Uma Porta Fechada Que Nos Deixa Imaginar PDF
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Pedro Costa
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O problema veio depois, porque depois desse primeiro
filme, depois de A saída dos operários da fábica Lumière (La sortie des
usines Lumière, 1895), realizado pelos Lumière, houve um segundo
filme, novamente trabalhadores deixando a fábrica, realizado pelos
mesmos irmãos Lumière. É aqui que as coisas se degeneram, saem
do controle, tornam-se complicadas, porque os Lumière não ficaram
satisfeitos com a forma como os trabalhadores saíram de sua fábrica
(eram donos da fábrica). Disseram aos trabalhadores: “Tentem agir
de uma maneira mais natural”. Eles dirigiram os trabalhadores. Assim,
perdeu-se o primeiro gesto, esse primeiro ato de amor – era, então,
um ato de amor, mas também de censura –, que tinha a força de um
primeiro olhar. Então, eles dirigiram os trabalhadores, disseram:
“Você, à esquerda; você, à direita... você, você pode sorrir levemente, e
você também... você, siga com sua mulher até ali...” Era a mise-en-scène.
A ficção nasceu quando um senhor deu ordens aos seus
empregados, a um trabalhador. É evidente que o primeiro livro de
regras do cinema foi um roteiro de produção – um roteiro é sempre
um livro de leis, de regras. No roteiro de comédias eram apontados
quanto se custava uma atriz para representar uma jovem, um ator para
representar um amante, ou um pai que somente bateria na cabeça de
seu filho. Esse foi o primeiro roteiro. Ao mesmo tempo, ou pouco
depois, filmes foram também realizados sem roteiro, e estranhamente
esses filmes ainda existem nos museus de cinema. Estou falando dos
filmes eróticos. É como se os primeiros filmes de ficção (tal como
entendemos um filme de ficção) com um roteiro, uma história de amor
e personagens que falam, fossem comédias românticas. Podemos,
ainda, dizer que os primeiros filmes sem roteiro, consequentemente
o documentário, são talvez filmes amadores, vagamente secretos,
pornográficos.
No começo do século, em 1900, estavam, de um lado, os
primeiros diretores que escreveram ficção e os roteiros diziam o
quanto custavam as coisas – era realmente econômica a história de
amor, ou uma comédia romântica, ou um melodrama. Do outro lado,
havia os diretores que filmavam sem roteiro, que também filmaram
histórias de amor, quero dizer, o gesto de amor num filme erótico
ou pornográfico, porém sem roteiro. Havia já, então, pessoas que
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mostravam coisas, ficção; mostravam uma história de amor, uma
garota, um pai, uma mãe, um final feliz. Havia já, por outro lado,
pessoas que também mostravam coisas, o gesto de amor, alguém
transando. O que interessa aqui é que documentário e ficção no cinema
nasceram ao mesmo tempo, com a mesma ideia de amor. Exceto que,
por um lado, começou como uma espécie de economia, que depois
se tornou uma indústria, e então uma necessidade; tornou-se uma lei
de mercado. Mesmo que esse seja apenas um dos aspectos do cinema
nos primórdios de Hollywood, ele continua presente ainda hoje.
Havia, ainda, filmes sem roteiro, sem um mercado aparente, sem uma
indústria, filmes amadores, que eram realizados em casa e que também
eram, sobretudo, filmes de amor, porque eram filmes eróticos, filmes
familiares, que, no entanto, continuaram a ser somente o gesto de se
fazer um filme pelo filme. Era, então, necessário que houvesse pessoas
que pudessem ligar essas duas coisas.
No começo do século, houve pessoas que foram bem-
sucedidas em incidir alguma ficção no documentário e um pouco de
documentário na ficção e, consequentemente, um pouco de dinheiro
na esfera privada e um pouco da esfera privada no dinheiro. Podemos
dizer que os primeiros diretores foram aqueles que sintetizaram os
filmes de ficção e documentário, ou seja, que criaram uma síntese entre
o quase privado – o filme documentário –, realizado em sua própria
esquina, numa aldeia, em casa, e o filme feito em público, em que se
mostrava tudo. Essa síntese entre o público e o privado aconteceu
com Griffith, que realizou um filme de guerra que era também um
filme pornográfico. Griffith foi bem-sucedido em combinar sexo e
terror num mesmo plano. Isso aconteceu em O nascimento de uma
nação (The birth of a nation, 1915) e em Intolerância (Intolerance,
1916). Esses filmes transmitem uma forte sensação de que as paixões
e os terrores dos homens levam a duas coisas: amor e guerra.
Griffith percebeu que o cinema poderia mostrar coisas
que todos conhecem e que querem reconhecer e, ao mesmo tempo,
não revelar certas coisas que são de extrema violência, que devem
permanecer veladas. Griffith foi o primeiro a compreender e a
trabalhar com a ideia de que o cinema é uma arte que alcança seu
paroxismo com a ideia da falta, com a ideia do cinema como uma arte
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da ausência. Para dar um exemplo simples: vocês assistiram a um filme
meu chamado Ossos (1997). O que não está em Ossos, entre muitas
outras coisas, são as drogas. Há outra ausência no filme, e essa ausência
é você. No entanto, Ossos termina exatamente como o filme Street of
shame (Akasen chitai, 1956), de Mizoguchi: há uma jovem que cerra a
porta e lhe contempla, e a porta é fechada sobre você. Isso quer dizer
que você não pode entrar no filme. A partir desse ponto lhe é vedada
a entrada. Ou, de outro modo, é melhor que você não entre no filme,
nesse mundo. Mizoguchi fez isso em respeito ao Japão, em relação à
prostituição (à prostituição universal, não especificamente japonesa),
porém, ele foi mais longe na significação dessa miséria extrema: como
um homem pode se impor sobre outro, ou como um homem pode se
impor sobre uma mulher, ou, no fundo, o que podemos infligir sobre
nós mesmos. Penso que o que Mizoguchi quis dizer nessa sequência
final foi: “A partir daqui este filme não é mais possível, vai se tornar
tão insuportável que talvez não haja mesmo um filme”. Depois de
fechada a porta, um filme não é mais possível. É terrível, então, não
entre. É uma porta fechada para você. Ossos termina com uma porta
fechada. Eu não sabia enquanto filmava essa sequência, que pensava
na jovem que fecha a porta. Era um final, mas eu não havia pensado
em Mizoguchi. Eu havia assistido a todos os filmes dele, mas naquele
momento eu não sabia disso. Após isso o filme me veio – algo que
Mizoguchi não poderia fazer, creio.
Depois disso, eu não sei se Ossos havia se tornado um
documentário ou se era ainda ficção, no entanto, sei que há uma porta
fechada que nos deixa a pensar. Como vocês viram, Ossos é um filme
que vem de coisas muito familiares, coisas que você pode facilmente
reconhecer. Vem de Chaplin, dos melodramas do princípio do
cinema: um garoto com uma criança que não tem o que comer, a
rua, carros velozes, pão, uma prostituta, uma cozinha, tudo isso que
era o cinema no seu princípio. Mesmo assim, tende fortemente ao
documentário, porque feito com não atores, pessoas que estão muito
próximas daquilo que representam. O garoto é realmente pobre; a
dona de casa, uma dona de casa; a vizinhança é uma vizinhança real.
Não estamos num estúdio, porém, mesmo com o desejo de ser algo
próximo ao documentário, é, contudo, a ficção o que sustenta, o que o
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salva, enfim. Ficção é sempre uma porta que queremos abrir ou não –
não é um roteiro. Devemos entender que uma porta serve a entradas
e saídas.
Acredito que hoje, no cinema, quando uma porta se abre, é
sempre algo de falso que se apresenta, pois diz ao espectador: “entre
neste filme e você ficará bem, você viverá uma boa experiência”, mas
ao final o que se vê nesse gênero de filme não é mais do que você
mesmo, sua projeção. Você não vê o filme, você vê a si mesmo. Ficção
no cinema é exatamente isto: você ver a si mesmo numa tela. Você
não vê nada mais, não vê o filme, não vê o trabalho, não vê pessoas que
fazem coisas, você vê a si mesmo, e toda Hollywood se baseia nisso.
É muito raro hoje que um espectador assista a um bom filme,
está sempre a ver a si mesmo, a ver o que deseja ver. Ele realmente
assiste a um filme quando este não permite que ele entre, quando
há uma porta que lhe diz: “Não entre”. O espectador só assiste a um
filme se algo na tela resiste a ele. Se ele pode reconhecer tudo, vai se
projetar no filme, então não poderá mais ver as coisas. Se ele assiste
a uma história de amor, verá sua própria história de amor. Não sou
o único a dizer que é muito difícil ver um filme, mas quando digo
“ver” é realmente ver. E isso não é uma piada, pois você pensa que vê
filmes, mas você não vê filmes, você vê a si mesmo. Parece estranho,
mas posso assegurar que é exatamente isso o que acontece.
Ver um filme significa não chorar quando chora um
personagem. Se não entendemos isso, então não entendemos nada.
Por isso falei sobre portas que se fecham. A meu ver, há alguns
filmes que são como portas, ainda que neles não haja portas, filmes
que se assemelham a portas que não permitem nossa entrada como
protagonistas. Mantemo-nos à margem. Vemos um filme e somos
alguma coisa diversa dele. Há, então, duas entidades distintas.
Alguns filmes fazem essa separação, como em Ozu, Mizoguchi ou
Naruse, e muitos outros, mas faço referência aqui aos japoneses. Essa
porta é absolutamente necessária. Não é uma peça de propriedade
privada, isto é, não é fechada de uma maneira autoritária. Podemos
abri-la ou fechá-la, a escolha é nossa. No cinema, sempre a escolha
é do espectador. Se você decide assistir ao Último Samurai (The last
Samurai, Edward Zwick, 2003), vai assistir ao Último Samurai e sabe
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que isso será penoso; você é japonês, e mesmo assim vai assistir ao
filme. Tenho certeza que irá. É como junk-food, que faz com que você
a deseje, e você come, mesmo sabendo que lhe fará mal. Isso é o que
chamo de filmes com portas abertas. Assim é o mercado. A porta
que leva ao McDonald’s está sempre aberta. Então, um filme como
Late Spring (Banshun, Yasujiro Ozu, 1949) ou An Autumm afternoon
(Sanma no aji, Yasujiro Ozu,1962) não estão completamente abertos.
De forma semelhante, Ossos é um filme que cerra levemente a porta.
Um filme que vela certas coisas. Ele lhe diz que você pode sentir dor,
mas não lhe diz tudo.
Não sei se vocês já ouviram dizer, mas há uma palavra de
exaltação, um elogio de Mizoguchi a Ozu que é muito bonito e que
diz respeito a isso. Um dia, um jornalista perguntou a Mizoguchi se
ele gostava dos filmes de Ozu, ao que ele respondeu: “Claro”. Então
o jornalista pergunta: “Por quê?”. E ele responde: “Porque acredito
que o que ele faz é muito mais difícil e misterioso do que o que faço”.
Esse é um elogio enorme, pois vocês sabem melhor do que eu que
Mizoguchi é considerado um diretor poético e misterioso, e Ozu,
muito colado ao chão, um diretor muito realista. É Mizoguchi quem
diz: “O que esse senhor faz com essas portas é muito mais difícil do
que o que estou fazendo”. Mais uma vez, as portas! Isso é lindo, porque
Mizoguchi é o diretor dos mistérios, dos segredos, enquanto Ozu é o
diretor das portas, das janelas, das entradas e saídas, do casamento,
de coisas muito primordiais. É como se Mizoguchi dissesse: “Eu, que
invento o mistério com toda essa névoa, não sou nada próximo a um
homem que filma portas e ruas laterais”. Isso é muito mais difícil e
misterioso. Essa é a afirmação de um gênio. Esse é, para mim, o maior
elogio que um diretor pode fazer a outro e a mais bonita definição de
documentário, de ficção, de realismo e imaginação.
Em 11 de março de 2004, terroristas bombardearam trens
subúrbios e uma estação em Madri, matando 190 pessoas. Vou
resumir isso, é muito simples. Espero que vocês concordem comigo.
Mizoguchi, Ozu, Griffith e Chaplin são os maiores diretores de
documentário e, consequentemente, os maiores diretores da vida, da
realidade. São diretores que velam, encobrem coisas e que fecham as
portas. E vocês podem abri-las, por vezes. De novo, abrir as portas
desse tipo de filme é difícil, perigoso.
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Algumas vezes, quando pensamos que mostraremos tudo,
que faremos um documentário para mostrar tudo, na verdade não
mostramos nada, não vemos nada, estamos dispersos somente. É
absolutamente necessário que estejamos à margem, não na tela.
Nunca chore ou sofra junto ao personagem que sofre na tela, nunca.
Quando fazemos isso é exato o mesmo que fazemos quando vamos
ao McDonald’s. Vocês sabem disso muito bem, para todos aqueles,
aqui, que já foram infiéis aos seus parceiros, que traíram alguém, que
viveram um problema emocional, naquele momento você sabe que
está sendo estúpido, covarde, ruim. De minha parte, choro e sou
sempre mais profundamente afetado e movido pelo amor de um casal
no século XV ou XVI do Japão – uma coisa completamente abstrata
para mim. Sou mais afetado por isso do que por um ataque terrorista
apresentado na televisão, como o ataque de ontem em Madri.
Por vezes, uma única palavra pode matar. Não sei se pode
salvar, mas uma única palavra pode fazer algum bem quando bem
pronunciada, bem acabada, bem pensada, e dita no momento certo.
Essa palavra está nos filmes de Mizoguchi, Ozu, John Ford. Essa
palavra não está nos documentários televisivos ou nas reportagens.
Um único gesto ou olhar de um ator pode dizer muito mais sobre
sofrimento, miséria ou alegria do que um documentário que
mostra tudo.
Os diretores de verdade não distinguem entre documentário
e ficção. Nunca em minha vida me coloquei as questões: “Estou
fazendo um documentário ou uma ficção? Quais as formas para se
realizar um ou outro?”. Essas definições não existem. Filmamos a vida,
e quanto mais fecho portas, quanto mais veto aos meus espectadores
o prazer de se verem na tela – pois que não desejo que isso aconteça –,
mais terei um espectador que se posiciona contra mim, talvez mesmo
contra o filme, mas ao menos estará, assim espero, desconfortável e
em guerra. Ou seja, esse espectador estará situado na dificuldade do
mundo. Não é bom que alguém se sinta confortável o tempo todo.
Isso acontece, para mim em, filmes, toda a história do cinema, toda
a música e, eu diria, todo o trabalho realizado pelos homens naquilo
que chamamos de arte – esse trabalho é como trens que caminham
lado a lado com a vida, mas que nunca devem cruzá-la.
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Realizar filmes é um trabalho, um tipo de função
comparável ao trabalho de se ver filmes. Assistir a um filme é tão
trabalhoso quanto realizar um. Por exemplo, é muito difícil assistir
a filmes do Ozu, realmente assisti-los na perspectiva de que são, na
verdade, documentários sobre a humanidade, sobre as paixões. Há
sempre um detalhe que é japonês, uma pequena área na terra – mas
é somente um detalhe – que é uma garrafa amarela, não uma garrafa
verde, um detalhe japonês. O que importa aqui é que se trata de um
documentário sobre o que os homens fazem a outros homens. Para
mim é um detalhe, que a Ozu ocorreu de ser japonês. Pessoalmente,
acredito que seja português... porém, quando realizamos o que
chamamos documentário, estamos imersos num pensamento
nacionalista.
Se você vai a um festival de cinema documentário, digamos
em Yamagata, há filmes do Chile, da Argentina, etc. E vamos já assistir a
um filme chileno. Não é que o problema das minas e dos trabalhadores
no Chile não seja importante, especificamente, e particular ao Chile.
No entanto, em geral são realizados de uma maneira pobre ou vistos
de uma maneira anacrônica, vistos sem aquilo que provém de um
artesão, um artista, ou um diretor – como a paciência, ou outras
qualidades da profissão. O prazer de fazer um filme está em fazer um
filme e não em mostrar um problema. A razão primeira de se fazer
um filme é o prazer de fazê-lo, o prazer do trabalho. Se não há prazer
no trabalho, não há nada. Assim, qual seria, então, a mais relevante
característica de um documentário? É perceber que a pessoa que o
realizou fez um bom trabalho, que ela desenvolveu e trabalhou algo,
esse é o primeiro ponto. Um filme é sempre um documentário sobre
sua própria realização.
Aqui, direi que todo filme dirigido por Ozu e Mizoguchi
é um filme que diz respeito, sobretudo, a artesãos, ao prazer de se
trabalhar, e esse trabalho é algo de bom, e o trabalho bem realizado
é belo. Isso diz tudo. Um trabalho bem feito é mais significativo
do que um bom tema. Por exemplo, no trabalho e no prazer que
compartilhei com outros quando Ossos foi realizado, minha função
era, primeiramente, criar um filme interessante e bem feito; e também
realizar um filme conjuntamente com pessoas que não sabiam nada
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sobre cinema. Esse desejo gerou um filme que é, espero, moralmente
e cinematograficamente interessante. Todavia, não o é porque versa
sobre a miséria ou o sofrimento, mas porque é construído de uma
maneira que acredito ser a mais justa, a mais correta.
Então, para finalizar essa história sobre documentário e
ficção – para vocês, estudantes de cinema, ou pelo menos interessados
em vocês mesmos –, nós nunca devemos nos perguntar se o trabalho
que por ora realizamos trata-se de um documentário ou uma ficção,
isso não interessa como problema. Essa é uma questão de ordem
teórica, mas não é uma questão que devemos colocar a nós mesmos.
Ao final os críticos dirão “isso é uma ficção”, porém essa diferenciação
não existe para mim, não deveria sequer existir. Acredito ser essa uma
maneira complicada de se começar uma discussão.
Depois de Ossos, realizei um filme chamado No quarto
da Vanda (2000). Todos os jornalistas, japoneses, americanos,
ingleses, perguntam-me: “Você vê esse filme mais como ficção ou
como documentário?”. Digo por vezes que essa questão aponta para
outra coisa, esconde uma outra questão, qual seja: “Isso é verdade
ou mentira?”. Não sei se isso é compreensível, mas imaginemos que
você seja próximo a Johann Sebastian Bach e que esteja vivendo um
problema romântico. Bach não se importa, absolutamente, com sua
namorada, com seus problemas, ou com sua trivial situação emocional.
Ele não se incomoda, em absoluto, com problemas privados. Podemos
dizer que Bach é como um diretor de documentário, alguém que não
quer inserir nenhum de vocês em seu trabalho e quer manter distante
deste qualquer sentimento.
Acredito que o cinema tem um grande poder de projeção
em duas direções. Há algo que sempre vai e vem, algo que deixa a
tela em sua direção e algo que vem de você em direção à tela. Essa é
uma questão ligada ao medo, que amedronta, mas que é também a
diferença entre grandes filmes e grandes diretores e aqueles que são
medíocres. Diretores medíocres tiram vantagem do medo presente na
tela. É um jogo de sombras, de projeções: o medo. Quando se apagam
as luzes, amedrontamo-nos. O mau diretor, de ficção ou documentário,
brincará com nosso medo levianamente. “Medo”, “desejo” e “projeção”,
como vocês sabem, essas três palavras são comumente utilizadas na
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psicologia e na psicanálise. Pessoalmente, acredito que um filme não
deve se transformar numa sessão de psicanálise, não deve psicologizar.
Quanto mais um filme mergulha na psicanálise, mais confusas ficam
as pessoas.
Vocês conhecem os filmes de Chaplin da época de
O vagabundo (The tramp, 1915)? Não são muitos. Pensei em exibir
um pouco de Chaplin, porque foi o primeiro que trabalhou com
tudo que descrevo aqui: documentário, ficção, medo, desejo. Chaplin
é, acima de tudo, acredito, o único diretor que foi bem-sucedido,
como diríamos acerca de Picasso. Como disse Chaplin: “Ganhei
minha vida, tornei-me rico, representando um homem pobre”. Isso
é importante, porque ele foi o único que ganhou muito dinheiro,
realmente muito, trabalhando sempre sobre o tema da falta: falta
de bens, dinheiro, comida, amor. E, quanto mais filmes fez sobre a
falta, mais dinheiro, mais comida, mais garotas jovens ganhou... Não
somente isso, mas também foi visto, compreendido e amado por todo
o mundo. Ele alcançou muito mais do que qualquer outro artista no
cinema. Qualquer um que chegue a isso deve ser cinematográfica e
moralmente o maior, no documentário, na ficção, no melodrama, no
western ou em qualquer gênero, porque fez de sua vida o oposto de
seus filmes. Ele fez tudo o que não funcionou em sua vida funcionar
nos filmes. Gostaria de ter mostrado a vocês Chaplin como exemplo
daquele que considero o maior dos esquizofrênicos. Há uma frase
famosa do poeta francês Rimbaud que diz: “O outro sou eu” ( Je est
un autre)1. Este é Chaplin: “Eu sou o outro”. Ele é grandioso, porque,
com efeito, ele é duplo, senhor e escravo, artista e público, ele é tudo
isso de uma só vez. Por essa façanha, ele levou o cinema ao máximo
que este poderia ir na direção da vida, e ao mesmo tempo na direção
daquilo que seria o sonho da vida.
Pensei em mostrar um filme de Chaplin sobre boxe, mas não
o encontramos, encontramos um outro filme que também é sublime,
O vagabundo. Gostaria que vocês o assistissem para entenderem a ideia
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do que acabamos de falar, a ideia de documentário-ficção. Então vocês
me dirão onde alguma vez viram árvores, portas, carros ou animais
como esses. Asseguro a vocês que é raro se ver uma porta que seja
uma porta, um cão que seja um cão, ou mesmo uma promissória, um
dinheiro, que seja dinheiro como mostrado nesse filme de Chaplin.
Eu lhes darei 10.000 yens se me disserem “uma vez vi uma porta mais
significativa que essa de Chaplin”. É uma aposta. Há já nesse filme,
um dos primeiros de Chaplin, uma forma de apresentar as coisas,
objetos, árvores, dinheiro, carros, uma maneira de representá-los,
uma maneira condensada, tão concentrada que hoje nos é incômodo
ver uma promissória nas mãos do vagabundo, machuca-nos ver o
carro que passa, você se aterroriza com o carro...
Este tipo de coisa que fazemos em relação ao cinema, o
que chamamos curso ou seminário, ou o que quer que se chame isso
em japonês, é um processo difícil. Frequentei uma escola de cinema
em Lisboa, onde vivo, com a idade de vocês, entre 20 e 30 anos.
Naquele tempo, eu era um pouco verde em relação ao cinema. Estava
mais envolvido com música e entrei nessa escola porque estava um
pouco perdido em relação ao que fazer da vida. Então, comecei a ver
coisas nos filmes, no cinema, que me afetaram sem que, no entanto,
eu percebesse. Eu estava numa escola de cinema e achava que havia
alguma coisa ambígua nesse tipo de seminário. É da escola e do diretor
que se espera ouvir coisas sobre mise-en-scène, montagem, direção de
atores, pois, claro, podemos aprender alguma regras, técnicas básicas
de câmera, som e montagem e a história do cinema. No entanto, tudo
aquilo que diz respeito às sensações e aos sentimentos – e aqui, com
o risco de parecer fora de moda –, gostaria de insistir no fato de que
o cinema é feito, sobretudo, de sentimentos – e, de novo, estamos
sobre um terreno perigoso, porque não sei se consigo transmitir isso
a vocês. Ou você tem isso ou pode aprendê-lo, é de certa forma uma
técnica. No fundo, ser um estudante de cinema é um trabalho muito
solitário, pois significa trabalhar sobre seus próprios sentimentos.
Para ser bom, você precisa trabalhar sobre seus próprios sentimentos.
Por exemplo, quando entrei para a escola de cinema, minha formação
era em música. Eu tocava um pouco de violão e foi no tempo em
que o rock estava se tornando agressivo. Então, quando entrei para a
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escola, já estava um pouco revoltado contra o que as pessoas viriam
a me dizer. Eu sabia muito bem que entrava na escola pronto para
dizer “não” aos professores, a ser do contra. Certo, eu aprenderia
como fazer cinematografia, como captar áudio, como usar uma mesa
de montagem, mas ninguém poderia me dizer como sentir ou como
transformar esse sentimento em cinema. Não há professor que possa
lhe ensinar como fazer isso. Por alguma razão quero dizer a vocês: “não
deem muito crédito ao que digo! Não sou um professor”. Resistir um
pouco – isso me é útil. Estava dizendo a vocês sobre meu começo na
escola de cinema, no mundo do cinema, sobre essa postura de resistir
ao mestre, ao professor, de resistir à autoridade, ao conhecimento –
isso porque acredito que um dos pilares da prática do cinema seja a
resistência, o resistir a tudo.
Não me incomodo com as metáforas – metáforas são ruins
em um filme –, mas acredito que encontramos uma boa metáfora
aqui, nesta escola. Quando o Sr. Matsumoto me disse que essa escola
foi um dia um banco, lembrei-me de um velho filme de Lubitsch
chamado Ladrão de alcova (Trouble in paradise, 1932 ). Há no filme
um momento em que o personagem vai a um banco e está tão
desconfortável, tão deslocado, que, em vez de assinar o cheque como
deveria, escreve uma carta de amor. É uma cena lindíssima, porque
nos mostra uma contradição, escrever uma carta de amor em um
banco! Então, minha metáfora é que vocês estão em uma escola de
cinema num prédio bancário, e isso é um problema...
Com base na ideia de estarmos em um banco, gostaria de falar
mais uma vez sobre Chaplin, a caminho do banco, porque tem tudo
a ver com isso. Acredito que esse filme seja uma arte que pode lutar
contra os excessos, contra a inflação, contra o excesso de dinheiro, de
imagens ou efeitos. Ao contrário, deveria ser menos, menos e menos.
Não estou a dizer sobre minimalismo, mas devemos encontrar dentro
de nós o sentimento justo, essencial, talvez indistinto, mas algo que
lhe faça voltar o olhar a você mesmo, para que você não se perca e não
se deixe capturar por aquilo que infla, porque bancos dizem respeito
à inflação.
Entendemos algumas coisas muito rapidamente. Chaplin,
por exemplo, o personagem do vagabundo. Em diversos filmes, tão
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logo o vagabundo entre em um hotel de luxo ou em um banco, é
imediatamente expulso. Vemos isso em vários filmes de Chaplin: tão
logo o personagem entra, é rejeitado, alguém o manda embora. Não
é por acaso que ele assim o faça. Isso significa que ele quer nos dizer
que o cinema pertence às ruas. O cinema nasceu nas ruas e se mantém
nelas junto àqueles que estão vulneráveis. Essa não é uma posição
militante. O cinema se mantém vivo junto às pessoas que pedem
poesia e não dinheiro. Vai se manter junto àqueles que sentem, e não
junto aos banqueiros.
Para entender o que nos diz Chaplin, pense em O vagabundo,
que é magnífico. Um vagabundo é um mendigo, um indigente, um
sem-teto a perambular pelas ruas, que é sua casa. O céu é seu teto,
e há uma estrada que percorre. O que Chaplin quer nos dizer é que
todos nós devemos manter nossos sentimentos muito aguçados, que
possuímos um vasto espectro de sensações. Se não sentimos nada, não
podemos fazer com que as técnicas de produção funcionem, porque a
técnica – montagem , cinematografia, som – está também repleta de
sentimentos. Se não colocarmos afeto na tecnologia, ela não terá uso.
Chaplin é extremamente rico em emoção e sentimentos –
do desespero à alegria, todos os sentimentos possíveis –, e é por isso
que ele pode imergir seu método de direção em tamanha emoção.
Ele é o maior ator no sentido físico. Ele é um grande dançarino, um
gênio na atuação. Todo seu corpo é brilhante. Chaplin tem duas
características que devemos observar, e para tal, decidi mostrar a
vocês duas de suas cenas. Ele inventou vários princípios e regras de
montagem, de posicionamento de câmera, técnicas que são básicas
para o cinema. E somente o foi capaz porque era rico de afetos e
sentimentos que desejava nos transmitir. Uma coisa não existe em
detrimento da outra. Um bom técnico, um bom artesão, apresenta –
chamaremos aqui de ética – uma boa posição ética.
Em O vagabundo, um dos primeiros filmes em que esse
personagem aparece, Chaplin nos apresenta quase tudo o que irá
nos mostrar ao longo de sua carreira como diretor. Ele apresenta as
mais fragilizadas, as mais desesperançadas pessoas. Ele já havia, então,
desenvolvido vários princípios de filmagem, formas de mostrar as
coisas de uma maneira muito simples, quase abstratas. Vocês irão
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perceber que há sempre uma escala de planos médios. Na tela, ele
tenta enquadrar as pessoas quase em sua totalidade, mostrando todo
o corpo. Vocês também assistiram a um trecho de A Condessa de Hong
Kong (A Countess from Hong Kong,1966), o último filme do diretor.
Vou lhes resumir o fim da vida de Chaplin, como ele terminou muito
rico, porém infeliz, por ter sido impedido muitas vezes de trabalhar,
principalmente na América.
Vocês assistiram a um de seus primeiros filmes e parte
de seu último trabalho. Gostaria de mostrar a vocês um trecho de
A Condessa de Hong Kong que é muito engraçado. É uma maneira de
mostrar como Chaplin continuava a lutar, mesmo no fim de sua vida;
continuava a lutar contra a arrogância. Ele tomou dois dos grandes
astros de seu tempo, Marlon Brando e Sophia Loren, colocou-os num
quarto sem portas, e criou um jogo de portas. Ele se manteve fiel aos
seus princípios, realizando um filme com muito pouco, com homens,
com pessoas, um casal, e uma espécie de quarto. O filme se passa
num quarto, em um barco, somente isso. A partir daí, vamos trabalhar
somente com isso. Essa é uma tarefa difícil.
A Condessa de Hong Kong pode parecer superficial, banal.
É uma brincadeira que já vimos milhares de vezes, mas na qual há
alguma coisa de vital, de essencial. Então, volto a essa história de
se resistir à morte de todas as maneiras possíveis. Mesmo que haja
somente duas ou três portas e duas grandes estrelas, Chaplin é capaz
de colocá-los em seus lugares, fazer com que atuem como idiotas,
enfim, como somos todos nós – pessoas simples e um tanto estúpidas,
que abrem e fecham portas. É isso a vida, um abrir e fechar de portas.
Isso é o que ele nos diz, e é de uma grande simplicidade. Como todos
os grandes artistas em seus últimos trabalhos, Chaplin alcança uma
certa linha pura, muito clara, muito japonesa. É comparável ao último
filme de Ozu, ou John Ford. Um traço. Esses filmes falam sobre uma
única coisa: a vida.
O último filme de Chaplin foi realizado quando ele estava
velho. De maneira similar, falamos do velho Ozu, do velho John Ford.
De uma certa maneira, o diretor precisa ser um pouco velho para
fazer cinema. Devemos ser um pouco velhos, todos nós. Vocês, de
20, 25 anos, quando vão fazer uma cena com seus atores em frente o
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Monte Fuji, devem ter 20 e 80 anos ao mesmo tempo. Ou seja, todos
os sentimentos do mundo devem atravessar seu plano.
Estou falando sobre essa linha, que todos os grande artistas
alcançam ao final de suas vidas. Finalmente, eles descartam tudo o
que é superficial, tudo o que concerne à psicologia, para chegar a algo
mais fundamental. O filósofo Gilles Deleuze tem escrito um pouco
sobre cinema e diz uma coisa muito bonita a respeito da velhice. Ele
diz que um homem velho é alguém que não necessita de nada além
de si mesmo2. Quando chegamos ao que chamamos velhice, estamos
apenas velhos. Apenas isso. De alguma maneira nos tornamos mais
atentos, pois estamos velhos. Não precisamos seduzir, não precisamos
mais dos efeitos. Ser um pouco velho, penso, é algo de necessário no
cinema. Ser somente, não brincar com a sedução, ou fazer filmes
repletos de efeitos, cheio de alusões engenhosas...
Isso é um diretor. Vocês, que estão começando a fazer
filmes, devem manter um pouco do vagabundo em vocês e também,
desde já, começar a ter um pouco da Condessa de Hong Kong. Vocês
devem carregar sempre a extrema juventude do vagabundo, que
quer se posicionar contra a sociedade e dizer que estamos nas ruas,
que temos o céu e pertencemos à humanidade; e devem, também,
começar a ter algo da Condessa de Hong Kong, um quê de muito
velho e amargo, a fim de dizer o que ele nos diz nesse filme, que a
sociedade o abandonou, que não mais se interessa por ele. Talvez isso
seja diferente aqui no Japão, porque a relação dos japoneses com a
velhice é completamente diversa. Como Deleuze coloca muito bem:
um homem velho não é somente alguém que é apenas velho, e apenas
isso, é também alguém que foi desprezado pela sociedade. Na Europa,
a sociedade não se interessa pelo velho. No Japão talvez seja diferente.
Isso é exato o que vemos em A Condessa de Hong Kong. Chaplin realiza
esse filme no período das super- produções americanas, mas estava já
à margem da sociedade. Realiza esse filme com duas portas, em seu
pequeno quarto. Ele não liga a mínima para a sociedade.
Fazemos filmes como membros de uma sociedade, embora
haja muitas pessoas que fazem filmes, ou veem filmes, nos dias de hoje
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e que imaginam que vivemos em Marte ou num planeta longínquo,
ou onde quer que seja. Mas não, vivemos numa sociedade, japonesa,
portuguesa, inglesa, mas numa sociedade, e no planeta Terra. Não é
aí, enfim, onde reside a sociedade? O que acontece nessa sociedade,
a nossa? Penso – e creio que Chaplin, John Ford, Ozu, Mizoguchi e
todos os grande diretores concordariam – que em nossa sociedade
fazem-se negócios. É isso o que acontece. Há negócios injustos, seja
no sentido de injustiça social ou no sentido de desarmonia.
Parece abstrato, mas na verdade não é. Se retomarmos a
questão do trabalho com sentimentos, diria que uma coisa que não
podemos fazer em cinema é entrar no ramo de venda de sentimentos.
O que quero dizer com isso, com negociar sentimentos? Cruamente
falando, todos os filmes que são realizados hoje na América negociam
nossos sentimentos. Diretores deveriam nos dizer: “não podemos
tirar vantagem do sentimento das pessoas”. Quer dizer, uma imagem
não é como uma nota de yen ou um dólar. A imagem é algo diverso,
que possui um valor real. Dinheiro não tem valor.
Uma imagem, um som, o olhar de um ator ou o choque entre
dois planos de uma sequência não podem ser como moeda, um ato
comercial ou como quando vamos a um café, onde oferecemos alguma
coisa e recebemos outra em troca. Se isso é cinema, desculpem-me,
isso é pequeno, medíocre. Uma imagem e um som juntos devem ser
como as coisas primeiras do mundo. Assim simples: devem ser como
uma explosão. Você ouve um som, vê uma imagem, um ator, e diz a si
mesmo: “Ah, nunca vi algo assim na vida, que coisa incomum, este é
meu mundo, minha sociedade, e eu não percebia. É tão estranho”.
Vocês, diretores que querem fazer filmes, devem trabalhar
de forma a fazer cada plano, cada imagem, cada fala de um ator e cada
som de forma que se tornem o primeiro plano que existiu, o primeiro
som que se ouviu. Isso nada tem a ver com originalidade. Na verdade
é justamente o oposto, é trabalhar com os mais antigos sentimentos,
como fez Chaplin. Ele trabalhou e trabalhou e trabalhou para nos
mostrar sentimentos como se fosse a primeira vez.
Além do mais, grandes diretores não são nunca originais.
Os mais interessantes não fazem floreios, não utilizam efeitos.
São discretos, quase anônimos, sem estilo praticamente. Eles nos
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confrontam. Pensem em John Ford: ao final de sua vida, ele era muito
pouco interessante, quase anônimo, como Chaplin ou Ozu. Isso
não tem nada a ver com ser mais esperto que outrem, porque senão
estariam no ramo de vendas de sentimentos, sendo competitivos.
Assim, chegamos à conclusão de que isso é ao mesmo tempo muito
simples e complexo, quer dizer, há coisas que as pessoas fazem umas
às outras e que posso fazer com o outro o que o outro pode fazer
comigo: o medo, o terror extremo, a tortura, o caminho ao amor
absoluto. Bondade e maldade não estão no céu ou no inferno, mas,
sim, entre os homens. E o cinema existe também para mostrar isto,
que podemos ver o que não funciona, que o mal está entre você e eu,
entre um outro alguém e eu. Ao vermos o mal na sociedade, podemos
buscar o bem. Vocês viram isso em O vagabundo. Ele é muito sensível.
Ele quer ser feliz, está buscando alguma coisa, anda para frente.
Disse que ele anda, que procura, como em uma pesquisa,
como algo quase científico. Um diretor tem também algo de cientista,
devemos ser pesquisadores do bem e do mal, porque, sendo um
pouco científicos em nossa pesquisa, chegaremos a alguma conclusão.
Podemos chegar a algo muito simples, bem material, por exemplo,
que o bem e o mal não estão no céu ou no inferno, mas entre nós. E, se
ocorre entre nós, entre os homens, pode ser captado por uma câmera
de cinema, podemos ter uma prova do mal que você me faz, ou do
bem que lhe faço. Quando fazemos isso, e o fazemos bem, podemos ir
ao céu ou descer ao inferno.
A beleza do cinema está em sua materialidade. Fazemos
matéria com os corpos, e, de certa forma, alcançamos um certo
misticismo. Os maiores filmes são os mais realistas e não realistas,
os mais naturalistas e supranaturais, os mais ateus e religiosos
simultaneamente. Divagando, brevemente: havia um velho professor
de cinema ministrando um curso de direção. Ele mostrou o filme A
Palavra (Ordet, 1955), de Dreyer, a seus alunos. Num dado momento,
alguns alunos riram durante a projeção. Ao final do filme o professor
disse: “Olhe, se vocês começarem a rir cada vez que ouvirem a palavra
‘Deus’, nunca farão um filme”.
Conto essa história porque cinema é uma profissão muito
real e séria. Por “séria”, entendam “pesada” – algumas vezes o peso
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das coisas pode ser insustentável. O peso dos sentimentos é algo a ser
lidado com balança e senso comum, então nunca devemos rir quando
alguém fala sobre Deus ou Diabo. Com efeito, quando se falamos sobre
Deus ou Diabo em cinema, estamos dizendo sobre o bem e o mal, sobre
as pessoas, enfim; estamos dizendo sobre nós mesmos, sobre o Deus e
o Diabo em nós, porque não há um Deus sobre o céu e um Diabo sob a
terra.
Todas as coisas à nossa frente, todos os temas que buscamos
filmar em nossas vidas como diretores são sempre sérios, mesmo as
comédias ou as gags filmadas por Chaplin. Todas são sempre coisas muito
sérias, que, no fundo, estão ligadas ao bem e o mal.
(...)
Estou a falar novamente sobre resistência: resistir ao medo,
resistir à morte. Em cinema, resistimos. É o material mesmo que resiste;
vemos isso nas sequências. Há coisas que resistem em relação a outras:
uma imagem que resiste a outras imagens, um som que resiste a outro
som. Quando digo “resiste”, digo “luta”, porém não é uma violência...
bem, há uma certa violência, mas não a violência que impomos a nós
mesmos. É preciso que fique claro, há uma forma de violência que vem
com o princípio do mundo, do fogo. Há também outra, social, que deve
ser evitada o mais fortemente possível, também pelo cinema.
No filme que fiz sobre os Straub vocês podem ver que existe
uma tensão aguda na sala de edição, entre Danièle e Jean-Marie, que
passa definitivamente pelo medo. Algumas vezes, Jean-Marie sentia-se
amedrontado, por isso, sai. Ele diz, sem exatamente o dizer: ”Danièle,
salve-me, salve esta imagem, salve este filme. Estou com medo. Vou
sair por um instante.”. Há uma tensão extrema no filme, uma enorme
resistência.
Há, por exemplo, a resistência à ideia inicial, que é um pouco
ilusória. Eles dizem: “Vamos cortar... não, deixe isso para mais tarde, vamos
trabalhar um pouco mais”. Aqui, temos um outro tipo de resistência: a
resistência imposta pela máquina, pelas ferramentas dos diretores. Fiz
filmes, incluindo esse sobre os Straub, utilizando uma pequena câmera
– a mesma que tenho aqui, uma Panasonic. Meu outro filme, No quarto
da Vanda, foi realizado em certo grau contra esta câmera, eu resisto um
pouco a esta câmera, pois não faço o que os gerentes da Panasonic, em
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seus arranha-céus de Tóquio, esperam que eu faça com ela. Querem
que eu a mova por aí, e eu não quero movê-la. Isso é resistência.
Tenho a impressão de que essas pequenas câmeras vêm com
uma etiqueta que diz seu preço, “3 CCD’s e Optical Zoom”, e também
uma etiqueta invisível – embora muito clara para mim –, que diz:
“movimente-me, movimente-se, você pode fazer tudo comigo”. Isso
não é verdade. Não faça isso com sua câmera ou gravador de som, não
faça o que querem aqueles que a fabricam. Comprei esta Panasonic,
mas não vou fazer o que quer a Panasonic. Coisas são usadas para
trabalhar, câmeras, câmeras pequenas, são muito úteis e práticas,
acessíveis, mas veja, é preciso trabalhá-las bastante, e trabalho é o
oposto de conforto. Conforto é a ideia primeira, tal como a ausência
de resistência.
Assim, posso ensiná-los o ofício de fazer filmes, porque é
um trabalho que dá trabalho. Sabemos que o ato de trabalhar é difícil,
sabemos que é durante o trabalho que as coisas acontecem. É durante a
montagem, por exemplo, que está o trabalho da montagem. Trabalhei
bastante para realizar um filme sobre trabalho, um filme sobre os
Straub, e fiz isso para mostrar o que não posso ensiná-los aqui, o
que acontece na prática. Quando encaramos o material, quando
estamos frente ao filme que vamos cortar, é que tomamos decisões.
Não é antes, na teoria, ou em nossas cabeças que iremos realizar
filmes. Sempre fazemos filmes com pessoas, com atores, técnicos,
colaboradores, amigos – e algumas vezes inimigos –, e é neste
momento que um filme se realiza, no presente, então não é agora
que vou dizer a vocês como são as coisas. Não posso dizer a vocês:
“Seu filme está cortado de maneira imperfeita, filmado de maneira
inadequada, etc.”. Esses são comentários menores. O que realmente
acontece aqui é que você sobrevive a um estranho e denso momento
e você filma inadequadamente, é isso o que acontece. É o que penso,
e não sei como dizer mais do que isso.
Fiz um filme sobre o cinema, sobre os Straub, para mim
mesmo, para os outros, para vocês. Trata-se de um filme sobre
uma dimensão muito material, concreta e ao mesmo tempo muito
misteriosa do cinema. O filme pretende tentar explicar esse mistério,
a fim de mostrar a dificuldade do fazer cinema. Não é um dogma; não
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é uma pequena câmera que se movimenta; não é realizado como se
fosse a vida. É laborioso, assim passa a se assemelhar à vida.
Um filme pede bastante paciência, sangue, suor, lágrimas,
mas fatiga começar a representar alguma coisa próxima à vida. Veja
Bresson. Ele nos apresenta nosso mundo ao mesmo tempo em que
este nos parece estranho. É estranha a maneira como as pessoas se
movem nos filmes de Bresson. Andam de maneira estranha, seus
gestos são muito rápidos ou lentos. Aí está o trabalho. Esse é nosso
mundo e ao mesmo tempo nos parece abstrato. Cinema não é
exatamente vida. Ele trabalha com ingredientes da vida que, então,
organizamos, damos a eles funções diversas da vida. Iremos vê-los sob
uma luz diversa. Não é a vida, mas ao mesmo tempo é feito de seus
elementos, o que é algo bastante misterioso e por vezes um tanto belo.
Um diretor deve viver em tensão todo o tempo, mas isso é complicado,
porque simplesmente não podemos fazer isso. Filmes devem ser
tensos, porém os diretores são humanos somente. Não podemos ser
tensos todo o tempo, pois teríamos que ouvir a tudo, ver tudo, todo
o tempo. Para começarmos a ver o que está acontecendo, precisamos
ver tudo. Como diz Cézanne, devemos ver o fogo que se esconde em
alguém ou numa paisagem. Devemos lutar pelo que descreve Jean-
Marie Straub: se não há fogo em um plano, se não há nada ardendo
em seu plano, então ele é inútil. Em algum lugar do plano, algo deve
estar em chamas. Esse fogo deve estar sempre presente no quadro, é a
carta de amor no banco. Poucas pessoas perceberão essa carta de amor
e ainda menos irão escrever uma carta de amor em um banco. Então,
para finalizar a metáfora, eu diria que meu trabalho como diretor e o
de vocês, como estudantes e futuros diretores, é este banco, aqui. Seu
trabalho é continuar tentando escrever cartas de amor e não cheques.
Algumas pessoas não percebem seu trabalho. No entanto, resistimos
e continuamos a ir a bancos para escrever cartas de amor.
É talvez hora de dizermos “adeus”... vou deixá-los em boa
companhia, pois trouxe comigo uma pequena peça desse grande
diretor chamado Cézanne – alguém que morreu tentando pintar
uma montanha –, de quem trouxe também algumas palavras sobre a
profissão e nosso trabalho. Cézanne morreu em campo, pois chovia e
fazia frio, e ele estava velho, mas não se movia. Tentava resistir à chuva
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e ao frio. Deixou-nos, então, essas palavras, essas impressões sobre o
trabalho que devemos realizar. Deixou-as, e Danièle e Jean-Marie as
utilizaram num filme muito bonito que aconselho vocês a assistirem
(no Athénée Français, imagino, o único lugar onde podemos assistir
a tal filme) chamado Cézanne (1989). Vou deixá-los com esse filme.
Desculpem-me se não fui bastante claro, e espero, um dia, finalmente,
ver e ler suas cartas de amor.
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