Rita Lee - Outra Autobiografia - Rita Lee
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O elefante
O trauma
A Sininho
O tratamento
A velhice
A viagem
O cigarro
A alta
O resumo
A radioterapia
O mal pela boca
A vontade
O caroço
A bonequinha de luxo
A quimio
A enfermeira
A careca
A coisa
A cadeira de rodas
O turbante
Os livros
O tabu
A carboplatina
O revés
A ficha
As mulheres
A expo
A garotada
O menininho
O desequilíbrio
Os remédios
A fisio
O novo velho
Os animais
A rainha
O coelhinho
A voz
A capa
Daqui pra frente
Epílogo
O colecionador de mim 2
O elefante
Em 19 de março de 2021 fui tomar a primeira dose da CoronaVac numa
ubs de Taboão da Serra, cidade que fica mais ou menos perto de Cotia, onde
moramos. Rolou a agitação usual de quando chega alguma “celebridade”, e
foi um tal de pedidos para tirar selfies e dar autógrafos, receber elogios, ou
seja, o lado bom de ser conhecida e receber carinho dos fãs. Mas eu estava
morrendo de medo de me contaminar pegando em canetas de
desconhecidos, sendo abraçada pelas enfermeiras e por quem estava na fila
ou passava por lá. Aos poucos, a noia da aglomeração foi substituída pela
sorte de ter finalmente recebido a vacina, o que me deu certa sensação de
proteção celeste. Cheguei em casa, tomei banho, dei comida aos bichinhos,
assisti a uma série e fui dormir. Dia seguinte acordei com um elefante
deitado sobre o lado esquerdo do meu corpo. Eram dores tão alucinantes
que pensei estar infartando. O lado direito funcionava bem, como se nada
houvesse, e arrastava o esquerdo como um saco pesado de batatas. Me
passaram um remédio bomba que curou a dor, mas deu uma bela prisão de
ventre. Dois dias depois, assim como chegou, o elefante foi embora.
Rob tomou a vacina e passou em brancas nuvens.
* * *
1 Um estranho no ninho, filme de 1975 estrelado por Jack Nicholson baseado no romance de
Ken Kesey, de 1962. [ «« ]
O trauma
Chegou a bandeja do café da manhã no primeiro dia, e só faltei vomitar
em cima. Chegou o almoço e quase vomitei em cima também. Diante da
situação de eu não conseguir nem olhar para nenhuma comida, dr. Ribas
conversou com Rob sobre o perigo do tratamento de câncer em uma pessoa
tão magra e sugeriu colocar uma sonda nasoenteral para que eu me
alimentasse na marra. Esse foi um dos momentos mais traumáticos que vivi.
Primeiro, tentaram introduzir um tubo pela narina direita, onde tenho
desvio de septo e, é claro, o troço empacou. Foram então para a narina
esquerda e enfiaram cada vez mais fundo. Quando o tubo chegou ao meu
estômago, foi como se eu tivesse engolido um alien, daqueles que saem
babando pela barriga da pessoa. A única narina pela qual eu respirava foi
invadida por um monstro que bloqueava a respiração. O jeito era respirar
pela boca, que logo virou um deserto de tão seca que ficou, enquanto a
pobre traqueia pedia água, pelamordedeus. Fora que a maldita máquina que
me alimentava na marra fazia um barulho infernal.
Foi nesse momento que me chaparam para não reclamar da sonda, num
segundo acesso no braço esquerdo, e quando recebi a primeira dose da
imunoterapia autorizada pela minha família. Acordei de madrugada e
consegui ligar desesperada para Rob, implorando que ele pedisse a alguém
para retirar imediatamente a sonda ou eu morreria asfixiada — e não era
brincadeira.
Até o médico plantonista pedir autorização ao médico responsável
demoraria um século, e eu já estava arrancando o tubo com a mão quando
alguma alma bondosa apareceu e delicadamente exorcizou o demônio do
meu corpo e pude ressuscitar.
A retirada da sonda com aquele rango sintético me causou três dias de
diarreia descontrolada, por isso resolveram colocar fralda descartável em
mim, la crème de la crème da humilhação. Nesse estágio, a gente esquece a
finesse, o noblesse oblige e mija, caga e peida até na frente da rainha da
Inglaterra.
Depois de três dias e três noites sem dormir nem comer, bateu um
pânico arrebatador de madrugada, uma vontade de ir embora pra casa, e
comecei a tremer, a chorar, a hiperventilar, sem nenhum controle corporal,
enquanto tinha visões tipo Inferno de Dante. Entendo perfeitamente nosso
querido Grande Otelo quando, numa brecha dos enfermeiros, fugiu do
hospital onde estava internado de camisola, daquelas que deixam a bunda de
fora.
Já cansadas e impotentes com minhas panikadas, as enfermeiras do
plantão da madrugada concluíram que um bom banho me acalmaria.
Tiraram minha roupa e me sentaram pelada numa cadeira de plástico
com rodinhas e assento aberto igual privada. Eram seis mãos me
ensaboando inteira, lavando meus cabelos, minha xereca, minha bunda. O
chuveirinho estava frio, me fazendo tremer ainda mais, e me senti meio
Carrie, a estranha, na parte em que o balde com tinta vermelha cai bem na
cabeça dela e desperta sua fúria assassina.
Como não tenho esse poder de destruição com a mente, só conseguia
chorar diante da minha impotência. Imagino que as enfermeiras tenham
feito aquele horror comigo com a maior das boas intenções. Enquanto me
lavavam, conversavam até sobre amenidades da vida delas e eu lá, ora
puxada pra esquerda, ora pra direita, chorando como um bebê largado na
lata de lixo na chuva.
Depois que o banho terminou, meus dentes tremiam feito castanholas.
Me secaram meio por cima e me vestiram ainda molhada. Para me ver livre
delas, menti que queria dormir um pouco e fiquei fazendo cabaninha com o
cobertor, tentando me secar e me esquentar daquele frio na alma.
A Sininho
Vez ou outra, durante as primeiras horas do dia, entrava no meu
quarto uma auxiliar de enfermagem, que devia ter menos de 1 metro e meio,
com um rostinho sereno e bonito, um rabo de cavalo até a cintura,
supermagrinha. Ela chamou minha atenção num momento em que eu
estava sob controle de mim mesma e puxei conversa enquanto ela trocava os
lençóis da cama. Me contou que nasceu com os órgãos internos invertidos!
Coração do lado direito, fígado do lado esquerdo, canhota e assim por
diante. Parecia uma fadinha se comparada às outras enfermeiras, todas altas
e fortes, mas era ágil e sempre me oferecia palavras de conforto com sua voz
de criança. A apelidei de Sininho.
Quando ela entrava no quarto, tudo ficava mais leve. Até hoje não sei se
ela era de verdade ou uma aparição quando ninguém estava presente além
de mim.
Adendo aparição
Falando em aparições, me lembrei de certa vez, nos anos 1970, quando
viajava de jipe com minha cachorra Danny até o Guarujá pela via Anchieta.
Avistei um rapaz caminhando pelo acostamento em sentido contrário, na
mesma pista em que eu estava. Chamou minha atenção porque ele andava
calmamente com o rosto sereno, olhando para a frente. Mais adiante, vi um
carro parado na transversal e um homem saindo dele para acudir outro
deitado no chão. Parei o jipe e ofereci ajuda, e esse homem, desesperado,
disse que havia atropelado e matado acidentalmente uma pessoa. Com
aquela curiosidade mórbida que todos temos, fui olhar a vítima, e era aquele
mesmo rapaz que vinha tranquilo, segundos antes, na contramão. Mistérios
sempre hão de pintar por aí.
Como daquela vez que estava, um tempo atrás, contando para meu filho
Beto e minha neta Ziza histórias engraçadas sobre o casarão onde eu morava
na infância, na Vila Mariana. E eis que, de repente, o relógio de corda do
meu pai pendurado na sala, que havia séculos estava parado, deu uma
badalada: Déin!
¡Yo no creo en fantasmas, pero que tienen buen humor, tienen!
O tratamento
Era bem cedinho quando dr. óren, o big boss da ala de oncologia do
hospital, testemunhou o fim de uma crise de pânico minha e aguardou até
que eu me autocontrolasse para ter uma conversa séria. Eu já havia
comunicado ao dr. Ribas que quimio e radioterapia estavam fora de questão,
e dr. Óren queria saber o porquê disso. Contei do trauma que ficou em mim
por ter visto o sofrimento da minha mãe fazendo esses dois procedimentos
quando teve câncer. Também pedi para que ele me desse morfina e acabasse
logo com aquela balela de tratamento para curar uma doença que eu sabia
ser incurável. Disse a ele que minha vida tinha sido maravilhosa, e que por
mim tomava o “chazinho da meia-noite” para ir desta para melhor. Que me
deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente; queria
estar atenta para logo recomeçar meu caminho em outra dimensão. Sou
totalmente favorável à eutanásia. Morrer com dignidade é preciso.
Ele me explicou que de 45 anos para cá tudo na medicina havia mudado
bastante e contou sobre a imunoterapia, um tratamento relativamente novo
que rendeu o prêmio Nobel de Medicina em 2018 ao estadunidense James P.
Allison e ao japonês Tasuku Honjo. Esse procedimento chegou ao Brasil
poucos anos atrás, e os resultados têm mostrado grande eficácia, sem causar
os efeitos colaterais de uma quimio, tipo queda de cabelo, vômito, dores,
enjoos etc. No fim do papo, dr. Óren abriu o jogo e completou que, fazendo
a imunoterapia paralelamente à radioterapia (que também havia evoluído
muito desde o tempo da minha mãe), eu teria 99% de chance de não
precisar de cirurgia. Imuno e radio juntas dariam conta de fazer o tumor
desaparecer de vez.
Ele ressaltou que uma decisão sobre a radio deveria ser tomada logo e
me deixou sozinha para pensar a respeito. Conversando com Rob, que por
sua vez já havia se reunido com nossos filhos e dr. Óren, resolvi que quem
decidiria meu tratamento seria minha família, que optou pela combinação
das duas terapias.
Com essa confirmação, dr. Óren não perdeu tempo e organizou minha
mudança para outro quarto na ala oncológica, no 11o andar, onde ficava a
maternidade e, portanto, mais distante ainda dos pacientes com covid —
além disso, o staff dele tinha mais preparo para lidar com doentes que
piram. O novo quarto tinha uma vista bonita, a cor da parede era verde, a
enfermagem só usava branco, assim como os médicos.
O ambiente me pareceu mais alto-astral, todos ultraeducados e
atenciosos. O lance é que voltou a acontecer um entra e sai, dessa vez da
equipe do dr. Óren que se apresentava: médicos, enfermeiros de plantão,
nutricionistas, fisioterapeutas, pneumologista, até dentista para cuidar das
minhas aftas com laser… e também uma médica zen que fazia reiki.
Fiquei internada lá por quase duas semanas, e era uma bênção quando
Rob e João chegavam, todo santo dia, para ficarem comigo, me dando força
e fé para acreditar no coquetel imuno/radio sobre o qual eles haviam
pesquisado a fundo. O amor dos boys Carvalho/Lee me fez optar por aceitar
fazer o tratamento, porque, se fosse por mim, adeus mundo cruel na boa.
Dr. Ícaro, o big boss da radioterapia do hospital, foi me visitar e explicou
como funciona a parceria imuno/radio e esclareceu mais características
diante das minhas dúvidas. Tudo era muito novo para mim, então demorei a
entender algumas etapas dos tratamentos, sempre levava um susto com
certas explicações esdrúxulas e entrava no treme-treme.
Dr. Óren sugeriu um psiquiatra para cuidar da parte psicológica e me
fazer desmamar aos poucos dos tarjas pretas com remédios mais modernos
e, mais uma vez, minha família tratou de descolar um shrink sério.
Uma das nutricionistas veio me falar sobre alimentação e me disse que
veganismo era sua especialidade. Pensei ter encontrado a grande solução
para ganhar peso. Qual não foi minha decepção quando provei o patê de
grão-de-bico congelado que tinha gosto de parede; depois provei a sopa de
couve-flor que tinha gosto de cal; e, por fim, provei a sobremesa de pera
assada que tinha gosto de nada. Aquilo não abriria o apetite nem do João
Gordo. Mas… bastava lembrar da sonda nasal que eu comia a gororoba
falsamente sorrindo.
A velhice
Faz pouquíssimo tempo que notei que estou velha, coisa de dez anos para
cá, quando abandonei os palcos. A sensação é a de que eu nunca fui tão eu
mesma como sou hoje. Parece que os cinquenta anos que passei na estrada
levando a vida de cigana não era eu. Parece que passei um bom tempo na
caverna de Platão até descobrir o Universo e tentar desvendar os mistérios
que há nele. Entendo perfeitamente o que Nelson Rodrigues quis dizer com
“jovens, envelheçam!”. Trocamos a pele de cobra e em vez de rejuvenescer
por fora renascemos por dentro, ficamos mais atentos, mais próximos da
morte, e isso nos faz questionar e buscar informações que só agora parecem
fazer mais sentido.
Fico contente quando mudo de opinião… “Are you experienced?”,
perguntava Hendrix. “Can you master the art of dying?”, perguntam os
cabalistas. Como é bom não ter personalidade fanática, a gente passa por
tantas “verdades”, o que faz com que cheguemos à conclusão de que só
mesmo sendo um espírito sem corpo físico é que vamos ter acesso aos
arquivos akáshicos de nossa existência eterna até alcançar a Luz Divina. O
caminho é longo, cheio de armadilhas, e o velho ditado é aqui aplicado: só
os tolos não mudam de opinião. Velhos devem praticar a leveza do ser e o
desapego da matéria, tolerar papo “inteligente” dos jovens, voltar a ser
criança conhecendo o mundo pela primeira vez.
Ficar velho é um sentimento de missão cumprida e comprida. Sei que
estou mais perto da morte do que jamais estive, mas não sinto meu coração
apertar de medo, e sim que vou deixar meu corpo físico e partir para o
desconhecido do qual também não tenho medo.
Posso me imaginar num jardim maravilhoso rodeada de bichos e dos
que partiram da minha família antiga. Ou então vou me desmanchar num
microátomo, ser parte do Todo e desvendar os mistérios que tanto
questionei quando estava viva. Morte deve ser o grande gozo final da vida;
aonde quer que eu vá, lá estarei eu.
E, se por acaso a morte significar o fim total de minha consciência,
também vou gostar. A única verdade só vamos conhecer quando
morrermos?
A viagem
Não conseguia dormir nos primeiros dias no quarto novo, então me
davam um comprimidinho de sei lá o quê jurando que ia me chapar e me
fazer dormir tranquila. Eu tentava dizer que era dura na queda, que quase
nada me derrubava, ainda mais aqueles placebos que queriam que engolisse.
As enfermeiras davam uma risadinha simpática e eu acabava tomando. Ó
céus, como eu entendo você, Michael Jackson…
Tempos atrás, participei de um grupo de estudos sobre teosofia, mestres
ascensionados da Fraternidade Branca, madame Blavatsky, ufologia
cósmica, Chico Xavier, tarô, runas, tao, história dos santos e das santas que
andaram pela Terra e atingiram a iluminação, budismo e tantos outros
“ismos”. Voltei ao tempo em que eu fuçava os esotéricos, sabendo que estava
no bê-á-bá da coisa, mas no caminho do despertar. No hospital, ficava
recordando de cabeça algumas aulas e leituras e, por incrível que pareça, a
memória até que voltava fácil, e assim eu canalizava o que tinha aprendido
na época.
Na noite de 30 de abril, quando o entra e sai de gente no quarto acalmou
e eu sabia que teria pela frente mais uma noite de insônia, comecei a fazer
exercícios de respiração, e nessas o desconfortável cateter enfiado no nariz
me ajudava a respirar melhor. Algo estava para acontecer. Sabe quando sua
luzinha interior fica pulsando e soprando um recado vindo sei lá de onde?
E foi de repente que me vi saindo do meu corpo físico, embora estivesse
totalmente consciente. Difícil descrever em palavras o que vi e senti quando
fui parar na presença de uma esfera flamejante multicolor. No primeiro
segundo senti medo, mas, no segundo seguinte, fui envolvida por um amor
tão imenso que me entreguei por inteira àquela aparição e, a partir de então,
fui inundada de revelações e visões nunca dantes imaginadas por mim.
Meu lado são Tomé recebeu a prova que sempre esperou para crer que
de fato a vida só começa mesmo quando nos transformamos em espírito. O
“outro lado”, ou seja, as Dimensões de Luz, nos é muito mais familiar do que
este lado, onde vivemos presos dentro de corpos densos. Não sei quanto
tempo durou a viagem até me sentir puxada de volta para a cama do
hospital. Aterrissei em estado de graça e com o sol nascendo em primeiro de
maio.
Tentei escrever sobre a experiência, mas palavras não davam conta. Foi
uma trip pessoal e intransferível. Ainda numa espécie de transe, me toquei
da prova de fogo que seria cuidar do meu corpo físico dali pra frente e topei
o desafio. Antes mesmo de nascer, minha vida inteira fora programada por
mim junto aos mestres de Luz que conhecem e servem ao propósito Divino.
Agora só resta cumprir meu darma neste corpo físico que, no momento, é
tratar de vencer o câncer.
Tendo consciência disso, senti uma fé de que fazia tempo meu coração
andava afastado. Desta vez eu teria que vencer o dragão da maldade que
tinha se alojado em mim sob a forma de tumor por mea-culpa, mea-culpa,
mea maxima culpa.
O cigarro
Durante anos e anos tive o principal aliado causando um baita dano no
meu pulmão: o cigarro. Havia tempos vinha recebendo sopros para parar de
fumar e eu simplesmente ignorava e até tirava sarro quando alguém me dava
um toque. Para mim, fumar era um prazer, uma chupeta, um velho amigo
que me entendia, e ainda havia o ritual de abrir o maço, puxar um cigarro,
manuseá-lo um pouco, acendê-lo e dar um longo trago, esquecendo os
problemas da vida… pelo menos por uns minutos.
Comecei a fumar aos 22 anos e só conseguia parar total quando
engravidava ou quando me dava na telha de substituir por cannabis, que é
uma planta sagrada e condenada por gente burra. Não dá para dizer que eu
fumava cigarro industrial por ignorância; eu sabia muito bem o que as
facadas de fumaça venenosa causavam aos meus pobres pulmões.
Fumava para meditar sobre uma letra de música, buscar uma solução
para problemas caseiros ou dar uma pausa e só bundar no jardim pensando
em como salvar a Natureza enquanto poluía com meu tabaco os delicados
aromas das gardênias, dos manacás, das damas-da-noite, ou seja, a mesma
Natureza que eu queria tanto salvar… lá estava eu jogando Marlboro no ar.
Rita paradoxal. Alguma coisa estava fora da nova ordem mundial em relação
aos cuidados com nossa Terra Nave Mãe.
Confesso que os dois maços que fumava por dia me cegavam dos
conselhos, sinais, sopros, das indiretas e de uma tonelada de avisos para dar
um stop definitivo no único vício que faltava para me considerar realmente
limpa.
Nasci no pós-guerra, e por muito tempo a moda era imitar o glamour
dos meus ídolos, que faziam cenas sedutoras com cigarro, como James
Dean, Marlon Brando, Humphrey Bogart, Brigitte Bardot, Beatles, Stones,
Hendrix e outros tantos. Repare só como é raro encontrar uma foto de Dean
sem um cigarrinho na mão. Além disso, havia o fator “proibido fumar nesta
casa”, o que tornava a coisa ainda mais sedutora.
Quando começou a pandemia, a noia existencial e as notícias me faziam
consumir três maços e meio por dia, daí batia a culpa por não estar me
alimentando direito e fumando feito louca. A primeira intenção na
consciência era me forçar a comer uma simples banana, mas na hora H
trocava facilmente a fruta pelo cigarro.
“Amanhã eu como”, mentia para mim mesma. E nessas virei uma caveira
fumante, acendendo um cigarro atrás do outro.
Durante minha estada no hospital, resolvi fazer um detox de redes
sociais e desliguei o iPhone, o Kindle, não lia jornal nem ligava a tv, não
queria mais saber se Bozonaro ia ser julgado e condenado como genocida.
Enfim, a treta no momento era eu comigo mesma. Quem precisava de todo
o foco naquela hora era meu corpo físico, esse corpo que foi tão maltratado
e desrespeitado por mim nesses 74 anos de vida, tanto que o coitadinho
estava com o mesmo peso da minha saudosa buldoga Bibi. A partir de
então, seria como eu dizia na música “Saúde”: “… eu sei que agora eu vou é
cuidar mais de mim”.
Adendo cigarro
Não esperem que esta velha que ora vos escreve vire garota-propaganda
antitabagista com discursinho inútil que, para um fumante, entra por um
ouvido e sai pelo outro. Se você pretende parar com um vício, o primeiro
passo é “querer de verdade” e se concentrar no seu mind power. Ou então
aguarde ser merecedora, como eu fui, de uma “praga” das dimensões de Luz
que resumiram a ópera:
“Enjoy, enjoy, you have no choice! Você desdenhou de nossa luzinha
interior lhe avisando através de sinais, sopros, sonhos. Agora parou de
fumar na marra.” Os espíritos de Luz às vezes tiram bastante sarro na cara
dos sapiens arrogantes.
Na verdade, passei a agradecer a porrada celestial porque, de outra
maneira, eu ainda estaria fumando zilhões de cigarros por dia, deixando o
tumor crescer alegremente enquanto morria asfixiada com look de múmia
de faraó.
A alta
Um belo e inesperado dia recebi alta. Foi como ser libertada de uma
solitária. Ficou resolvido que eu voltaria de ambulância para casa com o
cateter de oxigênio. Minha vontade era de abraçar e beijar todo o staff do
hospital em agradecimento aos cuidados e carinho que tiveram comigo. E
aquele maldito Bozo desdenhando e ignorando os que trabalham na linha
de frente da saúde. Chegou a turma da ambulância, e lá fui eu
superamarrada na maca feito Hannibal Lecter.
Tudo dentro da ambulância-liquidificador chacoalhava, mas dei valor à
sirene, que tirava da frente os carros e nos dava passagem. Quando
chegamos, abriram a porta traseira e me levaram para a sala de maca. Aos
poucos fui desamarrada, e, ao me sentar na maca e pôr os pés no chão,
respirei o cheiro saudoso da minha toca, cheiro de bicho, cheiro da minha
vida. Abraços, beijos e gracejos da família, e cadê a bicharada peluda? Saci
olhou para mim e saiu chispando, acho que o cheiro do hospital o
afugentou. Nino fez festinha latindo, pulando e abanando o rabinho; Gambá
miou enquanto se esfregava na minha perna, me desejando boas-vindas, e
Neguinha nem sequer acordou, deitada na cadeira de balanço.
Meu namorado humano Rob encheu a casa de flores, mudou móveis de
lugar, arrumou meu quarto, comprou todos os remédios de que eu ia
precisar, encheu a despensa de guloseimas, enfim, um lorde.
Meus meninos se revezavam no começo, mas Tui também tinha que
cuidar de Arthur porque a creche ora abria, ora fechava. Beto também tinha
que cuidar de Ziza e preferia o FaceTime diário. Juca e Rob passaram meses
grudados comigo. Minha família é foda, linda e fofa.
O foco era eu ganhar peso e ficar forte para aguentar o tranco que viria
pela frente. Então, em casa, Rob, Juca e Tui se revezavam como chef de
cuisine, e até aprenderam a fazer smooothies naturebas que levantavam
defunto e ficavam alertas para que eu tomasse por dia pelo menos três
shakes heavy metal com proteínas e calorias.
Tanta gente sem ter o que comer no mundo, e a veia fazendo frescura
diante de uma alimentação feita com todo amor pela família. Mas não era
bem assim, comer sem fome é uma tortura, e lembrei de um desenho
animado do Pica-Pau usando um funil no Zeca Urubu forçando gasolina
goela adentro do rival.
Ainda no hospital, soube que Rob havia contratado duas enfermeiras
para acompanhar meu restabelecimento, um dia uma, outro dia outra.
Situação esquisitíssima ter duas pessoas desconhecidas em casa atrás de
mim o tempo todo, medindo ora o nível de oxigênio no sangue, ora a
pressão, ora a temperatura e alertando sobre o horário certo dos trocentos
remédios. E dá-lhe inalação de três em três horas e tapotagem em seguida,
que são porradas dadas nas costas com as mãos em concha para ajudar a
desgrudar o catarro dos pulmões. Mas percebi que com as crises de pânico
minhas cuidadoras não sabiam lidar muito bem, nem esperar meu tempo
para ficar “normal” de novo. Ambas demonstravam certo medo de cuidar de
uma velha artista tida como drogada e malucona.
No começo, as enfermeiras ficaram assustadas com meu número de O
médico e o monstro que começava sem aviso. Minha família já estava
acostumada. E quem me socorria, me abraçando e sussurrando palavras no
meu ouvido que acalmavam aos poucos meu “bixo porra-louca”, eram Juca e
Rob. No fundo, as nurses deviam achar que “todo artista toma ‘tóchico’”, mas
logo entenderam que essas crises fortes de pânico invadiam minha cabeça
quando menos esperava. Para Rob e eu, que havia dez anos morávamos
sozinhos no mato, dividir a casa com elas foi esquisito. Aos poucos, fomos
levando menos sustos e nos adaptando a dar de cara com uma delas
sorrindo candidamente em algum canto da casa. A convivência com as
enfermeiras merece um capítulo à parte porque me baixou um script à la
Stephen King e várias vezes a noia de que elas iam me assassinar me
pegava… seria tão fácil. Melhor era ter sempre uma tesoura à mão. Para
resumir a coisa, vou chamá-las de enfermeiras A e B.
Como disse, Rob caprichou nos vasos de flores espalhados e na nova
arrumação do meu quarto, adicionando uma cama extra. Tenho um
gaveteiro art déco de madeira trabalhada com espelho, azulejos florais,
enfim, uma peça antiga e única na qual eu espalhava minha coleção de
perfumes, velas e incensos sobre sua bancada de mármore. De um dia pro
outro aquilo virou um reduto de caixas de trocentos remédios, aparelhagem
para medir pressão, temperatura e oxigênio, fraldas geriátricas, tubo de
inalação, álcool gel, luvas de borracha, máscaras etc. As enfermeiras
certamente iriam achar a paciente um tanto exótica e teriam que se
acostumar às várias fotos e aos desenhos nas paredes do quarto, do closet e
do banheiro, forradas de James Dean, David Bowie, Stones, Carmen
Miranda, além da coleção de cristais, pesos de papel, pedras brasileiras
semipreciosas e outras tantas quinquilharias. Sem contar o projetor que
ganhei do Gui Samora, que faz o teto do quarto virar galáxias e estrelas.
Levei um choque, mas entendi que meu quarto seria um puxadinho do
hospital… só que radicalmente psicodélico.
Ou seja, Phantom, sou uma acumuladora. Algo em que acredito desde
pequena é no animismo, ou seja, acredito que tudo tem alma:
computadores, carros, panelas, robôs, quadros, bonecos, poltronas, camas,
armários, sapatos, imagens, postes, máquinas de fazer café etc. etc.: tudo é
feito de poeira de estrela. Ter substituído um iPhone velho que já nem
atualizava mais por um novo, por exemplo, me deixou sem dormir. Passei
semanas conversando com ele, explicando que não ia jogá-lo fora nem dar a
ninguém, que há funções no novo aparelho necessárias para eu me
comunicar melhor com o mundo. Enfim, o velhinho continua sendo meu
amigo com o qual passei momentos inesquecíveis e ainda dorme na
mesinha de cabeceira. Sim, não jogo nada fora, pois acho que vou magoar as
traquitanas.
Voltando à alta: apesar das recomendações médicas de evitar contato
com meus pets, que, segundo eles, poderiam me trazer fungos porque eu
estava praticamente sem imunidade, cheguei em casa e já fui me deitando
no chão para sentir o prazer de ser lambida, mordida, arranhada; de rabos
abanando e beijos na boca. Meus filhos peludos jamais me dariam fungo, só
amor. Enfermeira A ficou horrorizada, mas apenas sorriu candidamente
apavorada.
Primeira coisa que eu quis fazer foi tomar um banho e ficar horas
recebendo pingos d’água quentinhos e generosos do meu chuveiro familiar.
Como meu equilíbrio para andar não estava assim tão firme nem minha
oxigenação mostrava normalidade, enfermeira A me avisou para sentar no
banquinho de plástico que ela me daria banho. Tarde demais. Me bateu uma
ansiedade incontrolável que me fez arrancar minha roupa, ficar pelada e
pow: entrei no chuveiro feito bala e comecei a me ensaboar da cabeça aos
pés para sair pelo ralo toda a porcaria que grudou em mim no hospital. Mas
acontece que exagerei na estabanação e comecei a perder o fôlego, daí
precisei mesmo me sentar no banquinho. Nessas, a enfermeira A invadiu o
box e, enquanto o oxigênio me salvava de um lado, do outro tive que dar o
braço a torcer que A me avisou para pelo menos pegar leve, coisa que eu não
sabia o que significava.
— Dona Rita, a senhora ainda não está em forma para exercícios que
exigem muita movimentação.
Baixei a cabeça e aceitei o veredito. Enfermeira A era cdf e atenta; eu
podia estar dormindo que ela me acordava com jeito no horário do remédio,
da inalação ou para tomar sopa. Também me acompanhava ao toalete, tanto
fazia se era xixi ou cocô, o que me afligia de constrangimento no momento
de soltar um pum. Marcação mulher a mulher. Quando eu deitava um
pouco à tarde e fingia cochilar, descobri que ela era viciada em palavras
cruzadas e comemorava ao matar a charada com uma risadinha.
Comecei a dar valor a ela quando percebi que A tinha toc. Certa vez,
me levantei da cama para pegar uma garrafinha d’água na bancada do móvel
déco e tirava a bula de uma caixa de remédios quando ela entrou no quarto e
deu um gritinho:
— Dona Rita, a senhora não pode se levantar sem minha presença
porque está sem equilíbrio nas pernas. Se precisar de alguma coisa, estou
aqui para isso.
Uma espécie de “bronca da Gestapo” de preocupação apenas. Em
seguida me deitou de novo e correu para arrumar a fileira de garrafas d’água,
guardar a bula na caixa e colocá-la onde estava. Eu era só uma velha
rabugenta implicando com pecados bestas que os jovens cometiam.
Em compensação, enfermeira A fazia uma massagem no corpo com um
creme próprio para os efeitos da queimadura que a radioterapia causava que
era tipo “Lucy in the Sky with Diamonds”. Suas mãos acalmavam até as
crises de pânico.
Já a enfermeira B era meio robótica, bastava eu dizer o que fazer e ela
obedecia; dava a impressão de que tinha pré-pânico quando eu a chamava
para alguma necessidade e arregalava os olhos por uns segundos antes de
captar a ordem. B não ousava entrar no banheiro comigo, mas notei que ela
se interessava em me ver escovar os dentes por causa do meu ritual de meia
hora com escovas diferentes e outros salamaleques bucais. Se eu falasse “não
tô a fim de tomar esse remédio”, B mais que depressa saía de perto e o
devolvia para a caixa. As duas, apesar de já estarem uma semana em minha
casa, usavam máscara full-time, e era meio aflitivo não ver o rosto delas por
inteiro. Cheguei a pedir que tirassem por um segundo, e elas diziam que era
regra básica quando estivessem perto de mim, uma vez que minha
imunidade estava abaixo de zero. Enfermeira A listava tudo o que ia rolar,
tipo “Agora dona rita vai fazer inalação, depois dona rita vai tomar um
banho e escolher uma roupinha confortável para descansar, enquanto isso
vou afofar os travesseiros, e quando dona rita estiver deitada checo os sinais
vitais”. Já enfermeira B chegava devagarinho, perguntando bem baixinho:
“Dona rita, gostaria de uma sopinha de aspargos?”. Enquanto A falava alto
quase o tempo todo, B ficava muda com os olhos meio arregalados. Eu não
sabia se elas eram assim mesmo ou se tinham medo de mim.
Lembrei de Hitchcock ao imaginar uma cena em que eu estaria me
enxugando depois do banho e uma delas, ou as duas enfermeiras, entraria
no banheiro com um vaso pesado para me matar e depois diria à minha
família que caí no box, bati a cabeça e acabei batendo as botas. Bastaria que
uma delas me imobilizasse (acho que uma função de B) e a outra (A com
um sorriso cândido) arrancasse o cateter do oxigênio, tampasse meu nariz
com a mão esquerda e com a direita minha boca. A velha não duraria viva
nem dois minutos. Crime perfeito.
O resumo
Se você não leu minha primeira autobiografia, posso fazer um
resumo: é a história de uma menina tímida mas safada que passou por altos
e baixos, virou uma adolescente metida no clube do bolinha do rock, foi
expulsa de uma banda, começou a compor música sozinha sem saber tocar
nem cantar direito, conseguiu certa evidência, encontrou o amor de sua
vida, foi presa grávida na época da ditadura, ganhou projeção nacional, caiu
nas drogas enquanto sua antiga família morria um a um, teve três filhos,
entrou e saiu de hospícios, conseguiu sucesso e fama, teve uma neta e um
neto. Hoje, já velhinha, está careta, tem pouquíssimos amigos humanos e
mora numa casinha no meio do mato com seus bichos e suas plantas e é feliz
para sempre. Fora o resto. The end.
A radioterapia
A preparação para a radioterapia é sci-fi misturado com o filme A
máscara de ferro. Um pedaço de plástico duro com vários furos foi moldado
sobre meu rosto e tórax para proteger os órgãos ao redor do pulmão das
radiações. No começo, pensei que fosse morrer sufocada porque a máscara
comprimia o rosto e quase não dava para respirar. O procedimento em si
durava uns dez minutos, a preparação é que demorava mais. Rob me levava
de carro ao hospital deitada no banco de trás de segunda a sexta, e essas
viagens, que duraram um mês, acabaram virando rotina.
A rodovia Raposo Tavares até que se comportou direitinho, só em uma
única vez que ficamos três horas presos no trânsito. Rob colocava Paul Horn
para tocar no caminho, e eu no banco de trás ia meditando e entrando em
contato com as forças de Luz.
Foram trinta sessões diárias de radioterapia, que fizeram a pele do
pescoço e do tórax ficarem em carne viva, criando bolhas e feridas que
coçavam feito pó de mico. E, quando chegava em casa, as enfermeiras me
empapuçavam de um creme próprio para queimadura. Entrei numas de
deixar de ter medo da máscara da radio e passei a tentar ser amiga dela, uma
vez que seu trabalho era me proteger.
Comecei a aplicar a tática da respiração com o diafragma que me
acalmava e, sinceramente agradecida, passei a chamar a máscara de Leonor.
Ou seja, as sessões de radio eu tirei de letra, apesar das queimaduras em
alguns órgãos internos, como no esôfago, que faziam cada engolida parecer
uma agulhada na garganta.
Eu precisava ganhar peso, mas além de não ter fome, o simples fato de
engolir saliva era de matar de dor. Depois passei para a segunda fase, que foi
tomar nos canos os remédios da imunoterapia que levavam três horas para
acabar. Lá estavam ao meu lado Juca e Rob, sempre me botando pra cima,
fazendo graça, falando mal do Bozo, conversando sobre futilidades, fazendo
massagem nos meus pés. A preocupação geral era de que, no meio daquele
entra e sai de médicos e enfermeiras, eu pudesse ter uma crise, daquelas
quando minha cabeça inesperadamente saía fora de órbita.
No meio dos trocentos exames que pediram, fiz dois pet Scans, um do
pescoço para baixo e outro da cabeça. Foi constatado que, no meu caso, a
imunoterapia não estava adiantando, já que os pontos cancerígenos
continuavam lá. Mas a radioterapia havia conseguido destruir os vinte
centímetros de diâmetro do tumor no pulmão.
Eu teria que partir mesmo para a quimioterapia, porque haviam
aparecido outros pontos do mesmo tipo de câncer na região da bacia e
também no cérebro. Como minhas células cancerígenas eram chamadas
“pequenas”, daquelas que se formam rapidamente, mas que também somem
rapidamente, a quimio seria mais indicada no combate ao câncer do que a
imuno.
Voltou à cabeça minha mãe voltando da quimio vomitando a alma,
exausta, com diarreia, enfim… Vi de perto aquela flor de mulher ir se
encolhendo e se transformando numa criatura frágil e dolorida. Minha
primeira reação foi imitar Amy Winehouse dizendo: “No! No! No!”.
Depois de Rob e Juca investigarem a fundo os prós e contras da quimio
para destruir as minhas tais “células pequenas”, eles me convenceram a dar
um crédito ao tratamento que seria feito no hospital a cada 23 dias, em
sessões que durariam três horas. Puxei o médico de canto e disse que, se o
tratamento não desse certo, meu desejo era o de fazer a passagem em casa e
sem dor.
Às vezes, eu pensava na sorte de estar sendo tratada por médicos e
enfermeiras capacitados para ajudar na minha cura e me comparava com
aqueles que não tinham esse mesmo privilégio. Daí, aparecia um lado de
agradecer aos céus por ter mandado essa doença que, no fim, veio para me
curar física, mental, psicológica e espiritualmente. Aquele lance que eu
sempre falo: está tudo certo, até o errado está certo.
Adoro quando bate em mim um estado de graça que me faz agradecer a
Deus por esses segundos de epifania e bênção existencial, uma espécie de
kundalini que dura uma brisa.
Nessas alturas, já havíamos trocado três vezes a enfermeira B por
motivos de segurança: para chegar em casa, no meio do mato, elas pegavam
ônibus lotados, e a possibilidade de me passar algum vírus ficou mais
preocupante, além de não se adaptarem muito com o jeito que eu tratava
meus bichos, que fazem questão de dormir comigo.
No fim, optamos só pela presença da enfermeira A dia sim, dia não, e eu
me senti menos vítima da Gestapo. Quanto à parte psicológica e às crises de
pânico que tomavam minha cabeça por motivos ainda desconhecidos,
minha família encontrou um psiquiatra que me pareceu sensível e não
invasivo. Falava baixo, era bem jovem e não tinha nada contra minha
espiritualidade. Começou substituindo tarjas pretas por remédios mais
modernos e não viciantes.
Demorou um pouco para perceber que as crises, a ansiedade e a
depressão deram lugar a uma calmaria, e nessas, ao pressentir uma noia
invadindo a cabeça que me fazia tremer e hiperventilar, eu conseguia com
muito custo lembrar de controlar a respiração e daí não tinha jeito, precisava
tomar um benzodiazepínico. Às vezes dava certo, mas o pânico invadia sem
aviso, parecendo destruir meus neurônios, já tão assustados pelas idas e
vindas do hospital.
Mas, em grande parte das vezes, o medo pelo sofrimento que a quimio
causou em minha mãe foi suplantado pelo desejo de me curar daquele
câncer em homenagem a ela, como uma vingança tipo máfia siciliana.
O mal pela boca
Com tantas idas e vindas diárias do hospital, eu já estava enturmada
chamando o staff das enfermeiras pelo nome, e fiquei tão chapa do pessoal
da radioterapia que, quando acabaram os trinta procedimentos, pedi para
levar Leonor, a máscara, e eles me deram de presente. Fora isso, encheram o
quarto de bexigas coloridas. Fofos.
Tentei fazer fisioterapia, mas por uma razão desconhecida eu panikava
no meio da sessão, e a moça ia embora sem entender nada.
Uma madrugada que não conseguia dormir, senti uma espécie de
catarro no peito, desses que parecem cola, e fiquei aflita tossindo para tentar
eliminá-lo e respirar melhor. De repente me engasguei e foi quando expeli
pela boca uma “carne” parecida com frango cru; não era catarro, não se
desfazia, não tinha cheiro, simplesmente pulou no lenço na minha mão e
grudou lá. Tirei foto e coloquei o pedaço dentro de um copo com água. Fato
é que depois de expelir aquela “coisa-cadáver” consegui dar uma respirada
longa como se tivesse me desafogado de uma areia movediça, tamanho
alívio.
O milagre é que não voltei a tossir mais e consegui inspirar uma
generosa quantidade de oxigênio pela primeira vez em anos. A partir
dali, me dei alta do cateter, que, se bobear, a gente fica viciada nele —
ainda mais eu, que sou uma pessoa fácil de se viciar.
Entrei numas de achar que desovei pela boca um mal materializado que
atrapalhava minha respiração. You may say I’m a dreamer e coisa e tal; se
tentasse explicar aquela minha teoria para um médico ele iria bocejar ou me
mandar para um hospício.
A vontade
Já em casa, de vez em quando, sentada na varanda onde costumava
fumar, bate uma larica de tabaco, e eu tenho que segurar minha cobra com a
mente, algo mui difícil de desprogramar. Pavlov explica. O primeiro cigarro
do dia! Os outros são a mera procura da sensação do trago inicial. Dizem
que largar o vício do fumo faz a pessoa engordar, mas comigo até agora isso
não aconteceu porque a radioterapia emagrece pra caramba.
Eu me imaginava parecendo aquela figura cadavérica que apresentava a
série Tales from the Crypt.2 Precisava me alimentar de três em três horas,
mas fome que é bom, nada. Apesar de sentir melhor o gosto da comida,
ainda não era o suficiente para sentir prazer em comer. Enfermeira A vinha
oferecer suco, fruta, sopa, chá, e eu, sem nenhuma vontade, enfiava goela
abaixo e agradecia seu sorriso cândido. Tentei assistir tv, mas deu desespero
entrar em contato com o que acontecia no Brasil e no mundo. Não
conseguia ler, a atenção se perdia em poucos segundos. Tentei pintar, fazer
tricô, escrever, arrumar gavetas, mas a função durava não mais que um
suspiro de desânimo.
Paralelamente à pandemia pandemoníaca — que levava embora amigos,
parentes, artistas —, em vez de covid, eu estava com câncer e teria que
engolir o preconceito e aceitar a ceifadora Cruela Cruel da quimioterapia.
O fato de ter conseguido não fumar durante aqueles dias levantou minha
autoestima e me fez gostar mais de mim, mas quando batia do nada aquela
vontade de dar um trago, eu imediatamente me lembrava da raiva que sentia
quando alguém me contava que tinha largado o cigarro com facilidade.
No fundo, no fundo, uma fumante inveterada feito eu se aborrece com
discursos xiitas antitabagistas de gente que nunca nem sequer pôs um
cigarro na boca. Em casa, Juca sacava no ato quando a mãe estava na fissura
e sempre me favorecia com balinhas. É claro, fiquei viciada nelas.
Nota
Adendo oração
Há uma linda oração de um mestre tibetano, que nunca esqueci e rezo todos
os dias chamada “A Grande Invocação”:
Do ponto de Luz na mente de Deus, que flua Luz à mente dos homens,
que a Luz desça à Terra.
Do ponto de Amor no coração de Deus, que flua Amor ao coração
dos homens, que Cristo retorne à Terra.
Do centro onde a vontade de Deus é conhecida, que o Propósito guie
as pequenas vontades dos homens, o Propósito que os mestres
conhecem e servem.
Do centro a que chamamos a raça dos homens, que se realize o Plano
de Amor e de Luz e feche a porta onde se encontra o mal.
Que a Luz, o Amor e o Poder restabeleçam o Plano Divino sobre a
Terra.
A cadeira de rodas
Em casa, estabelecemos uma rotina e a vida seguia. A gracinha
desgraçada desta semana é que estou com bronquite e meu peito chia. Faço
inalação de três em três horas, depois Rob faz a tapotagem, que me instiga a
liberar catarros nojentos pela boca bem na frente do namorado. Já falei para
Rob me botar numa casa de repouso para que não veja mais cenas
escatológicas da mãe dos filhos dele. Meus horários estão caóticos, vou
dormir meia-noite e acordo às quatro e meia, com a algazarra das maritacas.
Desço e vejo o nascer do sol, faço café descafeinado e subo de volta ao
quarto munida do meu velho e bom Ipad. Escrevo poucas linhas porque
quando acordo as ideias do sonho que me inspiraram somem num instante.
Hoje, sonhei com Fernanda Young.
Por falar nisso, lembrei de um sonho, que se passava nos anos 1940. Lá
estava eu, numa festa no Copacabana Palace, rodeada de celebridades da
época, todas meio blasées, usando figurinos deslumbrantes. Entre confetes e
serpentinas, eu cruzava absolutamente deslumbrada com artistas de rádio e
cinema. Por mais que tentasse entrar na folia e me deixar levar ao encontro
de astros e estrelas, sabia que minha missão era avisar que eu vinha do
futuro e que aconteceria uma tragédia em 11 de setembro de 2001 que
mudaria o mundo.
Carmen Miranda foi atenciosa, me tratou como uma convidada meio
confusa, ofereceu champanhe e disse para aproveitar a festa. Também tentei
avisar Noel Rosa, que me deu um cigarro e falou para não me preocupar
com coisas que só iriam acontecer dali tantos anos. Passei a festa toda entre
me encantar com o desfile de todos aqueles artistas e a ingrata obrigação de
lhes contar o segredo que sabia. Uma hora lá, entreguei a Deus, cheirei
lança-perfume e fui dançar com Aracy de Almeida. Passei o resto do sonho
me deliciando por estar no meio de beautiful people vintage brazuquês.
A alegria dos personagens me fez esquecer do Onze de Setembro.
Acordei com a sensação de ter participado de uma farra chique onde não
havia lugar para baixo-astral futurista. A atividade física que eu mais gosto é
dormir.
Voltando à minha rotina, lá pelas dez da manhã ainda tento tirar uma
soneca, mas como nada acontece, saio da cama, tomo banho, já que agora,
careca, é só passar toalha na cabeça que seca na hora. E depois de velha dei
para usar uns cremes no rosto e no corpo. O sono não vem, desço e dou
papá para meus filhos de quatro patas, e depois vamos todos dar um giro
pelo jardim.
Tive que colocar uns alarmes no relógio de pulso para me lembrar de
tomar remédio na hora certa nas folgas da enfermeira. Chato é, além do
tempo louco que muda muito e de não poder tomar sol de corpo inteiro por
conta do câncer de pele, então me satisfaço em tomar vitamina D pela sola
dos pés. Cinco minutos depois, chega um ventinho frio e sou obrigada a
entrar em casa para não piorar a bronquite.
Onze horas Rob acorda e vem fazer festinha, nunca vi alguém acordar
com o humor lá pra cima como ele, todo dia desce a escada cantando e
dançando. Tento cochilar à tarde, mas não consigo parar os pensamentos, e
é nessas que pode surgir do fundo dos infernos um indesejável “pânico
crepuscular” que me tira do caminho da Luz Divina e me faz entrar de
supetão naquele estado de “Meu Deus, estou com câncer, uma doença que
pode ter cura por um tempo, mas tende a voltar em qualquer outro lugar do
corpo”, e isso me deixa aflita.
E no planeta a pandemia correndo solta, o Bozonazi e sua Gestapo
despertando em muita gente os desejos mais primitivos de cortar suas
cabeças com a Excalibur.
Cada subida ou descida nas escadas de casa era um desafio. Não
demorou para que eu começasse a sentir um cansaço, mesmo andando a
passos lentos. Sempre que ficava em pé, minha cabeça sintonizava um
histérico carrossel de imagens, cada vez mais alucinante, que congelava
meus neurônios, e então eu tinha que me sentar onde fosse para apagar por
uns segundos. Para as tonturas, me disseram que era labirintite, existe um
remedinho. Mais um comprimido junto de outros tantos.
Pensando nessa situação desagradável, Rob veio cheio de dedos com a
ideia de uma cadeira de rodas. O céu se abriu concordando, a enfermeira A
lembrou que uma colega sua estava doando uma cadeira de rodas, e foi
assim que virei cadeirante.
Em menos de dez dias a expo vai estrear. Nem bem os remixes saíram e
Juca emendou como curador. Na direção artística está o meu melhor
amigo/filho, editor, jornalista, escritor, fotógrafo e maior estudioso do meu
legado musical, Guilherme Samora.
A exposição é baseada no meu baú, no qual guardo quase todos os
figurinos das turnês, dos clipes, dos shows, enfim, sou uma acumuladora.
Meus anjos colaboradores trabalham noite e dia para ela ficar pronta. Estou
contando com colaboradores de peso, como a produtora Dançar, que
contratou o famoso multiartista e meu carnavalesco predileto Chico
Spinosa, estilista de longa data de looks inesquecíveis. Afinal, só ele poderia
ressuscitar algumas peças que já estavam caídas.
Fiquei torcendo para que aquele evento proporcionasse divertimento às
pessoas que passaram meses e meses trancafiadas em casa, proibidas de
frequentar os pequenos prazeres que Sampa sempre proporcionou. Uma
exposição colorida e cheia de histórias para o povo desfrutar viria bem a
calhar.
Também temos pela frente o lançamento de uma música inédita com
uma história muito louca. Rob gravou uma demo dela e me deu para fazer a
letra. Geralmente suas músicas são meio cinematográficas, e só de ouvir a
melodia as frases chegam prontas no ouvido, como num sopro. Só que dessa
vez as palavras vieram em inglês, e eu deixei rolar para ver aonde aquilo ia
dar. Mas, para meu espanto, o refrão veio em francês. Mostrei para Rob, que
disse para tentar fazer em português, que em inglês e francês as pessoas não
iam gostar etc. e tal.
O lance é que em português o papo ficava amargo, triste, pra baixo,
falava de mortes, de políticos escrotos, ou seja, parecia linguagem de tuítes
raivosos; o santo brazuca estava puto e adotou o discurso dos descontentes,
as frases, palavras e os palavrões que todo revoltadinho das redes sociais usa,
botando o Brasil pra baixo. Para ter isso bastava lembrar das mesmices que o
povo diz sem papas na língua. Em inglês e francês, a música ficava pra cima,
mais sofisticada, virou uma world music.
Ainda mais com o trato na produção feito pelo dj Gui Boratto, a música
virou um convite irrecusável para dançar, atropelando o baixo-astral que
havia tomado conta dos bailes da vida. Através das redes você pode
sintonizar a música e rebolar no banho. “Change” é uma sugestão para sair
da sofrência e mergulhar na dança do desbum, que é muito mais Brasil.
O turbante
E depois de todo esse tempo, ainda podemos dizer que ninguém sabe
nada sobre o coronavírus. Estou cansada de chutes dos tais especialistas, que
um dia dizem uma coisa e no outro desdizem na cara dura. Como estou em
pleno tratamento de câncer, o conselho dos especialistas afirma que é super
hiperimportante tomar a terceira dose de uma vacina diferente das duas
primeiras doses. A história da vacina no Brasil está igual ao samba do
presidento doido. Se eu abrir o portal de informações, vou xingar sobre a
forma que o desgoverno vem tratando as vacinas, parece até um capítulo dos
Trapalhões, e não sei se choro ou se debocho.
Quando chego ao hospital de carro, uma equipe já me espera com
cadeira de rodas, cobertor e simpatia. Pelos corredores até o quarto da
quimio, cruzo com oncolegas na mesma situação que a minha e nos
cumprimentamos cúmplices.
Outro dia, já quase na sala da quimio, vi no corredor um cabideiro
grande e, em cada gancho, uma espécie de cartola que parecia coisa de circo.
Perguntei o que era, e a enfermeira disse que alguns oncolegas ficavam
deprê, beirando o desespero quando o cabelo começava a cair, daí essas
cartolas congelavam o couro cabeludo e seguravam a queda. A peça parecia
um capacete dos Flintstones, ou um secador dos anos 1950. Um et vendo
alguém com aquele treco iria gargalhar diante da precariedade da nossa
medicina. E as cartolas ainda tinham umas anteninhas, que deixavam a
pessoa com um look Chapolin.
Ser careca é adotar diferentes hábitos, outros eus dentro de mim, uma
pessoa dentro do nosso ego inferior que é a gente mesmo. O mais
transformador foi, sem dúvida, ficar pela primeira vez desde que nasci sem
franja, que é a mesma sensação de estar pelada no meio da avenida Paulista
e todos rirem de mim.
Quando eu tinha meus vinte e poucos anos, pensei em raspar a cabeça,
mas a família me fez trocar a ideia por umas aulas de desenho na faap e eu
topei. Outro dia fui tomar banho e me deparei comigo pelada na frente do
espelho e enxerguei uma franga depenada, perninhas de graveto, pele
amarelada da radio, coxas drapeadas, ou seja, uma galinha velha que nem
bom caldo daria. Contando assim parece engraçado, mas não é fácil estar
naquele look aniquilador de autoestima.
Como estou trabalhando para me transformar numa velhinha fofa,
procuro todo dia adotar uma personagem esquisita, tipo uma baronesa
exótica que não abre mão de uma leve maquiagem para dar um up no
esqueleto.
Usar turbante à la Simone de Beauvoir com um broche grande na frente
era imprescindível e, como não fumo mais, adotaria uma bengala para
respeitarem meus cabelos brancos. Gui já me deu um monte de broches
grandes para enfeitar os turbantes. Fico bem de perua intelectual. Poderia
também usar um lenço e um vestido simples de camponesa, me
transformando numa mulher da roça que não liga muito para a aparência.
Minha mãe certamente haveria de sonhar com a caçula entrando para um
convento de carmelitas usando um hábito. Por outro lado, longe do espelho,
ao passar a mão na cabeça, gostaria de usar o figurino de um rapaz dos anos
1930, com calça larga, suspensórios, chapéu ou boina, gravata-borboleta
talvez.
Rob confirmou que quando eu tinha cabelo era parecida com minha
mãe e que careca sou igual a meu pai. Minha persona masculina tem um
quê de Sartre, fala pouco, é discreta e meio cegueta, mais na dela, sentada
numa poltrona meio puída devorando livros. Já meu quê Beauvoir tem a
leveza de ser sempre uma persona grata e um cabelo que não lhe faz falta:
ela adora seus turbantes.
Os livros
Estou tão feliz porque finalmente voltei a ler. Um tempo atrás eu
queria doar todos os meus livros, eram muitos e tinha de tudo. Passei dois
dias empilhando os trocentos exemplares num quartinho que tenho no
quintal de casa e que agora não dá para entrar de tão entupido. Rob também
me deu de presente um Kindle, que é ótimo, embora manusear um livro e
cheirar suas páginas não tenha preço. Vou garimpar os livros tesouros
favoritos e doar os que são tolinhos.
Estou em casa aguardando a vacina de reforço. Todos os meus médicos
foram unânimes com relação à terceira dose para idosos, e a indicada foi a
Pfizer. Agora resta saber se ainda haverá tal vacina quando chegar minha
vez. Como eu já disse numa música:
Adendo expo
Os visitantes podiam deixar bilhetinhos para mim durante os meses em que
a expo ficou em cartaz. Recebi caixas e mais caixas cheias de declarações de
amor, muita mensagem de força, poemas, desenhos, alguns pedidos para
que eu me candidatasse à presidência (ahm?) e um pedido para fazer um
pix. Ah, tinha a mensagem de um fã que disse ter lambido uma roupa
minha. Fofo. Mas pra que lamber uma roupa minha?
Justo, Phantom, justo. Mas também queria dizer que amei os desenhos
das crianças. Alguns me pintaram de super-heroína dos animais. Ah, e
recebi um pedido de casamento de um jovem gay. Dei valor.
A garotada
Volta e meia recebo cartinhas de fãs, e alguns são bem jovens,
contando como meu trabalho com a música mudou a vida deles e
lamentando que antes não tinham idade para assistir a um show meu.
Fico no céu lendo essas coisas e me emociono quando escrevem que não
são aceitos pelos pais por serem diferentes, e como minhas músicas são uma
companhia e os libertam nessas horas de solidão.
Dia desses, um menino, rejeitado pela família por ser gay, me disse que
pensou até em desistir desta vida, mas que ao ouvir minhas músicas decidiu
ficar.
Dá vontade de pegar todos no colo e cantar baixinho no ouvido deles:
“Você não está só, é só um nó que precisa ser desfeito”. A gente, quando
muito jovem, tem um pé no “eu contra o mundo”. Quando eu era “uma
adolescente contra o mundo”, desenhei numa cartolina uma ilha deserta
rodeada por tubarões e escrevia nela o nome das personas non gratas que eu
mandaria pra lá. Assim, eu desopilava o fígado do ódio. Do outro lado da
cartolina, desenhei uma ilha paradisíaca onde eu gostaria de ficar com gente
bacana. A ilha do ódio tinha professores, alguns vizinhos, parentes chatos,
colegas falsianes, Natalie Wood e quem mais eu fosse odiando. Na ilha do
amor era só James Dean e eu.
Mas sinto que é mais complicado ser jovem hoje, já que nunca tivemos
essa superpopulação no planeta: haja competitividade, culto à beleza, ter
filho ou não, estudar, ralar para arranjar trabalho, ser mal remunerado, ser
bombardeado com trocentas informações, lavagens cerebrais…
Queria dar beijinhos e carinhos sem ter fim nessa moçada e dizer a ela
que a barra é pesada mesmo, mas que a juventude está a seu favor e, de
repente, a maré de tempestade muda, fazendo o barquinho seguir até sua
ilha deserta e ensolarada de amor. Diria também para não planejarem nada
a tão longo prazo, que a frustração pode assombrar; o que não significa não
ter sonhos, apenas que eles não caem do céu.
Diria também um monte de clichê: que vale a pena estudar mais,
pesquisar mais, ler mais. Diria que não é sinal de saúde estar bem-adaptado
a uma sociedade doente, que o que é normal para uma aranha é o caos para
uma mosca, que uma coroa não é nada além de um chapéu que deixa entrar
água, que todo dia o mundo se afoga no caos e vai ser difícil achar um lugar
para observar o fim dos tempos de camarote.
Meninada, sintam-se beijados pela vovó Rita.
O menininho
Fico perambulando pela casa vendo as traquinadas e os bichos como se
fosse a última vez. Presto mais atenção nos detalhes que antes passavam
despercebidos.
Chega a gangue dos saguis para uma rodada de banana, e é quando Saci,
o terror dos sete mares, trepa na árvore crente de que vai assustá-los, mas
quem sai perdendo é ele: os macaquinhos formam um front intransponível
com gritos e mordidas no rabo de Saci, que humilhantemente pula da árvore
dizendo “eu não estava mesmo a fim de brincar com eles”.
Ao contrário de Sophia, que era minha gata negra deusa guardiã Bastet,
uma vira-lata real, Saci tem o dna do gato malandro nascido em terreno
baldio que logo se desloca da família para seguir sua curiosidade, e nessas
veio parar aqui em casa.
Saci é um gato palhaço. Quando não tem nada com que brincar corre
atrás do próprio rabo até que alguma coisa mais importante chama sua
atenção: uma borboleta.
Ataque de desespero foi quando chegamos do hospital e vimos o
corpinho esticado de Saci, sem machucado nem vestígios de briga,
como se estivesse dormindo gostoso. Morreu de picada de cobra, foi pá
pum. Gato adolescente, no auge da vida, com tanto tesão. Lá se foi meu
menininho. E eu continuava viva.
O desequilíbrio
Meu dia não segue uma rotina, apesar de tomar remédio com horário
marcado. Como já disse, tenho acordado às quatro da manhã e me dá
vontade de pular da cama no ato, como sempre fiz. Mas agora me falta
equilíbrio nas pernas de graveto. Depois do terceiro ciclo da quimio, tenho
que andar bem mais devagar, fazer tudo em câmera lenta, então o lance é ter
foco em cada gesto. Além da marcação cerrada de alguém da família, tenho
que me concentrar nos pés, nas pernas e na coluna. Outro dia fui escrever
uma letra que estava na cabeça e peguei um bloquinho e um lápis. Esqueci
como era escrever à mão, e o lance foi escrever no meu velho Ipad.
Ainda me alimento sem fome, mas consegui engordar mais um quilo, o
que me deixou feliz porque dá uma esticadinha geral na pele do corpo e
mostra uma caveira cujo sonho de consumo é engordar nove quilos. Aliás,
Rob faz uma festa por aqui toda vez que eu subo na balança e ela mostra
alguns gramas a mais.
Antes da pandemia, eu praticava o método Feldenkrais, que é uma série
de exercícios físicos usando somente o peso do próprio corpo, seguido por
sessões de respirações e meditações sentada na terra, o que é perfeito para
dar um chão ao elemento cabra montanhesa que sou. Daí veio a mardita
pandemoníaca e fodeu com tudo. Em compensação, estou conseguindo
guardar na memória os nomes esdrúxulos de vários remédios e para que
servem. Um belo dia saquei como faz para mudar os números do oxímetro,
basta uma sequência de inspirações e expirações para que a oxigenação
aumente ou abaixe.
Quando o tempo ficar mais quentinho, preciso limpar os cristais: o ideal
é que eles tomem banho de sol, banho de chuva e, por fim, banho de sal
grosso. Sempre dá um trabalhão porque são muuuitos cristais colecionados
ao logo de toda minha vida. Sou a guardiã deles e devo-lhes muito cuidado.
Meus braços já passaram de azuis para verdes e amarelos por conta dos
acessos para injetar os componentes da quimio. Isso sem desmerecer o
barato das sextas-feiras, que me lembrava os efeitos de uma cachacinha que
traz a sensação de “a vida é bela”. Sob o resultado da droga misteriosa,
quando chego em casa preciso verificar se ainda estou viva neste corpo
denso ou se já passei deste para o espírito. Juro que tem horas que eu
realmente não sei se estou viva ou morta; quando me olho no espelho, estou
mais morta que viva, e, quando não me olho, sou mais serena sem ficar
fazendo joguinho comigo mesma.
Aliás, para passar o tempo, malho meu cérebro jogando paciência e
fazendo palavras cruzadas, o que é ótimo para manter a mente ativa e fugir
do Alzheimer. Pensando aqui, no fim do tratamento, quando ficar só na
manutenção de três em três meses, queria visitar meus oncoleguinhas
crianças internados no hospital. Pensei em ir paramentada de Morgana para
contar o segredo que só nós, carequinhas, conhecemos, mas esquecemos.
Falando nisso, escrevi uma nova aventura do dr. Alex, que fala sobre a
morte para as crianças de maneira leve e divertida. Chama-se Dr. Alex &
Vovó Ritinha: uma aventura no espaço. As ilustrações de Gui Francini são
mágicas. Tem o céu dos cachorros, eu de fada…
Quando recebi o livro número um, foi uma delícia. Até me esqueci por
um momento da realidade Cruela e viajei, como uma fadinha, pelos
cenários do livro.
Os remédios
Dando um tempo aqui nas escrevinhações para focar a série de
remédios que já tomei e os que tenho agora pela frente. Espia só por onde eu
já passei:
Inalação com soro fisiológico + 30 gotas de Atrovent + Fluimucil +
tapotagem
Zyprexa
Aropax
Losec
Decadron
Dipirona
Eliquis
Profenid
Neutrofer
Tramal
Frontal
Stilnox
Avalox
Symbicort
NiQuitin
Remeron
Droxaine
Buscopan
Sucrafilm
Miosan
Hirudoid
Zovirax
Lactulona
Phosfoenema
Pulsatilla nigricans
Hamamelis virginiana 6ch
Óleo de cannabis
Ainda de luto por Saci e agora por Gambá, eis que Luisa Mell me manda
uma filhinha-gata-preta, resgatada, e foi amor à primeira lambida. Chama-
se mestra Lady Mirian, codinome Mica. Divide o espaço com Neguinha,
nossa gata branca que perdeu a orelha numa briga de gangue e ganhou o
apelido de Gata Van Gogh, e com nosso único filho canino no momento,
guardião da casa, Nino Affonso — que se acha um pitbull e no espelho não
se reconhece como mistura de poodle com maltês.
Guilherme Samora
Guilherme Samora
No sótão, selecionando figurinos para a exposição (sim, eu sou uma acumuladora). Dias
depois, recebi o diagnóstico de câncer no pulmão.
Ilustrações: Guilherme Francini
Arquivo pessoal
Gravando o clipe de “Change”, com Roberto, no quintal de casa. Aqui, já tinha começado a
fazer quimioterapia.
Roberto de Carvalho
Logo depois da gravação do clipe de “Change”, decidi raspar a cabeça.
Roberto de Carvalho
Um tempo depois das primeiras quimios.
Fotos: Guilherme Samora
Luisa Mell, logo que chegou em casa: sou mãe outra vez.
Arquivo pessoal
Sessão de fotos que fizemos na garagem de casa, com a peruca de pérolas de Walério
Araújo.
Guilherme Samora
Os animais
Você está lá, numa boa, e chega uma chata dizendo “com tantas crianças
pobres no mundo e você aí, defendendo animais”. A primeira vontade que
dá é encher a chata de porrada, mas a gente é educada e responde:
“Defendendo animais, você educa as crianças a respeitar todas as formas de
vida, e o animal, assim como a criança, não consegue dizer que está sendo
maltratado por um adulto. Crianças e animais não sabem se defender e
denunciar abusos cometidos, e cabe a nós dar voz a eles”.
Se a chata não entende, aperto o foda-se, mostro o dedo do meio e vou
embora deixando a besta falando sozinha. Os humanos se acham mais
sagrados que os animais, deploram o aborto e matam bezerrinhos porque a
carne é mais tenra; devoram perus no Natal porque é tradição; mantêm aves
e bois enjaulados e engordados à força para comerem no dia a dia; caçam
onças, elefantes, rinocerontes para tirarem fotos; usam pele de chinchila,
raposa e foca para fazerem vestimentas; prendem-nos no zoológico onde
ficam expostos dia após dia.
Como “diversão”, os humanos obrigam animais a se humilharem e fazer
palhaçadas em circos, assim como se sentem “atletas” em rodeios,
vaquejadas, touradas, farra do boi e outros tantos eventos que ensinam
crianças que animais são meros objetos dos humanos, esquecendo que
bichos também sentem dor e estão longe de seus hábitats e famílias. E
existem certos pseudofilósofos-filhos-da-puta cujo sonho de consumo é
matar um urso. Nem me interesso pelo que esses “intelectuais” ensinam.
Cara
Olha bem pra minha cara
Veja em mim uma mulher
Que passou por muita dor
Mesmo assim aqui estou
Soltando minha voz
Minha raça, minha cor
Sendo uma guerreira
Que passou a vida inteira
Vista como nega maluca
Uma preta lelé da cuca
Eis-me aqui
Rainha africana
Brazuca sul-americana
Poderosa no meu trono
Eu não tenho dono
Nã Nã Ni Nã Nã
Eu não tenho dono
Nã Nã Ni Nã Nã
Eu não tenho dono
Rita: É mesmo?
Gal: Eu adoro, Rita… sou sua fã.
Rita: Eu fui primeiro!
Gal: Eu fui primeiro. Eu sou sua fã.
Rita: Não senhora! Eu fui primeiro…
Ok, ok. Confesso: eu usava nessa música um collant preto onde tinha
costurado tiras de velcro sobre os peitos e uma sobre a xereca, à medida que
a música seguia, eu colava e descolava os adereços brincando com a
plateia… e fiz isso com a Gal. O que eu sei é que o público aplaudia
calorosamente a cada mudança de peito e de pentelhos coloridos.
8 – Gal, junto de Cauby Peixoto e Ronnie Von, estavam entre as
personalidades que me entregaram os discos de ouro e de platina por Lança
Perfume. Foi numa festa no Rio. Ela também esteve no Rock in Rio (1985),
assistindo ao meu show do fundo do palco.
9 – Dublei “Índia”, de Gal, no TVLEEzão, programa que eu fazia na mtv
no começo dos anos 1990.
10 – Gal fez uma participação no meu show Bossa‘n’roll, em um festival
no Rio, também no começo dos anos 1990. Cantamos “Mania de você”. Nos
bastidores, a conversa foi mais ou menos assim:
— Rita, vamos fazer uma turnê juntas?
— Vou adorar! Vamos decidir repertório e ensaiar.
— Mas eu só quero cantar música sua. Faz tempo que eu estou querendo
cantar seu repertório. “Ovelha negra” não pode faltar.
Não sei de qual das duas foi a sugestão, mas saímos de lá com nome:
LeeGal, que acabou não rolando por causa das agendas que ambas
cumpriam com seus shows.
11 – Como não conseguimos fazer o LeeGal, nos juntamos novamente
para uma apresentação, dessa vez no aniversário de São Paulo de 1994, no
Anhangabaú. Ela me disse que “queria ser roqueira” naquela apresentação.
No clima, pintamos e bordamos no palco, com uma apresentação bem
salerosa de “Bem me quer”, com direito a roupas rasgadas, encoxadas e
muito carinho.
12 – Já nos anos 2000, eu cantava “Baby” nos shows, com um cabelão
encaracolado, homenageando a Gal.
13 – Anos depois de Gal me dizer que queria cantar “Ovelha negra”, ela
mandou uma mensagem dizendo que gravaria a música. Entretanto, pediu
licença para trocar na letra “pai” por “mãe”. Ela me explicou que o pai havia
sido ausente e que, por isso, se sentiria mais à vontade cantando para a mãe
dela. Respondi que ela poderia fazer o que quisesse. E assim foi gravado:
“Foi quando minha mãe me disse: ‘filha, você é a ovelha negra da família’”.
A capa
Esses dias, Gui e eu fizemos umas fotos aqui na garagem de casa, com uma
peruca de pérolas genial do Walério Araújo.
Foi parar na capa da Rolling Stone e rolou uma repercussão que eu nem
esperava. Será que acharam que eu tinha morrido? A garotada entrou
numas de me colocar nos trending topics do Twitter. Li alguns posts que
praticamente me santificaram. Fofos.
Tudo ficou a Deus dará, e Ele deu. Depois do novo ciclo de tratamento,
novos exames: os pontos sumiram, e eu fiquei mais animadinha. Sei que eles
vão voltar, mas é aquela coisa do “um dia de cada vez”. Até os bichinhos
ficaram mais calmos e carinhosos: Micaela/Lady Mirian/Jacaré cada vez
mais fofa, Nino Jesus cada vez mais guloso e Neguinha/Gata Van Gogh cada
vez mais sociável… meus três amores que me fazem carinho, cada um com
sua personalidade.
Nessas, Lady Mirian se aproximou do Nino, viraram parceiros e brincam
de esconde-esconde. Na correria, Lady Mirian quebrou um abajurzinho que
eu adorava. Tudo bem. Quando eu morrer, não levo nenhum abajur, só o
amor dos bichos.
Epílogo
Sou tão distanciada de mim mesma que pareço estar falando de uma
amiga de infância querida que eu conheço há muito tempo e só reencontrei
agora. Somos tão parecidas e tão diferentes.
Parecidas porque ela é do meu tempo, da minha geração, uma baby
boomer pós-guerra. Passamos a adolescência juntas, experimentamos o
primeiro beijo, cursamos o mesmo colégio.
Diferentes porque ela seguiu o caminho da música enquanto eu ficava
espiando o show da coxia e depois dizia que foi bacana — no que ela nunca
concordava comigo. Durante cinquenta anos ininterruptos, lembro como ela
cantou e pulou no palco pelos quatro cantos do mundo e hoje está
aposentada. Escrevi um livro sobre ela, dou declarações como ela. Enfim,
posso dizer que agradeço minha querida eu, o prazer que tive sendo ela.
Falando em mim, me vejo em todas as cartas do tarô:
Fui o Mago, quando me metia a desvendar os mistérios das perguntas
que fazia a mim mesma…
Fui a Papisa, crente que conhecia a vã filosofia entre o céu e a terra…
Fui a Imperatriz, tive grana, poder, morei num palácio, mas no fundo
sempre quis viver no meio do mato…
Na figura do Imperador, o patriarcado cortava minhas asinhas quando
invadia a praia dos que diziam me faltar “culhões” para fazer rock…
O Papa representa a excomunhão da Igreja quando me vesti de Nossa
Senhora Aparecida…
Desde que conheci Roberto, meu grande amor, vivi por completo o
significado dos Amantes…
Quando me encontrava perdida, estive no comando da Carruagem sem
saber que direção seguir…
Uma vez decidido o caminho, sentia a Força e nada, nem ninguém,
conseguia segurar minha leoa…
Certas vezes me isolava de tudo e de todos e seguia o exemplo do
Eremita…
Mas eis que a sorte sempre me aparecia quando girava a Roda da
Fortuna…
Quando fui presa grávida, a Justiça não me favoreceu — e várias outras
vezes foi injusta comigo…
Conheci o fundo do poço quando me afoguei nas drogas e meu mundo
virou de ponta-cabeça, como o Enforcado…
Uma época, a Morte não deu sossego e levou para longe de mim um a
um da minha família e dos meus amigos…
Eu apelava à Temperança para me pôr novamente nos trilhos quando the
show must go on…
O Diabo me tentava com sua ira e revolta, e eu me via novamente à
mercê das armadilhas da vida…
Sem falar da sensação ao despencar de uma Torre em chamas e de me
espatifar no chão…
De repente, olhei para o céu e ele me disse: você vai brilhar como a
Estrela…
A Lua me avisava dos inimigos ocultos que rodeavam feito lobos
famintos, tentando acabar comigo…
But here comes the sun, o Sol despejando sobre minha cabeça o
contentamento de estar viva…
E me incluía no Julgamento dos justos, subindo aos céus com todos os
meus pecados perdoados…
E lá de cima eu contemplava o Mundo agradecendo o sucesso que tive
brincando de música…
Mas como bom coringa que sou, escolho a carta do tarô que mais me
representa: o Louco.
O colecionador de mim 2
Quando comecei a escrever este livro, ainda sem saber se o lançaria ou
não, fui logo pedir para que meu querido Phantom desse o ar de sua graça
aqui, assim como na primeira autobiografia. Uma desculpa perfeita para ler
o que Gui Samora, meu filho/editor/melhor amigo, escreve. Ele tem altas
sacadas quando o assunto sou eu e, confesso, gosto de ler o que ele tem a
dizer sobre mim. A bênção, filho.
Sua resolução de vida deveria ser adotar um cachorro, um gato ou outro
bichinho que esteja precisando.
E sinta o que é ser amado de volta.
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cip‑brasil.
catalogação na publicação
L519r
Lee, Rita
Rita Lee: outra biografia / Rita Lee. — 1ª ed. — São Paulo:
Globo Livros, 2023.
cdu: 929:78.071.2
1ª edição, 2023
Editora Globo S.A.
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