Caboclos Da Serra Do Botucaraí
Caboclos Da Serra Do Botucaraí
Caboclos Da Serra Do Botucaraí
Passo Fundo
2022
Jane Cunha Pinto
Passo Fundo
2022
CIP – Catalogação na Publicação
__________________________________________________________________
P659c Pinto, Jane Cunha
Caboclos da Serra do Botucaraí [recurso eletrônico] :
cultura, economia e sociabilidades / Jane Cunha Pinto. – 2022.
4 MB ; PDF.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Os caboclos compõem o cerne da identidade brasileira. Estão presentes de norte a sul do país
e etnicamente correspondem às miscigenações ocorridas entre portugueses e índios,
portugueses e negros ou, ainda, da união de índios e negros. Culturalmente, algumas
características em comum desse agrupamento social são a forte vinculação com a natureza, a
condição de pobreza, a posse ou propriedade de pequenas áreas de terras onde praticam a
agricultura de subsistência, as relações comunitárias prenhes de significado com familiares,
compadres e vizinhos e, as formas de religiosidade que transitam entre o formalismo católico
e o sincretismo religioso. A partir disso, este trabalho objetiva promover o entendimento do
indivíduo caboclo, seja a nível macro, a partir das representações que lhe são imputadas nos
diferentes espaços em que se locomove, seja a nível micro, na compreensão do lócus de
pesquisa. O problema de pesquisa visa identificar qual é o perfil do caboclo que está
presente na região noroeste do Estado do RS, em específico na região Alto da Serra do
Botucaraí, município de Fontoura Xavier, envolvendo aspectos como a propriedade da terra,
a etnicidade, as condições de vida que estão presentificadas, os ofícios exercidos, a migração
continuada ou temporária para obter os meios de vida, as formas de alimentação e lazer, as
relações entre família, vizinhos e compadres, a representação feminina, a relação com a terra
e aspectos da religiosidade. Esta pesquisa se justifica pela importância socialmente relevante
de conhecer com mais profundidade o caboclo que está presente no extremo sul do país,
como forma de compreender melhor as travessias e ajustamentos inerentes à essa população.
A metodologia de história oral, mediante entrevistas semiestruturadas com os sujeitos, foi
utilizada para responder ao problema da pesquisa, contribuindo para um melhor
conhecimento dos perfis e de algumas trajetórias de vida de caboclos. Tais indivíduos
encontram-se alojados em áreas geograficamente compostas de matas e em terreno
montanhoso, onde nas pequenas áreas úteis de suas propriedades praticam a agricultura de
subsistência, o cultivo de fumo e erva-mate. Praticam migrações contínuas aos centros
urbanos para exercer outras atividades profissionais e agregar renda. Localmente, atuam de
forma contínua ou sazonal como tarefeiros de erva-mate.
ABSTRACT
Caboclos are the core of Brazilian identity. They are present from north to south of the
country and ethnically correspond to a mixture that occurred between Portuguese and Indians,
Portuguese and Black People, or even the union of Indians and Black People. Culturally,
some common characteristics of this social group are the strong link with nature, the condition
of poverty, the possession or property of small areas of land where they practice subsistence
agriculture, the community relations full of meaning about family members, godfathers,
neighbors and the forms of religiosity that transit between Catholic formalism and religious
syncretism. From this, this work aims to promote the understanding of the caboclo individual,
being at the macro level, from the representations attributed to him in the different spaces in
which he moves, or at the micro level, in understanding the locus of research. The research
problem aims to identify the profile of the caboclo that is present in the northwest region of
the State of RS, specifically in the Alto da Serra do Botucaraí region, Fontoura Xavier town,
involving aspects such as land ownership; ethnicity; living conditions that are present; the
way of occupations; the continued or temporary migration to obtain the means of life; the
forms of food and leisure; the family relationship and with neighbors and godfathers; the
female representation; the relationship with the land and aspects of religiosity. This research
is justified by the socially relevant importance of getting to know the caboclo more deeply,
that is present in the extreme south of the country, as a way to better understand the crossings
and adjustments of this population. The oral history methodology, through semi-structured
interviews with the subjects, was used to answer the research problem, contributing to a better
understanding of the profiles and the caboclos life path. Such individuals are housed in
geographically composed areas of forests and in mountainous lands, where in the small useful
areas of their properties they practice subsistence agriculture, tobacco and mate herb
cultivation. They practice continuous migrations to urban centers to pursue other professional
activities and make a living. Locally, they work continuously or seasonally as mate herb
workers.
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12
1 DIMENSÕES SOCIOCULTURAIS DO CABOCLO .................................................. 23
1.1 A representação social do caboclo: um termo e muitos significados........................... 24
1.2 A mestiçagem vista como um atributo negativo ........................................................... 26
1.3 Pobre e sem cultura ......................................................................................................... 32
1.4 O caboclo no Rio Grande do Sul: um estranho em sua própria terra ........................ 36
1.5 Lavradores e nacionais .................................................................................................... 40
2 A REOCUPAÇÃO DA SERRA DO BOTUCARAÍ ..................................................... 47
2.1 A povoação do território rio-grandense......................................................................... 47
2.2 A redescoberta do território meridional ........................................................................ 49
2.3 Serra do Botucaraí: dominação e esquecimento ........................................................... 54
2.4 Soledade é solidão: a luta contra o insulamento ........................................................... 60
2.5 A participação em conflitos: “homens de faca na bota” .............................................. 63
2.6 Propriedade privada e colonização das terras de Soledade ......................................... 65
2.7 O movimento dos Monges Barbudos ............................................................................. 70
2.8 Panorama socioeconômico da Serra do Botucaraí ....................................................... 76
3 ASPECTOS DO MUNICÍPIO DE FONTOURA XAVIER ........................................ 81
3.1 Aspectos socioeconômicos do espaço de pesquisa ......................................................... 82
3.2 A cultura da erva-mate: a poupança dos pobres .......................................................... 89
3.3 A cultura do fumo: uma indústria venenosa e necessária ............................................ 94
3.4 Os tendeiros de beira de estrada ..................................................................................... 97
4 TRAJETÓRIAS DE VIDA DE CABOCLOS: DIMENSÕES ECONÔMICAS E
SOCIOCULTURAIS ..................................................................................................... 103
4.1 Características de Fontoura Xavier ............................................................................. 104
4.2 Vivências e desafios: a propriedade da terra .............................................................. 109
4.3 Percepção étnico-cultural: “não sei do que somo” .................................................... 125
4.4 A ressignificação do passado e a melhoria nas condições de vida ............................. 134
4.5 A terra como parte da individualidade ........................................................................ 145
4.6 Caboclos migrantes: a busca por melhores condições de vida .................................. 158
4.7 Tarefeiros, proprietários e tendeiros ........................................................................... 164
4.8 A alimentação e o lazer .................................................................................................. 175
4.9 A representação feminina ............................................................................................. 180
11
INTRODUÇÃO
1
Para fins deste trabalho, entende-se a “rusticidade” como um modo de ser e agir vinculado à simplicidade, à
vida no campo, a inexistência de hábitos citadinos, ao rural. Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968), referia-se a
um catolicismo rústico no país, ou seja, relacionado ao catolicismo popular praticado no meio rural brasileiro.
Antonio Candido (1999) citava o homem rústico e seu modo de falar em oposição ao homem culto da cidade.
13
2
Modelo de entrevista constante do Anexo.... COLOCAR NÚMERO. Este teve como fim apenas nortear os
assuntos a serem desenvolvidos junto aos agricultores caboclos e não constituiu-se em um instrumento utilizado
para preenchimento.
16
Locks (1998, p. 161-162) é sugestiva para definir o caboclo como parte de um ou outro modo
de vida:
compunha o antigo município de Soledade. Inclui ainda uma revisão bibliográfica dos
acontecimentos ocorridos por ocasião do “Massacre dos Monges Barbudos” ou “massacre do
fundão”, movimento messiânico oriundo da população cabocla, o qual foi duramente
reprimido.
No terceiro capítulo aborda alguns aspectos socioeconômicos que vão auxiliar a
delinear de maneira mais abrangente o perfil da região. Esta análise focada contribui para todo
o conjunto da dissertação ao situar o caboclo não apenas como parte do país e do estado e por
consequência sofrendo a ação dos fatos nele ocorridos, mas também como parte do pequeno
mundo local, com suas teias interagindo com o todo. Também entra na especificidade do
município de Fontoura Xavier, com informações históricas, procedendo uma análise tanto
quantitativa e qualitativa sobre as informações relativas ao território. O aprofundamento dos
estudos ocorre sobre três formas econômicas características do local, quais sejam, a plantação
de erva-mate, o cultivo de fumo e o comércio dos tendeiros de beira de estrada, tentando
entender a relação existente entre essas atividades e a ocupação cabocla.
O quarto capítulo busca uma aproximação com o sujeito pesquisado, a qual se dá
através de entrevistas, relatos de vida e observações realizadas junto aos agricultores
familiares e tendeiros do município de Fontoura Xavier. Para compor o capítulo, optou-se por
trabalhar com questões semiestruturadas e abertas, elaboradas previamente e que foram
aplicadas a uma amostragem de indivíduos caboclos. A partir dos questionamentos realizados,
busca-se informações sobre os hábitos de vida, os valores, a economia, a relação com a terra,
a religiosidade, as formas de agregação familiar e compadrio, entre outras observações, que
procuram compor um panorama geral, que se constituem numa referência para entender esse
modo de vida. Após a obtenção das informações se procede a análise da seguinte forma: 1)
expondo os relatos de vida e as respostas aos questionamentos realizados, de acordo com os
tópicos abordados e; 2) no retorno às fontes bibliográficas, para entender e comparar o
material obtido com as fontes presentes nos estudos já existentes.
A partir dessas colocações, a pesquisa busca conhecer de forma mais detalhada os
caboclos de Fontoura Xavier. Para isto, procurou ouvir os relatos de vida desses homens e
mulheres, os quais foram obtidos através de entrevistas e diálogos. A temática constante nos
relatos tem referência com a etnicidade e com o trinômio terra – trabalho – família, pois
conforme apontado por Woortmann e Wootmann (1997, p. 17), “para os sitiantes, trabalho,
terra e família são indissociáveis e falar de um é falar dos outros”.
Durante as entrevistas, buscaram-se por elementos que trouxessem à luz o modus
vivendi da comunidade em relação às expressões culturais, bem como ao enfrentamento das
21
dissertação.
Este mestiço, que, no caso de uma mistura equivalente das três raças, devia ser o
produto brasileiro por excelência, é muito mais numeroso do que realmente se
supõe. [...] mesmo naquele ponto em que predominou o cruzamento luso-africano,
[...] os caracteres antropológicos do índio se revelam a cada passo nos mestiços
(RODRIGUES, 2011, p. 32).
O vocábulo5 tem origem indígena e designa o “indivíduo nascido de índia e branco (ou
vice-versa), com pele morena ou acobreada e cabelos negros e lisos”, ou habitante do sertão,
com modos desconfiados e retraídos (SILVA, 2016, p. 111).
O discurso da superioridade racial branca em relação aos povos ameríndios originais
foi sendo construído através da comparação europeu-branco-civilizado em contraposição ao
ameríndio-não-branco-selvagem, lógica que engloba índios, negros e mestiços. O branco liga-
se ao humano, o não branco não possui o status de humano, pairando em uma subcategoria
que se aproxima mais a um animal irracional.
5
A etimologia da palavra “caboclo”, conforme descrito no Dicionário Aurélio, procede do tupi kari’boka, que
significa “procedente do branco”, ou ainda, do termo tupi, kuriboka, que inicialmente designava “filho de índio
com africana”. A origem da palavra também pode estar relacionada ao termo tupi caa-boc, que significa “o que
vem da floresta” (LIMA apud GODOY, 2017, p. 20).
27
Neste sentido, o caboclo, fruto da mestiçagem entre branco (raça pura) e índio ou
negro (raças impuras), está associado a uma degeneração da raça humana, incapaz de produzir
desenvolvimento, e a uma cultura inferior, neste sentido “A questão racial tornou-se tão forte
em fins do século XIX, que se acreditava que com a entrada maciça de imigrantes europeus
no país a população brasileira, ao longo dos anos, iria se embranquecer” (RANGEL, 2015, p.
6).
Essa exclusão do índio, negro e mestiço possivelmente deva-se ao estranhamento que
o europeu sentiu à presença de indivíduos diversos, no sentido de não similares, opostos e até
mesmo percebidos como antagônicos a si, em um território diferente, na perspectiva de
ambiente não conhecido ou do qual ainda não se apropriou. Dessa forma, o mestiço tornou-se
um excluído, pois não conseguia atingir as expectativas culturais do homem branco, por um
lado e por outro, não era inteiramente índio ou inteiramente negro para assumir na totalidade
essas culturas:
O positivismo6, que chegou ao Brasil na passagem do século XIX para o século XX,
com seus princípios cientificistas e racistas, que foram desdobramentos da doutrina
colonialista sobre as nações periféricas, contribuiu fortemente para a propagação de ideias
excludentes. Conforme aponta Rodrigues (2011, p.20) “a prima face, pode-se distinguir na
população brasileira atual uma grande maioria de mestiços em graus muito variados de
cruzamento, e uma minoria de elementos antropológicos puros não cruzados”.
O movimento positivista fazia associações entre meio, raça e caráter, atribuindo ao
6
O positivismo é uma corrente filosófica surgida na França no começo do século XIX. Seus principais
idealizadores foram os pensadores Auguste Comte e John Stuart Mill. Defende a ideia de que o conhecimento
científico é a única forma de conhecimento verdadeiro. No Brasil dividiu-se em duas correntes de pensamento, a
dos ortodoxos ligados à Igreja e Apostolado Positivista do Brasil (IPB), exemplos de Miguel Lemos e Raimundo
Teixeira Mendes, e nos heterodoxos, dos quais algumas figuras representativas são Benjamin Constant Botelho
de Magalhães, Luís Pereira Barreto, Júlio de Castilhos, V. Licínio Cardoso, Ivan Lins, Paulo Carneiro, entre
outros (LACERDA, 2017).
28
branco, negro e índio estereótipos comportamentais, o que serviu para justificar a dominação
do capitalismo europeu sobre os continentes de maioria não brancos (LOPEZ, 1995).
Ao branco associava-se o comportamento especulativo, ou seja, empreendedor,
corajoso, sempre em busca de novos desafios e pronto para perpetuar a prosperidade. Assim é
que se construiu a representação do europeu, um descobridor de novos mundos, não
conformista e que acreditava ter para si a tarefa de trazer o desenvolvimento, especialmente
aos povos incultos, ou seja, tinha a “missão civilizadora” que não poderia estar presente,
exceto em uma raça superior. Na América Latina, esse objetivo deu-se de forma
subjacente, na África ocorreu de forma ostensiva, o que resultou na apreensão de um
contingente numeroso de pessoas escravizadas.
As concepções dos positivistas permearam todo o pensamento que se produzia sobre o
Brasil, com ênfase no meio ambiente, raça e momento histórico. Nesse sentido, os fatores
climáticos foram creditados como um dos grandes determinantes para o caráter preguiçoso do
homem brasileiro. Lopez (1995, p. 66) relata as crenças então difundidas:
[...] o clima quente tem terríveis efeitos no corpo humano, produzindo (como
ocorreu entre os índios) fraqueza, prostração, relaxamento, indolência, dispersão
mental, nervosismo, passionalidade, luxúria, despudor e ociosidade, tudo isso
agravado por alimentação inadequada.
7
Euclides da Cunha (2016) credita ao meio inóspito em que o sertanejo vive a moldura de características que o
diferenciam dos demais sujeitos miscigenados. Em seu pensamento, a mestiçagem é forjada por um conjunto de
tal magnitude de necessidades que torna esse mestiço uma espécie diferenciada qualitativamente em relação aos
demais mestiços, pois o meio rude e inclemente referenda suas qualidades.
29
um dos retratos mais fiéis que compõe a literatura brasileira referente ao caboclo sertanejo,
porém, sendo fruto de sua época, também caiu em análises típicas da doutrina positivista ao se
referir às debilidades advindas da mestiçagem:
E logo em seguida dá uma breve ideia de quais poderiam ser os motivos da tendência
separatista da região Sul do Brasil, movimento que ainda hoje se mantém mesmo que de
maneira isolada:
O modo de enxergar o Brasil como uma singular composição de três raças, lideradas
pela branca e tendo na base o negro e o indígena, é o que DaMatta (2010) denominou de
“racismo à brasileira”, ou seja, uma ideologia que permite conciliar os impulsos contraditórios
30
O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair
deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo
máximo da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar
fome”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo muito bem;
assim fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca
nua no terreiro (LOBATO, 2007, p. 164).
raça, mas da cultura”. Dessa forma, entende-se que a cultura é o catalisador das diferenças
existentes entre grupos ou sociedades e que compõe um mosaico a ser conhecido, para ser
valorizado.
Como resultado dessa pobreza cultural, que estaria atrelada à pobreza econômica, as
situações de violência também se disseminaram entre os caboclos. A preguiça ou vadiagem,
os maus hábitos e a falta de educação são tidos como motivos para a prática da violência.
Silva (2016), no entanto, salienta que essa caracterização da violência vinculada em maior
quantidade aos caboclos pobres não necessariamente se comprova, visto que sempre existiu
carência de registros fidedignos nesse sentido. Acrescenta-se também que a culpabilidade é
preferencialmente atribuída aos estratos mais fragilizados da população em razão dos
preconceitos existentes.
Para o pesquisador, a violência pode estar associada à ausência de Estado, o qual
abre brechas para que os conflitos sejam resolvidos entre as próprias pessoas. Nesse sentido
deve-se levar em consideração que valores, como honra e coragem, são muito caros no
universo caboclo e que as “questões de honra” assumem uma dimensão supervalorizada em
relação à outras culturas. Soma-se a isso a violência utilizada como resistência social,
que serve, entre outros motivos, para expor as mazelas a que a população está submetida
(SILVA, 2016, p. 183).
Os estigmas que acompanham o caboclo se, por um lado, os situam em um paradigma
de violência e subversão, por outro, preservam a imagem idílica do indivíduo hospitaleiro e
manso. Convivem de forma ambígua a visão do homem simples que acolhe os visitantes,
servindo melhor ao outro do que a si próprio, e, ao mesmo tempo, do homem valente e
corajoso que não foge de uma luta, mas que também pode descambar para a irracionalidade
violenta em certas situações. Essas complexidades culturais constituem-se em representações
regionais do caboclo ao longo do país e, dependendo do local onde está, perde ou ganha força
uma ou outra característica.
Sendo visto como aquele homem que saiu do mato e se integrou à vida urbana, o
caboclo ainda mantém em si as características que o tornaram hábil a viver no mato. Pode-se
compreender o “mato” como todo o meio inóspito, que precisa ser “vencido” pelo homem,
tornando-o mais apto, mais forte para sobreviver. Para DaMatta (2010, p. 37), foi
respondendo à natureza que “o homem se modificou e assim inventou um plano onde pode
reformular-se, reformulando sua própria natureza”. Essa reinvenção procede da necessidade
34
de criar alternativas aos desafios impostos pela natureza, mas não traz apenas isso, traz
também um imenso conjunto cultural que passa a fazer parte da sua sociedade e que produz
diferenciação.
Com relação à representação, Marques (2007, p. 24) salienta que “o caboclo aparece
como uma expressão historicamente consolidada sobre um grupo que não controla a própria
representação”. Ele também cita o caboclo como um estigmatizado, dizendo que não pode ser
encontrado como pessoa “real”, com identidade própria, pois sua identidade é atribuída
baseado em julgamentos de valor que determinam o cumprimento de certas funções a serem
cumpridas pelos membros da sociedade (MARQUES, 2007, p. 30).
Levando-se em conta as considerações feitas anteriormente sobre cultura e
representatividade, tornam-se sugestivas as interpretações de Locks (1998) realizadas no
município de São Miguel do Cerrito, em Santa Catarina, as quais relacionam os caboclos em
níveis ou etapas partindo do pressuposto mais rústico, inteiramente imerso no mundo rural até
o caboclo que superou grande parte dessas condições. Para o pesquisador, alguns indivíduos
estariam no primeiro nível, ou seja, são os “caboclos de tradição”, que se caracterizam por
morar em casas de chão batido cobertas com palha, presença do fogo de chão, prática de
agricultura apenas para o consumo e com técnicas rudimentares, trabalhar apenas o essencial,
em grande isolamento social, quebrado apenas por visitas eventuais recebidas sempre com
grande formalidade e alegria e, relativamente, estabelecidos como posseiros, porém, sem a
documentação legal da terra.
Na sequência, Locks classifica-os no segundo nível, onde estão os “caboclos de
transição”, aqueles que superaram as características do caboclo tradicional, com ênfase na
“luta” para escolarizar seus filhos, ter acesso à energia elétrica, usufruir de meio de transporte
próprio e outros bens de consumo, participação em associações e outros movimentos sociais,
principalmente nos que a Igreja Católica está engajada e possuindo a documentação
legalizada de suas propriedades.
No terceiro nível estão aqueles que, a despeito de possuir um sistema de representação
próprio do universo caboclo muito arraigado em seu cotidiano, “superaram as condições
materiais da vida cabocla” e transformaram-se em sitiantes bem-sucedidos e até mesmo
pequenos fazendeiros.
Tedesco (2014, p. 95) salient a que a cultura cabocla tem “sua ênfase na
particularidade do contato, acesso e cultivo da terra, bem como em sua concepção em torno da
propriedade privada da terra”. Ao não se enquadrar no modelo de progresso idealizado pelos
agentes públicos, torna-se um intruso, ao mesmo tempo em que ocupa o espaço que poderia
35
ser de outro grupo mais produtivo, torna-se um excluído das dinâmicas de desenvolvimento.
Assim, a identidade do caboclo está essencialmente vinculada ao afastamento, ao sertão, ao
longínquo, pois é “portador de uma condição específica de sobrevivência, ocupante de áreas
de terras mais remotas, fora do eixo de interesse do grande capital e geralmente em precárias
condições de existência (POLI, 1987 apud MARTINS; WELTER, 2006, p. 2).
Um elemento fortemente marcado na cultura cabocla é a sua capacidade de deslocar-
se de um local para outro. Em contraposição a essa mobilidade encontra-se a necessidade de
buscar ações que minimizem a pobreza e que apresentem oportunidades, o que é um processo
natural quando os espaços onde estão inseridos não lhes fornecem mais condições de
sobrevivência. Nesse sentido, Martins e Welter (2006) esclarecem que o deslocamento dos
caboclos para as áreas periféricas urbanas compreende um modo de recompor o seu modo de
vida, sem, no entanto, desistir das sucessivas tentativas de retornar às áreas rurais:
8
Os termos “etnia”, “ethnos” e “ethnic” estão sempre associados, mas numa relação de oposição à “raça”.
Enquanto esta noção estaria definitivamente vinculada à sua base biológica, a noção de etnia estaria, por sua vez,
vinculada a uma base estritamente social (daí estar sempre associada ao grupo) (OLIVEIRA, 1976, p. 83, apud
LOCKS, 1998, p. 81).
36
modo como o imigrante português conseguiu lidar com o novo meio em seu processo de
adaptação, temos de entender que as novas realidades construídas são fruto de uma realidade
anterior, que pressupõe, ao contrário do que inicialmente parece, uma evolução.
Para Zarth (2002), em meados do século XIX todos os campos pastoris de áreas de
campos nativos privilegiados estavam ocupados pelos grandes latifúndios já consolidados e
para completar, uma classe militar e política instalada no poder, que desde sempre
representavam um impeditivo ao desenvolvimento da agricultura de subsistência.
O latifúndio ocupava a preferência em relação à agricultura, sendo esta necessária para
garantir o abastecimento. Ao invés de se fixarem na terra para efetivar a produção agrícola, a
mão de obra das famílias pobres estava “vagando de lugar em lugar, segundo o favor e o
capricho dos proprietários de terras” (ZARTH, 2002, p. 70).
Segundo Maestri (2010), a efetivação da utilização da mão de obra dos homens livres
somente aconteceu nos últimos anos da abolição da escravatura, ocorrida em 1888. A
atividade realizada pelos homens livres pobres nas fazendas pastoris possui características
pré-capitalistas, já que tem como fundamento o emprego não ininterrupto nas estâncias, bem
como a substituição da remuneração por alimentação e moradia, além de um adicional
normalmente não monetário, em meios de subsistência. O “gaúcho” exercia as funções de
peão, empregando-se e afastando-se periodicamente das tarefas pastoris.
Se as grandes extensões de terras não eram mexidas, permanecendo inalterada sua
estrutura, foi nas áreas florestais que houve a intenção de alojar os colonos emigrados. A
ocupação deu-se nas terras consideradas “desertas e devolutas”. A mercantilização ocorrida
após a Lei de Terras de 1850 fracionou a terra em pequenos lotes, sendo ocupados pelos
novos colonos, que a partir de então se notabilizaram pela produção agrícola. Segundo
Machado (2019, p. 53) “Ela modifica substancialmente a perspectiva compreensiva sobre a
terra no Brasil, proporcionando o fundamento jurídico que modificou o status da terra, sendo
que esta passa a ser uma mercadoria.
As áreas de posse dos caboclos, que se acreditava estarem seguras, que tinham sido
ocupadas de forma mansa e pacífica antes da Lei de Terras, foram loteadas entre os novos
habitantes do estado. A ideia consistia em dificultar o acesso do caboclo pobre à propriedade,
obrigando-o a trabalhar de empregado para os proprietários como forma de substituir o
trabalho dos escravos, já que o tráfico estava extinto.
Zarth (2002) diz que a partir da Lei de Terras e a posterior chegada dos emigrantes,
os lavradores pobres foram sendo paulatinamente expulsos de suas roças e a maioria desses
casos não passava pelas mãos da justiça. Os nativos entendiam a terra não como mercadoria,
mas como fonte de subsistência. Por desconhecerem essa estrutura, não detinham documentos
legais que comprovassem a posse, acreditando que apenas a ocupação seria o suficiente. Para
Zarth (2002, p. 47):
39
O espírito do controle da terra, imposto pela lei de 1850, permitiu que as elites do
Sul determinassem a política de ocupação das terras florestais, inclusive excluindo
lavradores nacionais pobres do acesso à propriedade, em favor da política de
colonização.
Sucedeu de muitos camponeses caboclos optarem por vender suas terras para as
empresas colonizadoras. Para muitos deu-se contra a sua vontade, pois viram-se obrigados
mediante ameaças de violência física, queima da propriedade ou até a morte dos animais
domésticos e das criações. Em outras situações, venderam pelo fato de que nunca tinham tido
acesso a muito dinheiro e cediam acreditando estarem ricos ou garantidos para sempre.
Conforme Poli (2014), a propriedade da terra era difícil de ser conseguida,
principalmente pelos entraves burocráticos, e poucos tinham conhecimento cultural para
enfrentar e superar os entraves dessa estrutura. O caboclo não tinha oportunidade para se
alfabetizar e sua filosofia de vida contrastava com a ótica capitalista, à qual não conseguia se
adaptar.
Esta mesma dinâmica foi citada por Woortmann e Woortmann (1997, p. 19), ao
apontar o caso dos sitiantes nordestinos, para quem “Os direitos sobre a terra não passavam
pelo cartório, mas derivavam do trabalho. Era a terra de trabalho, expressão que encerra um
conjunto de significados morais”.
Os caboclos luso-brasileiros estavam na linha de frente da exploração. Inicialmente
eram os que efetivamente desbravavam os sertões, porém, devido ao seu modo de vida mais
rústico, não compreendido pelas outras ocupações, bem como estar associado à pobreza, suas
contribuições não eram plenamente reconhecidas. Nesse período, o fato de que estivessem na
“frente da frente” da colonização (POLI, 2014, p. 165) abrindo caminhos, enfrentando o pior
antes dos agricultores, não os beneficiou de ter a posse da terra garantida, sendo logo expulsos
ou tendo que vender a posse assim que os colonos chegavam.
As empresas de colonização utilizavam um discurso de efeito simbólico como forma
de propaganda, onde apontavam as regiões que seriam promissoras para a colonização. As
companhias adquiriam as terras e não queriam ter em suas áreas os chamados “intrusos”
caboclos, pois poderiam comprometer a comercialização. Após a expulsão, os caboclos
entravam mata adentro novamente, realizando todo o processo de desbravamento na tentativa
de garantir sua sobrevivência (POLI, 2014).
A filosofia de vida do caboclo demonstrou ser contrária à apropriação e acumulação
de capital, por isso sua passagem foi ignorada durante tanto tempo pela historiografia, e até
hoje é demérito citar a ocupação cabocla pelos municípios do Rio Grande do Sul, a qual
40
Fase cabocla: a população que sucedeu à indígena e miscigenou-se com esta foi a
dos luso-brasileiros, mais conhecidos como caboclos. A principal atividade era a
agricultura de subsistência, o corte da erva-mate e o tropeirismo. Esta é a fase mais
esquecida e a menos estudada de todas.
avançava, os posseiros também adentravam derrubando novas matas para produzirem a sua
subsistência. No entanto, a categoria tem um significado mais amplo, a qual não deve ser
confundida:
[...] a “categoria posseiro” não deve ser entendida somente como referente aos
indivíduos que viviam da atividade agrícola ou extrativista de subsistência. No
contexto do processo, posseiro representa indivíduo em condição de proprietário de
grande extensão territorial de um bem fundiário que serve para produção ou
especulação comercial-financeira. (MACHADO; BACCIN; TEDESCO, 2019, p.
63).
A história de São Domingos do Sul inicia por volta do ano de 1894. Quando
chegaram os primeiros imigrantes, encontraram morando nestas terras, alguns
caboclos [...]. Começaram a derrubada do mato para a construção de suas casas e
para fazer suas primeiras roças [...]. Alguns não resistiram aos confrontos, que
constantemente ocorriam com os caboclos e foram embora. As mentalidades
divergiam, pois uns buscavam melhorias com o trabalho e os caboclos, que
trabalhavam pouco, apossavam-se dos produtos dos outros [...]. Com a chegada
destas famílias italianas, que se uniram com as alemãs e as dos poloneses,
conseguiram expulsar os caboclos, os quais, posseiros que eram, partiram para
terras mais distantes9. (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO DOMINGOS DO
SUL, 2020, grifos meus).
9
Conteúdo publicado no site da Prefeitura Municipal de São Domingos do Sul, na seção Cidade: história.
https://www.saodomingosdosul.rs.gov.br/pg.php?area=HISTORIA
10
Conteúdo publicado no site da Prefeitura Municipal de São Martinho, na seção Município: história do
município. https://www.saomartinho.rs.gov.br/site/conteudos/978-historia-do-municipio
43
O agricultor que cogita comprar terras [...] onde ele em breve receberá dos alemães
ali residentes informações sobre terras à venda; mas deve cuidar-se de aceitar, por
ligeiro demais, uma oferta, porque as terras nas ou junto às colônias alemãs estão
com preços bastante altos [...]. Com dinheiro na mão, podem eles comprar
aqui terras por uma verdadeira ninharia [...]. Entre as terras devem ser
preferidas terras de mato, em especial onde existem somente árvores folhadas, a
todas as outras (HÖRMEYER, 1986, p. 86- 87 grifos meus).
Renk (2006, p. 120) destaca em sua obra o relato dos colonos italianos em relação à
colonização empreendida no oeste catarinense: “quando os colonizadores entraram em Ponte
Serrada e Vargeão, já encontraram os “negros brutos”, como se referem aos antigos
ocupantes”. Fica claro que as companhias colonizadoras encontraram as terras ocupadas e
empreenderam esforços no sentido de retirar este contingente indesejável que “não sabia
aproveitá-la corretamente”.
Embora os caboclos estivessem há muito mais tempo na terra, não houve quaisquer
pudores em retirá-los. Ao contrário do que seria supostamente “natural”, os caboclos
passaram de estabelecidos a outsiders (ELIAS; SCONTSON, 2000) ou seja, ao invés de os
novos imigrantes europeus não ibéricos serem considerados “estrangeiros”, ou na tradução
literal da palavra inglesa “estranhos” em terras nacionais, quem ficou marcado dessa maneira
foram os próprios habitantes locais desde tempos anteriores. Em consequência de todos os
eventos que marcaram a expulsão dos caboclos e a acomodação dos imigrantes nas terras, as
relações que se estabeleceram a partir de então ficaram mais frágeis.
A linguagem é utilizada como um meio simbólico de impingir ao outro uma conotação
depreciativa. Neste caso “negros brutos” objetivava impingir o significado de inferioridade e
barbarismo à comunidade que já estava instalada. A denominação de locais também passa
pelo parecer étnico, ao mudar-se nomes para referenciais de acordo com o grupo étnico que
passa a assumir o local, mas também, ao nominar o local do outro pejorativamente, como é o
caso citado por Renk (2006, p. 133), que cita o exemplo da Linha Liberato, a qual passa a ser
categorizada pelos italianos como “Linha Bocó”, “Bocó e seus moradores” ou “a negrada do
Bocó”.
Nesse sentido, vários estudiosos pesquisaram sobre a influência da cultura cabocla
sobre outras etnias, especialmente a alemã, na qual teria se produzido o “acaboclamento” da
população germânica. Essas inserções nem sempre são vistas do prisma de trocas culturais, já
que em muitas situações gerou certo desconforto, pois eram visíveis os preconceitos
latentes na população. O pesquisador alemão Emilio Willems foi um dos primeiros a tratar
o tema do preconceito dos alemães em relação aos caboclos:
45
Não admira que a palavra caboclo se tenha tornado (para o imigrante alemão)
símbolo verbal de “inferioridade cultural”, chegando mesmo a ser insulto na boca do
teuto brasileiro. “Caboclo” é o homem que não trabalha, que é analfabeto e
cachaceiro, sifilítico e opilado, que não educa seus filhos e não pensa no dia de
amanhã. Em algumas regiões, o caboclo é chamado Schlammburger, quer dizer,
alguém que habita um “castelo de lama”. O castelo de lama, talvez seja a casinha de
pau-a-pique com paredes de barro (WILLEMS apud SILVA, 2016, p. 128).
memória, os sujeitos que estudamos possuem histórias que se identificam com as pesquisas
realizadas para o capítulo, pois onde falha a memória, os registros se constituem em
importantes fontes que descortinam cada época.
Seguindo com o propósito de chegar ao caboclo que está presente no Rio Grande do
Sul, em específico na região Alto da Serra do Botucaraí, no próximo capítulo estudaremos
mais detidamente o espaço geográfico e os desdobramentos históricos de sua ocupação. As
questões socioeconômicas pertinentes à região também serão consideradas, a fim de compor
um panorama geral do território. Tal empreitada justifica-se para a compreensão de como se
constituiu a ocupação nessa região, que é parte integrante da área das matas e um importante
núcleo de povoação cabocla.
47
As etnias que povoaram essas passagens não têm um passado tão recente como se
chegou a acreditar [...]. Quando chegaram os espanhóis e os portugueses
encontraram estas áreas orientais da bacia platina povoados por milhares de
indígenas organizados em muitos grupos diferentes distribuídos e passagens as mais
diversas (KERN, 1994, p. 9-10).
dispersadas a partir das expedições dos bandeirantes paulistas em busca de mão de obra a ser
escravizada (MAESTRI, 2006).
Através da organização de bandeiras, formadas por grupos paramilitares, São Paulo
buscava participar do modelo colonial exportador, do qual ainda não fazia parte. Com essa
finalidade, os grupos de bandeirantes partiam com o objetivo de explorar o território,
buscando ouro, prata, pedras preciosas ou qualquer outra mercadoria, inclusive escravos. A
apreensão dos indígenas representava importante comércio com o sudeste e nordeste do
Brasil. Conforme Zarth (2002), o indígena escravizado era o único produto que a região Sul
oferecia.
A partir da destruição das missões, os missioneiros mudam-se para a margem direita
do rio Uruguai. O gado, que ali foi deixado, espalhou-se e se multiplicou rapidamente,
ensejando a próxima exploração no território sulino, que consistiu na estratégia da Coroa
portuguesa ao final do século XVII, de garantir seus interesses buscando o retorno comercial e
demarcando sua ocupação.
Exemplar foi a fundação de Laguna em 1676 para aliar ambos os objetivos. A Colônia
do Sacramento, localizada no extremo sul do atual Uruguai, foi criada em 1680 com a mesma
intenção. Sua exploração deu-se em duas frentes: o acercamento da prata espanhola
potosina e a extração e contrabando de couros. A Colônia do Sacramento foi o resultado do
desrespeito de Portugal ao Tratado de Tordesilhas, o que ocasionou muitos conflitos entre as
duas nações ibéricas, Espanha e Portugal, definindo a prevalência da posse sobre os acordos
firmados. Assim permaneceu até o final do século XVIII, quando ocorreu a formação
definitiva da zona de fronteira entre Brasil e Uruguai (ORTIZ, 2006).
Como compensação à fundação de Sacramento, os missioneiros retornaram ao Rio
Grande do Sul e fundaram os Sete Povos das Missões. As sete reduções foram São Francisco
de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz
Gonzaga e Santo Ângelo Custódio, que se tornaram exemplos de reduções bem sucedidas da
experiência missioneira jesuítica (FRANCO, 1975).
11
A Guerra Guaranítica (1753-1756) foi o evento bélico deflagrado pelo levante dos índios rebeldes contra os
demarcadores e exércitos de Espanha e Portugal. Motivou-se pela rejeição de seis cabildos situados a oriente do
rio Uruguai, caciques de Misiones e jesuítas, ao contestaram cláusulas do Tratado de Madri (1750). A causa
principal foi a previsão de permuta dos Sete Povos (espanhol) pela Colônia do Sacramento (português) (GOLIN,
2011.
51
Figura 2 - Capitania do Rio Grande de São Pedro – 1809. Divisão territorial - RS, em 2020
índios ervateiros era constante. Desse período restou a estrada criada pelos missioneiros e que
serviu de elo de ligação entre a Serra do Botucaraí, a Fronteira e a região das Missões através
de Cruz Alta.
É possível que após o fim das missões jesuíticas tenham permanecido no território da
Serra do Botucaraí alguns indivíduos familiarizados com a extração da abundante erva-mate e
do pinhão. A fim de ilustrar a demarcação do local, a seguir constam as imagens da pedra
missioneira. A Figura 2 mostra a pedra utilizada pelos índios para a delimitação dos ervais e a
demarcação do território; na Figura 3 consta as inscrições e simbologias gravadas na estela,
encontrada no município de Fontoura Xavier (GALVAN; SILVA; CITTOLIN, 2017).
Em 1798, o capitão José Saldanha empreendeu uma expedição nos campos e ervais
localizados ao norte das cabeceiras do rio Pardo. Nessa ocasião participou de sua comitiva o
tenente de milícias André Ferreira de Andrade, que, em 1816, obteve uma sesmaria no local
denominada Novo Herval12. O relatório descreve a topografia do local, que entre outras coisas
relatou a qualidade ruim dos campos. Essa qualidade “duvidosa” não impediu que o tenente
André Ferreira se apossasse dessas e ali se estabeleceu a partir de 1803 (FRANCO, 1975, p.
18).
A ocupação de Soledade está relacionada à abertura da picada de Butucaraí em 1810.
A construção da picada objetivava rechaçar os índios até a Serra Geral na costa do rio
Uruguai, sua antiga habitação; deixar livre o acesso aos tropeiros que comerciavam com São
Paulo, principalmente economizando o percurso em mais de sessenta léguas e estabelecer um
comércio entre Rio Pardo e as Missões. Na ocasião já havia relatos de moradores brancos
vivendo no local, os quais exigiam tais providências, tentando também afugentar os habitantes
que os qualificavam como “selvagens”.
12 Novo Herval, Campo Novo do Herval, Campo Novo, Campos Novos de Sima (sic) da Serra de Butucarahy
e Rincão de Butucaraí são designações que correspondem ao atual território de Soledade (FRANCO, 1975).
58
Os lavradores pobres também eram muitas vezes responsáveis pelo cultivo da terra,
assumindo a posição de arrendatários, já que os proprietários, devido à enormidade de suas
propriedades e as exigências do cultivo pelo governo colonial, encontravam desse modo uma
maneira de usufruir renda através da sublocação de terras e, ao mesmo tempo cumprir com as
exigências para não as perder (ORTIZ, 2006).
A forma como foi a distribuição das terras é importante para o entendimento da
ocupação que se forjou na região do Alto da Serra do Botucaraí. As áreas de campos e
pastagens foram as preferidas e compuseram a melhor parte das sesmarias concedidas. Assim,
a região das matas, principalmente as terras íngremes e serras, foram “esquecidas”, o que
possibilitou a ocupação pelos produtores pobres.
Figura 5 - Bioma do Rio Grande do Sul: a região das matas e os campos do pampa
que havia de melhoramentos no caminho da serra, pois tratava-se de uma área inóspita,
coberta por densa vegetação, que por falta de manutenção tornava perdida a produção de erva-
mate que caía dos cargueiros, e perdia-se também cavalos. Os pedidos de melhorias se
sucedem ao longo dos anos, sempre clamando providências em relação ao “ruinoso estado da
Serra e caminho do Butucaraí” (FRANCO, 1975, p. 34).
Em 1834, o líder Lucio Ferreira de Andrade pede auxílio ao Estado para intervir na
questão agrária que estava gerando a miséria no distrito, conforme correspondência aqui
transcrita:
produtivas e a apropriação privada das terras mediadas pelas colonizadoras. Esse seria um dos
principais motivos do desenvolvimento moroso que caracteriza a região, pois os fretes sempre
representavam um custo muito elevado a qualquer produto, por melhor que fosse:
Assim, durante todo o século XVIII, a grande preocupação dos produtores, ervateiros
e demais habitantes locais, relacionava-se à abertura de caminhos e às melhorias da estrada da
Serra de Botucaraí. Nesse sentido, a necessidade de diminuir a distância entre a freguesia de
Passo Fundo e a capital poderia ser aproveitada pelos soledadenses que, consequentemente, se
beneficiariam.
A melhoria das estradas estava atrelada ao fato de que a erva-mate havia se tornado
um importante e valoroso produto de intenso comércio. Os ervais conservavam-se públicos e
eram inacessíveis à apropriação privada, diferentemente dos campos, porém os grandes
proprietários insistiam em se apropriarem dos mesmos, expulsando aos poucos os posseiros.
Em 1855, os relatos de viajantes davam conta de que:
A povoação não tinha senão 22 casas habitadas e uma capela diminuta. [...], mas os
moradores informaram de que em todos os campos e recantos [...] havia mais de
3.000 habitantes, com muitas fazendas de criar, invernadas e engenhos de socar
erva-mate. (FRANCO, 1975, p. 50).
Para Verdi (1987) esta é “terra de rudes valentões que buscam vinganças mesquinhas”. Não
por acaso, uma expressão de uso comum ao referir-se ao soledadense qualifica-o como “faca
na bota”, querendo dizer que se compelido a tal, puxa-se uma faca que mantém escondida na
bota.
A Lei Provincial nº 962, de 29 de março de 1875, elevou Soledade à categoria de Vila,
permanecendo idêntico o tamanho de seu território. A partir daí procedeu-se eleições de seus
líderes e a instalação do município. A partir da emancipação, as demandas passam a ser
pensadas e resolvidas pelos próprios habitantes locais, não sendo mais possível culpabilizar o
distanciamento da sede.
Neste sentido, a questão da instrução escolar pública foi sempre um aspecto delicado
da história do município, o qual viria a influenciar os demais municípios da região, seus
antigos distritos, no futuro. Chegou-se ao ponto de não haver quem ensinasse no município,
ao menos nesses primeiros anos. Os professores eram em número diminuto, e quando
acometidos por problemas de saúde, as aulas eram interrompidas indefinidamente.
Os municípios da Serra do Botucaraí possuem um histórico de altos índices de
analfabetismo e falta de acesso à educação, que se depreende da diminuta quantidade de
escolas, especialmente até meados do século XX e que pode ser elencado como uma das
mazelas que influenciou na pobreza presente no território. Conforme Franco (1975, p. 102) “A
insuficiência do quadro escolar permaneceria por longos decênios, marcando negativamente o
município, em sucessivos recenseamentos, por um alto percentual de analfabetos13.
Novamente, em 1893, outra guerra foi declarada, dessa vez civil, que viria a impactar
o destino dos soledadenses. Iniciou em julho de 1892, quando Júlio de Castilhos retomou o
poder, ao que os federalistas dos municípios de Passo Fundo, Cruz Alta, Palmeira das
Missões e Soledade realizaram atos de resistência. A partir de 1893 transformou-se em
guerra aberta, ocasionando a perda de incontáveis vidas em violentos embates.
Ao término das batalhas, após sucessivas tomadas da Vila de Soledade pelos
federalistas, o então intendente Antônio João Ferreira, em 20 de novembro de 1895, enviou
ofício ao Governo do Estado informando que não sobrou “Sequer livros ou papéis pelo qual
possa o conselho guiar-se no sentido de regularizar seus trabalhos de conformidade com as
leis, tudo foi levado pelo banditismo que infelizmente ainda infestam as matas deste
município. (FRANCO, 1975, p. 98)”.
Seguiu-se um longo período de conflitos latentes entre republicanos e
13
Essa realidade ficará demonstrada nas páginas subsequentes, ao se abordar a questão do analfabetismo na
Região, em especial no atual município de Fontoura Xavier.
65
14
A Revolução de 1923 foi o movimento armado ocorrido no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, no ano de
1923, em que lutaram, de um lado, os partidários do presidente do Estado, Borges de Medeiros, conhecidos
como Borgista ou Ximangos, que usavam no pescoço um lenço branco, e de outro os revolucionários aliados de
Joaquim Francisco de Assis Brasil, chamados Assisistas ou Maragatos, que usavam no pescoço um lenço
vermelho (BRASIL, s/d).
15
Refere-se à família Von Reickemback, que fixou residência à beira do rio Fão, que deu o nome ao combate.
Como a pronúncia do vocábulo germânico Von é fon, o povo a adotou como Fão. Assim, o rio ficou sendo
chamado Fão (PAULA, 1972).
66
ervais missioneiros.
Simultaneamente às concessões sesmeiras e à formação dos latifúndios, pequenos
posseiros sem título da propriedade tiveram que sair das terras que ocupavam, pois muitas das
sesmarias concedidas englobavam também estas áreas. Estes sujeitos dificilmente puderam
tomar conhecimento das deliberações oficiais para apresentar alguma contestação.
À medida que as concessões se deram, as opções mais comuns para caboclos, nativos
e posseiros foi integrar-se à sociedade de classes de forma subalternizada, ou deslocar-se
forçosamente para as matas, cada vez mais ao norte (ZARTH, 1997).
No correr dos anos, a promulgação da Lei de Terras de 1850 foi um divisor de águas
na legislação brasileira relativa à propriedade rural, sendo a primeira lei agrária nacional.
Esteve em funcionamento entre os anos 1850-1854 e 1889, e serviu, ainda que com falhas, ao
seu propósito, pois até a segunda metade do século XIX era impossível ter certeza sobre os
limites das propriedades, já que não se sabia onde iniciavam e onde terminavam os domínios
públicos e particulares das terras brasileiras (SILVA, 2016). O objetivo da Lei de Terras era
principalmente disciplinar a apropriação territorial, colocando impeditivos para os
apossamentos, ao mesmo tempo em que serviria para discriminar, medir e vender as terras
devolutas (ORTIZ, 2006). Outra questão referia-se à intenção de dificultar o acesso fácil à
terra, a fim de, mediante a extinção do tráfico negreiro, ter disponível mão de obra para o
funcionamento das fazendas (SILVA, 2016).
A exigência britânica de colocar um fim ao tráfico negreiro representou um duro golpe
para a classe dominante brasileira, dependente da escravidão, passou a incentivar a vinda de
trabalhadores rurais europeus para trabalhar, principalmente nas fazendas de café. Entretanto,
devido à abundância de terras à disposição, seria necessário criar mecanismos para impedir o
acesso dos imigrantes às terras, os compelindo a trabalhar nas fazendas (ORTIZ, 2006).
Dessa maneira, a Lei de Terras foi promulgada em 18 de setembro de 1850, com o
intuito, primeiramente, de dificultar o acesso à terra para as camadas mais pobres da
população, e nem tanto às elites locais, que ao regularizar, avançavam ou incorporavam novas
áreas onde viviam muitos posseiros pobres, sem o poder de reagir (ZARTH, 1997).
Quanto às terras já de posse, a lei determinava que fossem regularizadas, medidas e
demarcadas até a emissão de títulos legítimos de propriedade. Quanto às terras devolutas,
eram definidas por exclusão, sendo aquelas que não estavam sob uso público ou domínio
particular. Essas poderiam ser vendidas pelo governo, que com os recursos oriundos faria
novas demarcações e importaria colonos livres.
Em 1854 houve o decreto que mandava executar a Lei de Terras efetivamente. A partir
67
de então, obrigou-se a fazer o registro das possessões, respeitando-se trâmites e prazos, sob
pena de haver multas. O registro era feito através dos vigários das freguesias, o qual passou a
ser chamado de Registro Paroquial de Terras:
araucária, foi alvo da exploração predatória durante anos na venda e exportação de madeira.
Hoje praticamente inexiste a floresta de araucária. Ainda assim, a esperança de
desenvolvimento residia nos núcleos colonizadores, de onde se acreditava que viria a maior
riqueza do município.
Em comparação com a crescente expansão demográfica, a instrução escolar mantinha-
se precária. “O Estado subvencionava importância relativamente avultada as escolas
particulares, porém o ensino público era esquecido. O índice de matrículas16 por mil
habitantes era de apenas 46” (FRANCO, 1975, p. 116). Não havia interesse em promover a
educação da população pobre.
No século XX, o grande território do município de Soledade foi desmembrado em
vários pequenos municípios. Principiou em 1927, com a emancipação de Sobradinho, seu
mais próspero distrito. Um dado sugestivo com relação ao município, é que mesmo com a
perda de Sobradinho, em 1940, a população de Soledade era de 70.279 habitantes; em
1950 saltou para 95.869, um expressivo aumento de 37% em dez anos. A partir daí, as
emancipações retiraram parte significativa de sua população e de sua economia.
Espumoso emancipa-se em 1955; Maurício Cardoso e Arvorezinha em 1959; Camargo
tornou-se distrito de Marau; na década de 1960, Barros Cassal, Fontoura Xavier e São José do
Herval conseguiram a autonomia; Tunas incorporou-se a Arroio do Tigre. De uma população
de quase cem mil habitantes, atualmente o município não possui mais que 31 mil pessoas.
A região do Alto da Serra do Botucaraí compreende atualmente dezesseis municípios:
Alto Alegre, Barros Cassal, Campos Borges, Espumoso, Fontoura Xavier, Gramado Xavier,
Ibirapuitã, Itapuca, Jacuizinho, Lagoão, Mormaço, Soledade, Victor Graeff, São José do
Herval, Nicolau Vergueiro e Tio Hugo.
16
Essa realidade somente se alterou muitos anos depois. No Censo Demográfico de 1970, os resultados já não se
mostravam tão desanimadores, a alfabetização de menores chegava a 80% da população e a alfabetização de
adultos, 50% (FRANCO, 1975, p. 134).
70
ficou demonstrado que essa particularidade local não ficou segregada, mas obteve reforços
com o passar do tempo, tornando-se uma característica pronunciada na população cabocla da
região.
O movimento dos Monges Barbudos se insere no contexto provocado por grandes
transformações sociais, econômicas e políticas pela qual passava o país na década de 1930 e
sinaliza mudanças que a vida dos habitantes da região, como de outras, vinham enfrentando
com o advento da imigração europeia para o Rio Grande do Sul desde o século anterior.
Situados à margem do processo de apropriação da terra, numa relação marginal com as
demais etnias, os caboclos da região do Alto da Serra do Botucaraí vislumbraram no outro
mundo, a saída para a miséria terrena.
Finalmente empurrados e “conformados”, uma parte importante da população
soledadense, aprofundou-se cada vez mais no “sertão” (fundão), de onde teriam produzido um
entrelaçamento do catolicismo místico português e da mística indígena, descambando para o
fanatismo religioso, em que a figura de um mito ou messias foi utilizada como redentora das
mazelas sofridas.
O sertão tem sido uma constante na literatura e nos registros históricos de que tratam
do Brasil. A palavra possui uma origem controvertida, com muitas definições. Algumas
dessas definem sertão como um “lugar do interior”, “terra entre terras”, ou com base latina
“desertanu”, o qual significa “desertão”. Sertão remete a um lugar pouco habitado e pouco
desenvolvido. Ao homem simples, principalmente no que se refere aos aspectos econômicos e
culturais, lhe sobrou a ocupação do sertão. Nesse habitat consegue sobreviver, ao mesmo
tempo em que poderia se “esconder” da sociedade que o enxerga de forma preconceituosa.
Na região do Alto da Serra do Botucaraí, na década de 1930, o sertão caracteriza terras
dobradas (montanhosas), em meio a áreas de matas, distantes da civilização, lugares de ecos,
sobras, pois as áreas pastoris já teriam sido ocupadas pela grande propriedade pecuarista. A
ligação tanto física quanto econômica e cultural com a sede Soledade era pequena,
praticamente inexistente. Nesses locais longínquos, a extração da erva-mate predominou
durante um longo período, porém, após seu quase esgotamento, as culturas de subsistência e
do cultivo do tabaco foram as formas que se mantiveram para a sobrevivência.
Como em outras regiões do Brasil, em Soledade surgiu um movimento messiânico em
uma escala menor, quando comparado aos grandes movimentos messiânicos, como Canudos,
no sertão da Bahia, e Contestado, nos estados de Santa Catarina e Paraná durante a República,
ou ainda a revolta dos Muckers, ocorrida em São Leopoldo-RS entre 1873 e 1874. Esse
Movimento principiou nos rincões esquecidos do interior de Soledade, apropriadamente
72
chamado de “fundão”. Nesse espaço residiam pequenos produtores rurais, analfabetos em sua
maioria, com pouco ou nenhum contato com a sede do município.
Uma das principais causas do Movimento dos Monges Barbudos foi a exclusão dos
caboclos, retirando-lhes a posse da terra, onde estavam acostumados a viver e a trabalhar nos
campos pastoris. Na região, estão presentes ambos os biomas característicos do estado, os
quais se dividem abruptamente em, de um lado os campos para a pecuária, grandes extensões
de poucos proprietários e, do outro, as áreas de matas circunvizinhas aos campos, distribuídas
em pequenas propriedades, vendidas aos colonos alemães e italianos. Com as melhores partes
do território já ocupadas, estes camponeses se afastam cada vez mais, ocupando áreas
distantes, longevas. Assim Cremonese (2009, p. 107) argumenta:
Vivendo nesses fundões, a vida acaba por se desenvolver em um ritmo próprio, já que
estão isolados do convívio social com outras comunidades. Neste sentido, é possível entender
o que representa a chegada de um desconhecido. Na primavera de 1935, o colono André
Ferreira França, apelido Deca, deu pouso a um andarilho em sua casa, costume da época
em razão das longas distâncias e dos precários meios de locomoção. O andarilho ensinou a
ele e à sua família as propriedades medicinais das ervas, enfatizando a necessidade de
preservar a natureza e não poluir a água dos rios, “alertou também sobre os males
provenientes do tabaco, desaconselhando o seu cultivo ou, ao menos, sua secagem junto às
casas, prática usual na época” (KUJAWA, 2001, p. 48-49).
O andarilho apresentou-se como o monge João Maria, que seria o mesmo São João
Maria, considerado o santo dos excluídos, fazendo suas aparições em épocas de grande
mudança social, especialmente em locais esquecidos do interior do país, realizando
aconselhamentos baseados na religião, na cura pelas ervas, pela água e nos milagres. A
população desassistida e sem esperança encontrava em São João Maria apoio para enfrentar a
penúria e a desesperança, transformando o personagem em lenda.
A memória popular credita ao monge João Maria o desencadeamento e a liderança
do movimento caboclo e camponês do Contestado, ocorrido em Santa Catarina e no Paraná,
de 1912 a 1916.
73
Diante dessa perspectiva, ainda que pudesse ser fantasiosa, de serem atacados, os
moradores locais decidiram chamar a polícia para comparecer no local a fim de dispersar a
multidão. A polícia chegou dando tiros para o alto, mas não intimidaram os peregrinos. Na
sequência, atiraram contra a igreja e contra as pessoas, ocasionando ferimentos e mortes. Os
relatos dão conta da crueldade dos ataques, sem haver qualquer menção de resistência por
parte dos caboclos.
Durante a ação policial, a vítima foi Tácio Fiuza, líder do movimento naquele
momento, pois Deca França se encontrava escondido para fugir das perseguições. Estando no
altar, descobriu a imagem de Santa Catarina, a qual estava coberta com um manto, para que
esta “visse” a violência que estava acontecendo.
garantir seu sustento, mais preocupados em rezar e tomar chá de caroba do que trabalhar.
Além disso, haveria a diminuição dos lucros dos comerciantes pela redução do plantio do
fumo.
Culturalmente, destacam-se as diferentes formas de conceber a terra entre os caboclos
e os imigrantes, ou seja, enquanto os imigrantes buscavam regiões de maior produtividade,
para os caboclos a terra era apenas o meio de garantir o sustento. Outro aspecto refere-se à
religiosidade do caboclo, que não está direcionada à hierarquia da Igreja, mas às próprias
crenças disseminadas entre o grupo, revelando-se dinâmica e abrangente.
Estas diferenças traziam estranhamento, gerando medo nos demais diante da
perspectiva de um grupo que não se preocupava em garantir o seu sustento, que se revelavam
“satisfeitos” com sua condição econômica, um grupo de “vagabundos”, “fanáticos” que
precisavam ser detidos para “garantir o curso do progresso” (KUJAWA, 2001, p. 68).
O Movimento dos Monges Barbudos parece ter sido uma busca de sentido, da
preservação do seu modo de vida, em uma tentativa de congregar aqueles que possuíam a
mesma identidade cultural e as mesmas condições existenciais. Foi tachado de “anormal”,
fruto do misticismo religioso feito por ignorantes, incultos, retratados de feios, relaxados,
preguiçosos, designações essas preconceituosas atribuídas genericamente ao caboclo ao longo
do tempo.
Alba Zaluar Guimarães (1979, p. 146) cita dois paradigmas que descrevem os
movimentos messiânicos: os participantes aparecem negativamente “como loucos,
sanguinários, bandidos ou fanáticos”, e os mais paternalistas, “ingênuos, pacíficos, místicos
ou católicos ortodoxos”. Ambas as versões revelam sinais de alteridade, pois “trata-se de
marcar as fronteiras entre “nós” e os “outros”.
A forma de resistência utilizada, ainda que totalmente pacífica, poderia ser vista como
uma reação dessa população, perante os novos desafios que se apresentavam, da passagem
dos valores antigos para os novos, centrados principalmente no econômico e no
individualismo. Ao não ter mais esperanças na sociedade, nas autoridades constituídas,
experimentavam um pedido ao ser supremo – Deus, pois, como não tinham forças para se
impor ante à miséria de sua condição, resistem dirigindo-se ao metafísico, que poderia deter o
verdadeiro poder de salvá-los. Seu martírio tornou-se exemplo de luta e resistência.
Por outro lado, os demais cidadãos, entendem que a “anormalidade” deve ser punida
de todas as maneiras, as tentativas de barrar o progresso e a modernidade devem ser
eliminadas da boa sociedade. Martins (1997, p. 17, apud KUJAWA, p. 77) destaca que os
movimentos camponeses sempre foram vistos como fruto do atraso, onde os pobres são vistos
76
Censo 2010, no que diz respeito às comunicações, os domicílios com acesso à internet e com
telefonia fixa eram, respectivamente, 17,7% e 17,5% do total, índices próximos a metade das
médias estaduais. O índice de 85,1% dos domicílios com telefonia móvel, embora também
menor, se aproxima bastante da média estadual, que é de 90,7%.
Os indicadores sociais relacionados à renda, saúde, educação e acesso ao saneamento
básico estão bastante abaixo das médias, demandando políticas públicas direcionadas a esses
problemas. A região apresenta contrastes entre os municípios localizados ao norte, com a
economia mais ativa e melhores indicadores sociais, e os posicionados ao sul, com
dificuldades econômicas e indicadores sociais entre os mais baixos do Estado. Um dos
agravantes dessa situação é a dificuldade de escoamento da produção devido aos problemas
relacionados à infraestrutura de transportes.
A população da região gira em torno de 100.000 mil habitantes (FEE, 2021). A
proporção de pessoas vivendo no meio rural e urbano está em relativo equilíbrio, sendo que
46% estão no campo e 54%, nas cidades, indicativo de uma alta participação de população
rural, se comparado à outras regiões.
O Rio Grande do Sul, com uma taxa de 0,49% a.a., foi o estado brasileiro cuja
população teve o menor crescimento no período 2000-2010, com algumas regiões
apresentando diminuição nas suas populações. Embora não haja um esvaziamento, a região
também não mostra crescimento populacional, sendo que a população urbana apresentou na
década crescimento de 1,17% a.a., ao passo que a população rural decresceu -1,01% a.a. Um
maior dinamismo econômico, principalmente ao norte da região, está associado a uma taxa
positiva de incremento populacional. Já ao sul, os índices têm permanecido negativos.
Com relação à faixa etária da população, de acordo com o censo demográfico de
2010, o Estado vem observando mudanças na sua conformação, com menor número de
crianças e jovens e maior número de adultos e idosos. Observou-se também diminuição da
taxa de fecundidade e aumento da expectativa de vida da população idosa. Na abrangência
nacional, o Rio Grande do Sul possui a menor taxa de fecundidade entre os estados e a quarta
maior em expectativa de vida. A região do Alto da Serra do Botucaraí segue esse padrão. Na
década 2000-2010, a população da faixa de 0 a 14 anos teve uma diminuição de 16% e as
faixas de 15 a 65 anos e acima de 65 anos tiveram um aumento de, respectivamente, 6% e
31%.
Na questão do desenvolvimento – o índice de desenvolvimento socioeconômico
(IDESE), baseado em três categorias, qual sejam, renda, educação e saúde, está na vigésima
sexta posição, de um total de 28 regiões, com um percentual de 0,689, classificada como um
78
Ao pesquisador lhe resta a tarefa de definir, após análise das diferentes variáveis
estudadas, qual será o seu lócus de pesquisa, pois ainda que almeje atingir um recorte de
grande amplitude, este objetivo, aos poucos, se depara com as impossibilidades da realidade.
Após esses primeiros arroubos, percebe-se que ao focalizar em nível micro, também é
possível atingir as metas, e que a velha máxima “canta tua aldeia e cantarás o mundo”, de
Leon Tolstoi, pode ser adaptada para “conhece tua aldeia e conhecerás o mundo”, aplicando-
se esta regra ao estudo que se deseja conduzir.
Sendo parte do outrora vasto território do município de Soledade, Fontoura Xavier,
assim como outros pequenos municípios vizinhos, experimenta um processo de individuação,
porém mantendo com o município de Soledade uma relação de proximidade econômica e
cultural. Sendo assim, tal como a região da qual faz parte, revela-se como um prisma
refletindo suas características determinantes. Ao longo dos anos tem procurado galgar, não
com pouco esforço, melhorias nos seus índices, como o analfabetismo, por exemplo. No
entanto, as mudanças tão ansiadas nem sempre acontecem na velocidade que se espera.
Nesse sentido, a escolha do município de Fontoura Xavier deu-se por este representar
as características presentes no todo maior, a região do Alto da Serra do Botucaraí,
constituindo-se o leitmotiv que retrata o sujeito caboclo em seu espaço geográfico, sua
economia e sua cultura. Para atingir o propósito do trabalho, neste capítulo faz-se um
levantamento dos dados relativos ao município nos aspectos históricos, geográficos e
populacionais, bem como os relacionados aos índices de desenvolvimento humano, dados
concernentes à educação e também à economia local.
Na sequência, optou-se por abordar três variáveis econômicas, fortemente inseridas no
município, que se constituem importantes sustentáculos para a comunidade cabocla
fontourense, quais sejam, a cultura da erva-mate, a cultura do fumo e a trajetória dos tendeiros
do pinhão, pequenos comerciantes estabelecidos às margens da rodovia BR 386, onde
vendem a sua produção, recriando a economia da tradição, que permite que haja o
aproveitamento dos saberes locais vinculados à inclusão econômica dos sujeitos que compõe
a cadeia produtiva.
Este recorte do trabalho se justifica pelas particularidades do município.
Primeiramente o território, que se caracteriza por um grande percentual de matas
remanescentes da floresta atlântica, atualmente com certa proteção dos órgãos oficiais,
principalmente o IBAMA, impedindo a excessiva exploração predatória; em segundo lugar,
82
Conhecida em todo o Estado por seus altos índices de analfabetismo, o que granjeou
fama altamente depreciativa, a questão da educação sempre foi um desafio. Alguns índices
vêm apresentando melhorias, como é o caso do ensino infantil, que em 2010 contabilizou 171
crianças matriculadas e em 2018, passou para 329 crianças matriculadas.
Figura 12 - Municípios com o percentual da população atendida pelo Programa Bolsa Família
em 2021.
Atualmente 37,9% da população vive com renda de até meio salário mínimo e, com
base nos dados de 2018, apenas 1.656 pessoas estão efetivamente ocupadas, significando que
apenas 16% da população possui algum vínculo empregatício.
Portanto, a partir dos dados apresentados, é possível verificar que a região Alto da
Serra do Botucaraí é uma das mais carentes do Rio Grande do Sul, especialmente o município
de Fontoura Xavier, que está entre os mais desfavorecidos na comparação com o restante do
Estado.
Nesse sentido, é importante salientar que a região possui vocação voltada para a
agropecuária. No conjunto, os resultados dos avanços obtidos ao longo dos anos não têm
sido suficientes para melhorar algumas questões fundamentais para o desenvolvimento,
como, por exemplo, o alto índice de analfabetismo; o baixo percentual de pessoas ocupadas; a
pouca diversidade e dinamismo econômico; a quantidade de famílias que vivem com até meio
salário mínimo; entre outros fatores que impactam negativamente a qualidade de vida dessas
populações.
As informações socioeconômicas são fundamentais para o entendimento das
características do município de Fontoura Xavier, a quais também engendram um determinado
perfil cultural. A seguir, abordaremos de forma mais detalhada três das atividades
relacionadas ao município e que são fundamentais para a compreensão do perfil de ocupação
cabocla constituída no espaço pesquisado, quais sejam, o extrativismo da erva-mate, a
produção fumageira e as tendas do pinhão.
Cultivar e extrair a erva-mate faz parte de uma tradição antiga, praticada pelos índios
que habitavam as bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. À planta são creditados poderes
curativos, por isso é chamada de “santa e milagrosa”.
As populações da região sul do país adquiriram o hábito de tomar a erva moída em
água quente, ao qual dá-se o nome de chimarrão ou ainda, em água fria, gelada ou limonada,
chamado de tereré. Ainda é consumido nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, na
Argentina, Uruguai, Paraguai e também em algumas localidades do Chile e Peru. Conforme
Greff (2016, p. 12), “a produção de erva-mate abrange cerca de 180 mil propriedades dos
estados do Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul”.
Conta-se que a erva-mate sempre foi considerada uma planta sagrada, principalmente
para os índios quíchuas, antecessores aos incas, que habitavam no Peru. Para obtê-la,
andavam mais de três mil quilômetros para o sul do Brasil, onde realizavam permutas com as
tribos locais, tornando-se um importante comércio, como ficou demonstrado no capítulo sobre
a história do Rio Grande do Sul. Foram encontrados vestígios arqueológicos contendo a
“sagrada erva” junto às suas habitações e túmulos. No Brasil, os índios caingangues e
guaranis também a consideravam uma planta sagrada, da qual extraíam alimentos, remédios e
estimulantes (SINDIMATE, 2021).
É um produto de grande importância socioeconômica nos mercados, principalmente
dos países latinos, Brasil, Argentina e Paraguai, onde se encontra em abundância. A prática de
cultivo é realizada por um grande número de pequenos produtores, comunidades indígenas e
ervateiras, que compram o que é produzido erealizam o beneficiamento.
Com a expansão produtiva ocorrida nos últimos anos, a erva-mate espalhou-se
também para o estado do Mato Grosso do Sul, mas ainda está majoritariamente concentrada
na região Sul do Brasil.
No Paraná, 64,4% das 51 mil propriedades preservam os ervais nativos e 35,6%
realizam o adensamento ou plantio de novos ervais. Em Santa Catarina, a atividade da erva-
mate está presente em 19.700 propriedades rurais, concentrando-se principalmente nas
regiões Oeste e no planalto norte do estado, a qual constitui-se de cerca de 80% de ervais
nativos e 20% por áreas plantadas (GREFF, 2016). O Estado aumentou sua área plantada,
entre 2017 e 2019, num percentual de 35,7%, e está se posicionando de forma mais agressiva
na busca pelo mercado consumidor (IBGE, 2019). A conservação dos ervais nativos nos sub-
bosques das florestas com araucária tornou-se mais valorizada em virtude de estarem mais na
sombra, o que qualifica o produto (CHECHI, 2021).
No Rio Grande do Sul, uma grande parte dos ervais nativos foi substituída pelo plantio
91
de lavouras anuais, porém, os ervais plantados correspondem em torno de 70% da área total
plantada. O Estado é responsável por, pelo menos, 39% da produção nacional e emprega
direta e indiretamente mais de setecentas mil pessoas, o que representa uma das espécies
arbóreas naturais de maior importância socioeconômica e cultural do Estado (GREFF, 2016).
Embora tenha havido um decréscimo na área cultivada entre 2017 e 2019 (-8,9%),
ainda é responsável pela exportação de mais de 81% de sua produção para o principal
destinatário, o Uruguai (83,8%), seguido dos Estados Unidos e da Alemanha, com percentuais
significativamente inferiores (SINDIMATE, 2021).
A exploração predatória dos ervais nativos, a exploração madeireira e a entrada do
cultivo da soja são os grandes responsáveis pela extinção de milhares de hectares de erva-
mate no Estado. Atualmente importa em torno de 50% da erva consumida, dos estados do
Paraná e Santa Catarina e, mais recentemente da Argentina.
Na Argentina, a ocorrência da erva-mate está restrita apenas à Província de Missiones,
país que, tradicionalmente, foi um grande importador do produto. No entanto, a partir de
1930, o governo incentivou a plantação de grandes ervais, o que acabou por torná-los
autossuficientes na produção, não estando autorizada a importação do produto, até 2030
(GREFF, 2016).
No Rio Grande do Sul, a maior quantidade produzida de erva-mate localiza-se numa
pequena faixa nas regiões do Vale do Taquari e Alto da Serra do Botucaraí (SINDIMATE,
2021). Esses municípios ligam-se através de vários aspectos, desde a pequena distância
geográfica que os separa, até as características do clima temperado, ideal para o cultivo, pois a
planta resiste bem às baixas temperaturas da região. Nesses municípios, também se localiza a
maior quantidade de ervateiras que fazem o beneficiamento da erva-mate.
Os maiores produtores são Ilópolis, Arvorezinha, Palmeira das Missões, Anta Gorda,
Fontoura Xavier, Putinga e Itapuca. Dentre os maiores produtores, o único município que se
encontra fora do entorno é Palmeira das Missões.
92
suas vidas, seja através do plantio, do extrativismo, do preparo da erva pronta, culminando
com o hábito, fortemente arraigado, de tomar o chimarrão.
Na sequência do capítulo, nos aprofundaremos na análise da cultura do fumo, uma
cultivar amplamente utilizada pelas populações caboclas de Fontoura Xavier, muito devido ao
fato de ser objeto de financiamento das indústrias tabageiras, que financiam a construção das
instalações necessárias para a implantação, bem como fornecem treinamento e qualificação
profissional na efetivação do negócio e, ainda por mostrar-se condizente e adaptável ao
tamanho das propriedades de que os agricultores locais dispõem.
famílias produtoras, pois estão mais sujeitas a ficarem doentes, tornarem-se improdutivas e
perderem renda:
17
O uso do tabaco prejudica famílias, empobrece comunidades, agrava as desigualdades e prejudica economias e
sociedades. Teremos dificuldade em alcançar a visão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de
um mundo mais equitativo, saudável e sustentável sem enfrentar seriamente a ameaça global do tabaco
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2017 - tradução da autora).
96
Figura 14 - Frente de uma Tenda do Pinhão de Fontoura Xavier com exposição de tapetes e
pelegos.
pela família. Nesse sentido, era produzida uma interessante dinâmica, pois convertia seus
produtos em commodities, agregando valor ao vendê-los, realizando trocas com outros
produtores para obter os produtos que lhe interessavam e, ao mesmo tempo, utilizava a mão
de obra do núcleo familiar para viabilizar as diferentes frentes de trabalho. Até 1970 as
tendas eram muito rústicas, a partir dessa década houve melhorias na estrutura, culminando
com a construção de tendas novas em alvenaria, com modelos padronizados e investimentos
do governo do estado.
A existência de espaços destinados a atender as pessoas em trânsito está presente
desde os primórdios da história humana. No Rio Grande do Sul, conforme Cruz (2012, p. 52),
era comum encontrar “as bodegas”, ou lojas de secos e molhados no interior dos municípios.
Contavam com algum galpão, que acabava se tornando abrigo para os carreteiros e tropeiros
quando de suas viagens e tropeadas, e possibilitava que os animais fossem soltos no potreiro
para também descansarem. Esses locais eram pontos de aproximação dos mascates, que nos
primeiros tempos iam a pé levando seus produtos com o objetivo de comerciar no meio rural e
que, com o passar do tempo e a abertura de estradas, passaram a ir de mula, cavalo ou carreta,
na tradicional figura do vendedor ambulante, até meados do século XX.
Tedesco (2008, p. 31) também aponta a existência das “vendas”, onde eram realizadas
trocas mercantis, espaços de sociabilidade através de conchavos, barganhas, discussões e
informações. Tradicionalmente foi um espaço onde se ressaltava o poder do comerciante, mas
onde também se fazia o lazer da comunidade masculina, já que estava culturalmente vedado
às mulheres participar desse local.
Nesse sentido, as tendas de beira de estrada serviram como redes e espaços de trocas
dos produtos locais e regionais entre os diferentes produtores e de forma comunitária entre os
próprios tendeiros, além de serem locais de comércio e de paragem para os motoristas. No
entanto, diferente das bodegas e das vendas, as relações que se estabeleciam com a clientela
eram fugazes e momentâneas, não existindo um aprofundamento no contato, mas também
sem haver fortes rupturas. O núcleo familiar do caboclo, compadres e vizinhos constituem a
sua comunidade de alcance e convivência.
Para Tedesco (2014), a atividade dos tendeiros é “um legado de gerações”, pois a
realizam há mais de sessenta anos. O grupo social de caboclos em atividade tem a origem
vinculada às fazendas pastoris dos “campos de Soledade”, remanescentes da crise na
economia pastoril porque passou o estado do Rio Grande do Sul, entre as décadas de 1950 e
1970 (TEDESCO, 2014, p. 94). São pessoas que conseguiram adquirir pequenas frações de
terra na região de FontouraXavier e, para sobreviver, exerceram incipientes comércios à beira
100
Deu peste. Aquele grande umas treis veis acharam que tava morto, de repente
quando via, aparecia o boi aí caminhando. Dava ataque. E ficava desse jeito
estirado, morreu! Dali há pouco quando a gente via...chegavam lá, ele tava
estaquiado. Diz ela: tá morto! Daí desceram pra baixo cortá uns cambuí pra barrê
os terrero, quando chegaram de vorta, já enxergaram ele ali esperando comida.
(A.R.R, 71 anos)
Lar de muitos caboclos, as terras montanhosas e com grande percentual de mata nativa
de Fontoura Xavier, abrigam um contingente humano de etnia predominantemente
portuguesa, miscigenados com as populações autóctones que habitaram o território. A fixação
das famílias deu-se a partir da segunda metade do século XIX e, conforme os relatos, as
posses atuais ocorreram através de herança, sendo que aqueles agricultores que não tinham
documentos, retiraram-se das terras ainda na geração dos avós. A partir do século XX,
também passam a fazer parte do território famílias de origem italiana e alemã, principalmente.
O município tem fortes características rurais, sendo que em torno de 60% de sua
população reside no interior. As vilas, contíguas ao centro, também guardam semelhanças
com o interior do município. Nestas, é possível perceber a predominância de características do
rural adaptadas ao pequeno espaço dos terrenos urbanos, como por exemplo, a existência de
horticultura, criação de animais, principalmente aves e mais raramente cavalos e até vacas, os
quais são conduzidos a propriedades de terceiros ou às beiras de estrada, para conseguir
alimento, aproveitando-se do capim que possa ter.
Também se percebe uma maior dinâmica de sociabilização, com predomínio de
relações amplas, além do espaço familiar, sendo que as visitas diárias ou semanais aos
vizinhos, parentes e amigos fazem parte do cotidiano. Percebe-se que a existência desses
vínculos é um fator fundamental para a qualidade de vida dessas populações.
A religiosidade é praticada através de novenas, rezas, da capelinha ou santinha em
casa, da frequência à missa católica ou aos cultos evangélicos, momentos fundamentais para
reafirmar a fé e manter os laços da comunidade.
O centro, onde estão localizados os bancos (Banco do Brasil e Sicredi), as lojas,
mercados e a maior escola do município, constitui-se em local de passagem contínua para os
cidadãos, principalmente aqueles que residem fora do entorno central, os quais circulam de
maneira muito dinâmica entre seus espaços, permanecendo longo tempo do seu lazer
“olhando o movimento”, encontrando os amigos, conversando, ou como dizem, “proseando”,
sendo um espaço de sociabilidade.
Tal prática já foi descrita por Brandão (1995, p. 137), que descreve essa forma de lazer
e sociabilização: “reúnem-se também nas calçadas ou em pequenos grupos de caminhantes ao
longo da única “rua principal”. Estas situações foram descritas como “momentos de vagante”,
realizadas no círculo de pessoas de mesma idade e constitui-se em uma prática persistente e
que se inicia desde tenra idade.
105
itinerante, foi um recurso para estabelecer o equilíbrio ecológico: recurso para ajustar as
necessidades de sobrevivência à falta de técnicas capazes de proporcionar rendimento maior
da terra”.
Assim, tais modos ocorreram em Fontoura Xavier, porém em práticas isoladas,
normalmente atreladas ao extrativismo da erva-mate, mas havendo o retorno para a moradia,
no município. A prática de descanso das terras de roças, realizando a rotação de determinadas
áreas ocorre na própria propriedade. Por haver poucas terras disponíveis, havia a necessidade
de garantir o seu quinhão, o que os fez permanecerem no mesmo. Nesse sentido, pode-se
afirmar que a população não tem origem migratória, sendo uma importante amostragem dos
hábitos e costumes transmitidos de geração em geração.
A conformação dada ao espaço obedece a alguns critérios particulares, que se
vincularam aos nomes, acabando por definir as comunidades. De certa forma, o local possui
um sinal diacrítico de como ocorreu a ocupação, por quem, ou o que foi mais valorizado, no
sentido de definir grau de importância ou facilidade para referendar, no momento em que
ocorreu.
Nesse sentido, as várias linhas, picadas e vilas existentes em Fontoura Xavier
receberam diferentes denominações que acabam por contar um pouco da sua história. Alguns
nomes e sobrenomes possivelmente façam referência aos primeiros ou aos mais efetivos e
antigos moradores, como, por exemplo, “Vila César”, “Vila Vaz”, “Vila Assis”, ou ainda,
“Picada Silveira” e “Picada Casagrande”. A primeira palavra indicava a abertura do caminho
no mato. Seguindo nessa mesma linha, foram incluídas características do local, como, “Três
Pinheiros”, “Campo Novo”, “Pedra Branca” ou “Água Azul”, e também locais com nomes de
santos da devoção, como “Picada São Roque” e “Picada São Miguel”.
Idealmente, na região estudada, a propriedade dos agricultores se compõe dos
seguintes espaços: o mato, a capoeira, a roça, o pasto se houver animais de criação, o galpão
para guardar os mantimentos colhidos e ferramentas, o forno de fumo em caso de cultivo do
produto, a casa de moradia e o quintal, que pode conter ou não uma horta ou pomar, mas que
engloba o “terreiro” (pátio).
Na Figura 16 se visualiza o terreiro, contendo o cachorro de estimação, uma caixa
d’água, o galpão à esquerda, para guardar ferramentas e mantimentos e a casa de moradia.
107
O mato refere-se a cobertura vegetal nativa, que nunca sofreu derrubada, ou em que
esta ocorreu há muitas décadas; a capoeira é uma área que já sofreu a ação da derrubada,
porém está se reconstituindo, mas ainda não se transformou em mata; a roça é o espaço onde
se mantém as lavouras, inclusive a de fumo. Os demais espaços constituem-se em locais de
circulação interna da família, para a organização, para exercer o trabalho relacionado ao fumo
e para abrigar o grupo familiar.
108
Dando sequência a este trabalho, a seguir iremos adentrar nos relatos obtidos nas
entrevistas e diálogos realizados com os caboclos do município, nos diferentes espaços já
enumerados. Nestas ocasiões, procurou-se inquiri-los in loco, ou seja, em seu próprio
ambiente, normalmente nas próprias casas, mas também, eventualmente em seus locais de
trabalho, em um momento de pausa.
Neste subitem serão abordadas questões relativas à propriedade da terra. A partir dos
relatos orais busca-se o entendimento de como ocorreram as posses e a propriedade em
Fontoura Xavier.
O acesso e a propriedade da terra em Fontoura Xavier, conforme os relatos orais dos
entrevistados, teria acontecido “muito antigamente”, sendo que na maior parte das vezes se
deu por herança. Não sabem precisar com exatidão se esta aquisição inicial ocorreu através
das companhias colonizadoras, do próprio Estado ou de outros proprietários. Conforme os
agricultores, as propriedades maiores principalmente de área de campos, são de propriedade
de famílias de descendentes de italianos. Já as terras mais dobradas, com elevado percentual
de mata, formam as pequenas propriedades utilizadas na agricultura de subsistência, às quais
estão nas mãos dos caboclos de descendência luso-portuguesa, principalmente. As estórias
que contam da forma como a terra foi obtida remetem ao tempo dos pais e avós e são parte de
uma tradição fortemente marcada pela oralidade.
Nos anos mais recentes, através de um grande esforço de poupança, conseguido
principalmente através da alternância entre a produção de fumo e a migração para trabalhar
em outros municípios, muitos conseguiram adquirir mais área ou aumentar a já existente. Para
que estas aquisições acontecem, contribuem as relações de parentesco, pois ao parente é dada
a preferência na aquisição das terras.
ainda está em casa, são produtores de fumo, realizam a extração de erva-mate e mantém
lavouras para a subsistência familiar, obedecendo a sazonalidade de plantio.
Quando os mais velhos pensam o passar do tempo, o que separa um “tempo antigo”,
dos “dias de agora” é um deslocamento acentuado do eixo de reciprocidade sertão-
roça, para o outro: roça-cidade (BRANDÃO, 1995, p. 76-77).
112
Neste sentido, alguns locais de Fontoura Xavier como a Picada Casagrande, não
apresentam uma ruptura intensa em relação ao passado. Ainda é possível vislumbrar no local
um modo de vida que se mantém de forma semelhante ao que os atuais caboclos observaram
nas vivências de pais e avôs. Ainda que a cidade se avizinhe e as informações se disseminem
de forma mais rápida e uniforme, percebe-se que a maneira de viver é consequência de sua
cultura, mas também se trata de uma opção.
Um exemplo de agricultor que superou às condições econômicas relacionadas à
subsistência, características da condição cabocla, é P.B.F. (72 anos), residente em Picada
Silveira, mas que também possui propriedades no centro do município. Trata-se de u m
agricultor que mantém modos similares ao encontrados em outras famílias caboclas, tais como
a residência característica, com proliferação de imagens religiosas nas paredes, a presença do
fogão à lenha, a substituição do cigarro de palheiro pelo “cigarro de filtro”, mas à volta ao
primeiro, seguidamente, hábitos simples, que perpassam pelo vestuário, alimentação e
relações que estabelecem, baseadas principalmente no compadrio, já que relatam ter mais de
50 afilhados, muitos dos quais “já são home velho”. A maneira de P.B.F. conduzir a
administração de seus bens, composto de área de terras, casas de locação, prédio comercial na
área central do município, revela certas peculiaridades e um conhecimento intuitivo de
economia, já que estudou apenas até o ensino fundamental.
Eu sou natural de Arvorezinha. Eu vim morar aqui com 15 anos, o finado pai
comprou essa morada aqui, era tudo mato, aqui em Picada Silveira. Em 74 eu me
casei e vim morar aqui, faz 23 anos que eu me mudei para Fontoura (comprou uma
casa no centro de Fontoura Xavier), mas continuando a trabalhar aqui [...]. Pra te
conta, esta terra aqui de 25 ha de terra, que foi comprado do finado Nestor Silveira,
[...]. Então, foi comprado e nóis plantava milho e feijão pra pagar e nóis tinha
outra morada lá em Arvorezinha, mais nos compramo aqui porque era muito
falado de erva e coisarada e o finado pai se interessô em comprá onde tinha erva-
mate, entendeu? E pinheiro, pinheiro aqui tinha barbaridade. Tirando erva,
prantando mio, feijão, mandioca, batata-doce, criava porco, lidava com gadinho e
fumo levando. Mal tirava para a sobrevivência.
[...]Eu, daí, pra te contá, quando eu me casei, que eu trabalhei até os 21ano com
o pai, daí o finado pai já aqui era tudo dele, nóis tinha 56 arqueire nesta área aqui,
daí pega aqui, mais um lote pro lado de cá e lá no fundo tinha área grande que
nóis chamava mais 19 arquere que compremo do Pedro Elias. Tá, daí nóis
compremo a terra e daí primeiro casô minha irmã mais veia e depois casô a outra,
depois fui eu que casei, daí ele disse: a tua casa vamo fazê lá dentro do mato. Ele
era um cara analfabeto, o pai mal a pena desenhava o nome dele, pra escrevê era
muito difícil, pra fazê, é. E daí eu casei em 1974, daí vim morá aqui em uma
casinha de cinco e meio quadrado, feito de tábua, assim, e daí fui trabaiando,
trabaiando, [...] eu ficava em casa trabaiando direto no verão e ela lá pra lá,
estudando e eu prantando milho, feijão, daí, numa artura comecei a plantá fumo.
A agricultora T.P.C., moradora na linha São Roque, e seu esposo J.M.C., ambos
114
idosos, com respectivamente 80 e 82 anos, ao se referir a propriedade dos pais desta, relatam
que o local onde nasceu e cresceu era longínquo: “onde eu comecei a trabaiá? Era numa
descida aí na Pedra Branca.” Já para seu esposo, “era num perau lá no Pedra Branca.”
Assim como praticamente todas as mulheres do meio rural, T.P.C. esteve sempre à
margem das informações e decisões relativas à propriedade. Entre os entrevistados percebe-se
um maior reconhecimento do trabalho feminino, principalmente entre os casais mais jovens,
porém entre os mais velhos fica claro que o predomínio das decisões ainda é tradicionalmente
masculino. Desta maneira, T.P.C. não sabe dizer o tamanho da área do pai, pois essa
informação era restrita aos homens da família. Assim que casou, passou a fazer parte da
família do marido, e este passou a controlar o patrimônio e o que era feito nas áreas de terras,
até mesmo o “pedacinho” que ela teria herdado. A propriedade atual permite que a família
viva com tranquilidade, mas com muito trabalho, já que contam somente com sua própria mão
de obra. As atividades são tratar as vacas, ordenhar, limpar a casa, preparar as refeições, fazer
queijo para vender, juntar pinhão, entre outras. Como ela salientou, “vai fazendo como dá”,
pois relata sentir muitas dores. Aos poucos, o filho mais novo está tomando conta de tudo, e é
um suporte de grande valor na realização das atividades.
Em item específico trataremos das questões de gênero em relação aos pequenos
camponeses, mas salientamos a condição já apontada por Woortmann e Woortmann (1997, p
12), segundo a qual:
O Sr. J.M.C. perdeu o pai ainda muito jovem, ou seja, a referência principal foi a mãe,
filha de alemães com portugueses. A perda do pai alavancou sua condição de liderança para
os demais membros familiares, em substituição a este, embora faça parte de uma família
numerosa, mas com muitas mulheres. Neste sentido, é importante a obra de Woortmann
(1994, p. 133), para a qual:
A família de J.M.C. e T.P.C. está aos poucos delegando o trabalho na propriedade para
o filho mais jovem, P.P.C., de 42 anos, o qual, embora resida com a esposa e o filho na
115
Mataram. [...]. Óia, ele foi acudir uns que tavam brigando, né. E daí o outro
veio sem merecer e tacô uma facada direto no coração. [...] É, vai fazê
agora uns 13 anos, 14, por aí. [...] O meu Guri ficou, ele tinha uns três
aninhos, quando ele, quando mataram ele, nem bem três aninhos não tinha.
Era bem pequenininho. - E você ficou morando aqui nesse lugar sozinha? -
Fiquei, com os dois fio. - Só vocês? - Uhum.
e marido. O único filho, V.R., está assumindo o trabalho considerado “de homem” na
propriedade. Na ocasião da visita, não conseguimos entrevistá-lo, pois estava na lavoura
trabalhando. Os estudos do rapaz tornaram-se secundários, sendo realizados somente após o
trabalho, se houver tempo.
A substituição do marido/pai na família de M.J.M. ocorre pela transmissão da mãe ao
filho, que passa a assumir maiores responsabilidades e o “governo” da família, o que deverá
acontecer plenamente aos 18 anos, já que “primeiro, merece-se o reconhecimento social do
saber e da prática para produzir; mais tarde, adquire-se o reconhecimento do saber necessário
para “negociar” (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 41).
O marco geracional vincula-se a ideia de maioridade, a qual tanto pode ocorrer pela
idade, para o rapaz, quanto pelo casamento, para as moças. Assim, “para um certo pai seus
filhos se governarão ao atingirem a idade de dezoito anos (RENK, 2006, p. 170)”.
No caso de V.R., a substituição ocorre de maneira forçada, por necessidade devido ao
falecimento do pai, e pela delegação da mãe, a qual volta a ter um homem em casa para fazer
o trabalho “de homem”. Assim Woortmann e Woortmann (1997, p. 39), estabelece o
pressuposto masculino na cultura camponesa:
como ocorreu a distribuição das terras, o Sr. J.P.B.L. nos contou que sua família acabou
ficando com uma área que, embora grande, não é adequada ao cultivo. O motivo, segundo ele,
é que seu avô tinha o hábito de caçar e preferiu ficar com uma área onde houvesse mata e
fauna abundantes. Segundo ele, a propriedade que herdou correspondia ao anseio do avô, já
que “ali vinha de tudo, era veado, era baque, era capivara, o que fizesse rastro.”
Brandão (1995) discute o espaço do sertão, antigamente como o lugar de habitação dos
animais selvagens. A cidade era longe, mas agora a cidade se aproxima e ameaça o sertão de
não existir mais. A ocupação das áreas de matas por plantações, elimina tudo, de plantas à
fauna selvagem. Ao falar dos animais, o Sr. J.P.B.L. o faz com saudosismo, pois já não são
mais vistos.
Descreveu ainda a grande área da propriedade familiar da família dos seus pais, da
qual pouco, porém, podia ser utilizada: “é, nóis morava lá, é lá nossa terra, nóis tinha
sessenta arquere de terra ali.” Considerou-se que sessenta alqueires era bastante, porém:
Sim, sim, tudo, maior parte perau, não dá pra aproveitá, e daí pra coiê era
base do, de aonde pegava o carguero, tinha que trazê nas costa, era sofrido,
sofrido mesmo.
Conforme o Sr. J.P.B.L., devido à opção do avô por áreas onde houvesse caça
abundante, as melhores terras agricultáveis ficaram com seus parentes (primos) que hoje são
agricultores “fortes” no município. Não havia o conhecimento naquela época de que o campo
era melhor que a mata, conforme ele. Assim, as escolhas acabaram por determinar as
condições socioeconômicas, pois a família está dividida entre dois ramos: o primeiro, aqueles
que herdaram terras de campo, mais próximas da sede do município, onde criam gado e
plantam soja, principalmente; o segundo, composto pela família do Sr. J.P.B.L., em terras
com grande área de matas, onde é possível fazer roças de subsistência, bastante distante da
sede município.
Woortmann e Woortmann (1997, p. 19) assinalam, referindo-se a meados do século
XIX, que a propriedade da terra indicava a relação com o “termo reservado aos fortes, os
antigos criadores e os atuais pecuaristas”.
Para o interlocutor, o “forte” em contraposição ao “fraco”, tem relação com aquele
que produz mais excedente para comercializar, que possui terras boas e em maior quantidade,
onde pode produzir mais. Também pode utilizar a expressão “folgado”, para denotar aquele
que vive na folga, com excedente, que detém o capital.
Ouvimos também o relato de D. S.S.F. (64 anos), esposa de P.B.F. aqui já nomeado.
118
Com relação à quantidade de terras que sua família parental possuía, considera que era pouca
e inadequada para o plantio:
Era pouca terra do pai, era muita ladeira, muito dobrado. O pai tinha quase
20 arquere. Mas daí foi vendendo devido as dificuldades, doença, naquele
tempo não tinha SUS18.
Em Picada Casagrande, ao conversar com C.P.M. (49 anos), a qual, sendo a filha mais
nova da família, herdou a casa em que os pais viviam e também a área de terras. Além disso,
assumiu a responsabilidade de cuidar dos irmãos, ambos mais velhos, considerados incapazes
devido a uma deficiência que os torna totalmente dependentes de cuidados:
18
SUS - Sistema Único de Saúde.
119
Eu casei, fiquei morando aqui. A casa era da mãe, né. Ela morava aí com meus
irmão doente que moravam com ela, e aí eu casei e fiquei morando junto ali.
Depois ela faleceu, fiquei na casa que era dela, fiquei morando ali, daí a terra
também que a gente planta um pouco era, na verdade, herança dela, né, e a gente
vive, planta um pouco, um pouco de milho, de feijão, o que dá pra plantar um
pouco a gente planta. Só que a gente não vende. Tem erva-mate também.
Nesta família, os padrões listados por Woortmann (1994) são confirmados, pois de
fato ela foi a última a se casar, assumindo as obrigações que lhe eram esperadas e tornando-se
a herdeira da casa em que os pais viviam.
Já na família de P.P.C., sendo o único filho homem após a existência de várias filhas, e
também o mais novo, lhe coube a tarefa de cuidar dos pais e a responsabilidade pelo
patrimônio, dando continuidade ao legado da família, estando muito clara a questão
sucessória vinculada aos laços de ultimogenitura.
Faz mais de 20 ano que nóis temo aqui. Essa tenda aqui foi uma verba que
foi feita através da prefeitura que o governo federal que mandou, foi ele que
botou nóis aqui.
No entanto, a história dos tendeiros tem bem mais de 20 anos, conforme já visto em
capítulo anterior, e comprova-se no que diz C.F.S., pois conforme ela, antes de lhe ser dada a
tenda, “sempre morei nas bera de estrada. Aonde a gente ganha um pouquinho é nas tenda,
né. Aonde a gente sobrevive”.
Embora o grupo dos tendeiros esteja circunscrito a uma pequena área geográfica,
percebe-se que não há consenso entre todos. Estas dissensões aparentemente estão localizadas
no campo político, mas também podem indicar um conflito cultural, com raízes étnicas. Uma
das articulações que ficou dificultada foi a apresentação do projeto realizado pela vereadora
C., filha de M.I.B.P., presidente da Associação dos Tendeiros de Fontoura Xavier e uma de
nossas pesquisadas, na reunião que esta programou para dialogar sobre a necessidade de se
construir um novo espaço, já que a adesão foi significativamente pequena.
Os tendeiros estão enfrentando de forma bastante tensa a possiblidade de serem
desalojados de suas tendas da beira de estrada devido à duplicação da BR 386, que está
prevista para iniciar em 2021 e ser concluída em dez anos, conforme o Governo Federal
(BRASIL, 2021), objetivando atingir um longo trecho de extensão. Como as tendas estão
localizadas na faixa de domínio da rodovia, terá que haver uma readequação em relação à sua
121
posição, recuando-se o espaço suficiente para sair da faixa de domínio das terras públicas.
Como nem todos os tendeiros são proprietários das terras contíguas às suas tendas para
realizar esse recuo, cogita-se na construção de um pavilhão que abrigaria a todas.
A Figura 19 retrata a exposição externa dos produtos da tenda e a casa de moradia do
proprietário, ao lado.
A presidente da Associação dos tendeiros, M.I.B.P. (50 anos), proprietária de uma das
maiores tendas, relata que conseguiu ir melhorando aos poucos, pois conforme ela, iniciou
com um espaço muito pequeno e passou por dificuldades. Em relação à representatividade do
seu posto como presidente dos tendeiros, diz que:
Ah, eu vou, né. É bom. Não, eu tento tê uma relação boa, né. Porque eu tô pensando
assim, né, eu como presidente eu penso em ajudá todos, não penso uma coisa prá
mim. Tanto que conversei com a C., como a C. é vereadora, né, ela desenvolveu um
projeto pra todas as tenda, não eu aqui, sabe? Ela vereadora C. fez um projeto pra
todos os tendeiros e daí hoje ela vai apresentar na reunião, né.
122
Em décadas passadas, 30, 40 anos, 50 anos atrás, aqui era uma pobreza
muito grande no município. Eu lembro que naquela época, haviam muitas
pessoas circulando pelas ruas, mendigos, pedindo para se alimentar, a
pobreza era muito grande. A falta de conhecimento de exercer um trabalho
que desse resultado, num passado recente.
Atualmente, o Sr. P.F.S. acredita que essa realidade mudou, pois já existe uma boa
parte dos agricultores que trabalham de forma mecanizada e a tecnologia tem contribuído para
as melhorias das condições de vida, porém, o município apresenta índices que denotam
carências significativas.
As terras da família do Sr. P.F.S. foram recebidas em herança, com título
comprovando a propriedade. Embora se tratasse de uma área que ele considera pequena (15
alqueires), eram terras localizadas nas margens de campos e planas, em Campo Novo, estando
hoje de posse de dois dos seus irmãos.
Novamente, nesta família está presente a tradição de ultimogenitura. Sendo o filho
mais velho, ainda que fosse seu desejo, precisou “ganhar a vida” fora do núcleo familiar,
123
O patrão nunca ia. Eles moravam em Soledade. Daí né, assim ele tinha
ganhado aquela terra de uma gentarada aí no Fontoura né, pagaram tudo
as medição, umas causa que existiu né, daí ele cobrou daquele povo 82
alquer, seria 160 quase 200 hectar né. Ele cobrou daquele povo essa
quantia de terra por tudo as despesas que ele feiz né. O serviço dele, né.
Naquele tempo não tinha valor a terra. O Kumber, o Duarte, os Taffarel,
todo mundo deram, cada um deu um pedaço pra dá essa terra pra ele, só
que a terra era muito grande, é pavorosa de grande, é uma fazenda né e
daí disseram que era ali em tal lugar, mas daí ele não conseguia assumi a
terra. O Techio disse que era dele até lá, outro dizia que era dele, outro
dizia que era dele, os que tinham em roda tudo né, ... tudo fazia divisa né,
daí eles demarcaram, vai ser ali em tal lugar, tem que dá os 82 alquer. Daí
ele não conseguia entrá dentro da terra, daí ele falou com meu avô para
ele vim mora ali. Daí meu avô veio e se instalou ali, fez um garpãozinho e
se instalô ali, bem no meio. Daí foi onde ele conseguiu ir demarcando a
terra dele, meu avô começou a cuidá, fazê roça pra lá e prá cá né, tinha os
três filhos. E daí ele conseguiu ser dono da terra, conseguiu botá
querência lá né.
19
Cândido Carneiro Júnior destacou-se como pecuarista e político no município de Soledade, sendo secretário do
Partido Libertador naquele município no ano de 1928. Em 1930 foi tenente-coronel da Brigada Militar e em
1932 ocupou o mesmo posto militar no 33º Corpo Auxiliar da Brigada Militar (Corpo Provisório). Faleceu no
ano de 1950 (GUERREIRO, 2005, p. 72).
20
O Combate do Fão, ocorrido no amanhecer de 13 de setembro de 1932, foi marcado por um violento combate
entre apoiadores gaúchos da Revolução Constitucionalista, liderados por Cândido Carneiro Júnior, o “General
Candoca”, e tropas armadas do governo estadual de Flores da Cunha, na localidade de Barra do Dudulha, hoje
nos limites entre Pouso Novo, Progresso e Fontoura Xavier (FILATOW, 2015).
124
Ele não herdou eu acho ou se herdou vendeu, a terra dele que ele se criou
foi ali na igreja do Pedra Branca. Eu não sei se ela vendeu (a mãe do avô)
aquela terra lá e não deu nada pra ele, né. Acho que ele não teve herança.
Conforme a mãe de F.J.C.9788yy, em relação ao sogro, diz que: “a mãe dele teve uma
herança, uma terrinha, mas o finado garrô e vendeu”.
As diferentes estórias contadas demonstram vários entrelaçamentos com as pesquisas
sobre o caboclo histórico, da região Sul do país. Aqui, como em outros locais, as áreas que
restaram aos caboclos foram em locais “preteridos”, até que houvesse uma efetiva procura
pelos imigrantes e seus descendentes italianos e alemães, o que ocorreu a partir de meados do
século XX. Tais áreas configuram-se na maior parte em minifúndios ou mesmo no caso de
125
áreas maiores, tratam-se de espaços com grande concentração montanhosa e de mata nativa.
Muitos desses caboclos são remanescentes do trabalho nas fazendas agropastoris de Soledade
e que encontraram em Fontoura Xavier, um local mais seguro para habitarem.
Assim como não existem culturas que não recebam influências externas, não se pode
dizer que existam comunidades puramente caboclas no estado mais meridional do Brasil. No
entanto, certos locais mantêm uma vinculação estreita com essa característica. A região do
Alto da Serra do Botucaraí é um desses espaços, revelado pela oralidade do que se diz “a
respeito dela”, no entanto sem “provir diretamente dela”, ou seja, é um local do qual o senso
comum regional diz possuir preponderância de indivíduos caboclos, para o qual utiliza-se
popularmente a expressão “pelo duro21”.
No seu poema “O puchirão de Gé Picaço, Lacerda de Almeida Junior se propõe a
descrever o caboclo serrano do Rio Grande do Sul, chamando-o de “pelo duro”, termo com
forte identificação que se deduz do indivíduo de cabelo grosso, preto, firme (JUNIOR, 1925,
apud RIBAS, 2007, p.436).
21
A expressão “pelo duro”, cunhada popularmente, refere-se também aos equinos, de espécie nativa e
resultado do cruzamento com outras raças. Utilizada para designar pessoas, refere-se ao indivíduo nativo ou
crioulo miscigenado com pelo menos uma etnia não branca.
126
conta com um grande número de sujeitos que preservam quase em sua inteireza os costumes
caboclos, dentre os quais a estreita ligação com a terra, a prática de ofícios vinculados à
natureza, como o cultivo e a colheita de erva-mate, a ênfase nas relações familiares, e com
vizinhos e compadres, as crenças religiosas, que compõe um extenso panteão. No entanto, as
novas gerações vêm sofrendo um processo rápido e irreversível de não perpetuidade cultural.
Nesse sentido, convivem com novas tecnologias que os colocam no patamar de outros jovens,
até mesmo de centros maiores, bem como almejam integrar-se nesta dinâmica, tanto na
aquisição de bens de consumo, como na busca por atividades que sigam o padrão vigente,
perdendo aos poucos a sua relação com o meio natural, pois esse se revela “sem atrativos”,
em comparação com o que a modernidade pode oferecer. Afirmamos que, exceto para alguns
poucos indivíduos jovens, a vida do caboclo não possui apelo para a permanência nessa.
Contribui para isso a não existência das marcas de grupo mais amplo nessa
comunidade, o que poderia ser um facilitador para a permanência dos jovens nos redutos
rurais acaboclados. A título de esclarecimento, “o grupo” de brasileiros carece do
“associacionismo étnico” (TEDESCO, 2021 p. 1-2,), que Tedesco enumera em relação aos
descendentes de imigrantes italianos:
A produção é central para a reprodução do grupo, visto como um todo, e para cada
grupo doméstico específico que a realiza, que é também a unidade de reprodução da
força de trabalho (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 12).
O mesmo homem do campo que me mostra as suas mãos “grossas e cheias de calos”
e as opõe às minhas – mãos “finas” de “gente da cidade” – ao mesmo tempo em que
e desqualifica ao comparar a figura física das mãos, marca através desta exata
diferença, o oposto [...]. (BRANDÃO, 1995, p. 220).
O caso da depoente C.P.M. (49 anos), também apresenta indícios das interligações que
ocorreram entre os alemães e os caboclos. Suas terras estão em uma região de planalto e o
plantio da lavoura é predominantemente de culturas como a mandioca e a batata-doce. Na
geração dos bisavós, relata-se que teria havido um casamento interétnico entre uma mulher
alemã e um homem caboclo.
Percebe-se que não há elos de etnicidade com outras famílias de origem alemã, as
quais são poucas no município e ainda que houvessem, a adaptação ao modo de viver atual
aconteceu ainda na primeira geração de imigrados, não havendo memória destes primeiros
entrelaçamentos. Assim como Woortmann (1994, p. 130) “a memória dos colonos elimina a
Alemanha de sua temporalidade”. C.P.M. (49 anos) apenas sabe que a bisavó era da
Alemanha, mas que seus pais eram muito rígidos e que fugiu para casar-se com um brasileiro.
130
O professor P.F.S. (66 anos) acredita que as características físicas dos moradores de
Fontoura Xavier e de si próprio indicam a presença do componente nativo autóctone na
maioria da população, a qual miscigenou-se com o português. Este componente estaria
situado em um nível mais distante no tempo, ou seja, as miscigenações teriam ocorrido em
uma linha temporal mais distante no passado.
Com relação à população italiana em Fontoura Xavier, ele diz que esta adentrou no
município “há apenas algumas décadas atrás e poucas famílias. Mais de 70% aqui é
português, predominantemente”.
Neste sentido, o Sr. P.F.S. (66 anos) associa a predominância étnica do português
no município, aos problemas econômicos que enfrentam, sendo que conforme relatou, uma
parcela significativa da população vive dos benefícios sociais concedidos pelo governo:
O homem português não é muito do trabalho. Ainda existe uma cultura que
tendo do que se alimentar, não estando fazendo muita falta o trabalho, o
dinheiro, se dá para viver, vai se empurrando com a barriga.
Para comprovar sua teoria cita o exemplo do distrito de Campo Novo, onde nasceu e
que teria no início de sua povoação, predomínio total da etnia portuguesa. Conforme ele, após
a chegada do primeiro italiano há quarenta anos atrás, e após outros, que adquiriram terras
baratas, desenvolveu-se de forma exemplar no município, atualmente predominante quase que
na integralidade de pessoas de origem italiana. Quanto aos poucos agricultores de origem
portuguesa no referido distrito, “continuam tal qual”.
Pode-se perceber que assim como na pesquisa de Renk (2006, p. 113) realizada no
oeste catarinense, onde “à população local pesavam e pesam acusações de ser fatalista,
preguiçosa, pobre e resignados à pobreza”, em Fontoura Xavier estão presentes estes
131
conceitos.
O casal de agricultores, Dona R.C.R. (58 anos) e A.M.R. (60 anos), ao serem
perguntados sobre suas raízes étnicas, apenas souberam dizer que não descendem de italianos
ou alemães, demonstrando certa confusão ao se depararem com a questão, já que não
costumam pensar sobre esse assunto.
Para outros entrevistados, como o Sr. P.B.F. (72 anos), o conhecimento de suas
origens foi recebido através dos pais e avós: “são português também”.
É possível ver os entrelaçamentos interétnicos em muitas situações, como é o caso da
tendeira MIBP (50 anos): “minha mãe é italiana e meu pai é português”.
Na localidade de Água Azul, D. L.S.S. (72 anos), relata que quando seu pai faleceu
“eu ainda não havia no mundo, eu tava pra nascê”. Embora não tenha certeza de sua origem
étnica, os relatos dos mais antigos dão conta de que poderia ter uma origem diversa do
brasileiro local, tendo acontecido o entrelaçamento étnico entre colonos de origem alemã e a
população autóctone.
Mas ele era bem alemão, diz a minha mãe, bem ruivo, olho verde. A visavó
dele foi pegada no mato a cachorro. E ele não era preto, era branco. A
minha mãe contava.
O Sr. JPBL (74 anos), entende etnia como sobrenome e relata as misturas que
houveram entre os novos imigrantes e os habitantes locais, característica muito presente nas
comunidades caboclas:
Eu sou da raça dos Batista. Eles são... os finado vô, bisavô, ele veio da
Alemanha. Viajaram quarenta e cinco dia, diz que por água pra vir pra cá.
Daí, é por isso que ficou encastiçado, aí casou com a escura, aí uns
nasceram branco e otros preto, e daquele jeito foi, e depois o finado meu
avô, também era home bem branco, e daí casô com uma quase índia,
que era aqui de São Roque, aí, eu tenho irmão que me óia assim, tamo
junto não diz que é meu irmão, bem ruivo e eu já puxei moreno, a Maria
também. É,eu puxo um poco do sangue. É com alemão.
Ao dizer que “puxa um pouco do sangue”, ele está se referindo a ter um pouco do
sangue indígena. Diz que os irmãos “são brancos”, enquanto ele, embora sendo um homem
de pele clara também, não se percebe como tal.
Na família de JPBL (74 anos), há uma permanente divisão, seja entre aqueles que
“ficaram com as terras boas” e os que “ficaram com as terras ruins”, ou ainda, a divisão
entre os que descendem do colonizador europeu e, portanto “são brancos” e os que
132
descendem dos povos selvagens, “morenos” ou “pretos”. Como salientou Renk (2006, p.
157):
Figura 22 - Antepassado da família Ferreira que residiu em Fontoura Xavier e lhe deu
origem (data ignorada)
De acordo com os entrevistados, fica claro que houve mesclagem entre as diferentes
etnias, mas raramente entre italianos e caboclos e, quando ocorre, há uma perda de vínculo
com a família italiana. Como observou Arlene Renk (2006, p. 76):
133
Assim como no noroeste de Santa Catarina, nos relatos obtidos por Locks (1998), o
uso da expressão “pegado no mato a cachorro” foi utilizado algumas vezes pelos agricultores
para explicar sua descendência, o mesmo ocorreu em Fontoura Xavier. O relato de R.R. (52
anos) retrata esta história oral, contada entre as gerações sobre sua descendência:
O meu vô era alemão, Alfredo José da Rosa, e daí a minha avó, que era
esposa dela, era Sebastiana, o sobrenome eu não me lembro. Foi pegada a
cachorro no mato. Eles contavam. O meu avô eu conheci, era alemão puro e
daí a minha avó eu não cheguei a conhecê. Então daí eu tenho sangue de
índio e de alemão.
Neste caso, o avô alemão de R.R. (52 anos) possui um sobrenome português, o que
pode ter acontecido devido a outros casamentos interétnicos no passado, com mulheres
provindas ou descendentes de alemães, o que ocasionou a perda do sobrenome dos filhos
nesta transição, prevalecendo aqueles de origem portuguesa.
A descendente de italianos, S.S.F. (64 anos), casada com P.B.F. (72 anos), conserva os
hábitos e maneira de ser do “jeito brasileiro”. Ela fez questão de ser entrevistada
individualmente, pois, conforme ela, embora atue em parceria com o marido, realiza outras
atividades, claramente reforçando a sua própria identidade. Em relação ao modo de vida ser
diverso conforme a etnia, ela não sabe em que se diferencia um e outro comportamento, pois
para ela é “tudo do mesmo jeito”. Com relação aos hábitos da família dos seus pais, respondeu
que era “tudo igual”. Com relação às suas vivências étnicas:
Esta percepção ocorreu de maneira mais forte em lugares longínquos, com pouca ou
quase nenhuma logística, com a mata se erguendo majestosa em frente à casa solitária, onde
mãe e filho vivem sós, enfrentando o distanciamento da pandemia de Covid-19, sem
conseguir manter relações próximas com a família e a vizinhança, tendo por companhia
somente um ao outro e a os animais domésticos. A dúvida entre o ficar, que representa a
integração com o mundo natural, e o ir em busca de perspectivas para o filho é uma constante.
Por outro lado, quando a idade do caboclo é avançada, não se costuma fazer tais
questionamentos. Chega-se à conclusão de que o seu lugar é ali, mas busca segurança num
parente ou vizinho, que possa lhe cuidar, a quem possa se socorrer em uma “precisão”. Ou,
ainda, quando fica apenas o casal na propriedade, a esperança de ter uma renda adicional que
permita viver ali com mais tranquilidade, e esperar o retorno dos filhos migrantes que saíram
em busca de oportunidades, os quais voltam nos finais de semana.
As situações são diferentes, mas estão presentificadas no cotidiano das pessoas. Para o
adulto e o idoso a certeza de que devem permanecer no seu lugar junto à terra. Quanto aos
jovens, fica a dúvida entre oferecer maiores oportunidades e o acesso ao “progresso” nos
estudos e nas condições econômicas, ou a permanência em uma vida de trabalho, com pouca
terra agricultável e longe da cidade.
A saída das famílias do campo tende a mudar os seus hábitos e por consequência os
transformam culturalmente, numa tendência homogeneizadora vinculada à urbanidade. Se os
jovens saem do campo e os mais velhos são os últimos a ficar, essa cultura corre o risco de
declinar nos anos vindouros.
Ao falar destes tempos, seu esposo J.M.C. (82 anos), complementa: “era uma
escravidão, a pessoa era escrava!”. A escravidão relatada por ele refere-se ao trabalho
ininterrupto na lavoura, para garantir os mínimos para a sobrevivência, com pouco ou quase
nada de descanso. As grandes distâncias entre os núcleos de povoação, a falta de acesso no
período entre o segundo e o terceiro quarto do século XX, até a emancipação e consequente
início da insipiente entrada de recursos no município, para se investir em estradas,
principalmente, é a prevalência da luta desses moradores para domarem a terra.
Também está relacionado ao não contar com máquinas que contribuíssem para a
diminuição do trabalho braçal humano e proporcionasse aumento na produção. Assim, o
cultivo tornava-se uma escravidão, pois as terras íngremes e cobertas com farta vegetação,
mata inicialmente e após capoeira, somente poderiam ser desbravadas através das queimadas
e após, havia um grande esforço para o plantio, colheita e todos os processos produtivos
envolvidos.
O filho P.P.C (42 anos) percebe a vida atual como muito melhor em relação ao
passado: “não tem nem comparação. A vida agora tá melhor pra todos. Eles comentam, né,
todos”. A comparação entre o passado e o presente realizada por P.P.C., trata-se do que
“ouviu dizer”. Na sua geração, não presenciou os elementos que contribuiriam para definir o
passado como pior em relação ao hoje. No entanto, percebe alguns indicadores que poderiam
dar uma amostragem dessa diferenciação em relação ao passado: “não haviam estradas
boas, não tinham máquinas, era tudo no braço, não tinha acesso à saúde, nada, todo mundo
136
Ah, agora tá um pouco melhor, ih... Eu trabaiei por dia pra dá o que cumê
pra minha famía. Hoje eu não preciso mais disso. [...] trabaiava nas lavora
por dia, carpindo, prantando mio”.
Já passei pra cinco ano que tô ali [...] eu conquistei eles e daí vim morá, eu
pedi pra ele se deixava eu vim morá na casinha e ele disse que eu podia
morá, só que daí eu pagava água, né, daí ele disse, só a luz tá bom.
Como D.D.A (54 anos) não consegue produzir para a subsistência nas terras que
ocupa, já que estas contém as plantações do proprietário, “é pequeninha, só a casinha”, atua
como prestador de serviços em geral para quem estiver disposto a contratá-lo, assim realiza
capina e limpeza de terrenos e plantações. Nestas ocasiões, além do pagamento que recebe,
ganha “presentes”, como comida e roupas, para “sobrevivê, aos trancos e barrancos, é
minha luta, do dia a dia”. D.D.A. (54 anos) relata que chega a ficar de três a quatro dias sem
serviço, o que o preocupa. Particularmente quando o encontrei, estava muito feliz pois tinha
conseguido comprar a um preço simbólico, uma bicicleta usada, o que facilita sua vinda ao
centro do município para trabalhar. Sobre sua vida pregressa, diz que “a gente se criou no
Paraná, [...] mas eu nasci aqui em FX. Meu pai trabaiava nas firma, em obra”.
Com relação à propriedade, conta que moravam “sempre em casa alugada” e que em
2001, retornou para Fontoura Xavier, na tentativa de mudar de vida, já que a busca pela terra
da promissão, que nos anos 60 era representado pelo Paraná, não rendeu os frutos esperados:
“quando a gente foi daqui foi só com um saco de ropa nas costa, [...], uma família sofrida
né. Eu trabaiei na costa do Uruguai, em Itá”. Questionado sobre sua vida anterior ao retorno
para o município, diz que foi muito sofrido, que não gosta de falar. “Fui abandonado desde
pequeninho, sempre lutando pela vida, pra sobrevivê”.
O local praticamente desabitado que D.D.A. (54 anos) vive, foi no passado uma
próspera linha, ao qual a memória dos moradores salienta como um local de concentração de
137
Era muito longe, não tinha ponte, não tinha nada. E daí tocava da gente saí
de a pé. Depois que nóis saimo, fizeram a ponte. E tinha carro tudo a vida e
tocava de ir a pé. [...] Agora não, aqui não é sofrido.
Para ela, o local é sempre lembrado com saudosismo e tristeza, ocasionada pela
necessidade de ir-se embora:
A terra era boa, os vizinho eram bons, a igreja pertinho, aí a hora que eu
queria ir lá na igreja, não perdia missa, não perdia o terço. [...]. O dia do
terço era o mesmo que uma festa, e vinha gente de longe, porque tinha muita
guria.
A perda deste espaço comunitário, onde a igreja era utilizada como um meio de
encontro, de convívio social, ainda a deixa ressentida, o que se observa pelos comentários
relacionados ao local em que está morando atualmente, que segundo ela
138
Logo que vim pra cá, eu não conseguia, eu queria saí. Não gostava do lugá,
muito fundo, eu não enxergava casa nenhuma. Me acostumei, mas nem
tanto, tem dia que eu me alembro da minha morada.
Para L.M.M.P. (46 anos), “a minha infância foi muito sofrida, a gente se criou na
roça, carpindo pra sobrevivê, plantando milho, feijão, uma vaquinha de leite, um porquinho”.
A prática do ofício de tarefeiro de erva-mate, conforme ele “desde criança”, auxiliava a
compor a renda familiar, “até hoje eu ainda lido com isso aí”. A gratidão a quem concede o
emprego foi de diversas maneiras salientada pelos moradores de Picada Casagrande. Em
tempos anteriores, conforme contam, o proprietário da Ervateira mais antiga concedia
trabalho a todos, indistintamente, ou na limpeza dos pés de erva-mate, no seu extrativismo, ou
no processo de industrialização. O entendimento do trabalho infantil neste período apresenta
uma dimensão diferente da atual, pois para os agricultores, trabalhar não era uma escolha, mas
uma necessidade. Na ervateira todos tinham espaço, desde crianças, jovens, adultos, homens
idosos. Relatam os mais antigos que o proprietário, já falecido, os visitava com frequência,
emprestava dinheiro sem cobrar juros, fazia doações, adotou filhos de caboclos que não
conseguiam cria-los, num extenso conjunto de atitudes que acabaram por nomear um dos
principais redutos de Fontoura Xavier com seu nome, ainda em vida. Sendo um homem de
etnia italiana, é tido em alta consideração pela comunidade, “igual aquele não ai” padrinho de
inúmeros caboclos, acabou por tornar-se um. Conforme ouvimos, apenas quis que seus filhos
estudassem, mas permaneceu toda a sua vida junto à comunidade que acolheu e onde foi
139
acolhido.
A relação entre os desafios enfrentados pela ausência de meios de garantir proteção ao
bem estar físico, bem como a falta de tecnologias mais eficazes para a execução do trabalho
são apontados por SSF (64 anos) como um indicativo de que a vida era muito mais difícil no
passado:
A forma de exercer a atividade agrícola, no período em que o Sr. JPBL (74 anos)
esteve no auge da vida produtiva, ou seja, entre os anos de 1.960 a 2.000 aproximadamente,
demonstra que não havia acesso aos meios de mecanização, capazes de diminuir o esforço
humano. Visto que neste período, já havia se processado a revolução verde no Brasil e a
mecanização estava difundida, percebe-se que no caso dos caboclos, não haviam as
condições econômicas, seja através de recurso próprio, financiamentos bancários ou
governamentais para ter acesso à tais tecnologias. O acesso aos financiamentos bancários
possuía entraves de grandes proporções, pois primeiramente não possuíam renda para
comprovar a capacidade de pagar um financiamento, bem como, caso conseguissem se
habilitar, os excessos de burocracia, através das exigências de documentação eram
considerados praticamente intransponíveis. Esta situação se alterou a partir do
funcionamento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, que passou a auxiliar
os produtores a encaminhar os papéis.
Antigamente era sofrido, [...]. Mais, trabaiá era tudo no braço, não tinha
negócio de lutá com lavrado, com nada, tudo na enxada e foice, e pra coiê
a maió parte dos lugá, brabo era no braço.
Para a tendeira MIBP (50 anos), o sofrimento que passou na infância é contado
como uma fase difícil, da qual conseguiu superar as dificuldades. Salientou que a superação
desse período de dificuldades, tornou mais fácil a vida de seus filhos:
140
Foi bem difícil, bem complicada, a gente morava lá no interior, né, muito,
muito pobre. Aqui no interior, no Gramado de São Pedro, ali. Meu pai e
minha mãe trabalhavam na roça, né. A mãe tinha que levá nós pra roça
dentro de um cestinho. A cavalo, bem sofrido, viu, uma infância bem
complicada. Eu tenho, somo em oito irmão, né. Moravam todos em casa,
dificuldade enorme, né.
As diferenças dos relatos entre os caboclos possuem em comum uma linha do tempo,
que os separa por gerações. A geração de M.I.B.P. (50 anos) e de P.P.C. (42 anos)
compreende um grupo de pessoas mais jovens e, portanto, ainda que estivessem suscetíveis à
pobreza dos pais e também tragam marcas nas suas memórias, entendem que houve uma
superação desta condição. Os pais e avós, neste caso, foram aqueles que realmente fizeram a
linha de frente, para quem foi pior o enfrentamento das dificuldades e eles, de diversas
maneiras, conseguiram se sobressair frente a isto. Esta mudança de condição refere-se a um
período de algumas décadas.
Este é o caso da tendeira C.F.S. (62 anos), para quem as dificuldades são sentidas em
sua própria geração, primeiramente como dependente e após ela mesma, como provedora. As
situações estão muito presentificadas em sua vida e o falar é difícil, pela emoção que carrega:
“foi muito sofrida. Eu passei fome. [...]. Nóis era em 7”.
Os sofrimentos passados trazem inconformismo, pois questiona-se o motivo de se ter
vivido tais situações. Junto a isto, também manifesta a vergonha da situação de penúria, do
fracasso familiar.
Ao questionar se o pai trabalhava na roça, diz que “morava aqui, ali... não tinha onde
morar. Meu pai morava nas casa dos outro”. Conforme ela, eram naturais de Fontoura Xavier
mesmo, mas possivelmente sejam os remanescentes de desalojados das fazendas pastoris.
Com relação aos avós, “eu nem lembro. Aquela vez nem existia”.
Para aliviar a família paterna, C.F.S. (62 anos) casou-se logo que pode, porém “daí
sofremo também, porque nóis era muito pobre”. Ela entende que aqueles tempos eram muito
difíceis e que “não tinha outra alternativa”. A constituição da nova família deu-se nos
mesmos moldes daquela em que foi criada, “eu tive 7, só que um morreu. Tenho 6. Tão tudo
criado”.
As tendas representaram um fator decisivo para a melhoria das condições de vida, já
que a partir da cessão do espaço pelos órgãos oficiais, construiu-se uma nova dinâmica na
vida das famílias: “depois que eu comecei lidá com as tenda, fome não passemo mais”. Pode-
se dizer que a vida dos caboclos tendeiros, sem espaço algum de terra, desalojados, vivendo
de favor ou prestando serviço nas casas de outros, tentando vender algum produto extraído
141
das matas para os viajantes nas beiras de estrada, revela-se de maior dificuldade, se
comparada com aqueles que possuíam um local para plantar para subsistência.
Atualmente, as condições de vida dos tendeiros são melhores do que muitos outros
segmentos do município, conforme C.F.S. (62 anos), houve muita evolução material dos
tendeiros: “tem, ih! Camionetão. Para ela, a distância entre as tendas e o centro está muito
mais acessível: “mas é pertinho, a gente tem um carrinho pra ir”. Estas mudanças seriam
decorrentes do aprimoramento dos tendeiros, pois segundo ela:
É que a gente vai atrás das coisa, né, a gente foi atrás de pelego, atrás de
tapete, a gente vai atrás das mercadoria. Daí a gente consegue ter bastante,
né, vender bem. Mais vende daí tem pro povo escoiê né.
Para ela, existe uma relação entre a quantidade de mercadorias e a venda, ou seja,
quanto mais diversidade e quantidade disponíveis na tenda, mais vende-se. Mesmo com toda a
oferta disponível de tapetes e pelegos – “o produto que “mais sai” - na tenda de C.F.S. (62
anos), os coloniais também são bastante procurados, entre eles “queijo, feijão, pinhão, de
tudo, abóbora, de tudo”. Questionada se produz algo, ela diz que “mel que a gente cóie. [...]
meus guri tiram mel. [...]. Hoje eu tenho uma lavourinha mas tá cheia de mandioca”. E
complementa que “esse mel aí meus guri cói e daí eu coloco nos vidro os favinho junto”.
A reprodução da importância do núcleo familiar continua presente entre os membros
da família de C.F.S. (62 anos). Ela perpetua as noções aprendidas com seus próprios pais, e
mantém próximos filhos e netos, em um círculo de proteção, tanto de afetos quanto
econômico.
Lidando com vários filhos, a mãe muitas vezes está e faz alguma coisa com cada
um, num “casal” de trabalho e afeto que se repete infinitas vezes ao longo da vida.
(BRANDÃO, 1995, p. 131).
Através do comércio da tenda, foi possível para a família de C.F.S. (62 anos) adquirir
uma área, onde retorna ao modo de vida caboclo, do contato com a terra e das plantações
tradicionalmente associadas ao grupo. Os filhos perpetuam o modo de vida caboclo, sendo
responsáveis por prover a tenda dos produtos da economia de tradição. Coletam pinhão nas
matas e também auxiliam na busca por fornecedores locais, principalmente do próprio pinhão
e de erva-mate.
Alguns agricultores, como é o caso de RR (52 anos), ao ser perguntado sobre a vida
pregressa, foi econômico nas palavras. Costuma referir-se à vida profissional, ao trabalho na
terra e à vida atual com a esposa e os filhos, porém reluta em falar do passado:
142
É que daí assim: eu sou filho de mãe solteira. Minha mãe morreu
quando eu tinha 12 anos de idade. Eu me criei com meu tio, mas
trabalhava na lavoura – sempre, né. Aí quando eu me alistei, eu saí pra
fora, trabalhei quatro anos fora, casei e retornei pra agricultura, e até
agora eu tô na agricultura. Faz trinta anos. Que nós somos casados faz
quase 31 anos.
Pode-se ter uma ideia das dificuldades passadas pela pequena família, já que a
mulher nas pequenas comunidades rurais, ainda sofre vários estigmas relacionados à
maternidade sem marido. Após o falecimento da mãe, o tio e padrinho, se responsabiliza
pela criança órfã e a cria como filho.
Para P.B.F. (72 anos), a superação das dificuldades é motivo de orgulho para si e
para sua família. Este passado é continuamente contado aos mais jovens, como uma forma
de ressignificar o próprio sofrimento, honrar os falecidos que tiveram uma vida “pior que
hoje” e também para alertar sobre as facilidades que as novas gerações estão tendo, em
comparação com as gerações anteriores.
Na fala das lembranças da infância, se percebe uma clara oposição entre uma
mescla de saudosismo e as recordações das dificuldades por que passou a família, dos
sofrimentos relacionados principalmente à luta dos pais e avós:
O auxílio recebido para tutelar seus dois irmãos mais velhos revela-se importante
para a renda familiar, porém no aspecto emocional, toda a família ficou profundamente
marcada pelos transtornos decorrentes de problemas mentais de dois outros irmãos, já
falecidos:
143
Era difícil, mas até parece que era melhor que hoje, que nem, né,
que a gente tá passando (neste trecho, ela refere-se à epidemia de
Covid-19). Sim, tá muito complicado agora.
Ela se surpreende até mesmo pelo fato de que chegou a ir na escola, o que
atualmente não está sendo possível: “Perto não era, mais nóis ia. Ia no colégio até,
magina! Dá uns treis quilômetros. Nós estudavaaté meio dia e nós ia de tarde pra roça”.
Neste sentido, a epidemia de Covid-19 foi profundamente sentida no meio rural. Se
as famílias estão em tamanho reduzido, devido ao envelhecimento dos pais e avós e da
migração dos mais jovens para outros municípios, a epidemia tornou ainda mais solitárias
as pessoas devido a inexistência de relacionamentos e formas de lazer nesse período.
Além disso, o pânico causado pela possibilidade de ficar doente ou perder familiares e
amigos abateu-se sobre as pessoas.
Esta foi a realidade da família do Sr. A.R.R. (72 anos), profundamente afetados
pelas consequências da doença, já que na casa da filha já casada, “faleceu a sogra e o
genro”. Na família do Sr. A.R.R. (72 anos), faleceram seus dois irmãos mais novos e além
disso, perderam também o casal de compadres e a neta destes, o que traumatizou a
comunidade:
sentido, a epidemia fragiliza os agricultores, pois coloca em risco todo o seu entorno, que
envolve a família próxima, os parentes, os compadres e os vizinhos. As consequências da
doença atingem não apenas famílias, mas toda a comunidade, pois está repleta de
vínculos. Foi possível observar que uma casa se relaciona com a outra em fortes e perenes
relações de compadrios. Embora não tenham um senso étnico, está presente o senso
comunitário, que as vezes pode ser estendido à outra picada ou vila próxima, dando a
impressão de que ao falar com um dos sujeitos, fala-se com todos.
Uma das questões centrais que se fazem presentes na atualidade refere-se a conciliar o
dilema de manter um equilíbrio sustentável com a natureza e ao mesmo tempo prover as
condições materiais para uma vida confortável, ou ao menos digna às pessoas.
A terra, para o camponês, vincula-se à fonte, à mãe, formando o binômio mãe-terra,
expressão de grande significado no universo caboclo. O entendimento do que representa a
terra para o camponês não é uma questão simples, já que implica em diferentes
representações, entre as quais a de provedora e sustentáculo, mas também como um sistema
146
Além da terra gorda, outros fatores exercem influência no tipo de plantação que vai se
obter. Assim, uma influência fundamental trata-se da lua. O satélite teria uma auxiliaria a terra
a produzir um produto melhor e com maior abundância. Os seus ciclos regulariam o tipo de
plantas a serem cultivadas, conforme cada mudança.
Conforme S.S.F. (64 anos), cada lua serve para uma coisa. Assim ela relaciona as
épocas ideais para promover o plantio das plantas do quintal:
Eu cuido a lua pra plantá, sim. Conforme a lua é o tipo de cultura que a
gente planta. Digamos, na nova planta aquilo que dá flor, digamos o feijão;
na minguante e na cheia, aquilo que dá embaixo da terra; enfim, verdura
sempre na minguante. Só a couve-flor que dá na nova.
Um saber intuitivo, muito mais percebido pelas mulheres, mas também utilizado
pelos homens determina o período em que cada coisa deve ser plantada, pois “cada plantio
tem seu momento exato, tendo a lua como referência (WOORTMANN; WOORTMANN,
1997, p. 100).
A tendeira M.I.B.P. (50 anos), ainda que não trabalhe mais na lavoura, por força do
movimentado comércio à beira da estrada, diz: “Adoro a natureza. Se pudesse dá uma
voltinha lá no mato todo dia eu ia”. O mato em frente à sua tenda é uma faixa de mata
atlântica, onde se vê muitas árvores, entre as quais a araucária. Porém, perguntada se desejaria
retornar para o meio rural, respondeu que não, que agora sua vida é ali, deixando claro sua
condição de caboclo que superou as condições mais rústicas, aderindo aos confortos
proporcionados através do seu negócio.
O Sr. A.R.R. (72 anos) representa o caboclo mais afeito ao modo de vida
tradicionalmente associado ao caboclo. Para ele, a qualidade de vida está na forma que vive
em contato com a terra, com os animais e onde nasceu e se criou. O trabalho em outras
cidades não lhe agradou:
É muito deferente”. Ara, mas não tem como a gente trabaiá em casa por
conta. Pra fora, mandado pelos outro e encontrava muita gente estranha e
não dá certo de empregado destas firma. A gente se encontra com gente de
tudo quanto é lado, tem uns bão e outros ruim, tem que tá se cuidando. Vô
vortá lá, lidá com meus bicho, com as roça.
148
Ao explicar sua relação com a terra, RR (52 anos) diz que dela se afastou, mas que
acabou por retornar, pois:
É, a gente não se acostuma, né? É raiz, é tradicional aquilo ali que tu vive.
Tu nasceu e se criou ali. Então a gente sente aquela falta, aquela raiz.
Então voltei e tô aí até hoje”.
O mesmo relato se identifica na fala do Sr. VPS (72 anos), para o qual o seu meio é a
parte mais significativa da sua vida:
Se eu ir pra cidade não duro 60 dia. Eu vô no meus irmão que mora tudo em
Porto Alegre, eu só poso, no outro dia eu tô vindo embora. Não consigo
parar. Eu nasci e me criei na colônia, daí o cara não gosta de ficar na
cidade. Vai lá só fazer os negócio que tem que fazer e vortá”.
É quase só mata. Era meu isso aqui daqui lá naquela copa de cerro, daí pra
lá eu vendi 9 arquere, lá no Pedra Branca. Lá naquela fumaça lá pra baixo
tinha mais 10 arquere, vendi também, não adianta essas terraiada se o
cara... pra que tanta terra? Tudo terra de mato. É isso aí que eu tenho pra
plantar. Tem capivara, tem até leão.
149
Percival refere-se ao mercado que construiu junto com sua esposa, SSF (64 anos) e
que é um forte comércio localizado na área central de Fontoura Xavier, o qual, no momento,
suas filhas e genros tomam conta.
A mesma satisfação com a terra é relatada por JPBL (74 anos), embora seja um dos
entrevistados mais idosos, reside sozinho em Picada Rosa, tendo por companhia seus
cachorros e um cavalo branco, que utiliza para levá-lo até a sede do município em caso de
necessidade. Mesmo estando tão afastado (35 quilômetros), diz:
Entre alguns agricultores mais jovens que estão em idade produtiva, foi possível
identificar que há uma insatisfação relacionada à necessidade de preservar a mata que existe
no município, enfatizando que há excesso de área verde. Como atualmente eles têm acesso
aos meios de comunicação e à internet, utilizam a ferramenta Google Maps, a qual segundo
eles demonstra essa percepção:
Aqui em Fontoura tá 80% de mata. Uma vez era 40%, agora é 80%. É só
mato, quase só mata o que tu vê... Se tu pegar foto do Google e olhar por
cima tu só vê mato. Poucos pedaço limpo. (F.J.C., 56 anos).
150
Na verdade, a minha área aqui tem mais mata do que cultivada pra
lavoura. Tem que desmatar um pouco, porque, na verdade, ela tem mais
mata nativa do que... Eu acho que sim, porque tem mais mata nativa do
que área desmatada. Então eu acho que tem direito de desmatar. Não tudo,
porque tem que ter. Tu mesma vê aqui... Se tu analisar é muita área, é
muita mata nativa. E aqui no município de Fontoura tem muita mata
nativa. Acho que em torno de 60% ou 70% é mata.
Seu objetivo está relacionado à possibilidade do plantio de erva-mate, que nos últimos
anos teve um incremento em seu valor e que está atraindo principalmente os agricultores
caboclos de Fontoura Xavier, pois não necessita de terras planas para o plantio, porém
demanda que a mata seja derrubada:
Assim como eles, PBF (72 anos) se utiliza da terra conforme a necessidade. Da
terra retira a madeira que precisa para a construção do prédio que está fazendo no centro da
cidade. SSF (64 anos) complementou que primeiramente reflorestou, para somente agora,
utilizar:
Percival conta da retirada de alguns pinheiros, que ficariam no centro de uma nova
propriedade que comprou. Ao questionar se haveria desmatamento, responde que já está
desmatado, ao que sua esposa revelou: “Caiu com a tromenta”. E ele: “Só os pinheiro... não, é
só os pinheiro dentro da lavoura que incomoda”.
Parece haver um claro diferencial entre “quem pode desmatar” e “quem não pode
desmatar”. Enquanto uns o fazem com relativa tranquilidade, outros se sentem injustiçados,
porque não conseguem ampliar sua renda, em função da burocracia em autorizar a derrubada
da mata. Como diz R.R. (52 anos):
Desmatam, isso aí... aí a lei: Não! Não! O mais humilde sempre é o mais
prejudicado. A verdade é isso aí. Se tu analisar, desde o preconceito, é um
pobre: ele matou, ele roubou, então a culpa é daquele ali. Se é um rico,
não! Não fez, não vai fazer... Ele é rico, ele não faz isso aí. Então o pobre
sempre é mais humilhado. Sempre foi. Eu acho, na minha opinião. Não
sei se tô certo ou errado, é uma opinião minha, né.
22
Na década de 70, Olacyr virou o maior produtor individual de soja do mundo ao apostar no potencial agrícola
do Centro-Oeste, aproveitando a grande cheia de 1973 do rio Mississipi, que devastou as lavourasdos Estados Unidos.
Ficou famoso pelo título de "O Rei da Soja" (ALVARENGA; VIEGAS, 2015).
152
Devemos notar que o ambiente natural tem um significado distinto para sitiantes e
grandes proprietários. Para os últimos, o mato é algo a ser removido, para ser
substituído pelo capim. Para os primeiros, é algo a ser preservado, como parte
mesmo do espaço de trabalho, ou utilizado apenas à medida das necessidades de
reprodução social. Se a lavoura camponesa é de queimada e coivara, tão condenadas,
ela o é no interior de uma percepção do trabalho e da natureza que busca o
equilíbrio.
Já o Sr. V.P.S. entende que não precisaria desmatar, pois “óia, seria bão preservá
porque, esses perau aí não tem o que fazê mesmo. Por que devorá se não tem o que
fazê?” Ao que LMMP (46 anos), complementa, “as água tão ficando curta”.
No entanto, assim como os demais agricultores, entende que a erva-mate seja uma
alternativa à mata: “a água tá ficando muito poca... Só se fosse florestá com erva mate.
Daí ia tê ainda. Era meu, era tudo mato, [...]. Mas daí também não adianta só mato”.
Assim como a terra é a mais forte expressão da individualidade do caboclo, também
corresponde ao seu bem mais precioso. Para ele, “o que realmente vale é a terra”. Neste
sentido, como um bem fundamental, busca-se preservá-la como um legado de gerações. A
venda, tantas vezes comentada de “um pedacinho”, ocorre na atualidade apenas em uma
necessidade premente ou também, devido à idade avançada e na falta de herdeiros que
deem continuidade ao trabalho.
Entre os agricultores, está presente de forma indiscutível a importância de deixar um
legado. Este deve ser composto, primeiramente, de um bem que as novas gerações venham
a se beneficiar, sendo que “deixar de herança” a terra é o maior indicativo de sucesso para
as famílias caboclas. Normalmente, em caso de haver maior quantidade de bens a distribuir,
os homens são os herdeiros naturais da lavoura, pastos, matas e animais e, às mulheres
procura-se deixar ou a casa, ou uma propriedade em outro local.
As regras continuam sendo as mesmas, porém, poucos filhos permanecem no meio
rural. A maioria opta por viver nas cidades e dificilmente retorna para cuidar das
propriedades. Estas ficam nas mãos do que permanece na terra.
Para o Sr. P.B.F. (72 anos), devido ao falecimento do filho, as filhas tornaram-se as
153
Sim, puis é o que eu digo, agora tô descansado. As filha tão tudo colocada,
com casa boa, empresa, lá trabaiando as duas, é só trabaiá, e eu ainda
comando um pouco né.”
Para A.M.R. (60 anos) e sua esposa R.C.R. (58 anos), a aquisição de uma área,
ocorrida recentemente, composta quase inteiramente de matas e montanhas, representa uma
oportunidade de deixar um legado para o futuro. Ainda que tenham dificuldades econômicas,
visualizam-se os benefícios que essa atitude poderá trazer no para os filhos principalmente.
D.D.A. (54 anos) conseguiu se acomodar na casa cedida, junto à mata, o que lhe
realiza, já que a floresta “faz parte da vida, [...] eu amo os pássaros, eu amo os bichos, tudo
que Deus criou na face da terra”. Questionado sobre a prática da caça para se alimentar, diz
que “jamais eu vou judiar dum bichinho. [...]o Pai me cuida. A terra nos gerou e vai nos levá.
Tão destruindo uma coisa que serve pra nóis mesmo”.
154
Considera-se muito importante que o patrimônio passe de pai para filho. O amor à
família manifesta-se no guardar, no não precisar vender a terra, para oferecer um lugar onde
os filhos consigam viver, trabalhar e formar sua nova família, ainda que, muitos já não
estejam vivendo na terra. A terra é sinônimo de liberdade, de segurança, de ser sujeito de
direitos, de cidadania. Neste sentido, P.P.C. (42 anos), se percebe como um indivíduo que tem
sorte, por já possuir um patrimônio, herança dos pais:
É que eu já tenho uma estrutura né, e quem não tem? Esses jovens do
interior aí, não tem como sobreviver na roça. [...]. Teria que sair. Quem
mora lá no fundão do Formigueiro na costa do Forqueta não tem como
sobreviver na roça, não tem.
Em geral nas unidades de “colonos fortes”, vimos que filhos têm maiores
possibilidades de serem atraídos para permanecer na unidade da família (homens,
em geral) em razão dos recursos técnicos que possuem, rentabilidade financeira,
diversificação de atividades voltadas ao mercado, normalmente, os filhos participam
mais da gestão, incorporam patrimônio, pois na aquisição de terras ou de máquinas,
não é incomum, os pais “passarem no nome do filho [as aquisições], darem um
bloco modelo 15 para eles venderem no nome [...].
O agricultor F.J.C. (56 anos) cita a vida pregressa da sua família, vivendo como
agregados na imensa área pela qual eram responsáveis, com o objetivo justamente de
demarcá-la, no período entre as décadas de 1940 e final da década de 1960, com ampla
utilização do mato, a fim de custear a subsistência, pois não tinham a mão de obra
remunerada, estando liberados porém, para usufruir do que a terra oferecesse, o que foi a
forma utilizada pela família de conseguir prover a subsistência.
O pai vendia lenha. Esse aí o homem deixava ele vende lenha pra ele, né.
Lenha picada. Vendia milho, vendia feijão, mel, o pai também trabalhava
com mel. E daí, criava porco, criava galinha, isso aí sempre teve bastante
carne desses aí. O que era mais raro era carne de gado, né, porque daí o pai
nunca matou né. Tinha gado, tinha junta de boi, tinha vaca, mas ele nunca
matou um terneiro, um bezerro, uma comparação, um que se criasse, porque
ele sempre ia vendendo, por que era muita carne né e não tinha freezer, não
tinha geladeira, aquela veiz, né.
Ele fazia carvão. O pai fez carvão pra vendê aquela veiz da segunda
guerra, que compravam muito carvão, Deus o livre que precisava por
causa dos trens. O pai foi um que fez carvão pra vendê prô exército. Mas daí
já tinha os atravessador, os que levavam eram os outros né. O pai só
produzia né.
Para o Sr. P.F.S. (66 anos), os caboclos “aprenderam a trabalhar um pouco com os
que vieram de fora e estão melhorando também”. Não conseguimos perceber até que ponto
estas contribuições “a partir de fora”, interferiram no modo de ser do caboclo de Fontoura
Xavier, já que entre os entrevistados, parece haver um círculo fechado que não permite a
entrada destes supostos “detentores do conhecimento”. Pelo que foi averiguado, não houve
interferência de outras etnias ou de profissionais com conhecimento técnico, ensinando os
agricultores caboclos quanto aos seus procedimentos. O que aprendem de novo, pois o seu
saber não é estático, é nas interações com outros agricultores, em pesquisas que podem
acontecer na internet, para os mais jovens, e pela própria televisão, pois conforme eles são
assíduos telespectadores do “Globo Rural23”.
Woortmann e Woortmann (1997) observaram que no grupo de sitiantes nordestinos,
23
Programa de televisão exibido pela Rede Globo de Televisão, às 8h dos domingos, destinado a atender o
público do meio rural.
156
Para Renk, a falta ambição do caboclo ocorre porque “voltando o olhar internamente,
o que se vislumbra é um grupo com outro sistema, com outro mapa cognitivo, que não o do
colonizador (RENK, 2006, p. 117)”.
O fluxo migratório partindo do município foi direcionado nos últimos anos, além de
Porto Alegre, para o município de Bento Gonçalves, na serra gaúcha, e no passado, como
dito pelos mais antigos, para desbravar novas frentes de colonização, principalmente no
Paraná. Nestes centros realizam atividades variadas, desde operários da construção civil,
safristas durante a colheita da uva, empregados em fábricas, entre diversas outras funções.
Trabalham ainda como tarefeiros da erva-mate, indo de lugar em lugar, a serviço dos
contratadores de mão de obra. Antigamente, havia uma mobilidade maior para realizar a
atividade, efetuando-se grandes deslocamentos até o estado do Paraná, em ervais nativos:
160
O finado Antoninho tirô muita erva lá no Paraná. O finado teve uma veiz lá
no Paraná também. Carroceô lá, puxando carroça de raído de erva, com
junta de boi. O finado Antoninho contava que tirava erva para o Leontino
Lang, dono do maior erval do Paraná (TMC, 79 anos).
J.P.B.L. (74 anos) primeiramente “saiu para trabalhar para juntar um dinheiro”, com
o objetivo de sair do Rio Grande do Sul e ir para o Paraná. Da plantação de subsistência da
família, o excedente era vendido, mas o valor era exíguo e não conseguiam mais viver:
Que que o cara faz? Daí nóis fumo daqui. O pai: “Fio, vamo dá um jeito
de vendê aqui, vamo embora pra Paraná, lá é mais fácil de nóis vivê”. Aí
o pai foi, foi pra lá, e eu já tava com treze pra quatorze ano, eu fui trabaiá
na Brasel, lá em Dois Lajeado. Eu disse: “Pai, eu vô saí um pouco, ganhá
um poco e o senhor fica lutando”. Daí ele se foi pra lá, daí comprô lá no
Paraná, veio vendeu tudo, aí mandô uma carta pra mim lá em Dois
Lajeado. Disse: “João Pedro, venha que eu tô viajando pro Paraná”. Aí
se fumo lá pro Paraná, mai lá também era só a braço, não tinha negócio
de trator e junta de boi, não! Era só, só a braço.
O relato referente ao período que residiu no Paraná, revela o caboclo como estando na
“frente da frente” da colonização, realizando o desbravamento dos sertões:
Não, lá era um lugar bão, donde nóis compremo lá, mas trabaiemo muito,
Deus o livre. Nóis tirava base de novecentos, até mil saco de mio por ano.
Aí nóis quebrava aquele rocil que fazia, destocava, e daí, amuntuava e daí
as triadeira, treis triadera triando, e os caminhão puxando pra levá pra
comperativa. Era sofrido. Fiquemo bem de vida, graças a Deus, daí lá
indireitemo. [...] daí a terra era vinte e cinco alqueire, e era só mato, só
mato, nóis fazia a base de quatro, cinco alqueire por ano de mato
derrubado, tudo a foice e machado, não tinha motosserra naquela época.
É, pra plantá.
A família assumiu uma característica muitas vezes atribuídas à outras etnias, atuando
naquele período de forma predatória, com o fim de “fazer capital”. Este comportamento
empreendedor lhes granjeou uma condição confortável financeiramente, porém às custas de
muito trabalho. Conforme J.P.B.L. (74 anos), os pais permaneceram no Paraná. Em uma das
visitas que realizou em Fontoura Xavier, casou com uma jovem, porém após casamento, ao
tentar levar sua esposa para residir naquele estado, esta não conseguiu se adaptar e retornaram
para Fontoura Xavier.
As pequenas áreas de terras, a falta de instrumental agrícola, como arado, adubos e
ainda o relevo acidentado são apontados por Arlene Renk (2006), como causa para que a
produção dos caboclos sirva apenas ao consumo doméstico. Em Fontoura Xavier, assim como
161
Um dos rituais de passagem para o rapaz engloba o “sair trabalhar fora”, como
aconteceu com R.R. (52 anos). Este processo dá-se em torno dos 17-18 anos.
Pouco antes do casamento, por volta dos 18 anos, após obterem os “documentos
(alistamento militar), os filhos devem “viajar”, isto é, migrar temporariamente, o que
representa novo momento de aprendizado, agora relativo ao mundo.
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 74).
A.M.R. (60 anos) também precisou, anteriormente, sair da terra a fim de buscar a
complementação da renda na cidade. A produção de sua lavoura não era suficiente para
manter a família e, atualmente, embora tenha retornado à propriedade, ainda presta serviços
como pedreiro para os vizinhos: “eu trabaiava em construção né, de pedreiro, carpinteiro. Tô
trabaiando ainda aqui por perto”.
Como sua esposa possui uma doença que não permite que o auxilie na lavoura de
fumo, tem feito todo o trabalho sozinho, já que os filhos migraram para Bento Gonçalves:
“tão em Bento. Daí tem o outro, mais véio, casado, tem 31. Trabalha [...] de caminhão,
caminhoneiro”. Os filhos desejam que também se mudem para Bento Gonçalves:
Ah, depois de véio não vamo pra lá. Não adianta tu ir pra lá. Posso até
trabalhar de enxada se for preciso, mas cidade pra mim não [...]. Nem
novo não quis.
O casal cultiva o sonho de que os filhos retornem para casa. R.C.R. (58 anos) espera se
aposentar para viabilizar o sonho: “Eu gosto daqui. Nasci, me criei, criei meus dois filho. A
hora que eu conseguir uma aposentadoria podem vir morar comigo”. Na visão de A.M.R. (60
anos), seria a oportunidade de aumentar a área para trabalhar: “daí nóis compremo terra tudo
aí, deixa tudo pra enxada, né”.
162
Há um conjunto amplo de fatores que influenciam nas decisões de jovens entre ficar
ou sair. Estas causalidades podem ser de atração, expulsão, expressivas de relações
que se produzem no interior das famílias como as que desmotivam e desincentivam
as atividades dos pais. (TEDESCO, 2021, p. 16).
As irmãs estão tentando convencê-la a vender a terra e ir para Bento Gonçalves, pois
entendem que neste centro o próprio filho de M.J.M (54 anos) terá mais oportunidades, além
de manter a família unida:
Elas tentam. Queriam vender aqui né, comprar um lugarzinho pra mim ir
pra lá, e daí às veiz eu penso: se eu vou para lá eu não me acostumo, daí,
depois? Vortá pra onde daí, né? [...]. Pode ser que ficando mais velha,
pode ser que eu vá para lá.
Os filhos de RR (52 anos) pressionam para que o casal saia da roça e se mudem para a
cidade, com o intuito de manter a proximidade, pois a manutenção dos laços familiares são
centrais para os caboclos.
Eu e minha mulher vamos ter que ficar até que a gente esteja por
aí... Vamos lidar, fazer uma coisa ou outra. Até o meu piá mais velho quer
que a gente vá lá pra cima. Até nem fiz uma casa aqui, ele não quer que
eu faça uma casa aqui, quer que eu compre um terreno e vá pra lá, deixe
aqui, mas eu acho que não. A gente que é do mato não consegue sair e
ficar... Me acostumei, é tanto tempo.
163
Pode-se perceber entre todos os entrevistados e até mesmo entre os tendeiros, os quais
não estão mais exercendo atividades junto à terra, sua vinculação com as culturas de
subsistência características da região, como milho, feijão, batata, mandioca, entre outras. A
memória das famílias presentificam essa realidade, a qual transparece na importância de
manter lavouras nos fundos da casa, ou até mesmo de plantá-los na horta, na falta de espaços
maiores.
Dos entrevistados, apenas dois possuem uma área maior de terras e realizam o plantio
de soja, já que esta cultura demanda espaços maiores e mais planas, com utilização de
maquinário. Como o município está dividido etnicamente entre luso-brasileiros e italianos, a
propriedade das ervateiras está concentrada em mãos de descendentes de italianos, enquanto
ao grupo de caboclos é preponderante o trabalho mais braçal, principalmente como tarefeiros.
Arlene Renk (2006, p. 93) assinalou “ao colono italiano, a lavoura, a colônia; ao caboclo, o
165
corte da erva-mate”.
O agricultor e tarefeiro de erva-mate, L.M.M.P. (46 anos) frisa que: “produzo para
mim mesmo e trabalho na colheita da erva também”. Segundo ele, “tu empleita por tarefa pra
colhê”.
Tem o responsável por pegar aquela área [...]. Eu trabalho às veiz sozinho,
às veiz com peão junto, 5, 6. A gente troca dia também. Antigamente não
valia a pena lidá com erva. Hoje vale a pena, que o preço tá muito bom.
A erva-mate tem um forte apelo junto aos agricultores, pois funciona como uma
poupança para realizar investimentos e melhorias na propriedade. Os agricultores comentam
que se utiliza na composição de refrigerantes e cremes e “eles tão comprando a madeira já,
eles tiram a erva e compram a madeira pra secá a própria erva” (R.R., 52 anos). O agricultor
R.R. (52 anos) diz que sempre exerceu o ofício de tarefeiro “eu fui e sô até hoje, eu planto
fumo e sô tarefeiro, tiro erva na época do inverno”.
A ervateira Chimango, embora seja do município de Ilópolis, possui várias turmas de
tarefeiros prestando serviço contínuo, “a maioria da erva aqui de Fontoura vai para Ilópolis,
90%, só 10% fica aqui no município. [...] Eles tiram direto, [...] de segunda a sexta”. Sobre
os direitos relacionados à execução do trabalho, R.R. (52 anos) esclarece que os
trabalhadores:
São avulsos, vão de lugar em lugar, se tocá de ir, assim onde é longe, que
não dá pra ti ficá, eles vão e acampam e ficam durante a semana. Só fazem
isso aí. Eu na verdade quando não tô na época do fumo, eu lido na erva
também. Eu tiro por arroba. Vale a pena! [...]. Tu ganha 4,50 cada 15 kg
que tu quebra. [...] É a tua produtividade, o que tu tira tu ganha, teu corpo
que manda. Tu desgalha e faz o raído, e daí o caminhão vem e carrega,
pesa ali e vai embora.
manejar o facão para podá-la, o que hoje já não é mais necessário. Na Figura 26 encontram-se
os tarefeiros sobre uma “soca” de erva nativa, já desgalhada, o que permite uma ideia da
altura da árvore.
Nóis imo por tudo o município de Fontoura, nóis tiremo de tudo quanto é
dono. Aprontemo dum, depois tiramo d’outro. Eu já fais 35 ano.
Mais eu desgaiava pro Casagrande. Eu podava a erva pra ele, os pezão arto
no mato aí que se ia embora. Aqui no mato ainda tem. Mas agora o fio dele
encheu por baixo só de erva nova, já começô a tirá as nova e aquelas véia
que tá muito arta e meia estragada ele tá derrubando tudo, rente ao chão.
.
167
A esposa, D. E.R.R. (72 anos) complementa “tem ainda. Vorti e meia ainda
aparece uma. Que nem essas seca aí, eram do meu avô”. Pode-se compreender que já se
deu o processo de substituição da erva-mate nativa, pela plantada. Esta tem um manejo
diferente daquele que por durante muito tempo caracterizou o ofício do caboclo e para o
qual se dizia que sua habilidade era digna de nota:
Agora é de serra. Nóis tamo de 5 até 10 que nóis tiramo erva, todo dia.
Amanhã nóis vamo (feriado). Nóis comecemo segunda e tiramo até sexta. É
uma carga todo dia. É duas turma, eu tenho uma e outra um sobrinho
meu. [...] nóis tiremo entre as duas turma até 900 arroba, então precisa dois
caminhão. Às veiz argum faia, da minha turma não faia nenhum nem da
outra turma, 800 arroba sai num dia. (ARR, 72 anos).
Questionado se vale a pena, diz que: “óia, vale! Eu quebro poco, mas eu ganho meus
50 centavo. Mas tem gente aí que ganha 200 por dia, todo dia. [...]. O Pico é um que
quebra”. A Picada Casagrande é a região com maior número de tarefeiros da erva-mate do
município, e o Sr. A. complementa: “e dá dinheiro. Tem peão que pega erval aí bem
pertinho”. Para Renk (2006, p. 198), “o tarefeiro não escolhe, é escolhido”.
O Filho do Sr. A.R.R. (72 anos) e de D. E.R.R. (72 anos), A.R. (33 anos), optou por
permanecer junto aos pais, já que conforme a mãe “não teve jeito de saí trabaiá nas firma”.
Ele lidera uma das turmas de tarefeiros, neste trabalho contando com o auxílio do pai
experiente, ao mesmo tempo em que faz uso do celular, para se comunicar e combinar o
serviço com os demais peões:
O pai diz que ele “se acostumo na erva comigo. Já faiz uns quanto ano que trabaia
junto”. Eles são responsáveis por selecionar os tarefeiros, sendo os organizadores do grupo.
Obtém o pessoal na Picada Casagrande mesmo, onde “é tudo gente conhecida”. No entanto, o
Sr. A.R.R. (72 anos) frisa que “cada qual quebra pra si e Deus pra todos”. Assim como as
árvores estão menores, o modo de fazer o “raído” de erva-mate, após a quebra, se alterou
também:
Agora é duas soguinha e quebra em cima. Tem gente que com duas
soguinha, quebra até 100 kg. E depois pega e ata e daí os feche de 50 kg,
tem gente que faiz de 100. Com duas corda só. E daí um ergue nas costa do
outro e sobe uma escada pro caminhão. O chiqueiro de taquara agora que
demudaram, mas de primeiro era só naquele ali.
De forma gradual acontece a substituição do pai como a figura central e mais ativa
da família, para o filho, que pelos saberes adquiridos deste e pelo vigor da juventude que
contém, passa a representar aquele núcleo familiar, que pode se expandir para a sua própria
família, mas que mantém uma relação estreita com família do pai, o qual, sai da posição de
liderança, para uma posição de dependente do filho, ainda que numa relação de respeito, o
equivalente a uma posição honorável.
Complementando, “não é a idade que faz o homem pleno ou a força plena, mas é o
saber pleno que faz a idade enquanto constructo social (WOORTMANN, 1997, p. 12). Na
família, o A.R.R. (72 anos) ainda é ativo no trabalho, e a condição de fazer uma produção
inferior ao filho e aos demais peões é recebida com tranquilidade, já que “faz o que pode”,
pois respeita-se as suas condições físicas, ao mesmo tempo em que apreciam contar com
sua experiência.
Os agricultores familiares valorizam, respeitam e fazem tentativas de copiar os
chamados agricultores “fortes”, os quais possuem grandes plantações de erva-mate. O fato
de ser uma cultivar que “cresce sozinha” foi apontada como uma facilidade a mais, pois
169
permite ao agricultor conciliar sua mão de obra com outras atividades. Para F.J.C. (56
anos), a erva-mate, além de representar tranquilidade, na forma de uma aposentadoria para
a velhice, também é a única cultivar que pode plantar e cuidar nos finais de semana, já que
durante a semana trabalha na construção civil em Fontoura Xavier.
Devido às facilidades para produzi-la, seria algo “certo” para auxiliar na renda
familiar. Assim como a terra é o “bem maior”, na consideração do agricultor caboclo, a
erva-mate também está próxima a esta escala de valor, pois “não é fácil pra morrê” e
sempre tem a possibilidade de cortá-la e “fazer um dinheirinho”. Conforme o Sr. P.B.F.
(72 anos):
Erva mate eu tinha essas cultivada, era tudo erva-mate eu arranquei tudo.
Hoje tô arrependido. Vou prantá de novo. Meu Deus do céu, a erva é um
dinheiro achado. Quando eu comprei era tudo cheio de erva mate,
estrovado, cruzado no meio de trator, paguei uma máquina e tirei tudo.
Onde é que imaginava... tempo que vendia a erva 3 pila a arroba não
recompensava. É, a erva agora tá dando muito dinheiro. A erva e o soja.
170
O agricultor P.P.C. (46 anos) tira seu sustento quase que na integralidade do cultivo da
erva-mate. Ao realizar a venda do produto costuma se utilizar da mão de obra de
trabalhadores, a maior parte residentes nas vilas do município e contratados por
atravessadores para realizar a mão de obra:
Tem uns que tem que contratar, uns tem camioneta que leva lá caminhão,
outros trazem a turma aí dessas vila aí. É, eles vêm da Picada Casagrande,
ali onde tem britador, é, eles vem tirar erva. É bastante, é função, que sai
um caminhão de erva aí todo dia. [...]. Erva e lenha de eucalipto, tirando
pinhão, a safra de pinhão tá grande. Essas vila aí não tem lenha, não tem
pinhão, a lavoura tá meio ruim.
Agora sim, mas antes enquanto eu podia firmá bem a perna, eu subia aí
lavrando por cima desse mato aí, lá por cima, eu botava meio saco de
mio de prantá aí nisso tudo no arado, às vez caía e se levantava, mas se
virava. Ia lutando, aí quando, depois que eu vi, que eu coía, fazia a coieita
da pranta, aí eu me largava pra firma pra não deixá fartá o papá pros fio,
as vez eu tava lá pra diante donde mora os pai. Trabaiava de carpinteiro,
ferrero, encarregado.
Ao referir-se a estar trabalhando ainda mais longe do que seus pais moravam, refere-se
ao Estado do Paraná. Atualmente é aposentado e vive com um neto que o auxilia, porém,
conforme a época do ano, este se ausenta para trabalhar na colheita da erva-mate, em
acampamentos junto aos ervais, sendo que continua a praticar a migração que seu avô fazia.
No contexto apresentado de J.P.B.L. (74 anos), de uma maneira ou outra estava
171
obrigado, nem tanto pelos outros, como por si próprio, a “lutar”, a ir atrás de alternativas que
trouxessem o sustento da família. Woortmann e Woortmann percebem a extensão dessa
responsabilidade, ao dizer que:
Apenas com o que é produzido nas propriedades não é possível suprir todas as
necessidades familiares, sendo quase sempre necessário complementar a renda, o que pode
acontecer através de pensões, aposentadoria dos idosos que compõem o grupo familiar ou
através do trabalho dos mais jovens, quase sempre fora do município.
Esta situação presentificada em Fontoura Xavier, apresenta um viés diferente
daquele existente em São Paulo nos agrupamentos caboclos, até meados do século XX,
para o qual havia sobra de mantimentos:
Com efeito, plantava-se para viver, com pouca ou nenhuma utilização comercial
do produto; no solo novo, a colheita era enorme em relação ao plantio, sobrando
mantimento, como já foi dito. Em caso de enfraquecimento do solo, associado à
precariedade da técnica, era possível recorrer a novas terras, onde se recriavam as
condições anteriores, não apenas de produtividade, como de isolamento,
perpetuando a autossuficiência e tornando desnecessária a introdução de hábitos
mais rigorosos de trabalho (CANDIDO, 2010, p. 101-102).
Mas credo! Eu tenho uma roça lá embaixo. E que tal se tu fosse aqui,
então? Aqui tem um vizinho que ele mora bem aqui nesses eucalipio,
sabe? [...] e olhar ali para baixo, então, Nossa Senhora! E ele pranta
172
por tudo aqueles perau ali. Até agora, nóis paremo de plantar um
pouco lá embaixo, bem lá embaixo, agora estamos plantando mais aqui
em cima, tá tudo cheio de milho. – Aham. Ele invergô, passou veneno e
eu prantei de atrás dele com a máquina.
Essa divisão do trabalho está longe de ser meramente técnica, observa-se, ainda que
com variações, também em outros grupos camponeses, revelando o processo de
trabalho como construtor de gênero (WOORTMANN, 1997, p. 67).
É o fogo que opera essa mediação entre natureza e cultura, como que lhe atribuindo
um significado simbólico comum a outras culturas, o que em nada diminui seu
sentido prático. “É o fogo que doma a terra”. “Sem fogo não pode fazer a planta”.
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 57)
Uma posição diferente em relação às queimadas, manifesta o Sr. A.R.R. (72 anos), as
quais considera prejudiciais, pois eu não boto fogo mais. Queimei só uma veiz. Eu não
gostava de queimá porque queimava a terra e depois o fogo escapava e queimava outra.
Colocar fogo é considerado extremamente perigoso, pois é imprevisível, já que pode
se alterar com o vento. Nas representações do grupo, está presente o medo de que a natureza
possa voltar-se contra o homem, já que este está agredindo o mato e atingindo também os
173
Óia, dá pra viver... Eu vou parar, não vou plantar mais. Tô com tudo os
fumo ali, não vou vender nada. Tá tudo no garpão. Não deu tempo de
arrumar. Tem que arrumar pra poder vender. Só que é muito sofrido o
fumo [...]. Se judia muito. É, daí o piá saiu, só um não tem como lidar [...].
Eu vou prantá mio e feijão. Criar porco, nós temo uns porco. (A.M.R., 60
anos)
Não, eu planto. Esse ano eu coí mil e poucos saco de soja. Eu planto aqui
na área. Sim, eu tenho colheitadora, trator. Um trator eu comprei à vista,
agora eu troquei aquele trator que era pequeno por um grande, depois
vou te mostrar ali um trator grande da Valtra. E daí eu financei 50
mil com cinco ano pra pagá, só prá gente não se apertá, né.
174
mais idosos foram: “é bão, pra uma percisão”, “pra que luxo?”, “é mio assim, uma vida mais
simple”, “muita ambição faiz mal a Deus”, “tem que tá contente com o que Deus dexô”,
“aquele não sabe o que vai fazê com o dinheiro”, “vai morrê e não vai levá nada”, entre
outras oralidades.
Quanto aos mais novos, ainda há a vontade de ficar rico, mas relatam ser um “sonho
bobo”. Ao dizerem que não tem oportunidade, “(risos), ma de que jeito? Só se não cume, não
bebê, não vivê”, entendem que para fazer um patrimônio que seja suficiente para trazer a
riqueza, teriam que “morrê de veio trabaiando, e ainda não é garantido”. Filosoficamente
F.J.C. (56 anos), diz que: “não vale a pena, você pensa que ficô rico, mas na verdade ficô
pobre”.
O bar e a venda são locais masculinos onde as mulheres servem ou compram e onde
os homens convivem entre conversas, rodadas de pinga e mesas de truco. De igual
modo, a casa é reconhecida como um lugar feminino, ainda que nela convivam todos
os integrantes de uma família [...]. (BRANDÃO, 1995, p. 37).
Mesmo os velhos, quando não enfermos, fumam e bebem pinga. Mas são muito
raros e mal vistos os homens tidos como bêbados, em quem a entrega ao prazer do
álcool conspira contra o dever do trabalho e os cuidados com a família.
(BRANDÃO, 1995, p. 209).
Lazer tem relação com o cotidiano, com o estar na terra e aproveitar o que ela oferece, bem
como cuidar dos animais de criação e de estimação, “mas aqui é tratar os bichinho, buscar uma
lenha, oiá os arvoredo, pra lá e pra cá” (J.P.B.L., 74 anos). Se houvessem festas, J.P.B.L. (74
anos) com certeza, compareceria, “é, aqui é difícil, e agora não sai mais mesmo. É, sempre,
sempre, toda vida eu sempre ia no São Roque, lá no Coração de Jesus”.
Para a tendeira M.I.B.P., conserva os hábitos que estão arraigados em sua criação.
O lazer para ela é sempre movimentado e alegre, compartilhando com a família e amigos:
[...] a gente sai bastante. Agora tá meio parado por própria pandemia né,
mas antes a gente saia bastante, baile, festa, visitava, churrasco daqui,
só que agora a gente deu uma acalmada.
O Sr. V.P.S. (72 anos) ao ser instigado a falar sobre as formas de lazer que pratica,
declara que “Eu fico em casa”. Já para o Sr. P.B.F. (74 anos), o lazer é uma oportunidade de
se relacionar com os outros homens, no espaço da “bodega”: “Eu gosto no domingo de
depois do meio dia, eu ia no clube, jogá canastra, jogá bocha, sempre quase tudo os
domingo eu ia”.
Como dito por Brandão (1995, p. 134), “da casa” se foge todos os dias um pouco por
noite, em direção aos alegres bares e mesas de truco da vila”. No caso do Sr. V.P.S. (72
anos) este “compromisso consigo mesmo” é realizado aos domingos à tarde.
Para a tendeira C.F.S. (62 anos), o seu lazer é estar na tenda “eu só me divirto aqui, eu
não saio a parte nenhuma, só saio quando eu preciso comprá umas coisa. Suas visitas
resumem-se ao grupo familiar, “alí na minha filha eu vô vorti e meia, um pouquinho”. Tem
muitas amizades, porém não tem o hábito de sair para passear, inclusive cita uma festa em que
os filhos “óia que lidaram para mim ir, fiquei solita aqui”. Acrescenta que enquanto eles
estavam na festa “fiz dinheiro aqui. Sabe o que que é? A gente tem conta pra pagá, tem os dia
pra pagá e daí se tu não bancá ali, tu não faiz o dinheiro pra pagá”.
O lazer que E.R.R. (72 anos) prefere é o de saírem todos (a família) passearem juntos
no campo ou na mata, buscando pasto para as criações. A alegria que demonstra ao contar do
passeio para buscar pasto para o gado fica clara quando diz:
179
As críticas com relação ao modo de vestir, aos hábitos de higiene que praticam e aos
cuidados que mantém com a casa, são apontados como impeditivos de se estabelecer relações
mais próximas com as pessoas que estão fora do círculo de relacionamento restrito da
180
Não, ela na verdade trabalha mais do que eu. Ela vai na roça, ela faz tudo,
e o serviço da casa. Eu é só na roça. Na verdade, a mulher trabalha mais
do que o homem. Se tu analisar bem certo.”
O “analisar bem certo” significa refletir sobre a condição das mulheres e observar o
conjunto de atividades que exercem. O reconhecimento muitas vezes se dá a contragosto,
devido às exigências que estão sendo colocadas à sociedade. Entre brincadeiras, alguns
agricultores expressam: “agora querem se governá”, demonstrando receios em relação aos
novos papéis que as mulheres assumem e em relação aos seus próprios papéis como homens.
Se o mato é definido como um lugar de perigo, ele não deve ser adentrado pela
mulher. Mas adentrá-lo seria também um outro perigo, pois a mulher estaria pondo
em risco os pressupostos ideológicos da comunidade. Uma mulher que assume as
atividades do homem afronta os valores hierárquicos do grupo como um todo.
(WOORTMANN, 1997, p. 45).
Neste sentido, a mulher pode fazer as determinações quanto ao trabalho mais pesado,
mas não poderia realizá-lo. Há casos em que a mulher executa as funções do homem, quando
este é ausente ou quando é considerado doente para exercer a atividade. Nestas situações
passa a ser reconhecida pela comunidade em comentários que lhe suprimem a feminilidade,
como “é um boi para trabalhar”, “é igual homem”, “tem músculo”. Outros, dizem respeito à
suposta ambição da mulher, que se obriga a trabalhar no pesado porque “não há dinheiro que
chegue”.
As mulheres comentam que o homem sai quando quer e como quer, sem dar
satisfações. Já para elas essa liberdade inexiste, pois devem dar continuidade a todas as suas
obrigações diariamente, principalmente, cuidar dos filhos e dos animais domésticos, já que se
“faltar, perece”.
183
Existem regras dos códigos camponeses de reciprocidade muito mais rigorosas para
as mulheres do que para os homens a respeito de com quem se pode estar quando
não se está só, com familiares ou com vizinhos e outros seres confiáveis.
(BRANDÃO, 1995, p. 128).
Nesta estória, talvez a questão da aceitação gire em torno do marido não ter
abandonado a esposa. O fato de ter continuado gozando da proteção do casamento, a livrou de
ser hostilizada pelo grupo. Tal comportamento da comunidade possivelmente tem mais
relação com a proteção em torno do homem, pois se ele ignora a infidelidade da esposa, todos
fingem ignorar da mesma forma.
A dependência da mulher em relação ao marido e na ausência deste, em relação aos
filhos, fica claro também na fala de M.J.M. (54 anos). Ela não vê alternativas para prosseguir
sem estar junto ao filho. Não imagina sua vida longe dele, pois é o filho mais novo e por
consequência carrega certas responsabilidades para com o cuidado da mãe. Os horizontes se
mostram estreitos para as mulheres, no espaço geográfico do “perau” limitador, da ausência
de pessoas para efetivar relacionamentos e da falta de perspectivas. É possível perceber o
amor pela terra, mas, por outro lado, faz um desabafo:
Fazendo o quê, sozinha? Aonde ele ir eu vou ter que ir junto, né. Se ele
quiser ficar aqui eu vou ter que ficar e se ele ir para cidade eu também vou
ter que ir.
Na ausência do marido, em geral a mulher recorre a algum dos parentes para tomar
conta ou governar o processo de trabalho. No seu caso, o filho tornou-se o substituto do pai
nos saberes do trabalho, “ele se torna como que um pater do grupo doméstico”
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 40). M.J.M. (54 anos) reproduz o conceito do
“governo masculino”, ao não imaginar a vida sem a presença do filho.
A tendeira C.F.S (62 anos) esclarece que a tenda é sua, já que “eu sou a chefe. Tenho a
cabeça boa ainda”. Ela diz ter o controle de todas as contas “aqui eu pago luz, eu pago as
conta tudo, eu pago o rancho, é tudo eu, é tudo da tenda que sai”. O seu relato também cita o
esposo, o qual está aposentado e “não está trabalhando agora”, que segundo ela, “só paga a
água e mais nada. Eu tenho que me virar com as minhas pernas”. Segundo ela, “o pior
problema”, no entanto, é o alcoolismo, mas considera que para se separar agora “não vale a
pena mais, já tá veio, [...] Quando tira pra bebê, Deus o livre. [...] não tá incomodando, mas
de primeiro, nóis ia posá no mato”. Embora seja a responsável pelo sustento da família, a qual
já conta com vários netos para os quais também presta auxílio, percebe-se que seu papel de
líder familiar é precariamente exercido mediante a violência doméstica a que foi e “ainda
pode ser” submetida.
185
[...] o lugar da família é a morada do bem. Estar “entre os seus” submissa aos mais
velhos, mas acolhida de uma maneira única por todos, é uma experiência de
estabilidade da segurança e do afeto que nenhuma outra comunidade passageira
(como a escola), transitória (como o grupo de idade) ou perene (como a igreja) pode
sequer de longe assegurar. (BRANDÃO, 1995, p. 134).
retorno, quando é possível, nos finais de semana, como também nas férias, para estarem
juntos com os pais. Da casa dos pais “se sai em busca do emprego fora; longe mas, se
possível, não tanto. Mas à experiência pessoal da família de origem sempre se volta
(BRANDÃO, 1995, p. 134)”.
A filha de M.J.M. (54 anos) retorna todos os finais de semana de outro município, de
moto, para estar com a família, ainda que esteja casada, o que é um indicativo desse vínculo:
A preocupação ou o alívio demonstrado nas entrevistas dos pais sobre o futuro dos
seus filhos revela um constante saudosismo. A volta para o lar e para a terra está muito
presente entre os agricultores brasileiros, como diz RR (52 anos):
Ninguém sai porque quer, mas porque precisa [...]. O piá mais velho tá
bem empregado, ele e a esposa dele são bem empregados. Tem o mais
novo... [...] tem que ver o futuro daqui pra frente, o que que a gente vai
dizer?
A família continua unida, apesar das distâncias onde cada um vive. A quantidade de
filhos diminuiu sensivelmente no meio rural, em relação às gerações anteriores. O Sr.
J.P.B.L. (74 anos) tem três filhos, dos quais na lavoura “só tem a mai nova, a Marisa mora
ali, aí os otro, o Alaor mora lá em Caxias e a Marlesi mora em Porto Alegre”.
Sobre a mais nova ter ficado com a responsabilidade de cuidar do pai e também da
propriedade: “ela tá morando na minha frente, daí ela que cuida de nóis por ali, a hora que
Deus o livre precise de alguma coisa, ela tá junto.”
A aposentada T.M.C. (79 anos) também mora sozinha, porém próximo a ela no
mesmo pátio, reside o filho, há alguns metros de distância a filha com sua família e em outra
direção, também há alguns poucos metros, o filho mais velho. Além de todos estes, ainda há o
revezamento semanal dos demais 7 filhos para lhe fazerem companhia nos finais de semana e
para levar no médico “em caso de precisão”.
Brandão (1995, p. 125) dizia que “o velho Marcolino mora sozinho, mas não vive só”.
A frase revela com profundida a grande diferença que existe entre ter a opção de ficar só,
consigo mesmo, e a partir disso, relacionar-se ou não com outras pessoas e em oposição, o
188
viver na solidão. Os caboclos idosos que entrevistamos não vivem em solidão, mas gostam de
viver sozinhos, de ter sua casa e seu espaço.
Por outro lado, os seus proventos da aposentadoria são fundamentais para auxiliar na
renda familiar. É comum ouvir comentários como: “Fontoura é a terra dos aposentados”, ou
“a família é sustentada pelo aposentado”. Há uma troca, uma reciprocidade entre os cuidados,
contrabalanceada pelo auxílio financeiro.
A extensão dos cuidados com relação aos idosos e doentes está presente no relato de
T.M.C. (79 anos), ao contar que após um câncer terminal, o marido levou o sogro para Porto
189
Alegre em uma tentativa para que se curasse, porém, este acabou por falecer. O filho precisou
retornar a Fontoura Xavier para trabalhar e demorou alguns dias para voltar, e quando o fez,
acabou por encontrar o pai já falecido e na emergência de ser dado como indigente. Nesta
ocasião, pagou uma quantia muito elevada para os seus padrões financeiros e conseguiu
resgatar o corpo do pai, obtendo autorização para velá-lo. Assim, solitariamente, cumpriu
todos os ritos de preparar o corpo, vesti-lo e velá-lo durante uma noite inteira na capela
mortuária do hospital. Nenhum dos irmãos pode comparecer, pois estavam no Paraná
trabalhando com erva-mate. Ritualizou-se assim, uma despedida honrada ao pai, que buscou
dar-lhe dignidade, mesmo após a morte. Ao mesmo tempo, se cumpriram os rituais que dão
significado às crenças.
Outro aspecto presente nas comunidades de agricultores brasileiros são as relações de
vizinhança. Estas são marcadas pela amizade e reciprocidade, das quais muitas vezes saem
casamentos. O vizinho pode ser um amigo, mas em muitos casos é também um parente. O
vizinho é um auxílio em diversos sentidos, uma forma de contar com alguém, principalmente
nos espaços muitas vezes longínquo do meio rural.
Os vizinhos substituem as entidades oficiais, servindo como socorro em casos de
doença, da necessidade de transporte, de cuidar a segurança da propriedade, e até mesmo para
o lazer, pois as visitas são a mais importante forma de agregar convivência que encontram.
Quando as visitas acontecem, os anfitriões abdicam de todos os seus compromissos para
dedicar-se exclusivamente ao visitante.
Dessas relações surgem os compadrios. Entre os parentes e amigos da vizinhança, são
escolhidos os padrinhos para os filhos. Os combinados ocorrem no grupo familiar
primeiramente, para somente depois se comunicar que tomou a decisão de “levá pra
cumpadre”. Para o convidado é uma honra ser o escolhido, sinal de grande consideração. São
relações que se mantêm por toda a vida, sendo que as crianças são incentivadas a pedir
louvado, “dar bênção” aos padrinhos, visitá-los e respeitá-los. Ainda existe na comunidade,
mesmo que em menor número, o costume do batismo duplo, primeiramente em casa e após na
igreja, para o qual podem ser escolhidos os mesmos padrinhos ou convidar outros, ampliando
assim, o círculo de compadrio.
Um peculiar caso de batismo ocorreu na família de T.M.C. (79 anos). Ao nascer a
sétima filha, após uma sequência de 6 filhas mulheres, devido a uma crença muito antiga de
que esta se tornaria bruxa, a irmã mais velha a batizou ao nascer. Tal situação é tratada com
seriedade, pois entende-se que é melhor “fazer para evitar qualquer coisa”.
Quando os padrinhos estão fora da condição material dos caboclos, possuindo melhor
190
Para R.R. (52 anos) e sua esposa, o visitar e ser visitado pelas pessoas é
praticamente algo sagrado. Sempre, por mais trabalho que se tenha, deve-se tirar um
tempinho para fazê-lo:
sua consideração através das visitas. Por ocasião do adoecimento de sua esposa, o Sr. V.P.S.
(72 anos) tem recebido o apoio dos familiares e amigos. Percebe-se um sentimento de lástima
em toda a comunidade:
Ela agora tá muito doente. Deu Mal de Alzheimer. Daí assim como ela tá
certa, ela tá caduca... Se não tem a nora pra cuidar, Deus o livre, daí eu
não podia nem trabaiá mais. Faz 3 ano. Ela caminha, mas é que fica fora
da casinha. Quando deu aquilo ali eu gastei uma loucura, eu achei que
curava, daí um dia o doutor de Soledade, disse “largue mão de gastar, tu
gasta tudo que tu tem e não adianta, isso é uma doença sem cura”. [...]
tentar curar, não espere.
Eu gosto muito de visita. Quer ver eu tá com prazer é chegar uma visita.
Meu freezer toda vida cheio de carne pra fazer churrasco pras minhas
visita. [...] Gosto de visitar os amigos e tenho muito amigo. Onde eu ir eu
faço amizade. Gosto de festa, ajudar a comunidade, é o que eu gosto.
192
Para M.I.B.P. (50 anos), embora seu trabalho no comércio da tenda lhe demande
bastante tempo, ainda assim encontra tempo para fazer visitas, e também para ser visitada:
Adoro ganhá visita tamém. Ah, tira um tempo, né. Aqui em casa
dificilmente a tarde não tem ninguém passeando. Eles vêm pra cá. Fizemo,
atendemo aqui. Ajuda a atendê.
O Sr. PBF (74 anos) tem como um dos passatempos prediletos ir nos vizinhos passear.
Da conversa pode-se depreender que durante os momentos de lazer também se aproveita para
construir relacionamentos comerciais:
Ia nos vizinho, tamém. Tirava tempo pra tudo. Um dia de chuva assim,
que não tinha o que fazê, eu ia pros vizinho conversá. Sim, sim... e é coisa
engraçada isso aí, porque vamo supor, se tu tem um comércio, tu mora
aqui, eu tenho um comércio, tu chega, eu não te dô muita obediência,
nem coisa nenhuma, já perdeu o freguês. Não vinga o comércio, tem que
sê dado com o povo, dado. Às veiz, nem vontade de compra, porque ele
gostô da pessoa ele compra. Claro!
Um dia o Roberto, um moreno, [...] posou aí, veio de lá meio tonto: “Oh
JP, dá pra mim posá aí? Tô meio tonto”. Posa, Roberto, tem lugá. Aí bem
cedo me alevantei, abri a casa, fiz fogo, aí ele se alevantô, foi lá fora,
foi no tanque se lavou, e veio e sentou aí com as costa virada pra cá, e eu
vim e botei mio pra eles (aves que cria), e tavam tudo, e veio um galo vôo
aí na área, e ele se assustô e não sabia pra onde que ia, e ele pensou que
era um toco, e já ficou sentado no ombro dele.
Para J.P.B.L. (74 anos), abrigar um vizinho “tonto” (bêbado) foi um gesto de
solidariedade em meio aos perigos que o perau representa. Assim como o seu dono, os
animais que alimentava, se familiarizaram rapidamente com o visitante.
A comunidade é pensada como um prolongamento da vida religiosa. A constituição de
uma mentalidade de comunidade está associada ao espaço que foi possível construir e este
normalmente é associado ao religioso. Assim, a sede da comunidade passa a ser a igreja, ou a
capela. Em alguns casos, na ausência desta, a escola. Em torno da igreja, outros espaços de
apropriação da comunidade são construídos, como o salão paroquial, cemitério e campo de
futebol. Na igreja ou escola são feitas as reuniões da comunidade, as aulas de catequese às
crianças, cursos eventualmente dados pela Prefeitura e reuniões dos agricultores referentes a
alguma demanda. Participar da comunidade está vinculado a dar sua contribuição, seja através
de serviços, seja através de dinheiro.
Com relação à igreja, é através da capela que um bairro rural se constitui, simbólica e
espacialmente, consolidando-se o seu entorno como um local de vizinhança, em um cenário
afetivo de fidelidades, reciprocidades, alianças e identidades (QUEIROZ, 1975).
Os laços de amizade são fortalecidos durante as interações que acontecem em
encontros festivos. A liderança desses eventos normalmente está associada àqueles membros
mais ativos da comunidade:
Foi nóis que levantemo tudo, dizer que com treis meis, nois montemo
aquela capela lá em baixo. Eu tirei dinheiro pra construir de material, era
gente que eu queria que tu visse, eu fazia festa, eu fazia baile, credo, tudo
bailão, de festona. (JPBL, 74 anos).
194
Sim, nossa comunidade é ali em cima, aquela igreja que tem ali. Ali foi eu e
o LMMP que levantemo a comunidade, ali tava morta. Nós fizemo tudo,
igreja, salão. (VPS, 72 anos).
Por ser uma importante oportunidade de lazer para cada local, as festas e reuniões
dançantes angariam um contingente de pessoas não apenas da comunidade, mas também de
outros locais, que arrecadam quantia suficiente para realizar os planos que desejam
implementar.
Tudo o que não presta sozinho e é bom “a dois” realiza feitos de trocas de bens, de
serviços e de significados que valem dentro do eixo de reciprocidades de grupos ou
comunidades e iguais ou semelhantes que a relação dual torna, possível e eficaz.
(BRANDÃO, 1995, p. 131).
S.S.F. (64 anos) tem grande influência na sua comunidade da Vila Candinha, na área
urbana de Fontoura Xavier, chegando a construir uma pequena capela, onde permite que a
comunidade também possa comparecer para rezar, especialmente o seu grupo de oração,
constituído principalmente de mulheres vizinhas do local: “Fiz [...]. Quando eu vou lá
participo porque tem o grupo nosso, que nós formamo lá, então”.
195
A gente tinha puxirão, um dia era na casa dum, outro dia era na casa de
outro. Depende da precisão, se um tava precisando mais era lá naquele, de
repente ia lá na casa do outro. Ia várias veiz. O puxirão era no tempo da
colheita da roça ou pra prepará a terra pra começa o plantio. O pai matava
um porco dava um pedacinho pra cada vizinho.
comunidade:
Aí depois que nóis viemo pra cidade até um tempo ainda era, depois que a
cidade foi crescendo aí o povo foi mudando e daí mudô aquele sistema,
aquele sistema é mais um sistema do interior. Você ganha e dá.
Neste sentido, o saudosismo desta vida comunitária está palpável na sua fala:
Antigamente era melhor. Tu não tinha celular, não tinha carro, é que a
gente achava ruim aquela vida umas hora, mas agora que a gente tá
conhecendo tudo, aquela vida era melhor. Só que quem tá naquela vida acha
que tá ruim, quem tá nessa acha que tá ruim. A pessoa nunca tá contente
com a vida que leva. Se ele tá dum jeito ele queria tá dotro. Só que aquela
vida simplizinha do interior era melhor do que a vida de agora. Tu não
conhecia tal coisa, daí tu não tinha interesse.
Constrangidos a crerem nas mesmas coisas para serem “como todo mundo”, os
sujeitos do lugar se reservam viver por conta própria e em solidão também a sua
experiência religiosa. De resto, sabemos todos que um dos pilares da crença
cotidiana do camponês católico, é a de que não apenas Deus e outros seres celestiais
existem, mas estão ainda sempre presentes em todos os momentos da vida do
devoto. (BRANDÃO, 1995, p. 147).
197
Para esses sujeitos, há uma miríade protetora divina, composta primeiramente por
Deus, tido como o pai de todos os seres viventes, pela Virgem Maria, como a mãe e os
anjos e santos. Em sua linguagem, demonstram a força das crenças. A religião constituída
possui uma representação social para os pesquisados, visto que pensam na igreja como uma
constituição com regras humanas, onde o padre, embora seja muito respeitado, é um ser
humano “como os demais”. Os rituais de ir à igreja, rezar, seguir seus dogmas, são
considerados uma das partes da vivência em comunidade.
Ao entrevistar S.S.F. (64 anos), foi possível perceber que sua relação com a religião
está impregnada de ritualismo, do uso de imagens como representações materiais de seres
santos e celestiais e, do uso da fala através das orações, como forma de se comunicar com o
divino. Os ritos católicos se revestem de grande importância, assim como a adoção cotidiana
de encontros feitos em casa, novenas, terços, ocasiões em que reforça sua fé e cumpre aquilo
que considera um dever cristão, que é trazer outros fieis para a igreja.
Entre os entrevistados, perguntados sobre sua religião, definem-se como católicos,
embora tenha havido nos últimos anos um significativo aumento de outras vertentes
religiosas, como as igrejas pentecostais, por exemplo. A fé cabocla está vinculada ao
catolicismo português, que tem um reforço positivo há séculos e aqui se mesclou com a
198
tradição indígena e africana, que engendra um amplo conjunto de devoções menos formais e
mais abrangentes, que inclui democraticamente diferentes crenças, desde aquelas presentes no
catolicismo, no espiritismo e nas religiões africanas.
A esse misticismo poderia se dizer que é uma resposta às dificuldades inerentes ao
mundo caboclo, principalmente ao insulamento dos brasileiros de Fontoura Xavier, mas se
manifestam em diferentes comunidades caboclas, sejam isoladas ou não. Pode estar associada
à pobreza, pois é onde encontra seu terreno mais fértil, porém não ocupa espaços
tradicionalmente ocupados por outras religiões, constituindo-se em uma mescla entre a
ritualização no espaço da igreja, mas também a pessoalidade ou, uma relação estabelecida
entre o homem e seu mundo simbólico para enfrentar as dificuldades.
Para D.D.A. (54 anos), a igreja evangélica surgiu como alento, mantendo um vínculo
comunitário e espiritual através da organização:
Ele credita a sua sobrevivência a um ser supremo, já que este provê o que lhe falta, “se
até aqui Deus me deu vida pra mim sobrevivê e pra mim lutá pela vida, eu tenho certeza de
que tem algo bom reservado para mim”. D.D.A. (54 anos) tem a divindade como um pai e um
amigo, em uma relação íntima:
Entre ele e eu é segredo, ele é meu guia e minha luz. [...]Se eu dissé que
não sou feliz, tô fazendo um pecado contra o pai, feliz eu sou porque tô com
saúde aqui, tô vivo, não tenho nada a teme né. [...] Eu posso não sê feliz por
dentro, mas sô feliz por fora.
Este aspecto da fala de DDA (54 anos) indica que, embora esteja triste por dentro
(por não ter uma família, uma companheira, por morar de favor, por precisar constantemente
ir em busca da sobrevivência), ainda assim, externamente parece estar feliz. É devoto de
Nossa Senhora, a qual segundo ele, lhe visita ocasionalmente:
Sobre suas visões, esclarece que não se confundem com assombrações, pois “nunca
acreditei nisso aí, não existe”. As crenças de D.D.A. não se referem a seres mitológicos,
como a mula sem cabeça exemplarmente, mas a seres que povoam seu imaginário espiritual,
vinculado às divindades cristãs.
Para Euclides da Cunha (2016), a religião do caboclo seria tão mestiça quanto ele.
Conforme o autor de “Os sertões”, ocorreu também uma mestiçagem de crenças, que remete
à fase mais crítica da alma portuguesa, repleta de um misticismo feroz e de fervor religioso,
aliada às influências africanas e indígenas. Assim, o homem simples que vive da terra,
dependente do “jogar dos elementos”, formou uma religião indefinida, onde se pode ver a
transfiguração da fé em um momento e no outro, o fanatismo.
A fé dos caboclos é tida como supersticiosa, fatalista, superficial e cenográfica ou seja,
diferente da fé dos italianos, caracterizada entre outras coisas, pela vocação religiosa (RENK,
2006). Se atribui a presença desse cabedal místico à pouca presença da Igreja Católica nas
comunidades, conforme Locks salienta:
antigos, como relatado pelos moradores, uma cruz alta com bandeira branca, para
simbolizar o divino, bem como imagens da Virgem Maria e dos santos guerreiros,
principalmente São Miguel, São Jorge, São Sebastião, São Jerônimo e São Benedito. Os
oratórios são tidos como uma parte importante a ser ocupada dentro da casa, desde o mais
singelo até os mais incrementados, geralmente acompanhados de vela. A vinda da
“Santinha”, geralmente uma imagem da santa padroeira da comunidade, a qual cumpre um
rigoroso rodizio entre os moradores, é o momento triunfal da devoção:
A gente quando, quando tem missa, porque no domingo não tem reza lá na
igreja, daí quando tem missa a gente vai. Quando não tem, a Santinha vem
na casa, a gente reza, né. Reza toda noite. Reza com a família. A gente
assiste a missa na TV tamém, né. (MJM, 54 anos).
Ela sempre rezava, pedia pra Deus, que Deus desse uma solução na vida
dela. Que ela não tava mais aguentando aquela vida, né, de ficar fechada
nesses galpão que tinha ali fora. Dia de frio ela tinha que se fechar com ele
lá, pro outro pra não brigá com o outro... e ela ficava com um lá e eu ficava
com os outros aqui dentro, entretendo pra não ir lá avançá nela. E ela
rezava... a mãe era muito católica. A mãe, Deus o livre. Foi uma pessoa
que com tudo as dificuldade que ela tinha ela fazia... era zeladora da
capelinha, coordenadora de grupo de família e ela ia com tudo, com tudo
eles de atrás, ela ia nas casa fazer as novena.
morto sozinho. O passar a noite ao lado dos familiares e do falecido indica grande
consideração e a distinção feita o torna um “amigo” da mais alta conta para a família.
Conforme o relato de C.P.M. (49 anos), por ocasião do falecimento de sua mãe, a
quantidade de pessoas que acorreram para homenageá-la foi tamanha, que somente foi
possível velar o corpo no pátio para não correr o risco de quebrar o assoalho da casa. Durante
décadas, apesar das dificuldades por que passou, auxiliou à comunidade com benzimentos,
homeopatias e conselhos, sendo “aprontada” (vestida) como um anjo ao ser velada.
Alguns casos de suicídio acontecidos dentro da igreja foram narrados como uma
espécie de, ao mesmo tempo, pedido de perdão e também como uma entrega da alma para
aqueles que podem intermediá-la no céu, ou seja, os santos, anjos, Jesus e Nossa Senhora.
Tal prática é considerada um grave pecado sem perdão, pois a “alma fica vagando”, ou fica
no “purgatório”, ou ainda “vai para o inferno”, assim, o praticante procura formas de
reconciliar-se ao fazer sua partida do espaço de “dentro da igreja”.
Assim, a alma de um pecador sem perdão é o inferno e esta viagem é direta e sem
escalas. Sem mudanças, também. Mas a ida ao céu pode custar à alma um estágio
intermediário no Purgatório e a imagem deste lugar de sofrimento e provação
limitados ainda é muito presente entre os camponeses do Alto Paraíba (BRANDÃO,
1995, p. 202).
202
Acredita-se que os santos e anjos têm o poder de ajudar o ser humano, atuando
como guardas protetivos da vida do indivíduo que neles crê. O relato de acidentes em que
foram salvos, que não ocorre nenhuma outra explicação que não a força mágica da
intervenção divina e do destino, já selado para cada indivíduo e são contados como uma
forma de justificar sua crença:
O que é pra ti passar, o outro não vai passar por ti. Eu mesmo acredito que
eu já me escapei da morte umas quantas vezes, então eu acho que, pelo que
eu passei, já era pra mim ter morrido. (RR, 52 ANOS).
O local no qual R.R. (52 anos) capotou o carro é uma estrada de terra firme, numa
ladeira extremamente pronunciada, costeando um “perau”, para o qual, acredita que somente
uma intervenção divina o salvaria:
Daquilo não era pra mim ter sobrevivido. Eu sobrevivi, então eu acho que
isso é uma coisa do destino. Eu acredito, né. Mas, cada um tem um jeito de
pensar e agir.
Problemas graves, doenças e vícios, podem ser resolvidos, desde que haja vontade e
se solicite a intervenção do “Pai”:
O sentido dado a “Pai velho” é de antigo, de criador de todas as coisas, pai de todos, o
mais velho, o primeiro. Ao mesmo tempo em que há distanciamento pela onipotência, há
aproximação, pois a presença paterna é sentida como pessoal. Conforme Brandão (1995, p.
129), De saída ele é “o Pai”. É este nome que qualifica a divindade como um exemplar chefe-
de-família, é, muito mais efetivamente usual do que a própria palavra “Deus”.
Ao mesmo tempo em que Deus concede graças, também pode realizar p u n i ç õ e s
para mostrar que “quem decide é ele”, pois o crente deve ser humilde. S.S.F. (64 anos) perdeu
seu filho num acidente, o qual mostrou-se uma grande provação:
203
Olha, naquela época, nóis tava numa campanha das missões, nóis ia em
todas as comunidade de São José do Herval (município vizinho), porque a
nossa capela aqui pertence a São José do Herval. E eu me comovi tanto,
gostei tanto, tanto, tanto, que um dia eu disse pra Deus, olha se quisé me
levá hoje, tô aqui. No outro dia...
Para ela, a perda do filho representou um momento muito doloroso e que chegou a
abalar sua fé cristã: “sim, teve umas hora que a gente teve revolta”. Mas a superação da
revolta foi conseguida, ainda que de maneira difícil e longa.
Mas não podemos ser egoístas. Daí de tanto que eu me apeguei com Deus,
eu penso assim hoje: Deus tinha só o único filho, Jesus Cristo, e mandou
aqui sabendo que ia passar por tudo pra por amor a humanidade. Então tu
não pode ser egoísta e eu aprendi que nóis não somo donos da vida, a vida
não pertence a nós. Eu tenho essa ideia, sabe. Essa convicção. Não é nossa,
nóis somo um presente, a vida nossa é um presente de Deus, que ao
mandar nós para esse mundo ele nos deu um espírito e ele recolhe a hora
que ele quiser.
Percebe-se que existe entre os “brasileiros” de Fontoura Xavier uma aceitação das
mazelas que as condições de vida lhes infligem. Ao mesmo tempo, quando essa aceitação não
está presente, as gerações mais antigas tratam de incutir nos mais jovens tais conceitos. Com
relação à existência da condição da doença mental presente na família de com (49 anos), a
mãe, já falecida, assumiu esse papel de mentora:
É que nem o José ali disse: “Não, eu não acredito em Deus, Jesus é morto,
Deus é morto”. Aí eu disse: José, quem tem fé, ele tá lá em cima, ele tá
cuidando de nóis, aqui ó! (J.P.B.L, 74 anos).
poderia estar situada nos conceitos de “resgate e carma”, pois há o entendimento de que não
se pode interferir no destino dos outros e nem sequer no próprio destino. O que já está
previsto, vai se realizar de uma maneira ou outra, pois “o Pai” que sabe de tudo, também sabe
porque precisa acontecer e seus desígnios divinos não devem ser contestados.
Por outro lado, a crença em Nossa Senhora foi muitas vezes citada, principalmente
pelas mulheres, e relacionada à maternidade: “Acredito em Nossa Senhora Aparecida, né. Eu
tenho muita fé, porque a gente não tem mãe” (M.J.M., 54 anos).
Já M.I.B.P. (50 anos) salienta que sua crença é forte, mas que a ritualiza no espaço
doméstico:
Eu acredito muito né. Eu sou católica. Não sou muito de tá na igreja, mas
tenho fé bastante. Minha santinha Nossa Senhora Aparecida. Tem que crê,
né. A gente tem que acreditá.
Para C.F.S. (62 anos), o seu próprio nome é uma homenagem aos Santos, pois
segundo ela seus pais eram muito religiosos. Ela define sua fé, “acredito em santo, acredito
em Deus, principalmente em Deus. Nossa Senhora Aparecida é minha protetora”. Sobre o
hábito de ir na igreja, diz que: “A gente agora não tamo indo por causa da epidemia, né,
mas a gente sempre ia, bah, sempre a gente ia”.
205
O Sr. P.F.S. (66 anos) declara que nasceu em um “berço católico”, mas que tão logo
entrou na adolescência já começou a se interessar pela ciência espírita. Atualmente, entende
que a religiosidade está perdendo o espaço, pincipalmente entre os mais jovens. Porém, não
vê nisto um prejuízo, pois percebe nos jovens atitudes de solidariedade, embora acredite que a
religião incentiva positivamente às pessoas.
Em seu relato diz lembrar que há décadas atrás, havia um continuo fluxo de pessoas
vendendo remédios à população. Nestas situações as pessoas tentavam amenizar ou se livrar
das doenças através destes medicamentos, normalmente feitos de ervas, bem como contavam
com o auxílio de curandeiros e praticavam a cultura do benzimento, o qual “eu acredito
muito”. Conforme o Sr. Pedro haviam muitas mortes de origem desconhecida, principalmente
de mulheres por ocasião do parto e de crianças por doenças ignoradas, devido a inexistência
de acesso à saúde oficial.
A maior parte dos entrevistados manifestou sua opção pelo catolicismo, no entanto, na
família R.R., Dona E.R.R. (72 anos) disse que fez uma promessa de trocar de religião para
que a filha se curasse de uma grave doença: “eu falá a verdade, eu me batizei nos crente”. De
maneira ligeiramente brincalhona o esposo diz que: “mas depois que tava caducando”, ao que
ela continua: “faiz uns dois ano. Eu fiz um propósito né, [...] e não é que se curô? O doutor
tinha desenganado ela”.
É possível perceber nos depoimentos que a religiosidade obedece a um mecanismo de
transmissão oral de gerações. Aprende-se com as gerações anteriores, apropria-se das crenças
e rituais e efetiva-se a transmissão às novas gerações. C.P.M. (49 anos) explica como
aconteceu o fenômeno da sua fé:
Porque eu acho assim que a religião da gente vem dos pais. Pra ti ter uma
ideia, eu à minha filha Thaís, eu ensinei ela a rezar. Tudo que a mãe me
ensinou, eu ensinei pra ela. Ela fez catequese, fez a crisma, a comunhão,
tudo, eu ensinei ela, e eu sempre segui a religião [...]. A missa na
televisão, ela sempre, todos os dias, ela olhava (a mãe, já falecida). Todas
às 7 horas da noite tava sempre assistindo. Eu até hoje, é 7 horas, eu
assisto.
Quanto à crença em santos e anjos, alguns foram bastante inespecíficos, pois para
eles não se trata apenas de um santo ou outro, mas de todos. A especificidade reside apenas
em Deus, como uno, e em Nossa Senhora.
206
Questionados sobre a fé aos santos, dizem que é: “- demais! Mas óia, incrusive, é que
tem diversos Santo, que era Padroero, então a gente tem que acreditar em tudo aqueles que
foi Padroero”. A mesma pergunta relacionada aos anjos tem a mesma decisiva resposta:
É, porque vivemo nas sombra dos anjo, ó, que nem essa aí, um dia eu
disse pra comadre, ela disse “aí, chega criança e eu fecho a casa, porque
criança suja a casa da gente, e a gente sofre”. Eu disse: comadre Eva!
Nóis vivemo nas sombra dos inocente, dos anjinho, eu aqui eu não me
importo, os neto chega aí, pinta tudo, e depois eu limpo, ele sai eu limpo.
Aí a pessoa que não acredita, lá em cima tem que pagá. (J.P.B.L., 74
anos).
Figura 34 - Lar caboclo de Fontoura Xavier com diversas imagens religiosas presas à parede
e sobre o armário – 2021.
Na ocasião que o Sr. J. decidiu colocar fogo na capoeira, a existência das cobras
passou a ser um impeditivo para que o trabalho acontecesse de forma tranquila, por isto a
necessidade de chamar o benzedor.
Ao colocar fogo em uma área está sempre presente o medo do revide da natureza.
Conforme Woortmann e Woortmann (1997), a cobra é certamente a mais lembrada, pois está
marcadamente presente no imaginário do grupo. Ao mesmo tempo em que há um sentimento
de culpa ao matá-las, há o medo de que ataquem o homem. Os casos relacionados às cobras,
com qualidades praticamente humanas, se proliferam, desde aquelas que “mamam o leite do
peito, no lugar do nenê”, acabando por matar a criança, até “as que dormem na cama,
enroladas às pessoas”, que quando se dão conta, é tarde demais.
Por isso, um dos especialistas mais importantes para o êxito do processo de trabalho
é o “espantador de cobras”, que reza a roça antes do plantio (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997, p. 61).
M.I.B.P. (50 anos) também relata seu hábito de acessar às benzedeiras, em decorrência
do costume paterno de contar com os benzimentos para auxiliar na cura dos animais doentes:
“seguido vou lá em Soledade em uma benzedeira”.
Para Woortmann e Woortmann (1997, p. 15), cumprem o papel mágico de domesticar
a natureza, pois “para os sitiantes (benzer o pasto e o gado ou recorrer aos santos, por
exemplo), são tão necessários quanto o saber “técnico”.
Filha de uma benzedeira bastante respeitada em Picada Casagrande, C.P.M. (49 anos)
208
esclarece que durante o tempo em que sua mãe ainda vivia, havia a preocupação de passar os
conhecimentos que ela tinha em relação aos benzimentos e às ervas medicinas para a
comunidade, porém essa tarefa parece mais difícil do que possa parecer à primeira vista:
Olha, muitas pessoas às vezes vinham aí pedir pra ela ensinar. Ela
ensinava, mas não sei se decoraram também. Eu principalmente que
sou filha eu aprendi com ela [...]. E ela sempre dizia: “alguém tem que
aprender. Alguém tem que ficar pra aprender porque as pessoas mais
velhas que benzem não vão durá toda vida.
Ainda em relação aos tratamentos com ervas medicinais, estes perdem-se no tempo,
pois a completa ausência de espaços para tratar as doenças, como hospitais, postos de saúde,
consultórios médicos e até mesmo farmácias para fornecer medicamentos, em períodos mais
antigos, eram inexistentes. Atualmente, embora o acesso seja mais facilitado, já que o
município conta com um hospital, um posto de saúde e diversas farmácias, o hábito da
utilização de ervas medicinais através dos tratamentos homeopáticos caseiros ainda é
amplamente difundido entre a população, especialmente para doenças que não apresentem
sintomas graves: “nóis se criemo só tomando chá de erva, se dava gripe, tudo, tudo”
(J.P.B.L., 74 anos). O relato que nos foi contado por T.M.C. (79 anos), a qual perdeu a irmã
de sete anos com apêndice supurado, de que durante alguns dias foram feitas inúmeras
tentativas de chás, ervas e benzimentos, que não funcionaram, demonstra a falta de
assistência. Ao ser questionada sobre a não validade das estratégias curativas utilizadas, ela
respondeu tristemente que “era porque tinha que ser”. Ainda que tal fato tenha acontecido,
ao ser questionada se benzimentos e orações adiantam, respondeu que: “acredito em
benzimento”, e quando os filhos ficam doentes, mesmo à distância, ela os benze e estes
saram: “eu benzia daqui e eles mioravam. Eu rezava todo dia pra Deus curá”.
Em muitas situações ouve-se a expressão “é que Deus deixô assim”, demonstrando
um conformismo com o que acontece de ruim. Perguntada sobre como adquiriu o hábito de
benzer, disse que:
pois sabia certas orações que usava nestas situações. Este não é um caso comum, já que é
creditado às mulheres a maior capacidade para os benzimentos, mas conforme ela, herdou
essa habilidade da mãe, que benzia e curava, sendo uma médica homeopata de antigamente:
Quando vinha uma “tormenta”, que era o jeito que os antigos diziam, uma
tempestade bem feia, começava aquele baruio de vento e escuridão e meu
pai já via de vereda que ia vim e eu acho que ele aprendeu com a mãe dele
também. Meu pai saia lá no terrero e benzia de vereda [...]. A tempestade
vai-se embora.
Para finalizar, um aspecto que entra na seara dos mitos, lendas e folclore do
imaginário caboclo são as assombrações, que muitos preferem “não brincar”, pois acreditam
que são coisas que é melhor “não debochar”, pois “pra quem duvida aparece”. Para o Sr.
J.P.B.L. (74 anos), a única assombração que viu foi um cachorro pequeno e branco, andando à
sua frente na estrada: “graças meu pai do céu, nunca, nunca, e aquele não era do cara se
assustar, porque era um cachorrinho bem bonitinho. É, mas aí que me deu remorso”.
Ele acredita que a maior parte das “assombrações” que aparecem resulta de algo
relacionado às pedras preciosas presentes na região, como, por exemplo, a ágata ou a
ametista, que emitem alguma espécie de magnetismo:
Então, durante minha vida, foi isso só, agora que nem sinal de pedra, de
gente fumando, de gente caminhando de noite, sem ser, aqui também o
finado sogro também dizia que era assombrado, via muita sombra, a gente
enxergava fumando, chegava numa artura, não tinha ninguém, mas do
mais não, e daí no norte, nóis não tinha hora pra ir caçar naqueles
matão, que era quatro mil alqueire, e nunca deu nada.
M.J.M. (54 anos) não tem medo de assombração, pois, segundo ela, perdeu todos os
medos que podia ter ao olhar, durante um dia inteiro, um vizinho enforcado na árvore em
frente à sua casa. Devido às dificuldades de comunicação e à distância, a polícia pericial
somente compareceu muito tardiamente para fazer a retirada do corpo, ficando por horas
compondo uma cena de horror.
Já para o agricultor F.J.C. (56 anos), causos como o do “Gritador”, no qual um rapaz
teria encilhado sua mãe, ao que ela rogou uma maldição e este teria se transformado em alma
penada, que vaga pelas coxilhas e matas de araucária gritando, muito populares entre os
agricultores, não são verdadeiros: “o mesmo causo que diziam que era aqui no Forqueta,
tinha lá na Paraíba”. Ele demonstra que com os conhecimentos adquiridos, acabou por
superar crenças que antes julgava verdadeiros.
210
O tio da mãe viu o vurto do Gritador, tavam falando nele e ele passou na
porta, lá no Forqueta. Antigamente o pessoal tinha uma técnica de fazê um
causo ficá uma verdade, mas era uma mentira né.
Brandão (1995) já relatava o fim das assombrações. Isto passa a acontecer a partir da
aproximação da cidade com a mata, pois a primeira tem a qualidade de fazer desaparecer
também a imaginação. Os habitantes das florestas apenas eventualmente apareciam, e
atualmente correm o risco de desaparecer de vez: “os lobisomens existem, reconhecem
muitos. Eles sempre existiram, mas agora parece que existem menos (BRANDÃO, 1995, p.
78).
A descrença de F.J.C. (56 anos) de certa maneira magoa sua mãe, que o vê em uma
ampla atitude de contestação às crenças que lhe são arraigadas. Para ela, é fato que seu tio viu
o Gritador, assim como é um fato que um animal desconhecido ou talvez uma alma penada
saltou no cavalo de seu sogro, ao passar por um “matão tarde da noite”, somente conseguindo
livrar-se da assombração após uma oração.
Oscilando entre o modo de vida do caboclo que superou as condições rústicas, mas ao
mesmo tempo imerso neste meio, devido ao território em que está, as relações estabelecidas
por seus pais e que de certa forma compõe também sua herança, o agricultor P.P.C. (46 anos)
embora dê seu endosso, apresenta certo ceticismo em relação às crenças presentes entre os
demais caboclos do meio rural. Em relação aos tratamentos com ervas naturais e aos
benzimentos acredita que “chá é bão. Até muito melhor que esse chá muito fraquinho da
farmácia. Benzimento é bão também, mas tem coisas que benzimento não resolve né”.
Já para o Sr. P.B.F. (72 anos), tudo o que imaginarmos existe, ou do contrário não
conseguiríamos imaginar. É uma lógica simples e que, segundo ele, é muito verdadeira. Neste
caso, assombração “ejiste”.
Percebe-se que após o advento, primeiramente da televisão e após, da internet, as
crenças supersticiosas, a confiança total e ingênua nos poderes curativos das ervas e orações,
entre diversas outras comuns ao universo caboclo, foram em grande parte desacreditadas. Os
mais jovens prosseguem respeitando as crenças dos mais antigos, mas já não possuem
certezas. Esta mudança operou-se principalmente após o acesso ao sistema de saúde, o que
possibilitou a cura de doenças que antes julgavam impossíveis de se resolver. Neste sentido, a
211
tecnologia acabou por contribuir para o acesso à informação também aos caboclos.
A cultura presente entre os caboclos de Fontoura Xavier incita que haja maiores
aprofundamentos, pois esta constituiu-se em uma sociedade do tipo mais fechada, com um
rico arsenal interno, dentro do espaço doméstico e do seu entorno, mas “aparentemente
esquecida” pelos demais.
As ritualizações dos seus valores, crenças, modos de vida, não são conhecidas e
permanecem apenas no restrito espaço do grupo. Cada tema desenvolvido suscita que novas
pesquisas sejam conduzidas, pois entende-se que há espaço para evoluir no estudo do caboclo
que se forjou no Rio Grande do Sul e nas suas diferentes regiões. A contribuição das
pesquisas existentes, principalmente em São Paulo auxiliam para determinar também o perfil
cultural do caboclo sulino, já que é possível visualizar uma intrínseca relação entre um e
outro, o que pressupõe que a contribuição paulista esteja efetivamente presente no sul do país,
porém sofrendo variações contínuas ao longo do tempo, em um processo adaptativo.
Este capítulo finaliza-se com a contundente certeza de que todos os tópicos abordados
não são estanques e que não estão concluídos. O universo da cultura cabocla é tão vasto e tão
rico, que apenas algumas luzes foram vistas, em uma miríade das existentes.
212
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A terra possui uma amplitude de significados para o ser humano de modo geral e,
especialmente para as comunidades rurais, constitui-se no centro de sua representação de
mundo. É a matriz geracional que possibilita ao homem produzir e ser senhor do espaço,
assim, a história humana caminha em paralelo às tentativas de sua dominação. Este,
possivelmente, seja uma das questões centrais que envolvem os indivíduos caboclos e as
constantes tentativas de expulsá-los da terra. Não é, no entanto, um problema isolado, mas
uma questão que está presente em muitas sociedades.
Nas pesquisas realizadas em torno do caboclo, depreende-se que, primeiramente,
esse indivíduo, embora possua uma matriz genética relacionada à determinados tipos raciais,
evoluiu desse paradigma e avançou em espaços culturalmente diversos, ou seja, a cultura
cabocla acabou por se sobrepor a estes aspectos raciais.
Neste trabalho, inicialmente, questionou-se quem seriam esses indivíduos caboclos e
quais os matizes de que são compostos, e chegou-se à algumas constatações. Uma delas é a de
que esse homem se moldou do “barro primordial”, constituindo-se na formação inicial do que
seria o povo brasileiro. Nesse sentido, destaca-se a contribuição dos habitantes autóctones
indígenas, dos cativos africanos e dos lusitanos portugueses. Dessa mistura surgiu um
indivíduo ao mesmo multifacetado e não homogeneizado.
No entanto, as discussões havidas no período em que o positivismo esteve florescente
no Brasil descortinam um modo de pensar conservador, revelando um discurso
preconceituoso em relação à pobreza, erroneamente atribuído a referenciais científicos que
confirmavam essas ideias e que relacionam a mestiçagem formadora do brasileiro à
debilidade.
Assim, procurou-se retratar tais visões estigmatizadas que pesavam sobre os mestiços,
aos quais não se creditava a capacidade de lidar com a terra e também a incapacidade de fazer
escolhas acertadas, o que de fato acontecia por pressão dos próprios mandatários do poder, os
quais induziam os mais humildes com falsas promessas e expectativas protecionistas ou
ainda, coerção, dos quais exemplarmente pode-se citar a pressão sofrida sobre os caboclos,
pelas companhias colonizadoras. Justificava-se, assim, a posse da terra somente nas mãos dos
“europeus” e a sua usurpação de indígenas e mestiços, principalmente.
Para o caboclo, a relação com a terra sempre foi muito estreita, conformando uma
maneira muito própria dela se apropriar, cultivá-la e retirar seu sustento. Seu modus
213
vivendi, apesar de ter sobrevivido ao longo dos séculos, tem se mantido sob fortes críticas à
sua maneira rústica. Essa forma se traduz por hábitos simples, destoantes do que comumente
se acreditam serem formas evoluídas de sociedade. Tal modo de vida foi definido como
atrasado, inculto, característico de sociedades inferiores, entre outras pechas que lhe foram
atribuídas. Conceitos que derivam da dissociação do modo de vida adotado pelo caboclo e do
que predominantemente é corrente nas modernas sociedades.
Ao caboclo foi imposta a crença de que não se adapta, por sua própria vontade às
condições das sociedades capitalistas focadas na exploração do trabalho e no modelo
consumista. A criticidade relacionada a este modo de vida nem sempre obedeceu a princípios
éticos, sendo alvo de inúmeros julgamentos, o que contribuiu para gerar certas concepções
errôneas ou deturpadas em relação a esse indivíduo, que tenta manter seu padrão cultural. As
críticas referem-se em muito ao seu comportamento não especulativo, acomodado, a fuga do
convívio fora do universo composto de família, compadres e vizinhos e a religiosidade que
eventualmente, pode descambar para o fanatismo. Esse esquema, além de ser simplista, foi
fácil de ser absorvido e fácil de ser propagado, gerando crenças adotadas pelo senso comum.
Nos séculos anteriores foram relatados pela literatura, como aqueles que andavam a
esmo, trabalhando para os grandes proprietários e mantendo-se como podiam às custas de
pagamentos miseráveis, levando consigo a denominação de “homens vagos”, sem ocupação e
sem moradia fixa. Assim que tinham qualquer oportunidade, principiavam a fazer sua
roça de subsistência, que lhes servia para matar a fome, ao mesmo tempo em que também
alimentava o contingente humano das fazendas e dos viajantes nos caminhos à beira das
estradas.
Dessa maneira, os pequenos lavradores e posseiros, sem outra alternativa de como
continuarem mantendo seu modo de vida, que se constituía construir seu pequeno e
rudimentar rancho, abrindo pequena clareira para plantar e colher algum alimento para sua
sobrevivência, quando não, derrubando florestas, praticando a extração da erva-mate,
realizando a frente da frente na abertura de novas áreas em direção à região das matas ainda
não ocupada. O que parecia ser, afinal, a redenção e a possibilidade de ocupar um espaço seu,
em breve tornava-se mais um motivo da exploração econômica.
Após terem se acomodado na região de matas do estado do Rio Grande do Sul, os
objetivos governamentais mudaram e houve a intenção em distribuir a terra, que já ocupavam,
entre aqueles sujeitos que detinham o interesse do Estado, qual seja, os novos imigrantes.
Dessa maneira, após a Lei de Terras de 1850, os entraves que foram impostos para a
regularização das áreas acabaram por impossibilitar a estada dos caboclos nas áreas que
214
Este espaço passa a ser a representação de toda a sua identidade. Até naqueles mais
humildes, que precisam buscar diariamente seu sustento, percebe-se satisfação em estar na
terra. O amanhã, como possibilidade de falta, principalmente de alimento, aparentemente não
existe.
Só podemos ter uma noção da diferenciação do que ocorre entre o meio urbano e o
rural, mas equivale a dizer que nos centros urbanos, para os mais pobres, a ausência de
alimento por exemplo, é um grave problema, uma sombra perene que está sempre presente.
Esta percepção entre os caboclos de Fontoura Xavier, aparenta ser menor, ou quase
inexistente. Na emergência da fome, existem alternativas. Ao tentar descobrir quais são, ao
que ficou claro é que se faltar algo, os vizinhos, amigos e parentes podem auxiliar, mas na
ausência destes, “ué, a gente faiz uma roça”.
Neste sentido, também está presente um forte sentimento de espiritualidade, de que
“Deus provê”. No entanto, também existe o sentimento de que devem tirar da terra o que esta
pode oferecer. Assim, especialmente entre os mais jovens, o objetivo é que possam utilizar
uma área maior do espaço coberto por vegetação, com lavouras, ou atualmente, com
plantações de erva-mate. Acreditam que tem muita mata e que esta pode ser devassada em
alguma medida.
Inúmeros aspectos são dignos de nota, mas foi possível perceber a riqueza cultural
desta população, em busca de manter seu modo de vida. Enquanto alguns se abrem para a
influência de outras culturas, mais detidamente os mais jovens que estão indo trabalhar em
outros municípios, aqueles que ficam mantém um isolamento que de certa maneira, os
preserva. Assim, foi possível perceber que geralmente o caboclo não realiza visitas, fora do
seu círculo de parentesco, amizades, vizinhança e compadrio. Estes espaços estão bem
demarcados e exceto, por força do trabalho, não se modificam.
Até mesmo entre os trabalhadores que saem continuamente do município para atuar
fora retornando aos finais de semana, somente se relacionam com aqueles que vão no
caminhão juntos, que ficam no alojamento reservado pela firma e que acabam por se
constituir, eventualmente em amigos. Desta maneira, ouso dizer que a comunidade dos
caboclos de Fontoura Xavier, embora possua uma abrangência grande, ao englobar todos os
caboclos que reconheçam como tal, possui uma estrutura fechada, circunscrita culturalmente,
não admitindo pessoas de fora do seu grupo. Pude observar que somente foram aceitos no
grupo, entre todas as Picadas que estive, dois descendentes de italianos, exatamente por que
culturalmente, mudaram seu modo de viver, adotando em plenitude a cultura cabocla.
Assim, neste trabalho entendo que o “caboclo histórico” de Fontoura Xavier seja
217
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226
Parte 1:
Relato de vida: nesta fase da entrevista, será orientado ao entrevistado para que faça um relato
de sua vida, a partir de sua infância até os dias atuais, das coisas que mais lhe marcaram, do
que considerou importante.
Parte 2:
Questionário