspiros
tatuados no concreto a tinta levou. Mas aqui são eternos.
Quiçá um dia os devolvo ao muro.
Quiçá um dia, o infinito caminho que me retinha na
ida e na volta se transforme em uma imensa galeria de arte.
E que a fagulha incendiária, depositada na calada da noite,
grite aos olhos de quem a lê nesta obra, transformada. E
que se re-inspire e volte ao seu lugar de origem; grafitado,
colorindo o cinza, estatelado aos olhos e aos corações. Que
o muro vire atração. Porque “só hoje te quiz mil vezes” mas
hei de querer mais, muito mais.
Por hora, guardei tudo dentro deste livro. Abracei o
muro que me acolheu. Escutei ele cochichar no meu ouvido
e hoje durmo abraçado. Ganhei um lado. Pois quem te quis
fui EU.
Só hoje EU te quiz mil vezes.

ó hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.


Só hoje EU te quiz Só milhoje EU te quiz mil vezes.
vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te Só quizhoje
milEU
vezes.
te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil
Só hojevezes.vezes.
EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
hoje EU teSóquiz
hojemil
EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
SóSó
hoje EUEU
hoje te te
quiz milmil
quiz vezes.
vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só mil
Só hoje EU te quiz vezes.
hoje EU te quiz mil vezes.
hoje EU te quiz mil vezes.Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz Só milhoje EU te quiz mil vezes.
vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz milSó vezes.
Só hoje EU te quizSó milhoje EU te quiz mil vezes. Sótehoje
vezes. hoje EU quizEUmiltevezes.
quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quizSómil Só hoje EU te quiz mil vezes.
vezes.
hoje EU te quiz mil vezes. hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz milEU
vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quizSómil hoje EU te quiz mil vezes.SóSóhoje
vezes. hoje
EU te quiz mil vezes.
EUquiz te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.Só hoje EU te quiz mil te
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU vezes. mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes. Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz Só milhoje vezes. EU te quiz mil vezes.
Só hojeSó EU hoje EU te
te quiz mil quiz
vezes. mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil Sóvezes.
hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quizSómil vezes.
Sóhoje
hoje
Só hojeEUEUte tequiz
EU quiz
te

mil
milvezes.
quiz
hoje vezes.
mil
EUvezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.
te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz Só mil
hoje vezes.
EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil SóSó hoje
vezes.
hoje
Só hoje EUEUte tequiz
EU quiz
te mil
milvezes.vezes.
Sóquiz hoje mil
EUvezes.te quiz mil vezes.
Só hoje

Só hoje EU
hoje
Só hoje
EU EU te
EU quiz
te

te quiz mil
quiz
te hoje
quiz
mil vezes.
mil
Sóvezes.
EUhoje
mil vezes.
te EU
vezes. quiz temil quiz mil vezes.
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Só hoje EU te quiz mil vezes.
Só hoje EU te quiz mil vezes.
Santa Rita do Passa Quatro, 13 de dezembro de 2021
VídeoPoema “só hoje te quiz mil vezes” - Youtube
EMUROÉ
SSE M
E
U

pintar o céu
sem tinta
é sonho

A rua nem larga era, mas a distância encompridava


nosso passo e nossos momentos juntos. Um, depois outro;
depois o mesmo, em sintonia. A vida, para nós dois, era
coisa a esmo. Merecíamos? O que era merecer? Só uma
palavra aprendida por obrigação ou falta. Pé descalço ensi­
na cedo a conhecer o chão.
Da mãe, quase nada sabia. Dela, só tinha restado um
retrato e uma história pouco contada. Sobrava curiosidade.
Eu não tinha memórias, a complicação do parto levou-as
antes de tê-las. Saudade é uma palavra vazia, forjada de
aceitação para agradar a outrem. Para quem nunca teve,
nada se perdeu. Eu não perdi.
Ganhei um pai. Se de sangue ou de criação, pouco
importa. Importa menos ainda o juízo frente ao valor. Ele
me criou no suor da brita, alisando asfalto. O único crime
que cometeu foi enterrar a desesperança nos olhos. A triste­
za, neles, aflorava.
Tanto choro e tanta vermelhidão guardados em
eternidade do lado de dentro de suas pálpebras. Fechadas,
turvavam as vaidades e os problemas do mundo. Abertas
escorriam os tantos e as dificuldades, porque a moleza não
se ajeitava em meu pai. A preguiça não vivia em seu corpo.
Cedo, ele ia fazendo tudo e de tudo, aprendia e fazia de
novo.
Nunca voltou a se casar. Acendia a vela, tomava o retrato
de minha mãe em suas mãos, e a reza ia adormecendo a
noite. A foto e a prece nunca os separaram, permaneceram
unidos em eternidade. E nunca é um lugar bem comprido
a se perder do sempre.
Na criança que sempre fui, aflorou juventude. No pai
adulto as rugas e as limitações. Das aprendizagens, ele
ganhou pincel, brocha, tinta e “águarraz”. Paredes, tetos,
colunas, muros. Não nos veio fartura em nossa existência,
mas veio escola e a vida de um eterno aprender. Veio a co­
mida e o pé calçado. Veio passeio, voz e aceitação. Ele me
deu o que nunca teve.
Mas bronco ele nunca foi. Difícil é descrever o simplório.
Pois tolo o é! Ingênuo o é! A pouca fala o protegia das desa­
venças pelas ruas, sua responsabilidade, era a cria. Suas
palavras, não-ditas, eram aceitas em sua lida, já que seu
tempo era o fazer. E ele o fazia para mim.
Meu crescimento apropriou-se da criança. Pedi cor, ele
me deu; pedi parede, ganhei; escada, ganhei, spray? Ele
olhou para o topo de um edifício já antecipando os rabiscos
e pichos entre a terra e o céu. Encarou-me. Desviei meu
olhar, já vislumbrava a poesia cega explodindo do muro. Já
tinha meu encanto a decidir por mim. Porém, a decisão do
consentimento é mais que um olhar. É o ser no estar.
E desde quando me consentiu o desenho em verso, a
frase em liberdade nos muros e nas paredes das casas que
o contratavam, meu pai sempre arranjava um modo de dar
forma ao esquecimento e deixar aquilo ali, aos olhos vistos
dos contratantes. Alguns chamavam aquilo de arte, talento,
e por vezes até mantinham daquele jeito. Ou fotografavam
e me davam um retrato: “Para o seu portfólio!”. A arte de
tatuar a dor nos muros para amenizar a alma. Quase sem­
pre a gente ria, dente aberto de tinta branca, e fazia o que o
feito pedia. Pintava por cima, apagava.
Eu não guardava palavra nem sentimento. Novidade
vem da página em branco, e da cor que se derrama em
fendas, fissuras. Nesse estado, meu pai só escutava. Sorria
de boca e ouvido, imaginava. Os olhos já não visavam um
palmo à frente, ao alto, ao lado, enevoados pelas pinceladas
brancas da idade a lhe consumir a retina.
Herdei dele a tinta. Aprendi a mistura, a montar na es­
cada, a debruçar sem fazer pegada, aprendi a tomar talento
pelas individualidades, enquanto a idade atravessava o seu
corpo e o repouso se tornou uma necessidade. Agora, era
ele que me acompanhava os passos.
Fui montando frases para ele rir, em letras colossais, e
não duvidem, ele ria tanto. Ele adorava dizer: “usa aí seu
papel que a borracha vem logo”. Nessas horas, ele era outra
pessoa, despejando alegria nas cores e nos pincéis. E pedia
mais. E de novo. Mas findava o tempo, como tudo na vida,
e a volta para casa esvaziava em total recolhimento.
A rua nem larga era, mas a distância encompridava
nosso passo e nossos momentos juntos. Um, depois outro;
depois o mesmo, em sintonia. A vida, para nós dois, era
coisa a esmo, luto e homenageio. Quanto mais alto o vulto,
maior o tributo.
No primeiro sobrado a vista da janela era o muro.
Sobrado, muro, comprei tudo. Comprei só por comprar,
pai mereceu. Calculei a homenagem de cabeça improvisa­
da e suspiro. Lata esvaziava contra o vento, o andaime, a
equipe, o projeto e o aprendiz. Aquele pedaço de muro era
meu, só meu. Fiz o que devia ser feito.
“SÓ HOJE EU TE QUIS MIL VEZES PAI”. Pala­
vras quadradas, gigantes. Aqui você renasce em cada letra.
Taí! Estatelado na frente delas. Não caí do edifício. Os que
vieram depois acabaram pichando o topo, bem em cima
do meu grafitti. Fiquei tão pouco indignado que fiz questão
de conhecê-los, ofereci apoio e trabalho.
Há quem tenha achado desacato, pai. Eu entendo
e respeito. Você me ensinou assim. Você não me deu um
muro, pai. Você me deu um futuro.

E esse futuro é todo nosso.

borrar o céu
de lágrima
é chuva
Vídeo “Esse Muro é Meu - Youtube
M
MEMO
U

um lado é prosa
o outro é poesia
se apossa

Onde a sola do pé pisa, nem mato cresce. A natureza


acata a labuta. Enxada nas costas, latão no braço, ele segue
a trilha até a mina. Cedo, a vida ensina: adulto roça, lava
e cozinha. Criança grande carrega água e cuida de criança
pequena. Criança pequena coloca a semente na cova, soca
e cuida de quem nem criança inda é.
Aprende-se que longe é um lugar sem existência. Tudo
era logo ali. E, logo ali, para baixo da roça, era o rio. Só
podia criança pequena, de algum entendimento, para cima.
Maioria ia bem cedo se lavar da noite. Essa hora do banho
era a mais divertida, só com a criançada. Depois, chegavam
os adultos e todo resto. A gente era pequeno, mas grande o
suficiente para carregar os menores.
Depois de enxaguados enganchavam no colo, e caminho
de volta. Adulto banhava, acendia panela e o dia dormia
todo estrelado. Quase sempre assim, seco e despretendido.
Mas gente nova regou a terra, mudando nosso lugar.
Brotou mourão, arame farpado e uma tal propriedade
privada. A gente ainda podia entrar, roçar, catar água e
banhar no rio, mas a passagem estreita dobrava o corpo.
Sempre sobrava arranhão, fio de sangue e roupa rasgada.
Logo depois, veio vaca, boi e bezerro. A roça virou pasto;
a mina, poço; e o rio, lamaçal. O pedaço de vão, sem uso,
fechou.
Desviaram então um pedaço de rio para dentro do
cano e, junto com ele, um pedaço da cidade chegou. Não
demorou para que apagassem o céu da minha infância ino­
cente, o silêncio e a noite. Luz de lampião bastava um sopro
e virava sonho. Mas o querosene virou lâmpada e apagou
nosso sono. E o sossego também. Quem não tinha geladeira
queria comprar. Queria também televisão, queria chuveiro
elétrico. Mas, principalmente, queria trabalho para com­
prar tudo isso.
Criança ainda arriscava pular a cerca para brincar no
rio, mas a água mudou de cor, cheiro e encanto. Nem lama
mais era a margem, só lixo. E não tardava vir gente parruda,
num abanar de mãos, avoaçar a molecada dali. Antes, na
conversa curta; depois, bastava ver o coldre. Nem palavra
precisava pular da boca pro recado gritar no ouvido.
A mata caiu, o prédio cresceu. A cerca virou muro
alto a perder de vista, com chaminé, barulho e fumaça.
Caminhão alvoroçava e nem brincadeira-de-rua a rua tinha
mais. Veio uma tal de escola, veio professor, letra e número.
Veio emprego, diversão na tela. A roça, agora, morava den­
tro da geladeira. A lenha virou fogão e o galo cantava dentro
de um relógio cacarejante, mandando a pessoa acordar o
dia. Sobrou saudade quando a gente virou cidade.
Junto a ela veio diploma e conhecimento, arguição e
atitude. Veio luta, causa, conversa e acordo. Rio se limpou
e criança podia brincar de novo. Veio parque, veio verde,
até bicho voltou. O muro inteiro se coloriu, virou arte, lugar
para foto, passeio e vislumbramento. O projeto da autori­
dade trouxe música, teatro e circo. Naquela cidade, o muro
alto também dividia. E dividir não era separar.
Cercas cerceiam.Vontade de ir. Farpas farpam a in­
tenção, trincheiras destrincham a ida e a volta. Limites
plantados de arame, cimento ou bala. Em tantas outras ci­
dades, ainda se intimidava, poluía, destruía. E, da divisão,
só sobrava o resto. Aqui, o que se extinguiu foi o número,
tornamo-nos uma unidade, humanidade.
Antes, olhava pro muro e via só cinza e diferença. A
tal propriedade privada. Hoje, vejo um bem comum, onde
alguns tem mais, outros menos, mas ninguém deixa de ter.
Ele, o muro alto, ganhou desenho, cor e sabor. Com isso
veio o amor e o respeito. Foi conquista difícil, trazida com
educação. Só tenho o peito a bater forte, multiplicando
emoção, dizendo:

“Esse muro é meu! Meu memo!”


Vídeo “Meu Memo” - Youtube
C PERCA O TELHADO
ASO SE CONTENTE
COM AS ESTRELAS

Meu ponto não tinha vírgula.


Minha semi não tinha fusa.
Meu pincel não tinha rua.
Minha luz era luz de vela.

Cresci condenado às estrelas. Lua cheia trazia vista


ao terreiro, mas tudo aqui embaixo era o mesmo pó. Tan­
to fazia fosse vento, grilo, dia ou noite. O dedo trançava a
chama, cutucava a cera que ardia e secava. Lágrimas de
parafina, esculturas feitas de imaginação. A sombra dura­
va o tempo de um bocejo. Não sei dizer até hoje se era a
palha no chão ou o chão na palha. Eu simplesmente dei­
tava. Parede, gente, tudo amarelava. A parafina escorria, as
pessoas se empilhavam. Teto é um modo de conquistar a in­
dependência ou o céu. A gente se cobre de retalho. A luz da
lua clareia em fresta e risco de estrela no espaço é pedido,
enquanto a chuva... a chuva é prece molhando por dentro.
Tanta festa lagrimada. De gota em gota, ou de pingo em
enxurrada, a bacia coaxava algum sapo graúdo e perdido,
a panela piava agudo e a gente dançava, esvaziando alegria
na caixa grande. Água era instrumento, e pessoa com o teto
de estrelas sabia tocar. Tocava roça, gado, cozido no fogo.
Na demasia, até banho colhido de erva para espantar cocei­
ra. Quando o aguaceiro durava um canto inteiro, a gente se
acobertava. Mas não passava de um pouco, e assim, sonho
brotava verde e meu dia acordava em cores. Água era sem­
pre festa. O chão cheirava gostoso, orvalho, mato ou riacho,
o pé pisava macio e a mão juntava a erguer parede e tapar
buraco. Ouro não sei o que é, mas barro é muita reza. O
problema, diziam, era a pouca vela. Onde luz é raridade,
vela não pode ser vaidade. É objeto de razão e sossego. O
pé sabia onde pisar e a mão nem buscava, encontrava o
lugar. Olho aberto ou fechado? Escuro dormiu, claro acor­
dou. Um grito grande no breu e ajunta o povo a fazer luz.
Às vezes, festeja-se a fartura. Às vezes, não dá tempo e falta
um. Barriga vazia tem dos dois lados, a predar e ser presa.
Logo cedo, o olho treina. Trilha, rasteja, foge, enfrenta a
peleja, finca. Dente cravado suava uma noite, até duas. O
veneno, comendo por dentro. O lado de fora derrete e o
corpo vela. E se enterra a virar barro no próximo aguaceiro.
A morte não se amolece nesse terreiro, aqui não. Ela é bruta
nas desgraças, logo leva. Leva cedo, na seca do leite, leva
tarde, na seca do sertão, na sobrevivente vida. O menos se
come. Resto, réstia e restolho. Só não se come defunto. Su­
perstição não tem carne. Morre osso, enterra caroço. Brota
o pó que o vento espalha. Nem cruz nem alma. Pó. Bar­
ro, preocupação, reza? Tudo mesmice rara a desperdiçar.
A terra, a enxadada e a vala. Mundo gasto de tanta cova.
Só calo nasce na mão. O pé vem sem sola. Um cabo, um
suor ou um fogo é requinte de quem vive. Choro é secar o
corpo, chuva é broto. Chover é falta de sanidade, algazarra
a se festejar. Um aqui fraquejou. Tem quem diga da mal­
dade plantada. Não acredito. Nem vela, nem credo, nem
medo. Se nada tem, nada perde. Pensamento incrimina
pensamento e tudo desanda, o miolo ferve. A fome alucina.
Não presta, não serve. Se fica, finca logo raiz, amaldiçoa o
terreiro, mas o destino logo se acerta, porque o passado é
linha reta e o futuro é seta em ponta de flecha cadente na
cicatriz do céu. Cresci condenado às estrelas. Acertei o alvo.
Vídeo “Caso Perca o Telhado se Contente com as Estrelas”
Youtube
QUERIA QUE
PUDESSE SAIR DE
PRA SABER COMO É BOM TE VER
VC
Dentro do armário esqueço de abrir os olhos. Eu
e a escuridão, a mesma coisa. Só assim me percebo sem
fim. Trancada. Perdi a chave, esqueci o caminho, escondi
a boneca embaixo da cama. Deitei sonho pesado, acordei
pesadelo.
Nem sempre foi assim. Morava uma criança dentro de
mim. Ela falava pela minha boca, vestia roupas coloridas,
brincava de passar batom nos lábios, também na parede ou
no espelho. Amava a hora do recreio. Felicidade não tinha
fim.
Naquela época, brincadeira também era estudo e apren­
dizado. Andar de mãos dadas, dançar com as borboletas
durante o dia, explorar o jardim junto com os vagalumes à
noite. A gente rolava na grama. E coçava, e pegava a corda,
e pulava, enlaçava o galho mais alto e fazia voar um sonho.
O balanço do outono derramava uma garoa de folhas
secas. Dava para escutar minha vó e seu violino. Às vezes, a
gente corria e fazia roda em volta dela. Dançava, cantava,
pulava, coloria de vida o céu e voltava a balançar. No inver­
no, gelava a ponta do nariz. E o cheiro do lanche, o sino,
a mesa farta. Na primavera, tinha passarinho de toda cor,
o balanço se enchia de flor. No verão, o balanço girava e o
tempo se perdia. Vai e vem, sobe e desce, a gente cresce. A
árvore cresce, faz sombra e o balanço não nos cabe mais.
O vento sopra a criança para longe, o fruto amadurece e
cai. Semente de responsabilidade brotou, balançando forte
a minha tênue estrutura, amadurecida antes do tempo. Da
feliz idade, minha felicidade se deu um nó. Só, na cidade.
Urgências prematuras. Nela, para alcançar o galho mais
alto, era de elevador. Batom no espelho era para lembrar
algo que na cabeça não cabia mais. E o balanço era o dese­
quilíbrio entre um passo e o derradeiro.
Tropecei uma vez no meio da rua. Ninguém viu.
Tropecei outra vez na escada do prédio. Alguém riu. Tro­
pecei no quarto, caí dentro do armário, engoli a chave. Ri
de mim mesma. A vida seguiu a esmo.
Trabalhar? Só por trabalhar, sorrir por obrigação,
comer por inércia. Borboletas, agora, me faziam chorar,
vagalumes me faziam chorar. O balanço trimestral da em­
presa me fazia chorar. Ainda choro dentro do armário para
ninguém ver. As pessoas riem de mim. Assim, fui perdendo
a cor, desbotando.
Tornei-me uma mancha fosca, desfocada, cinza, pálida.
Ir e vir de obrigações sem propósito ou fim. Passei a tomar
minha vida em conta-gotas, contando os dias, vivendo às
vezes. Um remédio qualquer, um placebo qualquer para
engolir essa existência de desesperanças. Tenho pena das
crianças, elas crescem.
A rua virou desespero, o elevador virou dor, a escada
virou descarga. Vivia à revelia de uma realidade que nunca
foi minha. Queria ser Samsa transfigurado, andar pelas pare­
des, habitar os esgotos, sentir a cidade regurgitar sobre a
minha casca. Mas eu não tinha casca. Era apenas uma pele
fina e sensível a absorver toda dor. Tanta que me abstive de
pensar.
Parar de pensar me confortou. Fazer por fazer, agir
por inércia, o melhor a ser feito. Vejo as coisas por ver, me
camuflo dos sons em fones de ouvido, sinto cheiros mun­
danos, inodoros na sua desimportância. Se a pessoa me
abraça, eu abraço em retorno. Mas, se me toca, eu logo
me afasto. Evito envolvimentos. Para as palavras alheias
que chegam ao meu encontro, eu apenas meneio a cabeça,
concordando com o que quer que seja. Aprendi as mínimas
normas de convivência para retornar à minha tranquilidade
dentro do armário. Quando ouso abrir os olhos, acordo já
no dia seguinte, quando então volto a ser rotina.
Tropecei mais uma vez no meio da rua, fui ao chão.
Rastejei minha dor pela calçada fria. Caí por abstração.
Como se distrai quem não atrai? Assim, distraída, eu me
deixei levar, um som me tocou de ímpeto. Agudo, contínuo,
melódico. Escutava minha vó e seu violino, colorindo de
vida o meu céu. Que céu? Só prédios, prédios, prédios.
Segui a música, terceiro andar do edifício acinzentado.
Na janela, uma mulher. Cor na roupa, cor na pele, brilho
nos olhos, perfumando com sua música os escapamentos e
as chaminés, bailando seu instrumento, observando a rua
em um profundo e silencioso transe, qualidade dada aos ar­
tistas que se concentram no infinito.

Mas eu caí.
Eu a vi,
tropecei,
caí.
O som cessou, o trânsito parou. Ela se debruçou sobre a
janela e sumiu, pegou minha mão e sorriu, acariciou minha
face. Senti seu toque, seu aroma, seus olhos. Seu hálito em­
baçou meu espelho. Já não mais via, apenas vivia.
Cuspi a chave do armário, queimei as roupas, as tantas
e as poucas. De batom, pintei o espelho, a parede da sala,
o teto, o muro da rua, o asfalto. Me pediram algo, bati o
pé, me abraçaram, ponderei, me tocaram, enfiei a mão na
cara, enfiei o braço embaixo da cama.
Empoeirada, rota, toda mofada. Teias, traças e outras
desgraças. Mas lá estava ela. Lavei sua roupa, pintei sua
boca, escovei o cabelo, passei perfume, ruborizei a face,
beijei.
Eu a coloquei sentada na cama, apoiada no travesseiro.
Tomei o arco, o violino, abri a janela e bailei. Silenciem a
cidade, os apitos das fábricas, as buzinas, as esculturas mu­
das e as fachadas. A música chega aonde tem que chegar.
Uma pessoa caiu.
Debrucei sobre a janela e sumi, peguei uma mão e sorri,
acariciei uma face e senti. Seu hálito embaçou minha vida.
Eu vivia. E a coloquei sentada na cama, ao lado da boneca.
Tomei o arco, o violino, abri a janela e bailei.

Um dia,
amanheci
armário.

Hoje,
sou toda
aplausos.
Vídeo “Queria que você pudesse sair de você
pra Saber como é Bom Te Ver - Youtube
SAUDADE
Q U A L É O N O M E D A S U A

Ela pegou a carta na caixa do correio, entrou na


casa e foi se pentear escutando um bolero. Não faltou tam­
bém base, rímel, batom. Abriu o guarda-roupa e dançou
com todas as cores. Escolheu um vestido longo, vermelho,
vivo. Sapatos não tinha muitos, mas dos poucos que tinha
experimentou todos mais de uma vez. Queria ter certeza de
que os que escolhesse pisariam firme no chão.
Da caixa de bijuterias, um bolo de nós. Colares ema­
ranhados tal qual a vida o é. Desatar é questão de insistir.
Ela insistiu. Perfilou um ao lado do outro sobre a sua cama.
Usou todos, escolheu dois. Dois era um número bom de
escolher, se completam. Com as pulseiras, a mesma coi­
sa, duas no pulso direito. O pulso esquerdo era reservado
à imagem de nossa senhora que a acompanhava desde os
quinze anos de idade. Brincos, não podia esquecê-los.
Em outra caixinha, lá estavam eles soltos, amontoados.
Suas mãos não pensaram e seus dedos foram logo tatean­
do o topo do bolo. Espetos pontiagudos a fizeram recuar.
Recuar, às vezes, é preciso para não se machucar. Virou a
caixinha sobre a cama e lá foi ela separar os pares, encon­
trar as tarraxas para ornar seus carnudos lóbulos.
Um pingente pequeno o espelho não quis, a imitação
de pérola tão pouco. As argolas maiores esticavam a sua
orelha igual massinha de modelar e os dourados eram mui­
ta formalidade. Ficou sem saber o que escolher. Escolher as
coisas, aqui entre nós, não era o seu forte. E como não tinha
a quem consultar, abriu a carta.
Leu atentamente o remetente e o destinatário, mesmo
sabendo que este era ela. Se atentou ao selo e seu ano de
lançamento. Mais um para a coleção. Lambeu o topo do
envelope caprichando na saliva. Cutucou-o e abriu uma
pequena fenda no papel babado. Deslizou sua unha pela
abertura e um risco se abriu. Não pegou o que tinha dentro,
apenas observou que tinha algo ali dentro.
Como podia imaginar, tinha um papel dobrado,
provavelmente escrito, pois ela sabia que era assim que
funcionavam as cartas. Sentou na cama para ler, pulou da
cama com um, ou mais de um, ou vários brincos espetados
na bunda. Lembrou que estava sem brinco e o primeiro a se
aproveitar do seu corpo foi o que ficou.
Procurou pelo seu par, fincou-os nos lóbulos e o espelho
aprovou. Porém revelou outra coisa. Seus dedos, como
assim, seus dedos não tinham anéis. Pegou a outra caixinha
e chacoalhou um guizo de anéis. Ensaiou um samba, uma
dança e riu sozinha com o espelho.
Despejou todos os anéis na cama e foi testando um a
um. Às vezes, pegava um brinco, estavam ali espalhados
também. E achando que combinava com o anel, corria
para o espelho trocar tudo, brinco e anel. Passou um tem­
po assim, trocando, mas a campainha tocou. Ela correu a
atender, mas esqueceu do perfume.
Abriu um armário, onde não passavam de quinze
frascos. Tirou a tampa de um, cheirou, leu o vidro de outro,
cheirou a ponta de um dedo, de outro, o pulso, borrifou
no pescoço. Queria o mesmo da última vez, mas não se
lembrava da última vez. As roupas coloridas bailaram ao
som dos perfumes. Percebeu que o longo vermelho não
combinava com o brinco, tão pouco com o perfume.
Pegou um verde bem claro, o que usou na última vez
que vestiu. Combinava com a bolsa de couro cru, e com o
chapéu, ah; o brinco dourado ficava lindo com esse vestido.
E a campainha parou de tocar. Ela pegou a carta e sentou
na cama, mas antes juntou todos os brincos e anéis. Jogou
tudo na caixinha, junto com os colares. Cheirou a carta.
Um perfume macio acariciava suas mãos. Esse selo ela
não tinha. Recortou o selo com todo o cuidado e sorriu.
Colocou dentro do envelope e retirou o papel dobrado.
Apertou os olhos e deu um suspiro, como quem dá de
ombros à vida.
Carmem Regina dos Santos Albuquerque. Se lembrava
do nome e da última vez que o viu. Sorriu à lembrança e
prontamente pegou o envelope. Ficou feliz ao perceber que
sua memória estava muito boa. Era o nome do remetente.
Colocou a mão na frente da boca e riu alto. Só podia ser
brincadeira de alguma amiga chamada Carmem Regina.
Uma carta só com um nome, onde já se viu.
Guardou o papel no envelope e foi até o escritório,
abriu a gaveta onde guardava as cartas que escrevia e as
que respondia. Fechou a gaveta. Riu mais uma vez ao ver
sobre a escrivaninha um envelope lacrado, pronto para ser
enviado. Onde estava com a cabeça, no dia seguinte, iria
acordar cedo e ir no correio, não se deixa as amigas assim,
esperando.
Sua amiga Carmem Regina dos Santos Albuquerque
devia estar ansiosa pela resposta. Deixou a carta sobre a
escrivaninha e seguiu para o quarto, se arrumar para ir ao
correio.
Vídeo “Qual é o Nome da sua Saudade” - Youtube
S
I
N
IN
H
O
Era dia de festa, tínhamos tudo para comemorar. A
dedicação de Sininho ao estudo tinha sido recompensada.
A palavra ‘diploma’ cravada no papel robusto não traduzia
todo o sentimento que me invadiu. Letra, verso, parágrafo;
cada qual minuciosamente ocupando seu lugar para tudo
fazer sentido em nossas vidas. Assim se conta uma história,
na lida do dia ou da noite, na falta de inspiração, mas tam­
bém na empolgação, porque nem tudo era tristeza naquele
casebre.
A cerimônia significava bem mais que um prêmio,
era um caminho apontado na ponta do lápis, da língua
e da prosa. Papel de mãe é apoiar, suportar os pequenos
fracassos, vibrar com as conquistas, reler, chorar às vezes,
emocionada em cada nova interpretação. Sininho gostava
de criar histórias. Fazia lindas redações em que ela e eu de­
positávamos a esperança de sair do lixão um dia. Assim,
ilustrada com as letras. Vida de catadora não era fácil, mas
assim quis o destino, depois de eu perder meu emprego e a
dignidade.
Um pouco mais crescida, Sininho se imaginava pro­
fessora. Ou escritora, insistindo nas poesias, nos versos que
impregnavam as folhas de papel com sonhos de uma vida
melhor do que a que levávamos. Sempre fui controversa
às genialidades precoces, via o talento como uma espécie
de insistência e prazer, mas minha filha realmente gozava
da vida ao escrever suas poesias.
Eu era seu ponto de apoio, o banco gostoso na som­
bra de uma brisa, o espaço vazio e calmo em que a cabeça
afundava e o corpo jazia sem intenção ou outro gesto que
não fosse o descanso. No momento íntimo da criação,
Sininho transbordava. E eu me transbordava nela. Em
algum ponto dessa trajetória, algo desandou. Ela pôs um
ponto final em seus versos e iniciou outra vida. Uma vida de
prazeres, sem verso, prosa ou poesia.
Esperança de mãe se chama olho fechado. Fiz questão
de não ver. As mínimas coisas brotavam pelo casebre, um
top de lantejoulas esparramado sobre a cama, um estojo
de maquiagem envaidecido ao lado do espelho: ela, que
nunca tinha usado maquiagem. Tudo fazia parte de um
caminho menor e mundano que fiz questão de ignorar. O
caminho da arte é imprecisão, mas o caminho do mundo é
a castração.
Meus sonhos foram castrados. Meus olhos cerraram
para me defender de um julgamento interno já sentenciado,
relegando-me ao arrependimento por toda a eternidade.
Sininho queria me dar o sonho. E eu nunca percebi que
Sininho era meu próprio sonho.
Agora, permaneço perdida. Sobre a mesa, os rabiscos
se espalham. Uma ligação cai. A lágrima escorrida de meus
olhos borra a tinta no papel, manchando seus versos anti­
gos. Não há como apagar o resto, a réstia e a chama. Nem
a fresta de uma esperança, nem um suspiro. O sumiço de
Sininho era como um furo fino e preciso no meu coração
sofrido. Não matava, mas deixava escapar, aos poucos, par­
te da alma. As sete badaladas acordaram minha manhã. A
cama vazia, a casa vazia, a vaidade esvaziou nossas vidas.
O telefone voltou a tocar. Uma esperança? Alguém com
pistas a dar sobre minha filha?
“Fez a fama, deita na cama”, foi a última coisa que disse a
ela. Arrependo-me, mas nada adianta, sua cama permanece
vazia. O lençol? Ela mesmo esticou, fazia questão. E tudo
voltava à minha mente. Uma mínima dobra de esperança.
Será?! Chegou?! Já saiu?! Se sentou para trocar de
sapato e; e não! Nem um pequeno amasso na lisura
do pano.
Não há pistas, a voz ao telefone apenas a sugere: cartazes
pregados sobre os muros e os postes. Sobre a mesa, restavam
o diploma, o prêmio, as palavras, o futuro geminando à
frente, ainda em gestação. Lá fora, um cachorro latia. Aqui
dentro do meu peito, todos os cachorros latiam, todos os
animais que me habitavam afiavam suas garras, querendo
me rasgar por dentro. Eu ia achar minha Sininho, a filha,
a ousadia em querer ser professora e poeta. O travesseiro
intocado me encarava de frente. O amor é a arte de decorar
os cheiros e os gemidos.
A vida segue, insensível. Uma moto, um carro, um
barulho. Só o quarto resiste aceso, suspirando inquieto,
enquanto o mundo lá fora continua escuro. O tapete na
entrada, a pelúcia preferida dela sobre a pequena mesa, os
papeis escritos, rabiscados, amontoados no seu inequívoco
cotidiano. Uma fresta de angústia. As matizes da vida nos
seus degradês. O jornal, o leite e o pão se ocupavam de
preencher o silêncio da rua. Me entreguei à esperança re­
lendo a sua caligrafia nos papéis manchados pelo tempo:
vento perdido
balança a vida
perde o sentido

poderia ser só um nó
quando a vida afronta
a garganta aperta

andar para frente


nunca será linha reta
lápis cravado

no coração do poeta

As sete badaladas do sino da igreja acordavam toda


manhã. A mim não importa, já não durmo mais. Tomo
da brocha, do balde, das minhas impressões. Hoje tomo
também uma foto antiga, o nome, Sininho, o contato, uma
esperança. O ar está fresco, fresco como um novo dia deve
ser.
Pego uma folha. Deixo a cola lamber o poste. No muro,
o nome dela e a saudade. Saudade é um lugar esquisito
que só se faz presente na ausência. Arrependimento é não
aproveitar quando se tem quem amar.
Vídeo “Sininho” - Youtube
VENTO
SE O

BATER
NOS VAMO TA JUNTO PRA SEMPRE

Sempre é muito tempo, é quase todo o tempo. É um


espelho na frente de outro espelho, um labirinto comprido
e longo, fácil de se perder por dentro. Eternidade é o reen­
contro de quatro amigos, pois a amizade é o conjunto de
memórias relembradas à exaustão. Ou, para sempre, perdi­
das dentro desse espelho.
A mesa do bar já expurgava as palavras não ditas.
Benefícios trazidos pela bebedeira. Benefícios levados pela
bebedeira, pois não lembrar, muitas vezes é a única forma
de esquecer. Sinceridades depositadas no cinzeiro, que já
transbordava.
Claro, eram amigos, sempre foram. O bar que sempre
frequentavam, a bebida que sempre tomaram, as con­
versas que sempre tiveram, o nó na garganta que nunca
desapertaram. Desatar então? Palavra que escapa da boca
sem convenção é vadia:
— Eu que comprei!
Sim, ele comprou, o mais abastado da turma, o que
costumava trajar roupas e vícios de marca. Aquele que era
sempre solícito em ajudar os amigos. Egoísta? Nunca. Mas
ajudar é dar um passo a mais para atravessar uma fronteira
e romper um território hostil chamado individualidade.
Amizade é uma instituição sacramentada pelo tempo
que, quando reunida, se torna um organismo único. As
mesmas histórias repetidas mil vezes, escutadas mil vezes,
corrigidas mil vezes, escondidas mil vezes. Contar mil vezes
constrói uma amizade. Porém esconder mil vezes, corrói
esse mesmo instituto por dentro.
— Eu que comprei!
A ponta mais abastada da mesa reafirma o feito, pleiteia
o gesto com entonação precisa, direta, e de certa forma,
calculada. Às vezes, a hora certa se chama nunca. Mas uma
mesa de bar será sempre uma mesa de bar. As vaidades se
diluem, as garrafas se esvaziam. Um rompante de sinceri­
dade. A exaustão cansada de se exaurir:
— Eu que comprei!
As risadas, a voz alta, os brindes e as distrações. Nenhum
artifício mais resta aos outros dois amigos. A conversa é uma
linha reta de mão única. O que comprou, e do outro lado,
o mais sério da mesa. E não só por causa do óculos que
sempre o acompanhou, mas talvez pela prematura forma
com que a vida lidou com ele. Parte da juventude evapo­
rada pela tragédia, a necessidade de pular uma etapa, se
tornar logo um adulto.
Sem meio termo, sem revoltas adolescentes, sem achar
os pais caretas pois os pais lá não estavam mais. Sem se opor
à sociedade, o caminho era um só. Ou se acatava a labuta
ou se pendia a desesperança pendurado no galho mais alto
da árvore. Eis aqui a ironia de um encontro.
O nó na garganta, que não ceifou a vida de um, saltou
pela boca do outro. Preso, atormentado, a culpa de ter aju­
dado, ou de ter escondido isso por tanto tempo. Ele comprou
sim. Os outros dois amigos sempre souberam, e também,
sempre esconderam. Não restava nada a fazer. Silenciaram.
Compromissos e urgências saltaram dos bolsos. Mas
os olhos mergulhados na tela do celular marejavam dentro
do imenso labirinto de palavras não ditas chamado ouvido.
Escutavam as angústias, as vontades adormecidas encontra­
vam uma saída. Um comprou. Mas três esconderam.
Uma inquietude ganha corpo, suspira, apoia os cotove­
los na mesa. Ajeita os óculos, as duas mãos cerradas na
frente da boca ganham volume, se abrem, se erguem, voam
sem controle e encontram a mesa. Batem com força, se
apoiam, ensaiam se debruçar elevando o corpo, a voz, a
indignação e o gesto. Que palavras maldisse? Todas aquelas
cuja indignação vocifera, mas que peço licença aqui, para
não transcreve-las.
A fantasia do reencontro rasgada. Amizade é a arte
de perpetuar os momentos bons do passado. Mas a vida
também é feita de desconfortos. O sentimento de se achar
um fracasso é um deles. O de sentir orgulho é outro. Fugir
de um tormento é se atormentar sem volta. É o caminho
comprido que a mentira percorre até se escorrer esqueci­
mento. Mas isto ela nunca será. Estará sempre em destaque
na próxima curva, na próxima derrapada, na próxima
bebedeira. Engolir seco é assumir, enfrentar.
— Era o que tinha que ser feito. E eu fiz, não para te
humilhar, mas porque te considero um irmão que a vida me
deu. — E apoiando as mãos nas pernas dos dois colegas ao
lado. — Que a vida nos deu.

lágrimas são goteiras


caídas de um céu
sem estrelas
Duas cabeças balançam, acenam afirmativamente.
Já não se eximem da responsabilidade. Concordantes, se
entreolham, se há culpa não é de uma pessoa, é desse insti­
tuto chamado amizade. Não são três contra um. São três na
esperança de continuarem quatro.
Amigos de infância, de escola, até de faculdade. Vi­
das que nunca se separaram. Viviam um na casa do outro,
acolhidos pelas famílias, que se tornaram um bem comum.
O sítio era o lugar preferido para as aventuras e peripécias.
Era a melhor comida, a melhor estada, o melhor cheiro de
grama cortada do mundo.
As melhores festas quando a juventude aos poucos apa­
gava a infância. Os pais viajavam e lá estes quatro amigos
se encontravam. Juntos no sítio. E estavam lá quando o
telefone afrontou a vida. As famílias se uniram em conforto
e prece. A derrapagem, o acidente, a sirene, o centro cirúr­
gico, o apito pausado de dois corações que ainda batiam, a
linha reta de um silvo comprido e fúnebre. Primeiro a mãe,
não resistiu ao primeiro dia. O pai durou um pouco mais,
quase duas semanas e um suspiro separou do corpo aquilo
que se chamava vida.
E se uniram mais do que nunca. Seus pais, unidos na
eternidade. Seus amigos, sua base, sua réstia, sua família.
E a família dos seus amigos o pedaço de chão ainda firme
a lhe sustentar. Pois o mundo opera de forma precisa. O
corpo vai, a conta da morte chega, a dívida galopa e os bens
evaporam.
O garoto foi morar com a tia, sua madrinha. Uma vida
nada abastada administrando dívidas. O sítio perdeu a cor,
o cheiro, o valor. O canto das aves já era substituído pelo
barulho da cidade, que aos poucos, se aproximava e o engolia.
Se desfazer dele ela apagar da memória uma felicidade que
já não existia mais. Era assumir a morte, enfrentar o luto, en­
tender a vida de forma prática. Era o momento em que vender
era preciso mas, de forma alguma, queriam compradores.
— Eu que comprei! Minha família comprou. — fitou
os outros dois amigos — As famílias conversaram sobre a
NOSSA ideia. A minha tinha dinheiro e comprou. Falaram
com a sua tia, vocês precisavam do dinheiro. Era necessário.
O sítio já não existia como ainda existe na nossa cabeça.
Tudo ali, acabou, virou cidade.
As cercas vão, os muros sobem e escondem de nós o
que vive lá dentro. Ter um amigo é ter um espelho. Frente a
frente, um túnel sem fim a se perder no infinito. Ou então,
um reflexo a nos iluminar a razão.
O céu relampeja, a tristeza transborda os olhos, a vaidade
desnuda e abraça, e consola, e volta a brindar. Amigo, mesmo
sem saber, sabe. A fala e a escuta moram na mesma neces­
sidade. Esse é o compromisso desses quatro, dessas garrafas
vazias, dessa mesa que aos poucos se molha de pranto e da
chuva que começa a escorrer. Não se perder em um canto
vazio é a prioridade. Saudade tem cura. Vira lembrança e
história boa. O céu pisca mais forte, soluça, pranta.
E lá se vão estes quatro amigos. O vento atravessa os
seus corpos bêbados, trôpegos, balançam, chacoalham
mas, abraçados, continuam sólidos, cantando no meio do
temporal. Agora vão para casa, para outro bar, estão livres,
libertos de uma prisão chamada angústia. Água e lágrima,
de tristeza ou riso, tudo escorre para o mesmo rio, para o
mesmo mar.
A chuva lava e leva
O vento balança
Amizade é tempo
e esperança
Vídeo “Se o Vento Bater nós Vamo
tá Junto pra Sempre” - Youtube
SEJAM
VADIAS
MÁGICAS

vagalume
vendado
chora

A vida é vadia. Mas sempre fui de acordar pronto para


ela, antes mesmo do café ou do despertador. Eis a minha
inequívoca capacidade de antecipar o celular se esgoelando
sobre o criado mudo, bem ao lado da minha cama. Rotina
é isso:
O galo desperta o Sol, os girassóis o perseguem, as
‘Onze Horas’ abrem suas pétalas para a claridade - talvez
em algum momento da história do mundo isso tenha se
dado às onze horas – e o fato deu nome à flor. Mas, e os
Sabiás? Estes, pelo que tenho observado, ignoram Sol, Lua,
Cometa, Estrela, Satélite. Cantam de ponta a ponta. Mas
não é só. Ao acordar, bebês choram e jovens esperneiam. E,
quando menos se espera, a gente acorda no mesmo horário,
à nossa revelia. A rotina nos molda. Fui criado pela minha.
Acordar pronto significa que, levantou da cama, as de­
cisões se impõem em préstimo e urgência. Os afazeres do
dia são apontados em um ritual cotidiano, a roupa quase
que se veste sozinha, o cheiro do café desperta o gosto e o
gole. Posto o pé na rua, já esta sentado na labuta com outro
café para ajudar a engolir o dia. O almoço, o retorno, a
janta, o jornal e a cama. Rotina chama ruga e rusga.
Caminho de todo dia, trilhado nas mesmas horas. Saio
com pouca luz, percorro dois quarteirões, ônibus. Ônibus,
dois quarteirões, chego com pouca luz. Pouco a se pensar,
o mais importante: a segurança é o lar. Um dia, depois o
outro, depois o mesmo e repete. A noite dorme sempre no
mesmo horário, a rua vazia se cala e o sono embala.
Um cochicho silencioso salta aos ouvidos. Um zumbi­
do rompe o silêncio absoluto. Não um zumbido de inseto,
esse é contínuo, pausa de repente, repete, cochicha. Um
zumbido que rompeu a noite. Parem tudo. Mas tudo já está
parado, ou era para estar. O cochicho caminha, muda de
lugar e o zumbido vem. Mas já não é o mesmo, não o do
mosquito. É o da mão do carrasco.
Em suas diversas formas cabe a esta mão a execução do
fato, o fim de um ato. No caso do peixe, a mão do carrasco
segura o anzol; à barata, o chinelo; ao zumbido do inseto,
o spray. Estão dedetizando a noite e tudo se embaralha nos
meus lençóis. Nunca mais haverá de ser dia. Acendo a luz
e a janela. Outros sonos se acendem, portas se abrem, se
fecham, se apagam. Passou. Tudo é silêncio e passado.
Acordo mais tarde do que o esperado, já é dia. O barulho
da rua denuncia meu atraso, isso nunca me acometeu. Des­
perto, ponho-me logo de pé sem me dar conta de como
fui parar defronte à janela em tão curto espaço de tempo.
Do lado de fora, o dia amanhece. Do lado de dentro, foi a
luz que dormiu acesa. Abro a janela, ao mesmo tempo que
outras portas se abrem. Vidas entreabertas se estranham e
se observam na vizinhança.
Um óculos ajustado ao nariz, um apertar de olhos, um
espanto tapando a boca, um grito, um desalento. Corro
para fora, testar se a minha casa também foi pichada. Tam­
bém. Todas as casas, todas as paredes, todos os muros, a
rua, as placas, as caixas de correio e também as de água. O
capacho da porta, o degrau, os troncos das árvores, o sinal.
A faixa de pedestre em cada retângulo, o bueiro, a fonte, o
ponto de ônibus. O banco, o assento, o topo da catedral.
Tudo pintado do mesmo igual.
A mesma frase, a mesma cor, a mesma letra de forma:
“Sejam Vadias Mágicas”, só isso. Um grito no fim da
rua. Outro no começo, e um início se liga ao fim no mes­
mo grito. As pessoas se olham como se não se vissem há
tempos. E não se viam. Ousam uma palavra, logo lacrada
pelo espanto. Aglomera, balbucia, treme. A bola vermelha
desponta, cresce, ilumina. Crianças saem correndo, bolas
pulam, pipas dançam, pássaros voam e cantam. Não ape­
nas os galos e os sabiás.
Cartões deixaram de bater, cafés esfriaram em suas
cafeteiras, telefones desistiram de tocar. Abrir os olhos não
é acordar, é acordo.

A vida é vadia.
Essa é a sua mágica.
Sejam Vadias Mágicas
Vídeo “Sejam Vadias Mágicas” - Youtube
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