Aderaldo Luciano - Tese
Aderaldo Luciano - Tese
Aderaldo Luciano - Tese
DE CORDEL: VISÃO E RE‐VISÃO
Aderaldo Luciano dos Santos
Tese de Doutorado submetida ao Programa
de Pós‐Graduação em Ciência da Literatura
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Doutor em Ciência da Literatura (Poética).
Rio de Janeiro
Setembro de 2009
RESUMO
Os estudos sobre a literatura de cordel foram pautados pelo estabelecimento
de classificações orientadas pelo agrupamento de sua produção em ciclos temáticos,
herdados dos estudos do folclore, atribuindo à mesma elementos da oralidade.
Partindo da apuração histórica, traçou‐se o seu percurso, iniciado no final do séc. XIX,
investigou‐se a origem do termo designativo e sua impropriedade em nomear o cordel
brasileiro, estabeleceu‐se o seu caráter literário e buscou‐se uma classificação
orientada pela teoria dos gêneros literários.
Para:
Achilles
Bárbara
Lucas
Rosa
AGRADECIMENTOS
A Iêda Barbosa, paciência
Helena Parente Cunha, bondade
Eduardo Portella, modelo
Numa Ciro e Nonato Gurgel, amizade
Henrique Cairús, presença
A vida são as paixões.
Afrânio Coutinho
Viver é lutar.
Gonçalves Dias.
Um dia conversarei com meus mortos.
Cassiano Ricardo
Um dia
Ainda eu ei de morar nas terras do Sem‐fim
Raul Bopp
Os sulcos de minha vida
Têm se tornado mais planos.
Ficarão mais rente ao solo
Com a passagem dos anos.
E quando chegar a hora
Em que eu precise ir embora
Para o outro lado do muro,
Heverá coisa certeira:
O coração da madeira
Será meu porto seguro.
Aderaldo Cangaceiro
SUMÁRIO
Introdução, 9
Uma arqueologia da Literatura de Cordel, 15
Por uma classificação literária para o cordel, 102
Conclusão, 188
Referências bibliográficas, 192
Introdução
A pendenga acontecida entre a Editora Luzeiro, de São Paulo, e a Academia
Brasileira de Literatura de Cordel, do Rio de Janeiro, em 2008, trouxe‐nos de volta a
discussão sobre direitos autorais no cordel. A ABLC lançara, em projeto patrocinado
pela Petrobras, a antologia com os 100 mais significativos cordéis de todos os tempos,
incluíra vários títulos cujos direitos pertencem à Luzeiro e o caso foi parar no tribunal.
Gregorio Nicoló, dono da Luzeiro, e Gonçalo Ferreira da Silva, presidente da ABLC,
resolveram a questão pessoalmente: este repassando o pagamento dos direitos
autorais e aquele abrindo fogo contra mais dois editores, no Nordeste, acusando‐os da
mesma prática.
Estudando o cordel há mais de vinte anos, percebemos que o séc. XXI nos
mostra um cenário diferente de tudo que aconteceu com o cordel em seus 100 anos
de existência no Brasil. Tanto se modificaram os folhetos, como os poetas. Da geração
princesa, aquela fundadora, à geração coroada, esta da atualidade, o propósito
continua o mesmo, mas a formação intelectual e mercadológica é outra. Daqueles que
possuíam rudes conhecimentos do vernáculo aos estudantes e graduados nas
universidades, os poetas intervieram moldando o cordel às necessidades do mundo
global, emprestando‐lhe acabamento gráfico e visibilidade midiática nunca vista.
Infelizmente essas mudanças não seduziram os estudiosos da literatura. Os
estudos pioneiros de folclore, etnográficos, sociológicos ou filológicos são sempre as
matrizes para os novos pesquisadores. Estudam o cordel produzido na primeira
metade do séc. XX supondo que aquela realidade permaneceu estática até o séc. XXI.
Das classificações em ciclos temáticos aos problemas gramaticais, à presença da
xilogravura, à ideologia, o emaranhado de equívocos e anacronismos se perpetua por
ausência de abordagem mais comprometida com a literariedade e menos com o
produto material. Nesse sentido, o entrevero editorial entre a Luzeiro e a ABLC
denuncia essa urgente mudança de foco.
Quando o poeta Marco Haurélio trabalhou na arrumação editorial da Luzeiro,
mantivemos intenso contato sobre a maneira mais justa de respeitar o autor de cordel
e oferecer‐lhe dignidade editorial. Concluíamos que a atribuição do ISBN às obras de
cordel poderia contemplar nosso anseio. As dificuldades vividas pela Luzeiro não
permitiram essa tarefa. Um catálogo aproximado de mil títulos e sem pessoal para a
realização do trabalho, nem capital para investimentos e relançamentos de títulos
fundamentais, fizeram a carroça do esforço estacionar. Marco Haurélio passou para a
Editora Nova Alexandria para encabeçar o projeto editorial de Clássicos em Cordel,
uma coleção de clássicos da literatura universal adaptados para o cordel.
A partir dessa coleção, o plano de dignificação autoral dos cordelistas iniciou‐se
e o cordel teve, nesse momento, um marco em sua produção e comercialização.
Marco Haurélio, compreendendo essa aura, trouxe para junto de si aquilo que
chamamos de a geração coroada: poetas como Klévisson Viana, Rouxinol do Rinaré,
Moreira de Acopiara, Varneci Nascimento, João Gomes de Sá, Costa Sena, Cacá Lopes,
alguns já com sua adaptação dos clássicos publicadas e outros investidos na Caravana
do Cordel, movimento de divulgação do cordel em São Paulo.
Enquanto isso no Ceará, Klévisson Viana solidificava o projeto editorial da
Tupynanquim Editora publicando os mais representativos cordelistas do Brasil,
seguindo o mesmo formato dos folhetos da geração princesa, mas com a adição de
desenhos de até quatro cores nas capas. Essas novas capas, além de oferecer
visibilidade, são fundamentais num universo que ainda se ressente da presença da
xilogravura como sinônimo de cordel. Grande parte dos estudos sobre cordel traz essa
união com a xilogravura como sendo o ícone cordelístico por excelência. Por nossa vez,
admitimos a importância xilográfica na produção do cordel, mas fazemos questão de
explicar que a geração fundadora não se utilizou da gravura em madeira para ilustrar
suas capas.
O encontro do rural e do urbano deu origem ao cordel. As ruas da cidade do
Recife moldaram‐se às veredas do sertão e estas às máquinas e prelos da infante
indústria gráfica pernambucana no alvorecer do séc. XX. As capas cegas foram as
pioneiras. Leandro, sempre Leandro, introduziu o desenho e a fotografia. A xilogravura
aparece um pouco mais tarde. Pela facilidade de execução, fixou‐se. Atualmente,
mesmo com a xilogravura artesanal, esta passa pelo scanner, pelo photoshop, recebe
cores em pixels e são impressas em ultramodernas máquinas digitais. A xilogravura
constitui‐se em um elemento no percurso do cordel, mas de forma alguma é um eixo
decisivo em sua formação, tampouco com ele (o cordel) deve ser confundida.
Arievaldo Viana, irmão de Klévisson Viana, é outro nome do cordel atual.
Publicando seus folhetos pela Tupynanquim e pela Queima‐Bucha, de Mossoró, no Rio
Grande do Norte, editora que vem promovendo o cordel regularmente, Ari viu sua
adaptação de Macbeth, de Shakespeare, ser publicada pela Cortez Editora em edição
de luxo com ilustrações do mestre Jô Oliveira. Além disso, fundou o movimento Acorda
Cordel na Sala de Aula, para incentivar o uso do cordel como ferramenta paradidática
na educação e alfabetização de crianças no Ceará.
Essas transformações no cordel necessitavam de olhar novo. Desde os tempos
de Sílvio Romero, no séc. XIX, com seus estudos sobra a poesia popular, passando por
Gustavo Barroso, em 1921, até Umberto Peregrino, na década de 80 do século
passado, os estudos ficaram estáticos e se auto‐reproduzindo, servindo a dois
senhores: a) ao público amante das formas poéticas populares e do cordel
particularmente e b) à contra‐informação que colocava o cordel como versão escrita
da poética dos cantadores. Além disso, a denominação “literatura de cordel” levava o
cordel para uma gênese ibérica, por causa da tradição da literatura de cordel
portuguesa do séc. XVII.
Nossos pesquisadores e estudiosos, talvez querendo antecipar uma origem
pomposa ao cordel, trataram de reproduzir a informação exaustivamente e, sem o
cuidado na apuração e na pesquisa, enraizou‐se o erro. Os próprios poetas cordelistas
sentiram‐se enaltecidos em saber dessa ascendência, sem prestar atenção à
originalidade do cordel como poesia, como literatura autônoma daquela suposta
matriz ibérica, bem como das modalidades e práticas de cantoria orais de nossos
cantadores repentistas. Pesquisadores de nossas universidades foram pelo mesmo
atalho, ignorando o caminho por onde o percurso literário do cordel foi deixando suas
pegadas.
Por outro lado, por causa da expressão “popular” atribuída à poesia produzida
por autores oriundos das classes menos favorecidas da sociedade brasileira, resolveu‐
se abrigar sob o mesmo teto o conjunto de produções poéticas nascidas no Nordeste.
Tudo que fosse regido pelo metro, pela rima e pelo ritmo carregou o rótulo de cordel.
A confusão generalizou‐se. O poema matuto e o folheto, quadrinhas e anedotas
rimadas passaram a ser chamados de cordel. Engessou‐se o produto, sem pensar nas
particularidades, peculiaridades que o próprio cordel transporta em sua, permita‐se
dizer, essência. As classificações por ciclos tentaram diferenciar essas características do
cordel. Procederam apenas ao agrupamento dos temas. Esqueceram‐se que o cordel
não é folclore anônimo, tem data e local onde nasceu.
O nosso trabalho quer atender o cordel como literatura, como poesia, com
forma fixa poética, contendo subdivisões complexas, tão complexas como o estudo
dos gêneros mostrou‐se ser desde Aristóteles. Procuramos refazer o trajeto histórico
para chegar ao ponto de partida. Não podemos dizer que o embrião não tenha tido o
parentesco com a poesia oral dos cantandores, mas não afirmamos que o início tenha
sido com ela. Os romances escritos sempre existiram a conviveram pacificamente
entre os cantadores que os decoravam para cantar ou recitar em seus encontros. Esse
teatro, no qual dois cantadores com suas violas procuravam influenciar a platéia com
seus dotes poéticos‐cantantes, foi influenciado fortemente pelo cordel, já estabelecido
e escrito em sextilhas, mas não publicado em folhetos. O surgimento das pequenas
gráficas transformou o cenário e o cordel tomou vida distinta, despindo‐se inclusive
das solfas musicais, a melodia sobre a qual era cantado.
Aos ciclos temáticos oferecemos uma substituição, sem querer aniquilá‐los,
tampouco bani‐los, são importantes para vislumbre da infinitude de temas. Ficam
nisso, amarrados que estão ao folclore. O nosso esquema requer o auxílio da teoria
dos gêneros literários sob a rubrica da poesia. O cordel é poesia e técnica, visto que
forma fixa. O encontro da técnica e da poesia, do engenho e da arte, fará brotar a
obra‐prima do cordel. De outra maneira, a classificação por temas cairia sem crédito se
assim o fosse nos estudos literários. A aparição do romance como forma mais
importante do gênero narrativo procedeu uma classificação não por temas, mas por
características gerais, seguindo o que foi feito por Aristóteles. Procedemos com o
cordel da mesma forma.
O nosso objetivo maior é, depois desse trabalho embrionário, conduzir os
estudos sobre o cordel norteando‐os por sua filiação ao todo poético brasileiro.
Queremos os seus autores citados lado a lado com os poetas clássicos de nossa
literatura. Não cabe mais a miopia. É injustiça, para não dizer irresponsabilidade, os
manuais de literatura brasileira não apresentarem Leandro Gomes de Barros aos
nossos estudantes de letras, além de ignorar por completo sua vasta obra. É de se
lamentar que as antologias de literatura brasileira fechem suas portas a João Martins
de Ataíde por entender que o cordel de sua lavra não é poesia e, se poesia, popular, e,
sendo popular, imprestável como modelo aos nossos jovens poetas.
Lamentamos da mesma forma as antologias de literatura de cordel. São
segregadoras, arrastando cada vez mais o cordel para o gueto, a moradia dos sem‐
teto. Mas o que se deu? A academia fechou suas portas. Apesar dos estudos realizados
dentro dos muros dos castelos acadêmicos, o cordel continuou na periferia literária.
Estudos sobre a presença do boi no cordel, a xilogravura e o cordel, os cegos e o
cordel, os desafios em cordel, o Pe. Cícero Romão e o cordel, Lampião e o cordel, a
seca do nordeste e o cordel, Carlos Magno no cordel, os abc e o cordel, as feiras e o
cordel, o uso da consoante fricativa na voz dos poetas de cordel, o rap e o cordel na
periferia do mundo, não acrescentam nada à literariedade do cordel, pelo contrário,
afastam‐na. Lançam luzes sobre outros aspectos.
É essa literariedade que iniciamos, embora timidamente, a procurar e
propagar. Dizem os biógrafos de Silvino Pirauá que ele era um poeta enciclopédico,
mestre de tantos outros, conhecedor dos antigos romances ibéricos, além de
improvisador imbatível. Sua obra atesta isso. Quem conhece a sua obra? De Francisco
das Chagas Batista pouco se conhece fora dos estudos sobre o cordel. Seu irmão
Sabino foi fundador da Padaria Espiritual no Ceará. Sobre Patativa do Assaré recai, pela
ignorância de quem o diz, o título de poeta do cordel. Poeta grandiloqüente, mas não
cordelista.
Encerramos nossa introdução com o mesmo Patativa do Assaré, a título de
ilustração, e só. Um dos maiores poetas brasileiros. Todo mundo o proclama. Raros são
os estudiosos e poetas que não o aceitem como tal. Produção vasta, poesia afinada,
verso redondo. Entre Drummond, Cabral e Patativa não há distâncias. Poesia distinta.
Poesia. Alguns de nós sonharam com Patativa na Academia Brasileira de Letras. Alguns
de nós tínhamos a certeza de que, caso se candidatasse , o vate cearense seria
festejado, com todos os outros concorrentes retirando suas candidaturas, e, eleito por
aclamação, Patativa, com seu olho cego, sua perna quebrada, subiria pelos antigos
degraus do Petit Trianon e ocuparia solenemente a cadeira vaga. Alguns de nós
sonharam. O sonho é aqui.
Uma arqueologia da Literatura de Cordel
Os brasileiros nascidos no Nordeste na década de 60 herdaram a denominação
Literatura de Cordel, dada aos folhetos em verso vendidos nas feiras, bem como
testemunharam sua consagração. Passaram, inclusive, a utilizá‐la de maneira corrente
e sem maiores preocupações históricas. O termo fincou pé no arsenal cultural,
dependurou‐se no cabedal lingüístico e consagrou‐se como verdadeiro. Não se sabe
quem o cunhou pela primeira vez, ao se referir àquele corpus literário, nem como se
deu o fato, como salienta Umberto Peregrino:
De como e quando, exatamente, a poesia popular
fixada em folhetos passou a ser chamada Literatura de
Cordel não há pistas conhecidas. Possivelmente a
expressão surgiu e vingou através dos estudiosos que
passaram a interessar‐se pelos poetas dos folhetos,
conhecedores por sua vez da produção lusa da mesma
categoria quanto ao consumo popular e à apresentação
gráfica. (PEREGRINO, 1984, pp. 18‐19)
Essa informação é ponto de confluência entre os estudiosos e poetas de cordel.
Entendem alguns que essa denominação se deu, certamente, pela maneira como era
vendido o folheto, bem como por sua apresentação física. Planta‐se a incerteza quanto
a quem, como e quando foi instituída tal comparação. Autores repetem‐na
exaustivamente. Diz Manuel Diégues Júnior
O nome de literatura de cordel vem de Portugal, e, como
todos sabem, pelo fato de serem folhetos presos por um
pequeno cordel ou barbante, em exposição nas casas em
que eram vendidos... A presença da literatura de cordel
no Nordeste tem raízes lusitanas. (DIÉGUES JÚNIOR,
1973, p. 5)
Está em Sebastião Nunes Batista:
Como sabemos, o nome “Literatura de Cordel” é
dado aos folhetos porque eles eram expostos à venda
dependurados em barbantes ou cordéis. Tal
denominação já era usada em Portugal... (BATISTA, op.
Cit., p. XXIII)
Repete Hélder Pinheiro:
A expressão “literatura de cordel” foi inicialmente
empregada pelos estudiosos da nossa cultura para
designar os folhetos vendidos nas feiras, numa
aproximação com o que acontecia em terras portuguesas.
Em Portugal, eram chamados cordéis os livros impressos
em papel barato, vendidos a preços baixos, pendurados
em barbantes. (PINHEIRO, 2001, p. 13)
Defende Joseph Maria Luyten:
Observamos que a repetição é como se todos tivessem lido a mesma cartilha,
ou mesmo lido uns aos outros e se conjurassem em torno da emenda. Com lupas mais
potentes podemos enxergar‐lhes mais a fundo e até trespassá‐los intelectualmente e
aportar em Sílvio Romero, talvez o primeiro, em 1879, a fazer a comparação e, mesmo
propagar a igualdade:
A literatura ambulante e de cordel no Brasil é a
mesma de Portugal. Os folhetos mais vulgares nos cordéis
de nossos livreiros de rua são: A História da Donzela
Teodora, A Imperatriz Porcina, A Formosa Magalona, O
Naufrágio de João de Calais, a que juntam‐se: Carlos
Magno e os Doze Pares de França, o Testamento do Galo
e da Galinha, e agora bem modernamente: as Poesias do
Pequeno Poeta João de Sant’Anna de Maria sobre a
Guerra do Paraguai.
Nas cidades principais do império ainda vêe‐se nas
portas de alguns teatros, nas estações das estradas de
ferro e noutros pontos, as livrarias de cordel.
O povo do interior ainda lê muito as obras de que
falamos; mas a decadência por este lado é patente: os
livros de cordel vão tendo menos extração depois da
grande inundação dos jornais. (ROMERO, 1977, p. 257)
Talvez não tenha ficado claro para alguns pesquisadores a qual literatura de
cordel referia‐se o pioneiro dos estudos sobre a poesia, dita, do povo. Afirmamos
convictamente que não era à Literatura de Cordel nascida no Nordeste e sobre a qual
nos debruçamos para estudar, visto que em 1879, quando o autor inicia a publicação
de A Poesia Popular no Brasil, na Revista Brasileira, ainda não se havia publicado
folhetos de cordel no Brasil. Acompanhamos o que nos diz Horácio de Almeida:
Talvez a afirmação do Dr. Curran de que havia folhetos impressos antes de
Leandro produzir os seus tenha sustentação, pois Sebastião Nunes Batista diz:
Silvino Pirauá de Lima (1848‐1913) foi o iniciador
do romance em versos, publicando a História de Zezinho
e Mariquinha e a História do Capitão do Navio. (BATISTA,
1977, p. XXIII)
Não se constata, porém, que no ano de 1879 havia folhetos de cordel
publicados no Nordeste do Brasil. Dessa maneira, Sílvio Romero não se refere aos
citados folhetos de cordel quando escreve sobre aquela “literatura ambulante e de
cordel”. Referia‐se, defendemos, às produções brasileiras parafrásticas ou não das
obras portuguesas. O que se vendia pendurado em barbante eram livros e não
folhetos de cordel. Assim, tomar o termo literatura de cordel utilizado por Romero
para nomear a produção cordelística brasileira, resulta em equívoco. Podemos
averiguar e tomar como testemunho a apuração meticulosa de Câmara Cascudo
quanto às origens do romance História da Donzela Teodora:
Chamamos de literatura de cordel às folhas soltas,
volantes ou folhetos de índole popular, ou semi‐popular,
que se vendiam pendurados de um cordel ou barbante:
peças de teatro, motes glosados, romances, novelas.
Eram numerosos nos séc. XVI e XVII e multiplicaram‐se no
seguinte. (GUERREIRO, 1984, p. 73)
Ainda para elucidar o caso, recorremos a uma confissão de José de Alencar, ao
se referir a uma tiragem de O Guarani, promovida logo depois de ter concluída sua
publicação em folhetim:
Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava‐se o
exemplar a 5$000 e mais, nos belchiores que o tinha a
cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço, donde os
tirou o Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos.
A indiferença pública, senão o pretensioso desdém da
roda literária, o tinha deixado cair nas pocilgas dos
alfarrabistas. (ALENCAR, 1959, p. 150)
Esse testemunho de Alencar levou o investigador do cordel Sebastião Nunes
Batista a tirar uma conclusão errada tanto em relação à obra alencarina quanto à
Literatura de Cordel. Diz ele:
Em verdade o romance de Alencar não havia sido publicado em folhetos, mas
em folhetim, na imprensa cotidiana. E a informação correta nos é fornecida pelo
próprio autor, no mesmo texto do qual Batista lançou mão do trecho citado. Diz
Alencar:
Pois o que nos revela o autor de Iracema é tão somente que O Guarani esteve
à venda pendurado em um barbante, modo pelo qual os vendedores de livro
ambulantes dispunham parte de sua mercadoria. Ou seja, nenhuma alusão à Literatura
de Cordel, mesmo porque, como já dissemos antes, esta ainda não produzira no Brasil
um só folheto.
Quanto aos títulos vendidos apontados por Romero, A História da Donzela
Teodora, A Imperatriz Porcina, A Formosa Magalona, O Naufrágio de João de Calais e
Carlos Magno e os Doze Pares de França, todos foram adaptados para o cordel,
entretanto tal façanha se deu nos alvores do séc. XX, muito distante da época em que
o estudioso sergipano a eles se referiu. A confusão se dá pela semelhança de títulos,
mas as datas asseveram a disparidade, acendendo a dúvida sobre a legitimidade do
termo. Aliás, essas adaptações das obras portuguesas inauguraram um trabalho ainda
hoje levado a cabo por nossos cordelistas: a elaboração de obras baseadas nos
clássicos, elemento ao qual nos referiremos mais adiante. Voltando as nossas buscas,
acreditamos que o exposto nos baste para afastar a autoria do termo Literatura de
Cordel, dada aos folhetos, atribuída a Sílvio Romero. Mas quem o teria feito?
Veremos mais adiante que o termo é realmente de origem portuguesa, todavia
o produto concentra tantas diferenças que julgamo‐lho inconsistente quando utilizado
para distinguir o cordel brasileiro. Para desvendar, ou desamarrar o nó, devemos partir
em busca daquela matriz portuguesa dos nossos folhetos de cordel, pois se dissemos
ser a designação de origem lusa, onde encontrá‐la e com quem?
As antologias Literatura Popular em Verso da Casa de Rui Barbosa formam,
talvez, o primeiro movimento sistematizado de estudo e divulgação em nível nacional
do fenômeno da literatura de cordel. Nelas, estudiosos se debruçaram sobre o tema e
percorreram seus caminhos e veredas. No Tomo I encontramos o trabalho inestimável
de Manuel Diégues Júnior no qual se dá o início de nossa busca. Anota Diégues: Com
este nome (literatura de cordel) já os assinala Teófilo Braga em Portugal no séc XVII, se
não mesmo antes.(DIÉGUES JÚNIOR., op. cit, pg. 5). Indica para nós de forma definitiva
a fonte primeva na qual todos beberam: Teófilo Braga. É o pesquisador português
quem estabelece o termo literatura de cordel, para nós. É por ele que os nossos
estudiosos elaboram a comparação. Além de fundar a designação, brinda aquela
produção com valores imprescindíveis para a vida literária portuguesa. Valores que, no
Brasil, foram deixados de lado. Diz Braga:
São numerosos os livros populares do século XVI
em Portugal, mas antes de falarmos deles importa notar
que os principais escritores quinhentistas como Gil
Vicente, António Ribeiro Chiado, Sá de Miranda, Jorge
Ferreira inspiraram‐se directamente das tradições
populares; outros como Trancoso, Bandarra, Baltasar
Dias, Afonso Álvares, Gregório Afonso foram
exclusivamente os escritores do povo, os que tiveram
privilégio de lhe dirigir o sentimento, de impressioná‐lo
na sua ingenuidade. O conjunto destes livros, que se
caracterizam pela sua forma material de folha volante, ou
como lhe chamam os espanhóis pliego suelto, forma uma
literatura especial, de uma grande importância étnica e
histórica, à qual se dá em Portugal o nome pitoresco de
literatura de cordel, pelo modo como esses folhetos eram
outrora apresentados ao público dependurados em
barbante. (BRAGA, 1986, pg. 318)
O estudo de Teófilo Braga serviu de base e modelo para os estudos sobre a
literatura de cordel no Brasil, entretanto, ao mesmo tempo em que se desenvolve o
estudo e o interesse por ele, planta‐se a segregação. Pois se o pesquisador português
lhe fornece importância “étnica e histórica”, os brasileiros a afugentaram de sua
formação étnica e praticamente a anularam em seu processo de formação histórica.
Lembramos que a nossa tese quer restaurar esse lugar e ampliá‐lo, pois quer incluir aí,
além da importância étnica e histórica, a importância literária. Continuemos, porém,
com nosso caminho, seguindo a rota.
O que nos apresenta Teófilo Braga é que a base literária portuguesa, com seus
principais escritores quinhentistas, é popular, origina‐se no povo e nas mais remotas
chaves de sua memória. Introduz também a discussão sobre o que é popular e o que
não é, construindo, inclusive, dois paradigmas: o dos escritores inspirados em obra
popular e o de escritores populares. Lembramos que talvez a indicação de Sílvio
Romero como pai do termo Literatura de Cordel entre nós tenha se dado por causa do
prefácio escrito pelo estudioso português para o livro Estudos sobre poesia popular de
autoria do mesmo Romero, traduzindo suas confluências ideológicas.
Vamos abrir um parêntese para advertir que aqui não desejamos fazer
distinção entre o que se denomina literatura popular e o que se determina literatura
erudita. Para nós existirá Literatura. E tal observação açambarca, notadamente, a
poesia. Não existirá, pois, para nós, poesia popular, a cuja abrangência reservou‐se
vincular a Literatura de Cordel. Essa distinção, segundo percebemos reside na forma
preconceituosa e excludente com que as elites intelectuais sempre trataram as
produções que não saíssem de suas lides ou que não seguissem os seus ditames,
notadamente as regras do seu Cânone. Popular seria aquela poesia produzida pelo
povo, os não letrados, os trabalhadores rurais, os habitantes dos guetos. Erudita seria
aquela produzida pela elite intelectual, freqüentadora da escola e detentora do poder
econômico. Essa distinção construída e administrada em nossos bancos escolares não
encontrará eco em nosso trabalho. Dizemos isso seguindo o pensamento de Joseph
Luyten:
Em todas as sociedades, porém, temos sempre
elementos dominadores e dominados, elite e povo,
nobres e plebeus. Como conseqüência, uma visão
frequentemente diferente a respeito das mesmas coisas.
(LUYTEN, op. cit., pg. 8)
Mais ainda nos alinhamos com as palavras de Viegas Guerreiro que não
podíamos deixar de citar:
Isso que diz Guerreiro passa com maior peso e extratificação às artes,
especialmente à Literatura. Mas para nós, acreditando que a poesia não seja
propriedade de ninguém, acontecendo em lugares os mais surpreendentes, vale a não
classificação.
É importante verificarmos que na sala de aula temos estudado poetas
nordestinos os mais diversos: Manuel Bandeira, Gregório de Mattos, João Cabral de
Melo Neto, Augusto dos Anjos. São os formadores de nossa veia culta, esmiuçados até
seus mais insignificantes detalhes. A contribuição desses poetas é imensa e oferta ao
Brasil sua face literária mais importante. São os nossos autores clássicos. Esses estão
de um lado, habitam os livros didáticos, as antologias literárias e as bienais de
literatura, os documentários e os mais acalorados debates, todavia ao sofrer
investigação mais detida ver‐se‐á neles traços marcantes do que se chama,
preconceituosamente, de literatura popular. E alguns mesmo o confessam. Veja‐se o
caso de Gregório de Mattos, camaleão cuja lira subverteu o séc. XVII baiano. De
formação erudita, estudante de Coimbra, contamina‐se com a poesia do “povo” e
extrai da mestiçagem, do hibridismo, uma pena paradoxal. Ao mesmo tempo em que
escreve:
Na confusão do mais horrendo dia,
Painel da noite em tempestade brava.
O fogo com o ar se embaraçava,
Da terra, e ar o ser se confundia.
Bramava o mar, o vento embravecia,
A noite em dia enfim se equivocava,
E com estrondo horrível, que assombrava,
A terra se abalava, e estremecia.
(MATTOS, s.d., vol. V, pg. 1087)
Também escreve:
Mandou‐me o filho da pu‐
Um peru cego, e doente,
Cuidando, que no presente,
Mandava todo Peru:
Alimpei com ele o cu,
E o botei na onda grata,
Mas é tal o patarata,
e o seu louco desvario
que vendo o peru no rio,
diz que é o Rio da Prata.
(MATTOS, s.d., vol. VI, pg. 1363)
Mais próximo de nós, no tempo, está Augusto dos Anjos, poeta paraibano tão
complexo cuja obra não se encaixa nem aqui nem acolá e os críticos e historiadores da
literatura ainda não sabem enquadrá‐lo. Foi, entretanto, na boca do povo que seus
sonetos tomaram vida e se perpetuaram. Versos herméticos e científicos, estranhos ao
linguajar coloquial, mesmo assim levas e levas de declamadores lhe decoraram a obra
e a recitavam em noitadas de bebida e saraus estudantis. O Eu, seu único e sempre
reeditado livro e um dos maiores êxitos editoriais da poesia “erudita” brasileira graças
à benevolência do “povo”. Dizia, como se predissesse o hoje:
Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia
Somente na metrópole vazia
Minha cabeça autônoma pensava.
Versos decassílabos cujo ritmo e rimas furtaram sanidade a muitos alunos de
letras como nós e herdaram luz a muitos olhares envoltos na emoção do poema.
No que concerne a João Cabral, com seu Morte e Vida Severina vem celebrar
de vez a poética abraçada pelos poetas do povo, em sua marcação setessilábica, em
sua rima e em seus motivos, anunciadas na voz do Severino Retirante:
O meu nome é Severino
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
(NETO, 1997, pg. 145)
Os exemplos, nordestinos, por enquanto, se multiplicam e Marcus Accioly, o
poeta pernambucano, apresenta em Guriatã, um cordel para menino, ganhador do 1º
Lugar no Prêmio Fernando Chinaglia/1979, sua pena inspirada no gosto “popular”:
Ó, Musa, canta um destino
Para a viola e o cordel:
Era uma vez um menino
Que rodava o carrossel
De sua vida sem tino,
Com muito mel, pouco fel.
(ACCIOLY, 1988, pg. 11)
Este nosso testamento serve‐nos para constatar o livre trânsito entre o erudito
e o popular, denominações completamente desprovidas de sentido no que diz respeito
aos estudos e à produção literária, mesmo assim ainda fortificada e fomentada em
nossas academias, bem como no seio de grupos de poetas das novas gerações, basta
observar os exemplos de eventos literários recentes, simpósios, congressos e feiras
literárias, nos quais os poetas “populares” são alijados de toda participação e que,
quando participam, há sempre o curral da apartação, como num zoológico.
Achamos importante trazer essas reflexões para que quem nos leia tome conta
de que caminhando em estrada paralela, vezes em veredas, estradas vicinais, ao som
do orvalho nos capins, aos pingos de canto de algum pássaro bravio, vão outros
poetas, conhecidos na sombra, mas vivos nas ruas, nos cafés, no trabalho. São os
poetas chamados de “populares”. Muitos, esquecidos da escola, povoam o folclore, o
exotismo e o pitoresco.
Os autores da Literatura de Cordel formam desse lado, do lado chamado
popular. Formam desse lado não porque queiram, tão somente porque lhes foi
reservado esse lugar. Reservado, é claro, por quem está do outro lado, com poucas
exceções. Os primeiros pesquisadores do cordel, e mesmo os contemporâneos,
sempre se agarraram a essa divisão. Em todas as tentativas de conceituação ou
definição de literatura de cordel ela está presente. As ouvimos até dos próprios
poetas, tão entranhada está a distinção. E muitos se sentem orgulhosos em assumir a
designação. Salientamos que não é o termo a nos incomodar, tão somente sua carga
ideológica. Popular não porque vem do povo. Popular porque sem atributos, sejam
estéticos, literários, materiais. Todo o produto literário é popular, porque vem de um
povo. O pensamento das elites apregoa, de forma acentuada, que dentro de um povo
há os que são mais povo do que outros. Em países como o Brasil cuja história e política
estão baseadas no conceito de classes sociais, ser do povo é ser das classes mais
baixas, quanto mais baixa, mais povo. E o popular é o sem valor. Para nós, quando se
colocou o cordel dentro dessa vestimenta de poesia popular, inaugurou‐se a separação
pois na busca por uma definição do que seja a literatura de cordel nos deparamos
sempre com essa marca. Não a marca do povo, mas o famigerado epíteto “popular”
usado em sua forma mais grotesca e pejorativa, pois seus autores são analfabetos ou
semi‐analfabetos e sua ousadia em escrever transforma‐se em crime, pois
Massa analfabeta e sem “cultura”, mergulhada nas
actividades práticas da vida, que lhe não deixam tempo para
reflectir, que arte há‐de produzir senão uma arte “sem arte”,
irregular tosca, grosseira? Não a tem julgado de outro modo
a aristocracia de poetas e críticos, da Idade Média aos
nossos dias, ainda que com algumas excepções não de todo
imunes ao tradicional desamor. (GUERREIRO, idem, pg.25)
Vamos adentrar um pouco mais em nossa reflexão, citando mais uma vez
Veríssimo de Melo:
Um dos campos de estudos literários e folclóricos
mais fascinantes e férteis na atualidade, sem dúvida, é
aquele que se insere na nossa literatura de cordel. Uma
especialidade dentro do panorama da cultura popular
brasileira, que vem desafiando e mobilizando a argúcia e
compreensão de notáveis pesquisadores, tanto nacionais
como estrangeiros, que se aproximaram dessa riquíssima
fonte de nosso folclore. (MELO, 1982, pg. 7)
Para corroborar o que viemos escrevendo, o texto de Veríssimo de Melo é uma
boa prova. Analisando o seu pensamento: a literatura de cordel é um campo de
estudo, não resta dúvida. Mas será estudado em seu aspecto literário ou só folclórico?
Ora, se é literário, então porque não é estudado e reconhecido como tal por nossas
elites literárias? Porque não aporta no todo literário nacional? Se tem autoria
identificada, por que então folclórica? No mesmo texto, mais adiante, aquele autor
dirá que:
Num ciclo de estudos sobre literatura de cordel,
realizado em 1976, em Fortaleza, sob o patrocínio da
Universidade Federal do Ceará, indagamos ao prof.
Raymond Cantel, da Sorbonne, grande estudioso do
assunto, qual seria a definição mais compacta que se
poderia dar ao cordel. Seria apenas — perguntamos —
poesia narrativa, impressa? Imediatamente, ele
completou: Popular. (MELO, op. cit., pg. 13)
O que queremos é tomar um caminho menos dividido e menos divisor, mais
aglutinante, somatório, porque na prática a divisão inexiste por haver livre trânsito de
uma para outra, ambas se contaminando. E a prova está nas adaptações para o cordel
dos grandes clássicos da literatura universal e na apropriação do cordel por autores
ditos eruditos. Esse fenômeno, o diálogo entre as duas partes, já nos é apontado pelo
já citado M. Viegas Guerreiro, em Portugal:
Se literatura popular é, como se disse, a que corre
entre o povo, toda peça literária que por ele passe, com
muita ou pouca demora, recente ou antiga, lhe pertence:
a anônima e a que tem nome, transmitida oralmente ou
por escrito. Não carece, repitamos, do selo do tempo, da
chancela tradicional, mas de que tenha sido ou seja
autêntica, viva, funcional. (GUERREIRO, 1983, p. 8)
Averiguemos um pouco mais partindo para fatos ilustrativos em nossas letras,
alguns já trazidos à observação em nossa dissertação de mestrado. O primeiro fato
está nela relatado e refere‐se a um canto indígena brasileiro apresentado por
Montaigne em seu primeiro livro dos Ensaios, o ensaio 31, denominado Dos canibais.
É este o canto:
Serpente, pára; pára, serpente, a fim de que minha irmã
copie as cores com que te enfeitas; a fim de que eu faça
um colar para dar à minha amante; que tua beleza e tua
elegância sejam sempre preferidas entre as demais
serpentes. (MONTAIGNE, 1980, p. 105)
As descrições de Jean de Lery são as mais fiéis quanto a esses cantos e sua ação
sobre os ouvintes e participantes:
Duraram as cerimônias perto de duas horas; durante
esse tempo meio milher de homens não cessou de dançar e
cantar com tanta melodia que só quem ouviu acreditará.
A impressão que me causaram os harmoniosos
accordes daquelle côro, e sobretudo o estribilho repetido a
cada copla, Heu, heau, heura, heuraura, heur, heura, ouêh, é
coisa que não esquecerei nunca, e inda agora, se a recordo,
sinto palpitar‐me o coração copmo se tudo estivesse
ouvindo. (LERY, 1926, pg. 178)
Há bibliografia tratando de indígenas autóctones brasileiros que foram à corte
e à Europa. Montaigne narra o encontro que teve com alguns destes e reproduz a
canção citada acima. Em nossa dissertação, diante desse cântico, reproduzíamos um
poema de Waly Salomão, depois musicado e gravado por Caetano Veloso em seu disco
Noites do Norte:
Cobra coral
Pára de ondular, agora, cobra coral:
a fim de que eu copie as cores com que te adornas,
a fim de que eu faça um colar para dar à minha amada,
a fim de que tua beleza
teu langor
tua elegância
reinem sobre as cobras não corais.
(SALOMÃO, 2000, p. 59)
O século XVII marca a fixação definitiva do boi no território
brasileiro, após um movimento de penetração e expansão
que vinha da época do descobrimento. Instalado em
princípio na Bahia, Pernambuco e São Vicente, espalhou‐se o
boi pela região norte, centro e sul, constituindo‐se em fator
de reconhecimento e posse efetiva da terra e acelerando o
povoamento de extensas áreas na direção do caminho de
penetração. (NASCIMENTO, 1973, pg. 167)
Diz um pouco mais adiante:
A fazenda de gado passa a constituir o centro da atividade e
poder no período colonial, gerando uma civilização peculiar
— a civilização do couro —, um tipo especial de população
— o vaqueiro — e um elemento mítico — o barbatão —, boi
bravio, rebelde ao domínio do vaqueiro, arredio do curral,
famoso pelas estrepolias e finalmente lendário.
(NASCIMENTO, idem, idem)
Apesar de se terem escrito várias histórias em cordel sobre o temível touro, o
grande responsável por imortalizar as histórias do boi em cordel foi Leandro Gomes de
Barros. Encontramos sua versão da história versada em 1912, O boi misterioso, que,
assim como o próprio barbatão, também virou lenda. O fato é que o boi de Leandro é
apresentado assim:
Leitor, vou narrar um fato
De um boi da antiguidade
Como não se viu mais outro
Até a atualidade:
Aparecendo hoje um desses,
Será grande novidade.
Durou vinte e quatro anos
Nunca ninguém o pegou
Vaqueiro que tinha fama
Foi atrás dele e chocou
Cavalo bom e bonito
Foi lá porém estancou.
(BARROS, 2002, pg. 46)
Os atributos do boi fizeram‐no ser encantado. O certo é que em 1937 aparece
O boi aruá, de Luís Jardim, ganhador do 1º Prêmio no Concurso de Literatura Infantil
do Ministério da Educação desse ano. Se escutou a história ou se leu a história de
Leandro é fato não notificável. Ficamos com a segunda hipótese pelo fato do autor ser
pernambucano e ter se estabelecido no Recife em 1918, ano da morte de Leandro.
Influenciado por Joaquim Cardozo, amigo de Gilberto Freyre, é bem provável que com
o livro de cordel nas mãos tenha tido a vontade e provocado a ação de vertê‐la para a
prosa infantil, construindo um caminho inverso do qual o cordel se utilizou ao
transformar a prosa em poesia. O boi de Luiz Jardim é assim:
Aí disse que quando foi um dia, bem de tardezinha,
apareceu lá no fim da fazenda dele esse boi aruá. Mas era
um boi tão grande que todo mundo ficou espantado.
Os cachorros partiram em cima do bicho, e só se viu
foi aquele poeirão como de ventania quando passa.
(JARDIM, 1978, pg. 9)
Este nosso capítulo quer elucidar o termo Literatura de Cordel e algumas de
suas implicações. Entramos no consenso de sua ascendência portuguesa. O autor
referência para nós é Teófilo Braga. É ele a quem o estudioso recorre todas as vezes
em que busca uma explicação. Além de querer encontrar uma origem para o termo,
queremos também apontar a sua impropriedade e definir o produto a que ele se
refere no Brasil. Já vimos que a literatura de cordel a que se refere Sílvio Romero é
aquela mesma de Portugal e não aos folhetos nordestinos. E, para aqueles que teimam
em igualar a literatura de cordel nordestina à literatura de cordel portuguesa partimos
para os esclarecimentos.
É M. Viegas Guerreiro quem nos diz qual o conteúdo das folhas volantes:
Ainda na busca por revelar peculiaridades da literatura de cordel encontramos
a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, uma entidade que congrega, como não
poderia deixar de ser, poetas cordelistas, aqueles que produzem a conhecida
Literatura de Cordel. Situada no Rio de Janeiro, serve como difusora do cordel e por ele
se diz lutar, com todas as forças. Tem produzido e publicado cordéis e vem tentando
reunir a nata do cordel brasileiro. Seu presidente é Gonçalo Ferreira da Silva, cordelista
conhecido e com boa aceitação no seio da comunidade estudiosa do cordel. Gonçalo é
autor de um sem número de títulos de cordel, bem como de um volume didático sobre
a mesma intitulado Vertentes e Evolução da Literatura de Cordel. Muito solicitado
para proferir palestras sobre o tema, depõe no preâmbulo do citado opúsculo:
É certo que um dos temas utilizados pelos cordelistas seja o desafio, a peleja, a
descrição de um embate imaginário entre dois grandes cantadores. Nesse caso, sendo
uma descrição, não será difícil observar que o cordelista abandonará as sextilhas
características do cordel e, dando voz e vez aos personagens, deixe‐os cantarem suas
moirões, martelos, décimas, galopes à beira‐mar, modalidades das cantorias entre os
cantadores. Esse fato, a concepção de pelejas no cordel, fortaleceu a idéia na qual se
coloca na mesma panela o cordel e o repente. Alguém poderá perguntar se essas
pelejas cantadas em cordel aconteceram ou não. Respondemos convictamente: são
todas fictícias. Os cantadores podem até ser contemporâneos e ter realmente entrado
no embate poético, mas são poetas lendários e os gravadores ainda não haviam sido
inventados e nem se encontravam esses espécimes eletrônicos pelo interior do
nordeste. Dessa forma a peleja entre Inácio da Catingueira e Romano da Mãe d’Água
ocorrido no século XIX é fruto da lenda, embora os dois tenham realmente cantado
juntos. Do mesmo modo o Cego Aderaldo e Zé Pretinho do Tucum talvez nunca
tenham se encontrado, como Zé Ramalho nunca cantou com Zé Limeira. Bem salienta
Manuel Diégues Júnior:
Por que o desafio? A nosso ver porque o desafio constitui
produção de consumo sempre copioso. O povo, antes de ter
os folhetos, tinha a poesia oral dos cantadores repentistas,
na qual as pelejas monopolizavam o máximo de interesse.
Os poetas de cordel, sabedores disso, nunca deixaram de
produzir folhetos portadores de pelejas fictícias, em que um
autor escreve por si e pelo opositor. Ataíde entrou no ramo
com um lance de pura audácia, pois lançou um folheto em
que falsamente se duelava com Leandro. Iniciativa, portanto
pra valer tanto no plano comercial como em termos de
promoção poética para Ataíde. (PEREGRINO, 1984, pg. 129)
Faço ver aos leitores uns livros que vendem com o
título de Discussão de Leandro Gomes com João Ataíde, é
falso, pois nunca vi esse Ataíde. (BARROS, 1980, pg. 88)
Vale salientar que dentro do rol das pelejas foram arrolados três tipos de
entreveros poéticos diversos dos desafios: o debate, a discussão e o encontro.
Diferentemente dos desafios essas três categorias não querem imitar o ambiente da
cantoria, o embate entre dois cantadores, mas uma disputa no conhecimento ou na
defesa de um posicionamento intelectual. Os folhetos são muito claros em seus títulos,
porém alguns estudiosos por desconhecerem esses aspectos acabam por engendrar
todos na mesma nomenclatura. O título citado de João Martins de Ataíde é sucinto em
seu título Discussão de João Ataíde com Leandro Gomes e não “peleja”, pois não se
trata de cantoria. Geralmente a discussão e o debate se dá numa forma poética
apenas, sem se desdobrar em outras modalidades como na peleja onde vários
elementos da cantoria são desfiados. Sejam exemplos de debate como dirão os
próprios títulos O grande debate de Lampião com São Pedro, de José Pacheco, em
décimas, onde o narrador apresenta do cangaceiro no portão do céu e a recepção que
lhe dá São Pedro para iniciar a contenda:
Abriu na frente o portão
Ficou na trave escorado
Branco da cor de um finado
Quando avistou Lampião
Mas com a trave na mão
Não temeu de lhe falar
E disse: — Aqui não se dar
Aposento a gente mal
Se não quer entrar no pau
Acho bom se retirar
Lampião lhe respondeu:
— Não venha com seu insulto
Você é um santo bruto
Que ofensa lhe fiz eu?
E mesmo o céu não é seu
Você também é mandado
Portanto esteja avisado
Se não deixar eu entrar
Nós vamos experimentar
Quem é que tem bom guardado.
(PACHECO, 1982, p. 460)
E daí por diante segue‐se todo o desempenho de perguntas e respostas,
pilhérias e maldições até as vias de fato. Um exemplo de discussão é Discussão de
João Formiga com Francisco Parafuso, de Severino Borges da Silva. Advertindo que,
como o próprio narrador salienta, essa discussão foi cantada e desenvolvida a partir de
dois motes: um defendendo Nem bebo, nem fumo mais e o outro Bebo e fumo até
morrer:
— Porém eu vou dar um tema
Com estilos naturais
Para Formiga dizer
Com bases fundamentais
Sem errar nem dar um tombo
Nem bebo, nem fumo mais
E Parafuso responde
Para se ouvir e ver
Defendendo a aguardente
Durante enquanto viver
E dizer no fim do verso
Bebo e fumo até morrer. (SILVA, 1977, p. 379)
Os contendores iniciam, sendo indicados pelas iniciais dos seus nomes:
F — Meu amigo Parafuso
Agora vou lhe dizer
Deus me livre de beber
Fumar eu também não uso
De fumo eu tomei abuso
Porque nada bom não traz
Pois quando eu era rapaz
Quase o fumo me liquida
Enquando Deus me der vida
Nem bebo, nem fumo mais.
P — Você é um inocente
Fumar é uma beleza
O fumo tira a tristeza
Fica a pessoa contente;
O suco da aguardente
Ao homem dá bom prazer
Portanto posso dizer
Com pensamento profundo
Enquanto eu viver no mundo
Bebo e fumo até morrer.
(SILVA, op. cit., p. 379)
Aí o dono da casa
Disse: está muito boa a porfia
Nem um nem outro perdeu
Vou repartir a quantia
Porém vocês cantem mais
Até amanhecer o dia.
(SILVA op. cit, p 381)
Usaremos como exemplo de encontro o folheto O encontro de Leandro Gomes
com Chagas Batista, de Francisco das Chagas Batista, escrito em décimas. Começo a
citação a partir da observação de Leandro, em estrofe anterior, de que o Chagas
raspara o bigode. Leandro pergunta quem produzira tamanha desfiguração:
Respondeu Chagas: ninguém
Raspei porque hoje é moda
Eu que sou homam da roda
Por isso raspei também,
Só não raspa quem não tem
A moda é de quem quiser
Ali Leandro lhe disse:
Colega é uma tolice
Homem sem barba é mulher.
O Chagas — severamente
Lhe disse você me atrasa
Com pouco o dono da casa
Não nos dá mais aguardente
Disse Leandro, já quente,
Dê ou não dê, se quiser
Venha com o que vier
É gosto de cada um
Dia de fome é jejum
Homem sem barba é mulher.
(BATISTA, 1964, p. 279)
Logo não se pode fazer a vinculação da oral à escrita. Mesmo porque a sextilha,
essa sim, é ibérica. O mesmo Cascudo nos dá a origem:
A sextilha setissilábica na fórmula ABCBDB, conhecida e
vitoriosa no sertão é tão antiga quanto a quadra que
Carolina Michaelis de Vasconcelos dizia popularíssima em
todo o século XVI no qual predominara. No romance do Rei
Artur, da Távola Redonda, que Jorge Ferreira de Vasconcelos
publicou em 1567 (“Memorial das proezas da Segunda
Távola Redonda”) ao lado das quadras há sextilha igual às
dos nossos cantadores:
Como amigo que as más manhas
De Bretanha conheceste,
Mas d’algum tempo ainda Artur,
Bom Rei que desmereceste,
Bretanha virá a vingar‐se
Da traição que lhe fizeste. (CASCUDO, op.
cit., p.23)
Pela observação do nosso grande estudioso tira‐se a conclusão de que o que
aconteceu foi justamente o contrário: a sextilha escrita é que influenciou a sextilha
oral dos cantadores. Esta estrofe do cantador Dimas Batista abona o que dizemos, com
clareza:
Basta um cabra não ter disposição
Pra viver do serviço de alugado,
Pega numa viola e bota ao lado,
Compra logo o Romance do Pavão,
A peleja do diabo e Riachão,
E a História de Pedro Malasarte,
Sai no mundo a gabar‐se em toda parte
E a berrar por vintém em mei da feira,
Parasitas assim desta maneira
É que tem relaxado a minha arte.
(PROENÇA, 1964, pg. 4)
O alerta de Dimas Batista deixa‐nos convictos de que o poeta repentista, o
cantador, se sente superior ao poeta de bancada, como eram chamados os poetas
cordelistas, e desgraça das desgraças era encontrar‐se um repentista que decorara
versos de outrem para se gabar. Sabemos que o Romance do Pavão a que se refere o
poeta é o Romance do Pavão Misterioso, clássica história de cordel cuja autoria foi
motivo de controvérsias e hoje, a partir do depoimento do poeta Manoel d’Almeida
Filho, se atribui a José Camelo de Melo Resende, que em suas reedições passa a
esclarecer:
Quem quiser ficar ciente
Da história do pavão
Leia agora este romance
E preste bem atenção.
Que verá que esta história
é minha e de outro não.
Há muitos anos versei
Esta história, e muitos dias,
Fiz uso dela sozinho
Em diversas cantorias,
Depois dei a cópia dela
Ao Cantor Romano Elias.
O cantor Romano Elias
Mostrou‐a a um camarada,
— A João Melquíades Ferreira,
E ele fez‐me a cilada
De publicá‐la, porém,
Está toda adulterada.
E como muitas pessoas
Enganadas tem comprado
A diversos vendelhões
O romance plagiado
Resolvi levá‐la ao prelo
Para causar mais agrado.
Portanto eu vou começar
A história verdadeira
Na estrofe imediata
E no fim ninguém não queira
Dizer que ela é produção
De João Melquíades Ferreira.
Na Turquia, a muitos anos,
Um viúvo capitalista
morreu, deixando dois filhos:
Batista e Evangelista
Todos os dois eram João,
Sendo o mais velho o Batista.
(BATISTA, 1973, pp. 365‐366)
Vê‐se tanto no corpo do folheto de João Camelo, como na estrofe de Dimas, que
era comum o recitar e cantar histórias de cordel nas cantorias, mais uma vez
abalizando o que viemos dizendo que o cordel influenciou o repente. Os outros cordéis
citados por Dimas são A peleja do Diabo e Riachão, de Leandro Gomes de Barros, e A
vida de Pedro Malazartes, de Antonio Teodoro dos Santos.
O clássico livro de Leonardo Mota, Cantadores, traz várias evidências dessa
prática (o cordel povoando o mundo dos cantadores) ao apresentar o cantador Jacó
Passarinho:
Apreciador de trocadilhos, Jacó Passarinho refere um
sem número de torneios em que os mesmos figuram. A
respeito de frases de pronunciação embaraçosa, ele fala
com entusiasmo e diz que nelas é que se conhece quem tem
sustança. A propósito, citou‐me esta parte de um desafio do
cantador piauiense Zé Pretinho com o Cego Aderaldo:
— Cego agora eu vou mudar
Pra uma que mete medo!
Nunca achei um cantador
Que desmanchasse esse enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dado, é um dia, é um dedo.
— Zé Pretinho, o teu enredo
Parece mais zombaria...
Tu hoje cega de raiva
Eo diabo será teu guia:
E´um dia, é um dado, é um dedo,
É um dedo, é um dado, é um dia.
(MOTA, 1987, pg. 63)
Quando o Mota escreve o capítulo sobre Azulão, diz:
Mais adiante Mota adverte:
E, logo, contradizendo‐se, o cantador negro indagava se
eu conhecia certos desafios e mos recitava, anulando a
gabolice de se não socorrer da inspiração alheia. Deixo aqui
um trecho da agitada peleja entre Inácio da Catingueira com
José Patrício:
— Me batizei por Inaço,
Da Siqueira Patriota,
Dou tapas que aléja venta
Dou murros que descangota.
— Me batizei por Inaço,
Por alcunha Catinguêra,
Me criei no Piancó,
Mas aprendi no Teixêra.
(MOTA, 1987, pg. 78)
Os trechos citados nos servem para duas coisas: provar que o cordel influenciou
as cantorias, com os versos decorados, e, no último caso, que as quadras foram as
principais formas poéticas nos primórdios das cantorias, cedendo, com o tempo, seu
lugar às sextilhas. Mota citará ainda versos de pelejas consagradas em cordel ouvidas
do cantador Azulão, o mesmo que dissera não decorar obras alheias.
Além do mais há um motivo especial, verificável por qualquer pessoa, que
marca definitivamente as sextilhas oral, dos cantadores, e escrita, do cordel: a deixa,
ou seja, há a obrigação formal de o cantador iniciar a sua sextilha com a última rima do
predecessor, elemento que não se encontra no cordel, mesmo nas descrições das
pelejas. Exemplifiquemos com a transcrição de um trecho de cantoria entre o Cego
Aderaldo e Domingos Fonseca:
Cego Aderaldo:
Ó doce luz dos meus olhos
Coração e a lembrança
Tudo quanto eu percuro
Eu vejo perseverança
Meu peito vive cansado
Porém não sente a mudança.
Domingos Fonseca:
Eu desde muito criança
Que procurei me manter
Vivendo da cantora
Para vestir e comer;
Já que ser grande poeta
Lutei, mas não pude ser
Cego Aderaldo:
Jesus a mim quis fazer
Neste caso que se deu:
Eu perder a minha vista
Meus olhos escureceu
Mas estou cantando as virtudes
Que a natureza me deu.
Domingos:
Jesus me favoreceu
Com a pequena viola
Me deu a inteligência
Que ao verso desenrola
Eu acho que ele deu‐me
Uma preciosa esmola.
Observe‐se que na alternância dos cantadores há o cumprimento irrestrito da
deixa. Da primeira para a segunda estrofe entre mudança e criança, da segunda para a
terceira entre ser e fazer e da terceira para a quarta entre deu e favoreceu. Esse
artifício, a deixa, foi introduzido para que o público e os contendores garantissem que
realmente a cantoria estava se desenrolando de improviso sem o recurso do verso
decorado. Cantar o verso decorado é desfeita imperdoável na cantoria improvisada.
Essa observação estende‐se às outras modalidades da cantoria. Como dizíamos, são
raros os cordelistas, que ao escreverem uma peleja observam o cumprimento da deixa,
não por desconhecerem, mas para dar maior dinamismo ao folheto pois é muito mais
importante o descrever os dons poéticos e o conhecimento intelectual, bem como a
dramaticidade e criatividade dos personagens retratados do que prender‐se ao
formalismo da peleja oral. Pois bem, essa característica é fundamental na distinção
entre a sextilha do cordel e a sextilha da cantoria para colocar um ponto final nessa
discussão sobre a herança oral atribuída à Literatura de Cordel.
Quanto à herança ibérica, de certa forma resvalaremos ainda na oralidade por
acreditarmos que tal herança se nutre notadamente da tradição escrita. O cordel
português, e isso será mostrado mais adiante, não era ou não foi o resultado escrito do
universo dos trovadores. Pelo contrário, foi a forma mais fácil de propagar obras de
escritores populares na época. Assim é que se encontram peças de teatro, romances e
novelas. Não encontramos vinculação entre trovadores, segreis e jograis com esse tipo
de literatura. Existirá ligação, isso sim, entre aqueles três tipos de poetas e os nossos
tipos de poetas cantadores. Citemos Mendes dos Remédios como arrimo de nossa
afirmação:
A própria citação de Cascudo coloca por terra o que diz Veríssimo. Apenas
afirma que os romances são um ponto alto, não são o ponto fundamental. Não são o
ponto fundador, original. Os tais romances foram vertidos para as sextilhas, deixando
claro que, quando isso aconteceu, o cordel já existia, já havia nascido. E isso será
exposto com maior ênfase no decorrer de nosso trabalho. Precisa‐se pensar que a
literatura de cordel não o reproduz (o romance), mas o transforma, como veremos
mais adiante. A coerência de Cascudo é reproduzida em Cinco Livros do Povo, ao
tratar da citada poesia tradicional sertaneja vinculada à literatura tradicional:
Essa foi a matriz do motivo, entretanto a forma é outra, bem distanciada. Essas
histórias sofreram as adaptações dos formadores da literatura de cordel, mas não são
o todo, como veremos. O que nos interessa é salientar que a origem e formação
histórica da literatura de cordel brasileira não tem qualquer ligação, exceto no nome,
com a literatura de cordel portuguesa, salvo em alguns de seus motivos. A ligação é
com a literatura narrativa tradicional que vai muito além das folhas soltas. Logo, a
filiação ibérica cai por terra, bem como sua origem na oralidade dos cantadores.
Já o que diz Manuel Diégues Júnior é:
Os inícios da literatura de cordel estão ligados à divulgação
de histórias tradicionais, narrativas de velhas épocas, que a
memória popular foi conservando e transmitindo; são os
chamados romances ou novelas de cavalaria, de amor, de
narrativas de guerras ou viagens ou conquistas marítimas.
Mas ao mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, também
começam a aparecer, no mesmo tipo de poesia e de
apresentação, a descrição de fatos recentes, de
acontecimentos sociais que prendiam a atenção da
população. (DIÉGUES JÚNIOR, op. cit., pg. 5)
Diégues Júnior não fala em início fala em inícios pois sabe da dificuldade que é
estabelecer um ponto de partida para a questão. E diz mais: outras histórias, outros
motivos também foram se fazendo revelar. Essa observação nossa é primordial para
entendermos que a literatura de cordel não é definida pelo tema versado, ou seja, não
é o ciclo temático quem determina o cordel. Quando nos dispusemos a olhar o cordel
como produção literária, como literatura, o tema restringe‐se a ser apenas um
elemento inspirador, dessa forma não determinará, tampouco definirá, o produto.
O último equívoco diz respeito à datação, quando diz que essas influências se
deram a partir do séc. XVII. E o óbvio é que, no Brasil, nem prelo havia nesse século e
toda e qualquer obra publicada teria, obrigatoriamente, de ir à corte. Como já
dissemos, esse tipo de contra‐informação terminou por minar os estudos sobre o
cordel e difundir o erro histórico.
Adiantaremos outra citação de Veríssimo de Melo para iniciar nossa reflexão.
No mesmo texto de onde retiramos aquela citação sobre a origem da literatura de
cordel, diz ele em certa altura que a mais sucinta definição de literatura de cordel é
“Poesia narrativa, popular, impressa.”(MELO, op. cit, pg. 13). Acrescenta
enfaticamente que “qualquer outra manifestação semelhante ao cordel, cujo conteúdo
divirja desse trinômio, deve ser apreciada com reserva. Não é poesia de cordel
autêntica.”(MELO, idem).
Sabemos que qualquer definição matemática em literatura deve ser apreciada,
aqui sim, com reserva. O nosso estudo quer justamente rever esses conceitos,
oferecendo saídas atuais para a classificação da literatura de cordel. Escrevíamos mais
atrás que um dos temas do cordel é a reprodução de um ambiente das cantorias
nordestinas chamado peleja. Essa categoria, ou modalidade da cantoria, como
mostramos, não é narrativa, é descritiva. E forma uma boa parcela de toda a produção
cordelística. Sabe‐se ser uma das características da narrativa, em literatura, a presença
de um ou mais narradores. Nessa modalidade, a peleja, o narrador aparece não para
narrar, mas para apresentar os debatedores e oferecer‐lhes voz. É uma marca do
drama, o gênero literário, no qual os personagens falam por si e eles mesmos traçam a
trama. Logo, não é narrativa, mas não deixa de ser cordel. Isso já está estabelecido
historicamente. Vamos averiguar com os próprios cordéis. O caso da Peleja de Manoel
Riachão com o Diabo, de Leandro Gomes de Barros. Das 70 estrofes, o narrador
aparece apenas em duas no início para apresentar os cantadores e em quatro no final
para dizer como foi o fim da peleja. As outras 64 estrofes são a alternância das vozes
dos cantadores. Assim:
Riachão estava cantando
Na cidade do Açu,
Quando apareceu um negro
Da espécie de urubu
Tinha a camisa de sola
E as calças de couro cru.
Beiços grossos e virados
Como a sola de um chinelo
Um olho muito encarnado
O outro muito amarelo
Este chamou Riachão
Para cantar um duelo.
(BARROS, 2002, pg.242)
Aqui o suposto narrador sai de cena e os pelejantes entram já na contenda,
fugindo completamente ao critério narrativo. Os personagens seguem, assinalada cada
fala pela inicial, R para Riachão e N para o Negro:
R — Você diz que tem ciência,
Dê‐me uma explicação:
Se a terra faz movimento
De quem é a rotação?
Por que é que em 12 horas
Há uma transformação?
N — O Sol não é quem se move,
Este é fixo em seu lugar.
A terra está sobre eixos,
Os eixos a fazem rodar,
Que, por sua rotação,
Faz a luz do Sol faltar. (BARROS, op. cit, pg. 243)
Ao final, o mestre de cerimônia volta para finalizar o folheto:
Essa história que escrevi
Não foi por mim inventada:
Um velho daquela época
Tem ainda decorada.
Minhas aqui só as rimas —
Exceto elas, mais nada
Vê‐se que não é essencialmente narrativa. É predominantemente dramática. E
isso será verificado na maioria das pelejas. É um traço a ser estudado em nosso
segundo capítulo. Agora, peguemos um outro exemplo. Desta vez o folheto Conselhos
Paternais de José Bernardo da Silva que outra coisa não é senão uma cartilha de
aconselhamento cujo teor é predominantemente lírico, como nas estrofes:
Quanto é belo se dizer
Filho honesto de benção
Fica no lugar do pai
Cumprindo a mesma missão
Um bom filho é bom esposo
Bom amigo e bom irmão.
(SILVA, 1977, pg. 176)
...
Oh! filhos recompensai
Os vossos pais com ternura
A eles obedecei
Com calma, riso e doçura
Que na vida tu terás
A mais feliz aventura.
(SILVA, 1977, pg. 178)
Logo, a primeira característica da literatura de cordel requerida por Veríssimo
de Melo não passa à observação mais detida sobre esse corpus. Não se pode requerer
que o estudioso não teve acesso a estes dois exemplos. O seu texto é de 1982
enquanto os folhetos, ambos, são de edição de 1955.
Seguindo nossa linha de raciocínio, o que dizer de O soldado jogador, de
Leandro? Não é narrativa, embora comece com algumas sextilhas narrando, para
depois transformar‐se em um monólogo no qual o soldado Ricarte passa a explicar
cada carta de um baralho a partir da simbologia cristã. Assim:
— Por exemplo: a carta ás
Que tem um ponto somente
Faz recordar que existe
Um só Deus onipotente
Quando chamamos por ele
O encontramos presente.
— Quando eu pego num dois
Ali premedito eu
Que em duas tábuas de pedra
O Criador escreveu
Quando em sarças ardentes
A Moisés apareceu.
(BARROS, 2002, pg. 238)
E segue a explicação até o valete, terminando com o interlocutor, no caso o
comandante, surpreso com a sabedoria do soldado, flagrado jogando baralho na
igreja, durante a missa:
Disse o comandante a ele:
— Ricarte tu és passado
Teus vinte anos de praça
Foi tempo bem empregado
Vou‐te passar a sargento
E dou‐te o soldo dobrado.
(BARROS, 2002, pg. 240)
Diante da definição de Veríssimo de Melo cabe‐nos o dever de dizer que a
literatura de cordel não é essencialmente narrativa. Essa narratividade é, de certa
forma, predominante, entretanto não determina o que é ou que deixa de ser cordel.
Estariam de fora, como vimos, os folhetos de peleja, de conselhos, reflexivos,
descritivo de marcos, de debates e discussão, entre outros.
Sobre a segunda característica obrigatória do cordel para Veríssimo, a popular,
já nos posicionamos antes. Quanto à terceira, o caráter impresso dos folhetos
precisamos comentar.
A tríade narrativa/popular/impressa obrigatória na definição do que é cordel
sofrerá um revés quando da comparação com o que no Nordeste ficou sendo
conhecido como poema matuto. Gênero iniciado por Catulo da Paixão Cearense, o
poema matuto se encaixará com precisão absoluta na definição de cordel apregoada
por Veríssimo de Melo. Olhemos para o poema Vingança de cabôco, de Zé da Luz:
Seu môço. Não me crimine
Nem mi chame cangacêro,
Ante de eu lhe contá
A minha históra premêro.
O meu pai — Xico Machado,
Foi um grande caçado
E eu herdei de meu pai
A fama de atirdô!
Tem um ditado qui diz,
Qui do pai o fio herda,
Qui do pai o fio não furta.
Pois foi assim que eu fiz:
— Herdei de meu pai a fama
De sê bom atirado,
Mas porém, de arma curta.
Lá pras banda qui eu morava,
A minha fama, seu môço,
De boca im boca curria (...)
(LUZ, s. d., pg. 35)
Pelo mais leve debruçar‐se sobre o poema, além de sua irregularidade
estrófica, virá aos olhos a linguagem, a língua escrita em seu maior objetivo de
transcrever a oralidade, o coloquial. Não é o fato de analisá‐lo, mas de apenas
estabelecer diferenças entre esse produto poético e a literatura de cordel, mesmo
trazendo em sua construção as características do cordel requeridas por Veríssimo de
Melo.
O poema é uma narrativa. Conta a história de um caboclo que, sendo mestre na
mira ao atirar com “arma curta” é desafiado na noite do casamento, mesmo tendo
bebido, a cortar um ramo de flor na boca da noiva com um tiro. O desafiante é um
desafeto que amava a mesma mulher e preferia vê‐la morta e seu opositor
desqualificado. A tragédia acontece, mas
Um outro tiro se uviu,
E o mizeráve caiu
Cum um óio d’água de sangue
Pru riba do coração.
(LUZ, idem, pg. 46)
É um poema longo contando com 85 estrofes cuja quantidade de versos varia
entre um e oito. Além do mais foi originalmente publicada em livro e, para aqueles que
classificam, tem um apelo notadamente popular, todavia não é cordel. Para o bom
observador o cordel apresentará antes de mais nada a regularidade estrófica: se
sextilhas, se décimas ou, se na peleja, um misto dessas estrofes. Jamais, no cordel,
encontraremos uma estrofe com um verso apenas, nem com dois, nem com quatro,
pois a estrofe básica do cordel é a sextilha com alguma variante para a setilha. O
cordel requer rigor nesse quesito. Falávamos da característica narrativa do poema. Na
primeira estrofe o narrador já define sua essência “Antes de eu lhe contá/ a minha
históra primeiro”. Pois bem, contém a tríade defendida por Veríssimo: é narrativa, é
popular, é impressa. Não é cordel. Primeiro: pelo que já identifiquei: a irregularidade
estrófica. Segundo: pela imitação da oralidade que a escrita teima em tentar: no cordel
jamais encontraremos, salvo em alguma fala de personagem, esse artifício. E, caso
encontremos, será por ignorância do cordelista, no que diz respeito ao vernáculo.
Terceiro: a firme disposição do autor em querer diferençar sua lira da lira cordelista,
filiando‐se à escola fundada por Catulo, inclusive com poemas de semelhança cabal na
forma, na linguagem e no conteúdo. Logo, fugindo do arcabouço pensado por
Veríssimo.
Claro está que nosso objetivo não é desqualificar o gênero poema matuto. Pelo
contrário é exaltá‐lo como categoria distinta com suas próprias regras e autores e até
com maiores admiradores entre os cultos do que a poesia de cordel. O próprio Manuel
Bandeira afirma no prefácio do livro Brasil Caboclo do qual foi extraído o trecho do
poema citado:
Pelo que nos diz Bandeira, os poetas matutos aspiram maiores feitos literários
do que os cordelistas e, talvez por isso, não façam cordel, aparentando residir em si,
também, um pouco do preconceito acadêmico, mas ficamos nas suposições. E pode‐se
encontrar mesmo momentos de lirismo poderoso nesses poemas. Como a estrofe do
poema acima apresentado:
Inquanto as núve chorava
As láguima de seus chuvisco,
O truvão veio pipocava,
Os relampo faiscava
Acendendo um fogaréu,
A gente via o curísco
Cumo umas faca de fogo
Rasgando o buxo do céu!!!
(LUZ, ibidem, pg. 44)
Podemos notar outra diferença entre o cordel e o poema matuto na disposição
da rima, uma característica marcante deixada de fora por Veríssimo. Sim, porque
obrigatoriamente todas as estrofes de um folheto de cordel devem obedecer ao
esquema de rimas estabelecido já historicamente. Se sextilha, serão assim dispostas as
rimas: a b c b d b. Exemplo:
Falando de Lampião
Não temos nenhum receio,
Pois quem viveu no Nordeste
Sabe bem de onde ele veio,
Do tempo dos coronéis
Foi o produto do meio.
(ALMEIDA FILHO, s. d., pg. 3)
Se setilhas: a b c b d d b:
De todo vício do mundo
Bebida, fumo e maconha
Milhar e jogo do bicho
Preferido de quem sonha
O pior é o baralho
Faz perder ouro e trabalho
E até a própria vergonha.
(VIANA, s. d.. pg. 1)
Se décimas, a b b a a c c d d c:
Não me faço de coitado
Por qualquer coisinha à toa:
Quem goza de vista boa
Acha o cego exagerado.
Mas quando, lá pelo lado
Do Nordeste viajei,
Percebi que, mais que o gay,
O cego leva pisão!
Cabra que tem olho são
Cego chama de “meu rei”!
(ACOPIARA&MATTOSO, 2007, pg. 10)
Dispôis oiando prá carta
Tive pena, pode crê,
De não tê prindido a lê
Nas letra ali, iscrivida,
O qui dizia Maria
Prô marvardo traídô.
Tive pena, sim, Sinhô.
Mas, qui haverá de fazê
Se eu nunca prindi a lê?!
(LUZ, ibidem, pg. 125)
Ao correr da leitura nos surpreendemos com o esquema das rimas. Na sextilha
encontramos a b b c d e, o verso solitário rima com e e, no dístico, a rima
emparelhada. Para o cordel seria uma aberração, logo, nunca, mas nunca, se
encontrará tal disposição de estrofe e de rima em qualquer folheto da literatura de
cordel.
Lembremos de nossa discussão sobre a classificação de Veríssimo de Melo e
citemos agora um poeta constantemente confundido como autor de cordel: Patativa
do Assaré. É vasta a família de estudiosos que o colocam como cordelista. Nós o
retiramos justamente por causa de sua produção, que se adequa bem mais ao gênero
poema matuto que ao cordel. E o que diferencia é exatamente a linguagem. Aquela
mesma que pretende de diversas formas reproduzir a língua coloquial falada no
interior do Nordeste. Mesmo quando se utiliza das décimas elas trazem uma
disposição rímica diferente da que nós apresentamos acima, que não se verificam nem
nos autores clássicos, nem nos contemporâneos. Vejamos um exemplo que aglutina as
duas características:
Ô mamãe o Julião
Que lá no São Paulo mora
Que é seu fio e meu irmão,
Tendo certeza que agora
Também já chegou aqui
Na Fazenda Cangati
A inergia rurá,
Manda esta coisa pra gente,
O que sai desse presente
Pra mim não vale um juá
(ASSARÉ, 2004, pg. 48)
Mesmo sendo uma décima, a disposição rímica é completamente diferente,
assim: a b a b c c d e e d. Não estamos afirmando que Patativa não utilize a décima
clássica do cordel. Encontramos em alguns de seus poemas, como aqui
Eu sei que dizendo assim,
Eu não tou falando à toa,
Meu sertão tem coisa boa
E também tem coisa ruim;
Umas que fede a cupim
Ôtras que chera a melão.
De tudo eu sei a feição
Pois conheço uma por uma.
Vou aqui dizê arguma
Das coisa do meu sertão.
(ASSARÉ, 2004, pg. 70)
A estrofe tem a mesma apresentação, a mesma forma. Observemos, então, a
flutuação de linguagem para concluir que não é cordel. Veja‐se que em alguns
momentos a linguagem flui para a oralidade, como em “tou”, “ôtras”, “chera”, “dizê”,
“arguma”, e na não observância das concordâncias verbal e nominal, e em outras
ascende ao vernáculo mais culto, como na obediência ao emprego da crase em “à
toa”, e na forma verbal “Vou” que bem poderia ter sido grafada “Vô”.
É essa linguagem que marcará a diferença. Vejamos o poema Filosofia de
cabôco, de Chico Pedroza:
Quem foi nascido e criado
Dento do meio rurá
Cuma eu, num s’acostuma
Qu’essas coisa sociá
Do povo metido a rico
Que mora nas capitá.
Matuto é pa vivê livre
Cunversano cas fulô
Num é mode vivê preso
Dento de elevadô
E nem andá sentado in mesa
Di banqueti de dotô.
(PEDROSA, s. d., pg. 76)
Identifica‐se a sextilha com um rápido olhar e, na leitura, pelo ritmo, é evidente
o verso setessilábico. As rimas estão dispostas e semelhantes às do cordel, mas não é
cordel. A linguagem que quer imitar a todo custo a coloquialidade, nesse caso até
caricatural, é a marca distanciadora. No cordel esse tipo de grafia, como já adiantei,
não existirá. É contrária ao credo do cordelista. E sofre questionamentos que o
cordelista não se permite sofrer. Por exemplo: onde o matuto verdadeiro usaria o
apóstrofo para realizar graficamente as elipses s’acostuma e qu’essas?
Talvez esses exemplos nos bastem para repensar o que disse Veríssimo sobre a
poesia de cordel ser narrativa/popular/impressa, visto que a mesma tríade pode ser
empregada ao poema matuto, incluindo elementos de sua gênese, mas há outro
detalhe a ser exposto que diz respeito à impressão. Citamos a nossa dissertação de
mestrado para nos arrimar:
Os equívocos e maus olhares com que a Literatura de
Cordel foi observada por muito tempo, carecem de revisão
urgente. Se para Antonio Candido a existência de uma
“literatura propriamente dita” requer alguns denominadores
Damos um passo à frente e nos deparamos com outra tentativa de definição da
literatura de cordel. Dessa vez é Umberto Peregrino quem diz:
A Literatura de Cordel, se quisermos defini‐la, há de
ser considerada sob as seguintes características básicas:
— apresentação em folhetos típicos;
— conteúdo de garantido interesse popular;
—comercialização sob forma peculiar (mercados e feiras,
predominantemente sob pregão oral;
— baixo preço de venda (?)
(PEREGRINO, op. cit., 1984)
Os estudos do professor Peregrino contribuíram bastante para a divulgação do
cordel. Infelizmente, como outros já citados, espalhou uma certa fuligem quando trata
da definição de literatura de cordel e na apreciação de alguns cordelistas, vinculando‐
os ao universo oral dos cantadores. Fiquemos, por agora, com as características
básicas e fundamentais para a definição do cordel apresentadas por ele.
Peregrino quer que toda a literatura de cordel seja apresentada em folhetos
típicos. Esses folhetos equivalem a uma folha de papel jornal tamanho ofício dobrada
em um quarto, o que equivale a um folheto de oito páginas. A quantidade de páginas
poderia ser de oito, dezesseis, trinta e duas e sessenta e quatro páginas. Esses últimos
reservados para os romances. Foi nesse formato de sessenta e quatro páginas que
alguns clássicos da literatura européia, oriundos da península ibérica, ficaram
popularizados no Nordeste. Tudo que fuja a esse padrão, segundo Peregrino, fugiria ao
universo do cordel. Constitui‐se, entretanto, em equívoco. O material manuseado até
1984, data da publicação do livro no qual está essa observação, não levava em
consideração as publicações da Editora Prelúdio, nem os da sua sucessora a Editora
Luzeiro, ambas imprimindo os clássicos dos cordéis no formato 18cmX13cm, bem
diferente do tradicional 15,5cmX11cm (as medidas são aproximadas). Logo, o folheto
típico como característica básica é mais uma contra‐informação. Atualmente
encontramos cordéis publicados em diversos tamanho, desde o tradicional até livros
de luxo de 21cmX28cm. A Editora Luzeiro continua com seus folhetos de 18cmX13cm,
mas iniciou série com o tamanho clássico. Isso sem falar na entrada de editoras como
Hedra, Nova Alexandria, Cortez, Global e Franco Editora com formatos e números de
páginas que levantam polêmicas sobre, como dizia Veríssimo de Melo e Umberto
Peregrino talvez também o dissesse, “autenticidade”. Para nós não há o que discutir
pois cordel não é o meio pelo qual é divulgada esse tipo de poesia. O cordel é a
essência e não o invólucro, tampouco o rótulo, pois nem tudo que se diz cordel é
cordel, o que definirá outra discussão mais adiante.
A segunda característica prende‐se a um conteúdo de garantido interesse
popular, mas onde reside o interesse popular? O cordel circunstancial, aquele que
serviu de jornal para os habitantes do interior do Nordeste, trazia notícias de interesse
geral e não apenas do “povo”. A morte de Getúlio Vargas deteve um recorde de
folhetos em todo o nordeste, seguindo o exemplo de todos os jornais da época. A
chegada do homem à lua, também. Os grandes clássicos sobre a vida de Antonio
Silvino, Lampião, Padre Cícero todos foram de grande interesse e venderam muitas
cópias tanto nos sertões como nas cidades. Acidentes e assassinatos de caráter
regional também vendiam. O interesse era grande porque correspondia a uma
novidade. Essa característica, na verdade, está atrelada àquela questão discutida
acima sobre o que é popular. Claro que, aqui, o interesse popular se refere não ao
povo, mas a sua parcela mais baixa, economicamente falando, os ignorantes, iletrados
cujo intelecto se contenta com os dramas e as tragédias, vida dos artistas, fofocas
eletrônicas, guerras longínquas e desastres gerais. Como nós queremos estudar o
cordel como literatura, é pelos temas literários, independente do gênero, que o cordel
se impõe. Assim como a literatura policial, o romance de aventuras, as biografias, as
tramas de espionagem, os contos filosóficos, romance de costumes, poesia em geral,
pois bem, assim como esses gêneros fomentaram a literatura universal, também o
cordel enveredou por eles, sem qualquer interesse que não fosse o do poeta
interpretar o mundo e oferecer aos leitores a sua visão única, fosse pelo artifício da
ficção, fosse pelo poder realístico.
Um cordel como Viagem São Saruê, uma utopia no Nordeste assolado pela
seca e pelo banditismo, não se prenderá ao simples “interesse popular”. Vai muito
além, beira a denúncia, clama a justiça, pensa a ética, critica a política. Sendo o país de
São Saruê a terra da fartura e do bem‐estar, um contraste, à terra desolada do sertão,
com suas mortes por fome, sem água e infra‐estrutura básica o folheto não seria
apenas uma historieta para angariar leitores humildes do interior. Se transformaria,
tempos depois, no mais conhecido texto político do sertão, fruto da inspiração, do
engenho e da arte de seu autor Manoel Camilo dos Santos. Para compreender o
alcance desse folheto, se faz necessário conhecer o que é o sertão.
O Brasil nasce no Nordeste. No litoral. É no sertão, todavia,
que o Brasil sobrevive. É no Sertão, na seca e amaldiçoada
terra do sertão, que o Brasil se firma. Lá a vida é o
mandacaru, o juazeiro. É a pedra‐de‐fogo e os lajedos
perenes na poeira do tempo que não passa. Lá, naquelas
paragens acariciadas pela mão rude da seca, fincou‐se o pau
da bandeira e cravou‐se o tronco da cruz nas costas dos
homens. (LUCIANO, 2003, pg. 34)
Um pouco mais:
Em uma edição especial produzida pela Casa da Criança de Olinda em 1977 lê‐
se na contracapa:
É uma viagem de utopia, é uma passagem de fantasia para
as terras do futuro. Tudo que falta no Nordeste sobra no
país de São Saruê: saúde, comida, morada, justiça, alegria.
Mas no Nordeste está viva no meio do Povo uma força
maravilhosa; na verdade, a força maior que o Brasil tem: a
Poesia, que elege sua morada em toda terra onde há Fé e
Esperança. Viagem a São Saruê é um dos mais lindos poemas
da poesia brasileira. Manoel Camilo dos Santos, poeta maior
e quase desconhecido, num país que ignora seus poetas,
planejou esta viagem verdadeira para a Terra Prometida e a
oferece a seu povo.
É algo, como já dissemos, que salta para além do “interesse popular”. Basta se
fazer o cotejo entre um folheto que relata a seca na terra sertaneja e a promissão de
São Saruê para se concluir que a observação de Peregrino necessita de revisão.
Façamos um breve confronto entre Viagem a São Saruê e Os horrores do Nordeste:
Viagem a São Saruê Os horrores do Nordeste
Doutor mestre pensamento Leitores se Deus me der
Me disse um dia: — Você Um pensamento altaneiro
Camilo vá visitar Pretendo nas rudes páginas
O país São Saruê Deste livrinho grosseiro
Pois é o lugar melhor Falar com necessidade
Que neste mundo se vê Na grande calamidade
Do Nordeste brasileiro
O povo em São Saruê Os humildes camponeses
Tudo tem felicidade Que vivem da agricultura
Passa bem, anda decente Desde dezembro passado
Não há contrariedade Que escava a terra dura
Não precisa trabalhar Cheios de suor e poeira
E tem dinheiro a vontade. Trabalhando a vida inteira
Só a fim de ter fartura
Feijão lá nasce no mato Nas casas onde chegar
Maduro e já cozinhado Só encontra cara feia
O arroz nasce nas várzeas O pobre dono da casa
Já prontinho e despolpado Foi dali a légua e meia
Peru nasce de escova Ver se podia arranjar
Sem comer vive cevado Qualquer coisa pra jantar
Porém foi dormir sem ceia.
Enquanto um, São Saruê, como bem diz o narrador, é fruto da imaginação, dos
artifícios do pensamento, o outro é a leitura da realidade. Se um quer a fuga e a
esperança, o outro quer a tomada de providência. Se um não acredita na cura da
ferida aberta e propõe a viagem fantástica, o outro relata para comover aqueles que
tem o poder de sarar a terra e os seus males.
A repercussão de Viagem a São Saruê durou mais de vinte anos. Publicado em
1954 e com várias reedições, inspirou o documentário O País de São Saruê de Vladimir
Carvalho, lançado em 1971, cujo depoimento A heresia de São Saruê diz a certa altura:
O trajeto do folheto ainda iria mais longe. O escritor Orígenes Lessa entrevistou
o autor de São Saruê por três vezes, todas elas relatadas em um livreto da Fundação
Casa de Rui Barbosa: A voz dos poetas. Em 1954 quando o folheto, em 58 e em 79.
Destes encontros ele faz o rescaldo, motivado pela última visita:
Fui e quase me arrependi. Saí de coração alvoroçado, voltei
de pensamento se arrastando no chão. Eu havia conhecido o
poeta em sua folheteria “A Estrela da Poesia” há mais de 20
anos, lá mesmo em Campina. A casa tinha balcão, jeito de
livraria, imponente depósito de várias prateleiras com
milhares de folhetos esperando os leitores avulsos ou os
famosos vendedores que três ou quatro vezes ao dia vinham
em busca de mais 30 ou 40 folhetos, cada um, para a
cantoria da feira que ficava perto. Artigo de venda fácil, de
procura grande, o folheto em verso atravessava a sua fase
de ouro. (LESSA, 1984, pg. 73)
O pequeno parágrafo observador que Lessa escreve é para dizer da situação na
qual se encontrava a “Estrela da Poesia” em 1979. A venda escassa e o poeta
moribundo. São Saruê havia se demorado muito a acontecer e o poeta sucumbiu ao
seu sonho. O título do texto é Final melhor para São Saruê. Talvez compadecido com o
estado crítico de pobreza e esquecimento no qual Camilo se encontrava, Orígenes
Lessa resolve escrever seu livro infantil Aventuras em São Saruê, onde imortaliza o
alquebrado poeta cordelista:
Seu Camilo era um velho amigo de meu pai. De meu
pai sendo, meu amigo tinha de ser.
E ele sabia ser...
Tinha um papo único no mundo. Nunca vi um
hiomem conhecer tanta história.
Tinha uma, porém, que era a minha história: a de São
Saruê, um país com o qual eu havia sonhado a vida inteira.
Se Camilo abria boca, eu fechava os olhos, ele ficava,
eu saía pelo mundo. (LESSA, 1983, pg. 7)
O poeta popular
Escreve o que tem vontade
Não sendo contra a moral
Política ou sociedade
Nem também religião
Que fere a humanidade.
Seja verdade ou mentira
Escreve o que bem quiser
Mas sem agravar ninguém
Pois aquele que fizer
Versos ferindo a alguém
Boa amizade não quer.
(LEITE, s.d.)
Francisco das Chagas Batista é mais objetivo:
Sou inimigo da política,
Porém vivo de escrever,
Por isso sigo o assunto
Que mais dinheiro render;
Meu lema é: Independente
Na sociedade viver.
(BATISTA, 1984, pg. 90)
Batista segue o tema que mais dinheiro render, segundo seu narrador. Noutro
folheto, A encrenca da Paraíba — Revolução de Dr. Santa‐Cruz, inicia o narrador:
Eu, como escritor do povo
Costumo meter o dedo
Nos casos de sensação
Que não exigem segredo;
E como não sou chaleira
Conto a verdade sem medo
(BATISTA, 1977, 161)
Lembremos que estamos tentando esclarecer o que seja o “garantido interesse
popular”. Quando Chagas Batista versa sobre as coisas da política, compreende‐se que
ele queira esclarecer os acontecimentos, contando o que acha ser a verdade. O seu
narrador confessa‐se “escritor do povo” e quer apenas contar a notícia. A estes
folhetos chamamos de circunstanciais, e são escritos para vender. Por isso durante
muito tempo se ouviu dizer que o cordel era o jornal do sertão, pois os fatos chegavam
ao povo pela versão do poeta que nem sempre era isento. O Batista quando coloca na
voz do seu narrador que “vive de escrever” e quer ser independente na sociedade,
pratica a sua vontade, a sua interpretação daquilo que o povo quer consumir. Para ele
os fatos da política são fatos importantes e sua interpretação é a de que o povo precisa
estar atualizado quanto ao que ocorre nas altas rodas políticas e seus desdobramentos
na sociedade, mas isso não garante o interesse popular.
João Martins de Ataíde segue o exemplo de Manoel Camilo dos Santos quando
escreve:
Parti pelo espaço em fora
Cortando os ares ligeiro
E levando presa aos ombros
A viola de troveiro;
Das nuvens rasguei o véu
Dessa vez eu fui ao céu,
Num vôo direto e certeiro
Não se admire o leitor
De um trovador voar,
Pois seu pensamento sempre
Vive no espaço a vagar;
Se alguém duvidar de mim
Embarque num Zepelin
E vá no céu indagar.
(ATAÍDE, 2000, pg. 107)
O narrador veste as roupas de um trovador e revela que a inspiração é o motor
primevo em toda criação. O pensamento não tem rédeas e, de acordo, com os motivos
que vai encontrando, seleciona aquele que a inspiração lhe oferece. No seio do cordel
encontraremos, como em qualquer atividade, profissionais movidos por diversos
interesses. Uns querem apenas escrever, sentem a necessidade. Outros querem
veicular suas idéias e fazê‐las abranger o maior número de leitores. Alguns querem
apenas noticiar um fato acontecido. No interior de todos reside a opção feita em se
utilizar da literatura de cordel para alcançar o seu intento.
Continuando as observações sobre Peregrino. O próximo tópico refere‐se à
venda. Até agora todos os aspectos levantados dizem respeito às marcas externas ao
caráter literário da literatura de cordel. Primeiro falou‐se do meio material, divulgador:
o folheto; depois falou‐se do conteúdo, o assunto popular; e agora fala‐se da forma
como se vende, no caso em locais peculiares, feira e mercados, nunca em livrarias ou
locais nos quais se comercialize literatura. E sob o pregão oral. Realmente, durante
bom tempo o cordel foi vendido dessa forma, os últimos dez anos viram essa prática
mudar. Em sebos e livrarias já encontramos cordéis expostos para venda, sem que seja
necessário o pregão. Nas bienais de livro pelo Brasil encontramos stands com folhetos
de cordéis expostos como qualquer outro livro, facultando‐se ao leitor o folhear, ler
um pouco, atualizar‐se e decidir o que fazer. Por outro lado, como apontado
anteriormente, editoras tradicionais passaram a editar literatura de cordel em livros de
luxo, sem com isso deixar de mencionar que é literatura de cordel, nem descaracterizá‐
la. O caso mais agradável aos nossos olhos é a Coleção Clássicos em Cordel da Editora
Nova Alexandria.
Como se sabe, alguns títulos da literatura universal foram adaptados para o
cordel nos tempos de consolidação dessa forma de poesia. Entre Roldão e os Doze
Pares de França até Iracema, de José de Alencar, contos do Decamerão ou dos Irmãos
Grimm, fábulas de La Fontaine o cordel alimentou‐se de maneira sempre a respeitar a
obra original, sobretudo divulgando‐a. O caso da Coleção Clássicos em Cordel retoma,
desde o ano de 2008, a prática da adaptação das obras primas da literatura, com
poetas da mais nova geração aplicando os conhecimentos herdados nos últimos 100
anos de cordel. Estes livros não serão vendidos em pregão oral, estão nas livrarias de
todo o Brasil, não se enquadram no formato ancestral do folheto, não são margeados
pelo conteúdo de interesse popular e o preço está muito além do do folheto normal,
sendo essa peculiaridade do preço a última característica para definir o cordel.
Esse baixo preço do cordel, nos seus primórdios e ainda hoje para os
folhetos, deveria apontar para uma qualidade também baixa. A explicação é antiga e
cabe bem ao cenário livresco brasileiro. Guerreiro nos diz, referindo‐se a tiragens
populares dos autos e farsas de Gil Vicente:
Um dos objetivos do autor de cordel é fazer circular sua obra da maneira mais
abrangente possível. Baixar o custo da obra é o viés pelo qual se consuma o seu
intento. Isso, talvez, tenha determinado a troca da fotografia pela xilogravura nas
capas e ilustrações dos folhetos, tanto que a arte da xilogravura terminou por ser
associada as mais das vezes à Literatura de Cordel, entretanto o avanço tecnológico
em termos de impressão e acabamento gráfico trouxe para o cordel novo visual.
Pois bem, essa coleção, Clássicos em Cordel, não se prende a nenhuma das
características. Está fora, totalmente, entretanto é a mais pura literatura de cordel
brasileira, com todas as suas características literárias, que são as que nos importam.
Sobre ela, a coleção, falaremos mais à frente.
Quando escrevíamos sobre São Saruê tocamos na palavra “Sertão”.
Retornamos ao vocábulo para elucidar um outro tópico já consolidado sobre as origens
do cordel. Os historiadores tem reproduzido uma verdade que necessita de
complemento. Para a maioria o cordel nasceu no sertão nordestino e oferecem como
prova o fato de os primeiros cordelistas terem aí nascido: Silvino Pirauá, na Serra do
Teixeira, Leandro em Pombal, mas migrante para Teixeira logo depois do nascimento.
De fato o sertão foi o ventre que fomentou alguns assuntos do cordel. O sertão com
suas lendas e seus homens. Para formação da literatura de cordel concorreu, porém, a
confluência entre o sertão e a cidade. E a cidade na qual floresceu o cordel foi, sem
qualquer discussão, Recife. O final do séc. XIX e o início do século XX vão encontrar
nessa cidade o ponto de confluência da modernidade. A história da inteligência
brasileira passará acentuadamente pela capital de Pernambuco e sua importância
política. As biografias de Silvino Pirauá, Leandro Gomes de Barros, Francisco das
Chagas Batista e João Martins de Ataíde, os principais nomes da geração princesa do
cordel, tem como ponto intercessor o Recife. E em suas obras, a cidade aparecerá em
toda sua grandiosidade, incluindo‐se aí os seus problemas e conflitos sociais. Na
introdução à obra de Leandro editada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, Horácio de
Almeida resume a biografia do mestre cordelista:
Nasceu no município de Pombal, sertão da Paraíba, a 19
de novembro de 1865, mudando‐se para Teixeira, ainda
menino, levado por seus pais. Em Teixeira, terra paraibana
de boa fama por seus poetas e valentões, conheceu
certamente os notáveis cantadores Ugolino Nunes da Costa,
Bernardo Nogueira, Josué Romano e Germano da Lagoa, que
ali davam dia santo. Francisco das Chagas Batista também
era de lá. Devia ser muito menino quando Leandro, ainda
adolescente, partiu de Teixeira para Pernambuco, com
escala em Vitória de Santo Antão e Jaboatão, antes de fixar‐
se em Recife. (ALMEIDA, 1976, pg. 3)
É fácil refazer a trajetória de Leandro pelo endereço sempre colocado em seus
folhetos. Assim em 1915 estampava na contracapa de As aflições da guerra na Europa:
Leandro Gomes de Barros, avisa que está morando em
Areias, Recife, e que remetterá pelo correio todos os
folhetos de suas producções.
Derijam pedidos para Estação de Areias. — Recife
(BARROS, 1915, contracapa)
SILVINO PIRAUÁ DE LIMA nasceu em 1848, no município de
Patos, Paraíba, e faleceu em Bezerros, Pernambuco, em
1913. Cantador, glosador e poeta popular, discípulo do
famoso repentista Romano do Teixeira. Pirauá “foi o
iniciador do romance em versos” — afirma Chagas Batista.
Na seca de 1898, Silvino Pirauá emigrou para o Recife.
(BATISTA, 1977, pg. 385)
Pedro Batista escreve carta a Câmara Cascudo esclarecendo sobre Francisco
das Chagas Batista:
Como se lê, Chagas Batista não morou em Recife como os anteriores. Foi em
Recife, porém, onde publicou diversos títulos de cordel pela Imprensa Industrial, neste
cronograma: 1904, A vida de Antonio Silvino, A vacina obrigatória, A questão do
Acre; 1905, reedição de A vida de Antonio Silvino, As vítimas da crise; 1907, A história
de Antonio Silvino — (Contendo o retrato e toda vida de crime até a data presente,
setembro de 1907); 1908, continuação da História de Antonio Silvino, A morte de
Cocada e a prisão de suas orelhas, A maldição da nova seita; 1909, Resposta ao
poldro do meu colega; 1910, a coletânea A lira do poeta. Além do que a cidade do
Recife, como disse anteriormente, é presença constante na vasta obra do poeta. Em
1912 publica O resultado da revolução do Recife, contendo um outro poema O
enterro da justiça.
João Martins de Ataíde, por sua vez, foi o responsável pela confusão nas
autorias dos folhetos de cordel. A partir da aquisição do acervo de Leandro Gomes de
Barros passou a assinar os folhetos e colocar‐se como autor nas capas. Estudiosos
desatentos passaram a atribuir a Ataíde o que era de Leandro. Quando Ataíde repassa
os seus direitos a José Bernardo da Silva este passa à mesma prática e confunde de
vez. Graças ao trabalho meticuloso de Sebastião Nunes Batista a autoria de muitos
poemas foi restaurada e Leandro teve, enfim, justiça feita a sua pena.
Nascido em Ingá, na Paraíba, em 23 de junho de 1877, o poeta Ataíde faleceu
na cidade de Limoeiro, em Pernambuco, a 3 de agosto de 1959. De como foi parar em
Recife diz‐nos Mário Souto Maior:
Esses quatro cavaleiros escolheram a cidade do Recife como o centro de onde
irradiariam sua criação: a Literatura de Cordel. Foi do encontro desses dois mundo, o
rural e o urbano, que gestou o cordel brasileiro. Não há só um pai, o sertão. Há pai e
mãe: o sertão e a cidade. Na obra dos quatro estão presentes ambos, portanto ao se
tentar atribuir apenas o sertão como matéria do cordel incorre‐se em mais um
equívoco em sua historiografia. Como apontam os estudiosos mais comprometidos, o
Nordeste é o seio e, neste, a confluência urbano‐rural a gênese, mas não é só. A cidade
do Recife é o ventre de onde brotará o cordel tal como é. E porquê?
Manoel Diégues Júnior, já citado aqui, antecipa motivos pelos quais o Nordeste
foi o cenário ideal para o aparecimento do cordel:
No Nordeste, — retomemos o assunto—, por condições
sociais e culturais peculiares, foi possível o surgimento da
literatura de cordel, de maneira como se tornou hoje em dia
característica da própria fisionomia cultural da região.
Fatores de formação cultural contribuíram para isso: a
organização da sociedade patriarcal, o surgimento de
manifestações messiânicas, o aparecimento de bandos de
cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando
desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de famílias
deram oportunidade, entre outros fatores, para que se
verificasse o surgimento de grupos de cantadores como
instrumentos do pensamento coletivo, das manifestações da
memória popular. (DIÉGUES JÚNIOR, 1973, pg. 12)
As orientações de Diégues Júnior são muito bem vindas, mas o surgimento do
cordel, segundo o que diz, é fruto dos assuntos a serem cantados e não do talento que
alguns poetas tiveram de orientar sua poesia para uma forma especial ainda não
tentada em solo brasileiro. Ao mesmo tempo em que restringe o cordel ao sumo
extraído do motivo, do assunto, oferece contradição quanto à origem do cordel,
quando diz, citado no início deste capítulo, que “A presença da literatura de cordel no
Nordeste tem raízes lusitanas. (DIÉGUES JÚNIOR, 1973, p. 5). Se possui essas raízes,
como pode, então, surgir de maneira tão estranha àquela? A pergunta que se deve
fazer, e nos parece demasiado complexo procurar uma resposta, é: porque o Homem
começou a fazer poesia? O que determinou esse fenômeno no seio da humanidade? A
investigação, segundo Vitor Manuel de Aguiar e Silva, pode ser interminável:
A natureza e o significado do acto criador do poeta
tem constituído, desde a antiguidade helênica, objecto de
apurada reflexão por parte de filósofos, psicólogos e críticos
e por parte dos próprios poetas. Para alguns, o acto criador
apresenta‐se como um facto racionalmente explicável; para
outros, aparece como insondável mistério, cujas raízes se
perdem no mais recôndito da alma humana ou no
impenetrável dos segredos divinos. (AGUIAR E SILVA, 1973,
pg. 141)
Considerando que Silvino Pirauá, como se encontra em sua biografia, migrou
para o Recife em 1898, portanto aos 50 anos, sendo ele cantador e tendo Leandro
começado a escrever os seus versos por volta de 1880, aos 23 anos aproximados,
como podemos deduzir do que está escrito no final do romance A mulher roubada,
publicado em 1907, no Recife:
Leitores, peço desculpa
Se a obra não for de agrado
Sou um poeta sem força
O tempo tem me estragado,
Escrevo há 18 anos
Tenho razão de estar cansado.
(BARROS, 1980, pg.52)
Resta a dúvida se em alguma gráfica fora do Recife, Pirauá tenha publicado
algum folheto. Como vimos que nas cantorias era praxe se recitar ou cantar histórias
romanceadas, ele pode ter iniciado esse tipo de romance, mas seguindo a tradição
anterior no que diz respeito à utilização de quadras e não de sextilhas, escrevendo
suas histórias à mão em cadernos só publicadas a partir do momento em que está em
Recife. E é isso que nos importa para creditar a Leandro a formatação do cordel e a
sistematização de sua publicação. Foi ele o criador da literatura de cordel pois em
Silvino Pirauá, que poderia tê‐lo precedido, encontraremos poemas romanceados
muito mais aparentados com poemas matutos do que com o cordel. Fique como
exemplo o poema Peleja da Alma que já se inicia com uma quadra, quebrando a
tradição do cordel:
Havia um homem no mundo
Dono de muita riqueza,
Homem de muita valia,
Homem de muita nobreza.
(PIRAUÁ, 1929, pg. )
Tocaremos rapidamente em um aspecto histórico, já citado quando falávamos
em João Martins de Ataíde, aquele referente ao problema de autoria no cordel. Pela
compra dos direitos autorais o comprador se achava na condição de poder retirar o
nome do autor e por seu próprio nome na capa. Como já dissemos, essa prática foi
iniciada por João Martins de Ataíde e continuada por José Bernardo da Silva. O
trabalho do pesquisador Sebastião Nunes Batista de restituição da autoria aos seus
verdadeiros autores publicado em 1973 pela Casa de Rui Barbosa foi fundamental para
reparar os danos à pena de Leandro, cuja obra foi adquirida por Ataíde e revendida na
década de 50 por José Bernardo. Mesmo assim, pesquisadores preguiçosos e
desatentos continuaram reproduzindo os erros de autoria. Não os pouparemos de
uma crítica dura, visto que, são responsáveis pela disseminação da notícia falsa e
propagação das falácias sobre a literatura de cordel. Citarei os casos mais graves,
reconhecendo de qualquer maneira, seus pontos fortes no que diz respeito a
divulgação do cordel, ficando nisso seus méritos, arranhados pela imprecisão.
Uma das formas de o autor se identificar na obra de cordel é o uso do acróstico,
uma ferramenta na qual cada letra do seu nome iniciará um verso da última estrofe de
seu folheto. Ao que parece foi Leandro Gomes de Barros quem iniciou a prática do
cordel, por problemas de plágio ou cópia de seus folhetos, muitos seguiram o exemplo,
mesmo assim adulterações nessas acrósticos complicaram ainda mais a identificação
do autor. Foi o mestre Ataíde quem também iniciou essa prática. Exemplifiquemos
com o caso do folheto O boi misterioso, de Leandro, aulterado por Ataíde:
Lá inda hoje se vê
Em noites de trovoadas
A vaca misteriosa
Naquelas duas estradas,
Duas mulheres falando,
Rangindo os dentes, chorando
Onde as cenas foram dadas.
(BARROS, 2002, pg. 62)
Grifamos as letras iniciais de cada verso para ficar nítido o artifício. Na versão
adulterada por Ataíde o acróstico, além de maculado, sofre alteração do número de
versos, ficando atrofiado:
Inda hoje lá se vê
Em noite de trovoadas,
A vaca misteriosa
Naquelas duas estradas
Duas mulheres chorando,
Onde as cenas foram dadas.
(ATAíDE, 1964, pg. 503)
Come se vê o acróstico passou a IEANDO. Essas intervenções não podemos
dizer se maldosas ou se legais na época, já que a propriedade intelectual havia sido
comprada. A prática continuou durante muito tempo, mas já não se pratica mais,
todavia há estudiosos que continuam caindo no engano, movidos pela pressa e pela
desatenção.
Irani Medeiros, da Paraíba, é um deles. Organizador de uma antologia sobre
Leandro, publicada em 2002, intitulada No reino da poesia sertaneja, comete erros
tolos e graves devido a falta de rigor. A começar pelo título: considerar a poesia de
Leandro como sertaneja. Não se cabe mais esse tipo de desinformação. Leandro é
sertanejo de nascimento, mas sua poesia é universal. Sua letra caminha entre as
histórias maravilhosas, como O boi misterioso, passa pelo social, como Bento, o
milagroso de Beberibe, alcança as pelejas, como Peleja de Antonio Baptista e Manoel
Cabeceira, toca no cordel circunstancial, como As aflições da guerra na Europa, até o
satírico, como A alma de uma sogra. Considerar essa rica poesia como sertaneja é
desconhecer a trajetória do cordel. Tudo indica que o desconhecimento e a falta de
pesquisa é a marca do organizador, pois no capítulo Notas sobre cordel, reproduz
trechos de outros estudiosos sem lhes dar os créditos necessários, passando ao leitor
como se fossem suas as anotações. O pior se concretiza quando lemos a nota número
2:
2— Atualmente, já existe maior cuidado na preservação e
defesa dos direitos autorais dos poetas populares. Assim
mesmo, correm muitos folhetos modernos com nomes de
autores diferentes. (MEDEIROS, 2002, pg. 27)
Forte o amor tem em si
Ímã leal de firmeza
Reconhece o sacrifício
Manda a sua realeza
Nos abre a porta da glória
O poder da natureza
A pessoa que não ama
Merece condenação
A vida é cheia de espinho
Roga a Deus porém em vão
A sua alma é condenada
Levada para um tufão.
(MEDEIROS, 2002, pg. 428)
É assim que se desinforma e se deturpa as informações e os conceitos do
cordel. E tem acontecido desde os primórdios dos estudos. Pesquisadores e estudiosos
que não têm vivência e se recusam a conhecer as nuanças, os detalhes, da literatura
de cordel, mais interessados que estão em vender, tanto idéias, como livros. E nós
queremos restaurar essa dignidade histórico‐literária do cordel. Tarefa difícil, sabemos.
Vejamos o caso da Editora Hedra, cuja coleção Biblioteca de Cordel, tem deixado a
desejar.
A coleção Biblioteca de Cordel é assim apresentada:
Apesar da maciça bibliografia crítica e da vasta produção de
folhetos (mais de 30 mil folhetos e 2 mil autores
classificados), a literatura de cordel — cujo início remonta ao
fim do séc. XIX — continua ainda em boa parte desconhecida
do grande público, principalmente por causa da distribuição
efêmera dos folhetos. E é por isso que a Editora Hedra se
propôs a selecionar cinqüenta estudiosos do Brasil e do
exterior que, por sua vez, escolheram cinqüenta poetas
populares de destaque e prepararam um estudo
introdutório para cada um, seguido por uma antologia dos
poemas mais representativios. (LUYTEN, 2000, pg. 5)
309 – ENSEOO – O RETIRANTE
Folheto da Col. OL, publicado em 16‐maio‐1946, em
Recife, sem indicação de editor; consta como autor JOÃO
MARTINS DE ATAÍDE, o que é aceito por alguns estudiosos.
Atribuímos a autoria a LEANDRO GOMES DE BARROS (Col.
CPCRB e Col. BN – B869.18 c. 376 9 m). (BATISTA, 1973, 367)
E nós atribuímos a autoria de As quatro classes corajosas: vaqueiro, agricultor,
soldado e pescador a José Camelo de Melo Resende pela constatação logo na primeira
setilha do folheto:
Tenho ouvido alguém dizer
Sem ver que eu estou presente
“José Camelo não presta,
Porque só fica contente
Quando mete a língua dele
Contra esse, ou contra aquele
Inda sendo um seu parente.
(ATHAYDE, 2000, pg. 141)
Concluímos por isso por sabermos que muitos poetas trabalharam para Ataíde
em sua gráfica e um deles foi José Camelo, o mesmo autor de O pavão misterioso,
segundo depoimento da viúva de Ataíde, quando perguntada se sabia de alguns
poetas trabalhando para seu marido:
Outro fato fortalece o nosso ponto de vista quando sabemos da existência de
outro folheto de Camelo com o título As 7 classes ruins. Esses dados exemplificam o
problema da autoria criado por Ataíde, levando‐o a ser vítima da própria atitude. Não
há dúvida sobre a sua maestria como poeta e como editor. Foi ele o responsável pelo
sucesso do cordel em sua época, porém esse mal ficará sobre sua memória. Não se
deve descartar o fato de que seus versos foram cantados por todo o nordeste como
encontramos em Cantadores de Leonardo Mota quando o Cego Sinfrônio lhe canta A
cantiga do valente Vilela:
Julgo fechar com chave de oiro as referências ao Cego
Sinfrônio, publicando a tradicional “Cantiga do Vilela”, tal e
qual ele me repetiu. Essa conhecida lenda sertaneja inspirou
numerosas cantigas. Jacó Passarinho e Serrador, por
exemplo, cantam variantes. O Cego Aderaldo garante que a
primeira “Cantiga do Vilela” foi composta pelo cantador
Manuel da Luz, de Bebedouro. Sinfrônio assegurou‐me que
a sua é que é a verdadeira, “a boa, a legítima de Braga”, e
acrescentou que a havia aprendido de Jaqueira. (MOTA,
1983, pg. 44)
Não lamentamos dizer, até nos regozijamos em corrigir tanto a informação do
cego Sinfrônio como o repasse de Leota, que a verdadeira autoria é de João Martins de
Ataíde. Essa correção que fazemos abre um outro veio de discussão. A falta de
averiguação das informações recebidas por alguns pesquisadores.
O mais grave, pensamos, é que a desinformação e, muitas vezes, a preguiça de
pesquisar de certos estudiosos leve, mesmo no séc. XXI, a propagação dos mesmos
enganos, erros e equívocos.
Caminhando para o final desse capítulo nos foi crescendo a necessidade de
estabelecer um marco para o surgimento da literatura de cordel. O folheto mais antigo
conhecido, com data de 1902 é A força do amor, a história de Alonso e Marina, de
Leandro Gomes de Barros, reproduzido em fac‐símile no Tomo V da Antologia de
Literatura Popular em Verso, da Casa de Rui Barbosa, na qual há um estudo
introdutório comparando a primeira e a 16ª edições da obra. O estudo do professor
José Maria Barbosa Gomes, da UFPB, diz a certa altura:
À vista das informações prestadas pelo Centro de Pesquisas
da Casa de Rui Barbosa, houvemos por bem admitir como
sendo a primeira a edição A que temos em mão. Ainda
assim, por falta de data que acompanhe o trabalho
publicado. Torna‐se‐nos trabalhoso, senão impossível
estabelecer o espaço de tempo entre a primeira e a décima
sexta edição. Aceita a hipótese de que a publicação da
primeira edição teria ocorrido em Recife e se verificado só
depois de o poeta ter ali fixado residência — antes de 1893,
ano do casamento do poeta — é de se admitir que entre
esta edição e a décima sexta haja transcorrido um espaço de
tempo superior a vinte e cinco anos. E, possivelmente,
inferior a trinta anos. (BARROS, 1980, pp. XI‐XII)
No final do século XIX, nos cafés da Praça do Ferreira e do
Passeio Público, palco da boêmia de Fortaleza, jovens
intelectuais da cidade reuniam‐se para discutir arte,
literatura, música e política. Um desses grupos, composto
por escritores, pintores e músicos, cansados da pobreza
cultural da sociedade, que na época valorizava apenas o que
vinha da Europa e desprezava a produção nacional e
popular, decidiram fundar uma associação cultural. Uma
agremiação através da qual poderiam criticar a hipocrisia da
sociedade fortalezense e ao mesmo tempo exaltar a
produção artística nacional. (CEARÁ DE LUZ, em 09‐09‐09,
16:19h)
Seu irmão, Pedro Batista, editor em Guarabira‐PB, dá o ano de 1882 como o
ano de nascimento e 1929 como o ano da morte, mas o filho Sebastião Nunes Batista
dá outra data: 1885 para o nascimento e 1930 para a morte. Não importando as datas
corretas, queremos dizer que é o único de quem sabemos exatamente quando
publicou o primeiro folheto: em 1909, em Campina Grande, Paraíba. Sabemos, ainda,
da publicação pela editora de sua propriedade, a Livraria Popular Editora, da antologia
Cantadores e poetas populares, em 1929. Sendo um homem dos livros, mostrando
familiaridade com o que se vinha publicando em termos de estudos do folclore
brasileiro na época, Chagas afirma no Prefácio de seu livro:
Notando que ilustres escritores Drs. Gustavo Barroso,
Leonardo Mota e Rodrigues de Carvalho deixaram de incluir
nos seus livros: “Ao som da viola”, “Cantadores”, “Violeiros
do Norte” e Cancioneiro do Norte”, a maior e melhor parte
dos poetas populares do Nordeste, vivos e já falecidos,
venho reuni‐los nesta Antologia Regional, no intuito de
prestar uma justa homenagem a poetas obscuros e
desconhecidos dos nossos estudiosos historiadores
nordestinos.
Tendo conhecido e convivido com quase todos os
cantadores dos Sertões e Brejos da Paraíba, colhi nas
próprias fontes a maior cópia das poesias que compõem
este volume. (BATISTA, 1929, pg. 1)
Tanto a Padaria Espiritual quanto o livro de Chagas Batista e os posteriores
estudos de Sebastião Nunes Batista prestam um serviço incomensurável à literatura
brasileira e necessitam de urgente inserção nos cursos de letras de nossas
universidades. Quanto à literatura de cordel, graças ao trabalho do poeta e editor
Marco Haurélio, em São Paulo, entra de vez no mundo acadêmico pela magnífica
coleção Clássicos em Cordel, sobre a qual nos debruçaremos no próximo capítulo.
Este capítulo objetivou estabelecer a gênese da literatura de cordel no
Nordeste, local, data e autores fundadores, aos quais chamamos de Geração Princesa.
Partindo, pois, desse levantamento histórico passamos, no próximo capítulo, a
observar com lentes da Poética alguns aspectos literários da literatura de cordel.
Por uma classificação literária para o cordel
A nossa dissertação de mestrado propôs‐se a estudar a literatura de cordel em
sua face épica. Das pesquisas realizadas à época concluíamos que toda a produção
referente ao denominado ciclo dos cangaceiros, com a figura de Lampião à frente,
oferecia elementos capazes de respaldar nossas opiniões sobre o gênero.
Guardávamos para o doutorado um aprofundamento do tema, cobrados que fomos
pela banca examinadora. Essa ação requeria uma observação mais vasta no todo
cordelístico brasileiro, alargando o corpus de estudo, bem como o material teórico. E
foi o que procuramos fazer.
Na construção da pesquisa acabamos por encontrar outros elementos, outros
sintomas que fugiam ao tema eleito e nos pediam urgente tomada de decisão. Foi o
encontro da peleja Manoel de Abernal e Manoel Cabeceira o responsável por alguns
questionamentos teóricos destoantes do modelo que havíamos edificado. Chegáramos
à conclusão de que a literatura de cordel possuía um caráter exclusivamente narrativo,
mas vejamos o início da peleja:
Cabeceira — Sr. Manoel Abernal
Sou Manoel Cabeceira
O cantador mais tímido
Que teve nesta ribeira
Pode ficar descansado
Que ou morre ou sai na carreira
Abernal — De onde vossa mercê veio
Tem outro desta maneira?
Não tem medo de dizer
Que me bota na carreira
Estará bêbedo ou ficou doudo?
Para dizer esta asneira?
(BARROS, 1980, pg. 52)
Deparando‐nos com esse modelo pudemos repassar as características da obra
épica e, fazendo o confronto, a comparação, começávamos a ver outro caminho para
nosso estudo. Não que o cordel perdera seu elemento épico, se não que ganhara
outros elementos. A peleja em questão, apesar de se desenrolar de maneira igual às
outras às quais tive acesso, faltava‐lhe um mestre de cerimônias para apresentá‐la. O
mestre de cerimônias, no caso a pessoa que, supostamente, viu e descreveu a peleja,
sempre aparece nas duas ou três sextilhas precedentes ao embate. É seguindo essa
tradição que o poeta Varneci Nascimento escreve sua Peleja de Aloncio com Dezinho,
aliás, uma das mais belas e bem construídas sextilhas introdutórias que já pudemos ler
em cordel:
Pedir o saber a Deus
É praxe dos cordelistas
E o mesmo eu faço agora
Pedindo a Jesus as pistas
Para narrar a contenda
Entre dois bons repentistas
O improviso é complexo
Pois não tem um só caminho
Por isso Deus nessa estrada,
Peço‐lhe um empurrãozinho
Pra descrever a peleja
De Aloncio com Dezinho
Já somos acostumados
Ver repentistas cantando
E acompanhando os versos
Duas violas tocando,
Entretanto essa disputa,
Aconteceu trabalhando.
(NASCIMENTO, 2008, pg. 3)
Nessas três sextilhas iniciais o poeta, pela voz do mestre de cerimônias, segue à
risca as orientações do cordel clássico. Procede a invocação pedindo a Jesus que lhe dê
as “pistas” para escrever um bom poema, na primeira estrofe. Na segunda, pede a
Deus sabedoria para ser capaz de passar para a escrita o fenômeno do improviso, que
é estritamente oral e, na terceira, adverte que não é uma peleja normal entre dois
repentistas ao som das violas. Dessa maneira envolve o leitor e o seduz para que ele se
assenhore do motivo dessa peleja extraordinária passada durante o trabalho.
Precisamos observar um detalhe: na primeira estrofe, o mestre de cerimônias
pede luz para “narrar” e na segunda pede para “descrever”. Considerando que a peleja
é o diálogo entre dois personagens, sem a intervenção de um narrador, concordamos
que a confusão entre narrar e descrever, aqui, não se prenda ao acaso, senão a uma
confusão intelectual sobre a obra de cordel, nesse caso, a peleja, difícil de se
conceituar, tanto para o leitor, como para o autor, transparecida na voz de um
personagem. Pela presença desse personagem que quer contar como se deu a peleja e
descrever a própria peleja na voz dos pelejantes, acontecida no tempo passado,
estando o contador no presente, podemos afirmar que essa peleja contém traços
narrativos. Como nós sabemos que o texto puro não existe e que uma característica é
que predomina sobre outra, também podemos afirmar que há uma descrição. Olhando
um pouco mais, podemos, ainda, identificar traços marcantes do gênero dramático
quando os personagens assumem, eles mesmos, a direção do poema confeccionando a
interlocução, com o narrador retirando‐se de cena. Logo, os três gêneros clássicos se
fazem presentes neste texto. Essas questões virão à tona mais tarde. Por enquanto
sigamos olhando o texto.
Nas dezesseis sextilhas seguintes o leitor é ambientado sobre o local onde se
deu o combate poético, no interior da Bahia, na cidade de Banzaê, durante o eito, o
trabalho na roça, na capinagem, cantando “batalhões”, os versos improvisados. Ainda
descreve os dois debatedores e apresenta seu Néu que determina o tema da peleja:
Na cabeceira da roça
Fim do eito derradeiro
Zé de Néu disse: — Em sextilha
Quero que cantem ligeiro
Seu Dezinho vai ser o boi,
Compadre Aloncio, o vaqueiro!
(NASCIMENTO, 2008, pg. 6)
Desse ponto, na vigésima sextilha, os improvisadores assumem a direção do
folheto:
ALONCIO — Sou um vaqueiro afamado,
Pego qualquer boi sozinho,
Inda mais sendo pequeno,
E mole feito Dezinho.
De outros correu bastante,
Mas eu lhe pego, Tourinho!
DEZINHO — Entro por mata e caminho
E você não me acompanha,
Pois, correndo atrás de mim,
O seu cavalo se acanha.
Vem metido a estrategista,
Mas volta sem artimanha.
(NASCIMENTO, 2008, pg. 06)
A peleja segue seu ritmo natural, com um dos cantadores sendo o vaqueiro,
que quer pegar o boi, e o outro (o boi) se desvencilhando das armadilhas do primeiro.
Perceba‐se o respeito à oralidade na observação pontual da deixa, a qual já nos
referimos no capítulo anterior, o primeiro verso da sextilha começando com a mesma
terminação do último verso da sextilha precedente, o que não é levado em conta
durante a fala do mestre de cerimônias, tanto que quando ele retorna, na sextilha
quarenta e oito, não se prende à deixa, para ficar bem marcado o tempo, pois a peleja
se deu no passado e o mestre de cerimônias está no presente. Assim:
Alguém viu que a disputa
Não iria se encerrar
(Um prendia, outro soltava)
E deram pra os dois cantar
Um mote de sete sílabas
Pra ver no que ia dar.
(NASCIMENTO, 2008, pg. 12)
A introdução do mote de sete sílabas, para ser desenvolvido em décimas é
outra particularidade da peleja oral, seguida a risca pelo folheto. O mote dado é Senão
aprende a lição/ Trate então de se calar, e os contendores cairão na disputa:
D — Aloncio, tome cuidado,
Que eu sou um cantador,
Devo ser seu professor;
Você por mim educado,
Porque estás atrasado,
Não pode me acompanhar...
Então, jamais vai chegar
À minha evolução.
Senão aprende a lição,
Trate então de se calar!
A — Sempre fala a todo mundo,
Dezinho, a mesma besteira,
Embora que na carreira
Não corre nenhum segundo.
Eu sou cantador profundo,
Nasci para improvisar,
Quando chego pra cantar,
Faço um revolução,
Senão aprende a lição
Trate então de se calar!
(NASCIMENTO, 2008, pg. 13)
Quando do desenvolvimento de motes, sejam de sete ou de dez sílabas, os
cantadores ficam desobrigados de perceberem a deixa, para não amarrar o verso a
rimas que se esgotariam, prejudicando as estratégias poéticas. O folheto de Varneci
Nascimento respeita mais essa característica. As falas de cada um dos participantes
agora são determinadas apenas pela primeira letra de seus nomes, D para Dezinho e A
para Aloncio e o mote tem que ser desenvolvido em décimas. Ao final, o mestre de
cerimônias retorna para revelar quem foi o poeta vitorioso. Vejamos quem vence a
peleja:
Perceberam que a disputa
Nunca mais ia acabar:
Nem Aloncio nem Dezinho
Queriam se entregar.
Pararam a li e deixaram
Pra outra vez e lugar.
(NASCIMENTO, 2008, pg. 16)
O mestre de cerimônias voltará sempre para finalizar o folheto, revelando o
veredicto. Nesse folheto não houve vencedores. Utilizamos a peleja de Varneci para
exemplificar como funciona o folheto de peleja clássica. Essa peleja é um folheto
recente, que conservou a mesma essência dos folhetos pioneiros. A peleja de Abernal
e Cabeceira, com a qual iniciamos esse capítulo é uma das primeiras escritas por
Leandro Gomes de Barros e nega esses apontamentos feitos sobre o texto de Varneci
Nascimento.
Na peleja de Leandro não há mestre de cerimônias, nem qualquer outro
personagem entre os dois debatedores. Eles se apresentam um ao outro, conduzem
suas falas, criam seus estratagemas poéticos e terminam a peleja com um dos dois se
dando por vencido. A peleja é toda em sextilhas e Cabeceira reconhece‐se perdedor:
Cabeceira — Abernal, estou cançado
Não posso mais debater
Então dizia Abernal
É o que deve fazer
Bateu aqui está no risco
De desertar ou morrer.
(BARROS, 1907, pg. 15)
Este é um caso em que não há narratividade, nem ambientação, nem tempo.
Só os personagens debatendo, senhores de sua voz. Antes de iniciarmos propriamente
as abordagens teórico‐literárias ao cordel, faz‐se mister algumas explicações para essa
tomada de atitude.
Falávamos no primeiro capítulo, de maneira rápida, que à literatura de cordel
faltavam estudos estritamente literários. Os pesquisadores viram o cordel não como
produto literário, mas como produto cultural e folclórico. Citemos os estudiosos e seus
textos:
Essas são palavras de Homero Sena na apresentação do Tomo IV da Antologia
de Literatura Popular em Verso, da Casa de Rui Barbosa. O fenômeno da literatura de
cordel, por vários motivos, raramente foi visto e estudado como fenômeno literário,
mesmo sendo chamada de literatura de cordel. Talvez por isso não figure nos nossos
manuais de história da literatura brasileira, como assinalávamos em nossa dissertação:
Continuamos com a mesma convicção. Ainda não foi possível se escrever uma
história da literatura brasileira na qual a literatura de cordel e seus autores se façam
presentes, reconhecidos, esses, como poetas, e, aquela, como poesia brasileira.
Acreditamos que esse fato tenha se consolidado por causa do aspecto folclórico a que
o cordel foi vinculado desde os seus primeiros estudos. Estudos sobre poesia popular
são produzidos no Brasil desde 1873:
Compete lembrar, ainda que para referências sumárias: o
precursor Celso de Magalhães, cuja obra pioneira data de
1873, quando publicou em O Trabalho, quinzenário do
Recife, dez artigos sobre A Poesia Popular Brasileira, tendo
como área o Maranhão, Bahia, Pernambuco... Assinale‐se,
por fim, a posição pioneira de A poesia Popular Brasileira,
no sentido de que, ao tempo de sua publicação, na área da
língua portuguesa havia apenas as coletâneas: O
Romanceiro (Garret) e Romanceiro Geral (Teófilo Braga).
(PEREGRINO, 1984, pp. 22‐23)
Um pouco mais adiante Peregrino lista os pioneiros nesse tipo de estudo:
Outros desbravadores que cumpre lembrar no campo da
poesia popular no Brasil: Sílvio Romero (de 1879 são os
Estudos sobre a Poesia do Brasil); José Rodrigues de
Carvalho (Cancioneiro do Norte — 1903 — teve 2ª edição
em 1928 e a 3ª, 1967, esta comemorativa do centenário do
autor, promovida pelo Instituto Nacional do Livro, inclui
prefácio de Manuel Diégues Júnior); Pereira da Costa (O
Folclore Pernambucano — 1966); Gustavo Barroso (1911 e
1912 quando publicou no Jornal do Comércio artigos que
serviram de base ao volume Ao som da viola, editado em
1921); Leonardo Mota, Cantadores — 1920; Luís da Câmara
Cascudo (a partir de 1937). (PEREGRINO, 1984, pg. 23)
Isso sobre poesia popular, nada especificamente sobre literatura de cordel. As
anotações de Celso de Magalhães não poderiam versar sobre cordel, pois ainda não se
havia publicado folhetos de cordel na época, tampouco as de Sílvio Romero. A maioria
dessas poesias estudadas, porém, estavam grafadas sob a rubrica de literatura oral ou
literatura anônima. Isso contribuiu para que fossem catalogadas como sendo folclore.
Luís da Câmara Cascudo prefaciando a série Cantos Populares do Brasil, de Sílvio
Romero, na edição de 1954, com dois volumes, diz:
Sílvio Romero, procurando uma base classificatória para
nosso folclore, fê‐lo derivar das três raças básicas de nossa
formação, anotando as variações e mutações introduzidas
pelos mestiços. Mas considerando as relações de parentesco
que ligam os folclores de todas as raças, na maioria
originários de um fundo de tradições comum a toda a
humanidade, e considerando ainda as dificuldades que se
antolham a qualquer estudioso probo e sincero no
escalpelar essas origens africanas, indígenas e portuguesas,
hoje inteiramente baralhadas e confundidas. Mais prudente
e sábio será dividir o folclore sertanejo em ciclos temáticos,
que lhe possam dar maior facilidade de classificação e
organização. (BARROSO, 1921, pg. 11)
Por uma série de razões, como cotejo dos dois textos, a grande fama de
Leandro na época, a falta de outras versões, etc., Bráulio do Nascimento é definitivo:
c) não pertence à tradição oral o fragmento O boi misterioso
publicado por Gustavo Barroso em Ao som da viola... Sua
aceitação pelos folcloristas ou estudiosos do assunto
decorre exclusivamente de não haverem jamais cotejado os
textos...
d) o fragmento de Gustavo Barroso inscreve‐se, portanto, na
tradição escrita de O boi misterioso, de Leandro Gomes de
Barros, publicado em capítulos por volta de 1912.
(NASCIMENTO, 1973, pp. 196‐197)
Essa falta de cotejo de textos trazida às discussões por Bráulio do Nascimento é
dos motivos pelos quais o cordel aos poucos foi sendo afastado da literariedade. A
atitude de Barroso de tentar a todo custo, sem seriedade ou probidade, o cordel na
tradição oral, O boi misterioso é apenas um ícone, forjou aquela tese que combatemos
no primeiro capítulo na qual se diz ser o cordel apenas o prolongamento natural da
tradição oral dos cantadores e repentistas nordestinos, como o quer Peregrino:
Depois da classificação de Barroso seguiram‐se novas classificações por meio de
ciclos temáticos, o que consideramos um absurdo classificatório, visto que o cordel
não é anônimo e, nessas classificações, os temas são elevados e os autores relegados,
sendo a restituição de autoria na literatura de cordel uma das grandes batalhas dos
estudiosos conhecidamente sérios. Todas essas classificações tomaram por base os
estudos de Vladimir Propp sobre a morfologia do conto maravilhoso russo, de 1928 e
da conseqüente classificação de contos populares oferecida por Câmara Cascudo em
1954. O próprio Cascudo em Vaqueiros e cantadores apresentava uma classificação
da poesia popular onde distinguia: a) poesia mnemônica e tradicional, nas quais
arrolava os romances, os A.B.C., as orações; b) ciclo do gado, com as vaquejadas e as
gestas dos animais (o boi, os vaqueiros, os cavalos, etc.); c) os cantadores; d) ciclo
social, com Padre Cícero, os cangaceiros, os negros; e) a cantoria com suas
modalidades; f) o desafio (CASCUDO, 1984). A apreciação de Cascudo abrangia toda a
poesia popular, colocando nesse guarda‐chuva a poesia de cordel.
Em Ciclos temáticos na literatura de cordel, Manuel Diégues Júnior apresenta
uma classificação exaustiva e bem documentada contemplando tudo que já se
produziu na literatura de cordel: a) Os temas tradicionais: romances e novelas, contos
maravilhosos, estórias de animais, anti‐heróis, tradição religiosa; b) Fatos
circunstanciais ou acontecidos: manifestações de natureza física, Fatos de repercussão
social, cidade e vida urbana, crítica e sátira, o elemento humano; c) Cantorias e
pelejas.
Apesar de distribuir em três categorias, Diégues Júnior subdivide‐as em diversas
outras, criando um espelho da produção cordelística sem comparação, minucioso, com
rigor. Trabalho realmente valoroso, todavia dá mais valor aos temas que aos autores,
repetindo as classificações tradicionais.
Deixo a classificação de Ariano Suassuna em suas próprias palavras:
O que ainda hoje considero válido, nessa introdução, é a
tentativa de distribuir e classificar os folhetos e romances
nordestinos em seis ciclos principais — o ciclo heróico,
trágico e épico; o ciclo do maravilhoso; o ciclo religioso e de
moralidades; o ciclo cômico, satírico e picaresco; o ciclo
histórico e circunstancial; e o ciclo de amor e fidelidade.
(SUASSUNA, 1973, pg. 156)
É o resultado, primeiro de se eleger um cancioneiro nordestino e, segundo, de
estabelecer o folclore como o lugar da literatura de cordel. A resultante daí e o não
aproveitamento do cordel como matéria literária. Assim, o autor pioneiro Leandro
Gomes de Barros, que escreveu sobre tudo, terá de contentar‐se com o título de autor
folclórico e não como poeta resistente, fundador da poesia no Nordeste, sem chance
de figurar nos nossos manuais de literatura nacional, tampouco em suas antologias.
Essa classificação em ciclos é tão arbitrária quanto as instituições que tentam
eternizá‐la. Outra classificação, esta querendo fugir do ranço acadêmico é a de Liêdo
Maranhão, cultuada por muitos estudiosos e poetas, a Classificação popular da
literatura de cordel. Dividindo inicialmente, o cordel, em folhetos e romances, Liêdo
Maranhão explica:
Volta‐se aqui à velha classificação pelo meio de reprodução e divulgação, pela
forma física. Realmente muitas das vezes ouvimos essa divisão na observação do
número de páginas dos folhetos, mas se formos levar a cabo essa divisão ficaremos
sem saber onde colocar os “princesos” Leandro Gomes de Barros e Chagas Batista que
publicaram suas histórias em capítulos, como um folhetim, em que a continuação da
história vinha em dois ou três folhetos posteriores, aliás, a saída encontrada para
driblar os custos tipográficos.
A falta de estudos sobre o panorama da literatura de cordel leva a repetição
dessas divisões como verdadeira até hoje. Por exemplo, temos em nossas mãos o
folheto Presepadas de Chicó e astúcias de João Grilo, retomando os dois heróis
clássicos dos primórdios do cordel com 32 páginas. Na divisão de Liêdo Maranhão seria
um romance, entretanto como o tema também conta, pois o romance está ligado ao
tema do amor e da bravura, as Presepadas está ligado ao tema da astúcia e do
picaresco, ficando no vácuo das classificações por ciclos.
Voltando à Classificação popular, Maranhão lista 23 qualidades de folhetos e 4
de romances. Sendo elas: a) folhetos: de conselhos, de eras, de santidade, de corrução,
de cachorrada ou descaração, profecias, gracejos, acontecidos, carestia, exemplos,
fenômenos, discussão, pelejas, bravuras e valentias, ABC, Padre Cícero, Frei Damião,
Lampião, Antonio Silvino, Getúlio, política, safadeza ou putaria, propaganda; e b)
romances: de amor, sofrimento, luta, príncipes, fadas e reinos encantados.
Atente‐se para o fato de que algumas denominações podem ser agrupadas em
uma só, por exemplo: cachorrada e descaração está muito perto de putaria e safadeza
e etc. O que pretendemos salientar é que não existe pureza de gênero, mas
predominância de um sobre outros, talvez por isso a classificação de M. Cavalcanti
Proença seja aquela a que mais nos afeiçoamos. Sua divisão está assim elaborada: a)
poesia narrativa: contos e gestas; b) poesia didática: doutrinária, satírica, por
competição; c) poemas de forma convencional (PROENÇA, 1977, pp. 45‐46)
Para nós é a primeira classificação que leva em consideração aspectos
literários, assumindo o cordel como poesia e em três categorias resolvendo a questão
dos ciclos, mas em outra classificação do mesmo autor, no caso para orientar
colecionadores, são apresentadas dez modalidades: a) herói humano; b) herói animal;
c) herói sobrenatural; d) herói metamorfoseado; e) natureza; f) religião; g) ética; h)
pelejas; i) ciclos (Carlos Magno, Antonio Silvino; Padre Cícero, etc.); j) miscelânea:
lírica, guerra, crônica. (PROENÇA, 1977, pg. 46)
As classificações vão e voltam, se aproximam do literário, mas retornam aos
velhos ciclos. Queremos agora que essa aproximação com o literário se realize. A
literatura de cordel não é mais artesanato, não se move pelos temas folclóricos e
carece de estudos que atualizem as mudanças no século XXI.
Feitas as observações, retornemos ao caso da peleja entre Abernal e Cabeceira
no início de nosso capítulo. Dizíamos notar a ausência de um mestre de cerimônias,
com os contendores tomando a palavra, eles mesmos se apresentando e conduzindo o
desenrolar dos fatos. Essa peleja chamou‐nos a atenção para sua semelhança com o
que acontece no teatro, no gênero dramático. Todas as definições do gênero, mesmo
quando o consideram um gênero distinto da literatura, tratam dessa característica, no
qual os personagens se apresentam a si mesmos e detem o fio condutor da história, no
qual o diálogo é a chave para desvencilhar‐se de um narrador, como diz a professora
Angélica Soares:
O diálogo (veja o exemplo) é a forma própria para que as
personagens ajam sem qualquer mediação, dando‐nos
sempre a impressão, até mesmo nos dramas históricos, de
que tudo está acontecendo pela primeira vez.
Segundo Emil Staiger, o dramático reúne o pathos e o
problema. Conceitua o pathos como o tom da linguagem
que comove, que provoca paixão, envolvendo o espectador
que passa a vivenciar, com o ator, a dor ou o prazer. Já o
problema seria a proposição, aquilo que o Autor do texto
dramático se propõe a resolver. Assim, unem‐se o querer do
patético e o questionar do problemático, conduzindo
sempre a ação para adiante, para o futuro, que equivale ao
desfecho. (SOARES, 1989, pg. 59)
Adiantamos a nossa predisposição de pensar uma classificação para o cordel
guiado pela literariedade dos textos, tentando agrupá‐los nos gêneros literários
clássicos. Para isso propomos primeiro uma redução do nome literatura de cordel para
cordel simplesmente, por compreendermos que o termo literatura antes de cordel
tornou‐se redundante e sem sentido. A simples menção a cordel já pressupõe ao que
se refere nos estudos literários. Colocamos, assim, o cordel sob o gênero poético, a
poesia. Temos, então, a progressão literatura: poesia: cordel. Chegados aí propomos a
subdivisão de cordel em: dramático, narrativo, reflexivo. No cordel dramático
englobamos as pelejas, as discussões, os encontros e os debates. Assim o fazemos por
encontrar mais semelhanças com o que nos apresenta a teoria já antecipada pela
citação da professora Angélica Soares.
De certa forma o cordel dramático detém todas as características do gênero
dramático. Os elementos básicos constitutivos do drama podem ser apontados como
sendo: a) a enunciação, quando a ação se faz não contando, mas agindo e falando; b) a
relação temporal, quando a atualização se faz enquanto o texto é representado; c) a
linguagem, o próprio texto e suas implicações de marca e d) a personagem.
Escrevemos mais acima que algumas pelejas, debates, discussões e encontros
trazem um mestre de cerimônias além dos dois personagens antagônicos. É fácil
identificá‐lo, o mestre de cerimônias, pela ausência de marcação de suas falas e pela
simples razão de ser ele apenas os ambientadores da peleja. Assim como na Peleja de
Pinto com Milanês, de autoria de Severino Milanês da Silva:
Milanês estava cantando
Em Vitória de Santo Antão
Chegou Severino Pinto
Nessa mesma ocasião
Em casa de um marchante
Travaram um discussão.
(SILVA, 1982, pg. 646)
Aqui há apenas um personagem, que não é narrador, mas alguém que resolveu
descrever a peleja, o introdutor do embate dos dois personagens e que só retorna no
final do folheto para as despedidas formais:
Caros apreciadores
Qualquer que analisou
Nem pinto saiu vaiado
Nem Milanês apanhou
Vamos esperar por outra
Que essa aqui terminou.
(SILVA, 1983, 661)
De outras vezes o ambientador se prolonga um pouco mais como aqui Dois
glosadores Azulão e Borborema:
Borborema há sete meses
Que percorria o sertão,
Somente para glosar
Com Benedito Azulão,
Para ouvir o seu talento
Encontrou ele em S. Bento,
Numa noite de São João.
Azulão estava dançando
No convívio da alegria,
Quando terminava a parte
Ele glosava e bebia
Recitava seu poema
Falava no Borborema,
Mas ele não conhecia.
Borborema aproximou‐se
Daquele grande festim
Falou com o dono da casa
O fazendeiro deu‐lhe o sim,
Ele entrou para o salão
Cumprimentou Azulão,
Por esta maneira assim:
(LIMA, 1964, pg. 272)
Depois de ambientar e descrever a salva de glosas dos dois poetas, retorna no
final para fechar anunciando o vencedor:
Azulão quando ouviu
Este verso da escritura
Mergulhou no meio do povo
Correu perdeu a bravura
Fez como José pretinho
Que quase perde o caminho
Nas trevas da noite escura.
(LIMA, 1964, pg. 276)
Onde residiriam, então, o pathos e o problema, requeridos por Staiger, citados
pela professora Angélica Soares? A construção do pathos se dá na voz de cada
personagem no desvencilhar‐se das armadilhas poéticas plantadas pelo opositor e na
aceitação do que diz o apresentador da peleja, como no caso da Peleja do Cego
Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum, de Firmino Teixeira do Amaral, citada no folheto
anterior, quando a fala de cada um dos personagens vai criando simpatia para os seus
torcedores:
P – Sai daí, cego amarelo
Cor de couro de toucinho
Um cego da tua forma
Chama‐se abusa vizinho
Aonde eu botar os pés
Cego não bota o focinho.
C – Já vi que o seu Pretinho
É um homem sem ação
Como se maltrata outro
Sem haver alteração?
Eu pensava que o senhor
Possuísse educação.
(AMARAL, 1983, pp. 136‐137)
Um, pela agressão verbal, e o outro, no questionamento dessa atitude, vão
construindo a peleja, ambos tentando sair do emaranhado lingüístico do oponente até
a hora do trava‐língua, que é o auge da tensão e da resolução do problema proposto
pelo Autor, no caso desta peleja, mostrar a soberania do Cego Aderaldo diante do
maior cantador do Piauí, grande nos estratagemas, mas fraco na pronúncia rápida das
palavras, o que o leva à derrota:
C – Amigo José Pretinho
Eu não sei o que será
De você no fim da luta
Porque vencido já está;
Quem a paca cara compra
paca cara pagará
P – Cego, estou apertado
Que só um pinto no ovo
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo
Este seu tema da paca
Por favor, diga de novo
C‐ Digo uma e digo dez
No cantar não tenho pompa
Presentemente não acho
Quem o meu mapa rompa
Paca cara pagará
Quem a paca cara compra
P – Cego teu peito é de aço
Foi bom ferreiro que fez
Pensei que o cego não tinha
No verso tal rapidez
Cego, se não for massada
Repita a paca outra vez
C – Arre com tanta pergunta
Deste negro capivara
Não há quem cuspa pra cima
Que não lhe caia na cara
Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara
P – Agora, cego me ouça
Cantarei a paca já
Tema assim é um borrego
No bico dum “carcará”
Quem a cara cara compra
Caca caca cacará.
(AMARAL, 1983, pg.143‐144)
Fazendo‐o tropeçar no trava língua, o mestre de cerimônias dá por encerrada a
disputa dizendo o que aconteceu no salão depois do verso desastroso do seu Zé
Pretinho:
Houve um trovão de risadas
Pelo verso do Pretinho
O capitão Duda disse:
Arreda pra lá, negrinho
Vai descansar teu juízo
Que o cego canta sozinho.
(AMARAL, 1983, pg.144)
No encontro de Barra Mansa e Torce Bola também não aparece o mestre de
cerimônias nem o apresentador da peleja. O problema levantado pelo Autor, José
Pacheco, é a defesa de um, Bebo até lascar o cano, e o ataque do outro, Já bebi não
bebo mais. Partindo desses dois motes os personagens constroem o seu universo
retórico para seduzir ou afastar os leitores:
B. M. – Fui um dos apaixonados
No vício da bebedeira
Muitas vezes na poeira
Dormi de pés espalhados
Dando milhões de cuidados
Aos que me eram leais
Pelas calçadas e cais
Exposto a chuva e a vento
Por isso digo e sustento
— já bebi não bebo mais
TB – Tenhas a capacidade
De conheceres também
Que a bebida já vem
Da alta sociedade
Dizem que até o frade
Bebe que fica cabano
Se isto não for engano
De alguém que fala dele
Eu vou me juntar com ele
Bebo até lascar o cano.
(PACHECO, 1983, pg. 424)
A visão setorial épica cede à visão globalizante dramática,
que se volta para o que vai acontecer e instiga a ação para o
final. Esta preocupação com o desfecho demanda que as
partes se relacionem entre si e com o todo, numa
interdependência em que nada funciona isoladamente.
Devido a este caráter basilar, Staiger denomina tensão a
essência dramática. (CUNHA, 1976, pg. 116)
É essa tensão a determinante da peleja, crescente com a complexidade dos
temas e das formas, no decorrer dos diálogos. A Discussão de José Duda com João
Ataíde é um exemplo. A explicação já é desafiadora, pois diz: Descrevendo todos os
nomes próprios masculinos, todas as aves ou pássaros todos os peixes dos rios e do
mar. Ou seja: a tarefa dos dois poetas é descomunal, requer conhecimento, destreza,
memória e domínio da técnica. Escrita por João Ataíde, é um clássico. É Ataíde quem
inicia, depois da ambientação proferida pelo mestre de cerimônias:
A – É este o primeiro assunto
Pra discutir com você
Descrevendo os nomes próprios
Por meio de um ABC
Sendo todos masculinos
Desde o A até o Z
Z – Aprígio, Alonso, Adriano
André, Afonso, Ambrosino
Alexo, Abel, Anastácio
Abílio, Adolfo, Agripino
Ambroziolo, Anacleto
Adamastor e Albino.
(ATHAYDE, 2000, pg. 161)
E assim vão por 40 sextilhas até Zé Duda pedir:
Z – Athayde eu te conheço
Como poeta cantor
Por conhecer tua força
Te peço como favor
Vamos descrever as aves
Do colibri ao condor.
(ATHAYDE, 2000, pg. 171)
Segue‐se nova rodado de nomes por mais 13 sextilhas, quando Zé Duda muda o
roteiro e pede para descreverem todos os peixes do mar. E a peleja segue sem
nenhum dos dois se mostrar cansado. É quando o Athayde blefa e pede:
Z – Já conheci teu talento
Na teoria na prática
Vamos entrar num tratado
Da física matemática
Segundo a gravitação
Na ciência pneumática
Z – Eu nunca fui titulado
Como rara inteligência
Porém só digo uma coisa
Quando tenho consciência
Eu discuto com você
Qualquer ramo da ciência.
(ATHAYDE, 2000, pg. 177)
Diante da resposta do oponente, Athayde desconversa e abandona a peleja,
sem fazer‐se necessário o mestre de cerimônias interferir para decretar o vencedor.
Lembrando que esse folheto foi escrito pelo próprio Ataíde e que, nessas ocasiões é
comum o autor do folheto vencer os encontros. Ataíde, perante a grandeza de seus
oponentes, como Leandro e, agora, Zé Duda, prefere perder o desafio:
A – Zé Duda é muito tarde
Tenho um negócio a tratar
Por este motivo justo
Eu não posso demorar,
Deixamos a discussão:
Finda‐se noutro lugar.
(ATHAYDE, 2000, pg. 178)
O cordel dramático segue as regras do cordel como um todo, reservando para
si, entretanto, elementos distintivos para o cordel narrativo e o cordel reflexivo. Como
bem se vê, estando preso ao gênero dramático, a sua estrutura solicitará a presença
de um mestre de cerimônias (em alguns casos este mestre não aparecerá), a ação (o
desenrolar do embate poético movido pela retórica, pelo jogo de palavras, pelas
perguntas e respostas, pela observância das rimas, pela apresentação de motes, pela
louvação aos presentes, pelo conhecimento das ciências) dar‐se‐á pelo diálogo entre
dois personagens e somente entre dois, a ausência de didascálias, diluídas que estão
na própria fala dos personagens.
Seu esquema pode ser assim descrito: apresentação (por um mestre de
cerimônias ou pelos próprios contendores), sondagem (momento em que os
personagens testam um ao outro para verificar suas qualidades técnico‐poéticas),
tensão (quando o jogo de armadilhas é construído com cada um tentando derrubar o
outro no embate), desfecho (com um dos cantadores se dando por vencido ou um
mestre de cerimônias apresentando o veredicto). Para os exemplos ficamos com uma
peleja recente Peleja virtual de Glauco Mattoso com Moreira de Acopiara. Esta peleja
é especial porque pela primeira vez em cordel aparece uma nota explicativa e a
apresentação dos pelejadores se dá por meio de pequena biografia na contracapa do
folheto:
NOTA EXPLICATIVA
GM – Vamos lá, mestre Moreira!
Já que havia me proposto,
Topo entrar na brincadeira
E à peleja estou disposto,
Mas desde que você queira
Pisar mesmo no meu rosto!
MA – Sou um sujeito disposto,
Nascido num chão silvestre;
Meus versos são de bom gosto,
Mas têm formato rupestre,
Carrego um riso no rosto,
Matoso, mas não sou mestre.
(ACOPIARA & MATTOSO, 2007, pg. 3)
Logo se percebe que esta peleja será diferente, não na essência, mas na regra
da disposição rimática. Não existem versos soltos nas sextilhas, as rimas estão
fechadas nesse esquema a b a b a b, o respeito à deixa e os versos das sextilhas não
sobrarão sem rima. A sondagem se desenrola logo a seguir nas mesmas sextilhas, das
quais exemplificamos:
GM – Fico grato se os confrades
Me valorizam a lira,
Mas as amabilidades
Não coisa que me inspira!
Dos Bocages e dos Sades
Meu verso o motivo tira!
MA – Eu não creio em Curupira,
Nem em disco voador;
Mas creio que a sua lira,
De inquestionável valor,
Transforme a dor e a ira
Em tolerância e amor.
(ACOPIARA & MATTOSO, 2007, pg. 4)
A tensão se acalora quando, na mudança de modalidade de estrofes, passa‐se
às décimas e Mattoso começa a falar mal do Nordeste e Acopiara responde:
MA – Não me venha com trapaça
Dando uma de coitadinho,
Pois pelo mesmo caminho
Por onde o colega passa,
Ou pisa, sem achar graça,
Eu também tenho pisado
A, às vezes, até achado
Algum atranvacamento.
Mas, por ter algum talento,
Não tenho me embaraçado.
GM – Não me faço de coitado
Por qualquer coisinha à toa:
Quem goza de vista boa
Acha o cego exagerado.
Mas quando, lá pelo lado
Do Nordeste eu viajei,
Percebi que, mais que o gay,
O cego leva pisão!
Cabra que tem olho são
Cego chama de “meu rei”!
(ACOPIARA & MATTOSO, 2007, pg. 10)
A utilização do martelo agalopado, raro em cordel, mas vivo nas pelejas reais
entre cantadores repentistas, aprofunda ainda mais a tensão por ser uma modalidade
em que a agressão mútua é mais intensa e prova o fôlego dos poetas:
MA – Nessa idade, colega, coisa rara
É tesão, que acabou‐se sem porquê,
Minha tara também não sei cadê,
E eu padeço, pois quando minha tara
Era grande e estampava minha cara,
Eu zombava do tempo e da saúde;
Esbanjava vigor e juventude
Sem pensar que iria envelhecer.
Só agora é que pude perceber
Que nas curvas da estrada o tempo ilude.
GM – Tendo lido tais versos eu não pude
Esconder um sorriso de ironia,
Pois você, meu amigo, quem diria
Que se queixa da falta de saúde,
Se dispensa outro cabra que o ajude
Na calçada, e dirige o próprio carro!
Deve estar é tirando o maior sarro
Da desgraça dum cego que só vale
Que ao cachorro sarnento alguém me iguale
E esta língua da sola lamba o barro!
(ACOPIARA & MATTOSO, 2007, pg. 13)
O desfecho é dado em uma modalidade raríssima para o cordel e só aparecida
em pelejas, com escassez: o galope à beira mar, com versos de doze sílabas,
alexandrinos:
GM – Você versejou e ninguém o desmente
E até reconheço que sou‐lhe inferior...
Mas já demonstrei ter um certo valor
E creio que é hora de que eu apresente
Formais despedidas a toda essa gente
Do Sul ou do Norte, da rua ou do lar...
Portanto, leitores, o meu linguajar,
No fim da peleja, inda lambe seus pés
Assim como as ondas das altas marés
Areias relambem, na beira do mar...
MA – Vou sentir saudades grandes e cruéis
Da nossa peleja que agora termina;
Pepitas enormes achei numa mina
Fizemos estrofes boas, nota dez.
O nosso trabalho ganhou um viés
Que faz qualquer musa se admirar;
Por isso colega, para terminar,
Desejo saudá‐lo pelo seu talento,
E encontrá‐lo breve noutro bom momento
Na cidade ou perto da beira do mar.
(ACOPIARA & MATTOSO, 2007, pg. 19)
O galope à beira‐mar terminará sempre com a expressão “na beira do mar”.
Raras vezes apareceu em cordel, mas na cantoria é uma das modalidades mais
tradicionais e mais difíceis para os poetas, havendo aqueles que até evitam fazê‐la. As
duas estrofes fecham a peleja, escrita a quatro mãos, pela Internet.
Seguindo nossa classificação por gênero literário chegamos ao cordel narrativo.
Nele estão contemplados os folhetos épicos (a saga dos cangaceiros, vida e
ensinamentos de líderes religiosos, políticos e sociais); histórias de vaqueiros e bois; as
histórias de amor, de luta e de bravura; as histórias maravilhosas; as façanhas dos
heróis pícaros; os fatos sociais, hecatombes, desastres; as fábulas; as adaptações de
romances universais. Cumpre observar que essas subdivisões, apesar de respeitarem
sua subordinação às regras do cordel, possuem também seu traço distintivo, como
acontece nas subdivisões dos gêneros em todas as épocas. Além do motivo, outros
elementos concorrem para tornar perceptíveis as subdivisões. Os traços aglutinadores
estão ligados às características da narrativa, mas respeitam a forma do cordel. Dessa
forma, a sextilha ou a setilha será a marca textual, podendo variar para a décima, com
alguma raridade. Os outros elementos constitutivos do cordel narrativo, bem como de
qualquer narrativo são: alguém que conta a história, os personagens da história, o
espaço onde a história se desenrola, o tempo abrangido pela história, o tema e o
enredo. Esses os elementos presentes em qualquer cordel narrativo, sujeitos a todas
as conceituações da poética clássica, desde Aristóteles. Há uma infinidade de estudos
sobre eles. Não nos deteremos em seu estudo conceitual por acharmos redundante.
Procederemos a apresentação de cada uma das subdivisões do cordel narrativo com
suas características distintivas.
O cordel épico é aquele cuja definição está ligada à definição de epopéia.
Angélica Soares nos diz que:
Sendo a epopéia uma longa narrativa literária de caráter
heróico, grandioso e de interesse nacional e social, ela
apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos
(o narrador, o narratário, personagens, tema, enredo,
espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno
de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis
e deuses, podendo‐se apresentar em prosa (como as
canções de gesta medievais) ou em versos (como Os
Lusíadas). (SOARES, 1989, pg. 39)
Entre os fatos mais falados
Pelas plagas do sertão,
Temos as grandes façanhas
Dos cabras de Lampião
Mostrando quadras da vida
Do famoso capitão.
Em diversas reportagens
De revistas e jornais,
Com testemunhas idôneas,
Contando fatos reais,
Coligimos neste livro
Lances sensacionais
...
Há muitos anos passados
O cangaço era normal
Pelos sertões do Nordeste,
Parecendo até legal,
Para quem via no crime
A lei do seu tribunal.
(D’ALMEIDA FILHO, 1966, pg. 3)
Enquanto que em A pranteada morte do Pe. Cícero Romão Batista, atribuído a
José Bernardo, só a proposição de faz presente:
Muito triste e pesaroso
Chamo o leitor atenção
Para tratar num assunto
De grande lamentação
Que se acha o pessoal
Pela ausência fatal
Do Padre Cícero Romão.
(SILVA, 1982, pg. 338)
Já em A verdadeira história de Lampeão e Maria Bonita, de Manuel Pereira
Sobrinho, encontramos a invocação e a proposição:
Grande Deus senhor dos seres
Mandai‐me orientação
Idéias, forças e rimas
De que tenho precisão
Para versar a história
Da vida de Lampeão.
Existem vários poetas
Que escreveram alguns fatos
Porém com inconsistências
Devido a muitos boatos
Agora eu escreverei
Seus gozos e seus maltratos.
(PEREIRA SOBRINHO, 1964, pg. 369)
A invocação é muito mais uma questão de estilo pessoal do que norma literária
para o cordel narrativo épico. O mesmo autor Manoel Pereira Sobrinho abre outro seu
folheto narrativo com a estrofe:
Deus como reto Juiz
Mandai‐me o poder de Alah
A força, a rima e a luz
Do ex‐poeta Baad
Para escrever a chacina
Que se deu em Gravatá.
(PEREIRA SOBRINHO, 1977, pg. 313)
Ao público vou contar
A história de minha vida,
Os crimes que cometi,
Como me fiz homicida.
E porque julgo minh’alma
Eternamente perdida.
Eu nasci no Pageú
De Pernambuco no estado;
Tinha doze anos de idade,
Quando meu pai amarrado
Vi por uns seus inimigos
E por eles escoltados.
(BATISTA, 1977, pg. 36)
As histórias de vaqueiros e bois como vimos anteriormente são aquelas nas
quais um animal, o boi, alcança poderes sobrenaturais. Como exemplo, além do Boi
misterioso de Leandro Gomes de Barros, tomemos mão de O boi mandingueiro e o
cavalo misterioso, de Luiz da Costa Pinheiro. Esse folheto é especial, pois foi lançado
em dois volumes, com a data de. O animal, o boi mandingueiro é apresentado
seguindo o molde dos bichos fantásticos:
Esse boi quando corria
Segundo diz o boato
Tinha equilíbrio no corpo
Com ligeireza de gato
Por meio de forte mandinga
Corria mais na caatinga,
Do que veado no mato
Na carreira ele arrancava
Jucá velho de miolo
Sabiá e mororó
Levava tudo no rolo
Quebrava pau com as pontas
Espedaçando as vergônteas,
Caindo longe o rebolo.
(PINHEIRO, 1982, pg. 559)
Na última estrofe o narrador adverte:
Depois no outro romance
Havemos de conhecer
Na pega do Mandingueiro
O que vai acontecer
Tristeza, angustia e massada
Prazer, amor e risada
Para a barriga doer.
(PINHEIRO, 1982, pg. 589)
As histórias de amor, de luta e de bravura foram sempre apreciadas em todas
as épocas, em cordel ou não. Elas representam os ideais e os modelos de vida.
Numerosas dessas histórias povoaram o sertão e as cidades em cordel e nunca
deixaram de ser publicadas. Sejam exemplos clássicos: Zezinho e Mariquinha, Alonso
e Marina, o romance do Pavão Misterioso, Coco Verde e Melancia. Em 2006, o poeta
Marco Haurélio publicou pela Editora Luzeiro Os 3 conselhos sagrados. Uma prova de
que o tema nunca perderá o seu lugar. O narrador anuncia os acontecimentos
emocionantes na primeira sextilha:
No teatro da existência
Os dramas são encenados
E nós somos os atores
Dos palcos mais variados,
Como na pungente história
Dos três conselhos sagrados.
Descreverei neste enredo
O drama de um retirante
Que deixou sua família
Devido à seca incessante,
Indo procurar trabalho
Em uma terra distante.
(HAURÉLIO, 2006, pg. 3)
Ele disse — Minha prenda,
Nossa vida é uma estrada
E o Destino nos obriga
A fazer a caminhada —
No final, a recompensa
Aos justos é ofertada.
(HAURÉLIO, 2006, PG. 5)
A luta, que entendemos não tratar‐se apenas de luta entre humanos, mas
contra as intempéries e as diversidades, contra as tentações, contempla todo o
folheto, iniciando com a luta perdida contra a seca, a luta contra a vontade de ficar e a
necessidade de partir:
Porém nada o demoveu
E o homem se preparou,
Com uns trapos numa trouxa
No outro dia viajou.
Com o coração partido
sequer para trás olhou.
Fez todo caminho a pé
Parando pra descansar...
Por caminhos tortuosos,
Recomeçava a andar,
Consumindo muito tempo
Para ao destino chegar.
(HAURÉLIO, 2006, pg. 6)
O tema da luta prossegue com o contrato entre o dono da fazenda Paraíso e
Sebastião, o retirante:
Porém peço‐te um favor:
Aqui tu vais trabalhar
Terás comida e salário
Para aos teus auxiliar,
Mas enquanto tu ficares,
Jamais deves reclamar.
Presta atenção: se algum dia
Faltares com teu contrato
O Destino para ti
Será um carrasco ingrato
E o preço que pagarás
Não será nada barato.
(HAURÉLIO, 2006, pg. 8)
A sua cabeça estava
Por branca neve tomada
E a expressão do rosto
Ontem nobre — hoje cansada;
Das duas mãos não sabia
Qual era a mais calejada.
(HAURÉLIO, 2006, pg. 11)
Na véspera de terminar o contrato, o patrão, cujo nome é Gabriel, e os dois
nomes tomam conotação maravilhosa a partir daí, ligados que estão à tradição cristã,
um pelo sofrimento e outro pelas boas novas que trás, o patrão lhe oferece como
pagamento os três conselhos e o pão:
Gabriel então lhe disse:
— Por teus anos de trabalho,
Receberás três conselhos
Pra não teres atrapalho.
O primeiro é: “Nunca deixes
A estrada pelo atalho.”
Presta atenção ao segundo,
Porque será dura a prova:
“Chegando em casa de velho
Casado com mulher nova,
Não durmas lá ou então
Estarás com um pé na cova”.
Por fim, escuta o terceiro,
Não banques o imprudente,
“Quando olhares uma coisa,
Tenta controlar a mente;
Pra não fazeres loucura,
Olha tudo novamente”.
(HAURÉLIO, 206, pg. 13)
Claro que aos três conselhos corresponderão três situações embaraçosas, as
quais Sebastião ultrapassará como um Édipo do sertão. No retorno a casa, sem
dinheiro, velho, passados 30 anos, não é reconhecido, nem pelo filho, nem pela esposa
que o esperou durante todo o tempo.
Batendo à porta, à noite, Sebastião é convidado a entrar e a jantar. Quando vê
a esposa, depois de ter ouvido toda a história dele mesmo, cai em prantos e se revela:
Sebastião levantou‐se,
Com o olhar compungido,
E disse: — Eu trago notícia
Do suposto falecido,
Pois quem fala nesse instante
É Bastião, teu marido.
(HAURÉLIO, 2006, pg. 31)
Pegou o pão e partiu,
Contudo por desaforo,
Caíram no assoalho
Muitas moedas de ouro!
Sebastião, sem saber,
Levava um grande tesouro.
...
Foi aí que ele entendeu
Na hora o grande mistério:
O seu patrão Gabriel
Era um arauto do Etéreo,
Simbolizando a Justiça
Em seu aspecto sidéreo.
A fazenda Paraíso
Era a terrena extensão
Do jardim primordial,
Onde o Pai da Criação
Na sua semeadura
Fez os herdeiros de Adão.
(HAURÉLIO, 2006, pg. 32)
O folheto termina com a tradicional estrofe em acróstico, na qual se resume o
poema e seus motivos, de onde concluímos ser a história representativa do cordel
narrativo de amor, de luta e de bravura, bem como uma história maravilhosa:
Há na senda da existência
Alturas e descampados,
Unindo os que se separam,
Remindo os desventurados –
E os homens nela prosseguem
Levando fardos pesados.
Imitemos os que seguem
Os três conselhos sagrados.
(HAURÉLIO, 2006, pg. 32)
As façanhas de heróis pícaros são comuns no Nordeste: João Grilo, João Leso,
Pedro Malazartes, Cancão de Fogo, herdeiros de uma tradição na qual se colocava
Camões como modelo. Folhetos muito populares, talvez sua inauguração tenha se
dado com A vida de Cancão de Fogo e seu testamento, publicado antes de 1911, de
Leandro Gomes de Barros, no qual o herói é apresentado dessa forma:
Leitor, se não se enfadar
Desta minha narração,
Leia a vida deste ente
E preste toda atenção
Que foi o quengo mais fino
Dessa nossa geração.
Pois ele desde criança
Sabia a tudo iludir,
Estradeiro muito velho
Não o poude competir
O Cancão nunca armou laço
Que alguém pudesse sair.
(BARROS, 1964, pg. 421)
Ora está à procura de alguém para passar a perna:
Saiu encontrou um velho
Que andava ali perdido;
O velho era sertanejo
E ali desconhecido
Não sabia de um hotel
Onde fosse garantido.
(BARROS, 1964, pg. 422)
A vida de Cancão foi escrita em dois volumes. Depois de muitas idas e vindas,
apronta um golpe em um vigário, mas aí o narrador conclui a história com o célebre
convite, já conhecido, de Leandro, o autor:
Leia o segundo volume
Desse livro apreciado,
E veja o que fez Cancão
Depois de tudo arranjado
Com o dinheiro das esmolas,
Deixando o padre danado.
(BARROS, 1964, pg. 436)
O caso de João Grilo, personagem pícaro mais famoso do sertão, graças às
artimanhas do teatro e da televisão, no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, é
uma criação do cordelista João Ferreira de Lima, sem data de indicação para a
publicação. As proezas de João Grilo é um folheto peculiar devida à mudança de estilo
e de forma no desenrolar da história, fazendo‐nos supor que seja um híbrido de dois
autores distintos. Inicia com as tradicionais sextilhas, apresentando o herói:
João Grilo foi um cristão
Que nasceu antes do dia
Criou‐se sem formosura
Mas tinha sabedoria
E morreu depois da hora
Pelas artes que fazia.
(LIMA, 1964, pg. 463)
Pícaro que é, vive de pequenos golpes e espertezas. A partir da sextilha 31, a
narrativa prossegue em setilhas. Além da forma, é notória, ainda, uma mudança de
estilo, com um narrador retomando alguns fatos da infância de João Grilo, como se
esquecera de alguns detalhes. O folheto termina com a sabedoria de João Grilo sendo
louvada e reconhecida, depois de tantas peripécias:
Toda corte imperial
Pediu desculpa a João
E muito tempo falou‐se
Naquela dura lição
E todo mundo dizia
Que sua sabedoria
Era igual a Salomão.
(LIMA, 1964, pg. 478)
É o poeta Marco Haurélio quem retoma as aventuras e desventuras de João
Grilo, na contemporaneidade. Depois de escrever as Presepadas de Chicó astúcias de
João Grilo, celebrando a formação da dupla famosa de Ariano Suassuna, publica pela
Tupynanquim Editora, do Ceará, as Traquinagens de João Grilo:
As tradições culturais
Do Brasil são variadas,
Semente de poesia
No nosso solo plantadas,
Na alma do nosso povo
Totalmente enraizadas.
Dentre essas tradições,
Se inclui a literatura
De folhetos ou cordel,
Jóia de nossa cultura,
Que o Nordeste brasileiro
Elevou a toda altura.
No cordel, um personagem
Inaugurou novo estilo,
No folheto intitulado
As proezas de João Grilo.
É o esperto amarelinho
Que jamais deu um vacilo.
Quem não conhece João Grilo,
Um menino do sertão,
Personagem que hoje é
Famoso em toda nação?
Pequeno, amarelo, frágil,
Eis o retrato de João.
(HAURÉLIO, s. d., pp. 1‐2)
Apesar da não indicação de data, podemos afirmar que o folheto é de 2008
pelas indicações biobibliográficas da contracapa nas quais já se encontra listado o
folheto Galopando o cavalo pensamento, de 2007. Além da retomada das peripécias
de João Grilo, esse folheto traz duas inovações alvissareiras para o mundo do cordel.
Pela primeira vez um folheto apresenta um glossário, na página 14, listando cinco
palavras:
GLOSSÁRIO
Sesmaria: terra não cultivada ou de grande extensão.
Queixada: espécie de porco do mato.
Caipora: entidade fantástica que, segundo a crença popular,
habita as matas e é retratada como um anão coberto de
pelos.
Cabra: tratamento comum no Nordeste brasileiro. Sempre
se refere a indivíduos do sexo masculino e pode ser elogioso
ou desrespeitoso, dependendo de quem o emprega.
Quipá: espécie de cardo rasteiro, no Nordeste brasileiro. O
famoso Lampião perdeu uma vista, após ser atingido por um
espinho de quipá, após um tiroteio.
Esse mini glossário é importante, como marco na publicação do cordel. Deixa‐
nos ver a preocupação com leitores de outras regiões não atualizados quanto a alguns
termos regionais nordestinos. Esse folheto introduz, ainda, pela primeira vez, na nova
geração de cordelistas e folhetos publicados, um conto popular em prosa: O macaco
que pediu sabedoria a Deus. Ressaltando que muito se debateu sobre a presença da
prosa no cordel ou o cordel em prosa, essa decisão do autor e do editor são bem
vindas aos cordelistas porque pode simbolizar uma nova tomada de rumo,
significando, consequentemente, novos estudos e classificações. Alguns estranharam a
presença desse conto em prosa, mas é fácil explicar: Marco Haurélio além de
cordelista é pesquisador e senhor do seu ofício e um dos arrimos do cordel produzido
e publicado na atualidade.
O cordel circunstancial, aquele onde se narram os fatos sociais, as hecatombes
e os desastres, foi utilizado durante muito tempo para respaldar o cordel como o
“jornal do sertão”. As notícias chegariam até as populações isoladas do sertão
nordestino via folhetos de cordel. O anúncio do fim do cordel foi propagado com a
aparição do rádio transistor e da televisão. Com eles, o cordel ficaria obsoleto em sua
função social de noticiar. O erro dos que assim se pronunciavam foi em não levar em
consideração a literariedade do cordel. É um livro de histórias e nunca vai desaparecer,
mesmo com todo o avanço da tecnologia, que se transformará só em mais um veículo
divulgador, pois um traço fundamental da humanidade é o contar e ouvir histórias. O
livro, o papel, pode até ser substituído, como o foram os pergaminhos, os papiros, as
pranchas de argila, mas a essência, o motivo, se perpetuará com os Homens.
O cordel narrativo circunstancial é aquele que noticia com realismo os fatos
acontecidos. Desde a geração princesa que ele está presente. Atualmente se ressente
de pouca produção, talvez motivado pela espetacularização da mídia que cria
verdadeiros enredos noticiosos com capítulos esperados nos jornais todos os dias,
entretanto há cordelistas aficcionados dessa modalidade e a produzem com
exclusividade, utilizando‐se da Internet para divulgação ou financiando suas próprias
publicações. Podemos citar, da fundação do cordel Sacco e Vanzetti aos olhos do
mundo, que reproduz a notícia sobre o rumoroso caso envolvendo os dois imigrantes
anarquistas italianos na América do Norte acusados de latrocínio e executados na
cadeira elétrica em 1920, em Nova York. O cordel correu o Nordeste:
Caro leitor, este livro
É de verdades reais
Trata da lei de um país
E três sentenças fatais
A história aqui contada
Foi igualmente tirada
Da notícia dos jornais.
(ATAÍDE, 1964, pg. 177)
Como é uma notícia, a narrativa entra por pormenores biográficos, descrição
dos crimes, testemunhas ouvidas e desfecho com a eletrocução dos acusados. O
narrador posicionando‐se a favor da inocência dos dois acusados:
Duas vidas que se foram
Duma forma dolorosa
Para as quais a esperança
Sempre fugiu caprichosa
Morrer assim tão fatal
Quem sonhava o ideal
De uma existência de rosa.
(ATAÍDE, 1964, pg. 183)
Apesar de requerer imparcialidade, o narrador do cordel circunstancial não está
desprovido de opinião: apóia e condena, põe‐se a favor ou contrário, não se omite.
Conta a história, mas esclarece de que lado está ou se comove, como na notícia de O
grande incêndio em Copacabana (ocorrido no dia 14 de agosto de 1955), de Apolônio
Alves dos Santos.
No Distrito Federal
Deu‐se uma cena tirana
Que esta fez comover
Toda criatura humana
Um grande incêndio que deu‐se
Na praia Copacabana.
...
Aqui encerro a história
Vertendo lágrimas sentidas
Lamentando aqueles lares
Que ficaram sem guaridas
Dinheiro, roupas e jóias
Pelas chamas destruídas.
(SANTOS, 1977, pp. 37‐39)
A Bahia... sim... a Bahia
Conforme digo em meu verso
Berço de Ruy Barbosa
Que foi prá outro universo
Se sente regosijada
Pelo nosso grande congresso.
(LESSA, 1984, pg. 20)
Como já salientamos, o cordel tem regras fixas e rígidas. A métrica do verso
setessílabo, a redondilha maior, é a matriz da poética cordelística. A rima deve ser
respeitada e só em casos especialíssimos de licença poética pode ser quebrada. É
como o soneto clássico, não suporta mutilação. Olhando o verso de Cuíca, as
mutilações saltam à vista. Ao contar as sílabas do primeiro verso já se depara com a
aberração de um verso de oito sílabas, nunca contemplado no cordel. O terceiro verso
vem mutilado com apenas seis sílabas. E o último verso volta a contar oito sílabas. A
rima que seria em “verso” é abalroada e obrigada a rimar em “esso”. Cordelista que se
preze não cometerá tamanhas agressões à sextilha como essas. Encontraremos versos
até de nove sílabas: E para que o nosso Congresso (LESSA, 1984, pg. 20). E de cinco: E
todos irmanados (LESSA, 1984, pg. 20).
Umberto Peregrino o coloca entre os maiores cordelistas do Brasil:
M. Cavalcante de Proença cita‐o:
Veja só quanta miséria
Veja só quanta agonia
Veja a que ponto
Chegou a nossa Bahia
O povo sem trabalhar
Por falta de energia.
(Até nos hospitais
O pobre sofre agonia
Na mesa de operação
Ele passa todo dia
Tudo isto por que?
Pela falta de energia)
Parece que estes homens
Sentem a maior alegria
De verem os nossos veixames
Por verem a nossa agonia
Parece‐me que estes homens
Também perderam a energia.
(PROENÇA, 1977, pg. 89)
Fecundidade e irreverência presentearam Cuíca de Santo Amaro com uma obra
interferente na sociedade, válida pela sua atualidade, mas como cordelista residia‐lhe
grande dúvida. Vejam‐se os pés quebrados dos versos “Veja a que ponto”, “Até nos
hospitais”, “Tudo isto por que?”. A fecundidade apressada deixa versos como esses
passarem sem revisão.
Outra categoria inserida nos cordel narrativo é a fábula. Desde tempos
imemoriais que as fábulas formam uma certa base literária na cultura ocidental.
Histórias de animais são contadas e aproveitadas para a moralidade e os exemplos. É o
cordelista José Pacheco quem dá ao seu narrador de A festa dos cachorros a fala para
explicar:
Eu ainda estou lembrado
Que meus bisavós contavam
Muitas histórias passadas
De quando os bichos falavam
Como bem fosse a da festa
Quando os cachorros casavam.
(PACHECO, 1982, pg. 434)
No cordel os animais se humanizam, ou seja, carregam todas as características
humanas e geralmente servem ao gracejo e ao riso. Assim os animais de José Pacheco
se submetem a leis sociais:
Contudo sempre viviam
Em regimes sociais
Respeitando os governos
Nos atos policiais
Crendo no catolicismo
Conforme a lei de seus pais.
(PACHECO, 1982, pg. 433)
As narrativas são em sua generalidade cômicas e não devem ser confundidas
com o que se denominou ciclo dos animais, como O boi misterioso. Nesses, os animais
estão envoltos em aura sobrenatural. Na fábula, os animais são os personagens, como
no Casamento e divórcio da lagartixa, de Leandro Gomes de Barros:
Disse a Lagartixa um dia:
“Eu só ficarei solteira
Se não achar nesta terra
Um diabo que me queira,
Procurarei desde as casas
Até o largo da feira.”
...
Quando o Calango viu ela
Ficou todo animado
Disse consigo: Já sei
Hoje volto transformado...
Também disse a Lagartixa:
Já encontrei namorado.
(BARROS, 1964, pp.211‐ 212)
No tempo do carrancismo
Tempo em que os bichos falavam,
Como hoje vivem os homens,
Eles também transitavam
Haviam muitas questões,
Casos fundos que se davam.
(BARROS, 1980, pg. 98)
Caro leitor escrevi
Tudo que no livro achei
Só fiz rimar a história
Nada aqui acrescentei
Na história grande dela
Muitas coisas consultei.
(CASCUDO, 1984, pg. 46)
Cascudo nos diz que “a originalidade da versão sertaneja do Brasil é ser em
versos quando todas as outras conhecidas se mantêm em prosa.” (CASCUDO, 1984, pg.
31). João Martins de Ataíde adaptou a história da princesa Magalona. Deu‐lhe o título
de A fugida da princesa Beatriz com o conde Pierre, de quem Cascudo diz:
“Transcrevo a obra do Sr. João Martins de Ataíde por ser incontestavelmente mais
limpa e mais típica” (CASCUDO, 1984, pg. 46). O narrador de Ataíde não se apresenta
nem fala em adaptação. Conta a história, trocando o nome de Magalona para Beatriz.
A última estrofe reserva o final feliz:
Daquela data em diante
Foi sepultada a tristeza,
Pierre casou‐se logo
Com a sua amada princesa
Ficou morando em Provença
No apogeu da riqueza.
(CASCUDO, 1984. Pg. 59)
Francisco das Chagas Batista adaptou a História da Imperatriz Porcina, sobre
quem se pronuncia Cascudo: “Francisco das Chagas Batista escreveu a história da
Imperatriz Porcina em sextilhas e a publicou na Paraíba.” (CASCUDO, 1984, pg. 133).
Como sempre, os romances acabam em final feliz, os malvados são punidos e os
inocentes agraciados. A sextilha final:
Viveram mais muitos anos
Na maior felicidade,
No mais puro e santo amor
Sempre cheios de bondade
E mui velhinhos já estavam
Quando os anjos lhes chamavam,
Pra viver na eternidade.
(BATISTA, 1964, pg. 131)
Meu povo me dê licença
Eu vou fazer um pedido:
Deixe eu contar uma história
Um sucesso acontecido,
De uma mulher que passou
Dez anos sem seu marido.
(MOTA, 1987, pg. 182)
E como sempre, depois das tentações e tropeços de um capitão de um navio
que a mantivera presa, o final feliz:
O Rei então se lembrou
Daquela voz advinha
E disse muito sentido:
— Sei que és esposa minha!
Chamou ela pro seu lado
E lhe vestiu de rainha.
(MOTA, 1987, pg. 190)
Outras histórias adaptadas são recontadas em cordel, de Carlos Magno e
Roberto do Diabo a João da Cruz e Pedro Cem. A geração princesa foi a iniciadora
deste tipo de folheto cuja herança se vê chegar aos dias de hoje e é de suma
importância para a história do cordel no Brasil.
Grandes romances da literatura nacional também foram adaptados para o
cordel. Duas adaptações que consideramos das melhores são a de Iracema, o romance
de José de Alencar, e Luzia‐Homem, de Domingos Olympio. A primeira é uma reedição
patrocinada pela ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel), da autoria de
Alfredo Pessoa de Lima. É uma obra primorosa com momentos de rara beleza e
maestria no verso, como este sobre o Ceará:
Terra da luz, onde outrora
Como um dourado vergel
Brotaram as lendas da raça
Sob o estrelado céu
Onde o arco e a tangapema
Fazem lembrar Iracema,
Virgem dos Lábios de Mel.
(LIMA, 2005, pg. 3)
É a mesma história da índia virgem apaixonada pelo homem branco português,
cujo narrador diz que, ao realizar a adaptação está prestando homenagem ao escritor
do romance:
Recanto de minha terra
Que Alencar tanto amou
Eu vou traduzir em trovas
O que ele em prosa falou,
É meu tributo e homenagem
A raça brava e selvagem
Que o tempo a correr levou.
(LIMA, 2005, pg. 3)
— De onde vens, homem estranho,
Que aqui no sertão vagueias?
Tens os olhos cor das águas
E a face cor das areias
Em que distante sertão
Mora o povo teu irmão
Estás perdido ou vagueias?
Martim falou para a índia
Na língua que ela falou:
— Venho de terras distantes
Que teu povo nunca andou
Ficam distantes estas terras
Muito além daquelas serras
Que teu pé nunca pisou.
(LIMA, 2006, pg. 6)
O final do folheto é pungente, com a morte e o sepultamento de Iracema. O
narrador deixa suas duas últimas estrofes:
No outro dia Poty
Veio ajudar seu irmão
Enterrar sua esposa
E assim naquele sertão
Foi dormir o sono eterno
Aquele amor franco e terno
O mais leal coração.
E assim findou‐se o drama
De um amor santo e fiel
A índia trocou a vida
Por uma taça de fel
Mas o nome Iracema
Está vivo em seu poema
“Virgem dos lábios de mel”.
(LIMA, 2006, pg. 48)
Corre entre os poetas cordelistas que a adaptação é uma das tarefas mais
difíceis de se produzir. A fidelidade ao autor original ou o distanciamento poético sem
desobedecer à trama são tarefas complexas. Só o poeta, aquele que além da técnica
também domina as artes da poesia ou deixa‐se por ela guiar, é quem obterá êxito na
adaptação. O paraibano Alfredo Pessoa de Lima emociona o leitor na reconstrução do
clássico da literatura nacional.
Arievaldo Viana adaptou Luzia‐Homem e publicou‐a pela Editora Tupynanquim
depois de ter vencido o V Prêmio Domingos Olympio de Literatura, promovido pela
Prefeitura Municipal de Sobral‐CE, em setembro de 2002. Arievaldo tem vários títulos
publicados em cordel como já falamos na introdução de nosso trabalho. O narrador
atualiza o tempo e o espaço, além de descrever a personagem protagonista pelos
quais a história escoará:
Seca de setenta e sete
Estranho e terrível mal
O século é dezenove
E o cenário é Sobral
Sob um sol causticante
Vemos uma retirante
Lá no morro do curral.
O seu talhe é esbelto
E o rosto muito bonito
Possui o braço mais forte
Nesse cenário maldito
Canseiras não a consomem
Lhe chamam Luzia‐Homem
Pelo seu jeito esquisito
(VIANA, s. d., pg. 5)
Achando‐a só um instante
Tratou de lhe agarrar
Chamando por Alexandre
Pôs‐se Luzia a gritar
Travou‐se luta mortal
E aquele bruto animal
Entendeu de lhe matar.
Defendendo sua honra
Luzia ainda lutou
Com suas unhas um olho
De Crapiúna arrancou
E tombou morta em seguida
A sua amada sem vida
Pobre Alexandre encontrou.
(VIANA, s. d., pg. 13)
Em 2008, a Editora Nova Alexandria deu início a uma coleção que causará uma
reviravolta no cordel: Clássicos em Cordel. São livros de 48 páginas, em papel reciclado,
capas duras em policromia, ilustrados, contendo a adaptação de grandes clássicos
universais. É o momento de restaurar a dignidade dessa categoria fundadora do cordel
narrativo. Quando da finalização de nosso estudo a editora acabara de lançar Canaã, o
clássico de Graça Aranha, adaptado por Klévisson Viana.
O curador da coleção é o poeta e pesquisador baiano Marco Haurélio, ao redor
de quem gravita a nova geração de cordelistas radicados em São Paulo e no Ceará.
Esse grupo forma uma espécie de vanguarda literária pensando o cordel como suporte
pedagógico, como literatura brasileira e como produto de mercado. Foi ele o
responsável pela adaptação dos clássicos.
A Clássicos em Cordel, além do texto poético, traz um pequeno estudo sobre a
obra adaptada, uma biografia do autor original, bem como do poeta que a adaptou. Já
estão publicados: Os miseráveis, de Victor Hugo, adaptado por Klévisson Viana;
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, por Varneci Nascimento;
Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, por Moreira de Acopiara; Viagem ao centro da
terra, de Júlio Verne, por Costa Sena; O Alienista, de Machado de Assis, por Rouxinol
de Rinaré; A megera domada, de Shakespeare, por Marco Haurélio; O corcunda de
Notre Dame, de Victor Hugo, por João Gomes de Sá; no prelo O conde de Monte
Cristo, por Marco Haurélio.
Esse grupo de poetas retoma de maneira profissional, coisa que faltou ao
cordel durante sua formação, a tradicional maneira de contar as histórias sem
fronteiras. Os autores são respeitados em seus direitos, seus títulos ganham o ISBN, a
marca mundial de autoria e o cordel entra definitivamente no catálogo das grandes
livrarias e distribuidoras.
Antes da coleção Clássicos em Cordel, dificilmente se encontrava cordel nas
prateleiras das livrarias brasileiras. O preconceito com o produto, e nisso os editores e
autores de cordel também são responsáveis, deixava‐o para a venda nas ruas, nos
sebos ou nas pequenas barracas das feiras. Não que sua forma de venda tirasse
dignidade ou literariedade ao produto e seus autores, mas que o deitava ao gueto.
A resistência dos editores e cordelistas em adequar o cordel aos novos tempos,
com edições mais cuidadas, produção melhor apresentável, residia, e ainda reside, no
pensamento sob o qual o cordel tem que manter as mesmas características da geração
princesa, correndo o risco de perder sua autenticidade e seu modo de divulgação, sob
pregão oral e abordagem de leitores.
Como produto do mercado editorial, o cordel necessita seguir os rumos do
mundo moderno e sua rapidez midiática. O que não pode mudar é sua essência, sua
poética, sua linguagem. Nesse ponto a Clássicos em Cordel tem muito a ensinar. Como
exemplo vamos observar com maior curiosidade três títulos. O primeiro deles é O
Alienista, de Rouxinol de Rinaré.
Rouxinol é um dos melhores contadores de história em cordel e depositário do
roteiro clássico do cordel. Cearense, de Quixadá, nascido no distrito de Rinaré, que
acabou por adotar como pseudônimo. Segundo a biografia resumida na edição:
Ó Ser que tem me inspirado
Nos romances que já fiz,
Agora conduz meu estro,
Para que eu seja feliz,
Adaptando este conto
De Machado de Assis.
(RINARÉ, 2008, pg. 15)
O bom cordelista, o poeta, sabe que a sextilha invocatória deve conter
elementos capazes de identificar a natureza da composição. Essa sextilha de Rinaré
contém toda a tradição invocatória desde a geração princesa. Tentemos uma
exemplificação, mas advertimos que essa sextilha não é obrigatória no cordel, trata‐se
de traço estilístico do autor e aparece nas longas histórias de amor e superação a que
alguns chamam de romances, no cordel narrativo. Tanto como o acróstico que revela a
autoria com luzes fortes sobre o nome autoral, a invocação também se presta a
identificar alguns autores.
Venham as musas soberanas
Minha idéia iluminar
Com a luz do Santo Reino
Que eu vou em verso contar
O romance da Princesa
Do Reino de Mira‐Mar.
(CARIOCA, 1982, pg. 197)
Na estrofe de Rouxinol e de carioca a palavra “romance” está presente. É a
classificação, como já dissemos, não de uma obra com mais de 24 páginas, mas de uma
história de cujos personagens se veja, subjugados a tensão. O alienista é um conto
tensionado, não um romance no sentido em que a classificação de Liêdo Maranhão
apresenta. Esse romance de Inácio Carioca é o Romance de João Cambadinho e a
princesa do reino de Mira‐Mar. Tem 16 páginas, logo seria um folheto, mas o autor
resolveu chamar de “romance”, movido pelo conteúdo. Outra invocação, retirada de
um folheto realista e descritivo:
Leitores, se Deus me der
Um pensamento altaneiro,
Pretendo nas rudes páginas
Deste livrinho grosseiro
Falar com necessidade
Da grande calamidade
Do nordeste brasileiro.
(SILVA, 1964, pg. 239)
Uma última:
Virgem mãe Virgem das dores
Dai‐me vossa proteção
Pra eu em verso rimado
Contar com bem perfeição
O sonho de nosso mestre
Padrinho Cícero Romão.
(BATISTA, 1964, pg. 353)
Rouxinol de Rinaré recebe a tradição e a perpetua em O alienista. Cumpre na
sextilha o sumário de sua história. Confessa já ter escrito muitos romances, todos
inspirados pelo Ser, que deduzimos ser Deus. Entrega à vontade desse Ser a condução
de seu estro, ficando feliz por fazer‐se veículo para essa força. Por fim, confessa ser
essa obra uma adaptação partida do clássico da literatura brasileira Machado de Assis.
Deduzimos que este Ser a quem o narrador se refere é Deus porque na segunda
estrofe vem a referência direta a Ele:
Deus, em sua onisciência
E seu saber soberano,
É quem pode perscrutar
(Sem incorrer no engano)
Os insondáveis mistérios
Da mente do ser humano!
(RINARÉ, 2008, pg. 15)
No conto de Machado, o alienista Simão Bacamarte termina se auto‐internando
na Casa Verde, hospício criado por ele para depositar os loucos de Itaguaí. Assim
termina a adaptação:
Assim o alienista
Trancado morreu ali.
Mesmo com toda Ciência,
Leitor, se conclui aqui:
Era ele o único louco
Da Vila de Itaguaí!
(RINARÉ, 2008, pg. 48)
Toda adaptação dá origem a uma nova obra. Aqui também. A adaptação de
Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, por João Gomes de Sá é, de fato, uma outra
obra. O poeta reuniu coragem para transpor a história passada na Paris medievalesca
para o sertão nordestino.
João Gomes de Sá é alagoano e autor profícuo, tendo escrito A luta de um
cavaleiro contra o Bruxo Feiticeiro, profundamente enraizado na tradição cordelística.
Em O Corcunda de Notre Dame, a adaptação de Notre Dame de Paris, ele se supera
em maestria. Suas sextilhas iniciais são primordiais:
O romance do Corcunda
De Notre Dame, leitor,
Escrito por Victor Hugo,
Aquele grande escritor.
Em versos vou recontá‐lo
Sua atenção, por favor.
Antes, porém, quero dar
Essa breve explicação:
O cenário do Corcunda
Eu trago para o sertão;
O Nordeste brasileiro
É palco de toda ação.
(SÁ, 2008, pg. 13)
Além da mudança do cenário para Santana de Cajazeira, denominação
nordestina, alguns personagens também mudam de nome. Quasímodo passa a
Quasimudo e seu guardião a Padre‐Mal. Para nós é de extrema sagacidade a
transposição da história. Ao poeta deve ser dado o direito de, na hora da adaptação,
escolher cenário e nomes novos, sem alterar o enredo e o argumento original, já que o
objetivo da coleção é apresentar a obra, incentivar o leitor a contactar a matriz. Além
de nutrir a tradição do cordel narrativo adaptado de ousadia, na transposição do
cenário, João Gomes assina seu cordel com o tradicional acróstico grafado
JGSACORDEL:
Jamais o pobre Corcunda
Galgou deixar seu cantinho.
Santana de cajazeira
Abastece seu caminho,
Como elo para pedidos,
O norte para o bom ninho;
Recebe todo romeiro,
Dando‐lhe muito carinho;
E espera ver seus fiéis
Libertos de tanto espinho.
(SÁ, 2008, pg. 47)
Talvez deva‐se, também, a Leandro Gomes de Barros o uso do acróstico no
cordel. Surgido para atestar a autoria, terminou por incorporar‐se como marca
estética. A maioria dos cordelistas o utiliza, hoje mais pelo efeito técnico do que pela
necessidade de autenticação, entretanto Leandro foi o primeiro a utilizá‐lo para
proteção de seus direitos autorais. Passou a escrever em acrósticos os versos finais de
seus folhetos não conseguindo, assim, vencer a “pirataria”, sim, porque muitos se
aproveitavam para reproduzir seus folhetos assinando‐os, passou a estampar sua
fotografia na contracapa dos mesmos com os seguintes dizeres: “Aos meus caros
leitores do Brasil — Ceará, Maranhão, Pará e Amazonas — aviso que desta data em
diante todos os meus folhetos completos trarão o meu retrato.” A seguir dá o motivo
de tal decisão: “Faço este aviso afim de prevenir aos incautos que têem sido
enganados na sua boa fé por vendedores de folhetos menos sérios que têem alterado e
publicado os meus livros, comettendo assim um crime vergonhoso.” Assina e data
Recife, 9 de 7 de 1917.
O acróstico passou a ser a assinatura do poeta. Sua marca contra a adulteração
do seu trabalho. Estampou‐se, com o acróstico, o fato comum no meio literário do
cordel: a apropriação de obra de autor. Os poetas fizeram largo uso dele. João Gomes
de Sá deixa ao público mais jovem esta marca do cordel. Alguns exemplos: de A Praga
de Gafanhoto no Sertão Paraibano, de Caetano Cosme da Silva:
C om fé em Deus verdadeiro
A pessoa que viver
É feliz em todo canto
T ambém tem muito prazer
A lcança toda vitória
N ão tirando da memória
O Deus de tanto poder.
(SILVA, 1964, pg. 248)
De A Malassombrada Peleja de Francisco Sales com o “Negro Visão”:
F aço ponto meus amigos
S obre a tremenda porfia
A todos peço desculpas
L endo esta poesia
E spero de cada um
S ua boa garantia
(SALES, 1964, pg. 301)
De A Verdadeira História de Lampião e Maria Bonita, de Manuel Pereira
Sobrinho:
P rovou que quis viver bem
E stimado e sendo amado
R evoltou‐se com razão
E mbora sem resultado
I mplantou o terrorismo
R olou no véu do abismo
A té o último intrigado
(PEREIRA, 1964, pg. 385)
É necessário observar que a confecção do acróstico requer estudo e reflexão.
Os versos devem estar inseridos na narrativa. É a conclusão do trabalho, como uma
máxima. O arranjo do nome, isso como licença poética nesta tradição, interfere na
estrutura geral do cordel. Os exemplos que coloquei servem a essa observação. O
acróstico de Caetano: o E vem acentuado, atrapalhando a pronúncia do seu nome. O
caso do Francisco Sales, o segundo exemplo, no texto original vem assim F., com o
ponto abreviando o Francisco. No terceiro exemplo, acontece a seguinte curiosidade: o
cordel é todo sextilhado. Percebendo que Pereira tem sete letras, o autor muda a
estrutura das estrofes para sete versos. É uma regra do cordel: no acróstico é
permitido alterar o número de versos da estrofe para que se adéqüe ao nome do
autor. É uma das riquezas do Cordel.
Vejamos como termina o folheto A Chegada de Getúlio Vargas no Céu e seu
Julgamento, conheceremos o autor pela assinatura:
Assim Getúlio foi salvo
Do seu gesto delirante
E breve virá à Terra
Como um chefe triunfante
Para ajudar o Poeta
RODOLFO C. CAVALCANTE.
(CAVALCANTE, 1964, pg. 361)
Não querendo interferir na estrutura geral do cordel, Rodolfo Coelho
Cavalcante preferiu assinar‐se no último verso com o nome completo, abreviando, o
Coelho. Um outro caso encontrado no folheto Morte, Saudade e Lembrança de
Severino Ferreira, de Zé Saldanha:
S obre a dívida da morte
A nossa vida é quem paga,
U m bom amigo da gente
D aqueles que a gente afaga,
A morte dura e malvada
D á‐lhe uma boa bordoada
E le depressa se apaga
D e Severino Ferreira
É muito forte a lembrança
S ua voz bonita e mansa
E stilo bom de primeira
V erso limpo sem zonzeira
E ra o poeta da gente
R ima rica e competente
I mproviso belo e risonho
N o mundo lindo de um sonho
O nde Deus está presente
(SALDANHA, 2001, pg. 58)
A migo leitor‐menino
C ontei o aquário do sonho
C antando a sorte‐destino
I mprovisado no estranho
O vo de bola‐de‐vidro:
L ivro em redoma de livro,
Y ara em redondo banho.
(ACCIOLY, 1980, pg. 176)
Como dissemos, Accioly não é cordelista e não se sente preso à tradição da
rima perfeita, soante, no cordel. Por isso dá‐se o direito de furar a rima como bem
percebemos nas estrofes reproduzidas. O acróstico servirá de passagem para a
adaptação de A megera domada, de William Shakespeare, por Marco Haurélio, um
mestre da adaptação, sobre quem já falamos anteriormente. Aproveitamos a
apresentação do volume feita por Assis Ângelo:
A adaptação de A megera... é peculiar, pois passa do teatro, a comédia, para o
cordel, sem a interferência da narrativa em prosa. Da linguagem dramática deságua na
linguagem cordelística. É um caso raro de adaptação. Marco Haurélio já adaptara o
conto Os 3 conselhos sagrados, colhido por ele, segundo consta em nota do folheto:
O conto popular em que se baseou esta versão foi
narrado por Maria Rosa Fróes, residente em Brumado, Bahia
(antiga Bom Jesus dos Meira). A informante, à época da
recolha, feita em 2005, tinha 87 anos. (HAURÉLIO, 2006, pg.
2)
Meus bons amigos, agora
Eu devo me despedir.
Graças a sua atenção,
Em frente posso seguir
Riscando do meu caderno
A palavra desistir.
Desanimar é bobagem
O Petrúquio é a prova
Mesmo quando a circunstância
A sua idéia reprova,
Desistindo, não se chega
A uma consciência nova.
(HAURÉLIO, 2009, pg. 47)
Coma essas apreciações passamos ao terceiro tipo de folhetos: o reflexivo. Esse
terceiro tipo de nossa classificação literária compreende os cordéis marcados, como o
próprio nome já diz, pela reflexão sobre assuntos variados. Folhetos encampados nas
classificações temáticas como críticas, sátiras, a.b.c, conselhos, nos quais um eu‐lírico
não quer narrar uma história, mas pensar o mundo e a sociedade, natureza e seus
mistérios, a moralidade e a religião. São muitos os folhetos que se enquadram nessa
categoria. Queríamos denominar essa categoria de cordel lírico. Achamos por bem não
fazê‐lo, por enquanto, por entendermos o lirismo como uma constante em qualquer
tipo de cordel. Musicalidade, ritmo, métrica, rima são traços do lírico presentes em
qualquer cordel. Emoção é uma marca fundamental do cordel. O vocativo (Leitores,
prestem atenção/ Na história que vou contar) determina um eu que quer ser ouvido e
passar sua versão. Nas pelejas há intenso lirismo na voz de cada um dos personagens.
Talvez até o final dessa nossa explanação tenhamos decidido pelo lírico ao invés de
reflexivo, ou criemos um híbrido redundante lírico‐reflexivo.
Victor Manuel de Aguiar e Silva diz‐nos a certa altura de sua Teoria da
Literatura quando trata do gênero lírico:
A lírica, com efeito, não representa o mundo exterior
e objetivo, nem a interação do homem e deste mesmo
mundo; assim se distinguindo fundamentalmente da
narrativa e do drama. A poesia lírica não nasce do anseio ou
da necessidade de descrever o real que se estende perante o
eu, nem do desejo de criar sujeitos independentes do eu do
poeta lírico, ou de contar uma ação em que se oponham o
mundo e o homem, ou os homens entre si. A lírica enraíza‐se
na revelação e no aprofundamento do próprio eu, na
imposição do ritmo, da tonalidade, das dimensões, enfim,
desse mesmo eu, a toda a realidade. (AGUIAR E SILVA, 1973,
pg. 228)
Aguiar e Silva, adverte mais adiante, temendo uma interpretação pela qual o
poeta lírico se confundisse com um anacoreta em seu próprio eu, um refugiado em seu
egoísmo, quando o mundo perde sua tangencialidade e as distâncias materiais, que
esse poeta não é um estrangeiro voluntário no mundo:
Staiger é direto ao afirmar secamente que “No estilo lírico, entretanto, não se
dá a “re”‐produção lingüística de um fato” (STAIGER, 1975, pg. 21) referindo‐se ao
cabedal da língua na imitação de sons e silêncios na linguagem poemática lírica, como
traço desse gênero. Podemos ampliar o alcance do que nos diz Staiger, adaptá‐lo,
dizendo que no estilo lírico não se dá a reprodução literária de um fato. Esse fato é
filtrado pelo eu lírico do poeta e derramado sobre o leitor com os tons interiores desse
poeta. A professora Angélica Soares, porém chama‐nos a atenção para as marcas
fundamentais do lirismo:
1º) o eu lírico ganha sempre forma no modo especial
de construção do poema: na seleção e combinação das
palavras, no ritmo, na imagística;
2º) assim, ele se configura e existe diferentemente
em cada texto, dirigindo‐nos a recepção;
3º) e, por isso, não se confunde com a pessoa do
poeta (o eu biográfico), mesmo quando expresso na
primeira pessoa do discurso. (SOARES, 1989, pg. 26)
Então o adolescente
Sem saber o que fazer
Vê as espinhas no rosto
O cabelinho crescer
No peito e nas axilas,
E uma barbinha crescer
Vem os pentelhos também
Chamados de pubianos
Ele admira as mudanças
Propícias para os seus anos
Uma cabeça faz outra
Traçar os futuros planos.
(NASCIMENTO, 2005, pp. 2‐3)
Os ABCs formaram um significativo torrão em cordel. Na apresentação desses
ABCs por Câmara Cascudo, ele afirma serem eles narrativos (CASCUDO, 1984, pg. 82).
O cordel de ABC, porém, reserva características mais líricas do que narrativas. Como o
nome aponta, esses folhetos são compostos de estrofes começadas cada uma com
uma letra do alfabeto, perfazendo todas, de A a Z. Muito populares no início do cordel,
hoje estão escassos. Como exemplo damos o ABC da saudade de Luiz da Costa
Pinheiro:
Ausente de ti querida
Que alegria posso ter
Quanto mais tempo se passa
Suspiro por não te ver
Tanto tem a tua ausência
Como tem meu padecer.
Basta dizer‐te que vivo
Nesta cruel solidão
Me lembrando do momento
De nossa separação
sentindo uma atroz saudade
dentro do meu coração.
(PINHEIRO, 1977, pg. 283)
Note‐se que a primeira estrofe inicia com A e a segunda com B. Segue até o Z
para cumprir o percurso do ABC. A curiosidade desse exemplo é a K, quando ele grafa:
Kuilômetros eu andarei
A fim de ti encontrar
Borboleta que bordeja
Venha um alívio me dar
Que meu bem está distante
Não pode me consolar.
(PINHEIRO, 1977, pg. 283)
Foi a forma encontrada pelo eu lírico de driblar a palavra escassa na língua
portuguesa. O lirismo sempre acompanhou Leandro Gomes de Barros. Vários de seus
folhetos trazem além da forma clássica do cordel, poemas curtos de um lirismo
exemplar, como este fragmento de A Tarde:
Vem a noite, dormem ali as coisas mansas
Dormem quietos os justos e as crianças
E a Virgem envia preces a divindade;
A velhice recorda arrependida,
Todo erro que fez em sua vida,
E murmura: Quem me dera a mocidade.
(BARROS, 1980, pg. 87)
No cordel mantém a pena afinada em Suspiros de um sertanejo:
Minha alma triste suspira,
Em deslumbrante desejo:
Eu choro por minha terra,
Há tempos que não a vejo!
São suspiros arrancados
Do peito de um sertanejo!
...
Aquela terra de amores
Do meu coração não sai!
Visito‐a sempre por sonho:
Às noites minh’alma vai
Ver a terra onde primeiro
Chamei mamãe e papai!
(BARROS, 2002, pg. 249)
Outra subdivisão desse cordel lírico, resolvemos assumir o termo, é o que ficou
conhecido por marco. Esse marco funciona como uma fortaleza lingüística na qual o
poeta edifica um prédio inexpugnável para garantir a sua grandeza poética em
detrimento dos marcos de outros poetas. Leandro escreveu seu marco já no ocaso da
vida, coisa que não precisaria tamanha a sua magnitude em cordel, a que deu‐lhe o
nome de O marco brasileiro:
Eu edifiquei um marco
Para ninguém derribar
E se houver um teimoso
Que venha experimentar
Verá que nunca fiz coisa
Para homem desmanchar.
(BARROS, 2002, pg. 215)
Cento e vinte mil guindastes
Levei para suspendê‐la
Noventa submarinos
Para ajudarem a erguê‐la
Setecentos mil vapores
Quase não podem trazê‐la.
(BARROS, 2002, pg. 215)
A data da construção do marco é dada por Leandro ao final do folheto:
Foi esse o primeiro marco
Que deste que escreve fez
Em vinte e oito de junho
De novecentos e dezesseis
Foi lembrança de um amigo
A pedido de um freguês.
(BARROS, 2002, pg. 217)
Elencamos sob o cordel lírico os folhetos de crítica de costumes. Aqui os poetas
dão ao seu eu lírico uma voz que se apega a valores do passado e que ataca os
costumes do presente, onde está inserido. Este Costumes e usos antigos é bem um
exemplo desse tipo de folheto:
Os filhos antigamente
Respeitavam muito os pais
Não fumavam em sua vista
Não diziam ditos tais,
Brinquedo algum freqüentavam
E jogo, os que jogavam
Era oculto demais.
Hoje o pai vai para o jogo,
Lá o filho está primeiro
E os dois na mesma roda
Se põem a jogar dinheiro.
Dito vem, pilhéria vai
Entre ambos, filho e pai
Um do outro é pariceiro.
(GUEDES, 1977, pg. 19)
Recentemente um novo tipo de cordel começou a ser publicado. Graças ao
Projeto Acorda Cordel na Sala de Aula folhetos com resumos de matemática e
gramática da língua portuguesa tornaram‐se ferramentas pedagógicas nas escolas do
Ceará e de São Paulo. A base desse projeto é o livro Acorda Cordel na Sala de Aula, de
Arievaldo Viana, poeta cearense alfabetizado pelos folhetos de cordel. A introdução
em versos diz:
Para quem ama o cordel,
Porém só vê poesia
Nessa linguagem matuta
Pru quê, pru mode, pru via
Tendo o sertão como tema,
Pode esquecer meu poema
Bater noutra freguesia.
Pois eu procuro escrever
Num correto português.
E se acaso eu errar
Duas palavras ou três
Não foi por querer errar,
Foi procurando acertar
Isso eu garanto a vocês.
(VIANA, 2006, pg. 9)
O nosso lindo alfabeto
Oferece aos estudantes
As suas vinte e três letras
Bem claras e importantes.
São elas: cinco vogais
E dezoito consoantes.
Das vogais às consoantes
Quero, uma a uma, explicar:
As letras trazem fonemas –
E pra mais claro ficar,
Os fonemas são os sons –
Que usamos pra falar.
(FORTALEZA, 2006, pg. 2)
E segue pelas classes de palavras, graus dos adjetivos com essa pérola sobre o
grau superlativo:
Fiel, passa a fidelíssimo
E fácil, fica facílimo.
Negro, passa a ser nigérrimo;
Humilde, passa a humílimo;
Comum, fica comuníssimo
E difícil, dificílimo.
(FORTALEZA, 2006, pg. 9)
Trava‐língua, exercício
Usado na dicção
E também é praticado
Na boa articulação
Praticar é bom, comece,
Na pronúncia não tropece,
Use a imaginação.
Pesquisei os principais
Pra adaptar em cordel.
Ta saindo da garganta
E passando pro papel.
Quem adianta não atrasa
Pratique bastante em casa
Não é sopinha no mel.
(LOPES, 2008, pg. 1)
Dos mais difíceis é o lírico trava‐língua em V e F:
Lá vem vindo o velho Félix
Com o velho fole na mão;
Nas costas o fole fede,
Na frente não fede, não.
Nos botões, nas teclas bole;
Puxa o fole, velho mole!
Não amole no salão.
(LOPES, 2008, pg. 3)
O PÉ DA MONTANHA cheio
De calo, dor e maltrato,
Frieira entre os dedos
E tendo chulé de fato,
Correndo apressadamente
De chinelo o de sapato.
A PERNA DA MESA é outra
Figura de admirar;
Pois mesa tem quatro pernas
Pra poder em pé ficar.
Tal quarteto poderia
Dispor‐se a caminhar.
(NASCIMENTO, 2008, pg. 9)
Consideramos o cordel como forma poética fixa e propomos nossa classificação
pelo enquadramento na teoria dos gêneros. Requeremos Vitor Manuel de Aguiar e
Silva como apoio nesta afirmação:
Findamos o capítulo acrescentando que o cordel por ser forma fixa é possível
aprender‐lhe a técnica. Por isso nem todo cordelista é poeta, mas todo poeta pode ser
cordelista.
Conclusão
O estudo da professora Márcia Abreu Cordel português/folhetos nordestinos:
confronto — um estudo histórico comparativo passou despercebido por quase todos
os estudiosos do cordel. Tese de doutorado em Literatura Comparada é o estudo que,
em 1993, deveria ter alertado a comunidade amante do cordel, poetas inclusive, para
as diferenças fundamentais entre a literatura de cordel portuguesa e o cordel
brasileiro. Caso tivesse sido folheado pelos pesquisadores que vieram depois, a teima
em costurar os dois produtos, um como herdeiro do outro, teria parado de suceder‐se.
As observações sobre a classificação por tema também teriam recebido outro
tratamento. Diz ela referindo‐se a essa classificação dada à literatura de cordel
portuguesa:
A mesma coisa que por aqui se repetiu. Os erros foram transpostos de Portugal
e mantidos no Brasil. As nossas classificações são quilométricas e encontramos ciclos
temáticos com apenas três ou quatro folhetos, como o ciclo de Carlos Magno, iniciado
com A batalha de Oliveiros e Ferrabraz, de Leandro Gomes de Barros, e com mais
Roldão no Leão de Ouro, de João Melquíades Ferreira e Batalha de Carlos Magno com
Malaco, rei de Fez, de João Martins de Ataíde. Mesmo com essas evidências resolveu‐
se estabelecer esse ciclo.
Uma outra revelação feita por Márcia Abreu e encampada por nós no primeiro
capítulo diz respeito àquela literatura chamada popular. Diante de dificuldade de
nomenclatura para o cordel português ela diz:
O autor que melhor percebe as dificuldades envolvidas na
definição de literatura de cordel é Arnaldo Saraiva que, além
de apontar a insuficiência dos conceitos já elaborados,
discute o equívoco que consiste em assimilar o conceito de
“cordel” com o de “literatura popular”, como se tem feito
muitas vezes, em Portugal. O autor acredita que não se deve
aceitar que toda literatura dita de cordel seja popular. Ele
contrapõe à idéia de “popular”, um novo conceito no qual se
enquadraria o “cordel”, o de literatura “marginal/izada”, que
seria aquela ignorada, esquecida, censurada pelos poderes
literários, culturais ou políticos por razões de linguagem ou
de produção e circulação no mercado. (ABREU, 1993, pg.
245)
A citação da professora Márcia Abreu, reproduzindo Arnaldo Saraiva, diz bem
da situação do cordel brasileiro e da poesia popular como um todo. Quando
discutimos que quem adjetiva esse tipo de produção literária é uma elite intelectual,
estamos caminhando na mesma senda. A nossa classificação procura driblar esse
conceito pela observação literária. Não que tenhamos algo contra o termo “popular”,
mas por entendê‐lo recheado de ideologia negativa, pejorativa e preconceituosa.
Reiteramos nossa classificação norteada pelo conceito de gêneros literários,
assim distribuída: Literatura>Poesia>Cordel: narrativo, dramático, lírico. Na qual o
cordel é uma forma fixa da poesia que pode manifestar‐se de três formas distintas,
sem pureza textual, com uma característica predominante. Assim, o cordel narrativo
pode conter partes líricas e dramáticas e vice‐versa.
As classificações temáticas, ao nosso olhar, são obsoletas em termos de
literatura, servindo apenas para agrupamentos por temas, criando conjuntos que nada
dizem. Para nós, a figura do autor de cordel deve ser respeitada como a de qualquer
escritor que sinta a necessidade de escrever. Ao escritor cabe escrever sobre o que lhe
convier e sua produção literária deve ser estudada sob a luz dos estudos literários.
Para efeito conclusivo, relembremos as nossas observações sobre o cordel brasileiro:
a) o nome literatura de cordel é de origem lusa, mas má empregada em relação
aos nossos folhetos de cordel, visto que são fenômenos distintos, havendo
mais divergências do que semelhanças entre eles;
b) não se sabe quem primeiro atribuiu esse nome aos folhetos. Alguns dizem ter
sido Sílvio Romero, em 1879, mas as evidências contradizem a afirmação;
c) quem sistematizou a publicação de folhetos de cordel foi, sem dúvida, Leandro
Gomes de Barros, embora Silvino Pirauá tenha sido o criador do romance em
versos;
d) a literatura tradicional ibérica foi adaptada no amanhecer do século XX para o
formato do cordel, mas não é o assunto principal do gênero;
e) a literatura de cordel não é a versão escrita do universo dos cantadores e
repentistas nordestinos, é produto estritamente escrito, tendo inclusive, o
cordel, influenciado as modalidades da cantoria;
f) as tentativas de conceituar o cordel foram sempre regidas pela sua
apresentação material, nunca pela sua forma literária;
g) a literatura de cordel sempre foi tida como um subproduto popular;
h) o autor de cordel é um poeta como outro qualquer, escreve porque tem
necessidade vital;
i) a literatura de cordel é literatura brasileira e como tal deve ser estudada;
j) os estudiosos do cordel foram incapazes de dar à literatura de cordel sua
verdadeira dimensão literária;
k) as novas gerações de cordelistas consagram o cordel como o gênero de maior
vitalidade na literatura brasileira.
Salientem ainda:
a) a literatura de cordel não tem cunho efetivamente rural. É fruto da confluência
do mundo rural com o mundo urbano, do sertão com a cidade;
b) a cidade do Recife é o local onde nasce a literatura de cordel tal como hoje ela
é, em sua forma e veículo de difusão;
c) quatro nomes contemporâneos são os responsáveis pela consolidação da
literatura de cordel: Silvino Pirauá, Leandro Gomes de Barros, João Martins de
Ataíde e Francisco das Chagas Batista.
d) Leandro Gomes de Barros é definitivamente o pai da literatura de cordel e seu
maior escritor;
e) Estudiosos e pesquisadores desatentos ou preguiçosos foram os responsáveis
por disseminar informações equivocadas, conceitos errados e enganos formais
sobre a literatura de cordel.
Finalizamos:
a) Propomos uma nova classificação para a literatura de cordel, começando já
pela abreviação do nome para cordel, por entendermos que esse termo já
pressupõe pela tradição o seu produto literário;
b) O fazemos por entender que o cordel traz em si todos os elementos distintivos
da literatura;
c) As classificações temáticas ou em ciclos não contemplam a autoria em cordel,
agrupando temas e segregando os autores, sob a marca do folclórico;
d) O cordel é forma poética fixa complexa que requer subdivisões classificatórias;
Referências bibliográficas