AlexsandroLinoDaCosta DISSERT.
AlexsandroLinoDaCosta DISSERT.
AlexsandroLinoDaCosta DISSERT.
NATAL/RN
2015
Alexsandro Lino da Costa
Natal/RN
2015
UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
95f. : il.
Agradeço às minhas três irmãs, aos meus sobrinhos, às minhas plantinhas e aos
meus dois gatinhos, sem os quais minha alma não se fortaleceria.
As coisas frias esquentam-se, o quente esfria-se, o úmido seca, o seco umidifica-se.
(Heráclito de Éfeso)
Provavelmente seja verdade que um homem permanece eternamente desconhecido para
nós e que nele há sempre algo de irredutível que nos escapa.
(Albert Camus)
A desordem provém da ordem, a covardia surge da coragem, a debilidade nasce da
força. [...] O sucesso em administrar as tensões está na adaptação constante.
(Sun Tzu)
Sumário
RESUMO.........................................................................................................................06
ABSTRACT....................................................................................................................07
INTRODUÇÃO...............................................................................................................08
Lygia Fagundes Telles e As Meninas............................................................................14
CAPÍTULO I
O OLHAR DO OUTRO SOBRE LYGIA...................................................................17
CAPÍTULO II
POSICIONAMENTOS TEÓRICOS E CRÍTICOS ACERCA DA
IDENTIDADE................................................................................................................23
Identidade como ficção e representação discursiva....................................................23
Identidade inacabada, insuficiente e em crise.............................................................30
A liquidez da construção identitária............................................................................36
CAPÍTULO III
A DILUIÇÃO DAS MENINAS DE LYGIA EM MÚLTIPLAS
IDENTIDADES.............................................................................................................57
E para que serve um nome?..........................................................................................70
A subalternidade feminina............................................................................................74
Feminismos e subjetividades: pluralismos e não identidades....................................79
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................89
REFERÊNCIAS..............................................................................................................91
RESUMO
This dissertation takes as corpus the novel As meninas, published in 1973, by Lygia
Fagundes Telles, Brazilian writer born in São Paulo. The primary element in analysis
are the main characters, Ana Clara, Lia and Lorena, whose identities are revealed in
training, so undefined and changeable. To start from the hypothesis that the identity of
the characters can be fragmented, our purpose is to observe how this possible
fragmentation occurs. Stuart Hall (2005, 2012, 2013) discusses this identity
fragmentation, which, in Lygia’s novel in study, expands and breaks the narrative
structure, implemented in four narrative focuses: in each one of the protagonists and in a
fourth narrator. This multiple mode of narration allows us to view the different
identities that each character has, because there is an increase of point of views.
Zygmunt Bauman, with his concept of liquidity (1998, 2004, 2005, 2007, 2012),
confirms our research about mobility of identities. Authors such as Zilá Bernd (2011),
Tomaz Tadeu da Silva (2012) and Kathryn Woodward (2012), with their respective
studies on identity, also thicken our dissertation. Methodologically, our research is
bibliographic and analytical.
9
O que sei, afinal? Que [Lia] é da esquerda militante e que perdeu o
ano por faltas? Que tem um namorado preso, que está escrevendo um
romance e que está pensando numa viagem que não tenho ideia para
onde seja? Que sei eu sobre Lorena? Que gosta de latim, que ouve
música o dia inteiro e que está esperando o telefonema de um
namorado que não telefona? Ana Clara, aí está. Ana Clara. Como me
procura e faz confissões, eu podia ficar com a impressão de que sei
tudo a respeito dela. Mas sei mesmo? Como vou separar a realidade
da invenção? (TELLES, 2009a, p. 143-4)
Além de estar insatisfeita com o pouco que sabe das pensionistas, a Madre
questiona o próprio caráter real dessas informações, pois essas meninas podem inventar
dados, o que inviabiliza qualquer conhecimento que se pretenda real. A identidade é um
construto ficcional, e isso intensifica seu caráter nômade, fragmentário, múltiplo,
líquido, epidérmico.
Vê-se, explicitamente, que essa personagem não possui uma identidade una: ora
pretende manter-se virgem, em uma seara de oração e pensamento; ora se volta para o
amor adúltero pelo médico casado M.N.; e ora oscila para o desejo intenso que se
desperta nela quando da presença de Guga.
10
Ana Clara divide-se entre o futuro promissor alcançado via casamento burguês
sem amor e o universo paralelo criado mediante o consumo de drogas e os encontros
secretos com seu amante, Max: “Te amo Max. Te amo, mas em janeiro, meu boneco.
Em janeiro vida nova. Tirar o pé da lama. Você já foi rico, agora é minha vez, não
posso? Ano que vem stop. Um escamoso mas podre de rico” (TELLES, 2009a, p. 39).
Ela se identifica plenamente com o amor que sente pelo amante, mas pretende trocar
ambos, amor e Max, pelo dinheiro que virá de seu casamento com o “escamoso”.
Por que me comovo quando penso que Pedro vai sofrer? Tem que
sofrer, merda. Beber querosene e gasolina porque é assim que se
firma uma estrutura, penso. Mas no coração fico sentimental, só me
falta dizer como a Lorena: coitadinho (TELLES, 2009a, p. 223, grifo
do texto).
Autores como Stuart Hall, Zygmunt Bauman, Zilá Bernd, Tomaz Tadeu da Silva
e Kathryn Woodward discorrem diretamente sobre a dinâmica da identidade. Há,
portanto, diversas formas de se nomear esses processos que revelam a configuração
identitária não mais como algo uno, coeso e definido. O consenso se dá nisto: a
identidade é cambiante.
11
Nosso objetivo, portanto, é estudar o romance As meninas focando-nos na
relação que se estabelece entre suas protagonistas (aspectos formais) e algumas teorias
que abordam a fragmentação, a liquidez e a multiplicidade da identidade (aspectos
socioculturais), em suas imbricações com a Sociologia, a Psicanálise, a Filosofia e a
História. Esperamos, dessa forma, contribuir para a fortuna crítica sobre Lygia
Fagundes Telles e para os estudos sobre questões identitárias.
12
Ao conhecer os seres ficcionais de Lygia Fagundes Telles, poderíamos conhecer
melhor os seres reais (CANDIDO, 2009): “A literatura, exprimindo a exceção, oferece
um conhecimento [...] capaz de esclarecer os comportamentos e as motivações
humanas” (COMPAGNON, 2009, p. 51); “um mundo histórico, uma sociedade ou um
grupo social reconhecem os caracteres constitutivos da sua experiência do mundo [...]
em uma obra de arte” (VATTIMO, 1996, p. 52), pois revela-se “na obra de arte, mais do
que em qualquer outro produto espiritual, a verdade das épocas” (VATTIMO, 1996, p.
52).
13
No segundo capítulo, buscamos teorias diversas sobre a identidade,
diversificando autores teóricos e críticos para demonstrar a recorrência do tema. Assim,
alterna-se entre múltiplas facetas sobre a linguagem.
Lygia Fagundes Telles nasceu na capital de São Paulo em 1923 e, desde 1985,
ocupa a cadeira número 16 da ABL (Academia Brasileira de Letras). Os Cadernos de
Literatura Brasileira reconhecem em sua obra “aquilo que de mais elevado pode fazer a
atual ficção brasileira” (1998, p. 8). Em 1998, o governo francês a condecorou com a
Ordem das Artes e das Letras. Sua consagração definitiva, porém, veio com o prêmio
Camões, em 2005, obtido pelo conjunto de sua obra, que lhe permitiu essa grande
distinção como escritora de língua portuguesa.
14
Mais tarde, ao ingressar no mundo literário, a autora passa a problematizar a
condição da mulher na sociedade. As protagonistas de seus quatro romances são
femininas, e a maioria das personagens de seus contos também o é.
Para muitos, o conto é o gênero em que a autora mostra seu potencial narrativo;
todavia seus romances também revelam qualidades literárias. As meninas é o seu
terceiro e “arrebata todos os prêmios literários de importância no país: o Coelho Neto,
da Academia Brasileira de Letras, o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o de
‘Ficção’, da Associação Paulista de Críticos de Arte” (CADERNOS, 1998, p. 13).
1
A saber: romances de tensão mínima, romances de tensão crítica, romances de tensão interiorizada e
romances de tensão transfigurada (BOSI, 2006, p. 418-9).
15
concretamente apenas a articulação de planos em reuniões com o grupo revolucionário
do qual faz parte.
16
CAPÍTULO I
Percebemos, com esses críticos, que o exercício de leitura é uma prática que está
sempre em desenvolvimento. É como se, ao conhecer análises alheias, tomássemos
emprestadas novas lentes para nossos olhos, com as quais apreenderíamos melhor a
literatura, porque passam a existir diferentes maneiras de vê-la.
2
Tomando o Realismo como categoria formal, e não histórica, poderíamos chamar algumas obras de
Lygia Fagundes Telles de “realistas e contemporâneas”.
17
embasamento teórico está focado, mormente, em aspectos sociológicos, sem fechar-se a
contribuições oriundas de outras áreas do conhecimento, como a Filosofia e a
Psicanálise.
18
devido ao caráter múltiplo do próprio sujeito, que se faz vários a um só tempo. A
liquidez identitária deve-se a questões individuais e sociais, e não ao decorrer temporal,
visto que, verificando-se dados secundários, percebe-se que a narrativa se passa em dias
ou em poucos meses – não há delimitações de datas na obra.
19
insatisfação para consigo mesmo, mas também um sinal de liberdade e de poder (como
discutiremos mais à frente).
Ela acredita que “a pacificidade humana é deixada de lado para revelar a voz
daqueles que se veem representados através de histórias e/ou personagens” (SILVA,
2008, p. 14). Essa identificação com narrativas promoveria um conhecimento sobre si
mesmo, e o leitor passaria a saber que os dilemas vividos na época seriam, de fato, algo
coletivo, partilhado por vários outros indivíduos, e não somente por um só. Essa
“pacificidade [...] deixada de lado” revela o teor sedicioso da literatura, o qual
demonstra ser um fator de transformação social, de conscientização política e de
negação à alienação, sendo possível, dessa forma, “recriar a História através da ficção”
(SILVA, 2008, p. 12).
Deurilene reafirma o elo entre real e ficção, o qual se dá mediante uma mimèsis
que reelabora a realidade ao realocá-la na arte literária:
20
Uma das astúcias da escritora Lygia Fagundes Telles incide na forma
exata ao descrever uma determinada situação. A linguagem, o tempo,
a cadência rítmica das palavras, a sonoridade, as pausas, os
truncamentos das falas ou ideias das personagens, tudo isso corrobora
para a apreensão do “real” das personagens, e, desse modo, o “mundo
real” das personagens, vivido no texto ficcional (SILVA, 2008, p. 93).
22
CAPÍTULO II
IDENTIDADE: não tem a ver com o lugar onde nascemos, [...] e sim
com os lugares por onde passamos. IDENTIDADE é o que a viagem
faz de nós enquanto continua. Só os mortos, os que deixaram de
viajar, possuem uma IDENTIDADE bem definida.
23
vidas, aquelas que constituem nossa assim chamada “realidade”, como a família, a
“História Oficial”, a sociedade em que estamos inseridos e as nossas identidades:
24
Especificamente, a autora discorre sobre a ficção do eu, a construção que cada
um faz de si mesmo ao elaborar as narrativas que o constituem:
Vista desse modo, nossa identidade se evidencia ainda mais como um construto:
passamos a ser aquilo que dizemos que somos, pois acreditamos – ou pelo menos
fingimos acreditar – naquilo que contamos sobre nós mesmos. Em As meninas, para
fugir de sua origem pobre e anônima, algumas vezes Ana Clara fala de si e se apresenta
aos outros como se fosse a personagem Lorena, buscando, com isso, o status social
abastado financeiramente e ornamentado por um sobrenome com pedigree. Ao fazê-lo,
ela busca apagar-se, deletando a pobreza e o anonimato de sua família para construir um
novo eu, rico e renomado.
Saliente-se que, mesmo após firmar um eu, este pode continuar em mutação,
conforme a vontade de cada um, haja vista que é uma “configuração móvel, em
permanente transformação, que fixamos por mera convenção” (HUSTON, 2010, p. 23).
Quando tal construção já não nos convém, podemos cambiá-la, como o ator que troca de
25
máscara a cada personagem interpretada. É nesse câmbio identitário constante que as
personagens lygianas perpassam a narrativa.
Nancy acredita no poder civilizatório do romance, pois, por meio dele, podemos
nos disponibilizar a nos colocarmos no lugar do outro, relativizando nossas crenças,
formulando novos entendimentos e criando identificações com o outro.
26
percebe essa exclusão e vê no consumo um meio de compensar suas carências de
outrora: “Agora quero agrados presentes. Um dia compro um caminhão só de presentes
tudo bobagem esbordoar dinheiro só com bobagem quero ficar boba” (TELLES, 2009a,
p. 49). Ela reconhece a futilidade, mas nem por isso abre mão dela.
Lia também percebe a exclusão que Lorena representa e explicita isso em alguns
trechos, como nesta descrição:
27
psicológicas e ideológicas, as “identidades não são unificadas. Pode haver contradições
no seu interior que têm que ser negociadas” (WOODWARD, 2012, p. 14).
28
A burguesia representada por Lorena já existia, mas o modo como a personagem
se constrói economicamente, às vezes condenando-se pela forma egoísta como trata
aqueles que não fazem parte dessa classe, evidencia intermitências de afinidades com
outras classes. A identidade revolucionária de Lia também já existia antes dela; porém a
maneira como essa personagem hesita em relação àquilo que é necessário para a
revolução revela idiossincrasias suas. Os casamentos por interesse sempre existiram;
todavia o modo como Ana Clara lida com esse dilema mostra particularidades
psicológicas dela.
29
novas identidades, produzidas, por exemplo, em circunstâncias econômicas e sociais
cambiantes” (WOODWARD, 2012, p. 20).
30
ou estes silêncios, esta grandeza ou esta baixeza. Mas não se somam
os rostos: este coração que é o meu permanecerá indefinível para
sempre. O fosso entre a certeza que tenho da minha existência e o
conteúdo que tento dar a esta segurança jamais será superado. Para
sempre serei estranho a mim mesmo (CAMUS, 2012, p. 33).
Esse eu que se desconhece e que procura por si nos faz lembrar das dinâmicas
identitárias das meninas de Lygia, as quais não se estabilizam e permanecem em um
constante movimento de reunião e de dispersão de identidade. Ao contrário do Um de
Parmênides, o que existe é mais uma multiplicidade que liberta o ser, mas que também
o angustia: as sucessivas identificações com o Outro dispersam o eu.
3
O uso da citação de Antoine Compagnon, em Literatura para quê?, deve-se ao fato de esse autor
discorrer brevemente sobre o caráter mutante da identidade. Se se tratasse de uma análise mais específica
e estendida sobre a questão identitária, prontamente o incluiríamos entre os teóricos e críticos que
elencamos para subsidiar o nosso trabalho.
31
nacionalidade, à sexualidade, à política, ao amor, à linguagem, essas meninas
apresentam-se ao leitor como sujeitos inacabados, reticentes, que buscam completar-se
na existência. Como já sugerido desde o título da obra, não há um estado de formação
fechado: não se trata de mulheres, mas de meninas, seres ainda em crescimento, em
processo de aprendizagem. Essa complexidade das personagens romanescas é
comentada por Antonio Candido, em “A personagem do romance”:
32
migratórios desembocaram importantes amostras dos mais diversos lugares do Brasil e
do mundo. A cidade, o homem, a narrativa e as personagens são fragmentados porque a
modernidade tudo fragmenta. Stuart Hall abre seu livro com a constatação de que
33
E não só as identidades estariam desestabilizadas, mas também as tradições, que
“variam de acordo com a pessoa, ou mesmo dentro de uma mesma pessoa, e
constantemente são revisadas e transformadas” (HALL, 2013, p. 73). Se as próprias
tradições, que originalmente serviriam para embasar comportamentos e ações,
apresentam-se contemporaneamente instáveis, as construções identitárias individuais
fazem-se ainda mais múltiplas e fragmentadas.
34
mais a ser impostas, mas autonomamente escolhidas. Essa consciência identitária
estaria em oposição com a ideia de uma identidade inata ou primordial.
Já a mãe de Lorena se aventura com amantes sempre mais jovens do que ela,
enquanto o pai da personagem reside em um sanatório. Novamente a figura materna
oprime a opção da filha de manter-se virgem e se mostra preocupada devido à amizade
que a filha mantém com uma moça tão masculinizada, a Lia. A mãe de Ana Clara, antes
de suicidar-se, também expôs a filha a muitos casos amorosos, trazendo-lhes sucessivos
e breves padrastos. Certamente, a conjuntura familiar influencia na construção
identitária, seja positiva, seja negativamente.
As meninas é uma narrativa que possui a cidade de São Paulo como espaço. E,
ao pensarmos nas possíveis influências do ambiente sobre as personagens, percebemos
que esse espaço cosmopolita pode interferir fortemente na construção identitária dessas
meninas. Stuart Hall (2013) discorre sobre essas “comunidades cosmopolitas”, nas
quais as configurações culturais se apresentam múltiplas, levando a ocasionais
processos de transculturação. Sendo uma cidade que recebeu e ainda recebe fluxos
migratórios nacionais e internacionais, sua população tende a uma maior multiplicidade
identitária. No romance, porém, a única sugestão dessa identidade geográfica parte da
personagem Lorena, que tece alguns comentários eivados de preconceitos contra a
região Nordeste do Brasil, como será mostrado no terceiro capítulo.
35
Ao citar Laclau para discorrer sobre hibridização, Stuart Hall possibilita a
construção de um conceito como o de identidades híbridas, que seriam identidades
abertas, aptas e dispostas a receber influências externas, como um meio de fortalecer-se
identitariamente, e não de enfraquecer-se:
36
Esse desejo de se ater a uma identidade revela o caráter consciente de um
construto identitário, que se diluiria facilmente caso o indivíduo alterasse sua vontade
de pertencimento a um dado padrão de comportamento ou a um grupo: “a ideia de ‘ter
uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo
o seu destino, uma condição sem alternativa” (BAUMAN, 2005, p. 17-8).
37
Sendo “comunidade” o agrupamento humano definido por identidades em
comum, Bauman afirma que, ao longo da vida, quase todo indivíduo perpassa várias
comunidades, o que evidencia as constantes transmutações identitárias individuais:
A cada passagem por uma nova comunidade, o sujeito adaptar-se-ia a ela para
tentar reproduzir os padrões comunitários. A estabilidade de permanecer em apenas uma
dessas comunidades é quase impossível, comprometendo seriamente la mêmete. O ir e
vir por entre essas comunidades, entretanto, não abalaria l’ipséite, visto que esta seria
possível em todos os agrupamentos comunitários, e não especificamente em um deles.
38
mais praticamos e dominamos as difíceis habilidades necessárias para
enfrentar essa condição reconhecidamente ambivalente, menos agudas
e dolorosas as arestas ásperas parecem, menos grandiosos os desafios
e menos irritantes os efeitos (BAUMAN, 2005, p. 19-20).
Ter consciência de que as identidades são múltiplas e de que podem ser tanto
eleitas quanto impostas seria uma arma que o sujeito teria para precaver-se e defender-
se contra essa grande problemática, pois há sempre valoração e hierarquização nas
configurações identitárias, levando os indivíduos não só a julgar os comportamentos
alheios, mas também a serem julgados.
Mas, afinal, o que é identidade? Zilá Bernd afirma que Claude Lévi-Strauss, em
L’identité, define “identidade como uma entidade abstrata, sem existência real, mas
indispensável como ponto de referência” (BERND, 2011, p. 16). Esse “ponto de
referência” teria a função de situar os indivíduos, identificando-os em relação a
inumeráveis referentes de ordem diversa, como psicológica, histórica, política, sexual,
sociológica, cultural, biológica, nacional, linguística, geográfica, econômica, religiosa,
racial (conceito não científico e meramente ideológico), étnica, filosófica, etc.4
Zilá Bernd afirma que “não existe ‘um’ caráter nacional, nem uma ‘essência’
brasileira” (BERND, 2011, p. 12). O que há são configurações identitárias plurais que
representam alguns grupos sociais brasileiros em determinado período – tudo situado
4
É importante ressaltar que nenhum desses âmbitos encontra-se isolado, pois sempre em diálogo
constante com outros. Assim, a identidade nacional, por exemplo, pode incluir a identidade linguística, a
geográfica e a cultural, dentre outras.
39
temporariamente, geograficamente, e nunca de uma forma ampla homogeneizante. Da
mesma forma, as identidades individuais também se mostram sempre contingentes,
circunstanciais, relativas.
40
Outra imagem interessante que a autora utiliza para ilustrar as características da
identidade é a de mosaico, que remete ao conceito de fragmentação de Stuart Hall. Ao
romper a pretensão de unicidade, as identidades se revelam múltiplas:
O mosaico identitário seria constituído por cada parte que forma a identidade –
daí seu caráter fragmentado. Essa imagem de pequenas partes diferentes que, unidas,
formam um todo, entretanto, pode tornar-se problemática, haja vista que essa
aglutinação poderia trazer certa estabilidade. Para a imagem do mosaico poder ser
utilizada, é preciso salientar que cada uma dessas partes continua em constante
transformação, pois as circunstâncias espaciais, temporais e culturais estão sempre em
mutação. Além de fragmentada, a identidade é nômade.
Zilá Bernd ressalta o poder que a arte literária exerce sobre as construções
identitárias: “a construção da identidade é indissociável da narrativa e
consequentemente da literatura” (BERND, 2011, p. 19). A arte de modo geral – e a
literatura especificamente – lida com esse movimento duplo entre realidade e ficção: da
mesma forma como a arte se serve da realidade, esta também bebe da arte.
41
obra: se o Golpe Militar repreendia toda e qualquer diferença, objetivando manter um
padrão social para exercer maior controle sobre os indivíduos, um texto ficcional como
o de Lygia poderia abrir espaço para a contestação dessa “igualdade” imposta, o que
geraria atritos entre o governo e a população.
Com isso, Lia questiona sua identidade voltada para a persuasão verbal e pensa
se uma identidade mais prática, ligada mais estritamente à ação, não seria mais eficaz
em situações complicadas como a que Ana Clara havia enfrentado até a morte.
42
manter identitariamente. Sobre esse processo contínuo de identificação, Zilá Bernd se
posiciona como o filósofo argelino:
Para Sigmund Freud, “os atos de identificação são a base da formação do ego”
(BERND, 2011, p. 24). Esse ego, contudo, jamais alcançaria uma formação plena e
estanque, o que o coloca em constantes transformações:
O ego não seria formado juntamente com a criança durante a infância nem se
apresentaria plenamente construído na fase adulta. Por haver, ao longo da vida, esses
43
“diferentes momentos de identificação”, o ego os acompanha, modificando-se constante
e ininterruptamente.
44
É, portanto, a partir de Maffesoli que se entendem as identidades como nômades.
A exemplo da fixação estabelecida pelos colonizadores sobre o nomadismo indígena
(fixando-os para dominá-los), o estabelecimento de uma identidade social unívoca
evidencia uma forma de dominação ideológica. Identidades nômades possibilitariam,
assim, uma maior liberdade aos indivíduos, os quais não se ateriam a padrões
estabelecidos e viveriam suas escolhas autonomamente. Dessarte, o pensamento de
Maffesoli
45
p. 74). Simplificadamente, entende-se que, para tentar se estabelecer, os traços
identitários são autossuficientes:
46
A trindade de personagens vai criando inter-relações identitárias, tentando
definir-se em relação uma à outra. Por vezes, existe um projetar-se nesse outro. Quando
isso ocorre, as identidades se liquidificam: Lia, ao sentir-se delicada e frágil como
Lorena, bifurca-se em uma via dupla entre pragmatismo e idealização do mundo;
Lorena, ao pensar sobre a sexualidade intensa e desregrada de Ana Clara, imagina-se
desinibida sexualmente e concretizando o fim de sua virgindade; Ana Clara, ao se
deparar com o mundo rico e confortável de Lorena, forja para si um futuro em que será
tão rica que se permitirá futilidades, ócios e despreocupações.
Outra discussão importante que Tomaz Tadeu da Silva ressalta é sobre o caráter
artificial da identidade. Esta não é um dado natural, preexistente. Trata-se de uma
construção linguístico-discursiva que se estabelece como meio de distinção entre
sujeitos:
Dizer, por sua vez, que identidade e diferença são o resultado de atos
de criação linguística significa dizer que elas são criadas por meio de
atos de linguagem. Isto parece uma obviedade. Mas como tendemos a
tomá-las como dadas, como “fatos da vida”, com frequência
esquecemos que a identidade e a diferença têm que ser nomeadas. É
apenas por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a
diferença como tais (SILVA, 2012, p. 76-7, grifos do texto).
47
sociais efetivadas pela Ditadura Militar no Brasil, As meninas é um romance que
contesta padrões comportamentais estabelecidos e impostos pelo poder estatal.
Lia renega o pretenso bem-estar social que o governo lhe poderia trazer: abre
mão de um futuro idealizado em que a felicidade viria com a família, com os filhos, e se
lança em planos contra a Ditadura, tornando-se uma guerrilheira urbana em potencial.
Lorena investe em um relacionamento adúltero, ainda que permaneça não concretizado.
Ana Clara mergulha em drogas e sexo desregrado, abandonando a vida de estudante e as
promessas que sua beleza lhe proporcionaria.
48
A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa
que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de
força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas
são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em
um campo sem hierarquias; elas são disputadas.
Por outro lado, uma das alternâncias identitárias visadas por Lorena reside em
um aspecto que não é fechado: a sexualidade. Ainda que seja atormentada pelo tabu da
virgindade, a personagem se projeta na liberdade sexual de Ana Clara, passando a
invejá-la por sua versatilidade em relação ao seu amante, Max. Como afirma o autor, os
fatores materiais, ideológicos e simbólicos se misturam por entre as vias identitárias:
Quando uma personagem se enxerga diferente das outras, existe, implícito nesse
julgamento, um critério de valor que as hierarquiza, seja inferior, seja superiormente.
Visando, por vezes, a superação dessa distinção, desse mal-estar oriundo da exclusão,
elas se projetam na alteridade, na diferença que habita a identidade do outro, e nisso
ocorre uma diluição identitária: ao querer ser o que o outro é, que geralmente é diferente
49
de mim, eu deixo de ser o que eu sou – ou penso que sou – e passo a ser – ou pelo
menos passo a querer ser – o que o outro é – ou pensa que é.
Lia, ao desejar uma vida pacata, serena e cheia de filhos, afasta-se de seu ímpeto
revolucionário. Porém logo se julga destoante em relação a esse modo de vida, voltando
a investir em seus planos contra a Ditadura Militar. Nessa volição bifurcada, sua
identidade se fragmenta.
50
privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados
(SILVA, 2012, p. 82).
Essa valoração pretensamente positiva é o que Ana Clara enseja ao planejar sua
ascensão social. Subalternizada pela origem social pobre, o dinheiro é o principal meio
que a personagem vê para ser bem vista pela sociedade. Outra forma de superar sua
condição está em concluir seu curso superior de Psicologia, o que lhe traria o (incerto)
status de intelectual.
51
segue, na maior parte do tempo, o padrão de normalidade ao se acomodar com a forma
de governo estabelecida pelo Golpe Militar de 1964, Lia, ao contrário, empenha-se
aguerridamente contra o Estado, panfletando sobre democracia, buscando fazer
denúncias de perseguições, prisões, torturas, exílios e mortes, criando grupos de
opositores ao governo. Dessa forma, se Lorena é a normal, Lia passa a ser a anormal, a
subversiva.
Com isso, havendo sempre o desviante, como tão bem registrado por Lygia
Fagundes Telles, o dito normal não consegue se estabelecer definitivamente, e outros
padrões de diferença surgem para confrontá-lo. Essa disputa, porém, é necessária para
que a normalidade possua seus próprios parâmetros de conduta: a “identidade
hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existência ela não
faria sentido” (SILVA, 2012, p. 84).
52
A aproximação entre identidade e discurso/linguagem promove um maior
entendimento quanto ao caráter fluido e movente de ambos. Por mais que haja uma
tendência à fixação, esta nunca ocorre. Se se percebe alguma angústia nas meninas
lygianas, isso se deve à constatação de não poder ancorar-se seguramente em um grupo
social, pois fixar-se torna-se improvável: “É necessário criar laços imaginários que
permitam ‘ligar’ pessoas que, sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem
nenhum ‘sentimento’ de terem qualquer coisa em comum” (SILVA, 2012, p. 85).
Ainda que haja diferentes nomes para essa liquefação identitária, existe o
consenso sobre o fato de a identidade não ser tomada mais como uma essência, como
algo fixo e imutável. As nomenclaturas sugeridas por diversos autores são múltiplas,
mas todas veem o processo do mesmo modo: as ficções identitárias variam conforme as
necessidades e os desejos dos indivíduos.
53
O caráter híbrido de nossa identidade nacional, por exemplo, ilustra isso muito
bem, já que não há um modo de ser padronizado para o brasileiro, que pode optar por
inúmeras possibilidades de ser e de estar, e tanto dentro da própria nação, quanto fora
dela, pois existem identidades que mesclam o nacional e o estrangeiro.
5
O termo “raça” não existe para as Ciências Naturais, tratando-se somente de uma construção ideológica,
já que a espécie humana é biologicamente una (HALL, 2013).
54
distinguir os judeus e os pretensos arianos, a miscigenação brasileira antagonizaria essas
desnecessárias distinções e agrupamentos. Em As meninas, Ana Clara e Lia representam
esse hibridismo biológico – em oposição à Lorena, que se julga inteiramente branca e
descendente de bandeirantes, negligenciando a miscigenação que havia entre europeus e
africanos ainda em solo português (HOLANDA, 1995).
Novamente, numa via de mão dupla, a liberdade (as delícias) e a angústia (as
inseguranças) entrelaçam a questão identitária. Num longo percurso histórico iniciado
nas primeiras trocas comerciais entre povos, intensificado por meio de guerras e fluxos
migratórios, culminado na globalização, as identidades ao redor do mundo vão se
misturando, realizando trocas entre si, elaborando novos parâmetros, confundindo-se
umas com as outras.
55
A possibilidade de “cruzar fronteiras” e de “estar na fronteira”, de ter
uma identidade ambígua, indefinida, é uma demonstração do caráter
“artificialmente” imposto das identidades fixas. O “cruzamento de
fronteiras” e o cultivo propositado de identidades ambíguas é,
entretanto, ao mesmo tempo uma poderosa estratégia política de
questionamento das operações de fixação da identidade (SILVA,
2012, p. 89).
Para um governo que anseia pelo controle social extremo, indivíduos cujo
comportamento é previsível e predeterminado são muito mais facilmente manipulados.
Em plena Ditadura Militar, Lygia Fagundes Telles tece três personagens (Lia, Ana Clara
e Lorena) que subvertem valores e padrões, forjando-as em um libelo contra o golpe dos
militares.
56
CAPÍTULO III
– [...] Suba, venha ouvir o último disco de Jimi Hendrix, faço um chá,
tenho uns biscoitos maravilhosos.
– Ingleses? – pergunto. – Prefiro nossos biscoitos e nossa música.
Chega de colonialismo cultural.
– Mas nossa música não me comove, querida. Se os seus baianos
dizem que estão desesperados, acredito, acho ótimo. Mas sem vem
John Lennon e diz a mesma coisa, então vibro, fico mística. Sou
mística.
– Você é fresca (TELLES, 2009a, p. 18).
57
alheia, Lorena se fragmenta entre línguas diversas devido à recorrência do uso desses
outros idiomas (grifos do texto):
Subo o volume da vitrola. Get out of here, ele [Jimi Hendrix] grita já
rouco (TELLES, 2009a, p. 34).
Salientamos que essa oscilação linguística pode ser tanto um mero efeito
inconsciente oriundo do conhecimento de outros idiomas, quanto uma forma de
exclusão, um meio de não permitir ser entendida por aqueles que não dominam tais
línguas: quando ocorre em fluxos de consciência, o uso dessas diferentes línguas
justifica-se mais como um saber que surge automática e inconscientemente; já quando
surge na presença de outras personagens, evidencia-se o suposto elitismo presente na
exposição gratuita de dominar outros idiomas. De ambos os modos, a identidade
linguística nacional é rompida, diluindo-se em estrangeirismos.
58
Percebemos, ainda, os contextos discursivos em que cada língua aparece
majoritariamente: quando se trata de algo relacionado à religião, surge o latim, ou ainda
o espanhol, se algum santo de origem espanhola é citado; ao se referir à música, o inglês
toma a vez, certamente devido à recorrência de Jimi Hendrix; quando se lida com algo
relativo à moda, o francês é utilizado etc.
Se não me misturo na tal massa (morro de medo dela) pelo menos não
fico esnobando como faz Aninha. O que é natural, ela deve ter sido
paupérrima. Se já estivesse guiando o famoso Jaguar pensa que
emprestaria ao seu grupo sequer a bicicleta? Imagine. Vai passar por
nós naquele andar de transatlântico, os ossos dos quadris furando as
águas. E a cara oca de capa de figurino, “Por acaso já nos vimos
antes?”. Turbante de cetim branco com uma esmeralda combinando
com o verde dos olhos tão mais belos do que a esmeralda, tem olhos
lindos, ela inteira é linda (TELLES, 2009a, p. 64).
Quero coisas lindas. Quero tudo que lembre dinheiro, bastante fartura.
Adoro os Estados Unidos, por que não. Aquela subversiva [Lia] tem
raiva porque é uma dura, nunca vai ter nada, melhor que fique com os
piolhentos, mas eu. O melhor hotel. Quantas estrelas tem o melhor
hotel do mundo? [...]
59
Para apagar os traumas e as privações por que passou, Ana Clara objetiva
sobrepor um futuro rico a esse passado pobre. Enquanto esse momento não chega, ela se
afunda sem controle no consumo de drogas: “Fica me olhando com o olhão parado.
‘Que é isso no seu braço? Uma picada?’ Picada sim e daí. Paro com tudo quando bem
entender” (TELLES, 2009a, p. 90).
Ela oscila entre o idealismo platônico que caracteriza seu amor por Marcus
Nemesius, como se vê neste trecho: “Uma materialista como ela [Lia] não pode
entender um amor que é só espírito” (TELLES, 2009a, p. 206); e o amor concretamente
sexualizado por Guga. Neste trecho, a personagem repele o colega de faculdade, mas
hesita quanto à certeza da vontade de interrupção:
60
Atribuo minha vermelhidão à cólera mas a bem da verdade não estou
muito certa disso. Ele apanha a sacola (TELLES, 2009a, p. 206).
Até mesmo o amor que a personagem sente por M.N. mostra-se fragmentado.
Ora ela deseja intensamente que o matrimônio do médico se desfaça, ora hesita quanto a
isso, e chega a pedir a Deus para que esse matrimônio se mantenha: “Jesus, salve
minhas amigas. [...] Salva meu irmãozinho e salva M.N. no seu casamento buleversado,
se for para a alegria dele, salva também esse casamento, ai meu Pai” (TELLES, 2009a,
p. 108). Assim, sua lubricidade cede lugar a um estoicismo, o qual logo se desfaz e há
um retorno à lascívia. E nesse movimento de idas e vindas suas identidades também
oscilam.
61
escaldante, montavam nos camelos mas agora a moradia ideal é nosso
corpo mesmo. Nunca tanto capeta curtiu tanto corpo que é quente
como o deserto. Com a vantagem de ser macio. O local preferido é o
ventre, quer dizer, toda a zona sul com as ramificações nas partes.
Apertei as minhas. Quando M.N. entrar eles vão sair aos pulos. O
exorcismo pelo amor (TELLES, 2009a, p. 111, aspas do trecho).
Lia, aparentemente tão decidida com seu atual namorado, Miguel, relembra do
passado enquanto conversa com seu amigo Pedro, que a chama de “Rosa”; imagina-se
em uma sociedade que não interferisse nos anseios alheios. Nisso, sua identidade não se
solidifica:
Note-se que o medo exerce uma função castradora sobre a identidade sexual da
personagem, que passa a lutar contra o que sente, já que sua família, especificamente, e
a sociedade, de modo geral, condenariam tal comportamento. Surgido como uma
brincadeira de fingir ser outro, fingir ser um personagem masculino criado por ela
mesma, o sentimento cresce e se estabelece, ainda que precise ser interrompido:
62
– Você era feliz, Rosa?
Passo a mão no seu queixo forte.
– Foi um amor profundo e triste, a gente sabia que se desconfiassem
íamos sofrer mais. Então era preciso esconder nosso segredo como um
roubo, um crime. Tanto susto. Começamos a falar igual. Rir igual. Tão
íntimas como se tivesse me apaixonado por mim mesma. Não sei
explicar, mas a primeira vez que me deitei com um homem tive então
a sensação de amor do estranho. Do outro. Aquela boca, aquele corpo,
não, eu já não era uma só, éramos dois: um homem e eu (TELLES,
2009a, p. 130).
63
É a sociedade – por meio da família – que a induz a um padrão identitário, o
qual Lia vê-se compelida a adotar. A coação do outro envenena seu amor adolescente,
que vai se contaminando até que, de tão acuado, míngua. A imposição de um casamento
provoca o exílio, fazendo-a deixar a Bahia e ir para São Paulo, de onde relembra seus
tempos em que sua identidade sexual era outra. Seu “escolhi” parece ter sido um
“escolheram por mim”.
A figura do pai se omite, calando-se. Já a figura da mãe, que deveria ter mais
propensão a compreender a própria identidade feminina, se posiciona prontamente e
busca reverter a situação. Contrária a esses planos, resta a Lia fugir, buscar um novo
lugar onde as pessoas respeitem suas identidades.
Vale esclarecer que Lia não representa a bissexualidade. Sua identidade sexual,
outrora homossexual, é manipulada por figuras externas para uma forjada
heterossexualidade, do que resulta seu aparente forte amor por Miguel, seu atual
namorado que se encontra refém na Argélia e aguardando resgate político.
Ele riu.
64
Embora Lia reconheça a si e aos outros como fragmentados, ela não admite que
um padre se fragmente. Em relação à religião, a personagem mostra-se ortodoxamente
conservadora, ainda que planeje uma revolução social contra o governo instituído pelo
Golpe Militar. Sua identidade faz-se nômade. Em outro momento, o conservadorismo se
desfaz em favor das liberdades individuais, como neste diálogo com a mãe de Lorena:
65
Ela levanta a cabeça pedindo um afago e volta a dormir (TELLES,
2009a, p. 217).
66
Seu interesse em ascender economicamente, além de lhe outorgar uma visão
reificada da vida, faz a personagem depreciar toda lembrança e referência à sua atual
situação financeira. É a questão da identidade e da diferença que se estabelece:
identificada como pobre, Ana Clara acredita que precisa se desvencilhar desse padrão
social e, para isso, pretende afastar-se daqueles que carregam o estigma econômico que
ela contém:
A personagem pretende alterar sua identidade atual por meio do dinheiro. Com o
diploma e com o status de psicóloga, ela ocultará toda a ignorância que associam aos
pobres. Rica, afastada da periferia, ela apagará a semelhança que ainda possui com esse
outro. Para isso, Ana Clara estabelecerá a linha divisória da diferença, hierarquizando-se
superiormente, afastando-se terminantemente desse outro tão presente em si e nas
pessoas com quem convivia: “tenho nojo de problemas de mendigo. Escolho a
clientela”.
67
original que não é mais possível ou a um fechamento da comunidade sobre si própria”
(BERND, 2011, p. 26).
“Mais vinho, Lião?” O vinho ela aceita. Também aceita a lagosta, fala
lagostim. Mas precisa lembrar a estatística das criancinhas morrendo
de fome no Nordeste, esse assunto de Nordeste às vezes exorbita. Não
sei até quando a gente vai ter que carregar esse povo nas costas,
horrível pensar isso mas agora já pensei e estou pensando ainda que se
Deus não está lá é porque deve ter suas razões.
– Ah. Sou um monstro. Queria tanto ser diferente, mas queria tanto.
E esta vocação para a mesquinharia (TELLES, 2009a, p. 23).
Ainda ponho uma placa na minha concha: Perdão pela ordem, pela
limpeza, perdão pelo requinte e pelo supérfluo mas aqui reside uma
cidadã civilizada da mais civilizada cidade do Brasil. Vão me
perdoar? Ana Clara dá uma resposta ambígua e pede oriehnid
[dinheiro] emprestado. Lião não responde mas pede o carro. Pode
levar, querida. Perdão ainda se empresto um Corcel e não um jipe,
cada qual dá o que tem, entende? Mergulho na banheira toda dourada
de sais dourados (TELLES, 2009a, p. 63, grifo do texto).
Chega de pergunta, não está vendo meu cabelo ruivo? Minha pele?
Tudo autêntico. Branquíssima. Bastante suspeita é a Lião. E mesmo a
Loreninha com seus bandeirantes. Sacudo Max: – Você também é
branco, amor. Não temos nada com esses subdesenvolvidos, somos
brancos, está ouvindo? (TELLES, 2009a, p. 84-5).
Não quero botar a culpa em ninguém não vou ficar o resto da vida
acusando mas. Sei lá. Os tipos nojentos que ela levava pra cama. Uma
sorte não levar negro, devia ter alguma coisa contra negro. Uma sorte
não gostar de negro, pomba. O Jorge tinha aquele cabelo duro, usava
touca de meia. Mas era branco lá à moda dele. Como os outros
(TELLES, 2009a, p. 84).
Em outro trecho (uma alucinação com Jimi Hendrix provocada pelas drogas),
seu racismo se apaga, sugerindo que seria oriundo de uma revolta contra o mundo,
contra todos, contra tudo que ela sofreu, e não essa coisa abominável, tola e
injustificável que contamina algumas pessoas:
Lá longe vejo o cantor vem vindo com sua guitarra elétrica antes de
ver sua cara vejo a guitarra brilhando no sol é como se tivesse um
outro sol dependurado no ombro. Um negro mas desse eu gosto.
Gosto de todos os negros gosto de todo mundo todo mundo é bom pra
mim e estou contente de sol e de música ele vem cantando pela
estrada e as coisas todas vêm cantando junto uma alegria vermelha tão
quente boa viagem! grito e ele me cumprimenta rindo gosto desse daí
com sua guitarra elétrica que brilha tanto que preciso fechar os olhos é
um sol! Boa viagem ele diz no meio da luz vermelha da estrada e
agora ficou longe sua cara sua guitarra (TELLES, 2009a, p. 92).
69
Com isso, a personagem mostra-se dividida entre aceitação e racismo: ora
despreza, ora gosta, configurando-se como vítima de um componente de contradição
identitária. Mais um aspecto que a indefine, liquidificando sua identidade. Note-se,
ainda, a conjunção adversativa “mas”, que cria uma oposição reveladora de preconceito
entre os termos “negro” e “eu gosto”.
Falar não quer dizer apenas nomear, dar conta do real; é também
moldá-lo, interpretá-lo e inventá-lo.
[...]
O seu nome, leitor, também é uma ficção. Poderia ter sido outro. Você
pode mudá-lo. As mulheres mudam frequentemente de nome. Ao se
casarem, elas passam de uma ficção para outra.
70
O batizado, o casamento: atos mágicos.
Além do nome, há também os sobrenomes. Estes nos conectam a toda uma rede
de ascendentes, nossos predecessores em árvores genealógicas, que nos situam quase
sempre em um lugar entre duas famílias. As expectativas maternas, paternas e familiares
de modo geral acabam por nos tentar moldar as identidades. E, no caso feminino
especificamente, a adoção de um sobrenome após o casamento, se assim for desejado,
implica a entrada em uma nova identidade, haja vista o elo familiar e social que se cria.
A forma com que as protagonistas de As meninas são chamadas nos faz refletir
sobre isso. Lorena valoriza o nome completo das pessoas e costuma chamar as colegas e
a si mesma pelo nome e sobrenomes: “Na opinião de Lia de Melo Schultz [...]”
(TELLES, 2009a, p. 14); “oh, Lorena Vaz Leme, não tem vergonha?” (TELLES, 2009a,
p. 15). A personagem, representante direta da burguesia paulista, gosta de se ater à sua
origem e de saber sobre a origem dos outros, como se sobrenomes lhe pudessem trazer
garantias:
Lorena acredita ter certeza de suas origens e diz ser descendente de bandeirantes.
Talvez por isso ela se julgue superior à Ana Clara, cujas origens são desconhecidas.
Além da linhagem ignorada, Lorena se questiona quanto à adaptação social que Ana
Clara parece não possuir:
olho para Ana Clara. Dormindo. Lião vive pregando que a sociedade
expulsa o que não pode assimilar. Ana foi expulsa pela espada
flamejante, disse que tinha um florete no peito mas não era um florete,
era uma espada. O que dá no mesmo. Coexistência pacífica, ensinam
os ensinantes. E na prática (TELLES, 2009a, p. 249).
71
Na fala de Lorena, que reflete a observação concreta de Lia, existe uma menção
ao subalterno expulso da sociedade: não conseguindo se assimilar aos padrões sociais,
resta-lhe o degredo. A “coexistência pacífica”, ironizada pela personagem, só existe na
teoria. Na prática, o indivíduo que não segue os padrões de vida e conduta da sociedade
– a exemplo de Ana Clara – sofre um exílio dentro da própria comunidade em que vive,
o que acaba marginalizando-o, excluindo-o brutalmente dos benefícios da vida pública.
É através da beleza e dos estudos que Ana planeja largar sua identidade
vinculada à pobreza e à miséria. Uma troca identitária que ela acredita que lhe fará bem.
A personagem possui plena consciência das implicações oriundas tanto de um nome,
quanto da ausência de um sobrenome de “boa estirpe”; por isso, tenta reverter sua
situação identitária por meio do dinheiro:
Vida nova meu lindo. Adeus Ana Clara Conceição filha de Judite
Conceição, mas é esse seu sobrenome? Vaca. Fez cara de espanto a
vaca. Mulher é mesmo inimiga. Algum professor me esnobou por
causa disso? Quem é que se importa com nome. Ela se importou.
Vaca. Ciúme porque sou bonita. Você tem uma incrível resistência
para línguas, Ana! Se eu tivesse um saco de ouro ela teria notado essa
resistência? Vaca. A nhem-nhem [Lorena] também fez aquela carinha
que conheço quando repetiu meu nome, Ana Clara Conceição?
Conceição sim senhora. E daí? Quem mais nesta cidade se importa
com nome. Cidade formidável acabou tudo isso agora é só saber se a
gente tem ou não um saco de ouro em casa. Se tem pode ter o
sobrenome de merda e as pessoas enchem a boca e dependuram no seu
peito uma medalha. Acabou isso de nome, acabou tudo. Tempos
novos minha boneca (TELLES, 2009a, p. 83).
72
Descendente de bandeirantes. Original. Estupravam as índias e
metiam um tição aceso no rabo dos negros pra saber se não tinham
escondido um ourinho lá no fundo (TELLES, 2009a, p. 83).
Contudo, mesmo consciente de que essa tradição não é algo tão louvável nem
digno de respeito, a personagem, devido às suas carências, retorna a uma certa
idealização, ainda que para logo dela sair:
73
A subalternidade feminina
olho.
para baixo.
machucadas.
(Manoel de Barros)
Ao utilizar-se dos complexos processos artísticos por meio dos quais a literatura
lida com a realidade social, a escritora, de certo modo, consegue criar uma
representação dessa voz subalterna, tirando-a da mudez e conseguindo “articular um
discurso de resistência que esteja fora dos discursos hegemônicos” (ALMEIDA, 2010,
p. 18), tendo em vista que o sujeito subalterno é subjugado pelo discurso dominante.
Entretanto, embora a voz feminina seja proferida por mulheres, percebe-se que
por vezes existe ainda certa subalternidade: a opressão socioideológica é tão intensa e
opressora que consegue condicionar a identidade e as ações das pessoas, que passam a
agir em conformidade com as instituições sociais, as quais se estratificam no próprio eu,
imbricando-se com ele para confundir-se com ele. É mediante essa complexa mistura de
74
vontades e desejos que o indivíduo tantas vezes é manipulado por estâncias que lhe são
exteriores, como a família, a religião, o Estado etc.
As personagens lygianas são tão verossímeis que ratificariam isso: Ana Clara
expõe sua subalternidade; Lia grita contra a ditadura, contra os problemas sociais;
Lorena as patrocina financeiramente, dando-lhes suporte. Dessarte, cumpre-se a
orientação segundo a qual “os intelectuais devem tentar revelar e conhecer o discurso do
Outro da sociedade” (SPIVAK, 2010, p. 26-7).
75
Lia, aparentemente a única não alienada social, investe perigosamente na luta
contra a ditadura militar, entretanto mantém, secretamente, o sonho de constituir uma
família com o homem que ama e de viver em uma sociedade em que haja justiça,
igualdade e bem-estar sociais. Elas, juntas, explicitam que “a pessoa que fala e age [...]
é sempre uma multiplicidade” (FOUCAULT apud SPIVAK, 2010, p. 40).
Lorena constrange-se por sua virgindade e acredita que esse é o empecilho que
impede M.N. de concretizar o sexo entre ela e ele. Embora tantas vezes convicta em seu
estado virginal, ela alterna sua identidade pudica para uma identidade lúbrica quando da
presença de seus colegas Fabrizio e Guga. Depois, condena-se por isso.
Ana Clara pretende abdicar de seu verdadeiro amor pelo traficante e amante
Max em troca do arquitetado casamento burguês com o “escamoso”. Ela se subjuga aos
anseios desse outro, ainda que nela inexista desejo. Só consegue suportar essa situação
graças aos planos estabelecidos que se concretizarão com o dinheiro desse noivo. É para
que seu matrimônio seja bem sucedido que a personagem planeja reconstituir o hímen.
76
Além disso, ela forja uma personalidade refinada para condizer ao nível social de seu
futuro marido, renegando sua identidade original.
Lia, por sua vez, organiza uma viagem à Argélia para, voluntariamente, ser
trocada por seu noivo, Miguel, preso político no país. A vida pacata que ela por vezes
deseja, com filhos e em família, será trocada pela prisão que enfrentará. A oscilação
entre o eu materno e o eu guerrilheiro, além de se embasar em seus ideais, tem
fundamento também nesse homem que ela diz amar.
– Essa moda que vocês têm, essa de liberdade. Cismou de andar solta
demais e não topo isso. Agora inventou de estudar de novo. Entrou
num curso de madureza.
– Garantida, o senhor quer dizer. Mas ela pode estudar, ter uma
profissão e se casar também, não é mais garantido assim? Se casar
errado, fica desempregada. Mais velha, com filhos, entende? [...]
77
– E se ela se casar com uma droga de homem e depois virar aí uma
qualquer porque não sabe fazer outra coisa? Já pensou nisso? Me
desculpe falar assim duro mas vai ter que prestar contas a Deus se
começar com essa história de dizer, case depressa filhinha porque
senão seu paizinho não morre contente. Se acreditar nela, aposto como
ela vai querer merecer essa confiança, vai ser responsável. Se não, é
porque não tem caráter, casada ou solteira ia dar mesmo em nada.
Fiz o discurso. Saio e bato a porta do carro. Ele está meio aturdido.
Enquanto a mãe de Lorena aceita toda a subalternidade feminina, Lia luta contra
essa situação defendendo as liberdades individuais plenas: “A gente tem que amar o
próximo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse” (TELLES, 2009a, p. 238).
78
Feminismos e subjetividades: pluralismos e não identidades
O dilema com que nos debatemos foi este: categorizar ou não categorizar?
Dentro de um grupo identitário, existe uma tendência geral à uniformização. Assim,
enquanto talvez se ganhe com o fortalecimento do grupo, perdem-se subjetividades. Em
favor de uma coerência grupal, o indivíduo pode (deve?) se apagar – voluntariamente ou
não.
79
Talvez o primeiro passo para que tenhamos conseguido entender as mulheres em
suas variações e pluralidades tenha sido a escrita feminina. Foi preciso superar toda uma
tradição de escrita masculina que se julgava apta a falar pelo feminino: “mulheres na
literatura, até bem recentemente, eram uma criação dos homens” (WOOLF, 2014, p.
279). “As mulheres não representavam a si mesmas. Elas eram representadas [...]. Ainda
hoje, é um olhar de homem que se coloca sobre a mulher” (DUBY apud PERROT,
2005, p. 431).
Entretanto, “quando elas criam – pois acontece cada vez mais – qual é seu grau
de liberdade?” (PERROT, 2005, p. 432). Dentro dessa escrita feminina, é preciso que
haja consciência: consciência da dominação e consciência da necessidade de busca por
direitos e liberdades. Não basta que seja somente uma mulher escrevendo. É necessário
que essa mulher tenha consciência das relações sociais em que está inserida; das lutas
que precisam ser travadas; dos jogos de poder que a subjugam. Só assim a sua escrita
não será subalterna às estratégias dominantes.
Como etapas a serem seguidas, era preciso que as mulheres se firmassem como
mulheres, em uma identidade que lhes traria força. Depois, dentro dessa grande, ampla e
80
vasta identidade feminina, outras identidades firmar-se-iam para que, por fim, cada
subjetividade pudesse reivindicar um modo particular de ser. Conforme a familiarização
ou não familiarização a um grupo ou grupos, forjar-se-iam, respectivamente, novas
identidades grupais ou não identidades: “o fim só poderá ser alcançado quando a mulher
tiver coragem para se sobrepor à oposição e determinar-se a ser fiel a si mesma”
(WOOLF, 2014, p. 278).
Como os árbitros das convenções são os homens, pois foram eles que
estabeleceram uma ordem de valores na vida, e já que é na vida que
em grande parte a ficção se baseia, também aqui, na ficção, em
extensa medida, esses valores prevalecem (WOOLF, 2014, p. 278).
Ainda que haja nisso certa ambivalência, a afirmação dessa diferença se faz
vital. Somente após a delimitação de uma identidade feminina, como meio para se obter
mais força e legitimidade, a figura da mulher pode se diluir nas múltiplas mulheres que
são. Antes da ratificação das pluralidades, o poder de um grupo identitário faz-se útil.
“A afirmação da diferença e, logo, da identidade é, para os indivíduos, uma arma
geralmente necessária” (PERROT, 2005, p. 480). Firmado esse poder feminino, as
subjetividades, a heterogeneidade e a não identidade poderão usufruir das conquistas:
Visto isso, entendemos que, antes de tomar Ana Clara, Lia e Lorena como seres
cujas identidades se fragmentam e se diluem, nós vemos essas três personagens como
81
representantes de uma identidade feminina que busca se firmar socialmente tendo em
vista o seu polo oposto (porque muitas vezes opressor): o homem. Multifacetadas em
seus variantes processos de identificação, elas são, primordialmente, o feminino. Só
depois de firmada tal diferença e conquistado o direito de ser, essas meninas podem
tomar para si uma não identidade que lhes possibilite a liberdade que elas tanto desejam.
82
combinação desses dois fatores. Com dinheiro e tempo livre a seu
dispor, naturalmente as mulheres se dedicarão mais do que até aqui foi
possível ao ofício das letras. Farão um uso mais completo e sutil da
ferramenta da escrita. Sua técnica será mais audaciosa e mais rica
(WOOLF, 2014, p. 282).
83
história é seguramente o que causa problema, por diversas razões” (PERROT, 2005, p.
468).
Indiferenciar, ainda que pareça impossível, pode ser uma estratégia de poder. A
diferença, ao ser estabelecida, funciona como mecanismo de dominação: ao se
diferenciar, agrupa-se o diferente para que este seja mais bem controlado. Indiferenciar,
portanto, além de forçar uma igualdade que deveria existir, porém ainda não existe,
confundiria as formas de dominar.
84
reconstituindo conforme os próprios desejos, consegue, assim, fugir de dominações
externas, podendo viver, ainda que não plenamente, sua liberdade.
85
Ao contrário de Lorena, Lia toma as ruas para si: é nelas que se encontra com
seus companheiros de revolução; é nelas que arquiteta seus planos contra aqueles que
estabeleceram o Golpe Militar. Em consequência, ela é chamada de subversiva. Se
permanecesse em seu quarto, apagada, quieta, silenciosa, Lia seria elogiada como “boa
moça” e não levantaria suspeitas. A personagem, contudo, reivindica para si um
ambiente tido como dominado pelo masculino, enquanto Lorena acata a sua condição
feminina subjugada, mantida cativa voluntariamente em seu próprio quarto.
Dessa forma, percebe-se que Foucault evita a padronização que uma identidade
pode acarretar: a “identidade pode ser um modo de prazer ou de luta: não uma ‘regra
86
ética universal’” (PERROT, 2005, p. 501). Todo esse debate não impede – nem tenta
impedir – agrupamentos identitários; o que se faz é um alerta para que as idiossincrasias
subjetivas sejam mantidas, ao invés de serem apagadas em favor de uma – pretensa –
coerência grupal, que poderia tornar-se forçada, obrigatória, inibidora.
87
história está por escrever, [...] as hermafroditas, os travestis, as loucas
que vagam nas zonas incertas da sexualidade onde se dissolvem as
identidades (PERROT, 2005, p. 503).
Você tem que viver sua vida ao seu modo e não do modo que os
outros decidirem, ô, Lena, Lena, não sei explicar, mas aquela história
do Tempo devorando os filhos, não é o deus Cronos? Ele mesmo ia
parindo e ele mesmo ia devorando tudo. Mas de verdade não é o
tempo que engole a gente, é um tipo de mãe como a sua. Um pouco
como a minha, também. Presta atenção, salta fora e ela vai se dedicar
a outra causa, a caridade, Deus, quem sabe até vai querer adotar uma
criança? Minha mãe adotou uma, está radiosa lá com a garotinha que
beija e castiga à vontade (TELLES, 2009a, p. 254).
É nessas lutas e omissões pelo direito de ser, nessa trama de fuga da opressão e
de volta voluntária ou forçada ao opressor (físico ou metafísico) que a narrativa de
Lygia Fagundes Telles se desenvolve. É nesse movimento que as identidades das
personagens tentam se fazer, mas logo se desfazem para tentar novamente se refazer. As
identidades se fragmentam, liquidificam-se, tornam-se cambiantes, chegando a haver
somente processos de identificação. E, quiçá, somente não identidades, haja vista a
constância das transformações identitárias.
88
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se se pode tentar concluir algo sobre a flutuação das identidades, talvez se possa
dizer que poder mudar nossas possibilidades de identificação nos traga mais liberdade.
É o que Lygia Fagundes Telles nos mostra por meio de suas personagens. As meninas é
uma obra que apreende a dinâmica identitária humana: ainda que haja um mecanismo
externo opressor – o Estado, a mídia, as ideologias dominantes, as religiões, a família, a
sociedade de modo geral, a escola – que nos queira moldar conforme o seu gosto e suas
conveniências, nós, enquanto sujeitos proativos e conscientes de nossas ações, podemos
resistir a esse poder exterior para que estabeleçamos as relações e as vivências em
conformidade com nossos próprios desejos, ao invés de tomarmos para nós as vontades
alheias.
Além dessa teoria e dessa crítica que subsidiam nossa pesquisa, existem
inúmeros escritores que produziram obras literárias em que há personagens (e eus
líricos) cujas identidades se fragmentam: Clarice Lispector, Manoel de Barros, João
Guimarães Rosa, Lewis Carroll, Fiódor Dostoiévski, Milan Kundera, Murilo Mendes,
Raduan Nassar, João Gilberto Noll, Fernando Pessoa, Robert Louis Stevenson e a
própria Lygia Fagundes Telles em outros romances e contos.
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Por fim, resta-nos saber que essas mudanças por que passamos desde que
nascemos – essas transformações múltiplas de nossas identidades – são, possivelmente,
o que nos permite acreditar que em nós existe vida, porque a morte talvez seja uma
grande estagnação.
A melhor forma de estar neste mundo talvez seja este estado fugidio com que as
personagens de Lygia se apresentam: “Vocês me parecem tão sem mistério, tão
descobertas, chego a pensar que sei tudo a respeito de cada uma e de repente me assusto
quando descubro que me enganei, que sei pouquíssima coisa. Quase nada” (TELLES,
2009a, p. 143).
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