Hermeneutica Bíblica
Hermeneutica Bíblica
Hermeneutica Bíblica
HERMENÊUTICA
BÍBLICA
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................. 5
Conclusão ............................................................................................................... 46
Bibliografia ........................................................................................................... 47
INTRODUÇÃO
I - HERMENÊUTICA – GENERALIDADES
b) Existe uma distância cultural (já abordada acima) entre a época das escrituras e a
nossa época. Uma das funções da hermenêutica consiste em vencer essa distância
cultural para permitir a manifestação na cultura presente daquilo que foi dito em
outra cultura e que não é mais do nosso tempo.
ύπο – sob, debaixo de (Hipótese)-- νόυς - mente --- ύπονοέω – supor, imaginar, suspeitar –
At.13.28, 25.18, 27.27---
ύπόνοια - I Tm.6.4
partir do exílio babilônico, por conta do sentimento de culpa nutrido pelos movimentos
deuteronomista e sacerdotal, levando assim à mente da comunidade que o exílio era o
castigo de Javé ao povo desobediente à sua Palavra. A idéia de reunir pessoas em grupos
nesse período culminou mais tarde no projeto de sinagoga judaica (Ez.3:15;8:1;14:1;20:1).
Júlio Trebolle Barrera levanta alguns fatores que contribuíram para o nascimento e
desenvolvimento da interpretação bíblica no judaísmo a partir das épocas persa e
helenística6. Em primeiro lugar ressalta que o desenvolvimento do cânon hebraico (Tanach)
exigiu que os escritos mais tardios (literaturas sapiencial, apocalíptica e apócrifa)
representassem uma espécie de interpretação e de reescritura de textos e tradições de épocas
anteriores. Aliás, isso já era uma prática dentro do próprio texto canônico (comparar o
Decálogo em Ex.20, Dt.5 e Jr.17:21-22; ver também a promessa incondicional a Davi que o seu
reino será eterno em II Sm.7:12-16 e I Rs.2:1-9, verificando-se como diferencial o
cumprimento da Torah). Em segundo lugar, para manter vigentes as leis e instituições do
povo judeu e para manter a própria identidade e esperança nas difíceis situações de cada
época, era necessário uma releitura e uma nova compreensão dos velhos textos legais e das
tradições históricas de Israel. Por fim, a necessidade de traduzir os textos sagrados hebraicos
para a língua aramaica falada na Palestina e na diáspora judaica oriental e também para o
grego, falado por muitos judeus na diáspora ocidental, obrigava a um grande esforço de
interpretação ou de atualização dos textos hebraicos.
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Flávio Josefo é conhecido como historiador judeu no primeiro século d.C. e, apesar de
receber esta designação, demonstra agir hermeneuticamente com relação aos textos bíblicos.
Dentro de seu projeto de apresentar a história dos judeus ao público greco-romano a partir
de uma retórica helenística, ele resume, sistematiza, amplia e dramatiza as narrações bíblicas.
Por exemplo, no prólogo de “Antigüidades”, Josefo se aproxima de Fílon (OPIFICIO
MUNDI) explicando o fato da narração sobre a criação preceder o relato da entrega da Torah:
a ordem dos relatos tem por objetivo preparar a obediência daqueles que vão receber a
Torah. Da mesma forma, Flávio Josefo e Fílon interpretam alegoricamente a tríplice divisão
do Tabernáculo: terra, mar e céus.
século IV d.C. É toda uma síntese de tradições, leis bíblicas, comentários sobre a
Torah, resultantes do processo hermenêutico iniciado pela MIDRASH.
MIDRASH
HALAKA HAGADA
H H PESHER
MISHNAH
GEMARA
TALMUD
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2.1.2.1. As Escolas de Hillel e Shammay – Através do conhecimento prévio da
hermenêutica judaico-helenística
e dos conceitos básicos da hermenêutica rabínica, pode-se entender melhor as
interpretações de Hillel e Shammay. Hillel, vindo da Babilônia e de uma cultura helenística
no primeiro século a. C., deu pouco ou quase nenhum valor ao fervor apocalíptico e ao
messianismo radical de caráter político desenvolvido entre os zelotas. Assim, todo o seu
ensino vinha mais da dedução racional que da tradição, servindo-se do jogo de pergunta e
resposta próprio do método socrático. Criou sete regras de interpretação, as quais dão
ênfase ao estudo exegético das escrituras, deixando de lado a tradição oral. Dentre essas
regras, destacam-se: uso do contexto, dedução do especial para o geral (implicações gerais
deduzidas de uma passagem), inferência por analogia (palavras que têm significação
idêntica poderão ser tratadas igualmente, mesmo que estejam ligadas a declarações muito
diferentes), uso comparativo de outras passagens. Percebe-se, então, que Hillel tinha a
preocupação sempre nova de atualizar a Torah para os judeus das diversas situações
(diáspora, palestinos), o que lhe valeu a acusação de modificador da Torah e de criador de
novas leis (Taqqanot). A sua forma de interpretação estava mais afinada com a Halakah,
momento em que convertia usos e costumes próprios do seu relativismo, conferindo-lhes
valor sagrado.
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“ Um profeta suscitarei para eles do meio de seus irmãos, como a ti, e porei minhas
palavras na sua boca. E ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar. Eu mesmo
pedirei contas a quem não escutar as palavras que ele pronunciar em meu nome. E
pronunciou sua mensagem e disse: Oráculo de Balaão, filho de Peor, oráculo do
homem de olhar penetrante, oráculo de quem ouve as palavras de Deus e conhece os
pensamentos do altíssimo, que vê as visões do poderoso, cai em êxtase e tem os olhos
abertos. Vejo-a mas não é agora, contemplo mas não está perto: uma estrela se levanta
de Jacó e um cetro se eleva de Israel, quebra as têmporas de Moab e o crânio de todos
os filhos de Set.”12
No que diz respeito à sua visão do AT, Jesus considerou as escrituras inspiradas, sem
no entanto aceitar a idéia do ditado verbal, conforme fica claro em Mc. 12:36: “Davi mesmo
disse no Espírito Santo...” ( as palavras são de Davi, ainda que inspiradas pelo Espírito
Santo ). Além disso, deu ao texto diferentes graus de valorização, na medida em que
ajuizou a permanência do casamento, estabelecida em Gn. 2:24, superior à lei, permitindo o
divórcio (Dt. 24: 1- 4), conforme Mateus 19.
A partir desta compreensão de sua relação com o AT, é possível estabelecer a forma
da hermenêutica de Jesus. Houve momentos em que Jesus modificou o texto para que a
profecia tivesse sentido em sua pessoa. Por exemplo, comparar Mt.26:31 e Mc.14:27 com
Zc.13:7; em outros momentos Jesus utilizou a forma “Pesher” (relação de um texto do AT
com acontecimentos ou personagens da época escatológica que o intérprete crê estar
vivendo) conforme formulação em Lc.4:21. Nas questões de ordem moral e religiosa Jesus
foi categórico ao usar a forma literal da letra do texto (como em Mt.15:4 e Mc.7:10) mas
também, em outros momentos, utilizou a “Midrash” (a expressão “quanto mais” em
Mt.7:11; Lc.11:13; típica de Hillel).
Jesus criticou duramente a tradição (conforme visto nos “logia” – sermão do monte)
mas, em outros momentos, não hesitou em usar ensinamentos do rabinismo que viriam a
constar no Talmud , aplicando-os dentro de sua visão “antropo-teocêntrica” , conforme Mt.
7:12 . Essa maneira flexível de Jesus usar as Escrituras permite-lhe também, ao mexer com a
tradição mais antiga, construir uma seqüência lógica de argumentos a partir da própria
história judaica para apoiar o seu ensinamento, como em Mt. 12:1-8, na questão do
“Sábado”.
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Jesus estabelece ainda, no sermão da montanha, que suas leis iam além das leis do AT.
Enquanto que os fariseus e escribas interpretavam as leis como proibitivas de ações
externas, Jesus buscava um sentido mais profundo, que refletisse as atitudes do coração. Por
exemplo, não bastava retrair-se do adultério ou do crime; o homem deve retrair-se da
cobiça e da raiva.
De acordo com Viertel, “Jesus usou algumas formas de expressão dos rabinos, mas o
conteúdo dos seus ensinos era diferente. Ele engrandeceu a presença do Reino de Deus em
vez da lei. Ele identificou-se como o cumprimento da profecia ao invés de apontar a vinda
do Messias. Ele interpretou o Velho Testamento à luz de uma nova era que raiava, em vez
de enfatizar a interpretação de sentenças, cláusulas, frases e até mesmo palavras simples,
independentemente do contexto ou da ocasião histórica”.13 O fundamental nesse estudo é
ver que se a Igreja cristã primitiva construiu uma hermenêutica cristocêntrica, esta nasceu
também graças ao uso que o próprio Jesus fez das Escrituras.
2.2.2 – Paulo como intérprete - Dentro do estudo da Hermenêutica paulina vale ressaltar
algumas de suas características:
2.2.2.1 – Paulo usa com muita freqüência o texto do AT quando escreve para
comunidades de origem judaica (Rm., Gálatas e I/II Co.), mas não o utiliza quando escreve
a comunidades com predominância gentílica (Colossenses, Filipenses e I/II
Tessalonicenses), o que torna Paulo um exegeta por excelência. Fato mais interessante é que
das 93 citações que faz do texto do AT, modifica o texto em 52 casos (ex.: comparar Rm.9:17
com Ex.9:16). Seria, como dizem alguns14, uma evidência de que Paulo citava textos de
memória, ou que era influenciado pela sua tradição rabínico-midráxica ?
2.2.2.2 – Como Hillel, procurou adaptar o texto bíblico aos problemas de seu tempo,
contextualizando-o (comparar Rm.9:25 com Os.2:21-23).
2.2.2.4. Paulo lançou mão da tipologia para estabelecer a relação entre o AT e Cristo ( o
servo sofredor, de Isaías 53, representa Cristo; as promessas de Deus a Abraão e seus
descendentes tornaram-se as promessas de Deus aos crentes em Cristo, que são o novo
Israel ). Em outro texto, Adão é considerado como um “ tipo de um que devia vir ” ( Rm.
5:14 ). Sua interpretação do AT é cristocêntrica: Cristo é o cumprimento do AT.
2.2.2.5. Paulo utiliza a alegoria com um aspecto distintivo em relação aos gregos e
rabinos. Enquanto aqueles buscavam a alegoria ou para explicar mitos sobre os deuses ou
para dar sentido a algo que contraria sua lógica ( concepção do “indigno de Deus” em
Platão ), e estes usavam as alegorias na busca dos significados ocultos, Paulo encontra nos
relatos do A.T. fatos que, sem perder sua veracidade histórica, possuem um sentido
espiritual que será encontrado por meio da alegoria ( exemplo disso é a interpretação da
história de Agar e Sara, aplicada a Israel escravo e livre, em Gl. 4:22-26 ).
13 Viertel,
A Interpretação da Bíblia, pg. 162
14 idem, pg.604
15 Martínez, Textos de Qumram, pg.366
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2.3. Período Patrístico – Após o período apostólico, entram em cena os herdeiros e
continuadores da tradição apostólica, conhecidos historicamente como os pais da Igreja.
Estes se notabilizaram a partir do 2º século da era cristã.
Esta rejeição do AT também foi forte entre os gnósticos. Valentino aplica a passagem
de Jo. 10:8 aos profetas: “ Todos os que vieram antes de mim eram ladrões e assaltantes”;
Ptolomeu, mais moderado, divide o Pentateuco em três partes, quanto a sua origem: a
primeira parte devida a Deus ( o decálogo ), a segunda atribuída a Moisés ( as leis do
Deuteronômio ) e a última atribuída aos anciãos ( as leis ritualísticas, de pureza e da guerra
santa ). Em sua carta a Flora, condena essas últimas, as quais conduzem o homem ao mal e,
reduz o valor das leis ritualísticas ao tempo para o qual foram escritas. Quanto aos nomes
de Deus encontrados no AT ( Elohim, El Shaddai, Javé Tsevaoth ), os gnósticos os
interpretam como referindo-se a deuses distintos, subordinados ao Deus Pai desconhecido (
o criador ).
Diante das tendências marcionitas e gnósticas, a alternativa para a Igreja cristã quanto
à utilização do AT foi a leitura tipológica. Para Justino, o mártir ( em DIÁLOGO COM
TRIFON e APOLOGIAS ), em dura crítica a Marcião, a lei é “ tipos ” da realidade futura de
Cristo e da igreja. Já a carta de Barnabé é rica em alegorias do AT: os sete dias da criação
simbolizam os seis mil anos de duração do mundo, sendo o sábado símbolo do descanso
escatológico. O autor dessa epístola ensina que o judaísmo cumpriu a sua missão e que a
igreja é herdeira de suas prerrogativas e livros sagrados. Também emprega a GEMATRIA,
método no qual as letras das palavras eram convertidas em valores numéricos para uma
aplicação escatológica.
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2.3.2. A Hermenêutica no 3º Século – Até o que se tem visto até agora, o problema
hermenêutico do segundo século tem sido a leitura do AT e sua interpretação como livro
cristão, problema esse que a Igreja resolveu através da apropriação das escrituras judaicas e
de suas profecias. Entretanto, a partir do Século III levanta-se uma outra questão que é o
problema hermenêutico da interpretação bíblica em si mesma caracterizada na luta entre o
literalismo e o simbolismo e notabilizada através da escola alexandrina, com Clemente e
Orígenes, os quais exaltaram a postura hermenêutica de Fílon, no extremo uso da alegoria,
em função do conceito platônico do “indigno de Deus”.
O primeiro a enfatizar essa linha hermenêutica foi Clemente de Alexandria (150 – 215
d.C.). Para ele existe um sentido oculto de face cristológica em cada palavra ou até mesmo
cada sinal gráfico do texto sagrado. É essa linguagem misteriosa que precisa ser
decodificada através da alegoria. Compreende, entretanto, que as escrituras têm diversos
sentidos: literal e teológico, profético e tipológico, filosófico e psicológico e, finalmente, um
sentido místico. Como exemplo do sentido místico, Clemente dizia que a figura da mulher
de Lot era símbolo do apego às coisas terrenas que impediam a alma de reconhecer a
verdade16. Insistia ainda que a alegoria revelava a verdade ao verdadeiro discípulo, mas a
escondia de outros, pois o objetivo de Deus era ocultar a verdade17.
Um outro pai eclesiástico da época, Orígenes, se notabilizou por ser o mais erudito de
seu tempo. Valeu-se do princípio da racionalidade para interpretar passagens bíblicas que,
muitas vezes parecem inacreditáveis, como por exemplo as narrativas de Gênesis (onde
existem muitos antropomorfismos e relatos míticos da criação), as quais eram interpretadas
por muitos de forma literal. Para Orígenes esses eram os mais simples, que não tinham a
capacidade intelectual de compreender o sentido espiritual escondido no texto bíblico
através de suas metáforas, símbolos e alegorias. Orígenes crê, no entanto, que existem
passagens das escrituras com características literais mas que todas as passagens das
escrituras possuem uma vertente espiritual e que a única maneira de se reconhecer o
mistério escondido ou a mensagem espiritual é através do uso do método alegórico de
interpretação. Orígenes adaptou a tricotomia platônica à interpretação das escrituras,
seguindo os passos de Fílon e de Clemente, através da seguinte divisão:
O valor de Orígenes para o seu tempo está no fato que ele elevou a fé cristã ante as
críticas externas, as quais enfatizavam a imoralidade do AT bem como a falta de uma
explicação lógica e racional da fé em Cristo. Pode-se dizer que ele conseguiu o respeito de
não cristãos do seu tempo.
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2.3.3.3 – Conceito de “theoria” (“observar”, “contemplar”) em oposição à “alegoria”.
Nesse conceito estuda-se o estado mental dos profetas quando recebiam suas visões. Para os
antioquenos, os profetas, ao receberem suas visões, não viam o futuro, mas o presente,
sendo que essa visão era um canal condutor de uma tipologia futura ou ainda de
acontecimentos messiânicos. O diferencial aqui é que essa tipologia é considerada a partir
do profeta e não de quem o interpreta.
2.3.4.2 – Com base nessa idéia os pais latinos preocuparam-se com o contexto histórico
da passagem. O ambiente do autor original com seus traços lingüisticos e culturais devia ser
levado em consideração pelo intérprete, antes de poder aplicar o texto às questões diárias
de sua época.
Ora, do que se pode perceber das tendências hermenêuticas dos cristãos do período
patrístico, extrai-se o grande conflito entre o literal e o simbólico, apesar de que cada
extremo sempre permitia de alguma forma a possibilidade para outra interpretação ainda
que de forma diminuta. A apropriação do AT pelos cristãos trouxe consigo grandes
questões hermenêuticas que se arrastaram nos séculos seguintes. Aliás, o apóstolo Paulo já
falava do problema da oposição entre a “letra e o espírito”, em Gl.3:6, problema existente
ainda nos dias hodiernos.
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4 dogmas já estabelecidos pela igreja. Este dogmatismo chegou ao extremo de estabelecer
como única tradução considerável o texto da Vulgata.
significativa contribuição dos filólogos, principalmente nos séculos XIII e XIV. Esta
preocupação, no entanto, começou a decair, lentamente, no final do século XV, quando a
interpretação místico-alegórica levou a um descuido do trabalho exegético. Somente no
século XVI, a exegese propriamente dita, começa a ganhar um novo espaço.
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2.5.1. Hermenêutica da Reforma – É neste momento e contexto histórico que desponta
o trabalho hermenêutico dos reformadores. Notabilizaram-se, nesse aspecto, Melanchton,
Lutero e Calvino, este último considerado o maior exegeta da Reforma, principalmente em
função de sua coerência entre as convicções doutrinárias e a postura prática. Embora
apresentassem algumas diferenças quanto à interpretação de determinados textos, sua
hermenêutica trazia alguns princípios comuns:
2.5.1.1. A interpretação das Escrituras não deve ser monopólio da igreja e seu
colegiado Em lugar disso, é estabelecido o princípio de que a Bíblia é interpretada pela
própria Bíblia; Lutero declara que “ se são obscuras num lugar são claras em outros ” 19 . Isto
indica a tentativa de harmonização de passagens difíceis .
2.5.1.2. As Escrituras são inspiradas e, por isso, infalíveis; concepção que reforçou a
tese da inerrância do texto bíblico. Por isso, não podem receber o tratamento crítico como se
fossem um livro qualquer sobre religião.
2.5.1.3. Se as Escrituras são inspiradas, para entendê-las o homem não pode prescindir
da iluminação do Espírito Santo por causa do estado de cegueira espiritual resultante da
queda.
2.5.3. Puritanismo - este movimento teve sua origem na insatisfação com a reforma
(considerada incompleta ), principalmente na Inglaterra. Ali, como a história registra, os
aspectos políticos foram muito mais decisivos que os doutrinários no rompimento com o
catolicismo romano. De fato, Henrique VIII não deixou de ser católico em suas convicções.
Por isso, a gênese do movimento puritano ocorreu ainda no século XVI, embora seu auge
tenha ocorrido no século XVII. Em vários aspectos, a hermenêutica puritana se assemelhava
aos pressupostos da reforma: a rejeição da tradição, a aceitação da escritura como única
verdade válida e a interpretação cristológica do A.T. Mas a ênfase principal da interpretação
puritana era a prática da Escritura; a "consciência puritana" era sua característica mais
marcante.
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"Eles eram escrupulosos em seu desejo de saber qual era a verdade, não simplesmente
para que tivessem um conhecimento teórico sobre ela, mas a fim de que a levassem a cabo e a
pusessem em prática a qualquer custo ".21 A partir desta postura, as doutrinas mais
enfatizadas eram a da Graça e a Teologia Pastoral.
Como tentativa de unir a religião à razão, surge na Inglaterra o Deísmo, que foi
representado, na França pelo filósofo Voltaire. Seu pressuposto básico é que Deus, ao criar o
mundo e o ser humano, os entregou à sua própria sorte. Assim, o conhecimento de Deus só é
possível a partir do próprio homem, através do uso da razão e da filosofia. O texto bíblico
tem sua autenticidade questionada e a autoria mosaica do pentateuco é posta abaixo
(Spinoza, em 1670, e Richard Simon, em 1712). John Semler (1780), considerado como o mais
autêntico autor do racionalismo bíblico, 23 principalmente por tê-lo elevado à categoria de
sistema, negou a inspiração da Bíblia e a origem divina da Escritura, considerando-a como
um livro humano cheio de erros e que, por isso, deveria ser submetido aos métodos humanos
de interpretação. De acordo com Semler, Cristo teria sido um homem comum, que soube se
aproveitar da expectativa messiânica do seu tempo para apresentar-se como Messias; os
evangelhos seriam lendas que, posteriormente, idealizaram a figura histórica de Jesus. Que
valor teria então a Bíblia na ótica do racionalismo ? Segundo o mesmo John Semler, o valor
Uma outra ala de teólogos racionalistas se caracterizou por uma abordagem mais
gramatical das Escrituras e tem como representante máximo John Ernesti (1707 – 1781). Ele
tentou por um fim às lutas primitivas entre interpretação literal e interpretação alegórica;
rejeitou o sentido múltiplo das Escrituras e defendeu que a interpretação alegórica só pode
ser aceita quando existe no próprio texto uma indicação do autor nessa direção. Isto equivale
a dizer que Ernesti fez uma opção pela interpretação literal do texto. Dentre as diversas
características do período moderno destacam-se:
2.6.2. – A postura do tipo “leia o Novo para entender o Antigo” foi posta abaixo
através da gradual separação dos dois testamentos. Essa tendência surgiu a partir do
momento em que foi constatado o fim da unidade teológica não só dos testamentos (um em
relação ao outro), mas também do testamento em relação a si mesmo24. Há uma procura em
entender sobre aquilo que Israel afirmou sobre si mesmo e sobre sua fé. Por conseguinte, há
um maior dinamismo no estudo bíblico e na multiplicidade de suas tradições (Ernesti e
Semler).
21 Lloyd-Jones, Os Puritanos - Suas Origens e Seus Sucessores, pg. 66
22 O iluminismo era, em vários aspectos, uma revoltacontra o poder da religião
institucionalizada e con tra a religião em geral.
23 Tuya-Salguero, Op. Cit. Pg. 240
24 Por exemplo, o conceito pecado-culpa e sua evoluçã o nas diferentes partes do AT; o
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2.6.3. – As idéias de inspiração e de inerrância das escrituras foram abandonadas a
partir da compreensão do cânon como resultado de um processo histórico. O texto bíblico
teria um valor local, para a comunidade que o produziu e o recebeu, sem uma ligação com o
presente (Semler).
2.6.4. – Uma forte reação contra o dogmatismo e o controle da exegese pela teologia
sistemática ; aqui a busca do exegeta é, em primeiro lugar, entender o homem, o pensamento,
a cultura, a teologia que estava por trás do texto, utilizando para isso o instrumento da razão,
que é a crítica bíblica, tal qual trabalhada nas suas diversas escolas, conforme descritas a
seguir:
2.6.4.1.- Crítica das Fontes – Como o próprio nome sugere, o objetivo desse método é o
de identificar as fontes escritas (e orais) de que se serviram os escritores para compor o texto
bíblico. Uma vez identificadas, a preocupação volta-se para a compreensão da teologia de
cada fonte ou de cada bloco de escritos. Os exemplos mais famosos são: a hipótese
documentária (Graff-Wellhausen) a qual atribui a autoria do Pentatêuco a 04 estratos-fontes ,
identificados pelas letras “J” (Javista), “E” (Eloísta) , “D” (Deuteronomista) e “S” (Sacerdotal)
. Segundo a hipótese documentária cada estrato possui características, formas e teologias
próprias; os evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) cuja curiosidade básica não foi
levantada em torno do conteúdo que os três possuem em comum, mas naquilo em que
diferem um do outro. Uma das conclusões foi que 95 % do conteúdo de Marcos está
espalhado entre Mateus e Lucas. Uma segunda constatação foi que existem materiais que só
são encontrados em apenas um dos três e não são comuns. Com base no percentual e na
influência de Marcos, concluiu-se também que este evangelho, e não Mateus, foi o primeiro a
ser escrito. Essas são algumas contribuições da Crítica das Fontes.
2.6.4.2 – Crítica das Formas – A preocupação principal desta escola é a fase do texto
bíblico conhecida como “pré-história” do texto. Nessa compreensão, o texto bíblico se
apresenta dentro de formas ou gêneros (sagas, ditos, lendas, etiologias, entre outros) que
nasceram dentro de uma determinada “situação de vida” ou sitz im leben , um contexto vital,
quando a comunidade de fé experimentava o futuro texto na via oral. As formas que essas
histórias antigas adquiriram ajudaram a preservação das mesmas na vida do povo sendo
mais tarde redigidas. Herman Günkel (AT) e Rudolf Bultmann (NT) são os nomes mais
conhecidos desta escola.
2.6.4.3 – Crítica da Redação – Aqui a atenção não se dirige em princípio às fontes, nem
à pré-história oral do texto, mas ao escritor. O que teria levado os escritores a escolherem ou
selecionarem fontes, unindo-as num mesmo trabalho? Agora, eles são visto, não como
simples escritores, mas como redatores-teólogos. A tarefa da Crítica da Redação é descobrir a
teologia desses escritores que, em última análise, é a teologia de sua comunidade.
ocorrendo uma espécie de insatisfação por parte de alguns filósofos e teólogos com o
reducionismo racionalista. Dentre eles destaca-se a pessoa de Emanuel Kant, o qual
questionou com fortes argumentos contra o racionalismo do Sec.XVIII. Segundo ele é um
erro reduzir a religião à razão, pois a religião encontra lugar não no que é puramente
racional, mas no que é ético: “nós, seres humanos, somos por natureza seres morais e com
base nessa moralidade inata é possível provar a existência de Deus e da alma, a imortalidade,
a liberdade e a vida futura”25. Com sua influência, Kant levantou a atenção para outros
aspectos da vida do ser humano que não os meramente racionais, dando instrumentos a
teólogos posteriores para outras reflexões, como por exemplo, Schleiermacher, o qual será
estudado mais tarde.
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cedam espaço umas às outras27. Diante dessa nova situação, todo discurso que tem a
pretensão de impor-se como superior e único é rejeitado, significando, por exemplo, no
campo teológico, um golpe no exclusivismo denominacional e no fundamentalismo. É
interessante lembrar que os movimentos de estudo bíblico e de representatividade extra-
eclesiástica de caráter interdenominacional surgiram um pouco antes da metade do século,
portanto dentro desse novo espírito, onde o elemento doutrinário que diferencia um grupo
do outro é substituído por crenças básicas gerais.
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9 processo de interpretar o ser. Essa maneira de interpretar não dá atenção à perspectiva do
autor, mas àquilo que se expressa no texto, independente do autor. Para Bultmann, no
processo de leitura acontece a auto-interpretação do leitor, que se processa no nível de suas
preposições.
2.7.2.4. A vertente Filosófica - Desde os tempos mais antigos, a luta entre o que é
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c) O conceito subjetivista - Gadamer não estabelece qualquer critério
para definir se uma interpretação é falsa ou verdadeira. Segundo ele,
todas são verdadeiras para quem lê, numa clara demonstração de
relativização da verdade e de subjetivismo, onde cada nova leitura
pode produzir sentidos diferentes e inovadores até para o mesmo
leitor, e nenhum deles conflitante com os demais.
Já a escola teológica, zela pelo princípio "escriturístico" da Bíblia, ou seja, o caráter místico da
Bíblia, enquanto Palavra de Deus. A tendência dessa escola é tornar os testamentos como
uma unidade principalmente no que diz respeito à doutrina da redenção que une tanto
israelitas no AT quanto gentios do NT. Uma das marcas desse caráter místico da Bíblia é a
interpretação tipológica das escrituras, a qual será estudada no próximo capítulo. Aqui
mística-tipo-símbolo constituem uma realidade inseparável. Finalmente, a escola crítica, a
qual possui seus precedentes na busca de um diálogo entre a linguagem científica e a
linguagem religiosa própria dos séculos XVII e XVIII, tem, como uma de suas características
principais, a utilização de métodos científicos na interpretação dos textos. Identificando-se
com a escola histórica, a escola crítica busca conhecer o texto a partir do autor e do seu
ambiente, respeitando a antropologia do momento e as categorias sociais; identificando-se
também com a escola gramatical, procura identificar categorias de linguagem próprias da
cultura local através do método da história das formas, da crítica textual e da história da
redação. Do ponto de vista teológico, ao contrário da escola chamada teológica, a escola
crítica procurar entender a teologia enquanto evolução na história, seccionando períodos e
tendências teológicas, desistindo assim da idéia da unidade dos testamentos, visto que,
segundo ela, na Bíblia encontram-se diversas teologias. O diferencial da escola crítica é a sua
proximidade da Psicologia, da Antropologia, da Filosofia e principalmente da Sociologia. O
texto é entendido primeiramente no seu ambiente formador e, depois, por analogia, é
entendido em um novo momento, sempre numa ênfase nova onde a perspectiva da
comunidade é determinante na interpretação do texto.
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3.1 - O primeiro princípio a ser abordado é o da crença na autoridade das Escrituras.
Se a Bíblia é submetida à razão ou mesmo à tradição ela deixa de ter autoridade sobre a vida
de uma pessoa. Por exemplo, o que o catolicismo ensina sobre Maria é uma leitura das
Escrituras a partir da influência da tradição34, o que pressupõe que a crença na autoridade da
tradição é superior à da autoridade das Escrituras, embora a nível teórico se afirme o
contrário. Entretanto, pretende-se aqui dar um novo sentido à autoridade das Escrituras,
visto que tem sido, usada por linhas tidas como "biblicistas" para consolidar ensinos por
demais alienadores. A autoridade da Bíblia não existe para fundamentar princípios de
história geral, matemáticos e científicos. Daí a incapacidade da Igreja de conviver com
descobertas científicas que "abalaram" a crença na autoridade das Escrituras, tais como as de
Copérnico e de Galileu Galilei. A autoridade das Escrituras não existe para defender as
Escrituras em si mesmas, a sua inerrância ou a sua infalibilidade, mas para revelar ao ser
humano a vontade de Deus, sua misericórdia, seu amor, trazendo ao homem novamente a
condição de amigo de Deus (II Co. 5:18-19), existindo ainda para conceder a esse ser humano
princípios para viver de acordo com a vida de uma nova criatura em Jesus Cristo. Em suma,
o que se quer dizer é que a autoridade das Escrituras existe em matéria de fé.
3.3- Além de buscar o contexto literário, analisando a palavra dentro das demais
palavras ou sentenças, é essencial estudar o texto à luz do ambiente que o produziu, ou seja,
à luz do seu contexto histórico, socio-cultural, religioso, político e geográfico. É intrigante
para a pessoa que lê o evangelho pela primeira vez o texto de Jo. 4:9, no texto que relata o
encontro entre Jesus e a mulher samaritana, onde aparece uma observação dizendo que os
judeus não se davam com os samaritanos. Entretanto o texto não diz porque. Sugere no verso
20 uma briga religiosa. Entretanto as razões dessa briga são esclarecidas pelo contexto
histórico-religioso, o qual leva o estudante da Bíblia para o ambiente pós-exílico do IV século
a C., com a repatriação dos judeus em meio à povoação de árabes e de pessoas oriundas das
misturas raciais advindas da invasão assíria no reino do norte cerca de 700 a C., culminando
2
2
3.6- De acordo com W.A. Henrichsen , deve-se interpretar a experiência pessoal à luz
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das Escrituras e não as Escrituras à luz da experiência pessoal. E aqui temos uma delicada
premissa que, quando comparada às afirmações da Hermenêutica pós-moderna pode levar o
princípio a duas vertentes. Por um lado, admite-se que não é recomendável imprimir sobre o
texto e o seu resultado hermenêutico, ou seja, sua interpretação local, a experiência da
pessoa, no sentido de fazer o texto significar o que ela queira que ele signifique ou mesmo o
que ela precise que ele signifique. É justamente aqui que nascem as interpretações de
conveniência tão comuns à época em que vivemos. Por outro lado, existe aquilo que R.
Lapointe 37 chama de "Circularidade Hermenêutica", ou seja, a mútua iluminação entre o
acontecimento fundamental (primeiro) e o acontecimento derivado, ou ainda entre o
primeiro e a sua "palavra". Por exemplo, se a Igreja Primitiva interpretou Jesus a partir das
Escrituras, estava também interpretando as Escrituras a partir do acontecimento de Jesus (
acontecimento: Jesus; palavra: NT ) . Em termos práticos, pode-se tentar uma conciliação
entre partes aparentemente contrárias. Se o Dêutero-Isaías fala no capítulo 61 sobre uma
pessoa sobre a qual repousa o Espírito do Senhor para libertar cativos, curar aflitos, tirar
cegos da escuridão e apregoar o ano aceitável do Senhor, ele pode estar falando de si mesmo
como pessoa, ou até mesmo do povo liberto do cativeiro da Babilônia para exercer esse
ministério diante dos povos, ou até mesmo de um outro profeta (o que é menos provável).
Entretanto, nada há que impeça o texto a ter uma nova leitura na pessoa de Jesus Cristo, mas
sempre de forma tal que venha a parecer que o Dêutero-Isaías estava falando para uma outra
época, a do porvir, onde sua pregação teria um sentido de vaticínio. É o que temos em Lucas
4, onde Jesus afirma que "se cumpriu hoje" diante das pessoas ali presentes o que falara o
profeta. "Desobedecendo" um pouco a idéia de que profecia cumprida jamais se repete, nada
há que impeça a interpretação de que no mundo hodierno, a Igreja de Jesus Cristo deve
assumir o ministério que no AT pertenceu ao profeta ou à sua comunidade e que no NT
cumpriu-se em Jesus Cristo.
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Entretanto, outros teólogos defendem, ao lado deste, um outro sentido literal chamado
de pleno, também conhecido como sensus plenior. Compreende-se aqui que Deus coloca
uma consistência mais profunda no conteúdo expresso pelo autor, ainda que seu pensamento
se limite ao seu momento histórico, pois o sentido pleno está fora do seu alcance intelectivo
ou visual. O sensus plenior não é, portanto, do domínio do autor. Algumas das profecias
messiânicas encontradas em Isaías e em Malaquias são interpretadas a partir do sensus
plenior, cujas características gerais são as seguintes:
a) Está incluído na letra do texto, apesar de ser desconhecido do escritor;
b) É da alçada divina e de sua intenção;
c) Só pode ser descoberto à luz de uma revelação ou ensinamento posterior;
d) É homogêneo em seu conteúdo.
Outra tendência é indicar, além do sentido literal, o sentido "típico" das Escrituras. O
tipo é uma espécie de metáfora que não consiste meramente em palavras mas em atos,
pessoas ou objetos que designam semelhantes atos, pessoas ou objetos no porvir, apontando,
portanto, para uma realidade futura. Foi bastante enfatizado pelos pais apostólicos. De
acordo com Tuya e Salguero 40são necessárias para a configuração do sentido típico, as
seguintes características:
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4
b) Símile - é uma figura comparativa na qual um objeto é assemelhado a outro,
existindo aí a cláusula comparativa ( "como", "tal qual", "assim como", "tal
como"). Na metáfora a comparação está implícita e na símile, explícita. Assim,
em I Pd. 1:24 temos uma símile e em Is. 40:6 uma metáfora. Outros exemplos de
símile podem ser encontrados em Lc. 10:3 e Sl. 1:3-4.
2
5 se estuda a cultura de um povo percebe-se que quando ele tem algo a dizer sobre si
mesmo e sobre os seus dramas ele o faz sempre dentro de formas próprias nas quais
possa entender-se e ser entendido. Existe melhor forma de entender o drama do
homem nordestino senão pela literatura de cordel? Assim também o drama teológico
do homem bíblico, expresso dentro de várias formas (aqui uma contribuição da crítica
das formas) e gêneros literários. Entretanto, persiste a tentativa de tentar "salvar" o
texto bíblico desses gêneros com o objetivo de perpetuar determinadas posturas
teológicas ou de proteger aquilo que se pretende por "Palavra de Deus", sempre na
ótica de grupos ou pessoas que demonstram ter o monopólio da verdade unívoca.
a) Jurídico ou Nomístico - Associado a uma boa parte dos cinco primeiros livros da
Bíblia. Esses textos compreendem dois tipos de leis: apodíticas e casuísticas. Nas
leis apodíticas, os mandamentos são iniciados com uma cláusula proibitiva - a
palavra não - como acontece no Decálogo (Ex. 20:3-17). Nas sentenças casuísticas,
as leis são apresentadas por uma condição que origina determinada situação. São
leis dadas para situações específicas (Lv. 20:9-18, 21; Dt. 15:7-17).
b) Narrativo - Neste gênero, tem-se uma espécie de história, cuja idéia não é mesma
da maneira de se fazer história própria do historiador moderno, o qual trabalha a
partir de uma visão científica. Na narrativa bíblica a história é contada com o
intuito de transmitir uma mensagem, uma teologia. Por exemplo, um leitor
desavisado crerá que I e II Crônicas são uma cópia idêntica do texto de II Samuel,
principalmente no que diz respeito à vida de Davi. Ora, lendo os capítulos 11 a 21
de II Samuel tem-se um claro sentido de que ao relatar as falhas de Davi, o autor
queria ilustrar o fato de que o pecado produz conseqüências devastadoras,
combinando com a mensagem dos livros de Deuteronômio e I e II Reis, os quais
foram produzidos num ambiente de culpa dos exilados na Babilônia quando se via
na infidelidade espiritual do povo a causa principal da catástrofe de 586 a.C.
Entretanto, I e II Crônicas omitem os pecados de Davi, dando ênfase ao seu fulgor
real, aos sacerdotes e ao templo. Essas obras se encaixam perfeitamente numa
época de restauração física e espiritual dos judeus, no retorno do cativeiro
babilônico, quando o povo se queixava da perda de seus símbolos nacionais,
conforme está implícito em Ag. 2:3. I e II Crônicas encorajam o povo a manter-se
na fidelidade ao Senhor, na promessa de que a linhagem de Davi e o templo
seriam preservados.
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c) Poético - Não se pode limitar a poesia hebraica apenas aos livros de Jó, Salmos,
Provérbios, Eclesiastes e
Cânticos. Há poesia no Pentatêuco e também nos livros proféticos. Na poesia
ocidental existe a força da métrica e da rima; na poesia oriental repetição e ritmo se
unem para tornar uma passagem duplamente memorável. A esta característica dá-
se o nome de Paralelismo, muito comum no livro de Provérbios. Observa-se no
texto bíblico vários tipos de Paralelismo dentre os quais destacam-se o sinônimo, o
antitético e o sintético. No Paralelismo sinônimo duas sentenças repetem com
palavras diferentes uma mesma idéia na mesma ênfase e sentido (Pv. 5:1); no
Paralelismo antitético, a segunda sentença apresenta uma declaração oposta à
primeira, mas sempre numa relação dimetral (Pv. 10:1); no Paralelismo sintético,
uma segunda ou terceira sentença complementam a idéia da primeira, levando-a
adiante sem repeti-la com palavras diferentes (Sl. 27:1; 1:3; 103:1).
f) Evangelhos (do grego euangellion - "boa notícia") - Essas narrativas não podem ser
consideradas simplesmente como uma biografia de Jesus e, por isso, históricas sob
o ponto de vista estrito da palavra "história". Isso fica evidente na conclusão do
Evangelho de João (21:25). Aqui o verdadeiro Jesus é o Cristo, Filho de Deus. Os
evangelhos contêm algum material biográfico sobre Jesus, mas apresentam muito
mais o que ele significou para a comunidade que guardou as suas palavras e o
conteúdo de doutrina que dele ficou (Lc. 1:1-4). Representam, na verdade, a
pregação sobre Jesus Cristo encarnada na atividade da Igreja primitiva, com ações
de louvor.
g) Epistolar - Esse tipo de literatura era muito comum no império romano e tornou-se
depois útil dentro dos objetivos canônicos. Uma epístola não é simplesmente uma
carta, que é mais curta em seu conteúdo e tem um caráter pessoal. Numa epístola,
existe uma variedade de temas, abordados de maneira sistemática, na forma de
uma circular dirigida a várias comunidades. A epístola aos Gálatas por exemplo, é
dirigida não apenas a uma comunidade mas às igrejas da Galácia. Entretanto, a
prática de algumas igrejas de usarem coletivamente cartas menores dirigidas a
indivíduos (Por exemplo, a carta de Paulo a Filemom, lida e conservada pela igreja
de Colossos) fez desaparecer essa distinção entre carta e epístola, principalmente
em virtude da autoridade crescente do apóstolo Paulo sobre essas comunidades.
4.2- Heurística - De acordo com que o próprio termo sugere, a tarefa da Hermenêutica
é "encontrar" os sentidos do texto bíblico, mediante procedimentos científicos. Um deles é o
da investigação, o qual desembocará na exegese. Diante do texto, o investigador defronta-se
com várias questões. É como se o exegeta estivesse perguntando ao texto. As questões que
mais se destacam diante do pesquisador são as seguintes:
4.2.1. - Crítica Textual - O que há de mais original no texto? O texto atual é resultado
de um desenvolvimento redacional? As variantes encontradas são acidentais ou
substanciais? 41
4.2.3. - Época e finalidade do livro - O que estava acontecendo por ocasião da escrita
do livro ? Há uma íntima relação entre a ocasião e a finalidade de um texto pois não há
texto sem propósito. O que pode acusar a época e a finalidade do livro está dentro do
próprio texto. A partir da insistência do uso de alguns termos, mesmo que não seja uma
indicação explícita da intenção do autor, pode-se perceber uma finalidade que, por sua vez,
indica um drama de época. Por exemplo, as várias referências à Lei, aos "rudimentos do
mundo" e à escravidão que a Lei provoca , revelam em Gálatas uma clara intenção de
resolver os problemas e estragos causados pela infiltração de judaizantes na igreja
primitiva. Outras vezes o autor indica de forma clara e explícita a sua finalidade ao escrever
o livro, como em Pv.1: 1-6, Lc.1:1-4 e Jo. 20:30-31.
4.3.1 - Versões - Pode parecer estranho que uma tradução da Bíblia seja uma exposição
da mesma. A versão se apresenta como uma tradução bem feita, talvez a melhor. Muitas
vezes, entretanto, está a serviço de uma determinada tendência hermenêutica. Já foi visto no
primeiro capítulo como a Septuaginta e os Targumim fizeram esse papel. Um outro
exemplo muito interessante, mais para dentro do nosso tempo é o Salmo 116:15 onde a
palavra "preciosa" pode sugerir um real interesse de Deus pela morte do fiel, quando no
original indica mais um alto custo ou uma tristeza de Deus por estar agora "perdendo" o
contato com o fiel pela sua morte (conforme doutrina do Sheol no AT). Aqui, um real
interesse em ligar o Salmo à expectativa cristã da ressurreição e do encontro com Cristo
após a morte do fiel, não existente no texto original. Outro bom exemplo é a tradução da
palavra hebraica “ ‘al’mah” – mulher jovem, moça em Is.7.14 por virgem que em hebraico é
“na’arah”. Menciono ainda um arranjo na numeração de versículos separadas por unidades
vistas em alguns textos como por exemplo em Ef.5.21-22. Como exercício, observe as
diferenças deste texto nas versões NVI, ALMEIDA, NTLH, BJ e outras. Comente em sala de
aula suas conclusões.
2
8
4.3.2. - Comentários - É uma forma sistemática de estudo e de exposição de um livro
bíblico ou de parte dele. Aí se lança mão de vários recursos, alguns deles já expostos no
estudo sobre Noemática e Heurística. Os comentários representam posições teológicas de
pessoas ou escolas de estudos bíblicos das mais diversas tendências hermenêuticas. Cada
vez mais instituições procuram um maior aprofundamento, principalmente nas questões
lingüísticas
e históricas visando a uma interpretação mais próxima do sentido do texto. Outras formas
de comentários são as chamadas notas de rodapé constantes em bíblias especiais ou bíblias
de estudo. Percebe-se, por exemplo, na Bíblia de Scofield, uma inclinação tendenciosa em
suas notas (em Daniel, Ezequiel, Mateus e Apocalipse, entre outros) para a defesa de uma
escatologia de tendência dispensacionalista, futurista e pré-milenista. Um outro exemplo
interessante é a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, um dos mais importantes textos
surgidos nas últimas décadas, para o texto de Mt. 1:25, no qual se percebe uma
determinante dogmática sobre a interpretação do mesmo.
4.3.3 - Teologia Bíblica - Alguns acham que a teologia bíblica não é uma interpretação
em si, mas o resultado da interpretação. Entretanto isso pode ser questionável, pois "fazer
Teologia" significa também interpretar. Aquilo que se chama de forma analítica da teologia
bíblica é o caminhar histórico e evolutivo da exposição da temática religiosa e bíblica,
separando a Teologia bíblica em partes e unidades distintas e independentes. Assim, os
escritores são vistos como intérpretes e teólogos ao mesmo tempo. Outra forma de teologia
segue o método lógico, o qual está relacionado com os sistemas nos quais a Teologia é
apresentada, existindo assim o chamado elemento doutrinário ou dogmático.
Para Augusto Nicodemus um dos desafios atuais da Hermenêutica é saber até que
ponto as ferramentas do método histórico-crítico podem ser úteis na interpretação do texto
sagrado visto que utilizam pressupostos por vezes antagônicos à convicção de que a Bíblia é
a Palavra de Deus42. Um desses exemplos e a busca pelo Jesus histórico. A leitura dos
evangelhos dentro dessa ótica sem a tradicional roupagem moralista geralmente atribuída a
Jesus, tira muitos mitos sobre o Cristo-homem e, de uma certa forma, deixa para trás o
dogma e a Teologia Sistemática. Nessa abordagem se conhece o Cristo que desafiou
estruturas familiares e sociais : ele rejeita o casamento, deixa sua família e sai pelo mundo
reunindo pessoas que escolhe como seus familiares; o Cristo amigo do povo, dos excluídos
e dos bem-de-vida: seus amigos são cobradores de impostos (inimigos dos judeus), homens
ricos, pescadores, beberrões e prostitutas; o Cristo nada "religioso", ou seja, que desafia
estruturas da religião constituída : ele cura e desafia o monopólio da religião dominada
pelos sacerdotes e pelos escribas. É o Cristo do sorriso que afaga crianças e as toma em seus
braços; mas também é o Cristo aborrecido que expulsa cambistas do templo. Esse Cristo é
Senhor. Como conciliar essas tendências e como aplicá-las hoje, construindo pontes de
relação entre a situação enfrentada por Jesus e a situação que ora enfrentamos? Poder-se-ia
aqui traçar algumas linhas de tratamento para o problema:
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9 livro de Jó questiona a íntegra da doutrina da retribuição e do individualismo ético,
entrevisto em Ezequiel 18, o qual, por sua vez, representa uma reação contra antigos
pressupostos do Anátema44 e da Guerra Santa. Pode-se assumir, entretanto, que a Bíblia
possui uma unidade central de tema: o que se vê de Gênesis a Apocalipse é a idéia de um
Deus que ama o ser humano e que vai buscá-lo em sua indignidade e de um ser humano
que foge desse Deus e de seu amor.
5.6 – Gostaria de deixar alguns temas para discussão em classe. Entre eles, o problema
da “razão sensível” (questão estética). Os desafios de um mundo globalizado e transcultural
movido cada vez mais pelas informações obtidas da Internet. A necessidade de uma
releitura do princípio do “Sola Scriptura” e a leitura fixista da Bíblia cada vez mais comum
nos meios fundamentalistas.
44Conforme Josué 7
45Não estamos querendo dizer aqui que essas são as ú nicas possibilidades de interpretação
dos "Cântico dos Cânticos". Existe ainda a interpretação mítico-sagrada do text o, onde,
amparado por textos semelhantes em outras culturas religiosas, percebe-se uma semelhança
com as uniões da deusa da fertilidade.
2
9
CONCLUSÃO
1. BARRERA, Júlio Trebolle. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã, Petrópolis, Vozes, 1995.
2. BARTHES, Roland. Análisis estructural y exegésis bíblica, Buenos Ayres,
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3. BERKHOF, Louis – Princípios de interpretação bíblica, Rio de Janeiro, Juerp, 1981.
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5. ___________, Princípios básicos de Semântica, Recife, FASA, 1983.
6. CROATTO, J. Severino. Êxodo, uma hermenêutica da liberdade, São Paulo,
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7. FEE-STUART. Entendes o que lês?, São Paulo, Vida Nova, 1984.
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10. GONZALEZ, Justo. Uma história ilustrada do cristianismo, v. IX, A era dos novos
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11. GOTTWALD, Norman K. Introdução sócioliterária à bíblia hebraica, São Paulo,
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12. HENRICHSEN, Walter A. Princípios de interpretação da Bíblia, São Paulo, Mundo
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