Ebook - Blockchain Inovação e Proteção de Dados 23112019

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OBRA COLETIVA

BLOCKCHAIN, INOVAÇÃO E PROTEÇÃO DE DADOS


LGPD ACADÊMICO
LGPD ACADÊMICO

Esse e-book foi desenvolvido a partir de uma iniciativa (sem fins lucrativos) que
começou em agosto/2018, o grupo LGPD Acadêmico, o qual é composto por
voluntários do Brasil inteiro, apaixonados pelo mundo da privacidade e com
objetivo comum – aprender e compartilhar.

Por identificar uma necessidade direta da sociedade, organizações corporativas –


independente do seu porte, profissionais, entre outros, por conta da Lei Geral de
Proteção de Dados (Lei Nº. 13.709, de 14 de agosto de 2018) que entrará em vigor
em 16 de agosto de 2020.

O LGPD Acadêmico decidiu reunir o conhecimento e experiência prática de cada


autor neste material através de uma linguagem simples, evitando-se o famoso
“juridiquês”, recorrendo a termos técnicos somente quando absolutamente
necessário e claro, acessível a todos de maneira gratuita.

Todo material elaborador pelo LGPD Acadêmico é Licença Creative Commons -


Atribuição 4.0 Internacional.

Boa Leitura!

BLOCKCHAIN, INOVAÇÃO E PROTEÇÃO DE DADOS


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INTRODUÇÃO

A tecnologia blockchain, que está por trás da famosa criptomoeda Bitcoin, foi
descrita por Naughton (2016) como: "a mais importante invenção de TI da nossa era".
Mougayar (2016) disse que "está no mesmo nível da World Wide Web em termos de
importância". Com essas duas afirmações e toda a propagação de notícias quanto à
Bitcoin, outras criptomoedas e a constante divulgação de novos usos e inovações
utilizando a tecnologia blockchain como base, podemos perceber que ainda que essas
afirmações façam parte do “hype”, como alguns dizem, precisamos estar de olho e
acompanhar suas transformações.

Nesse e-book, abordaremos em quatro textos selecionados aspectos atuais sobre


o uso da tecnologia blockchain como forma de ilustrar as transformações e inovações
apresentadas para a sociedade, tratando dos conceitos fundamentais da tecnologia e
seu funcionamento; sua relação com os smart contracts; sua relação com a indústria do
entretenimento e suas principais incompatibilidades e perspectivas de adequação com
a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº. 13.709/2018), que entrará em vigor em agosto
de 2020.

BLOCKCHAIN, INOVAÇÃO E PROTEÇÃO DE DADOS


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SUMÁRIO

O que é blockchain? 5
Guilherme Sampaio

Aplicabilidade dos smart contracts 12


Maristela Marquiafave

Blockchain e a indústria do entretenimento 20


Guilherme Sampaio

Blockchain e proteção de dados: é possível uma


compatibilidade? 23
Amanda Alencar

BLOCKCHAIN, INOVAÇÃO E PROTEÇÃO DE DADOS


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O QUE É BLOCKCHAIN?
Por Guilherme Sampaio

A tecnologia blockchain surgiu junto com a criptomoeda Bitcoin em meados de


2008 no artigo “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”, de Satoshi Nakamoto
(uma figura mítica nessa história, pois ninguém sabe quem ele realmente é). Mas foi
apenas em 2009 que tanto a Bitcoin quanto a tecnologia blockchain foram lançadas em
código aberto para o público. Nesse momento, começaram a surgir os primeiros nós e
mineradores, e a Bitcoin era abundante, ou seja, a quantidade de criptomoeda como
recompensa pela mineração era muito maior.

A tecnologia blockchain foi pensada por Satoshi como uma forma segura para se
transferir Bitcoins de uma pessoa para outra. A criptomoeda Bitcoin apenas aceita
transferências de Bitcoins, mas a tecnologia blockchain utilizada para a criação da
criptomoeda permite a transação de qualquer ativo, com um registro seguro.

Hoje, quando fazemos transações de forma geral, precisamos de um


intermediário confiável que assegure que essa transação seja concluída com sucesso.
No caso das transferências monetárias, temos os bancos, que cobram altas taxas, e não
funcionam de forma transparente, pois geram uma gama de cobranças e taxas que
dificultam o acompanhamento fácil e ainda utilizam nossos recursos para aumentar os
próprios.

Conceito
A blockchain é uma rede distribuída, na qual não existe um único intermediário
para realizar e validar uma transação, muito menos alguém para cobrar altas taxas de
operação. Basicamente, todos os computadores dentro dessa rede (também conhecidos
como nós) precisam reconhecer a transação para ela se tornar válida.

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● A unidade de informação numa blockchain é chamada de transação;

● Cada usuário e transação possui uma identificação própria (endereço);

● Dentro de uma blockchain essas transações serão agrupadas em formas de


blocos;

● Para os blocos serem feitos é preciso respeitar algumas regras como: um


tamanho máximo de transações que um bloco pode comportar e conter
apenas transações que sejam verificadas como válidas;

● Enquanto as transações esperam para serem adicionadas em algum bloco,


elas ficam temporariamente em uma estrutura chamada de pool;

● Os computadores da rede competem entre si para ver quem consegue


encontrar um bloco válido primeiro dentro da pool (mineração);

● O computador que encontra um bloco válido avisa os demais para que se


faça a checagem e que haja um consenso de validação;

● Quando um novo bloco válido é encontrado, o mesmo é enviado para a rede


e o seu hash serve como prova de que o bloco é válido.

● O minerador é recompensado pelo seu trabalho através de incentivo


financeiro;

● Após o bloco ser criado e validado pela rede, ele será adicionado a cadeia
de blocos – também conhecido como BLOCKCHAIN!

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Razões pelo hype
A razão pela qual a tecnologia blockchain ganhou tanta admiração é que:

● Não pertence a uma única entidade, por isso é descentralizada;


● Os endereços são armazenados criptograficamente dentro dela;
● A blockchain é imutável, então ninguém pode mexer com os dados que estão
dentro da blockchain;
● A blockchain é transparente para que se possa rastrear os dados se eles
quiserem.

Criptografia: O algoritmo de hash


O algoritmo de hash nada mais é uma função matemática que converte uma
entrada de dados em uma saída que é única para aquela entrada. Ou seja, se você
alterar 1 bit de informação, o hash gerado é completamente diferente, invalidando a
transação.

1º Passo: O registro de uma transação

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O primeiro passo é o registro de uma transação. Digamos que Marcos Pianter
deseje enviar dinheiro para Axl Rose. Ele envia essa requisição para a blockchain,
deixando sua transação em um pool de transações que serão consumidas pelos
mineradores para validarem as informações.

2º Passo: Tornar a transação anônima


Assim que chega a hora de processar uma transação, tanto Marcos quanto Axl são
anonimizados através de um algoritmo de hash.

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3º Passo: Tornar a transação “oficial”: O pool
Depois de anonimizadas as informações, a transação entra no pool de transações
com o status de pendente.

3º Passo: Tornar a transação “oficial”: assinatura


Para cada transação, é gerada uma assinatura através do algoritmo de hash
utilizando os hash gerados anteriormente, ou seja, os endereços de quem enviou, de
quem recebeu e o valor. Continuando no status pendente de processamento.

3º Passo: Tornar a transação “oficial”: Validação

Depois, é hora de validar a assinatura da transação com as informações contidas


nela para descobrir se foi alterada de alguma forma. Caso não tenha sido, a transação
ganha o status de OK, recebe uma data e hora de processamento e essas informações
são utilizadas para gerar o ID da transação.

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4º Passo: Tornar a transação imutável: O hash das transações

Ao chegar no tamanho máximo do bloco, é gerado um hash das transações que


fazem parte daquele bloco. Além do ID das transações, é utilizado também o ID do
novo bloco que está sendo gerado.

5º Passo: Tornar a transação imutável: O hash do bloco


Todos os blocos possuem o número do bloco, as transações, o hash das transações
e o hash do bloco anterior, gerando assim o hash final daquele bloco que será utilizado

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para conectar e validar o bloco na blockchain. O único bloco que não possui hash do
bloco anterior é o bloco gênesis, ou seja o primeiro bloco da blockchain.

Desta forma a tecnologia blockchain garante que:

● Absolutamente todos os registros do banco de dados estão entrelaçados. Logo,


podemos analisar todo o histórico de mudanças e alterações nas informações
sabendo exatamente quando, onde, e quem estava envolvido nestas operações;

● Mesmo que alguém consiga alterar uma cópia local para enganar a blockchain,
jamais conseguiria oficializar isso frente as demais cópias do blockchain, pois,
para enganar, teríamos que alterar todos os blocos anteriores para que os hashes
estejam em conformidade;

● Para garantir que realmente um bloco está seguro, a blockchain pode ser
programada para ter um limite, esperando que um bloco apenas é válido depois
que mais N blocos sejam validados, validando a cadeia anterior ao bloco.

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APLICABILIDADE DOS SMART CONTRACTS
Por Maristela Marquiafave

Atualmente experimentamos a chamada Revolução Industrial 4.0, que avança


exponencialmente e que em menos de dez anos trouxe ao mundo uma inovação sem
precedentes, transformando todos os setores da economia através do uso da
tecnologia.

Sabemos, no entanto, que este não foi sempre o ritmo das mudanças. Mais de dois
séculos foram necessários para que três grandes revoluções de forte impacto para o
cenário socioeconômico global se desenvolvessem, diga-se de passagem, linearmente,
e se concretizassem: a invenção da máquina a vapor, o advento da eletricidade e o
desenvolvimento da computação.

Uma longa estrada foi percorrida para que definições até então desconhecidas,
como blockchain, criptoativos, inteligência artificial, robótica, internet das coisas,
pudessem ser hoje debatidos em larga escala e compreendidos por nossa geração, o
que comprova estarmos diante de um caminho inovador sem volta. E em meio a
tamanha inovação, modificam-se exponencialmente também as relações humanas e a
forma como as partes de uma relação contratual adquirem direitos e assumem
obrigações, surgindo espaço para o uso dos smart contracts (ou contratos inteligentes).

Smart contracts: como essa ideia surgiu?

Não podemos falar de smart contracts sem antes citar o cientista da computação
americano Nick Szabo, que instituiu o referido termo em 1994, ao afirmar que: “A
smart contract is a computerized transaction protocol that executes the terms of a
contract”, o que em livre tradução define um smart contract como nada mais que um
protocolo de transação informatizado que executa os termos de um contrato.

Em 1997, através de um artigo1 publicado na revista acadêmica First Monday,


Szabo trouxe à tona uma nova forma de pensar os tradicionais contratos através de

1 https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/548
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códigos computacionais, buscando maior segurança e proteção para as partes. A
tradução livre do resumo de seu artigo assim detalha o centro de suas ideias: “Smart
contracts combinam protocolos com interfaces de usuários para formalizar e assegurar
as relações em redes de computadores. Objetivos e princípios para o design desses
sistemas são derivados dos princípios legais, teoria econômica e teorias de protocolos
confiáveis e seguros. Similaridades e diferenças entre os smart contracts e os
procedimentos de negócios tradicionais baseados em contratos escritos, controles e
formulários estáticos são discutidas. O uso de criptografia e outros mecanismos de
segurança podem trazer proteção a muitas relações especificadas por algoritmos
contra violações de princípios e de interceptação ou interferência maliciosa de
terceiros, até considerações de tempo, interface do usuário e integridade da
especificação algorítmica”.

Essa teoria teria sido pensada através da análise das vending machines, pois se
traçarmos um paralelo, estamos “contratando” com referidas máquinas ao compramos
um refrigerante, por exemplo, mediante várias cláusulas pré-estabelecidas: (i) escolha
do produto; (ii) depósito do valor estabelecido na máquina para aquisição daquele
produto; (iii) liberação do produto pela máquina mediante pagamento do valor correto;
(iv) devolução de troco devido a eventual depósito de valor a maior. Com isso, resta
adimplida e executada a transação, sem a intervenção de terceiros.

É nítido, pois, que Szabo vislumbrou um aperfeiçoamento deste tipo de transação,


buscando uma forma mais segura (com o uso de criptografia) e rápida de se contratar,
imutável, autoexecutável e sem a necessidade de intermediários. A dificuldade neste
aperfeiçoamento estaria apenas no fato que de que à época ainda não se falava em
blockchain, tampouco em criptomoedas, razão pela qual a efetiva viabilização da ideia
viria a acontecer apenas alguns anos mais tarde.

Satoshi Nakamoto e o Bitcoin

Somente em 2009, com a divulgação do paper de Satoshi Nakamoto (em teoria o


pseudônimo de uma pessoa ou de um grupo de pessoas) denominado “Bitcoin: A Peer-

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to-Peer Electronic Cash System”2 é que surge o criptoativo Bitcoin (BTC) e a tecnologia
blockchain, trazendo finalmente as condições necessárias para o desenvolvimento dos
smart contracts em seu formato atual.

Um grande avanço a ser atribuído ao BTC foi a solução do problema do “gasto


duplo”, não sendo possível simplesmente “copiar” o dinheiro digital e usá-lo mais de
uma vez, como ocorre com o envio de uma fotografia digital, pois as transações se dão
em sua rede pública descentralizada, auditável e com código fonte aberto, sem a
necessidade de um terceiro controlador, graças à confiança criptográfica embasada no
consenso entre os membros da rede, apta a validar as transações e os saldos das contas
de seus usuários.

Essa solução do problema do "gasto duplo" conferiu à rede do BTC a confiabilidade


de tal sistema monetário e a segurança tão debatida por Nick Szabo, o que muito nos
importa para o tema dos smart contracts.

Ainda, vale dizer que a blockchain do BTC (assim como as demais), é uma camada
de tecnologia que roda em cima da internet, assim como a nossa velha conhecida www
(World Wide Web) e mantém uma transparência sem igual via ledger de transações
(uma espécie de “livro-razão”) com todas as operações registradas com horário e por
ordem cronológica, desde o início de sua operação.

Isso possibilita que a blockchain prove algo que realmente aconteceu,


representando um novo paradigma para implementação da confiança nas transações,
computada por máquinas.

Vitalik Buterin e o Ethereum

Em 2013, o programador russo Vitalik Buterin, então com 19 anos de idade, sob o
argumento de que a rede do Bitcoin precisava de uma linguagem mais generalizada,
apresenta o white paper da rede Ethereum, rede descentralizada e capaz de executar
smart contracts, também com código fonte aberto3, tendo sido o projeto financiado
através de crowdfunding, com lançamento efetivo em 2015.

2 https://bitcoin.org/bitcoin.pdf
3 https://github.com/ethereum/wiki/wiki/White-Paper
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Como na blockchain do Bitcoin, as características principais da rede Ethereum
são similares, sendo que ela também armazena as transações numa espécie de planilha
pública, distribuída e criptografada, validadas pelos próprios usuários da rede. No
entanto, contratos inteligentes formalizados na blockchain do Ethereum não são pagos
em Bitcoins, mas sim em Ether, a “moeda” da rede.

Definição e conceitos dos smart contracts

Muito se discute sobre a nomenclatura dos smart contracts, pois na prática,


podemos dizer que os mesmos não são contratos e nem são inteligentes, eis que se
referem a meras linhas de código de programação, prévia e objetivamente definidas,
não sendo capazes de “aprenderem” nem executarem tarefas de forma autônoma, mas
apenas darem cumprimento aos comandos de quem os programou.

Logicamente podemos considerá-los inteligentes quando confrontados com os


tradicionais padrões de contratos, mas ao avaliarmos juridicamente o seu conceito,
vamos chegar à rápida conclusão de que a mudança causada pelos smart contracts na
verdade representam apenas o momento final da negociação, mais precisamente o seu
enforcement.

Uma boa definição para os smart contracts seria: códigos de programação


publicados em uma rede blockchain, com capacidade de automatizar e auto
executar suas negociações desde que cumpridas as condições impostas, de forma
imutável, segura, transparente e sem intervenção humana.

Com relação à estrutura e funcionamento dos smart contracts, a blockchain do


Ethereum é a mais utilizada e um dos projetos mais famosos no setor de contratos
inteligentes, trazendo condições especiais para seu desenvolvimento e execução,
criando uma espécie de “máquina virtual” em que as partes podem desenvolver e
aplicar suas regras.

O ponto que diferencia de fato o Ethereum dos demais altcoins (criptoativos


alternativos ao Bitcoin) é que o mesmo busca difundir a tecnologia do blockchain e a
adoção de contratos inteligentes para “qualquer situação a ser programada”.

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A linguagem de programação mais utilizada é o Solidity, sendo o Remix a melhor
ferramenta para redigir e publicar os contratos. O Ether é o “combustível” da
plataforma, apto a possibilitar que as transações se realizem e que o contrato se
implemente.

O passo a passo para o funcionamento e aplicabilidade dos smart


contracts

A fim de melhor compreender o funcionamento dos smart contracts, importante


apresentarmos alguns detalhes de sua figura:

1 – Programação: é recomendado que programador e advogados representantes


das partes trabalhem juntos e programem com muita cautela o encadeamento exato,
bem como a lógica das funções a serem realizadas, não devendo restar brechas para
qualquer tipo de dúvida no ato da execução do contrato, pois a partir do momento em
que todas as cláusulas forem adimplidas, a função nele descrita será executada.

Podemos pensar como exemplo no cenário do e-commerce, que é um grande


potencial para o uso de contratos inteligentes e possui um processo bastante simples.
Pensemos na comercialização de um sapato feita por um indiano a um brasileiro. Em
razão da demora no frete e na possibilidade da não concretização deste negócio, seria
possível a efetivação de um smart contract previamente programado e validado, com
o rastreio dos Correios ou transportadora envolvida, sendo que, havendo a confirmação
do recebimento dos produtos pelo consumidor, dar-se-ia automaticamente a execução
do contrato e a transferência do pagamento.

Esta é apenas uma possibilidade, sendo que o mercado de seguros, financeiro,


registros societários, métodos de votação, mobilidade, hospedagem, serviços
cartorários, dentre inúmeros outros, podem envolver a formalização de contratos
inteligentes.

Logicamente, a etapa de discussão da minuta do documento e o estabelecimento


de suas cláusulas, bem como regras e consequências exatas da relação jurídica
(direitos, deveres, penalidades em caso de descumprimento etc.) ainda exigem

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formalização via modelos tradicionais, o que possibilitará o self-enforcement preciso
do smart contracts.

2 - Implementação: após sua programação, será feito o deployment do contrato


na plataforma de computação (rede distribuída) baseada em blockchain público, uma
espécie de upload do documento, o que permitirá sua execução em uma única máquina
virtual descentralizada denominada EVM - Ethereum Virtual Machine, no caso da rede
Ethereum.

Seria, em outras palavras, a transcrição de todas as cláusulas do contrato, através


de uma plataforma computacional, para que as condições possam estar claramente
estabelecidas e serem oportunamente implementadas e satisfeitas.

3 – Concretização: a rede distribuída possui seu próprio criptoativo (neste caso


específico, o Ether), que funciona como o “combustível” que o contrato precisa para
ser “minerado” e executado. O adimplemento dessa transação se dá mediante o envio
de criptoativos da carteira de uma parte para outra e essa transação deverá ser
validada pelos nós da rede, no chamado mecanismo de consenso, o que se dá através
do processo de mineração e prova de trabalho – Proof of Work (PoW).

4 – Mineração: este processo é uma espécie de “tentativa e erro”, no qual os


“mineradores” espalhados pelo mundo participam de um “jogo” de decodificação
criptográfica e buscam acertar a hash (sequência de caracteres - números e letras
aleatórios, por exemplo, ´344dcc402944e2b3´) de validação daquela transação e, ao
acertarem, são responsáveis por aquele específico registro no próximo bloco de dados
e na rede blockchain, o livro-razão coletivo. Todo bloco sucessivo conterá o hash do
bloco anterior, para que não se quebre a cadeia de confiabilidade e segurança da rede.
O uso da tecnologia de criptografia garante a não modificação, minimizando o risco de
perdas.

Logicamente quanto mais potentes as redes computacionais destes mineradores


(ou pool de mineradores), maior a probabilidade de acerto, pois o processo envolve
manter os computadores pensando, calculando e procurando hashs até desvendar um
bloco, validá-lo e receber a recompensa tarifada pela respectiva rede.

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5 – Autoexecução: findo este processo de negociação, deployment, validação e
registro pela rede, estando as condições do contrato adimplidas, ocorrerá o seu
enforcement e, consequentemente, a satisfação das partes envolvidas.

A disseminação dos smart contracts no futuro

Diante desse contexto, podemos concluir que temos vivenciado uma excitante
jornada disruptiva e de inovação sem precedentes, sendo possível atrelar as relações
humanas e, neste particular o Direito, ao ramo da Tecnologia.

Imaginemos um futuro de amplas relações peer-to-peer, sem grandes empresas


dos principais setores intermediárias e detentoras do poder, mas sim com códigos
abertos e gratuitos, de interfaces simples, seguros e autoexecutáveis, perpetuados de
forma imutável em uma cadeia de blocos assegurada pelos seus próprios nós
validadores, podendo prever variados tipos de serviços, logicamente pensados dentro
dos padrões adequados ao mundo jurídico vigente.

O objetivo central das pessoas que hoje detêm o conhecimento e estão à frente
deste cenário é justamente buscar o protagonismo e a mudança gradativa do mindset
comum e dos antigos modelos sócio-político-econômicos, abolindo os pontos de atrito
do sistema tradicional, em busca de economia de tempo e recursos.

Necessário também que as barreiras legais e regulatórias sejam superadas e


ajustadas aos poucos, sempre na busca do equilíbrio entre a evolução do mercado e o
controle dos gargalos existentes.

Para os profissionais do Direito, é importante disseminar este conhecimento e a


viabilidade cada vez maior para o uso dos smart contracts, rompendo a ideia de que
este modelo será prejudicial à função do advogado e fomentando as inúmeras novas
possibilidades de negócios que podem surgir neste ambiente. Lembremos as palavras
do próprio idealizador do conceito, Nick Szabo, que ao discursar em 2016 num simpósio
em Nova Iorque, afirmou que os contratos inteligentes não irão tomar o lugar dos
advogados, mas sim “possibilitar coisas novas que não foram ainda realizadas
anteriormente”.

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É importante que tenhamos passado a ideia de que hoje não estamos mais diante
da era da internet da informação, mas sim da internet do valor, em que transações
precisam ocorrer de forma online, com rapidez, segurança e transparência, sendo as
redes blockchain e os contratos inteligentes os grandes responsáveis por essa
concretização, em busca da modernização do cenário até então praticado e da
adaptação dos novos modelos econômicos e sociais a um cenário jurídico confiável.

Para corroborar esse pensamento e essa ânsia por mudanças, enumeramos cinco
grandes vantagens dos smart contracts: (i) segurança (criptografia); (ii) redução de
custos (menor intervenção humana); (iii) velocidade (ações rápidas e em tempo real);
(iv) precisão (100% programados por códigos); e (v) transparência (auditáveis).

É notório, pois, que o futuro nos reserva grandes oportunidades no contexto da


inovação tecnológica em todos os âmbitos, avançando-se a disrupção através das novas
empresas, segmentos e comportamentos, bem como dos novos padrões dentro das
empresas e negócios já existentes, todavia, ameaçados diante do atual cenário.

Cabe a nós, atores desta transformação, o atingimento consciente e responsável


das novas práticas, buscando o casamento perfeito entre Tecnologia e Direito, sem nos
esquecer que por trás dos smart contracts e de todo o futuro tecnológico que desponta,
os relacionamentos interpessoais e valores pessoais serão as ferramentas de maior
importância, aptas a nos diferenciar das máquinas no mercado daqui em diante.

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BLOCKCHAIN E A INDÚSTRIA DO
ENTRETENIMENTO
Por Guilherme Sampaio

A indústria de mídia e entretenimento é baseada em contratos que valorizam a


proteção da propriedade intelectual. A blockchain tem o potencial de aumentar os
lucros para criadores de conteúdo e empresas de mídia e fornecer preços baseados em
consumo em tempo real. À medida que a tecnologia blockchain amadurece, os
executivos de mídia e entretenimento devem estar aprendendo sobre a tecnologia e os
possíveis casos de uso para seus negócios.

Entender como o blockchain atua na estratégia mais ampla da empresa, quais são
as prioridades da empresa e se o modelo de negócios pode ser significativamente
impactado pela tecnologia será essencial. Embora a tecnologia ainda seja nova, ela
tem aplicativos para toda a indústria com o potencial de transformar a maneira como
o conteúdo é criado, consumido e protegido. Além disso, é importante começar a
pensar nos possíveis benefícios e desafios da adoção agora.

As principais disrupções que podem ser causadas pela união da indústria do


entretenimento e a blockchain são: a eliminação de intermediários, distribuição de
royalties, compartilhamento de ativos e vendas consumidor-consumidor.

Eliminação de intermediários
A estrutura descentralizada da blockchain poderia permitir que os criadores de
conteúdo - como músicos ou escritores - distribuíssem diretamente seu trabalho para
os consumidores, ignorando os canais de distribuição tradicionais e deixando uma
parcela maior de receita para os próprios criadores de conteúdo. Isso poderia impactar
todos, desde grandes meios de comunicação até “blogueiros” independentes, ajudando
os artistas a formar um relacionamento direto com os consumidores.

Distribuição de royalties
A coleta e distribuição de pagamentos de royalties no setor musical se tornou
ainda mais complexa com o crescimento dos serviços de streaming de música. Cada

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vez que uma música é transmitida online ou reproduzida em segundo plano de um
programa de TV, por exemplo, o distribuidor deve compensar o detentor dos direitos
autorais da música, mas podem surgir controvérsias sobre a precisão e as taxas de
compensação desses royalties.

Contratos inteligentes construídos em uma blockchain e anexados a uma


determinada peça musical podem adicionar precisão, velocidade e confiança ao
processo, executando termos de contrato automaticamente entre as partes elegíveis.
Isso permitiria um rastreamento mais preciso do uso de uma música, pagamentos mais
rápidos de royalties e mais transparência sobre os termos do contrato e a divisão da
receita entre artistas e outras partes interessadas. É provável que também interrompa
ou elimine o papel das associações de cobrança de direitos autorais, que atualmente
atuam como intermediários centralizados na coleta de pagamentos para detentores de
direitos.

Vendas consumidor-consumidor

Assim como o acompanhamento aprimorado do uso de músicas, o uso de


blockchain poderia capacitar outros tipos de proprietários de conteúdo a manter uma
melhor supervisão de seu material protegido por direitos autorais. O compartilhamento
de arquivos peer-to-peer ilegal de programas de TV, filmes ou outros conteúdos já é
comum, mas o compartilhamento de arquivos pode se tornar uma prática legítima que
pode ser controlada e monetizada. Quando os consumidores compram ou assinam
conteúdo hospedado por blockchain e o compartilham com um amigo, os proprietários
do conteúdo podem acompanhar e cobrar uma taxa por essa distribuição. Isso criaria
um fluxo de receita adicional para os criadores de conteúdo e forneceria uma melhor
transparência sobre como os recursos protegidos por direitos autorais são consumidos
e compartilhados.

Micro vendas de ativos

Uma tendência crescente que têm origens no crowdfunding e que pode ajudar
muito a todos os profissionais e empresas do mercado é a micro venda de ativos. Hoje
temos pinturas famosas como de Picasso que foram transformadas em milhões de micro

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ações e vendidas por valores menores por conta da quantidade, abrindo caminho para
micro investidores ou pequenos mecenas.

Essa transformação pode ser feita com qualquer ativo, principalmente os criados
pela indústria do entretenimento, onde a maioria dos produtos é virtual. E não é só
com produtos lançados que essa estratégia artística pode ser implementada, ela serve
para qualquer ideia! Ou seja, um artista poderia usá-la como um crowdfunding para
seu próximo álbum! E imagine se além de conseguir o valor para produzir seu novo
álbum, ele se torne um sucesso e todos os fãs que lhe ajudaram no começo, que hoje
são seus sócios em seu álbum de sucesso, estarão compartilhando não só da alegria de
um projeto bem sucedido, mas também de seus lucros!

Conclusão

A blockchain pode criar fluxos de receita adicionais para conteúdo novo e


existente e maior proteção da propriedade intelectual do conteúdo para os
proprietários do conteúdo. Mas a tecnologia ainda não está madura e essas aplicações
ainda estão sendo desenvolvidas. Os primeiros adeptos devem estar cientes dos
desafios e custos potenciais. O uso de blockchain atualmente não é regulamentado, e
padrões comuns para utilizar a tecnologia para criar valor ainda precisam ser criados.
“Para qualquer caso de uso adequado de blockchain que exija a participação de
múltiplos constituintes, é necessário que haja uma condução de padrões entre esses
participantes”, diz Moy.

Além disso, alcançar todos os benefícios da blockchain pode exigir a substituição


da tecnologia atual em certos casos. Integrar a tecnologia em processos existentes - e
construir, testar e garantir a segurança - levará tempo. Há também a questão de onde
toda essa propriedade intelectual será armazenada. As quantidades massivas de dados
de transações precisarão ser armazenadas com terceiros e, nesse caso, quem é o
proprietário desses imóveis? Enfrentar essas questões e encontrar um terreno comum
levará tempo. É importante que os participantes da indústria de mídia trabalhem no
desenvolvimento de padrões para aplicar blockchain e identificar áreas nas quais a
tecnologia poderia beneficiar os principais participantes do setor, de criadores de
conteúdo a agregadores de conteúdo e distribuidores.

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BLOCKCHAIN E PROTEÇÃO DE DADOS: É
POSSÍVEL UMA COMPATIBILIDADE?
Por Amanda Alencar

A tecnologia blockchain vem causando ao longo dos últimos anos uma verdadeira
revolução, com soluções bastante inovadoras sendo experimentadas, que vão muito além
das criptomoedas. Entretanto, em meio a exaltação quanto aos diferentes usos da
tecnologia, ecoam questionamentos e debates acerca da sua compatibilidade quanto a
outro tema bastante destacado nos últimos anos: a proteção de dados pessoais. Isso
porque a tecnologia blockchain, da forma como foi originalmente pensada por Satoshi
Nakamoto, se caracteriza por ser uma base de dados descentralizada, com total
transparência e publicidade das informações inseridas, as quais são armazenadas de
maneira imutável, sem a possibilidade de qualquer alteração posterior. Tais
características, em uma primeira análise, parecem ser inconciliáveis com os principais
critérios relacionados à proteção de dados pessoais, o que gera várias discussões acerca
da compatibilidade e viabilidade da tecnologia quanto às normas de proteção de dados
hoje aplicáveis.

Considerando esse contexto, abordaremos as características dessa classe de


tecnologia no intuito de analisar se a mesma pode ser compatível com as principais
disposições e princípios da Lei de Geral Proteção de Dados brasileira (LGPD), Lei nº.
13.709/2018, bem como do General Data Protection Regulation (GDPR), o Regulamento
de proteção de dados da União Europeia, considerando o uso de dados pessoais, as
características técnicas dos tipos de blockchain existentes e o exercício dos direitos do
titular de dados, abordando, por fim, as possíveis soluções para uma desejável
compatibilidade.

O uso de dados pessoais e a anonimização de dados em blockchains

O primeiro aspecto a ser enfrentado diz respeito ao uso de dados pessoais numa
blockchain. Nos termos da Lei de Geral Proteção de Dados brasileira (LGPD), bem como

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do General Data Protection Regulation (GDPR), o conceito de dados pessoais é bastante
amplo, sendo considerado um dado pessoal aquele que possa tornar um indivíduo
identificado ou identificável. Aqui reside a primeira observação e um dos principais
problemas em relação aos dados pessoais e as blockchains: ainda que seja inserido um
dado que não possa identificar diretamente um indivíduo, o seu uso recorrente ou a sua
associação com outras informações torna o indivíduo identificável, o que fará incidir a
aplicação das leis de proteção dos dados.

Um exemplo bastante comum é o endereço utilizado por um usuário numa


blockchain, o qual representa um código criptográfico gerado por sua chave pública e
que, consequentemente, não permite que o titular de dados seja identificado de forma
direta. Entretanto, o uso recorrente do mesmo endereço, juntamente com outras
informações que podem ser relacionadas com a chave pública, torna o titular de dados
identificável, o que faz com que tanto o endereço quanto a chave pública correspondam
a um dado pessoal. Tal situação é especialmente fácil de ser apresentada em uma
blockchain pública, pois todas as transações do endereço podem ser visualizadas
livremente, facilitando a rastreabilidade de informações.

Outra importante discussão seria quanto a possibilidade de anonimização dos dados.


Tanto a LGPD, quanto o GDPR não se aplicam a dados anonimizados, que são dados que
passaram por um processo em que perdem a possibilidade de associação ao titular. O
procedimento pode ser uma solução em termos de proteção de dados em uma blockchain,
no entanto, os requisitos técnicos que fazem corresponder uma anonimização de dados
de forma efetiva podem ser rigorosos. De acordo com o Article 29 Working Party4 (Opinion
05/20145), a técnica de anonimização deve ser suficientemente boa para que não seja
possível haver reversão ou mesmo a associação com os dados pessoais originais a partir
de outras informações disponíveis, o que, do contrário, tornará o titular de dados
identificável. Assim, ainda que os dados sejam criptografados, há a possibilidade de
reversão (uso da chave) e ainda o risco de associação a partir de outras informações, o
que os tornará, portanto, apenas pseudoanonimizados.

4 Órgão europeu consultivo para proteção de dados anterior a vigência do GDPR.


5 Article 29 Working Party, “Opinion 05/2014 on Anonymisation Techniques”.
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Importante lembrar que os mais diversos tipos de blockchains têm em comum a larga
utilização da chamada função hash criptográfica, que é utilizada principalmente para
encadear de forma bastante segura os blocos de informações um ao outro e na qual não
é possível haver reversão. A função hash é usualmente comparada a uma impressão digital
de um bloco de informações, pois o resultado gerado é único, de forma que a mínima
alteração, seja de um bit sequer, no bloco de informações corresponderá a um resultado
da função hash completamente diferente.

Mesmo considerando a característica de irreversibilidade da função hash, a discussão


é ainda bastante controversa quando se trata de dado pessoal que foi “hasheado” antes
de ser inserido numa blockchain. Como ressaltado no relatório do European Union
Blockchain Observatory and Forum6, se o tamanho da informação for conhecido e for
relativamente pequeno (um número de CPF, por exemplo), existe a possibilidade de
ataque de força bruta, utilizando as possiblidades disponíveis e comparando-as com o
resultado pretendido para se chegar ao dado original.

Há ainda o risco de vinculação ao titular de dados. Como já mencionado, os registros


em uma blockchain ficam disponíveis de forma bastante transparente, tornando possível
a rastreabilidade e agrupamento de outras informações e, consequentemente, facilitando
a associação com o titular de dados, sendo esse um dos principais riscos de identificação
do titular, ainda que não tenha sido inserido os seus dados pessoais diretamente numa
blockchain. Na última seção, veremos quais as possibilidades para mitigar estes riscos.

Os diferentes tipos de blockchain e a responsabilidade pelo tratamento


de dados pessoais

Além das discussões a respeito da inserção de dados pessoais, também a


característica da descentralização de registro torna muito mais difícil a interpretação das
normas de proteção de dados em blockchains. Isso porque a descentralização torna difícil
a indicação do controlador responsável em blockchains e essa definição também pode
variar bastante a depender do tipo de blockchain utilizada. O controlador, nos termos na
Lei Geral de Proteção de Dados (artigo 5º, VI), é aquele a quem competem as decisões

6 European Union Blockchain Observatory and Forum, “Blockchain and the GDPR”.
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referentes ao tratamento de dados pessoais. A definição do controlador é essencial em
termos de responsabilização, mas se mostra particularmente desafiadora quando se trata
de um sistema que tem múltiplos participantes, com uma base de dados descentralizada.

Em blockchains privadas e permissionadas, que são geralmente formadas por


consórcios de empresas, é mais fácil aplicar a definição de controlador, pois os
participantes (os “nós”) são conhecidos, inseridos de forma controlada, além de
geralmente existir uma relação pré-contratual que permite a definição das
responsabilidades de cada participante. Entretanto, as blockchains permissionadas
também possuem desafios, uma vez que todos os participantes da rede precisam ter
acesso às informações inseridas nos blocos e, como consequência, terão acesso aos dados
pessoais. Além disso, de acordo com as normas de proteção de dados, é preciso definir
corretamente a base legal que autorizará o tratamento de dados de acordo com as
finalidades estabelecidas por todos os nós participantes.

Por outro lado, a maior dificuldade reside em relação as blockchains públicas e não
permissionadas, que hoje correspondem a grande maioria das blockchains em uso, como
as blockchains de criptomoedas. Qualquer pessoa pode, sem nenhuma permissão
necessária do sistema, atuar na rede como um nó validador ou apenas um nó participante
(o qual possui uma cópia da base de dados). Assim, uma vez que não há controle dos
participantes, como determinar quem seria o controlador e o operador nesses casos,
segundo as normas de proteção de dados? O debate nesses casos ainda permanece
inconclusivo, apesar de algumas opiniões já expressadas. A CNIL, autoridade francesa de
proteção de dados, já apresentou relatório7 no qual considera, de maneira geral, os
participantes de uma blockchain não permissionada como responsáveis pelo tratamento
de dados pessoais. No entanto, o maior desafio não é definir essas responsabilidades e
sim aplicá-las.

Quando há um controlador definido de forma mais clara, que faz a coleta dos dados
de acordo com uma base legal definida, inclusive antes do início das atividades da
blockchain, se mostra muito mais fácil identificar também, a partir daí, suas obrigações.
Em outros casos, é necessária uma melhor orientação das autoridades de proteção de

7 CNIL, “Solutions for a responsible use of the blockchain in the context of personal data”.
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dados, o que certamente levará a uma análise a ser desenvolvida caso a caso, a depender
da configuração e características da blockchain e da forma de participação dos nós
validadores.

O exercício dos direitos do titular de dados

Outro questionamento se dá sob a perspectiva do titular de dados, no qual é preciso


analisar se o uso da tecnologia blockchain permite ao mesmo o exercício dos direitos
resguardados nas leis de proteção de dados, especialmente os direitos de acesso, correção
e eliminação dos dados.

Aqui reside outro grande desafio quanto à proteção de dados pessoais numa
blockchain, que tem relação com uma de suas principais características: a imutabilidade.
Como visto anteriormente, a alteração das informações contidas num bloco invalida o
encadeamento de blocos, uma vez que a mínima alteração necessária altera também o
código resultante da função hash, o principal responsável pela segurança do
encadeamento. Assim, o cumprimento das obrigações de eliminação e correção de dados
pessoais pode se tornar tecnicamente desafiador.

Segundo relatório da CNIL, determinadas técnicas de encriptação em conjunto com


a destruição das chaves privadas podem ser consideradas como apagamento de dados.
Assim, ainda que tecnicamente os dados não sejam apagados, a solução é que não se
tenha mais possibilidade de acesso aos mesmos. No entanto, tal definição de forma
conclusiva sobre o que pode ser considerado eliminação para o cumprimento das normas
quanto a eliminação de dados pessoais ainda está em discussão e necessita também ser
estabelecida pelas autoridades de proteção de dados pessoais.

Como visto anteriormente, no caso de blockchains públicas e não permissionadas se


mostra especialmente complexo o cumprimento dessas obrigações, pois é difícil a
definição do controlador e o consequente cumprimento das obrigações necessárias quanto
aos direitos do titular de dados. Por isso, é de extrema importância colocar em prática
soluções técnicas que possam eliminar o risco de acesso, que permitam a efetiva
anonimização dos dados.

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Considerações finais: quais as soluções possíveis?

Como ressaltado no recente relatório do Parlamento Europeu 8, em primeiro lugar


deve-se considerar que a tecnologia blockchain deve ser vista como uma classe de
tecnologia, uma vez que não existe uma única versão disponível, com as mesmas
características. Por este motivo, não há como definir uma única solução de adequação
aos principais requisitos das leis de proteção de dados que possa ser utilizada de forma
universal em diferentes tipos de blockchain. A análise de adequação deve ser realizada
em cada caso particular e deve procurar observar os aspectos relacionados a estrutura
técnica da blockchain utilizada, bem como a forma que se faz uso de dados pessoais. Isso
deve ser feito sempre com apoio técnico avançado, e, quando possível, seguindo as
diretrizes a serem estabelecidas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

No caso de ser absolutamente necessária a inserção de dado que possa identificar o


seu titular, pode-se citar como exemplo de mitigação de riscos o uso da função hash
(encriptação não reversível) juntamente com técnicas como salt e pepper, as quais
servem para agregar outras informações aleatórias no intuito de transformar os dados em
tamanhos maiores de informações, o que possibilita mitigar os riscos de ataques de força
bruta (tentativa e erro). Também é indicado coletar os dados off chain, possibilidade em
que se grava os dados em um banco de dados tradicional e na blockchain apenas o hash
que possibilita a autenticação de tais informações.

Existem outras soluções sendo atualmente implementadas e pesquisadas, como a


chamada “prova de conhecimento zero” (zero knowledge proof). Esse tipo de validação
de informação consiste em uma técnica na qual é possível alguém produzir prova de um
requisito (no caso, um dado pessoal) sem de fato revelar o conteúdo da informação sujeita
a prova. Com a implementação da prova de conhecimento zero numa rede, alguém
poderia fazer prova de que é maior de 18 anos sem a necessidade de revelar sua idade,
por exemplo.

Essa, como outras técnicas que estão sendo estudadas atualmente, precisam cumprir
uma extensa lista de requisitos das leis de proteção dados, como visto nas seções

8 European Parliament, “Blockchain and the General Data Protection Regulation”.


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anteriores. Por isso, o consenso hoje é que os riscos inerentes induzem quem procura
implementar soluções em blockchain a evitar ao máximo o uso de dados pessoais, também
em cumprimento ao indispensável princípio da necessidade, previsto no artigo 6º, inciso
III da LGPD9 (ou minimização de dados, conforme o GDPR). Se é preciso utilizar dados
pessoais, é necessário antes se certificar da utilização de técnicas atuais e eficazes por
meio de ofuscação, encriptação e agregação objetivando a anonimização para que se
possa mitigar os riscos do uso de dados pessoais numa blockchain.

9 Artigo 6º, III da LGPD: “III - necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário
para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não
excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados”.
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Referências
Article 29 Working Party (2014). Opinion 05/2014 on Anonymisation Techniques.
Disponível em: <https://ec.europa.eu/justice/article-29/documentation/opinion-
recommendation/files/2014/wp216_en.pdf>

CNIL (2018). Solutions for a responsible use of the blockchain in the context of
personal data. Disponível em:
<https://www.cnil.fr/sites/default/files/atoms/files/blockchain.pdf>

European Parliament (2019). Blockchain and the General Data Protection


Regulation. Disponível em:
<https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2019/634445/EPRS_STU(2019
)634445_EN.pdf>

European Union Blockchain Observatory and Forum (2018). Blockchain and the
GDPR. Disponível em:
<https://www.eublockchainforum.eu/sites/default/files/reports/a.pdf>

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