A Gente Nao Mergulha No Mundo Do Outro I
A Gente Nao Mergulha No Mundo Do Outro I
A Gente Nao Mergulha No Mundo Do Outro I
NICOLA GAVIOLI
Florida International University
160
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
NG: Queria começar com a imagem do “olhar insubordinado” tirada do seu livro
A vida que ninguém vê. Você escreve “Vemos o que todos veem e vemos o que
nos programaram para ver” (188). O que é programado para ser visto no Brasil
de hoje? Quais são os efeitos desta programação?
EB: O que nos é dado para ver cria nas pessoas uma “catarata” que não é física,
mas que tem efeitos muito piores do que a física, e engendra uma cegueira muito
mais profunda. Não tem cirurgia para essa catarata. Essa cegueira que a gente vai
tendo com a banalidade dos dias, de tanto ver as mesmas coisas, só pode ser
enfrentada com um olhar de resistência cotidiana, ou seja, através do exercício
da dúvida. É preciso duvidar do que se vê, duvidar do que é dado para ver,
especialmente num mundo de redes sociais, de imagens e de gritos e de certezas
exclamativas. No Youtube tudo é filmado, tudo é gravado. Isso é muitas vezes
confundido com a verdade, embora isso não seja a verdade. O grande risco é a
naturalização, o tornar natural o que jamais pode ser natural. Por exemplo, no
1A palestra foi co-organizada pelas unidades seguintes na FIU: Kimberly Green Latin American
and Caribbean Center; Department of Modern Languages; e School of Journalism and Mass
Communication.
161
Gavioli
162
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
163
Gavioli
EB: Acho que tem bastante gente pensando sobre o nosso tempo. Talvez menos
do que deveria, mas tem. E acho que talvez algumas das vozes mais interessantes
estejam nas redes sociais. Não só, mas também lá. Penso em Bruno Torturra e
164
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
em Daniela Lima, por exemplo, que escrevem posts muito interessantes, a partir
de diferentes perspectivas. Na internet parecem preponderar os gritos, as
boçalidades e desonestidades de diversos tipos, inclusive a de intelectuais, mas,
se isso aparece mais, porque produz mais ruído, há pensamentos muito
interessantes a que hoje temos acesso, de pessoas que fizeram das redes sociais
um espaço para o pensamento e para a profundidade, para o exercício da política
na sua dimensão mais profunda. Para mim tem sido particularmente rico ter
acesso ao pensamento de homens e mulheres negros, que me ajudam a
compreender meu papel como branca num país racista e no qual por muito tempo
vigorou o mito da democracia racial. E tenho acesso principalmente pelas redes
sociais, já que os espaços tradicionais são historicamente ocupados por
intelectuais brancos, especialmente homens. Estes espaços tradicionais,
inclusive, têm sido pressionados, por essas vozes que vêm da internet. Algumas
novas, de uma geração que nasceu já com a internet. Outras são vozes que há
décadas pensam o Brasil, mas nunca conseguiram ter ressonância, por conta do
racismo e da interdição dos espaços. Acho isso bastante fascinante. Mas, é claro,
fica um tanto obscurecido na preponderância do que chamei numa coluna de
“boçalidade do mal,” parodiando o conceito de Hannah Arendt, e do que
podemos chamar de desejo de destruição, em que o outro é um inimigo a ser
destruído, interditando assim a possibilidade da escuta, do diálogo e da
alteridade. E isso obviamente não é um fenômeno do Brasil, mas do mundo. Era
também a isso que me referia nesta coluna do louco. Um dia alguém chega e
empurra um outro para os trilhos do metrô e é visto como se fosse um pária, como
se o seu ato estivesse desconectado do mundo em que vive, do seu tempo. Como
se a literalidade desta violência não contasse tanto do momento em que vivemos.
EB: Acho que ela fez o que conseguiu fazer e isso foi muito importante. Mas é
preciso que os torturadores e os assassinos da ditatura civil-militar sejam
julgados. Acho difícil o país avançar sem que os torturadores sejam julgados.
Além da denúncia, é preciso ter o julgamento. Morreu o (Carlos Brilhante) Ustra,
torturador notável, sem que a justiça fosse feita. E não fazer o acerto com a
história faz muito mal para um país. Outra comissão da verdade fundamental é
165
Gavioli
EB: Acho que o papel do repórter é ser ponte entre mundos. No meu caso, tento
ser ponte entre os vários Brasis. Eu fiz uma escolha, como jornalista, que é
colaborar para quebrar com algo que considero brutal: a condição de viver à
margem da narrativa. Então escolhi contar a história dos sem voz, dos invisíveis,
dos proscritos, dos párias, daqueles à margem da narrativa. Eu faço isso em várias
frentes. Hoje principalmente na Amazônia, contando das pessoas expulsas pelas
grandes obras, especialmente os atingidos pela hidrelétrica de Belo Monte. A
Amazônia sempre foi vista pelo centro-sul do Brasil como um corpo para
exploração. Esse imaginário sobre a Amazônia se consolidou com a propaganda
da ditadura civil-militar sobre a região, que propagava um olhar colonizador,
traduzido em alguns slogans como “terra sem homens para homens sem terra”
ou “o deserto verde.” Segundo esse olhar, que converte o outro em objeto, os
índios não são gente, não são humanos, e, assim, não teriam como ser
protagonistas de seu destino nem teriam nenhum conhecimento a ser transmitido
ou compartilhado. Daí a necessidade de desbravar esse grande mundo verde e
166
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
167
Gavioli
dos grileiros que se apropriavam de terras dos povos da floresta valiam mais,
porque escritos, do que toda a memória oral que dava conta da vida daquelas
pessoas durante séculos no território. A conversão da oralidade em palavra
escrita é um aspecto bem conflituoso para mim. É um impasse. Por um lado, é
preciso que essa palavra quebre a barreira e chegue ao centro-sul do Brasil, a
outros países, ao mundo globalizado. Mas, por outro, eu faço isso usando o
mesmo instrumento perpetrador de violência, que é a escrita. A oralidade é uma
transmissão do conhecimento tão legítima quanto a escrita. E seu valor de
documento deveria ser reconhecido. Essa é uma questão em que me debato hoje.
Meu desafio, quando tento contar o mundo do outro, é também entender como
eles nomeiam o que vivem. Por exemplo, o que é uma casa para ribeirinhos do
Xingu? Certamente, é bem diferente do que é uma casa para o cara da empresa,
que mora no centro-sul, nas cidades. Este é um dos embates atuais no processo
de Belo Monte, que pode exemplificar um pouco a amplitude da violência. A
empresa tem o conceito de casa de São Paulo. Chega o ribeirinho, que tem duas
casas (uma na ilha, onde ele pesca, onde ele caça, onde planta uma rocinha) e
uma casa na cidade (onde ele vende o peixe na feira, resolve as burocracias, bota
as crianças na escola). E que, especialmente a do rio, é muito diferente da casa
que o cara da empresa entende que seja uma casa. Mas é este cara que tem o
poder de determinar tanto o direito a uma indenização quanto o valor de uma
indenização, por exemplo. Então, chega o colonizador e diz: “Não, essa não é
uma casa de verdade.” Em consequência disso, além de ser expulso, o ribeirinho
não é indenizado. Todas essas questões fazem parte de um contexto de extrema
violência, em que o modo de vida daquele que lá vive sequer é reconhecido como
um modo de vida. E, a partir deste não reconhecimento, uma série de violências
é perpetrada, resultando em aniquilação.
NG: Como é que você entra em contato pela primeira vez com seus entrevistados
e como é que você ganha a confiança deles?
EB: Cada pessoa tem o seu limite ético. Como jornalista, criei um limite para
mim, que me ajuda a fazer escolhas difíceis: antes de sair da minha casa, eu me
faço duas perguntas. Se eu fosse essa pessoa que eu estou buscando, eu abriria a
porta? Eu responderia a essa pergunta? Não posso pedir para o outro aquilo que
eu não posso dar. Eu deixo sempre muito claro que eu quero contar aquela
168
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
história, mas que compreendo que as pessoas não têm nenhuma obrigação de me
abrir a porta da sua casa e da sua vida. Isso eu aprendi duramente ao longo dos
anos. O jornalista obrigatoriamente precisa se perder, senão não chega a lugar
nenhum. Para poder se perder, ele precisa saber muito, para então abrir mão do
que sabe. Mesmo tendo estudado muito, ele parte do seu desconhecimento de
uma realidade. Se ele acha que sabe, imediatamente tem que voltar atrás e dizer
“não sei.” Na conversa com as pessoas, eu tento não fazer a primeira pergunta
sempre que possível, porque acho que a primeira pergunta é uma forma de
controle e fazer reportagem é abrir mão do controle. Eu digo para a pessoa: “Me
conta.” E sempre é muito surpreendente de onde cada um parte para contar uma
história. Em geral eu jamais imaginaria.
EB: Eu tento ficar bastante tempo num lugar. Não dá para entender rápido
demais. A primeira vez que fui para o Xingu foi em 2004. Cada vez que eu vou
entendo algo a mais, encontro outras palavras. Eu não consigo mais achar que eu
entendo suficientemente uma realidade para poder escrever sobre ela uma
reportagem senão depois de alguns anos e isso tem se tornado um problema,
porque hoje demoro muito para me autorizar a escrever. Faço matérias mais
pontuais, mas minhas grandes reportagens hoje levam anos. Sinto falta do
jornalismo diário, em que você registrava um momento, um detalhe. Cada
reportagem tem a sua história, cada uma se faz de um jeito diferente. É a realidade
que determina, e não o contrário. Uma vez tinha que escrever sobre o cotidiano
de uma favela de São Paulo. Não posso contar o que é a favela, mas pensei que
poderia contar a esquina de uma determinada favela. Nessa comunidade
específica, eu perguntei então a um morador da favela onde é que começava a
favela. E ele: “logo aí na esquina.” Fui lá na esquina e o morador que morava lá
falou: “a favela não é aqui, tá vendo ali? Anda mais uns cinquenta metros e aí
começa a favela.” E esse diálogo foi se repetindo até eu entender que a favela
ficava sempre um pouco depois da casa do morador para quem eu perguntava.
169
Gavioli
EB: Tem vários sentidos. O jornalista fala muito pouco dos seus erros, mas erra
muito. É preciso falar dos erros. Cada vez mais eu preciso contar onde eu estou,
de onde parto, o que me inquieta. Acho importante refletir sobre o fazer
jornalístico a partir dos equívocos e das dúvidas. Isto contraria a ideia do
jornalista como “pairando acima” da sociedade, com a sua suposta neutralidade
e imparcialidade. Eu acho essa ideia da objetividade muito perigosa. O jornalista
que acredita nesta lenda não se vê falho, não se percebe com os dois pés enfiados
na lama do seu tempo, imerso na cultura, e por isso deixa de tomar os cuidados
para não violar o mundo do outro. E quando falo violar, falo também no sentido
de violar as palavras do outro, usando as suas em vez de descobrir com que
palavras o outro se conta. Eu me vejo falha e por isso tento tomar o máximo de
cuidado. Para tentar chegar mais perto das verdades, já que as verdades são
plurais, eu busco atravessar a rua de mim mesma, desabitar de mim, dos meus
preconceitos, de minha visão de mundo, para ser habitada pelo outro e depois,
então, empreender o caminho de volta. Eu acho que é necessário contar para o
leitor os momentos em que saio do lugar de escuta e interfiro na história que
estou contando. Isso sem esquecer que só o fato de contar uma história já interfere
na história. O leitor tem o direito de saber e então chegar a suas próprias
conclusões. Cada vez mais incluo a história de quem conta nas minhas
reportagens, a história dentro da história. Comecei a fazer isso com O olho da
rua, onde descrevo os bastidores, meus impasses, dilemas e erros. Ser repórter
há muito tempo, no meu caso há quase 30 anos, é também carregar meus mortos
e me arriscar a um confronto cotidiano com a impotência.
170
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
anos, eu trabalho com o mesmo fotógrafo, o Lilo Clareto. Somos uma dupla
repórter-fotógrafo, como acontecia no jornalismo antigamente. Ele conta a
história a partir do seu olhar, e eu conto a história a partir da minha escuta. Mas
estas duas histórias dialogam entre si. Ele também faz um documento, assim
como eu. De certa forma, ele também usa um instrumento que pode ser violento
conforme o contexto. O Lilo fez os primeiros retratos de família de uma
comunidade da Terra do Meio, no Pará. Foi uma proposta, eles aceitaram, vieram
para um lugar central da comunidade num dia de domingo para fazer os retratos.
E fizeram. É precioso, mas é uma intervenção. Lidamos com os mesmos dilemas.
Como é para essas pessoas, que não tinham uma cultura de imagem, ter, de
repente, uma fotografia? Hoje, fotógrafos que chegam tirando fotos das pessoas
em qualquer contexto, sem pedir licença, me causam mal-estar. Antigamente,
isso era naturalizado pra mim.
EB: O jornalismo no mundo inteiro está em crise. Não é uma crise da reportagem,
mas se reflete fortemente na reportagem. No Brasil todos os grandes jornais
demitiram a maior parte de seus jornalistas. As redações estão muito esvaziadas,
tem poucos repórteres e a maioria é inexperiente, porque custa menos manter
repórteres iniciantes. Foram demitidos os jornalistas mais experientes, os que
ganhavam mais e que podiam fazer a transmissão de conhecimento dentro das
redações. Quando eu cheguei na minha primeira redação (no jornal Zero Hora)
identifiquei rapidamente a pessoa que podia me ensinar. Em algum momento eu
também me transformei na pessoa que podia ensinar. No jornalismo você se
defronta o tempo inteiro com dilemas éticos novos, é muito difícil saber o que é
certo fazer, você precisa aprender e parar para refletir todo dia. Não há respostas
prontas. Hoje, o jornalismo vive uma crise do modelo de negócios, mas também
uma crise de representação, expressada pelo fato de que muitos não se
reconhecem no que a imprensa conta. Ao mesmo tempo, acho que as pessoas
também estão percebendo a importância de uma imprensa que mereça este nome
para a democracia.
171
Gavioli
EB: Eu vejo o jornalista como quem conta a história do hoje, do cotidiano, o que
chamo de história em movimento. Precisamos fazer uma nota ou uma matéria de
muitas páginas, tanto faz, com o senso de responsabilidade de quem produz
documento que influencia tanto o presente como a forma como o presente será
interpretado no futuro. Hoje, a imprensa brasileira não está contando e
documentando bem o Brasil. Ou os Brasis, já que são muitos. Só daqui a alguns
anos vamos saber o tamanho dessa perda—e o impacto dessa ausência. Muitas
realidades não estão sendo contadas ou são contadas de forma muito
fragmentada. Isso tem grandes consequências.
EB: Acho que são mundos que dialogam muito pouco. A academia às vezes acha
que o jornalismo é superficial, precário. E o jornalismo acha que a academia fica
encastelada nos seus feudos, dando muito pouco à sociedade. Há verdade nisso,
172
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
EB: Este projeto talvez possa ser descrito como um projeto de escuta. A certa
altura da minha cobertura dos atingidos por Belo Monte, percebi que uma parcela
das pessoas estava traumatizada. Eram vítimas de catástrofe. Refugiadas em seu
próprio país, do seu próprio país. Percebi especialmente a partir da fala de um
ribeirinho que tinha sido expulso de sua ilha, teve a casa incendiada, estava
vivendo na periferia da cidade e dizia que se sentia num buraco, na escuridão.
Ele pensava em se matar como um sacrifício para chamar a atenção do mundo
173
Gavioli
para o sofrimento dos atingidos por Belo Monte. E já tinha tido um AVC no
escritório da empresa concessionária de Belo Monte. Percebi que eu contaria a
sua história e isso faria alguma diferença, como fez, mas que ele precisava ser
escutado de outra maneira para poder lidar com o sofrimento psíquico e ter uma
possibilidade de reconstituir a vida. Neste momento, eu estava acompanhada da
minha filha, Maíra, que é psicanalista. E ela me ajudou a compreender essa
dimensão. Voltei para São Paulo decidida a bater nas portas dos psicanalistas que
eu conhecia ou que eu não conhecia pessoalmente, mas admirava, e foi o que eu
fiz. Eu contava o que escutei e dizia: “Por que vocês não estão lá?.” Alguns me
escutaram. A partir desta escuta surgiu a Clínica de Cuidado, coordenada pelos
psicanalistas Christian Dunker e Ilana Katz, além de mim, que cuido da
documentação do projeto. Em janeiro, um grupo voluntário de psicólogos,
psicanalistas e terapeutas foi à Altamira fazer uma intervenção em saúde mental,
financiada por crowdfunding. Este grupo foi selecionado a partir de um curso
aberto na Universidade de São Paulo, seguido por uma entrevista e, depois de
escolhido, passou ainda por mais um curso preparatório. E foi extraordinário.
Este é um caso de tessitura de pontes entre os vários mundos. Costumo contar
esta história como uma espécie de quadrilha do Drummond, de uma pessoa que
escuta e leva a outra que escuta e assim por diante. A escuta é dos movimentos
mais potentes e transgressores que conheço.
EB: Acho que hoje os haters nem são mais anônimos. É claro que há os perfis
falsos, criados pra destruir reputações ou consolidar narrativas. Mas há muita
gente que se orgulha de expressar seu ódio com nome e sobrenome, mesmo
quando ele vem disfarçado sob camadas de citações. Orgulham-se também de
sua ignorância. Já vi muitas vezes pessoas dizerem que odeiam museus, por
exemplo. Sem nenhum constrangimento, fechadas a qualquer possibilidade de
talvez, quem sabe, gostar de algo num museu, viver alguma experiência inusitada
174
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
provocada por esse contato. As pessoas encontram sua “turma” e fortalecem sua
visão de mundo, que fica cada vez mais fechada e impermeável, um reforçando
o ódio e/ou a ignorância do outro. Odiar junto, ser ignorante junto, esta é a
distorção da experiência coletiva nas relações desencarnadas da internet. Ainda
que seja preciso deixar bem claro que a internet é muito mais do que isso e tem
possibilitado algumas experiências de solidariedade e de encontro extremamente
interessantes. Mas, em se tratando do ódio e todas as suas formas, acredito, sim,
que a internet arrancou da humanidade as ilusões que ela tinha sobre si mesma.
Antes, quando eu pegava o elevador, não sabia que o vizinho sorridente era
também racista e homofóbico. Ele já era, mas eu não sabia. E isso faz muita
diferença quando nos encontramos no elevador. E isso faz muita diferença
quando vivemos a experiência com todos os outros, nos vários espaços públicos
cotidianos. Aquela frase do Nelson Rodrigues, que vou citar de cabeça, na qual
ele dizia que se as pessoas soubessem o que os outros faziam entre quatro paredes
não iam mais se cumprimentar na rua. Algo assim. Bem, agora a gente não só
sabe o que fazem entre quatro paredes como o que se passa entre suas orelhas. A
gente conhece os pensamentos mais íntimos, que são vociferados nas redes
sociais. É claro que isso tem um impacto. E acho que levaremos algum tempo
para dimensionar este impacto. Porque a possibilidade de “dizer tudo” tem
muitas consequências. Então, se a internet arrancou as ilusões da humanidade
sobre si mesma, a experiência de viver sem esta ilusão, de ser sem esta ilusão,
também já torna a humanidade outra. Dito de outro modo: se já éramos
secretamente estes que agora mostramos, o fato de poder ser também nos torna
outros. É este impacto que pressentimos, analisamos em parte, mas ainda
estamos longe de dimensionar, porque ele é muito transformador e aconteceu e
acontece de forma muito acelerada.
EB: Tenho conversado com jornalistas, que, como eu, sofrem ataques vindos de
vários lados. Há desde pessoas me desejando um câncer doloroso, “sem
paracetamol,” a formas mais elaboradas de ódio, que acontecem quando alguém,
por exemplo, distorce os teus argumentos e coloca esta distorção como um fato.
175
Gavioli
Acho estes piores e mais desonestos. O que fazer? Acredito que a melhor resposta
que posso dar é seguir fazendo reportagem, seguir fazendo as minhas colunas de
opinião, seguir investigando, escutando, pensando e escrevendo com
honestidade. Em dias especialmente duros, aconselho reassistir a um vídeo do
Chico Buarque em que ele conta o momento em que descobriu que era odiado. E
morre de rir. Puxa, se o Chico (o Chico!) é odiado e pode rir disso, nós também
podemos. Isso do ponto de vista pessoal. Mas, como alguém que se comprometeu
a pensar sobre o seu tempo, eu tento me afastar e ver de fora, para compreender
o que de fato está sendo dito, o que há nas franjas dos mal-ditos e que pode me
ajudar a entender esta época. Este é sempre um exercício interessante. E
necessário. Mas, se os ataques tornam-se persistentes e inicia-se um processo
organizado de desqualificação, aí é preciso tomar medidas sérias.
EB: Acho que faz sentido desde que não se confunda literatura com ficção. Essa
é uma diferença fundamental. A reportagem pode ser lida com o prazer de uma
ficção, mas ela não é ficção. Ela não é e não pode ser ficção. Ou só pode ser
ficção na medida em que toda vida é uma ficção, no sentido mais profundo. Mas
a qualidade da reportagem é determinada pela qualidade da apuração, da
qualidade da investigação, da qualidade da escuta que se faz com todos os
sentidos. Se um jornalista não apurar cada detalhe com muita precisão, e checar
cada detalhe, vai fazer um texto ruim, em que o leitor percebe a inconsistência
pela profusão de adjetivos. Quando se fala em jornalismo literário, muita gente
interpreta isso, por má fé, como uma autorização para inventar alguma coisa.
Essa autorização não existe. Vou dar um exemplo bem banal. Muitos anos atrás
176
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
quis escrever sobre o caso de uma moça de classe média numa cidadezinha do
interior de São Paulo que tinha aparecido na Internet transando com dois homens,
um deles casado. Foi um dos primeiros escândalos da Internet no Brasil. Num
clique, o vídeo se espalhou e repercutiu no mundo inteiro. A moça quase foi
linchada na faculdade, toda a vida dela e da família foi alterada. Eu visitei esta
cidade quase um mês depois. E uma das coisas que eu queria contar era o
momento em que um dedo na Internet tinha alterado toda a dinâmica daquela
família, daquela comunidade. Perguntei para cinco pessoas diferentes da cidade
se no dia deste acontecimento tinha sol, se era um sol com nuvens ou sem nuvens.
Depois, quando voltei para São Paulo chequei com diferentes sites de
meteorologia. Esta informação era um terço de uma única frase. Mas se eu erro
um detalhe tão banal, o leitor tem o direito, aliás o dever, de duvidar de todas as
outras informações complexas que eu investiguei. Dá muito trabalho escrever
uma reportagem. E se há uma frase sensacional dita por um entrevistado, é
porque ele disse exatamente isso. Eu não tenho autorização ética para “melhorar”
uma frase ou para desrespeitar uma linguagem. Eu não tenho autorização para
inventar. Preciso saber e contar precisamente como é a unha de uma pessoa, se
ela está roída, redonda, qual é o nome do esmalte dela, se é Pecado original ou
Sedução. O ficcionista faz isso dentro do seu mundo, não precisa sair de casa ou
fazer entrevistas para dizer como é a unha de uma pessoa. Ele pode criar a
realidade e sua ficção se tornará mais verossímil e competente conforme a
capacidade de ele criar algo real. Mas na reportagem, não. Eu preciso escutar a
realidade, que pela minha experiência é mais absurda do que qualquer
imaginação pode alcançar. Às vezes a realidade é totalmente inverossímil. Você
testemunha aquilo e pensa: vou contar e ninguém vai acreditar. Tá acontecendo
bem aqui, mas não é crível. Eu experimentei as duas coisas: escrevi reportagens
e ensaios, e escrevi um romance (Uma Duas) e alguns contos. Na reportagem
tenho que me esvaziar de mim para alcançar o mundo do outro, para ser
preenchida por esse mundo que é o outro, ser habitada por esta outra experiência
de ser. Na ficção devo fazer o caminho inverso, deixando-me habitar pelos outros
que moram dentro de mim, aqueles que vivem nas minhas profundezas abissais
junto com os peixes cegos. São dois “habitar-se” distintos.
177
Gavioli
178
Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
Obras citadas
179