Vozes Da Resistência Ao Genocídio Negro: Editora
Vozes Da Resistência Ao Genocídio Negro: Editora
Vozes Da Resistência Ao Genocídio Negro: Editora
resistência
EDITORAELEFANTE ao genocídio
negro
EDITORAELEFANTE
CONSELHO EDITORIAL
Bianca Oliveira
João Peres
Leonardo Garzaro
Tadeu Breda
SELEÇÃO DE TEXTOS
Vanessa Oliveira
Gabriel Rocha Gaspar
Túlio Custódio
Tadeu Breda
REVISÃO
Laura Massunari
Daniela Uemura
CAPA
Catarina Bessel
9 Nota preliminar
13 Apresentação
Brancos, sangrem conosco,
Gabriel Rocha Gaspar & Vanessa Oliveira
Victor Adriano
“A gente
combinamos
de não morrer”:
retornar às raízes e
(re)construir espaços de
afeto para o nosso povo
Neste momento, corpos caídos no chão devem estar
esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um
verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar.”
Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito…
— Conceição Evaristo
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ação do Estado sobre as vidas, decidindo qual vida é
passível de luto e qual não é — atua incessantemente.
Nas sociedades de inimizade, o inimigo é a criação co-
lonial do Outro, aquele que está marcado com um signo
da morte. Nessas sociedades, esses inimigos devem ser,
a qualquer custo, exterminados, eliminados de campo.
Em sociedades de inimizade, sociedades colonialistas,
escravistas modernas, a pele negra é um signo da morte,
um fator que determinará quais corpos foram marcados
para morrer. E que serão mortos brutalmente.
Nesse contexto, estratégias são necessárias. Nesse
sentido, nos aquilombar e aquilombar nossos espaços e
afetos mostra-se uma boa estratégia política de resistên-
cia ao quadro (necro)político que nos cerca, seguindo
a proposta de Abdias Nascimento, em O Quilombismo.
Para isso, portanto, é preciso que amemos nossos corpos,
que recuperemos nossas narrativas e nos movimentemos
contra a opressão e a dominação vigentes. É preciso, en-
tão, que amemos a nós mesmos e aos nossos irmãos e
irmãs para, de fato, avançarmos em um projeto de socie-
dade que não seja uma sociedade de inimizade. Esse é o
nosso propósito e não abriremos mão disso.
Segundo o Mapa da violência de 2018, “apenas nos
últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas
devido à violência intencional no Brasil”, sendo, destas,
71,5% pessoas negras — o que contabiliza cerca de 395
mil vidas negras assassinadas em uma década. É impor-
tante, aqui, lembrar que estes dados se referem a mortes
provocadas, e não a mortes naturais. Em 2017, a cada
cem pessoas mortas, 71 eram negras — em sua maioria,
jovens. Enquanto a taxa de homicídio de pessoas não ne-
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gras diminui, a taxa de assassinato de pessoas negras au-
menta exponencialmente. Neste quadro, temos um perfil
preponderante: o homem jovem negro. Isso, por sua vez,
configura um genocídio da juventude negra.
Entre os anos de 1980 e 2016, 910 mil pessoas foram
mortas com o uso de armas de fogo. Isso ilustra a falta de
sentido na ideia de que portar uma arma trará segurança
a alguém. A arma, para nós, só significa uma coisa: mor-
te. E não queremos continuar morrendo.
Os dados expostos refletem um quadro genocida, em que
vidas negras continuam a ser ceifadas por um Estado que
tem sangue (negro) nas mãos. Levando em consideração
que estamos em uma conjuntura política um tanto preju-
dicial para os nossos, a tendência é piorar.
O atual momento político ilustra bem a tese de Achille
Mbembe, para quem o processo de consolidação de uma
sociedade de inimizade remonta ao colonialismo e sus-
tenta-se num Estado de guerra. Desde o século xix, os Es-
tados modernos garantem sua “efetiva” atuação através
daquilo que Mbembe chama de necropolítica, isto é, po-
líticas de morte. De lá para cá, os Estados configuram-se,
necessariamente, como Estados de guerra, cujo objetivo
maior é exterminar os inimigos.
A partir disso, devemos estar atentos para uma das
principais características da sociedade de inimizade:
a substituição da relação de cuidado pela relação sem
desejo. Nas palavras de Mbembe, “no interior de socie-
dades que não param de multiplicar os dispositivos de
separação e de discriminação, a relação de cuidado foi
substituída pela relação sem desejo”. Em termos prá-
ticos, isso significa a noção de que a vida da pessoa ao
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seu lado não importa. Onde há relação sem desejo, há
vontade de extermínio.
Um primeiro exemplo incontestável disso é o trágico
acontecimento que arrancou — no sentido mais brutal
do verbo — deste mundo a socióloga e vereadora Mariel-
le Franco em março de 2018. Marielle carregava em seu
corpo muitos signos da morte: mulher, negra, bissexual
e favelada. O signo da morte representa, aqui, um aval
para a atuação do poder necropolítico. Quando Marielle
realiza sua pesquisa e escreve sua dissertação de mestra-
do sobre a violência institucional através de uma análise
da segurança pública do Rio de Janeiro — intitulada upp,
a redução da favela a três letras: uma análise da política
de segurança pública do estado do Rio de Janeiro —, ela
confronta, de certo modo, a atuação genocida do Estado.
Suely Aires, em Corpos marcados para morrer, salienta que
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Após isso, o presidente Jair Bolsonaro declarou que “o
Exército não matou ninguém”, revelando-se indiferente
frente à morte de mais um dos nossos. O comportamen-
to de Bolsonaro ilustra a tese de Mbembe acerca das re-
lações sem desejo.
As mortes de Marielle Franco e de Evaldo Rosa dos
Santos não causaram comoção aos grandes governantes
com corpos hegemônicos, pois a vereadora e o músico
eram vistos como o Outro, os corpos que devem ser ex-
terminados — o Outro é apenas um corpo — e, como já
fora dito, em uma sociedade de inimizade, esse extermí-
nio é tangenciado pelo próprio Estado.
Dessa maneira, as sociedades de inimizade estão in-
trinsecamente ligadas a Estados genocidas, de modo que
o signo de morte prevalente é a negritude, a pele negra.
Por isso, a política do amor não é consoante à sociedade
de inimizade, não há coexistência possível. Nesse sen-
tido, é preciso que conclamemos a importância de nos
aquilombarmos em dias tão duros como estes.
A proposta de Abdias Nascimento, em O Quilombismo,
publicado originalmente em 1980, é muito importante,
sobretudo, para os dias de hoje. Sendo um dos maiores
intelectuais e pesquisadores brasileiros do século xx, o
autor se propõe a pensar a constituição de um Estado
Nacional Quilombista, cuja finalidade básica é garantir a
felicidade do povo preto. “Para atingir sua finalidade, o
quilombismo acredita numa economia de base comuni-
tário-cooperativista no setor de produção, da distribui-
ção e da divisão dos resultados do trabalho coletivo.”
A proposta de Abdias pode parecer difícil — e até
utópica. Isso indica que talvez seja hora de voltarmos
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às nossas raízes e buscar entender como se constituiria
uma economia de base comunitário-cooperativista, por
exemplo. Talvez seja hora de (re)construir: voltar às ba-
ses e (re)começar.
Abdias lista dezesseis propósitos do quilombismo, sen-
do as principais temáticas a educação, a coletividade, a
autonomia, a poluição ambiental, a diversidade religio-
sa, a organização, a revolução e, sobretudo, o retorno às
raízes (através do processo educacional). O princípio nú-
mero onze, por exemplo, diz: “A revolução quilombista é
fundamentalmente antirracista, anticapitalista, antilati-
fundiária, anti-imperialista e antineocolonialista”.
No presente contexto, não tememos dizer que um dos
propósitos do quilombismo hoje seria a nossa produção
intelectual, uma vez que o próprio autor salienta que,
“em nosso próprio país, o escritor afro-brasileiro é um ser
quase inexistente, já que umas raras exceções já confir-
mam a regra”. Embora Abdias tenha denunciado isso em
1980, a afirmação se mantém atual, sobretudo em um
contexto político e social que insiste em nos silenciar.
Nesse sentido, falar é também escrever, empregar um
discurso, como diria Frantz Fanon. Escrever, produzir
conhecimento sobre nós e para nós, é uma prática qui-
lombista que busca a emancipação do nosso povo. Não
só nas áreas de ciências humanas e sociais, mas também
em pesquisas sobre química e meio ambiente — todo o
nosso conhecimento é válido e precisamos reconhecer
isso para que possamos conclamar uma revolução.
Nosso papel, enquanto intelectuais afro-brasileiros,
torna-se também uma responsabilidade para com os nos-
sos: cabe a nós, agora, (re)contar e (re)escrever nossas
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histórias sob nossas lentes. Salientamos a denúncia de
Abdias: “A história do Brasil é uma versão concebida por
brancos, para os brancos e pelos brancos”.
(Re)construir, (re)escrever e (re)contar nossa história
é uma prática quilombista e urgente. É nosso dever con-
tinuar esse legado para com os nossos. Como dizem os
cariocas: é papo de visão.
Tendo em vista que um dos princípios do quilombis-
mo é a coletividade, e que “o quilombismo é um mo-
vimento político dos negros brasileiros”, a nossa hipó-
tese levanta a necessidade da (re)construção coletiva
de espaços de afeto para o nosso povo, espaço onde
possamos viver e cultivar o amor, mas também onde
possamos nos articular politicamente e definir nossas
prioridades de luta.
Aquilombar nossas relações com os nossos significa
olhá-los com amor, no sentido abordado por bell hooks:
compreender essas vidas como valiosas e compreender a
nós mesmos como um corpo coletivo, uma comunidade,
um povo interdependente, sobretudo, na diáspora. Nesse
sentido, como já dissemos, o quilombo emerge enquanto
um espaço de cuidado, afeto, reconhecimento, união e luta.
Em All about love: new visions, bell hooks atenta para a
importância do amor em nossas comunidades: “Sempre
que curamos feridas familiares, fortalecemos a comuni-
dade. Fazendo isso, nos envolvemos na prática amorosa.
Esse amor lança as bases para a construção construtiva
da comunidade com estranhos. O amor que praticamos
na comunidade fica conosco onde quer que formos. Com
esse conhecimento como guia, fazemos de qualquer lu-
gar a que vamos um lugar onde voltamos a amar”.
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É essencial compreender a importância do amor na
revolução quilombista — que também é uma revolução
política, citada por Abdias Nascimento, uma vez que
“o amor é profundamente político,” como aponta bell
hooks. Vivemos em comunidades machucadas, feridas
pelo colonialismo, onde nossos corpos dissidentes são
alvos da violência sistemática do Estado. Quando propo-
mos a revolução quilombista, estamos propondo, neces-
sariamente, a cura e a (re)construção de nossas comuni-
dades diaspóricas.
Como diz o conto “A gente combinamos de não mor-
rer”, de Conceição Evaristo, “escrever é uma maneira de
sangrar”, sobretudo escrever sobre a morte dos nossos,
mas é preciso acreditar que um outro amanhã é possível.
É preciso compreender que “Ayoluwa, alegria de nosso
povo, continua entre nós”, como escreve Conceição.
Aquilombarmo-nos é, em última análise, trabalhar
para curar nossas comunidades e nossa crise espiritual
coletiva. Cuidando da nossa comunidade, cuidamos de
nós mesmos. A emancipação do nosso povo não se trata
de um luxo, mas de uma necessidade.
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