Livro
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Simone Monteiro
Livio Sansone
(orgs.)
MONTEIRO, S., and SANSONE, L., org. Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde
e direitos reprodutivos [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004, 344 p. ISBN: 978-85-7541-
615-0. Available from: doi: 10.7476/9788575416150. Also available in ePUB from:
http://books.scielo.org/id/dcc7q/epub/monteiro-9788575416150.epub.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA:
UM DEBATE SOBRE RAÇA,
SAÚDE E DIREITOS REPRODUTIVOS
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
Presidente
Paulo Marchiori Buss
Vice-Presidente de Desenvolvimento
Institucional, Informação e Comunicação
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EDITORA FIOCRUZ
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José da Rocha Carvalheiro
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Luís David Castiel
Luiz Fernando Ferreira
Maria Cecília de Souza Minayo
Miriam Struchiner
Paulo Amarante
Vanize Macedo
Coordenador Executivo
João Carlos Canossa P. Mendes
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA:
UM DEBATE SOBRE RAÇA,
SAÚDE E DIREITOS REPRODUTIVOS
ISBN: 85-7541-038-5
Catalogação na fonte
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca
—_————
FUNDAÇÃO FORD
2004
Editora FIOCRUZ
Av. Brasil 4036, 1ª andar, sala 112, Manguinhos
21040-361, Rio de Janeiro R]
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AUTORES
Apresentação 9
Este livro tem por objetivo refletir sobre as desigualdades sociais, seus reílexos na
área da saúde, particularmente as que se referem a questões étnico-raciais. Trata—
se de uma proposta de ampliação da escassa literatura, no âmbito da América La-
tina, acerca das interfaces entre etnicidade, saúde, sexualidade e gênero. A partir
das contribuições das ciências sociais e da saúde, os trabalhos aqui reunidos dis-
cutem os conceitos de raça e etnicidade, e suas relações com o campo da saúde.
Abordam, ainda, os resultados de investigações referentes à saúde reprodutiva, en—
volvendo grupos indígenas e a população negra, bem como reflexões acerca dos
desafios na implementação de políticas públicas com recorte étnico/racial.
A proposta de conjugar os trabalhos de especialistas em povos indígenas
e população negra visa examinar os contrastes e as aproximações, no campo da
saúde reprodutiva, entre grupos étnico—raciais excluídos historicamente no con-
texto da América Latina e, desta forma, ampliar o debate sobre as especificidades
culturais associadas à condição étnico-racial. Vale destacar que nesta publicação
foi incluído o ponto de Vista de profissionais pertencentes a instituições acadê-
micas e de movimentos sociais. Embora nem sempre seja fácil, compreende-se
que a interlocução entre pesquisadores, militantes e pesquisadores—ativistas1 de-
va ser fomentada. A leitura dos artigos permite a identificação da riqueza, das di-
ficuldades e do potencial da interação entre esses atores sociais para a produção
do conhecimento e para a formulação de políticas públicas. Pode-se dizer que há
visões consensuais no que diz respeito à compreensão das identidades étnicas e
raciais como construções sociais, e que a perspectiva de uma sociedade sem dis-
criminação racial, capaz de respeitar todós os indivíduos, independentemente de
2 Fizeram parte do evento profissionais das Universidades Federais do Amazonas (FUA), de Per-
nambuco (UFPE), da Paraíba (UFPB), da Bahia (UFBA), do Mato Grosso (UFMT), do Rio de la-
neíro (UFRJ). de Niterói (UFF), de Minas Gerais (UFMG), do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de
Santa Catarina (UFSC), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (Uerj) e da Universidade Candido Mendes (R)). Participaram também pesquisadores
das Universidades de Vanderbilt (Nashiville). Del Valle (Cali) e Nacional da Colômbia (Bogotá).
3 Estiveram presentes profissionais da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reproduti-
vos, da Secretaria Estadual de Saúde (RJ), e das seguintes organizações: Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap), Fala Preta, de São Paulo, AfroReggae, NEPPN/PUC e Cidadania Estudo Pesquisa ln-
formação e Ação (Cepia), do Rio de Janeiro; Núcleo de Estudos Negros (NEN), de Florianópolis;
Gríô Centro Pedagógico de Reterritorialização Cidadania Negra e Coordenação Estadual da
Mulher, de Porto Alegre; Mingá Peru, do Peru, e Grupo de Estudios sobre la Mujer, do México.
10
Sansone propõe uma reHexâo sobre as interfaces entre etnicidade, racializa-
ção, identidade, gênero e sexualidade no contexto de quatro países da América
Latina (Brasil, México, Nicarágua e Colômbia). O autor salienta ainda as parti—
cularidades e os elementos comuns entre os países investigados.
As demais partes, descritas abaixo, estão estruturados na forma de um
texto de tomada de posição seguido por outros artigos que o analisam critica—
mente. A definição deste formato teve por objetivo contemplar as convergên-
cias e divergências em torno da temática em foco e, desta forma, incorporar os
diversos ângulos da discussão atual referente às investigações e também as
proposições de políticas públicas na área da saúde com recorte étnico-racial.
Assim, a segunda parte da coletânea, voltada para as formulações concei-
tuais e as representações sobre raça, etnicidade e suas aplicações na área da saú-
de, é constituída pelo texto central de José Carlos dos Anjos, seguido das análises
críticas de Peter Fry e Mara Viveros. José Carlos reflete sobre o significado e os
usos das concepções de raça, saúde, corpo e etnia, & partir de dois eixos. Um de-
les centra-se na perspectiva denominada pelo autor de historicista nominalista,
sustentada pela visão foucaultiana de raça e biopoder. A outra vertente trata das
abordagens antropológicas sobre concepções locais de doença, corpo e saúde.
A busca da convergência dos referidos eixos apóia a análise do autor sobre a “do-
minação e as possibilidades de diálogo interétnico" na proposição de políticas
públicas de saúde. Em sua apreciação, Peter Fry lança questionamentos acerca
dos argumentos desenvolvidos por José Carlos e indagações em relação ao movi-
mento voltado para a adoção do modelo racial bipolar (branco e negro) no Brasil
e às consequências da correlação entre “raça negra' e doença para a afirmação
de identidades raciais. Mara Viveros também examina as idéias elaboradas por
José Carlos. focalizando as relações entre a noção de biopoder e raça, as tensões
entre universalismo e partícularismo na área da saúde pública, os efeitos sociais
do imaginário racista e as possibilidades de resistência da população negra.
A terceira parte traz como tema a saúde reprodutiva da população indí-
gena & partir de dois textos de base, o de Carlos Coimbra e Luiza Camelo e o
de Renato Athias, acompanhados das análises de Beth Conklin e de Esther
lean Langdon, respectivamente. Diante da carência de dados sobre os determi-
nantes socioculturais, ambientais e biológicos da saúde reprodutiva dos povos
indígenas na realidade brasileira, Carlos Coimbra ]r. e Luiza Garnelo recorrem
a estudos de casos para abordar os padrões de fecundidade e as particularida-
des epidemiológicas da população indígena, associadas à saúde reprodutiva.
Em seu artigo, Beth Conklin tece considerações acerca das questões assinala—
das por Coimbra e Garnelo, enfatizando as contribuições para a saúde pública
do conceito de direitos reprodutivos, no que diz respeito à criação de novos
11
espaços de interlocução entre os povos indígenas e os profissionais de saúde.
O trabalho de Renato Athias, por sua vez, descreve os resultados da pesquisa
realizada na área indígena de Pankararu, em Pernambuco, focalizando & rela—
ção da mulher Pankararu com o seu corpo e o ciclo reprodutivo, e as represen-
tações das doenças. Esther ]ean Langdon faz uma apreciação do trabalho de
Athias, destacando as especificidades das políticas públicas da saúde indígena
e suas repercussões para o campo da saúde reprodutiva.
A quarta e última parte, direcionada para as investigações na área da
saúde reprodutiva com ênfase na população negra, é composta de três artigos
de referência (André Caetano, Fernando Urrea Giraldo e colaboradores e Fáti-
ma Oliveira), seguidos de duas análises críticas (Francisco Bastos e Mônica
Grin). O estudo de André Caetano examina a existência de diferenças estatisti-
camente significativas em relação ao risco de esterilização feminina entre bran—
cas, pardas e negras no Brasil, e analisa as condições que cada grupo de raça/-
cor enfrenta para controlar a sua fecundidade. O artigo de Francisco Bastos co-
menta as contribuições da perspectiva metodológica adotada por André Caeta—
no e traz argumentos sobre a necessidade de estudos empíricos na área da saú—
de pública que incluam raça/etnia como categoria de análise. Em consonância
com essa visão, o trabalho de Fernando Urrea e colaboradores apresenta dados
de pesquisas sobre gênero, sexualidade e saúde reprodutiva de jovens negros de
Cáli (Colômbia), ressaltando alguns efeitos dos estereótipos raciais para & traje-
tória dos jovens investigados. Os dois artigos finais desta parte discutem, de
forma mais direta, proposições de políticas públicas em saúde com recorte étni-
co-racial. Fátima Oliveira apresenta dados sobre morbidade e mortalidade entre
os negros e brancos, e cita propostas de afirmação de um campo de pesquisa e
de intervenção voltado para a saúde da população negra, bem como as respos-
tas do governo brasileiro nesta área. Mônica Grin, apoiada na contextualização
da dinâmica das relações raciais no Brasil, assinala alguns dilemas referentes à
elaboração de políticas públicas com recorte étnico-racial e problematiza &
operacionalização das propostas apresentadas por Oliveira.
Em suma, mediante reflexões dos diversos campos disciplinares, esta
publicação tem por objetivo aprofundar a compreensão das relações entre o
conceito de raça/etnicidade, os indicadores socioeconômicos e o quadro de
enfermidades. Desta forma, pretende fomentar o debate sobre: a operacionali—
zação da categoria cor/raça nas investigações na área da saúde, os efeitos da
discriminação étnico-racial na saúde e na qualidade da assistência, e a imple-
mentação de modelos diferenciados de saúde pública, tendo por base as tradi—
ções culturais dos grupos étnico—raciais.
Os Organizadores
12
Parte I PERSPECTIVAS HISTÓRICA E CONTEMPORÃNEA
RAÇA, DOENÇA E SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:
UM DEBATE SOBRE o PENSAMENTO HIGIENISTA
DO SÉCULO xxx
Introdução
1 Para uma crítica a esses estudos, ver: Carvalho & Lima (1992); Edler (1996) e Hochman (1998).
15
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
triz do bom sangue africano, com que a corrente imigratória nos vem depu-
rar as veias da mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civili-
zado, os ares de um matadouro da raça branca. (apud Bodstein, 1984: 24)2
3 A conferência de Rui Barbosa sobre Oswaldo Cruz foi publicada na prestigiosa Revista do Bra—
sil, v. 5, n. 19, de julho de 1917. A citação de Bodstein (1984) foi extraída de Oswaldo Cruz no ]ul—
gamento dos Contemporâneos. Rio de Janeiro, FGV, Serv. de Publicações, 1972. Chalhoub retirou a
citação de Rui Barbosa do artigo de Regina C. de A. Bodstein: Práticas sanitárias e classes po-
pulares do Rio de Janeiro, publicado na Revista do Rio de ]aneíro, v. 1, n. 4, p. 42-43, de 1986.
3 Bodsteín (1984: 25), com base na fala de Rui Barbosa, afirma: "O discurso higiênico revelava
um entendimento muito particular sobre o que e como se daria o saneamento. Sanear, sob tal
perspectiva, era tornar viável () fluxo de imigrantes europeus, “depurador do sangue mestiço', e,
ainda elemento necessário para o desenvolvimento das relações comerciais e diplomáticas do
país com o resto do mundo civilizado".
4 Refiro-me ao livro de Oswaldo Porto Rocha A Era das Demolições: cidade do Rio de Janeiro, 1870-
1920, publicado em 1986 pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de ]aneiro. O título deste
livro dá uma boa idéia do que Chalhoub expõe no primeiro capítulo (Cortiços) do seu livro Ci-
dade Fabril, em que discorre sobre a importância do discurso hígienista oitocentista para as
transformações urbanas realizadas nos primeiros tempos da República. tomando como exemplo
a destruição do famoso cortiço Cabeça de Porco, em 1893.
5 A importância do trecho racista do discurso de Rui Barbosa para o argumento de Chalhoub
pode ser avaliada pela citação nos dois primeiros capítulos do seu livro (Chalhoub, 1996).
16
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
6 Chalhoub (1996: 62) denomina “malconfessadas políticas específicas de saúde pública". Estas,
para o autor, seriam concebidas em chave negativa. As políticas públicas racializadas vêm sendo
concebidas como a formulação e implementação de políticas focais, particularistas, que, em fa—
ce do tema em questão, atingem determinados grupos étnico-raciais. Em período recente, as
políticas de ação afirmativa são vistas por alguns segmentos sociais e políticos positivamente
como um meio legítimo de redução das desigualdades raciais no Brasil.
7 Esta é a denominação criada por Corrêa (1998) para qualificar esses intelectuais médicos.
17
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
18
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
obstado que a febre amarela e & cólera—morbo tenham passado para este hemisfério do sul,
além da linha do Equador; 40 —— as medidas quarentenárias que são possíveis estabe1ecer—se
entre as nações do mesmo continente sem prejuízo de seu comércio" (apud Ferreira, 1996: 137).
11 Outro aspecto dilemático enfrentado pelos médicos dizia respeito à possibilidade de haver
um processo civilizatório nos trópicos quando, ao mesmo tempo, se mirava a Europa, com con—
dições climáticas distintas, como exemplo a ser seguido (Kury. 1994).
12 Em termos gerais, a idéia não e simples. Corno relata Chalhoub (1996: 75): “Na verdade, co-
mo os africanos e seus descendentes sofriam & doença com menor gravidade, e considerando
que a maioria dos escravos da capital havia nascido na África, os doutores logo chegaram à hi—
pótese de que os africanos resistiam melhor ao flagelo por terem se aclimatado a ele em suas
regiões de origem. Em outras palavras, os africanos poderiam ser excelentes portadores e trans—
missores da febre amarela, estando, contudo, protegidos de achaques mais sérios por possuí-
rem alguma experiência prévia com a doença".
19
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
13 Trata—se, conforme Chalhoub (1996), do livro Sketches of Brazil: including new views on tropical
and European fever, with remarks on a premature decay of the system incident to Europeans on their
return from hot climates (Londres, 1852).
20
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
21
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
15 João Vicente Torres Homem (1837-1887) foi médico clínico formado pela Faculdade de Medi-
cina do Rio de Janeiro, onde foi Lente em Clínica Médica. Em 1876, por ordem do Governo Im-
perial, foi nomeado para a comissão encarregada de estudar as causas da persistência e do de—
senvolvimento da febre amarela nos últimos anos, indicando os meios mais eficazes para erradi-
cá-la (Magalhães, 1932; Blake, 1893; Santos Filho, 1991).
16 José Pereira Rego (1816-1892), Barão do Lavradio, formou—se pela Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro em 1838. Foi presidente da Junta Central de Higiene Pública, inspetor de saúde
do porto do Rio de Janeiro e do Instituto Vacínico do Império (1873). Foi membro do Partido
Conservador & vereador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (Magalhães, 1932; Blake, 1893;
Santos Filho, 1991).
17 José Francisco Xavier Sígaud (1796-1856), médico francês formado pela Faculdade de Medi—
cina de Estrasburgo. Em função de problemas políticos, imigrou para o Brasil em 1823. Envol-
veu-se em atividades jornalísticas e especialmente na formação do periodísmo médico brasilei-
22
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
23
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATlNA
19 Na trilha de Edler (2002) e diferente de Peard (1999), não confira excepcionalidade aos
achados da experiência da denominada Escola Tropicalista Baiana. Neste sentido, os 'tropica-
]istas' estão sendo mobilizados neste artigo para demonstrar a existência de uma espécie de do—
mínio comum de temas e problemas presentes no pensamento médico da época. Schwarcz
(1993) observa a presença de intensas trocas intelectuais e científicas entre os médicos cario-
cas e baianos através dos períodicos científicos Brazil Médico e Gazeta Médica da Bahia.
24
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
No final dos anos 1860, quando se inaugura uma nova temporada de surtos de
febre amarela que assolou a cidade do Rio de Janeiro até o início do século XX,
o discurso médico, na opinião de Chalhoub, muda de tom, corn a defesa da ne-
cessidade de intervenção no meio ambiente. Após a aprovação da Lei do Ventre
Livre, em 1871, e a percepção dos fazendeiros do colapso da escravidão, & febre
amarela tornar—se-ia & principal questão de saúde pública por atingir priorita-
riamente os imigrantes brancos, mão-de—obra alternativa no processo de reor—
denamento do sistema econômico do país. O projeto do higienismo racista não
contemplada outras doenças como, por exemplo, a tuberculose e & varíola, ma-
les que acometiam principalmente a população negra. Das medidas sanitárias
25
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
26
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
22 Utiliza-se & noção de questão obrigatória no sentido proposto por Bourdieu (1987: 207):
“Embora os homens cultivados de uma determinada época possam discordar a respeito das
questões que discutem, pelo menos estão de acordo para discutir certas questões (...). Assim co-
mo os linguistas recorrem ao critério da intercompreensão para o fim de determinar as áreas
linguísticas, também poder—se—ia determinar áreas e gerações intelectuais através do levanta-
mento do conjunto de questões obrigatórias que definem o campo cultural de uma época".
23 Com a tese Do Aclimatamento (1865), Torres Homem foi malsucedido no concurso para & cáte-
dra da cadeira de Higiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (Ferreira, 1994).
24 Ela se intitula Memória Histórica das Epidemias da Febre Amarela e Cólera-morbo que Têm Reinado
no Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1873 (Chalhoub, 1996).
25 Pereira Rego utiliza os termos “indivíduos de ordem inferior" e “as classes inferiores da so-
ciedade" (Chalhoub, 1996: 93). Creio que Pereira Rego oscila entre conteúdos efeitos à hierar-
quia racial e os atinentes à estratificação social.
27
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
26 O discurso de Pereira Rego não se limita a apontar que a febre amarela atingiria apenas os
imigrantes. Há uma outra categoria: “brasileiros vindos do interior" (Pereira Rego, 1873, apud
Chalhoub, 1996: 93). Ora, qual seria a composição étnico-racial dessa população?
27 Os trabalhos do 'médíco-antropólogo' Batista Lacerda e seus auxiliares no Museu Nacional
dos anos 1870 e 1880 são bastante representativos da visão negativa atribuída às características
físicas dos índios (Monteiro, 1996; Santos, 2002).
28 O primeiro grande debate sobre a imigração na segunda metade do século XIX tratou da vinda
28
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
de chineses para serem mão«de—obra nas lavouras. Ainda no flnal dos anos 1860. o médico Nico—
lau Joaquim Moreira, que tinha um projeto de modernização do campo, abordava o tema da imi—
gração & partir de argumentos raciais que estabeleciam urna hierarquização de povos e culturas.
Moreira não se contrapunha à miscigenação de povos no âmbito da raça branca, que mesmo em
graus diversos de civilização, como no caso dos anglo—saxões e latinos, resultaria numa 'boa
mistura'. Os chineses, por sua vez, pertencentes à raça asiática, seriam dotados de qualidades
negativas (*degenerados e imorais'). Neste caso, a mestiçagem prejudicaria o alegado progresso
do Brasil. A partir de estudos e experimentos no campo da zootecnia (aprimoramento dos cruza—
mentos de rebanhos e plantações), Moreira chega ao projeto de aperfeiçoamento dos “cruza—
mentos' entre seres humanos, cruzamento entre raças. Raça, neste projeto intelectual e político,
aparece como uma categoria analítica essencial para o entendimento do progresso ou da deca-
dência da sociedade (Lima, 2002). Esta vertente permanecerá no debate sobre a imigração e no
âmbito da medicina legal de Nina Rodrigues, a partir dos anos 1880, com a Abolição e o adven-
to da República (Corrêa, 1998; Schwarcz. 1993). Sobre as controvérsias acerca da imigração chi-
nesa e africana no século XIX, ver: Lesser, 1999; Seyferth, 1991; Skidmore, 1993 [1974].
29 É interessante observar que Batista Lacerda, ao se deslocar para o campo da bacteriologia.
mediante as suas pesquisas no Laboratório de Fisiologia Experimental do Museu Nacional, cria-
do em 1880, abandona por um longo período seus estudos em antropologia física, para se dedi-
car às investigações sobre doenças, como a febre amarela (Benchimol, 1999). Neste campo, vol-
tado à saúde pública, () pausteriano não se ateve & questões de ordem racial. Elas só vieram a
ser novamente objeto de ret1exão de Lacerda no início da segunda década do século XX, como
veremos adiante.
29
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
30 As epidemias, como observa Brito (1997: 13), “são eventos sociais que envolvem o conheci-
mento médico—cíentífico, a organização institucional dos sistemas públicos de saúde, a esfera
econômica e as relações comerciais e diplomáticas entre as nações. Sobretudo, trazem consigo
a ameaça de dizimação coletiva. Por todos esses efeitos, em especial o último, as epidemias mo-
bilizam o imaginário social, ensejando um conjunto de representações através das quais os in-
divíduos procuram conferir sentido ao mal que lhes acomete".
30
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
para citar um exemplo, levou determinados segmentos da elite da época & en—
frentarem os problemas de saúde pública como uma questão nacional, que de-
mandava políticas estatais centralizadas, uma vez que dizia respeito ao conjun—
to da população brasileira (Hochman, 1998; Brito, 1997).
Desse modo, não me parece que a mobilização do Estado tenha se ba—
seado apenas no diagnóstico de uma doença que causava uma série de vicissi-
tudes à economia nacional. Por mais que recaísse preferencialmente sobre os
imigrantes, a febre amarela colocava também em discussão a crescente preocu-
pação em se constituir autoridade sanitária diante das numerosas e graves epi-
demias que grassavam em solo brasileiro. Além disso, existia a premência da
afirmação de uma imagem positiva do país e da sua inserção no concerto das
regiões modernas, à medida que os trópicos eram vistos como sinônimo de
barbárie.31
Estas ponderações quanto às dimensões sociopolíticas das epidemias
permitem repensar uma questão fundamental do argumento de Chalhoub, ou
seja: O privilégio atribuído à febre amarela em prejuízo da tuberculose,32 mo-
léstia que atingia altas taxas de mortalidade -—— por vezes maior que a doença
epidêmica. Chalhoub julga que “as razões para esse fato são complexas" (1996:
94), sem penetrar nos meandros da questão. Neste sentido, vale a pena uma
rápida incursão pelo tema.
A tuberculose era entendida como uma doença de longa duração. Seu
caráter crônico não impedia por muito tempo as atividades da força de traba-
lho. Segundo médicos demógrafos da virada do século XIX, ela era uma resul—
tante da combinação de miséria corn civilização moderna, que afetava “indife—
31 Não sem razão, os médicos da denominada Escola Tropicalista Baiana, que não estavam iden-
tificados com políticas sanitárias em prol de interesses hegemônicos vinculados ao mundo da
produção na Bahia, compartilhavam do mesmo ideário da elite médica da Corte —— defendiam
a construção de um projeto nacional sob a égide da saúde pública.
32 No capítulo sobre a febre amarela, Chalhoub cita ocasionalmente o exemplo da varíola ao la—
do da tuberculose, como mais uma doença de grande incidência entre os negros. Seria outra
evidência do descaso do governo imperial com a “saúde da população negra'. Ele aborda a va-
ríola no capítulo 3 (Varíola, vacina e “vacinophobia”) do seu livro. Quem lê apenas o artigo so-
bre a febre amarela pensa que as ações governamentais nos dois casos (tuberculose e varíola)
estariam no mesmo patamar. Chalhoub demonstra sobejamente que a, despeito de ações gover—
namentais de alcance limitado, permeadas de contradições e 'acometidas' em diversos momen—
tos de paralisia decisória, o Estado, a categoria médica e a população foram mobilizados em
graus variados pelos surtos varió1icos. Sobre a história da vacina antivaríólica no Brasil, ver Fer-
nandes (1999).
31
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
33 O caráter 'democrático' da tuberculose é visto por Chalhoub (1996: 57) como desculpa do
governo para não se estabelecer qualquer política de combate à doença, É interessante obser-
var que na tese de Adamo (1983), utilizada por Chaihoub para consubstanciar O argumento da
tuberculose como doença prevalecente entre os negros, o autor oferece dados bastante interes—
santes, & saber: em 1904, da mortalidade por tuberculose num universo de 100 mil habitantes,
322 eram brancos, 394 eram mulatos e 498 eram negros. Embora haja diferenças entre os três
grupos, o que sobressai nos dados, a meu ver, e' o alto nível de letalidade da população por tu-
berculose. Em outra tese, citada por Chalhoub, Kiple (1987) mostra que os médicos não foram
tão indiferentes à tuberculose como Chalhoub procura nos convencer. Eles apenas insistem em
não considerar a variável raça relevante para o entendimento dos males sociais da doença. Nas
palavras de Kiple (1987: 130): ”By the turn ofthe century [XIX], then, Brazilian physicians did
not consider race as & factor in their explanations of blacks' high mortality from tuberculosis.
(...) Koch's discovery of the tubercle bacillus prompted & series of thirty-three articles in the
Gazeta Médica [da Bahia] about the ravages of tuberculosis in Bahia, during the 1880's and the
1890'5. In every case, the articles either discussed the etiology of, or suggested a treatment for,
tuberculosis".
34 Quando uma doença se torna objeto de política pública? Um interessante exemplo contem-
porâneo é o da Aids. Nos anos 1980, as resistências à adoção de uma política nacional de com-
bate à Aids estavam embasadas no argumento de que “algumas centenas de casos de Aids pare-
ciam inconseqúentes em comparação com os milhares de casos da doença de Chagas, malária,
tuberculose, meningite e outras" (Parker, 1994: 40). Na década de 1990, a Aids torna—se objeto
de política pública de amplo alcance e competência. A notoriedade adquirida pelo Programa
Nacional de Combate à Aids, inclusive servindo de exemplo para outros países, é uma demons-
tração da complexidade das questões que envolvem a definição de políticas na área da saúde. O
alastramento da epidemia, o engajamento de organizações da sociedade civil, a mobilização de
instituições internacionais, as disputas científicas em torno da descoberta da doença sâo al-
guns dos componentes da rede de agências e agentes que fizeram a pandemia do HlV/Aids ad—
quirir tamanha visibilidade.
35 Era uma categoria de escravos que gozava de certa autonomia em relação ao senhor e vivia
em cortiços na cidade do Rio de Janeiro (Chalhoub, 1996).
32
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
36 Embora Chalhoub elabore sua hipótese com base no modelo bipolar, & exemplo da experiên-
cia norte—americana (febre amarela/brancos versus tuberculose/negros), ao longo do artigo, ele
oscila na definição do perfil sociorracial da população acometida pelo “mal do peito': ora são
pobres, ora são mestiços, ora são negros.
37 No início do século XX, lembrando a experiência de outros países, foi fundada no Rio de la-
neiro a Liga Brasileira contra a Tuberculose, entidade da sociedade civil, de natureza filantrópi-
ca, que procurou preencher uma lacuna deixada pelo Estado. Em 1907, na era Oswaldo Cruz,
houve tentativas de se transformar a peste branca em problema de saúde pública sem maiores
consequências. Só nos anos 1920, no bojo do processo de centralização das ações em saúde
pública, criou-se & Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose (Bodstein, 1984; Hochman, 1998;
Nascimento, 2002).
33
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Tabela 1
%
33 Mesmo em momentos agudos das epidemias de febre amarela, como foram os casos de 1873
e 1876, os recursos do orçamento do Império alocados à saúde pública foram baixos e estáveis
(ver Carvalho, 1996). Nas palavras de Coelho (1999: 144): “Se os gastos governamentais consti-
tuem urn razoável indicador, a saúde pública ocupou o último lugar nas prioridades do governo
central: excetuado () ano de 1889, quando o dispêndio com a rubrica representou aproximada-
mente 11,3% da despesa global, o percentual ficou por volta de 1,4% em média no período
1880-1888".
34
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
Gráfico 1
100
90
Assistência Social e
80 Gastos com Escravos
70
60
50
Educação e Cultura
40
30
20
10
Saúde Pública
o | | ___J L 1 I |
1841 1845 1850 1855 1859 1865 1870 1875 1880 1885 1889
1842 1846 1851 1856 1860 1866 1871 1876 1881 1886
Fonte: Balanços da Receita e Despesas do Império, anos indicados (Carvalho, 1996: 257).
35
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
39 Foi Ricardo Ventura Santos quem me chamou a atenção para as possíveis afinidades entre o
pensamento de Rui Barbosa e o de Batista Lacerda. Banton (1977: 115) considera que “talvez o
elemento mais característico na concepção das relações raciais do darwinismo social seja a sua
reivindicação de que essas relações eram caracterizadas por um antagonismo que devia ser en-
tendido em termos de sua função evolutiva".
36
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
40 No caso da febre amarela no Panamá, o preconceito racial de Rui Barbosa (1999[1917]: 47-
48) retoma a idéia de “luta de raças': “havia quatro séculos que o istmo de Panamá se reputava o
túmulo dos brancos. A terrível coveira, complacente amiga dos negros e mestiços, lá estava de
atalaia, com o vômito preto e o impaludismo. Espanhóis, franceses, ingleses, atraídos pela gi-
gantesca empresa de Lesseps, morriam como moscas".
37
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
41 Um bom exemplo dessa guinada é 0 caso da sífilis. Conforme Carrara (1996: 128): "a partir
dos anos [19]20, os sifilógrafos brasileiros irão enfatizar sobretudo as influências socíomorais
como moduladoras da “necessidade sexual' no sentido do excesso, apontando como suas causas
precípuas & ignorância, & pobreza, a imoralidade do meio social, a herança escravocrata etc. (..)
Seriam tais inHuências que determinariam em última instância o ritmo de difusão da sífilis. (...)
Diferentemente dos fatores biofísicos como a raça e o clima, elas podiam ser, através de uma in-
tervenção esclarecida, a1teradas mais rápida e facilmente, franqueando ao país o desenvolvi-
mento em direção às tais 'forrnas mais elevadas de civilização”.
38
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
nica dominante no Brasil neste período que, diferente dos modelos determi—
nistas como o anglo-saxão, atribuía ao saneamento, à higiene e à educação as
melhores opções para a superação dos infortúnios vividos pela sociedade bra-
sileira (Stepan, 1991).
Em sua comunicação no Congresso de Eugenia, Roquette—Pinto afir-
mou que:
42 Lendo Ferreira (2001), fiquei com a impressão de que a filiação de Gilberto Freyre ao neola-
marckismo, revelada em Casa—Gmnde & Senzala, é, em larga medida, tributária do neo-hipocra-
tismo do século XIX.
39
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
43 Gilberto Freyre nos informa na nota nº 1, da pág. 517 da primeira edição de Casa—Gmnde %
Senzala (1933), que este trecho de Jobim foi extraído de José Martins da Cruz Jobim, “Discurso
sobre as moléstias que mais afligem a classe pobre do Rio de Janeiro (lido na sessão pública da
Sociedade de Medicina a 30 de junho de 1835)", Rio de Janeiro, 1835.
40
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasi!
Fre yre , inH uen cia do pel o est udo do neo -hi poc rát ico Cru z ]ob im, lem bra
os san ita ris tas da Pri mei ra Rep úbl ica , qu an do ins ist e na met áfo ra da doe nça
para den unc iar os mal es do Bra sil em cha ve ant i-r aci sta ,44 val ori zan do, ass im,
o legado higienísta.
O pon to de par tid a des te art igo foi o deb ate em tor no das rel açõ es ent re
medicina, saúde pública e racismo no Brasil, ocorrido no seminário Raça/
Etnicidade na América Latina: questões sobre saúde e direitos reprodutivos (Rio de
Janeiro, novembro de 2001), organizado pelo Laboratório de Educação em
Amb ien te e Saú de do Dep art ame nto de Bio log ia do Ins tit uto Osw ald o Cru z,
com o apoio da Fundação Ford. Foram mobilizados argumentos históricos
para fundamentar a posição de que os médicos estiveram comprometidos
com projetos políticos racistas, como foi o caso da imigração européia, ob-
jeto da análise de Sidney Chalhoub. No momento em que se procura implev
mentar um programa voltado para a denominada “saúde da população
negra', 0 estudo de Chalhoub tornou-se uma importante fonte para um pro-
missor debate historiográfico. Ao longo da elaboração deste artigo, contei
com & inestimável colaboração de Carlos Eduardo Calaça, Flavio Edler e
Luiz Otávio Ferreira do ponto de vista da pesquisa, das críticas e sugestões
bibliográficas. Gostaria de agradecer 3 Angela Porto, Cristina Oliveira, Dile-
ne Nascimento, José Augusto Drummond, Nelson Sanjad, Nísia Trindade Li—
ma, Ric ard o Ven tur a San tos e Sim one Mon tei ro pel os com ent ári os a ver sõe s
preliminares do texto. Naturalmente, cabe ao autor a responsabilidade pelas
análises e pelos posicionamentos.
44 Lima & Hochman (1996) e Teixeira (1997) chamam a atenção para a importância do movi-
mento sanitarista na inflexão do debate racial no Brasil entre os anos 1910 e 1930. A obra de
Gilberto Frey re e bast ante repr esen tati va dos desl ocam ento s conc eitu ais ocor rido s naqu ele
contexto.
41
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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42
Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil
43
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
44
DESIGUALDADES EM SAÚDE, RAÇA E ETNICIDADE:
QUESTÓES E DESAF1051
Simone Monteiro
É notório que as taxas de mortalidade e morbidade são mais altas nos segmen—
tos populacionais mais empobrecidos. Considerando que as doenças, em geral,
resultam da interação de múltiplos fatores, as investigações relativas às causas
da suscetibilidade à saúde devem buscar compreender em que medida as con—
dições socioeconômicas interagem com fatores associados a aspectos culturais
e biológicos. Tendo por base a dimensão histórica e social da concepção de
raça e etnia,2 analiso neste trabalho as relações entre grupos étnico—raciais e a
determinação das desigualdades na área da saúde.
A partir de uma revisão bibliográfica,3 procuro identificar como & lite-
ratura tem abordado os conceitos de raça e etnia na definição da vulnerabili-
dade às doenças e quais as implicações dessas concepções para & interpreta-
ção das diferenças nos indicadores de saúde entre os grupos étnico-raciais.
Foram privilegiados três tópicos para discussão, quais sejam:
1) um balanço da literatura internacional sobre as relações
entre etnia/raça e saúde;
2) Visões da produção bibliográfica brasileira sobre
o tema saúde da população negra;
3) desafios das investigações na área da saúde centradas
na origem étnica/racial.
1 Este artigo é uma versão revista e ampliada do texto Perspectivas da literatura sobre raça/et-
nía e saúde, publicado no Boletim Sexualidade, Gênero e Sociedade, 15-16116—20, IMS/Uerj, 2001.
2 Ver Maio & Santos (1996) e Cashmore (2000).
3 Os pontos assína1ados resultaram da análise da produção bibliográfica no período de 1995 a
2000, por meio da consulta às bases do MEDLINE e do SCIELO, e a boletins de divulgação
científica, somada 3 contatos com pesquisadores e lideranças sociais.
45
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
A relação entre etnia/raça e saúde tem sido tratada pela produção acadêmica,
particularmente a norte—americana, mas ainda é incipiente na América Latina.
No caso brasileiro, observa—se que as reflexões são escassas, mas deve ser sa-
lientado que, nos últimos anos, este tema tem sido objeto de interesse de pes-
quisadores, lideranças do movimento negro e de instituições intergoverna-
mentais — Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Organização Pan-
Americana da Saúde (Opas) —, de fundações filantrópicas norte-americanas e
agências de fomento a pesquisas nacionais. Tais organizações têm apoiado in-
vestigações, programas sociais e políticas direcionados para a redução das de-
sigualdades raciais na sociedade brasileira.
Uma discussão relevante nas análises sobre e'tnia/raça e saúde 'tem por
base os dados sobre o maior risco da população negra, quando comparada à
população branca, no que diz respeito aos agravos crônicos, como hipertensão
arterial, diabetes mellitus e doença renal terminal. Estudos centrados no con—
trole de variáveis socioeconômicas revelam que no mesmo estrato social há ca—
sos, como a hipertensão arterial, em que a população negra apresenta taxas de
sobremortalidade e sobremorbidade em relação à população branca. Tal cons-
tatação fundamentou a hipótese da inHuência do fator genético na determina-
ção de doenças relacionadas a grupos étnico-raciais. Todavia, existem contro-
vérsias em relação a esta visão. Pondera—se que é problemático atribuir uma di-
mensão exclusivamente biológica aos agravos à saúde, haja vista que as enfer-
midades, em geral, decorrem de fatores diversos, de natureza histórica, econô—
mica e psicossocial. Quer dizer, as variações entre grupos étnico—raciais podem
resultar de fatores sociais, mais difíceis de serem mensurados e controlados nas
análises epidemiológicas, conforme revela Anand (1999). O autor adverte que,
nos Estados Unidos, vários estudos e programas de pesquisas na área da saúde
interpretam as diferenças nos fatores de risco e nas taxas de doenças entre
brancos e negros, apesar das controvérsias envolvendo esta temática.
Cooper & Rotimi (1997) afirmam que ainda não foram estabelecidas ca—
racterísticas específicas quanto à hipertensão entre negros. Segundo os auto-
res, as evidências epidemiológicas sugerem que existe um risco semelhante de
complicações associadas à elevação da pressão sanguínea entre negros e bran-
cos, e que as especificidades da fisiopatologia, conhecidas como parte da etio-
logia causal, não demonstraram variações entre os grupos. Isto significa dizer
que as características particulares desta condição entre negros estão restritas
a diferentes associações e à intensidade de fatores de risco.
46
Desigualdades em Saúde, Raça e Etnicidade
4 Sobre a innuência de fatores socioculturais, ver as conclusões de Samann (2000) sobre as re-
lações entre raça, etnicidade e pobreza na compreensão dos problemas de saúde mental em
crianças.
47
ETNIClDADE NA AMÉRICA LATINA
48
Desigualdades em Saúde, Raça e Etnicidade
5 Segundo Krieger (2000), os tipos dominantes de discriminação tem por base a origem ra-
cial/étnica, o gênero, a sexualidade, & idade, a classe social e os tipos de deficiência (disability).
6 A temática saúde dos povos indígenas não será abordada no presente trabalho, mas os artigos
da terceira parte desta coletânea permitem um aprofundamento, no campo da saúde reproduti-
va, sobre as iniciativas, as especificidades e os problemas na implementação de políticas públi-
cas de saúde voltadas para os grupos indígenas no contexto brasileiro.
7 Salienta-se & expressiva contribuição de mulheres negras, pertencentes ao movimento femi—
nista, no atual debate sobre raça/etnia e saúde no Brasil.
49
ETNIClDADE NA AMÉRICA LATINA
50
Desigualdades em Saúde, Raça e Etnicidade
Problemas e desafios
51
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Em outro artigo, Bhopal & Donaldson (1998) argumentam que & termi-
nologia usada em estudos comparativos em saúde de minorias raciais e étnicas
não tem incluído uma definição do termo branco ou caucasiano. Os grupos
minoritários tendem a ser comparados com a população branca, caucasiana,
européia, ocidental, indígena ou nativa, sem que se especifique a heterogenei-
dade dessas populações. Os autores alegam que a descrição detalhada das ca-
racterísticas de cada população (ex.: ancestralidade, origem geográfica, local
de nascimento, língua, religião, histórico de migração) e' fundamental para a
definição de categorias mais adequadas nas pesquisas sobre grupos étnico-
raciais.
A complexidade deste tema também pode ser exemplificada pelas dis-
cussões acerca da consistência dos sistemas de classificação dos grupos étni-
co—raciais nas estatísticas populacionais. No caso norte-americano, segundo
análise de Williams (1999) sobre pesquisas de base populacional, há proble-
mas na classificação étnica/racial, & saber: a discrepância entre a definição de
raça dada pelo entrevistador e pelo respondente, & inconsistência de dados ao
longo dos anos, a dificuldade de se definir a raça quando os pais têm status
étnico-racial diferenciado, dentre outros. Tais variações são expressivas quan-
do se leva em conta que a classificação de raça/origern étnica nos Estados Uni-
dos se orienta pelo conceito de ancestralidade e pelo modelo bipolar (branco
e negro), enquanto na sociedade brasileira a classificação e informada pela
aparência física (fenótipo) e por fatores socioeconômicos, operando em um
amplo contínuo de cor. O padrão classificatório no Brasil e' freqtienternente
caracterizado pela t1uidez (indeterminação, subjetividade e dependência con-
textual) em sua aplicação (Silva, 1994).
A declaração de Berquó, membro do Comitê Consultivo do censo de
1991 e de 2000, e ilustrativa:
A cor é sempre uma questão que preocupa muito porque, qualquer que seja
a forma em que é perguntado no censo, ela nunca satisfaz, porque uma ho—
ra e' etnia, uma hora é cor. Então, no final, acaba ficando o quesito cor. Este
ano também houve uma tentativa de se referir não à cor, mas à origem, para
que se pudesse denominar os brasileiros afrodescendentes, que é a forma
como a população negra organizada hoje quer ser chamada. Para tanto, in-
troduziu-se em um censo piloto a questão da origem, referindo-se a ela co-
mo 'ascendencia'. (...) Mas aí foi muito difícil, porque a grande maioria da
população com baixa escolaridade confundia ascendência com descendên-
cia; tivemos então que eliminar esta expressão. Então se colocou origem,
mas a questão da origem é complicada, porque todo mundo pensa: 'minha
52
Desigualdades em Saúde, Raça e Etnicidade
origem e brasileira) o que não deixa de ser verdade. Na minha opinião, te—
mos que fazer pesquisas menores, mais aprofundadas, para encaminhar a
questão da cor (...) conduzidas antes do processo final de elaboração do
censo, pois com toda a problemática que envolve sua preparação (...) é sem-
pre difícil trabalhar mudanças. Conclusão: O censo 2000 continuou usan-
do a mesma classificação, com a auto-identificação como branco, preto,
pardo, amarelo e indígena. (Jornal Redesaude, 2001z8-9)
9 A partir de 10 de janeiro de 2003, todas as pesquisas do U.S. Census Bureau devem seguir as
novas diretrizes para a descrição de dados sobre raça e etnicidade, que incluem cinco catego-
rias raciais (asiático, branco, índio americano ou nativo do Alasca, nativo do Havaí ou de outras
ilhas do Pacífico e negro ou africano-americano) e duas opções para etnicidade (hispânico ou
latino ou não-hispânico ou latino).
53
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
54
Desigualdades em Saúde. Raça e Etnicidade
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55
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
56
'RAÇA', ETNICIDADE E SAÚDE REPRODUTIVA:
O CASO AFRO-LATINO-AMERICANO
Livio Sansone
1 Este texto e' o resultado de uma pesquisa exploratória em forma de consultoria para o escritó-
rio da Fundação Ford do Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada durante um mês, em 2000,
com O objetivo de sugerir direcionamentos para novos terrenos e abordagens no campo da saú-
de reprodutiva, através de uma nova leitura das questões da saúde reprodutiva, tendo-se em
mente novas formas de identidade étnica dos jovens de classes baixas em vários países latino-
americanos, Apesar de se concentrar na população de descendência africana, ele também con-
tém referências à revivescência étnica entre os jovens das populações indígenas nativas.
2 Trata-se, ademais, de países de interesse dos três escritórios da Fundação Ford na América La-
tina —- Rio de ]aneiro, Cidade do México e Santiago.
57
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
58
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
3 O tamanho das populações definidas como negras varia muito na América Latina. Comparan—
do estimativas produzidas por fontes diferentes, temos uma população que representa cerca de
47% no Brasil (se somamos pretos e pardos); entre 14 e 43%, na Colômbia; entre 5 e 10%, no
Equador; entre 9 e 70%, na Venezuela; entre 6 e 10%, no Peru; e entre 34 e 62%, em Cuba. Para
um quadro mais geral destas estimativas para toda a região, ver Minority Rights Group (1995).
59
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATlNA
60
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
4 Tradicionalmente, dentro do ativismo negro no Brasil e em outros países, há vozes que defi-
nem & mestiçagem como uma estratégia consciente para aniquilar a raça negra, como parte de
medidas racistas e malthusianas (Nascimento, 1978).
61
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Estes temas não têm recebido muita atenção, apesar de serem essen—
ciais em outros países com grandes populações negras, de penetrarem a mídia
e a opinião pública, e de terem sido debatidos com frequencia no Brasil no
passado.5 Ou seja, no Brasil, até agora, no trabalho de ativistas negros e pes-
quisadores, & conexão entre saúde reprodutiva e condição racial vem sendo
buscada em um nível relativamente alto de abstração, ao mesmo tempo em que
não se tenta fazer isto em um nível que & tornaria mais perceptível para & gran-
de maioria da população.
Nas três seções seguintes, veremos como a ligação entre saúde reprodu-
tiva, sexualidade, 'raça' e etnicidade é percebida nos lugares que visitei.
México
62
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
6 Podemos lembrar de pelo menos três exemplos de parcerias importantes entre cientistas so-
ciais mexicanos e brasileiros em períodos diferentes do estudo sobre raça e relações interétni-
cas: Gilberto Freyre e Aguirre Beltran (e Vasconcelos, embora de maneira indireta), Guillermo
Bonfill e Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Rodolfo Stavenhagen (ver Bartolomé &
Bambas, 1998).
7 Durante as últimas duas ou três décadas, alguns estudiosos — sobretudo Luz María Montiel —
têm se dedicado a trazer à luz a contribuição africana. Estes esforços têm sido ampliados por
um número de eventos especiais organizados pelo Centro de Investigaciones y Estudios Supe-
riores en Antropologia Social (Ciesas), pela organização de várias exposições (uma também foi
exibida no Museu Smithsonian) e ate' mesmo pela abertura de um pequeno museu dedicado à
tercera raiz.
8 Na verdade, quando sugeri a Pablo Farias que Vera Cruz fosse incluído em um possível projeto
comparativo no campo de direitos humanos, etnicidade e saúde reprodutiva, ele me disse que
“não precisamos inventar () *problema' da herança africana na nossa sociedade para você incor-
porar () México no seu projeto. Por que não incluir a questão polêmica que tem sido enfocada
no debate sobre a diversidade étnica no México: a situação em Chiapas?".
63
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
ção em Chiapas durante os últimos cinco ou seis anos exige uma atenção es—
pecial. Chiapas é, por assim dizer, um importante laboratório para a definição
das formas através das quais o México desenvolverá as suas futuras políticas e
práticas em termos de diversidade cultural e étnica, e também em termos de
incorporação de grupos socialmente marginais na economia dominante.
Chiapas é um estado bastante pequeno da federação, com cerca de 3
milhões de habitantes em 1990. É o quarto maior estado —— depois de Yuca-
tan, Oaxaca e Quintana Roo -—-— corn parcela da população considerada indíge-
naº. Segundo o censo de 1990, no estado de Chiapas, 26,42% da população
eram indígenas, sendo, porém, mais de 80% na região que constitui & Dioce-
se de San Cristobal de las Casas (Harvey, 2000). A percentagem de indígenas
mudou de maneira um pouco estranha: de 22,12% em 1979 para 27,73% em
1980, e 26,42% em 1990. Esta variação ainda precisa ser explicada. Para al—
guns, ela estaria relacionada à taxa de natalidade — muitas vezes tida como
mais baixa na população indígena do que no resto da população. Para outros,
dependeria de contingências políticas em transformação que podem afetar a
forma pela qual as pessoas se apresentam. Outras opiniões diriam que esta va—
riação ainda depende da metodologia do censo. Ou um pouco de cada um des—
tes três fatores?
É claro aqui, como em outras áreas de tensão étnica, que a contagem
étnica geralmente responde & escolhas políticas. Minorias étnicas normal-
mente alegam representar um número (muito) maior do que as estatísticas
oficiais. Também poderia se dizer que as pessoas que não são fluentes em um
idioma indígena podem se considerar, e podem realmente ser vistas por ou—
tros, como sendo indígenas.10 De fato, a rebelião zapatista e as suas conse-
qíiências mostraram o que a mudança na identificação com o indígena nativo
e na auto—identificação étnica pode fazer, A rebelião criou novas divisões e
novas alianças tanto na população nacional como em Chiapas. Muitos habi-
tantes urbanos de diferentes classes sociais simpatizavam com as exigências
do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), enquanto muitas pes—
soas que se consideravam indígenas simpatizavam com os clamores naciona-
64
'Raça'. Etnicidade e Saúde Reprodutiva
11 Recorri, entre outros, ao de Neil Harvey (2000) e ao número especial sobre Chiapas da revis-
ta Identities (v. 3, n. 1—2, 1996), que foi organizado por Daniel Mato.
65
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Algo precisava ser feito para se contrapor àquele processo de destruição dos va-
lores da nossa cultura, pois se podia ver, e ainda se pode, que muitos jovens dei—
xavam para trás o campo —— o locus da identidade indígena mais forte —, co-
mo também a língua, os trajes típicos e a carga religiosa. Muitos jovens não
Vêem nada de positivo na nossa cultura e preferem migrar para os Estados Uni—
dos —— onde eventualmente podem acabar redescobrindo a sua cultura original,
favorecida pelo ambiente multiétnico de lá. Muitos jovens sentem que ser indí—
gena equivale a ser pobre e isolado. De qualquerforma, todos gostam da músi—
ca ranchera que vem do norte do México,12 como também dos imensos chapéus
de estilo texano que gostam de exibir em público quanto têm dinheiro para com-
prá-Ios.
12 Depois muitas pessoas me disseram que os zapatistas fazem festas de dança impressionantes
que duram & noite inteira, com pouquíssima ou nenhuma bebida alcoólica, nas quais basica—
mente só tocam rancheras (& música do norte do México). A música indígena tradicional que
comprei em uma loja especializada no centro de San Cristobal fica restrita a um número limita-
do de eventos e locais associados a 'tradições' ou exibições públicas, como no (bem—cuidado)
Museu de Medicina Tradicional.
13 Neste sentido, é determinante o trabalho do antropólogo peruano Edgar Sulca, no Centro de
Estudios México Centro América (Cesmeca).
66
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
cos os indígenas e até mesmo alguns afro-mexicanos que ainda não tinham si-
do detectados na cidade até um século atrás. '
Edgard Sulca nos conta como o indígena tem construído a sua própria
imagem projetando em si mesmo o que os outros pensam sobre ele. Em San
Cristobal, estes outros são muito especiais e ele decidiu estudá-los. Por isso, é
muito diferente de alguns antropólogos que tendem a se concentrar nos indí-
genas e, geralmente, nos mais ªtradicionais' e 'isolados' entre eles. A cidade de
San Cristobal é antiga e foi fundada durante o início do período colonial.
Chiapas sempre foi o lugar onde o poder político e os sinais de 'modernidade'
se concentravam. Sua estrutura altamente hierárquica funcionava com base
em um sistema de classificação calcado no cultivo e na manifestação da “dife-
rença' como forma de expressar domínio. Isto era óbvio na arquitetura da casa
colonial, com espaços especiais para os criollos, mestizos e índios. A passagem
de uma casta para a outra era possível, mas difícil e limitada a indivíduos mui—
to especiais.
Isto continuou sem grandes mudanças até a rebelião de 1994, que mos—
trou de forma bastante repentina que esta hierarquia tinha transformado a Ci—
dade no que Sulca definiu com humor como um ªparque social jurássico'. Hoje,
esta impressionante polarização índío—coleto, que os últimos defenderam vee—
mentemente, tornando muito difícil a exibição pública no centro da cidade de
qualquer coisa que associassem corn indígena, está desmoronando. As divisões
de classes estão mais óbvias do que nunca. Por um lado, há o indígena com di-
nheiro que decide vir e morar na cidade e, por outro, nem todos os ladinos que—
rem continuar a ser chamados de coletas. No entanto, tanto na cidade quanto
no campo, a memória social parece ser mais tenaz do que a realidade. Então,
na Cidade, as tensões ainda são representadas com frequencia em termos de
indígenas versus coletas, e no campo, em termos de ganaderos versus indígenas.
Na realidade, na cidade, a maioria dos coletas teve que mudar radical-
mente a sua objeção a priori em relação aos símbolos associados ao indígena,
já que a maioria deles está agora envolvida, muitas vezes como empresários, na
crescente indústria turística, que se alimenta da 'diferença' exótica do indíge-
na de Chiapas — a maioria dos hotéis e restaurantes exibe símbolos e artefa—
tos indígenas. No campo, muitos (jovens) indígenas agora estão se vestindo e
se comportando como os charros (os morteiros ou mesmo a representação Tex—
Mex dos cowboys) —— que, para eles, e' menos submissa e mais 'moderna' do que
& vestimenta indígena tradicional.
Conversei com Várias pessoas sobre o EZLN, os zapatistas. Afinal de con-
tas, foi através daquelas imagens e do carisma do subcomandante Marcos, com
o seu eterno capuz balaclava, que muitos de nós não-mexicanos ouvimos falar
67
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
(ou lemos em sites da Internet) sobre Chiapas. É claro, o que é bom e românti—
co visto de fora pode ser mais complexo e muitas vezes ameaçador, porém mui—
to mais interessante ao ser observado de uma distância menor. Este é um as-
sunto muito delicado em Chiapas. A região está ocupada pelo exército, as ten-
sões ainda são muito fortes em certas partes e mesmo os meus informantes
mais críticos têm um certo grau de respeito pelo EZLN. A crítica principal que
ouvi e que o EZLN, depois de tudo, não tem deixado que os indígenas se ex-
pressem diretamente, sendo eles geralmente representados por mestízos ou
mesmo por estrangeiros —— como ficou claro nas mesas-redondas com o gover—
no em 1999.
A popularidade do EZLN entre certos grupos de estrangeiros estava re-
lacionada & muitos fatores. Certamente, um fator muito importante é que pare-
cia, afinal, que era possível vislumbrar uma revolução “politicamente limpa e
até mesmo correta'. A discreta, porém charmosa, liderança sem rosto fazia par—
te disto, com slogans como tudo para todos, nada para nós'. A contenção relati-
va do uso de violência é um outro fator. Pessoas de fora, no entanto, tendem a
ter uma visão romântica da rebelião e a construir os rebeldes como uma ima-
gem invertida do seu próprio estilo de vida (moderno, consumista, poluído
etc.). Eu mesmo percebi em várias ocasiões que a rebelião de 1994 —— como ti—
nha sido 0 caso de rebeliões indígenas no passado (Harvey, 2000) — tinha
mudado as fronteiras da distinção entre indígena e não-indígena, tornando
possível vislumbrar o fato de ser indígena como parte de noções como *desen—
volvimento'.
No entanto, ainda há muito a fazer. A nova (frequentemente informal)
liderança indígena está muito mais consciente da “arrogância natural' dos ladi-
nos, que facilmente tendem a se promover como porta-vozes da causa indíge-
na. A nova liderança também discorda de uma nova estratégia (o silêncio e o
afastamento) que vem sendo usada por uma boa parte da população indígena
nativa por falta de uma alternativa melhor. Em Várias das conversas em grupo
que tive, os indígenas costumavam ficar calados enquanto os ladínos se expres-
savam mais verbalmente. Não é apenas uma questão de proficiência linguísti-
ca, mas sim de um hábito étnico —— o uso de uma tradição que alterna retira-
das de longa duração com rebeliões repentinas.
Em se falando de jovens entre os índios, uma das coisas que mais se es-
cuta e' que o indígena se torna *adulto' muito mais cedo do que outros. Ou se-
ja, não haveria uma “dimensão de juventude' na comunidade indígena, mas sim
uma clara divisão entre crianças e adultos. Por outro lado, os jovens indígenas
se configuram há décadas como 'problema' devido à alta taxa de evasão esco-
lar. O Instituto Nacional Indigenista (INI) estabeleceu já em 1968 a organiza—
68
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
ção de faculdades corn dormitórios para jovens, a maioria deles de remotos vi-
larejos rurais. Em termos gerais, apenas 20% dos alunos destas instituições são
meninas. A demanda por este tipo de instituição vem caindo desde & introdu-
ção do Progresa — um amplo plano federal de previdência que foi desenvolvi—
do junto & acusações de clientelismo.
Começando na presidência de Zedillo, mudanças importantes têm afeta-
do o ensino médio, introduzindo o ensino a distância e a figura dos promotores
de salud y cultura saídos de cursos patrocinados pelo INI — estes, porém, já não
conseguem mais arranjar empregos relacionados à questão indígena. Acima de
tudo, está faltando a ponte entre o ensino médio e o ensino superior. Para o jo-
vem indígena, mesmo para os que são treinados pelo INI, o acesso à universida—
de é um sonho distante. Estas seriam razões importantes para tantos zapatistas
serem jovens. Na verdade, tanto o desenvolvimento do INI — que em 1994 mu-
dou a sua política oficial de índigenismo para indianismo, sugerindo que a ênfase
agora não seria mais na integração, mas sim no respeito às diferenças culturais
—, quanto o aumento repentino das exigências por direitos à diversidade cul-
tural/étnica pressupõem um novo e eficiente aparelho do Estado. Ao contrário,
o Estado está se afastando, cortando gastos públicos, e está abdicando o seu
papel central em favor do governo local e mesmo de empresas privadas.
Durante os últimos anos, o México, e principalmente Chiapas, tem sido
caracterizado por uma taxa alta de desenvolvimento econômico e por taxas
baixas de desenvolvimento humano. O gasto público, que aumentou dramati-
camente na década de 1970, vem caindo muito desde a década de 1980. Em
Chiapas, o número de lares sustentados por mulheres tem aumentado. Isto le—
vou a uma mudança nas estratégias de sobrevivência, com um aumento do au—
toconsumo e uma feminização maior da mão—de—obra agrícola. Nos municípios
indígenas (aqueles onde mais de 70% da população classifica-se como indíge-
na), a pobreza e a desnutrição ainda são muito graves. Cerca de 15% de todas
as crianças morrem antes de chegar aos seis anos de idade. A taxa de analfabe-
tismo entre as mulheres indígenas ainda e' de 51 %.
Para completar, pode—se falar de uma rebelião de jovens tentando se
afastar do controle paterno e vendo o dote como um entrave. As expectativas
em relação ao parceiro ideal também mudaram. Antigamente, esperava-se que
ele fosse o provedor do lar, agora a jovem espera que ele “possa dar coisas a
ela' — o poder do consumo se tornou importante. É por isso que os rapazes
gostam de ter empregos como o de motorista, em vez de trabalhar na terra.
Eles já não se identificam com os valores e hábitos tradicionais.
Uma das importantes mudanças recentes e que as mulheres se fazem
ouvir e, afinal, o feminismo teve um efeito modernizador aqui. As mulheres es-
69
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
14 Pergunto-me () que está para acontecer com esta antiga conexão da liderança indígena asso-
ciada ao PRI depois que Vicente Fox, do partido PAN, venceu as eleições presidenciais.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Parece que as ONGs, tanto aqui como em outros lugares, muitas vezes
tendem a ficar defasadas em relação aos desenvolvimentos sociais. Em várias
ocasiões, transformam-se em políticas e demandas de intervenções populares
que, naquele momento, já perderam o impulso. Apesar do fato de ONGs e fun—
dações não-governarnentais muitas vezes falarem em nome da sociedade civil
da qual alegam ser a voz mais democrática, elas costumam usar uma linguagem
e estabelecer prioridades que estão em maior sintonia com a sociedade políti—
ca e com as políticas dos seus patrocinadores (internacionais) do que com as
demandas locais e específicas.
Em relação à saúde reprodutiva, acredito que haja duas dimensões se-
riamente pouco desenvolvidas: uma abordagem anti—racista e multiculturai
mais ativa, por parte dos serviços públicos, e as necessidades específicas do jo-
vem indígena dentro ou fora das organizações indígenas.
Nicarágua
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'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Tabela 1
————_________—
Indicadores
Costa Caribenha Nicarágua Total
RAAN RAAS
___—___—
Extensão geográfica em ka 32.159 27.407 121.428 59.566
Porcentagem do território nacional 26,48 22,57 100 49,05
População total 175.405 223.500 4.139.490 398.905
Porcentagem da população total 4,24 5,4 100 9,64
Densidade da população/ha.km 5,5 8,2 34,1 7
__—._________—__________
Fonte: INEC.
Tabela 2
“___—___—
Fonte: INEC.
74
'Raça'. Etnicidade e Saúde Reprodutiva
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
76
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
19 Outros defendem que, ao contrário, artigos recentes em jornais nacionais associando & Cos—
ta Atlântica ao crescimento no tráfico e no uso de drogas são, na maioria, parte da criação de
um estereótipo desta parte 'diferente' da Nicarágua.
77
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
obrigados. Nos sermões, os (jovens) usuários de drogas são vistos como almas
perdidas. Por outro lado, soluções modernas continuam sendo aguardadas.
De muitas maneiras, & venda de cocaína e' tão devastadora quanto o seu
uso regular no que diz respeito à vida familiar, & papéis de gênero e manifesta-
ções públicas de masculinidade e feminilidade. Em Puerto Cabezas, muitos ra-
pazes vêem a venda da cocaína como uma forma de ajudar a família a sair da
pobreza. No entanto, todos acabam vendendo para os seus vizinhos e amigos e,
através disso, desintegrando & Vida em família. É claro, há “também consequên—
cias importantes quanto à escolha de um parceiro e ao grupo de possíveis par-
ceiros. Mesmo que os ganhos com a venda da cocaína sejam menores do que o
esperado, eles geralmente são maiores do que os de pequenas atividades infor-
mais, que são as únicas alternativas disponíveis para os rapazes locais com
pouco estudo. Diante disso, O rapaz com mais dinheiro se torna um melhor
parceiro. A0 que parece, depois da primeira grande campanha informativa em
1997-1998, as pessoas passaram a conhecer melhor os perigos da cocaína. Ain-
da assim, a maioria dos jovens, sem distinção, ainda & consome.
A gravidez na adolescência e' denunciada como um problema sério, em-
bora eu não tenha conseguido encontrar indicadores numéricos locais confiá-
veis. Aparentemente, isto nunca foi raro na cidade e agora está se tornando co-
mum nos vilarejos menores, também entre os miskitos, principalmente entre os
que se mudaram para a cidade. A maioria dos informantes também está preo—
cupada com o aumento da prostituição, embora, mais uma vez, não tenha en-
contrado indicadores numéricos confiáveis. Do final da tarde até o amanhecer,
(jovens) prostitutas (sem predominância de um grupo étnico, mas geralmente
de pele escura, mesmo quando mestizas) podem ser vistas em lugares-chave nas
duas cidades que Visitei. Quando os buzos voltam do mar, dezenas de moças es-
tão esperando por eles -— geralmente adolescentes —— no píer de Puerto Ca-
bezas. Nas duas cidades, como em muitas pequenas cidades que conheço no
Brasil ou no Suriname, geralmente é difícil diferenciar entre uma prostituta
profissional e uma menina esperta' e com experiência de rua. A maioria das
meninas nunca se veria desta maneira —-— mas sim como mulheres que lutam
para sobreviver.
A alta incidência de uso de cocaína, a falta de acesso a serviços de saú-
de e prevenção, e a pobreza abrangente criaram um contexto problemático pa—
ra & saúde reprodutiva, embora, segundo & Comisión de Lucha contra el Sida
de Puerto Cabezas, isto ainda não tenha resultado em números elevados (ofi-
ciais) de infecções por HIV. De acordo com os números oficiais, há 400 casos
registrados de Aids na Nicarágua. Na região de Puerto Cabezas, onde os pes—
quisadores trabalham, sabe—se que há oito casos de presença do vírus HIV, mas
78
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
20 Sugiro que se observe com cuidado esta tendência de se passar de mãe adolescente dentro
de um casamento tradicional, possivelmente em uma comunidade (quase) rural, à mãe solteira,
apesar de haver a visita de um homem,possive1mente em uma vizinhança do que se tornou uma
cidade. Esta tendência e' tanto causa como efeito de mudanças importantes no desempenho da
masculinidade entre os jovens mískitos.
79
ETN1CIDADE NA AMÉRICA LATINA
cano são muitas vezes os horizontes culturais e políticos dentro dos quais um
grande número de creoles têm tradicionalmente se situado —— como dizem,
muitos se sentiram primeiro morovianos e/ou afro—caribenhos e, depois, nica-
raguenses. Na Nicarágua, as relações raciais podem ser mais bem descritas co-
mo uma série de encontros entre as construções de mestiçagem, cada uma de-
las com discursos e estilos específicos, que se confrontam umas com as outras:
mestízos, creoles, miskitos. Há uma linha tênue entre negro, branco e indígena
nativo. Diferenciar o *negro' ou o 'branco' do resto pode ser difícil.21
Os mískitos estão se tornando mais importantes em termos numéricos e
também políticos. Em parte, isto está relacionado ao fato de que eles incorpo—
ram indivíduos Vindos de fora, como os creoles e mestizos natos. No entanto, é
possível que tenham uma taxa de natalidade comparativamente mais alta —
não há indicadores numéricos disponíveis sobre a taxa de natalidade por gru—
po étnico. A migração externa de creates abriu algumas posições na máquina
estadual e educacional que uma parte dos miskitos agora está ocupando.
Muitos creoles se sentem invadidos por gente de fora. Crêem que estão
perdendo os pequenos privilégios que lhes foram concedidos por dominarem o
idioma inglês e um certo nível de habilidades técnicas durante a época em que
a região dependia basicamente do colonialismo britânico e, posteriormente,
das empresas americanas. Também acham que estão perdendo o controle políti-
co e cultural da sua cidade, das escolas religiosas e da política local — pela pri-
meira vez, o prefeito de Bluefields e' um mestízo e não há qualquer candidato
creole importante para a próxima eleição. No entanto, embora a presença demo-
gráfica creole esteja diminuindo, a sua influência cultural continua forte —— mais
um exemplo de que a força de uma cultura não depende apenas da demografia.
Eles também têm uma boa representação nas ONGs e fundações locais.22
O multiculturalismo oficial é basicamente pobre e tem falta de funcio—
nários qualificados, No ensino fundamental, a educação multicultural signifi-
21 Quanto a isto, não posso concordar com várias declarações radicais que tendem a simplificar
excessivamente o sistema de relações étnicas e raciais na região. Infelizmente, exemplos destas
declarações são encontrados no panfleto Minority Rights Report on Afro—CentmlAmericans, publi—
cado em 1996: "Na Nicarágua, comunidades negras vêm perdendo terreno para os mestizos há
mais de um século, levando & revoltas repetidas".
22 Francisco Campbell, da FACANIC (uma das principais federações de ONGs da Costa Atlânti—
ca nicaragúense), enfatizou a importância econômica destas instituições que, segundo as suas
estimativas, empregam na RAAS e na RAAN de 400 a 450 pessoas e administram um orçamento
de cerca de 2,5 milhões de dólares por ano. Estes empregos são uma arma importante na luta
contra a evasão de cérebros.
80
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
ca, na maioria dos casos, que professores que não falam inglês dão as aulas no
seu idioma materno, geralmente em mískíto — para o desalento dos pais que
desejam que os seus filhos aprendam espanhol e inglês, embora tenham uma
atitude positiva em relação ao fato de parte do ensino ser em 'língua étnica'.
No ensino superior, a efetivação de algum tipo de multiculturalismo parece
ser mais fácil. Mas tudo isto ainda está muito longe das necessidades da socie-
dade costena e da vivacidade do uso criativo dos símbolos étnicos da cultura
jovem da região —— que se alimenta da música popular que se vende corno “cos-
tefza' e 'tropical'. Além do mais, estas vivências de uma nova identidade costeira
multiétnica e híbrida ainda não são totalmente reconhecidas pelos partidos
políticos locais e nacionais.
Para concluir, de uma maneira que faz lembrar Chiapas, & Costa Atlânti-
ca da Nicarágua passou, em um período de tempo relativamente curto, de um
isolamento a uma incorporação abrangente e problemática ao resto do país.
Os fluxos culturais e econômicos associados à 'modernidade', que no passado
se relacionavam apenas a uma parte da população, agora têm um impacto
maior do que antes.
Colômbia
Dos três países estrangeiros que visitei, a Colômbia certamente é o que apre-
senta mais semelhanças com o Brasil, em termos de relações raciais e de cultura
negra. A Colômbia possui a segunda maior população de origem africana na
América Latina depois do Brasil. Este grupo, que se calcula ser de mais de 18%
da população local, se concentra na Costa Pacífica, na Costa Atlântica e no Vale
do Rio Cauca (sendo Cáli & sua cidade principal), mas também é visível em ou-
tros lugares. Devido às migrações internas e ao êxodo em consequência da guer-
ra de guerrilha e antiguerrilha (desplazamíento) mais recentemente, uma grande
população negra agora também pode ser vista em Medelin e mesmo em Bogotá.
A Colômbia, exatamente como o México, a Nicarágua e o Brasil, fez da
sua mestiçagem biológica e cultural o cerne da sua auto-representação nacio-
nal. Tradicionalmente, no entanto, há uma diferença em relação ao Brasil: os
retratos e discursos populares e de elite sobre a mistura racial tendem a ser so—
bre o par branco-indígena. Pessoas de descendência africana geralmente têm
estado menos presentes nestes discursos, apesar de representarem um grupo
muito maior do que o indígena.
Durante as duas últimas décadas, esta conjuntura começou a mudar. Is-
to resultou em uma nova constituição em 1991 (Lei 70), que declarava que a
81
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
23 Uma lista de pesquisadores importantes deve incluir Nina de Friedmann, Jaime Arocha, Fer—
nando Urrea, Gustavo Ignacio de Roux, Eduardo Restrepo, Adriana Maya, Mara Viveros e Clau-
dia Mosquera. Vários estudiosos estrangeiros consagrados também têm estado ativos neste
campo na Colômbia, corno Peter Wade, Michel Agier, Christian Gross, Olivier Barbari, Odille
Hoffman e Michel Taussig.
82
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
bem mantidos na Colômbia. Também Visitei Bogotá, onde me limitei & conta—
tos acadêmicos.
Cálí foi escolhida por ter a minoria negra, apesar das alegações oficiais
de que os afro-colombianos estão concentrados, principalmente, apenas ao
longo da Costa Pacífica (que está a menos de três horas de carro da cidade).
Com uma área metropolitana apresentando uma população de 2,75 milhões de
habitantes, entre os quais 34% são negros ou mulatos, Cáli é, sem dúvida, a
maior concentração de afro-colombianos. É, de muitas maneiras, central para
a região do Pacífico, de qual, disseram, está rapidamente se tornando a capital
cultural. O principal festival de música e cultura do Pacífico e realizado em Cá-
li em agosto.
Também escolhi esta Cidade porque ela é a base do programa de pes-
quisa mais elaborado e adiantado sobre relações raciais, juventude negra e,
durante os últimos anos, saúde reprodutiva e/na condição racial (ver Quintin
Quilez, 2000; Urrea, 20003, 2000b). Ali, concentrei minhas visitas no distrito
de Aguablanca, um grande conglomerado de classe baixa de favelas, fronteira
com um número cada vez maior de assentamentos precários de posseiros, que
cresce cada vez mais com a imigração constante de pessoas deslocadas pela
violência, sobretudo da Costa Pacífica esmagadoramente negra. Perto de uma
infra-estrutura que estava tendo um certo sucesso no combate daquela que
podemos chamar de “pobreza tradicional', sente—se & carência de medidas e es—
truturas para o combate destas novas formas de pobreza associadas à migra—
ção, que estão submetendo o tecido social (ajuda mútua, associações de mora—
dores etc.) dos bairros populares mais tradicionais a uma forte pressão. Isto,
acima de tudo, estava ocorrendo ao mesmo tempo em que o Estado se afastava
da intervenção social devido & planos econômicos nacionais para & *recupe-
ração' econômica.
A criminalidade juvenil (frequentemente organizada em gangues ou
pandillas), combinada à Violência dos esquadrões da morte, tornou-se onipre-
sente nesta região até mesmo durante o dia. Fiquei impressionado com o fato
de que, em Cáli, Buenaventura e, um pouco menos, em Cartagena, os meus in—
formantes nunca incluíam o uso de cocaína (popularmente chamada de peri-
co), crack (bazuco) e cola de sapateiro como um sério problema local. Eles colo-
caram que, para os jovens que trabalham com isto, é a venda de cocaína e o
mecanismo de vingança & ela associado que constituem o perigo.
A elite política de Cáli sempre manteve uma relação problemática corn a
população afro-colombiana — paternalista na melhor das hipóteses. Muitas
publicações defendem que, se a maioria dos negros é pobre, e' por causa da
sua cultura e porque os negros não se incomodam em viver em áreas insalu—
83
ETN1C1DADE NA AMÉRICA LATINA
bres, uma vez que já devem ter se acostumado a isto. Muitas vizinhanças com
grandes populações negras recebem o nome do político que foi o seu bem—
feitor'. Apesar da preferência pela esquerda entre a maioria dos líderes comu—
nitários negros na história da cidade, foi o Partido Liberal conservador, graças
ao grau de cooptação e uso de slogans populistas (também incorporando tra—
ços da cultura negra), que mais se beneficiou da luta negra em termos eleito-
rais. Apenas recentemente, a elite local começou a aceitar que Cáli tem uma
grande minoria não—branca/mestiça. Esta mudança está relacionada à popula-
ridade crescente de eventos como o grande Festival de Música do Pacífico, que
tem sido realizado com verbas do município durante os quatro últimos anos
(1997-2000).
Pesquisas sobre a estrutura familiar em Cáli indicam que, como se espe-
rava, as famílias negras tendem a ser mais pobres; que a mobilidade social
ocorre sim, porém é mais difícil; que & mestiçagem continua; e que, em termos
gerais, as diferenças entre brancos e negros é mais acentuada no grupo inter-
mediário do que nas classes mais pobres e nas seções mais ricas.
Pesquisas sobre a masculinidade (hombria) estão demonstrando que as
construções familiares tradicionais estão mais frágeis do que nunca, porque
cada vez menos mulheres jovens aceitam o poder de um homem sem questio-
ná-lo, principalmente se o homem não e' realmente o provedor, mas fingem
que ele e diante dos amigos e parentes dele. Homens e mulheres jovens sen-
tem—se deslocados pela falta de empregos adequados, ao mesmo tempo em que
nem todos são capazes ou estão dispostos a competir no mercado de ativida-
des econômicas informais (rebusques).
Durante estes anos, como meus informantes têm percebido no bairro de
Aguablanca, em Cáli, o casal tem se tornado uma unidade cada vez mais frágil
entre os jovens. Entre eles, a vida a dois simplesmente tende a ter uma duração
mais curta. A maioria das jovens com as quais esta organização está em conta-
to vivencia o que na antropologia é conhecido como monogamia serial. Du-
rante este mesmo período de tempo, a iniciação sexual passou a ocorrer antes
dos 14 anos de idade. Segundo alguns informantes, ademais, a maioria das mu-
lheres jovens prefere parceiros de fora do seu bairro — sugerindo que os rapa-
zes locais são maus parceiros.
Cartagena de las Indias, com uma área metropolitana com 1,28 milhões
de habitantes, entre os quais aproximadamente 70% são negros e mulatos, é a
segunda cidade depois de Barranquilla e tem a maior concentração de afro-
colombianos na Costa Atlântica. As grandes usinas petroquímicas construídas
na década de 1960 modernizaram & cidade e deslocaram parcialmente a elite
local. Cartagena é a capital de uma região caracterizada por grandes proprie-
84
'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
dades rurais para a pecuária; desde os anos 1970, uma grande parte destes lati-
fúndios vem sendo comprada pelos barões das drogas.
A cidade apresenta semelhanças e diferenças em relação a Cáli. As se-
melhanças são a presença conspícua de uma população deslocada das áreas
rurais, onde guerrilhas e principalmente paramilitares vêm espalhando o ter-
ror; falta de serviços sociais; uma tradição de racismo por parte da elite local; e
vitalidade cultural entre os jovens afro-colornbianos através de formas origi-
nais de música e dança. As diferenças são a alta incidência do uso de drogas
na classe baixa e a importância da indústria do turismo para a economia e re-
presentação pública de Cartagena — o impacto do turismo em Cáli é mínimo
em comparação & Cartagena. Esta, com as suas praias e seu belo centro histó-
rico (declarado monumento mundial pela Unesco), tern, durante décadas,
atraído um grande número de turistas nacionais e estrangeiros.
O turismo levou à transformação de uma série de imagens e artefatos
associados aos afro-colombianos em ícones turísticos, como as mulheres pa—
lenquems24 (que lembram a forma através da qual a indústria de turismo em
Salvador, na Bahia, transformou a baiana do acarajé em um ícone) e ornamen-
tos afro para o cabelo (que as mulheres afro-colombianas colocam no cabelo
de turistas — brancos na maioria —, na praia de Boca Grande, onde se con-
centra & maioria deles). A partir da incorporação ao universo da música popu-
lar, passou & aconteceu um grande consumo de gêneros de músicas e instru-
mentos musicais, geralmente associados à população negra. Assim, foi sendo
criada a noção de 'música tropical' (Wade, 2000). Cartagena lembra muito Sal—
vador, e não apenas pela sua bela arquitetura colonial, mas também pelos tra—
ços endogâmicos da elite local, contrabalançados por uma vitalidade cultural
e um orgulho étnico renovados entre o grupo jovem da população negra.
Os discursos dos oito ativistas negros que entrevistei também fazem
lembrar do Brasil. Eles reforçam a idéia de que a identidade negra e & diferen-
ça precisam ser enfatizadas para serem redescobertas. Insistem em usar o ter—
mo 'negro' como uma afirmação política contra a tentativa de tornar & negri-
tude invisível. O vilarejo de Palenque, & 60 quilômetros da cidade, é identifica”
do por estes ativistas como a fonte principal de símbolos negros. Palenque e'
uma grande comunidade rural formada por descendentes de escravos fugitivos
há cerca de duzentos anos. Conta com rituais funerários específicos, estilos de
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
25 Em muitas situações, este termo, além de expressar uma identidade nacional, também (% rela-
cionado à cor escura da pele da maioria dos habitantes da Costa Atlântica.
26 A mistura local de house, soul e, principalmente, de vários estilos musicais 'africanos' que os
DJs míxam e tocam em dezenas de sistemas de som com pistas de dança anexas, que ganham ví-
da durante os fins de semana em bairros predominantemente de classe baixa.
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'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
çador ou fraco e sem poder, e a mulher negra como forte e uterina ou sensual
e dada ao senhor (branco). Em se falando de representações em torno da se-
xualidade nas populações definidas como negras, existe uma tendência a haver
pouco espaço para qualquer tipo de “normalidade (a família nuclear com mãe,
pai e dois filhos), assim como para combinações complexas ou intermediárias
(comportamentos sexuais não—centrados no hiperenfatizar do par masculini-
dade/feminilidade). Estas imagens, e' claro, são o produto de relações específi-
cas de raça e gênero que, durante a época passada, começaram a mudar. Em
outras palavras, estas tendências nas relações de gênero levarão à mudança nas
construções da negritude ligadas & gênero.
15) A linguagem corporal e as imagens/discursos sobre sensualidade
fazem parte da construção da brancura e negritude nos quatro países, ape-
sar das diferenças demográficas entre eles. E, cada vez mais, a cultura e a
identidade negra —— e, até certo ponto, as identidades e culturas indígenas
nativas —— são sustentadas por princípios estéticos vivenciados e expressa-
dos no domínio público do lazer e em uma interação estreita com a cultura
jovem e a indústria do lazer. Isto explica a alta incidência da internacionali—
zação de vários ícones negros em países diferentes —— um bom exemplo é &
lanchonete onde fiz muitas das entrevistas em grupo em Aguablanca, chama-
da Sabor hip hop.
Pode—se dizer certamente que a percepção e a experiência da saúde re-
produtiva são mediadas pela classe, geração e, frequentemente, posição étnica.
A experiência de identidade étnica e a de saúde reprodutiva estão passando
por uma mudança total. Esta mudança ainda não e tratada nas pesquisas nem
nas intervenções sociais.
A transformação da intimidade, muitas vezes considerada como um dos
produtos principais da modernidade, está tendo efeitos diferenciais. Em vez de
apenas fomentar uma única nova condição em termos da experiência geral da
sexualidade, do amor romântico e das práticas corporais, parece estar levando
a uma renovada fragmentação e diversidade na nossa forma de amar e de vi-
venciar () corpo e o sexo. Ou entendemos como estes processos funcionam de-
talhadamente, ou não seremos capazes de apresentar a nossa intervenção em
uma linguagem e através de metodologias que estejam em sintonia com a vida
cotidiana — isto é sempre relevante, mas talvez seja ainda mais quando lida-
mos com coisas tão íntimas quanto o corpo, o sangue e o sexo.
As pesquisas sobre práticas sexuais, vida doméstica, discursos e nego—
ciações no que diz respeito & papéis de gênero podem ajudar a compreender o
que muda, 0 que permanece relativamente localizado e os tipos de práticas e
morais que se tornam mais genuinamente universais.
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'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Referências bibliográficas
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'Raça', Etnicidade e Saúde Reprodutiva
93
Parte II ETNICIDADE E SAÚDE
ETNIA, RAÇA E SAÚDE:
SOB UMA PERSPECTIVA NOMINALISTA
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
órgãos e documentos oficiais que vêm lidando com a questão da saúde em si-
tuações multiétnicas. Sob essa perspectiva, tem sido mais pertinente operacio-
nalizar etnografias de contextos culturais específicos e espaços de fricções in—
terétnicas do que proceder a uma analítica da categoria raça. Aqui, o que está
em jogo é a concepção de corpo, doença e cura em contextos étnico-culturais
diferenciados.2
Se no primeiro enfoque busco exercitar uma metodologia historicista
para relativizar categorias e razões sociais, na segunda estão em foco as análi-
ses antropológicas sobre concepções locais de doença, corpo e saúde. Por fim,
busco fazer convergir as duas perspectivas numa discussão sobre dominação e
possibilidades de diálogo interétnico, quando o que está em jogo são políticas
públicas, nomeadamente políticas de saúde.
2 É certo que a vulgarização da categoria etnia tende & torná—la um substituto corrente para a
categoria raça, podendo “bem servir de eufemismo, de substituto politicamente indolor ou
ideologicamente manipulador suscetível de substituir ou transformar outras categorias — pen—
se-se naquela de nação ou de povo de usos contraditórios hoje, de classe, de que se proclama &
obsolescência, ou mesmo de raça, ao qual se aplica desde há meio século um interdito que al-
guns sonham contornar" (Adorno, 2000). Pretendo aqui, porem, destacar um espaço de relação
entre o modo como a categoria tem sido utilizada por especialistas das diferenças (antropólo-
gos, sobretudo) e sua apropriação nas percepções e formulações de políticas públicas.
98
Etnia, Raça e Saúde
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
3 Utilizo aqui a genealogia de Foucault no sentido proposto por Adorno (2000:96) de que “a
história de Foucault não tem como objetivo tornar visível a verdade do passado, mas devolver o
que tornou possível essa verdade e a razão pela qual essa razão tem funcionado sobre o objeto
da escrita, sobre o presente do sujeito que o enuncia". Trata-se de configurar sob que possibili—
dades uma configuração de enunciados e relações de poder impõe injunções a que se fale de
certo modo de raça, etnia e saúde.
100
Etnia, Raça e Saúde
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
mesmas forças sociais segundo uma lógica do sangue que só o nazismo explici—
tou e levou às últimas consequências.
Nas demais conjunções de dispositivos de biopoder, & majoração de uma
parte das forças sociais de acordo com uma biopolítica própria às áreas cen—
trais e & periferização e sobre—exploração das raças inferiores também são fato—
res de segregação, hierarquização e genocídio, porém bem menos explícitos.4
Nesse sentido, gostaria de fazer um breve cruzamento entre os debates
recentes a propósito do conceito de raça e etnia, e o campo que se abre na ar-
ticulação dessas categorias, com a questão da saúde e, mais especificamente,
da saúde reprodutiva. Desde que a desconstrução da categoria raça, sob o du-
plo efeito da monumentalização da perversidade do nazismo e do desmorona-
mento, pelo menos no espaço da ciência, do evolucionismo e do etnocentris-
mo pelo impacto particular de diversas e consistentes perspectivas antropoló-
gicas, o debate sob a pertinência analítica da categoria raça tem emergido com
particular tensão no Brasil.
Os intelectuais repetidamente enfatizam & "não-cientificidade" da cate—
goria (Adesky, 2001:134 —— só para citar apenas uma das abordagens ao tema
mais recentes no Brasil), ao mesmo tempo em que, sob o impacto das contun-
dentes denúncias e reivindicações do movimento negro, o racismo brasileiro
aparece cada vez mais como tema incontornável. Meu argumento básico vai no
sentido de colocar o conceito foucaultiano de biopoder no centro dessa dis-
cussão sobre a pertinência das categorias raça e etnia para a análise da forma-
ção social brasileira. Seguindo esse programa nominalista, as duas categorias
devem ser correlacionadas menos às realidades que designam do que aos pro—
cessos de objetivação que acionam. Trata-se menos de “coisas sociais' do que
de práticas discursivas articuladas em dispositivos mais ou menos poderosos
de poder—saber, conforme o que esteja em jogo sejam correlações locais para
102
Etnia, Raça e Saúde
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ETNICIDADE NA AMÉR1CA LATINA
7 Adotamos aqui a leitura de Rajchman (1987z47) do sentido em que a genealogia proposta por
Foucault e' nominalista: o que elas analisam “não são histórias de coisas, mas de termos, catego-
rias e técnicas, através dos quais certas coisas tornam-se certos momentos, o foco de toda uma
configuração de discussão e de procedimento".
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Etnia, Raça e Saúde
105
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Rorty, por sua vez, triplicou enfatizando que médicos não precisam ava—
liar o valor das vidas que salvam, assim como advogados não precisam se in-
quietar exageradamente corn a moral daqueles & quem defendem, nem os pro-
fessores devem fazer uma triagem dos alunos que efetivamente aproveitarão
seus ensinamentos. Se a lógica da área de especialização de Geertz lhe permite
entender o que significa ser índio antes, durante e após a conquista de sua tri-
bo pelos brancos, e a relação de tudo isso com o caminho terrível do índio bê-
bado, isso não quer dizer que outros especialistas, incapazes de se colocar nes-
sa especial sensibilidade para com a alteridade, estejam no escuro quando li—
dam corn diferenças culturais desse tipo —— argumenta Rorty. Cabe à especiali-
dade do antropólogo “fazer estender os limites da imaginação social, abrindo
portas para a justiça procedural" (Rorty, 1994236) para essas alteridades ex—
cluídas & ponto de o índio poder ganhar o primeiro lugar na lista de espera
pelo atendimento médico, apesar de sua etnia e conduta alcoólatra. Para o au—
tor, o exemplo não trata de um caso difícil nem do ponto de Vista moral nem
do ponto de vista legal: “É a honra moral da nossa sociedade que é remetida
aos mecanismos da justiça procedural" (Rorty, 1994236).
E é sobre essa disputa de espaços, lógicas e sensibilidades que eu gosta-
ria de tecer as considerações centrais deste artigo. Em toda essa discussão,
quero enfatizar, para efeitos de minha argumentação, o mérito de Rorty em ex-
por a existência de espaços de especialistas que não podem ter a mesma voca-
ção à imaginação que tem o antropólogo, porque estão engajados em outras
lógicas também vitais ao conjunto da estrutura democrática:
106
Etnia, Raça e Saúde
res culturais e suas especialidades. É aqui que e' preciso reintroduzir a questão
das relações de poder na produção da objetividade da realidade identitária.
Lembro—me aqui da nota de Bourdieu (1996) de que as classificações práticas
estão sempre subordinadas & funções práticas e orientadas para a produção de
efeitos sociais. Isto e, quando aquele que classifica está dotado de autoridade
(reconhecimento social para fazê-lo), sua ficção não é destituída da eficácia de
fazer existir aquilo de que fala (raça, nação, região, etnia), pelo poder de impor
um reconhecimento que seu enunciado carrega, fazendo existir, num determi-
nado momento, aquilo que, em outras conjunturas, já fora apenas uma possibi-
lidade inscrita no real.
O que toda essa discussão em torno da intersubjetividade tecida por
Rorty (1994) e Geertz (2001) não chega a levar em conta são exatamente as lu-
tas sociais pelo poder de definição das divisões do mundo social. O fato de
que na própria contenda entre esses principais representantes de suas respec-
tivas disciplinas está em jogo o poder simbólico que pode impor o reconheci—
mento das especialidades e sensibilidades adequadas à mediação.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
8 Transpomos as constatações de Bourdieu da questão de gênero para & étnica quando o soció-
logo ressalta o processo de circulação como imposição da condição de objeto: “É na lógica da
economia de trocas simbólicas -——- e, mais precisamente. na construção social das relações de
parentesco e do casamento, em que se determina às mulheres seu estatuto social de objetos de
troca, definidos segundo os interesses masculinos, e destinados assim a contribuir para a re-
produção do capital simbólico dos homens —, que reside a explicação do primado concedido à
masculinidade nas taxinomias culturais. O tabu do incesto, em que Lévi—Strauss vê O ato funda-
dor da sociedade, na medida em que implica o imperativo de troca compreendido como igual
comunicação entre os homens, é correlativo da instituição da violência pela qual as mulheres
são negadas como sujeitos da troca e da aliança que se instauram através delas, mas reduzindo-
os a condição de objetos, ou melhor, de instrumentos simbólicos da política masculina" (Bour—
dieu, 199956).
108
Etnia, Raça e Saúde
Sica dos designados para o lugar de raça inferior, por uma naturalização de
urna sexualidade exposta a processos violentos de vulnerabilização às doenças.
A censura que se impõe à ocupação do espaço e, sobretudo, da fala pú-
blica por parte das etnias dominadas é fecunda para a constituição de espa—
ços para especialistas na medição política. As múltiplas formas de resistência
aos processos dominantes de racializaçâo e genocídio abrem espaços para
mediações político-culturais que tendem cada vez mais a produzir processos
de etnogêneses. O que está em jogo nesses processos de mediação cultural é
& transmutação de resistências locais e circunscritas em problemas que ir-
rompem as arenas públicas e podem se impor corno legítimos para agentes e
instituições com condições e legitimidade para disseminá-los. Instala-se, as-
sim, um espaço de concorrência para a mediação em que especificidades pro—
fissionais e outros capitais acumulados em trajetórias político-culturais se
oferecem para a manipulação das relações sociais que permitem & monopoli—
zação da condição de porta—voz legítimo dos segmentos expostos aos proces-
sos de racialização.
Nessa competição, os atores intervêm em nome de grupos instituciona—
lizados. Mas “tais grupos são eles mesmos estruturados por uma concorrência
interna e por debates contraditórios.
Analisar as discussões internas ao espaço da militância do movimento
negro ou do espaço da antropologia e da sociologia voltadas para a questão
étnica, ou ainda dos agentes de políticas de saúde, por exemplo, permitiria
compreender como o problema social 'raça/etnia e saúde' vem se constituindo
em espaço público para a mediação de agentes oriundos de diferentes campos
e que buscam normatizar a problemática. São os parâmetros mais gerais dessa
segunda vertente de urna hermenêutica alicerçada na suspeita que esboçamos
em seguida.
As lógicas de engajamento
nas medições por políticas de saúde
A primeira sugestão para uma reflexão mais acurada sobre as lógicas de enga-
jamento na problemática saúde—etnia é quanto ao caráter tardio da ressonân-
cia nas arenas públicas da problematização da vulnerabilização das condições
de existência de raças dominadas por doenças sexualmente transmissíveis, no—
meadamente a Aids. Uma comparação acurada com o processo de problemati—
zação com relação à outra categoria social estigmatizada, os homossexuais, tal-
vez demonstrasse uma defasagem temporal pertinente. Ao se tomar, por exem-
109
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
110
Etnia, Raça e Saúde
9 Wolf (1971: 66) conceitua como brokers uma espécie de mediadores que desempenha funções
cruciais de articulação entre segmentos sociais e as estruturas estatais mais amplas da nação.
“A posição destes *medíadores' (brokers) é exposta, uma vez que, como ]ano, eles olham em duas
direções ao mesmo tempo. Eles precisam servir a alguns dos interesses atuando ao nível da co-
munidade e da nação, e precisam conviver com os conflitos surgidos pela colisão de seus inte-
resses. (...) Assim, eles freqííentemente agem como estabíhzadores entre os grupos, mantendo as
tensões que fornecem a dinâmica de suas ações".
10 Quanto às possibilidades de se chegar a alguma espécie de universalização, e' preciso con-
cordar com Bourdieu (1998:94) que “não existem os universais trans-históricos da comunica-
ção, como querem Apel ou Habermas; mas existem formas socialmente instituídas e garantidas
de comunicação que (...) conferem sua plena eficácia & mecanismos de universalização". Encon—
trar e instituir esses mecanismos de universalização no espaço de políticas públicas com rela-
ção a minorias étnicas requer uma lógica de concorrência e controles mútuos entre os media-
dores, que está longe de se ter garantido no espaço político brasileiro como pretendo discutir
adiante.
111
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
11 A posição construtivista de boa parte dos antropólogos brasileiros com relação às discussões
sobre as categorias raça e etnia tern pecado, geralmente, por concorrerem com o movimento
negro na definição do que seria & categorização mais legítima, quando essa parte do construto
social deveria ser levada em conta em sua contribuição para a reconstituição das nominações e,
portanto, do real que é sempre um arbitrário social.
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Etnia, Raça e Saúde
ção das tomadas de posições dos militantes, pesa o fato da destituição das con-
dições de produção desses discursos que detalham tais “modos de Viver' exem-
plificados para resgate de políticas especiais. Pouco preparados também para o
detalhamento dessas políticas especiais — e, sobretudo, precariamente situa-
dos numa perspectiva global, 0 que reforça a impressão de uma racionalização
discursiva muito embrionária —, os militantes do movimento negro perdem
dos dois lados da corrida em direção à legitimação da condição de represen—
tante legal de uma causa já amplamente reconhecida pelos esforços do mesmo
movimento.
A debilitaçâo da posição e das tomadas de posição da representação
negra favorece a limitação da sensibilidade pública para com os efeitos do ra—
cismo e reduz os compromissos estatais para com o anti-racismo à retórica, de
tal modo que, quando as políticas de saúde chegam, por exemplo, aos setores
com menos poder de mobilização de recursos, elas estejam esgotadas sob vá-
rios aspectos. Retardadas comparativamente às demandas de outros setores,
deslegitimadas pela luta com os agentes oriundos da academia dotados de re—
cursos de construção de mais amplas audiências, as demandas do movimento
negro ascendem debilitadas às arenas públicas, produzem retornos deficitários
para os militantes engajados na problemática e pouca eficiência na proteção
efetiva do público-alvo.
Por outro lado, os políticos profissionais ——- sobretudo os de esquer-
da,12 voltados para as políticas sociais —— têm buscado e conseguido, graças a
seus recursos políticos, tornar a direção do processo suscetível de servir de ve-
tor & essas demandas étnicas, e lhes concedem direções mais conformes às ló-
gicas políticas de engajamento e à busca de retribuições a que eles estão acor—
rentados. Mesmo se as tomadas de posições desses políticos profissionais pare—
cem obedecer a princípios de produção éticos (sob a idéia da justiça social ou
da defesa dos oprimidos), na verdade a utilização desse repertório se revela
muito rentável politicamente por ser muito evocador, suscetível de múltiplas
traduções junto aos profanos e, por isso, fonte de mobilização alargada. Volta—
dos para uma lógica que busca menos a precisão das modalidades de equacio-
12 Mas é preciso aquí considerar que “estranhas homologias aproximam os partidos ideologi—
camente mais distantes quando eles ocupam as mesmas posições" (Gaxie, 19901193). Mais
adiante, Gaxie acrescenta: “Repousando sobre distinções simples —— individual contra coleti-
vo, responsabilidade ou solidariedade, generosidade ou gestão, serviço público ou setor priva—
do, social ou econômico —- é um dos mitos —— com certeza o mito —— fundador das clívagens
políticas".
113
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
namento das políticas do que sua inscrição solene nos rituais da política, é a
representatividade social desses políticos mais do que a especialização que pa-
rece nortear a prática profissional imbuída de um forte senso de reciprocidade
e fidelidade nas trocas interpessoais.
Prensados entre políticos e especialistas das diferenças, os militantes se
vêem aliciados & modestas carreiras que expressam posições dominadas em ea-
da um desses campos. Quando se reproduz nos espaços de mediação & lógica
dominante mais ampla que submete os representantes da etnia dominada à
condição de dominados, talvez devêssemos, mais do que conceituar em termos
(de fricções) étnicos, categorizar corno dominação racial (e genocídio) tal co-
mo discutido na primeira parte deste artigo.
13 “Está relacionado com o que se poderia chamar de organização do campo político indígena,
i. e., não indigenista, como condição de possibilidade de um verdadeiro diálogo que efetiva—
mente sejam admitidas como representantes de seus respectivos povos e que venham a poder
instituir, por consenso negociado junto ao Estado, as regras de uma interlocução aberta e de-
mocrática. (...) dificuldades encontradas na atualização da própria ética discursiva em amplos
114
Etnia, Raça e Saúde
Sob a perspectiva historicista que adotei desde o início deste artigo, te-
ria que considerar, em primeiro lugar, que o caminho de ascensão a esse espa-
ço de mediação é aberto menos por processos argumentativos do que por go]-
pes de força. Em segundo lugar, não sendo esse espaço um lugar de interlocu-
ção interpares, toda a interação militantes-políticos, militantes-antropólogos e
antropólogos—políticos coloca em justaposição as estruturas sociais que facul—
tam recursos a esses agentes sociais. Nesse tipo de interação, o peso do capital
político ou cultural propiciado por essas estruturas se impõe com urna Violên—
cia simbólica desmesurada em relação aos potenciais argumentativos dos diá-
logos que aí se estabelecem.
Mesmo considerando o fato de que “começam a surgir líderes indígenas
bastante competentes no uso da linguagem do pólo dominante" (Cardoso de
Oliveira, 2000:227), é preciso também que se leve em conta a autonomização
das estruturas das relações de mediação, os constrangimentos ritualísticos es-
pecíficos desse espaço de interação, as suas regularidades discursivas, as cor-
relações de força entre posições e os limites nas possibilidades de se produzir
tomadas de posições simultaneamente novas e credíveis. As lideranças das etnias
dominadas só se tornariam “interlocutores capazes de se movimentar no inte—
rior de normas do discurso hegemônico” depois de pagarem o preço de um
distanciamento da identidade, da linguagem, dos interesses de seus represen-
tados? A “argumentação audível e inteligível no interior do campo" (Cardoso
de Oliveira, 2000:227) político hegemônico é ainda uma fala indígena? As li-
deranças que ascendem à posição de políticos profissionais continuam se en-
carregando das aspirações de seus grupos de origem ou são levados aos jogos
específicos da autonomia desse espaço de interação política?
Aqui se impõe ir além das derivações da hermenêutica e da fenomeno-
logia quanto ao caráter comum da traduzibilidade na passagem entre univer-
sos culturais socialmente distantes e da “Versthen como condição ontológica
da sociedade humana" (Giddens, 1998:291).14 Para responder a essas questões
espaços interculturais, como soem ser os que envolvem as relações dialógicas entre os povos in»
dígenas e o Estado nacional, isto e, no macro espaço de interseção entre políticas indígena e
indigenista" (Cardoso de O1iveira, 20001215).
14 Engajamentos da sociologia em perspectivísmos do tipo proposto por Gíddens (1998) ao re-
tornar & etnometodologia e ao enfatizar “que Versthen deveria ser abordado como uma condição
ontológica da sociedade humana (...) o meio pelo qual a vida social é constituída por atores lei—
gos" (Giddens, 19981291), leva a que se neg1igencie importantes dimensões de relações de po-
der associadas ao 'potencíal de metamorfose' (Kuschnir, 2001) das trajetórias que se situam
115
ETN1C1DADE NA AMÉRICA LATINA
nas fronteiras de domínios socioculturais. Para se evitar esse tipo de perda, toda uma literatura
clássica na abordagem dos fenômenos de mediação entre universos socioculturais hierarquiza-
dos, associados a padrões clienteístícos de relações de dominação (Silverman, 1971; Wolf, 1971,
entre outros), pode aqui ser conjugada à analítica das condições sociais de emergência de por—
ta—vozes (Bourdieu, 1996, por exemplo).
15 A presença de agentes corn trajetórias consolidadas na academia não deve nos fazer retirar a
guarda em relação a essa ”visão irênica retomada de Habermas, que, ignorando a violência sim-
bólica constitutiva do próprio espaço de mediação, seduz na esperança de um intercâmbio
segundo o modelo intelectual, submetido à força do melhor argumento" (Bourdieu, 199894). Tal
esperança se desenha em Cardoso de Oliveira aguardando que "essa situação somente estaria
superada quando o índio interpelante pudesse, através do diálogo, contribuir efetivamente para
& institucionalização de urna normativídade inteiramente nova, fruto das interações havidas no
interior da comunidade intercultural. Em caso contrário —— para falarmos como Habermas —
persistiria uma espécie de comunicação distorcida entre índios e não-indios, comprometedora
da dimensão ética do discurso argumentativa" (Cardoso de Oliveira, 2000:228).
116
Etnia. Raça e Saúde
Conclusão
117
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
118
Etnia, Raça e Saúde
Referências bibliográficas
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AS APARÉNCIAS QUE ENGANAM:
REFLEXÓES SOBRE 'RAÇA' E SAÚDE NO BRASIL
Peter Fry1
1 Quero agradecer à Dra. Simone Monteiro pelo gentil convite para participar desta coletânea e
aos comentários dos participantes, em particular ao Dr. José Carlos dos Anjos, cujo trabalho
muito me fez pensar. Á Dra. Yvonne Maggie, meus agradecimentos pelos comentários, pela ami—
zade de sempre e pelo copydesk.
2 Veja Maio & Santos (1996).
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Há um forte movimento no Brasil para impor uma taxonomia racial bipolar, se—
melhante à encontrada nos Estados Unidos (Fry, 2000). Durante muitos anos,
esta reivindicação era mais forte entre os militantes dos movimentos negros.
Mas, em anos recentes, tem sido adotada cada vez mais nos meios acadêmicos
e, agora, pelo próprio governo federal. O Programa de Direitos Humanos, pu-
blicado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1996,3 propõe “de—
terminar ao IBGE a adoção do critério de se considerar os mulatos, os pardos
e os pretos como integrantes do contingente da população negra". Isso ainda
não aconteceu, pois até agora dois argumentos têm prevalecidoz é necessário
122
As Aparências que Enganam
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
8 Todas as informações sobre este grupo foram retiradas da seguinte página na Internet: <http://
www.planalto.gov.br/secom/colecao/ra ciath.htm>.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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As Aparências que Enganam
sante você saber que todo dia tem que enfrentar isso e que não é só você.
Que sua mãe vai enfrentar isso, seus irmãos vão enfrentar isso, se eu tivesse
filho, eu sabia que meu filho ia enfrentar isso. Isso e' a coisa pior que tem
em relação ao racismo. Acho que essa coisa que negro tem mais tendência a
ter hipertensão, eu acho que é muito por conta disso. Esse estresse cotidia-
no, a gente não tem como fugir disso. A gente acorda todo dia e sabe que
isso é o pão de cada dia. Isso é uma coisa “tremenda. (...) A coisa da Aids che-
ga, sei lá, pra mim é mais um troço que não chegou a afundar, fazer adernar
mais o meu navio não. Eu acho que essa questão tripla da coisa da Aids, da
homossexualidade e do fato de ser negro, e um conjunto de coisas que... Eu
não sei se realmente a Aids acaba sendo mesmo uma prioridade. A miséria
que se coloca em relação ao negro, que o racismo submete a gente é uma
coisa tão forte, que a Aids acaba se tornando uma coisa meio difusa, uma
coisa meio tênue. (...) Eu acho que o negro se expõe mais sexualmente. O
negro e mais promíscuo sexualmente. O sexo pode assumir uma forma de
autovalorização. A coisa do pau grande, a coisa da pele, não sei mais o que,
é uma coisa de autovalorização. Mas é uma faca de dois gumes. Ao mesmo
tempo em que é uma forma de buscar uma auto-estima, também, como exis-
te a coisa da baixa estima inerente, você também vai se expor porque & au-
to-estima também tá em baixa. Aí você se expõe porque você não está se va-
lorizando como ser que tem que se manter intacto em relação à saúde. Você
não se vê digno. (Mesquita, 2002:180)
O argumento de César sugere que é mais que plausível que a saúde dos
negros possa sofrer por causa do preconceito e da discriminação, provocando
depressão, estresse e tristeza, por um lado, e, por outro, possivelmente, atendi-
mento deficiente em hospitais e clínicas. Mas essa relação, objetivamente veri-
ficável entre aparência e sofrimento, não é discutida, talvez porque não indi-
que uma constituição, uma essência específica dos mais escuros, nem biológi—
ca nem culturalmente, mas, isto sim, uma relação complexa e contraditória en-
tre os mais claros e os mais escuros. Segue, portanto, que a eliminação desse
problema depende não necessariamente da celebração das diferenças raciais,
mas certamente de ações desdobradas contra o preconceito e a discriminação.
Se entendi bem o argumento de José Carlos dos Anjos (cf. artigo nesta co-
letânea), ele interpreta a ideologia brasileira da negação formal das diferenças
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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As Aparências que Enganam
'homossexual', primeiro porque a Aids era tida como um “câncer gay' que se
transmitia muito facilmente através do sexo entre homens, mas tambem com as
atenções especiais dadas aos 'homossexuais', portadores da doença.9 Ou seja,
não foram os 'homossexuais' os primeiros a ganhar a atenção. Antes, pelo con—
trário, foi no combate à Aids que o 'homossexual' e o *gay' se consolidaram co-
mo identidade sexual, cultural e política. (Os mais radicais diriam biológica
também.) A posição do presidente do Grupo Gay da Bahia a este respeito é
muito reveladora. Ele critica todos aqueles que adotaram o termo HSH (ho-
mens que mantém relações sexuais com outros homens), por não legitimar &
inclusão de todos aqueles que mantêm relações sexuais com parceiros do mes-
mo sexo na identidade de *homossexuais' (Mott, 2002).10
Os 'negros' tampouco se constituem uma categoria pré-discursiva, e é
razoável propor uma interpretação alternativa à de José Carlos dos Anjos para
a suposta relação entre Aids e os negros no Brasil. Em primeiro lugar, não há
qualquer evidência empírica que justifique a constatação de que os mais escu-
ros são de fato mais vulneráveis ao HIV do que os mais claros, por serem ne—
gros e não pobres. Na ausência de dados empíricos que sinalizem essa direção,
ainda não encontrei qualquer relação (epidernio)lógica, & não ser a do César
enunciada anteriormente, e que não se encontra no site do Grupo de Trabalho
Interministerial para Valorização da População Negra. Mesmo se fosse possível
postular que os comportamentos sexuais e em relação a drogas injetáveis pu-
dessem variar entre pessoas de classes distintas, e difícil imaginar por que de-
veriam variar entre pessoas por causa dos seus fenótipos diversos.
Proponho, portanto, que a suposta relação entre *negros' e Aids demo—
rou a ser formulada não pelo pouco capita] político dos militantes negros, co—
mo argumenta Anjos, mas porque a tal relação não existe antes de ser nomea—
da. A relação entre *raça' e HIV/Aids no Brasil seria, então, um pressuposto
ideológico, revelando mais sobre o pensamento social dos intérpretes da so-
9 Regina Facchini (2002), na sua dissertação de mestrado sobre os movimentos gays em São
Paulo nos anos 1990, mostra o crescimento do número de ONGs gays neste período.
10 “Em síntese", ele escreve, ”considero que HSH se trata de um conceito importado do primeiro
mundo com o pretexto de se evitar a nefanda palavra 'homossexual', como reconhecimento da
especificidade da cultura sexual brasileira (e latino-arnericana). O mito de urna sexualidade tro-
pical, carnavalesca e selvagem, e da falta de identidade gay no Brasil ainda persiste no imaginá—
rio de muitos “brasílianistas', estando tais premissas na base desta novidade classificatória. Ape-
sar destas aparentes boas intenções, não há como negar que o uso do neologismo HSH é total-
mente equivocado enquanto estratégia epidemiológica e postura política" (Mott, 2002).
131
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
ciedade do que sobre o comportamento social e sexual dos 'negros'. Esse pres-
suposto ideológico revela, e fortalece, uma crença de que os *negros' são tão
diferentes dos 'brancos' -— ou por razões culturais ou por razões biológicas
mesmo —, de que são mais vulneráveis ao HIV/Aids do que os Abrancos'. Dessa
forma, a relação proposta poderia ser interpretada como mais um passo dado
no caminho da naturalização do modelo birracial no Brasil.
José Carlos dos Anjos argumenta que a racialização recente no Brasil se
assemelha mais ao que Foucault chamou da guerra das raças do século XVI, do
que a biorracialização do século XX. Assim fazendo, procura legitimar a raciali—
zação desejada pelos militantes negros como algo mais palatável do que a bior—
racialização propriamente dita. Não posso concordar. Em primeiro lugar, & ra-
cialização do Brasil não se efetua apenas, ou até predominantemente, pelo es—
forço dos militantes negros. A relação no Brasil entre 'raça' e ªdoença' e prota—
gonizada também por muitos atores dotados de grande “capital político' (como
alguns demógrafos, economistas, antropólogos, médicos e sociólogos de todas
as cores), o governo federal e as agências financiadoras norte-americanas (co-
mo as Fundações Ford, Ashoka e Rockefeller), que, além de financiarem ações
concretas —— como parte desta coletânea, inclusive —, financiam também, em
grande parte, as mais eloqúentes vozes da própria militância negra. É difícil
não dar uma certa razão & Bourdieu & Wacquant (1998), quando argumentam
que somos muitíssimo influenciados pelos modelos interpretativos, que cami-
nham juntamente com as verbas que financiam indivíduos e projetos ligados à
*questão racial' no Brasil.11
Mas também me pergunto se Anjos não está exagerando quando sugere
que a ideologia brasileira da não—racialização acoplada ao preconceito de cor
é uma espécie de genocídio. Genocídio só é possível quando se tem o genus &
ser exterminado. Seguindo os passos analíticos de Michel Foucault, pode—se
argumentar que a ideologia republicana do não-racismo — ou melhor, do a-
racismo —- representa uma ideologia onde todas as raças deixam de existir. Afi—
nal, para Gilberto Freyre (que Anjos cita neste contexto), a produção de uma
'metarraça' brasileira implicaria, teoricamente ao menos, o fim dos 'negros' e
dos 'brancos' também.
11 Algum tempo atrás argumentei que Bourdieu e Wacquant exageraram na sua análise (Fry,
2000). Mudei de idéia durante o seminário que originou esta coletânea, e quando descobri o
quanto as agências norte-americanas investem na consolidação de uma identidade negra no
Brasil.
132
As Aparências que Enganam
Nosso desafio é romper com a matriz republicana francesa. Todos nós fo—
mos culturalmente educados e a grande maioria estudou numa base dessa
grande matriz francesa universalista, que acha que o imperativo da igualda—
de é a melhor matriz para fazer qualquer intervenção, tratando todos por
iguais. Esta é a estratégia mais cínica de lidar com o problema. (Celestino &
Menezes, 2002217)
133
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
134
As Aparências que Enganam
Referências bibliográficas
135
A PROPÓSITO DAS RELAÇÓES ENTRE
ETNICIDADE, CULTURA, PODER E SAÚDE
Introdução
Antes de começar a fazer meu comentário sobre o artigo Etnia, raça e saúde
sob uma perspectiva nominalista, de José Carlos dos Anjos, quero comparti—
lhar com vocês a dificuldade que implicou para mim a realização deste exercí—
cio. A proximidade linguística entre o português e o espanhol preparou-me
mais de uma armadilha, e estive constantemente exposta a dois riscos: trair o
texto, por minha tradução livre, e/ou traí-lo pela interpretação dos propósitos
densos — e intelectualmente sofisticados — do autor. Espero ter me saído
bem no exercício e não empobrecer os horizontes que esse autor nos abre
com suas reflexões.
0 trabalho de ]. O dos Anjos e' interessante e necessário, porque permi-
te relacionar uma perspectiva histórica e uma perspectiva socioantropológica
da saúde, as categorias de raça, etnia e seus vínculos, na nova problemática da
etnicidade na saúde (principalmente sexual e reprodutiva). Em primeiro lugar,
o autor situa historicamente a categoria da raça, como um correlato do pro-
cesso de propagação de uma bíorracionalização do governo e da difusão de
tecnologias locais de poder, para administrar a população, cujos objetivos fo-
ram a constituição de um corpo saudável e homogêneo de nação e o treina-
mento e a maximização das forças produtivas. Em segundo lugar, ele discute
alguns enfoques antropológicos sobre as diferenças culturais. Em particular,
detém-se na análise da defasagem existente entre as representações locais do
corpo e da saúde e as imagens projetadas pelos órgãos e documentos oficiais
que trabalham com a questão da saúde em situações multiétnicas. Em terceiro
lugar, ele apresenta a convergência dessas duas perspectivas, numa discussão
sobre a dominação e as possibilidades presentes no diálogo interétnico, quan-
do o que está em jogo são as políticas públicas de saúde.
137
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
José Carlos dos Anjos mostra de que forma o campo sanitário foi e continua a
ser um lugar de interpretação do mundo e de enunciação do discurso político.
Na verdade, essa assunção das questões sanitárias por parte das instituições
sociais e políticas não é nova e, hoje em dia, a aplicação do político ao biológi-
co continua a ocupar um lugar central no espaço público. O autor sublinha a
importância do conceito de biopoder na discussão sobre a pertinência das ca-
tegorias de raça e etnia. Na obra de Foucault, o biopoder é definido como a
conjunção de urna anatomopolítica e uma biopolítica. A primeira representa o
controle do corpo como máquina por tecnologias que, tal como a escola, o
cárcere e a medicina, intervêm em suas atitudes e as disciplinam. A segunda, a
biopolítica, faz referência a uma imposição sobre o que é designado como cor-
po-espécie, através de dispositivos que regulam sua natalidade, fecundidade e
morbidez, incluindo sua morte e sua mortalidade, quer em termos de conheci-
mento, graças à demografia ou à epidemiologia, quer em termos de ação, como
no planejamento familiar e na saúde pública.
O biopoder é considerado por Michel Foucault como um processo de
normalização que define uma ordem moral e política, e o discurso sobre o se-
xo, tal como descrito no primeiro volume de História da Sexualidade, constitui—
ria & ilustração paradigmática dessa conjunção entre anatomopolítica e biopo-
lítica. Mas também o discurso sobre a raça, em sua acepção moderna, ou seja,
o discurso que enfatiza a pureza biológica do povo de uma nação, pressupõe,
corno assinala Anjos, 0 exercício de um biopoder, já que este gera segregação e
hierarquização social, relações de dominação e efeitos de hegemonia (Fou-
cault, 1976). Só se pode falar de raça, em sua acepção estatal e biologizante,
quando a saúde das populações emerge como uma questão social na esfera
pública, e quando os fenômenos próprios da vida da espécie humana entram
138
A Propósito das Relações entre Etnicidade, Cultura, Poder e Saúde
José Carlos dos Anjos afirma que a reflexão a respeito desse biopoder e' neces-
sária na discussão sobre a pertinência das categorias de raça e etnia para a
análise da formação social brasileira. No Brasil, como na Colômbia, as elites do
fim do século XIX e início do século XX apropriaram-se, simultaneamente, do
discurso racial surgido na Europa durante o século XIX e dos dispositivos de
biopoder. Essas minorias seletas pretenderam construir uma nação segundo o
modelo das nações modernas e ocidentais, buscando seus princípios de racio-
nalidade e modernidade na herança européia e outorgando à herança africana
um lugar na sociedade e na cultura unicamente como fonte de “poder físico,
folclórico e culinária rica" (Sombra Saravia, 1993z45). O Brasil favoreceu o em-
branquecimento de sua sociedade através do amplo incentivo à imigração eu-
ropéia, que modificou, em grande medida, a composição racial brasileira. O
correlato desse incentivo, para Anjos, foi a invisibilização das populações na-
cionais para políticas públicas como as de saúde. Por essa razão, para esse au-
tor, a forma adotada pela produção das raças no Brasil não está dissociada do
modo como foram construídas as políticas sanitárias.
A medicalização e a normalização crescentes da vida individual e coleti-
va, trazidas pela era do biopoder, foram ainda mais explícitas nos contextos in-
terétnicos latino—americanos, nos quais as especificidades culturais das popula-
ções foram ignoradas. A cultura da saúde pública implicou uma vasta empreita—
da de aculturação das populações indígenas e africanas, atraves de dispositivos
de imposição e persuasão que traziam implícita a chancela de uma missão civi—
lizadora. Do mesmo modo, a implementação de programas de combate às gran—
des endemias esteve e continua sempre associada a práticas de interiorização e
submissão dessas populações, isto é, à constituição de relações políticas especí-
ficas, nas quais a sociedade ocidental tern exercido seu poder através da imposi—
ção de seus saberes médicos e de seus controles sanitários (Fassin, 2001).
139
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
A saúde e a cultura
Parece pertinente fazer uma reflexão sobre a relação entre saúde e cultura, pa-
ra dar conta das tensões entre universalismo e particularismo —— ou culturalis—
mo — que sempre atravessaram o campo da saúde pública, e que ressurgem
quando se problematiza & relação entre etnicidade e saúde. Recorreremos ao
exemplo da luta contra a Aids, porque ela vem a ser um revelador privilegiado
das ambiguidades e contradições das políticas que oscilam entre a aplicação
de princípios universais e a busca de particularidades culturais, incessante—
mente invocadas para explicar as dificuldades encontradas nessa iniciativa.
Essa tensão é constitutiva da história da saúde pública no mundo colo—
nial e, posteriormente, no que veio a ser chamado de Terceiro Mundo. Em ne-
nhum momento, um ou outro enfoque conseguiu impor—se totalmente, como
solução prática e definitiva para os problemas de saúde das sociedades asiáti-
cas, africanas ou latino-americanas. O trabalho de antropólogos como Didier
Fassín e Jean Pierre Dozon, na América Latina e na África, mostra que essas
duas perspectivas reúnem-se tanto no plano da interpretação, através da dene-
gação dos aspectos políticos subjacentes nas opções de saúde pública, quanto
no da ação, por sua incapacidade de reconhecer a existência e menos ainda a
pertinência das soluções elaboradas pelos próprios agentes de saúde locais.
Tornando-se invisível como cultura, a saúde pública produziu o 'outro'
como categoria culturalmente definida (Fassin, 2001). A superação dessa apo-
ria pressuporia o rompimento, como afirmam esses dois autores, com a idéia
de que a saúde pública é um saber que enuncia verdades sobre o bom com-
portamento para a vida e se confronta com culturas ignorantes ou desrespeita-
doras dessas verdades, a fim de dar margem a uma outra concepção da relação
entre saúde pública e cultura, considerada como uma interação entre códigos
culturais que formulam verdades referentes & teorias locais.
É necessário considerar que a suposta distância existente entre as nor-
mas sanitárias prescritas e as representações e práticas em matéria de higiene,
sexualidade e cuidados de saúde não depende unicamente das diferenças liga-
das à origem geográfica, mas também das desigualdades sociais. As argumenta-
ções culturalistas em curso, expressão de uma ideologia particularista para
pensar sobre o 'outro' levam a minimizar e até & ocultar o papel das condições
materiais nas condutas consideradas nocivas, bem como a responsabilidade
das instituições de saúde nas dificuldades encontradas para implementar as
ações sanitárias (Dozon & Fassin, 2001). A Aids e um revelador particularmen—
te eficaz dessa ocultação. Na história da epidemia desta doença, a África foi ra—
pidamente designada como berço e vetor da epidemia, e ressurgiram com vi-
140
A Propósito das Relações entre Etnicidade,Cu1tura, Poder e Saúde
141
ETNIC1DADE NA AMÉRICA LATtNA
142
A Propósito das Relações entre Etnicidade, Cultura, Poder e Saúde
'civilizador'. Qual é a razão por que certas visões do 'outro' —— neste caso, do
negro como um ser dionisíaco (Viveros, 2000) e vigoroso — permanecem e se
reproduzem?
Segundo esse autor, uma das razões que explica a persistência desse me—
ta—relato na memória coletiva ocidental-americana é sua difusão e renovação
constantes em cenários distintos: o festivo, como, por exemplo, o dos carnavais
brasileiros; o desportivo, através da reativação nos imaginários ocidentais, do
mito do garanhão negro, encarnado pelos atletas negros; ou o âmbito dos dis-
cursos da saúde pública, nos quais se associa constantemente a epidemia de
Aids ao continente africano, como vimos anteriormente. O mesmo acontece na
literatura, no discurso publicitário ou nas mensagens difundidas através da In-
ternet, que atribuem um lugar privilegiado aos temas eróticos 'negros'. Outra
possível explicação para a permanência dessa representação está no fato de
que ela é compartilhada por negros e não-negros, ainda que, evidentemente, a
partir de posições diferentes de enunciação (Viveros, 2000).
É importante assinalar que o meta-relato da proeza—virilidade dos ne-
gros não é isento de consequencias. Em primeiro lugar, ele se constitui como a
fronteira, o umbral (anatômico, biológico, ontológico ou imaginário) a partir
do qual se constrói e se justifica a humanidade exclusiva ocidental—européia-
'branca' (Lavou-Zoungbo, 2001). Outro de seus efeitos e que ele identifica o
negro com a natureza, e não com a cultura, e lhe atribui a mesma ambivalên-
cia: ora ele é percebido como passivo e dependente, como uma criança, e é
descrito como carente (de iniciativa, de capacidade intelectual, de vontade),
ora é exagerado (em emotividade, irracionalidade ou sexualidade). Em terceiro
lugar, ele encerra o negro nesse estereótipo, “fixa-o' em seu sexo. Para o imagi-
nário ocidental, o sexo transformou-se num dos traços pertinentes para a defi—
nição do ser negro. Em quarto lugar, ele faz com que toda forma de sexualida-
de que implique um homem ou uma mulher negros torne—se suspeita de lascí-
via e sensualidade exageradas. Em quinto lugar, torna as populações negras
particularmente vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis, como nos
recorda Anjos. O meta-relato de proeza—vigor sexual mais faz condenar e des—
qualificar o negro do que exaltá-lo. E, diferentemente de outros meta-relatos, &
primeira vítima deste e' seu protagonista (Lavou-Zoungbo, 2001).
Uma das perguntas surgidas & partir dessas constatações concerne às
formas de resistência que podem ser oferecidas pelas populações negras. O ar-
tigo de Anjos afirma, seguindo Bourdieu (1980), que os dominados têm menos
capacidade de realizar uma revolução simbólica do que os dominadores. E essa
revolução constitui uma condição para & reapropriação da identidade social
de que os negros foram expropriados (inclusive subjetivamente), ao aceitarem
143
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
José Carlos dos Anjos identifica outro ponto problemático, relacionado com as
resistências étnico-raciaisz () das mediações políticas e dos porta-vozes legíti-
mos, reconhecidos ou não, das etnias dominadas. O autor assinala que & cen-
sura imposta às etnias dominadas, para que elas não ocupem o espaço público,
permite a constituição de âmbitos de especialistas nas mediações políticas.
Com efeito, ao se converter num assunto debatido no espaço público, o pro-
blema da raça, etnia e saúde gera um lugar de concorrência pela mediação, no
qual os agentes participantes oferecem as especificidades de seus saberes pro-
fissionais e outros capitais acumulados em suas trajetórias político-culturais,
para sustentar sua condição de porta-vozes legítimos das populações que são
objeto da racialização.
144
A Propósito das Relações entre Etnicidade, Cultura, Poder e Saúde
1 ]. C. dos Anjos utiliza a categoria dos antropólogos como se esta designasse um conjunto ho-
mogêneo de investigadores, desconhecendo os debates que se deram no interior da disciplina
sobre a relação e as tensões entre conhecimento e política.
145
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
étnica para as comunidades negras, me surgem outras perguntas. Uma delas e'
sobre & inHuência que as formas pelas quais as identidades foram entendidas,
a partir do movimento negro, podem exercer em sua formação como atores po-
líticos e em seu poder como interlocutores das políticas públicas. Conquanto,
para muitos, a identidade tenha sido entendida como algo enraizado numa sé-
rie de práticas, concebidas como essenciais e ancestrais —— como seria o caso
dos remanescentes dos quilombos, no Brasil, ou das comunidades negras do
Pacífico, na Colômbia —, para outros, a identidade foi interpretada como um
projeto em construção. A pessoa 'torna—se' negra mediante um processo de po-
sicionamento político-cultural na prática (Hall, 1999).
- Essas tendências manifestam um desejo de construir uma identidade
negra fora das imagens construídas pelos grupos sociais dominantes, e expres—
sam o anseio de passar de uma forma de identidade de resistência para uma
identidade de projeto, de acordo com os termos de Castells (1997). Segundo
esse autor, a primeira seria uma identidade gerada pelos atores que se encon-
tram em posições desvalorizadas ou estigmatizadas pela lógica da dominação,
razão pela qual eles constroem espaços de resistência e sobrevivência basea-
dos em princípios diferentes dos propostos pelas instituições dominantes. A
segunda, a identidade de projeto, seria aquela em que os atores sociais, dado o
material cultural estabelecido de que dispõem, procurariam construir uma no-
va identidade, capaz de redefinir sua posição na sociedade e, com isso, trans-
formar toda a estrutura social.
146
A Propósito das Relações entre Etnicidade, Cultura, Poder e Saúde
147
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
148
A Propósito das Relações entre Etnicidade, Cultura, Poder e Saúde
Referências bibliográficas
149
Parte III SAÚDE REPRODUTIVA E POPULAÇÃO INDÍGENA
QUESTÓES DE SAÚDE REPRODUTIVA
DA MULHER INDÍGENA NO BRASIL
Nos últimos vinte anos, a literatura brasileira sobre saúde reprodutiva e saúde
da mulher experimentou um rápido crescimento, sendo caracterizada pela pro-
dução de grande número de artigos e livros cujos temas incluem, além dos
campos disciplinares que tradicionalmente têm se dedicado ao assunto (tais
como demografia, direitos reprodutivos e políticas públicas), estudos que en-
focam relações de gênero, saúde sexual, anticoncepção, epidemiologia de
doenças sexualmente transmissíveis e câncer ginecológico, entre outros (cf.
Franchetto, Cavalcanti & Heilborn, 1983; Galvão & Díaz, 1999; Giffin & Costa,
1999; Hardy, 1998; Labra, 1989; Mendonça, 1993).
É importante frisar que as investigações empíricas sobre saúde repro—
dutiva e saúde da mulher realizadas no país, tanto as de orientação socioan—
tropológíca como as de recorte epidemiológico, desenvolveram—se sobretudo
em contextos urbanos. Além disso, enfocaram grupos étnico-raciais específicos
e, aqueles que o fizeram, trabalharam em sua expressiva maioria com mulheres
negras (cf. Barbosa, 1998; Barros, Victora & Horta, 2001; Cruz & Pinto, 2002;
Martins & Tanaka, 2000; Olinto & Olinto, 2000, Pinto & Souza, 2002). No
contexto das pesquisas com recorte étnico, permanece como grande lacuna no
conhecimento os determinantes socioculturais, ambientais e biológicos da
saúde reprodutiva da população indígena no Brasil.
Em geral, os estudos de orientação antropológica sobre a mulher in-
dígena no Brasil não têm abordado aspectos específicos da saúde. lá as pou-
cas pesquisas epidemiológicas sobre saúde reprodutiva da mulher indígena
tendem a ser restritas, enfocando particularmente as infecções sexualmente
transmitidas ou o câncer ginecológico. Em sua grande maioria, tanto os es-
tudos antropológicos como os epidemiológicos foram realizados entre pou-
cas etnias situadas na Amazônia, o que restringe a possibilidade de generali-
zaçao.
153
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
1 Veja, por exemplo, as informações díspares sobre tamanho da população indígena no Brasil,
disponibilizadas na Internet por órgãos governamentais, como a Fundação Nacional do Índio
(Funai) (http://www.funai.gov.br/), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) (http://www.funasa.
gov.br/ind/ind00.htm) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (http://www.
íbge.gov.br/).
154
Questões de Saúde Reprodutiva da Mulher lndígena no Brasil
155
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
rência, 70% dos intervalos interpartais situam—se entre 2,0 e 3,5 anos, com
uma média de 2,3 anos. A combinação entre um início relativamente cedo da
reprodução, exposição continuada à gravidez e período de lactação prolonga-
do faz com que as mulheres Yanomami atravessem cerca de 90% de suas vidas,
entre os 15 e 40 anos, grávidas e/ou amamentando.
Uma outra diferença significativa entre mulheres indígenas e não-indíge-
nas no Brasil, para além das magnitudes nos níveis de fecundidade, relaciona-se
às “tendências temporais. A população brasileira está atravessando uma acentua-
da transição demográfica. A fecundidade passou a declinar & partir da década de
1960, quando & TFT era de 6,3 (Duchiade, 1995), caindo para 2,3 em 1996
(Datasus, 2000). No caso dos povos indígenas, não há evidências que apontem
para um padrão de alteração da fecundidade de modo tão expressivo como 0 Oh—
servado entre os não-indígenas. Se nos pautarmos nos estudos de caso, o que se
observa, em algumas situações, e o inverso, ou seja, um aumento da fecundidade,
sobretudo em grupos que se recuperaram das graves crises associadas ao estabe—
lecimento do contato com a sociedade nacional (Flowers, 1994).
Não e demais ressaltar que as informações demográficas mencionadas
não são representativas do universo dos povos indígenas. Pelo contrário, são
geográfica e etnograficamente bastante circunscritas, referentes a grupos loca—
lizados sobretudo na região Amazônica. Praticamente inexistem informações
sobre a dinâmica demográfica de grupos localizados nas regiões Nordeste, Su-
deste e Sul. É possível que os padrões de fecundidade das mulheres indígenas
nessas regiões, e também na própria Amazônia, sejam distintos daquele deli—
neado anteriormente. Por exemplo, a redução do número médio de filhos no
Brasil ocorreu devido à difusão maciça de métodos anticoncepcionais, princi-
palmente & pílula e a esterilização por laqueadura tubária (Duchiade, 1995).
Até que ponto essas práticas e a esterilização, em particular, atingiram de for-
ma disseminada as mulheres indígenas nessas regiões, que concentram as maio-
res frequencias de esterilizações em não-indígenas, é algo desconhecido.
Com base nisso, pode-se concluir que, ao menos nos casos documenta—
dos, a tendência da demografia indígena caminha no sentido de manutenção
de altas TFT, divergindo de modo acentuado do que se verifica na população
brasileira em geral. A este fato pode-se adicionar a crescente politização do te-
ma do incremento populacional indígena. Apesar de não existirem pesquisas
mais aprofundadas sobre o tema, o posicionamento público dos militantes do
movimento indígena na Amazônia é de oposição à adoção de quaisquer práticas
contraceptivas, fazendo ressalvas, inclusive, ao uso de preservativos masculinos.
A ausência de estudos sistemáticos sobre o assunto não permite qual-
quer inferência sobre a penetração destas práticas nas comunidades. No en-
156
Questões de Saúde Reprodutiva da Mulher Indígena no Brasil
157
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
2000). Berquó, Araújo & Sorrentino (1995) observam que, em mulheres gestan-
tes, a malária pode ter como consequência um aumento das taxas de aborto es—
pontâneo, parto prematuro, baixo peso do recém-nascido e morte materna.
Os impactos sobre a saúde das mudanças socioculturais e ambientais
que se processam em praticamente todas as populações indígenas têm apon-
tando para elevadas taxas de morbi-mortalidade por doenças infecto-parasitá-
rias, elevada mortalidade infantil e desnutrição (Coimbra & Santos, 2001; Gu—
gelmin, Santos & Leite, 2001; Pithan et al., 1991). Em vários grupos, verifica-se,
concomitantemente, o aumento da incidência de doenças metabólicas (dia-
betes mellitus) e cardiovasculares, além de obesidade, alcoolismo e suicídio
(Aguiar & Souza, 2000; Coimbra Jr., Chor e Santos, 2001; Erthal, 2001; Santos
& Coimbra, 1996; Vieira-Filho, 1996). Esse quadro, ainda pouco conhecido, re—
veste-se de extrema complexidade e relevância, por suas implicações em todas
as fases de Vida da mulher e não apenas em seu ciclo reprodutivo. Por exemplo,
os riscos potencializados pela associação entre gravidez, obesidade e diabetes
são bastante conhecidos.
No que se refere especificamente à saúde reprodutiva da mulher indí-
gena, os pouquíssimos estudos disponíveis revelam um quadro alarmante, mar-
cado por elevadas prevalências de doenças sexualmente transmissíveis, lesões
ginecológicas de etiologia variada, mastopatias, além de queixas generalizadas
de dores no baixo ventre, dispareunia e leucorréia.
Por exemplo, um inquérito realizado em cerca de 90 mulheres Suruí
(Rondônia), em idade reprodutiva, evidenciou 42% das examinadas corn leucor-
réia, 56% com ectopia cervical, 12% com cicatriz cervical, 7% com cancro luéti—
co e 7% com dispareunia. Quanto à colpocitologia, os exames mostraram infec-
ções mistas por Trichomonas, Candida e/ou Gardnerella em aproximadamente
10% das mulheres. Alterações citopatológicas indicativas de infecção por HPV
foram registradas em cerca de 1,5% dos exames (Costa, Coimbra ]r. & Tsumori,
1991; Costa et al., 1993). No Pará, Brito et al. (1996) examinaram oitenta mulhe-
res Parakanâ, das quais cerca de 90% apresentaram alguma patologia cervical,
em geral de etiologia infecciosa. Chama a atenção & elevadíssima prevalência de
esfregaços corn evidências de infecção por HPV, da ordem de 23%.
Em inquérito realizado na população indígena do Alto Xingu, Taborda
et al. (2000) observaram quadro semelhante aos anteriormente descritos, qual
seja, proporção elevada de esfregaços vaginais (maior que 80%) apresentando
atipias celulares de natureza inflamatória, em geral decorrentes de infecções
sexualmente transmitidas. Vale ainda mencionar o inquérito soro-epidemioló-
gico para Chlamydia sp., realizado por Ishak et al. (1993) na população adulta
das etnias Kayapó—Xikrín, Kayapó—Kubenkrankégn e Parakanã, no Pará. Esse in-
153
Questões de Saúde Reprodutiva da Mu1her Indígena no Brasil
2 Por ocasião da VII] Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, o tema “Identidade e
Saúde da Mulher Indígena" foi pela primeira vez abordado durante reunião destinada a debater
saúde e direitos da mulher (Brasil, 1987). A esta Conferência seguiram-se reuniões regionais so—
bre as condições de vida da mulher indígena, promovidas por organizações nâo—governamen-
tais, nem sempre enfocando especificamente o tema da saúde (Iª Encontro de Mulheres Índias
do Amazonas e Roraima, 1990; Ramos, 1990). As Conferências Nacionais de Saúde do Índio, em
especial a última, realizada em 2001, também debateram aspectos da saúde reprodutiva da mu—
lher indígena. Em nenhuma dessas oportunidades, no entanto, os debates foram balizados a
partir dos marcos conceituais propostos no Cairo.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
prias das culturas indígenas, as quais devem ser levadas em conta no estabele-
cimento de uma política culturalmente sensível de saúde reprodutiva e saúde
da mulher.
Conforme mencionamos na introdução, a contribuição da antropologia
à saúde reprodutiva e à saúde da mulher indígena é restrita a uns poucos gru-
pos, em geral amazônicos, e não aprofunda questões específicas do campo da
saúde, em especial no tocante aos determinantes de doenças ou de outros
agravos. Trata, principalmente, de temas relacionados à inserção socioeconô—
mica e política da mulher nas sociedades indígenas, nos rituais e na constru-
ção cultural do corpo/gênero (vide Castro, 1987; Francheto, 1996; Hill, 2001;
McCallum, 1994; Murphy & Murphy, 1974; Perrin & Perruchon, 1997). Não
obstante, à luz da Conferência do Cairo, esse conjunto de estudos pode e deve
ser entendido como contribuições à saúde reprodutiva. Isso porque essas in-
formações oferecem um importante referencial teórico para subsidiar a formu-
lação de políticas públicas em saúde reprodutiva e sexual, assim como para o
planejamento e a programação destas ações nas comunidades indígenas.
Deve-se ainda ressaltar que, em seu conjunto, os estudos etnográficos
exploram aspectos culturais enfatizados pelos teóricos e militantes ligados ao
campo da saúde reprodutiva, que, além de alertarem para o risco de nos restrin-
girmos & uma pauta unicamente biomédica, também recomendam a adoção de
enfoques que levem em conta categorias como sexualidade, gênero, corporali-
dade e poder, dentre outras. Deve-se mencionar, no entanto, que os estudos
antropológicos disponíveis não são imediatamente operacionalizáveis pelos
profissionais diretamente vinculados ao subsistema de saúde indígena, exigin-
do um grande esforço de apreensão de seus sentidos e de reflexão sobre for—
mas possíveis de aplicá-los em ações de saúde. Além disso, a impossibilidade
de generalizá-IOS para além de seus contextos etnográficos particulares reforça
a necessidade de se empreenderem novos estudos, incluindo grupos do Nor-
deste, Sul e Sudeste do país, visando um melhor delineamento sobre o assunto.
Do ponto de Vista antropológico, deve-se também atentar para os ím-
pactos do processo de mudanças socioculturais pelos quais expressiva parcela
da população indígena no Brasil vem passando, particularmente nas múltiplas
esferas de atuação da mulher, com implicações diretas sobre sua saúde. Nesse
contexto, um aspecto que merece ser destacado é a redução do papel econô-
mico da mulher decorrente da reorientação da economia indígena para o mer-
cado, gerando uma diminuição da complementaridade de papéis na divisão
sexual do trabalho. Entre os Suruí de Rondônia, por exemplo, tal situação, de—
corrente da substituição da roça indígena (espaço de domínio eminentemente
feminino) pela monocultura cafeeira, seguida do comércio de madeira (ambas
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ETN1C1DADE NA AMÉRICA LATINA
3 Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro (1979) mostram como nas sociedades indígenas a no-
ção de 'indivíduo' é tomada por seu lado 'coletivo', ou seja, o indivíduo é um instrumento, um
complemento da categoria prioritária que é o “grupo social'. A produção de indivíduos só faz
sentido na medida em que eles se reconheçam e sejam reconhecidos como membros de uma
sociedade específica, à qual, obrigatoriamente, sua existência deve se referir. Assim, a noção de
indivíduo, tal como reconhecida no Ocidente, não faz sentido em sociedades cujos membros
são categorizados como 'pessoas culturalmente produzidas', cuja existência não é produto de
opção individual, mas sim de uma outorga da sociedade.
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Questões de Saúde Reprodutiva da Mulher Indígena no Brasil
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
4 Os Baniwa uti1izam () termo manheke para descrever a condição feminina. A tradução literal
para o português é *não pensa', isto é, uma pessoa irreftetida e egocêntrica, com escassa capaci—
dade de reHexão sobre as consequências de suas atitudes.
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ETNICÍDADE NA AMÉRICA LATINA
mulheres com as características das culturas aqui descritas? Como pode ser via-
bilizada & extensão dos direitos de contracepção e de decisão sobre a própria
Cºrporalidade em grupos cuja ordem social é fundada no controle de gênero?
Não existe uma resposta fácil para estas questões, particularmente porque elas
envolvem valores que não são partilhados por sociedades nâo-ocidentais.
As observações que fizemos sobre a condição feminina em algumas so-
ciedades indígenas rionegrinas não têm pretensão de generalização, pois, co—
mo tivemos a oportunidade de reiterar anteriormente, entre os povos indíge-
nas as situações são muito diversas, não havendo um padrão comum, aplicável
a todos os grupos existentes no Brasil. A presente discussão pretende apenas
exemplificar, chamar atenção para a necessidade de efetuarmos estudos siste-
máticos sobre produções culturais e saúde, onde muitas noções implícitas
nas políticas de saúde Vigentes —- sejam estas reprodutivas ou de outros tipos
— podem desempenhar um papel etnocêntrico. Para nos habilitarmos a pro—
por modelos de intervenção culturalmente sensíveis, teremos de ser capazes
de conhecer com maior precisão as sociedades a quem eles possam se desti-
nar, e de pactuar com seus membros as melhores formas de orientar a aplica—
ção de políticas de saúde reprodutiva, limitando, assim, os riscos de interven-
ções que —— mesmo baseadas, em tese, no respeito à cultura indígena — pos-
sam se mostrar agressivas aos fundamentos de ordens sociais que não nos ca-
be transformar.
Comentários finais
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7 Este é o caso, por exemplo, de prefeituras e secretarias de saúde, para as quais a alocação de
recursos adicionais necessários para garantir maior equidade no acesso dos povos indígenas
aos serviços de saúde e' considerada desnecessária, ou mesmo indesejável.
8 Por exemplo, a discriminação da categoria indígena no item 'cor' do censo nacional não ape—
nas é pouco operacional para sua utilização no subsistema de saúde indígena, mas também é
etnocêntrica, pois não deixa de ser uma agressão cultural essa redução simplificadora da diver-
sidade cultural indígena a uma condição genérica de “índio”, Visto sob o quesito 'cor'.
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Questões de Saúde Reprodutiva da Mulher Indígena no Brasil
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Direitos e relativismo
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Outro aspecto da situação dos povos indígenas que merece ser repensado e' o
rápido crescimento da população em determinados grupos. Este e um dos te-
mas mais provocantes do trabalho de Coimbra e Garnelo nesta colatênea, por-
181
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
que e' um assunto pouco reconhecido, mas que tem enorme repercussão na
política indigenista. A mídia e as políticas pró-índio geralmente enfatizam as
ameaças às populações indígenas, citando, inclusive, os grupos pequenos que
enfrentam a possibilidade de extinção do seu povo ou da sua cultura. Mas há
outra realidade menos salientada: a do rápido crescimento de alguns grupos,
consequencia de uma combinação de fatores que incluem a adaptação à situa-
ção de contato interétnico, a melhoria no acesso a serviços de saúde e na qua-
lidade da assistência, e a alta taxa de fecundidade. Entre os Wari' de Rondônia,
a população quase dobrou num período de pouco mais de 15 anos. Em 1985,
eram cerca de 1.100 pessoas; hoje, este número está acima de 2 mil.
Até agora, o crescimento das populações indígenas quase sempre foi
considerado bom, o que indica o sucesso de uma determinada política indige—
nista. Coimbra e Garnelo destacam, no entanto, os riscos de saúde enfrenta-
dos por mulheres que têm um parto seguido do outro. Além da importância de
difundir serviços de atenção pré-natal (Ribas et al., 2001), isso nos mostra a
necessidade de repensar a questão da fertilidade indígena e o acesso destas
comunidades a métodos anticoncepcionais. Será que a mulher indígena não
tem os mesmos direitos a informação e ao acesso & contraceptivos?
O fenômeno de crescimento das populações nativas tambem tem de ser
considerado no contexto da política geral sobre terras indígenas, assim como a
inserção das comunidades na economia regional. É óbvio que as populações
maiores vão precisar desenvolver novas maneiras de ganhar dinheiro e de am-
pliar suas atividades econômicas. A questão da saúde não pode ser tratada iso-
ladamente, sem coordenação e planejamento dos campos econômicos, educa-
tivos e do direito à terra.
Subsistência e nutrição são a base da saúde física e da manutenção da
cultura de todas as comunidades nativas. No passado, & auto-suficiência foi a
regra, mas o contato interétnico, as políticas governamentais e o processo de
modernização têm rompido os padrões tradicionais de ocupação e de utiliza-
ção da terra, enfraquecendo a capacidade das comunidades em manter o nível
de nutrição adequado. Qualquer política que enfraqueça a subsistência e at au—
to-suficiência prejudica especialmente as mulheres e as crianças, visto que
mulheres com filhos geralmente contam com poucas oportunidades de ganhar
dinheiro em suas próprias comunidades.
A estrutura dos serviços de saúde também afeta a subsistência, na me—
dida em que a centralização de tais serviços pode interferir nas atividades da
roça, da caça, da pesca e da colheita, que têm sido a base de subsistência em
comunidades tradicionais. As políticas da Fundação Nacional do Índio (Funai)
obrigaram os Wari' a se agruparem em aldeias muito maiores e mais sedentá-
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
produção e distribuição dos produtos da roça) para uma economia cuja pro-
dução visa o mercado comercial.
Como já foi enfatizado por outros autores desta coletânea, é altamente impor-
tante reconhecer a enorme variedade entre as comunidades nativas e evitar a
recriação de estereótipos típicos das culturas indígenas. A antropologia das
sociedades nativas do Brasil mostra a grande diversidade de experiências rela—
cionadas à organização política interna, aos padrões de casamento e às rela-
ções entre mulheres e homens, que são relevantes para a saúde reprodutiva.
Diante do desafio de contemplar as especificidades de cada contexto, é quase
impossível fazer generalizações sobre “índio' brasileiro, não somente por causa
das diferenças entre povos, línguas, culturas e situações históricas, mas tam-
bém pelo modo de vida, que está num processo de transformação rápida, com
o aumento do movimento entre as aldeias e as cidades, além de outras formas
de contato interétnico. A importância de planejar serviços, que vão ao encon-
tro das necessidades reais das mulheres indígenas, está intimamente ligada à
questão de como criar um sistema que seja altamente efetivo em termos dos
padrões biomédicos, e culturalmente apropriado em termos dos padrões dos
povos nativos. Com tanta variação entre os povos e as comunidades, como ca-
pacitar pessoas para trabalhar na área da saúde indígena?
Uma parte da resposta deve Vir de trabalhos antropológicos, de longo
prazo, sobre a cultura local. Os resultados devem ser apresentados a todas as
pessoas que trabalham no campo da saúde. Ou seja, precisamos de mais estu-
dos etnográficos que abordem dois assuntos geralmente negligenciados até
agora: saúde da mulher e gênero. Informações sobre tais aspetos da cultura e
do comportamento são especialmente relevantes para o planejamento de ações
e programas preventivos na área da saúde.
Reconhecendo a necessidade de mais comunicação entre os antropólo—
gos e os profissionais da saúde, Renato Athias & Marina Machado (2001) ob-
servam que há diferenças de perspectivas que dificultam o intercâmbio de in-
formação. A área da saúde centraliza seus discursos na organização e opera-
cionalização dos serviços e não leva em consideração o desenvolvimento de
sistemas locais capazes de contemplar a medicina indígena. Os antropólogos,
por sua vez, têm dificuldade de transmitir com maior clareza o conhecimento
relativo a uma 'geopolítica' indígena, que permitiria uma melhor compreensão
das ações de saúde em território específico (Athias & Machado, 2001). Além
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CORPO, FERTILIDADE E REPRODUÇÃO
ENTRE OS PANKARARU: PERSPECTIVAS E ALCANCES
Renato Athias
Introdução
1 Vale a pena lembrar que programas de saúde específicos para mulheres surgiram a partir de
1983, como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), com intenção de ir
além da contracepção e do pre-natal, desenvolvendo conceitos mais amplos de direitos repro-
dutivos.
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2 Saúde indígena esta sendo usado aqui como uma área de conhecimento específico engloban—
do não só serviços de saúde para os índios, mas também aspectos relacionados à medicina tra-
dicional praticada por essas populações.
3 As principais recomendações sobre o modeto de atenção à saúde indígena podem ser encon-
tradas nos documentos finais da 11 e da III Conferência de Saúde Indígena, realizadas em outu—
bro de 1993 e maio de 2001, respectivamente, em Luziânia (Goiás).
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Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
Perfil epidemiológico
4 Participaram dessa pesquisa, na sua primeira fase. as alunas do Programa Institucional de Bol—
sas de Iniciação Científica (Pibic): Celane Camarão, Marcela Zamboní e Luzia Albuquerque, do
curso de ciências sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
5 Relatório Final: Avaliação do Perfil Etnoepidemiológico de uma Comunidade Indígena do Es-
tado de Pernambuco, 1997, FNS/Cosai/Funai. Neste trabalho, utilizo Diagnóstico Sanitário (DS)
para referir a esta avaliação.
6 Segundo o censo realizado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), os Pankararu estão es-
timados em 4.016.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Rio São Francisco, não têm água suficiente para suprir as necessidades essen-
ciais. A busca pela água é uma atividade vital que envolve crianças e adultos,
ocupando grande parte das energias e do tempo dos Pankararu durante 0 dia e
a noite. Eles vivem da agricultura de subsistência e de trabalhos diaristas em
áreas circunvizinhas. Durante a seca, eles recebem (não todos) uma cesta bási—
ca do programa assistencial do Governo, uma vez que esta população está in-
cluída no mapa da fome.
Nos últimos anos, os Pankararu vêm se organizando em associações, que
visam principalmente angariar recursos de projetos governamentais destina-
dos ao semi—árido. Apesar dessas organizações e de um movimento associati-
vista bastante acentuado, o faccionalismo — existente em muitas áreas indíge—
nas — ali também está presente. E como em todo o sertão, as facções são os
alvos prediletos dos interesses de grupos políticos partidários. Apesar de toda
essa situação, percebe-se entre os Pankararu um sentimento muito forte de
identidade manifestada em festas tradicionais, como as danças do Tore, as ce-
lebrações do Menino do Rancho e a Festa da Corrida do Imbu, que ocorrem
anualmente. Pelo menos uma vez por ano, os Pankararu são reconhecidos e re-
verenciados no município durante as celebrações da festa da padroeira de Ta-
caratu, que ocorre no mês de janeiro. Oficialmente, são os Pankararu que fa-
zem a abertura da referida festa.
Os Pankararu se caracterizam por uma população jovem,7 o que signifi-
ca que há um crescimento demográfico importante. Esse crescimento convive
também com um processo migratório significativo. Muitos Pankararu migraram
para São Paulo, onde existem cerca de 800 indivíduos residindo em uma favela
(Real do Parque/Murumbi) na capital paulista. As moradias Pankararu não di-
ferem muito das casas dos sertanejos da região. Notam-se precárias condições
nas construções das mesmas e no saneamento básico. Observa-se uma razoável
adequação na relação entre o número de habitantes e o número de cômodos
disponíveis por domicílio. No entanto, apenas 8%, de acordo com a amostra
do DS, possui banheiro no seu interior, e 8% o possui externamente, signifi—
cando que 84% das casas não dispõe de banheiro/sanitário. Outro fato que o
referido estudo revela refere-se à água utilizada no uso doméstico. Apenas
20,8% das famílias utilizam água filtrada ou fervida. A prática de 'coar :; água'
em pano limpo para beber é realizada por 30% das famílias, obedecendo à cul—
7 Praticamente 70% dos Pankararu apresentam idade inferior a 30 anos, de acordo com o Diag.
nóstico Sanitário da Fundação Nacional de Saúde (FNS), 1996.
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Corpo. Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATtNA
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Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
dendo ainda ser Vista como um ato de iniciação para os meninos. Há muito or-
gulho de um Pankararu ao se referir que ele foi 'colocado' no rancho. Esta fes—
ta também está associada à procura da noiva, pois, durante a celebração, 0 me-
nino é apresentado a uma menina que participa da festa. E esta menina é cha—
mada de *noiva do menino do rancho'. Nesta celebração, os praiás, dançando
no terreiro, procuram pegar o menino, e este é defendido pelos seus padri-
nhos, gerando, assim, uma luta física entre praiás e padrinhos. Quanto maior
for o número de padrinhos, menor será a possibilidade dos praiás reterem o
menino.
A morte é vista como um renascimento para o mundo dos encantados.
As pessoas que morrem vão procurar moradia nos lugares dos encantados, nas
serras e nas cachoeiras. As doenças podem ser tratadas na medida em que os
encantados são chamados, através das intermediações dos praias ern manifes-
tações públicas e privadas.
Os curadores e as benzedeíras estão fortemente presentes na cultura
Pankararu, sendo os primeiros a serem procurados para tratar as doenças, co-
mo já nos referimos anteriormente. Estes dominam o conhecimento específico
das ervas que curam, e incorporam11 também os encantados, para realizar a
cura. Percebe-se nestas manifestações um forte sincretismo religioso relacio—
nado ao catolicismo e as manifestações afro-brasileiras.
Sistemas médicos
11 Este 'incorporar' não pode ser confundido com as manifestações que ocorrem em celebra-
ções das religiões afro-brasíleiras.
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Reprodução e sexualidade
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Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
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Uma vez estabelecidas todas essas relações, podemos então buscar ete-
mentos significativos no campo da vida sexual e reprodutiva de mulheres e ho-
mens, importantes na concepção de programas de saúde para a região. Não se
trata simplesmente de buscar soluções ou propostas no campo da contracep-
ção, e sim ampliar o foco para a necessidade de políticas sociais, sobretudo no
campo da educação e da saúde, formuladas sob uma perspectiva de gênero. As
informações disponibilizadas a seguir são resultados de uma pesquisa qualita-
tiva envolvendo mulheres de seis aldeias Pankararu (Espinheiro, Serrinha, Bre-
jo dos Padres, Saco, Tapera e Carrapateira). Elas foram coletadas em entrevistas
e grupos de discussão envolvendo cerca de 66 mulheres, no período de 1998 a
2000.
198
Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
mais gosto", disse uma das entrevistadas. Algumas'foram à “Igreja Verde' —— ter-
mo usado para referir que a relação sexual foi realizada no mato — e se casa-
ram logo em seguida. Participar da *Igreja Verde' parece ser um comportamen—
to aceito por todas, mas não abertamente.
Não há uma repressão, do tipo 'tem que ficar escondido'. No entanto,
houve entrevistadas que ressaltaram a importância da virgindade no casamen—
to. “Quando não for virgem, pode ser devolvida", disse uma delas. A Virgindade
pode ser um ideal, porém não e uma questão colocada como importante. Há
várias mães solteiras na região, cujos filhos são criados pelas avós. Porém, há
relatos de casos de rapazes que devolveram a esposa ao saberem que elas não
eram virgens. A maioria das mulheres entrevistadas foi noiva, com o tradicional
pedido aos pais. A recordação das mulheres entrevistadas com relação ao pró-
prio namoro e a experiência sexual antes do casamento leva a três afirmações:
a) namoro só com a permissão dos pais; b) só tocar na mão e não beijar; c) se-
xo só depois de casada.
A idade para o casamento situa—se entre os 15 e 18 anos. Porém, esta
faixa etária parece estar mudando: as entrevistadas mais novas preferem casar
mais tarde. Não querem seguir o exemplo dos pais. Aí se percebe uma mudan-
ça no comportamento até mesmo dos próprios pais. “Elas vão se casar quando
tiverem terminado a escola e se arrumado na vida". É uma mudança que leva
em conta a situação econômica das famílias. “Devido às constantes secas, des-
de 1985, a terra não tem mais um ritmo", disse um senhor do Brejo dos Padres.
A população está muito mais empobrecida, sobretudo quem tinha animais e
até hoje não conseguiu se recuperar economicamente. Como nos informa João
Oliveira, do Brejo dos Padres, a produção agrícola não “dá como antes", agora,
"apenas aqueles que estão na produção de frutas conseguem alguma coisa, e
assim mesmo é pouco".
A falta de informações e registros sobre a produção agrícola da área
indígena dificulta determinar a relação entre a produção e a procura de par-
ceiro. As moças e os rapazes com os quais mantivemos contato preferem dizer
que não querem trabalhar na roça. É um trabalho cansativo e que rende pou-
co. Existe, sim, uma procura por empregos, o que faz com que os jovens prefi—
ram estudar mais para conseguir uma profissão. As moças que ainda se dedi—
cam à roça continuam casando cedo. Foi percebida a existência de um ritual
do casamento na área. As mulheres que moram no Brejo dos Padres relataram
que, no dia do casamento, vão à bica (uma queda d'água) em uma das fontes
existentes, acompanhando os noivos para que tomem um banho e se lavem
antes'da cerimônia. Existe também um cortejo que acompanha os noivos até
a igreja.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
O aborto não é aceito entre todos da área, embora exista uma serie de
tratamentos tradicionais conhecidos pelas mulheres para se abortar. Nas rela—
ções sexuais antes do casamento, certamente houve precauções a respeito da
gravidez. No entanto, as mulheres não precisaram quais métodos foram utiliza—
dos. Engravidar, com certeza, significaria casamento em seguida. Sem o con-
sentimento dos pais, isso seria arriscado e provocaria um desequilíbrio na or—
dern familiar.
Uma das condições para a formação de um novo grupo doméstico e' ter
a casa, o local de moradia. Neste aspecto, os homens dizem que casam tão 10-
go tenham condições de manter a casa. As casas dos filhos (há uma preferên-
cia para & Virilocalidade) estão ocupando pedaços de terras que outrora eram
usados para o plantio. A falta de terras se tornou uma pressão muito grande.
As terras situadas na aldeia Brejo dos Padres parecem ser as mais férteis da
região, que hoje esta com uma densidade populacional considerável. Muitos
moradores do Brejo, e mesmo os do Saco dos Barros, têm suas roças na área
do Caldeirão — recém-desapropriada pela Fundação Nacional do Índio
(Funai). Ainda é cedo para confirmar essas observações, pois não se fez uma
análise mais detalhada sobre o local de moradia dos recém-casados. Mas, ge—
ralmente, eles vão habitar no local do pai do marido. Os recém-casados que
atualmente estão morando no local do pai da esposa são poucos. As filhas viú-
vas ou solteiras fazem suas casas na área considerada da família. O caso da fa-
mília do Sr. X. é bastante ilustrativo. Uma de suas filhas reside sozinha com os
filhos, em uma casa na área da família. Este fato é permitido ou tolerado. O
marido há algum tempo a deixou. A declaração do pai serve como exemplo:
"Viu? Ela foi atrás de quem não era para ir, veja como está hoje, sozinha". As
mulheres que assumiram um parceiro sem o consentimento dos pais tiveram
de deixar a casa.
Temos observado que a escolha de parceiros sexuais está relacionada
com a posse de terras. Os Pankararu estão estimados em 4 mil indivíduos, mo—
ram em 14 mil hectares de terras, situadas nas serras, com pouca capacidade
produtiva, o que faz com que as terras com possibilidade de agricultura pas-
sem a ter um valor considerável nas uniões matrimoniais. As melhores áreas
ainda estão ocupadas por posseiros. Ter terra para plantar e uma busca cons-
tante entre os Pankararu, sobretudo se o ano é considerado bom para o plan-
tio, ou seja, quando as chuvas vêm no tempo certo. É importante casar os fi—
lhos, mais precisamente as filhas, com pessoas que possuam terras, uma vez
que está havendo uma subdivisão de terras entre os filhos. Terra e casamento
parecem estar intimamente relacionados, daí a necessidade dos pais em parti-
cipar ativamente da escolha dos futuros genros e noras. Outro motivo para
200
Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
Gravidez e parto
A maioria das entrevistadas tem mais de oito filhos. Ter muitos filhos, além de
representar riqueza, significa dispor de muitas pessoas para cuidar do pai ou
da mãe na velhice. É considerado normal o grande número de filhos entre os
Pankararu, pelo menos entre as mulheres mais idosas. São os filhos que garan-
tem a continuidade na terra. Ter muitos filhos está associado também à garan-
tia de terras, que se traduz em recursos alimentares. O trabalho começa cedo.
Para aqueles que trabalham na terra, ter muitos braços significa aumentar a
produção. Essa característica pode ser vista entre os sertanejos. Os Pankararu
também seguem esses comportamentos. As mulheres mais novas e aquelas que
ainda não casaram não pensam da mesma maneira. O número de filhos que
elas esperam ter e' bem menor do que o de seus país. Foi observado que as mu-
lheres sempre contam os abortos no total de filhos tidos. Não fazem distinção
entre os filhos que nasceram e os que em seguida ao nascimento morreram, ou
mesmo os que foram abortados. É comum escutar: “eu tive oito filhos, seis es-
tão Vivos e dois morreram".
Foi comum nos relatos das entrevistadas a referência a uma adolescên—
cia saudável. A menarca ocorre entre 11 e 15 anos. E celebrada e indica a pos-
sibilidade de reprodução e um passo para a identidade feminina. Restrições
alimentares foram referidas pelas mães e por outras mulheres mais experientes
no período da menstruação: se chupar manga, dá corrimento e aumenta o flu-
xo; se comer certos tipos de peixe — curumatá, cari, surubim —, dá coceira e
cólica; a pinha diminui o fluxo; também não é bom comer feijão de corda, um-
bu e ovo. As alternativas para a cólica menstrual são os chás de hortelã, mace—
ta, aroeira, pimenta-do-reino e arruda, além do “remédio comprado na
farmácia'. Para o corrimento e a coceira, procura-se tomar banho com vinagre
ou algumas ervas e água.
As pessoas entrevistadas referem—se ao sangue como sendo 'fino' ou
'grosso'. O sangue fino e' bom e o grosso e' considerado com possibilidades de
problemas. O sangue grosso está associado a doenças de pele, como coceiras
no braço, no antebraço, na virilha e nas pernas. Para “afinar o sangue', usa-se o
chá de erva de mororó ou erva-cidreira batida no liquidificador. De acordo
com o conhecimento local, as mulheres dizem que o sangue de criança é mais
201
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATtNA
202
Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
Muita gente da Tapera [uma das aldeias] e de Itaparica [cidade próxima à área]
escolhe X, que e' parteira no hospital de Itaparica. Mesmo de folga, não pode sair
de casa porque já tem a sua clientela que pode chamar a qualquer momento. Tor—
nou—se parteira depois de ter os filhos. Para ela e' muito melhor ter filho no hospi—
tal, porque se tiver hemorragia, por exemplo, toma vitamina K, entre outras pre-
cauções que em casa não tem.
Ela ficou três dias em casa sofrendo pra ter o filho com a parteira. Quando foi pro
hospital, passou mais dois dias e o menino não nascia. Aí a enfermeira tirou ofilho
com o ferro e, na ignorância, machucou a cabeça do menino e ele ficou doente do
jeito que e. Os outros dois filhos foram em casa.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
Práticas terapêuticas
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ETNICtDADE NA AMÉRICA LATINA
ser os mais famosos entre os praias. A referência ao maracá e' importante: “os
curadores têm o maracá e chamam os encantados deles, encruzam a criança e
rezam".
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Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
tações simbólicas que acompanhará o indivíduo por toda a vida. Os mais ve-
lhos cuidam dos mais novos, e uma criança que está fugindo do comportamen-
to aceito como norma] será levada a um especialista (curador ou benzedeira)
para lhe “fechar o corpo” contra espíritos, doenças e mau—olhados. De uma al-
deia indígena, no interior de uma floresta, até uma cidade extremamente urba-
nizada, podemos verificar os mesmos comportamentos com roupagens dife-
rentes.
Vale lembrar que o debate situando o corpo (Leal, 1995; Paim, 1998) co—
mo tema de políticas públicas de saúde se instalou no Brasil a partir do movi-
mento feminista, nos anos 1980. Basicamente, colocava—se que as mulheres de-
veriam decidir sobre suas opções reprodutivas e sexuais. Esse movimento teve
características urbanas. No meio rural, muitas mulheres nem mesmo enten-
diam essas reivindicações, uma vez que estavam vivendo em um regime patriar-
cal característico do mundo camponês, submetidas à vontade de seus maridos.
Essas mulheres representam seus corpos a partir de suas experiências relacio—
nadas com um universo simbólico distinto das mulheres urbanas, submetendo—
se & intervenções que não levam em conta sua identidade étnica e a relação
que mantém com os valores de seu grupo social.
Essa dissociação das reivindicações do movimento de mulheres sobre a
possibilidade de escolher as opções reprodutivas e sexuais ainda situa-se em
descompasso entre o campo e a cidade, sobretudo entre as populações indíge-
nas. Nas áreas indígenas do Nordeste, o atendimento se dá através da rede do
Sistema Único de Saúde (SUS), onde não há uma preocupação com a realidade
étnica epidemiológica. Saúde reprodutiva e etnia ainda são áreas de conheci-
mento em construção. Ambas necessitam de pesquisas apropriadas para que
fundamentem o desenvolvimento de programas de saúde reprodutiva entre as
populações indígenas. Desta forma, essas populações serão envolvidas no atual
debate sobre os direitos reprodutivos, podendo, assim, incluir saúde e etnia na
grade temática já desenvolvida por Corrêa (1996), que relaciona saúde e direi-
tos, reprodução e sexualidade Acrescentaríamos, ainda, cultura e etnia na dis—
cussão sobre políticas públicas de saúde.
O que se percebe é que a proposta de atenção diferenciada, tal como
prevista no modelo atual dos Distritos Sanitários Indígenas, vem enfrentando
dificuldades para concretizar—se nas diversas áreas do país. Acredita-se que as
principais dificuldades estão na ausência de orçamento específico para a im-
plantação de programas de saúde específicos e na qualidade dos recursos hu-
manos, com capacitação para atuar em áreas etnicamente diferenciadas. Os
esforços realizados esbarram na alta rotatividade do pessoal médico, que atua
nas áreas indígenas. Tal fato é resultado da falta de acompanhamento técnico,
207
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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Corpo, Fertilidade e Reprodução entre os Pankararu
Referências bibliográficas
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Políticas Públicas de Saúde Indígena
mente, os casos mais sérios deveriam ser encaminhados às Casas do Índio nos
Centros Regionais da Funai.
Porém, na época da Primeira Conferência, a situação da saúde indíge—
na era precária e os serviços se caracterizavam pela falta de uma rede eficien—
te de atendimento, de uma infra-estrutura adequada nas áreas, de profissio-
nais preparados para trabalhar com a especificidade cultural das várias etnias
e de recursos financeiros. Tampouco existiam dados sobre a situação epide—
miológica desses grupos e nenhuma instituição era encarregada de centrali-
zar os dados. Ainda mais, a Funai, com seus vários problemas, estava incapaci-
tada para atender as necessidades de saúde dos índios, em estado lamentável
devido a fatores como a marginalização, a perda de território, as mudanças
ambientais, a consequente perda das técnicas tradicionais de subsistência e a
exploração por parte da sociedade envolvente. Essa situação deteriorada era
vivida pelos Pankararu no final dos anos 1990, e a pesquisa de Renato Athias
representa um estudo de caso que se pode generalizar para a maior parte dos
povos indígenas.
A Primeira Conferência contou com um número considerável de repre-
sentantes indígenas (na maior parte homens) e funcionários da Funai e do Mi-
nistério da Saúde, profissionais da saúde, antropólogos e membros de organi-
zações não-governamentais que trabalham junto às comunidades indígenas. A
participação indígena — indicando o crescimento da força política das suas
organizações no país, notadamente a União das Nações Indígenas (1988) —
foi importante para as conclusões da Conferência, entre as quais gostaria de
ressaltar três que apontam os caminhos adotados pela legislação de saúde indí-
gena nos últimos 15 anos: 1) a necessidade urgente da implantação de um sub-
sistema específico, com a criação de uma agência para esse fim, vinculada ao
gestor do SUS, que garanta ao índio o direito universal a saúde; 2) a necessida-
de de um modelo de atenção diferenciada que respeite as especificidades cul-
turais e práticas tradicionais de cada grupo; e 3) a inclusão das comunidades
no planejamento, na gestão, na execução e na avaliação dos serviços de saúde.
Para realizar a primeira recomendação, foi sugerida a organização de
um subsistema através de Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), Para
a segunda e a terceira, foi sugerida a incorporação de índios no atendimento e
no acompanhamento do processo por antropólogos. Essas propostas foram in—
corporadas pela Assembléia Nacional Constituinte em 1988, que criou o SUS e
garantiu aos povos indígenas o direito de atenção integral e diferenciada em
relação à saúde.
Entre essa conferência e a criação dos Distritos Sanitários em 1999,
onze anos depois, a administração e a gerência de saúde indígena passaram
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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Políticas Públicas de Saúde Indígena
1 Veja Athias & Machado (2001) para uma comparação entre o Rio Negro e Pernambuco.
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LAT1NA
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Políticas Públicas de Saúde Indígena
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
das mortes durante o primeiro ano de vida. Para todas as etnias estudadas, re-
gistrou—se uma concentração de 58,9% das mortes na faixa etária entre 0-5
anos.2
Em geral, há uma falta de dados epidemiológicos sobre a situação de
saúde dos índios, impossibilitando serviços orientados às necessidades espe-
cíficas. A falta de dados que abordam especificamente doenças na área de se—
xualidade e reprodução dos Pankararu pode ser generalizada para os outros
povos indígenas. Porém, certos dados indicam que os povos com contato fre-
quente ou contínuo com a sociedade envolvente têm taxas altas de DST e,
conforme mencionado, há um risco grande de uma epidemia de Aids entre
eles. O primeiro caso oficial de infecção por Aids entre as comunidades indí—
genas foi registrado em 1986, em Santa Catarina, e descobriu—se ter sido con-
traído através do contato de um índio com uma prostituta soropositiva. A aná-
lise desse caso demonstra as causas sociais da doença, evidenciando resulta-
rem das relações do grupo com a sociedade envolvente (Wiik, 2001; Langdon
& Rojas, 1991).
Há grandes dificuldades para se aferir exatamente quantos casos de
Aids existem entre os indígenas. Falta uma rede adequada para identificação
de doentes, e os índios, frequentemente, têm pouca experiência com a doença
(Langdon, 1997). No entanto, sabemos os caminhos de entrada: prostituição
das moças indígenas, migração e visitas dos índios aos centros urbanos, pre-
sença de garimpeiros e obreiros nas áreas indígenas, práticas e valores sexuais
diferentes, situação minoritária caracterizada por exploração e dominação, al-
coolismo, entre outros (Leonardi, 2000).3
O aumento da Aids entre os povos indígenas ret1ete as tendências glo—
bais da epidemia. Noventa e cinco por cento dos casos se encontram entre a
população pobre, marginatizada, discriminada e do terceiro mundo (Connors
& McGrath, 1997).
Há também uma feminilização da epidemia,particu1armente entre as
mulheres pobres e socialmente marginalizadas. Pesquisas no Brasil citam como
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Considerações finais
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Políticas Públicas de Saúde Indígena
Referências bibliográficas
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Parte IV SAÚDE REPRODUTIVA E POPULAÇÃO NEGRA
11
Introdução
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A Relação entre Cor da Pete/Raça e Esterilização no Brasil
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Os principais estudos
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A Relação entre Cor da Pele/Raça e Esterilização no Brasil
quó, 199 3). Alé m diss o, não for am enc ont rad as dif ere nça s est ati sti cam ent e sign ifi-
cantes entre os dois grupos, controlando-se por educação e renda mensal.
Usando dados da PNDS 1996, Berquó (1999) discute a concentração da
contracepção na esterilização e na pílula, enfatizando que este fenômeno é ni—
tidamente mais acentuado no seio da população negra. A proporção de mulhe-
res neg ras laq uea das aum ent ou, qua ndo com par ada à pro por ção de bra nca s,
tan to em áre as urb ana s qua nto rura is. Ade mai s, as neg ras apr ese nta vam um a
mai or pro por ção de laq uea das nos seg men tos com mai or gra u de esc ola rid ade ,
em relação ao mesmo segmento de mulheres brancas. Entre as mulheres com
menos anos de estudo, não foram encontradas diferenças substanciais.
Cavenaghi (1997) realizou um estudo metodologicamente rigoroso sobre
a ass oci açã o ent re este rili zaçã o e raç a/c or. Par tin do da hip óte se da exi stê nci a de
um plano de “esterilização em massa' e usando dados da PNAD 1986, que utiliza
a autoclassificação para a informação sobre cor da pele, e da Pesquisa sobre Saú—
de Familiar no Nordeste, 1991, a qual emprega a classificação do entrevistador, &
autora implementou modelos logísticos e de sobrevivência para testar a existên-
cia de diferenças na chance de esterilização entre mulheres brancas, pardas e
pretas, qua ndo out ras vari ávei s int erv eni ent es são man tid as con sta nte s. Cav ena g-
hi fez uso de duas medidas diferentes de exposição ao evento em sua análise de
sobrevivência. Quando examina os dados da PNAD 1986, ela principia o período
de exposição no 1511 aniversário da entrevistada. Quando analisa os dados da
PNDS 1991, a duração se inicia no nascimento do primeiro filho. Os modelos de
sobrevivê nci a e logí stic os não mos tra ram dif ere nça s sig nif ica nte s por cor da pe-
le, ne m par a os dad os da PN AD 198 6 ne m par a os da PN DS 199 1. Ent ret ant o, a
aut ora enc ont rou que mul her es par das e pre tas são men os pro váv eis de usa r mé-
todos contraceptivos, quando comparadas às brancas.
As principais fontes de dados sobre raça/cor da pele no Brasil são os censos de-
mográficos e as PNA Ds. A clas sifi caçã o por raç a/c or nos cen sos bras ilei ros e nas
PNADs e' bas ead a na aut ocl ass ifi caç ão, com opç ões de res pos ta pré -co dif ica das
(branc o, par do, pre to, ama rel o e ind íge na) . São rar as as pes qui sas amo str ais
com rep res ent ati vid ade nac ion al que usa m amb os os tip os de cla ssi fic açã o (au -
toc las síf ica ção e cla ssi fic açã o do ent rev ist ado r), uma del as sen do a PN DS 199 6.
Esta pesquisa entrevistou 12.612 mulheres entre 15 e 49 anos. A Tabela 1 apre-
senta a distribuição percentual deste total de mulheres de acordo com a auto-
classificação de cor da pele, segundo a classificação do entrevistador.
235
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Tabela 1
&
De acordo com a tabela acima, a mudança líquida total entre esses dois
tipos de classificação é de 2,2%. Há menos mulheres pardas quando a classifi-
cação do entrevistador é utilizada (51,3%), se comparada com & autoclassi
fica-
ção (53,5%). De fato, 0,9% daquelas mulheres classificadas como pretas pe
lo
entrevistador se autoclassifícaram como pardas, ao passo que os en
trevistado—
res classificaram como pardas 1,3% das entrevistadas que se autoctassifi
caram
como brancas.
As primeiras três linhas da Tabela 1 indicam que as inconsistências na
classificação são maiores quando comparadas às mudanças líquidas que ap
a—
recem nos totais marginais. Entre aquelas classificadas como brancas, 11,4
%
se autoclassificaram como pardas. Entre as classificadas como pretas, 37
,5%
se classificaram como pardas. A mudança da classificação do entrevistado
r
como parda para autoclassificação como branca também e significativa
(7,2%).
A respeito destes movimentos, dependendo do tipo de classificação uti—
lizada, Silva (1999) argumenta que a avaliação sobre raça/cor no Brasil e
in-
fluenciada pela condição socioeconômica do entrevistador e do entrev
istado.
Dado um determinado fenótipo, quanto melhor a aparente posição socioe
co—
nômica do entrevistado, maior a tendência do entrevistador em classific
á-lo
em uma categoria *mais clara', e Vice-Versa. As principais diferenças ad
vindas
da classificação do entrevistador e a do entrevistado seriam de que este últi
mo
tende a se *clarear' na medida em que sua condição socioeconômica seja
me—
lhor e a se *escurecer' na medida em que sua condição seja pior (S
ansone,
236
A Relação entre Cor da Pele/Raça e Esterilização no Brasil
Tabela 2
Classificação » Autoclassificação
do entrevistador Brancas Fardas Pretas Total
Fonte:PNDS,1996.
237
ETNICtDADE NA AMÉRICA LAT1NA
Métodos
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A Relação entre Cor da Pele/Raça e Esterilização no Brasil
239
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Resultados
240
A Retação entre Cor da PeIe/Raça e Esterilização no Brasil
Tabela 3
Razões de risco de esterilização feminina ajustadas pelos modelos de regressão de Cox para mulheres
entre 15 e 49 anos com pelo menos um nascido vivo, autoclassifícação de raça/cor. Brasil, 1996
241
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Ta bela 4
Discussão
O objetivo central deste trabalho foi examinar o efeito diferencial das diversas
categorias da variável raça/cor, segundo as diferentes formas de captação des—
ta informação, sobre o risco de esterilização. Os resultados indicam que as mu—
lheres perdas têm risco estatisticamente significante e superior ao das mulhe—
res brancas, independente da forma de obtenção da informação sobre raça/cor
e controlando-se por fatores regionais, demográficos e socioeconômicos. As
mulheres pretas, por sua vez, apresentam risco de esterilização estatisticamen—
te significante e menor do que o das brancas quando se utiliza a classificação
de cor 'consistente', o que pode estar indicando obstáculos e dificuldades de
acesso, por parte deste grupo de mulheres, até mesmo à esterilização.
Como é o caso no mercado de trabalho e nas oportunidades educacio-
nais, a população negra enfrenta sérias desvantagens e dificuldades também no
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A Relação entre Cor da PeIe/Raça e Esterilização no Brasil
Tabela 5
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
terilização. Como pode ser observado na Tabela 6, entre as mulheres com pelo
menos um nascimento vivo, as brancas apresentam o menor percentual de não
uso de método contraceptivo e são as mais prováveis de estarem usando a pílu-
la ou outro método moderno. Já as pardas têm a maior proporção de mulheres
esterilizadas, ao passo que as pretas têm a maior chance de não estarem fazen—
do uso de qualquer método contraceptivo.3
Tabela 6
_—__—______________________
Distribuição percentual da prevalência de métodos antíconcepcíonais entre mulheres
de 15 a 49 anos de idade com pelo menos um filho nascido vívo, segundo a autoclassitícação
de cor/raça. Brasil, 1996*
3 O não uso de anticoncepcional pode ser voluntário, pode ser devido a efeitos da composição
etária e da distribuição segundo a situação conjugal, finalmente, pode ser resultante de inci-
dências diferenciadas de afecções do aparelho reprodutivo feminino entre as mulheres pretas.
Estas alternativas foram averiguadas, não tendo sido detectadas diferenças substanciais entre
os três grupos.
244
A Relação entre Cor da Pete/Raça e Esterilização no Brasil
245
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
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246
A Relação entre Cor da Pele/Raça e Esterilização no Brasil
247
12
Os marcos do debate
249
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
250
Entre a *Concertação' Perversa e () Varejo Potítico
Uma das muitas facetas deste debate diz respeito às relações entre um ato ci-
rúrgico (& laqueadura tubária) não regulamentado pelo marco legal ate' 1997 e
o envolvimento dos profissionais da saúde com a cobrança ilegal de honorá-
rios no interior de unidades de saúde que integram um sistema de saúde que
se pretende universal (ou seja, a saúde constitui um direito, inclusive constitu—
cional, de qualquer cidadão brasileiro), gratuito e que tem a esfera pública co-
mo eixo regulador e componente essencial do ponto de vista da prestação di-
reta de assistência. Se, por um lado, tais atos cirúrgicos, quando remunerados,
explicitam acordos perversos no interior deste sistema — ou a ausência de
instâncias reguladoras efetivas —, por outro, uma vez 'gratuitos' (ou, pelo me-
nos, na ausência de remuneração direta do ato por parte da clientela), teste-
munham estratégias do varejo do clientelismo político e da corrupção."
Ou seja, estamos no “pior dos mundos': a população, que não conta com
outras alternativas de planejamento familiar (uma conclusão comum à ampla
maioria das pesquisas) e encontra na esterilização & única saída, oscilaria en-
tre & conivência com atos antiéticos dos profissionais da saúde e o clientelis-
mo político.
Dadas as disparidades socioeconômicas observadas em nosso país e o
papel central do clientelismo nas regiões e localidades mais pobres, não é de
se estranhar que as laqueaduras pagas se concentrem no Sudeste, ao passo
que as gratuitas sejam particularmente frequentes no Nordeste e nas comuni-
dades empobrecidas.
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Entre a 'Concertação' Perversa e o Varejo Político
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Entre a 'Concertação' Perversa e o Varejo Político
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Referências bibliográficas
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13
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Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Tabela 1
___—___—
Quintis Zona Leste Zona Centro- Zona das Zona do Total (Cáli)
Leste Encostas Corredor
———-——_—_—__________.
Dom. Dom. Dom. Dom. Dom. Dom, Dom. Dom. Dom, Dom.
afro não—afro afro não-atro afro não-afro afro não-afro afro não-afro
_—-—_________.__——____
Quíntíl 1 30,4 26,0 16,4 13,4 36,4 18,5 7,9 12,4 23,1 18,1
Quíntil 2 30,5 23,0 17,9 14,4 24,0 32,8 10,3 9,7 22,9 18,2
%acumulada (60,9) (49,0) (34,3) (27,8) (60,4) (51,3) (18,2) (22,1) (46,0) (36,3)
quíntís1e2
Quíntil 3 22,8 22,6 21,2 19,9 21 ,O 20,8 22,3 14,2 22,2 19,1
Quintil 4 11,9 18,2 23,8 29,5 14,9 15,9 26,4 20,3 17,9 21,2
Quintil 5 4,4 10,2 20,7 22,9 3,7 11,6 33,1 43,4 13,9 23,4
%acumulada (16,3) (28,4) (44,5) (52,4) (18,6) (27,5) (59,5) (63,7) (31,8) (44,6)
quintis4e5
Tota|(Cá|i) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
—————_———_-—____
259
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
260
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Tabela 2
Taxas de dependência juvenil (menores de 20 anos) e índices masculinos totais por zonas urbanas
e tipos de domicílio (domicmos afro-colombianos e não-afro-cotombianos)*. Cáli, 1999
261
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Mapa 1
População estimada de domícnios com população negra, por setor censitário. Cáti, 1998
1Km
14
45,90
35,00
32,00
27,00
25,00
22,00
[3 20,00
E 16,30
O Zonas distritais
262
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
263
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
8 Nessa amostra de estudantes, pelo menos 65% eram rapazes e moças negros e mulatos (126
dentre 194 alunos), residentes em bairros de classes muito baixas, classes baixas e classes mé-
dias baixas, por volta de 1992.
264
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Tabela 3
_______________.___..__—-—_———-—————-——
Dados sobre ter ou não havido relações sexuais entre estudantes adolescentes,
conforme o sexo e o grupo etário (com experiência de penetração)
___________________-_—-_—————————
Moças
11-14 1 3,3 29 96,7 30 100,0
15-19 7 13,2 46 86,8 53 100,0
Total 8 9,6 75 90,4 83 100,0
——
____________________._._______-—-—-_-———
centes tinham procurado fazer com que as parceiras usassem a pílula e ape-
nas uma moça a havia tomado. Outra relatou o uso de injeções, e dois rapazes
disseram ter pedido que as moças as utilizassem. Assim, observou-se que, para
alguns desses jovens estudantes, era a mulher quem devia assumir a responsa—
bilidade pelo uso de métodos anticoncepcionais e pela prevenção das DST.
Todavia, o mais preocupante acerca desses adolescentes escolarizados
da Zona Leste da cidade, no tocante a indagação sobre o uso de anticoncep-
cionais, é que 66% dos que haviam mantido relações sexuais disseram não ter
usado qualquer tipo de método anticoncepcional. Indagados sobre seus co—
nhecimentos acerca da prevenção de DST, apenas 22,7% (16 casos) mencio-
naram o preservativo; 17,5% (13 casos) disseram manter “uma relação estável”;
4,1% (três casos) informaram ”não ter tido relações"; 7,2% (cinco casos) res-
ponderam “manter relações com pessoas asseadas", como forma de prevenção
dessas enfermidades; por último, 27,8% (20 casos) não responderam à per—
gunta, ou disseram não conhecer qualquer método para prevenir as DST.
Seja como for, as características desses jovens, em especial sua vincula-
ção com o projeto escolar nessa época, permitem—nos pensar que o exercício
de sua sexualidade seria influenciado, aparentemente, pelo ensino escolar e
pela expectativa de um projeto de mobilidade social, que retardaria a inicia-
265
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
ção de sua vida sexual, particularmente no caso das adolescentes. Além disso,
nestas últimas incidiriam fatores como o maior controle social exercido sobre
elas e, supostamente, a perspectiva de repúdio e/ou assinatamento social ante
uma eventual experiência de gravidez, que pode ser maior quando não existe
uma união estável com o parceiro sexual. No caso dos estudantes adolescen-
tes do sexo masculino, a situação parece ser bem diferente: eles colocam—se
num grupo de alto risco que, de qualquer modo, afeta as moças como parcei-
ras sexuais. Nesse sentido, especialmente nos rapazes escolarizados de setores
populares com alta participação da população negra, a inserção escolar pare-
ce não ser suficiente para mudar o padrão de risco das práticas sexuais, como
se pôde mostrar no estudo de Urrea e Rojas do início da década de 1990.
266
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
267
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
No estudo de Urrea e Rojas realizado entre 1992 e 1993, a respeito das práti-
cas sexuais entre adolescentes de setores populares de Cáli, observou-se na
zona distrital 14 (Distrito de Aguablanca) que, no período de 1991-1992, a
população de gravidas pertencentes a todos os grupos etários, atendidas pelo
Programa de Controle de Gravidez do NAP 14,9 apresentou uma estrutura
etária pela qual se registrou claramente uma amostra representativa do alto
peso da gravidez em adolescentes desses bairros (ver Tabelas 4 e 5).
268
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Tabela 4
“
___—___
Distribuição por grupos etários das grávidas que receberam atendimento do NAP
de Marroquín-Cauquita entre setembro de 1991 e setembro de 1992
—————
______________________._-_-—_—
269
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Tabela 5
—————_—___ _____
Taxa média de gestações por grupos etários de mulheres que receberam atendimento no NAP
———-——_-_______—____
___
Anos Taxa média
————___—__________ _
< 15 anos 1,8
15<17 2,03
18—19 2,04
2024 2,33
25-29 3,24
30-34 4,02
35-39 4,12
40—49 5,0
————_—————__.____
___
Obs: Taxa média global de gestações: 2,9 (ajustada de acordo com o índice de abortos e Fulhos natimortos)
Taxa aproximada de parturição: 2,5
Taxa aproximada de fecundidade: 3,63
Fonte: Urrea & Rojas (1993).
270
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Gráfico 1
__________.____—-_———_—————
25,0
20,0
15,0
10,0
5,0
% 0,0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 zona Total ZonasDistritais
rural Cáti
Fonte: Salud en Cífras, Santiago de Cali, Secretaria de Saúde Pública Municipal, 1998.
10 A média de Cali está em 24,0%. Os valores relativos dos demais Silos foram os seguintes: Si-
los 1 (zonas distritais 1, 3, 19 e 20) — 24,4% de mulheres entre 15-19 anos; Silos 2 (zonas
distritais 2, 4, 5, 6 e 7) — 9,4%; Silos 3 (zonas distritais 8, 9 e 12) — 27,3%; Silos 4 (zonas
distritais 10, 11 e 16) — 25,4%; Silos 6 (zonas distritais 17 e 18) —— 24,5%; Silos 7 (zona ruv
ral) —— 17,5%. Tabela 71, “atividades de atendimento materno", Salud en cifras, Santiago de Cali,
1998, Secretaria de Salud Pública Municipal, 1999, p. 129.
271
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Tabela 6
Tabela 7
___—___—
Índice de abortos em mulheres grávidas por faixa etária (entre as que receberam atendimento no NAP)
___—“___—
Idade (anos) Número de (1) Número de (2) (2) / (1)
gestações abortos %
< 15 12 1 8,3
1547 29 2 6,9
18-19 32 2 6,3
Taxa < 20 73 5 6,8
20-24 129 18 14,0
25-29 125 15 12,0
30.34 121 18 14,9
35.39 28 4 14,3
4049 14 2 14,3
Totais 490 62 Índice global
12,7
__—_____—______
272
Sexualidade e Saúde Reprodutiva ern Jovens Negros...
273
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Por outro lado, e na mesma direção dos casos de aborto como método de con-
trole da natalidade, ao se analisar por zonas distritais o uso de métodos de
planejamento familiar, chama a atenção a altíssima participação da ligadura
274
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
275
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
aborto, já que, como assinalou Zamudio (2000), ele também tem tido na Co-
lômbia uma incidência importante na diminuição da fecundidade.
Na totalidade de Cáli, o método anticoncepcional mais generalizado, a
partir do sistema público de saúde, é o DIU, com 40,5%, seguido pelo proce—
dimento cirúrgico (ligadura de trompas), com 20,6%, e, em terceiro e quarto
lugares, o uso de hormônios orais ou da camisinha. Os outros métodos têm
baixa participação. Por outro lado, o Silos 5 (zonas distritais 13, 14, 15 e 21) é
o que registra, com 39%, a maior utilização de todos os tipos de métodos, se—
guido pelo Silos 2 (zonas distritais 2,4, 5, 6 e 7), com 25,3%; o terceiro é o
Silos 1 (zonas distritais 1, 3, 19 e 20), com 17,2%. Os outros Silos têm baixas
participações, inferiores a 10%.
No estudo de Urrea & Quintín (2000) aparece uma série de personagens, ho-
mens e mulheres negros abaixo de 25 anos em seus cenários de subúrbios
pobres, através dos quais eles configuram suas imagens e seus papéis masculi-
nos/femininos, seus papéis ou roteiros sexuais (sobre esse conceito e seu uso,
ver Barker, 2000) e suas práticas de sexualidade e saúde reprodutiva, que se
movem numa lógica complexa de relações desiguais de sexo/gênero, polariza-
das em condições de pobreza e desigualdade social. A utilidade dessa incur—
são em torno do núcleo analítico da construção do sexo/gênero, aplicada no
texto de Urrea e Quintín ao estudo das masculinidades, é a vantagem de po—
der captar elementos das práticas concretas e dos roteiros sexuais representa-
dos, ao lado das narrativas de práticas de saúde reprodutiva desenvolvidas pe-
los personagens, por seus parceiros e por outros agentes sociais com quem
eles mantêm interações. Assim, os relatos que aparecem a seguir reforçam as
constatações e os registros anteriormente citados e nos permitem ver, de ma-
neira específica, as dinâmicas sociais em torno das quais se desenvolve a rea-
lidade dos jovens dos setores populares.
13 Nesta seção, beneficiamo-nos de diferentes trechos do estudo de Fernando Urrea & Pedro
Quintín (2000).
276
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Julio Cesar Oviedo e' um jovem negro de 18 anos, nascido em Cáli. Es-
tudou até a oitava série e passou a maior parte de sua vida no bairro de Char-
co Azul. Para Julio, a iniciação sexual ocorreu em idade precoce, entre os no-
ve e dez anos, quando ele manteve relações com uma menina da mesma ida—
de, impelido pelo desafio que lhe fora feito pelos amigos que já haviam supe—
rado essa etapa: ”lá na minha casa, com uma garota aqui do Charco, (...) antes,
a gente meio que botava a cabecinha em cima dela e isso já era bimbar. Eu
disse a ela pra gente ir bimbar, porque era assim que se dizia antigamente, va—
mos bimbar". Desde então, ele teve uma vida sexual muito ativa, da qual se
ufana exageradamente. Diz, por exemplo, que “acredita ter atualmente três
garotas gravidas" (coisa que outros amigos põem em dúvida).
Para Julio, o exercício da sexualidade com as mulheres é a maneira mais
importante de demonstrar sua virilidade, razão pela qual ele nao pode permi-
tir que seus atributos pessoais sejam postos em dúvida na frente dos outros,
pois o que fica em perigo e' sua masculinidade, sua imagem de homem; e, ain-
da por cima, ele pode ser chamado de 'maricas'. Existe o temor de que uma
mulher duvide de sua virilidade: “Aqui diziam que tinha um que era frouxo
dos ovos?" “De gozação, não, nunca vieram com esse comentário, foi um vaca
filha-da—puta quem disse isso (...) eu meto a mão nela, por que como é que ela
sai por aí dizendo (essas) coisas?"
277
ETNICIDADE NA AMÉRtCA LATINA
bem, já quem deixa que o outro faça com ele é mulher". Diego esclarece haver
homens que se deitam com outros homens e têm suas famílias, e diz ter saído
com homens assim, que lhe pediram que os possuísse. A iniciação sexual e a
Vida erótica e amorosa do entrevistado foram mais intensas com homens do
que com mulheres, desde os 13e anos; aparentemente, saiu-se melhor com
eles do que com as mulheres: “Eu não me viro assim (quando outros homens
pedem), mas teve uma época que as coisas andavam mal com as mulheres, e aí
eu saía muito, sim, quer dizer, eu sou um cara quente, e um cara me dava uma
olhada qualquer e me levava pra casa, e as vezes, pra me satisfazer, eu ia".
Agora, ele comenta que está há algum tempo sem recorrer a prostituição
informal, por causa do risco de contrair Aids: “É, mas agora já estou me isolando,
agora o cara tem que se cuidar, por causa da Aids e tudo o mais". Mesmo assim,
ele justifica os encontros ocasionais: “E claro, quando a pessoa é de confiança,
tudo bem, mas só dá para comer se for de confiança, 0 cara tem que se cuidar".
Isso chegava ao ponto de ele concordar em penetrar homens 'de confiança' sem
preservativo: “É, mas já não ando confiando muito; o que me assustou foi a Aids,
porque eu trabalhei numa instituição com doentes de Aids, e é duro ver as pes-
soas daquele jeito, e isso me fez pensar que eu precisava me cuidar".
Diego não teve qualquer relação amorosa com mulheres, mas apenas,
como ele diz, “vacilos" (aventuras passageiras). Atualmente, tem uma *namora—
da' mais velha. Assinala que não há razão para ela se inteirar de suas atividades
eróticas com outros homens e que, no momento, dedica—se apenas a ela. Se-
gundo o entrevistado, “não, eu não sei dançar, mas sigo o ritmo delas [as mu-
lheres], mamãe me criou noutro ambiente". Diego nunca dançou com homens.
278
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Carmen é uma negra de 16 anos que mora em Sardi, cursa a oitava se-
rie e, por ocasião da entrevista, provavelmente estava em seu primeiro mês de
gestação, embora esse acontecimento não tenha surgido na conversa. Carmen
teve sua primeira relação sexual quando ia completar 15 anos, fazia relativa—
mente pouco tempo. Explicou que a relação havia ocorrido nesse momento, e
não antes, porque “sempre me deu medo... ainda me dá medo! Ou seja, os na-
morados que eu tinha antes dos 15 anos... nunca me falaram disso. Que é que
eu ia pensar? Eu não sabia nada disso. É, mas, sabe, a minha mãe, sim, ela fa-
lava comigo, e aí um dia estávamos assim e conversamos, e aconteceu o que
aconteceu, mas eu nunca tinha pensado nisso". A mãe lhe “dizia que isso tra—
zia uns riscos muito sérios, e', mas eu não pensava nisso".
Ademais, a virgindade tinha (e tem) importância para ela, porque, “por
mim, eu digo que sim. Pra mim, ter a Virgindade é muito importante porque,
quer dizer... como é que eu vou lhe dizer?... E que não estou achando a palavra
certa... Quando eu tinha a minha, eu me sentia como se fosse mais, melhor. Di—
zem que quando a gente não tem isso, a gente se sente livre, mas não é verdade.
É. melhor ter a sua: eu sei que o pessoal aprova, e a gente também se deixa levar
pelas idéias dos outros. Quando não se tem mais [a virgindade], o pessoal marca
a gente como uma pessoa qualquer, uma ordinária. Isso e uma coisa muito im-
portante". Carmen prossegue: “Eu me arrependo, mas não tanto com a pessoa
que me tocou... Queria chegar a igreja... Eu gostaria de me casar na igreja".
Ana Hílma Aguirre tem 18 anos e cursa a nona série. Está com quatro
meses de gravidez de um jovem negro de Charco Azul, que e estudante e tem
também a mesma idade, cursando a décima série. Embora conviva com a ex-
periência próxima da violação de sua irmã (Estrella, que esteve presa na peni—
tenciária feminina El Buen Pastor pelo assassinato do homem que tentou es—
tuprá-la), a qual ela interpreta como uma experiência “feia, pavorosa", Ana
acha que, em certas ocasiões, as mulheres é que se expõem a ser estupradas,
por manterem mais de um relacionamento amoroso. “Ás vezes, a culpa e das
mulheres, por exemplo, num minuto ela está com o namorado, e depois, com
279
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
280
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
a idéia de que a seg und a alt ern ati va é per igo sa. Até o mom ent o, dur ant e seu
períod o de gra vid ez, An a diz não ter rec ebi do de sua s ami gas a sug est ão de
abortar; ao contrário, elas lhe sugeriram que tivesse o filho.
281
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
lheres, três residem em bairros de classe média baixa e muito baixa, em con-
dições muito semelhantes às das mulheres entrevistadas da seção anterior, que
discorreu sobre os jovens negros de setores populares da periferia. Nesse sen-
tido, elas são mulheres que, através do sistema escolar, evitando abandonar os
estudos e com um capital patrimonial tão escasso ou reduzido quanto o de
outros jovens da periferia, conseguiram ingressar na universidade pública.
282
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
A maternidade na universidade
283
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
justamente isso que faz com que também nos vejam apenas como mulheres
para o sexo, porque se supõe que seja isso que os atrai, uma bunda bem-feita,
uma bunda bem grande, porque são elas as necessárias para o sexo. Por um
lado, nós nos achamos muito bonitas com as nossas bundas, mas, por outro,
somos um alvo perfeito para que nos procurem para praticar o sexo".
284
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
relação com uma garota mestiça aqui na universidade, mas foi muito curta,
durou uns seis meses; além de fazer sexo, dividiamos outros espaços".
Para Camilo, na cidade de Cáli, & dinâmica de seus contatos sexuais tem
sido limitada, por ele não ter uma parceira estável. Em geral, ele se relaciona com
mulheres mestiças e negras, mas seus encontros se dão fora da relação amorosa:
“Surge & oportunidade e se tem a relação [sexual]; dá-se mais tempo à pessoa por
quem se sente alguma coisa, mais do que a outra com quem se sente menos". Dis-
se ele ainda: “Considero que há diferenças entre elas. Na cama, a mulher negra é
um pouco mais impetuosa, menos reprimida — em nossos termos, muito quente;
a mulher branca se reprime mais, ou seja, nota-se a diferença, e assim, embora
ela [a mulher branca] procure ser melhor, & negra é sempre diferente".
Os estudantes afirmam que, em termos gerais, a maioria das relações
que estabelecem ocorrem com mulheres negras, tanto na universidade quan—
to fora dela; mas isso tem muito a ver com as pessoas com quem eles mantêm
alguma relação de amizade. Isso significa que, aparentemente, não lhes inte—
ressa & busca de encontros sexuais com mulheres que estejam fora do círculo
de amizades. Dois dos alunos socializam-se mais no plano inter—racial, en—
quanto os outros dois convivem mais com pessoas com a mesma cor da pele.
Gravidez e paternidade — Disse Carlos: “Aqui na universidade, há uma
espécie de acordo no sentido de que, enquanto se está estudando, a proposta e:
gravidez, não!!". César: “Conceber um filho não-é só dedicar—lhe um a seis anos
da minha vida, mas acontece também que o custo é muito alto em termos de
tempo". Andrés: “Isso também passa pelos projetos de vida, porque a gente pen-
sa em ter um nível mínimo de estabilidade antes dos filhos". Com respeito à pa—
ternidade e à maternidade, Camilo e de opinião que “a paternidade se conver-
teria num obstáculo de certa magnitude neste momento. Quanto aos filhos,
creio que eles se entrosaríam com a minha vida, mas quando houvesse uma ade-
quação econômica, e acho que eu gostaria de ter dois".
Homossexualismo masculino —- Disse César: “Diante do homossexua-
lismo, há certos níveis de tolerância, certos padrões éticos de respeito, mas, na
universidade... a coisa e pesada. Não há uma postura homofóbica, mas, por
causa da situação cultural, há uma certa resistência ao homossexualismo nas
16 El Chuzo [O Chicote] foi uma cafeteria dentro da Universidad del Valle cujo proprietário
era um negro (Marcos) que fizera estudos de química. Funcionou desde o final da década de
1980 até 1997. Durante vários anos, ela se transformou num ponto de encontro para alunos
negros, que se reuniam e faziam debates sobre temas e vídeos de perspectiva étnica e racial,
que eram projetados no local.
285
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
pessoas afro”. Andrés: “Essa situação não é semelhante para homens e mulhe—
res. Ao que parece, aceita-se mais que uma pessoa não-afro seja homossexual".
Carlos: “Fora da universidade, há uma persistência dos estereótipos, o homos—
sexualismo nos afros é visto como uma aberração, e, na universidade, continua
a haver uma certa repulsa". Camilo comentou: “Minha maneira de pensar sobre
o homossexualismo é que essa é uma forma de Vida, acho que eles encontram
certo prazer nisso, e eu os tolero e respeito sempre, desde que não me sinta
pressionado; mas eles estão no seu direito de se insinuar". E prosseguiu Cami—
lo: “Não tive experiências homossexuais, mas, no batalhão, tive uma aproxima—
ção com um companheiro que sempre se insinuava & nós; mas nunca houve re—
lação sexual, porque eu tinha saídas regulares, porque prestei o serviço militar
aqui na cidade".
Estereótipos raciais e papéis sexuais ——- Carlos afirmou: “Bem, em ter-
mos gerais, considero que nos enquadram num determinado papel e, se a
gente está noutro espaço, não acreditam em nós, põem em dúvida a nossa ca—
pacidade". César: “De minha parte, fui abordado por mulheres brancas, na
universidade, que diziam querer saber como fazemos sexo; ou seja, conside-
ram o sujeito como um objeto, e há os mitos de que os negros têm o pênis
grande. A gente procura esvaziar isso... mas... é mesmo, dão muita credibilida-
de a isso, sim! Como se o sujeito fosse um objeto!". Camilo: “Geralmente, ouve—
se as pessoas dizerem que os negros têm o negócio grande e, por exemplo, al-
guns de meus colegas negros da universidade dizem às mulheres que os negros
podem ser especiais, por causa do tamanho. No futebol também se diz que o
sujeito é bom jogador por ser negro... Algumas mulheres, depois da relação,
falam que é com razão que dizem que os negros transam muito gostoso, mas
não sei se foi por isso que se aproximaram, no começo. Não tenho certeza".
286
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
287
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
288
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
289
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
17 Nesta seção, retornamos novamente uma parte substancial do estudo de Urrea e Quintín sobre
as formas de masculinidade dos jovens da periferia, realizado para a Fundação Carlos Chagas.
290
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
18 Pelo menos tal como manifesto na vida pública, diante do grupo de pares.
291
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
a análise dos eixos narrativos, dos ritos de iniciação e das provas de virilida-
de dos homens entrevistados deixa claro que, nesse grupo etário [não deve-
mos esquecer que, no estudo desses autores, trata-se de homens com mais
de 40 anos], a masculinidade constrói-se unicamente em referência à com-
petência, à rivalidade e à possibilidade de conflito com outros homens. As
mulheres só estão presentes em suas narrativas como seres a quem é preci-
so proteger, ou como objetos de prazer. Em sua subjetividade, as mulheres
não lhes são equivalentes, razão por que o lugar destinado a elas em seus
relatos tem como efeito confirmar a supremacia masculina e manter as mu-
lheres numa posição subalterna e desvalorizada (...) os depoimentos colhi—
dos mostram que o imaginário desses varões, no que concerne à masculini-
dade, atribui um lugar preponderante à exibição da potência e do rendi-
mento sexuais e à apresentação deles como seres eminentemente sexuais.
19 A violência entre os gêneros nas classes populares, na qual as mulheres quase sempre levam
a pior, também deve ser relacionada com a violência intergeracíonal. A esse respeito, são úteis
as observações de Fuller (2000) sobre o recurso ao castigo físico e seu uso mais freqiiente nos
setores populares do que nas classes médias. Isso é importante, porque tanto os homens quan—
to as mulheres. entre nossos entrevistados, informaram sobre a relativa frequência com que os
rapazes jovens batem em suas amigas (namoradas, amantes ou companheiras).
292
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
cia psicológica e simbólica, bem como a outros tipos de abusos (estupro), por
parte de alguns jovens. De resto, há amplas semelhanças nos relatos que apre-
sentamos, assim como nos dados do estudo de Urrea e Rojas sobre abusos se-
xuais e violência. Neste caso, devemos recordar que parte dos abusos sexuais
que envolvem a Violência foi vivida por adolescentes do sexo masculino.
De acordo com o que foi relatado antes, poder—se-ia dizer que a “irres-
ponsabilidade' faz parte dos jogos amorosos e eróticos entre mulheres e ho-
mens. O discurso masculino dominante é que “elas se deixam engravidar", “elas
não se cuidam", ou, “se não querem frcar grávidas, por que elas não se cuidam?”.
Por outro lado, Viveros & Canón (1997: 403) afirmam, a partir de seu
estudo com homens negros de classe média em Quibdó:
(...) a necessidade de ir modificando esse lugar de pai ausente que foi des-
tinado ao homem negro na Colômbia. Também existem famílias, como &
santanderiana, nas quais a ideologia da virilidade é muito forte e a honra e
a virgindade são temas importantes. Em contrapartida, esses mesmos te—
293
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
mas têm pouco valor nas culturas caribenhas e do Pacífico.20 A zona andi-
na, por seu turno, tem suas próprias particularidades. Esses exemplos mos-
tram que, efetivamente, as formas familiares têm uma relação direta com a cons-
trução social da paternidade e da masculinidade. (grifos nossos)
294
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
295
ETNIC1DADE NA AMÉRICA LATINA
Vejamos o caso das imagens das mulheres que reproduzem, num plano de su—
bordinação, os pólos e as contradições dos homens. A dicotomia da imagem
que os homens têm das mulheres parece reproduzir a lógica com que se orga-
nizam as imagens feitas sobre os diferentes tipos de homens. O par *cachor-
ra'/'pura' seria equivalente a figuras que fazem parte do bairro, e é preciso in—
terpretá-lo num contexto socioantropológico mais amplo. Talvez valha a pena
relembrar a referência de Norma Fuller (1997) ao caso dos homens das clas-
ses médias peruanas — especialmente os socializados nos anos 1970 e, em
menor grau, nos 1980 —, entre os quais a autora estabelece três grandes ti-
pos de relações com as mulheres: de namoro com a amada (da mesma hierar-
quia de classe/raça), de sedução com as amantes e das conquistas provisórias
(de hierarquia inferior) e instrumentais com as prostitutas (marginais quase
externas à hierarquia). Entretanto, só a primeira dá origem a uma tensão e
uma competição com o grupo de pares. As outras duas formas de relações in-
serem-se facilmente nas atividades do grupo: as conquistas dão lugar & fan-
296
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
farronadas e à de mo ns tr aç ão das hab ili dad es e dos dot es pes soa is dos jov ens .
Já as pro sti tut as faz em par te da eta pa de ini cia ção sex ual , ati vid ade est a qu e
costuma ser realizada em companhia dos amigos.
As mulheres 'ig ual ada s' (ex pre ssã o usa da pel os jov ens da per ife ria ) re-
ferem—se àqu ela s qu e pr et en de m se com por tar co mo ho me ns em div ers os pla -
nos: no tra bal ho (at ivi dad es *ma scu lin as' ago ra exe rci das por mul her es, en-
quanto os ho me ns rea liz am tra bal hos 'fe min ino s') , na to ma da de dec isõ es do-
méstic as (& mu lh er co mo che fe da fam íli a, me sm o ha ve nd o um ho me m pre -
sente) e nas ini cia tiv as eró tic as e no cor tej ar sed uto r do ho me m (c om & mu -
lhe r de se mp en ha nd o o pap el ati vo no am or e no ero tis mo) , qu e são um des a-
fio à capaci dad e am or os a e eró tic a mas cul ina (a mu lh er exi ge do par cei ro se—
xual que ele a faç a sen tir pra zer na rel açã o) — ati vid ade s tid as co mo exc lus i-
vas dos ho me ns , co mo no cas o da sed uçã o e da con qui sta , são ago ra ass umi -
das pelas mulheres.
Essa çaracterização, feita pelos homens jovens da periferia sobre o de—
safio represent ado pel as mul her es, o qu e lhe s apo nta umi alt o ris co de per da
de poder dentro do sis tem a do mi na nt e do gên ero sex ual , po de ser int erp ret a—
da como um a no va im ag em sub ver siv a da ma sc ul in id ad e he ge mô ni ca . Ma s
também ro nd a ent re os jov ens o te mo r de qu e as mul her es os de sm as ca re m,
dentro do gru po de par es, no qu e tan ge às sua s ave ntu ras amo ros as, ao des afi á-
los em sua cap aci dad e am or os a e eró tic a. Os 'va cil os' con sti tue m um a for ma
de relacionamento entre homens e mulheres pela qual a dominação masculi—
na é que sti ona da, ape sar dos dis cur sos ma ni pu la do s pel os jov ens sob re seu
comportame nt o de 'ca val os' (ou 'tr ans gre sso res ', cf. Viv ero s & Ca nó n, 199 7).
Par a os ho me ns e adu lto s jov ens dos bai rro s mu it o pob res , as fig ura s
mas cul ina s são he ge mô ni ca s e inq ueb ran táv eis , de tal for ma qu e a aut ori dad e
da mu lh er nã o sup era a do ho me m, me sm o qu e sej a ela qu em sus ten ta & fam í-
lia (c om o no cas o de Jul io Cés ar) . Na fam íli a des ses per son age ns, exi ste um
modelo de home m rep res ent ado pel a fig ura e pel a aut ori dad e pat ern a, qu e
está ligado ao pai , ao pad ras to, & um tio , a um irm ão mai s vel ho ou a um avô ,
cuja hierar qui a nã o dev e ser que sti ona da ne m me sm o pel a mãe . As mul her es
da cas a de ve m ass umi r um a pos tur a de sub ord ina ção e obe diê nci a fre nte ao
homem.
As mulher es são rep res ent ada s por dua s fig ura s: a das mul her es “pu ras ”
ou as 'garotas' de cas a, est udi osa s e res pei tad ora s da aut ori dad e mas cul ina , e
as mulheres ban did as, 'ga rot as' qu e ma nt êm rel açõ es am or os as co m mai s de
um rap az. Por iss o, tai s mul her es são per ceb ida s co mo *ig ual ada s', por sub ver -
terem e que sti ona rem a aut ori dad e mas cul ina , a qu e os ho me ns re ag em agr e—
dindo-as física e psicologicamente. Um dos aspectos fundamentais dessa rela—
297
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
ção entre os gêneros é que a mulher, apesar de sua condição desigual, segun-
do os jovens, desafia a dominação do homem, recorrendo a diferentes práti-
cas, pondo—o à prova no exercício da sexualidade, questionando-o publica—
mente em sua capacidade amorosa/erótica, ou participando de atividades de
trabalho consideradas tipicamente masculinas. Nas diferentes situações, tam-
bém no caso das *igualadas', as mulheres enfrentam riscos de gravidez, DST ou
HIV-Aids.
As imagens da mulher 'cachorra'/'pura', que, por sua vez, também per—
passam o imaginário das classes médias, como bem mostrou Fuller (1997),
têm, entretanto, uma intensidade maior nas camadas populares, assim como
os pares 'machão'fsadio' e 'gomoso' (em certos setores populares, fala—se de
'gomosa' com referência à mulher). Essa é uma figura de tipo subalterno, que
faz parte de urna sexualidade na qual é o homem quem impõe as regras do jo-
go e a mulher só as aceita porque, do contrário, perde o homem, ou, pelo me-
nos, é submetida a maus-tratos físicos e psicológicos, com os riscos inerentes
para sua saúde reprodutiva (gravidez, DST, HIV-Aids etc.). A respeito da mu-
lher *igualada', ainda e' difícil dizer se, com essa nova imagem, estariam sur-
gindo comportamentos diferentes no exercício da sexualidade e no tocante à
saúde reprodutiva. É bastante viável que ainda se mantenham práticas de ris-
co, porque o desafio feito ao homem pela mulher adolescente não necessaria-
mente garante uma vivência segura da sexualidade, como se percebeu no pa-
rágrafo anterior. Isso porque, como manifestaram as próprias negras (Diana,
Clara, Sandra e Stela), não haveria no bairro homens negros com quem e1as
pudessem interagir em termos eróticos e afetivos. Elas simplesmente não en—
contram uma opção masculina na periferia e, por isso, privilegiam outros es—
paços externos.
Por último, convém assinalar que se evidencia uma informação precária e uma
má utilização dos métodos anticoncepcionais por parte das mulheres entre-
vistadas da periferia (devendo-se excluir desse grupo as universitárias que re—
sídern em bairros populares semelhantes aos das mulheres de baixo nível de
instrução, uma vez que elas dão depoimentos bem diferentes), o que estaria
associado ao desinteresse masculino pelo controle dos riscos de gravidez e de
doenças sexualmente transmissíveis. Além da violência, esse talvez seja um
dos fatores de maior vulnerabilidade enfrentado pelas mulheres da periferia
298
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
299
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Referências bibliográficas
300
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
301
ETNICIDADE NA AMÉR1CA LATINA
Outras fontes
302
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em jovens Negros...
Anexo 1
____________—___-——————————_—-—
Taxas de incidência de casos de DST registrados pelo sistema municipal de saúde de Cáli em 1999
(por 100 mil habitantes) e relação entre homens e mulheres portadores de HlV/Aids
___—___——-——-—————-———_
Zonas distritais 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
_______________.__._—.—-——_——-—_—————
DST,homens
Outrasuretrites 3,7 10,0 64,4 43,6 17,9 14,5 43,9 4,2 7,6 1,9 2,1 30,8
não—gonocócícas
Doenças 11,1 25,1292,4 114,1 43,4 39,5 68,3162,7121,4 59,7 72,8196,1
relacionadas
com o HIV/Aids
Herpesgenital 0,0 12,5 14,9 20,1 10,2 2,6 36,6 44,4 64,5 7,7 0,0 14,0
Doenças 88,5 15,029.7 70,5 25,5 60,6 63,4 46,5 83,4 46,2 27,0100,8
gonocócicas do
aparelho urogenital
Sífilis 14,8 15,0138,7 43,6 23,0 22,4 46,3 95,1 98,6 30,8 18,7 53,2
(diferentes tipos)
Outra? 55,3 5,0 19,8 26,9 12,8 5,3 9,8 10,6 15,2 5,8 6,2 8,4
Total dos 173,4 82,7 559,9 318,9 132,8 144,9 268,3 363,5 390,7 152,2 126,8 403,3
homens.CáIí
DST, mulheres
Infecções 10,1 1,8 12,6 11,7 2,2 10,6 17,1 20,6 32,8 6,7 1,8 32,5
gonocócicas do
aparelho urogenítal
Doenças 3,4 0,0 12,6 0,0 0,0 2,3 0,0 51,5 6,6 3,3 14,5 60,0
relacionadas
com o HIV/Aids
Herpesgenital 0,0 1,8 0,0 5,8 4,3 9,4 10,7 20,6 49,3 5,0 3,6 17,5
Tricomoníase 16,8 10,6 59,0 20,4 2,2 11,7 23,5 48,9 65,7 25,0 23,5 27,5
urogenítal
Sífilis 53,8 7,0164,3 32,0 19,4 29,3 57,6 61,8 72,3 23,4 10,8 57,5
(diferentes tipos)
Outrasª“ 33,6 0,0 12,6 8,7 2,2 3,5 2,1 0,0 3,3 5,0 3,6 7,5
Totaldas 117,6 21,1261,3 78,7 30,3 66,9 111,0 203,4 229,9 68,4 57,8 202,5
mulheres, Ca'lí
Proporçãode 3,0 0,0 19,7 0,0 0,0 15,0 0,0 3,9 16,0 15,5 4,4 2,9
homens/mulheres
com HIV/Aids
__________._—..—————-————-—_—_
(continua)
303
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Anexo1 (continuação)
___—___—
Taxas de incidência de casos de DST registrados pelo sistema municipal de saúde de Cáli em 1999
(por 100 mil habitantes) e relação entre homens e mulheres portadores de HIV/Aids
“___—___—
Zonas distritais 13 14 15 16 17 18 19 20 21 Zona S.I. Cáli
Rural
___—___.—
DST, homens
Outrasuretrites 8,3 1,4 5,3 0,0 0,0 4,6 2,2 0,0 11,3 0,0 0,0 10,6
não-gonocócicas
Doenças 23,7 20,7 21,4 45,3 2,2 18,5 17,8 35,9 48,8 4,9 0,0 56,2
relacionadas
com o HlV/Aíds
Herpesgenítal 1,2 11,0 12,5 10,3 0,0 16,2 2,2 3,3 3,8 19,4 0,1 12,3
Doenças 29,7 34,5 30,3 41,1 6,6 50,9 0,0 29,4 7,5 53,4 0,3 41,1
gonocócicas do
aparelho urogenital
Sífilis 19,0 13,8 12,5 28,8 2,2 34,7 8,9 19,6 41,3 34,0 0,1 31,7
(diferentes tipos)
Outras* 16,6 4,1 16,0 28,8 4,4 18,5 0,0 3,3 7,5 48,5 0,0 12,8
Total dos 98,5 85,5 98,0 154,3 15,4 143,5 31,2 91,4 120,0 135,8 0,5 164,7
homens,Cá|í
DST, mulheres
Infecções 14,0 11,8 8,0 12,9 1,7 8,5 1,6 12,3 0,0 23,7 0,0 10,5
gonocócícas do
aparelho urogenital
Doenças 5,4 1,3 12,9 29,6 0,0 0,0 0,0 15,4 0,0 9,5 0,6 9,7
relacionadas
com o HIV/Aíds
Herpesgenital 3,2 6,6 8,0 0,0 0,0 4,3 1,6 0,0 3,2 9,5 0,0 6,6
Tricomoníase 62,6 38,2 45,0 86,9 3,4 17,0 0,0 9,3 9,5 113,6 0,0 30,8
urogenital
Sífilis 32,4 36,8 27,3 18,5 6,7 40,5 8,0 30,8 12,7 18,9 0,5 32,8
(diferentes tipos)
Outras* 2,2 7,9 4,8 3,7 0,0 17,0 0,0 3,1 0,0 42,6 0,0 5,6
Totaldas 119,7 94,7106,0151,6 11,8 87,3 11,3 70,9 25,4 217,7 1,0 95,9
mulheres, Cáli
Proporçãode 4,0 15,0 1,5 1,4 0,0 0,0 0,0 2,2 0,0 0,5 5.1. 5,1
homens/mulheres
comHlV/Aíds
——————_——-—————-—-—-—__—.—_____—____
304
Sexualidade e Saúde Reprodutiva em Jovens Negros...
Anexo 2
Tipo de anticoncepcional
Cirúrgico DIU Outros Preser— Hormonal Hormonal Acumulado Nº de
(tabela, vatívo injetável oral obser—
óvulos) vações
Silos1 1942
Zonas Distritais
1, 3, 19, 20
% col 4,0 31,7 2,6 39,2 8,2 14,3 100,0
% fil 3,3 13,5 12,1 65,1 26,4 12,7 17,2
Silos 2 2847
Zonas Distritais
2,4,5,6, 7
% col 22,6 37,9 10,8 3,9 0,9 23,9 100,0
% fil 27,7 23,6 72,8 9,6 4,1 31,1 25,3
Silos 3 - 652
Zonas Distritais
8,9,12
% co! 1,1 75,3 0,8 0,6 4,1 18,1 100,0
% F:! 0,3 10,8 1,2 0,3 4,5 5,4 5,8
Silos 4 1010
Zonas Distritais
10,11 ,16
% col 14,3 52,2 0,0 15,0 4,9 13,7 100,0
%m 6,2 11,5 0,0 13,0 8,1 6,3 9,0
Silos S 4369
Zonas Distritais
13,14,15,21
% col 31,2 38,5 0,8 1,9 7,7 20,0 100,0
% f1| 58,6 36,8 8,0 7,1 55,6 39,9 38,8
Silos 6 259
Zonas Distritais
17,18
% col 18,9 45,9 0,0 21 ,6 0,0 13,5 100,0
% HI 2,1 2,6 0,0 4,8 0,0 1,6 2,3
Silos 7 194
Zona Rural
% col 21,6 26,8 12,9 0,5 4,1 34,0 100,0
% FII 1,8 1,1 5,9 0,1 1,3 3,0 1,7
Total % fil 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Nº de 2.324 4.563 423 1.170 606 2.178 100 11.273
observações
Total % col 20,6 40,5 3,8 10,4 5,4 19,3 0,9 100,0
* Sistemas Locais de Saúde, que agrupam as unidades de saúde pública municipal por conjunto de zonas distritais.
Fonte15alud en Cifras, Santiago de Cali, Secretaría de Saúde Pública Municipal, 1998.
305
14
Fátima Oliveira
307
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Diferenciais de morbidade
e mortalidade precoce
308
Saúde Reprodutiva, Etnicidade e Políticas Públicas no Brasil
O estudo realizado pela médica Ignez Helena Oliva Perpétuo (2000) so-
bre & Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 1996 — que entrevistou
7.541 mulheres, àquela época entre 15 a 49 anos, em união estável, das quais
44% se autodeclararam brancas e 66%, negras (parda, mulata, morena, cabocla
e preta) —— revela, de maneira contundente, & enorme desigualdade social, eco-
nômica, de risco reprodutivo e de acesso aos serviços de saúde que existe en-
tre & população branca e a negra. De acordo com Perpetuo:
309
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
310
Saúde Reprodutiva, Etnicidade e Políticas Públicas no Brasil
311
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
das em cada grupo racial, assim como entre tipo de religião, nível educacional
ou residência urbana ou rural da mulher.
' Este mesmo estudo assinala a relação entre a idade com a qual a mulher
foi esterilizada e o seu nível de escolaridade. Apenas 6,6% das mulheres com
nível superior foram esterilizadas com menos de 25 anos, ao passo que, entre
as mulheres com primário completo ou menos, 22% foram esterilizadas com
menos de 25 anos. Entre mulheres com nível superior, 40% foram esterilizadas
entre 30 e 34 anos. Já entre mulheres com educação primária, 28% se esterili-
zaram neste período. A diferença entre raças em relação à idade ao serem este-
rilizadas não é significativa em termos estatísticos. Em relação à raça, mulheres
brancas são mais prováveis de serem esterilizadas durante uma cesárea do que
mulheres pardas ou negras; mas, novamente, quando se compara dentro de C&-
da nível educacional, não se encontram diferenças.
Com base na análise dos dados fornecidos pela PNDS—1996, o referido
estudo concluiu que as mulheres com maior nível de escolaridade tendem a
apresentar taxas de cesáreas mais elevadas do que aquelas com nenhuma ou
pouca educação formal. Além do nível de escolaridade, outro fator de grande
influência é a idade da mãe: mulheres mais velhas tendem a ter taxas maiores
de cesárea. Quanto ao fator raça, pode—se afirmar que as mulheres brancas
apresentam maior probabilidade de serem esterilizadas durante uma cesárea
do que mulheres pardas ou negras. Mas, em relação aos níveis de esterilização,
não foram detectadas diferenças significativas entre a proporção de mulheres
esterilizadas em cada grupo racial, assim como entre tipo de religião, nível
educacional ou residência urbana ou rural da mulher.
Tenho argumentado em vários escritos que a sobrevida menor dos ne-
gros com câncer parece estar diretamente relacionada à precariedade das con—
dições socioeconômicas. O câncer do colo do útero e duas vezes mais frequen-
te em mulheres negras do que nas brancas. Também está suficientemente pro-
vado em várias pesquisas, realizadas em diferentes lugares do mundo, que este
tipo de câncer é diretamente proporcional às condições de pobreza. A justifi-
cativa do modelo genético diz que a menor sobrevida de negros e a menor re—
sistência em caso de câncer deve—se a uma menor reação imunológica “ine—
rente' aos negros, o que não está comprovado. Pesquisas realizadas na Inglater-
ra em pacientes com câncer de mama e um estudo de Nancy Krieger & Mary
Basset (1986) sobre mulheres com câncer de mama em Washington demons—
traram que a diferença racial na sobrevivência destas doentes desaparecia
quando foram alocadas em suas respectivas classes sociais. Operárias, brancas
& óu—negras, sobreviviam bem menos do que mulheres de classe média ou alta.
312
Saúde Reprodutiva, Etnicidade e Políticas Públicas no Brasil
Conceitua lme nte , doe nça s étn ica s/r aci ais são aqu ela s cuj a pre val ênc ia e/o u
evolução cur sam de mo do dif ere nci ado em um gru po pop ula cio nal rac ial ou
étn ico (co mo neg ros , bra nco s, ama rel os, jud eus , cig ano s etc .) e em mes tiç os
de tais grupos, podendo ter causa exclusivamente genética ou multifatorial.
Em outros trabalhos, afirmei que, embora sejam poucas (e de fato são), há
doenças que po de m ser cat alo gad as co mo rac iai s ou étn ica s (pr eva lên cia e/o u
evolução dif ere nci ada , con for me o gru po pop ula cio nal rac ial ou étn ico ) na
popula ção neg ra, tai s doe nça s ati nge m pre coc eme nte um nú me ro exp res siv o
de pessoas, e suas decorrências na morbimortalidade em si já justificariam
uma atenção especial. Além disso, todas são doenças que têm uma interferên-
cia muito ínt ima na saú de rep rod uti va da mul her neg ra e na dim inu içã o da vi—
da produtiva de negros em geral, conforme revelam as descrições a seguir. Tal
perspecti va pod e ser elu cid ada pel a des cri ção dos seg uin tes agr avo s: dia bet es
mellitus tip o II, hip ert ens ão arte rial , sín dro me hip ert ens iva na gra vid ez, mio mas
uterinos e anemia falciforme.
0 dia bet es mel lit us é um a doe nça crô nic o-d ege ner ati va que con sis te em
um a dis fun ção met abó lic a de cau sa mul tif ato ria l, que det erm ina aum ent o crô -
nico dos níveis de insulina (hiperglicemia crônica) e evolui causando danos
em tod o o org ani smo , sob ret udo na vis ão, nos rin s, no cor açã o, nos ner vos e
nos vasos sangúí neo s, inc lus ive qua ndo a evo luç ão é ass int omá tic a ou de sin -
tomas brando s. 0 dia bet es e a qua rta pri nci pal cau sa bás ica de mor te no Bra sil
e a princi pal cau sa de ceg uei ra adq uir ida . Os dia bét ico s têm cha nce dua s. ve—
zes mai or de des env olv er doe nça cor ona ria na e de sof rer der ram es cer ebr ais ,
quando com par ado s aos não —di abé tic os, alé m de ter em 17 vez es mai s pos sib i-
lidades de desenvolver doença renal e 40 vezes maior chance de sofrer ampu—
taçóes nos membros inferiores. 0 diabetes e responsável por mais de 30% dos
casos de insuficiência renal em programas de diálise.1
1 Ver: just ific ativ as médi cas, socia is, econ ômic as e polí tica s para a muni cipa liza ção da assi stên cia ao
paciente diabético. Disponível em: www.diabetesnrgbr, O texto foi produzido pelas seguintes or-
ganizações: Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD); Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia (SBEM) e Associação para Educação e Controle em Diabetes (ACED).
313
ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
2 Ver Uma herança amarga. Boa saúde/Health Latin América. Disponível em: <w
ww.boasaude.com/
lib/ShowDoc.cfm>.
314
Saúde Reprodutiva,Etn1cidade e Políticas Públicas no Brasil
Hipertensão arterial
Estima -se que 10 a 20 % das pes soa s adu lta s são hip ert ens as. Apr ese n-
tam -se co mo ver dad eir as as seg uin tes afi rma tiv as: a hip ert ens ão art eri al (HA ) é
a principal causa de insuficiência cardíaca, insuficiência renal e de morte sú-
bita, e est á lig ada , dir eta ou ind ire tam ent e, a 12 a 14 % das cau sas de tod as as
mortes no Bra sil . Em ger al, a pre ssã o art eri al e' mai s alt a nos ho me ns e co m
pre val ênc ia em neg ros de am bo s os sex os. Apa rec e mai s ced o, e mai s gra ve e
ten de a ser mai s com pli cad a ern neg ros . Um a em cad a dez mul her es que en-
gravidam pela primeira vez tem hipertensão. A hipertensão durante a gestação
e a toxernia gravídica (eclâmpsia/hipertensão) constituem a principal causa de
mortalidade materna no Brasil.
Seg und o Les sa (20 00) , na epi dem iol ogi a da HA ch am am a ate nçã o as
elevad as pre val ênc ias da doe nça em neg ros ame ric ano s, inc luí da ent re as mun —
dia lrn ent e mai s alt as (20 a 71% ). A HA est á for tem ent e ass oci ada ao sob rep eso
ou à obesidade, ao diabetes ou à intolerância à glicose, ao estrato social mais
baixo, à pouca escolaridade, à história familiar positiva para a doença, & ho—
mens antes dos 50 anos e a mulheres a partir da menopausa, e à dieta rica em
sal e pob re em cál cio . Dev ido a qua lqu er um a des sas sit uaç ões nos Est ado s
Uni dos , & HA art eri al tem sid o até dua s vez es mai or ent re os afr o-a mer ica nos .
Os negros desenvolvem a doença em idades mais precoces do que os
bra nco s e det ém as tax as mai s ele vad as de HA sev era (es tág io 3). As dif ere nça s
raciais expressam-se desde a infância, tornando-se significantes na adolescên-
cia. A antiga polêmica sobre herança como importante determinante da HA
em negros ger ou div ers as teo ria s, inv est iga das e tes tad as na bus ca de exp lic a-
ções par a as dif ere nça s rac iai s. Ess as inv est iga çõe s ult rap ass am as fro nte ira s
americanas, sendo também investigadas em outros países, em particular, no
continente africano. Confirmou-se o gradiente dos fatores de risco da diáspo—
ra africana, corn prevalências ajustadas de HA de 14% na África Ocidental, 26%
no Caribe e 33 % nos Est ado s Uni dos — a obe sid ade exp lic and o, iso lad ame n-
te, 1/3 do exc ess o da HA nos afr o-a mer tca nos , qua ndo com par ado s aos neg ros
do oeste africano. Prevalência mais elevada de HA ern negros do Zimbabwe do
que em bra nco s eur ope us ou ame ric ano s foi des cri ta rec ent eme nte por um
grupo de investigadores. Paralelamente, diversos autores continuam tentando
explicar o predomínio, também nos negros, das doenças cardiovasculares que
mais se associ am à HA do qu e a out ros fat ore s de ris co par a do en ça car dio vas -
cular (FRCV).
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Saúde Reprodutiva, Etnicidade e Políticas Públicas no Brasil
para & pré-eclampsia, as consequências para a mãe e para o feto são, coletiva-
mente, piores na população de mulheres negras do que na de mulheres bran-
cas. Individualmente, entretanto, uma mulher negra com o diagnóstico de hi-
pertensão crônica tem a mesma probabilidade de desenvolver pré—eclampsia
sobreposta do que uma mulher branca com 0 mesmo diagnóstico. O rastrea-
mento de hipertensão crônica no acompanhamento pré-natal deve ser feito
com ainda maior ênfase em mulheres negras, para se identificar mais precoce—
mente as hipertensas crônicas, embora ainda não seja possível prever nem pre-
venir o desenvolvimento subsequente de pré—eclampsia sobreposta.
O autor esclarece que & pré-eclampsia caracteriza—se pelo desenvolvi-
mento gradual de hipertensão, proteinúria, edema generalizado e, às vezes, al-
terações da coagulação e da função hepática. A sobreveniência de convulsão
define uma forma grave, chamada eclampsia. Em mulheres nulíparas, a inci-
dência de pré-eclampsia é de aproximadamente 6% nos países desenvolvidos e
duas ou três vezes maior em países subdesenvolvidos. Apesar de sua complexi-
dade clínica e natureza potencialmente grave, & pré-eclampsia é a forma mais
comum de hipertensão 'curável' e é inteiramente reversível corn a interrupção
da gravidez. Embora a causa da pré—eclampsia ainda esteja por ser determina-
da, estudos recentes sugerem que seu caráter multissistêmico pode refletir a
intensa disfunção da célula endotelial.
Cabe acrescentar que & susceptibilidade da mulher grávida à pré—
» eclampsia tem um componente genético definido. A incidência em mães, filhas
e irmãs é duas a cinco vezes maior do que em sogras, noras e população con-
trole. A pré—eclampsia ocorre mais frequentemente durante a primeira gesta-
ção, sendo ocasional seu desenvolvimento em gestações subseqúentes & uma
gravidez normal, ou mesmo após um abortamento tardio. Há evidências de que
fatores imunológicos relacionados & antígenos do esperma paterno são impor-
tantes na gênese da pré-eclampsia. Embora primigrávidas jovens apresentem
maiores riscos, multigrávidas com um novo parceiro têm alta incidência de
pré-eclampsía. Por outro lado, a duração da coabitação antes da concepção se
relaciona inversamente com o risco de pré-eclampsia, sugerindo que & prolon-
gada exposição materna a antígenos do esperma paterno confere proteção.
Pré-eclampsia também está associada com a idade materna, aumentan-
do sua incidência em mulheres acima de 35 anos. Hipertensão arterial crôni-
ca, nefropatia, diabetes mellitus, gemelaridade, hidropisia fetal e mola hidati—
forme igualmente aumentam os riscos de pré-eclampsia. Mulheres fumantes
aparentemente têm menor risco de desenvolver pré-eclampsia, mas quando &
desenvolvem o prognóstico é pior do que em não—fumantes. Deve ainda ser no-
tado que o conceito antigo da diferença de raças na prevalência da pré-
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Miomas uterinas
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Saúde Reprodutiva, Etnicidade e Políticas Públicas no Brasil
vezes superior nas mulheres brancas judias do leste europeu do que nas de-
mais brancas; e várias pesquisas demonstraram alta incidência de miomas em
mulheres negras. Alguns trabalhos indicam que a obesidade e as pílulas anti—
concepcionais com altas doses de estrógenos estimulam o aparecimento e o
crescimento dos miomas.
Araújo (2001) afirma que:
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
uma das razões que explicaria esse estrondoso número de cirurgias radicais
e o medo que as mulheres têm, com o aval dos médicos, de desenvolver cân-
cer. ”Quem já teve filhos e apresenta algum problema uterino prefere se
submeter à histerectomia do que correr risco de ter câncer”. Plato é enfáti-
co quando se refere a mioma X histerectomia: “Conheço várias mulheres,
entre 45 e 50 anos, com miomas, que fizeram a remoção do útero. Nessa
faixa etária, a paciente está perto da menopausa, momento em que o útero
retrai e, com essa retração, o mioma pode ate' desaparecer espontaneamen-
te". (Bacal, 2000)
Anemia falciforme
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saúde da população negra na década de 1990 fora do tema clássico: anemia fal-
ciforme, com destaque para os miomas uterinos, mortalidade geral de negros,
materna e infantil, acesso aos serviços de saúde, esterilização e raça etc.
No âmbito do Ministério da Saúde, foram realizadas as seguintes ações:
1) Quesito Cor. Definição do Ministério da Saúde, de março de 1996, que
dispõe sobre a padronização de informações sobre raça e cor dos cidadãos
brasileiros e estrangeiros residentes no país.
2) Mesa Redonda sobre Saúde da População Negra, realizada pelo Ministé-
rio da Saúde e Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da Popula-
ção Negra, em abril de 1996. Trata-se do primeiro evento oficial do Ministério
da Saúde para definir áreas de trabalho prioritárias em saúde da (e para &) po-
pulação negra. A principal recomendação foi uma política nacional para & ane-
mia falciforme, elaborada no mesmo ano, e a criação do Manual de Doenças mais
Importantes, por Razões Étnicas, na População Brasileira Afro-descendente (junho de
2000, publicado em julho de 2001).6
3) Norma de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, outubro de
1996 (inclusão do quesito cor). A Resolução 196/96: Normas de Ética em Pes-
quisa Envolvendo Seres Humanos é uma norma brasileira básica para toda e
qualquer pesquisa envolvendo seres humanos, em qualquer campo do co-
nhecimento, Estabelece as diretrizes referentes à proteção aos sujeitos de
pesquisa (por exemplo, o “consentimento livre e esclarecido', a “vulnerabili—
dade') e define os alicerces éticos dos CEPs (Comitês de Ética emvPesquisa)
e da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). Introduz os recortes
de geração (idade); racial (quesito cor)7; & exigência da presença de mulhe—
res na análise de projetos de pesquisas que envolvam mulheres8 e a adoção
6 Organizado pelos profs. Edgar Merchan Hamann e Pedro Luiz Tauil; coordenado pelo Depar—
tamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília e
com patrocínio do Ministério da Saúde. Disponível em: <www.saude.gov.br/sps/menu.htm#>.
7 Sobre o “quesito cor', encontramos na Resolução 196/96 sobre Normas de Ética em Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos:V1.3. “Informações relativas ao sujeito da pesquisa: a) descrever as
características da popu1ação a estudar: tamanho, faixa etária, sexo, cor (classificação do IBGE), ,
estado geral de saúde, classes e grupos sociais etc. Expor as razões para a utilização de grupos
vulneráveis".
8 A Resolução 196/96 sobre Normas de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos é explí-
cita e categórica quanto à necessidade da participação do(a) usuário(a) nos CEPs e na análise
de protocolos de pesquisas para que a pesquisa seja considerada ética. VII.6. “No caso de pes-
quisas em grupos vulneráveis, comunidades e coletividades, deverá ser convidado(a) um(a) re-
presentante, como membro ad hoc do CEP, para participar da análise do projeto específico".
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1a época eram os responsáveis pela área. A referida política foi encerrada pelo
então Ministro José Serra.10
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Referências bibliográficas
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Anexo 1*
* Fonte: ALVES, A. L. & BARBOSA, R. B. A saúde da população negra: realizações e perspectivas. 1998.
(Mimeo.)
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15
Monica Grin
O objetivo desse artigo é produzir uma reflexão sobre o tipo de avaliação que
segmentos do movimento social elaboram sobre políticas públicas, particular—
mente em um momento no qual o atual governo tenta escapar de um dilema
que ainda tem se mostrado de difícil superação: de um lado, a urgência de se
elaborar políticas de combate às desigualdades, que é meta de qualquer gover-
no democrático que reconheça a discriminação racial e a desigualdade social
que dela resulta; e, de outro, a sensibilidade para as especificidades das rela-
ções raciais no Brasil, de suas características sui generis, cuja intervenção exigi-
ria maior criatividade política do que as que se apresentam hoje.
Tal dilema por vezes nos faz crer que o governo está acometido de uma
espécie de paralisia decisória. Embora mobilizado pelas demandas do movi-
mento social, resguarda—se de decisões de caráter mais efetivo quando se trata
de combater o que o movimento social vem identificando como desigualdade
'racial'. As críticas que se dirigem ao governo fundamentam-se, em geral, na as-
sertiva de que ele ainda se vale de princípios universalistas ou mesmo do [mito
da democracia racial', e que tais crenças não permitiriam uma atuação política
mais vigorosa de combate a todas as formas de racismo e de desigualdade no
Brasil.
Longe de concluir pela incompetência tecnocrática ou pela ingenuida—
de ideológica do atual governo, ou mesmo pela crítica fácil de manutenção do
*mito da democracia racial', sugiro que possa ser mais interessante examinar o
dilema em relação ao qual o governo, não menos que a sociedade, ainda en—
contra dificuldade para “transpor.
O tema das desigualdades raciais e de seu combate por meio de políticas
públicas vem frequentando quase diariamente as páginas de jornais, as seções
de cartas e as bem-intencionadas colunas dos articulistas da grande imprensa.
E isso para não falar do Jornal Nacional e do Fantástico, todos empenhados em
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Para mim e' um privilégio ser presidente da República quando o Brasil cele-
bra cem anos da Abolição, de poder proclamar com orgulho a raça negra li-
vre, aquela que aqui chegou com sua sensibilidade criativa, com sua músi-
ca, com sua beleza, com sua cultura. Os negros trouxeram da África o que
há de comovente e original na alma brasileira. (Discurso de José Sarney, por
ocasião do Centenário da Abolição, Serra da Barriga, 1988)2
1 Deve—se sublinhar, entretanto, que da perspectiva do debate intelectual, esse 'pacto' já fora
quebrado desde a década de 1950, particularmente com os trabalhos de Florestan Fernandes
(1978). '
2 Mais recentemente, o senador José Sarney vem contemplando o problema da discriminação
racial em versão menos culturalista. Seu Projeto de Lei de 1999 (nª 650), que institui quotas de
ação afirmativa para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação
e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, assume um tom
cujo apelo à justiça e à reparação é fortemente sublinhado e cuja referência às políticas de
ação afirmativa aplicadas no contexto racial norte-americano e' particularmente ressaltada. Cf.
() site: http://www.interlegis.gov.br.
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Políticas Públicas e Desigualdade Racial
3 Nesse espírito, o racismo torna—se crime imprescritível e inafiançável pelo Art. 5, XLII.
4 Cf. Neves, M. Estado democrático de direito e discriminação positiva: um desafio para 0 Bra—
sil. In: Souza, ]. (Org.) Multiculturalísmo e Racismo: uma comparação Brasil — Estados Unidos. Brasí-
lia: Paralelo 15, 1997.
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Políticas Públicas e Desigualdade Racial
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ETNICIDADE NA AMÉRICA LATINA
Por isso, nas soluções para esses problemas, não devemos simplesmente
imitar. Temos que usar a criatividade. A nossa ambiguidade, as caracterís-
ticas nâo—cartesianas do Brasil que dificultam em tantos aspectos, também
podem ajudar em outros. Devemos buscar soluções que não sejam pura e
simplesmente a repetição, & cópia de soluções imaginadas para situações
onde também há discriminação, onde também há preconceito, mas num
contexto diferente do nosso. É melhor, portanto, buscarmos soluções mais
irnaginativas.8
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338»
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Acho que a complexidade da nossa formação cultural deve ser usada de uma
maneira criativa. Aqui temos discriminação, aqui temos preconceito, mas as
aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. Ou seja, não é o mesmo tipo
de discriminação, não é o mesmo tipo de preconceito de outras formações
culturais. (Cardoso, 1998: 19)
O mundo será sempre bom e mau ao mesmo tempo, para desalento dos ma-
niqueístas. Fico a me perguntar se não é exatamente assim que nós, brasilei-
ros, costumamos sentir o nosso entorno. Nada nos soa absolutamente posi-
tivo ou írremediavelmente negativo. Somos refratários a lógicas binárias,
onde as opções são mutuamente excludentes... Tenho me pronunciado nas
últimas semanas contra o discurso do choque das civilizações. E continua-
rei a fazê-lo. Se não fizesse estaria traindo não apenas as lições do candom-
blé, mas o espírito do povo brasileiro, que sempre soube matizar suas cir-
cunstâncias. Um povo que repudia o terrorismo, mas se preocupa com as
causas da intolerância e da exclusão. Um povo que é parte do ocidente ju-
daico-cristão, mas não se esgota nessa dimensão de sua cultura... Por tudo
isso, hoje é um dia de grande alegria. Quero terminar dizendo que tenho
uma grande emoção de ser Presidente de um Brasil negro, de um Brasil mes-
tiço, de um Brasil branco. (Cardoso, 2001: 5-6) (cf. nota de rodapé nª 7)
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doenças que acometem especificamente a população negra e que por isso me-
recem ser reconhecidas cientifica, política e sociologicamente em sua nature—
za étnico—racial. Para Oliveira, como informa no texto desta coletânea, quanto
mais cegos aos aspectos étnico—raciais de determinadas doenças, menores as
chances de sucesso na sua prevenção e no seu combate:
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Conclusão
Observamos nos últimos anos que o cenário das relações raciais no Brasil vem
mudando visivelmente. Socializam-se novas idéias e ate' inéditas percepções
sobre a questão racial, elaboram—se diagnósticos e propõem-se criativamente
estratégias de ação por *velhos' e *novos' atores sociais, a fim de alterar & dinâ—
mica da discriminação racial quase sempre Oblíqua e de perversas consequên-
cias para a população negra.
Algumas importantes ordens de consideração sobre a dinâmica das re-
lações raciais podem ser sublinhadas: a primeira se refere à percepção já cor-
rente, também entre as elites, de que o Brasil é marcado por profundas desi-
gualdades sociais e que um dos pilares mais relevantes desse desajuste tem sua
origem nas desigualdades produzidas por discriminação racial. Contudo, à
percepção generalizada de que há racismo no Brasil, não se segue, necessaria—
mente, a identificação consensual de quais seriam os agentes desse racismo.
As estatísticas oficiais estão aí e nos defrontam com a baixa qualidade de Vida,
com dificuldades de acesso à educação e à saúde, com o aumento do desem-
prego. Enfim, com uma gama de obstáculos que atinge muito diretamente e,
em maior, grau, a população negra deste país.
A segunda refere-se às percepções, não tão correntes, que ainda de for—
ma silenciosa estâo relativizando o papel do Estado, tradicionalmente Visto co-
mo crucial, como ator em cuja fonte encontrar—se—ia & grande solução para os
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Referências bibliográficas
-—-——-———————-—-——_—_—.___—_________—
Formato: 16 x 23cm
Tipologia: Charllote (miolo e capa)
Papel: Pólen Bold 7Og/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Fotolitos: Graftipo Gráfica e Editora Ltda. (capa)
Impressão e acabamento: Imprinta Gráfica e Editora Ltda.
Rio de Janeiro, maio de 2004.
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