A Desilusão de Deus
A Desilusão de Deus
A Desilusão de Deus
A DESILUSÃO DE DEUS
Tradução
Lígia Rodrigues
Maria João Camilo
IN MEMORIAM
Douglas Adams
(1952-2001)
Quando a minha mulher era criança, por tanto detestar a escola que
frequentava queria deixá-la. Mais tarde, já com mais de vinte anos, revelou
aos pais este triste facto, o que deixou a mãe horrorizada: «Mas, minha
querida, porque não nos contaste?» A resposta de Lalla é o meu tema de
hoje: «Mas eu não sabia que podia contar.»
Eu não sabia que podia.
Parece-me – aliás, tenho a certeza – que há por aí muitas pessoas que
foram educadas de acordo com uma determinada religião, que são infelizes
nela, que não acreditam nela ou que se preocupam com os males cometidos
em nome dela; são pessoas que sentem uma vaga ânsia de deixar a religião
dos pais e gostariam de o fazer, mas que pura e simplesmente não
compreendem que isso é uma opção. Se o leitor é uma dessas pessoas, este
livro é-lhe dirigido. Ele tem como objectivo despertar consciências –
despertar consciências para o facto de que ser ateu é uma aspiração que,
além de realista, é corajosa e admirável. É possível ser-se ateu sem deixar
de ser uma pessoa feliz, equilibrada, com sentido moral, e intelectualmente
realizada. Esta é a primeira das mensagens com que pretendo despertar
consciências. Quero também fazê-lo de três outras formas, sobre as quais
me deterei adiante.
Em Janeiro de 2006, apresentei no Channel Four da televisão britânica
um documentário em duas partes intitulado Root of All Evil? («A Raiz de
Todos os Males?»). O título desagradou-me desde logo. A religião não é a
raiz de todos os males, uma vez que não há nada que, por si, seja a raiz de
qualquer todo. Mas deliciou-me o anúncio que o Channel Four divulgou nos
jornais nacionais. Era uma imagem do contorno do topo dos edifícios de
Manhattan, com a legenda «Imagine um mundo sem religião». Qual era a
ligação? Saltava aos olhos a presença das torres gémeas do World Trade
Center.
Imagine-se, com John Lennon, um mundo sem religião. Imagine-se que
não há bombistas suicidas, 11 de Setembro, atentados de Londres, cruzadas,
caça às bruxas, conspiração da pólvora, divisão da Índia, guerras israelo-
palestinianas, massacres de sérvios/croatas/muçulmanos, perseguição de
judeus enquanto «assassinos de Cristo», «problemas» na Irlanda do Norte,
«assassínios por motivos de honra», televangelistas de fato lustroso e cabelo
armado a tosquiar o dinheiro de rebanhos ingénuos («Deus quer que dês até
te doer»). Imagine-se que não há talibãs a fazer explodir estátuas antigas,
decapitações públicas de blasfemos, flagelação de mulheres por exibirem
um centímetro de pele. A propósito, o meu colega Desmond Morris faz-me
saber que nos Estados Unidos a magnífica canção de John Lennon é, por
vezes, entoada com expurgação da frase and no religion too. Há mesmo
uma versão que tem o descaramento de a alterar para and one religion too. 1
Hoje em dia, o estatuto dos ateus nos Estados Unidos está ao mesmo nível
do dos homossexuais há 50 anos. Agora, depois do movimento do Orgulho
Gay, é possível, embora ainda não muito fácil, um homossexual ser eleito
para desempenhar cargos públicos. Numa sondagem levada a cabo em 1999
pela Gallup, perguntava-se aos Americanos se votariam numa pessoa bem
habilitada e que fosse mulher (95 por cento de respostas afirmativas),
católica (94 por cento de respostas afirmativas), judia (92 por cento), negra
(92 por cento), mórmon (79 por cento), homossexual (79 por cento), ou
ateia (49 por cento). É óbvio que ainda há um longo caminho a percorrer,
mas os ateus são bastante mais numerosos, sobretudo entre a elite mais
instruída, do que muitos possam pensar. Já era assim no século XIX, o que
permitiu a John Stuart Mill afirmar que «O mundo ficaria espantado se
soubesse quantos dos seus mais brilhantes ornatos, dos que mais se
distinguem em apreço popular pela sua sabedoria e virtude, são
completamente cépticos em matéria de religião.»
Isto deve ser ainda mais certo hoje em dia e, com efeito, apresento provas
disso no capítulo terceiro. A razão pela qual tantas pessoas não se
apercebem dos ateus prende-se com o facto de muitos de nós terem
relutância em «assumir-se». O meu sonho é que este livro possa ajudar as
pessoas a assumirem-se. Exactamente como no caso do movimento gay,
quanto mais pessoas o fizerem, mais fácil será aos outros juntarem-se-lhes.
É possível que seja necessária uma certa massa crítica para iniciar uma
reacção em cadeia.
As sondagens norte-americanas sugerem que o número de ateus e
agnósticos ultrapassa em muito o dos judeus religiosos e é mesmo superior
ao da maioria dos outros grupos religiosos. No entanto, ao contrário dos
judeus, que constituem claramente um dos lóbis políticos mais eficazes dos
Estados Unidos, e ao contrário dos cristãos evangélicos, que detêm um
poder político ainda maior, os ateus e os agnósticos não estão organizados e,
portanto, a influência que exercem é pouco mais do que zero. De facto, a
tarefa de organizar ateus já foi comparada a arrebanhar gatos, porquanto
tendem a pensar de forma independente e a não se submeterem à
autoridade. Mas um bom primeiro passo seria ir acumulando massa crítica
com os que estão dispostos a «assumirem-se», encorajando assim os
restantes a fazer o mesmo. Ainda que não seja possível arrebanhar gatos,
estes quando em número suficiente fazem muito barulho e não há como
ignorá-los.
A palavra «delusão», usada no meu título , incomodou alguns psiquiatras,
3
que, por a consideram um termo técnico, acham que não deve ser usada de
ânimo leve. Três deles escreveram-me a propor um termo técnico específico
para a delusão religiosa: «relusão». Talvez venha a pegar, mas para já fico-
4
Há já alguns anos que este livro tem vindo a germinar na minha cabeça.
Durante esse tempo, algumas das ideias acabaram inevitavelmente por ser
utilizadas em conferências, como, por exemplo, as Conferências Tanner,
que proferi em Harvard, bem como em artigos de jornais e revistas.
Sobretudo os leitores da minha coluna habitual na Free Inquirer poderão
achar familiares alguns trechos aqui presentes. Agradeço a Tom Flynn,
director dessa excelente revista, pelo seu estímulo quando me contratou
como colunista regular. Após uma paragem temporária durante a finalização
do livro, espero agora retomar a minha coluna e irei sem dúvida usá-la para
enfrentar o rescaldo da publicação.
Por razões diversas, desejo agradecer a Dan Dennett, Marc Hauser,
Michael Stirrat, Sam Harris, Helen Fisher, Margaret Downey, Ibn Warraq,
Hermione Lee, Julia Sweeney, Dan Barker, Josephine Welsh, Ian Baird e
principalmente a George Scales. Hoje em dia um livro como este não está
completo até se tornar o núcleo de um website activo, um fórum de
materiais suplementares, reacções, discussões, perguntas e respostas – e o
mais que o futuro reserve. Espero que www.richarddawkins.net/, a página
da Richard Dawkins Foundation for Reason and Science (Fundação Richard
Dawkins em prol da Razão e da Ciência), venha a cumprir esse papel, e
agradeço imenso a Josh Timonen pela capacidade artística, pelo
profissionalismo e pelo trabalho árduo que lhe tem dedicado.
Agradeço principalmente à minha mulher, Lalla Ward, que me foi
encorajando por entre as minhas hesitações e dúvidas interiores. Devo-lhe
não só o apoio moral e as argutas sugestões de melhoramento, mas também
o ter-me lido em voz alta a totalidade do livro em dois estádios diferentes do
seu desenvolvimento, para que eu pudesse perceber de forma muito directa
como ele poderia soar a outro leitor que não eu. Recomendo a técnica a
outros autores, mas devo avisar de que, para obter melhores resultados, o
leitor tem de ser um actor profissional, de voz e ouvido delicadamente
sintonizados com a música da língua.
1 Respectivamente «e também sem religião» e «e também uma religião». (N. das T.)
2 Wendy Kaminer, «The last taboo: why America needs atheism», New Republic, 14 de Outubro de
1996.
4 Dra. Zoë Hawkins, Dra. Beata Adams e Dr. Paul St. John Smith, contacto pessoal.
5 No momento em que o livro em edição de bolso foi para o prelo, a resposta era ainda negativa. No
entanto, encontram-se agora disponíveis DVD, em http://richarddawkins.net/store.
Prefácio à edição de bolso
Pode ser que os ateus tenham razão acerca de Deus. Quem sabe? Mas
quer haja Deus quer não, torna-se claro que alguma coisa na alma
humana exige uma crença de que a vida tenha um objectivo que
transcenda o plano material. Seria de pensar que um empirista ultra-
racional como Dawkins estaria em condições de reconhecer este
aspecto inalterável da natureza humana... será que Dawkins pensa
mesmo que este mundo seria um lugar mais humano se, na nossa busca
de verdade e conforto, fôssemos agora todos trocar a Bíblia por A
Desilusão de Deus?
Efectivamente, e já que fala de «humano», penso que sim, que seria, mas
devo repetir uma vez mais que a eventual carga de consolo de uma
determinada crença não faz subir o respectivo valor em termos de verdade.
É claro que não posso negar a necessidade de conforto emocional, tal como
não posso pretender que a visão do mundo adoptada neste livro proporciona
mais do que um conforto moderado às pessoas enlutadas, por exemplo. Mas
se o conforto que a religião parece proporcionar se baseia na premissa
neurologicamente muito pouco plausível de que sobrevivemos à morte dos
nossos cérebros, será que queremos mesmo defendê-la? Seja como for, não
creio ter alguma vez conhecido em funerais quem discordasse da ideia de
que as partes não religiosas da cerimónia (o elogio fúnebre, as peças
musicais ou os poemas favoritos do falecido) são mais comoventes do que
as orações.
Após ter lido A Desilusão de Deus, o Dr. David Ashton, um médico
especialista britânico, escreveu-me acerca da morte inesperada do seu
querido filho de 17 anos, Luke, no dia de Natal de 2006. Pouco antes da
morte de Luke, pai e filho tinham conversado favoravelmente sobre a
fundação de solidariedade social que estou a criar para fomentar as causas
da razão e da ciência. No funeral de Luke, realizado na ilha de Man, o pai
sugeriu às pessoas ali reunidas que, se desejassem dar alguma espécie de
contributo em memória do filho, o deveriam remeter para a minha
fundação, tal como Luke teria desejado. Os 30 cheques recebidos atingiram
um montante superior a 2000 libras, incluindo mais de 600 libras
conseguidas numa colecta realizada no pub da aldeia. Tornou-se claro que
este rapaz era muito amado. Quando li a Ordem de Serviço Religioso para a
cerimónia fúnebre, chorei literalmente, embora nunca tivesse conhecido o
jovem, e pedi permissão para reproduzi-la em RichardDawkins.net. Alguém
tocou, numa gaita-de-foles, o lamento manês «Ellen Vallin». Dois amigos
fizeram os elogios. O próprio Dr. Ashton recitou o belo poema de Dylan
Thomas «Fern Hill» («Era eu jovem e sem cuidados, sob os ramos da
macieira»), tão dolorosamente evocativo da juventude perdida. E de
seguida, digo-o com grande emoção, leu as linhas iniciais do meu livro
Decompondo o Arco-íris, linhas essas que já há muito destinei para leitura
no meu próprio funeral.
Vamos morrer e por isso somos nós os bafejados pela sorte. A maior
parte das pessoas nunca vai morrer, porque nunca vai chegar a nascer.
As pessoas potenciais que poderiam ter estado aqui em meu lugar, mas
que na verdade nunca verão a luz do dia, excedem em número os grãos
de areia do deserto do Sara. Seguramente que nesses fantasmas que não
vão chegar a nascer se incluem poetas maiores do que Keats e maiores
cientistas do que Newton. Sabemos isto porque o conjunto de pessoas
potenciais permitido pelo nosso ADN é esmagadoramente superior ao
conjunto de pessoas com existência efectiva. Não obstante esta ínfima
probabilidade, sou eu, somos nós, que, na nossa vulgaridade, aqui
estamos...
Respeito merecido
O rapaz estava deitado sobre a relva com o queixo apoiado nas mãos. De
repente sentiu-se dominado por uma clara consciência do emaranhado de
caules e raízes, uma floresta em microcosmos, um mundo transfigurado de
formigas e escaravelhos e - embora ele não soubesse os pormenores naquela
altura - até de milhares de milhões de bactérias do solo a escorar, em
silêncio e de forma invisível, a economia do micromundo. De repente a
microfloresta da relva pareceu crescer e unir-se ao universo, com a mente
absorta do rapaz a contemplá-la. Ele interpretou a experiência em termos
religiosos, o que acabou por conduzi-lo ao sacerdócio. Foi ordenado padre
anglicano e tornou-se capelão da minha escola e um professor de quem eu
gostava. Foi graças a sacerdotes justos e liberais como ele que nunca
ninguém pôde afirmar que a religião me foi imposta. 6
Num outro tempo e num outro lugar, aquele rapaz podia ter sido eu sob as
estrelas, deslumbrado com Oríon, Cassiopeia e a Ursa Maior, banhado em
lágrimas com a inapreensível música da Via Láctea, inebriado com o
perfume nocturno de frangipani e jasmim-da-virgínia num jardim africano.
Por que razão a mesma emoção conduziu o sacerdote numa direcção e a
mim noutra, é uma pergunta à qual não é fácil responder. É comum, entre
cientistas e racionalistas, uma resposta quase mística à natureza e ao
universo. Isso não tem qualquer ligação com a crença no sobrenatural. Pelo
menos na sua adolescência, o meu capelão (tal como eu) não estava
provavelmente consciente das linhas finais da Origem das Espécies - o
famoso passo da «margem luxuriante», «com pássaros a cantarem nos
arbustos, com insectos vários volteando no ar e vermes a rastejarem pela
terra húmida». Se ele estivesse consciente disto, ter-se-ia com certeza
identificado com isso e em vez do sacerdócio, podia ter sido levado à
opinião de Darwin segundo a qual tudo foi «gerado por leis que actuam à
nossa volta»:
Como é possível que quase nenhuma das grandes religiões tenha olhado
para a ciência e concluído: «Isto é melhor do que pensávamos! O
universo é muito mais vasto, mais misterioso, elegante e magnífico do
que os nossos profetas disseram»? Em vez disso, dizem: «Não, não,
não! O meu deus é um deus pequeno e eu quero que continue assim.»
Uma religião, velha ou nova, que realçasse o esplendor do universo tal
como ele nos é revelado pela ciência moderna, estaria em condições de
mobilizar reservas de reverência e de espanto dificilmente suscitadas
pelos credos convencionais.
Weinberg tem toda a razão ao afirmar que, para a palavra Deus não se
tornar completamente inútil, ela deve ser usada da forma que as pessoas, de
uma maneira geral, a têm interpretado: para se referirem a um criador
sobrenatural que se mostra «adequado à nossa adoração».
É grande e lamentável a confusão causada pela falha na distinção entre
aquilo que pode ser chamado religião einsteiniana e a religião sobrenatural.
Einstein invocou algumas vezes o nome de Deus (e não é o único cientista
ateu a fazê-lo), provocando equívocos da parte de sobrenaturalistas ansiosos
por o treslerem e reclamarem um tão distinto pensador como um dos seus.
O final dramático (ou malicioso?) de Uma Breve História do Tempo, de
Stephen Hawking, «pois nessa altura devíamos conhecer a mente de Deus»,
é claramente mal interpretado. Fez com que as pessoas acreditassem,
erradamente, que Hawking é um homem religioso. A bióloga celular Ursula
Goodenough, em The Sacred Depths of Nature, dá mostras de ser mais
religiosa do que Hawking ou Einstein. Adora igrejas, mesquitas e templos, e
são muitos os passos do seu livro que parecem estar mesmo a pedir que
sejam retirados do contexto e usados como munição para a religião
sobrenatural. A autora chega ao ponto de chamar-se uma «naturalista
religiosa». Contudo, uma leitura atenta do seu livro mostra que é uma ateia
tão convicta como eu.
«Naturalista» é uma palavra ambígua. Para mim, evoca o meu herói de
infância, o doutor Dolittle, de Hugh Lofting (que, a propósito, tinha mais do
que um traço do «naturalista» filósofo a bordo do Beagle). Nos séculos XVIII
e XIX, naturalista significava o que ainda significa hoje para a maioria de
nós: um estudioso do mundo natural. Naturalistas neste sentido, desde
Gilbert White, têm sido, muitas vezes, os sacerdotes. O próprio Darwin
quando jovem estava destinado à Igreja, na esperança de que a vida
desocupada de um vigário de província lhe permitisse dedicar-se à sua
paixão por escaravelhos. Mas os filósofos usam a palavra «naturalista» num
sentido muito diferente, como o oposto de sobrenaturalista. Julian Baggini
explica, em Atheism: A Very Short Introduction, o significado do
compromisso do ateu com o naturalismo: «Aquilo em que a maioria dos
ateus acredita é que, embora haja um único tipo de coisa no universo, e que
seja físico, dessa coisa surgem a mente, a beleza, as emoções, os valores
morais - em suma, toda a série de fenómenos que tornam a vida mais rica.»
As emoções e pensamentos humanos emergem de interligações
extremamente complexas de entidades físicas com o cérebro. Um ateu,
neste sentido de naturalista filosófico, é alguém que acredita que não há
nada para além do mundo físico, natural, que não há uma inteligência
criativa sobrenatural escondida por detrás do universo observável, que não
há uma alma que perdure para além do corpo e que não há milagres -
excepto no sentido de fenómenos naturais que ainda não compreendemos.
Se há algo que pareça estar para além do mundo natural, tal como hoje, de
forma imperfeita, o compreendemos, esperamos um dia compreendê-lo e
torná-lo parte do natural. Tal como sempre que se decompõe um arco-íris,
ele não é menos maravilhoso por isso.
Os grandes cientistas do nosso tempo que parecem religiosos acabam por
demonstrar não o ser quando se examinam as suas crenças em pormenor. É
certamente isto o que acontece no caso de Einstein e Hawking. O actual
astrónomo real e presidente da Royal Society, Martin Rees, disse-me que
vai à igreja como «anglicano descrente... por lealdade para com a tribo».
Não tem crenças teístas, mas partilha do naturalismo poético que o cosmos
provoca nos outros cientistas por mim mencionados. No decorrer de uma
conversa recentemente transmitida pela televisão, desafiei o meu amigo
obstetra Robert Winston, um respeitado sustentáculo dos judeus britânicos,
a admitir que o seu Judaísmo tinha exactamente este carácter e que na
realidade ele não acreditava em nada que fosse sobrenatural. Esteve perto de
o admitir, mas acabou por recuar (para falar com franqueza, era
supostamente ele que me devia entrevistar e não o contrário). Após a minha
7
Será que Einstein se contradisse? Será que as suas palavras podem ser
escolhidas para citação de modo a apoiar as duas partes da discussão? Não.
Com «religião» Einstein quis dizer algo completamente diferente daquilo a
que convencionalmente nos referimos. Quando procuro clarificar a
distinção entre, por um lado, religião sobrenatural e, por outro, religião
einsteiniana, tenha-se presente que apenas considero ilusórios os deuses
sobrenaturais.
Aqui estão algumas citações de Einstein para dar a saborear a religião
einsteiniana.
Dr. Einstein, respeitamos a sua formação, mas há uma coisa que parece
não ter aprendido: que Deus é um espírito e não pode ser visto num
telescópio ou num microscópio, tal como a emoção ou o pensamento
humano não podem ser encontrados ao analisar-se o cérebro. Como
toda a gente sabe, a religião tem como base a fé e não o conhecimento.
Cada pessoa racional é, talvez, de vez em quando assaltada pela dúvida
religiosa. A minha própria fé vacilou muitas vezes. Mas nunca falei a
ninguém das minhas aberrações espirituais por dois motivos: (1) temia
que pudesse, por mera sugestão, perturbar e prejudicar a vida e
esperanças de algum semelhante; (2) porque concordo com o escritor
que disse que «há um laivo de maldade em cada pessoa capaz de
destruir a fé do outro»... Dr. Einstein, espero que o tenham citado
incorrectamente e que apesar disso diga algo mais agradável ao vasto
número de norte-americanos que o têm em grande consideração.
Respeito imerecido
O título A Desilusão de Deus não se refere ao Deus de Einstein nem aos
dos outros cientistas iluminados da secção anterior. É por esta razão que
precisava, em primeiro lugar, de arrumar esta questão da religião
einsteiniana, que já deu mostras de ter capacidade para confundir. No que
resta deste livro vou falar apenas de deuses sobrenaturais, dos quais o mais
familiar à maioria dos leitores é Javé, o Deus do Antigo Testamento. Em
breve lá chegaremos. Mas antes de abandonar este capítulo preliminar
preciso de tratar de mais um assunto que, de outra forma, iria baralhar o
livro por completo. Desta vez é uma questão de etiqueta. É possível que os
leitores com sensibilidade religiosa se sintam ofendidos com aquilo que
tenho a dizer e que encontrem nestas páginas respeito insuficiente para com
as suas próprias crenças (se não mesmo para com as crenças que outros
prezam). E porque seria uma pena se tal ofensa os impedisse de continuar a
leitura, quero esclarecê-lo aqui, no início.
Há uma ideia generalizada, que quase todos na nossa sociedade aceitam -
incluindo os não-religiosos -, de que a fé religiosa é particularmente
vulnerável à ofensa e que deve ser protegida por uma invulgarmente grossa
muralha de respeito, respeito esse de uma ordem diferente daquele que
qualquer ser humano deve ter para com o seu semelhante. Douglas Adams,
num discurso improvisado em Cambridge pouco antes da sua morte , 9
Mal sabia eu que algo muito semelhante iria acontecer no século XXI. O
Los Angeles Times (10 de Abril de 2006) dava conta de que vários grupos
cristãos em diversos campus universitários dos Estados Unidos estavam a
processar as suas universidades por aplicarem regras antidiscriminação que
incluíam a proibição de assédio e maus tratos de homossexuais. Um
exemplo típico ocorreu em 2004 quando James Nixon, um rapaz de 12 anos
do Ohio, lhe viu concedido em tribunal o direito de usar na escola uma T-
shirt com a inscrição «A homossexualidade é pecado, o Islão uma mentira,
o aborto é assassínio. Algumas questões são a preto e branco.» A escola
14
fotografia não tinha qualquer tipo de ligação com o profeta Maomé, com o
Islão nem com a Dinamarca. Mas os activistas muçulmanos, lançando a
discórdia na sua marcha até ao Cairo, deixaram no ar estas três
insinuações... com resultados previsíveis.
A «injúria» e «ofensa» assim cuidadosamente alimentadas provocaram
uma crise explosiva cinco meses após a primeira publicação das 12
caricaturas. Manifestantes no Paquistão e na Indonésia queimaram
bandeiras dinamarquesas (onde foi que as arranjaram?) e foram feitas
exigências histéricas para que o Governo dinamarquês apresentasse
desculpas (desculpas de quê? Eles não desenharam as caricaturas nem as
publicaram. Os Dinamarqueses vivem simplesmente num país com
liberdade de imprensa, algo que as pessoas de muitos países islâmicos
podem ter dificuldade em compreender.) Jornais da Noruega, da Alemanha,
da França e até dos Estados Unidos (com a gritante excepção da Grã-
Bretanha) reeditaram as caricaturas num gesto de solidariedade para com o
Jyllands-Posten, o que veio deitar ainda mais achas na fogueira.
Embaixadas e consulados foram vandalizados, os produtos dinamarqueses
boicotados, os cidadãos dinamarqueses, e, de um modo geral, os ocidentais,
fisicamente ameaçados; e igrejas cristãs no Paquistão, mesmo sem
quaisquer ligações com a Dinamarca ou a Europa, incendiadas. Nove
pessoas foram mortas quando desordeiros líbios atacaram e incendiaram o
Consulado italiano em Bengasi. Como Germaine Greer escreveu, aquilo de
que estas pessoas realmente mais gostam e que sabem fazer melhor é gerar
pandemónio. 18
Pode até ser moderado, julgando pelos actuais padrões islâmicos, mas de
acordo com o relato de Andrew Mueller, ainda mantém o comentário que
fez aquando da condenação à morte de Salman Rushdie pela escrita de um
romance: «A morte é talvez demasiado boa para ele» - um comentário que o
coloca, enquanto muçulmano mais influente da Grã-Bretanha, em desonroso
contraste com o seu corajoso antecessor, o falecido Dr. Zaki Badawi, que
ofereceu asilo a Salman Rushdie na sua própria casa. Sacranie falou a
Mueller da sua preocupação com as caricaturas dinamarquesas. Também
Mueller estava receoso, mas por outra razão: «Preocupa-me que a reacção
desproporcionada e ridícula a alguns desenhos sem piada divulgados num
jornal escandinavo pouco conhecido venha confirmar que... o Islão e o
Ocidente são radicalmente irreconciliáveis.» Por outro lado, Sacranie
elogiou os jornais britânicos por não terem reeditado as caricaturas, ao que
Mueller respondeu com a mesma suspeita da maior parte dos britânicos, ou
seja, que «a moderação dos jornais do país se deve menos à sensibilidade
para com o descontentamento muçulmano do que ao desejo de não ter as
janelas partidas».
Sacranie explicou que «a pessoa do profeta — a paz esteja com ele — é
venerada, no mundo muçulmano, tão profundamente e com um amor e
afeição tais, que não se podem exprimir por palavras. Vai muito além do
amor pelos nossos pais, entes queridos ou filhos. Faz parte da fé. Há
também um preceito islâmico segundo o qual não se representa o Profeta.»
Isto leva a supor, como Mueller fez notar,
que os valores do Islão se sobrepõem aos de qualquer um de nós - que é
o que pressupõe qualquer seguidor do Islão, tal como outro seguidor de
outra qualquer religião acredita que este é o único caminho, verdade e
luz. Se as pessoas querem amar mais um pregador do século VII do que
as suas próprias famílias é lá com elas, mas mais ninguém é obrigado a
levar isso a sério...
6 O nosso passatempo durante as aulas era fazê-lo desviar-se das escrituras para as histórias fantásticas
do Fighter Command and the Few. Ele tinha prestado serviço na Royal Air Force, e foi com
familiaridade e algum do afecto que ainda conservo pela Igreja Anglicana (pelo menos em comparação
com a concorrência) que mais tarde li o poema de John Betjeman:
O nosso capelão é um velho piloto dos céus
Cruelmente lhe cortaram agora as asas,
Mas ainda assim o mastro no jardim da reitoria
Aponta para valores mais altos...
7 O documentário televisivo de que a entrevista faz parte foi complementado com a publicação de um
livro (Winston, 2005).
8 Dennett (2006).
9 O discurso integral está transcrito em Adams (2003) sob o título «Is there an artifical God?»
12 http://scotus.ap.org/scotus/04-1084p.zo.pdf.
16 http://gatewaypundit.blogspot.com/2006/02/islamic-society-of-denmark-usedfake.html.
17 http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/4686536.stm; http://www.neandernews.com/?cat=6.
19 Andrew Mueller, «An argument with Sir Iqbal”, Independent on Sunday, 2 de Abril de 2006, secção
«Sunday Review”, 12-16.
2
A Hipótese Deus
A religião de uma época é o entretenimento literário da época
seguinte.
Ralph Waldo Emerson
Politeísmo
Não é clara a razão pela qual a passagem do politeísmo para o
monoteísmo deve ser vista como um progresso óbvio no sentido do
aperfeiçoamento. Mas o certo é que é essa a visão que impera – um
pressuposto que levou Ibn Warraq, autor de Why I Am Not a Muslim) a
conjecturar com graça que o monoteísmo está por sua vez condenado a
subtrair mais um deus e a tornar-se ateísmo. Com ligeireza, a Enciclopédia
Católica rejeita simultaneamente, de uma só penada, o politeísmo e o
ateísmo: KO ateísmo dogmático formal é auto-refutável, não tendo nunca
obtido de facto a concordância ponderada de um número considerável de
homens. Tampouco pode o politeísmo, por muito fácil que lhe seja cativar a
imaginação popular, satisfazer a mente do filósofo .»
21
Nada existe, portanto, na Trindade que seja criado, nada que seja sujeito
a outrem: nem existe nada que tenha sido acrescentado como se não
tivesse existido anteriormente, mas antes houvesse sido introduzido
mais tarde: por isso, o Pai nunca foi sem o Filho, nem o Filho sem o
Espírito Santo: e esta mesma Santíssima Trindade é imutável e para
sempre inalterável.
Monoteísmo
O grande mal indizível no centro da nossa cultura é o monoteísmo. A
partir de um texto bárbaro da Idade do Bronze conhecido como Antigo
Testamento, evoluíram três religiões anti-humanas –— o Judaísmo, o
Cristianismo e o Islamismo. Trata-se de religiões de um deus do céu.
São literalmente patriarcais – Deus é o Pai Todo-Poderoso –, daí o
desprezo pelas mulheres desde há 2000 anos nos países atormentados
por esse deus do céu e pelos seus representantes masculinos na terra.
Gore Vidal
Quanto a ele ser ou não ateu, devemos guardar alguma reserva nos
nossos juízos, quanto mais não seja por causa da prudência que ele se
viu obrigado a manter ao longo da sua vida política. Mas tal como, já
em 1787, ele próprio escrevera ao sobrinho, Peter Carr, não devemos
sentir medo de perguntar, devido a qualquer tipo de receio das suas
consequências. «Se se concluir que Deus não existe, encontrarás
incentivos à virtude no consolo e no gosto que irás sentir neste mesmo
exercício, bem como no amor que assim suscitarás nos outros.»
No seu admirável livro Atheist Universe, David Mills conta uma história
que, caso se tratasse de ficção, por certo consideraríamos uma caricatura
irrealista da intolerância policial. Um desses curandeiros que dizem curar
pela fé, um cristão que dirigia uma «cruzada milagreira», ia à cidade natal
de Mills uma vez por ano. Entre outras coisas, instigava os diabéticos a
deitarem fora a insulina e as pessoas que sofriam de cancro a desistirem da
quimioterapia, incentivando-as, em vez disso, a rezar por um milagre. Num
gesto sensato, Mills decidiu organizar uma manifestação pacífica para
avisar as pessoas. Contudo, cometeu o erro de ir à polícia informar os
agentes da sua intenção e pedir protecção policial para o caso de possíveis
ataques por parte dos apoiantes do curandeiro. O primeiro agente com quem
falou perguntou: «É pá se manifestar a favor ó contra?» (querendo dizer a
favor do curandeiro ou contra ele). Quando Mills respondeu «contra», o
agente disse que ele próprio estava a pensar ir à concentração e que fazia
tenções de cuspir na cara de Mills quando este passasse à sua frente.
Mills decidiu tentar a sua sorte com um segundo agente. Este disse que, se
algum dos apoiantes do curandeiro confrontasse Mills com violência,
prenderia Mills por «tentar interferir na obra de Deus». Mills foi para casa e
tentou telefonar para a esquadra esperando encontrar mais compreensão da
parte de algum agente de patente superior. Finalmente conseguiu ligação
com um sargento, que lhe disse: «Vá prò inferno, amigo. Não espere que a
gente aqui na polícia façamos protecção a um maldito de um ateu. Espero é
que alguém dê cabo de si.» Pelos vistos a gramática – tal como a bondade
humana e o sentido do dever – não era o forte naquela esquadra. Mills
refere que nesse dia falou com sete ou oito agentes da polícia. Nenhum
deles foi prestável e a maioria ameaçou-o de imediato com violência.
Abundam os episódios de idêntico preconceito contra os ateus, mas
Margaret Downey, fundadora da Rede de Apoio Anti-discriminação, guarda
registos sistemáticos destes casos através da Sociedade do Livre
Pensamento da Grande Filadélfia . A sua base de dados de incidentes,
29
em relação aos ateus faz com que se torne mais fácil acreditar que de facto é
praticamente impossível um ateu sincero ganhar eleições nos Estados
Unidos da América. Existem 435 membros da Câmara dos Representantes e
100 membros do Senado. Supondo que a maioria destas 535 pessoas
constituem uma amostra reveladora do conjunto da população, é
absolutamente inevitável, do ponto de vista estatístico, que um número
considerável seja ateu. Devem ter mentido ou ocultado os seus verdadeiros
sentimentos, para poderem ser eleitos. Dado o eleitorado que tinham de
convencer, quem pode culpá-los? É universalmente reconhecido que uma
admissão de ateísmo seria um suicídio político imediato para qualquer
candidato presidencial.
Estes factos respeitantes ao actual ambiente político vivido nos Estados
Unidos e aquilo que eles implicam teriam horrorizado Jefferson,
Washington, Madison, Adams e todos os seus amigos. Quer fossem ateus,
agnósticos, deístas ou cristãos, ter-se-iam encolhido de pavor perante os
teocratas da cidade de Washington deste início do século XXI. Pelo
contrário, ter-se-iam sentido próximos dos fundadores secularistas da Índia
pós-colonial, especialmente do religioso Gandhi («sou hindu, sou
muçulmano, sou judeu, sou cristão, sou budista!») e do ateu Nehru:
também muito perto de ser posta de parte pela lei da probabilidade. Voltarei
a esta questão no capítulo quarto, depois de, no capítulo terceiro, tratar as
alegadas provas da existência de Deus. Entretanto deter-me-ei sobre o
agnosticismo e a noção errónea de que a existência ou não existência de
Deus é uma questão intocável, para sempre fora do alcance da ciência.
A pobreza do agnosticismo
O robusto cristão musculado que arengava do púlpito da capela da minha
velha escola permitia-se uma certa consideração furtiva pelos ateus. Pelo
menos, tinham a coragem de assumir as suas transviadas convicções. O que
este pregador não era capaz de suportar eram os agnósticos: uns papa-
açordas tem-te-não-caias, lamechas, moles e enfezados. Em parte até tinha
razão, mas por um motivo totalmente diverso. Dentro da mesma linha, e
segundo Quentin de la Bédoyère, o historiador católico Hugh Ross
Williamson «respeitava tanto o crente religioso empenhado quanto o ateu
empenhado. O seu desprezo estava reservado às mediocridades insípidas e
invertebradas que pelo meio adejavam». 33
Não há nada de mal em ser-se agnóstico nos casos em que faltam provas
de um ou de outro lado. É a posição sensata. Carl Sagan manifestou orgulho
em ser agnóstico quando lhe perguntaram se existia vida em qualquer outra
parte do universo. Como se recusasse a dar uma resposta vinculativa, o seu
interlocutor insistiu em que revelasse o seu «sentir visceral», ao que Sagan
respondeu de forma lapidar: «Mas eu tento não pensar com as vísceras. A
sério, não faz mal conter os nossos juízos até haver provas .» A questão da
34
Huxley não era homem para deixar este género de provocação passar-lhe
ao lado, e a resposta que deu, em 1889, foi tão violentamente mordaz como
seria de esperar (ainda que sempre pautada por uma escrupulosa polidez: tal
como o buldogue de Darwin, os seus dentes eram aguçados pela ironia da
urbanidade vitoriana). Por fim, tendo dado ao reverendo Wace o devido
troco e depois de lhe fazer o enterro, Huxley voltou à palavra «agnóstico»
para explicar como chegou a ela. Outros, observa o autor,
Para um cientista estas são palavras nobres e não é com leviandade que se
critica T. H. Huxley. Mas Huxley, de tão concentrado na impossibilidade
absoluta de provar ou refutar Deus, parece ter descurado a nuance da
probabilidade. O facto de não podermos provar ou refutar a existência de
determinada coisa não coloca a existência e a não existência em pé de
igualdade. Acho que Huxley não discordaria e desconfio de que, apesar de
transmitir a impressão contrária, o que ele faz é uma espécie de
contorcionismo de raciocínio, de maneira a fazer uma cedência num ponto
para, de seguida, poder provar outro. Todos nós já fizemos isso, numa altura
ou noutra.
Ao contrário de Huxley, proponho que a existência de Deus é uma
hipótese científica como outra qualquer. Mesmo sendo difícil testá-la na
prática, cabe naquele agnosticismo temporário, ou ATP, juntamente com as
polémicas acerca da extinção do Pérmico e do Cretáceo. A existência ou
não existência de Deus é um facto científico respeitante ao universo, que
pode ser descoberto em teoria, se não na prática. Se existisse e resolvesse
revelá-lo, o próprio Deus podia pôr fim à discussão de forma ruidosa e
inequívoca, a seu favor. E mesmo que a existência ou a não existência de
Deus nunca venham a ser provadas ou refutadas com firme certeza, as
provas e a argumentação disponíveis podem produzir um cálculo de
probabilidade muito além dos 50 por cento.
Vamos então levar a sério a ideia de um amplo espectro de probabilidades
e dispor ao longo deste, entre dois extremos opostos de certeza, os juízos
acerca da existência de Deus. O espectro é contínuo, mas pode ser
representado pelos seguintes sete marcos.
7. Ateu convicto. «Sei que Deus não existe, com a mesma convicção
com que Jung “sabe” que existe.»
Não perderemos tempo a dizer tal, porque tanto quanto sei, ninguém
adora bules; mas, se fôssemos instados a pronunciar-nos, não hesitaríamos
39
NOMA
Tal como Huxley faz acrobacias com a lógica para simular que acata o
agnosticismo completamente imparcial, no exacto centro do meu espectro
de sete fases, os teístas, vindos da direcção oposta, fazem o mesmo, e por
uma razão equivalente. O teólogo Alister McGrath faz disso o ponto central
do livro Dawkins’ God: Genes, Memes and the Origin of Life. Na verdade,
após passar em revista, de forma admiravelmente equilibrada, as minhas
obras científicas, parece ser esse o único ponto que se lhe oferece rebater: a
ideia inegável, mas ignominiosamente débil, da impossibilidade de refutar a
existência de Deus. Página após página, à medida que ia lendo McGrath dei
comigo a rabiscar a palavra «bule» nas margens do livro. Invocando de
novo T. H. Huxley, McGrath escreve: «Farto dos teístas e dos ateus que
proferem afirmações irremediavelmente dogmáticas com base na
inadequação da evidência empírica, Huxley declarou que a questão de Deus
não podia ser resolvida com base no método científico.»
McGrath prossegue com uma citação de Stephen Jay Gould que vai num
sentido semelhante: «Dizendo-o em nome de todos os meus colegas e pela
enésima milionésima vez (desde tertúlias estudantis a dissertações eruditas):
a ciência não pode, pura e simplesmente (usando os seus métodos legítimos)
ajuizar da questão da possível superintendência da natureza por parte de
Deus. Nós não a afirmamos nem negamos, simplesmente não podemos,
enquanto cientistas, tecer sobre ela qualquer comentário.» Apesar do tom
confiante e quase fanfarrão da asserção de Gould, qual é efectivamente a
justificação para ela? Porque não devemos, enquanto cientistas, tecer
comentários sobre Deus? E por que razão é que o bule de Russell ou o
Monstro do Esparguete Voador não são igualmente imunes ao cepticismo
científico? Como argumentarei de seguida, um universo com um
superintendente criativo seria um tipo de universo muito diferente de um
outro sem esse mesmo superintendente. Porque não é isso uma questão
científica?
Num dos seus livros menos admirados, Rocks of Ages, Gould levou a
extremos inauditos essa arte do raciocínio acrobático. Foi nesta obra que ele
inventou o acrónimo NOMA para a expressão «magistérios não
sobrepostos»:46
Tudo isto soa muitíssimo bem – até ao momento em que se pára para
pensar. Quais são essas questões últimas na presença das quais a religião é
uma ilustre convidada e a ciência deve retirar-se discretamente?
Martin Rees, notável astrónomo de Cambridge que já mencionei, inicia o
livro O Nosso Habitat Cósmico colocando duas perguntas candidatas a
questões últimas e facultando uma resposta à medida do NOMA. «O
mistério maior de todos é por que razão existe algo. O que confere o sopro
da vida às equações e as actualizou num cosmos real? Contudo, tais
questões vão para lá da ciência: são a área dos filósofos e teólogos.» Eu
diria antes que, se de facto essas questões estão para lá da ciência, então
quase de certeza que também estão para lá da área dos teólogos (duvido de
que os filósofos agradeçam a Martin Rees tê-los posto no mesmo saco dos
teólogos). Sinto-me tentado a ir mais além e a perguntar em que sentido se
poderá dizer que estes têm, efectivamente, uma área. Ainda me divirto ao
recordar certo comentário de um antigo director do meu colégio, em
Oxford, suscitado pela candidatura de um jovem teólogo a uma bolsa de
investigação para efeito de uma tese de doutoramento em teologia cristã:
«Tenho sérias dúvidas quanto a isso ser sequer um tema.»
Que conhecimentos especializados podem os teólogos trazer às profundas
questões cosmológicas que não possam ser trazidas pelos cientistas? Noutro
livro, contei o que disse um astrónomo de Oxford quando lhe coloquei uma
dessas questões profundas: «Ah, isso leva-nos para além do domínio da
ciência. É aqui que tenho de passar o testemunho ao nosso bom amigo
capelão.» Na altura, não tive a presença de espírito suficiente para dar a
resposta que mais tarde registei: «Mas porquê o capelão? Porque não o
jardineiro ou o cozinheiro?» Por que motivo se acanham tão
respeitosamente os cientistas perante as ambições dos teólogos, em questões
às quais estes não estão seguramente mais aptos a responder do que os
próprios cientistas?
É um cliché gasto (e, ao contrário de muitos clichés, nem sequer
verdadeiro) dizer-se que a ciência se preocupa com o como, mas a teologia
está equipada para responder aos porquês. O que diabo é perguntar o
porquê? Nem todas as frases em que entra a interrogativa «porquê»
constituem perguntas legítimas. Porque são ocos os unicórnios? Certas
perguntas simplesmente não merecem resposta. De que cor é a abstracção?
A que cheira a esperança? O facto de uma pergunta poder ser exprimida
numa frase gramaticalmente correcta não lhe confere significado nem o
direito a uma atenção séria da nossa parte. E mesmo que a pergunta seja
real, o facto de a ciência não lhe poder responder não implica que a religião
possa.
Talvez existam algumas perguntas genuinamente profundas e
significativas que permanecerão para sempre fora do alcance da ciência.
Talvez a teoria quântica esteja já no limiar do insondável. Mas se a ciência
não consegue responder a uma dessas questões últimas, o que faz alguém
pensar que a religião o consegue? Desconfio de que nem o astrónomo de
Cambridge nem o de Oxford acreditassem verdadeiramente que os teólogos
possuem um qualquer tipo de conhecimento especializado que os habilita a
responder a perguntas demasiado profundas para a ciência. Desconfio até de
que ambos estavam a fazer o tal esforço acrobático com as palavras, para
serem educados: os teólogos não dizem nada que preste acerca de mais
coisa alguma. Atiremos-lhes uma migalha e deixemo-los preocupar-se com
algumas questões às quais ninguém consegue – e talvez jamais conseguirá –
responder. Ao contrário dos meus amigos astrónomos, acho que nem uma
migalha lhes devemos atirar. Ainda estou para ver uma boa razão para
sequer se considerar a teologia (contrariamente à história bíblica, à
literatura, etc.) um tema.
Da mesma forma, podemos todos concordar que o direito da ciência a
aconselhar-nos em questões de valores morais é, no mínimo, problemático.
Mas será que Gould quer mesmo ceder à religião o direito de nos dizer o
que é bom e o que é mau? O facto de não ter mais nada com que contribuir
para a sabedoria humana não é razão para conferir à religião carta branca
para que nos diga o que fazer. Afinal de contas, qual religião? Aquela em
que, por acaso, fomos educados? Nesse caso, para que capítulo de que livro
da Bíblia nos devemos voltar – visto que estão longe de ser unânimes, e
alguns deles são execrandos sejam quais forem os padrões de razoabilidade
por que os apreciemos. Quantos literalistas terão lido o suficiente da Bíblia
para saberem que a pena de morte é aí prescrita para casos de adultério, por
se apanhar lenha durante o sabat e por refilar com os pais? Se rejeitarmos o
Deuteronómio e o Levítico (como fazem todos os leitores modernos
esclarecidos), por que critérios decidimos então quais dos valores morais da
religião devemos aceitar? Ou será que temos de procurar por todo o mundo,
à cata de uma religião cujos ensinamentos morais nos convenham? Se assim
é, devemos perguntar de novo: com que critério devemos escolher? E se
possuímos critérios independentes para escolher entre as várias moralidades
religiosas, porque não excluir o intermediário e irmos direitos à escolha
moral sem a religião? Voltarei a estas questões no capítulo sétimo.
Simplesmente não acredito que Gould pudesse ter querido dizer muito
daquilo que escreveu em Rocks of Ages. Todos nós já nos prestámos a um
certo contorcionismo lógico para sermos amáveis com um adversário
imerecedor mas poderoso, e só posso pensar que foi isso o que Gould ali
fez. É concebível que ele realmente quisesse afirmar, como incisiva e
equivocamente o fez, que a ciência não tem absolutamente nada a dizer
acerca da questão da existência de Deus: «Nós não a afirmamos nem
negamos, simplesmente não podemos, enquanto cientistas, tecer sobre ela
qualquer comentário.» Isto soa a agnosticismo permanente e irrevogável, ou
seja, a APP declarado, e acarreta como consequência que a ciência nem
sequer pode fazer os seus juízos de probabilidades acerca da questão. Esta
falácia espantosamente difundida – muitos repetem-na como se fosse uma
mantra, mas desconfio de que poucos terão reflectido a sério sobre ela –
encarna aquilo a que chamo «a pobreza do agnosticismo». A propósito,
Gould não era um agnóstico imparcial, mas uma pessoa com uma forte
inclinação para o ateísmo de facto. Com que base terá ele feito esse juízo, se
nada há a dizer sobre se Deus existe ou não?
A Hipótese Deus sugere que a realidade por nós habitada também contém
um agente sobrenatural que concebeu o universo e o preserva – pelo menos
em muitas versões da hipótese –, e que até intervém nele por meio de
milagres, essas violações temporárias das leis grandiosas e imutáveis que,
tirando tais excepções, ele próprio criou. No livro Será que Deus existe?,
Richard Swinburne, um dos mais importantes teólogos britânicos, é
surpreendentemente claro quanto a esta questão:
É demasiado fácil, não é? Seja lá isto o que for, está muito longe do
MNS. E digam eles o que disserem, esses cientistas que perfilham a escola
de pensamento dos «magistérios independentes» deviam admitir que um
universo com um criador sobrenaturalmente inteligente será um tipo de
universo muito diferente de outro sem esse criador. A diferença entre dois
universos hipotéticos dificilmente podia ser mais fundamental em princípio,
mesmo que não seja fácil de testar na prática. Além disso, fragiliza a
máxima complacentemente sedutora segundo a qual a ciência deve manter
um silêncio absoluto quanto às pretensões sobre a existência, tão centrais
para a religião. A presença ou a ausência de uma superinteligência criadora
é, inequivocamente, uma questão científica, mesmo que na prática ela não
esteja – ou não esteja ainda – decidida. O mesmo acontece com a verdade
ou a falsidade de todas as histórias de milagres de que as igrejas se servem
para impressionar as suas multidões de fiéis.
Jesus tinha um pai humano, ou a mãe era virgem no momento do parto?
Quer tenham ou não restado provas em número suficiente para resolver a
questão, continua a tratar-se de uma questão estritamente científica e com
uma resposta em princípio definitiva: sim ou não. Jesus fez ressuscitar
Lázaro? Será que ele próprio voltou à vida três dias após ter sido
crucificado? Há uma resposta para cada uma destas perguntas, quer
possamos descobri-la na prática quer não, resposta essa que é, estritamente,
científica. Os métodos a usar para dilucidar a questão, na improvável
eventualidade de alguma vez poderem ser aduzidas provas relevantes, serão
pura e exclusivamente métodos científicos. Para conferir uma maior nitidez
à questão, imagine-se que, em resultado de um conjunto extraordinário de
circunstâncias, arqueólogos forenses descobriam provas de ADN que
vinham mostrar que de facto Jesus não teve um pai biológico. Consegue-se
imaginar os apologistas religiosos a encolherem os ombros e a dizerem
qualquer coisa como isto: KO que importa isso? A prova científica é
completamente irrelevante no caso das questões teológicas. Magistério
errado! A nós só nos interessam as questões últimas e os valores morais.
Nem o ADN, nem quaisquer outras provas científicas poderão alguma vez
ser chamadas para o assunto, em abono seja de que lado for.»
A própria ideia é ridícula. Pode apostar-se o que se quiser que, se alguma
vez surgissem as provas científicas, seriam agarradas com unhas e dentes e
anunciadas aos quatro ventos. O NOMA só é popular porque não existem
provas a favor da Hipótese Deus. A partir do momento em que houvesse a
mais pequena sugestão de qualquer prova a favor da crença religiosa, os
seus apologistas não perderiam tempo a atirar o NOMA para o lixo. Tirando
os teólogos mais sofisticados (e mesmo esses não se ensaiam nada em
contar histórias de milagres aos menos sofisticados de modo a engrossarem
as respectivas confrarias), desconfio de que é aos alegados milagres que
muitos crentes vão buscar a razão mais forte para a sua fé; e os milagres,
por definição, violam os princípios da ciência.
A Igreja Católica parece, por um lado, aspirar por vezes ao NOMA, mas,
por outro, estipula que a realização de milagres é requisito essencial para a
elevação à santidade. O falecido rei dos Belgas é candidato à santidade
devido à sua posição quanto ao aborto. Estão a decorrer investigações sérias
para descobrir se algumas curas milagrosas poderão ser atribuídas às
orações que lhe foram oferecidas desde a sua morte. Não estou a brincar.
Trata-se de um facto concreto, típico, de resto, das histórias de santos.
Calculo que tudo isto cause algum embaraço a certos círculos mais
sofisticados no seio da Igreja. O porquê de alguns círculos dignos de serem
chamados sofisticados permanecerem no seio da Igreja é um mistério pelo
menos tão profundo quanto aqueles que os teólogos tanto apreciam.
Se confrontado com histórias de milagres, Gould retrucaria
provavelmente nos seguintes moldes. A ideia subjacente ao MNS é que,
além de ser um bom negócio, ele funciona nos dois sentidos. A partir do
momento em que a religião pisa o território da ciência e começa a interferir
no mundo real através de milagres, deixa de ser religião no sentido
defendido por Gould, e a sua amicabilis concordia quebra-se. Note-se, no
entanto, que a religião sem milagres defendida por Gould não seria
reconhecida pela maioria dos teístas frequentadores dos bancos da igreja e
do tapete de orações. Na verdade seria para eles uma grande desilusão.
Adaptando o comentário de Alice acerca do livro da irmã antes de cair no
País das Maravilhas, de que serve um Deus que não faz milagres e não
atende às orações? Lembremo-nos da espirituosa definição do verbo «rezar»
dada por Ambrose Bierce: «Pedir que as leis do universo sejam anuladas em
nome de um único e confessadamente indigno requerente.» Há atletas que
acreditam que Deus os ajuda a ganhar – contra adversários que, a julgar
pelas aparências, não pareceriam menos dignos do seu favoritismo. Há
automobilistas que acreditam que Deus lhes guarda um lugar de
estacionamento – negando-o desse modo, presumivelmente, a outras
pessoas. É constrangedor verificar como este estilo de teísmo se encontra
disseminado, sendo pouco provável que se deixe impressionar por qualquer
coisa tão (superficialmente) razoável como o NOMA.
Não obstante, sigamos Gould e reduzamos a nossa religião a uma espécie
de mínimo não-interventivo: sem milagres, sem comunicação pessoal entre
Deus e nós em qualquer das direcções, sem atropelos às leis da Física, sem
invadir os terrenos da ciência. Quando muito, um pequeno input deísta nas
condições iniciais do universo, de modo a que, na plenitude do tempo, as
estrelas, os elementos, a química e os planetas se desenvolvam e a vida
evolua. Não será isto uma divisão adequada? Não poderá o NOMA
sobreviver a esta religião mais modesta e despretensiosa?
Bem, poderá pensar-se que sim, mas proponho que mesmo um Deus não-
interventivo, um Deus NOMA, apesar de menos violento e desajeitado do
que um Deus abraâmico, não deixa de ser, bem vistas as coisas, uma
hipótese científica. Volto ao ponto fundamental: um universo no qual
estamos sozinhos à excepção de outras inteligências em lenta evolução, é
um universo muito diferente de outro que tem na origem um agente
orientador cujo desígnio inteligente é responsável pela sua própria
existência. Aceito que, na prática, possa não ser fácil distinguir entre os dois
tipos de universo. Ainda assim, há algo de absolutamente especial na
hipótese do grande desígnio, e algo de igualmente especial na única
alternativa conhecida, a evolução gradual em sentido lato. Elas estão perto
de ser irreconciliavelmente diferentes. Ao contrário de tudo o resto, a
perspectiva da evolução proporciona efectivamente uma explicação para a
existência de entidades cuja improbabilidade as tornaria, de outro modo,
inviáveis. E tal como mostrarei no capítulo quarto, a conclusão do
raciocínio será pouco menos do que fatal para a Hipótese Deus.
escrita como nos tribunais. Ruse professa ser ateu, mas no artigo que
publicou na revista Playboy sustenta que
Há uma coisa que tenho em comum com os criacionistas. Tal como eu,
mas ao contrário da escola de Chamberlain, os criacionistas não querem
nada com o NOMA e os seus magistérios próprios. Longe de respeitar a
autonomia do domínio da ciência, não há nada de que os criacionistas
gostem mais do que pisá-la com as suas sujas botas cardadas. E suja é
também a forma como se batem. Nos tribunais da América mais profunda,
os advogados dos criacionistas perseguem evolucionistas que sejam ateus
declarados. Eu sei – para minha mágoa – que o meu nome foi usado desta
forma. Trata-se de uma táctica eficaz, porque existe a probabilidade de os
júris, seleccionados ao acaso, incluírem pessoas educadas na crença de que
os ateus são demónios feitos gente, ao nível dos pedófilos ou dos
«terroristas» (o actual equivalente das bruxas de Salem e dos comunas do
senador McCarthy). Qualquer advogado criacionista que me chamasse à
barra das testemunhas poderia conquistar imediatamente as simpatias do
júri perguntando-me: «O seu conhecimento da evolução influenciou-o no
sentido de se tornar ateu?» Eu teria de responder afirmativamente e, de um
só golpe, teria perdido por completo o júri. Pelo contrário, a resposta
judiciosamente correcta do lado secularista deveria ser: «As minhas crenças
religiosas, ou a falta delas, são um assunto privado que não são da conta
deste tribunal nem têm nada a ver com a ciência que faço.» Ora eu não
poderia, honestamente, dizer isto, por razões que explicarei no capítulo
quarto.
Madeleine Bunting, jornalista do Guardian, escreveu um artigo intitulado
«Porque é que o lóbi do desígnio inteligente dá graças a Deus por haver um
Richard Dawkins». Não existe indicação de que ela tenha consultado mais
55
ninguém além de Michael Ruse e o artigo podia muito bem ter sido escrito
por ele, embora tenha sido ela a assiná-lo. Citando com apropósito a
56
Não quero com isto dizer que os meus colegas do lóbi do apaziguamento
sejam, necessariamente, desonestos. É possível que realmente acreditem no
MNS, embora eu não consiga deixar de me perguntar se lhe terão
ponderado bem as implicações e como é que, nas suas cabeças, se
conciliarão os conflitos internos. Para já, não há necessidade de aprofundar
a questão. Mas quem quiser procurar compreender as declarações dos
cientistas publicadas a propósito de questões religiosas, bem faria em ter em
mente o respectivo contexto político e, concretamente, as surreais guerras
culturais que hoje em dia dilaceram os Estados Unidos. O apaziguamento
do tipo MNS voltará a ocupar-nos num capítulo posterior. Por agora,
regresso ao agnosticismo e à possibilidade de desbastar um pouco a nossa
ignorância e reduzir sensivelmente a nossa incerteza quanto à existência, ou
não existência, de Deus.
Homenzinhos verdes
Suponha-se que a parábola de Bertand Russell dizia respeito, não a um
bule no espaço, mas sim à vida no espaço – o motivo da memorável recusa
de Sagan em pensar com as vísceras. Uma vez mais, não podemos refutar
tal ideia, e a única posição estritamente racional é o agnosticismo. Mas a
hipótese já não é frívola. Não pressentimos de imediato uma extrema
improbabilidade. Podemos travar um debate interessante baseado em provas
inconcludentes e anotar o tipo de provas passíveis de diminuir a nossa
incerteza. Sentir-nos-íamos indignados se o nosso Governo investisse em
telescópios caros com o único objectivo de procurar bules em órbita. Mas
podemos mostrar apreço pelo gasto de dinheiro com o projecto SETI
(Search for Extraterrestrial Intelligence ), que recorre a radiotelescópios
59
feitiços. Não servem para dar explicações fiáveis, antes exigem mais
explicações do que aquelas que dão. Guindastes são dispositivos
explicativos que efectivamente explicam. A selecção natural é o guindaste
mais imbatível de todos os tempos. Foi elevando a vida desde a sua
simplicidade primitiva até às alturas vertiginosas de complexidade, beleza e
aparente desígnio que hoje nos deslumbram. Este vai ser um tema
dominante do capítulo quarto: «Por que motivo é quase certo que Deus não
existe.» Mas primeiro, antes de continuar com a minha principal razão para
descrer activamente da existência de Deus, tenho a responsabilidade de
afastar os argumentos positivos para a crença propostos ao longo da
História.
21 http://www.newadvent.org/cathen/06608.htm.
22 http://www.catholic-forum.com/saints/indexsnt.htm?NF=1.
24 http://www.stephenjaygould.org/ctrl/buckner_tripoli.html.
25 Giles Fraser, «Resurgent religion has done away with the country vicar”, Guardian, 13 de Abril de
2006.
27 N. Angier, «Confessions of a lonely atheist”, New York Times Magazine, 14 de Janeiro de 2001:
http://www.geocities.com/mindstuff/Angier.html.
28 Tom Flynn, director do jornal Free Inquiry, é convincente ao afirmar: «Se os ateus se sentem sós e
oprimidos, só temos de nos culpar a nós próprios. Numericamente somos fortes. Vamos começar a
fazer valer o nosso peso.» («O momento decisivo do secularismo», Free Inquiry, 26, 3, 2006, 16-17).
29 http://www.fsgp.org/adsn.html.
31 http://www.hinduonnet.com/thehindu/mag/2001/11/18/stories/2001111800070400.htm.
32 «Dessa hipótese, meu Senhor, não tive eu precisão», disse Laplace quando Napoleão perguntou ao
célebre matemático como conseguira escrever o seu livro sem fazer qualquer menção a Deus.
34 Carl Sagan, «The burden if skepticism”, Skeptical Inquirer 12, Outono de 1987.
35 O autor refere-se à sigla APP – PAP, em inglês – e à palavra pap, usada no início da presente secção
(v. «lamechas, etc.»). (N. das T.)
39 Talvez tenha falado cedo de mais. A edição do jornal Independent on Sunday do dia 5 de Junho de
2005 trazia a seguinte notícia: «As autoridades malaias dizem que uma seita religiosa que construiu um
bule sagrado do tamanho de uma casa violou as normas de planeamento.» Consultar também o
endereço electrónico da BBC News, em http://news.bbc.co.uk/2/hi/asia-pacific/4692039.stm.
40 Andrew Mueller, «An argument with Sir Iqbal», Independent on Sunday, 2 de Abril de 2006, secção
«Sunday Review», 12-16.
41 O Camp Quest leva a instituição americana da colónia de férias numa direcção absolutamente
admirável. Ao contrário de outras colónias, que seguem o ethos da religião e do escutismo, este tipo de
acampamento, fundado no Kentucky por Edwin e Helen Hagin, é dirigido por humanistas seculares,
sendo aí as crianças encorajadas a pensarem cepticamente por si próprias enquanto se divertem com
todas as habituais actividades ao ar livre (www.camp-quest.org). Outros Camp Quests com um ethos
semelhante surgiram no Tennessee, Minnesota, Michigan, Ohio e Canadá.
42 A «igreja» do Flying Spaghetti Monster é uma sátira caricatural da religião, criada, em 2005, por um
estudante da Oregon State University. (N. das T.)
44 Henderson (2006).
45 http://www.lulu.com/content/267888.
47 Quando o meu colégio, em Oxford, elegeu o director que atrás citei, aconteceu que os restantes
membros da direcção beberam publicamente à sua saúde durante três noites consecutivas. No decorrer
do terceiro jantar, durante o discurso, ele observou com graça: «Já estou a sentir-me melhor.»
48 H. Benson et alii, «Study of the therateupic effects of intercessory prayer (STEP) in cardiac bypass
patients», American Heart Journal 151, 4, 2006, 934-42.
50 Esta troca de palavras foi cortada da versão final emitida. Que aquela observação de Swinburne é
típica da sua teologia, indica-o um comentário bastante semelhante por ele feito a propósito de
Hiroxima, no livro The Existence of God (2004), página 264: «Suponha-se que menos uma pessoa tinha
sido consumida pelo fogo devido à bomba atómica de Hiroxima. Aí teria sido menor a oportunidade de
mostrar coragem e compreensão...»
53 Em casos de tribunal e em livros como Ruse (1982). O seu artigo da Playboy foi publicado no
número de Abril de 2006.
54 A resposta de Jerry Coyne a Ruse foi publicada no número de Agosto de 2006 da Playboy.
58 http://scienceblogs.com/pharyngula/2006/03/the_dawkinsdennett_boogeyman.php
http://scienceblogs.com/pharyngula/2006/02/our_double_standard.php;
http://scienceblogs.com/pharyngula/2006/02/the_rusedennett_feud.php.
60 http://vo.obspm.fr/exoplanetes/encyclo/encycl.html.
61 Dennett (2001).
3
Argumentos a favor da existência de
Deus
Na nossa instituição não devia haver lugar para uma cátedra
de Teologia.
Thomas Jefferson
O argumento ontológico
e outros argumentos a priori
Os argumentos para a existência de Deus dividem-se em duas grandes
categorias: a categoria a priori e a categoria a posteriori. Os cinco
argumentos de Tomás de Aquino são a posteriori, estando dependentes do
cotejo com o mundo. O argumento a priori mais famoso, aquele que tem
por base o puro raciocínio de poltrona, é o argumento ontológico proposto
por Santo Anselmo de Cantuária, em 1078, e desde então reafirmado de
diferentes formas por diversos filósofos. Um estranho aspecto do argumento
de Santo Anselmo é o facto de ter sido originariamente dirigido não aos
humanos, mas sim ao próprio Deus, sob a forma de prece (seria de pensar
que uma entidade capaz de ouvir uma prece não precisaria de ser
convencida da sua própria existência).
Nas palavras de Anselmo, é possível conceber um ser maior do que o qual
nada se pode pensar. Até um ateu consegue conceber um tal ser superlativo,
embora negue a sua existência no mundo real. Mas, segundo o argumento,
um ser que não existe no mundo real é, por isso mesmo, menos do que
perfeito. Assim, temos uma contradição - et voilà, Deus existe!
Permitam-me que traduza este infantil argumento para linguagem
adequada, isto é, a linguagem do recinto de recreio:
Foi de propósito que pus o meu infantil sabichão a usar a palavra «tolos».
O próprio Santo Anselmo cita o primeiro versículo do salmo 14 - «O tolo
diz em seu coração: “Não há Deus!”» -, e tem o descaramento de usar o
termo «insensato» (insipiens, em latim) para o seu hipotético ateu:
Por que razão, pergunto-me eu, não disse Russell algo como: «Diacho! O
argumento ontológico parece plausível. Mas não será bom de mais para ser
verdade que um mero jogo de palavras dê lugar a uma grande verdade
acerca do cosmos? É melhor pôr mãos à obra, a ver se soluciono o que
provavelmente não é mais do que um paradoxo como os de Zenão.» A
«prova» de Zenão, de que Aquiles nunca iria apanhar a tartaruga, deixava os
Gregos confusos. Mas tiveram o bom senso de não concluir que, por esse
64
num texto que o próprio Russell escreveu em 1946, muito depois de ter
desmontado o argumento ontológico:
Ergo:
Escusado será dizer que Gasking, na realidade, não provou que Deus não
existe. Pela mesma razão, Anselmo não provou que ele existe. A única
diferença reside no facto de o humor de Gasking ser propositado. Na sua
perspectiva, a existência ou não-existência de Deus é uma questão
demasiado vasta para ser decidida através de «prestidigitação dialéctica». E
não penso que a utilização capciosa da existência como indicador da
perfeição seja o pior problema do argumento em causa. Esqueci-me dos
pormenores, mas uma vez espicacei uma assembleia de teólogos e filósofos
ao adaptar o argumento ontológico para provar que os porcos conseguem
voar. Aí sentiram-se na necessidade de recorrer à lógica modal para provar
que eu estava errado.
O argumento ontológico, como todos os argumentos a priori a favor da
existência de Deus, lembra-me a personagem do velho do romance de
Aldous Huxley Contraponto, que descobre uma prova matemática da
existência de Deus:
O argumento da beleza
Uma outra personagem do livro de Aldous Huxley há pouco referido
prova a existência de Deus pondo a tocar, num gramofone, o Quarteto de
Cordas n.º 15, em lá menor, de Beethoven (Heiliger Dankgesang). Por
pouco convincente que pareça, trata-se, na realidade, de uma corrente
argumentativa muito popular. Desisti de contar as vezes em que, com mais
ou menos truculência, me atiram com o desafio: «Como justifica
Shakespeare, então?» (Substitua-se Shakespeare a gosto - por Schubert,
Miguel Ângelo, etc.) O argumento soa de tal modo familiar que nem será
preciso documentá-lo aqui. Mas a lógica por detrás dele nunca é explicitada,
e quanto mais se pensa na questão, mais oca ela nos parece. É claro que os
quartetos da última fase de Beethoven são sublimes, tal como os sonetos de
Shakespeare. São sublimes se houver Deus e são-no se não houver. Não
provam a existência de Deus, provam a existência de Beethoven e de
Shakespeare. Consta que um grande maestro terá dito: «Se temos Mozart
para ouvir, para que precisamos de Deus?»
Fui uma vez o convidado da semana num programa de rádio britânico
chamado Desert Island Discs. Temos de escolher oito discos que
levaríamos connosco se fôssemos parar a uma ilha deserta. Entre as minhas
escolhas contava-se Mache dich mein Herze rein, da Paixão segundo São
Mateus, de Bach. O entrevistador disse não compreender como era possível
eu escolher música religiosa não sendo religioso. É o mesmo que perguntar
como se pode gostar do Monte dos Vendavais quando se sabe perfeitamente
que Cathy e Heathcliff nunca existiram de facto.
Mas há mais um aspecto que eu poderia ter acrescentado e que deve ser
referido sempre que, por exemplo, se atribui à religião a Capela Sistina ou a
Anunciação, de Rafael. Até os grandes artistas têm de ganhar a vida,
aceitando encomendas onde as houver. Não tenho razões para duvidar de
que Rafael e Miguel Ângelo eram cristãos - era quase a única opção, na
época -, mas tal facto é pouco mais do que acessório. A imensa riqueza
acumulada pela Igreja fazia dela o principal patrono das artes. Se a História
tivesse tido uma marcha diferente e a Miguel Ângelo tivesse sido pedido
que pintasse o tecto de um gigantesco Museu de Ciência, será que não tinha
criado algo no mínimo tão inspirador como a Capela Sistina? Que pena
nunca chegarmos a poder ouvir a Sinfonia Mesozóica, de Beethoven, ou a
ópera O Universo em Expansão, de Mozart. E que pena termos ficado
privados da Oratória da Evolução?, de Haydn - mas isso não nos impede de
apreciar a sua Criação. Para abordar o argumento do ângulo oposto: e se,
como arrepiantemente me sugere a minha mulher, Shakespeare se tivesse
visto obrigado a trabalhar para a Igreja? De certeza que teríamos perdido
Hamlet, o Rei Lear e Macbeth. E que teríamos ganho em troca? Aquilo de
que se fazem os sonhos? Pois sim! Sonhar é bom.
Se há um argumento lógico que ligue a existência da arte elevada e a
existência de Deus, ele não é explicitado pelos respectivos proponentes.
Parte-se simplesmente do princípio de que se está perante uma auto-
evidência, o que seguramente não é o caso. Talvez haja que encará-lo como
mais uma versão do argumento do desígnio: o cérebro musical de Schubert
é uma maravilha da improbabilidade, mais ainda do que o olho dos
vertebrados. Ou, dizendo de modo mais corriqueiro, talvez seja uma espécie
de inveja relativamente aos génios. Como ousa um outro ser humano fazer
tão bela música/poesia/arte, quando eu não sou capaz? Deve ter sido Deus o
autor.
Temos nomes para chamar às pessoas que têm muitas crenças para as
quais não existe justificação racional. Quando as suas crenças são
extremamente comuns, chamamos-lhes «religiosas»; caso contrário, o
mais provável é chamarmos-lhes «loucas», «psicóticas», ou «vítimas de
delusão»... É óbvio que a sanidade depende dos números. E, no entanto,
é por mero acidente da História que se considera normal na nossa
sociedade acreditar que o Criador do universo consegue ouvir os nossos
pensamentos, ao passo que é sinal de doença mental acreditar que ele
comunica connosco fazendo a chuva tamborilar em código Morse
contra a janela do nosso quarto. E assim, embora de um modo geral as
pessoas religiosas não sejam loucas, as suas crenças mais profundas
são-no.
dada pelos radares que às vezes vemos nos aeroportos. Até o cérebro dar a
volta para o modelo correcto de radar, o que vemos é um modelo incorrecto
a rodar na direcção errada, mas de uma forma estranhamente torta.
Refiro tudo isto para demonstrar o tremendo poder do software de
simulação do cérebro. Ele é bem capaz de construir «visões» e «aparições»
extremamente verosímeis. Simular um fantasma, um anjo ou uma Virgem
Maria seria uma brincadeira de crianças para software com esta
sofisticação. E o mesmo se pode dizer da audição. Quando ouvimos um
som, ele não é fielmente transportado pelo nervo auditivo e transmitido ao
cérebro como se de um sistema de alta-fidelidade Bang & Olufsen se
tratasse. Tal como acontece com a visão, o cérebro constrói um modelo
sonoro baseado em dados auditivos continuamente actualizados. É por isso
que ouvimos a rajada de um trompete como uma nota só e não como uma
mistura de harmónicos puros que lhe confere o aspecto de um rosnar de
metais. Um clarinete a tocar a mesma nota tem um timbre de madeira e um
oboé tem um som «de metal» por causa da desigual distribuição de
harmónicos. Se manipularmos cuidadosamente um sintetizador de som de
maneira a puxarmos, um de cada vez, os diferentes harmónicos, o cérebro
ouve-os durante algum tempo como uma combinação de sons puros até que
o seu software de simulação «topa» o que se está a passar e, a partir desse
momento ouvimos uma única nota de puro trompete, oboé ou seja o que for.
As vogais e consoantes da fala são construídas no cérebro da mesma
maneira, bem como, a um nível mais elevado, os fonemas e as palavras.
Um dia, quando era criança, ouvi um fantasma: uma voz masculina que
murmurava, como se estivesse a recitar ou a rezar. Quase conseguia
distinguir as palavras, que pareciam ter um timbre sério, solene. Tinham-me
contado histórias de esconderijos em casas antigas e estava um bocado
assustado. Mas levantei-me da cama e, de mansinho, fui-me aproximando
da origem do som. À medida que me aproximava, ele aumentava e de
repente «deu a volta» dentro da minha cabeça. Estava agora suficientemente
perto para discernir do que realmente se tratava. O vento, irrompendo pelo
buraco da fechadura, produzia sons que o software de simulação no meu
cérebro tinha usado para construir um modelo de fala masculina em toada
solene. Tivesse eu sido uma criança mais impressionável e é possível que
tivesse «ouvido» não só um discurso ininteligível, mas também palavras
exactas e até mesmo frases. E tivesse eu sido impressionável e educado
religiosamente, imagine-se que palavras o vento não teria proferido.
Numa outra ocasião, quando tinha aproximadamente a mesma idade, vi
uma gigantesca cara redonda a olhar fixamente, com indescritível maldade,
pela janela de uma casa em tudo o resto normal, numa aldeia costeira.
Aproximei-me a tremer até chegar suficientemente perto para ver do que
realmente se tratava: apenas uma vaga forma semelhante a uma cara, criada
ao acaso pelo cair do cortinado. A cara, tal como o seu aspecto maldoso,
haviam sido construídos no meu medroso cérebro de criança. No dia 11 de
Setembro de 2001, pessoas devotas julgaram ver a cara de Satanás no fumo
que se erguia das Torres Gémeas: uma superstição apoiada numa fotografia
publicada na Internet e amplamente divulgada.
A construção de modelos é algo em que o cérebro humano é muito bom.
Quando estamos a dormir, chama-se a isso sonhar; quando estamos
acordados, chama-se imaginação ou, se é excepcionalmente vívido,
alucinação. Como poderemos ver no capítulo décimo, as crianças que têm
«amigos imaginários» vêem-nos por vezes de forma distinta, tal qual como
se fossem reais. Se somos ingénuos, não reconhecemos a alucinação ou o
sonho lúcido por aquilo que são e afirmamos ter visto ou ouvido um
fantasma; ou um anjo; ou Deus; ou - sobretudo se formos jovens, do sexo
feminino e católicas - a Virgem Maria. Tais visões e manifestações não
constituem, por certo, fundamento aceitável para se acreditar na efectiva
presença de fantasmas ou anjos, deuses ou nossas senhoras.
À primeira vista, as visões experienciadas por grandes massas, como o
relato de que 70 000 peregrinos em Fátima viram o Sol «rasgar os céus e
abater-se sobre a multidão», em1917, são mais difíceis de descartar. Não é
69
posta a circular por uma tal «Lady Hope», que fez um comovente relato de
Darwin reclinado sobre almofadas à luz do fim do dia, folheando o Novo
Testamento e confessando que a teoria da evolução estava toda errada.
Nesta secção vou centrar-me sobretudo em cientistas porque - por razões
que talvez não sejam difíceis de imaginar - quem desfia os nomes de
pessoas respeitadas como modelos religiosos escolhe, geralmente,
cientistas.
Com efeito, Newton dizia-se religioso. Tal como quase toda a gente -
significativamente, penso eu - até ao século XIX, altura em que havia menos
pressões sociais e jurídicas do que em séculos anteriores para professar uma
religião e mais suporte científico para a abandonar. Houve excepções, claro,
e em ambas as direcções. Mesmo antes de Darwin nem todos eram crentes,
como James Haught mostra no seu 2000 Years of Disbelief: Famous People
with the Courage to Doubt. E após Darwin, alguns cientistas distintos
continuaram a acreditar. Não temos motivo para duvidar da sinceridade de
Michael Faraday enquanto cristão, mesmo depois de ter, muito
provavelmente, tomado conhecimento da obra de Darwin. Era membro dos
sandemanianos, seita que acreditava (no pretérito, visto que hoje se encontra
praticamente extinta) numa interpretação literal da Bíblia, seguia o ritual de
lavar os pés dos membros recentemente iniciados e deitava sortes para
determinar a vontade de Deus. Faraday passou a ancião em 1860, portanto
um ano depois da publicação de A Origem das Espécies, e como
sandemaniano morreu em 1867. O homólogo teórico do experimentalista
Faraday, James Clerk Maxwell, foi também um cristão devoto. Também o
foi esse outro grande pilar da Física britânica do século XIX, William
Thomson, Lord Kelvin, que tentou demonstrar que a evolução era uma
hipótese a pôr de parte devido à escassez do tempo. As datações erradas
desse grande especialista em termodinâmica partiam do pressuposto de que
o Sol era uma espécie de fogo, que queimava combustível que se iria
esgotar em dezenas de milhões de anos, em vez de milhares de milhões. É
claro que não se pode esperar que Kelvin possuísse quaisquer
conhecimentos de energia nuclear. E foi agradável ver como, no encontro
de 1903 da British Association, coube a Sir George Darwin, segundo filho
de Charles Darwin (este, sem título de sir), defender o pai invocando a
descoberta do rádio pelos Curie e contrariando, assim, os anteriores cálculos
do ainda vivo Lord Kelvin.
No século XX torna-se mais difícil encontrar grandes cientistas que
professem a religião, mas estes não são, propriamente, raros. Desconfio de
que a maioria dos mais recentes são religiosos apenas no sentido
einsteiniano, o qual, como referi no capítulo primeiro, corresponde a um uso
incorrecto da palavra. Contudo, há alguns espécimes genuínos de bons
cientistas que são realmente religiosos no sentido pleno e tradicional da
palavra. Entre os cientistas britânicos contemporâneos surgem
invariavelmente os mesmos três nomes, agrupados com a afável
familiaridade dos sócios mais antigos de uma firma de advogados de
Dickens: Peacocke, Stannard e Polkinghorne. Todos eles ganharam o
Prémio da Fundação Templeton ou pertencem ao seu conselho de
administradores. Após discussões amigáveis com todos eles, tanto em
público como em privado, a sua crença continua a fazer-me confusão. Não
tanto por acreditarem numa certa espécie de legislador cósmico, mas mais
por acreditarem nos pormenores da religião cristã: a ressurreição, o perdão
dos pecados e tudo o resto.
Há alguns exemplos também nos Estados Unidos, como seja Francis
Collins, director administrativo do ramo norte-americano do Projecto
Genoma Humano oficial. Mas, tal como na Grã-Bretanha, destacam-se
76
Parece que Alberts terá adoptado o NOMA pelas razões que aduzi em «A
escola evolucionista de Neville Chamberlain» (ver capítulo segundo). A
página «Answers in Genesis» tem uma agenda muito diferente.
O equivalente à National Academy of Sciences dos Estados Unidos na
Grã-Bretanha (e na Commonwealth, incluindo o Canadá, a Austrália, a
Nova Zelândia, a Índia, o Paquistão, a África anglófona, etc.) é a Royal
Society. No momento em que este livro vai para a tipografia, os meus
colegas R. Elisabeth Cornwell e Michael Stirrat estão a reduzir a escrito a
sua investigação paralela, mas mais aprofundada, sobre as opiniões
religiosas dos membros da Royal Society. As conclusões serão publicadas
mais tarde na sua totalidade, mas os autores permitiram-me gentilmente que
citasse aqui resultados preliminares. Usaram uma técnica-padrão para a
gradação de opiniões, a escala Likert de sete pontos. Todos os 1074
membros da Royal Society que têm endereço electrónico (a larga maioria)
foram inquiridos, tendo respondido cerca de 23 por cento (um bom número
para este tipo de estudo). Foram-lhes apresentadas várias proposições,
como, por exemplo: «Acredito num Deus pessoal, isto é, um Deus que se
interessa pelas pessoas, que ouve e atende preces, que se preocupa com o
pecado e as ofensas, e que profere juízos.» Para cada uma destas
proposições, pedia-se que escolhessem um número de um (discordância
total) a sete (concordância total). É um pouco difícil comparar os resultados
directamente com o estudo de Larson e Witham, uma vez que estes só
confrontavam os membros da academia com uma escala de três pontos e
não de sete, porém a tendência geral é a mesma. A esmagadora maioria dos
membros da Royal Society, tal como a esmagadora maioria dos académicos
dos Estados Unidos, são ateus. Apenas 3,3 por cento dos fellows britânicos
concordaram totalmente com a afirmação de que existe um deus pessoal
(isto é, escolheram o sete na escala), ao passo que 78,8 por cento
discordaram totalmente (ou seja, escolheram o um na escala). Se definirmos
como «crentes» os que escolheram seis ou sete e como «não crentes» os que
escolheram um ou dois, obtemos uns retumbantes 213 descrentes e uns
meros 12 crentes. A exemplo do que acontecia em Larson e Witham e em
Beit-Hallahmi e Argyle, também Cornwell e Stirrat identificaram uma
pequena mas significativa tendência entre os biólogos para serem ainda
mais ateus do que os físicos. Para mais pormenores e o resto das suas
interessantes conclusões, consulte-se este trabalho quando estiver
publicado.81
A aposta de Pascal
De acordo com o grande matemático francês Blaise Pascal, por maiores
que sejam as probabilidades contra a existência de Deus, há uma assimetria
ainda maior no castigo por escolher a opção errada. O melhor é acreditar em
Deus, porque, se estivermos certos, habilitamo-nos a ganhar a felicidade
eterna e, se estivermos errados, não vai fazer diferença nenhuma. Por outro
lado, se não acreditarmos Nele e estivermos errados somos condenados à
maldição eterna, ao passo que se estivermos certos não faz qualquer
diferença. Perante isto, a decisão é facílima. Acreditar em Deus.
No entanto, há algo claramente estranho no argumento. O acreditar não é
algo que esteja sujeito a decisão, um rumo por que se opta. Pelo menos não
é algo que eu possa decidir empreender como um acto de vontade. Posso
decidir ir à igreja, posso decidir recitar o Credo de Niceia e posso decidir
jurar sobre uma pilha de bíblias que acredito em cada palavra lá escrita. Mas
nada disto me fará acreditar, se eu não acreditar de facto. A aposta de Pascal
só poderia ser, quando muito, um argumento para se fingir a crença em
Deus. E era bom que o Deus em que afirmamos acreditar não fosse do tipo
omnisciente, caso contrário dar-se-ia conta da fraude. A ideia absurda de
que acreditar é algo que pode ser objecto de decisão é deliciosamente
ridicularizada por Douglas Adams em Agência de Detectives Holística,
onde nos é dado a conhecer o robô Monge Eléctrico, um dispositivo para
poupar trabalho que se compra «para acreditar por nós». O modelo de luxe é
publicitado como sendo «capaz de acreditar em coisas em que nem em Salt
Lake City se acredita».
Seja como for, porque será que aceitamos tão prontamente a ideia de que
a coisa mais importante que há a fazer para agradar a Deus é acreditar nele?
Que é que o acreditar tem de tão especial? Não será igualmente provável
que Deus recompense a bondade, ou a generosidade, ou a humildade? Ou a
sinceridade? E se Deus for um cientista que considera que a virtude
suprema está na busca honesta da verdade? Na realidade, o criador do
universo não teria forçosamente de ser um cientista? Perguntaram a
Bertrand Russell o que diria se morresse e se Deus o confrontasse
perguntando-lhe por que razão Russell não tinha acreditado nele. «Provas
insuficientes, Deus, provas insuficientes» foi a (eu ia dizer imortal) resposta
de Russell. Não teria Deus respeitado mais Russell pelo seu corajoso
cepticismo (para não falar do corajoso pacifismo que lhe valeu a prisão na I
Guerra Mundial), do que Pascal pela cobardia de apostar pelo seguro? E se,
por um lado, não há maneira de sabermos para qual dos lados se inclinaria
Deus, o certo é que também não precisamos de o saber para refutarmos a
aposta de Pascal. Repare-se que é de uma aposta que se trata, e Pascal não
quis dizer senão que eram escassas as suas probabilidades. O leitor apostava
em que Deus daria mais valor à crença fingida por desonestidade (ou
mesmo à crença sincera) do que ao cepticismo sincero?
Uma vez mais, imagine-se que quem se nos depara quando morrermos é o
deus Baal e imagine-se que Baal é tão cioso quanto se dizia ser o seu velho
rival Javé. Não teria sido melhor se Pascal não tivesse apostado em nenhum
deus em vez de apostar no deus errado? Pensando melhor, não será que o
simples número de deuses e deusas potenciais em que se pode apostar vicia
toda a lógica de Pascal? Provavelmente ele estava a brincar quando fez a
sua aposta, tal como eu estou a brincar ao rejeitá-la desta maneira. Mas já
me defrontei com pessoas, por exemplo, nas sessões de perguntas após as
palestras, que apresentaram seriamente a aposta de Pascal como um
argumento a favor da crença em Deus, pelo que achei apropriado conferir-
lhe, aqui, algum espaço.
Por fim, será possível defender uma espécie de aposta anti Pascal?
Suponha-se que admitimos que há uma pequena hipótese de que Deus
exista. Mesmo assim, poderia dizer-se que teríamos uma vida melhor e mais
plena se apostássemos na não-existência em vez de apostar na existência, já
que neste caso iríamos desperdiçar o nosso precioso tempo a adorá-lo, a
sacrificarmo-nos por ele, a lutar e a morrer por ele, etc. Não vou aprofundar
a questão neste momento, mas será bom que o leitor a tenha presente
quando, em capítulos subsequentes, abordarmos as consequências perversas
que podem advir da crença e da prática religiosas.
Argumentos bayesianos
Penso que a tentativa mais bizarra de provar a existência de Deus que
conheci até hoje foi o argumento bayesiano recentemente avançado por
Stephen Unwin em The Probability of God. Hesitei antes de incluir este
argumento, que não só é mais fraco como nem sequer tem o aspecto vetusto
dos outros. No entanto, o livro de Unwin recebeu uma atenção considerável
da parte dos jornais quando foi publicado, em 2003, além de que dá de facto
oportunidade de atar aqui alguns fios da minha explicação. Identifico-me
um pouco com os seus objectivos, porque, como se verificou no capítulo
segundo, acredito que a existência de Deus enquanto hipótese científica é,
pelo menos teoricamente, investigável. Acresce que o esforço quixotesco de
Unwin para quantificar a probabilidade é gostosamente divertido.
O subtítulo da obra, «Um Cálculo Simples que Prova a Verdade
Derradeira», tem todo o aspecto de ser um acrescento posterior por parte do
editor, já que tal sobranceria está ausente do texto de Unwin. Há que ler o
livro como um desses manuais do género «como fazer», uma espécie de
teorema de Bayes para totós que usa a existência de Deus como um estudo
de caso meio jocoso. Unwin podia ter usado igualmente um assassínio
hipotético para demonstrar o teorema de Bayes. O detective reúne as
provas. As impressões digitais no revólver apontam para a Sra. Peacock.
Quantifique-se essa suspeita atirando-se-lhe com uma probabilidade
numérica. No entanto, o professor Plum tinha um motivo para a tramar.
Reduz-se num valor numérico correspondente a suspeita relativa à Sra.
Peacock. Os dados forenses sugerem uma probabilidade de 70 por cento de
o revólver ter sido disparado de modo preciso a uma longa distância, o que
aponta para um culpado com treino militar. Quantifiquem-se as nossa
suspeitas acrescidas quanto ao coronel Mustard. O reverendo Green tem o
motivo mais plausível para ter cometido o crime. Subimos a nossa
83
O estudo vale o que vale (pouquíssimo, na minha opinião). Seja como for,
no final de uma corrida bayesiana bastante renhida em que começa por se
destacar logo nas apostas, depois fica para trás, depois recupera a custo até à
marca dos 50 por cento com que principiara, Deus, segundo os cálculos de
Unwin, acaba por desfrutar de uns 67 por cento de probabilidades de existir.
Unwin decide então que o seu veredicto bayesiano de 67 por cento não é
suficientemente alto, pelo que dá o passo bizarro de o fazer disparar até aos
95 por cento através de uma injecção de «fé». Parece anedota, mas o
procedimento é realmente esse. Gostaria de poder dizer como ele o justifica,
mas de facto não há nada a dizer. Defrontei-me com este tipo de disparate
noutras ocasiões, em que desafiei cientistas religiosos, mas nem por isso
menos inteligentes, a justificar a sua crença quando eles próprios
reconheciam a inexistência de provas: «Admito que não há provas. Por
alguma razão se lhe chama fé» (e proferiam esta última frase com uma
convicção quase truculenta e sem qualquer laivo apologético ou defensivo).
Surpreendentemente, da lista das seis cláusulas de Unwin não consta o
argumento do desígnio, nem nenhuma das cinco «provas» de Tomás de
Aquino, nem nenhum dos vários argumentos ontológicos. Unwin nada quer
com eles: não contribuem nem com uma pitada para a sua estimativa
numérica da probabilidade de Deus. Ele discute-os e, como bom estatista,
põe-nos de lado por serem vazios de sentido. Penso que isso abona a seu
favor, embora a razão que dá para afastar o argumento do desígnio seja
diferente da minha. Mas os argumentos que autoriza a passar pelo seu crivo
bayesiano são, quanto a mim, igualmente frágeis. Isto equivale a dizer que
as ponderações de probabilidade subjectivas que eu lhes daria são diferentes
das dele, mas de resto quero lá eu saber de juízos subjectivos! Unwin pensa
que o facto de possuirmos a noção do certo e do errado conta fortemente a
favor de Deus, ao passo que eu não vejo como isso poderia fazer com que
este pendesse para um lado ou para o outro relativamente à sua expectativa
inicial. Os capítulos sexto e sétimo irão demonstrar que não há como provar
que a circunstância de possuirmos uma noção do certo e do errado tem
alguma ligação evidente com a existência de uma divindade sobrenatural.
Tal como no caso da nossa capacidade de apreciar um quarteto de
Beethoven, a nossa noção do bem (embora não necessariamente o nosso
impulso para a seguir) será sempre aquilo que é, com Deus ou sem Deus.
Por outro lado, Unwin acha que a existência do mal, sobretudo de
catástrofes naturais tais como terramotos e tsunamis, conta fortemente
contra a probabilidade da existência de Deus. Neste ponto, o juízo de
Unwin é contrário ao meu, mas está de acordo com muitos teólogos para
quem esta questão é incómoda. A «teodiceia» (a justificação da providência
divina perante a existência do mal) tira o sono aos teólogos. O abalizado
Oxford Companion to Philosophy define o problema do mal como «a mais
poderosa objecção ao teísmo tradicional». Mas trata-se de um argumento
apenas contra a existência de um Deus bom. A bondade não faz parte da
definição da Hipótese Deus, é simplesmente um acrescento desejável.
É certo que as pessoas com pendor teológico são, muitas vezes,
cronicamente incapazes de distinguir a verdade daquilo que gostariam que
fosse verdade. Mas para alguém mais sofisticado que acredite numa forma
de inteligência sobrenatural, ultrapassar o problema do mal reveste-se de
uma facilidade infantil. Basta postular um deus ruim, como o que espreita
em cada página do Antigo Testamento. Ou, se não se gostar deste, invente-
se um deus mau diferente, chame-se-lhe Satanás e ponham-se as culpas de
todo o mal no mundo para cima da batalha cósmica que trava contra o deus
bom. Ou então - uma solução mais sofisticada - postule-se um deus com
coisas mais importantes para fazer do que ralar-se com as desgraças
humanas. Ou um deus que não seja indiferente ao sofrimento, mas que o
veja como o preço a pagar pelo livre arbítrio num cosmos regido pela ordem
e pela lei. Não faltam teólogos a embarcar em cada uma destas construções.
Por estes motivos, se pudesse refazer o exercício bayesiano de Unwin,
nem o problema do mal nem as considerações morais de um modo geral me
fariam afastar muito, fosse para um lado ou para o outro, da hipótese nula
(os 50 por cento de Unwin). Mas não quero deter-me nesta questão, porque,
seja como for, não posso inquietar-me com opiniões pessoais, sejam elas de
Unwin ou minhas.
Há um argumento muito mais poderoso e que não depende de juízos
subjectivos. É o argumento da improbabilidade. De facto este argumento
afasta-nos bastante dos 50 por cento de agnosticismo, inclinando-se
acentuadamente na direcção do teísmo extremo na perspectiva de muitos
teístas, e na direcção do ateísmo extremo segundo o meu ponto de vista. Já
aludi a ele por diversas vezes. O argumento gira, todo ele, em torno da
conhecida pergunta «Quem fez Deus?», cuja resposta a maioria das pessoas
capazes de pensar descobre por si. Um Deus capaz de desígnio, ou de
conceber, não pode ser usado para explicar a complexidade organizada,
porque qualquer Deus capaz de conceber o que quer que fosse teria de ser
suficientemente complexo para obrigar a que o mesmo tipo de explicação
fosse aplicado a si próprio. Deus apresenta uma regressão infinita da qual
não nos pode ajudar a escapar. Este argumento, como irei mostrar no
próximo capítulo, demonstra que Deus, embora não tecnicamente refutável,
é, na realidade, muitíssimo improvável.
62 A palavra design, amplamente utilizada no texto inglês, evoca uma constelação de significações –
«concepção», «desígnio», «desenho»... Consoante o contexto, a tradução alterna entre estes e outros
termos, procurando assim manter presente a riqueza plurívoca do original. (N. das T.)
63 Não posso deixar de lembrar aqui o imortal silogismo levado à socapa para um teste de geometria
euclidiana por um colega nos tempos da escola: «O triângulo ABC parece isósceles. Logo...»
64 O paradoxo de Zenão é demasiado conhecido para que se lhe dedique mais do que uma nota de
rodapé. Aquiles consegue correr dez vezes mais depressa que a tartaruga e por isso dá ao animal um
avanço de, digamos, 100 metros. Aquiles corre 100 metros e a tartaruga está agora 10 metros à frente.
Aquiles corre os 10 metros e a tartaruga está agora um metro à frente. Aquiles corre esse metro e a
tartaruga está-lhe ainda um décimo de metro à frente... e assim por diante ad infinitum, de modo que
Aquiles nunca apanha a tartaruga.
65 É possível que estejamos a assistir hoje a algo semelhante na muito publicitada tergiversação do
filósofo Antony Flew, que na sua velhice anunciou ter-se convertido à crença numa qualquer divindade
(desencadeando um frenesim entusiasticamente repetido na Internet). Por outro lado, Russell era um
grande filósofo. Russell ganhou o Prémio Nobel. Talvez a alegada conversão de Flew lhe venha a valer
o Prémio Templeton. Um primeiro passo nesse sentido foi a sua ignominiosa decisão, em 2006, de
aceitar o Prémio Phillip E. Johnson para a Liberdade e a Verdade. O primeiro detentor deste prémio foi
Phillip E. Johnson, advogado a quem se atribui a criação da «estratégia da cunha» por parte do
Desígnio Inteligente. Flew é o segundo detentor. A universidade que entrega os prémios é o Bible
Institute de Los Angeles. É impossível não pensar se Flew se dará conta de que está a ser usado. Ver
Victor Stengler, «Flew’s flawed science», Free Inquiry 25, 2, 2005, 17-18;
www.secularhumanism.org/index.php?section=library&page=stenger_25_2.
67 Toda esta questão das ilusões é discutida por Richard Gregory numa série de livros, incluindo
Gregory (2007).
69 http://sofc.org/Spirituality/s-of-fatima.htm.
70 Embora seja certo, por outro lado, que os pais da minha mulher ficaram uma vez num hotel em Paris
chamado Hôtel de l’Univers et du Portugal.
71 Tom Flynn, «Matthews vs. Luke», Free Inquiry 25,1, 2004, 34-45; Robert Gillooly, «Shedding light
on the light of the world», Free Inquiry 25,1, 2004, 27-30.
72 Refiro o subtítulo porque é a única coisa de que tenho a certeza. O título do meu exemplar do livro,
publicado pela Continuum de Londres, é Whose Word is it? (KPalavra de quem?»). Nada nesta edição
me indica se este é o mesmo livro publicado em edição americana pela Harper San Francisco, que eu
não vi, e cujo título é Misquoting Jesus (KJesus Mal Citado»). Suponho que se trata do mesmo livro,
mas por que razão fazem os editores estas coisas?
74 Na sua biografia de Jesus, A. N. Wilson lança dúvidas quanto ao facto de José ter sido carpinteiro. A
palavra grega tekton significa, efectivamente, carpinteiro, mas foi traduzida da palavra aramaica
naggar, que pode significar artesão ou homem erudito. Esta é apenas uma de várias traduções erróneas
de que a Bíblia enferma, sendo a mais famosa a tradução de almah, termo hebraico usado por Isaías
para dizer jovem mulher, pelo grego parthenos (virgem). Um lapso compreensível do tradutor, que
viria a ser copiosamente inflacionado até dar origem à absurda lenda da virgindade da mãe de Jesus!
Além deste, o único concorrente com hipóteses de chegar ao título de campeão das traduções erróneas
de todos os tempos diz também respeito a virgens. Ibn Warraq sustenta com grande humor que, na
famosa promessa de 72 virgens para cada mártir muçulmano, «virgens» é uma tradução errada de «uvas
brancas e cristalinas». Ora, se esta informação tivesse sido mais divulgada, quantas vítimas inocentes
de missões suicidas não teriam sido salvas? (Ibn Warraq, «Virgins? What virgins?», Free Inquiry 26, 1,
2006, 45-6.)
75 Até a mim já me honraram com profecias de conversão no leito de morte. A verdade é que estas vão
recorrendo com uma regularidade monótona (ver, por exemplo, Steer, 2003), com cada nova repetição
envolta em frescas nuvens carregadas da ilusão de ser espirituosa e a primeira. O melhor será talvez
precaver-me, instalando um gravador a fim de proteger a minha reputação póstuma. Lalla Wards
acrescenta: «Para quê apoquentares-te com leitos de morte? Se é para te venderes, fá-lo a tempo de
poderes ganhar o Prémio Templeton e diz que foi da senilidade.»
76 Não confundir com o projecto genoma humano não oficial, dirigido por esse brilhante (e não
religioso) «corsário» da ciência chamado Craig Venter.
78 E. J. Larson e L. Witham, «Leading scientists still reject God», Nature 394, 1998, 313.
80 http://www.answersingenesis.org/docs/3506.asp.
82 P. Bell, «Would you believe it?», Mensa Magazine, Fevereiro de 2002, 12-13.
83 Reverendo Green é o nome da personagem nas versões do Cluedo vendidas na Grã-Bretanha (donde
é originário o jogo), na Austrália, na Nova Zelândia, na Índia e em todas as áreas de língua inglesa
excepto na América do Norte, onde de repente se torna no Sr. Green. Mas qual é a ideia afinal?
4
Por que razão é quase certo que Deus
não existe
Os sacerdotes das diferentes seitas religiosas... temem o
avanço da ciência como as bruxas temem a aurora e franzem
o sobrolho ao fatal arauto da subdivisão dos logros em que
vivem.
Thomas Jefferson
que a probabilidade de a vida ter tido origem na Terra não é maior do que a
possibilidade de um furacão que varresse um parque de ferro-velho ter a
sorte de montar um Boeing 747. Outros têm utilizado a metáfora para se
referirem às fases mais adiantadas da evolução de organismos vivos
complexos, caso em que a sua plausibilidade é espúria. As probabilidades
contra a ideia de conseguir montar um escaravelho, uma avestruz ou um
cavalo totalmente funcionais baralhando-lhes ao acaso as partes
constitutivas ascendem a valores que se cifram na casa dos do Boeing 747.
É este, numa palavra, o argumento favorito do criacionista. Mas é um
argumento que só cabe na cabeça de quem não faz a mínima ideia do que
seja a selecção natural: alguém que julga que a selecção natural é uma teoria
do acaso, quando ela é – no sentido relevante da palavra acaso – o oposto.
A apropriação errónea do argumento da improbabilidade por parte do
criacionismo assume sempre a mesma forma genérica, em nada se alterando
quando o criacionista o aperalta sob as vestes politicamente oportunistas do
«desígnio inteligente» (DI). Enaltece-se – com toda a justeza, de resto –
85
E eu pensei, pensei, pensei. Mas não tinha muito por onde avançar, por
isso não cheguei a nenhuma decisão. Tinha imensas dúvidas em relação
à ideia de deus, mas não sabia o suficiente sobre o que quer que fosse
para o substituir por um bom modelo de uma eventual explicação para,
sei lá, a vida, o universo e tudo o que há. Mas eu insisti, e continuei a
ler e continuei a pensar. A certa altura, estava eu a entrar na casa dos 30
quando tive um encontro com a Biologia evolutiva, particularmente sob
a forma dos livros de Richard Dawkins O Gene Egoísta e, a seguir, O
Relojoeiro Cego. De repente (creio que ao ler O Gene Egoísta pela
segunda vez) todas as peças se encaixaram. Era um conceito de uma
simplicidade assombrosa, mas que deu origem, naturalmente, a toda a
infinita e desconcertante complexidade que a vida contém. O espanto
que inspirou em mim fazia parecer com que o espanto de que as pessoas
falam relativamente à experiência religiosa me parecesse francamente
pateta quando postos ambos lado a lado. Eu colocaria o espanto da
compreensão acima do espanto da ignorância, não tenho dúvidas sobre
isso .
87
Darwin ter descoberto um processo viável que leva a cabo exactamente essa
coisa contra-intuitiva é o que torna o seu contributo para o pensamento
humano tão revolucionário e tão capaz de despertar consciências.
É surpreendente como esse despertar de consciências é necessário,
mesmo para as mentes de grandes cientistas em áreas que não a Biologia.
Fred Hoyle foi um físico e um cosmólogo brilhante, mas a incompreensão
patenteada pelo seu exemplo do Boeing 747 e outros erros no campo da
Biologia, como a sua rejeição do fóssil Archaeopteryx com o argumento de
que era um embuste, são de molde a sugerir que precisava que lhe
despertassem a consciência através de uma ampla exposição ao mundo da
selecção natural. Suponho que, no plano intelectual, ele compreendeu a
selecção natural, mas talvez seja necessário estar-se imbuído dela,
mergulhado nela, para se poder apreciar verdadeiramente o seu poder.
Outras ciências há que despertam as nossas consciências de formas
diferentes. A ciência da Astronomia, de Fred Hoyle, põe-nos no nosso
lugar, tanto metafórica como literalmente, reduzindo a nossa vaidade até
caber no minúsculo palco em que representamos as nossas vidas – a nossa
partícula dos detritos resultantes da explosão cósmica. A Geologia lembra-
nos a nossa breve existência não só como indivíduos, mas também como
espécie. Foi ela que despertou a consciência de John Ruskin, arrancando-lhe
esse memorável grito de 1851: «Se ao menos os geólogos me deixassem em
paz, eu ficaria bem, mas aqueles terríveis martelos! Ouço-lhes o tinir por
sobre a cadência dos versículos da Bíblia.» A evolução faz a mesma coisa
pelo nosso sentido de tempo – o que não surpreende, visto que à escala do
tempo geológico. Mas a evolução darwiniana, e concretamente a selecção
natural, faz algo mais do que isso. Ela estilhaça a ilusão do desígnio criador
no domínio da Biologia, do mesmo passo que nos ensina a desconfiar de
todo o tipo de hipótese desígnio criador também na Física e na Cosmologia.
Julgo que o físico Leonard Susskind tinha isso em mente quando escreveu:
«Não sou historiador, mas vou arriscar uma opinião: a Cosmologia moderna
teve de facto início com Darwin e Wallace. Ao contrário de qualquer pessoa
antes deles, facultaram explicações para a nossa existência que rejeitavam
por inteiro os agentes sobrenaturais... Darwin e Wallace estabeleceram um
padrão não só para as ciências da vida, mas também para a Cosmologia.» 89
Outros físicos que estão muito longe de precisar que lhes despertem a
consciência são, por exemplo, Victor Stenger, cujo livro Has Science Found
God? (a resposta é não) recomendo vivamente , e Peter Atkins, autor de
90
Complexidade irredutível
Não é de mais sublinhar a magnitude do problema que Darwin e Wallace
resolveram. Poderia dar como exemplo a Anatomia, a estrutura celular, a
Bioquímica e o comportamento de literalmente todos os organismos vivos.
Mas os feitos mais impressionantes da aparência de desígnio são os que –
por razões óbvias – os autores criacionistas vão buscar, e é com ironia
moderada que retiro as minhas de um livro criacionista. Life –- How Did It
Get Here?, obra de um autor não identificado que, no entanto, foi publicada
pela Watchtower Bible e pela Tract Society em 16 línguas e 11 milhões de
exemplares, é manifestamente um forte favorito porque nada menos de seis
desses 11 milhões de exemplares me foram enviados de presente de todo o
mundo por gente preocupada comigo.
Escolhendo uma página ao acaso desta obra anónima e profusamente
distribuída, encontramos nada menos do que a esponja conhecida por cesta-
de-flores-de-vénus (Euplectella), acompanhada de uma citação de Sir David
Attenborough: «Quando olhamos para o complexo esqueleto de uma
esponja como esta, feita de espículos de sílica e conhecida como cesta-de-
flores-de-vénus, a imaginação fica atónita. Como foi possível células
microscópicas quase independentes entre si colaborarem de maneira a
segregar um milhão de fragmentos vítreos e construir uma rede tão
intrincada e bela? Não sabemos.» Os autores da Watchtower não perdem
tempo para acrescentar a sua própria conclusão: «Mas uma coisa sabemos:
o criador provável não foi o acaso.» Não, de facto o acaso não foi o criador
provável. Isso é algo com que todos podemos concordar. A improbabilidade
estatística de fenómenos como o esqueleto da Euplectella é o problema
central que qualquer teoria da vida tem de resolver. Quanto maior a
improbabilidade estatística, menos plausível é que a solução esteja no
acaso: é isso que significa a palavra improvável. Mas, ao contrário do que
falsamente é insinuado, as soluções candidatas ao enigma da
improbabilidade não são o desígnio de um criador e o acaso. São sim o
desígnio e a selecção natural. O acaso não é solução, dados os elevados
níveis de improbabilidade que vemos nos organismos vivos, e nenhum
biólogo no seu juízo perfeito alguma vez sugeriu que fosse. Um criador e o
seu desígnio também não são uma solução real, como teremos a
oportunidade de ver mais adiante, mas por agora quero continuar a
demonstrar o problema que toda a teoria da vida terá de resolver: a forma de
como escapar ao acaso.
Ao folhear o livro da Watchtower encontramos a maravilhosa planta
conhecida como jarrinha (Aristolochia trilobata), cujas partes parecem
elegantemente desenhadas para apanhar insectos, cobri-los com pólen e
enviá-los para outra jarrinha. A elegância intrincada da flor leva a
Watchtower a perguntar: «Tudo isto aconteceu por acaso? Ou aconteceu
devido ao desígnio inteligente? Uma vez mais, não, é claro que não
aconteceu por acaso. Uma vez mais, o desígnio inteligente não é a
alternativa adequada para o acaso. A selecção natural não é apenas uma
solução parcimoniosa, plausível e elegante, é a única alternativa viável para
o acaso alguma vez proposta. O desígnio inteligente é merecedor
precisamente da mesma objecção que o acaso. Pura e simplesmente, não é
uma solução plausível para o enigma da improbabilidade estatística. E
quanto mais elevada a improbabilidade, menos plausível se torna o desígnio
inteligente. Bem visto, este redunda numa duplicação do problema. Uma
vez mais, isto acontece porque a ideia de um criador (ou criadora) levanta
desde logo o problema maior que é o da sua própria origem. Qualquer
entidade capaz de conceber inteligentemente algo tão improvável como uma
jarrinha (ou um universo) teria de ser ainda mais improvável do que uma
jarrinha. Longe de pôr termo a esta regressão, Deus agrava-a ainda mais.
Virando mais uma página do livro da Watchtower, encontra-se uma
eloquente descrição do pau-brasil (Sequoiadendron giganteum), uma árvore
gigantesca pela qual tenho um afecto especial porque possuo uma no jardim
– um mero bebé com pouco mais de um século, mas que ainda assim é a
árvore mais alta da vizinhança. «Um homem ínfimo, de pé junto à base de
uma sequóia, nada mais pode fazer do que olhar para cima e mirar-lhe, em
silêncio e espanto, a corpulenta grandiosidade. Fará sentido acreditar que no
moldar deste majestoso gigante e da minúscula semente que o envolve não
houvesse um desígnio?» Uma vez mais, se se pensar que a única alternativa
ao desígnio é o acaso, então não, não fará sentido. Mas os autores omitem
de novo qualquer referência à verdadeira alternativa, a selecção natural, seja
porque não a compreendem genuinamente, seja porque não querem.
O processo pelo qual as plantas, quer sejam minúsculos morriões, quer
sejam corpulentas sequóias, adquirem a energia para se edificar é a
fotossíntese. Demos, de novo, a palavra à Watchtower: «“A fotossíntese
implica cerca de 70 reacções químicas diferentes”, disse um biólogo,
acrescentando: “É um acontecimento verdadeiramente milagroso.” Já
alguém chamou às plantas verdes as “fábricas” da natureza – fábricas belas,
silenciosas, não-poluentes e produtoras de oxigénio, que reciclam a água e
alimentam o mundo. Será que aconteceram por acaso? Será isso crível?»
Não, não é crível, mas a repetição de um exemplo após outro não nos leva a
lado algum. A «lógica» criacionista é sempre a mesma. Um certo fenómeno
natural é estatisticamente demasiado improvável, demasiado complexo,
demasiado belo, demasiado assombroso para ter surgido por acaso. Ter sido
concebido, ter sido «desenhado», é a única alternativa para o acaso que os
autores conseguem imaginar. Assim sendo, algum criador deve tê-lo feito. E
a resposta da ciência para esta lógica defeituosa também é sempre a mesma.
O desígnio não é a única alternativa para o acaso. A selecção natural é uma
alternativa melhor. Na verdade, o desígnio não é de todo uma alternativa
real porque levanta um problema ainda maior do que aquele que resolve:
quem concebeu aquele que concebe? Tanto o acaso como o desígnio falham
enquanto soluções para o problema da improbabilidade estatística, porque o
primeiro é o próprio problema, e o segundo regride até ele. A selecção
natural é uma solução real. E não é apenas a única solução que funciona,
como é também uma solução de uma elegância e um poder assombrosos.
O que faz a selecção natural ser bem-sucedida como solução para o
problema da improbabilidade, enquanto o acaso e o desígnio falham,
ambos, logo à partida? A resposta é que a selecção natural é um processo
cumulativo que decompõe o problema da improbabilidade em pequenos
bocados. Cada um desses pequenos bocados é ligeira, mas não
proibitivamente, improvável. Quando grandes quantidades destes
acontecimentos ligeiramente improváveis se empilham em séries, o produto
final de tal acumulação é, na verdade, muito, muito improvável,
suficientemente improvável para se situar muito além do âmbito do acaso.
São estes produtos finais que formam os tópicos do argumento
enfadonhamente reciclado do criacionista. O criacionista (ou a criacionista,
porque, de uma vez por todas, não gostaria que as mulheres se sentissem
excluídas pelo meu uso do masculino) não consegue, de todo, compreender
o essencial, e daí insistir em tratar a génese da improbabilidade estatística
como um acontecimento único e irrepetível. Ele não compreende o poder da
acumulação.
Em A Escalada do Monte Improvável, expressei este ponto através de
uma parábola. Um dos lados da montanha é um penhasco alcantilado,
impossível de escalar, mas do outro lado há uma encosta suave até ao cume.
Aí encontra-se um dispositivo complexo, como, por exemplo, um olho ou
um motor flagelar bacteriano. A noção absurda de que tal complexidade
poderia espontaneamente montar-se a si própria é simbolizada pela
passagem, num só salto, do sopé do penhasco até ao cume. Pelo contrário, a
evolução vai dando a volta à montanha, subindo a suave encosta até ao
cume: fácil! O princípio de escalar a encosta suave em vez de pular até ao
cimo do penhasco é tão simples que sentimos algum pasmo por ter
decorrido tanto tempo até surgir em cena um Darwin que o descobrisse.
Quando isso aconteceu, já tinham decorrido quase dois séculos desde o
annus mirabilis de Newton, embora à primeira vista o seu feito pareça mais
difícil do que o de Darwin.
Outra metáfora favorita para referir a improbabilidade extrema é a da
fechadura de combinação do cofre-forte de um banco. Teoricamente, um
assaltante de bancos poderá ter sorte e descobrir por acaso a combinação
certa dos números. Na prática, a fechadura de combinação é concebida com
um grau de improbabilidade suficiente para que a tarefa seja sinónimo de
impossível – quase tão improvável como o Boeing 747 de Fred Hoyle. Mas
imagine-se uma fechadura de combinação deficientemente concebida, que
fosse gradualmente divulgando pequenas pistas – o equivalente às pistas
indicativas («está quente, está frio») dos jogos de esconder a que brincamos
em criança. Imagine-se que, de cada vez que um dos botões se aproxima da
posição correcta, a porta do cofre-forte se abre mais um pouquinho mais e
uma pequena quantidade de dinheiro vai escorrendo para fora. Num
instante, o ladrão acertaria no jackpot.
Os criacionistas que tentam utilizar o argumento da improbabilidade a seu
favor presumem sempre que a adaptação biológica é uma questão de
jackpot ou nada. Outro nome para a falácia do «jackpot ou nada» é
«complexidade irredutível» (CI). O olho ou vê, ou não vê. A asa ou voa, ou
não voa. Parte-se do princípio de que não existem intermediações úteis, mas
isto é, simplesmente, errado. Na prática essas transições existem em
abundância – e é precisamente isso que devíamos esperar também na teoria.
A fechadura de combinação da vida é um dispositivo do género «quente,
frio, quente» do jogo infantil. A vida real procura as encostas suaves na
parte detrás do monte improvável, ao passo que os criacionistas estão cegos
para tudo menos para o intimidante penhasco na parte da frente.
Darwin dedicou um capítulo inteiro do livro A Origem das Espécies às
«dificuldades quanto à teoria da descendência com modificações», e é justo
dizer que este breve capítulo previu e esvaziou, à partida, todas as alegadas
dificuldades apontadas desde então até aos nossos dias. As dificuldades de
maior vulto são aquilo a que Darwin chama «os órgãos de grau de perfeição
e complicação extremo», por vezes erroneamente descritos como
«irredutivelmente complexos». Darwin destacou o olho por levantar um
problema particularmente interpelador: «Admito desde logo que me parece
sumamente absurdo supor que o olho, com todos os seus dispositivos
inimitáveis para ajustar a focagem a diferentes distâncias, para permitir a
entrada de diferentes quantidades de luz e para a correcção da aberração
esférica e cromática, se possa ter formado por selecção natural.» Os
criacionistas comprazem-se a citar esta frase vezes sem conta. Não será
preciso dizer que nunca citam o que vem a seguir. Acontece que a
concessão desmedida oferecida por Darwin não passa de um recurso
retórico. O que ele faz é apenas atrair os seus opositores de modo a que o
golpe, quando desferido, os atinja com a força toda. É evidente que o golpe
mais não é do que a explicação singela de como o olho foi evoluindo,
precisamente, ao longo de etapas graduais. Darwin pode não ter usado a
expressão «complexidade irredutível» ou «a suave rampa até ao topo do
monte improvável», mas entendeu claramente o princípio de ambas.
«Para que serve meio olho?» e «para que serve meia asa?» são exemplos
do argumento da «complexidade irredutível». Diz-se de uma determinada
unidade funcional que é irredutivelmente complexa se a remoção de uma
das suas partes fizer com que o todo deixe de funcionar. Tem-se
considerado este facto uma auto-evidência tanto no que se refere aos olhos
como no que respeita a asas. Mas, se pensarmos duas vezes sobre estas
pressuposições, imediatamente nos apercebemos da falácia. Uma pessoa
que sofra de cataratas e a quem tenham removido cirurgicamente o
cristalino não consegue ver imagens nítidas sem óculos, mas consegue ver o
suficiente para não chocar contra uma árvore ou para não cair de um
penhasco. Meia asa não é, de facto, tão bom como uma asa inteira, mas é
seguramente melhor do que nada. Meia asa poderá salvar-nos a vida ao
aliviar-nos a queda de uma árvore de uma certa altura. E 51 por cento de
uma asa poderá salvar-nos se cairmos de uma árvore ligeiramente mais alta.
Qualquer que seja a fracção de asa que possuirmos, haverá um ponto a
partir do qual ela nos vai salvar da queda, o que não aconteceria caso fosse
mais pequena. Este exercício intelectual com árvores de alturas diferentes
das quais se pode cair não é senão uma forma de ver, em teoria, que deve
haver um gradiente ligeiro de vantagens, desde um por cento de uma asa até
100 por cento. As florestas estão repletas de animais que se atiram planando
ou como que esbracejando para amortecer a queda, ilustrando com isso, na
prática, cada um dos passos da ascensão da tal encosta do monte
improvável.
Por analogia com as árvores de alturas diferentes, torna-se fácil imaginar
situações nas quais metade da vista salvaria a vida de um animal, ao passo
que 49 por cento da mesma não o faria. Obtêm-se gradientes em função das
variações das condições de iluminação, das variações da distância a partir
da qual se avista a presa – ou os predadores. E tal como acontece com as
asas e as superfícies de voo, os exemplares de transição plausíveis não só
são fáceis de imaginar como abundam em todo o reino animal. Será
razoável afirmar que o olho de um platelminta é menor do que metade de
um olho humano. O náutilo (e talvez as suas já extintas primas amonites,
que dominaram os mares do Paleozóico e do Mesozóico) tem um olho de
qualidade intermédia situado entre o platelminta e o ser humano. Ao
contrário do olho do platelminta, que consegue detectar luz e sombra mas
não é capaz de ver imagens, o olho do náutilo, um buraco de agulha ao
género de uma câmara pinhole, consegue obter uma imagem real, mas essa
imagem, comparada com a nossa, é esbatida e desfocada. Seria espúrio
precisar em números o grau de melhoria, mas ninguém poderá sensatamente
negar que os olhos destes invertebrados, bem como os de muitos outros,
são, todos eles, melhores do que não os possuir, e todos se situam ao longo
de uma linha contínua de encosta pelo monte improvável acima, com os
nossos olhos perto de um cume – não o mais alto, mas um cume elevado.
Em A Escalada do Monte Improvável, dediquei um capítulo inteiro ao olho
e outro à asa, demonstrando quão fácil foi para eles ir evoluindo por meio
de etapas lentas (ou talvez não tão lentas) e graduais, mas agora fico-me por
aqui.
Já vimos, portanto, que seguramente os olhos e as asas não são
irredutivelmente complexos, mas mais interessante do que estes exemplos
específicos é a lição geral que daqui se deve retirar. O facto de tanta gente
se ter enganado completamente acerca destes casos óbvios deveria alertar-
nos relativamente a outros exemplos menos óbvios, como sejam os
argumentos que na área da célula e da Bioquímica são hoje em dia
propalados pelos criacionistas acobertados sob o eufemismo politicamente
oportunista de «teóricos do desígnio inteligente».
Há que retirar daqui um aviso, que nos diz o seguinte: não basta afirmar
que as coisas são irredutivelmente complexas, pois o mais provável é não se
ter prestado suficiente atenção aos pormenores ou sobre eles não se ter
reflectido o suficiente. Por outro lado, nós, os que estamos do lado da
ciência, não podemos deixar-nos levar dogmaticamente pelo excesso de
confiança. Talvez haja algo na natureza que, pela sua complexidade
genuinamente irredutível, realmente impeça o gradiente suave do monte
improvável. Os criacionistas têm razão quando afirmam que, se a
complexidade genuinamente irredutível pudesse ser devidamente
demonstrada, arruinaria a teoria de Darwin. O próprio Darwin disse isso
mesmo: «Se se pudesse demonstrar que existia um organismo complexo que
não podia ter sido formado por uma numerosa sucessão de modificações
ligeiras, a teoria que defendo cairia completamente por terra. Contudo, não
consigo achar um caso assim.» Darwin não logrou encontrar nenhum caso
destes, nem ninguém o fez desde o seu tempo, apesar dos esforços
persistentes e até mesmo desesperados realizados nesse sentido. Já foram
propostos muitos candidatos a este santo graal do criacionismo. Nenhum
deles resistiu à análise.
De qualquer modo, mesmo que a complexidade genuinamente irredutível
deitasse por terra a teoria de Darwin, quem poderá dizer que não derrubaria
igualmente a teoria do desígnio inteligente? Na verdade, já a deitou por
terra, uma vez que, como digo sempre e volto agora a dizer, por muito
pouco que conheçamos Deus, aquilo de que podemos estar certos é de que
ele teria de ser muitíssimo complexo e, provavelmente, irredutivelmente
complexo!
Por que motivo se considera Deus uma explicação para tudo? Não o é –
é uma incapacidade de explicar, um encolher de ombros, um «sei lá»
com vestes de espiritualidade e ritual. Quando se atribui mérito a Deus
por alguma coisa, o que isso geralmente significa é que essas pessoas
não fazem a mínima ideia, por isso atribuem-no a uma inalcançável e
incognoscível fada celeste. Peça-se uma explicação indagando donde
veio o tipo, e é provável que se receba uma resposta vaga e
pseudofilosófica sobre ele sempre ter existido ou ser exterior à natureza.
O que, como é óbvio, nada explica. 96
questão à qual voltarei. Mas vou introduzir a ideia a uma escala mais
pequena, a escala planetária. Nós existimos aqui na Terra. Por conseguinte,
a Terra deve ser o género de planeta capaz de nos gerar e sustentar, por mais
invulgar e até mesmo único que esse planeta possa ser. A nossa forma de
vida, por exemplo, não é capaz de sobreviver sem água líquida. Na verdade,
os exobiólogos que procuram provas de vida extraterrestre andam, na
prática, a sondar os céus em busca de vestígios de água. Em torno de uma
estrela típica como é o Sol, existe a chamada zona Goldilocks – nem muito
99
quente, nem muito fria, mas à temperatura certa – para planetas com água
líquida. Existe uma fina faixa de órbitas entre os planetas que se encontram
demasiado distantes da estrela, onde a água congela, e os que se encontram
demasiado próximos, onde a água entra em ebulição.
Também é presumível que uma órbita propícia à vida seja quase circular.
Uma órbita acentuadamente elíptica, como a do recém-descoberto décimo
planeta, informalmente chamado Xena, permitiria, quando muito, que o
planeta atravessasse por um breve período a zona Goldilocks apenas uma
vez em várias décadas ou séculos (de tempo terrestre). O próprio Xena não
chega a entrar na zona Goldilocks, mesmo no ponto de maior aproximação
ao Sol, que ocorre uma vez em cada 560 anos terrestres. A temperatura do
cometa Halley varia entre aproximadamente os 47 graus no periélio e os
-270 graus no afélio. Tecnicamente, a órbita da Terra, como as de todos os
planetas, é uma elipse (está mais próxima do Sol em Janeiro e mais afastada
em Julho ), mas o círculo constitui um caso especial de elipse, e a órbita da
100
Terra está tão perto de ser circular que nunca chega a sair da zona
Goldilocks. A posição da Terra no sistema solar é propícia sob outros
aspectos, e foram esses aspectos que a tornaram única para que vida ali
pudesse evoluir. Esse enorme aspirador gravitacional que é Júpiter está bem
posicionado para interceptar asteróides que de outro modo poderiam
ameaçar-nos com uma colisão letal. A única lua relativamente grande que a
Terra tem serve para estabilizar o nosso eixo de rotação , além de que ajuda
101
Swinburne admite generosamente que Deus não pode cometer feitos que
sejam logicamente impossíveis, e tamanha indulgência só é de agradecer.
Mas uma vez feita essa ressalva, não há limite para os propósitos
explicativos a que o infinito poder de Deus é submetido. A ciência está a ter
uma ligeira dificuldade em explicar X? Não há problema. Não há que ter
mais preocupações com X. O poder infinito de Deus é rapidamente
chamado a explicar X (bem como tudo o resto), e é sempre uma explicação
inexcedivelmente simples porque afinal só existe um Deus. O que podia ser
mais simples do que isso?
Bem, quase tudo, na verdade. Um Deus capaz de vigiar e controlar em
permanência a condição individual de cada partícula do universo não pode
ser simples. A existência desse Deus vai, ela mesma, precisar de uma
explicação colossal. Pior (do ponto de vista da simplicidade), outros
recantos da gigantesca consciência de Deus estarão simultaneamente
preocupados com as acções, as emoções e as preces de cada ser humano – e
de quantos extraterrestres inteligentes possam existir noutros planetas desta
e de mais 100 000 milhões de galáxias. Segundo Swinburne, Deus tem,
inclusivamente, de decidir a cada instante não intervir com milagres para
nos salvar quando temos cancro. Isso é que nunca, pois «se Deus atendesse
a maior parte das preces para salvar um parente a recuperar de um cancro,
então o cancro deixaria de ser um problema para o ser humano resolver.» E
aí, o que havíamos nós de fazer com o nosso tempo?
Nem todos os teólogos vão tão longe como Swinburne. No entanto, a
extraordinária sugestão de que a Hipótese Deus é simples pode ser
encontrada noutros escritos teológicos modernos. Keith Ward era professor
regius de Teologia em Oxford quando, em 1996, publicou Deus, o Acaso e
a Necessidade, obra onde é muito claro em relação a este assunto:
Um interlúdio em Cambridge
Em Cambridge, num recente congresso sobre ciência e religião no qual
propus aquilo a que aqui chamo o argumento do fantástico 747, deparou-se-
me o que, no mínimo, foi uma cortês indisponibilidade para alcançar uma
congregação das mentes em torno da questão da simplicidade de Deus. A
experiência foi reveladora e gostaria de a partilhar aqui.
Em primeiro lugar, devo confessar (esta é provavelmente a palavra certa)
que o congresso foi patrocinado pela Fundação Templeton. O público era
constituído por um reduzido número de jornalistas britânicos e americanos
especializados em ciência, todos eles escolhidos a dedo. Entre os 18
oradores convidados, eu fazia o papel de ateu de serviço. Um dos
jornalistas, John Horgan, contou que cada um deles tinha recebido a bela
quantia de 15 000 dólares para assistir ao congresso, mais todas as despesas
pagas. Isto surpreendeu-me. A minha longa experiência de congressos no
meio académico não incluía casos em que o público (não me refiro aos
oradores) era pago para assistir. Se tivesse sabido, as minhas suspeitas
teriam sido, desde logo, despertadas. Estaria a Templeton a usar o dinheiro
para subornar a gente do jornalismo científico, subvertendo-lhe a
integridade profissional? Mais tarde, John Horgan colocou-se a si próprio a
mesma questão e escreveu um artigo sobre toda essa sua experiência. Aí 107
Dou-me por satisfeito por ser um dos muitos cristãos que não se
interessam grande coisa pela doutrina da Santíssima Trindade nem pela
verdade histórica dos Evangelhos.
Já posso ir?
teólogos sempre definiram Deus como sendo simples. Quem era eu, um
cientista, para ordenar aos teólogos que o seu Deus tinha de ser complexo?
Os argumentos científicos como os que eu estava acostumado a desfiar na
minha área eram inadequados, visto que os teólogos sempre haviam
defendido que Deus estava fora da ciência.
Não fiquei com a impressão de que os teólogos que elaboraram esta
defesa evasiva estivessem a ser propositadamente desonestos. Acho que
estavam a ser sinceros. No entanto, não pude deixar de me lembrar do
comentário de Peter Medawar ao livro do padre Teilhard de Chardin, O
Fenómeno Humano, naquela que é porventura a recensão crítica mais
negativa de todos os tempos: KO autor só poderá ser desculpado de
desonestidade se pensarmos que antes de enganar os outros se esforçou
seriamente por se enganar a si próprio .» Os teólogos do meu encontro de
110
Neste capítulo ficou contido o argumento central do meu livro, pelo que,
correndo embora o risco de me repetir, vou resumi-lo numa série de seis
pontos numerados.
84 Uma análise da origem, usos e citações desta analogia, vista da perspectiva criacionista, é facultada
por Gert Korthof em http://home.wxs.nl/~gkorthof/kortho46a.htm.
85 Ao desígnio inteligente já alguém chamou, algo indelicadamente, criacionismo num smoking rasca.
86 O latim e o grego clássicos estavam mais bem equipados. O latim homo (em grego, anthropo-)
significa humano, por contraste com vir (andro-), que significa homem, e femina (gyne-), que significa
mulher. Deste modo, a antropologia diz respeito a toda a humanidade, ao passo que a andrologia e a
ginecologia são ramos da medicina que se excluem mútua (e sexual)mente.
87 Adams (2002), p. 99. O meu «Lament for Douglas», escrito no dia após a sua morte, vem reeditado
como epílogo de The Salmon of Doubt e também em A Devil’s Chaplain, que foi o meu elogio fúnebre
na homenagem prestada na igreja de St Martin-in-the-Fields.
90 Ver também o livro do mesmo autor God, the Failed Hypothesis; How Science Shows That God
Does Not Exist, de 2007.
91 Behe (1996).
92 Existe um exemplo na ficção. No livro Mundos Paralelos, Philip Pullman, autor de livros para
crianças, imagina uma espécie animal, a «mulefa», que coexiste com árvores que produzem vagens
perfeitamente redondas e com um buraco no meio. Essas vagens são adoptadas como rodas pela
mulefa. As rodas, não fazendo parte do corpo, não têm nervos nem vasos sanguíneos para se enrolarem
à volta do «eixo» (uma garra poderosa, feita de chifre ou de osso). Pullman faz notar com perspicácia
um aspecto mais: o sistema apenas funciona porque o planeta está revestido de faixas de basalto
naturais, que servem de «estradas». As rodas não têm qualquer préstimo em terreno irregular.
93 É fascinante verificar que o princípio da energia muscular é ainda utilizado de uma terceira forma
em alguns insectos como moscas, abelhas e besouros, nos quais o músculo impulsionador do voo é
intrinsecamente oscilante, como um motor de movimento alternativo. Enquanto outros insectos, como
os gafanhotos, enviam impulsos nervosos com instruções para cada movimento da asa (como acontece
com as aves), as abelhas enviam uma instrução para ligar (ou desligar) o nervo motor oscilante. As
bactérias têm um mecanismo que não é nem um simples músculo constritor (como o de voo de uma
ave), nem um músculo alternativo (como o impulsionador do voo da abelha), mas sim um verdadeiro
rotor: nesse aspecto, é como um motor eléctrico ou um motor Wankel.
94 http://www.millerandlevine.com/km/evol/design2/article.html.
96 J. Coyne, «God in the details: the biochemical challenge to evolution», Nature 383, 1996, 227-8. O
meu artigo de co-autoria com Coyne, «One side can be wrong», foi publicado no Guardian de 1 de
Setembro de 2005: http://www.guardian.co.uk/life/feature/story/0,13026,1559743,00.html. A citação do
«blogger eloquente» encontra-se em: http://www.religionisbullshit.net/blog/2005_09_01_archive.php.
97 Dawkins (2002).
98 Carter admitiu posteriormente que um nome melhor para o princípio global seria «princípio da
cognoscibilidade» em vez do já consagrado «princípio antrópico»: B. Carter, «The anthropic principle
and its implications for biological evolution», Philosophical Transactions of the Royal Society of
London A, 310, 1983, 347-63. Para uma discussão do princípio antrópico em livro, ver Barrow e Tipler
(1988).
99 Literalmente «caracolinhos de ouro», como a personagem do conto de Grimm. (N. das T.)
100 Se o leitor considera isto surpreendente, é provável que padeça do chauvinismo do hemisfério norte,
descrito na página 147.
102 Explanei este argumento com mais profundidade em O Relojoeiro Cego (Dawkins 1988).
103 Digo «presumivelmente», em parte, porque não sabemos quão diferentes poderão ser as formas de
vida alienígenas, e em parte porque é possível estarmos a errar se apenas tivermos em consideração as
consequências da alteração de uma constante de cada vez. Será que podem existir outras combinações
de valores dos seis números que se revelem igualmente propícias à vida, por formas que nunca
chegaremos a descobrir se apenas os considerarmos um de cada vez? Contudo, e para simplificar, vou
prosseguir com a presente reflexão, como se tivéssemos realmente um grande problema por explicar na
aparente afinação das constantes fundamentais.
104 Susskind (2006) faz uma magnífica defesa do princípio antrópico no megaverso. Segundo este
autor, a ideia é odiada pela maior parte dos físicos. Eu não consigo compreender porquê. Talvez por a
minha consciência ter sido despertada por Darwin, acho a ideia belíssima.
107 John Horgan, «The Templeton Foundation: a skeptic’s take», Chronicle of Higher Education, 7 de
Abril de 2006. Ver também: http://www.edge.org/3rd_culture/horgan06/horgan06_index.html.
108 Esta calúnia é tratada no capítulo sétimo.
109 Esta acusação faz lembrar o NOMA, sobre cujas pretensões grandíloquas me detive no capítulo
dois.
O imperativo darwiniano
Toda a gente tem a sua teoria de estimação quanto a saber donde vem a
religião e por que razão todas as culturas humanas têm uma. Ela consola e
reconforta. Promove a união dos grupos. Satisfaz a nossa ânsia de perceber
o porquê de existirmos. Deter-me-ei neste tipo de explicações daqui a
instantes, mas quero começar com uma questão prévia, que tem primazia
por razões que veremos: ela tem a ver com a selecção natural.
Sabendo que somos produtos da evolução darwiniana, devíamos
perguntar-nos que pressão ou pressões exercidas pela selecção natural terão
favorecido, na sua origem, o impulso para a religião. A questão torna-se
mais premente dadas as contingências económicas-padrão do modelo de
Darwin. A religião é por demais esbanjadora e extravagante, ao passo que a
selecção darwiniana, por norma, persegue e elimina o desperdício. A
natureza, contabilista sovina, conta todos os tostões, olha para o relógio,
pune a mínima extravagância. Implacável e incessantemente, como Darwin
explicou, «a selecção natural escrutina dia a dia, de hora a hora, por todo o
mundo, todas as variações, mesmo as mais ínfimas; rejeitando aquilo que é
mau, preservando e acrescentando aquilo que é bom; trabalhando em
silêncio e sem cessar, onde e sempre que a oportunidade o permita, para o
aperfeiçoamento de todos os organismos». Se um animal selvagem tem por
hábito uma actividade inútil qualquer, a selecção natural vai favorecer os
seus rivais que, pelo contrário, dedicam esse tempo e energia à
sobrevivência e à reprodução. A natureza não se pode dar ao luxo de
frívolos jeux d’esprit. O utilitarismo implacável leva sempre a melhor,
mesmo que nem sempre assim pareça.
À primeira vista, a cauda do pavão é, por excelência, um jeu d’esprit.
Seguramente que nada faz pela sobrevivência de quem a tem, mas beneficia
os genes que o destacam dos seus rivais menos espectaculares. A cauda é
publicidade, um anúncio para atrair as fêmeas, e que assim assegura um
lugar na economia da natureza. O mesmo acontece com o tempo e o
trabalho que o construtor-de-cetim macho dedica ao seu abrigo: uma
espécie de cauda exterior feita de ervas, galhos, bagas coloridas, flores e,
quando as encontra, contas, tampas de garrafas e quinquilharias. Ou, para ir
buscar um exemplo que não tem a ver com publicidade, existe a
«formicação», esse estranho hábito de certos pássaros, como o gaio, de se
«banharem» em formigueiros ou de aplicarem formigas sobre as próprias
penas. Ninguém tem a certeza de qual será o benefício da formicação -
talvez uma certa forma de higiene, de extrair parasitas das penas; há muitas
outras hipóteses, nenhuma delas solidamente sustentadas por provas. Mas a
incerteza quanto aos pormenores não evita - nem deverá evitar - que os
darwinianos suponham, com grande segurança, que a formicação deve ser
«para» qualquer coisa. Neste caso, o senso comum poderá concordar, mas a
lógica darwiniana tem uma razão especial para pensar que, se os pássaros
não o fizessem, as suas expectativas estatísticas de êxito genético sairiam
prejudicadas, conquanto não saibamos ainda qual o rumo exacto que esse
prejuízo poderia tomar. Tal conclusão resulta destas duas premissas gémeas:
a selecção natural pune o desperdício de tempo e energia; e os pássaros
despendem, comprovadamente, tempo e energia com a formicação. Se há
um manifesto que sintetize numa só frase este princípio «adaptacionista»,
ele foi proferido - em termos algo extremos e exagerados, é certo - pelo
notável geneticista, de Harvard, Richard Lewontin: «Penso que o único
ponto em que todos os evolucionistas concordam é que é praticamente
impossível fazer um melhor trabalho do que aquele que um organismo
desempenha no seu ambiente próprio.» Se a formicação não fosse,
113
Selecção de grupo
Algumas explicações alegadamente últimas acabam por se revelar - ou
são assumidamente - teorias de «selecção de grupo». A selecção de grupo é
a ideia controversa segundo a qual a selecção darwiniana escolhe de entre
espécies ou outros grupos de indivíduos. Colin Renfrew, arqueólogo de
Cambridge, propõe que o Cristianismo sobreviveu através de uma forma de
selecção de grupo porque promoveu a ideia de lealdade e amor fraterno
intragrupo, o que terá ajudado os grupos mais religiosos a sobreviverem à
custa de grupos menos religiosos. Em Darwin’s Cathedral, o norte-
americano D. S. Wilson, apóstolo da selecção de grupo, desenvolveu de
forma independente e com maior profundidade uma noção semelhante.
Eis um exemplo inventado, para mostrar como poderá soar uma teoria da
religião baseada na selecção de grupo. Uma dada tribo, com um «deus das
batalhas» particularmente beligerante, ganha guerras contra tribos rivais
cujos deuses exortam à paz e à harmonia, ou contra tribos sem deuses. Os
guerreiros possuidores da crença inabalável em que, se morrerem como
mártires, irão directos para o paraíso, lutam com valentia e de bom grado
dão a vida. Assim, as tribos com este tipo de religião têm maior
probabilidade de sobreviver à guerra intertribal, de roubar o gado às tribos
derrotadas e de fazer das mulheres destas suas concubinas. Estas tribos
bem-sucedidas proliferam, dando origem a novas tribos que, por sua vez, se
separam e se multiplicam, levando consigo sempre a adoração do mesmo
deus tribal. Diga-se, a propósito, que a ideia de um grupo gerar outros
grupos, como uma colmeia que vai espalhando enxames, não é implausível.
No seu famoso estudo dos Ianomami, o «Povo Feroz» da selva da América
do Sul, o antropólogo Napoleon Chagnon fez um levantamento deste tipo de
divisão das aldeias.
115
(Um dos primeiros e mais roufenhos registos da voz humana alguma vez
feito é o do próprio Lord Tennyson a ler este poema, e a impressão de um
declamar cavo num túnel longo e escuro vindo das profundezas do passado
soa estranhamente adequado.) Do ponto de vista do alto comando, seria
loucura permitir que cada soldado fizesse o que bem entendesse quanto a
obedecer, ou não, às ordens. As nações cujos soldados de infantaria agem
por sua livre iniciativa em vez de seguirem ordens tendem a perder as
guerras. Do ponto de vista da nação, esta continua a ser uma boa regra
básica, ainda que por vezes conduza a catástrofes pessoais. Os soldados são
treinados para se tornarem o mais parecidos possível com autómatos ou
computadores.
Os computadores fazem o que lhes mandam. Obedecem cegamente a
quaisquer instruções que lhes sejam transmitidas através da linguagem de
programação. É assim que desempenham coisas úteis, como processamento
de texto e folhas de cálculo. Mas também há um subproduto inevitável, e
que é o facto de terem um comportamento igualmente robótico quando se
trata de obedecer a instruções erradas. Não têm forma de saber se uma dada
instrução vai produzir um bom ou um mau resultado. Limitam-se a
obedecer, tal como se espera de um soldado. É a sua obediência
incondicional que torna os computadores úteis, e é precisamente isso
também que os torna inescapavelmente vulneráveis a infecções de vírus e
vermes de software. Um programa concebido com intenção maldosa, que
diga: «Copia-me e envia-me a todos os endereços que encontrares neste
disco rígido», vai limitar-se a ser obedecido e a voltar a sê-lo vezes
sucessivas por todos os outros computadores para onde for enviado, num
crescimento exponencial. É difícil, senão impossível, conceber um
computador que seja obediente de uma forma útil e que ao mesmo tempo
seja imune às infecções.
Se fiz bem o meu trabalho de sapa, a esta altura já o leitor terá
completado o meu raciocínio acerca do cérebro das crianças e da religião. A
selecção natural constrói os cérebros das crianças de maneira a neles incutir
uma tendência para acreditarem naquilo que os pais e os chefes da tribo lhes
dizem. Essa obediência confiante, análoga à orientação da traça pela Lua, é
valiosa para a sobrevivência, mas o reverso da obediência cega é a
credulidade servil. O subproduto inevitável é a vulnerabilidade à infecção
pelos vírus da mente. Por excelentes razões relacionadas com a
sobrevivência darwiniana, os cérebros das crianças precisam de acreditar
nos pais e nos mais velhos em quem os pais lhes dizem que o façam. Uma
consequência automática reside no facto de aquele que confia não ter forma
de distinguir os bons dos maus conselhos. A criança não pode adivinhar que
«não te metas no rio Limpopo, que está infestado de crocodilos» é um bom
conselho e que «tens de sacrificar uma cabra durante a lua cheia, senão a
chuva não vem» é, no mínimo, um desperdício de tempo e de cabras.
Ambos os avisos parecem igualmente dignos de confiança, ambos provêm
de uma fonte respeitável e são proferidos com uma grave seriedade, que
inspira respeito e exige obediência. O mesmo se aplica às proposições
acerca do mundo, do cosmo, dos princípios morais e da natureza humana. E
quando a criança crescer e tiver filhos seus, ela irá muito provavelmente
transmitir-lhes tudo - quer o bom senso, quer o disparate - com toda a
naturalidade, usando o mesmo ar grave e contagiante.
É de esperar, neste modelo, que, nas diferentes regiões geográficas,
diferentes crenças arbitrárias, nenhuma delas de base factual, sejam
transmitidas e respeitadas com convicção idêntica à que é reservada a
demonstrações de sabedoria popular tais como a crença de que o estrume é
bom para as colheitas. É também de esperar que algumas superstições e
outras crenças não factuais evoluam a nível local - por mudança ao longo
das gerações -, seja através de uma deriva aleatória, seja através de algo
análogo à selecção darwiniana, de maneira a eventualmente revelarem um
padrão de divergência significativo relativamente aos antepassados comuns.
Quando geograficamente separadas e se decorrido tempo suficiente, as
línguas vão-se afastando progressivamente do respectivo progenitor comum
(uma questão a que voltarei já adiante). O mesmo parece aplicar-se às
crenças e aos preceitos arbitrários e sem fundamento, transmitidos de
geração em geração - crenças que terão eventualmente beneficiado de um
clima propício em face da útil programabilidade do cérebro da criança.
Os líderes religiosos estão conscientes da vulnerabilidade do cérebro da
criança e da importância de esta ser doutrinada em tenra idade. O alarde
jesuíta «dai-me a criança durante os seus primeiros sete anos e eu dar-vos-ei
o homem» não é menos exacto (ou menos sinistro) por ser uma frase batida.
Já nos nossos dias, James Dobson, fundador do famigerado movimento
Focus on the Family , mostra que também conhece bem o princípio:
117
«Aqueles que controlam o que é ensinado aos mais novos e aquilo que eles
experienciam - o que vêem, ouvem, pensam e crêem - irão determinar o
rumo futuro da nação.» 118
Mas há que ter em atenção que a minha sugestão específica acerca da útil
credulidade da mente da criança é tão-somente um exemplo do tipo de coisa
eventualmente análoga às traças que navegam em função da Lua ou das
estrelas. O etólogo Robert Hinde, em Why Gods Persist, e os antropólogos
Pascal Boyer e Scott Atran - em Religion Explained e In Gods We Trust,
respectivamente - desenvolveram de forma independente a ideia genérica
segundo a qual a religião é um subproduto de disposições psicológicas
normais. Atendendo a que sobretudo os antropólogos tendem a acentuar
tanto a diversidade das religiões mundiais como aquilo que elas têm em
comum, eu acrescentaria que não é um mas são muitos subprodutos. As
conclusões dos antropólogos só nos parecem esquisitas porque não estamos
com elas familiarizados. Todas as crenças religiosas parecem esquisitas aos
olhos daqueles que não foram educados de acordo com os seus preceitos.
Nos Camarões, Boyer investigou o povo Fang, que acredita...
da evolução sugerem que, tal como o olho é um órgão que evoluiu para ver
e a asa um órgão que evoluiu para voar, também o cérebro é uma colecção
de órgãos (ou «módulos») para lidar com um conjunto de necessidades de
processamento de dados a um nível especializado. Há um módulo para lidar
com a consanguinidade, um para as trocas recíprocas, um para a empatia, e
assim por adiante. A religião pode ser vista como um subproduto de
falhanços pontuais de alguns destes módulos, como, por exemplo, dos
módulos para tecer teorias sobre as outras mentes, para criar alianças e para
discriminar a favor de membros do grupo e contra estranhos. Qualquer uma
destas situações serve como equivalente humano para a navegação celeste
das traças, tão vulnerável a estes falhanços pontuais quanto o que acima
sugeri acerca da credulidade da infância. O psicólogo Paul Bloom, outro
defensor da perspectiva da «religião como subproduto», assinala que as
crianças revelam uma tendência natural para uma teoria dualista da mente.
Para ele, a religião é um subproduto desse dualismo instintivo. Nós
humanos, diz Bloom, e sobretudo as crianças somos dualistas natos.
O dualista reconhece uma distinção fundamental entre matéria e mente. O
monista, pelo contrário, acredita que a mente é uma manifestação da
matéria - algo de material dentro de um cérebro, um computador talvez - e
que não pode existir separado dela. Um dualista acredita que a mente é uma
espécie de espírito incorpóreo que habita o corpo, sendo assim concebível
que possa abandonar o corpo e existir alhures. Os dualistas interpretam de
pronto as doenças mentais como sendo uma «possessão por demónios»,
sendo esses demónios espíritos cuja permanência no corpo é temporária,
pelo que podem ser «expulsos». À mais pequena oportunidade, os dualistas
personificam os objectos físicos inanimados, vendo espíritos e demónios até
nas quedas de água e nas nuvens.
O romance Vice-Versa, de F. Anstey, de 1882, faz sentido aos olhos de
um dualista, mas é pura e simplesmente incompreensível para um monista
convicto como eu. O Sr. Bultitude e o filho descobrem que trocaram
misteriosamente de corpo. O pai, para grande regozijo do filho, é obrigado a
ir à escola no corpo deste, ao passo que o filho, no corpo do pai, quase lhe
leva o negócio à ruína devido às suas decisões imaturas. P. G. Wodehouse
usou um enredo semelhante em Laughing Gas, onde o conde de Havershot
e uma criança que é estrela de cinema são anestesiados ao mesmo tempo
quando sentados lado a lado no dentista e acordam no corpo um do outro.
Uma vez mais, o enredo só faz sentido para um dualista. Tem de haver algo
que corresponda ao conde de Havershot e que não faça parte do seu corpo,
de outro modo como poderia ele acordar no corpo de um actor criança?
Tal como a maioria dos cientistas, eu não sou um dualista, mas apesar
disso sou capaz de apreciar obras como Vice-Versa e Laughing Gas. Paul
Bloom diria que isto acontece porque, não obstante eu ter aprendido a ser
um monista intelectual, sou um ser humano e, por isso, evolui no sentido de
me tornar um dualista instintivo. A ideia de que há um eu empoleirado
algures por detrás dos meus olhos e capaz, pelo menos em ficção, de migrar
para a cabeça de outrem está profundamente entranhada em mim e em todos
os outros seres humanos, por mais que intelectualmente nos pretendamos
monistas. Bloom fundamenta a sua opinião em provas experimentais de que
as crianças apresentam ainda maior probabilidade de serem dualistas do que
os adultos, sobretudo as de muito pouca idade. Isto sugere que há uma
tendência para o dualismo que já está impressa no cérebro e que, segundo
Bloom, proporciona uma predisposição natural para adoptar ideias
religiosas.
Bloom propõe também que estamos, desde a nascença, predispostos a ser
criacionistas. A selecção natural «não faz sentido, no plano intuitivo». As
crianças apresentam uma propensão particular para atribuir uma finalidade a
tudo, como explica a psicóloga Deborah Keleman no seu artigo «Serão as
crianças “teístas intuitivos”?» As nuvens são «para chover». As rochas
120
Os humanos têm uma tendência consciente para ver aquilo que querem
ver e, literalmente, dificuldade em ver coisas que possuam conotações
negativas, ao passo que vêem com muita facilidade as positivas. Por
exemplo, palavras que evoquem ansiedade, seja por causa da história
individual da pessoa, seja devido a manipulação experimental,
necessitam de ser aclaradas antes de poderem ser apercebidas.
Parece não haver dúvidas de que muitos dos atributos da religião estão
bem ajustados ao esforço de ajudar à sobrevivência da religião mesma e dos
próprios atributos em causa, nesse caldo que é a cultura humana. A questão
agora é saber se esse ajustamento é alcançado por via do «desígnio
inteligente» ou da selecção natural. Provavelmente a resposta é ambos. Do
lado do desígnio, os líderes religiosos são perfeitamente capazes de
verbalizar os truques que ajudam à sobrevivência da religião. Martinho
Lutero tinha clara consciência de que a razão era a arqui-inimiga da religião
e muitas vezes advertiu para os seus perigos: «A razão é o maior inimigo da
fé; nunca vem em auxílio das coisas espirituais, e as mais das vezes luta
contra o Verbo divino, tratando com desprezo tudo o que emana de Deus.» 126
E noutro passo: «Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos à sua
própria razão.» E noutro ainda: «A razão deve ser destruída em todos os
cristãos.» Lutero não teria qualquer dificuldade em conceber ou desenhar
inteligentemente aspectos ininteligentes de uma religião para ajudá-la a
sobreviver, mas isso não significa necessariamente que ele, ou outra pessoa
qualquer, a tenha concebido. Ela podia igualmente ter evoluído por uma via
(não genética) de selecção natural, sendo Lutero não o seu criador, mas tão-
só um astuto observador da sua eficácia.
Embora a convencional selecção de genes darwiniana possa ter
favorecido certas predisposições psicológicas que dão origem ao subproduto
religião, é pouco provável que tenha dado a forma aos pormenores. Já dei a
entender que, se vamos aplicar uma forma de teoria da selecção a esses
pormenores, não é nos genes que devemos pôr os olhos, mas sim nos seus
equivalentes na esfera cultural. Serão as religiões feitas daquela substância
que constitui os memes?
Cultos da carga
No filme A Vida de Brian, uma das muitas coisas em que a equipa dos
Monty Python acerta é a da extrema rapidez com que um novo culto
religioso pode ter início. Pode despontar quase de um dia para o outro e
incorporar-se numa dada cultura, onde passa a desempenhar um papel
inquietantemente dominante. Os «cultos da carga» da Melanésia e da Nova
Guiné são, na vida real, o exemplo mais famoso disto. A história de alguns
destes cultos, desde o seu início até ao fim, pertence, toda ela, à memória
viva dos tempos recentes. Ao contrário do culto de Jesus, cujas origens não
estão confirmadas com segurança, podemos assistir a todo o decurso dos
acontecimentos diante dos nossos olhos (e mesmo aqui, como veremos,
alguns pormenores perderam-se entretanto). É fascinante imaginar que o
culto da Cristandade terá quase de certeza começado mais ou menos da
mesma forma, expandindo-se inicialmente também com grande velocidade.
A minha principal autoridade nos cultos da carga é Quest in Paradise, um
livro com que o autor, David Attenborough, amavelmente me presenteou. O
padrão é o mesmo em todos eles, desde os cultos dos inícios do século XIX
até aos mais famosos, desenvolvidos na sequência da Segunda Guerra
Mundial. Parece que em todos os casos os ilhéus foram apanhados
desprevenidos pelos portentosos pertences trazidos para as suas ilhas pelos
imigrantes brancos, entre os quais funcionários da administração, soldados e
missionários. Terão sido talvez vítimas da Terceira Lei de Clarke (Arthur
C.), que citei no capítulo segundo: «Qualquer tecnologia suficientemente
avançada é indistinguível da magia.»
Os ilhéus repararam que os brancos que usufruíam destas maravilhas
nunca as construíam eles próprios. Quando estes objectos precisavam de ser
reparados eram mandados embora e havia sempre outros novos a chegar,
como «carga», em navios ou, mais tarde, aviões. Nunca se via um branco a
fazer ou a reparar nada que fosse, nem sequer faziam nada a que se pudesse
chamar trabalho (sentarem-se atrás de uma secretária a baralhar papéis era,
obviamente, um tipo de devoção religiosa qualquer). Logo, a «carga» tinha
de ter uma origem sobrenatural. Como que para confirmar isto mesmo, os
brancos faziam efectivamente certas coisas que só podiam ser cerimónias
ritualísticas:
– Mas Sam, já passaram 19 anos desde que o John disse que a carga
viria. Ele fartou-se de prometer, mas a carga nunca mais vem. Tantos
anos à espera não é muito tempo?
Sam tirou os olhos do chão e olhou para mim.
– Se vós pode esperar 2000 anos para Jesus Cristo vir e ele não vir,
então eu posso esperar mais de 19 anos pelo John.
115 N. A. Chagnon, «Terminological kinship, genealogical relatedness and village fissioning among
the Yanomamü Indians», em Alexander e Tinkle (1981, capítulo 28).
116 C. Darwin, A Origem do Homem, Nova Iorque, Appleton, 1871, vol. 1, 156.
117 Achei graça ver «Focus on your own damn family» [«Concentra-te mas é na tua maldita família»]
num autocolante de automóvel no Colorado, mas agora já não lhe acho tanta graça. Talvez algumas
crianças precisem de ser protegidas das doutrinas que os próprios pais lhes inculcam (ver capítulo
nono).
123 Ver a minha denúncia do perigoso narcótico óleo de Gerin, R. Dawkins, «Geri n oil», Free Inquiry
24, 1, 2003, 9-11.
126 http://jmm.aaa.net.au/articles/14223.htm.
127 Sobretudo no meu país, segundo o lendário estereótipo nacional: «Voici l’anglais avec son sang
froid habituel» («Here is the Englishman with his habitual bloody cold» «Eis o inglês, com a maldita
constipação do costume»). Citado de Fractured French, de F. S. Pearson, onde se podem encontrar
outra pérolas como coup de grâce (lawnmower, cortador de relva).
128 É possível analisar as diferentes escolas e estilos artísticos como memeplexos alternativos à medida
que os artistas vão copiando ideias e motivos de artistas anteriores, e os novos motivos só sobrevivem
se mesclados com outros. De facto, toda a disciplina académica da História da Arte, com o seu
sofisticado traçado de iconografias e simbolismos, pode ser vista em termos de um estudo aprofundado
sobre a memeplexidade. Os pormenores terão sido favorecidos ou desfavorecidos em função da
presença de membros existentes no fundo memético, entre os quais se incluem, muitas vezes, memes
religiosos.
129 Compare-se com Isaías 40:4: «Todo o vale seja levantado, e todas as colinas e montanhas sejam
abaixadas.» A semelhança não remete necessariamente para nenhuma característica basilar da psique
humana ou para o «inconsciente colectivo» junguiano. Há muito que estas ilhas haviam sido infestadas
de missionários.
6
As raízes da moralidade: porque
somos bons?
Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós
vem para uma curta visita, sem saber porquê, contudo, por
vezes parecemos adivinhar um objectivo. No entanto, do ponto
de vista do quotidiano, há uma coisa que sabemos: que o
homem está aqui pelos outros homens – acima de tudo por
aqueles de cujos sorrisos e bem-estar depende a nossa própria
felicidade.
Albert Einstein
Vai consolar-me saber que o castigo que DEUS vos há-de trazer será
mil vezes pior do que o que quer que seja que eu possa infligir. O
melhor de tudo é que vocês HÃO-DE sofrer para toda a eternidade por
estes pecados de que estão completamente ignorantes. A ira de DEUS
não há-de mostrar misericórdia. Para vosso próprio bem, espero que a
verdade vos seja revelada antes que a faca vos toque na carne. Feliz
NATAL!!!
PS: Vocês não fazem mesmo ideia daquilo que vos está reservado... Eu
agradeço a DEUS por não ser vocês.
Causa-me genuína confusão que uma mera diferença de opinião teológica
possa gerar semelhante azedume. Eis uma amostragem (com a ortografia
original respeitada) do correio recebido pela directora da revista
Freethought Today, uma publicação da Freedom from Religion Foundation,
FFRF (Fundação Livres da Religião), que promove campanhas pacíficas
contra os ataques à separação constitucional entre Igreja e Estado:
Olá, seus reles papa-queijos . Há muitos mais cristãos como nós do que
132
PS: Vai-te foder, sua puta comunista... Alcem esses vossos cus pretos e
saiam dos EUA. ... Vocês não têm desculpa. A criação é prova mais do
que suficiente do poder omnipotente de NOSSO SENHOR JESUS CRISTO.
Não consigo deixar de pensar: por que razão se crê que Deus necessita de
uma defesa tão feroz? Seria de crer que ele era perfeitamente capaz de
cuidar de si. Há que ter em mente, no meio de tudo isto, que a directora
insultada e ameaçada desta forma tão vil é uma jovem afável e encantadora.
Talvez porque eu não viva nos Estados Unidos, a maior parte da
correspondência rancorosa que recebo não se encontra ao nível do que já
vimos, mas também não ostenta a caridade pela qual o fundador do
Cristianismo se notabilizou. A carta que se segue, datada de Maio de 2005 e
escrita por um médico britânico, apesar de estar, sem dúvida, cheia de ódio,
parece-me mais a carta de uma pessoa atormentada do que de uma pessoa
maldosa, e revela bem como toda a questão da moralidade é um poço fundo
de hostilidade relativamente ao ateísmo. Após alguns parágrafos
introdutórios a denunciar a evolução (onde pergunta sarcasticamente se um
«preto ainda está em processo de evolução»), a insultar Darwin
directamente, a citar Huxley de forma incorrecta, considerando-o
antievolucionista, e a incentivar-me a ler um livro (que eu li) onde se
argumenta que o mundo tem apenas 8000 anos (será que ele pode mesmo
ser médico?), o autor da carta conclui:
Apesar de a filiação num partido político, nos Estados Unidos, não ser
um indicador perfeito do factor religiosidade, não é segredo nenhum
que os estados «vermelhos» [republicanos] são vermelhos, antes de
mais, devido à esmagadora influência política dos cristãos
conservadores. Se houvesse uma correlação forte entre o
conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, poderíamos esperar ver
algum sinal disso mesmo na América dos estados «vermelhos». Mas
não. Das 25 cidades com os mais baixos índices de crime violento, 62
por cento estão situadas em estados «azuis» [democratas] e 38 por cento
pertencem a estados «vermelhos».
Das 25 cidades mais perigosas, 76 por cento são de estados
«vermelhos» e 24 por cento pertencem a estados «azuis». Na verdade,
três das cinco cidades mais perigosas dos Estados Unidos situam-se no
devoto estado do Texas. Os 12 estados com os índices de assaltos mais
elevados são «vermelhos» e 24 dos 29 com os índices de furto mais
elevados são «vermelhos.» Dos 22 estados com os índices de homicídio
mais elevados, 17 são «vermelhos ».
137
associada às religiões, embora possa ter outra origem). Bom é bom e mau é
mau, e nada de trapalhadas a decidir casos particulares com base, por
exemplo, no facto de a situação concreta envolver sofrimento. O meu
apologista religioso defenderia que só a religião pode proporcionar uma
base para decidir o que é bom.
Alguns filósofos, com destaque para Kant, tentaram retirar princípios
morais absolutos de fontes não religiosas. Embora sendo ele próprio um
homem religioso, como era quase inevitável no seu tempo, Kant tentou
140
basear toda uma moralidade no dever pelo dever, e não em função de Deus.
O seu famoso imperativo categórico ordena: «Age apenas segundo uma
máxima que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei universal.» Ora
isto funciona escorreitamente para o exemplo da mentira. Imagine-se um
mundo no qual as pessoas dissessem mentiras por uma questão de princípio,
onde mentir fosse considerado uma coisa boa e moral. Num mundo assim, a
própria mentira deixaria de ter significado. A mentira, para ser definida
como tal, necessita de uma presunção de verdade. Se um princípio moral é
algo que deveríamos desejar que todos seguissem, mentir não pode ser um
princípio moral, porque o próprio princípio desabaria sob uma total falta de
sentido. Como regra para a vida, a mentira é intrinsecamente instável. De
uma maneira mais geral, o egoísmo, ou o parasitismo conseguido às custas
da boa vontade dos outros, pode funcionar no meu caso, se eu for um
indivíduo egoísta e solitário, dando-me satisfação pessoal. Mas eu não
posso desejar que toda a gente adopte o parasitismo egoísta como princípio
moral, quanto mais não seja porque então não teria ninguém para parasitar.
O imperativo kantiano parece funcionar para o caso de se falar verdade e
para outros casos mais. De uma maneira geral, não é fácil alargá-lo à
moralidade. Não obstante Kant, é tentador concordar com o meu apologista
hipotético quando afirma que a moral absolutista é habitualmente impelida
pela religião. Será sempre errado acabar com o sofrimento de uma paciente
terminal a seu pedido? Será sempre errado ter relações sexuais com alguém
do próprio sexo? Será sempre errado matar um embrião? Há aqueles que
julgam que sim, e os seus motivos são absolutos. Esses não toleram
qualquer discussão ou sequer conversa. Quem quer que discorde merece ser
abatido a tiro: metaforicamente, é claro, não literalmente – excepto no caso
de alguns médicos de clínicas americanas onde se praticam abortos (ver o
próximo capítulo). Felizmente, no entanto, a moral não tem de ser algo de
absoluto.
Os filósofos que se dedicam ao estudo da moral é que são os profissionais
no que se refere a pensar o certo e o errado. Como Robert Hinde
sucintamente disse, eles concordam que «os preceitos morais, não sendo
necessariamente construídos pela razão, deveriam ser defensáveis pela
razão» . Classificam-se de diversas maneiras, mas na terminologia
141
Oh, não queremos perder-vos, mas achamos que deveis ir, Para o Rei e
a Pátria ajudarem a servir.
130 Mais do que aquelas a que poderia responder devidamente, pelo que peço desculpa.
133 Desgostou-me ler no Guardian («Instintos animais» , de 27 de Maio de 2006) que O Gene Egoísta
é o livro preferido de Jeff Skilling, director executivo da famigerada Enron Corporation, que se reviu
no darwinismo social da obra. O jornalista do Guardian Richard Conniff adianta uma boa explicação
para o mal-entendido, em http://money.guardian.co.uk/workweekly/story/0,,1783900,00.html. Tentei
prevenir mal-entendidos semelhantes no novo prefácio à décima terceira edição de O Gene Egoísta, que
acabou de sair na Oxford University Press.
134 A reputação não se restringe ao ser humano. Recentemente viu-se que ela pode ser aplicada a um
dos casos clássicos do altruísmo recíproco verificados nos animais, a relação simbiótica entre os
pequenos peixes limpadores e os grandes peixes clientes. Numa experiência engenhosa em que foi dado
observar a um potencial peixe cliente o comportamento diligente de bodiões-limpadores isolados –
Labroides dimidiatus – em paralelo com Labroides rivais que se mostraram indiferentes às tarefas de
limpeza, verificou-se que era mais elevada a probabilidade de o peixe cliente escolher os primeiros. Ver
o artigo de R. Bshary e A. S. Grutter «Image scoring and cooperation in a cleaner fish mutualism»,
Nature 441, 22 de Junho de 2006, págs. 975-8.
135 M. Hauser e P. Singer, «Morality without religion», Free Inquiry 26, 1, 2006, 18-19.
137 Note-se que as convenções cromáticas nos Estados Unidos são precisamente ao contrário do que
acontece na Grã-Bretanha, onde o azul é a cor do Partido Conservador e o vermelho, tal como no resto
do mundo, é a cor tradicionalmente associada à esquerda política.
138 Uma vez mais, com o seu cinismo característico, H. L. Mencken definiu a consciência como a voz
interior que nos avisa de que pode estar alguém a ver.
139 «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles» (Mateus 7:12). (N. das T.)
141 Hinde (2002). Ver também Singer (1994), Grayling (2003), Glover (2006).
7
O «bom» livro e as alterações do
142
zeitgeist moral
A política chacinou os seus milhares, mas a religião chacinou
as suas dezenas de milhares.
Sean O’Casey
O Antigo Testamento
Comece-se no Génesis, com a muito apreciada história de Noé, que tem a
sua origem no mito babilónico de Utanapishtim e é conhecida das
mitologias mais antigas de várias culturas. A lenda dos animais a entrarem
na arca dois a dois é encantadora, mas a moral da história de Noé é
aterradora. Deus tinha os humanos em fraca conta, e por isso (com a
excepção de uma família) afogou-os a todos, incluindo crianças, e assim
como quem dá um bónus afogou também o resto dos (presumivelmente
inocentes) animais.
É claro que teólogos mais impacientados afirmarão que já não seguimos o
livro do Génesis à letra. Mas é aí que eu quero chegar! Debicamos aqui e
além quais as partes das Escrituras em que acreditamos, quais aquelas que
pomos de lado como sendo símbolos ou alegorias. Essas escolhas são uma
questão de decisão pessoal, tanto - ou tão pouco - quanto a decisão do ateu
em seguir este ou aquele preceito moral será uma decisão pessoal
desprovida de um fundamento absoluto. Se algum destes casos é «uma
moralidade do tipo vai indo e vai vendo», então o outro também é.
De qualquer modo, apesar das boas intenções do teólogo mais sofisticado,
um número assustadoramente elevado de pessoas continua a seguir à risca
os seus livros sagrados, incluindo a história da arca de Noé. De acordo com
a empresa de sondagens Gallup, essas pessoas representam cerca de 50 por
cento do eleitorado norte-americano. E não há dúvida de que nessa situação
se incluirão muitos desses homens santos da Ásia que atribuíram a
responsabilidade do tsunami de 2004 não à deslocação de uma placa
tectónica, mas aos pecados humanos, que vão desde beber e dançar em
145
bares a violar alguma regra fútil relacionada com o sétimo dia da semana.
Imbuídos da história de Noé e ignorantes de tudo que não seja os
ensinamentos bíblicos, quem os há-de censurar por isso? Toda a sua
educação os levou a ver os desastres naturais em ligação com os assuntos
dos humanos, como vinganças pelos pequenos delitos por estes praticados,
em vez de algo tão impessoal como são as placas tectónicas. E a propósito,
que presumido egocentrismo esse, o de acreditar que os incidentes sísmicos,
à escala a que um deus (ou uma placa tectónica) consegue actuar, têm de ter
sempre uma conexão humana. Por que razão haveria um ser divino, que tem
de ter em mente a criação e a eternidade, de querer saber das nossas
insignificantes más acções? Como nós, humanos, nos armamos em
importantes, pretendendo alargar os nossos míseros pecadilhos a uma
dimensão cósmica!
Quando entrevistei para a televisão o reverendo Michael Bray, um
proeminente activista antiaborto dos Estados Unidos da América, perguntei-
lhe por que motivo os cristãos evangélicos são tão obcecados pelas
tendências sexuais de cada um, tais como a homossexualidade, que não
interferem com a vida de mais ninguém. A resposta que me deu apelava a
uma espécie de autodefesa. Os cidadãos inocentes correm o risco de se
tornar danos colaterais quando Deus escolhe uma cidade para a atingir com
um desastre natural por alojar pecadores. Em 2005, a bela cidade de Nova
Orleães foi catastroficamente alagada após a passagem do furacão
«Katrina». O reverendo Pat Robertson, um dos televangelistas mais
conhecidos dos Estados Unidos e antigo candidato à presidência, terá então
culpado pelo furacão uma comediante lésbica que por acaso vivia em Nova
Orleães. Seria de pensar que um Deus omnipotente era capaz de melhor
146
Aarão pôs toda a gente a reunir o ouro que tinham, fundiu-o e fez um
bezerro de ouro e para esta novel divindade construiu um altar, para que
pudessem todos começar a oferecer sacrifícios.
A verdade é que deviam ter pensado duas vezes antes de se porem com
folestrias nas costas de Deus. Mesmo estando no cimo de uma montanha,
bem vistas as coisas ele era omnisciente e, portanto, não perdeu tempo e
despachou Moisés à pressa por ali abaixo, na qualidade de seu mandatário.
Moisés desceu o monte transportando as tábuas de pedra em que Deus
escrevera os Dez Mandamentos. Quando chegou e viu o bezerro de ouro,
ficou tão furibundo que deixou cair as tábuas e as partiu (Deus depois deu-
lhe outro conjunto para substituir aquele, por isso não houve problema).
Moisés agarrou no bezerro de ouro, queimou-o, reduziu-o a pó, misturou-o
com água e obrigou o povo a engoli-lo. Depois mandou os Levitas, a tribo
sacerdotal, passar a fio de espada tantos quantos pudessem. Isto resultou em
cerca de 3000 mortos, quantidade que se suporia suficiente para acalmar o
ciumento amuo de Deus. Mas não, Deus ainda não estava satisfeito. No
último versículo deste terrível capítulo, o seu gesto de despedida foi lançar
uma praga sobre o que restava do povo, «por ter instigado Aarão a fazer o
bezerro».
O Livro de Números conta como Deus incitou Moisés a atacar os
Madianitas. O seu exército chacinou num ápice todos os homens e
incendiou todas as cidades madianitas, mas poupou as mulheres e as
crianças. Este misericordioso comedimento da parte dos soldados enfureceu
Moisés, que deu ordens para que todos os rapazes fossem mortos, bem
como todas as mulheres não virgens. «Mas conservai em vida todas as
raparigas que não tiveram relações com homens e elas serão para vós»
(Números 31: 18). Não, Moisés não seria grande modelo para os moralistas
modernos.
Não obstante os comentadores religiosos modernos atribuírem um
significado simbólico ou alegórico ao massacre dos Madianitas, esse
simbolismo aponta na direcção errada. Tanto quanto se sabe dos relatos
bíblicos, os infelizes Madianitas foram as vítimas de genocídio na sua
própria terra. Mesmo assim, o seu nome perdura no folclore cristão, na letra
de um popular hino (que passados 50 anos ainda sei cantar de cor, ao som
de duas músicas diferentes, ambas num sinistro tom menor):
Não acredito que haja um ateu no mundo que fosse capaz de arrasar Meca
- ou as catedrais de Chartres, de York ou de Nôtre-Dame, o Pagode Shwe,
os templos de Quioto ou, claro, os Budas de Bamyan. Como disse Steven
Weinberg, físico norte-americano galardoado com o Prémio Nobel, «a
religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, haveria sempre
gente boa a fazer o bem e gente má a fazer o mal. Mas é preciso a religião
para pôr gente boa a fazer o mal.» Blaise Pascal (o tal da aposta) disse algo
semelhante: «Os homens nunca fazem o mal tão completa e alegremente
como quando o fazem por convicção religiosa.»
O meu principal objectivo aqui não foi mostrar que não devemos ir buscar
a nossa moral às Escrituras (embora seja essa a minha opinião). O que
pretendi foi demonstrar que efectivamente nós (e aí incluo a maioria das
pessoas religiosas) não vamos buscar a nossa moral às Escrituras. Se o
fizéssemos, guardaríamos rigorosamente o sabat e acharíamos justo e
adequado executar quem quer que optasse por não o fazer. Apedrejaríamos
até à morte toda a noiva que não conseguisse provar a sua virgindade, se o
marido se afirmasse insatisfeito com ela. Executaríamos as crianças
desobedientes. Iríamos... mas mais devagar. Talvez eu tenha sido injusto.
Os cristãos simpáticos terão passado toda esta secção a protestar: toda a
gente sabe que o Antigo Testamento é bastante desagradável. O Novo
Testamento de Jesus desfaz os danos causados e deixa tudo bem outra vez.
Não é?
que agora pensamos que significa, mas apenas «amar outro judeu.» Este
aspecto é devastadoramente demonstrado pelo norte-americano John
Hartung, médico e antropólogo da evolução. Hartung escreveu um ensaio
notável sobre a evolução e a história bíblica da moralidade intragrupo, onde
acentua também o reverso da medalha - ou seja, a hostilidade para com
aqueles que não pertencem ao grupo.
Amar o próximo
O humor negro de John Hartung é patente logo desde o início , onde fala
158
Na minha opinião, Josué fez bem em fazer o que fez, sendo uma razão
o facto de Deus o ter mandado exterminar o povo de modo a que as
tribos de Israel não fossem assimiladas por ele e não aprendessem os
seus maus costumes.
Josué fez bem porque o povo que habitava aquela terra tinha uma
religião diferente e quando Josué os matou eliminou a religião deles da
face da Terra.
Eu penso que Josué não agiu bem, porque podiam ter poupado os
animais para seu proveito.
Eu penso que Josué não agiu bem, porque podia ter deixado os bens de
Jericó; se não tivesse destruído os bens, eles tinham ficado para os
Israelitas.
Uma vez mais, o sábio Maimónides, frequentemente citado pela sua
erudita circunspecção, não tem qualquer hesitação a este respeito: KÉ um
mandamento positivo destruir as sete nações, como é dito: Votá-las-ás à
mais completa destruição. Se não matarmos um que seja dos que caem em
nosso poder, infringimos um mandamento negativo, como é dito: Nela não
deixarás vivalma.»
Ao contrário de Maimónides, as crianças da experiência de Tamarin eram
suficientemente jovens para ser inocentes. Provavelmente as perspectivas
brutais que exprimiram eram as dos pais ou do grupo cultural em que foram
educadas. Presumo que não será improvável que as crianças palestinianas,
educadas nesse mesmo país dilacerado pela guerra, dêem opiniões
semelhantes, ainda que de sentido oposto. Estas considerações enchem-me
de desânimo. Elas parecem mostrar o imenso poder que a religião, e
sobretudo a educação religiosa das crianças, tem para dividir povos e para
alimentar inimizades históricas e vendetas hereditárias. Não posso deixar de
assinalar que duas das três citações representativas do grupo A de Tamarin
mencionam os males da assimilação, ao passo que a terceira põe a tónica na
importância de matar as pessoas para lhes esmagar a religião.
Nesta experiência, Tamarin organizou um fascinante grupo de controlo. A
um grupo diferente de 168 crianças israelitas foi dado o mesmo texto do
livro de Josué, mas com o nome deste substituído por «general Lin» e
«Israel» substituído por «um reino chinês há 3000 anos». Neste caso a
experiência obteve resultados opostos. Apenas sete por cento aprovaram o
comportamento do general Lin, enquanto 75 por cento o desaprovaram. Por
outras palavras, quando a sua lealdade para com o Judaísmo foi retirada da
equação, a maioria das crianças mostrou-se concordante com os juízos
morais de que modernamente partilha a maioria dos seres humanos. A
atitude de Josué foi um acto de genocídio bárbaro. No entanto, tudo parece
diferente quando encarado do ponto de vista religioso. E a diferença começa
em tenra idade. Foi a religião que ditou a diferença entre a condenação e o
aplauso do genocídio por parte das crianças.
Na segunda metade do seu ensaio, Hartung passa ao Novo Testamento.
Resumindo a sua tese, Jesus era um devoto da mesma moralidade
intergrupal - aliada à hostilidade para com os grupos alheios - que no
Antigo Testamento é dada por adquirida. Jesus era um judeu leal. Foi São
Paulo quem inventou a ideia de levar o Deus judeu aos gentios. Hartung di-
lo com menos cerimónia do que eu seria capaz: «Jesus teria dado voltas no
túmulo se tivesse sabido que São Paulo ia alargar o seu plano aos porcos.»
Hartung diverte-se com o Apocalipse, seguramente um dos livros mais
bizarros da Bíblia. Terá sido escrito por São João e, como afirma com um
certo sentido de arrumação o Ken’s Guide to the Bible, se as suas epístolas
podem ser vistas como João metido na erva, o Apocalipse é João metido no
ácido. Hartung chama a atenção para os dois versículos do Apocalipse em
160
que o número dos que tinham sido «assinalados» (que algumas seitas, como
as Testemunhas de Jeová, interpretam como «salvos») se fica pelos 144
000. O que Hartung quer dizer é que todos eles tinham de ser judeus: 12 000
de cada uma das 12 tribos. Ken Smith vai mais longe, mostrando que os 144
000 eleitos «não se conspurcaram com mulheres», o que provavelmente
significa que nenhum deles podia ser mulher. Mas este, enfim, é o tipo de
coisa que, de algum modo, já esperamos.
Há muito mais no divertido ensaio de Hartung. Limito-me a recomendá-lo
só uma vez mais e a resumi-lo numa citação:
O Zeitgeist moral
Este capítulo começou por mostrar que, independentemente daquilo que
gostamos de imaginar, nós - mesmo aqueles de nós que são religiosos - não
fundamentamos a nossa moralidade em livros sagrados. Como decidimos,
então, o que é certo e o que é errado? Qualquer que seja a nossa resposta a
esta pergunta, a verdade é que existe um consenso quanto ao que na
realidade consideramos certo e errado: um amplo consenso que surpreende
pela ubiquidade, e que não tem qualquer ligação óbvia com a religião. No
entanto, ele estende-se à maioria das pessoas religiosas, quer pensem que a
sua moral decorre das Escrituras, quer não. Com excepções notórias, como
sejam os talibãs afegãos e o respectivo contraponto entre os cristãos norte-
americanos, a maioria das pessoas recita a sua adesão a um vasto consenso
de princípios éticos. Assim, a maior parte de nós não inflige sofrimento
desnecessário; acredita na liberdade de expressão e protege-a mesmo
discordando do que é dito; paga os seus impostos; não engana, não mata,
não comete incesto, não faz aos outros o que não gostaria que lhe fizessem.
Alguns destes bons princípios constam dos livros sagrados, mas sepultados
ao lado de outros princípios que nenhuma pessoa decente desejaria seguir:
além de que os livros sagrados não facultam regras que permitam distinguir
os bons dos maus princípios.
Uma forma de exprimir a nossa ética consensual é através dos «Novos
Dez Mandamentos». Várias pessoas e instituições já o tentaram.
Significativo é o facto de tenderem sempre a gerar resultados bastante
semelhantes entre si, e aquilo que geram é característico da época em que
são propostos. Eis um conjunto de «Novos Dez Mandamentos» da
actualidade, que encontrei por acaso numa página de Internet ateia:163
Não faças aos outros aquilo que não quiseres que te façam a ti.
Direi então que não sou, nem nunca fui, favorável a que se promova
seja de que maneira for a igualdade social e política entre as raças
branca e negra; que não sou, nem nunca fui, a favor de que os negros
sejam jurados, nem que sejam habilitados a ocupar cargos públicos,
nem a casar com brancos; e direi, além disto, que há uma diferença
física entre a raça branca e a raça negra que acredito que para sempre
impedirá que as duas raças vivam lado a lado numa base de igualdade
social e política. E visto que assim não poderão viver, enquanto
permanecerem juntas terá de haver uma posição superior e outra
inferior, e eu, tal como outro homem qualquer, sou a favor de que a
posição superior seja conferida à raça branca.165
E como vai a Nova República tratar as raças inferiores? Como vai lidar
com o preto?... O amarelo?... O judeu?... esses magotes de gente preta,
e castanha, e branco-suja, e amarela, que não cabem nas novas
necessidades ditadas pela eficiência? Bem, o mundo é mundo, não uma
instituição de caridade, e quer parecer-me que todos eles vão ter de se
sumir... E o sistema ético destes homens da Nova República, o sistema
ético que há-de dominar o Estado mundial, vai ser moldado
primacialmente para favorecer a procriação daquilo que é são, eficiente
e belo na humanidade - corpos belos e fortes, mentes límpidas e
poderosas... E o método seguido até agora pela natureza na modelação
do mundo, por meio do qual a fraqueza foi impedida de propagar a
fraqueza... é a morte... Os homens da Nova República... terão um ideal
que fará com que valha a pena matar.
Isto foi escrito em 1902 e, na sua época, Wells era visto como um
progressista. Tais opiniões, conquanto em 1902 não fossem amplamente
aceites, teriam proporcionado um tema aceitável de conversa à mesa do
jantar. Em contraste, os leitores modernos abrem a boca de pavor quando se
lhes deparam estas palavras. Somos forçados a perceber que Hitler, apesar
do que tem de aterrador, não se afastava muito do Zeitgeist do seu tempo
quando visto de uma perspectiva actual. Com que rapidez o Zeitgeist muda!
- e desloca-se em movimentos paralelos, numa frente larga, por todo o
mundo culto.
Donde vieram, então, estas mudanças graduais e concertadas verificadas
na consciência social? O ónus de responder não me caberá a mim. Para o
que aqui me proponho, basta saber que de certeza não foi da religião que
vieram. Se tivesse de avançar com uma teoria, começaria do seguinte modo.
Há que explicar por que motivo o Zeitgeist moral, sempre em constante
mudança, se afigura amplamente sincronizado, abrangendo vasto número de
pessoas; e há que explicar o seu rumo relativamente consistente.
Em primeiro lugar, qual o mecanismo dessa sincronização, sendo tão
vasto o número de pessoas envolvidas? Alastra de uma mente a outra
através de conversas em bares e em jantares de amigos, através de livros e
recensões críticas, através de jornais e de transmissões televisivas e
radiofónicas e, hoje em dia, da Internet. As alterações da sensibilidade
moral são sinalizadas em editoriais, em debates na rádio, nos discursos
políticos, na palavreado dos comediantes de standup e nos guiões das
telenovelas, nas votações parlamentares ao criar as leis e nas decisões dos
juízes ao interpretá-las. Uma forma de colocar a questão seria em termos de
alterações na frequência dos memes no fundo memético, mas não seguirei
agora essa via.
Nessa vaga do Zeitgeist moral que não pára de avançar, alguns de nós
encontram-se em posição mais atrasada, outros estão ligeiramente
adiantados. Mas a maioria de nós, neste século XXI, situa-se numa posição
muito semelhante, e muito à frente dos nossos homólogos da Idade Média,
ou do tempo de Abraão, ou, para nos referirmos a um período mais recente,
da década de 1920. A vaga está, toda ela, em movimento, e mesmo a
vanguarda de um qualquer século passado (T. H. Huxley surge como
exemplo óbvio) achar-se-ia muito atrasada em relação aos elementos mais
atrasados de um século posterior. É claro que o avanço não é uma rampa
lisa, mas mais como o perfil sinuoso dos dentes de uma serra. Há
contrariedades locais e temporais, como aquelas de que os Estados Unidos
estão a padecer por culpa do seu Governo desde o início da presente década.
Mas a uma escala mais longa, a tendência para a progressão é inequívoca e
vai continuar.
O que o impele no seu consistente rumo? Não podemos negligenciar o
papel motriz daqueles líderes que, à frente do seu tempo, se erguem
solitários e nos persuadem a progredir com eles. Nos Estados Unidos, os
ideais de igualdade racial foram fomentados por líderes políticos do calibre
de Martin Luther King, bem como por artistas do espectáculo, desportistas e
outras figuras públicas e modelos de comportamento como Paul Robeson,
Sidney Poitier, Jesse Owens e Jackie Robinson. A emancipação dos
escravos e das mulheres deve muito a líderes carismáticos. Alguns desses
líderes eram religiosos, outros não. Alguns dos que eram religiosos fizeram
as suas boas acções porque o eram. Noutros casos, a religião foi fortuita.
Embora fosse cristão, Martin Luther King foi beber a sua filosofia da
desobediência civil não-violenta directamente em Gandhi, que não o era.
E depois há também os progressos na educação e no ensino, e
especialmente a crescente compreensão de que cada um de nós partilha uma
humanidade comum com os membros das outras raças e com o sexo oposto
- uma e outra, ideias profundamente não-bíblicas, provenientes da ciência
biológica e, sobretudo, da evolução. Uma razão para os negros e as
mulheres e, na Alemanha nazi, os judeus e os ciganos terem sido
maltratados residiu no facto de não serem vistos como plenamente
humanos. Em Animal Liberation, o filósofo Peter Singer revela-se o
defensor mais eloquente da ideia de que devemos avançar para uma
condição «pós-especiesista», em que o tratamento humano é alargado a
todas as espécies que disponham de um cérebro suficientemente poderoso
para dele desfrutar. Talvez isto aponte já na direcção que o Zeitgeist moral
deverá tomar nos próximos séculos. Tal não seria mais do que o
prolongamento natural de reformas anteriores, como a abolição da
escravatura e a emancipação das mulheres.
A minha psicologia e sociologia de amador não me permitem ir mais
além nas explicações para o facto de o Zeitgeist moral se ir movendo da
forma generalizada e concertada como o faz. Para os meus objectivos
presentes, basta-me fazer notar que ele de facto se move, e que não é a
religião que o impele - e muito menos as Escrituras. Provavelmente a
responsabilidade não será de uma força só, como a gravidade, mas sim de
uma complexa acção combinada de forças díspares como a que impulsiona
a Lei de Moore, respeitante ao aumento exponencial da capacidade de
processamento dos computadores. Seja qual for a causa, o fenómeno
evidente que é a progressão do Zeitgeist é mais do que suficiente para deitar
por terra a afirmação de que precisamos de Deus para sermos bons ou para
decidir o que é bom.
foi em 1914, quando ainda só tinha 25 anos. Será que mudou depois disso?
Quando, em 1920, Hitler tinha 31 anos, Rudolf Hess, seu colaborador
próximo e mais tarde vice-Führer, escreveu numa carta ao primeiro-ministro
da Baviera: «Conheço pessoalmente muito bem Herr Hitler e sou muito
próximo dele. É um homem de um temperamento invulgarmente honrado,
imbuído de uma profunda bondade, é religioso, um bom católico .» É 169
claro que se poderá dizer que, já que Hess ajuizou tão mal o «temperamento
honrado» e a «profunda bondade», talvez também tenha ajuizado mal o
«bom católico»! Hitler dificilmente poderia ser descrito como «bom» o que
quer que fosse, o que me traz à lembrança o argumento mais comicamente
audacioso que já ouvi em defesa da ideia de que Hitler só poderia ter sido
ateu. Em resumo - e recorrendo aqui a paráfrases de origem diversa -, Hitler
era um homem mau, o Cristianismo ensina a bondade, logo Hitler não pode
ter sido cristão! Quando Goering afirmou, acerca de Hitler, «só um católico
poderia unir a Alemanha», talvez, penso eu, quisesse dizer alguém que
tivesse sido educado como católico, e não estar propriamente a referir-se-
lhe como um católico crente.
Num discurso proferido em Berlim, em 1933, Hitler disse: «Estávamos
convencidos de que o povo exige esta fé e precisa dela. Por isso
empreendemos contra o movimento ateu esta luta, que não se limitou a uma
tantas declarações teóricas: nós destruímo-lo.» Isto pode apenas indicar
170
A razão de o mundo antigo ser tão puro, leve e sereno devia-se ao facto
de nada saber dessas duas grandes pragas: a varíola e o Cristianismo.
Bem vistas as coisas, não temos razão para desejar que os Italianos e os
Espanhóis se libertem da droga que é o Cristianismo. Sejamos o único
povo imunizado contra a doença.
As Table Talk de Hitler contêm mais citações como estas, muitas vezes
comparando o Cristianismo com o bolchevismo, outras vezes traçando
analogias entre Karl Marx e São Paulo, sem nunca esquecer que ambos
eram judeus (embora Hitler, estranhamente, tenha sido sempre inflexível na
sua opinião de que o próprio Jesus não era judeu). É possível que, em 1941,
Hitler já tivesse passado por algum tipo de desconversão ou de
desencantamento com o Cristianismo. Ou será que a chave para estas
contradições reside no simples facto de ele ser um mentiroso oportunista em
cujas palavras não se pode confiar seja a que propósito for?
Pode argumentar-se que, não obstante as suas próprias palavras e as dos
seus acólitos, Hitler não era, na realidade, religioso, limitando-se, isso sim,
a explorar cinicamente a religiosidade daqueles a quem se dirigia. Talvez
concordasse com Napoleão, para quem «a religião é excelente para manter
sossegada a gente comum», e com Séneca, que afirmou: «A religião é vista
pela gente comum como verdadeira, pelos sábios como falsa e pelos
governantes como útil.» Ninguém pode negar que Hitler era capaz de
tamanha falta de sinceridade. Se foi esse o seu verdadeiro motivo para se
fingir religioso, convém recordar que Hitler não levou a cabo as suas
atrocidades sozinho. Esses actos horrendos foram, na realidade, praticados
por soldados e pelos seus oficiais, a maioria dos quais eram, seguramente,
cristãos. De facto, o Cristianismo do povo alemão está precisamente na base
da hipótese em apreço - uma hipótese que explique a suposta falta de
sinceridade das profissões de religiosidade de Hitler! Ou talvez ele sentisse
que tinha de dar algum sinal de simpatia pelo Cristianismo, caso contrário o
seu regime não teria recebido da Igreja o apoio que recebeu. Este apoio
revelou-se de várias formas, incluindo a reiterada recusa do Papa Pio XII
em tomar uma posição contra os nazis - uma questão que ainda causa
grande embaraço à Igreja actual. Ou o Cristianismo professado por Hitler
era sincero, ou ele fingiu-se cristão de modo a obter - com êxito - a
cooperação dos cristãos alemães e da Igreja Católica. Em qualquer dos
casos, dificilmente se poderá dizer que os males do regime hitleriano
decorrem do ateísmo.
Mesmo quando invectivava o Cristianismo, Hitler nunca deixou de usar a
linguagem da Providência: um agente misterioso que, acreditava, o tinha
escolhido a ele para a divina missão de conduzir a Alemanha. Umas vezes
chamava-lhe Providência, outras, Deus. Após o Anschluss, quando, em
1938, regressou triunfante a Viena, o discurso exultante que então proferiu
referia-se a Deus nestes termos providenciais: «Acredito que foi vontade de
Deus enviar um rapaz daqui para o Reich, fazendo-o crescer e educando-o
até se tornar o chefe da nação para que pudesse reconduzir a sua pátria ao
Reich.»173
Esta adulação quase religiosa torna-se mais repugnante ainda por surgir,
no livro de Glover, imediatamente a seguir ao seu relato das tremendas
crueldades de Estaline.
Estaline era ateu e Hitler provavelmente não, mas mesmo que fosse, o
essencial do debate Estaline/Hitler é muito simples. Os ateus poderão,
individualmente, fazer coisas más, mas não as fazem em nome do ateísmo.
Estaline e Hitler fizeram coisas tremendamente más em nome,
respectivamente, do marxismo dogmático e doutrinário e de uma insana e
nada científica teoria da eugenia, eivada de delírios subwagnerianos. As
guerras religiosas são realmente travadas em nome da religião e ocorrem
com uma frequência terrível ao longo da História. Não me lembro de
nenhuma que tenha sido travada em nome do ateísmo. E porque haveria de
o ser? Uma guerra pode ter como motivação a ganância económica, a
ambição política, o preconceito étnico ou racial, uma grande ofensa ou uma
vingança, ou ainda a crença patriótica no destino de uma nação. Um motivo
ainda mais plausível para se travar uma guerra é a fé inabalável em que a
nossa religião é a única verdadeira, corroborada por um livro sagrado que
condena explicitamente à morte todos os hereges e seguidores de religiões
rivais, e que promete explicitamente que os soldados de Deus irão
directamente para um céu de mártires. Em The End of Faith, Sam Harris
vai, como de costume, ao cerne da questão:
Em contraste com isto, por que razão haveria alguém de ir para a guerra
por causa de uma ausência de crença?
142 «O «bom» livro é a tradução literal de uma designação convencional da Bíblia, em inglês. (N. das
T.)
144 Holloway (1999, 2005). A expressão «cristão em convalescença», de Richard Holloway, é retirada
de uma recensão literária do Guardian, 15 de Fevereiro de 2003:
http://books.guardian.co.uk/reviews/scienceandnature/0,6121,894941,00.html. O jornalista escocês
Muriel Gray publicou no Herald (de Glasgow) um belo relato do meu diálogo de Edimburgo com o
bispo Holloway: http://www.sundayherald.com/44517.
145 Para uma assustadora colecção de sermões de clérigos norte-americanos que culpam o «pecado»
humano pelo furacão «Katrina», ver http://universist.org/neworleans.htm.
148 Esta ideia profusamente cómica foi-me sugerida por Jonathan Miller, que, supreendentemente,
nunca a aproveitou para um sketch do seu Beyond the Fringe. Agradeço-lhe igualmente a
recomendação do douto livro em que se baseia, de Halbertal e Margalit (1992).
149 O texto «todos nós financiamos esta torrente de fanatismo saudita», de Johann Hari, é uma
denúncia da influência insidiosa de wahabismo saudita na Grã-Bretanha actual. Originariamente
publicado em lhe Independent de 8 de Fevereiro de 2007, foi posteriormente reproduzido em várias
páginas de Internet, incluindo RichardDawkins.net.
150 R. Dawkins, «Atheists for por Jesus», Free Inquiry 25, 1, 2005, 9-10.
151 Julia Sweeney também acerta no alvo quando se refere de passagem ao Budismo. Tal como o
Cristianismo é por vezes considerado uma religião mais simpática e mais branda do que o Islamismo, o
Budismo é frequentemente considerado a mais simpática de todas. Mas a doutrina da despromoção na
escada da reencarnação por causa de pecados cometidos numa vida anterior é bastante desagradável.
Diz Julia Sweeney: «Fui à Tailândia e aconteceu que fui visitar uma mulher que tomava conta de um
rapaz horrivelmente deformado. Disse à mulher: “É tão bom da sua parte cuidar deste pobre rapaz.” E
ela: “Não diga ‘pobre rapai, que ele deve ter feito qualquer coisa de muito terrível numa vida passada
para ter nascido assim.”»
152 Para uma análise perspicaz das técnicas usadas pelo cultos, ver Barker (1984).`É possível encontrar
mais relatos jornalísticos de cultos modernos em Lane (1996) e Kilduff e Javers (1978).
153 Eu sei que scrump não é um termo familiar aos leitores norte-americanos, mas gosto de ler palavras
norte-americanas estranhas e de as procurar no dicionário para alargar o meu vocabulário. Usei
deliberadamente este e outros regionalismos por esse motivo. Scrumping é um mot juste invulgarmente
económico. Não significa apenas roubar: significa especificamente roubar maçãs e apenas maçãs. É
difícil um mot ser mais juste do que isto. Há que reconhecer que a história do Génesis não especifica
que o fruto fosse uma maçã, mas a tradição há muito que o afirma.
154 Paul Vallely e Andrew Buncombe, «History of Christianity: Gospel according to Judas»,
Independent, 7 de Abril de 2006.
155 Infelizmente já fora de tempo para a edição de capa dura deste livro, foi agora publicado Reading
Judas, de Elaine Pagels e Karen L. King (Viking, Londres, 2007). Baseado na tradução de Karen King
do Evangelho de Judas, o livro dá uma perspectiva favorável desse alegado «arquitraidor» (que no
próprio Evangelho aparece referido na terceira pessoa).
159 Se o leitor não entende o significado de «santos da tribulação», referido nesta frase, não se
preocupe: de certeza que tem coisas melhores para fazer.
162 N. D. Glenn, «Interreligious marriage in the United States: patterns and recent trends», Journal of
Marriage and the Family 44, 3, 1982, 555-66.
163 http://www.ebonmusings.org/atheism/new10c.html.
165 http://www.classic-literature.co.uk/american-authors/19th-centu-ry/abraham-lincoln/the-writings-
of-abraham-lincoln-04/.
166 Designações depreciativas ou insultuosas; frog = francês; wop = italiano; dago = ibero/italo-
americano; hun = alemão; yid = judeu; coon = negro; nip = japonês; wog (brit.) = do Próximo ou
Extremo Oriente. (N. das T.)
170 http://homepages.paradise.net.nz/mischedj/ca_hitler.html.
174 Esta citação, bem como a seguinte, foram retiradas do artigo de Anne Nicol Gaylor sobre a religião
de Hitler, http://www.ffrf.org/fttoday/back/hitler.html.
175 http://www.contra-mundum.org/schirrmacher/NS_Religion.pdf.
8
Qual é o mal da religião?
Porquê tanta hostilidade?
A religião convenceu efectivamente as pessoas de que existe
um homem invisível que vive no céu e que vê tudo o que
fazemos, a cada minuto do dia. E o homem invisível tem uma
lista especial de dez coisas que não quer que façamos. E se
fizermos alguma dessas coisas, ele tem um lugar especial,
repleto de fogo e fumo e calor e abrasamento e dor, para onde
nos manda viver e sofrer e arder e sufocar e gritar e chorar
para todo o sempre, até ao fim dos tempos... Mas ele ama-nos!
George Carlin
Por temperamento, não me dou bem com o confronto. Não acho que o
modelo do contraditório se adeqúe à busca da verdade, e costumo recusar os
convites para participar em debates formais. Uma vez fui convidado para
um frente-a-frente com o então arcebispo de York, em Edimburgo. Honrado
com o convite, aceitei. Após o debate, o físico religioso Russell Stannard
reproduziu no seu livro Doing Away With God? uma carta que enviara ao
Observer:
Exmo Senhor, sob o alegre título «Deus não consegue mais do que um
humilde segundo lugar na corrida com Sua Majestade a Ciência», o
vosso correspondente para a ciência contou (e logo no Domingo de
Páscoa) como Richard Dawkins «infligiu severo dano intelectual» ao
arcebispo de York durante um debate sobre ciência e religião. A peça
falava de «ateus de sorriso enfatuado» e referia o resultado: «Leões, 10
– Cristãos, 0.»
O texto de Stannard prossegue repreendendo o Observer por não ter
noticiado um encontro posterior entre ele, eu, o bispo de Birmingham e o
eminente cosmólogo Sir Hermann Bondi, encontro que ocorreu na Royal
Society e que já não tinha sido organizado nos moldes do frente-a-frente,
tendo resultado muito mais construtivo. Não posso deixar de concordar com
a sua condenação implícita do formato do frente-a-frente. Em especial, e
por razões que expliquei no livro A Devil’s Chaplain, nunca tomo parte em
debates com criacionistas.176
por mais que tentasse, e mesmo com o benefício das margens que
ficaram intactas, era impossível pegar-lhe sem que se rasgasse em dois.
Tive de me decidir entre a evolução e a Bíblia. Ou a Bíblia era
verdadeira e a evolução falsa, ou a evolução era verdadeira e eu tinha
de deitar a Bíblia fora... Foi nessa noite que aceitei a Palavra de Deus e
rejeitei tudo o que estivesse contra ela, incluindo a evolução. Desse
modo, e com grande pesar meu, atirei ao fogo todos os meus sonhos e
esperanças na ciência.
Acho isto horrivelmente triste. Mas enquanto com a história do aparelho
de Golgi me comovi de admiração e exultação, inclusivamente até às
lágrimas, a história de Kurt Wise é simplesmente patética – patética e
desprezível. A ferida assim causada à sua carreira e felicidade futura, uma
ferida auto-infligida, era tão desnecessária, tão fácil de evitar! A única coisa
a fazer era deitar a Bíblia fora. Ou então interpretá-la simbolicamente, ou
alegoricamente, como fazem os teólogos. Em vez disso, Wise optou pela via
fundamentalista deitando fora a ciência, a evidência e a razão, além de todos
os seus sonhos e esperanças.
Entre os fundamentalistas, Kurt Wise é talvez um caso único de
sinceridade – de uma devastadora, dolorosa e chocante sinceridade. Dê-se-
lhe o Prémio Templeton; bem pode vir a ser o primeiro agraciado realmente
sincero. Com efeito, Wise traz ao cimo aquilo que secretamente se passa, de
uma maneira geral, nas mentes dos fundamentalistas quando confrontados
com provas científicas que contradizem as suas crenças. Ouçamo-lo perorar:
Wise parece estar aqui a citar Lutero quando afixou as suas teses na porta
da igreja de Wittenberg, mas a mim lembra-me mais a personagem Winston
Smith, em 1984 – esforçando-se desesperadamente por acreditar que dois e
dois são cinco se o Big Brother assim ordenar. Só que Winston age sob
tortura. Ao contrário do romance de Orwell, o «duplipensar» de Wise não
decorre do imperativo da tortura física, mas sim do imperativo – pelos
vistos igualmente incontestável, para algumas pessoas – da fé religiosa, que
de resto talvez não deixe de ser uma forma de tortura mental. Nutro
hostilidade em relação à religião por causa do que ela fez a Kurt Wise. E se
fez isso a um geólogo formado em Harvard, pense-se só no que pode fazer
às pessoas menos dotadas e menos preparadas.
A religião que é fundamentalista está firmemente apostada em arruinar a
formação científica de incontáveis milhares de jovens de espírito bem-
intencionado, ávido e inocente. A religião que é não-fundamentalista, a
religião «sensata», pode não o pretender fazer, mas cria condições
favoráveis ao fundamentalismo no mundo quando ensina as crianças, a
partir de tenra idade, que a fé inquestionante é uma virtude.
congressista Bob Dornan: «Não usemos a palavra gay a não ser que seja
como sigla de “Got Aids Yet?”» ; a do general William G. Boykin:
183
«George Bush não foi eleito por uma maioria de eleitores dos Estados
Unidos, foi nomeado por Deus»; e outra frase mais antiga, expressão da
famosa política ambiental do secretário do Interior do Governo de Ronald
Reagan: «Não é preciso proteger o ambiente, que o Regresso d’Ele está para
breve.» O talibã afegão e o talibã americano são bons exemplos do que
acontece quando as pessoas levam as suas sagradas escrituras à letra e a
sério. Um e outro dão-nos uma assustadora imagem moderna de como seria
a vida na teocracia do Antigo Testamento. O livro de Kimberly Blaker The
Fundamentals of Extremism: The Christian Right in America é, todo ele,
uma denúncia da ameaça do talibã cristão (ainda que sem esse nome).
Fé e homossexualidade
No Afeganistão dominado pelos talibãs, o castigo oficial para a
homossexualidade era a execução através do requintado método de enterrar
a vítima ainda com vida, fazendo desabar um muro sobre ela. Sendo o
«crime», em si, um acto privado levado a cabo por adultos com o pleno
consentimento de ambos e sem causar qualquer dano a terceiros, estamos de
novo perante a marca clássica do absolutismo religioso. O meu próprio país
não se pode arrogar superioridade nesta matéria. Surpreendentemente, na
Grã-Bretanha a prática da homossexualidade em privado foi considerada
delito até 1967. Em 1954, o matemático britânico Alan Turing, candidato,
juntamente com John von Neumann, ao título de pai do computador,
suicidou-se depois de ter sido condenado pelo delito de comportamento
homossexual em privado. É certo que não enterraram Turing vivo, debaixo
de um muro empurrado por um tanque. Deram-lhe a escolher entre dois
anos de prisão (pode imaginar-se como os outros prisioneiros o teriam
tratado) e um programa de injecções de hormonas que equivaleria à
castração química e o teria feito ficar com seios desenvolvidos. Por fim
decidiu-se por uma maçã, que injectara com cianeto. 184
respeito pela vida humana. Desde 1976, ano em que o Supremo Tribunal
revogou a proibição da pena de morte, o Texas foi responsável por mais de
um terço do total de execuções levadas a cabo nos 50 estados dos EUA, e
Bush presidiu a mais execuções no Texas do que qualquer outro governador
da história do estado, à média de uma morte em cada nove dias. Será que se
limitou a cumprir o dever e a pôr em prática as leis do estado? Mas então,
190
Só quero que vos deixeis invadir por uma onda de intolerância. Quero
que vos deixeis invadir por uma onda de ódio. Sim, o ódio é bom... O
nosso objectivo é uma nação cristã. Temos um dever bíblico, Deus
chamou-nos a conquistar este país. Não queremos paridade. Não
queremos pluralismo.
O nosso objectivo tem de ser simples. Temos de ter uma nação cristã
edificada sobre a lei de Deus, sobre os Dez Mandamentos. Sem
contemplações .192
Esta ambição de alcançar aquilo que só pode ser designado por Estado
fascista cristão é absolutamente típica do talibã americano. É quase
exactamente, como que vista ao espelho, a imagem simétrica do Estado
fascista islâmico, por que tantos tão fervorosamente anseiam noutras partes
do mundo. Randall Terry não ascendeu – ainda – ao poder político. Mas à
data da escrita deste livro (2006), nenhum observador do panorama político
norte-americano se poderá dar ao luxo de se sentir optimista.
Um consequencialista ou um utilitarista abordará provavelmente a
questão do aborto de forma muito diferente, procurando tomar em linha de
conta o sofrimento eventualmente provocado. O embrião sofre?
(Presumivelmente não, se for abortado antes de possuir sistema nervoso; e
mesmo que tenha idade suficiente para já possuir sistema nervoso, de
certeza que sofre menos do que, por exemplo, uma vaca adulta no
matadouro.) A grávida, ou a família, sofrem se aquela não fizer um aborto?
Muito possivelmente sim; e seja como for, atendendo a que o embrião não
possui sistema nervoso, será que não se deve fazer pender a decisão para o
sistema nervoso da mãe, esse já bem desenvolvido?
Não pretendo, com isto, negar que um consequencialista tenha motivos
para se opor ao aborto. Os consequencialistas (mas não eu próprio, neste
caso) poderão equacionar argumentos do tipo «declive escorregadio». 193
Talvez os embriões não sofram, mas uma cultura que tolera que se disponha
da vida humana corre o risco de ir longe de mais: onde tudo irá parar? No
infanticídio? O momento do nascimento proporciona um Rubicão natural
para a definição de regras, e é possível argumentar que é difícil encontrar
outro antes dele, ao longo do desenvolvimento do embrião. Os argumentos
de declive escorregadio poderão, assim, levar-nos a atribuir ao momento do
nascimento um significado maior do que aquilo que o utilitarismo,
entendido em sentido estrito, gostaria que acontecesse.
Os argumentos contra a eutanásia também são passíveis de ser
equacionados em termos de declive escorregadio. Tomemos uma citação
imaginária de um filósofo moral: «Se permitirmos que os médicos ponham
termo à agonia dos doentes terminais, daqui a pouco toda a gente começa a
despachar a avozinha só para ficar com o dinheiro dela. Enquanto filósofos,
podemos ter superado o absolutismo, mas a sociedade necessita da
disciplina de regras absolutas como «não matarás», caso contrário não
saberá onde parar. Num mundo aquém do que seria ideal, e ainda que pelos
mais errados motivos, o absolutismo poderá, em certas circunstâncias, ter
consequências melhores do que o consequencialismo ingénuo! Os filósofos
como nós poderão ver-se em dificuldades para proibir que se comam
pessoas que morram sem deixar quem os chore – vagabundos atropelados
na estrada, por exemplo. Mas, pelas razões escorregadias já mencionadas, o
tabu absolutista contra o canibalismo é demasiado valioso para que dele
possamos prescindir.»
Os argumentos escorregadios podem ser vistos como uma maneira que os
consequencialistas encontram de reincorporar indirectamente uma forma de
absolutismo. Mas os inimigos religiosos do aborto não se incomodam com
declives escorregadios. Para eles, a questão é muito mais simples. Um
embrião é uma «criancinha», matá-la é homicídio e acabou: fim de
discussão. Esta posição absolutista tem importantes implicações. Para
começar, a investigação sobre células estaminais embrionárias deve parar,
apesar do enorme potencial que representa para a ciência médica, porque
implica a morte de células embrionárias. A inconsistência do raciocínio
resulta evidente quando se pensa que a sociedade já aceita a FIV
(fertilização in vitro), processo através do qual os médicos induzem
regularmente as mulheres a produzir óvulos a mais, a fim de serem
fertilizados fora do corpo. Podem produzir-se até 12 zigotos viáveis, dos
quais dois ou três são então implantados no útero. Destes, espera-se que
apenas um ou, possivelmente, dois sobrevivam. Como se vê, a fertilização
in vitro mata conceptos em duas etapas do processo e a sociedade em geral
não tem problemas com isso. Há 25 anos que a fertilização in vitro constitui
um procedimento-padrão para trazer alegria às vidas dos casais sem filhos.
Contudo, os absolutistas religiosos também conseguem ver problemas na
fertilização in vitro. O Guardian de 3 de Junho de 2005 trazia uma
estranhíssima história intitulada «Casais cristãos respondem à chamada para
salvar embriões desaproveitados pela FIV». A notícia é sobre uma
organização chamada Showflakes (Flocos de Neve), que procura «salvar»
embriões excedentários deitados fora pelas clínicas de fertilização in vitro.
«Sentimos realmente que o Senhor nos estava a chamar para que
tentássemos dar a um destes embriões – destas crianças – uma oportunidade
de viver», declarou uma mulher do estado de Washington, cujo quarto filho
resultou desta «aliança inesperada que os cristãos conservadores têm vindo
a formar com o mundo dos bebés-proveta». Preocupado com tal aliança, o
marido consultara um presbítero, que aconselhou: «Às vezes, para libertar
os escravos, é preciso negociar com o negreiro.» Pergunto-me o que diriam
estas pessoas se soubessem que, de qualquer modo, a maioria dos embriões
concebidos acaba por abortar espontaneamente. Talvez devamos considerar
essa realidade uma forma natural de «controlo de qualidade».
Para um certo tipo de mente religiosa, não é visível a diferença moral
entre, por um lado, matar um cacho microscópico de células e, por outro,
matar um médico adulto. Já citei Randall Terry e a sua Operação
Salvamento. No seu arrepiante livro Terror in the Mind of God, Mark
Juergensmeyer publica uma fotografia do reverendo Michael Bray com o
amigo, o reverendo Paul Hill, segurando uma faixa onde se lê: «Será errado
pôr fim ao assassínio de crianças inocentes?» Ambos têm o aspecto de
jovens simpáticos e aprumados, de sorriso cativante, bem vestidos, com
roupa informal, o oposto de loucos de olhar arregalado. No entanto, eles e
os amigos do Army of God, AOG (o Exército do Senhor) dedicaram-se a
incendiar clínicas de aborto, não fazendo segredo do seu desejo de matar
médicos. No dia 29 de Julho de 1994, Paul Hill pegou numa caçadeira e
assassinou o Dr. John Britton e o guarda-costas deste, James Barrett, no
exterior da clínica de Britton, em Pensacola, na Florida. De seguida
entregou-se à polícia, dizendo que tinha matado o médico para impedir mais
mortes de «crianças inocentes».
Michael Bray defende estas acções de forma desenvolta e com toda a
aparência de um elevado propósito moral, como de resto descobri quando o
entrevistei num jardim público de Colorado Springs, para o meu
documentário televisivo sobre religião. Antes de avançar para a questão do
194
isso não afecta o meu ponto principal, que diz respeito à diferença entre
filosofias morais de tipo consequencialista secular, por um lado, e, por
outro, de tipo absoluto e religioso. Uma escola de pensamento preocupa-se
197
John Stevas (agora Lord St. John), deputado e destacado católico laico da
Grã-Bretanha. Este, por sua vez, bebeu-a em Maurice Baring (1874-1945),
um conhecido católico convertido e figura próxima desses pilares do
catolicismo que foram G. K. Chesterton e Hilaire Belloc. Esta versão surge
sob a forma de um diálogo hipotético entre dois médicos.
A Internet está pejada de websites ditos pró-vida que repetem esta história
ridícula, alterando pontualmente as premissas factuais com pródiga sem-
cerimónia. Eis outra versão. «Se conhecesse uma mulher grávida, já com
oito filhos, três deles surdos, dois cegos, um atrasado mental (e tudo porque
ela tinha sífilis), recomendar-lhe-ia o aborto? Nesse caso teria matado
Beethoven.» Esta apresentação da lenda relega o grande compositor de
199
quinto para nono na ordem de nascimento, aumenta para três o número dos
que nasceram surdos e para dois o número dos nascidos cegos, e atribui a
sífilis à mãe em vez de a atribuir ao pai. A maior parte dos 43 websites que
encontrei quando procurava versões da história atribuem-na não a Maurice
Baring, mas sim a um certo professor, L. R. Agnew, da Faculdade de
Medicina da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, de quem se diz
ter colocado o dilema aos seus alunos, concluindo com «parabéns, acabam
de assassinar Beethoven.» Podemos usar de caridade e conferir a L. R.
Agnew o benefício da dúvida de que tenha existido – é espantosa a
facilidade com que estas lendas urbanas despontam. Não consigo apurar se
foi Baring efectivamente quem deu origem à lenda, ou se esta já havia sido
inventada antes.
É que inventada foi de certeza. E é completamente falsa. A verdade é que
Ludwig van Beethoven não foi nem o nono, nem o quinto filho de seus pais.
Era o mais velho – em rigor o número dois, mas o irmão mais velho morreu
ainda em criança, como era comum na época, e tanto quanto se sabe não era
cego, nem surdo, nem mudo, nem atrasado mental. Não existem provas de
que qualquer dos progenitores tivesse sífilis, embora seja verdade que a mãe
acabou por morrer de tuberculose, como de resto era frequente na altura.
Trata-se, pois, na verdade, de uma rematada lenda urbana, uma pura
invenção, deliberadamente divulgada por pessoas com um interesse especial
em difundi-la. Mas seja como for, o facto de se tratar de uma mentira é
completamente irrelevante. Mesmo que não o fosse, o que dela se extrai é,
de facto, muito mau como argumento. Peter e Jean Medawar não
precisaram de duvidar da veracidade da história para lhe apontar a natureza
falaciosa: «O raciocínio subjacente a este odioso argumentozinho é uma
falácia de fazer pasmar, pois, a não ser que se esteja a sugerir que existe
uma qualquer ligação causal entre ter uma mãe tuberculosa e um pai
sifilítico e dar à luz um génio da música, a probabilidade de o mundo vir a
ser privado de um Beethoven pela via do aborto não é maior do que pela via
da abstinência sexual.» A rejeição lacónica e desdenhosa dos Medawar
200
A resposta a esta questão é óbvia – quanto mais não seja porque foi
pacientemente repetida ad nauseam pelo próprio Bin Laden. A resposta
é que homens como ele acreditam efectivamente naquilo em que dizem
que acreditam. Acreditam na verdade literal do Corão. Por que motivo
terão 19 homens instruídos, pertencentes à classe média, trocado as suas
vidas neste mundo pelo privilégio de matar milhares dos nossos
semelhantes? Porque acreditavam que iriam direitos para o paraíso se o
fizessem. É raro encontrar comportamentos humanos explicados de
forma tão completa e satisfatória. Porque temos nós demonstrado tanta
relutância em aceitar esta explicação?203
176 Não tenho o desplante de os recusar pelos motivos invocados por um dos meus mais notáveis
colegas cientistas sempre que um criacionista tenta organizar um debate formal com ele (e não lhe vou
revelar o nome, mas tão-só dizer que as suas palavras deverão ser lidas com sotaque australiano): «Isso
ficará muito bem no seu currículo, mas no meu nem por isso.»
177 Região do Sudeste dos Estados Unidos, com grande predomínio de cristãos evangélicos
caracterizados pela religiosidade devota e militante. (N. das T.)
179 As minhas duas citações de Wise são retiradas do seu contributo para o livro de 1999 In Six Days,
uma antologia de ensaios escritos por criacionistas «Terra jovem» (Ashton 1999).
181 A prisão de John William Gott por ter chamado palhaço a Jesus é mencionada em The Indypedia,
publicado pelo Independent, 29 de Abril de 2006. A tentativa de processar a BBC por blasfémia
encontra-se em BBC News, 10 de Janeiro de 2005:
http://news.bbc.co.uk/1/hi/entertainment/tvánd_radio/4161109.stm.
182 http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.
185 Esta e as restantes citações desta secção são do já citado website American Taliban:
http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.
186 http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.
189 Ver Mooney (2005). Ver também Silver (2006), que foi publicado quando este livro estava na fase
final de revisão, portanto demasiado tarde para ser discutido de forma tão completa como eu gostaria.
190 Para uma interessante análise do que a este respeito torna o Texas diferente, ver
http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/execution/readings/texas.html.
191 http://en.wikipedia.org/wiki/Karla_Faye_Tucker.
192 Tal como anteriormente, estas citações de Randall Terry são do mesmo site American Taliban:
http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.
193 Em que uma concessão ou a admissão de excepções abre caminho ao desabar completo do
argumento. (N. das T.)
194 Os defensores da libertação animal, que ameaçam com violência os cientistas que utilizam animais
na investigação médica, também reivindicam para si um propósito moral elevado.
197 Como é óbvio, esta divisão não esgota as possibilidades. Uma maioria substancial dos cristãos
americanos não tem uma posição absolutista em relação ao aborto e é pró-escolha. Ver, por exemplo, a
Religious Coalition for Reproductive Choice, em www.rcrc.org/.
198 Sir Peter Medawar ganhou o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1960.
199 http://www.warroom.com/ethical.htm.
200 Medawar e Medawar (1977).
201 O artigo de Johann Hari, originariamente publicado no Independent do dia 15 de Julho de 2005,
encontra-se em http://johannhari.com/archive/article.php?id=640.
204 Nasra Hassan, «An arsenal of believers», New Yorker, 19 de Novembro de 2001. Ver também:
http://www.bintjbeil.com/articles/en/01111_hassan.html.
9
Infância, abusos e fuga à religião
Há em cada aldeia um archote –- o mestre-escola; e uma boca
que sopra para o apagar – o pároco.
Victor Hugo
Começo com um episódio real passado na Itália do século XIX. Não quero
com isto dizer que algo tão terrível como esta história possa acontecer nos
dias de hoje, mas as atitudes mentais que ela deixa transparecer são
lamentavelmente actuais, ainda que os pormenores concretos o não sejam.
Esta tragédia humana oitocentista lança uma luz impiedosa sobre as atitudes
religiosas actuais em relação às crianças.
Em 1858, Edgardo Mortara, um menino de seis anos filho de pais judeus
que habitavam em Bolonha, foi legalmente preso pela polícia papal no
cumprimento de ordens da Inquisição. Edgardo foi arrancado à força a uma
mãe chorosa e um pai desvairado, e levado para os Catecúmenos, em Roma
(uma instituição para a conversão de judeus e muçulmanos), após o que foi
educado como católico. Exceptuando algumas breves visitas ocasionais sob
vigilância de um padre, os pais nunca mais voltaram a vê-lo. A história é
contada por David I. Kertzer no seu extraordinário livro O Sequestro de
Edgardo Mortara.
A história de Edgardo não foi, de modo algum, invulgar na Itália da
época, e a razão por detrás destes raptos levados a cabo pelo clero era
sempre a mesma. Em todos os casos, a criança havia antes sido baptizada
em segredo, geralmente por uma ama católica, e entretanto a notícia do
baptismo chegara aos ouvidos da Inquisição. Uma ideia essencial do
sistema de crenças católico era que, a partir do momento em que uma
criança fosse baptizada, por mais informal e clandestina que fosse a
cerimónia, essa criança tornava-se irrevogavelmente cristã. De acordo com
o seu universo mental, permitir que uma «criança cristã» continuasse junto
dos pais judeus não era sequer opção, e mantiveram-se inflexíveis nesta sua
posição bizarra e cruel, mesmo perante os ecos da revolta que então
chegavam de todo o mundo. Uma revolta que, diga-se de passagem, o jornal
católico Civiltà Cattolica tratou com ligeireza, atribuindo-a ao poder
internacional dos judeus ricos - o que já ouvimos em qualquer lado, não já?
Exceptuando a notoriedade de que se revestiu, a história de Edgardo
Mortara foi absolutamente típica de muitas outras. Em tempos estivera ao
cuidado de Anna Morisi, uma jovem católica analfabeta, então com 14 anos.
Edgardo adoeceu e ela entrou em pânico com medo de que ele morresse.
Educada na inércia da crença segundo a qual uma criança que morresse sem
ser baptizada iria sofrer eternamente no inferno, pediu conselho a uma
vizinha católica, que a ensinou como se baptizava. Anna voltou para casa e
atirou um pouco de água de um balde por sobre a cabeça do pequeno
Edgardo, dizendo: «Eu te baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo.» E tanto bastou. A partir daquele momento, Edgardo passou,
legalmente, a ser cristão. Quando, anos mais tarde, os padres da Inquisição
tiveram conhecimento do incidente, agiram com prontidão e firmeza, sem
sequer pensarem nas lamentáveis consequências do seu acto.
Atendendo a que se trata de um ritual que pode ter um significado
tremendo para todo um agregado familiar, é incrível como a Igreja Católica
permitiu (e continua a permitir) que qualquer pessoa baptize quem quer que
seja. Para ministrar o baptismo não é necessário ser-se padre. Também não
é necessário que ninguém, criança e pais incluídos, dê o seu consentimento.
Não é necessário assinar nada. Não são necessárias testemunhas oficiais.
Necessários são apenas uns salpicos de água, umas palavras, uma criança
indefesa e uma babysitter supersticiosa a quem a catequese haja lavado o
cérebro. Em verdade, só esta última é mesmo necessária, porque uma vez
que a criança é nova de mais para servir de testemunha, quem mais vai
acabar por saber? Uma colega norte-americana que teve uma educação
católica escreveu-me a dizer o seguinte: «Nós baptizávamos as nossas
bonecas. Não me lembro de que nenhum de nós tivesse baptizado as nossas
amiguitas protestantes, mas não tenho dúvidas de que isso aconteceu e
continua a acontecer. Pegávamos nas bonecas e fazíamos delas pequenas
cristãs, levando-as à igreja, dando-lhes a santa comunhão, etc. Lavavam-nos
o cérebro para que fôssemos boas mães católicas logo desde muito cedo.»
Se as jovens do século XIX tinham alguma coisa a ver com a minha
moderna correspondente, é de admirar que não se registassem mais casos
como o de Edgardo Mortara. Mesmo assim, histórias como esta eram
tristemente frequentes na Itália de oitocentos, o que leva a que façamos a
pergunta óbvia. Por que motivo é que os judeus dos Estados Pontifícios
empregavam criados católicos, sabendo o risco terrível que daí podia advir?
Porque não tinham o cuidado de contratar só criados judeus? A resposta,
uma vez mais, não tem nada a ver com bom senso, mas sim com religião.
Os judeus precisavam de criados cuja religião os não proibisse de trabalhar
no sabat. É verdade que uma empregada judia dava garantias de não
baptizar os filhos dos patrões, remetendo-os com esse gesto para uma
espécie de orfandade espiritual. Mas não podia acender o lume nem limpar
a casa ao sábado. É por essa razão por que, das famílias judaicas de Bolonha
que na altura se podiam dar ao luxo de ter criados, a maioria contratava
católicos.
Neste livro, abstive-me deliberadamente de entrar em pormenores quanto
aos horrores cometidos nas Cruzadas, nas Américas dos conquistadores ou
às mãos da Inquisição espanhola. Há gente perversa e cruel em todos os
séculos e credos religiosos. Mas esta história da Inquisição italiana e da sua
atitude para com as crianças é particularmente reveladora da mente religiosa
e dos males que, especificamente, decorrem dessa religiosidade. Refira-se,
em primeiro lugar, a espantosa percepção, da parte da mente religiosa, de
que uns salpicos de água e um breve sortilégio verbal podem mudar por
completo a vida de uma criança, gozando de precedência sobre o
consentimento dos pais, o consentimento da própria criança e a sua
felicidade e bem-estar psicológico... e sobrepondo-se, inclusivamente, a
tudo quanto o normal bom senso e o sentimento humano acharão
importante. Na altura, o cardeal Antonelli foi muito claro numa carta de
resposta a Lionel Rothschild, o primeiro judeu membro do Parlamento
britânico, que lhe escrevera a protestar contra o rapto de Edgardo. O cardeal
respondeu ser impotente para intervir, acrescentando: «Sobre isto, talvez
seja oportuno fazer notar que, se a voz da natureza é poderosa, mais
poderosos ainda são os deveres sagrados da religião.» Enfim, esta frase diz
tudo, não diz?
Em segundo lugar, repare-se no facto extraordinário e genuíno de os
padres, os cardeais e o Papa não se terem dado conta do que havia de
terrível naquilo que fizeram ao pobre Edgardo Mortara. Por mais que custe
a entender, na sua maneira de ver a situação eles acreditavam piamente que
estavam a fazer uma grande coisa ao tirar o rapaz aos pais para lhe dar uma
educação cristã. Foram levados por um dever de protecção! Um jornal
católico dos Estados Unidos defendeu a posição do Papa no caso Mortara,
argumentando que seria impensável um governo cristão «permitir que uma
criança cristã fosse educada por um judeu» e invocando o princípio da
liberdade religiosa - «a liberdade que a criança tem de ser cristã e de não ser
obrigada a ser judia à força... A protecção da criança pelo Santo Padre,
perante o feroz fanatismo do preconceito e da falsa fé, é o espectáculo moral
mais grandioso a que o mundo assistiu desde há muito tempo.» Terá alguma
vez havido uma distorção tão flagrante de palavras como «obrigado», «à
força», «feroz», «fanatismo» e «preconceito»? E, no entanto, tudo indica
que os apologistas católicos, a começar pelo Papa, acreditaram
sinceramente que aquilo que estavam a fazer era correcto: inteiramente
correcto do ponto de vista moral e do ponto de vista do bem-estar da
criança. Tal é o poder da religião (a religião mainstream, «moderada») para
deturpar o discernimento e perverter a comum decência humana. O jornal Il
Cattolico mostrou-se francamente perplexo com a incapacidade
generalizada para ver o magnânimo favor que a Igreja tinha feito a Edgardo
Mortara quando o salvou da sua família judaica:
Sem dúvida que há causas pelas quais será nobre morrer. Mas como foi
possível os mártires Ridley, Latimer e Cranmer deixarem-se queimar,
quando lhes era tão fácil renunciar ao seu extremo-estreitismo protestante
em favor do extremo-larguismo católico? Será que é assim tão importante a
extremidade por onde se enceta um ovo cozido? A convicção da mente
206
nos Estados Unidos deste início do século XXI, o que parece extremo para o
mundo exterior ser, de facto, maioritário ou mainstream. Um dos meus
entrevistados que mais abalaram o público espectador britânico, por
exemplo, foi o pastor Ted Haggard, de Colorado Springs. Contudo, na
América de Bush o «pastor Ted» está longe de se poder considerar um
extremista, já que é presidente da Associação Nacional de Evangélicos, uma
organização com 30 milhões de membros, e se gaba da honra de todas as
segundas-feiras trocar opiniões por telefone com o Presidente Bush. Se eu
tivesse querido entrevistar aquilo que, à luz dos actuais padrões americanos,
são extremistas a sério, ter-me-ia abeirado dos «reconstrucionistas», cuja
«teologia do domínio» propõe abertamente uma teocracia cristã para os
EUA. Eis o que me escreveu, a propósito, um apreensivo colega norte-
americano:
O medo do fogo do inferno pode ser muito real, mesmo entre pessoas
com um comportamento racional a outros níveis. Após o meu documentário
televisivo sobre religião recebi muitas cartas, entre as quais esta, de uma
mulher visivelmente inteligente e sincera:
É claro que uma afirmação tão peremptória como esta precisa de ser
relativizada, e foi-o efectivamente. Chamar a algo disparate não será uma
questão de opinião? A tenda da ciência ortodoxa não foi desmantelada já
vezes suficientes para que usemos de prudência? Os cientistas poderão
achar que é disparate ensinar astrologia e a verdade literal da Bíblia, mas há
quem pense o contrário, e não terão estes o direito de o ensinar aos filhos?
Não será arrogante insistir em que se ensine ciência às crianças?
Agradeço aos meus pais o facto de acharem que se deve ensinar aos
filhos, não tanto o que pensar, mas mais como pensar. Se estes, tendo sido
equilibrada e adequadamente expostos a toda a evidência científica
disponível, decidirem, depois de crescidos, que a Bíblia é literalmente
verdade ou que o movimento dos planetas rege as suas vidas, estão no seu
direito de o fazer. Importante, aqui, é que cabe aos filhos a prerrogativa de
decidir o que pensar, não sendo, portanto, prerrogativa dos pais imporem-no
à conta de «força maior». E isto, claro, assume especial importância quando
consideramos que os filhos hão-de ser os pais da geração seguinte, ficando
então em situação de transmitir a doutrina que os enformou a eles.
Humphrey sugere que, sendo as crianças jovens, vulneráveis e carecidas
de protecção, o tipo de tutela moralmente defensável será aquele que, com
honestidade, procurar prever o que elas escolheriam para si próprias se
fossem suficientemente crescidas para o fazer. Humphrey faz, a este
propósito, uma comovente alusão a uma jovem inca cujos restos mortais,
congelados há mais de 500 anos, foram encontrados nas montanhas do Peru,
em 1995. O antropólogo que a descobriu escreveu que a jovem tinha sido
vítima de um rito sacrificial. Segundo o relato de Humphrey, nas televisões
dos Estados Unidos passou um documentário sobre esta jovem «donzela do
gelo». Os espectadores foram convidados a
No entanto, como ousa alguém sequer sugerir tal coisa? Como ousam
convidar-nos - nas nossas salas de estar, em frente à televisão - a
sentirmo-nos elevados por contemplar um assassínio ritualístico: o
assassínio de uma criança dependente à mão de um grupo de velhos
estúpidos, emproados, supersticiosos e ignorantes? Como ousam
convidar-nos a retirar algo de bom para nós na contemplação de um
acto imoral contra outra pessoa?
Um escândalo no ensino
O primeiro-ministro do meu país, Tony Blair, invocou a «diversidade»
quando, na Câmara dos Comuns, a deputada Jenny Tonge o desafiou a
justificar o subsídio governamental a uma escola do Nordeste de Inglaterra
que (caso quase único na Grã-Bretanha) ensina um criacionismo bíblico
literal. Blair respondeu que seria lamentável que considerações desse tipo
interferissem com o objectivo de alcançar «um sistema escolar tão
diversificado quanto possível». A escola em questão - Emmanuel College,
219
Nunca nenhum cientista sugeriu que uma criança fosse uma «mutação
química». O uso da expressão neste contexto é um disparate de quem é
ignorante e situa-se ao mesmo nível das declarações do «bispo» Wayne
Malcolm, líder da igreja Christian Life City, em Hackney, na zona leste de
Londres, o qual, de acordo com o Guardian de 18 de Abril de 2006, «refuta
as provas científicas da evolução». A interpretação que Malcolm faz das
provas que refuta pode ser avaliada por afirmações como esta: «É patente
que há uma ausência, no registo fóssil, de níveis intermédios de
desenvolvimento. Se uma rã se transformou num macaco, não devíamos ter
uma data de rãcacos?»
Bem, a ciência também não é o forte do senhor McQuoid, portanto, para
lhe fazer justiça, devemos, antes, ouvir o que tem para dizer o seu
responsável pela área da ciência, Stephen Layfield. A 21 de Setembro de
2001, o senhor Layfield deu uma conferência na Emmanuel College sobre
«O ensino da ciência: uma perspectiva bíblica». O texto da conferência foi
publicado num website cristão (www.christian.org.uk), mas já não é
possível encontrá-lo lá. O Christian Institute retirou o texto no dia seguinte
a eu ter chamado a atenção para ele através de um artigo que publiquei no
Daily Telegraph a 18 de Março de 2002, onde procedi à sua dissecação
crítica. É, porém, difícil apagar da Internet em definitivo o que quer que
222
levada à loucura.
Layfield prossegue pormenorizando a comparação entre ciência e
Escrituras, concluindo, em todos os casos onde parece existir conflito, que a
primazia deve ser dada a estas. Observando que a ciência da Terra faz agora
parte do programa nacional, Lay-field afirma: «Seria especialmente
prudente que todos os que ensinam este aspecto do curso se familiarizassem
com os artigos de Whitcomb e Morris sobre a geologia do Dilúvio.» Sim,
«geologia do Dilúvio» significa o que o leitor está a pensar que significa. É
da Arca de Noé que aqui se fala. A Arca de Noé! - quando as crianças
podiam estar a aprender o arrepiante facto de que África e a América do Sul
já estiveram unidas e se foram afastando à velocidade a que crescem as
unhas. Eis de novo Layfield (o responsável pela área da ciência), desta feita
a propósito de como o Dilúvio e a história de Noé constituem uma
explicação recente e sumária para fenómenos que, de acordo com a
verdadeira evidência geológica, levaram centenas de milhões de anos a
produzir:
205 Os bispos Hugh Latimer e Nicholas Ridley (1555) e o arcebispo Thomas Cranmer (1556),
conhecidos como «os mártires de Oxford», morreram na fogueira sob a acusação de heresia. (N. das T.)
206 Alusão à disputa entre as gentes de Liliput e Blefuscu na obra, de Jonathan Swift, Viagens de
Gulliver. (N. das T.)
213 O conteúdo do seguinte endereço electrónico parece ser real, embora de início eu suspeitasse de
que se tratava de um embuste satírico ao estilo de The Onion:
www.talk2action.org/story/2006/5/29/195855/959. Trata-se de um jogo de computador chamado Left
Behind: Eternal Forces («Abandonado: Forças Eternas» [A série Left Behind é uma saga narrativa
associada ao já aludido movimento Rapture – N. das T]). No seu excelente website «Pharyngula», P. Z.
Myers resume-o desta maneira: «Imagina que és um soldado de um grupo paramilitar cujo objectivo é
refazer os Estados Unidos segundo o modelo da teocracia e impor a sua perspectiva do domínio de
Cristo na Terra sobre todos os aspectos da vida... Tens uma missão – a um tempo religiosa e militar –
que é converter ou matar católicos, judeus, muçulmanos, budistas, gays e todos aqueles que defendam a
separação entre a Igreja e o Estado...» Consultar
http://select.nytimes.com/pharyngula/2006/05/gta_meet_lbef.php; para uma recensão crítica, consultar
http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F1071FFD3C550C718CDDAA0894DE404482.
214 http://www.av1611.org/hell.html.
215 Compare-se isto com a encantadora caridade cristã de Ann Coulter: «Desafio qualquer um dos
meus correligionários a que se atreva a dizer-me que não se ri com a ideia de Dawkins a arder no
inferno» (Coulter, 2006, 268).
216 N. Humphrey, «What shall we tell the children?», em Williams (1998); reeditado em Humphrey
(2002).
217 Esta é, hoje em dia, uma prática corrente na Grã-Bretanha. Um inspector escolar contou-me que,
em 2006, havia em Londres raparigas a serem mandadas para um «tio», em Bradford, para serem
sujeitas a excisão. As autoridades fecham os olhos com receio de serem consideradas racistas na
«comunidade».
218 http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/yoder.html.
222 http://www.telegraph.co.uk/opinion/mainjhtml?xml=/opinion/2002/03/18/do1801.xml.
224 O texto da nossa carta, escrita pelo bispo de Oxford, dizia o seguinte: Exmo. Sr. Primeiro-ministro,
Escrevemos-lhe enquanto grupo de cientistas e de bispos para exprimir a nossa preocupação com o
ensino das ciências no Emmanuel City Technology College, em Gateshead. A evolução é uma teoria
científica de grande poder explicativo, com capacidade para justificar uma grande variedade de
fenómenos em inúmeras disciplinas. Poderá ser aperfeiçoada, confirmada e mesmo alterada
radicalmente, atentas as necessárias provas. Não é, como defendem alguns porta-vozes da escola, uma
«posição de fé» ao nível do relato bíblico da criação, o qual tem uma função e um objectivo diferentes.
A questão vai para além daquilo que é presentemente ensinado numa escola. Há uma ansiedade
crescente acerca do que se há-de ensinar e como se há-de ensinar no âmbito da prevista nova geração
de escolas de fé. Acreditamos que os programas destas escolas, bem do Emmanuel City Technology
College, precisam de ser rigorosamente acompanhados, de modo a que as respectivas disciplinas de
ciências e de estudos religiosos sejam devidamente respeitadas.
Com os melhores cumprimentos
226 Para se ter uma ideia da dimensão de um erro destes, diga-se que ele é equivalente a acreditar que a
distância entre Nova Iorque e São Francisco é de sete metros.
228 O Oxford Dictionary situa a origem da palavra gay em 1935, no calão das prisões norte-
americanas. Em 1955, Peter Wildeblood, no seu famoso livro Against the Law, achou necessário definir
gay como «um eufemismo norte-americano para homossexual».
229 http://uepengland.com/forum/index.php?showtopic=184&mode=linear.
230 Em inglês há uma proximidade fónica entre ant e aunt, respectivamente formiga e tia. (N. das T.)
231 Shaheen escreveu três livros, cada um deles compilando as referências bíblicas encontradas nas
comédias, tragédias e peças históricas. O total de 1300 é referido em
http://www.shakespearefellowship.org/virtualclassroom/StritmatterShahe~.htm.
232 http://www.bibleliteracy.org/Secure/Documents/BibleLiteracyReport2005.pdf.
10
Uma lacuna muito necessária?
Haverá alguma coisa que nos toque mais a alma do que
espreitar uma galáxia distante por um telescópio de 100
polegadas, segurar na mão um fóssil com 100 milhões de anos
ou um utensílio de pedra com 500 000, contemplar de pé o
imenso abismo de espaço e tempo que é o Grand Canyon, ou
escutar um cientista que olhou cara a cara a criação do
universo e não pestanejou? É isso a profunda e sagrada
ciência.
Michael Shermer
Binker
Suponho que o Cristóvão não acreditava que o Leitão e o Ursinho Puff
falassem mesmo com ele. Mas seria Binker diferente?
Consolo
É tempo de abordar a questão do importante papel que Deus desempenha
em consolar-nos, bem como, no caso de ele não existir, do desafio
humanitário que será pôr alguma coisa no seu lugar. Muitas das pessoas que
admitem que provavelmente Deus não existe nem é necessário para a
moralidade, ainda voltam à carga com aquilo que geralmente consideram
um trunfo: a alegada necessidade psicológica ou emocional de um deus. Se
se tira a religião, perguntam com truculência, o que se coloca no seu lugar?
O que se oferece aos doentes terminais, aos enlutados que choram, às
Eleanor Rigbys solitárias que têm em Deus o seu único amigo?
A primeira coisa a dizer em resposta a isto é algo que não deveria precisar
de ser dito. O poder que a religião tem de consolar não a torna verdade.
Façamos, inclusivamente, uma enorme concessão: mesmo que se
demonstrasse de forma concludente que a crença na existência de Deus é
absolutamente essencial ao bem-estar psicológico e emocional do ser
humano; mesmo que os ateus não passassem todos de neuróticos
desesperados, dados ao suicídio por uma inexorável angústia cósmica –
nada disto constituiria o mais ínfimo grão de prova de que há verdade na
crença religiosa. Poderia ser uma prova de que é desejável as pessoas
convencerem-se a si próprias de que Deus existe, mesmo não existindo.
Como já referi, Dan Dennett, no livro Breaking the Spell, faz a distinção
entre crença em Deus e crença na crença, ou seja, a crença de que é
desejável acreditar, mesmo que a crença seja, ela própria, falsa: «Eu creio,
Senhor! Ajuda a minha incredulidade» (Marcos 9: 24). Os crentes são
incentivados a professar a crença, quer dela estejam convencidos, quer não.
É provável que, repetindo uma coisa vezes suficientes, nos consigamos
convencer da sua veracidade. Julgo que todos conhecemos pessoas que têm
apego à ideia da fé religiosa e que se ofendem quando ela é atacada, ainda
que admitam, com relutância, que elas próprias não a possuem. Fiquei
ligeiramente chocado ao descobrir um esplêndido exemplo no livro do meu
herói Peter Medawar The Limits of Science (Oxford University Press, 1984,
p. 96): «Eu lamento a minha descrença em Deus e nas respostas religiosas
em geral, pois acredito que, se descobríssemos boas razões científicas e
filosóficas para acreditar em Deus, isso proporcionaria satisfação e conforto
a muitas pessoas deles necessitadas.»
Desde que li a distinção de Dennett, tenho tido oportunidade de a utilizar
vezes sem conta. Não será exagero afirmar que a maioria dos ateus que
conheço disfarça o seu ateísmo por trás de uma fachada virtuosa. Não crêem
em nada de sobrenatural, no entanto conservam uma vaga susceptibilidade à
crença irracional. Acreditam na crença. É espantoso o número de pessoas
que parece não conseguirem distinguir a diferença entre «X é verdade» e «é
desejável as pessoas acreditarem que X é verdade». Ou talvez não se
deixem cair, propriamente, neste erro lógico, mas considerem tão-somente
que a verdade é insignificante quando comparada com os sentimentos
humanos. Não pretendo desvalorizar os sentimentos humanos, mas quando
conversamos, sejamos claros quanto àquilo de que estamos a falar:
sentimentos, ou verdade. Ambos podem ser importantes, mas não são a
mesma coisa.
Seja como for, a minha concessão hipotética foi um gesto descabido e
incorrecto. Não conheço provas de que os ateus revelem qualquer tendência
genérica para o abatimento e a angústia. Alguns ateus são felizes, outros são
extremamente infelizes. Do mesmo modo que alguns cristãos, judeus,
muçulmanos, hindus e budistas serão extremamente infelizes, outros serão
felizes. Pode ser que haja evidência estatística sobre a relação entre a
felicidade e a crença (ou descrença), mas duvido de que o eventual efeito
seja forte, quer num sentido, quer no outro. Acho mais interessante
perguntar se existe alguma boa razão para nos sentirmos deprimidos se
vivermos sem Deus. Pelo contrário, terminarei este livro defendendo que
dizer que se pode ter uma vida feliz e plena sem a religião sobrenatural
ainda é pouco. Antes disso, no entanto, tenho de analisar as pretensões da
religião quanto a proporcionar consolo.
Segundo o Shorter Oxford Dictionary, consolo é o alívio da dor ou do
sofrimento mental. Vou dividi-lo em dois tipos.
Acredito que quando morrer vou apodrecer e nada do meu ego irá
sobreviver. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharia de tremer de
medo ante a perspectiva da aniquilação. Apesar de tudo, a felicidade só
é verdadeiramente felicidade porque tem de ter um fim, do mesmo
modo que o pensamento ou o amor não valem menos por não serem
eternos. Muitos foram aqueles que pisaram o cadafalso com orgulho;
esse mesmo orgulho deveria, por certo, ensinar-nos a pensar
verdadeiramente no lugar que o homem ocupa no mundo. Mesmo que a
princípio as janelas franqueadas da ciência nos façam arrepiar, após o
calor caseiro e acolhedor dos tradicionais mitos humanizantes, ao fim e
ao cabo o ar fresco revigora, e os grandes espaços possuem um
esplendor único.
Colhi inspiração deste ensaio de Russell quando, por volta dos 16 anos, o
li na biblioteca da minha escola, mas tinha-o esquecido. É bem possível que
estivesse a prestar inconscientemente homenagem a Russell (bem como,
conscientemente a Darwin) quando, em 2003, escrevi no livro A Devil’s
Chaplain:
Há mais do que mera grandeza nesta visão da vida, por mais sombria e
fria que ela possa parecer a quem a contempla a coberto do manto
seguro da sua ignorância. Há algo de profundamente refrescante no
facto de olharmos de pé, e de rosto erguido, o vento forte e cortante do
entendimento: os «ventos que sopram pelos caminhos estelares», como
escreveu Yeats.
crente. Mas é precisamente por ser tão rara e inesperada que esta pequena
história nos prende a atenção e quase diverte – ao jeito daquele cartoon de
uma jovem completamente nua segurando uma faixa com os dizeres
«Façamos amor e não a guerra», e com um circunstante exclamando: «É a
isto que eu chamo sinceridade!» Por que motivo não dizem todos os cristãos
e muçulmanos algo parecido com o que disse o abade quando ouvem que
um amigo está a morrer? Quando um médico diz a uma mulher devota que
não lhe restam senão alguns meses de vida, por que razão não sorri ela em
emocionada antevisão, como se tivesse acabado de ganhar umas férias nas
Seychelles? «Nunca mais chega a hora!» Por que razão é que os amigos
crentes reunidos à cabeceira para a visitar não a sobrecarregam de
mensagens para os que já partiram? «Dá saudades ao tio Alberto quando o
vires...»
Por que motivo não falam as pessoas religiosas assim na presença dos que
estão à beira da morte? Será que não acreditam de facto nas coisas todas em
que presumem acreditar? Ou talvez acreditem, mas têm medo do processo
de morrer. E com razão, dado que a nossa espécie é a única a que não é
permitido ir ao veterinário para que, de forma indolor, lhe ponham fim ao
sofrimento. Mas, nesse caso, por que motivo é que a oposição mais ruidosa
à eutanásia e ao suicídio assistido vem das pessoas religiosas? No modelo
de morte à «abade de Ampleforth» e «férias nas Seicheles», não seria de
esperar que as pessoas religiosas fossem as menos inclinadas a agarrar-se
despudoradamente à vida? Contudo, é impressionante verificar que, se nos
cruzamos com alguém que seja apaixonadamente contra a eutanásia ou
contra o suicídio assistido, podemos apostar uma boa maquia em como
essas pessoas são religiosas. A razão oficial poderá ser a de que provocar a
morte é sempre pecado. Mas porquê considerar isso pecado se se acredita
sinceramente que se está, desse modo, a acelerar uma ida para o céu?
Em contraste com esta atitude, a minha posição relativamente ao suicídio
assistido assenta na observação de Mark Twain a que aludi atrás. Estar
morto não vai ser diferente de estar por nascer – serei tal e qual como era no
tempo de Guilherme, o Conquistador, ou dos dinossauros, ou das trilobites.
Não há nada a temer daí. Mas o processo de morrer, propriamente, poderá
bem ser, dependendo da sorte de cada um, doloroso e desagradável – o tipo
de experiência, enfim, contra o qual nos habituámos a ser protegidos através
de anestesia geral, como quando vamos tirar o apêndice. Se temos um
animal de estimação a morrer com dores, seremos condenados por
crueldade se não chamarmos o veterinário para lhe dar uma anestesia geral
de que já não acordará mais. Mas se o nosso médico nos prestar
exactamente o mesmo misericordioso serviço se estivermos a morrer com
dores, corre o risco de ser levado a tribunal sob a acusação de assassínio.
Quando eu estiver a morrer, gostava que a vida me fosse tirada enquanto
sob o efeito de uma anestesia geral, exactamente como se fosse um
apêndice doente. Mas não me será permitido tal privilégio porque tive o
azar de nascer Homo sapiens e não, por exemplo, Canis familiaris ou Felis
catus. Pelo menos assim será se entretanto não me mudar para algum sítio
mais esclarecido, como a Suíça, a Holanda ou o Oregon. Porque são tão
raros esses sítios esclarecidos? Principalmente por causa da influência da
religião.
Mas, dir-se-á, não existe uma grande diferença entre tirarem-nos o
apêndice e tirarem-nos a vida? Nem por isso; sobretudo para quem está
prestes a morrer. Ou para quem crê sinceramente que há vida depois da
morte. Para os que possuem essa crença, morrer é apenas uma transição de
uma vida para outra. Se a transição for dolorosa, porquê prescindir de
anestesia, quando também não se prescinde dela para tirar o apêndice?
Daqueles de nós que vêem a morte como um fim e não como uma transição
é que se poderia, francamente, esperar uma resistência à eutanásia ou ao
suicídio assistido. No entanto, nós é que somos a favor.236
antecâmara do Hades, para onde as almas vão se os seus pecados não são
suficientemente maus para merecerem o inferno, mas, por outro lado, ainda
precisam de alguma reciclagem e de uma purga antes de poderem ser
admitidas na zona livre de pecados que é o céu. Na época medieval, a
239
torrente constante de orações ditas ao longo dos séculos para remir os dias
de Wykeham no purgatório resume-se actualmente a duas orações por ano.
Só o coro continua cada vez mais pujante e a sua música é, de facto,
mágica. Até eu, enquanto membro da Fellowship, sinto uma ponta de culpa
pela confiança traída. À luz da mentalidade do seu tempo, o que Wykeham
fez foi o mesmo que seria, nos dias de hoje, um homem rico pagar uma
grande entrada em dinheiro a uma dessas empresas de criogenia que garante
congelar o corpo da pessoa e protegê-lo de terramotos, instabilidade social,
guerra nuclear e outros riscos, até um tempo futuro em que a ciência médica
tenha aprendido a descongelá-lo e a curar a doença de que ia morrer.
Estaremos nós, os responsáveis pelo New College, a faltar ao contrato com
o nosso fundador? Se assim é, estamos em boa companhia. Centenas de
benfeitores medievais morreram na crença de que os seus herdeiros, bem
pagos para tanto, rezariam pelas suas almas presas no purgatório. Não
consigo deixar de me perguntar a mim próprio que percentagem dos
tesouros artísticos e arquitectónicos da Europa medieval não terão
começado por ser pagamentos com os olhos postos na eternidade, em
legados entretanto traídos pelos respectivos depositários.
Mas o que verdadeiramente me fascina na doutrina do purgatório são as
provas com que os teólogos a fundamentam: provas tão espectacularmente
débeis que tornam ainda mais cómico o arrojo ligeiro com que são
afirmadas. Na Enciclopédia Católica, a entrada referente ao purgatório
contém uma secção chamada «provas». A evidência principal para a
existência do purgatório é a seguinte. Se os mortos fossem simplesmente
para o céu ou para o inferno com base nos pecados que cometeram na Terra,
não faria sentido rezar por eles. «Pois porquê rezar pelos mortos, se não
houver uma crença no poder da oração para proporcionar refrigério àqueles
que estavam excluídos do olhar de Deus.» E nós rezamos pelos mortos, não
é verdade? Portanto, o purgatório deve existir, caso contrário as nossas
orações não fariam sentido! QED. Este é bem um exemplo daquilo que, nas
mentes dos teólogos, passa por raciocínio lógico.
Esta gritante falta de lógica reflecte-se, a uma escala mais ampla, noutra
utilização comum do argumento do consolo. Tem de haver um Deus, diz
este argumento, porque se não houvesse a vida seria vazia, absurda, fútil,
uma absoluta ausência de significação. Será necessário salientar que a
lógica cai, desde logo, por terra? Talvez a vida seja mesmo vazia. Talvez as
nossas orações pelos mortos sejam mesmo desprovidas de sentido. Presumir
o contrário é presumir a verdade da própria conclusão que se procura
provar. O alegado silogismo é de uma circularidade transparente. A vida do
viúvo pode muito bem ser intolerável, estéril e vazia, mas não é por isso que
a esposa vai deixar de estar morta. Há qualquer coisa de infantil na
presunção de que é a terceiros (os pais, no caso das crianças, Deus, no caso
dos adultos) que cabe a responsabilidade de dar significado e um propósito
às nossas vidas. Não é um infantilismo diferente do daqueles que, quando
torcem o tornozelo, olham em volta à procura de alguém a quem processar.
Outrem há-de ser responsável pelo meu bem-estar e há-de arcar com as
culpas se eu me magoar. Será que por detrás da «necessidade» de um Deus
há um infantilismo idêntico? Voltamos, assim, ao Binker?
Pelo contrário, a visão verdadeiramente adulta consistirá em entender que
a nossa vida é tão significativa, tão plena e tão maravilhosa quanto nós
quisermos. E de facto podemos torná-la imensamente maravilhosa. Se a
ciência proporciona um consolo do tipo não-material, este prende-se
intimamente com o meu tópico final – a inspiração.
Inspiração
Esta é uma questão de gosto ou de opinião pessoal, o que tem a
implicação algo infeliz de que o método de argumentação a que tenho de
recorrer, neste caso, é retórico e não lógico. Já o fiz antes, tal como tantos
outros, incluindo – para me cingir apenas a alguns exemplos recentes – Carl
Sagan, em O Ponto Azul-Claro, O. Wilson, em Biophilia, Michael Shermer,
em The Soul of Science, e Paul Kurtz, em Affirmations. No livro
Decompondo o Arco-Íris, tentei transmitir a ideia da sorte que temos por
estarmos vivos, atendendo a que a imensa maioria das pessoas que
potencialmente podiam vir a ser geradas pela lotaria combinatória do ADN
nunca chegarão, efectivamente, a nascer. Para os que têm a sorte de estar
aqui, procurei visualizar a relativa brevidade da vida imaginando um foco
de luz fino como um laser, deslizando ao longo de uma gigantesca escala
temporal. Tudo quanto está para trás ou para a frente do foco encontra-se
envolto na escuridão do passado já morto ou na escuridão do futuro ainda
desconhecido. Temos uma sorte fabulosa por nos encontrarmos sob o foco.
Por muito breve que seja o tempo que nos cabe ao sol, se desperdiçarmos
um segundo que seja, ou se nos queixarmos de que ele é monótono ou
estéril ou (como faz a criança) enfadonho, não será isso uma insultuosa
demonstração de insensibilidade para com os muitos milhões de milhões a
quem nunca sequer será proporcionado viver? Como muitos ateus já
disseram, e melhor do que eu, o sabermos que só temos uma vida devia
torná-la ainda mais preciosa. A atitude ateia é, por isso mesmo, uma atitude
de afirmação e de promoção da vida, ao mesmo tempo que não se deixa
macular pela auto-ilusão, não toma os desejos por realidades, nem padece
da autocomiseração birrenta própria daqueles que acham que a vida lhes
deve alguma coisa. Emily Dickinson disse:
mais moléculas num copo de água do que copadas de água no mar.» Uma
vez que toda a água do planeta passa pelo mar no decorrer do seu ciclo
natural, o que daí parece advir é que, de cada vez que se bebe um copo de
água, são boas as probabilidades de que alguma coisa daquilo que se bebe
tenha passado pela bexiga de Oliver Cromwell. É claro que nem Cromwell
nem as bexigas têm nada de especial. Não acaba o leitor de inspirar um
átomo de azoto outrora expirado pelo terceiro iguanodonte a contar da
esquerda da cica mais alta? Não o faz feliz viver num mundo onde não só é
possível uma conjectura destas, como nos é dado o privilégio de
compreendermos o seu porquê? E de o explicar publicamente a outras
pessoas não como se fosse uma opinião ou uma crença nossa, mas como
algo que elas, uma vez que tenham compreendido o nosso raciocínio, se
sentirão compelidas a aceitar? Talvez seja este um aspecto daquilo que Carl
Sagan quis dizer quando explicou os seus motivos ao escrever Um Mundo
Infestado de Demónios: a Ciência como Uma Luz na Escuridão: «Não
explicar a ciência parece-me perverso. Quando se está apaixonado, apetece
contá-lo ao mundo. Este livro é uma declaração pessoal que reflecte a
minha relação amorosa com a ciência ao longo de toda uma vida.»
A evolução da vida complexa, para já não falar no próprio facto da sua
ocorrência num universo que obedece a leis da Física, é algo de
maravilhosamente surpreendente – ou sê-lo-ia, se não fosse a circunstância
de a surpresa ser uma emoção que só pode existir num cérebro que é, ele
mesmo, produto desse surpreendente processo. Há, então, uma acepção
antrópica em que a nossa existência não deveria ser surpreendente. Gostaria,
mesmo assim, de pensar que falo em nome dos meus parceiros humanos
quando insisto em que se trata de uma realidade desesperadamente
surpreendente.
Pensemos nisso um pouco. Num dado planeta, e possivelmente apenas
num só em todo o universo, algumas moléculas que normalmente não
formariam nada mais complicado do que um calhau, congregam-se em
pedaços de matéria do tamanho de calhaus e dotados de uma complexidade
tão espantosa que são capazes de correr, saltar, nadar, voar, ver, ouvir,
capturar e comer outros pedaços de complexidade igualmente animados; em
certos casos, capazes de pensar e sentir, e ainda de se apaixonar por outros
pedaços de matéria complexa. Agora compreendemos como é que o truque,
essencialmente, se processa, mas só desde 1859. Antes de 1859 tudo terá
parecido, efectivamente, muitíssimo estranho. Hoje, graças a Darwin, é só
muito estranho. Darwin pegou na janela da burca e franqueou-a de par em
par, deixando entrar uma corrente de compreensão cuja ofuscante novidade
e capacidade de elevar o espírito humano talvez não tivesse precedente – a
não ser porventura na descoberta coperniciana de que a Terra não era o
centro do universo.
«Explique-me», perguntou certa vez a um amigo o grande filósofo do
século XX Ludwig Wittgenstein, «por que razão as pessoas dizem sempre
que era natural o homem partir do princípio de que o Sol girava em torno da
Terra e não que era a Terra que rodava?» O amigo respondeu: «Bem,
evidentemente porque dá a sensação de que o Sol gira em torno da Terra.»
Ao que Wittgenstein replicou: «Bem, que sensação é que havia de dar se
parecesse que era a Terra que rodava?» Por vezes cito esta observação de
Wittgenstein em conferências, esperando que o público ria. Em vez disso, as
pessoas parecem ficar aturdidas e calam-se.
No mundo limitado em que os nossos cérebros evoluíram, os objectos
pequenos são mais passíveis de mobilidade do que os grandes, que, por sua
vez, são vistos como o pano de fundo de encontro ao qual o movimento se
verifica. À medida que o mundo vai girando, os objectos que se nos
afiguram grandes por estarem perto – as montanhas, as árvores, os edifícios
e o próprio solo – movem-se numa sincronia exacta com os demais objectos
e com o observador, por relação com corpos celestes como o Sol e as
estrelas. Os cérebros que a evolução nos legou projectam nestes – e não nas
montanhas e nas árvores que se encontram em primeiro plano – a ilusão do
movimento.
Quero de seguida aprofundar o ponto que mencionei anteriormente, isto é,
a noção de que o modo como vemos o mundo, e a razão pela qual
consideramos certas coisas intuitivamente fáceis de compreender e outras
difíceis, é que os nossos cérebros são, eles próprios, órgãos resultantes de
uma evolução: verdadeiros computadores de bordo que foram evoluindo
para nos ajudarem a sobreviver num mundo – vou usar a designação de
mundo mediano – onde os objectos que eram importantes para a nossa
sobrevivência não eram nem muito grandes, nem muito pequenos; um
mundo onde as coisas ou estavam paradas ou se moviam lentamente em
comparação com a velocidade da luz, e onde o mais seguro era chamar
impossível ao improvável. A janela da nossa burca mental é estreita porque
não precisava de ser mais larga para ajudar os nossos antepassados a
sobreviverem.
A ciência ensinou-nos, à total revelia da intuição gerada pelo processo
evolutivo, que coisas aparentemente sólidas, como sejam cristais e pedras,
são na realidade compostas quase totalmente por espaço vazio. A ilustração
mais corrente representa o núcleo de um átomo como uma mosca no centro
de um estádio desportivo. O átomo seguinte encontra-se logo do lado de
fora do estádio. Assim, a pedra mais dura, mais sólida e mais densa é
«realmente» quase só espaço vazio, apenas interrompido por minúsculas
partículas, tão afastadas entre si que praticamente nem contam. Sendo
assim, por que motivo dão as pedras a impressão de serem sólidas, duras e
impenetráveis?
Não vou tentar imaginar como responderia Wittgenstein a esta questão.
Mas enquanto biólogo da evolução, eu responderia da seguinte maneira. Os
nossos cérebros evoluíram no sentido de ajudar os nossos corpos a
situarem-se no mundo, à escala em que esses corpos funcionam. A nossa
evolução não foi no sentido de nos orientarmos no mundo dos átomos. Se
assim fosse, é provável que os nossos cérebros tivessem das pedras
exactamente essa percepção de espaço preenchido pelo vazio. As pedras
parecem duras e impenetráveis ao tacto porque as nossas mãos não as
conseguem penetrar e a razão pela qual não conseguem fazer isso não tem a
ver com as dimensões nem o afastamento das partículas que constituem a
matéria, mas antes com os campos de força associados a essas partículas
muito afastadas que compõem a matéria «sólida». Aos nossos cérebros
convém construir noções como solidez e impenetrabilidade, porque elas
ajudam-nos a orientar os nossos corpos através de um mundo em que os
objectos – que dizemos sólidos – não podem ocupar o espaço uns dos
outros.
Agora uma pequena digressão cómica – de The Men Who Stare at Goats,
de Jon Ronson:
234 Recorrendo à memória, atribuo este argumento a Derek Parfitt, filósofo de Oxford. Não pesquisei
as suas origens em profundidade, porque apenas o utilizo aqui a título de exemplo de consolo
filosófico.
236 Um estudo sobre as atitudes em relação à morte entre ateus norte-americanos apurou o seguinte: 50
por cento queriam um serviço fúnebre evocativo das suas vidas; 99 por cento apoiavam o suicídio
clinicamente assistido para as pessoas que o desejassem e 75 por cento desejavam-no para si próprias;
100 por cento não queriam qualquer contacto com pessoal hospitalar que promovesse a religião. Ver o
site http://nursestoner.com/myresearch.html.
237 Um amigo australiano cunhou uma expressão magnífica para descrever a tendência das pessoas
para se tornarem mais religiosas na velhice. Deve usar-se pronúncia australiana, com entoação
ascendente no final, como se fosse uma pergunta: «Cramming for the final?» («A marrar para o
exame?»)
238 Ilha de Nova Iorque e um dos principais pontos de entrada de imigrantes nos EUA, entre a última
década do século XIX e meados do século XX. (N. das T.)
239 Não se deve confundir o purgatório com o limbo, alegado destino dos bebés que morriam sem
terem sido baptizados. E os fetos abortados? E os blastocistos? Com uma confiança presumida, o Papa
Bento XVI aboliu, há pouco, o Limbo.
Significa isso que todos os bebés que lá estiveram a estiolar estes séculos todos vão agora, de repente,
voar para o céu? Ou será que ficam lá e só os recém-chegados escapam ao limbo? E será que os papas
anteriores estiveram enganados, apesar da sua infalibilidade? É este o tipo de coisa que supostamente
todos devemos «respeitar».
241 «O Jardim Ultravioleta» foi o título de uma das minhas cinco conferências de Natal da Royal
Institution, originariamente transmitidas pela BBC sob o título genérico «Crescer no Universo». A série
de cinco conferências irá estar integralmente disponível em DVD em www.richarddawkins.net/home.
242 Costuma atribuir-se a Niels Bohr um comentário idêntico: «Quem não se sente chocado pela teoria
quântica é porque não a compreendeu.»
244 Algumas pessoas poderão contestar a verdade literal da declaração de Grand, por exemplo, no caso
das moléculas ósseas. Mas o espírito da afirmação é, sem dúvida, válido. Temos mais de onda do que
de «coisa» material e estática.
Anexo
Tenciono manter uma versão actualizada desta lista no website da Richard Dawkins Foundation
for Reason and Science: www.richarddawkins.net. As minhas desculpas pelo facto de a lista se
restringir, em grande parte, aos países de língua inglesa.
EUA
American Atheists
PO Box 5733, Parsippany, NJ 07054-6733
Voice mail: 1-908-276-7300
Faxe: 1-908-276-7402
E-mail: info@atheists.org
www.atheists.org
The Brights
PO Box 163418, Sacramento, CA 95816
E-mail: thebrights@the-brights.net
www.the-brights.net
Internet Infidels
PO Box 142, Colorado Springs, Co 80901-0142
Faxe: (877) 5015113
www.infidels.org
Grã-Bretanha
British Humanist Association
1 Gower Street, London WC1E 6HD
Telefone: 020 7079 3580
Faxe: 020 7079 3588
E-mail: info@humanism.org.uk
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Humanist Association of Canada
PO BOX 8752, Station T, Ottawa, Ontario, K1G 3J1
Telefone: 877-HUMANS-1
Faxe: (613) 7394801
E-mail: HAC@Humanists.ca
http://hac.humanists.net/
Austrália
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Nova Zelândia
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