SOUZA Patrimônio e Colonialidade
SOUZA Patrimônio e Colonialidade
SOUZA Patrimônio e Colonialidade
UNIRIO
Museu de Astronomia e Ciências Afins –
Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH MAST/MCT
PATRIMÔNIO E
COLONIALIDADE
A preservação do patrimônio
mineiro numa crítica decolonial
PATRIMÔNIO E COLONIALIDADE
A preservação do patrimônio mineiro
numa crítica decolonial
Banca de avaliação:
ii
PATRIMÔNIO E COLONIALIDADE
A preservação do patrimônio mineiro
numa crítica decolonial
por
iii
iv
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Henrique Morize
CDU: 719:304.4(815.1)
v
A todos aqueles que fazem da sua existência cotidiana novas estratégias de
resistência e (re)existência às diferentes formas de colonialidade.
A todos aqueles que resistiram aos Golpes de Estado na América Latina, em
especial ao Golpe de 2016 no Brasil.
vi
AGRADECIMENTOS
Tenho tudo a agradecer aos meus pais, Helena e Justino, por serem
meu forte, meu ponto de referência, meu ponto de ajuda, meu ponto de
fuga. Minha inspiração. E a quem reservo absoluta admiração.
vii
Portugal, que fizeram da minha experiência no além-mar algo lúdico, afetivo
e sul-americano.
viii
E eu penso, como você doma
uma língua selvagem, adestra-a para ficar quieta, como você a refreia e põe
sela? Como você faz ela se submeter?
Glória Anzaldua - Como domar uma língua selvagem, 2009
ix
RESUMO
x
ABSTRACT
The research for this thesis identified institutional relations that were built
around the Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais (IEPHA), making speeches about the legitimacy of this specialized
workforce for the treatment with heritage. This legitimacy, based from the
political exercise of the Brazilian intellectuality, was built around the
academic knowledges, reinforcing partnerships and modern-colonial
heritage dynamics. The research, of exploratory, theoretical, bibliographical
and documental nature tried to map network of political relations capable of
producing heritage references, by the discursive authority delegated to the
figure of the expert, forging a hypothetical-deductive analysis. It is from this
perspective that we sought to reflect about the institutional speeches that
reinforced the need of specialized workforce in treatment with heritage,
apparently aimed to an end: maintenance of a field made up of agents and
agencies dedicated to self-reproduction operating on a kind of “geopolitics
of the knowledge” in a globalized capitalism. Therefore, there is a pattern of
forces that seems to affirm the existence of a dimension of coloniality in
relations of preservation in Brazil, specifically in Minas Gerais.
xi
SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS
xii
ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
IEPHA - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais
IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IHGBA - Instituto Histórico e Geográfico da Bahia
IHGMG - Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
IICI - Instituto Internacional de Cooperação Intelectual
INCE - Instituto Nacional de Cinema Educativo
INL - Instituto Nacional do Livro
IPAC - Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Minas Gerais
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ISEB - Instituto superior de Estudos Brasileiros
MAM/RJ - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
MAM/SP - Museu de Arte Moderna de São Paulo
MASP - Museu de Arte Assis Chateaubriand de São Paulo
MAST - Museu de Astronomia e Ciências Afins
MEA - Museu da Escola de Arquitetura
MEC - Ministério da Educação
MHN - Museu Histórico Nacional
MOW - Memory of the World Program of UNESCO
OCI - Organização da Cooperação Intelectual
PCH - Programa de Cidades Históricas
SEC-MG - Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais
SPAN - Serviço de Patrimônio Artístico Nacional
SUM - Superintendência de Museus
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFPE - Universidade Federal de Pernambuco
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
USP - Universidade de São Paulo
xiii
LISTA DE QUADROS
LISTA DE ANEXOS
xiv
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................
........................... 01
1.1 -
Introdução......................................................................................
...... 12
1.2 - Entre Disciplinas: desafios, limites e potencialidades para
pensar o
patrimônio.....................................................................................
................ 13
1.3 - Uma Breve Incursão no Debate Modernidade x
Pós-
modernidade..................................................................................
....... 27
1.4 - O Giro
Decolonial................................................................................ 36
1.5 - Entendendo a Rede Modernidade/Colonialidade para se
operar com o conceito de
“Colonialidade”...................................................................... 41
1.6 - A Colonialidade do Poder, Saber e
Ser............................................... 51
EO
CAP.
PATRIMÔNIO?.................................................................
2
.................... 65
2.1 -
Introdução......................................................................................
..... 66
2.2 - Patrimônio e a Modernidade
Disciplinar.............................................. 67
2.3 - Uma Tradição
Ocidental...................................................................... 72
2.4 - Patrimônio e as Configurações
Supranacionais................................. 85
2.5 - Patrimônio, Tradução Erudita e Poder
Institucional............................ 91
CAP. A PATRIMONIALIZAÇÃO NO
3 BRASIL...................................................... 97
3.1 -
Introdução......................................................................................
..... 98
3.2 - Patrimônio e sua Fundamentação Jurídica no
Brasil.......................... 102
3.3 - O Papel dos Museus e da 115
xv
Museologia................................................
3.4 - O IPHAN, a Institucionalidade e a Legitimidade da
Atuação.............. 124
3.5 - O IPHAN em sua Fase “Heroica” e a Constituição de uma
Dinâmica de
Atuação..........................................................................................
......... 134
4.1 -
Introdução......................................................................................
..... 147
4.2 - Os Encontros dos Governadores em Brasília e
Salvador.................... 148
4.3 - Minas Gerais e o
Patrimônio............................................................... 159
4.4 - O IEPHA e a Atuação
Especializada................................................... 167
4.5 - O IEPHA e as Relações
Disciplinares................................................. 181
4.6 - A Superintendência de
Museus.......................................................... 188
4.7 - O IEPHA, o Desenvolvimentismo e o Processo de
Municipalização da
Preservação...................................................................................
......... 196
REFRÊNCIAS...................................................................
........................... 216
ANEXOS.........................................................................
............................. 233
xvi
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
2
capitalismo? Por que as bibliografias dos cursos priorizavam europeus e
americanos nas discussões sobre a preservação? Aonde estavam os sul-
americanos nas bibliografias, ou os intelectuais que formaram o que
conhecemos como “pensamento social brasileiro”? O que esses autores
aparentemente pouco mencionados poderiam contribuir nas discussões
sobre o patrimônio? Seria possível subverter essa predominância europeia
nas referências bibliográficas a respeito do tema para pensá-lo,
prioritariamente, a partir da América do Sul?
3
relações com agentes e agências públicas ou privadas e o papel de Minas
Gerais nas políticas de preservação em nível federal e estadual. Esse
caminho pessoal e político foi o pano de fundo para a compreensão sobre
políticas de preservação no Brasil, sobre a prática de determinadas
instituições que lançaram mão do trabalho do especialista como critério de
legitimidade para a atuação sobre o patrimônio.
4
teórico-metodológica no qual se parte de análises macroestruturais, de
caráter teórico e abstrato, para culminar nas experiências e rotinas
materiais do Instituto estadual. Essa escolha de partir do “macro para o
micro” acabou por levar a abordagem do IEPHA e de outras agências
estaduais apenas para o último capítulo, quando, então, são trabalhadas a
documentação jurídico-burocrática das mesmas. Trata-se, portanto, do
esforço em trabalhar com a noção de “totalidade-histórica”1 onde a ideia de
“matriz de poder colonial” precisava ser dissecada para a posterior
interpretação das vivências institucionais em sua capacidade de produzir
efeitos nas diferentes dimensões da existência social.
5
saberes acadêmicos, reforçando parcerias e dinâmicas de herança
moderno-colonial.
6
temática do patrimônio trazia consigo uma herança metodológica do IPHAN
e de suas relações com determinados agentes e agências.
7
O trabalho de tessitura teórica e de análise das fontes se desenvolveu
em quatro capítulos a partir dos quais se constroem as interpretações sobre
as possíveis relações de colonialidade no campo do patrimônio. Não houve a
pretensão de se atestar uma “verdade” científica ao problema do sistema-
mundo-colonial, mas de se apontar a natureza conjectural da análise
acadêmica tomando como referência teorias sul-americanas acerca do
projeto moderno implantado a partir do colonialismo. Nesse sentido, a tese
apresenta reflexões passíveis de serem feitas para tais problemas num
desenvolvimento de quatro eixos: a colonialidade e o giro decolonial; o
patrimônio no modo de produção capitalista; a patrimonialização no Brasil; e
o campo do patrimônio em Minas Gerais.
8
objetivação das individualidades que, no contexto sul-americano,
especificamente brasileiro, insere-se na dinâmica moderno-colonial.
Considerando as características jurídico-burocráticas da preservação, a
partir do quadro teórico mobilizado, recorre-se a autoras e autores
dedicados à interpretação do tema sob a crítica ao eurocentrismo. Nessa
perspectiva, a patrimonialização parece se conformar como prática social
produtiva de tradição ocidental, criadora de valores fundamentados na
lógica de legitimação disciplinar.
9
no exercício das políticas públicas. Todavia, tais diferenças não se revelam
objeto da presente pesquisa, portanto optou-se por não abordá-las em suas
minucias normativas. Nesse sentido, entende-se aqui que as três condições
jurídico-burocráticas constituem o processo de institucionalização da
preservação no Brasil, e dessa forma, o uso do termo IPHAN serve apenas
como ferramenta de otimização da leitura.
10
se, assim, a dupla face da cultura enquanto dispositivo político e econômico
contemporâneo. Ao mesmo tempo pontua-se alguns exemplos nos quais o
patrimônio se revela como ferramenta de afirmação de grupos sociais a
situações de violência perpetradas pelo Estado ou por agentes privados.
Nesse sentido a preservação aparece como bandeira para reivindicação de
direitos individuais e coletivos relacionados às expressões da memória.
11
CAPÍTULO 1
A COLONIALIDADE E O GIRO
DECOLONIAL
12
1. A COLONIALIDADE E O GIRO DECOLONIAL
1.1 - Introdução
13
suas dinâmicas. Partiremos aqui num exercício de escrita sulear2, a partir do
qual as regras práticas de orientação cartográfica servirão como referência
metafórica para a construção de conhecimentos numa perspectiva
decolonial.
2 O sul geográfico tomado como ponto de partida discursiva - nomeado como sulear - é uma
empreitada intelectual de autoria do pesquisador Márcio Campos num conjunto de trabalhos
reunidos na seguinte plataforma virtual: <http://sulear.com.br/beta3/> Acesso em 03 de dez.
de 2017.
3 José Reginaldo Gonçalves (2007) discute os limites e os riscos dessa expansão semântica
observada ao longo do século XXI, e que nos dias de hoje permite compreender quantos
patrimônios existirem, ainda que incorra ao risco de um “inflacionamento”.
14
pela Museologia4. Esse parece ser um procedimento necessário ao próprio
desenvolvimento do assunto, seja para a elaboração de problemas grandes
e complexos que comportam número expressivo de variáveis presentes em
nossa realidade concreta, seja pelas limitações que as fronteiras da
especialização gradualmente constroem e que acabam encontrando
barreiras para uma abordagem sobre o patrimônio.
15
outros países, como Alemanha e Inglaterra, com maior ou menor sucesso, e
aparentemente se faz presente ainda nos dias de hoje.
16
ideias, importa destacar a conjuntura intelectual da década de 1970,
quando tais discussões se articulavam aos debates que questionavam
clássicas oposições entre natureza e cultura que, por sua vez, agregavam
diversos outros debates, tais como “sujeito versus objeto” e “discurso
versus realidade”.
5Sobre a condição fragmentada da ciência e sua relação com a lógica de mercado, ver:
POMBO, 2004; 2005.
17
ciência contra o que seria um saber “fragmentado”, fechado em si mesmo,
que seria, para ele, uma “patologia do saber” (JAPIASSU, 1976).
“ciência aplicada” por ocasião da criação da Sociedade Brasileira de Ciências, ver: FERREIRA,
Luiz Otávio. O ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brasil. In: DANTES,
18
Nessa perspectiva, falar em disciplina como sinônimo de ciência
poderia incorrer no risco de neutralização de históricos conflitos e debates
entre áreas distintas, em especial aquelas convencionalmente tratadas
como humanas e naturais. Importa evocar novamente Schwartzman (1992)
sobre a construção da ideia de ciências humanas – que de acordo com ele
remete ao contexto universitário francês – como produto desse conflito
histórico: à grosso modo, uma tentativa, segundo o autor, de dar às
humanidades o status intelectual que as ciências naturais gozavam.
Maria Amélia M. (Org.). Espaços da ciência no Brasil: 1800-1930. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2001.
8 No âmbito do patrimônio, tal processo pode ser observado a partir de intelectuais que
19
por diferentes grupos de pesquisadores por uma profissionalização da
pesquisa científica através da autonomia universitária (SCHWARCZ, 1993;
FERNANDES, 1975). Cabe destacar, então, a importância da constituição de
uma estrutura financeira capaz de financiar a produção científica no Brasil
através da criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) bem como
com a criação da Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino
Superior (CAPES) em 1951. Esse movimento somou-se à criação da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em 1948.
20
No plano institucional, o movimento de reforma universitária
possui duas vinculações exclusivas. Uma, voltada para a
destruição de modelos institucionais que são autênticas
sobrevivências do "antigo regime"; outra, orientada para a
construção da universidade nova. Não nos interessa retomar
e aprofundar, aqui, a análise e a crítica do que foram,
institucionalmente, as escolas superiores tradicionais e as
universidades conglomeradas, a que elas deram origem. O
fato é que a "escola superior tradicional" e a "universidade
conglomerada" constituíam versões pobres de uma precária
assimilação de "modelos arcaicos" de ensino superior. Elas
organizavam a vida intelectual como parte de uma "situação
colonial" crónica de dependência um tipo de bacharel, apto
para desenvolver várias atividades intelectuais, ligadas às
profissões liberais, à "cultura desinteressada" ou às
atividades práticas, de natureza burocrática ou política, e
para preencher os papéis intelectuais correspondentes,
envolvia consequências intelectualmente produtivas - sem
dinamizá-los, diferenciá-los e convertê-los, contudo, no
arcabouço de uma instituição educacional e cultural em
crescimento, e no suporte de um desenvolvimento
educacional e cultural auto-sustentado (FERNANDES, 1992, p.
526-527).
21
Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes11.
Cada uma, em suas divisões e subdivisões internas, parece nutrir os
próprios paradigmas analíticos a partir de suas matrizes institucionais,
intelectuais e profissionais. Nesse sentido, percebe-se que usar a associação
entre disciplina e ciência proposta por Japiassu (1976) na década de 1970
demandaria agregar discussões acerca das disputas e conflitos travados nas
e entre as diferentes áreas em torno da produção do conhecimento no Brasil.
11 Disponível em:
http://www.cnpq.br/documents/10157/186158/TabeladeAreasdoConhecimento.pdf. Acesso
em: 25 de jul. 2017.
12 Tema a ser explorado mais à frente no que diz respeito aos profissionais dedicados à
materiais de trabalho.
22
autonomia institucional, e marcada pela desigualdade econômico-social e
pela carência de políticas públicas continuadas na área da cultura. Trata-se
de uma realidade que parece favorecer a constituição de reservas de
mercado que podem vir a estimular o surgimento de estratégias de
sobrevivência profissional-financeira daqueles que se dedicaram à formação
universitária em disciplinas voltadas ao patrimônio – como é o caso da
Museologia, da Restauração (em Minas Gerais) ou da Arquitetura, por
exemplo.
23
patrimônio, em especial na realidade latino-americana – lugar de origem da
presente tese – onde a formação disciplinar parece ser condição de
legitimidade para a atuação profissional sobre bens culturais14.
14 Aqui importa destacar a discussão desenvolvida por Márcia Kersten e Anamaria Bonin no
artigo “Para pensar os museus ou quem deve controlar a representação do significado dos
outros?” referente a coleções etnográficas e a relação com a Antropologia na construção de
representações sobre o “outro”. Ver: KERSTEN & BONIN, 2007. Outro artigo que interessa
mencionar nessa mesma perspectiva é “Escolha seu menu no Museu Canibal”, publicado na
revista eletrônica Público. O artigo trata de uma exposição realizada por Jacques Hainard em
2002 no Museu de Etnografia de Neuchâtel, Suiça, cuja expografia organizava-se como um
enorme jantar: cada mesa tinha um menu próprio, mas os “pratos” eram máscaras,
estatuetas e objetos da reserva do museu. A discussão em torno da referida exposição dizia
respeito ao poder de legitimação dos discursos dos museus e suas orientações políticas e
teóricas na construção de representações sobre culturas não europeias. Disponível em:
<https://www.publico.pt/temas/jornal/escolha-o-seu-menu--no-museu-canibal-286646>
Acesso em: 20 de maio 2017
24
segundo ele, havia fracassado em lidar com os problemas sociais e
ambientais, mas sim produzido um desencanto, um mal-estar ocidental –
crítica que abarcava, portanto, as ciências humanas e suas instituições no
Brasil. Daí estabeleceu-se a discussão entre o autor e Simon Schwartzman,
através dos textos intitulados “O Espelho de Morse”, “A Miopia de
Schwartzman” e o “O Gato de Cortazar”, a partir dos quais Schwartzman
assumiu a defesa da produção científica brasileira. Mas interessa destacar
aqui que Morse, ainda que crítico das instituições, dos valores e modelos
modernos, falava a partir de um lugar acadêmico, disciplinar, especializado,
e seu poder de fala, e o conteúdo da mesma, assumia e reafirmava sua
legitimidade pelo/através do triunfo do que seria, portanto, essa
racionalidade ocidental, esse projeto civilizatório: a Sociologia em sua
dinâmica disciplinar.
Partindo desse lugar de fala e esse poder de falar sobre a região que
chamou de Ibero-América, Morse colocou tal território em perspectiva e
evocou a ideia de uma suposta “essência cultural ibero-americana” através
da qual depositou uma espécie de fé, um tipo de esperança em
contraposição ao desencanto ocidental. Esse parece ser um dos pontos
nevrálgicos do debate estabelecido com Simon Schwartzman: um arriscado
movimento que poderia se tornar discriminatório ao induzir uma
interpretação sobre a suposta incapacidade das sociedades colonizadas em
constituírem/manterem /desenvolverem as estruturas científicas herdadas
desde a colonização dos territórios. E nessa perspectiva de Morse, a cultura
parece definir a capacidade [ou não] dessas sociedades de refletir
criticamente sobre si mesmas e sobre outras a partir dos mecanismos
institucionais herdados por uma racionalidade ocidental: a ciência em sua
formação disciplinar.
25
Importa destacar que a institucionalização das áreas em formato
disciplinar – universitário – no Brasil foi um fenômeno complexo e dialético,
com características variadas (SCHWARTZMAN, 2015).
de saúde pública. Em 1925 foi incorporado ao Instituto Butantã, se tornando Instituto Adolfo
Lutz na década de 1940. Disponível em: <http://www.ial.sp.gov.br/ial/centros-
tecnicos/centro-de-bacteriologia/historia>. Consultado em 18 de agosto de 2018.
26
regressivo, mas investirem na produção de condições de um novo espírito
científico e político, libertador porque liberto das censuras (BOURDIEU, 2004,
p. 11)17. Esse mesmo tom é assumido por Japiassu (2000) acerca dos riscos
que o relativismo excessivo oferece à elaboração de uma crítica necessária
sobre o poder exercido pela racionalidade científica:
17 Cabe destacar que essas ideias se inserem num contexto de debates ontológicos sobre a
validade da produção científica em caráter objetivo e a constituição de múltiplas realidades a
partir da inseparabilidade sujeito-objeto. Isso não significa que Bourdieu defenda uma
unidade e objetividade na ciência: ao contrário, o autor reconhece como um progresso em
direção à cientificidade quando há conflitos, divergências científicas, isto é, confrontos
regrados.
18 Tais conceitos dizem respeito à relação de dominação colonial da América do Sul e à
27
Para essa rede de autores sul-americanos, os pressupostos
fundacionais do ambiente intelectual das disciplinas relacionadas às
humanidades na América do Sul dizem respeito à relação entre ciência e
Modernidade, cuja expressão se observa no formato das universidades e na
segmentação do conhecimento em disciplinas.
28
nacionais e internacionais de estudiosos dessas disciplinas.
Ou seja, sabemos politicamente que existem diferentes
disciplinas. Elas têm organizações com fronteiras, estruturas
e corpos de funcionários para defender seus interesses
coletivos e assegurar a sua reprodução coletiva
(WALLERSTEIN, 1999, p. 450).
29
posicionamentos epistêmicos. Perspectivas que incluem o sujeito
cognoscente na realidade social – esse mesmo sujeito produtor de
conhecimentos – mas que escolhe como foco as determinações sistêmicas
sobre os indivíduos. E para não incorrer em argumentações superficiais é
preciso se aprofundar no terreno onde tais ideias são gestadas,
compreender a lógica de pensamento a partir de correntes de investigação
que se debruçaram por essas ideias.
30
causaram a destruição ambiental – constituíram um terreno favorável ao
rompimento desse paradigma e a adesão ao paradigma pós-moderno.
O historiador inglês Peter Burke (2012), por sua vez, discorre sobre a
constituição de correntes de pensamento remetendo às escolas francesas e
alemãs em oposição às escolas inglesas. Segundo ele, a construção
histórica do pensamento social remete à formação de duas correntes de
pensamento que poderiam ser denominadas como individualistas
metodológicos e holistas. A primeira, particularmente forte nas escolas de
tradição inglesa, conduz suas análises do social reduzindo o foco ao
indivíduo. A segunda, por sua vez, é comumente abraçada por historiadores,
sociólogos e antropólogos franceses e alemães, os quais voltaram-se à
análise das ações individuais como integrantes de um sistema de práticas
sociais. Dessa última, Burke ressalta o papel desempenhado por Durkheim,
Weber, Levi-Strauss, François Hartog, Marx, March Bloch, Lucien Febvre,
Braudel, Sausurre, Althusser, entre outros. Por essa corrente destacam-se
reflexões que ao longo da história do pensamento foram subdivididas em
outras correntes chamadas de “funcionalistas”, “estruturalistas” e
“marxistas”.
31
trabalhos e pesquisas, o que acaba por lhes conferir o enquadramento a
uma determinada corrente de pensamento.
20A Rede é composta por diferentes pesquisadores sul-americanos que possuem, em comum,
a interpretação sobre o papel protagônico do continente na constituição do fenômeno da
Modernidade. Uma descrição pormenorizada sobre o grupo será feita ainda neste mesmo
capítulo, mais à frente.
32
entre indivíduos e povos21 revela-se, para o autor, como uma totalidade-
histórica que produz a Modernidade: um fenômeno econômico, político e
social – três instâncias indissociáveis. A partir de Quijano outros
investigadores da rede investiram suas reflexões no entendimento desse
fenômeno, como é o caso do filósofo argentino Enrique Dussel (2005), que o
definiu por duas perspectivas:
“convivência” - trabalhada por Enrique Dussel e Nelson Maldonado Torres – no período que
antecede a colonização. Segundo o autor, a expansão marítima inaugura outras formas da
Europa se relacionar com culturas distintas: configura-se um sistema de poder no qual a
hegemonia do imaginário europeu cria uma hierarquia racial que atribui graus de
humanidade diferenciados através de identidades fixadas. A distinção entre povos com
costumes diferentes, até então encarados como povos com “costumes errados”, dá lugar ao
conceito de “povos sem alma”. Nesse sentido, afirma Grosfoguel, o “índio” teria se
constituído como a primeira identidade moderna.
33
Essa segunda perspectiva aponta o olhar crítico que a rede
Modernidade/Colonialidade lança sobre o fenômeno da Modernidade. Dussel
(2005), com base em Quijano e Wallerstein, interpreta que a primeira etapa
da Modernidade teria ocorrido, então, com o Mercantilismo comercial e com
o acúmulo de riquezas oriundas dos territórios ocupados, os quais
forneceram todas as condições materiais e ainda legitimou os elementos
ideológicos para a constituição do eurocentrismo. De acordo com ele, o
Atlântico suplantou o Mediterrâneo, deslocando essa centralidade da Europa
para a América do Sul. A segunda etapa da Modernidade seria, para o autor,
a Revolução Industrial do século XVIII e a Ilustração, os quais ampliaram e
consolidaram o processo iniciado no século XV. Sendo assim, a
superioridade europeia, de acordo com Dussel, acabou sendo fruto da
acumulação de riquezas e das experiências acumuladas desde a conquista
da América. “A Modernidade, como novo ‘paradigma’ de vida cotidiana, de
compreensão da história, da ciência, da religião, surge ao final do século XV
e com a conquista do Atlântico” (DUSSEL, 2005, p. 28).
34
referência a Europa - se revela como a versão hegemônica trabalhada
largamente por universidades e centros de pesquisa em todo o globo23. Esta
versão se projeta em elaborações intelectuais de domínio europeu
estabelecidas com o resto do mundo desde o final do século XV, a partir da
qual se apresenta como uma única forma legítima de historicidade: um
passado onipresente que atribui legitimidade a toda explicação que lhe é
traçada a partir do presente e de critérios temporais europeus, e a
instalação de um futuro como lugar de esperança (QUIJANO, 1988). Para
Quijano, esse seria o sentido básico das utopias modernas que se produzem
na Europa e que podem ser reconhecidas como um primeiro momento de
construção de um pensamento moderno.
35
uma época nova, Pós-moderna. Para isso, a teoria social foi configurando o
movimento intelectual denominado Pós-modernismo (BURKE, 2012), cuja
compreensão é de fato uma tarefa complexa.
36
grandes esquemas explicativos. Destaca-se ainda o discurso sobre fim das
“grandes narrativas” não mais havendo garantias até mesmo da ciência que
já não poderia ser considerada como a fonte da verdade. Diferentes
matrizes teóricas formularam, então, o que ficou conhecido como
pensamento(s) pós-moderno(s) partindo de análises epistemológicas que
entendiam a falência de paradigmas sistêmicos.
25Para outras assertivas acerca do positivismo nas ciências sociais e no uso de analogias
derivadas das ciências naturais, importadas da física ou biologia, ver: FALCON, 1997.
37
excludentes apesar de originárias de pontos de vistas opostos: uma história-
síntese - voltada às preocupações estruturais, de perspectiva globalizante -
e uma micro-história - voltada às questões particulares, aos estudos dos
pequenos grupos. Para o autor há sensíveis diferenças entre o enfoque
hipotético-dedutivo e uma abordagem indiciária que dizem respeito ao
posicionamento do sujeito/observador em relação às diferentes escalas de
seu objeto. Mas segundo ele, é possível que ambas as abordagens sejam
combinadas em processos investigativos, ainda que a empreitada não seja
fácil. O autor defende a possibilidade de relacionar as perspectivas
investigativas do macro e micro-histórico, promovendo diálogos que podem
ser profícuos ao conjugar a postura explicativa com a descrição do detalhe
cultural. Segundo ele, ambos os paradigmas apresentam lacunas em suas
interpretações, ainda que contemplem grandes obras historiográficas.
Vainfas considera possível encontrar grandes trabalhos que prezem por
macro-explicações consistentes, que executam uma abordagem do sujeito
coletivo com maestria, mas que silenciam personagens, corpos, crenças,
aflições, que apresentam sujeitos sem rosto e sem nome. Por outro lado, ele
aponta a existência de grandes trabalhos investigativos sobre microcosmos
que envolvem práticas, costumes comportamentos relevantes à
compreensão de um dado segmento social, étnico, religioso ou profissional,
mas que ao se reduzirem a uma pequena comunidade ou grupo no tempo
acabam incapazes de tecer reflexões gerais consistentes e se limitam às
descrições de realidades investigadas (VAINFAS, 1997). Segundo Vainfas:
38
universalidade de categorias utilizadas na formulação de pensamento
(CHARTIER, 2015), criando, com isso, os conceitos de habitus, campo e doxa.
O autor oferece ferramentas analíticas para se articular premissas
estruturais com a própria ideia de conflito e de tensão entre agentes e seus
espaços sociais. Bourdieu não opera com o consenso ou com o equilíbrio,
mas considera as estruturas que atuam sobre os indivíduos fazendo parecer
a existência de um consenso entre eles.
39
viés neoliberal. Netto, por sua vez, sintetiza a crítica dos modernos aos pós-
modernos no que seria o esforço destes últimos em reconstruir, através de
representações sociais, a epiderme do mundo contemporâneo. O que
ambos os autores defendem é que a construção ideológica pós-moderna
não reconhece seus determinantes estruturais e, por isso, acaba por
constituir uma cumplicidade com a ordem burguesa liberal em sua lógica de
mercado.
40
operação: aquela que historicamente separou e reduziu, entre outras coisas,
espaço e tempo, natureza e sociedade, etc.
41
como o cubano José Martí, o peruano José Carlos Mariátegui, e os(as)
brasileiros(as) Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Darcy Ribeiro, Paulo
Freire, Conceição Evaristo, entre outros.
42
Essa abordagem refere-se a um paradigma de totalidade histórico-
social moderna, o qual produziu implicações no conhecimento da
experiência histórico-social ao deixar de fora – ou acolher de forma
distorcida – variadas outras experiências histórico-sociais. Segundo ele, a
crise da racionalidade moderna no século XX colocou em cheque a visão
atomística da experiência histórico-social e fez notar renovações no debate
filosófico gestando, então, o pós-modernismo filosófico-social. Esse
movimento se deu não apenas na concepção de que a totalidade não seria
mais necessária, como também a própria ideia de totalidade passou a ser
encarada como uma distorção epistemológica. “A ideia que remete para a
existência de estruturas duradouras de relações sociais cede lugar à ideia
de fluências instáveis e cambiantes, que não chegam a solidificar nas
estruturas” (QUIJANO, 2010, p. 84).
43
Sobre outro ponto de vista, Santiago Castro-Gomez (2005) entende
que a filosofia pós-moderna impulsionou a crítica à ocidentalização do
mundo, colocando em questão a repressão das diferenças pelo fenômeno
da Modernidade. Contudo, prossegue:
27 Aqui é preciso destacar que o termo “abstração” se refere às escolhas do pesquisador que
vê confluências de forças entre os elementos pesquisados. Isso não significa que o campo em
si seja abstrato, pois se refere à materialidade de agentes e agências. Mas o agrupamento
destes parte de uma interpretação sobre a existência de determinada correlação de forças.
Nessa perspectiva, é possível pensar a existência de diferentes campos – em variados
recortes interpretativos – no exercício de reflexão sobre a realidade: campo da arte, campo
da moda, campo da cultura, campo científico, etc.
44
contribuição decolonial, seria possível interpretar que a América do Sul
apresenta suas singularidades históricas. Seria um agrupamento abstrato,
produto das decisões intelectuais do pesquisador, mas que se referem a
grupos reais constituídos como tais na realidade, cujas práticas e as
representações, organizadas e compartilhadas, possibilitam a configuração
de uma estratégia analítica para a reflexão crítica sobre o trato com o
patrimônio em suas possíveis relações de colonialidade.
45
oposição ao indivíduo liberal –, com uma multiplicidade de vozes e mundos
produtora de uma pluralidade epistêmica (LANDER, 2005).
46
reforçaram o pós-colonialismo como movimento epistêmico. Na década de
1980, o debate difundiu-se com mais vigor a partir da Inglaterra e dos
Estados Unidos, por meio de diálogos com a crítica literária e os estudos
culturais, com destaque para o indiano Homi Bhabba e o jamaicano Stuart
Hall.
47
Uma genealogia atenta da produção pós-colonial não permite
tal ênfase de afastamento com a crítica marxista. Franz
Fanon e Ranajit Guha, principais expoentes respectivamente
das tríades “francesa” e “sagrada” do pós-colonialismo,
tiveram forte inspiração dos escritos marxianos e marxistas.
A inspiração em Gramsci pode ser vista em Edward Said,
Gayatri Spivak e Stuart Hall (BALLESTRIN, 2014, p. 195).
48
fundado na década de 1990 nos Estados Unidos por intelectuais sul-
americanos e americanistas filiados a universidades americanas, com
destaque para a produção do peruano Aníbal Quijano, considerada uma
referência nos trabalhos do grupo. O Manifesto inaugural do grupo foi
publicado em 1993 na revista “Boundary 2”, da Duke University Press,
sendo reeditado em 1998 dessa vez em espanhol. Naquele mesmo ano,
ocorreu um Congresso na Universidade de Duke entre o Grupo Sul-Asiático
e o Grupo Sul-Americano, marcando a última reunião deste último antes de
sua desagregação (BALLESTRIN, 2013).
49
rede Modernidade/Colonialidade, a qual se mobilizou na constituição de
conceitos e categorias interpretativas inspirados na Filosofia da Libertação
desenvolvida pelo argentino Enrique Dussel, na Teoria da Dependência
explorada pelo peruano Aníbal Quijano, na análise do sistema-mundo
trabalhada pelo estadunidense Immanuel Wallerstein, na teoria feminista
chicana, na filosofia africana e nos estudos subalternos (GROSFOGUEL,
2008).
29 Aqui interessa destacar o questionamento que Francisco Iglesias (1992) realiza acerca da
expressão “encontro”. Para o historiador, a conquista da América, tratada equivocadamente
como “descobrimento”, é caracterizada como encontro entre culturas distintas. Contudo, o
que seria para ele esse “encontro” de culturas muito diversas só poderia resultar em choque
e dizimação. Nesse sentido, Iglesias utiliza o termo “choque de culturas”.
50
portanto, nessa totalidade a partir desse choque de culturas e da
exploração do território que se tornou a América. Ou seja, a produção da
Modernidade teria relação direta e intrínseca com a conquista da América
na medida em que reproduz a base da acumulação originária de capital - a
exploração de matéria-prima - e faz emergir o capitalismo na sua lógica
mundial - fundamento material da produção da Modernidade europeia.
51
deste conceito é a ideia de que, a partir da expansão marítima do século
XVI, fundou-se a maior unidade política e econômica até então definida,
baseada na divisão mundial do trabalho em centro e periferia, europeus e
não-europeus, e em aparelhos burocráticos de Estado. Tratar-se-ia, portanto,
de um sistema mundial com uma coerência própria: estruturas, grupos e
regras de legitimação que tenderiam ao equilíbrio. Nesse sistema-mundo, o
capitalismo revela-se desde então o modo de produção dominante, e a
periferia encontra-se em situação subordinada (WALLERSTEIN, 1991). Sobre
os esquemas de funcionamento dessa estrutura pensada por Wallerstein,
Arruda (1983) observa influências marxianas e braudelianas que partem de
histórias e análises globalizantes e de longa-duração para a elaboração de
uma interpretação sistêmica, na qual se rearticulam elementos que dizem
respeito à organização do capitalismo:
52
Já a interpretação do argentino Walter Mignolo (2005) é de que a
metáfora do sistema-mundo de Wallerstein não traz à tona a colonialidade
do poder. Nesse sentido, o autor vê uma grande contribuição de Quijano
para o conceito elaborado por Wallerstein, no sentido de denunciar as
distintas posições de poder decorrentes do mundo moderno-colonial – este
enquanto fenômeno europeu do qual o mundo é partícipe. Sendo assim, o
conceito de colonialidade, para Mignolo, representa o giro teórico no debate
sobre a Modernidade enquanto estratégia para a auto definição da Europa,
indissociada do capitalismo desde o século XVI (MIGNOLO, 2005, p.34). A
ideia de sistema-mundo de Wallerstein serviu, portanto, de referência para
a formulação do conceito de “colonialidade” de Quijano que lhe expande
como padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e
eurocentrado (BALLESTRIN, 2013), onde se entrelaçam processos culturais,
políticos e econômicos.
32A crítica do autor sobre tal binarismo é atribuída ao que ele e Wallerstein (1991)
entenderiam como legado do liberalismo do século XIX na ciência social em sua divisão em
três áreas, três lógicas, três níveis: econômico, político e sociocultural.
53
Retomando a discussão sobre a expansão do conceito de sistema-
mundo por Quijano e a formulação da noção de colonialidade como um
elemento distintivo das análises produzidas pela linha pós-colonial, importa
destacar que a interpretação deste autor sobre o padrão de poder na
experiência colonial compreendia, também, um padrão cognitivo, onde se
via uma “[...] perspectiva de conhecimento dentro da qual o não-europeu
era o passado e desse modo inferior, sempre primitivo” (QUIJANO, 2005,
p.116). Considerando que a conquista ibérica acabou por despojar muitos
povos de suas identidades históricas e de seu lugar na produção cultural da
humanidade, ao trata-los como raças inferiores suas culturas foram
igualmente inferiorizadas, tomadas como primitivas. Segundo o autor:
54
atribuíam à Reforma, à Ilustração e à Revolução Industrial o projeto de
Modernidade (GROSFOGUEL & BERNARDINO-COSTA, 2016).
33Aqui importa fazer referência ao debate mencionado anteriormente neste capítulo entre o
brasilianista Richard Morse e o sociólogo brasileiro Simon Schwartzman através da Revista
Novos Estudos no ano de 1989, no qual a narrativa sobre o fracasso das instituições
modernas nas Américas, emplacado por Morse, é contundentemente rechaçado por
Schwartzman.
55
reflete: ainda que a América do Sul tenha muitos traços europeus
[importantes], ela é, todavia, profundamente distinta. Nesse sentido, não se
identificam as particularidades reais dos problemas desse território,
dificultando a construção de soluções particulares a ele. Segundo o autor:
56
variadas formas de existência. Aqui, é preciso destacar a perspectiva de
patrimônio a ser operacionalizada nesta tese: entende-se o mesmo
enquanto produto de relações institucionais marcadas por questões
[indissociáveis] político-estatais, econômicas e culturais. Tal ideia será
trabalhada nos capítulos à frente, e tomará como base e referência as
discussões e reflexões mencionadas neste primeiro capítulo a respeito das
ideias de Modernidade e colonialidade.
57
1.6 - A Colonialidade do Poder, Saber e Ser
58
moderno-colonial, cujas intervenções políticas, ainda que significativas em
sua instância nacional de atuação, não interferem num sistema-mundo
articulado à colonialidade.
59
especificidade das relações de forças que atuavam [e ainda atuam] sobre a
América do Sul. Segundo Mignolo, os desencontros entre Marx e o marxismo
na questão ameríndia, por exemplo, foram temas de reflexões do peruano
José Carlos Mariátegui e do argentino José Aricó – em momentos históricos
diferentes. O autor se pergunta, então, se seria necessário vivenciar a
experiência colonial como condição para sua inteligibilidade. É daí que
discorre sobre a relação entre a produção do saber e os “locais geoistóicos”:
lugar geográfico específico, com sua história particular, considerando, como
exemplo, que a realidade de La Paz não se assemelha à realidade de
Wisconsin (MIGNOLO, 2003). Para o autor, o próprio idioma é, inclusive,
elemento fundamental para a compreensão tanto das histórias coloniais
como das histórias nacionais: a produção do conhecimento seria, para ele,
inseparável das sensibilidades do local geoistórico. “[...] Nesse sentido, a
reflexão não viaja, mas atua na interseção de memórias e informação, de
decisões passadas, acontecimentos atuais e esperanças utópicas”
(MIGNOLO, 2003, p. 256). Uma perspectiva epistêmica proveniente do lado
subalterno da “diferença colonial” traria, portanto, um grande contributo à
teoria social (GROSFÓGUEL, 2008)
60
Aqui é pertinente remetermos à autora australiana Raewyn Connell
(2010) que, apesar de não compor a rede de pesquisadores decoloniais, tem
se dedicado a uma reflexão crítica sobre as condições sociais de produção
do conhecimento numa perspectiva geopolítica. Sua reflexão em muito
pode contribuir para os debates sobre colonialidade no que diz respeito à
pretensão de universalidade da herança colonial. A autora chama a atenção
para o expressivo desequilíbrio na produção das Ciências Sociais no mundo
inteiro: as ideias que fundamentam os trabalhos, os argumentos de
autoridade, os conceitos fundamentais, as leituras consideradas
imprescindíveis para a realização de pesquisas referem-se a um Norte-
global. Os programas de curso, segundo ela, têm uma bibliografia europeia
e norte-americana, o que indica uma necessidade de reorganização
intelectual. Segundo ela, seria urgente uma Sociologia crítica “pós-colonial”
que diga respeito a uma sociologia das Ciências Sociais para que todo
mundo possa falar com autoridade epistêmica de qualquer lugar global
(HAMLIM & VANDENBERGHE, 2013).
61
Connell considera que esse processo possui consequências
intelectuais profundas, ainda que não discutidas: a autora destaca que, para
um cientista social, isso significa descrever uma sociedade a partir de
critérios e códigos que lhes são externos – criados para se analisar e
descrever outras sociedades, com especificidades históricas próprias.
62
A los pocos meses de haber leído sus palabras, en Panamá,
frente a una copa de vino, la filósofa Urania Ungo me dijo:
“Estoy cada día más convencida de que citar es un hecho
político. Las feministas latinoamericanas en nuestros escritos
no nos citamos a nosotras, recurrimos a la autoridad exterior
para justificar nuestro pensamiento. Pero la autoridad es
siempre política (GARGALLO, 2014, p. 9).
63
Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. Em seu texto sobre a lógica
de produção do conhecimento nas universidades ocidentalizadas, o
pesquisador discorre sobre as estruturas do conhecimento a partir de
ensaios produzidos por Enrique Dussel. Segundo Grosfoguel, a filosofia
cartesiana, ao secularizar o sujeito do conhecimento de “Deus” para o “Eu”,
produziu a ideia de um conhecimento “imparcial”, “objetivo”, por ser
produto de um monólogo interior, sem laços sociais. Nessa perspectiva, o
conhecimento seria “universal”, por se despir de qualquer interferência do
lugar de fala. Esse movimento, denominado pelo autor de “universalismo
idolátrico” se tornaria o critério de validação do conhecimento das
disciplinas nas universidades ocidentalizadas (GROSFOGUEL, 2016).
Grosfóguel recorre, então, a Enrique Dussel para discorrer sobre o contexto
de produção da máxima cartesiana “Penso, logo existo”, a qual é precedida
em 150 anos pela conquista da América. Sendo assim, conclui:
64
Península Ibérica para o norte da Europa. Por essa razão, os portugueses e
os espanhóis ficaram de fora do cânone das universidades ocidentais,
mesmo tendo protagonizado a construção do sistema-mundo
moderno/colonial (GORSFOGUEL, 2016). Desde o fim do século XVIII,
portanto, o conhecimento produzido e divulgado entre as universidades
ocidentalizadas passa a ter como referência a França, Alemanha, Inglaterra
e Itália e, posteriormente, os Estados Unidos:
65
observarmos o conjunto de pensadores que se valem das
disciplinas acadêmicas, vemos que todas as disciplinas, sem
exceção, privilegiam os pensadores e teorias ocidentais,
sobretudo aquelas dos homens europeus e/ou euro-norte-
americanos. [...] O mito que entretanto subjaz à academia é
o discurso cientificista da “objetividade” e “neutralidade” que
esconde o “locus de enunciação”, ou seja, quem fala e a
partir de qual corpo e espaço epistêmico nas relações de
poder se fala (GROSFOGUEL, 2007, p. 32).
38 “trabajando em el plano de la descolonización del conocer, del sentir, del pensar y del ser”.
66
racionalidade pretensamente “objetiva”, “imparcial” – características
associadas ao conhecimento científico) em relação aos demais saberes
produzidos em outros territórios. As categorias, conceitos e perspectivas
ocidentais se converteram em universais para a análise da realidade: uma
construção eurocêntrica que passou a organizar a noção de tempo e espaço
tomando a si mesma como régua de análise. Recorrendo às Ciências
Políticas, Lander chama de “cosmovisão liberal” esse dispositivo de
conhecimento colonial que acabou por submeter aos seus prismas as
demais formas de ser, conhecer e se organizar, conceituando-as como
arcaicas, primitivas, tradicionais, etc. (LANDER, 2005).
67
Para Lander, a confiança na possibilidade de um conhecimento certo,
objetivo, com base empírica, fez desenvolver a cultura do conhecimento dos
especialistas treinados na tradição ocidental, relegando o conhecimento dos
“outros” à categoria subjetiva de “conhecimento tradicional” – termo de
caráter pejorativo, sugerindo uma base imprecisa, altamente suscetível a
equívocos da ordem do “irracional”, segundo o autor.
39 Interessa mencionar que um dos exemplos de divisórias visíveis sugeridos por Boaventura
(2010) se refere às fronteiras dos Estados nacionais. Tratam-se, segundo ele, de linhas
literais que servem como vedações e campos de morte, dividindo cidades, criando zonas de
prisões ou detenções, territórios ou áreas de brutalidade pela violação de direitos. A partir
dessa perspectiva do autor, é possível pensar que o Estado nacional, como herança
moderno/colonial, exerce seu poder de força constituindo até mesmo muros que
materializam o controle sobre a vida de populações e sobre a terra. Nesse sentido, as
fronteiras podem ser encaradas como elementos que reafirmam o sentido de Nação
enquanto uma comunidade socialmente construída (ANDERSON, 2008).
68
toma como premissa cultural do nosso tempo a crença na ciência como
única forma de conhecimento válido. Ainda por esse autor:
69
histórica e na visão de mundo de alguns países como se as mesmas fossem
universais, suficientes para explicar a diversidade de experiências do resto
do mundo. Essa seria para o autor, então, a base teórica das Ciências
Humanas que reduz a produção sul-americana – e de determinadas outras
partes do mundo – a aprender essas bases, aplicá-las e reproduzi-las como
verdades que independem das experiências espaciais/temporais, sob o
preço da deslegitimação ou inferiorização epistêmica, sob o risco da
desqualificação e marginalização: “Se os povos do Sul não seguem as
definições hegemônicas ocidentais, eles são imediatamente denunciados e
marginalizados da comunidade global [...]” (GROSFÓGUEL, 2016, p. 44).
70
decoloniais permite relações e interações com autoras feministas para a
complexificação da problemática do patrimônio pela via da análise
macrossocial. Trata-se de autores que parecem não priorizar as construções
culturais como determinantes das relações e interações, mas sim
articuladas a determinações econômico-sociais que orientam a cartografia
política global e acabam por interferir, entre outras coisas, nas relações
subjetivas. Nessa perspectiva, a “subjetividade” e a ordem do “simbólico” e
das “representações” são interpretadas como elementos incorporados a
questões macrossociais que podem – ou são capazes de – (re)produzir
relações de dominação da ordem do saber.
40 Entre os autores priorizados nesta tese, importa mencionar, por exemplo, que Grosfóguel
intensifica seu diálogo com a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, priorizando,
aparentemente, a racionalidade cartesiana como ponto paradigmático no pensamento
ocidental. Walter Mignolo, todavia, parece recorrer ao cristianismo como elemento chave no
entendimento da América Latina.
71
envolvem o capitalismo global quando são tratadas sob a lógica de
produção e reprodução do sistema-mundo mesmo em termos acadêmicos. É
na perspectiva de que na construção de conhecimento crítico revela-se um
impulso de mudança, que a rede Modernidade/Colonialidade aparentemente
assume a produção teórica como ação política. Nesse viés, Grosfóguel (2008)
lança o desafio de pensar/criar uma política anticapitalista radical que vá
além da política identitária.
72
paternidade europeia de conceitos e instituições comprometidos com a
emancipação e libertação humanas sob o contexto capitalista (BALLESTRIN,
2014).
73
afirmações celebratórias da diversidade – suspeitas de reproduzirem os
esquemas de colonialidade que, conforme Castro-Gomez (2005), longe de
subverter as relações de poder, acabam por contribuir para consolidá-las. A
provocação que se faz é sobre a possibilidade de olhar para o patrimônio
sob ferramentas analíticas que reflitam sua potência e suas limitações para
uma política crítica ao capitalismo, ao eurocentrismo, ao sistema-mundo-
moderno-colonial.
74
CAPÍTULO 2
E O PATRIMÔNIO?
75
2. E O PATRIMÔNIO?
2.1 - Introdução
76
movimentações de afirmação de nichos disciplinares enquanto estratégia de
reserva de mercado.
77
Ainda que as discussões sobre as instituições de preservação do
patrimônio no Brasil remetam principalmente aos séculos XIX e XX, sua
abordagem disciplinar pela via do tema da “cultura” contou com um
desenvolvimento tardio por meio do sistema universitário, muito
provavelmente pela relação da temática com a abordagem cultural em
âmbito acadêmico. Para o brasileiro Renato Ortiz (2002), no processo de
institucionalização das ciências no Brasil, a temática da cultura ficou de fora,
muitas vezes pela disputa do “rigor” científico ou por uma tentativa de
alcance de legitimidade pelo trabalho considerado enquanto “ciência”. Para
fins de contextualização, interessa retomar os trabalhos de Schwartzman
(1992, 2001) e Fernandes (1975, 1992) comentados no capítulo anterior
acerca da institucionalização das áreas das ciências em formato disciplinar.
Os autores destacam que na primeira metade do século XX existia uma
estrutura educacional voltada à formação de profissionais a ocuparem
cargos dentro do corpo burocrático do Estado, constituindo-se como centros
de formação – faculdades isoladas – que se voltavam à prática do trabalho
profissional sem dedicação ao desenvolvimento de pesquisa. Tal realidade
se seguiu até o período da reforma universitária no final da década de
196041, e pode ser interpretada como o pano de fundo da formação de
institutos de patrimônio pelo país e da constituição de um campo
profissional da preservação diretamente ligado ao Estado.
41 A reforma ocorreu logo após o AI5, em 1968 sob a Lei n° 5.540 e tratou de alguns assuntos
novos ou mencionados em decretos anteriores, tais como: junção ensino e pesquisa,
colegiados de gestão e atividades de extensão. A perspectiva de modernização das
instituições universitárias de forma a controlar as forças oposicionistas ao Regime Militar é
traçada por: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política
brasileira e modernização autoritária. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
78
misturava disciplinas em formação incipiente e a prática profissional num
momento de recrudescimento da ação do Estado por parte da figura de
Getúlio Vargas42.
79
considerado por alguns pesquisadores44 como um importante personagem
na história da consolidação da Antropologia como disciplina no Brasil.
Wegley veio ao país pela primeira vez a convite do Museu Nacional, em
1939, e se dedicou aos estudos de populações não-indígenas na Amazônia.
80
ser encarada como fenômeno cultural. Nesse sentido, a autora afirma que o
campo de discussões e recomendações nacionais e internacionais sobre o
patrimônio acabou se apropriando dessa perspectiva, tornando secundários
ou mesmo ignorando debates e estratégias que evocassem lutas de classe,
dinâmicas políticas e jurídicas, por se ocuparem majoritariamente à
promoção de eventos de conscientização e mobilização pela perspectiva
cultural. Por essa razão, Nogueira compreende que esse ponto de vista não
oferecere soluções efetivas para as pilhagens, para a poluição, as
catástrofes ambientais, as destruições ocasionadas pelo turismo e,
principalmente ou pelos desdobramentos da indústria da guerra nos moldes
imperialistas atuais. E aqui, importa acrescentar outras problemáticas que
atravessam o campo do patrimônio, mas que são pouco exploradas nas
pesquisas e debates acerca da preservação: a precarização do trabalho, luta
por terras, luta por moradia, demarcação de territórios, desastres
socioambientais, mercado de trabalho, exploração de recursos naturais,
entre outras45.
45Algumas destas problemáticas serão brevemente exemplificadas ao longo desta tese, mas
aqui cabe mencionar, à título de exemplificação, que as mesmas se desdobram em
mobilizações da sociedade civil em torno de demarcação de terras indígenas e quilombolas,
na organização de militâncias como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, ou no Movimento dos Atingidos por Barragens,
entre outros.
81
publicizam tais práticas e ajudam a constituir uma ideia, ou uma narrativa,
de coerência e de “ação institucional especializada”. Nessa perspectiva,
propomos reflexões sobre o trabalho das instituições de patrimônio
enquanto prática social produtiva, criadora de esquemas de representação.
82
elaborado por determinados sujeitos sociais, que têm detido,
no Brasil, o monopólio dessa construção (FONSECA, 2009, p.
28).
46 Importa mencionar outras possibilidades analíticas que levem em conta, por exemplo, as
perspectivas de Arjun Appadurai (2008) e Pomian (1984). Appadurai se volta ao fenômeno do
consumo que, segundo o autor, fundamentaria a formação do gosto, da distinção, da
formação do indivíduo e das estratégias de reprodução de grupos e de identidades sociais no
mundo moderno. O consumo produziria vínculos sociais e geraria formas particulares de
solidariedade, confiança e sociabilidade fundamentais para a vida social. Nesse sentido, o
objeto não possuiria um valor absoluto como resultado da demanda, mas seria a demanda
pelo o objeto que, como base de uma troca real ou imaginaria, conferiria valor a ele. Numa
outra perspectiva, Pomian percebe a produção de significado e a valoração como algo
associado à utilidade do objeto. Por esse ponto de vista, o objeto patrimonializado, no
contexto do museu, teria o significado e a valoração atribuída à não circulação.
83
historiadores da arte e dos primeiros etnógrafos do século XIX” (CHOAY,
2011, p. 24).
84
mas se distinguiria pelas representações construídas nos contextos
históricos e culturais da Modernidade e pelos elementos que a caracteriza,
como a vida nas grandes metrópoles, a divisão social do trabalho, a
especialização e a economia monetária. Segundo Gonçalves, a definição de
patrimônio enquanto categoria universal não exime de qualificá-lo em
termos culturais e históricos, uma vez que o acesso às categorias só seria
possível por meio das suas atualizações sociais. Sendo assim, referendá-lo
enquanto “categoria” seria reificar a tradição ocidental que o cria, que faz o
termo (e seu conjunto de sentidos) existir. Portanto, parece necessário
voltar a atenção para o caráter “construído”, “inventado”, da própria
palavra “patrimônio” pelos discursos modernos47 em toda a historicidade
ocidental de sua carga semântica.
Llorenç Pratts (2005), por sua vez, reflete sobre o patrimônio como
sistema de representação que obedece a construções sociais, ativado
principalmente pela via do discurso. Para o autor, esse sistema aparece com
o desenvolvimento do capitalismo na Revolução Industrial e se difunde
progressivamente até os recônditos das sociedades ocidentais e em suas
zonas de influência, apoiado na crescente separação do homem com a
natureza e num regime único de historicidade que separa passado, presente
e futuro. Pratts percebe, portanto, que esse sistema de representação seria
ativado a partir de atores políticos que detêm o poder de discursar sobre o
patrimônio e assim definir as regras de atuação sobre ele. Trata-se de
agentes de interpretação que legitimam identidades. Esse seria um poder
político que contaria com notável apoio do poder econômico e com os
poderes que envolveriam interesses acadêmicos e a habilidade dos técnicos,
segundo o autor:
85
recorre, voluntariamente ou não, à ficção de legitimar os
elementos, os componentes, antes do discurso, que é
simplesmente ignorado, exceto em alguns casos de flagrante
inconsistência. A necessidade é ainda maior no campo dos
técnicos (museógrafos, gerentes de patrimônio em geral),
que dependem para sua sobrevivência ou bem-estar,
conforme o caso, do nível de satisfação de seus clientes e
que são, em última análise, os responsáveis por conceber e
executar a linguagem formal que, se for bem resolvida, pode
exercer um efeito quase narcotizante de prestidigitação.
Tudo isso nos permite considerar exposições, museus,
ecomuseus, parques de todos os tipos, como aparentemente
neutros, sem qualquer conteúdo ideológico, embora, na
realidade, em nenhum caso, isso seja assim (PRATTS, 2005, p.
19-20)48.
48“Los poderes, si así puede llamárseles, o intereses, académicos compiten entre sí por
certificar el rigor científico de las activaciones, por obtener econocimiento social, recursos
económicos, estatus. La ciencia y sus correspondientes conocimientos disciplinarios deberían
marcar claramente los límites de legitimación de determinados discursos, pero la necesidad
es grande y, con frecuencia, se recurre, voluntariamente o no, a la ficción de legitimar los
elementos, los componentes, antes que el discurso, que simplemente se ignora, excepto em
algunos casos de chapucería flagrante. La necesidad aún es mayor en el campo de los
técnicos (museógrafos, gestores del patrimonio en general), que dependen para su
supervivencia o bienestar, según los casos, del nivel de satisfacción de sus clientes y que son,
en última instancia, los encargados de concebir y ejecutar el lenguaje formal que, si está bien
resuelto, puede ejercer un efecto casi narcotizante, de prestidigitación. Todo ello permite que
nos enfrentemos a exposiciones, museos, ecomuseos, parques de todo tipo, como
aparentemente neutros, sin contenido ideológico alguno, aunque, en realidad,en ningún caso
esto sea así”.
86
de significados imanentes aos objetos. O autor remete ao contexto de
mediação patrimonial institucionalizada – como os museus – para pensar na
construção discursiva das camadas de sentidos que se cristalizam em torno
de objetos a partir das classificações, dos sistemas de seleção e coleta, dos
arranjos documentais, das disposições museográficas e todo o conjunto de
referenciais que compõem o contexto de preservação.
87
ligados a determinadas disciplinas de pretensão científica. Essa ativação,
constituída historicamente a partir do ato de vontade de especialistas,
mostra-se sujeita a demandas econômicas, culturais e políticas no sistema
capitalista globalizado.
88
ou outros. Provido de uma linguagem legitimada, esse agente dispõe de
recursos para se firmar no mercado, como também parece dotado de
autoridade na disputa de discursos.
89
discussão desenvolvida por Jerônimo Silva e Edma Moreira (2017) a respeito
das dinâmicas sociais e culturais nas chamadas “zonas de fronteira”: locais
onde o poder estatal ou privado escancara seus interesses e seu poder
econômico, se desnuda na exploração de recursos a partir de grandes
investimentos que dependem da espoliação de camponeses, da remoção de
famílias e até mesmo do massacre de povos indígenas e de comunidades
quilombolas ou ribeirinhas. Para os autores, as históricas desigualdades
sociais e as contingências do trabalho escravo e da violência no campo
marcam a singularidade desses territórios que, por sua vez, estabelecem
relações de memória ligadas à “luta”50: ações diretas e indiretas de
enfrentamento e de reivindicação de direitos, de resistências e
(re)existências que vão desde a formação de sindicatos, associações,
cooperativas e enfrentamento armado até a criação de centros de memória
não reconhecidos pelo Estado. Partindo dessa perspectiva, é possível pensar
que nos referidos territórios de tensão, onde o pensamento se estruturaria a
partir da violência, a “patrimonialização da luta” – mencionada por Silva –
não permitiria o esquecimento de histórias individuais e coletivas,
assumindo como centralidade simbólica a ideia de resistência.
mobilização de passados míticos para apoiar o que ele chama de “políticas chauvinistas e
fundamentalistas” até o debate cultural em torno dos direitos humanos, justiça e
responsabilidade coletiva no contexto sul-americano.
90
de Recife, abordado por Gleyce Kelly Heitor (2017), oferece subsídios
teóricos para se refletir igualmente sobre o exemplo carioca, nos permitindo
pensar em ações de resistência ao silenciamento e a reivindicação ao direito
à memória não modulada pelo especialista:
91
que limitado ao inventário de referências culturais52 – pode lhes possibilitar
alguma ajuda por parte do Estado, garantiria, hipoteticamente, formas de
resistência material e política à imanência de fechamentos, falências ou
desagregações ocasionados por crises econômicas e pelo avanço do
capitalismo neoliberal.
52 O IPHAN possui uma metodologia de pesquisa para produzir conhecimento sobre marcos e
referências de identidade de grupos sociais em diferentes escalas, desde o território de uma
vila, a um bairro, a uma zona ou mancha urbana, uma região geográfica ou a um conjunto de
segmentos territoriais. O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) “[...] contempla,
além das categorias estabelecidas no Registro, edificações associadas a certos usos, a
significações históricas e a imagens urbanas, independentemente de sua qualidade
arquitetônica ou artística”.
Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/685/>. Acesso em: 02 de dez.
2017.
92
fins lucrativos” em conjunturas em que os financiamentos culturais privados
se voltam à “rentabilidade”.
53 Interessa mencionar que Dominique Poulot (2009, p. 201) chama a atenção para um
movimento político internacional – desde a década de 1950 – no qual as ações em favor do
patrimônio se revelam a vanguarda de uma democratização cultural.
54 Lia Calabre (2011) destaca como desafio contemporâneo a institucionalização da cultura
93
como exploração turística empresarial, como instrumento que “justifique” a
requalificação urbana e a especulação imobiliária, ou como instrumento de
fomento às diversas manifestações culturais, de resistência e de
(re)existência55.
55 Do Museu Vivo de São Bento (Duque de Caxias, RJ) ao Museu do Amanhã (Rio de Janeiro,
RJ); do Mercado Ver o Peso (Belém, PA) ao Mercado Central de São Paulo (São Paulo, SP); da
produção do Queijo do Serro (Serro, MG) ao ofício comercial do Mate da praia (Rio de Janeiro,
RJ); do território do Valongo (Rio de Janeiro, RJ ao núcleo histórico de Ouro Preto (Ouro Preto,
MG); enfim, são incontáveis os exemplos em que é possível discutir a instrumentalização do
patrimônio para interesses contraditórios e, por vezes, paradoxais, envolvendo articulações
entre empresas, poder público e sociedade civil.
94
acaba por atravessar a seleção e preservação de bens culturais. Da
constituição histórica das disciplinas, Lander assim descreve a formação do
ambiente intelectual que assume a cosmovisão europeia como seu eixo
central:
95
valor na apropriação e expropriação de práticas e objetos materiais a partir
das dinâmicas econômicas.
96
(im)possibilidade do sujeito “outro” falar, considerando o protagonismo
narrativo colonial.
97
respeito das reformas universitárias e da importância de uma autonomia
brasileira na produção e circulação de conhecimentos acadêmicos dentro de
um mercado de códigos que fundamentam as pesquisas científicas em
termos globais. Nesse caso, a discussão a respeito das instituições, valores
e modelos modernos, numa realidade sul-americana, especificamente
brasileira, passa também pela interpretação desses autores sobre o
fortalecimento de ferramentas para o controle e o combate às mazelas
produzidas pelo próprio projeto de Modernidade. Entende-se, portanto, que
o pensamento sobre o patrimônio não deve ser descolado desses debates e
reflexões, considerando-o inserido numa lógica de sistema-mundo-moderno-
colonial onde as esferas política, econômica e cultural são indissociáveis.
98
Mairesse (2013) na elaboração de uma espécie de “dicionário da
Museologia”, a partir do qual mobilizam esforços na elaboração de
“denominadores comuns” para o uso de termos e conceitos na referida
disciplina. O trabalho, de perspectiva predominantemente francófona, se
coloca como panorama de referência para a ação e pesquisa em Museologia.
A ideia seria de que uma padronização da linguagem58 possibilitaria trocas e
produções conjuntas, num movimento de desenvolvimento da Museologia
em termos globais. Esse exemplo nos oferece elementos para a reflexão
acerca da universalização de normas a partir de referenciais geolocalizados:
trata-se de um esforço de normatização de sentidos a partir de uma régua
considerada universal, no qual se processam diferentes etapas de escolha -
desde os termos a serem conceituados até o idioma de publicação - a partir
das quais se ofuscam relações de assimetria nas referências da produção
global.
58Sob o risco de realizar uma comparação leviana, talvez seja interessante, como exercício
reflexivo, remeter à exposição Dja Guatá Porã montada no Museu de Arte do Rio, na cidade
do Rio de Janeiro, aberta ao público entre os meses de maio de 2017 e fevereiro de 2018.
Concebida com a colaboração de diferentes etnias indígenas atualmente existentes no
estado do Rio de janeiro - os Guaranis, os Puris, os Pataxós e os indígenas que moram em
contexto urbano, como na Aldeia Maracanã -, a exposição aborda temáticas relacionadas a
existência e a cosmogonia desses grupos, incluindo ainda narrativas relacionadas à violência
e extermínio colonial. Em determinado ponto do trajeto expográfico há uma abordagem
acerca das estratégias portuguesas para o trato com a pluralidade de idiomas entre os
nativos escravizados. Segundo o discurso expositivo, a catequização se revelou a estratégia
mais eficiente de dominação/policiamento cultural no uso da força de trabalho indígena. Para
tanto, foi necessária a elaboração de gramáticas e glossários comuns a serem aplicados aos
nativos - a partir dos quais foram traduzidas orações, hinos, etc. A tentativa de padronização
e compartilhamento de um idioma a ser utilizado pelos diferentes grupos étnicos se revelou,
portanto, uma estratégia de controle eficiente ao projeto de “exploração civilizatória”. Nesse
sentido, operou-se igualmente a dinâmica do “denominador comum”, viabilizando o
entendimento dos colonizadores para fins de execução do projeto moderno-colonial. Mais
informações sobre a exposição em:
<http://www.museudeartedorio.org.br/pt-br/exposicoes/atuais?exp=4653>. Acesso em: 06
nov. 2017.
99
permanente jogo de referências que traduzem assimetrias sociais e evocam
reverências. O processo de codificação parece, portanto, intimamente
ligado à disciplina e à normatização das práticas, numa operação de
ordenação simbólica que possibilita um consenso controlado sobre o sentido
(BOURDIEU, 1987).
59No original: "de onde salen las ideas dominantes, los ‘think thanks’ (tanques de
pensamento, sugerente metáfora bélica) de los poderes imperiales” (CUSICANQUI, 2010, p.
63).
60Cusicanqui, ao se referir à capacidade dos grupos indígenas – que configuram a maior parte
BOTELHO, Isaura. A política cultural e o plano das ideias. Trabalho apresentado no III
ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado entre os dias 23 a 25
de maio de 2007, na Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador, Bahia-Brasil. E ver ainda:
CALABRE, L. (org.). Políticas culturais: diálogo indispensável. RJ: Edições Casa de Rui Barbosa,
2005.
100
Tal discussão remete a pesquisas e debates relacionados às
cooperações internacionais para o desenvolvimento científico. Letícia P.
Alves de Souza (2011) e José A. Z. de Resende (2013) apontam para a
importância da política internacional ocidental - a partir da Primeira Guerra
Mundial - no avanço de programas que promoveram a cooperação entre
países na difusão do conhecimento científico considerado, então, universal.
Segundo a pesquisadora, a crença na missão do intelectual sobre uma
ciência capaz de contribuir para o desenvolvimento das sociedades - numa
perspectiva civilizatória - se fez presente em importantes estâncias
supranacionais e foi largamente compartilhada no Brasil. A Conferência de
Paz, realizada em 1919 em Paris, representou para Souza um marco na
organização internacional para negociações pacíficas entre as nações
respaldadas no conhecimento científico, na medida em que criava a Liga
das Nações - primeiro organismo internacional formado majoritariamente
por potências europeias fundamentado na igualdade jurídica entre os
Estados para a promoção da paz62.
62 Instalada a partir do Tratado de Versalhes, com sede em Genebra, a Liga das Nações
funcionou até 1946. Originalmente foi composta por cerca de 45 países, sendo que seu
Conselho foi então formado por quatro membros permanentes - Inglaterra, França, Itália e
Japão – e outros membros não permanentes alterados ao longo do tempo. Os conselheiros
eram intelectuais que representavam diferentes campos de atividade intelectual de
diferentes culturas e supostamente não deveriam representar os governos de seus países de
origem, nem se sujeitar a suas diretrizes, de modo a assegurar universalidade e credibilidade
à Comissão Internacional de Cooperação Internacional (RESENDE, 2013). Para informações
sobre a Liga e atuação do Brasil neste organismo, ver: GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a
Liga das Nações (1919-1926). Brasília: FUNAG, 2000.
63 A menção a Aloisio de Castro serve apenas para exemplificar a relação engendrada entre
agentes e agências em âmbito nacional e internacional.
101
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura -
UNESCO, criada em 1946 (RESENDE, 2013)64.
64 Cabe destacar que dois anos depois, em 1948, foi publicizada a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, marco da internacionalização dos direitos culturais considerados
indispensáveis à dignidade humana e ao livre desenvolvimento da personalidade.
102
de uma espécie de identidade genérica - a chamada “Humanidade” que
nomeia, portanto, o “Patrimônio da Humanidade” - cujos fundamentos
seriam identificáveis por critérios especializados, todos calcados nos
fundamentos das ciências herdadas das Luzes: “[...] inscreve-se no grande
projeto filosófico e político do Iluminismo: vontade dominante de
‘democratizar’ o saber, de torná-lo acessível a todos [...]” (CHOAY, 2006, p.
89).
103
bens culturais65. Muitas delas revelam-se disponíveis e indicadas em sítios
na internet de diversos institutos de patrimônio brasileiros – tais como a
página do IPHAN – e na página da UNESCO, os quais se revelam como
referências virtuais do campo do patrimônio no Brasil e em outros lugares
do mundo no trato e na divulgação de bens culturais preservados.
104
acadêmica (Idem, 1987) naquilo que seria considerado como “referência”
para as práticas de preservação.
105
As ideias de Poulot, ainda que centradas em autores e referências
eurocentralizadas, oferecem elementos que nos permitem articular a ideia
de “colonialismo técnico” no campo do patrimônio com a formação
moderno-colonial dos territórios ocidentalizados. Tal relação parece ter
como eixo articulador central a Modernidade que, por sua vez, se constituiu
historicamente pela afirmação da superioridade dos conhecimentos da
sociedade ocidental moderna (a ciência) em relação ao demais
conhecimentos produzidos em outros territórios (LANDER, 2005). De
maneira geral, essa perspectiva sobre a colonialidade consideraria o
conjunto de trocas com outros territórios tendo o conhecimento científico
como eixo central, o que corresponderia à centralidade europeia numa
totalidade histórica. Esses seriam alguns elementos indicativos das
dilatações das fronteiras do imaginário europeu a partir da conquista das
Américas, o que teria contribuído para produzir as condições necessárias de
formação de uma relação de dominação epistêmica estabelecida com o
resto do mundo desde o final do século XV.
106
No caso da conservação e restauração, por exemplo, a figura do
técnico-especialista reforça a exclusividade da ação sobre o bem e da sua
interpretação/valoração. Se pensarmos nas atividades desses profissionais
que fazem uso de laboratórios institucionais e seus equipamentos
especializados, visualizamos um quadro em que as análises instrumentais
demandam não apenas o conhecimento específico da tecnologia operada e
sua calibração, mas uma específica articulação entre as perguntas traçadas
pelo analista e o equipamento utilizado. No âmbito da restauração, autores
como Cesari Brandi (2000) e Chris Caple (2003) acabam por reforçar a
importância da atuação do profissional especializado e o caráter científico
do campo do patrimônio, contribuindo para uma lógica hierárquica de
relações e princípios que envolvem o conhecimento acadêmico e a atuação
profissional reconhecida (legitimada) por pares. Nesse sentido, vale
destacar que a confiabilidade dos laboratórios dedicados às ações de
restauração e conservação depende das metodologias que ele utiliza e dos
resultados que ele produz. Daí a importância atribuída à relação entre o
analista e o equipamento que ele opera, uma vez que os resultados são
produto das leituras estabelecidas dessa relação: trata-se de respostas
oferecidas pelo maquinário que precisam ser interpretadas à luz da
linguagem técnica. As informações obtidas dessa análise contribuem para o
conhecimento do objeto analisado, agregando dados quantitativos e
qualitativos que servem como referência para as intervenções a serem
realizadas nos bens. Ademais, tal maquinário demanda a leitura de seus
manuais de operação, e os mesmos encontram-se disponíveis em idiomas
específicos, em especial o inglês66.
66Sobre esse tema, interessa mencionar a discussão de Ortiz (2004) e Maia (2011) a respeito
das relações linguísticas e seus efeitos cognitivos e epistemológicos produzidos pelas línguas
hegemônicas em disciplinas dedicadas à teoria social. Para eles, essa hegemonia refere-se
ao poder de pautar debates e organizar a agenda intelectual em função de problemas
geolocalizados em países europeus ou da América do Norte.
107
excludente da especialidade do discurso em que as valorações seriam
produto de seleções forjadas por sujeitos que se entenderiam e se
afirmariam como únicos capazes de selecionar. Nesse sentido, para ele
seria preciso refletir sobre a noção de Arte, História e Ciência como conjunto
estruturado de ideias gestadas no mundo ocidental, ideias essas que
passaram a ser a referência para a criação de um suposto valor universal,
comum a todas as culturas.
108
estrutura do Estado-nação pela chave da manutenção-reprodução do
sistema-mundo-capitalista-moderno-colonial.
109
Importa elencar que o Direito brasileiro toma como fonte o Direito
romano no que diz respeito ao direito à propriedade enquanto direito
individual. Fazendo uma associação entre herança e patrimônio, Nogueira
(2012, 2013) e Nogueira e Reis (2012) acabam por evocar o direito de
propriedade e sua ligação com uma dinâmica aristocrática desde os tempos
romanos:
110
fruto de escolhas traçadas em arenas políticas onde a pluralidade pode ou
não se fazer presente, favorecendo ou não a hegemonia de grupos que
detêm mais recursos, competências e condições de associação e
mobilização de interesses.
111
CAPÍTULO 3
A PATRIMONIALIZAÇÃO NO
BRASIL
112
113
3. A PATRIMONIALIZAÇÃO NO BRASIL
3.1 - Introdução
68
69Na perspectiva de Norberto Bobbio (1993), as atividades desempenhadas pelo Estado
foram associadas à política na Modernidade, esta compreendida, portanto, como Ciência do
Estado.
70O art. 18 da Constituição Federal de 1988 dispões sobre a organização político-
114
geográficas - no que se refere às relações econômicas e às migrações, para
citar dois exemplos - interferem na construção das intersubjetividades.
115
Na presente tese, optou-se por dar maior destaque a três desses trabalhos
referendados sobre a patrimonialização no Brasil: Rubino (1993), Fonseca
(2009) e Chuva (2009), por se tratarem de perspectivas que priorizam ações
políticas no processo de institucionalização do patrimônio, como o papel do
Estado na nomeação e na produção de valores. Diferentemente de outros
autores, como Gonçalves (1996).
116
No caso do campo do patrimônio no Brasil, os instrumentos que
regeram ou orientaram o trato dos bens culturais assumiram, ao longo da
história, a forma de textos legais, ou seja, uma materialidade jurídica – na
esfera das dinâmicas institucionais. Portanto, a nomeação dos bens como
patrimônio pelo Estado se deu através do reconhecimento jurídico pela via
de instrumentos específicos – tombamento72 e registro73 - ou pela aquisição
de propriedade74. E aqui percebe-se, portanto, a relação direta entre o
reconhecimento do Estado e a jurisprudência.
mencionar que tais aquisições passam igualmente por processos legais - são seladas por
documentos que registram a entrada dos objetos no ambiente institucional, tornando-os
propriedade ou referendando a condição de tutela – que garantem o poder de atuação sobre
esses bens ou o controle de seus significados. Sobre a (res)significação de objetos em
contextos institucionais, numa perspectiva sobre a grade de significados entre “pessoal” e
“público”, ver: MENESES, 1998.
117
“Reivindicação”, “contestação” ou “apoio” – termos utilizados pelo autor na
demonstração de exemplos – não interferem na ordem legal dos processos
de propriedade por não efetivarem transferência de propriedade –
restringem-se à potência. Tais ações, para serem efetivas, precisam atuar
dentro de enquadramentos legais ou, então, reivindicar novos
enquadramentos. Sendo assim, aparentemente o Estado permanece ainda
nos dias hoje como mediador jurídico, ocupando o centro das ações.
118
de contribuir para a construção de narrativas universalizantes,
possivelmente atravessadas pela colonialidade de saberes e práticas, em
diferentes instâncias e territórios que experenciaram a colonização?
119
Público. Isso significa que precisa haver um entendimento comum75 sobre o
termo patrimônio para que as agências voltadas à preservação possam
executar ações com alguma coerência burocrática.
Gonçalves (2007) acerca dos limites e dos riscos dessa expansão semântica do patrimônio.
120
trata-se da dimensão menos visível das políticas de preservação, mas
dotada de grande importância para fins analíticos.
121
burocráticas que atestassem, legalmente, esta atribuição de sentido de
patrimônio cultural.
122
A atuação do Estado brasileiro sobre os bens culturais considerados
como patrimônio aparentemente teve como referência a prática francesa e
sua perspectiva das responsabilidades estatais sobre os bens de interesse
público. Márcia Chuva (2009) destaca a legislação da França como
inspiradora de projetos de lei brasileiros que antecederam o Decreto-lei
n°25, os quais tiveram como referência o Estado enquanto figura
responsável pela tutela do patrimônio cultural nacional80. Nessa linha de
raciocínio, entende-se possível pensar que é o assentamento jurídico do
patrimônio, a forma como o mesmo se define e é tratado nas normas e nos
dispositivos, que orienta sua circulação no mercado de bens simbólicos
(BOURDIEU, 1982).
80 A partir dessa consideração, importa ressaltar a contraposição que François Choay (2006)
faz da prática francesa com a prática inglesa: a primeira com foco nas responsabilidades do
Estado e a segunda articulada às responsabilidades e iniciativas individuais e privadas.
123
instrumentos viabilizaram, ao longo do tempo, a gestão de bens em nome
da sociedade e do que se convencionou chamar de “interesse público”.
Segundo Fonseca (2009), a ideia de “interesse público” ligada à
preservação se referia, portanto, à dimensão universal - e, portanto,
consensual - dos valores culturais que se pretendia preservar, invocada
para legitimar o ônus da preservação de bens para o Estado e os cidadãos.
Uma das consequências desse processo possivelmente foi - e ainda é - a
naturalização do valor cultural: mesmo sendo atribuído, assume aparência
de ser algo intrínseco ao bem, acessível ao olhar especializado. Trata-se,
portanto, de uma relação social que pressupõe um certo grau de consenso
quanto ao valor atribuído (FONSECA, 2009), configurando assim uma
condição dóxica (CHUVA, 2009).
124
professores de geologia e paleontologia do Museu da Escola
Politécnica (RUBINO, 1991, p. 34).
125
momentos, em variadas tentativas de elaboração de uma legislação sobre o
assunto, indicando um modelo civilizatório a ser seguido.
126
representante da Bahia José Wanderley de Araújo Pinho - deputado e
historiador - apresentou ao parlamento nacional o último projeto de lei que
previa formas de proteção de determinados bens culturais nacionais.
Naquele mesmo ano deflagrou-se a Revolução de 1930, ocorreu a
dissolução do Congresso e foi suspensa a Constituição Federal vigente,
impedindo o prosseguimento da referida iniciativa.
127
estabelecia os critérios de conservação e restauração e definia os bens
suscetíveis à tutela da União.
84 Aqui interessa mencionar outras interpretações possíveis para o patrimônio, como aquelas
trabalhadas por François Choay (2006; 2011), cujo entendimento envolve a construção da
noção de monumento ao longo do tempo e a questão da intencionalidade. A autora discorre,
portanto, sobre a diferenciação entre monumentos e monumentos históricos: o primeiro
como coisa construída com intenção de manutenção de valores e/ou referências para a
posteridade; e o segundo como coisa que se tem agregado o valor de memória ao longo do
tempo.
128
natureza. Ainda que a menção ao termo patrimônio85 tenha se dado apenas
no texto de 1934 e de 1988, os demais textos se referiram a bens materiais
encarados como excepcionais a partir de critérios variáveis. Sobre a
definição de patrimônio, a Constituição de 1988, por sua vez, acrescentou
“valor cultural” àqueles já mencionados nas constituintes anteriores - valor
histórico, valor artístico, arqueológico e etc. Nesse sentido, o texto se refere
ao termo patrimônio em situações em que o define como “patrimônio
cultural”, “patrimônio cultural brasileiro”, “patrimônio histórico-cultural”,
“patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” e
“patrimônio histórico e cultural”. Observa-se, portanto, a existência dos
valores “cultural”, “histórico”, “artístico”, “turístico” e “paisagístico” ainda
que haja uma expansão do sentido atribuído.
85 A referência ao termo “patrimônio”, aqui, diz respeito ao valor atribuído para os bens
associados às questões da memória e da identidade, ao legado cultural. A referência citada
não diz respeito ao termo “patrimônio” no sentido de renda e posses do Estado ou de
servidores, o qual foi comumente utilizado nas Cartas Magnas mencionadas pela presente
tese.
129
atravessamento da expressividade erótica, estética e linguística dos povos
colonizados, num processo de transformação e adequação a modelos
europeus enquanto “modelos civilizados”. Mignolo e Gomez (2012)
igualmente discutem a colonialidade na construção da subjetividade latino-
americana na arte e na estética, direcionada para um regime de
historicidade ocidental que afetou e ainda afeta sentidos, emoções e
intelecto, interferindo nos modos de representação, nos corpos discursivos e
em suas instituições.
130
federativos (municipal, estadual ou nacional) tiveram como referência a
Constituição Federal, uma vez que no sistema jurídico brasileiro esta norma
prevalece sobre todas as outras. Por essa perspectiva, o que se observa,
portanto, é que a organização estatal, em nível federal, a partir de seus
instrumentos legais, acabou servindo como referência para a criação e
funcionamento de agências e agentes estaduais dedicados ao trato com o
patrimônio cultural, entre eles o IEPHA. Este referido Instituto, embasado
em instrumentos de proteção previstos em leis estaduais - por sua vez
orientadas por leis e decretos federais -, atuou em consonância com a
trajetória nacional, construindo percursos que incentivaram, por sua vez, a
configuração de políticas municipais de preservação em Minas Gerais e
fundamentaram as práticas de patrimonialização de bens culturais na região.
131
O referido texto constitucional orientou a dinâmica de preservação do
patrimônio aos municípios e às agências estatais, definindo o patrimônio
cultural mineiro a partir de critérios tangíveis e intangíveis, históricos,
artísticos, paisagísticos e científicos, como explicitado no artigo 208,
apresentado a seguir:
132
instrumento de salvaguarda, e ainda remete à 25ª Conferência Geral da
UNESCO realizada em Paris em 1993 e ao seminário comemorativo dos
sessenta anos do IPHAN, realizado em Fortaleza em 1997 – que resultou na
“Carta de Fortaleza”. Os exemplos citados por Telles referem-se à
recomendação de profissionais e acadêmicos dedicados ao campo do
patrimônio na criação de formas de salvaguarda dos bens de natureza
imaterial que até então não eram objeto de políticas públicas de
preservação. Destaca-se no texto do referido Decreto a tarefa do Poder
Público em nível federal, estadual e municipal em garantir condições para a
manutenção da manifestação cultural ao longo do tempo, sendo o
instrumento do registro uma ferramenta de valoração desse bem cultural.
Contudo, ele estabeleceu a necessidade de reavaliação dos bens culturais a
cada dez anos por parte do IPHAN, e criou, nesse sentido, dinâmicas de
revalidações periódicas do título de patrimônio imaterial.
133
Nessa perspectiva, interessa voltar a atenção para a importância dos
museus no processo de institucionalização do patrimônio. Retomando os
estudos de Márcia Chuva (2009), é preciso considerar o papel dessas
agências no que se convencionou chamar de “mundo ocidental”:
instituições que ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX abrigaram objetos e
monumentos compreendidos por especialistas enquanto referências
materiais para as ideias de cultura, natureza, passado e presente. Os
museus contribuíram para a ressignificação desses bens no sentido de
torná-los uma espécie de “propriedade pertencente à coletividade” (id.,
2009, p. 182).
87Importa fazer referência à pesquisa de Julião (2008) que destaca o papel do colecionismo
tardio de Portugal a partir das viagens científicas aos territórios ultramarinos no século XVIII,
destinadas ao reconhecimento dos territórios colonizados para propósitos científicos,
administrativos e econômicos. No Brasil, essa coleta propiciou o surgimento de instituições
como o Museu Real que conformava um modelo de práticas museais europeias, sendo “[...]
um desdobramento da cultura científica incentivada no âmbito do Estado Português, a partir
da administração do Marquês de Pombal. Figurava, portanto, como herdeiro de práticas
científicas desenvolvidas no Brasil, ainda que incipientes” (JULIÃO, 2008, p. 44)
134
conservadores e sua prática científica (COELHO, 2015, p.
109-110).
135
Internacional de 1922”89, organizada para a Semana de Comemoração da
Independência no Rio de Janeiro.
136
atenção para a importância do Museu Histórico Nacional na
institucionalização da Museologia no Brasil, mas não estende sua reflexão
para os possíveis desdobramentos político-ideológicos de uma disciplina que
nascia sob as ideias integralistas, voltada à manutenção simbólica de uma
ordem oligárquica e excludente.
137
do Museu Goeldi – Pará), Dante de Layano (diretor do Museu Júlio de
Castilhos - Rio Grande do Sul), Cônego Trindade (diretor do Museu da
Inconfidência - Ouro Preto, Minas Gerais), João Geraldo Kuman (diretor do
Jardim Botânico - Rio de Janeiro), Geralda Ferreira Armond (diretor do Museu
Mariano Procópio - Juiz de Fora, Minas Gerais) e Simoens da Silva (diretor do
Museu Simoens Silva - Rio de Janeiro) (CRUZ, 2008). A iniciativa deu início à
participação nacional na organização, marcando a presença do país nas
discussões referentes ao patrimônio mundial e à educação em museus
(SCHEINER, 1993).
138
no âmbito da gestão pública, a referida conjuntura marcou uma relativa
escassez de políticas voltadas aos museus e aos profissionais da área.
139
As transformações do campo suscitadas pelos acontecimentos
nacionais e internacionais influenciaram diretamente o Curso de Museus,
que ao longo dos anos realizou uma série de mudanças - na forma de
ingresso, na grade curricular, na duração e nas habilitações. As alterações
culminaram na sua incorporação à Federação das Escolas Federais do Rio
de Janeiro (FAFIERJ), no ano de 1977, e sua posterior desvinculação do MHN
no ano de 1979, quando ocorreu a transferência do curso para as
dependências da recém-criada UNIRIO (Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro) (SIQUEIRA, 2008). Esse movimento pode ser percebido como
um reconhecimento - por parte do Estado - da produção museológica como
“produção científica”92, elaborada no âmbito do Ensino Superior. Segundo
Rangel (2010), a criação de cursos de Graduação e Pós-Graduação93 no país
revelaram-se fundamentais para o fortalecimento da Museologia brasileira,
pois possibilitaram a formação de pesquisadores e docentes em nível
acadêmico – e aqui é possível estabelecer uma relação com as ideias de
Florestan Fernandes e Simon Schwartzman mencionadas no primeiro
capítulo, tendo como perspectiva os desdobramentos da produção
disciplinar numa perspectiva científica enquanto possível estratégia de
controle dos problemas socioeconômicos produzidos pelo próprio projeto de
Modernidade.
Ainda que não seja o foco da análise desta presente tese, importa
mencionar os desdobramentos da formação dos museus e da Museologia no
Brasil, no sentido de contribuir para o entendimento sobre o campo do
patrimônio onde diferentes agências trabalham o tema e reivindicam a
dedicação dos “especialistas” para o trato dos bens patrimonializados.
Trata-se de dados de significativa importância na compreensão das
dinâmicas do campo, dados esses que indicam as relações de força e as
posições dos seus agentes e agências.
140
atravessaram e ainda atravessam o desempenho das suas respectivas
atividades técnicas. Consideram-se as múltiplas realidades de cada uma
delas, com suas normas, valores, códigos e demandas que apontam para a
complexidade de elementos na composição dos seus mecanismos de
funcionamento, de existência e resistência. Até aqui observa-se uma teia de
relações entre instituições variadas, mas todas com o propósito semelhante:
a preservação de bens culturais valorados como patrimônio. Universidades,
museus, organizações internacionais, conselhos nacionais ou supranacionais
e conselhos profissionais são alguns dos elementos que parecem organizar
uma dinâmica de forças onde há orientações, normativas, códigos, etc.,
compartilhados.
141
valorização do especialista como estratégia de diferenciação - em relação a
outras disciplinas de pretensão científica - e para a reivindicação de
reservas de mercado.
142
Baseando-se numa configuração acadêmico-profissional, Coelho
sugere que a valorização do especialista museólogo foi se articulando a uma
tentativa de reafirmar a área de conhecimento como uma área científica.
Esse processo histórico parece atravessado pelas relações de afirmação de
autoridade “[...] no que se refere ao desempenho e execução do exercício
profissional efetivamente marcado pelo comportamento e performance dos
museólogos” (COELHO, 2015, p. 206) e depois pela reafirmação da área de
conhecimento que reivindica o status de ciência/pensamento. Ainda
recorrendo à perspectiva da autora, existiria uma demanda da área pelo
[monopólio do] campo patrimonial.
143
sustentada numa legislação própria ao tema94. Há pesquisadores que
apontam para iniciativas anteriores, que remontam o século XIX e a criação
de instituições fundamentais no desenvolvimento do campo do patrimônio,
entre elas95 o Arquivo Nacional e o IHGB - ambos datados de 1838. Esse é o
caso da pesquisa desenvolvida por José Ricardo Oriá Fernandes (2010) que
compreende o Arquivo Nacional e o IHGB como precursores da política de
preservação do país, os quais teriam dado a tônica da narrativa
historiográfica para a construção do Estado-Nação brasileiro e da ideologia
da unidade territorial. Tais agências concentraram os documentos sobre o
que se considerava a “história do Brasil”, com destaque para o IHGB que,
segundo Fernandes, assumiu os “[...] moldes de uma academia, semelhante
às do iluminismo europeu, tendo como projeto traçar a gênese da
nacionalidade brasileira” (FERNANDES, 2010, p. 5).
preservação de bens culturais, cabe mencionar o papel da Biblioteca Nacional (BN), criada
oficialmente em 1810 cujo acervo era composto inicialmente por livros, manuscritos, mapas,
estampas, moedas, medalhas, impressos, pranchas em cobre, desenhos, códices, entre
outros bens. Fundada principalmente para acomodar as 60 mil peças trazidas com a comitiva
real de D. João VI, naquele mesmo ano a instituição foi aberta para acesso e pesquisa de
estudiosos. Disponível em: <https://www.bn.gov.br/sobre-bn/historico>. Acesso em: 30 de
dez. de 2017.
Ainda sobre a BN, Julião (2008) menciona a exposição realizada em 1881 sobre a História do
Brasil, a partir da qual se originou um “[...] extenso catálogo concebido como verdadeiro
monumento à memória da nação” (Idem, p. 52). A exposição, segundo a autora, teve entre
5.000 e 7.000 visitantes,
144
O Instituto empreendeu pesquisas em arquivos e bibliotecas de
países europeus – a partir de pesquisadores estrangeiros – no sentido de
coletar informações e documentos que pudessem construir tal narrativa, o
que acabou por lhe conferir a mesma função atribuída ao Arquivo Nacional:
a de reunir e preservar fontes para a história da nação. Mas é interessante
considerar que, conforme destacado nos capítulos anteriores, o século XIX
compreendeu a criação de instituições educacionais e científicas no país,
agências estas que tinham como objetivo a constituição de uma elite
intelectual capacitada a ocupar os quadros do Estado e forjar o que se
entenderia como uma centralidade burocrática nacional. Schwarcz (1993),
menciona algumas dessas instituições – como as faculdades de direito, os
museus, as faculdades de medicina, entre outras – enquanto centros de
produção de ideias e teorias que operavam com referência na
eurocentralidade do conhecimento e na ideia de evolução racial. Seu
trabalho oferece, portanto, subsídios para se pensar as recorrências a certas
concepções que embasaram a formação de instituições a partir de modelos
de atuação, mas também para chamar a atenção para o racismo enquanto
princípio organizador das relações de poder (QUIJANO, 2010; GROSFOGUEL,
2016). Outros pesquisadores, entre eles Florestan Fernandes (1975; 1992),
igualmente se dedicaram ao tema da relação entre a formação universitária
e a constituição dos profissionais especialistas – oriundos de classes sociais
de poder aquisitivo alto ou médio -, numa espécie de funcionalidade do
ensino superior inspirada na dinâmica europeia que, aplicada ao contexto
colonial, reproduzia distorções sociais.
145
produto desse funcionamento – estruturados e estruturantes. Trata-se de
esquemas geradores de estratégias, encarados por Bourdieu como doxa:
“Ela contempla tudo aquilo que é admitido como ‘sendo assim mesmo’: os
sistemas de classificação, o que é interessante ou não, o que é demandado
ou não” (BOURDIEU, 1996, p. 82).
146
no conjunto das “nações modernas civilizadas”. Esse pano de fundo acabou
por influenciar as atividades do IHGB e do Arquivo Nacional, dando a tônica
do que Fernandes (2010) consideraria como o início da institucionalização
de políticas de preservação da memória nacional. Segundo o autor,
De acordo com o autor, a história que nasceu dessas duas agências – IHGB
e o Arquivo Nacional – teria norteado ou embasado as atividades
desempenhadas pelos institutos de preservação que vieram a ser fundados
sob a égide do movimento modernista a partir da década de 1930.
147
[...] um dos principais antecedentes do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), criado em 1937. Deve-
se ainda ressaltar que a Inspetoria realizou um trabalho
pioneiro de inventário, identificação, conservação e
restauração de bens tangíveis na cidade de Ouro Preto. A
intenção explícita desse reconhecimento é destacar que o
primeiro organismo federal institucionalizado de proteção do
patrimônio monumental brasileiro foi criado, coordenado e
colocado em movimento a partir de um museu (RANGEL,
2010, p. 120).
148
materiais que abrigam, seja através da ciência que, ainda
que de forma restrita, propagam (RUBINO, 1993, p. 30).
149
protegidos pelo Estado. Importa destacar a preocupação do documento em
definir os especialistas considerados necessários para assessorar as
decisões do corpo diretivo do que seria o SPAN. Segundo Chuva seriam eles:
um arqueólogo, um etnólogo, um historiador e um professor de história da
arte. Tais categorias de profissionais deveriam, portanto, se repetir em cada
um dos estados da União, o que indicava uma padronização das ações a
partir de critérios que envolviam a intelectualidade – e nesse caso,
associada ao conhecimento disciplinar. Sendo assim, a agência manteria
uma dinâmica de funcionamento baseada em decisões de profissionais
ligados a museus e a disciplinas como História, Etnografia, Arquitetura e
Arqueologia, conforme destaca Chuva:
150
Enquanto os museus nacionais e os das grandes cidades
tenderiam à especialização, os museus municipais seriam
ecléticos, seus acervos heterogêneos, e os critérios de
seleção das peças ditados pelo valor que apresentam para a
comunidade local, que participaria ativamente da coleta de
bens (FONSECA, 2009, p. 101).
151
A participação popular seria limitada à organização dos
museus municipais, cuja leitura só faria pleno sentido para os
habitantes locais. Deste modo, o anteprojeto de Mário define
com clareza (embora essa não fosse uma questão relevante
na época) o alcance e os limites da participação social na
construção dos patrimônios históricos e artísticos, apontando
as diferenças e as peculiaridades dos níveis nacional e local e
caracterizando a função social do intelectual como mediador
entre os interesses populares e o Estado. Chama a atenção,
mesmo atualmente, sua sensibilidade para a função e a
importância dos museus municipais, que são hoje, com
frequência, objeto de crítica por não se adequarem aos
padrões rigorosos e modernos de uma ‘ciência museológica’
(FONSECA, 2009, p. 102).
97 Telles faz um apanhado de inciativas legais por parte da Câmara e do Senado que
antecederam o Decreto-lei n°25. Segundo o autor, este último acabou sendo uma compilação
das discussões que já vinham sendo travadas nas casas legislativas antes da dissolução do
152
Inspirado no pré-projeto de Mário de Andrade, o Decreto estabelecia
um contraponto político em relação às correntes interpretativas do
patrimônio trabalhadas por alguns museus e por outras instituições,
correntes essas que celebravam grandes vultos e feitos de indivíduos na
História. O instrumento normatizou a instalação do IPHAN e articulou a
existência da agência estatal a uma definição jurídica de patrimônio:
Congresso Nacional em 1937. Nesse sentido, Telles defende a tese de que o instrumento do
Decreto-lei, apesar de ter natureza autoritária, acabou incorporando as discussões que
haviam sido travadas durante o período democrático, o que relativizaria a condição unilateral
do instrumento.
98 Decreto-lei n°25 de 1937.
99Trechos do discurso proferido por Rodrigo Melo Franco de Andrade e transcritos por Silvana
patrimonialização de alguns bens que, segundo ela, “nasceram tombados”. A autora destaca
o caso da Igreja da Pampulha, construída em 1943 e tombada em 1947 e o Edifício do
Ministério da Saúde e Educação, construído em 1937/1944 e tombado em 1948. Tais
iniciativas escancaram a natureza discricionária da seleção sobre o que se deve preservar:
sobressaem-se os códigos e critérios daqueles que ocupam a ossatura burocrática estatal,
153
identidade própria, mas equiparando-se ao moderno e internacional: às
nações civilizadas.
fazendo parecer universal o que é produto de uma escolha localizada no tempo e no espaço.
“Projetado por uma comissão de arquitetos modernos a partir de estudos do arquiteto franco-
suíço Le Corbusier, o edifício é uma celebração do funcionalismo moderno em arquitetura, ao
mesmo tempo que retoma e relê nossa arquitetura e arte tradicionais” (RUBINO, 1993, p.
138).
102Alguns autores afirmam que o Decreto-lei n°25 em muito se distanciou das pretensões de
154
pesquisas no assunto apontam as possibilidades de entraves institucionais
no âmbito da preservação devido às questões relacionadas ao direito à
propriedade (GONÇALVES, 2003; FONSECA, 2009; CHUVA, 2009, RUBINO,
1993). A recusa do Congresso a projetos anteriores que procuraram
estabelecer meios de preservação para o patrimônio já anunciara a
complexidade do tema. Sendo assim, o instrumento do tombamento acabou
por servir como estratégia para equacionar a problemática do direito
individual à propriedade e a defesa do interesse público pelo patrimônio,
dispensando, portanto, a figura da desapropriação; e “essa solução se
tornou possível na medida em que a Constituição de 1934 estabeleceu
limites ao direito de propriedade" (FONSECA, 2009).
155
Mas importa destacar que o IPHAN teve diferentes gestores e
gestoras após a passagem de Aloísio Magalhães, sendo eles: Irapoan
Cavalcanti de Lyra (1981-1984); Ângelo Oswaldo de Araújo (1985-1987);
Augusto Carlos da Silva Telles (1988-1989); Lélia Gontijo Soares (1990);
Jayme Zettel (1991-1993); Francisco Manuel de Mello Franco (1993-1994);
Glauco Campello (1994-1999); Carlos Henrique Heck (1999-2002); Maria
Elisa Guimarães Costa (2003-2004); Antônio augusto Arantes (2004-2005);
Luiz Fernando de Almeida (2006-2012); Jurema Machado (2012-2016)106 e
Kátia Bogéa (2016-em exercício)107. Dos gestores e gestoras do Instituto,
observa-se nessa relação o predomínio de figuras masculinas presidindo as
atividades institucionais, com formações que variaram entre Direito,
Administração, Museologia, Antropologia, Jornalismo, História e Arquitetura –
com o predomínio deste último a partir da década de 1990.
Sobre o período que se segue após a década de 1980 indo até o ano
de 2010, Paulo Cesar G. Marins (2016), por sua vez, interpreta a existência
de uma certa continuidade na dinâmica de trabalho da agência, a partir de
uma análise sobre os tombamentos e registros efetuados pelo IPHAN desde
então – apesar do alargamento conceitual das práticas preservacionistas e
de eventuais fissuras na engenharia patrimonial em relação à escuta da
sociedade nas práticas estatais. Segundo o autor, até 2010 ainda se
106Importa destacar que Jurema Machado presidiu o IEPHA nos anos de 1994 a 1998.
107 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1211>. Acesso em: 27 jun.
2017.
156
observava a centralidade de tombamentos e registros nos estados do
Nordeste e do Sudeste, o que apontaria para uma reiterada interpretação
do país na qual ambas as regiões seriam a “[...] base geográfica inicial da
colonização portuguesa e locus simbólico da mestiçagem entre brancos e
negros [...]” (MARINS, 2016, p. 18).
157
de trabalho dentro do serviço público brasileiro. Esse padrão
assentava, de um lado, em uma ética do saber: o
compromisso irrestrito com a autenticidade dos objetos e a
verdade do conhecimento produzido sobre eles (FONSECA,
2009, p. 126).
158
para definir os termos de preservação daquilo que representaria um
passado nacional.
159
produziram conhecimentos que fundamentaram as práticas do órgão e
influenciaram outros institutos.
160
Chuva (2008) ainda aponta para a peculiaridade dessa dinâmica
brasileira em relação a outros países. Segundo a autora, no Brasil, a
presença do arquiteto nas políticas de Estado relacionadas ao patrimônio é
concomitante à sua profissionalização, o que levou a uma lógica onde tal
profissional “[...] que indica o que deve ser preservado é aquele que vai
formular as bases da nova Arquitetura – a Arquitetura moderna e seus
princípios estéticos e políticos, que marcarão profundamente os currículos
das escolas de Arquitetura no Brasil” (CHUVA, 2008, p. 33).
161
Nesse processo interessa retomar a importância dos museus na
constituição de um campo que, voltado à preservação de bens culturais, em
muito orientou a construção de narrativas sobre a nação e a identidade
nacional, e aparentemente contribuiu na construção de disciplinas a partir
de práticas institucionais. Mas cabe ressaltar também a importância dessas
instituições na própria construção do que se validava como patrimônio no
âmbito do IPHAN, considerando que os diretores dos museus nacionais
ocupavam cadeiras no Conselho Consultivo em mandatos vitalícios – a
última instância decisória acerca da patrimonialização. Fonseca (2009)
destaca a sintonia entre as decisões do Conselho e os pareceres técnicos, o
que indica a semelhança de princípios e critérios entre os agentes, e destes
com as instâncias decisórias superiores.
Rubino (1993), por sua vez, destaca o papel de Rodrigo Melo Franco de
Andrade nesse processo de construção da legitimidade pela via intelectual,
recorrendo a declarações de Lucio Costa e outros colaboradores do IPHAN
em que se afirma o “clima universitário” da instituição, fomentador de
“atividades intelectuais” (RUBINO, 1993). Provavelmente essa seria uma
das razões pelas quais “[...] o principal instrumento de legitimação das
escolhas realizadas era a autoridade dos técnicos, sendo desnecessário
formular justificativas mais elaboradas” (FONSECA, 2009, p. 116). Ao longo
do tempo, essa autoridade intelectual foi sendo substituída pelos trabalhos
162
de inventário e de pesquisa, em especial pelas instruções históricas que
passaram a basear os dossiês de tombamento, servindo como orientação de
pretensão científica para as práticas institucionais ao longo dos anos.
163
dominação eurocêntrica – houve, todavia, uma rearticulação entre o
universal e o particular a partir do diálogo, cada vez maior, com a
Antropologia109.
De acordo com Chuva (2009), foi nesse período que a agência criou
novas sedes regionais juntamente com a ampliação da atuação dos estados
e municípios através de institutos e conselhos. Há nesse contexto, por parte
dos poderes político-administrativos e por parte de organizações da
sociedade civil, iniciativas de enfrentamento à especulação imobiliária e às
transformações dos espaços urbanos por meio da preservação do
patrimônio. É nessa perspectiva que o próximo capítulo abordará o processo
de criação do IEPHA enquanto agência designada a desempenhar ações
regionais de preservação à imagem e semelhança do IPHAN, ora voltando-
se à produção de “unidades” identitárias, ora concentrando-se na lógica
desenvolvimentista na qual poderia se inserir a preservação do patrimônio.
164
Ministério da Educação (MEC), o qual se tornou, ao final do regime,
Secretaria de Assuntos Culturais110. O CFC tinha como responsabilidade a
recuperação de instituições culturais e o apoio à institucionalização da
cultura na esfera estadual. Foi incialmente composto por 24 membros,
todos intelectuais de reconhecida importância e projeção nacional – ou, para
Ortiz (1985), intelectuais “tradicionais” e “conservadores” – escolhidos pelo
Presidente da República.
Jéssica Luzes (2013) destaca que o Conselho era composto por quatro
câmaras: Artes, Letras, Ciências Humanas e Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Esta última – a CPHAN – contou inicialmente com a participação de
Rodrigo Melo Franco de Andrade, o que nos parece ser um indicativo da
força de sua gestão à frente do IPHAN, o qual encontrava-se sob a gestão de
Renato Soeiro a partir de 1968. De acordo com Luzes (2013), os anos
iniciais de atividade do Conselho contaram com 12 personalidades da
intelectualidade brasileira, sendo 5 conselheiros ligados ao IHGB e um
predomínio significativo de figuras com formação em História, Direito e
Jornalismo. Sobre os membros do Conselho, 4 eram naturais de Minas
Gerais, 2 da Bahia, 2 do Rio de Janeiro, 1 do Amazonas, 1 do Rio Grande do
Sul, 1 do Maranhão e 1 procedente da França. O predomínio de figuras de
Minas Gerais – Affonso Arinos, Dom Marcos Barbosa, Hélio Viana, Rodrigo
Melo Franco de Andrade – parece indicar a força adquirida pelo IPHAN de
Rodrigo em sua interpretação sobre o passado nacional. É nessa
perspectiva que Luzes conclui que o modelo de preservação e os códigos
que embasaram o pensamento e as ações do antigo IPHAN se fizeram
presentes nos discursos e nas avaliações do CFC, orientados por uma elite
intelectual que foi responsável pelo direcionamento das políticas públicas no
Brasil ao longo de algumas décadas.
110 Tal estrutura se fortaleceu e ganhou importância nesse período, até que 1981 foi
transformada em Secretaria de Cultura ligada diretamente à Presidência da República,
passando a se constituir como uma estrutura pública com recursos para atuar nas vertentes
na produção, circulação, consumo e preservação da cultura (CALABRE, 2008).
165
Ainda assim é preciso destacar a atuação de Aloísio Magalhães entre
1979 e 1982 no corpo diretivo do IPHAN, não apenas como uma figura
expoente que introduz as bases conceituais e discursivas para se forjar a
institucionalidade sobre a categoria do patrimônio intangível, mas também
como agente que possibilitou maiores interlocuções com reflexões travadas
em âmbito internacional. A década de 1970 foi marcada por uma profusão
de debates acerca de direitos civis, das liberdades individuais, das políticas
latino-americanas, das guerras de independência, da descolonização do
pensamento, enfim, debates que atravessaram as instituições, as artes, as
estéticas, e que possivelmente influenciaram figuras como Aloísio
Magalhaes.
166
relacionados a discussões decoloniais. Recorrendo ao trabalho de Gonçalves
(2003) em suas referências sobre essa gestão do IPHAN, é necessário
ressaltar as críticas abertas feitas por Aloísio ao que considerava como
política cultural voltada à permanência de uma “herança latina” – o que
seria, em outras palavras, uma busca por uma continuidade europeia. Sua
defesa era sobre a preservação da “autêntica cultura brasileira” pela
pluralidade, levava “[...] em consideração as condições econômicas da
população de modo que não venham a se constituir em meros instrumentos
de reprodução de desigualdade” (GONÇALVES, 2003, p. 102). Nesse sentido,
é possível perceber a existência de uma preocupação de Aloísio com a
instrumentalização do patrimônio nos esquemas sistêmicos de poder
simbólico e material.
167
autorizado e receptor pronto a receber o que lhe foi dito e crer naquilo que
foi dito. Pressupõe, portanto, emissores legítimos e uma linguagem
legítima – esta que usa não apenas palavras gramaticalmente corretas, mas
também as palavras socialmente admissíveis (BOURDIEU, 1983). Na
perspectiva trabalhada pela presente tese, a linguagem legítima se baseia
numa relação de dominação que tem no colonialismo a dimensão
constitutiva da experiência histórica, a partir da qual subordinou-se
territórios, recursos e saberes (LANDER, 2005) e que se manifesta na
linguagem, na autoridade da fala sobre o patrimônio, na interlocução
(im)possível.
168
legítima, esse agente dispõe de recursos para se firmar num mercado que
sobrevive às dinâmicas excludentes do capitalismo globalizado; e assim,
dotado de autoridade para dar a última palavra na disputa de discursos
sobre o passado, configura um nicho de atuação que igualmente se forja
num quadro de culturas subalternizadas ou silenciadas pelas relações de
poder sexuais, raciais, espirituais, linguísticas, de gênero e de classe
(GROSFÓGUEL, 2007; 2008; 2016).
169
CAPÍTULO 4
O CAMPO DO PATRIMÔNIO EM
MINAS GERAIS E O IEPHA
170
4. O CAMPO DO PATRIMÔNIO EM MINAS GERAIS E O IEPHA
4.1 - Introdução
171
materiais que pudessem indicar o posicionamento das demais agências
dedicadas à preservação na estrutura de forças deste espectro. Mas coube,
sim, a identificação de uma relação entre agentes e agências para se
pensar a configuração de uma estrutura que se assemelha a uma “doxa de
campo”, no que diz respeito à legitimidade de atuação do “especialista”
sobre a preservação. Nessa perspectiva, a presente tese parte do elemento
“consensual” que parece atravessar os discursos da Instituição em suas
publicações e relatórios: a afirmação de um conhecimento ou formação
especializada que sugere as ideias de autoridade e legitimidade no trato do
patrimônio. Para tanto, a pesquisa de campo levantou documentos da
década de 1970, 1980 e 1990, mas se focou nos primeiros anos de atuação
institucional, até 1988, quando a nova Constituição Federal instituiu a
municipalização das políticas públicas – processo que reverberou direta e
indiretamente nas políticas de patrimônio, levando a agência a construir
estratégias para descentralizar sua atuação e divulgar normas de conduta
aos municípios.
172
Governadores – ocorridos nos anos de 1970 (Compromisso de Brasília) e
1971 (Compromisso de Salvador), confirmando a necessidade da ação
supletiva dos estados e dos municípios à atuação federal, assim como
descreve Fonseca no que diz respeito à tendência descentralizadora em
relação às ações de preservação:
173
compostos por especialistas de diferentes disciplinas, entre elas, em
destaque, a de Museologia – dada a importância atribuída pelo Encontro aos
museus e centros culturais como agências de proteção e pesquisa sobre o
patrimônio. As referências a vínculos entre as universidades e os serviços
de proteção dão o tom do documento no sentido de remediar uma suposta
carência de mão-de-obra especializada no campo. Sendo assim, o ensino
superior é mencionado como via indispensável à formação de profissionais
de “sensibilidade artística” e com “conhecimentos históricos”, capazes de
executarem os inventários, o estudo e o recolhimento de documentação, as
investigações, os restauros, enfim, todo o trabalho técnico “qualificado”:
112 Importa destacar que o termo “disciplina” foi usado pelo documento para caracterizar
uma especialidade dentro do curso de Arquitetura, sendo ela “a Arquitetura no Brasil”. O
curso de Arquitetura é um exemplo, entre muitos outros, cuja grade curricular compreende
diferentes especialidades oriundas de outras disciplinas, como a História, a Engenharia, a
Matemática, entre outros. O uso do termo aparece com a mesma conotação em algumas
outras referências documentais consultadas e mencionadas na presente tese.
174
que a especialidade “Arquitetura no Brasil” toma como referência os bens
identificados como patrimônio, os “Estudos Brasileiros” indicariam
elementos de uma tradição nacional que “consagraria” os bens culturais
patrimonializados. Ou seja, havia a previsão de uma correlação entre
preservação e ensino na conformação de uma leitura comum sobre o
passado, uma leitura que fazia parecer consensual a consagração daquilo
que seria selecionado por especialistas como “tradição nacional”.
113A Faculdade Nacional de Arquitetura foi criada a partir da Escola Nacional de Belas Artes
em 1945. Segundo Chuva (2003), a Arquitetura em sua formação acadêmica revelou um
novo profissional – o arquiteto – que paulatinamente se distinguiu do engenheiro por assumir
uma formação multifacetada, operando na interface entre a Engenharia, a Arte, a História e a
Sociologia – estas últimas ainda processo de constituição disciplinar neste contexto em
questão.
175
Conselho Federal de Cultura (CFC) entre 1965 e 1975 reverberaram nas
discussões travadas no Encontro dos Governadores realizado em Brasília.
176
legalista e burocrática, serviria para legitimar o próprio avanço do
capitalismo. Por essa perspectiva, importa pensar no uso político-econômico
da cultura direcionado à contrapartida financeira, a qual ofereceria
condições propícias à especulação imobiliária e à consequente gentrificação
de espaços urbanos (SOUZA, 2013).
177
turismo cultural. Aqui interessa remeter a Poulot (2009) que pontua a
transformação do patrimônio em mercadoria cultural no século XX a partir
de investimentos de ordem política e financeira nas sociedades
contemporâneas ocidentais. Segundo o autor, nestas sociedades marcadas
pelo consumo e pela cultura de massa, o patrimônio acabaria
instrumentalizado para projetos de desenvolvimento local ou nacional, em
função do turismo e das práticas mercantis do saber e do lazer (POULOT,
2009, p. 200). Nesse ponto, vale destacar novamente a pesquisa de Sá
Barreto e Medeiros (2016) que elenca dados quantitativos sobre o turismo
global para relacionar as patrimonializações ao mercado turístico, pensando
a dupla face da cultura enquanto dispositivo político e econômico
contemporâneo, potência para novos mercados.
178
Houvesse da parte de todas as autoridades públicas
estaduais e municipais o sentido exato de responsabilidade
na preservação desse legado, não teria sido o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional forçado muitas vezes
a exorbitar de suas obrigações e a estender
desmesuradamente sua proteção, a fim de defender bens de
interesse nitidamente regional, ameaçados pelas próprias
autoridades dos 2° e 3° escalões do Governo do país (BRASIL,
1973, p. 13).
179
dificuldades dos servidores no atendimento das demandas regionais.
Segundo o relatório do evento de 1973, ainda que sua estrutura servisse
como modelo de atuação,
115 Importa mencionar que Mariza Veloso Motta Santos (1996) interpreta o funcionamento do
IPHAN – até 1946 – como “Academia SPHAN”. Na perspectiva da autora, a dinâmica interna
da agência poderia ser interpretada como análoga à dinâmica acadêmica, onde a
institucionalização da preservação permitiu a formulação de uma discursividade específica e
especializada – baseada na erudição e no conhecimento técnico. Essa discursividade,
segundo a autora, se tornou responsável pela elaboração de um conjunto de representações
de pretensão consensual.
180
instituições universitárias pode ser compreendida como pano de fundo na
formação de institutos regionais de patrimônio e na constituição de um
campo profissional da preservação diretamente ligado ao Estado. Dentre os
diversos desdobramentos da reforma está o investimento nos cursos de
pós-graduação no país, viabilizados pelas verbas do Fundo de
Desenvolvimento Tecnológico (Funtec) e da Capes a partir do Parecer nº
977 CES/CFE, de 3 de dezembro de 1965, conhecido como “Parecer Newton
Sucupira”, a partir do qual viabilizou-se o projeto militar de articulação
“educação e desenvolvimento econômico”116.
116 Além da reforma universitária que marca o contexto, há também que se comentar sobre a
criação de centros de pesquisa no Brasil desde o final da década de 1940 que reuniam
pesquisadores em Economia, Sociologia, Antropologia, entre outras disciplinas, dedicados a
pensar o papel do Brasil no capitalismo global a partir do nacional-desenvolvimentismo.
Entre essas instituições cabe destacar a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL)
e o Instituto superior de Estudos Brasileiros (ISEB), de onde se desenvolviam estudos político-
sociais a partir da aplicação de categorias e dados das Ciências Sociais na compreensão
crítica da realidade brasileira (WASSERMAN, 2017).
117O Programa de Cidades Históricas (PCH) foi implementado entre 1973 e 1979 pelo
181
Horizonte118. Esses cursos, que tinham como referência a experiência
prática dos 40 anos de atuação do IPHAN, objetivavam formar novas
gerações de técnicos119 para atuação nas regiões Nordeste e Sudeste e
suprir a escassez de mão-de-obra que estaria prevista a partir da criação
dos institutos de patrimônio regionais. Segundo Nascimento:
118 Segundo Sandra Magalhães Correa (2016), o quarto curso foi realizado em Salvador em
1981, vinculado à Universidade Federal da Bahia - através da Faculdade de Arquitetura - e
sob apoio do IPHAN. A partir daí passou a ser ofertado bianualmente até 2009, quando se
tornou mestrado profissional. Importa destacar que anteriormente, em 1963, Rodrigo Melo
Franco de Andrade recebeu o título de professor honoris causa naquela faculdade baiana, o
que aponta não apenas a aproximação de ideias entre ambas as instituições, como marca
simbolicamente a importância do IPHAN na constituição de determinados campos
disciplinares no Brasil. Sobre o tema, ver também: ANDRADE, Rodrigo Melo F.. O patrimônio
Histórico e Artístico e a Missão da Universidade. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Museus: antropofagia da memória e do patrimônio, Rio de Janeiro, n. 31 p. 83-87,
2005.
119 As vagas dos cursos foram ocupadas majoritariamente por arquitetos e engenheiros
(CORREA, 2016).
182
vinculado à Escola de Belas Artes da UFMG (EBA), onde se estabeleceram
laboratórios e centros de análises especializados. O Centro, que no ano de
2008 implementou a primeira graduação em Conservação e Restauração no
Brasil, foi recentemente considerado pela Unesco referência na América do
Sul (CORREA, 2016).
partir de uma agenda internacional da Unesco, ver: Correa (2016), Sá Barreto & Medeiros
(2016) e Peixoto (2002).
122Centro Internacional de Estudo para Preservação e Restauração da Propriedade Cultural
183
Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Arquitetura da Universidade
Federal da Bahia123. Sua fala remete à ideia de um “acervo monumental”
que seria “testemunho” significativo da história do Brasil e cujo trato
demandaria uma preparação adequada dos técnicos que somente a
universidade seria capaz de oferecer. Tomando os museus com referência
no processo de conservação e valorização do patrimônio da nação, Rodrigo
cita os exemplos de três universidades norte-americanas – Harvard, Yale e
Princeton – cujos museus seriam representativos “integrantes de
universidades das grandes nações”. Nesse sentido, o arquiteto menciona
que uma das atribuições universitárias seria a de formação de
“museologistas” no sentido de responder à “magnitude do papel reclamado
aos museus na vida contemporânea das nações civilizadas” (ANDRADE,
2005, p. 86). Para ele, não seria mais pertinente que as ações de
preservação se guiassem pela “improvisação de capacidades” e nem por
“empirismo de técnicas”, mas necessitaria de técnicos de nível superior cuja
formação abarcasse especialidades ministradas nas disciplinas de
Arquitetura, História, Sociologia, entre outras acrescidas das especialidades
“novas” no âmbito da museografia em caráter universitário. E assim ele
conclui sobre a formação dos especialistas dedicados a museus:
184
voltada ao patrimônio. Com base na literatura analisada, é possível
interpretar que os centros de ensino superior exerceram papel fundamental
na construção da legitimação desse mundo institucional desde a década de
1930, centros esses que se transformaram na década de 1960 a partir da
reforma universitária. O conhecimento especializado, nesse sentido, se
revelaria via de mão dupla: ao mesmo tempo que seria produzido pelos
agentes da área e reivindicado como referência à prática profissional,
forjaria igualmente esquemas de consagração e legitimação entre os pares
(BOURDIEU, 1987), a partir dos quais o arcabouço especializado se tornaria
pré-requisito ao exercício profissional dentro do campo do patrimônio.
185
como referência para se compreender a arte barroca enquanto
manifestação cultural “tipicamente brasileira”. Nessa perspectiva, os
tombamentos executados pelo IPHAN na primeira metade do século XX
reafirmaram as raízes portuguesas como formadoras do “povo brasileiro”,
herdeiras dos valores morais e espirituais que nos aproximavam das
“nações civilizadas” (Idem).
124 Vale destacar que Gustavo Capanema, que exerceu o cargo de Ministro da Educação
entre 1934 e 1945, era igualmente natural de Minas Gerais, o que aponta a influência da
região sobre a política estatal naquele período.
186
A arte colonial mineira e o século XVIII foram eleitos símbolos da nação
brasileira pelos especialistas dedicados ao patrimônio, “daí o grande apelo
para salvar o passado da sua ruína. Era preciso transformá-lo em tradição
[...]” (SANTOS, 1996, p. 91). Minas e o patrimônio mineiro seriam, portanto,
o paradigma para as políticas de preservação no restante do Brasil (CHUVA,
2009), numa associação inédita entre as formas e princípios do barroco e a
arquitetura moderna, associação essa fundamentada na noção de
universalidade da arte (Idem, 2003)125.
125 De acordo com Chuva (2003), comparava-se Aleijadinho e Oscar Niemayer – Ouro Preto e
Brasília – traçando-os como vínculos de pertencimento à civilização ocidental a partir da
noção de universalidade da arte brasileira.
126 Importa destacar que o CFC tinha como uma de suas responsabilidades a recuperação de
187
A história profissional de Affonso Arinos nos oferece indícios - entre
outros já mencionados no decorrer da tese - para a existência de um campo
do patrimônio no Brasil com diferentes instâncias decisórias, em nível
nacional e regional, mas cuja circulação de ideias aponta para um padrão de
referências que parecem ter sido fundamentais na construção de dinâmicas
preservacionistas127. Para além da ligação de Arinos com o IPHAN e com
Rodrigo Melo Franco de Andrade, ele igualmente foi um dos fundadores do
Arquivo Público Mineiro (APM) e participou da composição histórica do
Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG) – duas das
instituições que antecederam o IEPHA na preservação de bens de valor
cultural. Portanto, percebe-se uma reprodução em escala regional da
dinâmica estabelecida em âmbito nacional com o IHGB e o Arquivo Nacional.
127 Julião (2008) ressalta sobre a presença de outros intelectuais que formavam a
intelligentsia do IPHAN no período de gestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade, e suas
possíveis influências em alguns processos de patrimonialização. Para a autora, os ensaios
histórico-sociológicos produzidos nesse período possibilitaram a complexificação da
interpretação da realidade brasileira, ampliando o espectro de questões sociais a serem
considerados no campo do patrimônio. Sendo assim, Julião considera possível dizer que um
ou outro bem patrimonializado se desenhou a partir de obras clássicas como Casa Grande e
Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos (1936), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936),
de Sérgio Buarque de Holanda.
188
civilizatório marcando a relação de distinção entre o europeu, avançado, e
os “outros”, primitivos, por meio da memória.
189
bens móveis além de “desenhos representativos do trajar e uso da
população civilizada ou selvagem do estado de Minas Gerais em qualquer
época, quer das vestimentas e fardas dos funcionários civis ou militares,
antigos e modernos” (Decreto nº 860, 19 de setembro de 1895, artigo 7º).
Conforme Nogueira, alguns desses bens seriam catalogados e distribuídos
futuramente em um museu e uma biblioteca dedicados à história de Minas.
130 Importa mencionar que o Arquivo Público Mineiro, ao longo de mais de 120 anos, reuniu
parte da coleção referente à Comissão Construtora da Nova Capital em suas atividades
técnicas e rotinas administrativas para a concepção, planejamento e construção do que se
tornaria a nova capital de Minas Gerais: a cidade de Belo Horizonte. Esse conjunto de bens -
que incluía fotografias, documentos textuais e mapas gerados e datados de 1890 até 1903 –
foi reconhecido em 2015 como patrimônio da humanidade pelo Unesco a partir do “Programa
Memória do Mundo” (Memory of the World – MOW), o qual seleciona acervos em diferentes
partes do globo que considera representativos da história mundial. Outras coleções já
haviam sido contempladas com o título – uma delas referente à Câmara Municipal de Ouro
Preto e a outra relacionada à Polícia Política (DOPS-MG) –, considerando os critérios de
conservação, acondicionamento e acesso público. Esses conjuntos de bens encontram-se
divididos entre outras instituições de preservação, tais como o Arquivo Público da Cidade de
Belo Horizonte e o Museu Abílio Barreto, mas revelam, em comum, uma memória regional de
modernização, ou mesmo de adesão – de diferentes formas - a um projeto de Modernidade.
Por essa perspectiva, o título de reconhecimento supranacional contribui na reflexão sobre a
relação entre a patrimonialização e a construção de uma narrativa sobre o Brasil que toma
como referência as relações e influências da colonização. O “Programa Memória do Mundo”
foi criado em 1992, mas a adesão brasileira somente ocorreu em 2004 a partir da
representação do Comitê Nacional do Brasil.
Disponível em:
<http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=212025&chPlc
=212025>. Acesso em: 02 jan. 2018.
Disponível em: <http://www.agenciaminas.mg.gov.br/noticia/acervo-do-arquivo-publico-
mineiro-sobre-a-historia-de-belo-horizonte-vira-patrimonio-da-humanidade>. Acesso em: 02
jan. 2018.
131 Disponível em: <http://www.museumineiro.mg.gov.br/historico/>. Acesso em: 30 de dez.
de 2017.
190
Criado em 1907132, o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
(IHGMG) foi outra agência dedicada à preservação de documentos, imbuída
dos mesmos ideais que forjaram o IHGB no século XIX. Ainda que sem o
mesmo prestígio do instituto nacional, a observar pela ausência de sede até
o final da década de 1920, os objetivos do IHGMG se assemelhavam “[...]
aos dos outros Institutos Históricos locais. Mais do que nunca, sob a
República Federativa – e com relativo atraso –, buscava-se legitimar, pela
via do passado, o papel desempenhado pelo Estado no presente” (CALLARI,
2001, p. 79). O Instituto mineiro foi composto por indivíduos responsáveis
por tarefas técnicas e pelo exercício da erudição, aos moldes iluministas,
conforme se vê registrado em sua página virtual oficial. Vários de seus
componentes eram também filiados ao Arquivo Público Mineiro, e em
comum, se empenhavam em justificar o predomínio econômico e político de
Minas Gerais na Primeira República (Idem). O estatuto científico da história
narrada e divulgada em seus periódicos servia, portanto, à representação e
à legitimação simbólica do poder mineiro frente à Nação. A escrita da
história e as narrativas sobre a memória mineira, aparentemente, se
intercruzaram na constituição de um discurso sobre o passado, servindo
reciprocamente como referência para a construção da ideia de patrimônio.
132Segundo a página oficial do Instituto, no final do Império e nos anos iniciais da República
inúmeros estados criaram Institutos Históricos e Geográficos, inspirados na estrutura e
missão do IHGB. Em Minas Gerais, o Instituto dedicou-se a “preservar, produzir e divulgar
registros históricos” enquanto “repositório dos mapas e das descobertas geográficas do
vasto território”, “destacando-se como tribunal da História e depositário das tradições de
Minas Gerais”.
Disponível em: <http://www.ihgmg.org.br/?dummy=1514661032961>. Acesso em: 30 dez.
2017.
191
exercício profissional técnico, uma conectividade que teria favorecido a
constituição de políticas e estratégias de colaboração institucional. Ao
reivindicarem para si a tarefa de formação de uma identidade coletiva e de
construção da narrativa histórica, eles produzem, no plano regional as
referências geradoras do sentimento de pertencimento à comunidade
mineira, mas principalmente brasileira. Especificamente sobre os museus,
Julião destaca a mobilização de expedientes da narrativa museográfica na
articulação de “[...] histórias locais à história unitária e coesa da nação,
concorrendo, ao lado dos grandes museus, para tornar hegemônica uma
mesma percepção e atitude em relação ao passado” (JULIÃO, 2008, p. 41).
192
urbanos preservados – exceto por Diamantina – como os Museus da
Inconfidência, do Ouro, do Diamante e o Regional de São João Del Rei, os
quais distribuíam-se nas antigas comarcas da Capitania das Minas: Vila Rica,
Sabará, Serro do Frio e Rio das Mortes. Segundo a autora, tal configuração
poderia ser interpretada como uma possível estratégia para cobrir
geograficamente a empreitada colonial na sociedade mineradora. Do acervo,
a autora enumera louças, imagens sacras, objetos utilitários do cotidiano
doméstico – como candeias e caldeirões – indumentária, joias, instrumentos
de trabalho nas lavras, instrumentos musicais, entre outros objetos que
representariam a sociedade mineira entre os séculos XVIII e XIX.
193
Segundo Julião, não é de surpreender que o IPHAN tenha vivenciado
uma série de situações de animosidades ao longo de sua existência, uma
vez que aos olhos da população e das autoridades locais a atuação da
agência fazia parecer arbitrárias as decisões calcadas em valores acessados
apenas ao corpo de especialistas:
194
Brasília em 1970. Em 30 de setembro de 1971, a Lei n° 5.775 oficializou a
configuração do Instituto sob forma de Fundação – com sede e foro na
cidade de Belo Horizonte – ligada à Secretaria de Estado da Cultura.
195
terço deles localizados na capital mineira. Tais medidas, de acordo com
Machado, procuravam limitar ou controlar o “imperialismo tecnológico” de
“estilo internacional” que parecia suprimir as identidades culturais
brasileiras. Nesse sentido, as atividades de preservação foram sendo
integradas ao planejamento urbano e territorial, seguindo uma tendência
que já se observava na esfera federal e anunciada nos Encontros de
Governadores em 1971 e 1973.
É preciso destacar o contexto de governos militares, especificamente
a gestão de Emílio Garrastazu Médici que impulsionava uma série de
programas políticos na área de transportes, energia, construção civil,
siderurgia e petroquímica sob a bandeira do “Milagre Econômico” brasileiro.
A fala de Jurema Machado sobre esse tema, enquanto representante do
IEPHA, nos indica o que seria a “ética da preservação” a guiar as atividades
da agência e dos profissionais dedicados ao patrimônio em risco pela
expansão urbana e industrial dentro desse referido contexto:
196
proteção de bens culturais das cidades. Nesse quadro, o técnico do
patrimônio, o especialista, seria, portanto, aquele agente capaz – e com
legitimidade – de estabelecer essa nova relação com a Modernidade a partir
de um diálogo entre modernização e tradição a propósito da manutenção do
projeto civilizatório.
136 O imóvel foi construído no final do século XIX em estilo neoclássico, destinado a ser a
residência do Secretário de Agricultura do Estado. Acabou por abrigar o Senado mineiro no
início do século XX; posteriormente abrigou a Inspetoria Geral de Finanças, e por fim o
museu na década de 1980. Foi um dos primeiros edifícios restaurados pelo IEPHA.
137 Sobre as locações do IEPHA ao longo do tempo, importa mencionar que num primeiro
nos livros de tombo passaram a ser determinados por Decreto do Governador do Estado, sob
proposta do Conselho Curador proferida após decisão da Assessoria de Estudos e Projetos e
aprovada pelo Diretor do IEPHA.
197
presidente do IEPHA e do Conselho Curador139. Tais decisões, segundo
aquela lei, deveriam ser comunicadas ao IPHAN, ainda que fossem
independentes de tombamentos em nível federal. Sobre elas, cabe destacar
o texto legal que esclarece a legitimidade das esferas decisórias no corpo
burocrático do Instituto:
139O Conselho Curador do IEPHA inicialmente foi formado por 5 membros designados pelo
Governador do Estado dentre pessoas de “ilibada reputação e notória competência em
assuntos compreendidos nos objetivos do Instituto” (Decreto n,14.374 de 10 de março de
1972). Funcionou até 1986, quando houve paralisação das suas atividades, as quais foram
reestabelecidas somente em 1995. Nesse período não foram encontrados documentos que
apontassem outros processos de deliberação de tombamentos que suplantassem o papel
decisório do Conselho. Exatamente em 1986 o Estatuto do IEPHA modificou a sua
composição, ampliando para 7 membros, dentre os quais estariam o Presidente do IEPHA,
um representante da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e 5 membros de “notório saber
em assuntos compreendidos nos objetivos da Fundação”, indicados pelo Secretários de
Estado da Cultura (Decreto n. 26.193 de 24 de setembro de 1986).
198
os trabalhos de direção, presidência e vice-presidência: Luciano Amedée
Péret, arquiteto nomeado como diretor executivo até 1979; José Joaquim
Carneiro de Mendonça, engenheiro que ocupou a presidência até 1975; e
Dom Oscar de Oliveira, Arcebispo de Mariana como vice-presidente. Cabe
destacar que Luciano Amedée Péret foi professor e diretor da Escola de
Arquitetura da UFMG e publicou um dos trabalhos considerados referência
nos estudos de modelagem sobre Aleijadinho (PÉRET, 1964). A respeito de
José Joaquim Carneiro de Mendonça, contudo, não há informações precisas.
Indícios apontam que tenha sido engenheiro, empresário e colecionador de
arte. Mas seu nome é mencionado com mais precisão na área da Arte
Contemporânea, entre críticos renomados no cenário nacional, como nos
Anais do Salão Nacional de Arte Contemporânea de 1973 e nos salões
municipais de belas artes de Belo Horizonte140. Dom Oscar de Oliveira, por
fim, iria integrar, ao longo de sua vida, a Academia Mineira de Letras, o
IHGB e IHGMG, estabelecendo interfaces entre a atividade intelectual e as
questões religiosas na narrativa sobre o passado mineiro (SILVEIRA, 2009)
199
Econômicas da UFMG142. E Affonso Ávila, por sua vez, dedicava-se à
pesquisa sobre o Barroco143, dirigia o Centro de Estudos Mineiros (CEM) da
UFMG e a Revista Barroco publicada na mesma universidade144. O perfil
dessa primeira composição do Conselho Curador já anunciava a tônica das
políticas institucionais e a base conceitual que fundamentaria a missão
institucional: a preservação de um patrimônio considerado a expressão-
síntese da nacionalidade a partir da região de Minas Gerais.
Esse quadro nos remete à analise realizada por Fonseca acerca das
composições do Conselho Consultivo do IPHAN na gestão de Rodrigo Melo
Franco de Andrade. Segundo a autora:
200
comprometimento com a preservação do passado comum
(IEPHA, 1991, p. 2).
201
obras na região e menciona projetos de restauração “completa”,
abrangendo um número significativo de edifícios religiosos e de bens
móveis associados.
145 Ver: NOBREGA, Isabel Cristina. Jair Afonso Inácio, um pioneiro na preservação do
patrimônio artístico brasileiro. 1997. 362 f. Dissertação (mestrado), Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Artes, 1997.
202
acadêmicos, mas circulavam nos meios intelectualizados e envolviam-se no
debate acerca da identidade nacional. Com o tempo, a legitimidade desse
projeto cunhado por intelectuais foi assentando em critérios científicos e
academicistas: os tombamentos e medidas de preservação, caso a caso,
passaram a ter como sustentáculo a autoridade do avaliador a partir de
conhecimentos balizados principalmente por disciplinas universitárias.
203
Dentre os documentos mencionados no trecho acima, o arquivo do
Instituto localizou apenas oito números da publicação Acervo datados entre
1980 e 1981. O segundo número, datado de setembro de 1980 aponta a
existência de 3 manuais técnicos produzidos pela Superintendência de
Conservação e Restauração, sob coordenação e supervisão dos arquitetos
Mauro Cavalcanti Marques e Galileu Reis, respectivamente superintendente
e diretor executivo do IEPHA na ocasião. Os manuais, intitulados “Normas
de Projetos”, “Normas de Orçamentos” e “Roteiros de Vistorias”, segundo
consta na Revista, estariam direcionados a “todos os profissionais e
entidades que atuam no campo do patrimônio histórico e artístico” e teriam
como objetivo abordar aspectos metodológicos do trabalho do instituto na
área de projetos, obras, restaurações, museus, cadastramentos de bens
culturais, tombamentos e legislação, orientando procedimentos técnicos a
partir de “[...] conhecimentos testados, assimilados e codificados pela
equipe IEPHA/MG, de modo a contribuir para o enriquecimento de uma
bibliografia especializada” (IEPHA, 1980, p. 3).
204
para a formação da desejada consciência coletiva diante dos
valores históricos e artísticos do Estado (IEPHA, 1981, p. 3).
146A Revista n°1 de 1980 dedica a página 2 a falar da inauguração do museu no edifício do
antigo Senado Estadual, restaurado pelo IEPHA a partir de recursos oriundos de convênio
estabelecido entre o Governo do Estado e a Secretaria do Planejamento da Presidência da
República. Segundo a publicação, o principal acervo a ser exposto no Museu Mineiro seria
referente à Arte Sacra do século XVIII da Coleção Geraldo Parreiras: mais de 200 peças
adquiridas pelo Estado de Minas Gerais em 1978.
205
O Relatório de 1981 aponta uma concentração de atividades de
conservação e restauração relacionadas a vistorias e levantamentos,
elaboração de projetos, elaboração de orçamentos e realização de obras
executados através, principalmente, de convênios com o IPHAN e a
Fundação Roberto Marinho, por meio do Programa Cidades Históricas e do
Programa Obras Urgentes.
206
Superintendência de Pesquisa e Proteção. Essa mudança de nomes refletia
a expansão do Instituto e a setorização de suas atividades, já não mais
concentradas em poucos setores e num quadro de funcionários limitado.
Sendo assim, tarefas como identificação e pesquisa – para a produção de
dossiês em processos de tombamento –, restauração e divulgação passam
gradualmente a ser alocadas em superintendências distintas.
207
Ainda assim a referida publicação do Instituto relata a existência de
historiadores na agência. Na última parte da publicação, dedicada a
depoimentos de técnicos especialistas sobre os trabalhos do Instituto desde
a sua criação, é apontada a presença de outros profissionais em 1991, como
desenhistas. No Relatório de Atividades que compreende os anos de 1987 a
1990, indica-se a existência de 90 técnicos na composição da Instituição;
mas o Relatório referente aos anos de 1991 a 1994 indica que do efetivo
técnico, o total de 70 – num universo de 140 funcionários – possuía ensino
superior completo. No setor responsável pelas pesquisas dos processos de
tombamento – a elaboração de dossiês – observou-se que a coordenação foi
majoritariamente assumida por arquitetos até o princípio da década de
1980, quando historiadores passaram a coordenar as atividades, com
destaque para Ruth Vilamarin Soares (que assume o cargo até 1994).
147Importa destacar a palavra “resgatar” cujo sentido nos remete à ideia de “salvamento” ou
de algo a ser acessado.
208
tese que museus e institutos de patrimônio foram criados, em muitos casos,
de forma concomitante, em esquemas de influência recíproca que
interferiram na gerência e criação de categorias e leituras sobre o mundo.
Parafraseando Chuva, é possível pensar o técnico-especialista como aquele
capaz de inventar/definir o bem cultural a ser patrimonializado ou não,
atribuindo valor e significados a práticas culturais que circunscrevem os
limites do campo; seu trabalho em fabricar um patrimônio está integrado a
um projeto de construção de um campo. Nesse sentido, os
constrangimentos, o enquadramento e a disciplinarização que delineia o
lugar de fala desse profissional se aplica igualmente ao historiador,
arquiteto, ao museólogo, e outros que também encontram-se limitados por
questões de diversas naturezas, tais quais: financiamento de estudos,
postos a julgamentos sobre suas finalidades e objetivos por comissões de
alto nível; regras que regem a oferta de trabalho, considerando o perfil, a
política e a dinâmica das instituições e empresas inseridos num mercado; e
as demandas de elaboração de documentos técnicos e jurídicos que
atestam as estratégias de reprodução de códigos e discursos (CHUVA,
2012a, p. 11).
209
4.5 - O IEPHA e as Relações Disciplinares
210
Quadro 1 - Relação dos Presidentes do IEPHA, entre 1971 e 1989, e sua respectiva
área de formação acadêmica
1975-
1979 José Geraldo de Faria Arquitetura
1979-
1983 Luciano Amédee Péret Arquitetura
1983-
1984 Suzy Pimenta Mello Arquitetura
1984-
1987 Rodrigo Ferreira de Andrade Engenharia
1987- Comunicação
1988 Anna Marina Vianna Siqueira Social/Jornalismo
1988-
1989 Maria Christina Araújo Campos Direito
DIRETORES EXECUTIVOS DO
PERÍOD FORMAÇÃO ACADÊMICA
IEPHA
O
1971-
1975 Luciano Amédee Péret Arquitetura
1975-
1979 Luciano Amédee Péret Arquitetura
1979-
1983 Galileu Reis Arquitetura
1983-
1984 Rodrigo Ferreira de Andrade Engenharia
1984-
1987 Mário de Lima Belfort Arquitetura
1987-
1988 Marcus Vinícius Franco Soares Arquitetura
211
1989
212
pragmática: afinal, naquele período, haveria uma série de
lições a serem aprendidas pelos arquitetos modernos
(CASTRIOTA, 2013, p. 79).
213
de outras instituições de ensino. De acordo com os relatórios de gestão
consultados, foram desenvolvidas parcerias com a Fundação João Pinheiro,
com a Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais (CETEC) e com o
Instituto Metodista Izabela Hendrix, a partir das quais realizaram-se oficinas
de restauração direcionadas à formação de técnicos para atuarem nas
políticas de preservação. No Relatório referente aos anos de 1983 a 1987, o
Instituto se assumia como a agência que possuía “o melhor grupo de
técnicos especializados nos segredos da restauração” (IEPHA, 1987, p. 11),
sendo referência para técnicos de outras partes do país. Segundo a
publicação, tais profissionais das demais regiões brasileiras estariam
fazendo estágios e cursos de aprofundamento no Instituto, com
historiadores, arquitetos e engenheiros que igualmente aprimoravam sua
formação na Universidade Federal de Ouro Preto ou na Universidade Federal
de Minas Gerais. Essa inter-relação entre o Instituto e as Universidades
provavelmente foi contribuindo na formação de um mercado de trabalho
voltado à preservação do patrimônio, reverberando diretamente na
organização e formalização de algumas profissões, como no caso dos
restauradores e dos arquitetos.
214
Considerando que o quadro de funcionários do Instituto, segundo esta
publicação, compreendia 142 trabalhadores – sendo 90 técnicos, 10 cargos
de direção e 42 administrativos – o investimento numa formação nacional e
internacional em 5 especialistas, para além das demais parcerias
universitárias apontadas pelo documento, surpreende num contexto de
contenção de despesas com pessoal e arrocho salarial149.
215
IEPHA e da ABRACOR, à título de exemplo – cabe mencionar a construção de
um caminho acadêmico nessa área, envolvendo a Escola de Belas Artes da
UFMG através da fundação do CECOR em 1980, que culmina com a criação
de um curso de graduação em 2008 – em suas parcerias na restauração do
patrimônio mineiro.
216
nem tampouco as cartas patrimoniais ou a legislação voltada
à proteção do patrimônio cultural como fundamentos
superficiais. É imprescindível o domínio da epistemologia,
saber o lugar do qual emerge o campo teórico do
conhecimento científico que sustenta as bases da ciência da
conservação (Idem, p. 49).
217
prática acadêmica – de pretensão científica – e retroalimentada pelo
mercado de trabalho a partir da figura do IEPHA.
218
4.6 - A Superintendência de Museus
219
dos seres por eles governados e a geografia dos territórios. Segundo a
autora, trata-se da criação de realidades unificadas a partir de instrumentos
e instituições dotadas de poder e prestígio. No caso do patrimônio mineiro,
portanto, seria possível pensar nessas ferramentas enquanto elementos
capazes de reforçar as relações de colonialidade a partir da imaginação
sobre um projeto civilizatório, num repertório aparentemente unificado e
consensual de símbolos e signos referentes ao passado de Minas Gerais.
153 O projeto do museu aparentemente não saiu do papel naquela ocasião, mas cabe
destacar que sua concepção se voltava à preservação e divulgação das atividades e produtos
característicos da exploração de jazidas de minério de ferro e da indústria da mineração.
220
até a Reforma Administrativa de 1984154 - Decreto n° 23.512 daquele
mesmo ano –, a partir da qual foi criada uma Secretaria Estadual de
Cultura155 e ali alocada a Superintendência de Museus (SUM) enquanto
órgão subordinado156.
de Estado da Cultura.
157 De acordo com os documentos, o assessoramento se dava através de apoio técnico,
221
experienciadas pela Superintendência caso não se resolvesse a carência de
mão de obra e o quadro de funcionários incompatível com as solicitações
para implantação de museus e assessoria técnica nas várias regiões do
estado. De acordo com o documento, a Superintendência contava com 1
superintendente, 1 assessor administrativo, 2 museólogos, 6 historiadores,
2 comunicadores visuais, 2 pedagogas e 2 secretárias, o que era
considerado insuficiente para as demandas acumuladas ao longo dos anos e
aparentemente relegadas a segundo plano nas políticas empreendidas pelo
IEPHA.
222
em acervos móveis ou na elaboração de exposições itinerantes no estado.
Nesse sentido, a exigência pela contratação de museólogos se faz presente
nos relatórios e documentos da SUM de 1985, 1986, 1987 e 1988 como uma
necessidade imprescindível aos trabalhos de preservação executados pelo
órgão ao longo dos anos. De acordo com esses documentos, sem a referida
contratação não seria possível materializar as expectativas de
desenvolvimento projetadas pelo órgão num alcance regional.
158O documento não discorre sobre o funcionamento dos “museus fluviais” e dos “museus
modulares”, mas menciona que seriam equipamentos específicos para “manifestações ou
memórias isoladas”, serviriam como pontos de referência para a “ação social em
comunidades pequenas” em “setores periféricos”.
223
possibilidades e, sobre estes conhecimentos – com amplo e
real envolvimento das representações sociais efetivas –
descobrir vias alternativas para um desenvolvimento
coerente e não subordinado (SUM, 1985, s/p).
159Ainda que o corte da presente tese se limite ao ano de 1988 devido ao processo de
municipalização das políticas públicas oficializado pela Constituinte, a menção a documentos
produzidos em 1989 nos permite apontar o quadro técnico vivenciado pelo órgão no ano
anterior.
224
Outro ofício encaminhado ao Secretário de Estado da Cultura,
Fernando Soares Paz, pelo então Superintendente de Museus, Maurício Elias
Caldas, em 1989, aponta que em 1987 a SUM sofria uma carência de
técnicos-especialistas que comprometia a política de ação para os museus
no Estado de Minas Gerais. De acordo com o superintendente, o corpo de
funcionários carecia principalmente de museólogos, o que, segundo ele,
desrespeitava a Lei Federal160 que regulamentava a referida profissão. No
documento, Mauricio Elias Caldas relata que na ocasião que assumira a
Superintendência existia somente uma museóloga integrando a equipe do
órgão, sendo que as duas diretorias existentes no organograma da SUM – a
de gestão e de assessoria – estavam ocupadas por advogadas. Ele
prossegue o ofício afirmando que nenhuma das três pessoas que o
antecederam no cargo de superintendente possuíam “sequer especialização
na área museológica”. O documento, portanto, fazia inúmeras menções à
necessidade da presença desse profissional específico para a preservação
do patrimônio musealizado, como se vê em alguns trechos:
160 A Lei n° 7287 de 1984 estipula as atribuições do profissional, dentre as quais define-se no
Art. 3°, § 10, “dirigir, chefiar e administrar os setores técnicos de museologia nas instituições
governamentais da Administração Direta e Indireta, bem como em órgãos particulares de
idêntica finalidade”.
225
Depreende-se desse trecho que a legitimidade científica da formação do
museólogo atribuía não apenas a autoridade no trato com bens
musealizados, mas a exclusividade no referido trabalho.
226
Nos arquivos da SUM não foram encontrados os documentos que
atestam a realização do curso, apenas seu descritivo caracterizado como
“Especialização em Museologia: curso de pós-graduação”. Na grade
curricular constavam as seguintes especialidades disciplinares: Museologia
Geral, Museologia Especial, Museologia Aplicada, Antropologia Cultural,
Cultura Brasileira, Planejamento de Ação Cultural, Metodologia da Pesquisa
Científica, e Metodologia do Ensino Superior. O corpo docente contava com
professores ligados à Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo, à
International Academy of Letters of England, e à Associação Profissional dos
Desenhistas Industriais de Minas Gerais, sendo todos os professores
portadores de diplomas de doutorado ou mestrado. Cabe destacar que o
corpo docente do curso contava com a participação de Waldisa Russio C.
Guarnieri, a qual já se configurava como uma figura expoente no campo da
Museologia nacional.
227
4.7 – O IEPHA, o Desenvolvimentismo e o Processo de
Municipalização da Preservação
228
Quadro 3 - Relação de empresas que estabeleceram convênios, promoções e
parcerias com o IEPHA entre 1986 e 1989 (IEPHA, 1991, p.13)
229
setores empresariais mobilizados na exploração de territórios – com
desdobramentos diretos e indiretos sobre bens culturais e sobre a memória
de comunidades – estiveram isentos de determinados tributos se fazendo
“parceiros” do IEPHA na conservação e restauração pontual de alguns bens
patrimonializados161. A partir desse quadro importa problematizar o
desempenho dos institutos de preservação (e, claro, dos técnicos que fazem
a agência existir) no quadro do nacional-desenvolvimentismo. Qual o papel
do conhecimento especializado no campo do patrimônio nesse processo de
exploração de recursos naturais?
161 De acordo com a publicação de 1991, parte significativa dos recursos privados foram
destinados à Superintendência de Conservação e Restauração.
162 Entre as diferentes correntes de pensamento dedicadas à reflexão sobre o nacional-
230
Nos dias de hoje, revela-se fundamental relacionarmos essas
reflexões acima com as discussões realizadas no Capítulo 2 da presente
tese a respeito das “zonas de sacrifício”. O patrimônio não se dissocia dos
contextos de disputas por direitos ambientais e direitos civis, e atravessa,
de forma material e/ou simbólica, os conflitos socioambientais no meio rural
de Minas Gerais, os quais envolvem, entre outras coisas, os licenciamentos
de mineradoras e hidrelétricas.
231
como tudo isso atuou mais abrangentemente em nossa
organização (IEPHA, 1991, p. 13).
232
objetivo inventariar bens culturais em diferentes regiões do Estado. A
complexidade do programa, juntamente com os empecilhos relacionados ao
seu desenvolvimento prático, resultou, contudo, no inventário163 de apenas
40 dos 720 municípios existentes na ocasião em Minas Gerais em cerca de
20 anos, fato que atestou a urgência da descentralização das atividades do
Instituto.
163O relato de Jurema Machado em 1997 aponta que as ações do IPAC se restringiram à
identificação e ao registro documental de bens culturais, não compreendendo políticas de
preservação.
233
local. Tal situação se seguiu até a primeira década do século XXI em grande
parte do território nacional, devido aos desenhos institucionais onde
predominaram a gestão da cultura associada com outras áreas de políticas
públicas (BIONDINI & SOUZA & STARLING, 2010; SOUZA & MORAES, 2013,
2014; STARLING, 2009).
164Até então o corpo de funcionários aparentemente era formado por contratos celetistas –
em cargos comissionados de recrutamento amplo – e por funcionários transferidos de outros
órgãos ou autarquias estaduais.
234
CARGO: TÉCNICO DE GESTÃO, PROTEÇÃO E RESTAURO
Nº DE VAGAS
Nível de
Escolaridade - Reservado SETOR UNIDADE
Ampla
Ensino Médio / a Tota ADMINISTRATIVA
concorrênci
Técnico Portadores l
a
Deficiência
Diretoria de
Técnico Administrativo 11 2 13 Planejamento, Gestão e
Finanças
Diretoria de
Técnico de
3 - 3 Planejamento, Gestão e
Contabilidade
Finanças
Diretoria de
Técnico de Informática 2 1 3 Planejamento, Gestão e
Finanças
Técnico em
1 - 1 Diretoria de Promoção
Biblioteconomia
Técnico Diretoria de Proteção e
6 1 7
Edificação/Desenhista Memória
Técnico Diretoria de
Edificação/Orçamentist 2 - 2 Conservação e
a Restauração
Diretoria de
Técnico
1 - 1 Conservação e
Edificação/Eletricista
Restauração
Diretoria de
Técnico/Restauração 6 1 7 Conservação e
Restauração
TOTAL 32 5 37
235
Quadro 5 - Quadro de vagas do edital IEPHA/MG n° 001/2006 para cargos de
provimento efetivo de cargos das carreiras de Técnico de Gestão, Proteção e
Restauro e Analista de Gestão, Proteção e Restauro
236
Memória
Diretoria de Proteção e
Historiador 5 - 5
Memória
TOTAL 32 2 34
FORMAÇÃO 200 200 200 200 201 201 201 201 201 201 201 201
ACADÊMICA 6 7 8 9 0 1 2 3 4 5 6 7
Arqueologia - - 1 1 - 1 1 - 1 1 1 1
Antropologia - - - - - - - 1 1 - - -
Arquitetura 2 2 3 4 5 7 7 7 6 6 6 7
Belas artes - - - - - 1 1 1 1 1 1 1
Ciências sociais - - - - - - - - - - 1 -
Comunicação - - - - - 1 1 1 1 1 1 1
Educação artística - - - - 1 - - - - 2 2 2
Geografia - - - - - - - 1 1 1 1 1
Geologia - - 1 1 1 1 - - - - - -
História 6 5 5 5 5 8 7 7 8 9 7 5
Letras - - - - - - 1 - - - - -
Paisagismo 1 1 1 1 1 1 1 - - - - -
Química 1 1 - - - - - - - - - -
237
Restauração - - - - - - - - - - 1 -
Sociologia - - 1 1 1 - - - - - - -
238
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
PATRIMÔNIOS POSSÍVEIS
239
CONSIDERAÇÕES FINAIS: PATRIMÔNIOS POSSÍVEIS
240
patrimônio esteve relacionada ao mundo da intelectualidade brasileira – no
âmbito das artes, da arquitetura, da economia, entre outros – mas aos
poucos, em especial a partir da década de 1940, foi assumindo um perfil
acadêmico, ligado a determinadas disciplinas que começavam a ser formar
no Brasil em espaços universitários. Esses agentes especializados – ora
intelectuais, ora técnicos de formação acadêmica – aparentemente atuaram
no sentido de (re)produzir consensos sobre as representações de um
passado a partir de uma suposta universalidade de códigos e critérios.
Numa perspectiva bourdieuana, teriam o habitus – as disposições em
relação ao mundo e suas formas de construção da realidade (estética,
científica, simbólica, entre outros) – e a doxa – as leis que regem e regulam
o campo formando uma espécie de “senso comum”, ou um conjunto de
crenças naturalizadas, portanto, inquestionáveis – como elementos
preponderantes na sua dinâmica de construção, manutenção e reprodução
desse campo do patrimônio.
241
existência de agências de patrimônio que aparentemente atuaram através
das figuras de especialistas, sujeitos supostamente capazes de acessar
valores e mobilizar códigos inacessíveis ao resto da população. Esta se
limitaria, portanto, à aceitação e à sujeição a processos “educativos” de
“conscientização” sobre a importância da preservação e suas metodologias.
242
importância na narrativa civilizatória do Brasil. E aqui importa destacar o
papel desempenhado pela preservação de um patrimônio representativo da
acumulação de capital pela mineração no século XVIII, com destaque ao
desempenho dos museus criados entre os anos de 1930 e 1950 em núcleos
urbanos preservados pelo IPHAN, os quais faziam referência às antigas
comarcas da Capitania das Minas: Vila Rica, Sabará, Serro do Frio e Rio das
Mortes. Nesse contexto, a formação de coleções que recorriam ao século
XVIII como o paradigma civilizatório da região das Minas acabou por
contribuir fortemente na criação de uma identidade que tomava como
referência a colonização europeia.
243
Assim, o patrimônio não parece se descolar das relações de
produção – sendo a preservação uma prática social produtiva – a partir de
atividades institucionais criadoras de valores e de sistemas de
representação, num contexto em que a realidade territorial é atravessada
pela experiência da colonização – e consequentemente pelo caráter
exploratório do capitalismo no Sul-global. Trata-se de uma discussão
levantada nos debates decoloniais de Aníbal Quijano, Ramon Grosfóguel e
Walter Mignolo, e que se soma à reflexão de Gayatri Spivak no que diz
respeito ao poder de fala, mas que se foca na especificidade da América do
Sul e na colonização como fundamento para a emergência do capitalismo
na sua lógica mundial. Aqui se configura uma divisão entre os países na
posição de investimento capital e os países que ofertam mão de obra “mal
protegida” ou precarizada nos direitos e garantias de dignidade humana,
visados na exploração de recursos naturais e imersos nos debates sobre o
nacional-desenvolvimentismo como estratégia de inserção na Modernidade.
244
americanos acerca das contingências do trabalho escravo, da violência no
campo, da luta por terra e moradia, pela demarcação de territórios
quilombolas e indígenas, ou mesmo sobre desastres socioambientais, os
quais envolvem, entre outras coisas, os licenciamentos de mineradoras e
hidrelétricas, a título de exemplo.
245
universalidade de teorias e métodos elaborados a partir de realidades
ocidentais moderno-coloniais, de onde se forjam os conhecimentos
acadêmicos de pretensão científica. Partindo dessa seara que se considera a
existência de uma relação de superioridade dos conhecimentos da
sociedade ocidental moderna sobre os demais conhecimentos produzidos
em outros territórios como face oculta dessa Modernidade sul-americana,
camuflada em práticas e instituições seculares que ignoram as dinâmicas de
força instauradas pelo colonialismo, conforme vimos nas reflexões de
Ramon Grosfóguel.
246
aprofundariam a Democracia, tais como os conselhos setoriais, os fóruns e
as conferências de cultura, o orçamento participativo, ferramentas de
consulta popular, indicadores sociais, planos municipais setoriais
construídos coletivamente, entre outros. Tais instrumentos poderiam
suplantar a condição da abordagem “estatal”, na qual a sociedade moderna
seria produzida pelo Estado – este enquanto o próprio marco institucional
das relações de poder coloniais, um modelo organizacional eurocêntrico,
classista, com o qual operamos na América do Sul.
247
denominamos e trabalhamos como patrimônio – um termo que oferece
diferentes e tensas possibilidades. O possível é sinônimo de provável, do
que talvez exista ou vá existir. E aqui apontamos algumas possibilidades do
patrimônio, como os casos do Museu da Parteira e o Museu da Beira da
Linha do Coque, em Pernambuco; o Museu das Remoções, no Rio de Janeiro;
as “casas de memória” construídas por trabalhadores e sindicalistas rurais
no interior do estado do Pará; entre tantos outros exemplos espalhados
Brasil afora cuja potência de resistência a diferentes formas de violência
material e simbólica se materializa principalmente em perspectivas críticas
sobre os processos de preservação.
248
letrada – produtora de distinções – enquanto parte da estrutura do
colonialismo interno em sua relação com correntes disciplinares. Portanto, a
possibilidade de fala nas arenas políticas de decisão sobre o patrimônio
acaba por revelar-se ainda mais reduzida quando falamos, então, dos
segmentos mais marginalizados, como mulheres negras e indígenas, por
exemplo.
249
REFERÊNCIAS
250
REFERÊNCIAS
251
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Núcleo de Memória da Museologia no Brasil, Rio de Janeiro. Rev.
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divulgação, 1990.
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MINAS GERAIS, Superintendência de Museus. Secretaria de Estado da
Cultura. Sugestões da Superintendência de Museus para as reuniões
de trabalho sobre “Perspectivas de Desenvolvimento em MG, na
Nova República”. Minas Gerais, 1985.
266
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.ht
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MINAS GERAIS. Lei nº 528, de 20 de setembro de 1910. Disponível em:
https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=
LEI&num=528&comp=&ano=1910. Acesso em: 20 jan. 2018.
268
ANEXOS
269
ANEXO I: Estrutura Organizacional do Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais entre 1971 a 1979.
Fonte: IEPHA/MG, s/d.
270
ANEXO II: Estrutura Organizacional do Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais entre 1979 a 1984.
Fonte: IEPHA/MG, s/d.
271
272
ANEXO III: Estrutura Organizacional do Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais entre 1984 a 1986.
Fonte: IEPHA/MG, s/d.
273
274
ANEXO IV: Estrutura Organizacional do Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais em 1986. Fonte:
IEPHA/MG, s/d.
275
ANEXO V: Estrutura Organizacional do Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais em 1987. Fonte:
IEPHA/MG, s/d.
276
ANEXO VI: Estrutura Organizacional do Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais entre 1988 e 1989.
Fonte: IEPHA/MG, s/d.
277
278