Kojiki (古事記)
Kojiki (古事記)
Kojiki (古事記)
INSTITUTO DE LETRAS
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
BACHARELADO EM LETRAS – TRADUÇÃO PORTUGUÊS E JAPONÊS
PORTO ALEGRE
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
BACHARELADO EM LETRAS – TRADUTOR PORTUGUÊS E JAPONÊS
Porto Alegre
2021
AGRADECIMENTOS
Aos amigos Gabriel, João e Palavro, pela inspiração nas conversas e nos trabalhos.
Aos Traduçanderson, pelos bons fins de semana ouvindo falar de outros textos.
Neste trabalho, apresento a minha tradução do primeiro tomo do Kojiki, obra japonesa
entregue à imperatriz Genmei em 712 pelo cortesão Ô no Yasumaro, também discutindo
algumas das minhas decisões tradutórias relativas à estruturação visual do texto em português
brasileiro. Para justificar essas escolhas, exponho alguns conceitos próprios da ideologia
absolutista associada à compilação da obra entre os séculos VII e VIII, tentando identificar
aspectos formais da escrita de Yasumaro que revelem ou representem a importância dessas
ideias: primeiramente, falo da relação entre a noção imperial de tempo linear, a cosmologia
verticalizada do xintoísmo antigo e o sentido de leitura da escrita sino-japonesa; depois,
abordo possíveis influências do conceito religioso de kotodama (言霊), ou alma das palavras,
sobre o funcionamento das letras chinesas no Kojiki, que ora são tratadas como fonogramas,
ora como logogramas pelo seu redator; e ainda comento a agência das marcas de oralidade
movimentadas por Yasumaro na obra sobre a identidade estrutural dos seus catálogos
genealógicos. Os ensaios de Flusser (2017) sobre design e comunicação dão suporte às
reflexões sobre tempo, espaço e texto, também servindo para descrever com maior precisão a
minha tentativa de emular a linearidade vertical da escrita japonesa no texto em português.
Uma segunda referência teórica importante seria a poética concretista de Campos, Campos e
Pignatari (1975), cujas estratégias de funcionalização do espaço tipográfico são acionadas
para explicar o meu método de apresentação dos catálogos no Kojiki, a que também
importariam as ideias desse autores sobre “leituras ideogramáticas” — bem como as noções
flusserianas sobre o funcionamento dos chamados textos bidimensionais. Idealmente, a
tradução resultante dessas experimentações se apresentará ao leitor moderno do Kojiki com
um maior dinamismo comunicacional do que seria possível por meio da formatação prosaica
e convencional do texto, elencando estratégias visuais para remontar em português brasileiro
as impressões formais deixadas sobre a obra pela sua necessidade original de propagandear
um tempo, um espaço e uma oralidade sagrada que fortalecessem o poder dos imperadores
sobre a nobreza de Yamato.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 7
2 VILÉM FLUSSER ................................................................................................................ 10
1 INTRODUÇÃO
quase que exclusivamente em discussões sobre história e religião xintoísta no Japão antigo.
Dito isso, a chegada de Flusser (2017) e de Campos, Campos e Pignatari (1975) às
investigações foi de utilidade insubstituível para me esclarecer algumas das minhas próprias
escolhas e os seus possíveis efeitos estéticos sobre a tradução.
O capítulo “Vilém Flusser” desta introdução teórica diz respeito a um par de linhas
imaginárias supostamente relevantes para os projetos de apoio à soberania imperial de que o
Kojiki participava: a primeira delas se referiria ao tempo histórico eternamente linear proposto
pela corte imperial como modelo para descrever a sua posição na hierarquia do reino de
Yamato — para sempre sobre o trono, desde a era dos deuses; e a outra linha seria aquela
percebida entre os reinos do céu e da terra, também definidora das relações hierárquicas entre
os imperadores (filhos do céu) e os clãs de origem terrena. Meu intuito interpretativo será o de
associar essas geometrias temporal e espacial com aspectos de coesão e coerência
manipulados por Yasumaro para narrar a mitologia do primeiro tomo, que reúne em si mitos
de diversas regiões do território insular e os arranja na forma de uma história linearizada e
pretensamente funcional; e também proporei uma significância na correspondência
geométrica entre a linearidade do tempo, a verticalidade descendente do espaço e a orientação
linear, vertical e descendente da escrita japonesa. A conclusão do capítulo sugerirá decisões
tradutórias interessadas em representar no texto brasileiro alguma parte dessa relação tempo-
espaço-linha-texto.
No capítulo seguinte, intitulado “Campos, Campos e Pignatari (e Flusser)” tentarei
uma apresentação sobre o funcionamento do complexo sistema de escrita usado no Kojiki,
relacionando-o a mais um conceito supostamente central à antiguidade japonesa — o
kotodama (言霊), ou a alma das palavras, que preveria uma intraduzibilidade absoluta para
as expressões sagradas e encantatórias da religião xintoísta — que me proponho a traduzir por
meio da incorporação de caracteres chineses no texto de chegada. Depois, discuto um pouco
sobre o trabalho de variação rítmica proposto por Yasumaro como emulação escrita de
poéticas orais, relacionando-o à identidade estrutural dos catálogos genealógicos apresentados
ao longo do primeiro tomo. Arremato essas poucas páginas de desenvolvimento teórico
tentando explicar, com o intermédio das teorias concretistas e dos ensaios flusserianos, as
minhas escolhas sobre como traduzir oralidade em visualidade para melhor retratar
formalmente esses elementos contextuais e motivadores da escritura do Kojiki.
A minha tradução parte antes da edição publicada em 1998 pela editora Shôgakukan
como primeiro volume da série “Obras Completas da Literatura Clássica Japonesa” (日本古
9
典文学全集, Nihon Koten Bungaku Zenshû), em que o Kojiki aparece na sua versão original e
traduzido para os japoneses clássico e moderno por Kônoshi Takamitsu. Por ainda não
conhecer formalmente a gramática da língua antiga, e de modo algum sendo proficiente nas
suas duas outras variantes, também consultei com bastante frequênia traduções da obra para o
português, com Mietto (1996), e para o inglês, com Chamberlain (1932), Philippi (1968) e
Heldt (2014). Na tarefa de traduzir os antropônimos e topônimos do texto, vali-me das notas e
dos glossários disponibilizados por todos esses tradutores, bem como daqueles apresentados
na edição de Nishimiya (1979).
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2 VILÉM FLUSSER
2.1 Linearidade
Segundo Kato (2012), a China antiga percebia o tempo como uma circunferência e
propunha que a história política avançava em ciclos de aproximadamente quinhentos anos.
Cada revolução da roda do tempo seria inaugurada pelo surgimento de uma nova liderança
política exemplar, que se comportasse de acordo com os princípios de uma ética humanista e
oposta à tirania violenta. No mais das vezes, esses primeiros líderes alcançariam o seu
protagonismo histórico por meio da fundação de uma nova dinastia, cuja prosperidade
dependeria da sua contínua adequação aos ideais da boa governança, aos preceitos do
“caminho real”; mas as teorias clássicas também previam a tendência das linhagens
monárquicas à gradativa decadência moral, e a sucessão dos ciclos históricos seria justamente
caracterizada por uma eterna alternância entre a prosperidade e o declínio dos soberanos. De
acordo com Norden (2018), a filosofia chinesa clássica entendia essa rotatividade do poder
como obra de dois agentes principais: o Céu e o povo. Quando o primeiro representante de
uma dinastia ascendia ao trono, a legitimidade do seu reinado seria assegurada por um
mandato celeste (天命), inicialmente conferido com base na alta virtude (德) do mandatário
fundador, mas automaticamente herdado pelos seus descendentes até que algum deles
demonstrasse sinais excessivos de depravação. Nesse caso, as queixas do povo sobre a sua
tirania seriam ouvidas pelo Céu, que poderia então depor a família real em questão,
transferindo o seu mandato para outra liderança inaugural de virtude maior. No Japão, a roda
do tempo chinesa seria redesenhada, reprojetada, conformada aos interesses da dinastia
Yamato.
Para Naoki (1993), as reformas políticas implementadas em Yamato ao fim do século
VII seriam majoritariamente voltadas ao estabelecimento de um estado forte e despoticamente
comandado pela casa imperial. Inspirando-se nos métodos de controle praticados pelas
potências continentais de Táng e Silla, o primeiro líder japonês a trabalhar com vistas a essas
metas seria o imperador Tenmu (r. 673–686), que alcançaria o estatuto de mandante absoluto
por meio de três principais estratégias: organizar as lideranças regionais dos clãs numa força
militar subordinada ao trono, hierarquizando-a de modo a privilegiar parentes e aliados da
dinastia Yamato; desenvolver uma burocracia à moda chinesa, também tendenciosa na sua
distribuição de cargos administrativos; e teocratizar o poder imperial. No exercício desta
última iniciativa, além de patrocinar os maiores templos budistas do reino, a corte japonesa
forjaria um amplo sistema de culto aos deuses xintoístas, cujo sumo sacerdote seria o próprio
11
imperador. Além disso, nenhuma lei promulgada durante a regência de Tenmu prescreveria
limites à sua autoridade sobre assuntos seculares ou sagrados, e os documentos oficiais por
ele assinados chegariam até mesmo a designá-lo como um deus manifesto ( 現 御 神 ) e
descendente direto da mais importante deidade do novo panteão — a deusa do sol, Amaterasu.
Conforme a leitura de Henshall (2004), os argumentos teocráticos levantados pelo
imperador japonês para alegar o seu direito à soberania absoluta promoveriam relevantes
alterações no conceito de mandato celeste, eventualmente importado às ilhas como artefato
das tecnologias continentais. Na sua interpretação das teorias chinesas, os líderes de Yamato
preservariam a ordem de transmissão hereditária do mandato, mas rejeitariam a possibilidade
de serem destronados pela vontade popular: o sangue divino de Amaterasu justificaria
incondicionalmente o acesso da sua estirpe ao poder. Por consequência imediata dessas
reformulações, a ciclicidade da história política estrangeira aquietaria suas ameaças ao
comando permanente da dinastia Yamato, e o tempo dos imperadores japoneses passaria a
apresentar-se em forma de linha. Tal como é descrito por Kato (2012), o Kojiki parece lançar
mão desses preceitos de historiografia domesticada para narrar as crônicas imperiais,
representando o tempo como uma reta infinitamente extensa e sem ponto de partida, em que a
lei de Amaterasu ordenaria o mundo desde uma antiquíssima era dos deuses (神代). Aqui, o
argumento de autoridade levantado pelo texto se embasaria nas associações clássicas entre a
longevidade das dinastias sino-coreanas e a virtude preservada de geração a geração pelos
seus representantes. Segundo Hardacre (2017), uma segunda missão da obra seria incorporar
as genealogias de outros clãs poderosos à história imperial, desvendando as relações antigas
de parentesco e amizade entre os seus deuses tutelares e Amaterasu, que serviriam como
anúncio ou justificativa às relações de poder contemporâneas à corte de Tenmu.
De acordo com Matsumae (1993), a mitologia apresentada pelo Kojiki não seria fruto
de um processo orgânico de evolução da fé xintoísta ao longo de uma extensa antiguidade,
mas ferramenta projetada e conscientemente construída entre os séculos VI e VII pela corte de
Yamato com vistas à expansão da sua influência sobre as lideranças regionais do Japão.
Muitos dos deuses, lendas, ritos e relíquias propagandeados por Tenmu como símbolos de
uma eterna autoridade imperial seriam transplantes menos que bicentenários à religião
palaciana, recentemente apropriados de comunidades provinciais: nem o mito de criação das
ilhas japonesas por Izanagi e Izanami, nem aquele em que os deuses celestes descem à terra
para governá-la, nem Amaterasu eram nativos da cultura imperial. As origens diversas das
tradições extraviadas pelos Yamato requereriam bastante engenho para ser amalgamadas num
12
sistema de histórias minimamente harmonioso, que fosse mesmo utilizável para enaltecer a
soberania do imperador sobre os clãs japoneses, tirando destes os seus maiores ícones de
autoridade sacra e os reformando em tesouros do trono. De modo geral, como indica Hardacre
(2017), mitos primeiramente guardados por famílias aliadas à dinastia imperial ainda
mencionariam os seus antigos mestres respeitosamente, destacando o seu bom serviço aos
líderes maiores do reino; mas aquelas narrativas raptadas de povos historicamente resistentes
à expansão de Yamato passariam a retratar as suas deidades locais como personagens de
índole questionável ou excessivamente agressiva, como seria o caso de Susanoo e Ôkuninushi,
originários da poderosíssima região de Izumo, uma das últimas a ser dominada. Ao fim do
século VII, o Kojiki seria encomendado para decidir uma versão oficial para essa nova
mitologia xintoísta, ainda em processo de negociação com as famílias de maior influência na
corte, que exigiriam posições de destaque na narrativa registrada pelas crônicas imperiais.
Adicionalmente, o compilador da obra deveria arcar com a dificuldade de organizar esse
heterogêneo conjunto de histórias numa linha do tempo que deslizasse confortável e
convincentemente desde o nascimento das ilhas japonesas até a fundação da dinastia Yamato.
Conforme entende Heldt (2014), a cultura palaciana em que o Kojiki seria redigido
ainda percebia a oralidade como maior guardiã das verdades antigas, especialmente no que
dizia respeito aos assuntos da fé xintoísta, pouco associada então à recente tecnologia das
letras chinesas. Sem deixar de percebê-lo, o cortesão Ô no Yasumaro experimentaria emular
na sua escrita alguns traços de discurso oral, idealmente conferindo à obra um pouco mais de
autoridade no seu tratamento de assuntos ancestrais. Com isso em mente, o redator se
inspiraria em técnicas budistas de recitação e leitura oralizada, que ensinariam ao Kojiki um
seleto número de conjunções a serem empregadas numa larga variedade de ambientes. O uso
sistemático de expressões como depois (次), então (故), logo (即), nisso (邇) e aqui (是) daria
à obra de Yasumaro um tom de sumidade semelhante ao da retórica dos monges,
conquistando para si alguma prova daquele respeito comumente dedicado às tradições orais.
No exercício da sua grande versatilidade funcional, as conjunções operadas por Yasumaro
alcançariam altíssimos índices de recorrência, marca de estilo ao mesmo tempo originária e
remetente à voz falada. Essa tendência às repetições também se faria presente no âmbito de
outras classes gramaticais, não contribuintes diretamente à coesão do texto, mas empenhadas
em tratar das suas difíceis incoerências.
Segundo Wittkamp (2018), o emprego rigorosamente calculado de certas palavras-
chave seria um dos recursos mais utilizados por Yasumaro para arranjar os diversos episódios
do Kojiki num texto coerente. Trazendo a momentos distintos da obra expressões com
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然者、吾与汝、行廻逢是天之御柱而、為美斗能麻具波比。
困生此子、美蕃登見炙而病臥在。
Izanagi até o reino de Yomi para reaver a companhia da esposa e trazê-la de volta aos vivos,
objetivos que ele abandona prontamente ao perceber o corpo da falecida já em processo de
decomposição. Apavorado, o deus dispara em fuga do submundo e permanentemente
bloqueia a ladeira que lhe servia de entrada com um imenso pedregulho, enfim divorciando-se
de Izanami, desde então reconhecida como rainha dos mortos. Desse modo, a reiteração do
verbo fusagu não só provocaria comparações contrastivas entre os seus dois complementos
diretos, respectivamente associados à origem da vida e ao derradeiro destino dos mortais, mas
também ressaltaria outra seção contínua do texto, agora referente à ambivalente posição de
Izanami no panteão xintoísta — de que ela alternadamente participaria como Mãe e deusa da
Morte.
故、以比吾身成余処、刺塞汝身不合処而、以為生成国土。
então, usando a parte que sobra do meu corpo, podemos preencher a parte que falta
do teu corpo para gerarmos os reinos.
最後、其妹伊耶那美命、身自追来焉。爾、千引石引塞其黄泉比良坂
motomo nochi ni, sono imo Izanami-no-mikoto, mizukara oi-kitsu. shikakushite, chi-
biki-no-iwa wo sono yomo-tsu-hira-saka ni hiki-fusagi [...]
nisso, trazendo puxada uma rocha de mil pesos, o mandatário do convite bloqueou a
ladeira baixa da fonte amarela.
sobre o cadáver da sua esposa e foge, sendo perseguido por toda parte (敷) até fechar atrás de
si a entrada para o submundo; depois de que ele vai a uma angra (小門) para se lavar (洗) das
impurezas contraídas durante a sua expedição à terra do mortos.
Conforme Matsumae (1993), a ideia de tsumi (罪) teria importância fulcral para a
doutrina xintoísta, sendo comumente comparada à noção cristã de pecado, mas indicativa de
atos poluentes e disruptivos das ordens cósmica e social. O contato direto com a morte, com o
sangue e com a imundície seriam fontes exemplares de tsumi, e todos que praticassem ofensas
como essas deveriam neutralizá-las por meio de rituais purificatórios como o próprio misogi
(禊祓), em que as máculas pegadas ao corpo seriam lavadas em água sagrada. Os mitos de
Izanagi e Izanami acima resumidos estabeleceriam as duas divindades como arquétipos da
oposição tsumi/pureza, que considero paradigmática às comparações sugeridas por Yasumaro
na fala de Ôkuninushi à lebre. Nesse modelo de análise, as expressões amarelo/rolar/toda
parte e angra/lavar disputariam as possíveis afinidades do jovem mestre de Izumo com as
atitudes poluentes e purificantes de Izanami e Izanagi, resultando na identificação de
Ôkuninushi como um deus de posicionamento propriamente ambíguo entre esse par de forças.
Não me aventuro aqui a ensaiar sem mais apoio os possíveis sentidos ou motivos para essa
nebulosa caracterização de Ôkuninushi, mas deixo apontada essa aparente importância das
suas instruções à lebre de Inaba para associar a sua presença no texto às de Izanagi e Izanami,
em mais uma difícil costura experimentada por Yasumaro com vistas a homogeneizar o
conjunto de tradições à sua disposição para compilar as novas crônicas imperiais.
今急往此水門、以水洗汝身、即取其水門之蒲黄、敷散而、輾転其上者、汝
身、如本膚必差。
vai agora mesmo à foz, lava o teu corpo com água doce, logo pegando o amarelo
das taboas, para esparralhá-lo por toda parte, e deitar rolando sobre ele.
2.2 Verticalidade
importantes a esses objetivos seriam a adoção de uma deidade solar como ancestral dos
imperadores e a apropriação de certos mitos regionais, que nos salões palacianos contariam
sobre como a fundação da dinastia Yamato teria acontecido pela descida de deuses celestes ao
Japão.
Conforme avalia Kônoshi (1998), um dos episódios mais atentos no Kojiki à
divulgação desse ideal de reverência perante o céu seria justamente centrado na figura de
Amaterasu e na sua centralidade para a manutenção da ordem natural aos planos celeste e
terreno. Aqui me refiro à história em que a deusa solar é ultrajada por comportamentos
aberrantes e profanadores exercidos pelo seu irmão mais novo, Susanoo, e decide trancafiar-
se numa gruta isolada de Takamanohara, inevitavelmente condenando o universo à escuridão
e ao caos até que as demais deidades benignas que habitavam o plano superior a
convencessem a retornar por meio de uma engenhosa série de rituais. As tenebrosas
consequências do sumiço de Amaterasu seriam representadas por um par de orações
justapostas e aparentemente preparadas por Yasumaro para funcionarem em paralelismo,
emulando na forma do texto a relação indissociável entre os acontecimentos do céu e da terra
— ou “o alto prado celeste” e “o reino central dos prados de caniço” respectivamente —
justificada pela existência da deusa-sol como princípio universal e ordenador de ambos os
reinos.
爾、高天原皆暗、葦原中国悉闇。
nisso, escureceu por todo o alto prado celeste, e escureceu por completo o reino
central dos prados de caniço.
Se importava tanto ao Kojiki afirmar a autoridade imperial por meio de um texto que
incorporasse à sua forma os ideais de uma história linear e de uma hierarquia cósmica vertical
e descendente; e se esses meios seriam executados por técnicas de fortalecimento a coesão e
coerência textuais particularmente interessadas em utilizar diversos tipos de reiterações
vocabulares e de paralelismos para se tornarem efetivas; meu plano para traduzir o Kojiki
pensaria como destacar esses últimos recursos para representar formalmente a relação tempo-
linha-espaço em português brasileiro com vistas a facilitar o retrato das inquietudes imperiais
que aparentemente modelaram o projeto da obra. Depois de algum tempo experimentando
com a tradução, pensei que organizá-la em versos poderia demonstrar melhor as suas
primeiras intenções verticalizantes, agilizando a leitura horizontal do texto de modo a talvez
gerar a impressão de alguma gravidade entre o topo e o pé da página. Mais etapas de trabalho
seriam necessárias para associar essa verticalização à cosmologia politizada pela corte de
Yamato, e recursos formais semelhantes aos utilizados pelos nossos poetas concretistas me
seriam bastante úteis para alcançar esse objetivo.
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3.1 Verbo-fato
Pensando nos termos usados por Frellesvig (2010), o alfabeto românico seria um
sistema de escrita fonográfico, ou seja, caracterizado por representar a gramática das línguas
que se escrevem nele com base nos seus fonemas, ou seja, nas unidades sonoras que usamos
para distinguir as nossas palavras entre si — o que diferencia [v]aca de [f]aca é a mudança de
um único som. Do jeito como escrevemos o português brasileiro, nossas letras costumam
equivaler a um único fonema: um [v] nos evoca o som que fazemos ao aproximar nosso lábio
inferior dos dentes superiores, deixando uma fina corrente de ar escapar pelo espaço entre eles
enquanto vibramos nossas cordas vocais; e o [f] é a mesma coisa, mas sem vibração nenhuma.
Assim sendo, para escrever uma sílaba composta por mais de um som (como a sílaba [va],
que junta em si um som consoante e um som vogal), precisamos de mais de uma letra; mas
esse não é o caso para todos os sistemas de escrita fonográficos. A fonografia permite que
textos sejam recitados sem serem compreendidos: um brasileiro monolíngue não teria
problema algum em pronunciar corretamente o vocábulo amador escrito num texto argentino,
mesmo que ele tenha sentidos completamente diferentes em português e espanhol. Operando
de outra maneira, os ideogramas chineses seriam um exemplo de escrita logográfica, ou seja,
caracterizada por representar a gramática das línguas que se escrevem nele com base nos seus
morfemas e nas suas palavras — ou seja, cada letra chinesa corresponde a uma unidade de
sentido, e não de som. Em casos de homofonia, essa lógica causa efeitos interessantes: no
dialeto mandarim, as palavras ser, coisa, geração, mercado, estilo e soldado são todas
homônimas e igualmente pronunciadas pela sílaba [shì], mas a escrita chinesa as diferencia
com base nos seus significados, grafando-as respectivamente como 是 , 事, 世, 市, 式 e 士.
Contrariamente à fonografia, a logografia permite que textos sejam compreendidos sem que
os seus sons nativos sejam reconhecidos: um japonês monolíngue não teria problemas em
identificar num texto chinês o sentido das letras recém listadas, mas as pronunciaria
respectivamente como [ko.re], [ko.to], [yo], [i.ti], [shi.ki] e [shi]. O mais interessante é
perceber que nenhuma ortografia é puramente fonográfica ou logográfica. Apesar da sua
preferência pela logografia, a escrita chinesa tem importantes elementos fonográficos,
exemplarmente perceptíveis pelas semelhanças visuais entre as letras de 時 [shí], 詩 [shī] e 侍
[shì], em que o componente gráfico 寺 é constante e referente à proximidade sonora das três
palavras, apesar das suas diferenças semânticas. Ao mesmo tempo, a ortografia brasileira
também tem um pouco de logografia dentro de si, como nos casos em que escrevemos um
20
mesmo arranjo de sons como seção, sessão e cessão — para diferenciar os seus significados,
e não a sua identidade acústica. Esses pontos de contato entre os dois tipos de escrita
poderiam até mesmo servir para adaptar logografias a necessidades fonográficas
eventualmente percebidas por uma comunidade letrada, bem como aconteceria no processo de
redação do Kojiki.
No século VIII, os silabários japoneses ainda não tinham sido inventados, e a escrita
utilizada por Yasumaro era, portanto, inteiramente baseada nos caracteres chineses. Em geral,
os documentos oficiais da corte antiga eram escritos não só pelas letras, mas também na
língua chinesa, visto que a logografia dos ideogramas se acomodava muito melhor às
necessidades gramaticais do chinês que às do japonês: apesar da sua grande versatilidade para
traduzir os significados nucleares de palavras estrangeiras, a escrita usada pelas potências
continentais não tinha recursos capazes de confortavelmente representar as diversas
conjugações verbais e flexões nominais da língua japonesa. Os reinos coreanos, que sofriam
de dificuldades ortográficas semelhantes, ensinariam aos japoneses métodos para adaptar as
letras chinesas à fonografia, permitindo uma maior liberdade na redação de textos que
precisassem ser grafados na gramática insular. Em termos gerais, a tática para fonografar com
logogramas se baseava em ignorar o significado associado aos ideogramas, considerando
somente a sua pronúncia em chinês, que tinha a praticidade de ser regularmente
monossilábica — ou seja, o conjunto das letras chinesas era transformado num difícil
silabário. Tratava-se ainda de um recurso bastante instável e complexo na sua decodificação,
mas seria o sistema utilizado por Yasumaro para redigir o Kojiki. No seu prefácio à obra, o
compilador faz um breve comentários sobre as dificuldades de escrever um texto em que o
mesmo sistema de grafos precisa constantemente alternar entre as suas funções “japonesas”
(logográficas) e “chinesas” (fonográficas):
Mas que tipo de palavra seria tão difícil de traduzir no “estilo japonês”, na logografia
dos ideogramas? Uma hipótese é levantada Keene (1999) na sua apresentação do Kojiki: no
projeto textual de Yasumaro, a escrita fonográfica serviria para grafar com máxima precisão
os nomes dos deuses e os versos das tantas canções sagradas e dos encantamentos inclusos na
obra. Aqui estaria manifesto um outro conceito de grande importância para a vida religiosa e
21
邇、天神之命以、布斗麻邇爾卜相而詔之、困女先言而、不良。亦、還降改言。
故爾、更往廻其天之御柱、如先。
O deus que tremula foi morto, e surgiu da sua cabeça Masakayamatsumi, o deus do
vero monte; depois, surgiu do seu peito Odoyamatsumi, o deus do monte menor;
depois, surgiu do seu ventre Okuyamatsumi, o deus do monte para lá; depois, surgiu
da sua genitália Kurayamatsumi, o deus do monte abismal; depois, surgiu do seu
braço esquerdo Shigiyamatsumi, o deus do monte frondoso; depois, surgiu do seu
braço direito Hayamatsumi, o deus do monte ao sopé; depois, surgiu da sua perna
esquerda Harayamatsumi, o deus do monte ao prado; depois, surgiu da sua perna
direita Toyamatsumi, o deus do monte para cá.
No começo do meu trabalho com o texto, tive uma má impressão do efeito que o texto
blocado em prosa comum trazia à forma dos catálogos — uma sequência narrativa que se
arranja inteira para destacar cada novo nome divino que nasce e se integra ao vasto panteão
xintoísta, carregadíssima de potência encantatória... mas monotonizada pelo texto linear.
23
Outras pessoas parecem ter sentido algo parecido com relação a essas partes do texto, como o
próprio Donald Keene (1999), que faz duras críticas a uma suposta “prolixidade” excessiva de
Yasumaro, tida como prejudicial ao valor literário do Kojiki, apesar da sua serventia ao
projeto de registro oficial das histórias das linhagens nobres. Julgando infundadas, porém
sintomáticas, as impressões do estudioso sobre a agência das repetições oralizantes no
contexto das sequências catalogais, tentei levantar estratégias tradutórias idealmente capazes
de representá-las com o devido respeito, revelando com mais clareza uma lembrança da sua
magia acústica.
Muitas divindades, podemos supor, tinham importância local e eram veneradas por
certas famílias como seus ancestrais, mas a narração frequentemente sugere que a
imaginação dos antigos japoneses, embora fértil, carecia de intensidade sustentada.
(KEENE, 1999, p. 37–38. tradução minha)
Sinto-me aventurado a acreditar que o poeta fez do papel o seu público, moldando-o
à semelhança de seu canto, e lançando mão de todos os recursos gráficos e
tipográficos, desde a pontuação até o caligrama, para tentar a transposição do poema
oral para o escrito, em todos os seus matizes. (PIGNATARI, 1975, p. 11)
imagens do texto; e as duas páginas abertas à frente do leitor seriam uma unidade, uma única
folha sobre a qual as palavras se distribuiriam no seu jogo. Além das invenções mallarméanas,
também chegariam ao concretismo os avanços de Apollinaire e Ezra Pound para contestar a
tradicional linguagem sintático-silogística da poesia, por meio do chamado “método
ideogramático” de composição, em que a lógica do texto criativo não seria mais ditada pela
ordenação sequencial dos seus elementos em linhas sempre apontadas da esquerda para a
direita — assim permitindo leituras circulares, consteladas, flusserianamente bidimensionais
do poema. No Brasil de 50, o último resultado dessas influências se revelaria no apreço dos
concretistas pela comunicação veloz de estruturas textuais, não mais estritamente
representativas da linguagem verbal, mas também atenta à serventia das linguagens não-
verbais para o trabalho do poeta-projetista:
Num contexto em que nos é tão difícil escutar a música de um texto, dispor uma
sequência narrativa nos moldes do catálogos do Kojiki em forma de prosa longa realmente
gera cansaço, pois desacelera demais o andamento das suas repetições, monotonizando e
privando-as do seu encanto original. Com isso em mente, tentei traduzir a identidade rítmica
dessas passagens por meio de estratégias visuais, organizando expressões conjuntivas,
estruturas formulaicas e nomes próprios de maneira especializada sobre o espaço da página.
Para demonstrar os seus efeitos, recito o exemplo de catálogo previamente exposto, enfim na
sua configuração final, já incorporada a ele a utilização das letras chinesas como
representação da inatingível alma das palavras, ou kotodama:
爾、高天原皆暗、葦原中国悉闇。
1 Os primeiros deuses
Quando céu e terra começavam, surgiram estes deuses no alto prado celeste:
depois, quando os reinos ainda flutuavam como óleo e vagavam como mães d’água,
algo brotou como um caniço, e surgiram estes deuses:
2 Izanagi e Izanami
mesmo assim, consumaram o seu casamento e geraram um filho: uma criança sanguessuga.
botaram-no numa barca de caniços à mercê da correnteza. depois, geraram uma ilha de
espuma. ela também não é contada como uma das suas crianças.
essa ilha tem um corpo e quatro faces, e cada face tem um nome:
essa ilha tem um corpo e quatro faces também, e cada face tem um nome:
assim que terminaram a geração dos reinos, passaram à geração dos deuses. então,
geraram estes deuses:
a geração desse filho queimou a genitália da deusa do convite, e ela adoeceu acamada.
então, por ter gerado o deus do fogo, a deusa do convite enfim partiu.
ao todo, os deuses do convite geraram
catorze ilhas e trinta e cinco deuses.
nisso, o sangue retido na ponta da espada respingou num grupo de rochas sagradas, e
surgiram estes deuses:
depois, o sangue reunido no cabo da espada vazou pelas furcas das suas mãos, e
surgiram estes deuses:
33
aqui, o mandatário do convite foi ao reino da fonte amarela para encontrar a sua irmã.
na sua cabeça
estava 大雷 o trovão grande;
no seu peito
estava 火雷 o trovão de fogo;
no seu ventre
estava 黒雷 o trovão preto;
na sua genitália
estava 析雷 o trovão que fende;
no seu braço esquerdo
estava 若雷 o trovão pequeno;
no seu braço direito
estava 土雷 o trovão do solo;
na sua perna esquerda
estava 鳴雷 o trovão que canta;
na sua perna direita
estava 伏雷 o trovão de borco.
aqui, quando o mandatário do convite viu aquilo apavorado e se pôs a fugir de volta,
a sua irmã, a mandatária do convite, disse:
nisso, o mandatário do convite jogou no chão a fita escura que arrumava o seu cabelo, e
logo germinaram uvas maduras.
enquanto as megeras catavam e comiam, ele seguiu fugindo;
mas não deixaram de persegui-lo.
então, ele jogou no chão o pente sagrado que tinha no coque direito, e
logo germinaram brotos de bambu.
enquanto as megeras colhiam e comiam, ele seguiu fugindo;
então, a mandatária do convite enfim mandou atrás dele os oito deuses do trovão,
além de mil e quinhentas tropas da fonte amarela.
quando chegou à ladeira baixa da fonte amarela, armou-se com três pêssegos do sopé, e
todos os seus perseguidores recuaram.
chegando num prado de aucubas na angra das tangerinas ao poente do fim das terras,
ele fez o ritual.
esses dois deuses surgiram pela sua visita àquele reino onde floresce a poluição.
esses três deuses do mar são adorados como deuses ancestrais pelos chefes da pescaria.
então, os chefes da pescaria descendem de um filho dos deuses do mar:
os três deuses dos portos são os três grandes deuses da angra limpa.
então, o mandatário da fúria brava foi o único dos três que não cuidou o seu mandato, que
não governou o reino que lhe fora atribuído, fazendo nada além de chorar aos berros, até que
oito punhos de barba lhe chegassem à linha do peito.
assim, os urros dos deuses malignos infestaram os ares como moscas no verão, e
dez mil calamidades ocorreram ao todo.
3 Amaterasu e Susanoo
então, quando fizeram os seus juramentos com o plácido rio celeste entre si,
a grandiosa deusa da luz celeste pediu antes
a espada de dez punhos do mandatário da fúria brava e vigorosa,
quebrando-a em três pedaços,
e chocalhou o som das contas ao banhá-los no vero poço celeste,
e mastigou-os mastigados,
e surgiram estas deusas do sopro de névoa que ela soprou:
多紀理毘売命 a mandatária da névoa,
também chamada 奥津島比売命 a mandatária da ilha no alto mar;
depois, 市寸島比売命 a mandatária da ilha adorada,
também chamada 狭依毘売命 a mandatária que chama;
depois, 多岐都比売命 a mandatária da torrente.
o mandatário da fúria pediu
as oito longuras de linha ornada por quinhentas jades curvas
atadas ao coque esquerdo da grandiosa deusa da luz celeste,
e chocalhou o som das contas ao banhá-las no vero poço celeste,
e mastigou-as mastigadas,
e surgiu este deus do sopro de névoa que ele soprou:
正勝吾勝々速日天之忍穂耳命
o mandatário da vitória certa — eu venci! — e vigorosa da forçosa espiga celeste;
ele também pediu as contas atadas ao seu coque direito,
e mastigou-as mastigadas,
e surgiu este deus do sopro de névoa que ele soprou:
天之菩卑能命 o mandatário da espiga celeste;
ele também pediu as contas atadas às fitas do seu cabelo,
e mastigou-as mastigadas,
e surgiu este deus do sopro de névoa que ele soprou:
天津日子根命 o mandatário filho celeste do sol;
ele também pediu as contas atadas ao seu braço esquerdo,
e mastigou-as mastigadas,
e surgiu este deus do sopro de névoa que ele soprou:
活津日子根命 o mandatário filho vivaz do sol;
ele também pediu as contas atadas ao seu braço direito,
e mastigou-as mastigadas,
e surgiu este deus do sopro de névoa que ele soprou:
熊能久須毘命 o mandatário do recanto maravilhoso.
41
então, apesar de tudo aquilo, a grandiosa deusa da luz celeste não o inculpou, e disse:
— isso que tanto parece com fezes
talvez seja obra do meu irmão mandatário
esparralhando o seu vômito depois de uma embriaguez. e
isso de romper as leivas e soterrar os drenos
talvez seja obra do meu irmão mandatário
para que não haja desperdício do terreno.
assim declarou sua correção, mas as ofensas não cessaram, agravando-se cada vez mais.
aqui, os gritos dos dez mil deuses infestaram os ares como moscas no verão, e
dez mil calamidades ocorreram ao todo.
então, os oitenta dez mil deuses se reuniram às margens do plácido rio celeste,
e ordenaram as meditações do deus que premedita, filho do deus da geração acima,
e reuniram aves de canto longo do mundo eterno, ordenando o seu canto,
e pegaram uma dura rocha celeste a montante do plácido rio celeste,
e pegaram ferro nas minas celestes,
e procuraram o ferreiro caolho celeste,
43
nisso, agitou-se o alto prado celeste, e os oitocentos dez mil deuses gargalhavam.
nisso, a moça do grande alimento tirou diversas delícias do nariz, da boca e do traseiro,
preparando-as de diversas maneiras, e já ia oferecê-las,
quando o mandatário da fúria vigorosa, que espiava as suas ações,
pensou que ela poluía as oferendas e logo a matou.
da sua cabeça,
germinaram bichos-da-seda;
dos seus olhos,
germinaram sementes de arroz;
das suas orelhas,
germinaram espigas de painço;
do seu nariz,
germinaram grãos de azuqui;
das suas genitais,
germinaram espigas de trigo;
do seu traseiro,
germinaram grãos de soja.
assim, o mandatário ancestral da geração divina ordenou a coleta das sementes surgidas.
nisso, o mandatário da fúria vigorosa logo transformou a donzela num pente sagrado,
inserindo-a num dos seus coques, e explicando aos deuses que afagam os pés e as mãos:
— fermentem um saquê de oito fermentações, e
construam uma cerca à nossa volta, e
construam nessa cerca oito portões, e
em cada portão amarrem oito altares, e
em cada altar coloquem uma barca de saquê, e
em cada barca sirvam oito fermentações de saquê, e
aguardem.
então, quando cortou a cauda central da serpente, a lâmina da sua espada se quebrou.
nisso, achando aquilo curioso, furou uma fenda na cauda com a ponta da espada, e
viu que ali dentro havia uma grande espada de muito fio.
assim, o mandatário da fúria vigorosa procurou, no reino das nuvens emergentes, alguma
região onde pudesse construir um palácio para se casar.
4 Ôkuninushi
quando foram em viagem para lá, levaram consigo o nobre das grandes escavações,
que trataram como servo bagageiro.
nisso, devido à secagem da salmoura, toda a sua pele se fendeu pelo sopro do vento.
então, chorando de dor, ela se deitou emborcada,
quando enfim apareceu o nobre das grandes escavações,
que viu a lebre e lhe perguntou:
— por que tu choras emborcada?
49
então, a lebre fez como ele instruiu, e o seu corpo retomou a sua saúde.
chegando com ele ao sopé do monte das mãos vazias no reino dos carvalhos maternais,
disseram-lhe assim:
— há neste monte um javali vermelho.
nós iremos persegui-lo monte abaixo,
enquanto tu aguardas aqui para pegá-lo.
mas se não ficares de guarda para pegá-lo, decerto serás morto.
nisso, a moça da concha que raspa raspou e reuniu o seu corpo da rocha, e
a moça da concha que junta aguardou e recebeu os pedaços do corpo, e
aplicou sobre eles o leite da mãe, fazendo ressurgir o belo rapaz, que
saiu caminhando bem contente.
logo o mandou escondido à morada do moço da grande cabana no reino das árvores.
então, seguindo o mandato declarado, ele foi até a morada do mandatário da fúria,
de onde viu sair uma filha sua, a moça da ousadia, e
ele e ela trocaram olhares,
e se casaram.
ainda, soltaram num grande campo uma flecha cantora, e ordenaram que ele a buscasse.
então, logo que entrou no campo, circundaram todo o mato lhe ateando fogo.
aqui, quando já não sabia por onde escapar, um rato veio e lhe falou assim:
— por dentro, é um buraco oco.
por fora, é um furo bem fino.
nisso, o rato voltou com a flecha cantora entre os dentes, oferecendo-a para ele.
aqui, a sua esposa lhe entregou alguns frutos de apananto e um pouco de argila vermelha.
então, ele mastigou e triturou os frutos com a argila na boca, foi cuspindo a mistura, e
o grande deus da fúria pensou que ele mastigava, triturava e cuspia as centopeias, e
apreciou o gesto, e
adormeceu.
então, mantendo o seu compromisso, casou-se com a moça das oito nascentes, que
então, veio morar ele.
mesmo assim, pelo temor que ela sentia da sua primeira esposa, a moça da ousadia,
a moça das oito nascentes voltou para casa, deixando sobre as furcas de uma árvore
o filho que havia gerado.
o deus mandatário
que porta as oito mil lanças
buscava uma esposa
no reino das oito ilhas.
no reino de longe,
distante de onde morava,
ele ouviu que havia
uma donzela mui sábia, e
ele ouviu que havia
uma donzela mui bela, e
partiu em viagem
decidido a cortejá-la, e
54
sem desamarrar
a corda da minha espada,
sem desamarrar
a faixa do manto longo,
fiquei esperando, e
batendo e tremendo a porta, e
fiquei esperando, e
puxando e forçando a porta
do lado de fora
do quarto onde ela dormia.
o tordo cantava
nos montes azulados,
o faisão chilrava
nos campos angustiados,
o galo chorava
nos jardins.
ao deus mandatário
que porta oito mil lanças:
meu jeito de moça
gramínea e delicada
resguarda no peito
três aves à beira-mar.
55
junta-te a mim.
junta as tuas mãos às minhas.
deita as tuas pernas.
dorme num sono solto.
não anseies
demais no teu amor.
querida criança,
minha irmã mandatária,
e se eu te dissesse
que logo alço voo e parto?
e se eu me deixasse
ser levado para longe?
gramínea menina,
esposa mandatária,
assim contam
como cantam
essa história.
nisso, chegando mais perto, a sua esposa lhe ofereceu um grande copo de saquê, e
disse assim numa canção:
eu te conheço:
o teu jeito de macho
rema e rodeia
de cabo a cabo nas ilhas, e
roda e passeia
por todos os cabos das praias,
colhendo gramíneas
esposas por todo lado.
junta-te a mim.
junta as tuas mãos às minhas.
deita as tuas pernas.
dorme um sono solto.
ergue comigo
um brinde de saquê!
assim ela cantou, e logo trocaram seus copos, abraçando-se à altura das nucas, e
até hoje eles habitam o seu templo em harmonia.
o mestre dos grandes reinos também esposou a mandatária que escuda o templo, e
geraram este filho:
esse deus esposou a deusa do vigor viril na estrada ensolarada para o arrozal suado, e
geraram este filho:
国忍富神 o deus da grande riqueza dos reinos;
do mestre que cuida as oito ilhas ao deus dos tantos promontórios no porto distante,
estão acima os deuses das dezessete linhagens.
então, o mestre dos grandes reinos estava no grande cabo das nuvens emergentes
quando veio até ele um deus
surfando a espiga das ondas
num barco de vagem celeste, e
vestindo a pele esfolada de um ganso esfolado inteiro.
nisso, o mestre dos grandes reinos perguntou o seu nome, mas ele não respondeu.
ainda o perguntou aos muitos deuses que o seguiam, mas todos lhe disseram não saber.
então, eles subiram para falar com o mandatário ancestral da geração divina,
que lhes explicou:
— ele é de fato um dos meus filhos,
aquele que escapou pelas furcas das minhas mãos.
então, horror dos prados de caniço,
torna-te irmão dele, e criem bem firmes os reinos.
nove deuses.
5 Oshihomimi e Ninigi
nisso, o deus da geração acima e a grandiosa deusa da luz celeste deram o seu mandato,
reuniram os oitocentos dez mil deuses às margens do plácido rio celeste,
e ordenaram as meditações do deus que premedita,
e declararam:
— nós demos ao nosso herdeiro a missão de cuidar o reino central dos prados de caniço,
mas lá há muitos deuses terrenos de índole bravia e violenta.
então, qual deus mandaremos até eles com a nossa palavra?
assim, o deus da geração acima e a grandiosa deusa da luz celeste perguntaram de novo:
— há muito tempo não vêm notícias do deus da espiga celeste,
que mandamos ao reino central dos prados de caniço.
qual deus deveremos mandar até lá desta vez?
então, o deus da geração acima e a grandiosa deusa da luz celeste perguntaram de novo:
— há muito tempo não vêm notícias do jovem moço celeste.
qual deus deveremos mandar até lá para questionar a sua longa estadia?
então, a mulher que lamenta desceu do céu até os portões do jovem moço celeste,
pousando sobre um jasmineiro sagrado, e
declarou o mandato dos deuses celestes detalhadamente.
enganaram-se assim porque o filho do alto sol e o falecido eram muito parecidos.
66
assim, enganaram-se.
aqui, o filho do alto sol sobre as enxadas falou com muita raiva:
— eu vim prestar meus respeitos a um amigo querido!
por que me comparam a um cadáver poluente?
isso aconteceu no monte funeral rente à nascente do rio anil no reino da bela plantação.
mora lá no céu
uma linda tecelã.
vê como se alinham
as joias do seu colar:
são todas unidas
pelo mesmo fio.
então, o deus da barca aviária celeste para convocar o mestre dos oito relatos, que
quando foi questionado, falou assim com o grande deus que era seu pai:
— sinto-me impelido a oferecer o reino ao herdeiro dos deuses celestes.
enquanto ele assim dizia, o deus das águas bravas veio até eles,
erguendo na ponta dos dedos uma rocha de mil pesos, e disse:
— vocês vêm ao nosso reino e ficam aí cochichando à espreita!
sendo assim, testemos nossas forças!
então, eu começarei segurando o teu bom braço!
então, o deus da brava trovoada deixou que o seu braço fosse pego, e
logo o transformou num sincelo, e
ainda o transformou numa espada.
este fogo brocado por mim queimará e chegará no alto prado celeste, e
fará caírem oito punhos de fuligem dos novos contentes lares celestes
do mandatário ancestral da geração divina, e
queimará e enrijará as rochas mais fundas.
nisso, a grandiosa deusa da luz celeste e o deus da árvore altiva proferiram seu mandato,
declarando assim ao seu grande herdeiro,
o mandatário da vitória certa — eu venci! — e vigorosa da forçosa espiga celeste:
— dizem que agora o reino central dos prados de caniço está apaziguado.
então, segue a tua missão e desce para cuidá-lo.
天邇岐志国邇岐志天津日高日子番能邇々芸命
o mandatário das espigas maduras, alto como o sol celeste, querido no céu e na terra.
seria melhor que ele descesse.
então, a grandiosa deusa celeste e o deus da árvore altiva proferiram seu mandato,
declarando assim à mulher da grinalda celeste:
— mesmo que tu sejas uma donzela de braços frágeis,
tu enfrentas e vences outros deuses.
então, vai sozinha e pergunta àquele deus:
— quem fica assim no caminho do nosso herdeiro,
que estava prestes a descer do céu?
que são os chefes das cinco guildas, receberam seus respectivos papeis, e
desceram do céu.
os dois deuses são adorados no templo dos cinquenta guizos, de prósperos braceletes;
depois, a deusa do farto alimento é a que foi habitar o templo externo dos cruzamentos;
depois, o deus da gruta celeste,
também chamado 櫛石窓神 o deus do maravilhoso portão rochoso,
também chamado 豊石窓神 o deus do maravilhoso portão farto,
tornou-se o deus dos portões;
depois, o deus do braço forte é o que foi habitar o distrito das forjas.
desceu do céu
72
na rocha maravilhosa do velho cimo do monte de mil espigas ao poente do fim das terras.
então, o mandatário do forçoso sol celeste é o ancestral dos chefes da grande companhia;
o mandatário dos recantos celestes é o ancestral dos líderes dos guerreiros.
aqui, no cabo volumoso, o mandatário das espigas maduras, alto como o sol celeste,
encontrou uma bela donzela.
6 Hoori e Ukayafukiaezu
nisso, o mandatário do fogo brando chamou o seu irmão, o mandatário do fogo luzente:
— quem sabe não trocamos nossas ferramentas de trabalho?
aqui, o seu irmão mais velho, o mandatário do fogo luzente, pediu-lhe o anzol e disse:
— a pesca do mares
fica para os pescadores
a caça dos montes
fica para os caçadores.
agora, quem sabe não trocamos de volta as nossas ferramentas?
mesmo assim, o seu irmão mais velho insistia em pedir o anzol de volta.
então, o irmão mais novo quebrou a sua espada de dez punhos, e
construiu com as suas partes quinhentos anzóis em compensação,
mas não foram aceitos. além disso,
construiu com as suas partes outros mil anzóis em compensação,
mas não foram recebidos. e o seu irmão mais velho disse:
— ainda quero o meu anzol de antes.
então, seguindo as suas instruções detalhadamente, ele navegou por algum tempo, e
tudo aconteceu como dissera o deus da salmoura, e
logo ele subiu na perfumeira.
nisso, sem beber água, ele tirou uma joia do seu colar,
botando-a na boca e cuspindo-a para dentro do jarro encrustado.
aqui, a joia ficou presa ao fundo do jarro, e a servente não conseguiu removê-la.
então, deixando lá a joia, ela ofereceu o jarro à mandatária de alma farta.
logo ordenando o casamento do mandatário com a sua filha, a moça de alma farta.
então, ouvindo o seu suspiro, a mandatário de alma farta disse ao seu pai:
— mesmo depois de três anos, nunca o vi suspirando, mas
na noite passada ele soltou um longo suspiro.
qual seria o motivo?
então, o grande deus que era seu pai foi até o genro e perguntou:
— hoje de manhã a minha filha de contou o seguinte:
— mesmo depois de três anos, nunca o vi suspirando, mas
na noite passada ele soltou um longo suspiro.
deve haver algum motivo para isso.
além disso, por que vieste para cá?
assim, o deus do mar convocou a reunião de todos os peixes grandes e pequenos do mar,
aos quais ele perguntou:
— teria algum de vocês pegado um anzol?
assim sendo, se ele construir arrozais altos, constrói arrozais baixos, mandatário; e
assim sendo, se ele construir arrozais baixos, constrói arrozais altos, mandatário. e
assim sendo, como sou eu que comanda as águas, decerto o teu irmão, em três anos,
empobrecerá.
então, com base nos seus tamanhos, eles todos responderam o tempo que levariam, e
o crocodilo de um abraço disse:
— eu posso levá-lo em um dia e logo retornar.
desde então, o seu irmão foi empobrecendo de pouco em pouco e mais e mais.
enfim o seu coração se tornou violento, e ele veio avançando na sua direção.
então, as várias moções do seu afogamento são sem falta apresentadas até hoje.
aqui, a filha do deus do mar, a moça de alma farta, saiu das águas e lhe disse:
— eu estou grávida há algum tempo, e a hora do parto já se aproxima.
penso que um herdeiro dos deuses celestes
não deveria ser gerado nos prados marinhos.
então, vim de lá até aqui.
nisso, construíram na beira da praia uma casa de parto com teto de penas de biguá.
aqui, antes de terminarem a forragem da casa de parto, o ventre da moça urgiu.
então, ela entrou na casa de parto.
aqui, achando aquilo curioso, ele a espiou em segredo bem enquanto ela paria, e
viu que ela se transformara num crocodilo de oito abraços, e
que rastejava e se contorcia.
o rubor do âmbar
faz luzir todo um colar,
mas acho mais belo
o jeito como tu vestes
o brilho das pérolas brancas.
os patos marinhos
visitavam a mesma ilha
onde nós dormíamos...
desse tempo, minha amada,
eu jamais me esquecerei.
então, o mandatário das espigas brotando habitou o templo no monte de mil espigas
por quinhentos e oitenta anos.
seu túmulo fica logo a oeste do monte de mil espigas.
o mandatário que não termina o teto de biguá bravo na praia, alto como o sol celeste
esposou a sua tia, a mandatária que chama as joias, e
geraram estes herdeiros:
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Kojiki foi concebido na corte japonesa do século VIII para estabelecer uma nova
versão oficial das genealogias e dos mitos imperiais, e o seu compilador, Ô no Yasumaro,
parece ter dado bastante atenção a determinados aspectos formais da obra, especialmente
àqueles mais úteis para a disseminação dos discursos absolutistas propagandeados pelo trono
desde o reinado do imperador Tenmu. Neste trabalho, tentei apresentar e justificar algumas
das minhas decisões tradutórias para representar em português brasileiro alguns desses
aspectos formais do texto fonte, embasando meus argumentos em breves exposições dos
conceitos historiográficos, filosóficos e religiosos próprios da era que o gerou. Num primeiro
momento, comentei noções introdutórias de filosofia clássica chinesa com vistas a demonstrar
como elas seriam apropriadas e modificadas pela cultura imperial japonesa, descontente com
alguns dos seus fundamentos teóricos. Fruto relevante desse processo de adaptações seria a
noção de um tempo histórico geometricamente linear, avesso à circularidade tradicional da
história política sino-coreana; e que se tornaria um dos princípios fundamentais da narração
de Yasumaro — a mitologia xintoísta, apesar da sua natural heterogeneidade, seria contada
como se fosse uma perfeita história de “começo, meio e fim”, propositiva de uma
temporalidade infinitamente extensa e sempre governada pelos líderes do clã Yamato.
Estratégias específicas de coesão e coerência textuais seriam movimentadas pelo compilador
do Kojiki com vistas a bem cumprir essa missão de atestar a soberania imperial com um
arranjo de mitos em linha. Nesse contexto, haveria a adaptação de expressões conjuntivas
utilizadas por monges budistas no seu estudo e na sua divulgação das escrituras, o que não
somente serviria para melhor estruturar a sequencialidade dos episódios narrados, como
também daria ao texto ares de autoridade próprios das tradições orais antigas. Para resolver os
problemas de coerência da obra, o redator especializaria as suas seleções e reiterações
vocabulares, projetando-as para estabelecer vínculos narrativos entre capítulos distintos e não
raro distantes dentro dos limites do primeiro tomo. Ainda tratando sobre as “linhas” do Kojiki,
seria abordado o tema da cosmologia xintoísta e do modo como ela dispunha três dos cinco
reinos componentes do universo num alinhamento perfeitamente vertical, encabeçado pelo
plano celeste de Takamanohara, mediado pelo mundo humano e enraizado no reino dos
mortos. As alegações da família imperial de que o seu sangue seria descendente da deusa
solar Amaterasu, máxima governante dos céus, receberiam parte da sua potência retórica pela
concepção religiosa de que o mundo dos deuses acima tinha prerrogativas de comando sobre
as terras médias, e atos que ofendessem ou perturbassem a harmonia natural da lei celeste
84
seriam responsabilizados por toda sorte de desventuras e catástrofes que caíssem sobre a
humanidade. Explicações sobre os conceitos xintoístas de poluição e pureza seriam
particularmente importantes nesse ponto da argumentação, que logo se concentraria em
assinalar a coincidência da geometria das linhas temporal e espacial-verticalizada com aquela
do sistema de escrita japonês, em que as letras se organizam sobre o eixo y da página e de
cima para baixo. Meu principal referencial teórico para compreender melhor as relações entre
texto, linha, espaço e tempo seria Flusser (2017), que já começaria a explicar algumas das
minhas escolhas tradutórias para trazer ao texto brasileiro lembranças da importância que as
linearidades supracitadas tinham para o projeto original do Kojiki.
Depois, sempre tratando das artimanhas formais de Yasumaro para retratar conceitos
fundamentais da ideologia cortesã japonesa, tentei uma breve apresentação do sistema de
escrita em que o Kojiki foi redigido, tarefa tão divertida quanto desafiadora de se cumprir
didaticamente. A partir dessas explicações sobre os métodos de ortografia antiga, eu ainda
procuraria apresentar a noção de kotodama, referente à relação entre a sacralidade de algumas
expressões características do xintoísmo e a sua suposta intraduzibilidade — que eu também
tentaria traduzir criativamente por meio da incorporação de caracteres chineses no texto em
português brasileiro. Essa escolha influenciaria a última das minhas decisões tradutórias
comentadas nestes capítulos de teoria, a saber, aquela preocupada em lealmente representar os
cuidados de Yasumaro com a personalidade rítmica dos seus inúmeros catálogos genealógicos.
Considerando insegura a opção de traduzir essas sequências narrativas do Kojiki em formato
convencional de prosa longa, eu acabaria divisando a ideia de traduzir os padrões cadenciais
que estruturavam cada catálogo por meio de recursos essencialmente visuais, o que talvez
aproxime aspectos da minha tradução a certos preceitos poéticos bem-quistos pela escola
literária dos brasileiros concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari (1975).
As suas estratégias de funcionalização do espaço da página e de composição ideogramática
me seriam de grande utilidade para planejar a versificação da obra de modo a acelerar a
comunicação das estruturas rítmicas dos catálogos aos olhos do leitor, que agora as perceberia
não somente como uma prolixa lista de nomes estranhos, mas como uma mistura de texto e
pintura, com características lineares e bidimensionais, para retornar aos termos de Flusser
(2017).
Desde a minha última versão completa do primeiro tomo do Kojiki em português,
removi uma importante presença do meu projeto: a das anotações paratextuais colocadas por
Yasumaro entre as linhas do seu texto principal, geralmente dedicadas a esclarecer as
obscuridades do sistema de escrita misto entre logografia e fonografia. A curto prazo,
85
pretendo recuperá-las e reintegrá-las a esse novo projeto de tradução. Desconfio de que essa
tarefa não vá ser exatamente simples, visto que a colocação dessas notas de volta entre os
versos sem dúvida interferirá na estruturação visual das páginas, potencialmente entortando
algumas das suas regularidades paralelísticas, o que pode ser mais ou menos interessante,
dependendo do contexto e do projeto. Com um pouco mais de tempo, também pretendo
reavaliar algumas das minhas decisões tradutórias em busca de tropeços orientalistas, já que a
lida com conceitos de “intraduzibilidade” de aspectos do pensamento japonês, penso eu, tenha
grandes propensões a incorrer nesse tipo de engano. Por fim, resta a ambição de continuar a
traduzir os tomos até que a obra esteja toda em português brasileiro — objetivo idealmente
alcançável nos próximos meses — e de procurar um maior volume de fontes bibliográficas
japonesas, chinesas e coreanas tratando sobre o Kojiki, tipo de material teórico com que ainda
não tive tanta interação.
86
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia
concreta: textos críticos e manifestos. São Paulo: Livraria das duas cidades, 1975.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design da comunicação. São
Paulo: Cosac & Naify, 2007.
HARDACRE, Helen. Shinto: a history. Nova Iorque: Oxford University Press, 2017.
KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
KEENE, Donald. The Kojiki. In: Seeds in the Heart. Nova Iorque: Columbia University,
1999.
NORDEN, Bryan W. Van. Introdução à filosofia chinesa clássica. Petrópolis: Vozes, 2018.
Ô, Yasumaro. The Kojiki: an account of ancient matters. Tradução: Gustav Heldt. Nova
Iorque: Columbia University Press, 2014.
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