Bergson - Textos Escolhidos
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(pág 112)
A verdade é que a adaptacao explica as sinuosidades do movimento evolutivo, mas nao
as direcoes gerais do movimento, muito menos o proprio movimento'. A estrada que
leva a cidade por forca tem que subir pelas recostas e descer pelas vertentes, adapta-se
aos acidentes do terreno; mas os acidentes de terreno nao sao causa da estrada nem
tampouco lhe imprimiram a direção. Fornecem-lhe a cada instante o indispensavel, o
proprio solo sabre o qual se assenta; mas, se consideramos o todo da estrada e nao mais
cada uma de suas partes, os acidentes de terreno ja nao aparecem senao como
contratempos ou causas de atraso, pois a estrada visava apenas a cidade e teria
preferido ser uma linha reta. O mesmo vale para a evolução da vida e para as
circunstancias que atravessa, corn esta diferença, todavia, de que a evolução nao
desenha uma estrada única, de que se embrenha em direções sem no entanto visar
objetivos e de que, por firn, permanece inventiva ate em suas adaptações.
Mas se a evolução da vida é algo diferente de uma serie de adaptaçoes a
circunstancias acidentais, tampoico e a realizaçao de urn plano. Um plano é dado por
antecipação. É representado, ou pelo menos representavel, antes do detalhe de sua
realizaçao. A sua execução cornpleta pode ser transferida para um porvir longínquo e
pode ate mesmo ser recuada indefinidamente; sua ideia nem por isso deixa de ser
formulavel, desde ja, em termos atualmente dados. Pelo contrario, se a evolucao é uma
criação incessantemente renovada, vai criando, passo a passo, nao apenas as formas da
vida, mas as ideias que permitiriam a uma inteligencia cornpreende-la, os termos que
serviriam para expressa-la. O que significa que seu porvir transborda seu presente e
nao poderia desenhar-se nele por meio de uma ideia.
Nisso consiste o primeiro erro do finalismo. Esse erro acarreta outro, ainda mais
grave.
(Página 113)
Se a vida realiza um plano, terá de manifestar uma harmonia mais alta à medida que
for mais adiante. Assim, a casa desenha cada vez melhor a ideia do arquiteto à
medida que as pedras sobem sobre as pedras. Pelo contrario, se a unidade da vida está
inteira no elã que a impele pela estrada do tempo, a harmonia não está na frente,
mas atrás. A unidade vem de uma vis a tergo: não é posta no final como uma atração, é
dada no começo como uma impulsão. O elã, ao comunicar-se, divide-se cada vez
mais. A vida, ao mesmo passo de seu progresso, espalha-se em manifestacões que
certamente deverão à comunidade de sua origem o fato de serem complementares
umas às outras sob certos aspectos, mas que nem por isso deixarão de ser
antagonistas e incompativeis entre si. Assim, a desarmonia entre as especies irá se
acentuando. E, até agora, assinalamos apenas sua causa essencial. Supusemos, para
simplificar, que cada especie aceitasse a impulsão recebida para transmití-la a
outras e que, em todas as direções em que a vida evolui, a propagaçao se efetuasse
em linha reta. Na verdade, há especies que se detem, outras há que arrepiam
carninho. A evolucao nao é apenas urn movimento para a frente; em muitos casos,
observa-se uma patinhagem ,e, mais frequentemente ainda, urn desvio ou um recuo.
É preciso que assim seja, como mostraremos mais adiante, e as mesmas causas que
cindem o movimento evolutivo fazem corn que a vida, ao evoluir, se distraia
freqidentemente de si mesma, hipnotizada pela forma que acaba de produzir. Mas
resulta daí uma desordem crescente. Sem dúvida, há progresso, se entendemos por
progresso uma marcha contínua na direção geral que uma impulsão primeira
determinou, mas esse progresso só se realiza nas duas ou três grandes lin has de
evolucao nas quais vêm desenhar-se formas cada vez mais complexas, cada vez mais
altas: em meio a essas linhas corre urn sem-fim de vias secundarias nas quais, pelo
contrario, se multiplicam os desvios, as paradas e os recuos. O filósofo, que havia
começado por pôr como princípio que cada detalhe se vincula a um plano de
conjunto, vai de decepção em decepçao a partir do dia em que aborda o exame dos
fatos; e, como havia colocado tudo no mesmo nível, eis que agora, por não ter querido
dar lugar para o acidente, passa a acreditar que tudo é acidental. É preciso começar,
pelo contrario, por restituir ao acidente sua legitima parte, e ela é bem grande.
Cumpre reconhecer que nem tudo é coerente na natureza. Ao faze-lo, seremos levados
a determinar os centros em torno dos quais a incoerencia se cristaliza. E essa
cristalizacao ela propria esclarecerá todo o resto: as grandes direções surgi rão, nas
quais a vida se move desenvolvendo a impulsão original. Não se assistirá, é verdade,
à execução detalhada de um plano. Há mais e melhor aqui do que urn plano que se
realiza. Urn plano é um termo conferido a urn trabalho: fecha o porvir do qual
desenha a forma. Frente à evolução da vida, pelo contrário, as portas do porvir
permanecem abertas de par em par. É uma criação que prossegue sem fim, em
virtude de urn movimento inicial. Esse movimento faz a unidade do mundo
organizado, unidade fecunda, de uma riqueza infinita, superior àquilo que qualquer
inteligencia poderia sonhar, uma vez que a inteligência é apenas um de seus aspectos
ou produtos.
Mas é mais facil definir o metodo do que aplica-lo. A interpretacao completa do
movimento evolutivo no passado, tal como nós o concebemos, só seria possivel se a
história do mundo organizado estivesse pronta. Estamos longe de um tal resultado. As
genealogias propostas para as diversas especies sao, o mais das vezes, problematicas.
Variam corn os autores, corn as visoes teóricas nas quais se inspiram, e levantam
debates que o estado atual da ciencia nao permite decidir. Mas, comparando as diversas
soluções entre si, veremos que a controversia versa antes sobre o detalhe do que sobre
as grandes linhas. Seguindo as grandes linhas de tao perto quanto possivel, portanto,
teremos certeza de nao nos extraviar. Apenas elas nos importam, alias, pois nao
visamos, como o naturalista, reencontrar a ordem de sucessao das diversas especies,
mas apenas definir as direeoes principais de sua evolueao. E, alem disso, essas direeoes
nao tern today para nos o mesmo interesse: e da via que leva ao homem que precisamos
nos ocupar mais particularmente. Nao perderemos de vista, entao, ao segui-las, que se
trata sabretudo de determinar a relacao do homem corn o conjunto do reino animal e o
lugar do reino animal ele proprio no conjunto do mundo organizado.