O Delineamento de Pesquisa Qualitativa : Jean-Pierre Des Lauriers Mick - Le Vrisit
O Delineamento de Pesquisa Qualitativa : Jean-Pierre Des Lauriers Mick - Le Vrisit
O Delineamento de Pesquisa Qualitativa : Jean-Pierre Des Lauriers Mick - Le Vrisit
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caso, a experimentação no campo, a experimentação em laboratório e a simulação por
computador (LESSARI; HEBERT; GOYETTE; BOUTIN, 1990, 163).
O delineamento de pesquisa também varia conforme a interação dos dados e da
análise, como o ilustra o esquema seguinte1:
Dados
Quantitativos Qualitativos
Quantitativa I II
Análise
Qualitativa III IV
1 Este esquema me foi sugerido, há alguns anos, por Richard I efrançois, da Universidade de Sher
brooke.
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a pesquisa tem por objetivo aprofundar processos ou fenômenos
complexos;
a pesquisa comporta variáveis pertinentes, que não tenham ainda sido
delimitadas;
a pesquisa pretende explorar em que momento e onde os políticos, o bom-
senso popular e a prática malogram;
a pesquisa se retere a sociedades desconhecidas ou estruturas inovadoras;
a pesquisa se refere aos processos organizacionais, suas ligações
informais e não estruturadas;
a pesquisa se refere aos objetivos organizacionais reais, por oposição
àqueles que são pretendidos (MARSHALL & ROSSMAN,. 1989: 46).
Em resumo, e para além dos argumentos de ordem metodológica, parece
que a pesquisa qualitativa se aplica melhor a certos e tipos e temas de
pesquisa. Examinaremos alguns deles, nos parágrafos seguintes.
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principalmente na pesquisa qualitativa, o objeto de pesquisa é, ao mesmo
tempo, um ponto de partida e um ponto de chegada.
A tradição da pesquisa qualitativa frequentemente insistiu no caráter pessoal
dos trabalhos. O envolvimento do pesquisador em seu objeto é, portanto, emocional
e constituiria o ponto de partida. Assim, segundo Marshall e Rossman (1989: 21), o
objeto escolhido deve ser um objeto de preocupação ou de curiosidade. É, então,
importante que a questão epistemológica da relação com o outro se insira na
psicologia individual do pesquisador ou em seu pertencimento a um grupo social ao
qual ele se vincula, ou que ele rejeita. O pesquisador construiria, portanto, seu objeto
a partir de uma rede de interesses que orientam sua escolha. Nessa via, Silverman
escreve:
Eu suspeito que as primeiras etapas da pesquisa se distanciam dema-
siado da lógica e da cronologia, como o atestam as comunicações
cientificas. A maior parte da pesquisa está ligada ao acaso e a
circunstâncias concernentes ao próprio pesquisador, no contexto
econômico, social e político, no qual ele atua (SILVERMAN, 1985:
4).
Essa perspectiva deve ser nuançada. Efetivamente, o projeto de pesquisa quali-
tativa não se elabora somente no silêncio do escritório do pesquisador, ou na excitação
do procedimento de campo; ele também se constrói nas agencias do Estado —
sobretudo quando da instalação de programas de pesquisa, ou da apresentação de
pedidos de subvenção de pesquisa (SOULET, 1987a: 57). Comparando as estratégias
de pesquisas conduzidas pelos praticantes da ação social e aquelas dos centros
universitários, Soulet mostra que o objeto de pesquisa é construído diferentemente por
uns e outros. Para os primeiros, “a realização de um processo de pesquisa [...] pressupõe
como condição mínima o respeito à realidade. O objeto de pesquisa é, neste sentido,
assimilado ao objeto-problema e se assemelha a um dado empírico que convém
descrever tão fielmente quanto possível” (p. 56). O objeto se apresenta, então, sob o
ângulo da investigação profissional. Ao contrário, “os centros universitários e,
sobretudo, as associações de pesquisa particularizam o objeto como um espaço de
trabalho. Ambos reconhecem nele o momento em que se representa a sua identidade em
relação à imposição, real ou imaginária, que o comanditário faz considerar” (p. 56).
Haveria, portanto, dois modos de conceber e de construir o objeto de pesquisa:
para uns, é preciso conhecer para modificar; para outros, é preciso conhecer para
conhecer melhor. A pesquisa qualitativa pode superar essa divergência, associando-
se aos praticantes da ação social e aos membros dos movimentos sociais. Na tradição
da pesquisa-ação, por exemplo, os praticantes estão estreitamente associados aos
projetos de pesquisa, quando não são eles próprios que os iniciam' em suas
instituições. Esse ponto de vista é ainda mais evidente na pesquisa feminista, que,
alias, geralmente se calca na pesquisa qualitativa. Para Smith (1987), uma sociologia
verdadeiramente feminista não transformaria os sujeitos que ela pesquisa em
“objetos”, mas conservaria, em seus procedimentos analíticos, a presença do
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sujeito como ator. Não importa que o objeto de pesquisa derive de um interesse
pessoal do pesquisador, ou que ele resulte de acidentes biográficos, ou que ele
provenha de um movimento crítico que tenta encontrar seu lugar num embate social
ou político, ou ainda, que ele se situe na junção de interesses das redes (políticas,
econômicas e sociais) que envolvem o pesquisador, esse objeto será, primordialmente,
um objeto negociado, que depende, ao mesmo tempo, de circunstâncias particulares e
de fatores estruturais.
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a pesquisa, se ele não mais corresponder à realidade observada” (CHEVRIER, 1993:
69).
A Revisão bibliográfica e a análise
Dada a importância das interpretações na pesquisa qualitativa, a revisão
bibliográfica leva o pesquisador a escolher uma fundamentação teórica. Durante as
etapas de coleta e analise de dados, a leitura facilitará o desenvolvimento do processo
analítico:
A revisão bibliográfica [...] ajuda a formular uma explicação tanto durante a
coleta dos dados, como em sua análise, permitindo esclarecer e avaliar os dados,
assim como estabelecer as ligações entre ós dados, em diferentes momentos. A
medida que progride a teorização enraizada, a revisão bibliográfica fornece as
construções teóricas, categorias e propriedades que servem para organizar os
dados e descobrir novas relações entre a teoria e o mundo real (MARSHALL &
ROSSMAN, 1989: 41).
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Uma revisão bibliográfica na pesquisa qualitativa não se limitará, portanto, a um
campo de conhecimentos particular, mas será gradualmente ampliada em outros
domínios, fecundando o primeiro. Esse procedimento exige do pesquisador não apenas
um aprofundamento de seu campo de investigação, mas também um conhecimento dos
campos conexos. A passagem do caso particular ao caso geral, tanto definido sob a
relação.de métodos comparativos, ou em função de um conhecimento dos contextos,
requer que os dados colhidos' sejam contextualizados no interior de um conjunto
teórico mais amplo. A questão da interpretação dos campos disciplinares constitui uma
dimensão essencial em uma reflexão sobre a pesquisa qualitativa.
Em última análise, a revisão bibliográfica desempenha, na análise qualitativa, um
papel, ao mesmo tempo, estratégico e teórico.
A teoria produzida
Geralmente, o objetivo da análise dos dados é produzir uma teoria. Contudo,
nem todas as pesquisas tem suficiente envergadura para produzir uma teoria; além
disso, a maioria se contenta em propor conceitos que, diga-se de passagem, confirmam
o valor de um trabalho teórico. Desse ponto de vista, a análise qualitativa pode se
articular em torno de conceitos já definidos na literatura científica e que o pesquisador
considera para as necessidades de sua pesquisa. Contudo, a maior parte do tempo, o
pesquisador qualitativo formula novos conceitos, ou atribui um sentido novo aos
antigos, ou toma conceitos de seus informantes, inclusive em linguagem corrente.
Como um dos traços característicos da pesquisa qualitativa consiste em vincular-se à
interpretação que os atores sociais fazem dos fenômenos que se inscrevem em seu
meio, aspecto particularmente critico para a antropologia cultural, decorrem daí
resultados em que os conceitos específicos dos sujeitos da pesquisa se combinam aos
do pesquisador. No entanto, nem todos esses conceitos apresentam o mesmo grau de
abstração, do mesmo modo que eles não aparecem na análise, no mesmo momento. A
esse respeito, Geertz retoma uma definição proposta pelo psicanalista Heinz Kohut,
que distingue entre os conceitos extraídos da experiência imediata (experience-near
concepts), e aqueles que estão mais distantes dela (experience-distance concepts),
Um conceito extraído da experiência é, grosso modo, um conceito que um
indivíduo - um paciente, um sujeito, ou, no caso da pesquisa, informante -
utiliza, ele mesmo, espontânea e naturalmente, para definir o que ele ou seus
pares veem, sentem, pensam, imaginam, etc.; um conceito que ele pode
compreender rapidamente, quando outros o utilizam. Um conceito distante da
experiência é um conceito que os diferentes especialistas - um psicanalista, um
pesquisador, um etnógrafo, ou mesmo um padre, ou um ideólogo - empregam
num sentido do científico, filosófico, ou prático (GEERTZ, 1983: 57).
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Esses dois tipos de conceitos representam, de certa forma, os dois polos da
compreensão. Num caso, o conceito é de tal modo imbricado na vida do informante e
em sua situação particular, que ele é, por vezes, incompreensível fora de seu texto Na
outra extremidade, o conceito bastante geral e se aplica a tantas situações diferentes, que
ele não pode explicar convenientemente a situação concreta pesquisada. Geertz descreve
bem esse dilema: “O confinamento aos conceitos extraídos da experiência deixa o
pesquisador imerso no imediato e afundado no cotidiano. O conceito distante da
experiência deixa-o enredado nas abstrações sufocado no jargão” (GEERTZ, 1983: 57),
A tarefa do pesquisador qualitativo consiste assim, em interpretar os conceitos
provenientes do campo de pesquisa, para dar-lhes uma forma que se inscreve, ela
própria, na tradição científica. Este paciente trabalho de construção passa pelo
estabelecimento da relação entre o detalhe cotidiano, e mesmo banal, e a estrutura
global que lhe confere um sentido.
Entre esses dois polos se situa o conceito operatório (sensitizing concept),
proposto por Blumer (1954). Trata-se aqui de uma espécie de categoria provisória,
indicando em qual direção olhar, sem fixar definitivamente o real. Também denominado
“conceito local” (GLASER & STRAUSS, 1967: 45), ele possibilita ao pesquisador
formar categorias provisórias, durante a coleta dos dados. Situado entre o senso comum
e o trabalho científico, esse conceito permite classificar os dados e torná-los inteligíveis.
Todavia, é preciso evitar fazer um mau uso desse género .de conceito, conforme Blumer
o indicava cautelosamente:
O maior defeito no emprego desse conceito operatório, e também o mais
difundido, é de considerá-lo como adquirido, e de se contentar com o elemento de
plausibilidade que ele apresenta. Nessas circunstâncias, esse conceito não é mais
do que um vago estereótipo, tornando-se meramente um meio para ordenar ou
organizar os dados empíricos (BLUMER, 1954: 9).
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Para concluir essa parte sobre a análise dos dados e a. teoria produzida,
digamos que a pesquisa qualitativa ficou muito mais próxima da teoria de alcance
restrito. Primeiramente, como o havíamos visto, o pesquisador se refere a esse tipo
de teoria para esclarecer o seu problema de pesquisa: de um lado, ela orienta o
terna que o pesquisador escolheu dentro de uma problemática que delimitará as
fronteiras do objeto; e, de outro lado, ela confere à definição de objeto uma filiação
disciplinar ou teórica, permitindo que o pesquisador exponha seus preconceitos
quanto ao seu objeto (MARSHALL & ROSSMAN, 1989: 33). No fim, a teoria
produzida resulta da confrontação dos dados empíricos com uma diversidade de
campos teóricos. Esta teoria propõe, então, categorias analíticas e um esquema
explicativo das inter-relações dos fatos observados, além de permitir conceituar
novamente o campo de investigação, deslocando as fronteiras do objeto.
O relatório
A produção do conhecimento passa pela redação de um texto, que todos
aqueles que se interessam pela problemática explorada poderão consultar. Essa
etapa da transformação do conhecido para alguns (os pesquisadores) em conhecido
para todos tem também uma importância decisiva. Esse momento da preparação do
relatório de pesquisa é, atualmente, objeto de vivos debates nas disciplinas
tradicionalmente mais inclinadas a adotar uma metodologia qualitativa, em
particular a antropologia.
A fim de proteger-se da possível reprovação por subversão da verdade,
graças ao trabalho de reconstrução, os pesquisadores usualmente adotam uma
estratégia de transparência na redação do relatório, tal como a descrevem Marshall
e Rossman (1989: 148):
a coleta dos dados e os métodos empregados são explicitados;
os dados são utilizados para documentar as construções teóricas;
os resultados negativos são expostos e levados em consideração;
os vieses são examinados, incluindo os interesses pessoais, profissionais,
políticos, bem como os vieses teóricos e as suposições;
as estratégias de coleta dos dados e de análise são reveladas;
as decisões tornadas no campo, e que influíram nas estratégias de
pesquisa ou no objeto de pesquisa, são documentadas;
as hipóteses contrárias são apresentadas e analisadas'
o caráter confidencial das informações é preservado;
a sinceridade dos participantes e estabelecida;
a significação teórica e a generalização dos resultados são explicitadas.
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O relatório deve permitir que outros pesquisadores retomem a pesquisa, de
modo a detectar suas falhas, ou reconsiderar os resultados obtidos; além de dever
possibilitar uma reconstrução do objeto pelo leitor, conforme sua leitura.
Paralelamente, o pesquisador aposta que sua argumentação convencerá o leitor.
Para Soulet (1987a: 44), “a racionalização do processo de produção da pesquisa
estrutura o documento, a ponto de tornar a maioria das partes enumeradas
inevitável”. Introdução e conclusão são justamente os momentos mais importantes
dessa racionalização do processo de produção da pesquisa. Se, como o vimos, a
construção do objeto se faz progressivamente, as convenções do texto, por outro
lado, impõem ao pesquisador apresentar, desde o início, um objeto já construído,
sobreposto de escolhas teóricas e metodológicas, que foram feitas no decorrer da
pesquisa, sem terem sido previstas.
A introdução propõe uma lógica reconstituída da pesquisa e requer, por
vezes, longos desenvolvimentos que, de certa forma, dão o tom e a justificativa da
pesquisa (SOULET, 1987a: 44). Do mesmo modo, a conclusão, assim como as
seções sobre a metodologia empregada, o levantamento bibliográfico, a formulação
de postulados e a análise dos dados, seguida de uma interpretação dos resultados,
encerram momentos constitutivos de urna pesquisa qualitativa, dissociando-os
conforme modalidades e uma lógica convencionais. A cronologia do processo
subvertida por uma lógica de formulação, cujo objetivo seria expor a problemática
pesquisada. A preocupação com a clareza e a objetividade domina, então, a
formulação, separada da abundância do real e das contradições percebidas, ou
reais, do campo de pesquisa.
Essa prática de redação da pesquisa foi, entretanto, questionada: para alguns,
o referido relatório não da realmente conta do verdadeiro desenvolvimento da
pesquisa, dos problemas encontrados, do papel do pesquisador e de suas emoções e
hesitações, da prática de seu oficio, que são muitas das formas de entrada na
análise e no texto. Esse tipo de relatório oculta o trabalho de criação e reconstrução
da realidade. A estratégia de transparência na formulação dos resultados e também
do desenvolvimento da pesquisa eliminaria as zonas escuras, em que se ocultam, ao
mesmo tempo, o mito, a ideologia, o poder e o desejo (do pesquisador, ou do
leitor). Se a pesquisa for realmente baseada no cotidiano e na experiência das
relações sociais, o objeto de pesquisa da abordagem qualitativa jamais será neutro.
A explicitação desse circuito das interpretações é fundamental para o projeto
qualitativo. Expor as práticas sociais segundo uma linguagem ou uma retórica que
pressupõe que se possa descrever objetivamente a realidade de um grupo social é,
para Barthes, “dissimular uma realidade, que, mesmo sendo aquela na qual se vive,
não o é menos historicamente determinada” (BARTHES, 1959: 11), É fazer crer
que a palavra se cola à coisa, e que o produto formulado se constitui como real.
Esse realismo dominante nas ciências sociais (mainstream realism, segundo a
denominação de Rabinow [1986]), nega a intervenção do autor no texto; a
realidade dada e a conclusão do relatório de pesquisa dá um desfecho que encerra a
aventura
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da pesquisa. Esse realismo dominante foi novamente questionado, na pesquisa
qualitativa, pela antropologia certamente mais tocada pelos acasos da linguagem,
em virtude do desenraizamento que ela se impõe, mas também pelo feminismo
(particularmente a obra de LAURENT1S, 1987), pela crítica pôs-estruturalista e
pós-moderna, Há alguns anos, a pesquisa de tipo etnográfica, principalmente na
antropologia, vem tendendo a abolir as fronteiras entre produção científica e
produção artística. O etnólogo se torna autor, e não fotógrafo:
Num paradigma discursivo, mais do que visual, as metáforas dominantes na
etnografia se distanciam do olho que observa e se deslocam para a expressão
do gesto e da palavra. A voz do redator domina e situa a análise e o objetivo;
renuncia-se ao distanciamento crítico (CLIFFQRD, 1986: 12).
As, posições estão, portanto, definidas. Cabe também observar que a maioria
dos relatórios; na abordagem qualitativa, conforma-se ao modelo convencional
descrito precedentemente, com tudo o que isso comporta de reformulação a
posteriori do objeto de pesquisa, e, portanto, de reconstrução. No entento, o debate
está longe de estar encerrado.
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A especificidade do delineamento de pesquisa qualitativa
A pesquisa qualitativa teria uma forma própria de elaborar um delineamento
de pesquisa? Eis que voltamos à questão do início, à qual é preciso agora responder
Digamos que o delineamento de pesquisa qualitativa se articula em torno de
axiomas, postulados, e de uma prática, que fazem com que a pesquisa qualitativa
possa pretender ocupar um lugar que lhe é próprio, bem como produzir resultados
que somente ela consegue produzir. Até estão alguns elementos que podem ser
apresentados como sendo especificidades da pesquisa qualitativa, eles foram exa-
minados ao longo de todo o texto, mas nós os retomamos, aqui, para resumir nosso
ponto de vista.
A natureza dos dados
Um dos aspectos da pesquisa qualitativa consiste em analisar os dados qualita-
tivos. Estes dados se apresentam como resistentes à conformação estatística. São os
dados da experiência, as representações, as definições da situação, as opiniões, as
palavras, o sentido da ação e dos fenômenos. Ainda que eles escapem à
padronização estabelecida, e ainda assim importante que as ciências sociais possam
analisá-los, já que eles descrevem uma grande parte da vida social,negligenciá-los é
privar-se de um conhecimento essencial.
O contato com o campo
Uma outra característica da pesquisa qualitativa é o contato com o campo.
Essa renovação tem sua origem na insatisfação experimentada por muitos pes-
quisadores frente aos limites de uma ciência social baseando-se exclusivamente nos
métodos experimentais e adotando a epistemologia correspondente como base de
conhecimento do real. O histórico da evolução da abordagem qualitativa
(LAPERRIÈRE, 1982; PIRES, 1982; KURTZ, 1984: HAMMERSLEY, 1989) nos
ensina que a antropologia já havia explicitado os métodos de observação de campo;
além disso, a Escola de Chicago, dos anos 1920, havia igualmente estabelecido os
princípios de uma abordagem que privilegiava o contato direto com os grupos
sociais que o sociólogo se dispunha a pesquisar. A corrente contemporânea da
pesquisa qualitativa reata com essa posição, concedendo maior espaço ao campo de
pesquisa, aos autores, aos movimentos sociais. Essa articulação pesquisador-meio-
praticantes concilia, geralmente, a prática dos pesquisadores com o que ela comporta
de contradições, e de disputas de poder ou de influência. No entanto, o
reconhecimento dos cidadãos como fonte de conhecimentos e depositários de um
poder tem repercussões no desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa.
A bem dizer, apenas o contato com o campo não basta para caracterizar a
pesquisa qualitativa. Efetivamente; muitas pesquisas empíricas se valem desse
procedimento.
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De sua parte, a pesquisa qualitativa enfatiza o campo, não apenas como reservatório
de dados, mas também como uma fonte de novas questões. O pesquisador
qualitativo não vai a campo somente para encontrar respostas para suas perguntas,
mas também para descobrir questões, surpreendentes sob alguns aspectos, mas,
geralmente, mais pertinentes e mais,adequadas do que aquelas que ele se colocava
no início. Além disso, a própria logística da abordagem qualitativa (campo de
pesquisa, observação participante, entrevistas não dirigidas, relatos de vida) obriga o
pesquisador a um contato direto com o vivido e as representações das pessoas que
ele pesquisa.
O caráter repetitivo do processo de pesquisa qualitativa
A flexibilidade das regras concernentes à realização do projeto é uma das
particularidades da pesquisa qualitativa. Enquanto a abordagem hipotético-dedutiva
coloca como primordial a definição do objeto de pesquisa, e o delineamento, se
constitui como um instrumental técnico para delimitá-lo, a pesquisa qualitativa
apresenta um caráter repetitivo e retroativo: nele se encontra a simultaneidade da
coleta dos dados, da analise (codificação e categorização, conceituação) e da elabo-
ração do problema de pesquisa, que alguns denominaram como modelo de adapta-
ção continua. Essa retroação não é a característica enraizada da pesquisa qualitativa
e a observação seguinte descreve bem a experiência usual dos pesquisadores:
“Segundo a experiência dos especialistas em ciências sociais, estamos raramente, ou
nunca, diante de uma série de procedimentos automaticamente consecutivos, no
decorrer dos quais uma etapa da pesquisa deveria estar inteiramente terminada antes
que a seguinte se iniciasse” (SELLTIZ; WRIGHTSMAN; COOK, 1977:13) No
entanto, a particularidade da pesquisa qualitativa é a de que ela se liga a esse caráter
retroativo e repetitivo do processo de pesquisa e o inclui em sua metodologia.
Para empregar uma analogia, a pesquisa tradicional se assemelharia à música
europeia, em que o compositor apresenta um tema sobre o qual ele tece, ao inventar
variações melódicas. A pesquisa qualitativa se compararia preferencialmente ao
jazz, em que o músico, a partir de uma linha melódica comportando um conjunto de
acordes determinados, lança-se numa improvisação trazendo seu toque pessoal.
Certamente, o músico não pode se permitir tudo, pois ele permanece, de qualquer
modo, limitado pelos acordes que apoiam seu tema, mas ele dispõe, entretanto, de
uma grande margem de manobra. O delineamento de pesquisa tanto, a parte escrita
da pesquisa, sabre a qual o pesquisador qualitativo se baseará, a semelhança do
músico de jazz, que se infunde dos acordes do tema. No entanto, paralelamente,
haverá espaço para acomodações e improvisação.
A revisão bibliográfica
Na pesquisa qualitativa, a revisão bibliográfica não se limita à etapa inicial,
mas desempenha um papel importante ao.longo de toda a pesquisa. O pesquisador
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continuara suas leituras, em função do movimento de seu objeto, e explorará este ou
aquele caminho, para, ao mesmo tempo, delimitar categorias provisórias de e
atribuir-se pistas de interpretação. A definição progressiva do objeto de pesquisa,
bem como a simultaneidade da coleta dos dados e da análise, levam o pesquisador
qualitativo a redigir, usualmente, a problemática de sua pesquisa no final! Assim
sendo, a revisão bibliográfica evolui ao longo de toda a pesquisa.
Para o pesquisador qualitativo, a revisão bibliográfica permanece sendo um
instrumento ao qual ele não pretende se subordinar: sem negligenciá-lo, nem ignorar
suas vantagens, o pesquisador qualitativo recorre a ele para construir seu objeto e
elucidar a análise .dos dados, tentando manter um equilíbrio entre o trabalho
empírico e o trabalho teórico.
A construção progressiva do objeto de pesquisa
O objeto de pesquisa se elabora a medida que a coleta dos dados e a análise se
realizam. Na pesquisa qualitativa, a construção do objeto de pesquisa se faz pro-
gressivamente, o pesquisador focalizando sua atenção no objeto e delimitando gra-
dualmente os contornos de seu problema. Isso porque o pesquisador qualitativo
tenderá a construir seu objeto em contato com o campo e com os dados que ele co-
letará. De modo mais geral, o pesquisador se colocará, primeiramente, questões
gerais que ele transformará em objeto mais específico, à medida que ele avançar em
seus trabalhos. O processo da coleta dos dados e da análise obriga o pesquisador a
vasculhar sistematicamente o campo de investigação para construir seu objeto. Esse
movimento de vai e vem ritma a cronologia do ato de pesquisa e constitui uma das
principais características da pesquisa qualitativa.
Os postulados
Numa abordagem hipotético-dedutiva, a ênfase recai sobre a necessidade de
formular uma hipótese que será preciso testar. O objeto e o problema de pesquisa
são, portanto, elaborados desde o início, a partir de um corpus preexistente de
pesquisas que se deve examinar, para aí encontrar lacunas. Para empregar uma
metáfora, a construção do objeto de pesquisa é, assim, vista como uma pedra que,
colocada em bom lugar, fortificará o delineamento. Ocorre o inverso para a pesquisa
qualitativa: em primeiro lugar, as hipóteses são geralmente substituídas por
postulados indicando mais uma tendência do que uma relação de causa e efeito; em
segundo lugar, os postulados são abertos, menos predeterminados, e podem surgir a
qualquer momento da pesquisa, os mais interessantes aparecendo, aliás, durante o
processo.
Conclusão
A proximidade entre os atores sociais e o pesquisador, na pesquisa
qualitativa, acarretou a possibilidade de considerar estes mesmos atores como
objetos definidos
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por um conjunto de propriedades.que o pesquisador pode fazer variar a vontade.
Ao buscar descrever o “jogo da vida real” (ERICKSON, 1986: 163), sob uma
perspectiva holística e interpretativa, o pesquisador qualitativo busca o real em
função de uma problemática relacional que se insere em um contexto determinado.
Segundo Poupart, “nesse tipo de pesquisa, o campo de estudo não é pré-
estruturado, nem operacionalizado de antemão. O pesquisador deve se render às
condições particulares do campo e estar atento às dimensões que possam se
revelar pertinentes” (POUPART, 1981: 46).
Contudo, a pesquisa qualitativa não se constrói unicamente a partir do que
é dado, como o pretende um empirismo radical: autores (SILVERMAN, 1985;
SOLUET, 1987a; GUBRIUM & SILVERMAN, 1989) mostraram que a
construção do objeto era, de fato, uma escolha política. Essa dimensão política da
pesquisa, qualitativa ou quantitativa coloca a questão do papel do pesquisador no
mundo social e reconsidera a distinção fato-valor, ciência-ideologia, teoria-prática.
Partindo das análises de Foucault sobre as relações entre o saber e o poder;
Gubrium e Silverman (1989) afirmam que toda pesquisa e, antes de tudo, uma
prática discursiva que baseia poder e saber em locais apropriados, nos quais as
disciplinas (científicas) se confundem com a disciplina (moral). A construção do
objeto não recai sobre uma realidade do mundo social problematizado por seus
atores (seja qual for a posição que eles ocupem), nem sobre uma intenção
individual do pesquisador, ou de um grupo de pesquisadores, mas sim, sobre um
conjunto de práticas discursivas, que, “ainda que não sejam nem verdadeiras, nem
falsas, em si mesmas, produzem um efeito de verdade” (p. 8). Essas problemáticas
são sustentadas, mais especialmente, por dois ramos da pesquisa nas ciências
sociais, que adotam mais frequentemente (porém nem sempre) uma abordagem
qualitativa: a pesquisa-ação e a pesquisa feminista.
A abordagem qualitativa nas ciências sociais compõe seus objetos num
nível local, por uma espécie de bricolagem criadora, segundo a expressão de Lévi-
Strauss. O objeto da pesquisa é construído tanto a partir dos dados “colhidos,
explorados, traduzidos e reconstituídos” (MORVAN, 1989: 95), que o pesquisador
trata por meio de um instrumento metodológico e teórico, quanto a partir de
campos disciplinares que se constituem sociologicamente (o reconhecimento das
disciplinas e questão de poder), através de uma corporação de ofício em
negociação com os pares, com o mundo social ao qual a pesquisa se refere, e com
as instituições que possibilitam a sua prática. Desde então, os enfoques de uma
reflexão sobre a preparação do delineamento de pesquisa qualitativa não passam
mais unicamente pelo polo metodológico, mas também por um polo político, que
define a das escolhas do objeto e das técnicas, e que avalia as repercussões que
tais escolhas determinam sobre todos os atores da pesquisa.
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