Perfil - Jornalismo Opinativo
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Acredito que não mencionei que meu avô era o mais próximo de um
alquimista moderno que consigo imaginar. Ele acreditava cegamente que havia
curado a Psoríase da minha avó com um raro ingrediente: óleo de soja. Era rotina
toda vez que o visitávamos ele mencionar orgulhosamente sobre sua participação
essencial na melhora de minha avó. Mas ela não era sua maior cobaia, meu avô
testava seus experimentos em si mesmo. Acredito que todo esse esforço surgiu na
tentativa de fazer com que a dor em seu braço esquerdo sumisse, principalmente
depois de sessões de bloqueio e acupuntura frustradas. Em uma das últimas visitas
em sua casa, ele havia me dito que tinha bolado algo que realmente poderia ser
eficaz, mas manteria segredo até que confirmasse o contrário. Nunca fiquei
sabendo de seu milagre.
Meu avô raramente demonstrava algum afeto físico, herdando o lato rígido de
meu bisavô. Suas ações eram, na verdade, a sua maior demonstração de carinho e
cuidado. Sempre que podia, ou sempre que insistíamos até que cedesse, meu avô
levava suas netas à lojinha de um real para comprar bugigangas que durariam
alguns dias. Minha avó costumava dizer que ele era nosso maior puxa saco e talvez
eu concorde. Era nítido o carinho que ela tinha por mim e minha prima; sua neta
mais nova veio apenas nos últimos anos de sua vida. Lembro-me das noites em que
dormia lá e nosso passatempo favorito era ouvir suas histórias sobre a fazenda ou
algum outro passado distante que na sua narração se tornava tão palpável. Meu avô
era o melhor contador de histórias que eu conhecia. Ele era o meu personagem
favorito, o melhor herói e talvez por vezes, o melhor anti-herói.
Uma de suas histórias, àquelas que ele antecedia com uma longa risada, era
sobre como um dia foi em um velório de um primo, situação que ele nunca gostou
pois tinha ligação com a infame morte, e entrou na sala errada. Por estar com os
olhos semiabertos e querendo ir embora logo, meu avô perambulou para dentro de
uma sala onde outro homem estava sendo velado. Ele foi até o caixão e beijou a
testa do morto e foi só neste momento que percebeu que era o morto errado. Saiu
às pessoas e creio que desde então passou a desgostar ainda mais de velórios.
Minha tentativa até agora foi demonstrar o quanto meu avô era excepcional,
uma peça rara cuja vivacidade faz falta no dia das pessoas que conviviam com ele.
Ele não era esquecido por quem cruzava seu caminho, certamente era uma
daquelas pessoas que causava um impacto irreparável. Mas nada do que eu disser
chegará aos pés do privilégio que foi conviver com ele por tantos anos da minha
vida. Às vezes me pego pensando o quanto gostaria de ter desfrutado mais de sua
sabedoria ou de ter perguntado mais uma vez sobre algum causo de épocas
passadas.
Não falamos muito sobre meu avô agora, a proximidade do ocorrido cria uma
barreira invisível que ainda não nos permite relembrá-lo abertamente com
frequência. Mas, sei que ele se mantém aceso dentro daqueles que mantinha por
perto. Suas histórias são relembradas diariamente e suas manias fazem falta. Seu
maior legado são os ensinamentos e reflexões que deixou acesos em cada um.
Assim como em um de seus poemas anotados no caderninho e recitado tantas
vezes, a memória de meu avô “nasce na Aurora, morre no poente, mas ressuscita
todos os dias.”