Baygon, Gerente Da Revista, Moizeis Sobreira de SOUSA
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RESUMO: Esta comunicação corresponde a um projeto de doutorado, ainda em fase inicial, que faz
parte um estudo mais amplo, em execução há cinco anos, que visa a mapear o espaço reservado a
Camilo Castelo Branco no cânone literário português, como também as principais tendências
interpretativas legadas pela tradição dos estudos camilianos. Esteado nesse estudo, desenvolvido em
parceria com o Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da USP
e orientado pelo Prof. Dr. Paulo Motta Oliveira, pressupõe-se que a implantação do romance em
Portugal, resultado, em grande parte, dos esforços da pena camiliana, foi possível graças ao diálogo
que essa pena travou com a tradição narrativa do século XVIII, em particular com a obra de Voltaire,
proeminente autor setecentista.
ABSTRACT: This project, which is part of an ampler study, has been running for five years. It
intends to map the space reserved to Camilo Castelo Branco in the Portuguese literary canon, as well
as the main interpretative tendencies tied throughout the Camilian studies. Based on this study, which
was developed in a partnership with the Portuguese Literature Post Graduation Program of the
“Faculdade de Letras da USP” and oriented by Prof. Dr. Paulo Motta Oliveira, it is supposed that the
implantation of the novel in Portugal, due mainly to the efforts of the Camilian pen, was possible
thank to the dialogue which this pen had with the 18th C narrative tradition, especially with Voltaire’s
production, important 18th C author.
A ficção camiliana testemunhou, ao longo de seu extenso conjunto, três fases cruciais
para a tradição do romance português, a saber: ascensão, maturação e consolidação,
respectivamente. A partir da década de 1840, momento em que Camilo Castelo Branco
despontou como escritor, o romance começou a ocupar uma posição canônica no sistema
literário de Portugal. Em parte, concorreu para isso o acentuado aperfeiçoamento dos
mecanismos de produção e difusão da obra literária registrado nesse período. O mercado
editorial desenvolveu-se extraordinariamente, acompanhado pelo surgimento do folhetim.
Agregado ao jornal, veículo de baixo custo e grande circulação, esse novo meio se mostrou
sobremodo eficiente, alcançando uma vigorosa audiência para essa nova modalidade
ficcional.
1
Doutorando do programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São
Paulo. Bolsista da FAPESP. E-mail: moyses_jesus@hotmail.com.
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É preciso ter em conta ainda o fato de o romance ter emergido como um gênero de
tendência popular, o que, em parte, favoreceu sua inserção num grupo mais vasto de leitores,
formado por indivíduos oriundos majoritariamente da burguesia ascendente e, portanto,
menos ilustrados do que aqueles a que os escritores se dirigiam até Antigo Regime. Além de
ter à disposição um texto de acesso facilitado, esse grupo viu-se representado nas páginas do
novo gênero, aumentando ainda mais a mútua identificação entre este e aquele. Indo mais
adiante, o romance atingiu a condição de estilo predominante sob a tutela de um movimento
que deflagrou uma nova ordem discursiva, assinalada pela rejeição a uma concepção de
linguagem hierárquica e absoluta. Nas palavras de Bakhtin:
A erupção dessa nova ordem discursiva delineou-se nos contornos do arranjo social
resultante da transferência do domínio político e social da aristocracia para a burguesia,
ocorrido no século XVIII. Com efeito, os gêneros elevados (tragédia, epopéia),
representativos do universo hierarquizado e pretérito da nobreza, em que os indivíduos
ocupavam posições rigidamente definidas no espaço e no tempo, perderam prestígio para o
romance, familiarizado com a representação cômica do mundo e do homem; com a
apropriação da realidade “atual, inacabada e fluída” (Bakhtin, 1998, p. 427).
Não obstante esse conjunto de condições favoráveis, o romance ainda era, em
Portugal, um fenômeno eminentemente estrangeiro, notadamente franco-inglês. Luís Sobreira
(1998) explica que o aumento da atividade editorial e a consolidação do círculo de leitores
portugueses não resultaram numa produção expressiva de títulos domésticos. Os romances
lidos nessa época eram escritos, em sua grande maioria, na França e na Inglaterra pelas
renomadas penas de Eugène Sue, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Walter Scott, Charles
Dickens, entre outros mestres desse mercado literário. “Em geral, os editores preferiam
investir em traduções de obras com êxito já comprovado no [exterior], [...] a apostar nos
autores nacionais [...]” (Sobreira, 1998, p. 02). Conseguintemente, o cultivo do romance era,
até então, uma prática incipiente, levada a cabo por poucos escritores. Ademais, os que o
praticavam não tinham condições de obliterar a imitação do molde importado.
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Em seu Atlas do Romance Europeu, o crítico Franco Moretti mapeia com precisão a
geografia das relações de produção e disseminação do gênero que entusiasmou o gosto das
gerações de leitores que se formaram após o Antigo Regime:
Foi somente a partir da primeira geração romântica (já no século XIX) que a prosa de
ficção voltou a encontrar cultores em Portugal. Impulsionados pela crise de poder, deflagrada
pela revolução liberal, os escritores perceberam a necessidade de novas modalidades e novos
gêneros de discurso adequados às condições criadas por essa revolução, fazendo o problema
da literatura nacional passar incontornavelmente pela questão do romance. Vale acrescentar
que essa percepção foi acompanhada pela consciência do atraso português em relação à
evolução do gênero romanesco em outras literaturas européias.
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Preliminarmente, é possível constar que a maior parte das incursões dessa geração no
domínio romance se deram pela porta de um subgênero, a saber: o histórico. Alexandre
Herculano publicou aproximadamente cinco volumes de ficção, dentre os quais três eram de
cunho histórico: O Bobo (1843), Eurico, o Presbítero (1844) e O Monge de Cister (1844).
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Garrett2, por sua vez, trouxe à luz duas obras em prosa: Viagens na Minha Terra (1843-1846)
e O Arco de Sant’Anna (1845), sendo a última considerada um romance histórico. Note-se
que, em Portugal, o cultivo do romance histórico não resulta de um desvio da corrente
romanesca global. Com efeito, será esta que irá descender de um desvio daquele.
O interesse pelo subgênero histórico pode ser justificado por duas razões. Em primeiro
lugar, trata-se de uma criação do romantismo. Em segundo lugar, o romance histórico, do
ponto de vista do conteúdo, revelou-se assaz apropriado aos anseios da geração romântica de
problematizar e reformar a sociedade portuguesa. “A nação, mergulhada na decadência pelo
período da monarquia absoluta, deveria regressar à Idade Média para aí colher lições
indispensáveis à sua regeneração” (Baptista, 1988, p. 77). Entretanto, o modo como se recorre
ao passado medieval, particularmente em Herculano, resultou numa incongruência, haja vista
a recuperação da cavalaria, elemento aristocrático por excelência3, conforme aponta Antônio
José Saraiva:
As obras de ficção de Herculano têm um miolo cavalheiresco e passadista
pouco congruente com o intuito de criar uma literatura para a classe média, a
classe revolucionária. Enquanto a revolução abolia a nobreza, o Eurico [...],
O Bobo exaltavam os feitos [...] e tradições dessa nobreza. (Saraiva, 1950,
148-149).
No que tange ao manuseio do passado, Garrett parece ter obtido melhor êxito n’O
Arco de Sant’Anna, obra em que esse tempo aparece claramente articulado ao presente
histórico do século XIX, diferente do mundo acabado e com pouca noção do devir das obras
de Herculano.
Embora não tenha potencializado a forma do romance na sua multiplicidade, a prática
do subgênero histórico levada a cabo pela primeira geração românica contribuiu para que se
percebesse a necessidade de se alargar e/ou aperfeiçoar a apropriação da forma do romance.
Alguns escritores passaram a discutir a importância de se representar Portugal num eixo
temporal presente. A título de ilustração, acompanhe-se o que afirmou Lopes de Mendonça
em sua obra Memórias de Um Doido:
2
Além de Alexandre Herculano e Almeida Garrett, é possível fazer referência a outros escritores,
contemporâneos a eles, que também empreenderam esforços no sentido de produzirem romances,
particularmente históricos. Tome-se como exemplo os casos de Oliveira Marreca, com as narrativas históricas
Manuel de Sousa Sepúlveda (1843) e O Conde Soberano de Castela (1844); Rebelo da Silva, cuja tentativa
culminou com Rausso por Homízio (1842), Ódio Velho não Cansa (1848), seguindo a linha do romance
histórico.
3
É importante lembrar que o programa ao qual esteve subordinado o projeto romântico não tinha um teor
passadista, ao contrário, alvejava a reforma do país no âmbito do presente, todavia, a construção ficcional a que
ele foi submetido inculcou-lhe esse teor.
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Ressaltam desse trecho três constatações que permitem traçar um mapa da situação do
romance em Portugal nessa época (viragem da década de 1840 para a de 1850). A primeira
aponta para o fato de ainda não haver uma prática efetiva do romance na pátria de Camões,
conforme já se demonstrou anteriormente; a segunda revela que os escritores domésticos
dispunham de pouca desenvoltura para representar a realidade contemporânea; por fim, a
terceira comprova a existência de um mercado consumidor, que esses escritores não queriam
deixar sob a inteira tutela dos romances importados.
Em conjunto, tais constatações fomentam a consciência de que era preciso implantar o
chamado romance contemporâneo ou de atualidade, alargando o emprego das formas
romanescas. Com efeito, a representação do homem no âmbito do passado nacional, ainda sob
certo ranço épico4, deveria ser substituída por um quadro em predominasse um indivíduo
talhado sob contornos vulgares, quotidianos; o mundo harmônico dos ancestrais, do grandioso
passado heróico precisava ceder lugar a um universo “em que o sentido da vida se tornasse
imanente e visível apenas no além, em que a totalidade fosse apenas fragmentária e
almejada”. (cf. Lukács, 2000, p. 60). Da mesma forma, não cabia mais um herói que
representasse uma coletividade, devendo este ser substituído por um indivíduo solitário, em
constate choque com o espaço-tempo que o cercasse.
Foi nesse contexto que surgiram obras como Memórias de Um Doido (1846), do já
citado Lopes de Mendonça, Viagens na Minha Terra (1843-1846), de Garrett, A Virgem da
Polônia (1847), de José Joaquim Rodrigues Bastos, Estevão (1853), de Júlio César Machado,
A Mão do Finado (l853-54), de Alfredo Hogan, entre outros. Dentre essas produções, merece
4
Ao conceber a personagem Eurico da obra homônima, Alexandre Herculano afirma que tinha a intenção de
construir um semideus. Ora, tal concepção é própria da epopéia, na qual o herói se livra do fardo terrestre, à
custa de duras penas ou em penosas peregrinações, rompe o encarceramento humano e conquista a pátria e/ou
ideal almejado (cf. Lukács, 2000, p. 57). Em contrapartida, o herói do romance emerge de um hiato entre a
realidade e o ideal, sendo a almejada totalidade estreitada em idílio.
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destaque o texto de Garrett. Muito provavelmente, Viagens na Minha Terra foi a experiência
que melhor êxito obteve no que se refere à pratica do romance durante a primeira metade do
século XIX.
Até aqui tentou-se oferecer um painel dos eventos envolvidos na deflagração do
romance em Portugal, bem como as razões que impossibilitaram a primeira geração romântica
de cultivar esse gênero de forma efetiva. Embora extensa, essa introdução justifica-se, pois ela
possibilita situar o cenário literário em que Camilo Castelo Branco emerge, permitindo, além
disso, formular a hipótese segundo a qual a tradição do romance português amadurece e se
consolida no interior da ficção camiliana.
Parece ser consensual entre críticos como José-Augusto França (1993), João Gaspar
Simões (1967) que Camilo tenha sido o primeiro romancista de Portugal, no entanto, eles não
evidenciam o modo pelo qual esse escritor se apropria da forma romanesca, destacando as
conquistas discursivas obtidas, bem como o manuseio específico dessa forma. Abel Barros
Baptista (1988) vai mais além e sustenta que Camilo revolucionou a ordem discursiva,
instaurando em definitivo o romance em Portugal. Apesar disso, Barros não revela como esse
processo se desenrola e/ou amadurece no interior das produções camilianas, limitando-se a
apontar a incidência de alguns traços desse gênero no folheto de cordel Maria! Não me mates
que sou tua mãe (1848).
O autor de Amor de Perdição reúne em torno de si um conjunto de fatores que
permitem a formulação da hipótese referida no parágrafo anterior. Em primeiro lugar, ele
concebe um projeto estético-literário independe de uma matriz ideológica, política e religiosa
específica. Ao contrário dos escritores que o antecederam (tenha-se mente Garrett e
Herculano), Camilo não coloca Portugal como uma questão central, tendo em vista a
elaboração de um plano que colmatasse a decadência pátria. Conforme Baptista,
Camilo não designa nem um liberal nem um miguelista, nem católico nem
protestante, mas romancista: que não escreve romances para ilustrar
qualquer interpretação de Portugal (o que não quer dizer que quem estiver
interessado não possa estabelecer uma interpretação relativamente estável na
ficção camiliana), que não procura atingir qualquer um fim superior, que não
se fundamenta em outra coisa além do estrito interesse romanesco. (Baptista,
1988, p. 143).
público leitor. Em 1851 Camilo dá um passo adiante, trazendo à luz Anátema5. Embora ainda
esteja aportada na tendência do melodrama, sob influência de Victor Hugo, essa obra possui a
estrutura de um romance, na qual o drama humano da sociedade burguesa se faz presente de
forma bastante evidente. Ademais, o autor dá mostra de que já está engendrando um projeto
romanesco. Anátema é iniciada por uma introdução em que se discute as bases do chamado
romance de atualidade, a popularização da literatura e a necessidade de se despojar das
“alfaias [...] da escola romântica, democrática, social e regeneradora” (Castelo Branco, 1982,
p. 10-11). Essas três questões, como visto antes, ocuparam um papel proeminente na
emergência do romance português.
De modo geral, tanto Maria! não me mates quanto Anátema testemunham a ascensão
do romance português, momento em que ainda não existe um modelo acabado e em que a
influência externa dita tendência. Essa situação, contudo, revela-se em acordo com a época,
como mostra Franco Moretti:
[...] uma vez que o modelo “satisfatório” é encontrado, a história de uma forma se
torna realmente diferente. Por volta de 1750, na época da primeira ascensão do
romance, ainda não existe tal modelo e o romance é tão diversificado, tão livre – tão
louco, de fato – quanto podia ser: sátira e lágrimas, picaresca e filosofia, viagem,
pornografia, cartas... Mas cem anos mais tarde, o paradigma anglo-francês está no
lugar e o segundo surto é uma história completamente diferente [...]. (Moretti, 2003, p.
201).
5
Anátema é considerado por muitos críticos como sendo efetivamente o primeiro romance português.
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ficção, a demarcação de zonas textuais que tinha por objetivo criar estratégias de direção da
leitura. “O que quer dizer que a matéria principal de seus textos são as imagens da narrativa
[...].” (Franchetti, 2003, p. 31-32).
Ao encontrar e aplicar um modelo de romance, a produção ficcional de Camilo
Castelo Branco parece ir além da simples prática desse gênero, consolidando-o nos domínios
da literatura portuguesa, legando-lhe uma tradição, com a qual, muito provavelmente,
gerações de escritores contemporâneas ou posteriores a ele dialogaram. Pense-se, por
exemplo, em Julio Dinis e Eça de Queiroz. O alcance dessa formulação reside no campo da
hipótese, o que requer o devido exame e verificação, a serem feitos ao longo da execução
deste projeto.
Embora tenha ascendido no século XVIII, na Inglaterra e na França, e no século XIX,
em Portugal, o romance inscreve-se numa vigorosa tradição que estende raízes desde a
Antiguidade Clássica, passando pela Idade Média, até chegar à Idade Moderna, pós-
revolucionária, conforme revela Bakhtin em sua antológica Questões de Estética e de
Literatura: a Teoria do Romance. Tentar refazer integral e detalhadamente esse longo
percurso seria tarefa certamente fadada ao insucesso. Não obstante, é possível fazer um
recorte temporal menor, tendo em vista a melhor compreensão desse fenômeno que
revolucionou a ordem discursiva. No caso de Portugal, cuja ascensão do romance se deu em
meados do século XIX, em estreita articulação com a prática romanesca franco-inglesa do
século XVIII, parece ser de grande proveito estabelecer um diálogo com este século.
A escolha do século XVIII justifica-se inicialmente por ser a época em que o romance
começa a se estabelecer como gênero predominante. Em seguida, por ser o momento em que
surge uma reflexão teórica acerca do romance, da qual advêm muitas das linhas-mestras da
prosa romanesca moderna, como nota Bakhtin (1998). Por fim, o período setecentista abre
caminho para a representação séria dos acontecimentos corriqueiros, bem como das camadas
sociais inferiores. Até então, esses objetos só poderiam ter seu lugar na literatura no campo de
uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma grotescamente cômica ou como
entretenimento. Em suma, o século XVIII pode ser considerado o berço das rupturas que o
romance impôs à prosa de ficção oitocentista6.
6
É preciso ter em mente que o romance do século XVIII conciliava observação da realidade diária com certo
exagero engraçado, com uma fantasia extravagante, de modo que ainda não há um limite bem delineado entre o
verdadeiro e o imaginário, como ocorre no século seguinte.
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A relação com textos setecentista não exclui a possibilidade de diálogo com produções coetâneas, o que não faz
parte dos objetivos deste trabalho.
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A escolha de Voltaire pode ser justificada, entre outras razões, pelo fato de ainda não haver um estudo que dê
conta da possível influência desse escritor sobre Camilo. A possibilidade de estabelecer uma relação comparativa
entre esses escritores foi apenas vagamente aludida por Eduardo Lourenço (1985) e Jacinto do Prado Coelho
(2001).
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unidade às narrativas, também é alocada para promover o riso, que por sua vez, concorre para
a denúncia de ilusões e imposturas.
Outro aspecto a ser pontuado diz respeito ao desenrolar das narrativas. As obras
supracitadas possuem um fluxo narrativo acelerado e dinâmico, entremeado por um cabedal
de pequenos capítulos, nos quais o narrador orquestra, muitas vezes ao sabor do acaso, uma
série de reviravoltas. Merece destaque ainda a figura desse narrador, que destaca com
freqüência a sua presença no texto, seja emitindo opiniões sobre o que narra, seja explicitando
procedimentos narrativos por ele adotados.
A propósito de exemplificação, tome-se em breve análise as narrativas de Candide ou
l’Optimisme e de Coração, Cabeça e Estômago. Na primeira, o protagonista Cândido,
ignorante em relação às coisas do mundo, é vitimado pela filosofia de Pangloss, para quem
está-se no melhor dos mundos e tudo vai da melhor forma possível. Esse excesso de otimismo
é colocado à prova por um vertiginoso encadeamento de calamidades e desventuras que
incidem sobre o herói, obrigando-o a recuar no final da história e admitir a existência do mal;
a perceber que o mundo em que ele vive não é bom, nem muito menos o melhor dos mundos,
restando-lhe apenas cultivar seu jardim, isto é, trabalhar e deixar de lado o idealismo
metafísico de Pangloss. Na segunda narrativa, o herói Silvestre da Silva, tão ou mais ingênuo
que Cândido, se lança numa infausta aventura em busca da romântica virgem etérea. Após
sete tentativas fracassadas, o protagonista de Coração, Cabeça e Estômago, abandona seu
idealismo do coração, adotando uma visão cética da vida, metaforizada pelo raso
materialismo do estômago. Se inicialmente ele almejava encontrar uma mulher elevada,
pertencente ao espaço citadino, no fim da história ele se contenta com Tomásia, uma rude
camponesa, com quem decide cultivar seu jardim9.
Tanto o narrado voltaireano quanto o camiliano contrapõem o idealismo das
personagens em questão a lições de realidade, criando um conjunto de pequenas histórias em
que os acontecimentos se precipitam com uma rapidez clownesca. As inquietações e anseios
das personagens são simplificadas até atingirem o nível da anedota. Com efeito, a
ingenuidade que os fomenta é asfixiada pelo riso. Desse modo, os pressupostos otimista e
romântico que povoavam o imaginário de Cândido e Silvestre, respectivamente, são
esvaziados e apresentados como irrealizáveis.
9
Faz-se necessário aqui pontuar a existência de outras possíveis linhas de similaridades entre as obras de Camilo
e Voltaire, tais como a construção da personagem, a reflexão metaficcional inserida no interior das narrativas,
entre outras, a serem exploradas no decurso desta pesquisa.
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Além das flagrantes afinidades observadas entre as personagens desses escritores, bem
como as semelhanças concernentes à construção da estrutura enunciativa, compete ainda
sublinhar algumas referências que Camilo fez a Voltaire. Na introdução que escreveu para A
Mulher Fatal, o romancista português deixa entrever que essa obra foi influenciada pelo
legado voltaireano, notadamente no que diz respeito ao aproveitamento dos mecanismos da
sátira e do riso. No decorrer dessa introdução, Voltaire aparece como um dos mestres da
tradição satírica ocidental, “o ridente que transfigurou a Europa” (Castelo Branco, 1968, p.
11). Ao finalizar A Brasileira de Prazins (1882), Camilo faz outra menção explícita ao
iluminista francês, afirmando: “O meu romance não pretende reorganizar coisa nenhuma. E o
autor desta obra estéril assevera, em nome do patriarca Voltaire, que deixemos este mundo
tolo e mal, tal e qual era quando cá entramos” (Castelo Branco, 1991, p. 151). Em Cenas da
Foz (1857), ele expressa o desejo de cultivar seu romance “caldeado na forja onde Voltaire
açacalou as armas com que feriu no coração o ridículo” (Castelo Branco, 1971, p.10). Por fim,
é oportuno mencionar ainda a alusão feita n’A Caveira da Mártir (1875), em que Camilo
admite o arremedo dos procedimentos cômicos do romance voltaireano.
As referências acima evidenciam o contato efetivo de Camilo com a obra de Voltaire,
com também certo interesse em realizar um trabalho de absorção criativa dessa obra no
interior de suas produções. Cabe, portanto, determinar em que medida o texto voltaireano
influenciou o camiliano; o quanto autor de Amor de Perdição conhecia o legado do filósofo
de Verney; o modo pelo qual esse legado é recuperado no âmbito da literatura portuguesa do
século XIX; e, em que medida a incorporação e/ou diálogo com a narrativa setecentista
contribui para a implantação do romance no Portugal oitocentista. Embora muito promissora,
essa possibilidade de estudo ainda se apresenta como uma lacuna. Sua execução certamente
possibilitará o redimensionamento do cenário literário português do século XIX,
demonstrando que Camilo Castelo Branco projetou e efetuou, ao longo da sua obra, um
projeto estético-literário alternativo às gerações de escritores desse período, que articularam
grande parte das suas produções a um projeto político-social que visava à regeneração de
Portugal.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, Abel Barros. Camilo e a revolução camiliana. Lisboa: Quetzal Editores, 1988.
ANAIS DO SETA, Número 4, 2010 863
CASTELO BRANCO, Camilo. Obras Completas. Porto: Lello & Irmão, 1982-1994. (17vol.).
LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu 1800-1900. São Paulo: Boitempo, 2003.
SANTOS, Maria Eduarda Braga dos. Do Diálogo ao dialogismo na obra de Camilo Castelo Branco.
Familicão: Centro de Estudos Camilianos, 1999.
SIMÕES, João Gaspar. História do romance português. Lisboa: Estúdios Cor, 1969.
SOBREIRA, Luis. Uma imagem do campo literário português no período romântico através dos
best-sellers produzidos entre 1840 e 1860. Évora: Atas do IV Congresso Internacional da Associação
Portuguesa de Literatura Comparada, 2001.