2017 ItamaraEstevesdaCunha PDF
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2017 ItamaraEstevesdaCunha PDF
MENÇÃO SS
Brasília- DF
2º/2017
Instituto de Letras
Departamento de Teoria Literária e Literaturas
Licenciatura em Letras/Português
Monografia em Literatura
Agradeço às mulheres da minha família por todo o apoio dado ao longo dos
quatro anos em que estive na universidade, além de terem sido o espelho da minha
pesquisa.
À minha mãe, a pessoa que me deu suporte emocional e me incentivou a não
desistir, mesmo quando o caminho se tornou mais difícil. A mulher que tornou a minha
existência muito mais divertida e feliz;
À minha avó, a pessoa que me aconselhou bravamente durante a minha jornada
universitária, de modo a não me permitir abaixar a cabeça para as dificuldades;
À minha madrinha, a pessoa que me ajudou a sorrir em momentos de exaustão e
me emprestou seus ombros e ouvidos quando precisei (e também quando não precisei).
Agradeço às minhas amigas por terem sido tão solícitas, compreensivas e
guerreiras ao meu lado. Gracielle e Jéssica, obrigada por existirem onde eu existo
também. Izabella, obrigada pelos seus sorrisos (ainda) inacreditáveis.
Agradeço à minha orientadora por ter sido tão aberta às minhas opiniões e
ideias, por ter me guiado daqui para outros ambientes mais complexos e desafiadores –
por eles, anseio.
Agradeço à Sara Almarza, a exímia professora que me apresentou o vínculo
entre a Literatura e os direitos humanos. Por todas as aulas, por todas as conversas, por
todas as lembranças, por todo o carinho, por toda a saudade: obrigada.
RESUMO
INTRODUÇÃO ......................................................... 8
AS DECLARAÇÕES ................................................. 13
A CONFISSÃO DE LEONTINA ................................. 26
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................... 37
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................... 39
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INTRODUÇÃO
AS DECLARAÇÕES
O Artigo 10º diz que “toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua
causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial”.
Sabe-se que este artigo não se aplica aos crimes relacionados às mulheres tanto quanto
se aplica aos crimes contra homens. Quando há, por exemplo, o crime de estupro,
muitas vezes, as entidades policiais - e também judiciais - o justificam ao colocar a
culpa do ato na mulher, seja por causa da roupa que ela estava usando ou pela forma
como estava se comportando. Dessa maneira, os homens são privilegiados frente à lei,
já que mal são julgados pelos seus crimes contra as mulheres.
A posição desprivilegiada da mulher é reafirmada no Artigo 12º, no qual
manifesta-se a nota de que “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida
privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua
honra e reputação”. É evidente que a posição da mulher frente à negligência da lei
também a coloca em uma situação de inferioridade perante a sociedade, na qual é posta
como uma pessoa inescrupulosa, carregando a culpa do ato e a ineficiência da DUDH
nas costas. Dessa maneira, tal artigo não coopera com a figura feminina e tampouco
com a sua reputação na sociedade.
Seguidamente, no Artigo 13º, inciso 1, e no Artigo 22º, fala-se sobre “o direito
de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado” e sobre o
fato de “toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social”. É
evidente que a mulher não está inserida nos sujeitos que usufruem desse artigo. Sabe-se
que a violência contra a mulher e a cultura do estupro são duas manifestações da
sociedade machista que colocam a figura feminina em uma posição limitada e insegura,
já que não é possível que ela circule livremente nas ruas, principalmente à noite, sem
que esteja correndo perigo de ser assaltada, estuprada e/ou assassinada. A violência é
constante – vai desde assovios “inocentes” a perseguições incessantes cujo resultado
pode variar de pequenos constrangimentos a fatalidades.
Nos incisos 2 e 3 do Artigo 16º, fala-se sobre dois assuntos essenciais na
formação da percepção da sociedade sobre a mulher: o casamento e a família,
respectivamente. O casamento, segundo este inciso, “não pode ser celebrado sem o livre
e pleno consentimento dos futuros esposos”, o que se sabe que é uma ilusão para
diversas mulheres de países, principalmente, orientais. Para algumas minorias,
inclusive, é uma forma de fugir da violência sexual, como é o caso das mulheres
rohingyas, que vivem na Malásia, país do Sudeste asiático. O jornal El País atesta a
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Ainda que seu casamento tenha sido uma forma de escapar da violência
constante contra as mulheres no seu país, Norsimara ainda sente que vive uma realidade
que não lhe pertence, fazendo com que a sensação de estar sendo violentada ainda
permaneça. Depois do marido ter saído para trabalhar, ela fez a seguinte declaração ao
jornal:
Sinto que vivo numa prisão. Nunca pudemos decidir por nós mesmas,
embora queiramos. Temos que depender primeiro das decisões dos nossos
pais, e depois dos nossos maridos. Vim aqui para ter oportunidades, mas na
Malásia, mesmo que sonhemos, não temos futuro. (LAZARO, 2016)
A etnia rohingya faz parte das minorias étnicas que mais são perseguidas no
mundo. Em Myanmar, na Malásia, país de tradição budista, tiveram sua nacionalidade
negada e são, então, apátridas. No fim de fevereiro de 2016, 53.700 rohingyas foram
registrados, segundo a ACNUR – Alto Comissionado da ONU para os Refugiados.
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Dados levantados pelo portal Trocando Fraldas – site voltado para informações
sobre gravidez – publicados no blog Finanças Femininas, apontam que 3 a cada 7
mulheres têm ou tiveram medo de serem demitidas devido à gravidez. Anuncia, ainda,
que a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, na seção V, garante direitos legítimos
às mulheres grávidas, porém, a realidade não é esta – na prática, a negligência é muito
mais evidente do que os cuidados. O medo de denunciar tais situações também é algo
recorrente, pois a denúncia afirma uma impossibilidade de recontratação a longo prazo
destas mulheres, o que causa um transtorno devido ao fato da dependência financeira
delas em relação ao emprego.
Já o inciso 2 do mesmo artigo afirma que “todos têm direito, sem discriminação,
a salário igual por trabalho igual”. Esta realidade ainda é muito distante, quase utópica.
Mesmo com todos os avanços com relação à igualdade salarial, ainda há uma brusca
discrepância e uma discriminação evidente. Esse problema é reconhecido pela ONU,
como atesta o artigo publicado no site Meu Negócio Brilhante, em abril deste ano:
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A situação piora ainda mais para as mulheres negras, imigrantes e/ou mães, o
que retoma os problemas observados no inciso anterior deste mesmo artigo. O site
homônimo observa que:
Nos Estados Unidos, que é um país menos desigual que o Brasil, mulheres
negras ganham US$ 0,66, mulheres indígenas US$ 0,59, e mulheres de
origem latina recebem US$ 0,55 centavos para cada US$ 1 (um dólar) que
um homem americano branco recebe por seu trabalho. Além disso,
a chamada “penalidade da maternidade” empurra muitas mães para a
economia informal e para atividades em tempo parcial. Além disso, essa
desigualdade é maior em países em desenvolvimento, como o Brasil. (LUZ,
2017)
O Brasil, um dos países que mais luta com os problemas da desigualdade social,
enfrenta, também, dificuldades com a desigualdade de gênero, sem esquecer, também,
da questão racial. Por outro lado, o país tem, em seu total populacional, 54% de pessoas
negras. Porém, dessa porcentagem, apenas 17% representa a parcela mais rica do país,
segundo dados levantados pelo IBGE em 2014:
A relevância dos dados mostra que o artigo citado previamente não é cumprido,
nem em países desenvolvidos. As dificuldades encontradas no caminho contra a
desigualdade de gênero são muitas, e uma delas é o medo de denunciar tal ofensa. Esse
medo é encontrado em mulheres violentadas – independentemente da forma –, pois
acreditam que não estarão seguras ao conduzirem a denúncia. Com relação à
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Toda pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo
menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino
elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser
generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em
plena igualdade, em função do seu mérito.
Esse direito, por anos a fio, foi negado às mulheres. É importante, portanto, fazer
um panorama de como a educação voltada para as mulheres sempre foi uma estrutura
negligenciada pelas autoridades do Brasil. Para ressaltar o processo histórico que se
refere a esse problema, pode-se evidenciar que, no século XIX, no Brasil Colonial,
mulheres mal cuidavam de suas casas, pois este era o trabalho de escravas e escravos. O
trabalho delas era gerenciá-los, portanto. Suas leituras eram limitadas apenas a livros de
rezas, já que poderiam sair de casa apenas para irem à missa. A educação era
basicamente voltada para o aprendizado de francês e piano; as mulheres estavam
constantemente sendo ignoradas e negligenciadas e nada foi feito em prol da educação
delas, como anuncia Debret, pintor francês que foi um grande observador da sociedade
e da vida brasileiras no século XIX, como citado por Marisa Lajolo e Regina Zilberman:
As mulheres são comumente menos humanas para com seus escravos que os
homens, mas esse fato procede, indubitavelmente, do estado de ignorância no
qual elas vivem. Recebem escassamente educação e não têm a vantagem de
poder obter instrução pela comunicabilidade das pessoas estranhas ao seu
ambiente nem adquirem novas ideias na conversação geral. [...] Levai essas
mulheres para diante, educando-as; ensinai-lhe o que é racional, e serão
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iguais e em nada inferiores aos seus patrícios. A falta não está no sexo mas
no estado dos costumes. (LAJOLO & ZILBERMAN, 1996, p. 241)
ainda assim são desvalorizadas simplesmente por serem mulheres. Percebe-se, então,
que mesmo com os avanços notórios dos direitos humanos da mulher, a transgressão
prévia do direito à educação tornou constrangedora e difícil a trajetória da figura
feminina até a atualidade.
São estes os artigos pertinentes da DUDH nos quais foram identificados desvios
com relação aos direitos humanos da mulher. Observa-se que muitas dificuldades e
muitos obstáculos foram colocados para que a mulher não obtivesse a legitimidade dos
seus direitos enquanto cidadãs. Visto que a DUDH não alimenta a presença da figura
feminina na sociedade como um membro essencial para o progresso da nação, a
CEDAW foi criada, em 1979, pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
A CEDAW conta com trinta artigos, assim como a DUDH. Os artigos estão
divididos em seis partes organizadas de maneira sistemática com relação às demandas
que são pertinentes à figura feminina. A primeira parte conta com os seis primeiros
artigos da declaração, que são os objetivos mais gerais e amplos. A segunda, que conta
com os artigos 7º, 8º e 9º, é voltada para a participação política da mulher. A terceira
parte, que começa no artigo 10º e termina no 14º, fala sobre objetivos específicos
relacionados à educação, ao trabalho remunerado, à saúde, à independência financeira e
à mulher rural. A quarta parte do documento, que compreende os artigos 15º e 16º, fala
sobre a posição da mulher frente ao julgamento e ao chamado “casamento arranjado”. Já
a quinta parte da declaração fala sobre a finalidade da CEDAW, a forma como ela será
examinada e executada nos Comitês – inicia-se no artigo 17º e finaliza-se no 22º. A
sexta e última parte da CEDAW fala sobre a legalidade do documento e a adoção das
medidas nele dispostas por parte dos Comitês de cada Estado-parte.
Candido cita no começo do seu texto que são os mesmos mecanismos que
promovem tanto o progresso quanto a degradação da sociedade:
No texto, percebe-se que uma das formas de encontrar a felicidade coletiva seria
com o avanço e a amplitude do saber, da instrução e da técnica. Essa ideia utópica faz
parte de uma percepção voltada para uma sociedade que conta com uma “barbárie
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Hoje não se afirma com a mesma tranquilidade do meu tempo de menino que
haver pobres é a vontade de Deus, que eles não têm as mesmas necessidades
dos abastados, que os empregados domésticos não precisam descansar, que
só morre de fome quem for vadio, e coisas assim. (CANDIDO, 1988, p. 171)
acreditarem que eles não eram importantes para a sociedade e tampouco para as
mulheres; os direitos já existentes eram suficientes para que elas se sentissem
contempladas, e caso não se sentissem, estavam apenas exagerando. Apenas no final do
século XIX as mulheres começaram a perceber tal negligência e passaram a não aceitar
menos do que acreditavam que mereciam. É devido a esses movimentos que, hoje,
pode-se afirmar que os direitos humanos da mulher avançaram de maneira drástica com
relação às décadas passadas, como afirma Leila Linhares Barsted em seu artigo
intitulado “Os avanços no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres”:
Esses avanços só foram possíveis por meio de uma ampla e articulada ação
política dos movimentos de mulheres que, em diversos países, denunciaram a
sociedade e o Estado como violadores desses direitos. (...) Essa luta é
tributária de um processo histórico voltado para a ampliação do próprio
conceito de cidadania. (BARSTED, 2011, p.97)
A CONFISSÃO DE LEONTINA
Por outro lado, percebe-se também o dano patrimonial e moral sofrido por
Leontina por causa de Pedro. Depois da morte de Luzia e de sua mãe, Leontina pensou
que finalmente ela e Pedro poderiam ter uma vida digna depois que ele conseguiu um
emprego em um banco, até que ele atesta à personagem que ele vai sozinho, e que ela
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vai trabalhar na casa de uma senhora até que ele volte para buscá-la – o que nunca
aconteceu. Precisava, porém, de dinheiro para a viagem e sugeriu à Leontina que
vendessem tudo o que poderiam, e ela aceitou com a intenção de ajudá-lo esperando,
também, que ele a ajudasse eventualmente:
Vendi tudo e o que apurei entreguei na mão dele. Um dia ainda te devolvo
com juro ele disse. Eu não sabia o que era juro e até hoje não entendo mas se
vinha de Pedro devia ser bom. Guardou o dinheiro e me abraçou. Me leva
Pedro me leva fiquei pedindo agarrada nele. Tenho que ficar sozinho se
quiser fazer o que tenho que fazer ele disse. Mas logo você vai receber uma
carta porque não quero te perder de vista ele repetiu enquanto ia amarrando o
pacote de livros com uma cordinha. (TELLES, 1991, p. 86)
No trecho em que a narradora conta sobre a festa que Pedro fez no teatrinho com
seus amigos, observa-se, também, como o menosprezo do primo deixava Leontina com
um sentimento de humilhação, o que também era uma forma de sofrimento psicológico,
de acordo com o Artigo 5º da DUDH, que afirma que não seriam tolerados tratamentos
cruéis, e a Lei Maria da Penha, que dispõe como violência também o sofrimento
psicológico:
Me lembro que uma vez Pedro inventou uma festa no teatrinho. Quando
acabou corri para dizer que ele tinha representado melhor do que todos os
colegas mas Pedro me evitou. Eu estava mesmo com o vestido rasgado e isso
eu reconheço porque minha mãe piorou da dor e tive que passar a manhã
inteira fazendo o serviço dela e o meu. Mas achei que Pedro estava tão
contente que nem ia reparar no meu jeito. E me cheguei pra perto dele. Ele
então fez aquela cara e foi me dando as costas. Essa daí não é a tua irmã? um
menino perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo. Fiquei sozinha no
palco com um sentimento muito grande no coração. (TELLES, 1991, p. 81)
Além disso, a falta de oportunidade de acesso à educação foi um fator
determinante para a criação do abismo social e cultural entre Pedro e Leontina.
Tomando como exemplo o direito à educação, proposto tanto na DUDH, Artigo 26º,
quanto na CEDAW, Artigo 10º, percebe-se que este é violado abertamente nesse conto.
Contudo, no caso da mulher, esse direito reflete em outras situações que dizem respeito
apenas a ela. Muitas, exatamente por não terem acesso à educação, são analfabetas e,
por isso, acabam por serem vistas como inferiores. Muitas não conseguem um emprego
porque, por serem mulheres, podem engravidar, o que causaria um prejuízo à empresa
empregadora. Muitas, por engravidarem, perdem seus empregos e, assim, perdem
também suas oportunidades mínimas de acesso à saúde de qualidade para o
acompanhamento gestacional, uma vez que a saúde pública do Brasil não se caracteriza
por se manter disponível e acessível às necessidades objetivas da mulher. Muitas
engravidam porque são estupradas e, ainda assim, não têm consentimento legislativo
para abortar.
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O terceiro artigo citado dialoga com o segundo, pois também trata do direito ao
trabalho, porém não especificamente voltado para a questão da mulher:
1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a
condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o
desemprego.
2. Todos têm direitos, sem discriminação alguma, a salário igual por
trabalho igual. (...).
Leontina critica a sua situação com relação ao trabalho quando diz: “E quem
mandou eu ficar nessa vida? Mas também que outra vida eu podia ter senão esta? Mal
sei escrever meu nome e qualquer serviço por aí já quer que a gente escreva até na
máquina” (TELLES, 1991, p. 80). Susan Besse reflete sobre a posição da mulher no
mercado de trabalho. Para a autora, as mulheres que reivindicaram o direito ao trabalho
no século XX são as mulheres de elite, que sempre foram privadas das tarefas realizadas
fora do lar, já que foram, em sua maioria, destinadas ao casamento arranjado com
homens mais velhos, com o intuito de expandir os bens das famílias:
Casadas frequentemente por volta dos quinze anos com homens mais velhos,
foram estereotipadas como criaturas submissas, passivas, cuja existência
doméstica reclusa e instrução superficial (tocar piano, cantar, recitar poesias,
dançar e falar um pouco de francês) faziam delas uma companhia
excessivamente aborrecida. (BESSE, 1999, p. 14)
Contudo, as mulheres pobres sempre trabalharam, inclusive nas casas da
burguesia com remunerações e condições tão escassas que podiam ser comparadas ao
trabalho escravo. Eram essas mulheres, pobres e mulatas, as assediadas e exploradas
sexualmente pelos patriarcas burgueses. As amantes eram, então, tratadas de maneira
extremamente grosseira pelas suas patroas, já que estas tinham a obrigação de gerenciar
todos os empregados da casa, além de precisarem se contentar com a vida adúltera dos
maridos, uma vez que a Lei do Divórcio, Lei nº 6.515, só foi promulgada no ano de
1977, ainda que existisse o desquite, uma “separação legal que não permitia novo
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estilingada de ficar marca. Uma noite quis me ver pelada e como não deixei
veio mijar na minha cara enquanto eu estava dormindo. (TELLES, 1991, p.
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A transgressão dos direitos humanos também se reflete na história de Luzia,
irmã mais nova de Leontina, que sofreu uma queda durante uma brincadeira de
“cavalinho” com Pedro, bateu a cabeça no chão de uma maneira brusca e, depois desse
dia, a narradora conta que sua irmãzinha nunca mais foi a mesma:
Minha irmãzinha Luzia bem que podia me ajudar que ela já tinha seus anos
mas vivia com a mão suja de terra e sem entender direito o que a gente
falava. Queria só ficar esgravatando o chão pra descobrir minhocas. Está
visto que sempre encontrava alguma e então ficava um tempão olhando pra
minhoca sem deixar que ela se escondesse de novo. Ficou assim desde o dia
em que caiu do colo de Pedro e bateu com a cabeça no pé da mesa. Nesse
tempo ela ainda engatinhava e Pedro quis fazer aquela brincadeira de upa
cavalinho upa. Montou ela nas costas e saiu trotando upa upa sem lembrar
que a pobrezinha não sabia se segurar direito. Até que o tombo não foi muito
feio mas desde esse dia ela não parou de babar e fuçar a terra procurando as
benditas minhocas que às vezes escondia debaixo do travesseiro. (TELLES,
1991, p. 77)
A única referência de acesso a tratamentos médicos que há na história é o doutor
Pinho, que serve de exemplo para Pedro. Contudo, a figura desse doutor não foi
desenvolvida na narração, ela apenas foi exposta, como relata Leontina:
Quase não falava. Voltava da escola e se metia no mato com os livros e só
vinha pra comer e dormir. Parecia estar pensando sempre numa coisa só.
Perguntei um dia em que ele tanto pensava e ele respondeu que quando
crescesse não ia continuar assim um esfarrapado. Que ia ser médico e
importante que nem o doutor Pinho. (TELLES, 1991, p. 76)
Está presente, contudo, tanto na DUDH, quanto na CEDAW, o direito à saúde,
respectivamente nos artigos 25, inciso 1, e 12, inciso1. Por se tratar de uma família
pobre, que mora longe da cidade grande, é possível imaginar um cenário no qual a
saúde pública não seja acessível aos habitantes. Por isso, tanto a mãe de Leontina, que
sofria com dores de cabeça terríveis e constantes cuja causa é desconhecida, e Luzia,
que tinha uma deficiência intelectual evidente, mas que nunca foi propriamente
diagnosticada. O artigo 25º, inciso 1, da DUDH diz, especificamente, que:
1. Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegure à
sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,
ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos
serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na
doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de
meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
Sendo assim, tanto a mãe, quanto a irmã de Leontina deveriam ter tido
assistência médica pública, assistência esta que poderia ter mudado o destino das duas
personagens. Em vista da realidade brasileira, a história das duas personagens não
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parece tão distante do que, de fato, acontece nas periferias da cidade. Dados do IBGE
mostram um aumento significativo durante o século XX no setor de saúde no Brasil:
Uma das informações de maior destaque dos Anuários Estatísticos do Brasil
diz respeito à evolução da assistência médico-hospitalar no país, tanto no
setor público como no privado. Em 1908, por exemplo, havia 296
estabelecimentos de saúde no Brasil. Em 1930, já eram 915 e em 1935, eram
1.258. A partir da década de 1950, esta informação já passa a discriminar se
os estabelecimentos são públicos ou privados. Desta forma, é possível saber
que em 1951 havia 5.172 estabelecimentos de saúde no Brasil, sendo 2.617
públicos (chamados de oficiais) e 2.555 particulares. Em 1958, já eram 7.563
os estabelecimentos, 4.146 pertencentes à rede pública e 3.417 à rede
particular. (“Estatísticas do Século XX”, 2003)
Contudo, o Sistema Único de Saúde, o SUS, apesar de ter uma estrutura exímia
reconhecida no mundo inteiro, não tem o investimento necessário para ser mantido em
atividade no Brasil:
O SUS é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o
maior sistema gratuito e universal do mundo de Saúde Pública. E o serviço
faz jus ao mérito: sete a cada dez brasileiros recorrem ao sistema quando
surge algum problema de saúde, o que gera mais de 1 bilhão de consultas
médicas e mais de 4 bilhões de procedimentos ambulatoriais, executados
anualmente. Tudo isso, com um investimento de menos de R$ 120 bilhões, o
que, de acordo com a OMS, é considerado bem abaixo da média mundial.
(TEODORO, 2017, s/p)
Com a falta de investimento, então, a maior parte da população brasileira não
usufrui de maneira plena do sistema público de saúde, ainda que ele tenha crescido de
maneira gradativa no século XX desde a criação do SUS em 1990. A insatisfação com
relação à saúde pública no conto não fica evidente por meio da fala de Leontina, mas
pela percepção do leitor sobre as brechas e os silêncios que nele são passíveis de
interpretação.
Com relação ao Artigo 12, da CEDAW, inciso 1, a promoção da saúde pública
está voltada especificamente para a saúde da mulher. Sabe-se que os parâmetros de
saúde dos homens e das mulheres são diferentes, principalmente porque a mulher pode
passar pelo processo de gravidez (processo este já citado neste trabalho monográfico no
que tange às condições trabalhistas da mulher), o que exige uma assistência diferenciada
e voltada especificamente para ela. O artigo em questão trata, também, da forma como a
mulher pode ser discriminada no que concerne o âmbito da assistência médica:
1.Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar
a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de
assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso
a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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medo de perder emprego devido à gestação”, 2017. Disponível em
<www.financasfemininas.uol.com.br/gravidez-e-trabalho-3-em-cada-7-mulheres-tem-
ou-tiveram-medo-de-perder-emprego-devido-a-gestacao/ > Acesso em: 25 de novembro
de 2017.
BARSTED, Leila Linhares. “Os avanços no reconhecimento dos direitos humanos das
mulheres”. In: “Autonomia econômica e empoderamento da mulher: textos acadêmicos.
– Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. 304 p.
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NEGROS representam 54% da população do país, mas são só 17% dos mais ricos”,
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TELLES, Lygia Fagundes. A Disciplina do Amor. São Paulo. Companhia das Letras,
2010.
______. “A Confissão de Leontina”. In: A Estrutura da Bolha de Sabão. São Paulo.
Companhia das Letras, 2010.