Dossie SAT Sempre Vivas Final 1-9-324
Dossie SAT Sempre Vivas Final 1-9-324
Dossie SAT Sempre Vivas Final 1-9-324
Dossiê de registro do
Belo Horizonte
Outubro de 2021
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
Governo do Estado de Minas Gerais
IEPHA-MG
Presidente
Felipe Cardoso Vale Pires
Diretora de Promoção
Luis Gustavo Molinari Mundim
FICHA TÉCNICA
Coordenação da Instrução Técnica do Processo de Registro
Débora Raiza Carolina Rocha Silva
Texto e pesquisa
Ana Paula Lessa Belone
Débora Raiza Carolina Rocha Silva
Laura Moura Martins
Maria Letícia Ticle
Colaboração
Clarice Murta Dias
Guilherme Eugênio
Revisão
Ana Flávia Nascimento Paes
Nicole Faria Batista
Estagiários
Clara Lima Borges
Leandro Soares Nunes
Mariana Loures
Steffane Pereira Santos
Fotos
João Roberto Ripper
Valda Nogueira
Ana Paula Lessa Belone
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LISTA DE ABREVIATURAS
APA – Áreas de Preservação Ambiental
CONEP – Conselho Estadual do Patrimônio Cultural
CODECEX – Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas
CEPCT - Comissão Estadual de Desenvolvimento de Povos e Comunidades Tradicionais
CNPCT – Comissão Nacional de Desenvolvimento de Povos e Comunidades Tradicionais
DPM – Diretoria de Proteção e Memória
DPR – Diretoria de Promoção
EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
FEC/MG – Fundo Estadual de Cultura de Minas Gerais
GIAHS – Globally Important Agricultural Heritage Systems
GEP – Grupo Executivo Permanente
GPCI – Gerência de Patrimônio Cultural Imaterial
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMS – Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
IEPHA-MG – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPAC/MG – Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Minas Gerais
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IRD/França – Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento
ISA – Instituto Socioambiental
MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
ONU – Organização das Nações Unidas
OIT – Organização Internacional do Trabalho
RMBH – Região Metropolitana de Belo Horizonte
RPPN – Reservas Particulares do Patrimônio Natural
RTID – Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação
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LISTA DE FIGURAS
Figura 10. Mapa das tensões territoriais na porção meridional da Serra do Espinhaço..… 87
Figura 12. Casa de farinha, na Comunidade de Mata dos Crioulos, Diamantina..……….. 108
…………………………………………….……………………………………………….…………………………..…………. 189
Figura 41. Ações previstas após a convalidação de salvaguarda.…………….………………….… 197
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8
1.1. Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadores (as) de flores Sempre-vivas ............ 12
1.2. Metodologias para o Registro .................................................................................. 21
1.3. Estrutura do Dossiê .................................................................................................. 32
2. TERRITÓRIO E PAISAGEM CULTURAL ........................................................................... 34
2.1 Serra do Espinhaço: locus do sistema ....................................................................... 34
2.2 Aspectos históricos do Sistema Agrícola Tradicional ................................................ 43
2.3 Territorialidades de Apanhadores (as) de flores Sempre-vivas ................................ 55
3. ELEMENTOS DO SISTEMA AGRÍCOLA TRADICIONAL ...................................................... 94
3.1 Agricultura e Cultura Alimentar ................................................................................ 94
3.2 Criação de animais .................................................................................................. 116
3.3 Manejo do Cerrado ................................................................................................. 128
3.4 Coleta de flores Sempre-vivas................................................................................. 143
3.5 Materialidades e Imaterialidades ........................................................................... 157
4 MOTIVAÇÃO PARA O REGISTRO ............................................................................ 181
5 PLANO DE SALVAGUARDA .................................................................................... 185
a. Propostas de Ações de Salvaguarda:......................................................................... 189
b. Estratégias para construção/implementação do Plano de Salvaguarda .................. 196
6 TERMINOLOGIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL ........................................................ 199
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 203
1. INTRODUÇÃO
O presente Dossiê de Registro é produto dos estudos realizados sobre o Sistema
Agrícola Tradicional de Apanhadoras e Apanhadores de Flores Sempre-Vivas, com o objetivo
de fundamentar seu processo de registro como Patrimônio Cultural de Minas Gerais. De
modo geral, um Sistema Agrícola Tradicional - SAT pode ser definido como um conjunto que
inclui saberes, mitos, formas de organização social, práticas culturais e produtivas,
manifestações associadas e outra diversidade de elementos desenvolvidos por coletividades
localizadas em territórios específicos.
O Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadores(as) de Flores Sempre-Vivas é
desenvolvido por comunidades tradicionais que vivem na porção Meridional da Serra do
Espinhaço, em Minas Gerais, cujo modo de vida diferenciado está fundado em estruturas
produtivas e de manejo que envolvem agricultura, criação de animais e manejo do cerrado.
Nesta estrutura que conforma o SAT, a coleta das flores e dos botões de Sempre-vivas torna-
se central, uma vez que é de grande importância, dentre outros, para a reprodução social e a
constituição da identidade coletiva desses grupos.
O manejo do cerrado se dá, ainda, por meio do extrativismo de plantas nativas para
usos medicinais, alimentares, construtivos e para geração de renda. Já as estratégias
agroalimentares estão assentadas na combinação de um extenso corpus de conhecimentos e
usos dos diversos ambientes da serra, em saberes tradicionais de produção de roças, hortas
e quintais agroecológicos, da gestão compartilhada de recursos genéticos adaptados e dos
recursos hídricos disponíveis.
Em razão da importância local e global em termos de conservação ambiental, de
segurança alimentar e de manutenção dos modos de vida de comunidades tradicionais,
frente ao avanço do agronegócio com seus sistemas de monocultivo, da destruição da
diversidade genética por meio do emprego de sementes geneticamente modificadas, da
intrusão de grandes projetos de desenvolvimento em territórios tradicionais, da privatização
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1
A FAO é a agência da ONU especializada na questão do combate à fome e à pobreza por meio da melhoria da
segurança alimentar e do desenvolvimento agrícola. Com sede em Roma, na Itália, a FAO está presente em 191
países-membros, mais a Comunidade Europeia. Possui o programa Globally Important Agricultural Heritage
Systems (GIAHS) que identifica e reconhece sistemas desenvolvidos em paisagens de beleza estética singulares
e de destacada relevância sociocultural e agrícola que combinam a biodiversidade agrícola com valioso
patrimônio cultural e ecossistemas resilientes. Disponível em: <http://www.fao.org/giahs/en/ > acessado em
01/07/2021.
2
Para trazer o programa GIAHS ao Brasil, o escritório da FAO no país teve no Iphan e na Embrapa dois de seus
principais interlocutores. Em 2016 ambas instituições celebraram um acordo de cooperação técnica com vistas
a implementar o programa da FAO (BUSTAMANTE, 2019, p. 18).
3
Neste sentido, o Despacho Governamental nº 22/2018 que determinou à Seapa (antiga Seda) a adoção de
medidas para criação do Grupo Executivo Permanente - GEP dos Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas. A
Resolução Seapa nº 36 de 26 de novembro de 2019, posteriormente revogada por uma nova Resolução, institui
o GEP Sempre-Vivas para a elaboração e implementação das estratégias de apoio ao Sistema de Manejo
Agroextrativista da Serra do Espinhaço Meridional em Minas Gerais (Sistema Agrícola Tradicional de
Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas).
9
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4
Em função das restrições impostas pela pandemia de Covid-19, os trabalhos de campo foram paralisados em
2020. No entanto, a equipe técnica compreendeu que o dossiê de registro poderia ser concluído independente
da continuidade do campo, diante do material já existente.
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5
EMPERAIRE, Laure. Patrimônio agricultural e modernidade no Rio Negro (Amazonas). In: Políticas culturais e
Povos Indígenas. CUNHA, Manuela Carneiro; CESARINO, Pedro Niemeyer (Orgs.). São Paulo: Editora Unesp,
2016, p. 65.
6
PAES, Tereza. Prefácio. In: Dicionário Temático de Patrimônio: debates contemporâneos. CARVALHO, Aline;
MENEGUELLO, Cristina (Orgs.). Campinas: Ed. Unicamp, 2020, p. 17.
11
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7
MONTEIRO, Fernanda testa et al. Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço Meridional, MG:
Transumância, biodiversidade, e cultura nas paisagens manejadas pelos(as) apanhadores (as) de flores Sempre-
vivas. Sistema Agrícolas tradicionais do Brasil. EIDT, Jane; UDRY, Consolacion (Editoras Técnicas). Brasília:
Embrapa, 2019.
8
SISTEMAS AGRÍCOLAS TRADICIONAIS NO BRASIL. EIDT, Jane; UDRY, Consolacion (Editoras Técnicas). Brasília:
Embrapa, 2019.
9
Dentre as 20 categorias que constituem os povos e comunidades tradicionais do Brasil estão os mais de 230
povos indígenas, além de quilombolas, ciganos, matriz africana, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de
coco-de-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras,
ribeirinhos, varjeiros, caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, açorianos, campeiros, vazanteiros,
pantaneiros, caatingueiros, entre outros.
13
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que articulam suas diversidades socioculturais às diversidades biológicas com as quais estão
em interação nos territórios que ocupam. Neste sentido, a respeito desta categoria, o
Decreto nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, assim baliza o termo
como:
10
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm>. Acesso
em 02/06/2020.
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11
MONTEIRO, Fernanda Testa et al. Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço Meridional... 2019.
15
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Panhava flor, pois é. Eu lembro desse dia assim, porque isso foi o nome que se deu
para essa atividade. Então quando a gente estava lá reunido e a gente falando ‘o
que é que cada uma faz?’, tinha uma coisa que era comum pra todos. Roça cada
um faz de um jeito, gado uns têm outros não, mais todo mundo panhava flor.
Então assim, eles tavam pensando o nome, então assim era coletor, era
extrativista, até essas palavras saíram. Aí eu falei assim 'gente, eu nunca tinha
ouvido falar em coleta, nunca tinha ouvido falar em extrativismo, o que a gente faz
lá é panhar flor. Então a partir disso nós vamos formar um grupo de apanhador de
flores, que aí entendendo que panhar flor é fazer esse modo de ser, de fazer, de
12
Em algumas comunidades, como se verá, há mais de uma autodefinição sendo, além de apanhadoras de
flores, também quilombolas.
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viver. Assim, é muito mais amplo do que ir pra campo, até pra ir pra campo panhar
13
tem toda uma história, um modo de ser.
No que diz respeito à questão analítica imposta pela ideia de "sistema", nos últimos
anos, a GPCI vem cada vez mais refletindo e tomando esta noção como uma via para o
entendimento da multidimensionalidade inerente aos bens culturais de natureza imaterial
de Minas Gerais. Por exemplo, isto ocorreu no âmbito do registro das Folias de Minas, que
foram pensadas a partir da perspectiva de "sistema religioso".14 Ou seja, o Iepha-MG vem
intentando, "a partir de um lugar de fala e produção de conhecimentos específicos, a
compreensão de significações histórico-culturais de símbolos, objetos, espaços, lugares,
ambiências, formas de expressão".15
Portanto, a abordagem sistêmica dos apanhadores (as) de flores Sempre-vivas torna-
se pertinente para se pensar a respeito da proteção e da salvaguarda dos saberes e dos
modos de vida desses povos e comunidades tradicionais, conjugados aos seus âmbitos
territoriais, produtivos e bioculturais. Sobretudo, compreender esse conjunto de saberes de
modo indiscernível destas dimensões, contribui para que o Iepha-MG atue cada vez mais de
forma integrada junto a outros atores sociais e institucionais, com vistas à garantia dos
direitos coletivos dessas comunidades, sendo a regularização fundiária dos territórios um
dos mais urgentes e necessários e cuja demanda parte dos próprios detentores.
Contudo, compreender bens culturais sob esta ótica não é tomá-los enquanto algo
monolítico e homogêneo. Ao contrário, a constituição desses "sistemas" são histórica e
territorialmente localizados, multiétnicos, além de culturalmente dinâmicos. Especialmente
no caso do bem cultural ora objeto de registro, as comunidades onde o sistema agrícola
tradicional é desenvolvido possuem singularidades que lhes são próprias, mesmo com
relação aos elementos conformadores do sistema, tal como a narrativa acima de Tatinha
13
ALVES, Maria de Fátima. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Diamantina. Registro do SAT das Comunidades
Apanhadoras de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone. Disponível no Acervo
documental IEPHA-MG.
14
As Folias de Minas foram o quarto bem cultural imaterial a ser registrado pelo Iepha-MG, no ano de 2017.
15
BRAYNER. Natália Guerra. Da roça à mesa: caminhos e sentidos da patrimonialização do Sistema Agrícola
Tradicional do Rio Negro. Sistema Agrícolas tradicionais do Brasil. EIDT, Jane; UDRY, Consolacion (Editoras
Técnicas). Brasília: Embrapa, 2019, p. 44.
17
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expôs: “Roça cada um faz de um jeito, gado uns têm outros não”. Neste sentido, a colocação
de Monteiro (2019) é elucidativa a esse respeito do que se pretende o estudo para o
Registro:
16
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais: as terras de uso comum e o uso
coletivo das terras. Tese (Doutorado em Geografia). Volume 2. Universidade de São Paulo, 2019, p. 211.
17
Ibid., 2019.
18
No caso específico de Mata dos Crioulos, Diamantina é o município de referência da comunidade, de onde
parte a via de acesso e onde muitos moradores possuem uma base residencial e utilizam os serviços básicos.
Contudo, o território de Mata dos Crioulos abarca ainda, os seguintes municípios: Serro; Serra Azul de Minas;
Felício dos Santos; Couto de Magalhães de Minas e São Gonçalo do Rio Preto.
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19
Monteiro pontua que os trabalhos de campo abrangeram um total de 12 municípios, 52 localidades, 38
comunidades agrárias e 14 distritos rurais (2019, p. 211 - nota 208).
20
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 10.
19
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21
Ibid., p. 10.
22
Com exceção das localidades de Serra do Cabral e de Capivari - que foram levantadas durante a participação
em uma reunião da Codecex em 2019 e através de dados do cadastramento realizado pelo Iepha -, as demais
localidades que constam neste levantamento preliminar foram identificadas a partir de dados do Relatório-
Diagnóstico sobre as Comunidades Tradicionais das Imediações e Dentro do Parque Nacional das Sempre-Vivas
- Municípios de Diamantina, Buenópolis, Olhos D'Água e Bocaiúva (FILHO, 2014).
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Apesar do presente estudo focar nas seis comunidades, podem figurar ao longo da
análise, informações de algumas das comunidades supracitadas. Já que, além de
compartilharem os elementos do sistema agrícola tradicional, muitas delas também
vivenciam contextos de conflitos. Contudo, o aprofundamento do conhecimento a seu
respeito, principalmente por meio de inventários, se dará a partir de ações de salvaguarda
específicas do sistema agrícola tradicional.
23
Na ocasião, a representante da Codecex dividiu a Mesa com Emmanuel Almada (UEMG) e Marcos Rabelo
(Iphan), com mediação feita por Heloísa Costa (UFMG).
21
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Exposição Fotográfica "Saberes que alimentam o patrimônio" que teve lugar na Alameda
Travessia, na Praça da Liberdade em Belo Horizonte-MG, e contou com imagens que foram
cedidas pela Codecex, diretamente de seu acervo fotográfico, com imagens dos renomados
fotógrafos João Roberto Ripper e Valda Nogueira, dentre outros.
Os diálogos também ocorreram com os pesquisadores que elaboraram o relatório de
candidatura ao selo GIAHS/FAO/ONU, dentre os quais se destaca Fernanda Testa Monteiro,
doutora em geografia pela Universidade de São Paulo. Foi esta pesquisadora quem fez uma
uma das primeiras aproximações da equipe da GPCI com o tema, ainda no ano de 2018, em
uma reunião de apresentação no Iepha-MG. Suas produções acadêmicas, referência nas
temáticas envolvendo o contexto sócio-territorial e agrário dos apanhadores (as) de flores,
foram fundamentais na produção deste Dossiê.
O antropólogo Aderval Costa Filho (2008),24 professor da Universidade Federal de
Minas Gerais - UFMG, foi outro pesquisador com o qual o Iepha-MG manteve diálogo. No dia
23 de setembro de 2019, o professor participou com parte da equipe da DPM, de uma
reunião em que explicou como se deu o processo de candidatura deste sistema agrícola
tradicional ao programa da FAO/ONU, como as pesquisas se sucederam, além de questões
referentes aos direitos territoriais dessas comunidades tradicionais. Ademais, os
pesquisadores Claudenir Fávero e Maria Neudes Souza de Oliveira, professores da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM, também estiveram em
interlocuções pontuais com a equipe da GPCI, sobretudo, em ocasiões específicas durante os
trabalhos de campo.
Já no que se refere aos atores institucionais, cabe destacar o Instituto de Colonização
e Reforma Agrária - INCRA (Superintendência de Minas Gerais) que fez a cessão dos
Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação - RTID das Comunidades de Mata dos
24
COSTA FILHO, Aderval. Os Gurutubanos: territorialização, produção e sociabilidade em um quilombo do
centro norte-mineiro. Tese (Doutorado em Antropologia). Universidade de Brasília. 2008, p. 209.
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25
Para uma discussão a este respeito, consultar: BUSTAMANTE, P. Prefácio. Sistema Agrícolas tradicionais do
Brasil. EIDT, Jane; UDRY, Consolacion (Editoras Técnicas). Brasília: Embrapa, 2019.
23
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26
As organizações mobilizadoras para a construção deste documento junto às comunidades foram a CODECEX
e a Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos.
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27
Mais informações sobre a missão da FAO/ONU em Diamantina: <http://iepha.mg.gov.br/index.php/noticias-
menu/443-onu-avalia-sistema-agricola-tradicional-dos-apanhadores (as)-de-Sempre-vivas-em-minas-gerais> .
Acesso em: 30/07/2020.
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além de indicar os elementos culturais que compõem seu modo de vida, os moradores de
Raiz reforçaram entre si sua territorialidade tradicional, que está em constante ameaça.
A aplicação dos mapas de percepção na Comunidade Raiz ocorreu na primeira visita,
em março de 2019. Na ocasião, a equipe do Iepha-MG foi acompanhada pela Codecex, que
intermediou a visita. Nesse ponto, a atividade do mapa de percepção foi também uma
maneira de aproximar-se da comunidade e criar os primeiros vínculos com seus moradores,
uma vez que anteriormente a equipe só havia se encontrado com algumas lideranças de Raiz
em uma reunião na sede da Codecex.
A atividade foi realizada no galpão da associação comunitária, e contou com a
presença de cerca de trinta pessoas de gêneros e idades diversas. A aplicação dos mapas foi
precedida por uma fala de apresentação feita pela gerente da GPCI, que foi quem também
conduziu a dinâmica. Após a formação de dois grupos heterogêneos de moradores, foram
distribuídos materiais para desenho, a partir dos quais cada um começou a traçar livremente
o território e suas principais referências, sendo pontualmente provocados pela equipe do
Iepha-MG. Ao final, cada grupo elegeu suas representantes (maioria mulheres), que foram à
frente apresentar os resultados do mapeamento. É relevante mencionar que essa etapa foi
fundamental no momento em que a equipe, de fato, percorreu o território, já com um
entendimento embasado pelas informações produzidas pelos próprios detentores através
dos mapas.
6) O cadastramento foi elaborado com a finalidade de se avançar na identificação e,
portanto, no incremento dos dados a respeito de localidades que desenvolvem o SAT dos
Apanhadores (as) de Sempre-vivas, para além das comunidades elencadas para compor a
análise. Dessa maneira, o Iepha-MG abriu em outubro de 2019, o Formulário para fins de
Mapeamento do Sistema Agrícola das Comunidades Apanhadoras de Sempre-Vivas. Na
ocasião do lançamento do Formulário no site, o Iepha-MG informou aos municípios
localizados na região em questão, que a adesão ao cadastramento seria pontuado no
programa ICMS Patrimônio Cultural.
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28
MOTTA, Lia; RESENDE, Maria Beatriz. Inventário. Dicionário do Patrimônio Cultural. IPHAN.
<http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/64/inventario>. Acesso em 03/08/2020.
31
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territorializados social e historicamente nestes espaços, não sendo possível separar as duas
dimensões.
Assim, o objetivo do IPAC foi o de tratar com mais acuidade a respeito dos contextos
históricos, territoriais e socioculturais específicos, além dos problemas enfrentados, e das
proposições orientadas a cada um dessas realidades sociais. A estrutura das Fichas é
também composta por mapas e fotografias, cujas linguagens específicas auxiliam na
compreensão dos elementos constitutivos de cada localidade inventariada, de modo
particular, e do próprio sistema agrícola tradicional, de modo mais amplo.
As Fichas de Inventário foram elaboradas pela equipe técnica da GPCI tendo como
embasamento, os materiais e as análises promovidas nas outras etapas de pesquisa, o que
mostra a indissociabilidade entre as distintas metodologias utilizadas na produção do
registro. Ao mesmo tempo, as informações aprofundadas das Fichas de inventário
auxiliaram na compreensão das informações contidas do Dossiê, que traz uma análise mais
global do sistema agrícola tradicional. Por fim, é imprescindível mencionar que a equipe
técnica da Codecex realizou a revisão do IPAC, não somente referendando as informações ali
contidas, como também fornecendo suas próprias contribuições aos documentos.
33
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O Sistema Agrícola Tradicional desenvolvido ao longo dos anos por apanhadores (as)
de flores Sempre-vivas tem como locus a porção meridional da Serra do Espinhaço, no
estado de Minas Gerais. A Serra do Espinhaço é a única cordilheira do Brasil, tendo se
formado no Proterozóico mediano há cerca de 1.250 milhões de anos. Constitui-se de uma
faixa orogênica29 de cerca de 1.000 quilômetros de extensão na direção norte-sul, que se
estende desde o estado de Minas Gerais até a Bahia. Conforme aponta Saadi (1995), embora
seja designada como serra - além de "cordilheira"ou "cadeia" - este "conjunto de terras
altas" pode ser melhor caracterizado como planaltos, divididos entre: planalto meridional e
o planalto setentrional.30
De acordo com Saadi, o planalto meridional do Espinhaço tem cerca de 300
quilômetros de extensão e inicia-se na região da serra do Cipó, localizada na Região
Metropolitana de Belo Horizonte, onde sua largura é mais reduzida, com 30 quilômetros. A
largura aumenta em direção ao norte, atingindo 90 quilômetros entre o município de Santo
Antônio do Itambé e o distrito de Conselheiro Mata, pertencente à Diamantina. Essa
vertente meridional se encerra nos limites do município de Olhos D'água, situado na região
Norte de Minas.31
Com uma altitude média de 1.200 metros e culminância de 2.062 metros no Pico de
Itambé, o planalto Meridional possui como uma das características elementares a
composição geomorfológica predominante de quartzito, caracterizada como uma "cobertura
rígida", ao mesmo tempo que "densamente fraturada"32. Essa estrutura confere à Serra do
Espinhaço a sua paisagem emblemática, conforme descreve o arqueólogo Andrei Isnardis:
29
Também conhecidas como “dobramentos modernos”, as faixas orogênicas são estruturas avantajadas
formadas por rochas magmáticas e sedimentares pouco resistentes, que por sua vez foram impactadas
forças tectônicas gerando cadeias montanhosas ou cordilheiras.
30
SAADI, Allaoua. A geomorfologia da Serra do Espinhaço em Minas Gerais e de suas margens. Geonomos,
1995, p. 41.
31
Ibid., p. 43
32
Ibid.
34
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Além da geomorfologia, a descrição feita por Isnardis lança luz sobre outras
características conformadoras do Espinhaço, sendo a primeira delas, a riqueza hídrica. Esta
cadeia montanhosa é um repositório de nascentes de rios e de afluentes que drenam para
importantes bacias hidrográficas, como as dos rios Doce, Jequitinhonha e São Francisco.
Sendo assim, torna-se também um divisor aquífero fundamental no contexto, sobretudo do
Sudeste e Nordeste brasileiro.
Uma segunda característica apontada é a predominância do Cerrado na constituição
da paisagem. Segundo maior bioma da América do Sul, o Cerrado, também conhecido como
Savannah brasileira, é reconhecido por sua alta concentração de biodiversidade. No que se
refere a fauna, por exemplo, já são conhecidas cerca de 200 espécies de mamíferos, mais de
800 espécies de aves, 1200 espécies de peixes, 180 espécies de répteis e 150 espécies de
anfíbios, a maior parte endêmicas do bioma. Além disso, de acordo com estimativas
recentes apresentadas pela Embrapa, o Cerrado é habitado por mais de 20 mil espécies de
insetos, tais como borboletas, abelhas e cupins. Na flora, de acordo com o Ministério do
Meio Ambiente, o Cerrado possui pelo menos 11.627 espécies de plantas nativas já
catalogadas. Essas plantas apresentam diversas potencialidades, entre as quais pode-se
destacar os usos alimentares, medicinais, ornamentais e utilitários.34
33
ISNARDIS, Andrei. Na sombra das pedras grandes: as indústrias líticas das ocupações pré-coloniais recentes
da região de Diamantina, Minas Gerais, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas,
v. 12, n.3, p. 895-918, set-dez, 2017. p. 895. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v12n3/1981-
8122-bgoeldi-12-3-0895.pdf>. Acesso em 18/05/2020.
34
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Disponível em: <https://www.mma.gov.br/biomas/cerrado>. Acesso em
18/05/2020.
35
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35
Além dos campos rupestres, a região do Espinhaço possui ainda as seguintes fitofisionomias do bioma
Cerrado: cerrado stricto sensu, parque cerrado, cerradão, campo sujo, campo limpo (Linke, 2008 apud Isnardis,
2017, p. 899).
36
É importante mencionar que, conjugado aos aspectos ambientais que lhes conferem grande singularidade, o
Cerrado se integra profundamente aos diversos povos e comunidades tradicionais, sendo, portanto, muito
importante também do ponto de vista sociocultural. Além dos apanhadores (as) de flores Sempre-vivas,
indígenas, quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, entre outros, fazem uso dos recursos naturais do cerrado
como parte de seus modos de vida. (FERNANDES et al., 2018)
37
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista da Serra do Espinhaço Meridional, Minas Gerais (Brasil). 2019,
p. 76.
36
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"mata de pau grosso". Contiguamente a ela encontram-se matas abertas, as "matas de terra
ruim", com maior presença de espécies de cipós.38
Ainda nas partes aplainadas das “Encostas” há o Cerrado Estrito que é formado por
vegetação de pequeno e médio porte, sendo áreas para manejo de frutos, produtos de
ornamentação e para pastoreio do gado em espécies forrageiras. Em geral, os ambientes das
Matas e do Cerrado são utilizados pelos grupos sociais para plantio de roças, de hortas e
pastagens para alimentação animal.
As Partes Baixas assim como o nome indica, encontram-se nas menores altitudes da
serra, abaixo de 700 metros. De um lado, são formadas pelas "beiras do rio Jequitinhonha"
(margem oriental) e de outro, pelo "sertão" (margem ocidental). Este ambiente é formado
por Baixadas ou "Baixas" e por Vazantes ou "Vargens", que podem ser úmidas ou secas, e é
um ambiente de solo mais rico em matéria orgânica, sendo utilizada para plantação de
roças, hortas, quintais, etc, além do estabelecimento das unidades familiares.
Aos aspectos geofísicos da porção meridional da Serra do Espinhaço somam-se
outros tantos, práticos e simbólicos, que configuram diferentes culturas subjacentes a esse
território. São modos de cultivar e de se alimentar, de construir e de morar, são maneiras de
se apropriar do espaço, de referenciar visualmente os lugares; enfim, são diferentes formas
de existir na serra. As mais variadas associações desses elementos pelas comunidades que
vivem ali configuram diferentes paisagens possíveis em um mesmo locus.
Ampla e complexa, a noção de paisagem transita entre diferentes disciplinas do
conhecimento – História, Geografia, Urbanismo, Belas Artes, Filosofia, para citar algumas – e
é dotada de uma “mobilidade conceitual essencial ao seu entendimento”39. Assim, não cabe
aqui uma tentativa de definição desta noção, mas sim discorrer sobre a percepção da
paisagem do Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas,
38
CODECEX. Sistema de Manejo… 2019, p. 82. Esta descrição mais sucinta dos ambientes pode ser observada
com mais detalhamento no Relatório elaborado pela CODECEX, inclusive com as particularidades referentes às
faces leste e oeste da serra. Cada uma possui estruturas com especificidades, inclusive com relação a
determinadas denominações.
39
LACERDA, Mariana de Oliveira; SAADI, Alloua. Paisagem garimpeira no planalto de Diamantina, Minas
Gerais. Revista Espinhaço, 2017, 6 (2): 15-26, p. 15.
37
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Assim, mais do que pela descrição visual dos lugares ocupados pelas comunidades de
apanhadores (as) de flores Sempre-vivas na Serra do Espinhaço – a própria serra, os distritos
e residências fixas, as roças e campos de gado, as campinas de flores, as lapas – e de seus
aspectos materiais – objetos e ferramentas, alimentos cultivados e consumidos – ou seja, de
seus aspectos visíveis, a narrativa da paisagem é composta pelos aspectos vividos. Esses são
como filtros de percepção dos indivíduos e dos grupos sociais acerca daquele ambiente e de
40
DOMINGUES, Álvaro. Paisagens Transgénicas. In: CARDOSO, Isabel Lopes (coord.) Paisagem e Património:
aproximações pluridisciplinares. Porto: Dafne Editora/Chaia/Universidade de Évora, 2013.
41
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5 ed., 3 reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2012, p.53.
42
Ibid., p. 16.
38
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tudo que faz parte dele43. A díade composta pelo visível e pelo vivido é inerente ao processo
de transformação simbólica do espaço em paisagem44.
Os rastros do visível podem ser percebidos na forte representatividade geofísica e
estética da Serra do Espinhaço para as comunidades que nela vivem. O maciço é referência
visual para diversos municípios, como Diamantina e Santo Antônio do Itambé, tanto pela
composição cênica junto ao ambiente construído quanto pela função norteadora no
território, a exemplo do Pico do Itambé. Este, por exemplo, foi referenciado como marco de
orientação da região desde os relatos dos viajantes do século XIX, como os de Spix e Martius,
em 1818, de Wilhelm Eschwege, em 1833, e de Richard Burton, em 1867. O visual da serra é
impactante e imponente pela grandiosidade da cordilheira, por suas elevadas altitudes e
também pela dureza e hostilidade sugeridas pelo quartzito recortado.
43
LACERDA e SAADI (2017) utilizam da abordagem proposta por Jean-Marc Besse sobre o visível e o vivido na
paisagem.
44
BESSE, Jean-Marc. Estar na paisagem, habitar, caminhar. In: CARDOSO, Isabel Lopes (coord.) Paisagem e
Patrimônio: aproximações pluridisciplinares. Porto: Dafne Editora / Chaia / Universidade de Évora, 2013.
39
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45
MOTA, Isadora Moura. Liberdade escrava na economia informal: quilombolas entre as matas e a cidade de
Diamantina, Minas Gerais (1862-1866). Cadernos de Pesquisa do CDHIS, v. 23, n. 1; Idem. “A galinha estava
morta e pronta e só faltava assar-se”: a Revolta Escrava do Serro (Minas Gerais, 1864). História Social, n. 12,
p. 35-51, 2006.
46
LACERDA, Mariana de Oliveira; SAADI, Alloua. Paisagem garimpeira no planalto de Diamantina… 2017.
40
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No entanto, esta paisagem única, a paisagem do SAT dos Apanhadores (as) de Flores
Sempre-Vivas, pode ser experienciada de diferentes maneiras, forjando nela “regimes de
espacialidades”47. A "transumância" é o aspecto fundamental dessa paisagem que
proporciona esses regimes. É no pé de serra que as famílias constituem seus lares, mantêm
os currais fixos do gado e suas plantações de vegetais junto aos cursos d’água e também nas
terras secas, consumindo sua própria produção, comercializando e compartilhando com os
vizinhos. É o vivido de cada família, embora de maneira comunitária, no qual mantêm
práticas como a guarda e a troca de sementes, que garantem a produção sazonal ano após
ano e permitem a manutenção de sua cultura alimentar, o artesanato e processos de
comercialização. No alto da serra se dá a vivência do comum em sua essência, é onde
acontece pastagem solta do gado, sem distinção de propriedade, onde as flores são
coletadas e o solo é manejado para que se mantenham os campos, é no alto que os grupos
de famílias buscam abrigo nas lapas; é o espaço do coletivo por excelência, “é uma forma de
vida diferenciada, um ajuda o outro realmente, no que ele precisar”.48
Esta exposição nos leva à reflexão de que a paisagem pode ser compreendida como o
entrelaçamento entre espaço e tempo.49 Além dos regimes de espacialidade, há os regimes
de temporalidades, ambos intrinsecamente relacionados e interdependentes. O “tempo em
cima” e o “tempo embaixo”, como dito pelas comunidades, depende de fatores temporais
como as estações do ano e o regime de chuvas, que facilitam ou dificultam a subida para a
serra; a sazonalidade das espécies de flores e frutos do cerrado, que ditam os momentos
propícios para a coleta; as lunações, que interferem no plantio e colheita das roças no
sertão. Até mesmo o gado criado ali tem seu ritmo próprio, adaptado ao ambiente da subida
e do campo, é mais lento e mais manso.
Nesse entrelaçamento, no “nó entre o espaço e o tempo”,50 está o ser humano,
estão as apanhadoras e os apanhadores (as) de flores Sempre-vivas e todas as suas
47
BESSE, Jean-Marc. Estar na paisagem, habitar, caminhar… 2013.
48
Fala de moradora da comunidade Raiz no documentário Tempo da Roça, Tempo da Campina. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=x7Ig2DlbTss Acesso em 03 set. 2020.
49
CAUQUELIN, Anne. Paisagem, retórica e patrimônio. RUA 8, Salvador, 2003, v. 6, n. 1, p. 24-27.
50
Id., Paisagem e virtual, dois mundos separados. In: CARDOSO, Isabel Lopes (coord.) Paisagem e
Património: aproximações pluridisciplinares. Porto: Dafne Editora / Chaia / Universidade de Évora, 2013.
41
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51
BESSE, Jean-Marc. Estar na paisagem, habitar, caminhar… 2013, p. 46 e 47.
52
Consideramos que as pesquisadoras também são englobadas por essa paisagem à medida que são suas
observadoras (LACERDA E SAADI, 2017, p. 17) e que por terem estado em contato direto com as
comunidades, o processo de “penetrar o saber avaliativo – afetivo e simbólico – que caracteriza sua forma
[das comunidades] de interpretar a realidade” foi favorecido.
42
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53
Conseguida a partir da datação de um carvão retirado de uma estrutura de combustão do Grande abrigo de
Santana do Riacho na Serra do Cipó - (PROUS; JUNQUEIRA; MALTA; CHAUSSON, 1991), (LINKE, 2008, p. 39)
54
LINKE, Vanessa. Paisagens dos sítios de pintura rupestre da região de Diamantina–MG. 2008. Tese de
Doutorado. Dissertação, Pós-graduação em Geografia, UFMG, 2008. Cap. 1 e 2.
43
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De acordo com Ribeiro (2008),56 ao longo dos séculos XVI e XVII, a dominação
espiritual dos indígenas gerou significativa mudança no contexto de sedentarismo entre
indígenas, resultando em conquista de territórios pelos colonizadores, sobretudo dos
sertões, onde se tinha maior interesse. Dentre outras coisas, com a finalidade de dominar
povos e territórios nos sertões das Minas, umas das práticas dos colonizadores era a
violência no estabelecimento de relações entre brancos e indígenas.
A narrativa de que antepassadas indígenas foram "pegas no laço" está presente na
memória coletiva de alguns apanhadores (as) de Sempre-vivas no que se refere à
conformação de suas comunidades, especialmente aquelas que não são quilombolas. É
necessário pontuar, contudo, que esta expressão bastante popular nos processos de
formação sócio-espacial ao redor do Brasil eclipsa um processo permeado de violência e
subjugação baseado em gênero e raça, devendo ser lida de um ponto de vista analítico.57
55
RIBEIRO, Núbia Braga. Os povos indígenas e os sertões das minas do ouro no século XVIII. 2008. Tese de
Doutorado. Universidade de São Paulo, p. 22.
56
Ibid.
57
A este respeito, Daniel Munduruku assim diz: "Penso que a maioria das pessoas não se dá conta de que esta
narrativa é repetida tantas vezes e de forma poética para esconder uma dor que devia morar dentro de todos
os brasileiros: somos uma nação parida à força". MUNDURUKU, Daniel. Minha avó foi pega no laço. Combate
ao Racismo Ambiental, 24 de março de 2018. Disponível em:
<https://racismoambiental.net.br/2018/03/24/minha-avo-foi-pega-a-laco/> acesso em 24/05/2021.
44
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58
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadores (as) de Sempre-Vivas.
[19 de dezembro de 2019]. Diamantina. Projeto SAT Sempre-vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa
Belone e Débora Raiza Carolina Rocha Silva. Disponível no Acervo documental do IEPHA-MG.
59
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra. Registro do SAT das Apanhadoras
e dos Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone. Disponível no
Acervo documental IEPHA-MG.
60
RIBEIRO, Núbia Braga. Os povos indígenas e os sertões das minas do ouro... 2008.
61
Ibid.
45
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Caio Prado Jr. (1961), por sua vez, apontou que a pecuária, no século XVII, já tinha
alcançado o que veio a ser o norte de Minas Gerais, nas margens do rio São Francisco e de
seu afluente, o rio das Velhas, valendo-se da mão de obra escrava de origem africana e da de
indígenas e mestiços nas fazendas de pecuária.63
Em sua pesquisa sobre a conformação das territorialidades no Norte de Minas,
Ribeiro descreve que o início da ocupação teria se dado com a fixação de bandeirantes
paulistas e baianos no estado de Minas Gerais, no início do século XVIII. A bandeira de
Matias Cardoso, vinda do sul, teria encontrado a bandeira de Antônio Feijó, vinda do norte,
resultando no povoamento da parte leste do município de Bocaiúva. Entrando pelo noroeste
do município, o bandeirante baiano Antônio Feijó e membros de sua comitiva, acabaram por
povoar as cabeceiras do rio Verde e as margens do rio Jequitaí, atuando na distribuição de
sesmarias. Ribeiro (2013) salienta que outro desbravador baiano, Antônio Guedes de Brito,
havia recebido da Coroa Portuguesa, a sesmaria que ia de Morro do Chapéu, na Bahia, até os
vales dos rios Jequitaí e das Velhas, em Minas Gerais e, “ao derrotar bandidos, índios e
62
MONTEIRO, Fernanda. Nas fronteiras das Minas com os Gerais... 2019, p. 156.
63
PRADO JR, Caio. A Instrução 104 e a política econômica brasileira. Revista Brasiliense, v. 35, p. 1-12, 1961.
46
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64
RIBEIRO, E. F. Uma geo-história de territorialidade norte mineira: o caso dos lavradores do Mocambo
(Bocaiuva-MG). 2013. 205f. 2013. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Social)-
Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros. p. 58.
65
Ibid., p. 58.
66
Ibid., p. 45
47
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67
FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre Vieira; DA SILVA, Daniel Domingues. Aspectos comparativos do
tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, n. 31, 2004, p. 83.
68
MONTEIRO, Fernanda. Nas fronteiras das Minas com os Gerais... 2019, p. 166.
69
FILHO, Machado, 1985 apud. INCRA — Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Relatório
Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural. Comunidade Quilombola
Vargem do Inhaí. Diamantina: INCRA, 2014. p. 16.
70
MONTEIRO, op. cit., p. 168. Conforme pontua a autora, seguindo as análises de Machado Filho (1980), este
lapso temporal sugere ações para controle da área que antes que a Coroa passasse a controlar o fluxo das
pedras.
48
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O relato de Gardner também faz menção aos alimentos mais consumidos na região
de Diamantina:
71
Ibid., p. 167.
72
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagens pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Ed. Nacional, 1941, p. 40.
49
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Afora uns poucos vegetais produzidos nas hortas em volta da cidade [de
Diamantina], todo o alimento aqui consumido vem de distâncias de dez a vinte
léguas e vende-se em duas grandes feiras chamadas Intendências. São
principalmente farinha de mandioca e de milho, esta muito mais largamente
consumida na Província de Minas que nas do norte; e também carne seca, açúcar,
carne de porco, queijo, milho, feijão, arroz e óleo de mamona, que se usa para
73
acender lâmpadas.
O relato do viajante aponta para algo que Monteiro (2019) também cita em seu
estudo, que é o fato da existência da agricultura para consumo interno nas regiões das
"minas", que tinha seus próprios "sertões". Assim, mesmo com o fluxo de alimentos de
limites externos para a região diamantina, havia produção de alimentos em seu interior, cujo
lastro temporal se coaduna às relações sociais de produção não-hegemônica das
comunidades agrárias da região.
O fluxo nestes territórios não era somente de alimentos e produtos agrícolas, como
também de animais e de pessoas. Monteiro (2019) assinala, a partir da análise de Costa Filho
(2008), que houve um intenso deslocamento de "forros" de outras áreas do país, como
Maranhão, Pernambuco, Bahia, etc, em direção a Minas Gerais desde os primeiros
momentos da ocupação.
[...] no caso de Diamantina, isso foi mais viável no início da descoberta, antes da
instalação da Real Extração nessa área. Daí decorreu que os africanos escravizados
nas "minas" de Diamantina buscavam fugir da escravidão para os "sertões" do São
Francisco e Jequitinhonha. Ou seja, enquanto ex-escravizados buscavam as "minas"
para tentar a sorte, escravizados buscavam fugir delas em busca de locais onde
74
pudesse se aquilombar nos "sertões".
73
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do
ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Livraria Itatiaia Editora, 1975, p. 208.
74
MONTEIRO, Fernanda. Nas fronteiras das Minas com os Gerais... 2019, p. 148.
50
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75
Contudo, não se pode perder de vista a questão da ressemantização do termo quilombo, no Brasil, para se
tratar das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos.
76
MONTEIRO, Fernanda. Nas fronteiras das Minas com os Gerais... 2019, p. 172. Negro Isidoro está presente
nos enunciados de várias comunidades quilombolas, visto como "mártir".
77
As famílias poderiam residir e trabalhar determinado pedaço de terra do proprietário em troca do
pagamento de um terço e, dependendo dos casos, de metade de sua produção agrícola, especialmente o
milho.
51
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78
MARTINS, Marcos Lobato. A economia da sempre-viva: o extrativismo em São João da Chapada (MG),
1930-1970. Diamantina: UFVJM, 2019.
79
O consumo de flores sempre vivas e flores ornamentais, no geral, no mercado interno é baixo quando
comparado aos números dos EUA e da Europa.
52
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para os coletores, separados por intermediários chamados “donos de grupo”, cuja função
era organizar o trabalho da coleta – prover recursos para o deslocamento para as campinas
e assentamento, cuidados com os percalços – e também os “atravessadores”, responsáveis
pelo pagamento da coleta. De acordo com a demanda, alta ou baixa, os pagamentos não
poderiam nem mesmo acontecer, caso os atravessadores não necessitassem de estoques de
flores, o que confere à atividade um caráter, muitas vezes, incerto.
A partir da década de 1970, a exportação de flores sempre-vivas entrou em declínio
pelo aumento da concorrência internacional, inclusive com maior produção de flores
artificiais, e pela diminuição da produção das espécies no Espinhaço, segundo Martins. A
partir dos anos 1980, homens adultos passaram a integrar o contingente de apanhadores
por questões econômicas desfavoráveis na atividade do garimpo, embora as mulheres
continuassem predominando como apanhadoras.
Historicamente, o comércio de flores sempre-vivas é direcionado ao exterior, girando
em torno de 80% da produção destinada a países estrangeiros. Também é uma atividade
marcada pela informalidade, com pouca ou nenhuma documentação de meados do século
que apresenta dados sobre extração e venda das flores. Os anuários estatísticos das décadas
de 40 e 50 não apresentavam quaisquer dados sobre a extração de plantas ornamentais.
O pioneiro no negócio das flores sempre-vivas na região de Diamantina foi José
Cyrillo dos Santos, que iniciou no comércio em 1905 em sua pequena fábrica de calçados. No
livro diário da “firma”, o termo que se refere às sempre-vivas é de “flores naturais”.
No período de 1943-54, os livros contábeis da Casa Cyrillo não deixam dúvida
quanto ao principal comprador das sempre-vivas de Diamantina: foi o comerciante
radicado em São Paulo, de origem espanhola, José Ogéa Rodriguez. Tratava-se de
um maçon, irmão fundador da Loja São Paulo n. 43, em setembro de 1945, que
fora membro da Loja Renovação Universal 365, de Buenos Aires. Na capital
paulista, possuía estabelecimento no ramo de exportação/importação, lidando
principalmente com objetos de decoração e presentes finos. Desde o final dos anos
1920, como mostram os livros contáveis [sic] remanescentes da Casa Cyrillo, José
Ogéa Rodriguez fazia parte da lista de assíduos fornecedores da empresa
80
diamantinense”.
80
MARTINS, Marcos Lobato. A economia da sempre-viva… 2019, p. 81.
53
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54
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81
Heidegger considera que nem todo ato de construir compreende o habitar, tampouco que somente
habitando é que seria possível construir. Habitar, aqui, ultrapassa o sentido de possuir residência,
compreendendo os sentidos de “de-morar-se”, na liberdade que o pertencimento propicia.
82
HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. 1951.
55
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existência desses pressupõe intenção.83 Holzer considera que a existência dos lugares
habitados por determinados grupos se deve à ação intencionada que coletivos implicam em
sua construção e no estabelecimento de seus limites, ainda que esses sejam circunstanciais.
Nécio Turra Neto, geógrafo interessado nos processos de territorialização, considera
que o lugar, bem como o território, são formas de encarar o espaço. Para o autor, todos os
três conceitos básicos para a disciplina – lugar, espaço e território – implicariam a ação, a
intencionalidade de espacialização, que é capaz de promover o ordenamento dos objetos no
espaço. Nessa perspectiva, o espaço, conceito mais amplo, seria o fluxo das ações (ou das
forças) que produzem e colocam a materialidade e os seres humanos em relação. 84 Nesse
sentido, espaço não se confunde com materialidade pois, ainda que esta seja parte dele, o
espaço compreende todo o horizonte de possibilidades a partir do qual é possível organizar
e alocar os objetos, interferindo no cotidiano dos espaços vividos.
O lugar, por sua vez, se configura em um determinado recorte no tempo e no espaço,
no qual se encontram e, por vezes, se materializam forças ou ações espaciais distintas e, em
alguns momentos, concorrentes e/ou conflitantes.85 É nesse encontro de ações e intenções
de espacialização que vemos surgir em determinado lugar, as coexistências que tornam
necessário o estabelecimento de relações com a materialidade demarcadoras de território,
seja como referência para o encontro de um grupo de afinidade, seja como estratégia de
demarcação de uma alteridade, de projeção e visibilidade da diferença grupal e/ou como
base de apoio para práticas coletivas.86 Assim, o território seria, nessa formulação, um
conceito intermediário, que possibilita apreender as forças ou os esforços de espacialização
que se materializam em determinado lugar, no momento em que diferentes ações
formadoras de espaço e concepções de materialidade se confrontam, entrando em
negociação.
83
HOLZER, Werther. Sobre territórios e lugaridades. Cidades: Revista científica / Grupo de Estudos Urbanos,
São Paulo, vol. 10, n. 17, 2013, p. 23.
84
TURRA NETO, Nécio. Espaço e lugar no debate sobre território. Geograficidade. Rio de Janeiro, vol. 5, nº 1,
verão 2005, p. 54.
85
Ibid., 2005.
86
Ibid., p. 55.
56
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Governo do Estado de Minas Gerais
87
HOLZER, Werther. Sobre territórios e lugaridades… 2013, p. 18-29.
88
As barreiras invisíveis denotam aqui, aquilo que vai além do que é visível.
89
CUNHA, Manuela Carneiro da. Etnicidade: da cultura residual, mas irredutível. Cultura com aspas e outros
ensaios. São Paulo, Cosac Naify, 2009. p. 235-244.
90
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade.
Anuário Antropológico, 2002-2003. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 253. Grifos acrescidos.
91
Ibid.
57
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Governo do Estado de Minas Gerais
92
Ibid., p. 260.
93
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos. Registro do SAT das
Comunidades Apanhadoras de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone. Disponível
no Acervo documental IEPHA-MG. Grifos acrescidos.
58
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94
Outras atividades, como a pesca, também complementam a produção desses grupos, ainda que em menor
grau.
95
Também conhecidas como roças de coivara ou de capoeira, dizem respeito a uma técnica tradicional de
cultivo, que consiste na abertura de uma clareira no terreno destinado à plantação, por meio do corte da
vegetação e da posterior queima desse material. Após algum tempo, podem ser realizadas as plantações e,
depois da colheita (que pode se dar por apenas uma ou mais vezes), a antiga roça é destinada ao pousio. Todas
essas atividades e os ambientes em que são realizadas serão descritos de forma mais detida na seção 3 deste
dossiê.
96
Ainda que em menor número, há também moradias e comunidades que se localizam sobre a Serra, como é o
caso das localidades de Raiz e Macacos. Encontram-se, portanto, comunidades apanhadoras de flores nas cotas
altas, no Sertão (Pé de Serra e Lavras) e nas margens do Jequitinhonha (Mata dos Crioulos e Vargem do Inhaí).
59
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97
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98
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019.
60
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99
O período de vivência em cima da serra está relacionado ao tempo de “panha” de espécies específicas, como
veremos mais adiante neste dossiê.
61
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Mata dos Crioulos e Vargem do Inhaí, se concentram nas áreas do sertão e nas margens dos
Jequitinhonha.
No caso das comunidades que estão fixadas nas cotas mais elevadas da Serra, tais
como Macacos e Raiz, tem-se também um deslocamento pelo território realizado
periodicamente, ainda que se trate de uma amplitude menor quando comparados aos
movimentos exercidos pelas comunidades que se localizam nas cotas baixas da serra. Os
moradores das altitudes mais elevadas também costumam “subir” aos campos de coleta de
flores e de criação de gado, sendo necessário, para tanto, a realização de um deslocamento
menor.
As atividades produtivas, portanto, estão relacionadas a altitudes e ambientes
específicos. Na figura abaixo, é possível perceber a distribuição desses agroambientes ao
longo da Serra do Espinhaço Meridional e os usos tradicionalmente desenvolvidos pelos
apanhadores (as) de flores nessas porções.
62
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Figura 6. Perfil esquemático com a localização dos agroambientes conformados na Serra do Espinhaço
Meridional na relação das comunidades apanhadoras de flores Sempre-vivas.
Fonte: CODECEX, 2019, p. 87.
Esse esquema nos permite perceber que os(as) apanhadores (as) de flores utilizam
praticamente toda a extensão da serra em seu habitar a Serra do Espinhaço, conformando
amplos territórios, que compreendem manchas de solos para as quais há usos específicos,
tradicionalmente desenvolvidos. É possível perceber as especificidades de cada uso na fala
de uma moradora da comunidade de Mata dos Crioulos:
Jovita: no quintal que eu vejo que dá pra plantar, eu planto no quintal,
planto na roça fora daqui, eu mexo não é só aqui, eu tenho um lugar que
meu esposo comprou que eu tenho plantação lá também, planto mandioca,
tenho um quintalzinho lá dois pés de café, tem cana, aí eu vou lá sempre eu
tô lá limpando, plantando mais.
Entrevistadora: E perto de onde vocês panham flor tem lugar pra plantar
também?
Jovita: Não, na chapada lá a gente não mexe com coisa não. Na chapada até
tem muita terra boa, mas as terra que tem a gente não mexe não, porque
as terras que tem lá elas é uma terras assim, mais, elas é umas terras assim,
que tem muita nascente de água também, lida criação, já tá distante de
casa, às vezes a gente fecha, mais a vezes pode cair um pau com arame, isso
pode atrapalhar a cerca, a gente num tá lá pra olhar, e as vezes pode às
100
vezes criação dar prejuízo né.
100
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
63
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De acordo com Monteiro, de todo o território ocupado por esses grupos, a menor
parte é destinada aos cultivos. Por sua vez, considerando o território de cada comunidade
isoladamente, tem-se que mais da metade de cada um deles é composto por matas
preservadas.101 Trata-se de áreas que compreendem “matas, afloramentos rochosos,
escarpas e solos em alta declividade, cuja conservação é necessária para manter abundância
de recursos hídricos”102.
O sistema de rotatividade e pousio das manchas de roças também demandam
grande extensão territorial de forma a possibilitar o descanso do solo e sua recuperação. Daí
decorre que essas comunidades ocupam um território extenso103, que permite a realização
de atividades que se complementam e combinam, “compondo as estratégias de reprodução
sociocultural e econômica das famílias”. 104
É importante frisar, no entanto, que as atividades produtivas não são definidas
apenas pelos ambientes disponíveis, uma vez que são, eles próprios, conformados também
pelo manejo tradicional desenvolvido ao longo de séculos de ocupação pelas comunidades
na vivência social de seu território, na aplicação e na produção constante de sistemas
101
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 334.
102
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista… 2019, p. 35.
103
De acordo com o Dossiê de Candidatura ao selo GIAHS/FAO/ONU (2019), a área total ocupada pelas seis
comunidades em questão equivale a cerca de 100.000 hectares. Por sua vez, cada comunidade ocupa cerca de
15.000 ha, sendo menores os territórios de comunidades que estão localizadas sobre a serra.
104
CODECEX, op. cit., p. 23.
64
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105
Ibid., p. 30.
106
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil... 2004, p. 263.
65
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107
A subida à serra ocorre algumas vezes ao longo do ano, estando relacionada ao tempo de panha das
diversas espécies de inflorescências que ocorrem nas chapadas. Essas especificidades serão abordadas mais
adiante neste dossiê.
108
TUAN, Yi Fu. Espaço, tempo, lugar: um arcabouço humanista. Geograficidade. Rio de Janeiro, v.01, n.01, p.
4-15, Inverno 2001.
109
Yi Fu Tuan distingue o tempo astronômico dos tempos humano e cosmogônico. Os dois últimos seriam
lineares e unidirecionais: o tempo de uma vida e o tempo da história das origens. Já o tempo astronômico seria
cíclico e teria por natureza a repetição: “o ciclo diário do Sol e a passagem das estações” (TUAN, 2001, p. 05).
110
TUAN, Yi Fu. Espaço, tempo, lugar… 2001, p. 12.
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Nota-se, assim, que há uma complementaridade entre as terras baixas e altas, no que
diz respeito aos, cultivos, à criação de gado e ao extrativismo, o que possibilita arranjos
específicos de acordo com a necessidade contextual, permitindo a reprodução social e
cultural dos grupos em questão. Há um outro tipo de movimento que também ocorre com
certa frequência. Trata-se das chamadas “travessias”, realizadas por pessoas e animais que
se deslocam de suas comunidades e cruzam a serra, para a realização de trocas comerciais,
festas e visitas entre parentes ou amigos.111
Esses dois tipos de deslocamentos possibilitam o surgimento de “fluxos gênicos
(vegetais e animais), alimentares e econômicos entre as diferentes comunidades”,112
propiciados pelas trocas de materiais entre as áreas de sertão, serra e margens do
Jequitinhonha. Essa é uma dinâmica que, de acordo com os moradores, ocorre desde os
“tempos antigos”, com os tropeiros e que continua a ocorrer para a retribuição de visitas e
realização de trocas comerciais, participação em festas, entre outros.
Esse complexo e diverso sistema agrícola, que conforma um território e
movimentações sazonais internas, conformam o que Paul Little (2004) define por
“cosmografia”: os “saberes ambientais, ideologias e identidades - coletivamente criados e
historicamente situados - que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu
território”.113 Essa cosmografia dos(as) apanhadores(as) de flores conforma a paisagem da
Serra do Espinhaço Meridional - e é conformada por ela. Essa dinâmica, no entanto, não
deixa de estar em constante transformação, de forma a responder às necessidades das
comunidades, às transformações exógenas e endógenas que se dão nos ambientes, como
por exemplo, a alteração atual no regime das chuvas
Os moradores apontam também, que a estadia na Serra vem passando por
mudanças que dizem respeito à construção das lapas e dos ranchos, à quantidade de tempo
que se passa em cima da serra e aos membros da família que realizam o deslocamento a fim
de participarem da coleta das flores. Um dos fatores que implicaram nessas transformações
diz respeito ao valor de venda das flores, que hoje em dia é mais alto do que era
111
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019.
112
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista... 2019, p. 17.
113
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil... 2004, p. 254.
67
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antigamente. Isso faz com que menos homens precisem migrar para conseguir trabalhos
temporários fora da comunidade, a fim de garantir renda monetária para a família.
68
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114
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil. 2004, p. 251.
115
Ibid.
116
GODELIER, Maurice apud LITTLE, Paul, 2004, p. 260.
117
É importante diferenciar a acepção da ideia de “recursos” quando falamos de povos e comunidades
tradicionais de uma acepção mais ligada ao mercado capitalista. Ainda que essas comunidades estejam, até
certo ponto, integradas a uma economia de mercado, a ideia de “recursos” que advém do jargão econômico,
não dá conta da percepção que os povos e comunidades tradicionais têm da natureza e de seus atributos,
tomados como dádivas e que, portanto, devem ter seu ritmo e sua apropriação controlados.
69
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Assim, podemos abordar os regimes fundiários locais pela ótica das atividades
econômicas realizadas no contexto das comunidades apanhadoras de flores sempre vivas,
que conformam as sub unidades produtivas que compõem os territórios118. Esse movimento
analítico é realizado por Fernanda Monteiro (2019) em sua tese de doutoramento, ao
abordar os territórios sob a ótica de suas modalidades de apropriação: as unidades
familiares (com suas roças, hortas, quintais e mangas) e as terras de uso comum ou de uso
coletivo, utilizadas para criação de gado e extrativismo.
É interessante notar que, para além dos aspectos econômicos, a análise dos
costumes, regras e formas de coerção social que operam as territorializações desses grupos,
pode nos ajudar a compreender sobre sua organização social. Monteiro (2019) aborda de
forma muito pormenorizada as formas de apropriação territorial das comunidades de
apanhadores(as) de flores Sempre-vivas, se detendo, especificamente, nos regimes agrários
das comunidades de Pé de Serra e Mata dos Crioulos. Sua pesquisa nos será de muita
utilidade para, somada aos trabalhos de campo realizados pela equipe do Iepha-MG e
entrevistas realizadas nessas ocasiões, nos auxiliar na compreensão da questão fundiária
nessas comunidades.
Quando pensamos nas formas de apropriação do território das seis comunidades
abordadas neste Dossiê, percebemos que há semelhanças e diferenças entre elas. Dentre os
aspectos comuns estão o fato de que, em todas elas, operam mecanismos de gestão
compartilhada dos recursos sustentados, justamente, pela regulação tradicional dos usos
dos territórios e do acesso aos recursos, bem como o imperativo à conservação desses
ambientes.119
Em comum, também, essas comunidades são conformadas por parentescos que se
desenvolveram em uma base territorial, configurando-se territórios acessados pelo
pertencimento a linhagens comuns. Tem-se, assim, áreas territorializadas por “grupos de
descendentes e parentes que conformam famílias nucleares e extensas”.120 São essas
relações de descendência, casamento e compadrio que orientam e organizam o acesso à
118
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista... 2019, p. 74.
119
Ibid., p. 31.
120
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais... 2019. p. 214.
70
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terra e seus recursos. Inclusive, via de regra, o que se tem são casamentos entre primos,
ancorados em relações de reciprocidade,121 fazendo funcionar o princípio da indivisibilidade
da terra - patrimônio não só da família nuclear, como da família extensa e da própria
comunidade.
O antropólogo Klaas Woortmann (1988), ao analisar diversas sociedades em contexto
agrário e tentando se aproximar do que seria uma “ordem moral” do campesinato brasileiro,
formula a definição de campesinidade, para definir grupos e sociedades nas quais as
categorias terra, trabalho e família são indissociáveis entre si. Trata-se, segundo o autor, de
uma qualidade que pode estar presente em maior ou menor grau nos grupos sociais de
pequenos produtores rurais, ainda que esses não sejam, necessariamente, “camponeses”.122
A campesinidade, assim, se refere a sociedades nas quais a terra é patrimônio familiar
sendo, portanto, transmitida de geração em geração para possibilitar o trabalho e, logo, o
sustento da família.123
É importante notar que, assim como no caso de comunidades campesinas e das
comunidades tradicionais em geral, a terra não é concebida como mercadoria, mas
entendida como patrimônio da família ou da comunidade, de forma que o sentido de honra
tende a mantê-la indivisa. Sejam camponesas ou quilombolas, nas comunidades de
apanhadores (as) de flores Sempre-vivas, tem-se contextos nos quais o parentesco conforma
a noção de propriedade,124 o que remete à campesinidade apontada por Woortmann (1988).
No entanto, ainda que existam semelhanças nas organizações sociais e fundiárias desses
grupos, há também diferenças em relação à territorialidade, que implicam também em
variações nas suas relações sociais de produção.125
Algumas dessas diferenças têm relação com o histórico de fundação das
comunidades, que desenvolveram formas de propriedade jurídicas distintas. Nas
121
Ibid., p. 215.
122
É necessário observar que essa qualidade se refere a um modelo-ideal que se manifesta de formas distintas
nas situações reais da vida cotidiana, onde os modelos morais e as práticas são constantemente negociados e
atualizados.
123
WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se neguceia”: O campesinato como ordem moral. Anuário
antropológico, v. 12, n. 1, p. 11-73, 1988, p. 28.
124
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais... p. 336.
125
Ibid., p. 327.
71
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126
Em suas pesquisas, Fernanda Monteiro (2019) identificou relatos de que Francisco Santos Coelho seria filho
de Panteleão dos Santos Coelho, em nome de quem estariam os registros das terras. No entanto, o que nos
interessa aqui é perceber que há um ancestral comum do qual descendem os moradores de Pé de Serra e ao
qual remontam o direito de propriedade pela via da herança.
127
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra.
128
Ibid.
129
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sempre-Vivas . [19 de dezembro de 2019]. Diamantina.
72
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73
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meu pai falava e pelo o que os primos dele falava, esse Isidoro, ele é gente da
130
gente, ele era avô do meu pai.
130
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
131
A condição de agregado se confunde à condição de escravo ao considerarmos o fato de o pai da
entrevistada ter sido trazido para a fazenda para realizar trabalhos que são relatados como muito pesados e
ausência de direitos. A situação de agregado se mostra quando, mais à frente, a entrevistada relata que ao pai
era permitido cultivar sua roça na fazenda, pagando a quarta parte da produção ao patrão: “Entrevistadora: E a
roça era de você? MT: Era, era nossa. Mas só que essa roça era no terreno dele, do patrão, tirava a
porcentagem né. Pagava a renda que falava né? Esse, o quarto, se desse quatro balaio de milho, pai tinha três e
ele tinha um, a parte dele”.
132
ALVES, Maria Terezinha; ALVES, Ercílio; ALVES, Eliad Gisele. Sempre-Vivas. [04 de março de 2020].
Comunidade Raiz. Registro do SAT das Comunidades Apanhadoras de flores Sempre-Vivas. Entrevista
concedida a Ana Paula Lessa Belone. Disponível no Acervo documental IEPHA-MG.
133
Em levantamento acerca das situações jurídico-formal de propriedade das famílias nas seis comunidades
apanhadoras de flores Sempre-vivas abordadas neste estudo, a pesquisadora Fernanda Monteiro (2019)
encontrou três situações distintas: 1) há a presença de registros cartoriais antigos, em nome de ancestral
comum (situação recorrente no “sertão”); 2) membros da comunidade possuem registro de posse da unidade
familiar (como nos casos em que há o cadastro do INCRA), ainda que os títulos oficiais estejam ausentes; 3)
ausência de ambos (situação recorrente nos quilombos).
74
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contextos de apropriação são as terras de uso comum, em um caso, e terras de uso coletivo,
em outro.
Em relação à primeira, tem-se um ancestral comum a quem os registros cartoriais
apontam a propriedade do território, com a indicação de dezenas de herdeiros, ainda que o
inventário não tenha sido realizado. Na literatura antropológica, são as chamadas “terras de
herdeiros”,134 posto que a herança é o meio de transmissão preferencial da terra, à qual o
acesso se dá pela via dos casamentos e da descendência. Nessas comunidades, os
casamentos são, muito comumente, contraídos entre primos, o que faz com que o território
permaneça como patrimônio da família extensa e, ao cabo, da comunidade. De acordo com
Fernanda Monteiro (2019), há também grande quantidade de casamentos entre as
comunidades de herdeiros, seja sobre a serra ou no chamado “sertão”.135
A residência nessas comunidades é patrilocal, o que significa dizer que quando um
novo casal é formado, a noiva se muda para o terreno do pai de seu esposo, 136 tornando-se,
assim como os futuros descendentes do casal, herdeiros de parte daquele território. Assim,
o novo casal adquire um pedaço de terra no terreno do pai do noivo para que possa fundar
uma nova unidade familiar. Ainda que possa haver outras situações de transmissão da terra,
essa é a mais comum.
Monteiro (2019) explica que o direito à herança se estende a todos os descendentes
de uma família e, ainda que esse herdeiro esteja ausente, caso retorne à comunidade com o
intuito de nela se fixar ainda que temporariamente, mantém o direito de ocupar parte da
terra de seus genitores e também de acessar as áreas de uso comum.137
Assim, ainda que haja a noção de posse familiar nessas comunidades, em que
algumas unidades familiares possuem, inclusive, cadastro da unidade junto ao INCRA,138 há
também as terras de uso comum, ou “em comum”. Nessas porções dos territórios, são
praticadas as coletas de flores e outras espécies ornamentais e para onde o gado é levado
134
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do
povo”, faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2.ª ed., Manaus: PGSCA - UFAM, 2008.
135
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p 335.
136
Ibid., p. 334.
137
Ibid., p. 341.
138
Ibid., p. 337
75
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durante o período da seca. Essas áreas, que se encontram nas cotas altas dos territórios,
permanecem indivisas e todos os herdeiros da comunidade tem direito de acessá-las, bem
como sobre o uso de seus recursos.
Monteiro (2019) resume essas duas formas de regulação do acesso à terra nas
comunidades de ‘herdeiros’, da seguinte maneira:
Na prática, a terra é um patrimônio familiar indiviso sem formal de partilha
contendo posses familiares nas terras baixas e terras de uso comum nas terras altas
com ajustes internos do seu uso segundo as necessidades do grupo – ou seja, há
organização interna do acesso e uso da terra orientado pelos costumes e visões de
mundo intrínsecas. Na atualidade o uso é organizado internamente pelos herdeiros
com divisões das terras baixas entre as unidades familiares, bem como
ordenamento das terras de uso comum segundo práticas que vem “desde os
139
antigos” e foram sendo atualizados segundo a conjuntura.
Essa fala deixa entrever vários aspectos importantes para a compreensão das regras
de uso, acesso e posse/propriedade nessa comunidade e, estendendo, para as comunidades
de herdeiros. O morador descreve as unidades familiares, que dizem respeito às partes
individuais e, segundo ele, elas podem se somar às propriedades, que podem ser adquiridas
139
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019. p. 337
140
SOUZA, Aldair José de. Sempre-Vivas. [18 de dezembro de 2019]. Lavras. Registro do SAT das Apanhadoras
e dos Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone e Débora Raiza
Rocha Carolina. Disponível no Acervo documental IEPHA-MG.
76
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e que seriam, portanto, particulares. Em cima da serra, por sua vez, estão as áreas de
território comum, de propriedade da família, ou a família extensa que compõem a
comunidade de parentes de Lavras, diferentemente das unidades familiares às quais têm
acesso os herdeiros diretos da família nuclear.
Nas áreas de uso comum, ocorre também a misturada de regimes de acesso à qual se
refere o morador: existem porções das terras altas que são de uso de uma família só (as
partes individuais no coletivo) e outras que são coletivas. A fala do morador demonstra
como, nesse contexto, a família atua com um elemento definidor do acesso à terra da
comunidade que, nas palavras do morador, é de acesso da família de Lavras. Esse aspecto é
tratado por Fernanda Monteiro (2019), que considera que, nesses contextos:
A noção de propriedade é acionada, sobretudo, para reafirmar o direito de
uso da família extensa sobre aquela fração do território em face dos “de
fora”; já internamente, é acionada para organizar o direito de uso do
141
patrimônio familiar indiviso com tudo que envolve.
141
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais... p. 347.
142
Ibid.
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mais barato, aí a gente panha junto um com o outro, todo mundo faz
aquele... vamos supor: eu arrancho aqui com uma turminha, o outro
arrancha numa lapa ali, o outro arrancha num rancho ali... sabe como é que
143
é? Aí a gente panha.
De acordo com Monteiro (2019), foi a partir da década de 1980 que a flor passou a
ter um valor mais alto, que as divisões começaram a ser feitas. Assim, nota-se que nesse
caso, é uma conjuntura externa - o valor de mercado mais alto atribuído a certos tipos de
flores - que fez com que fossem reordenados costumes e regras locais em relação à
apropriação de parte do território tradicional. Outras espécies da flora que possuem menor
valor de venda, são coletadas livremente até os dias de hoje, não havendo separação de
áreas por famílias, sendo seu acesso coletivo e não individual no coletivo. As regras que
regem a panha das flores serão melhor detalhadas no item 3.4 deste Dossiê.
No caso do gado, o rebanho das famílias se mistura nas cotas altas da Serra e só é a
única separação de áreas que se faz nesses casos é em relação aos campos de coleta e os
campos de pastagem do gado. Os campos podem até ser cercados, mas apenas para conter
os animais de forma que não possam ir muito longe e que não ultrapassem as terras da
comunidade.
Se as comunidades de herdeiros não estão inventariadas, as comunidades
quilombolas não possuem seus registros cartoriais. A falta deles144 é consequência da
ocupação dos territórios que, como visto anteriormente, dizem respeito a áreas devolutas
que foram ocupadas por seus ancestrais. Atualmente, as famílias que compõem essas
comunidades são posseiras antigas dessas ocupações, situação que acaba por facilitar a
expropriação dos territórios por empreendimentos diversos, como mineração, plantação de
eucalípto, grandes fazendas, entre outros.145
143
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra. Grifos acrescidos.
144
De acordo com o Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí (INCRA, 2014), apenas duas das vinte e oito
famílias que compõem a comunidade possuem registros de compra e venda da terra. Na pesquisa de Fernanda
Monteiro (2019), a autora identificou que em Mata dos Crioulos, nas últimas décadas, por intermédio do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais, as famílias da comunidade passaram a se declarar posseiras e solicitaram o
cadastro ao INCRA.
145
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 66.
78
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146
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 365.
147
Ibid., p. 390.
148
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 73.
149
MONTEIRO, op. cit., p. 388-389.
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familiares que se formam no interior dos domínios das famílias extensas. Aqui, como lá, o
costume local é de que as noivas vão morar com os esposos nas terras de seu sogro, dando
origem a uma nova unidade familiar. Nesses contextos, a herança remete apenas às
unidades familiares, posto que as cotas altas são de propriedade do grupo como um todo e,
sendo da comunidade, de direito de uso coletivo.
Como visto anteriormente, nas cotas altas dos territórios, se localizam as chapadas,
com suas áreas de coleta de espécies nativas e de pastagem de gado. Essas terras são
acessadas por todos os comunitários, mesmo que haja subdivisões em localidades dentro de
uma mesma comunidade, todos os moradores do quilombo têm direito a acessar os
recursos territorializados nas chapadas, sem restrições. Tanto a coleta das flores quanto o
pasto para o gado são apropriados conforme a necessidade de cada família. Há que se
observar, no entanto, que outras famílias da comunidade irão coletar as flores e, portanto,
as famílias devem considerar essa questão na hora de mensurar suas coletas.
Em Vargem do Inhaí, também se verifica uma forma aproximada de apropriação do
território das chapadas, que são utilizadas coletivamente pelas famílias da comunidade no
extrativismo de espécies vegetais nativas e para o pastoreio dos animais de grande porte:
A terra comum ainda é pensada e utilizada como fonte de recursos naturais como
madeira, mel, ervas medicinais, flores e frutas, afirmando o direito de uso coletivo
iniciado pelos antepassados da comunidade. Há, ainda, em Vargem do Inhaí, o uso
150
coletivo de áreas de solta para o gado.
150
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 73.
151
Ibid. p. 116.
80
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A essa distinção tanto nas terras de uso comum quanto nas terras de uso coletivo, o
que há são restrições de uso e proteção em relação aos “de fora”, já que o entendimento
que existe em todas as comunidades é de que “os recursos são para uso da comunidade – no
âmbito da terra e recursos envolvidos – como patrimônio/domínio daquele grupo”,153ainda
que a noção de pertencimento à comunidade possa variar, como vimos anteriormente.
De acordo com Monteiro (2019), as terras de uso comum ou de uso coletivo
compõem cerca de 90% do território ocupado por cada comunidade.154 Essas duas formas -
152
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 383.
153
Ibid, p. 268.
154
Ibid., p. 340.
81
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uso comum e uso coletivo da terra - são exercidas pelos descendentes e parentes de uma
mesma comunidade, podendo, em alguns casos, se dar entre comunidades vizinhas que não
sejam estritamente aparentadas.155 Nesses últimos casos, a permissão do acesso a recursos
se dá por via das relações de reciprocidade intercomunitárias que também são consideradas
nesse contexto. Klaas Woortmann (1988) afirma que:
Se a reciprocidade exige um outro para que possa haver a troca, ela supõe,
também, a construção de um nós que se contrapõe a um outro - o estranho. Esse
nós é constituído por iguais em honra. Por isso, a reciprocidade se realiza no
156
interior de um território que é, também, um espaço de identidade.
No caso das comunidades abordadas neste dossiê, todas elas se definem como
apanhadoras de flores Sempre-vivas. Paul Little (2004), refletindo acerca do contexto de
comunidades extrativistas amazônicas, afirma que no geral:
155
Ibid., p. 216.
156
WOORTMANN, K. Com parente não se neguceia… p. 60.
157
MONTEIRO, op. cit., p. 215.
158
Cf. Weber, Barth, Manuela Carneiro da Cunha.
82
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[...] tendem a ser reconhecidas pelos produtos que extraem e vendem no mercado
- [a exemplo dos] seringueiros, castanheiros, babaçueiros, pescadores - , apesar
deste ser apenas um elemento de um complexo sistema de adaptação que inclui
caça, pesca, agricultura, fruticultura e criação de pequenos animais (Moran, 1974).
No plano fundiário, o que marca os grupos extrativistas da Amazônia é a
apropriação familiar e social dos recursos naturais, em que as “colocações” são
exploradas por famílias, os recursos de caça e pesca são tratados na esfera coletiva
e a coleta dos recursos destinados ao mercado é feita segundo normas de usufruto
159
coletivamente estabelecidas.
159
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil… 2004, p. 262.
83
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Governo do Estado de Minas Gerais
160
TURRA NETO, Necio. Espaço e lugar no debate sobre território… 2005, p. 55.
161
Ibid., p. 56.
84
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162
COSTA apud MONTEIRO, Fernanda. Nas fronteiras das Minas... p. 145.
163
COSTA FILHO, Aderval. Os Gurutubanos… 2008.
164
Ver: MARTINS, José de Souza. A fronteira: a degradação do humano nos confins do mundo.
165
ZHOURI, Andréa & OLIVEIRA, Raquel. Paisagens industriais e desterritorialização de populações locais:
conflitos socioambientais em projetos hidrelétricos, 2005.
166
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista... 2019, p. 10.
85
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sempre enfatizam esse fator como dificultador para a plantação de roças e como mote de
transformações nos ciclos tradicionais do SAT.
Além das grandes fazendas e das monoculturas de grãos, há pressões de outros
setores privados sobre a região:
[...] sobretudo por empresas mineradoras, de projetos de agropecuária
industrial em grande escala, de empresas ligadas à biodiversidade (que
querem acessar o patrimônio genético e o conhecimento tradicional
associado) e mesmo criação de unidades de conservação de proteção
167
integral sobrepostas a terras ancestrais de uso comum.
167
Ibid., p. 29.
168
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 255.
169
Ibid., p. 309.
86
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Figura 10. Mapa das tensões territoriais na porção meridional da Serra do Espinhaço.
Fonte: CODECEX 2019, p. 11.
87
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entanto, sabe-se que as encostas da Serra vem sendo, cada vez mais, acessadas por
empresas dessa natureza, conforme apontam a tese de Fernanda Monteiro, o Relatório de
candidatura para o selo da FAO/ONU, documentos encaminhados pela Codecex ao Iepha-
MG e outros contatos com essa Comissão. Para além dos direitos minerários, o mapa
possibilita a percepção de um panorama da situação atual dos conflitos fundiários que se
colocam na região.
O mapa também assinala as Unidades de Conservação da natureza - UCs, que se
encontram na porção meridional da Serra do Espinhaço Meridional, fazendo surgir conflitos
com comunidades frente ao Estado e a uma política de conservação da natureza que é,
muitas vezes, preservacionista. A implementação dessas áreas na região teve início na
segunda metade da década de 1990 e, de lá para cá, foram criados seis parques e uma
estação ecológica, somente na porção meridional da Serra do Espinhaço. Entre os primeiros,
cinco deles são estaduais170 e um é federal, o PARNA Sempre-vivas. De acordo com Fernanda
Monteiro (2011), somadas as áreas de todos esses parques, tem-se quase 200.000 hectares,
desconsiderando-se suas zonas de amortecimento. Além disso, existem ainda nessa porção
da serra, sete Áreas de Preservação Ambiental - APAs171 e duas Reservas Particulares do
Patrimônio Natural - RPPNs.172
Como fica evidente neste trecho e no mapa anterior, as áreas destinadas à proteção
ambiental na região abrangem uma extensa parcela do território, ainda que fragmentadas.
Algumas dessas unidades de conservação - ou partes delas - se estabeleceram em áreas de
uso comum ou de uso coletivo dos apanhadores (as) de flores Sempre-vivas, interferindo
diretamente nos modos de vida e de produção dessas comunidades. De acordo com
Monteiro (2011), os processos de implementação dessas UCs se deram sem consulta pública
aos comunitários e de forma violenta e violadora dos direitos das comunidades
tradicionais.173
170
São os parques estaduais da região: Rio Preto, Serra Negra, Pico do Itambé, Biribiri e Serra do Cabral.
171
Dentre essas APAs, seis são municipais (Rio Manso, Felício dos Santos, Serra do Gavião, Serra do Cabral,
Serra Mineira e Serra de Minas) e uma é estadual (Águas Vertentes)
172
MONTEIRO, Fernanda Testa. Os(as) apanhadores de flores e o Parque Nacional das Sempre-Vivas (MG):
travessias e contradições ambientais. 241p. Dissertação (Mestrado em Geografia). UFMG, 2011.
173
MONTEIRO, Fernanda Testa. Os (as) apanhadores de flores… 2011.
88
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Essa situação se coaduna com o que Paul Little (2004) afirma acerca dos conflitos
territoriais que são deflagrados em territórios de povos e comunidades tradicionais,
justamente quando esses são suplantados por projetos que envolvem duas ou mais lógicas
de apropriação do ambiente. Esses projetos confrontam as cosmografias desses grupos com
“o desenvolvimentismo, o preservacionismo, o socioambientalismo e o Estado
tecnocrático”, posto que esses projetos são comumente imputados aos territórios sem a
devida participação dos grupos que o vivenciam e o constroem. Essas coletividades
produzem o que Little chama de “territórios sociais”, no sentido que se diferem da forma
hegemônica de controle territorial que se funda com o surgimento dos estados-nações e
suas formas de territorialidade,174 e que desencadeiam confrontos ao se coincidirem com os
primeiros.175
Os cercamentos de parte dos territórios de comunidades de apanhadores (as) de
flores pelas unidades de conservação tem interferido e, por vezes, inviabilizado, atividades
tradicionais. Essas áreas são utilizadas em comum ou em coletivo, tanto para a panha das
espécies nativas, quanto para a criação do gado nas cotas altas durante a seca. As regras e
interdições colocadas pelas UCs aos moradores da região impedem, além das atividades
produtivas em si, a interdição ao manejo tradicional daquele ambiente e às sociabilidades
específicas que se fazem nesses locais. A relação dos apanhadores (as) de flores com as UCs
já teve vários momentos, desde atos de violência (física e psicológica) e intimidação dos
moradores, até o momentos de diálogo. Ainda há restrições e proibições à panha de
algumas espécies que foram consideradas como em risco de extinção ainda que, de acordo
com Fernanda Monteiro (2019), não tivessem sido apresentados estudos que comprovem
tal afirmativa.176
Outra questão preocupante que se coloca é a interdição ao manejo tradicional dessas
áreas que, como veremos mais adiante, envolve o uso controlado do fogo para a rebrota das
174
Calcada em uma ideologia na qual uma nação, corresponde a um território e uma língua e que está
relacionada ao conceito legal de soberania (LITTLE, 2004).
175
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil... 2004, p. 254.
176
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas Fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 294.
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espécies de sempre-vivas. Esse aspecto fica claro na fala de dois moradores da comunidade
de Mata dos Crioulos, sobre as consequências dessa proibição:
JM: Eles tão deixando a natureza acabar.
LC: Acharam porque agora, eles ficam aí e deixa tudo sem queimar o
campo, quando o fogo cai no campo acontece que nem fez uma época pra
traz, aí que o fogo fez um arraso, queimou tudo. Tinha capão de mata,
queimou tudo.
JM: Capão de mata que tinha anos que nós não deixava queimar. Porque
nós, nós punha o fogo, mas não queimava porque não tinha facho, que tava
177
pouco. Queimou tudo, queimou tudo! [...].
177
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
178
Cf. Baleè, Diegues, Laschefski, Zhouri.
90
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91
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179
FELDMAN, GEISLER e SILBERLING, 2003 apud TEIXEIRA, Raquel Oliveira Santos; ZHOURI, Andréa; MOTTA,
Luana Dias. Os estudos de impacto ambiental e a economia de visibilidades do desenvolvimento. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, 2020.
180
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
181
Palestra proferida por Maria de Fátima Alves na Mesa Redonda Sistemas Agrícolas como Patrimônio
Cultural, na ocasião da Semana do Patrimônio Cultural, Belo Horizonte, 14 ago. 2019.
92
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182
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Apanhadoras e apanhadores (as) de
flores Sempre-vivas recebem reconhecimento internacional da FAO como o primeiro Patrimônio Agrícola
Mundial do Brasil. Disponível em: http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1265788/. Acesso em:
31/08/2020.
183
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com as Gerais… 2019, p. 356-357.
93
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184
CUNHA, Manuela Carneiro. Introdução. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 32, 2005, p.
17-18.
94
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relatos das memórias de ocupação destes territórios. Neste ponto, uma moradora da
Comunidade Mata dos Crioulos, diz a respeito dessas dimensões:
Gosto muito de mexer com roça, porque desde criança é coisa que meu pai fazia.
Meu pai mais minha mãe [...] Nós aprendeu com os pais né, que os pais falava que
as épocas que era de plantar, a época de limpar, de colher, era tudo essas escalas
aí. A época melhor que os mais velhos falava, meu pai mesmo falava que é a época
melhor de mexer com roça era, se fosse uma roçada, fazia ela na base do mês de
julho, e agosto já tava todo mundo tocando fogo nas roças, tava queimando os
185
matos pra poder plantar mês de setembro, outubro.
185
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
95
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da necessidade. Assim, é comum no horário das refeições as pessoas irem até o quintal e
voltarem com um punhado de folhas de verduras para o refogado ou alguma fruta para o
suco. No caso da comunidade de Raiz, além deste aspecto, a fartura e beleza das plantações
presentes nos quintais resulta também, da questão dos cercamentos das terras, com
significativas perdas de áreas de plantios das roças de toco. Isso faz com que os moradores
tenham que otimizar tanto quanto possível os espaços ao redor das moradias para
continuarem a garantir a segurança alimentar das famílias. Desse modo, no contexto desta
comunidade observa-se que as plantações se encontram, sobremaneira, próximas às casas.
Por sua vez, as roças são espaços de cultivo de maior extensão, que podem estar
localizadas nos diversos ambientes da Serra do Espinhaço, tanto nas cotas baixas como nas
áreas de serras. No caso dos ambientes de menor altitude as áreas escolhidas para plantação
geralmente são próximas às vazantes de cursos d'água e rios, por serem locais naturalmente
mais férteis devido à umidade. A medida que se passa às maiores altitudes, o solo vai
tornando-se mais arenoso e a necessidade de cultivar fez desenvolver uma percepção
relativa ao reconhecimento de "'manchas' de solo mais argilosas e avermelhadas, como
também aquelas escuras e úmidas, que são indicadores de 'terras de cultura' ou de
fertilidade natural".186 De tal maneira, as roças se deslocam pelas paisagens, assim como as
pessoas. Segundo Monteiro (2019):
É comum uma mesma família ter mais de uma "roça", até mesmo cinco delas,
todas manejadas ao mesmo tempo em diferentes altitudes e a depender dos
agroambientes, valem-se de rotação de culturas com pousio, para reposição
natural de fertilidade dos solos através do uso de biomassa ("roça de toco") [...] As
distâncias de uma roça da mesma família pode variar de 300 metros a 06
187
quilômetros, entre si, percurso comumente feito a pé.
186
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 244.
187
Ibid., p. 245.
96
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produzem em uma área de dimensões maiores. Ainda conforme foi relatado, próximo à lapa
onde se arrancham na época da panha há também plantações da família.
Tal como o espaço, a agricultura também se envolve à concepção de tempo das
pessoas, famílias e comunidades em suas mais diferentes escalas, sendo que na relação
produtiva a vida é pautada pelos ritmos ditados pelo "par primordial Céu-Terra".188 Neste
sentido, o nascer e pôr do sol, as lunações, os ciclos da chuva e as sazonalidades conectam-
se à fertilidade da terra e ao seu cuidado, servindo como uma bússola que orienta o trabalho
agrícola. Nesta perspectiva, é necessário pensar as distintas camadas temporais nas quais se
conectam ao cultivo da terra. Elas são profundas como o conhecimento dos antigos sobre a
produção das roças e mais externas, tais como os cuidados diários despendidos nos quintais.
O calendário agrícola das roças possui um ritmo sazonal específico, sendo que as
atividades de plantio ocorrem juntamente com as primeiras chuvas, geralmente a partir dos
meses de setembro e outubro. Assim como o relato da moradora de Mata dos Crioulos
assinalou acima, há um período que antecede o plantio propriamente dito entre julho e
agosto, que envolve as atividades de seleção das áreas e o preparo da terra, de modo a estar
pronta para receber as sementes e as mudas. Neste contexto agrícola, quilombolas e
apanhadores (as) de Sempre-vivas praticam as chamadas roças de toco, expressão que está
presente principalmente nas comunidades quilombolas.189
As roças de toco consistem em uma técnica tradicional de agricultura presente nos
modos de vida de diversos grupos sociais localizados em ambientes de formação florestal
seja na Amazônia, Mata Atlântica e no Cerrado no caso específico do Brasil. 190 Essas roças
abrangem conhecimentos que se relacionam aos tipos de cultivares a serem plantados, aos
consórcios entre os cultivares, às áreas escolhidas para tal e ao modo como são preparadas.
Esta técnica consiste na escolha de áreas que sejam afastadas dos cursos d'água e
com relativa densidade de vegetação onde o solo possui um alto teor de matéria orgânica,
dada a presença de plantas. Após esta seleção, realiza-se a roçada, que é a limpeza de
188
ELIADE, Mircea. Tratado das história das religiões. Lisboa: Edições Cosmos, 1990.
189
Em Pé de Serra, o senhor Nô (Antônio Carlos da Cruz Silva) advertiu que a expressão "roça de toco" não é
tão comum entre comunidades localizadas no sertão.
190
MAZOYER e ROUDART, 2010 apud. MONTEIRO, 2019, p. 255.
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arbustos e plantas menores, o chamado "mato fino", feita comumente com ferramentas
manuais tais como facão, foice, arado de boi etc.191 Neste momento, é deixado de pé a
vegetação de porte médio, o "mato grosso". A presença de árvores de grande porte indica
que a área não é a ideal para o plantio, posto que contribuem com a manutenção hídrica do
território.192
O mato que ficou no solo como resultado da roçada é deixado exposto ao sol até
secar. As primeiras chuvas da temporada indicam que é chegada a hora de atear fogo ao
mato seco, sendo que para isso faixas de solo limpo são feitas nos limites da área de modo a
formar aceiros para que o fogo não se espalhe para além. O fogo é usualmente ateado na
parte central da área roçada nas horas do dia em que a temperatura está mais branda.
O manejo do fogo envolve saberes bastante sofisticados que não se encerram
puramente no âmbito da técnica, mas que também envolvem relações com forças extra-
mundanas que conectam quem possui o saber de atear o fogo a esta força da natureza.
Neste sentido, estes saberes não são acessíveis a toda e qualquer pessoa, pois há que ser
imbuído de uma energia e saberes próprios para conhecer e deter a medida certa do fogo.
Após esta etapa fundamental que tem por objetivo nutrir a terra tornando-a forte o
bastante para receber os cultivos, o próximo passo é cercar a área a ser plantada com
pedaços de madeiras que impedem a entrada de animais. Neste momento, as sementes já
terão sido selecionadas da reserva que as famílias costumam fazer anualmente das
chamadas sementes crioulas. O solo é remexido para a terra misturar-se à biomassa
formada pela queima e, em seguida, encovada com ferramentas manuais para receber as
sementes. É necessário respeitar a posição correta com que cada espécie é depositada nas
covas, de maneira que a brotação seja assegurada com sucesso. O relato a seguir fornece
uma visão sobre como funciona o ciclo agrícola:
O preparo, se for um lugar que precisa de roçar, se for um lugar que precisa de
capinar a terra que já é palhada, a gente capina isso na comparação com o mês de
agosto pra gente poder plantar em setembro, outubro, pra poder estar plantando.
Quando a gente prepara a terra assim, que capina, que roça na meeira de julho e
agosto, a gente queima mês de agosto mesmo, ou em setembro mesmo, porque se
191
Foi observado na ocasião das visitas a campo, que no contexto da comunidade de Pé de Serra, há famílias
que já utilizam maquinários para o roçado.
192
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 257.
98
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chuva, se tiver já manejando pra chover ou que já deu uma pancada de chuva, a
193
gente queima num dia e pode plantar no outro, depende da chuva.
Como foi observado, o regime das águas é um indicador temporal primordial que
inaugura a temporada de plantio. A respeito do simbolismo aquático presente nas
cosmologias de diversas culturas, Mircea Eliade diz que a água: "torna-se um símbolo de vida
[...], ela fecunda a terra, os animais, a mulher". Isto posto, a mitologia de um povo indígena
do Novo México é boa para pensar essa associação, ao contar que "uma bela mulher (quer
dizer a Mãe-Terra) foi fecundada por uma gota de água caída de uma nuvem".194
Dada a importância do regime de chuvas para a própria viabilidade da agricultura, as
comunidades camponesas e tradicionais, de um modo geral, possuem certas práticas
mágico-religiosas que visam a garantia de que a ordem natural seja cumprida pela
intercessão do sagrado. Especificamente no caso das comunidades de apanhadores (as) de
flores Sempre-vivas praticantes do catolicismo, os rituais propiciatórios e divinatórios em
relação à chuva são realizados em conformidade ao calendário religioso, que tem nas
devoções aos santos seus pontos de convergência.
As comunidades de Pé de Serra e de Lavras são dois exemplos onde esses ritos
integram-se aos modos de vida das famílias sertanejas, especialmente por estarem
localizadas na porção norte mineira onde a semi aridez do clima caracteriza-se pela baixa
precipitação pluviométrica. Uma dessas práticas é a penitência da chuva, feita na época do
plantio das roças, e que consiste em levar pedras e garrafas de água na cabeça rumo a um
cruzeiro, onde a pedra é colocada e a água é derramada. Ao mesmo tempo, orações são
feitas para que santidades intercedam em relação à chuva. Uma moradora de Pé de Serra
disse que antigamente o povo "plantava pela fé":
Antigamente, o povo aqui só plantava em setembro. Hoje que não planta mais,
antigamente era setembro. Era época de plantar porque chovia demais
antigamente. Hoje não chove, aí você podia plantar em setembro. Não choveu em
setembro, aí as mulheres, às vezes iam até alguns homens. A gente procurava
aquela cruz, ia, rezava, molhava, clamava a Deus, pedia muito. A gente já reza
diferente, a gente pedia, conversava, [...] pedia a Deus para mandar chuva, que a
gente estava precisando, que as águas estavam poucas, que estávamos precisando,
que tinha que ter o milho. E ia conversando assim com Deus. E tinha vez que a
193
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019].
194
ELIADE, Mircea. Tratado das história das religiões… p. 233.
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gente ia, no outro dia chovia. Não sei se é porque o tempo era diferente mesmo,
195
no outro dia chovia.
Nos pés de alguns dos vários cruzeiros espalhados pelo território de Pé de Serra, é
possível notar muitas pedras deixadas indicando a materialidade do sagrado no território.
Na comunidade de Vargem do Inhaí também há ocorrência deste rito, mas em todos estes
contextos, os moradores apontam que o mesmo não é praticado com a mesma intensidade
como no passado.
Além das penitências que buscam a intervenção, há também os ritos divinatórios que
se assentam em previsões. Conforme pontua Costa Filho (2008), "os dois ritos se encadeiam
no tempo, um demanda o outro, numa tentativa fortuita de mudar o curso da natureza,
torná-la menos implacável, através da mediação dos santos e da sensibilização de Deus".196
Os ritos de adivinhação se ligam à devoção aos santos de junho, especialmente de São João,
para quem a simpatia é dedicada. O ritual é geralmente realizado na noite do santo, em 24
de junho, e consiste em colocar em cima do telhado tantas pedras de sal quanto forem os
meses do ano. Se a pedra correspondente a determinado mês derreter, será nele que a
chuva está prevista de cair, indicando que a roça pode ser plantada sem medo, conforme
disse Adilma dos Santos, que também contou que o primeiro trovão após a noite de São
João indica que a chuva de planta está se aproximando.
Em todas as comunidades elencadas para o estudo, a percepção é a de que o período
de estiagem está cada vez mais prolongado, com consequências diretas na agricultura
praticada, tal como pontua o senhor Afro Alves, de Pé de Serra:
Para falar a verdade, uns anos atrás, a folia de reis passava e me punham quase
doido para assar milho para eles. Minha mãe cavucava a terra no seco, plantava o
milho e colhia de maio. Hoje, praticamente, não tem data certa não. Porque a
chuva está vindo muito tarde! Então a gente planta roça mais ou menos de
novembro em diante, eu já plantei roça até em janeiro e colheu milho. Porque não
tava chovendo... agora a base da roça é assim mais ou menos novembro...
197
novembro, dezembro, janeiro, fevereiro... março colhe o milho!
195
JOSÉ, Maria. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Pé de Serra. Registro do SAT das Apanhadoras e dos
Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone. Disponível no Acervo
documental IEPHA-MG.
196
COSTA FILHO, Aderval. Os Gurutubanos… 2008, p. 209
197
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019].
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Essas percepções localizadas acerca das mudanças no regime de chuvas revelam que
os impactos advindos como consequência de questões climáticas em escala global, são
distribuídos e sentidos de forma socialmente desiguais. Neste sentido, pelos padrões
historicamente construídos de vulnerabilidade, certos grupos sociais como os povos e
comunidades tradicionais estão sujeitos a vivenciarem situações contextualizadas de crise
ambiental, tal como ocorre com apanhadores (as) de flores. Monteiro (2019) observou
durante suas pesquisas que estão ocorrendo mudanças em práticas produtivas devido a esta
percepção climática alterada. Assim, em Vargem do Inhaí, por exemplo, algumas famílias
têm experimentado novos cultivos em áreas mais úmidas que antes não eram utilizadas.198
O ciclo das chuvas é fundamental para a agricultura porque "o contato com a água
implica sempre a regeneração: por um lado, porque à dissolução segue um 'novo
nascimento'; por outro lado, a imersão fertiliza e aumenta o potencial de vida e de
criação.199 Ademais, para assegurar a saúde da plantação, as famílias católicas também
lançam mão de certas práticas contra o mau olhado, como colocar cruzes ou chifres de
animais nas roças, além de benzeções específicas para assegurar uma boa produção. Neste
último caso, uma moradora contou que em Macacos "tinha muita gente que benzia para a
roça".200 Já no caso das comunidades protestantes, as pessoas recorrem às orações e aos
hinos religiosos como forma de estabelecer este diálogo em intercessão com Deus para uma
boa produção: "a oração que a gente faz com Deus, a gente pedindo Jesus pra poder tomar
conta, ele toma, ele toma conta da gente, toma conta das plantas da gente e aquilo a gente
vê a multiplicação, Deus multiplica".201
Outra tradição agrícola ligada à dimensão do tempo refere-se ao vínculo orgânico
entre a lua e a agricultura. "As relações entre a Lua, a chuva e a vegetação já tinham sido
observadas antes da descoberta da agricultura", pontua Mircea Eliade (1990), sendo que "da
mesma fonte de fertilidade universal deriva também o mundo das plantas, submetido à
198
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, pp. 262-263.
199
ELIADE, Mircea. Tratado das história das religiões… 1990 p. 232.
200
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sempre-Vivas. [19 de dezembro de 2019]. Diamantina.
201
Ibid.
101
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mesma periodicidade orientada pelos ritmos lunares".202 As fases da lua são relacionadas a
certas categorias dicotômicas como quente e frio,203 forte e fraco,204 dentre outras, que
orientam empiricamente as estratégias produtivas.
Uma moradora de Pé de Serra contou que a lua crescente é a mais indicada para
plantar justamente pela força que essa fase lunar desempenha na terra cultivada. Por outro
lado, é a energia da lua minguante a mais indicada para a colheita, do contrário, as plantas
ficam ruins. Já na lua nova não é aconselhado podar ou cortar nem mesmo madeira que
certamente irá apodrecer, devido a energia mais fraca contida nessa lunação. Deve-se evitar
colher até em horta durante a lua nova, sendo preferível fazê-lo três dias antes ou depois. A
lunação interfere não apenas na fertilidade das plantas, mas também dos animais. Neste
sentido, a mesma moradora se recorda de sua mãe dizer que se a vaca acasalar na lua cheia,
certamente o bezerro será fêmea.205
Conforme os saberes temporais relacionados à agricultura, as áreas destinadas às
roças de toco são cultivadas de três a cinco anos e após este período são deixadas
descansando para restabelecer a fertilidade. O chamado pousio completa o ciclo da terra,
que é quando a área encontra-se preparada para ser novamente roçada, queimada e
cultivada. O aspecto do cuidado que estes saberes depositam na terra vai ao encontro do
que Eliade (1990) diz a respeito da relação que determinados grupos sociais têm com a terra.
Segundo o autor, "a terra é mãe", o que significa dizer que: "ela gera formas vivas
arrancando-as da sua própria substância. Em primeiro lugar, a Terra é 'viva' porque é fértil.
Tudo o que sai da Terra é dotado de vida e tudo o que volta para a Terra é de novo provido
de vida".206 Para os apanhadores (as) de flores, a terra garante a vida e a possibilidade de sua
reprodução social através de tudo o que fornece.
Além das dimensões de tempo e de espaço, a agricultura se pauta por lógicas sociais
que envolvem costumes familiares e comunitários. Em seus estudos sobre campesinidade, o
202
ELIADE, op. cit., p. 203.
203
A respeito deste sistema classificatório, Eliade (1990) pontua que na cosmologia iraniana diz-se que é pelo
calor da lua que as plantas crescem.
204
Costa Filho (2008) trata dessas categorias a partir do caso etnográfico dos quilombolas gurutubanos.
205
Notas tomadas durante conversa informal.
206
ELIADE, op. cit., p. 308.
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antropólogo Klaas Woortmann (1990) diz que, sendo a terra a expressão de uma moralidade
e não apenas objeto de trabalho, a família passa a ser um importante valor. Neste sentido,
“nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem pensar a família e o trabalho, assim
como não se pensa o trabalho sem se pensar terra e família".207 O contexto do SAT nos
apresenta essa centralidade do caráter familiar na agricultura, com determinadas clivagens
relacionadas a gênero, idade, parentesco etc.
A produção agrícola é realizada pelas unidades familiares que geralmente possuem
seus próprios quintais e roças. Em geral, quando os filhos se casam além de uma fração da
terra, herdam também sementes, mudas e animais para iniciar sua própria produção. "Não
por acaso, um dos termos que utilizam quando se pergunta qual é a origem das sementes é:
'essas são sementes de geração', o que significa dizer que foram passadas de geração em
geração [...]".208 Na comunidade Raiz, ao lado da residência de uma moradora, sua irmã
havia começado uma roçada próxima ao lugar onde futuramente iria levantar a casa. Neste
contexto, as duas irmãs casadas vivem nas terras próximas à residência dos pais.
O manejo das roças varia de acordo com as especificidades de cada família.209
Geralmente, há famílias que concentram a produção em sua própria unidade doméstica, já
outras, mobilizam a extensão familiar no cultivo das áreas nas diferentes etapas do ciclo
agrícola. No contexto quilombola de Mata dos Crioulos, por exemplo, é comum as noras
ajudarem suas sogras nos cuidados dos quintais e das hortas e receberem uma parte da
produção. De tal maneira, o tamanho e a quantidade produzida são pensadas levando-se em
consideração as necessidades familiares em primeiro lugar.
Quando o volume de trabalho é muito superior ao que a unidade familiar dá conta,
pode-se estabelecer relações de reciprocidade com vizinhos, parentes e compadres (este
último, presente no contexto das comunidades católicas). São as chamadas trocas de dias ou
de serviços em que há ajuda mútua na produção, o que acaba por reforçar os laços
comunitários. Nessa perspectiva da reciprocidade pela via do compadrio, Monteiro (2019)
apontou que há casos em que famílias estabelecidas na parte alta da Serra descem para o
207
WOORTMANN, Klaas. Com parente não se neguceia... 1990, p. 23.
208
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… p. 248.
209
Para uma análise pormenorizada do tópico das relações sociais de produção ver Monteiro (2019).
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sertão na estação chuvosa, seja para cultivar com os parentes ou compadres, seja para
cultivar seu próprio pedaço de terra.
Por fim, especialmente quando o homem está fora ou a família requer algum serviço
específico, pode haver a contratação assalariada para dia de trabalho de parentes ou de
vizinhos. Além da reciprocidade, há também a dimensão da solidariedade no trabalho
agrícola que ocorre quando algum vizinho se encontra em momento de necessidade.
Sobretudo, dado que "a terra é mãe", verifica-se com relação à agricultura uma certa
predominância do trabalho feminino nos quintais e nas roças, especialmente no contexto
das comunidades quilombolas, uma vez que plantar e colher significa alimentar os filhos. O
que se produz é posteriormente transformado em alimento pelas mãos dessas mulheres,
dimensão que também as aproxima do universo agrícola.
Por conseguinte, como são as mulheres as principais responsáveis pelos cuidados
domésticos e dos filhos pequenos, elas permanecem no espaço ampliado da casa durante o
ciclo agrícola ou levam os filhos consigo para as roças, fazendo com que as crianças
aprendam desde pequenas os modos de cultivar. Assim, percebe-se uma vez mais que o
conhecimento dos elementos do SAT são repassados na prática cotidiana do trabalho e na
observação atenta das técnicas desempenhadas pelos mais velhos. Monteiro (2019) assinala
que durante a etapa de plantio "em geral, as mulheres e jovens vão à frente abrindo as
covas e as crianças vão colocando as sementes e tampando a cova".210 Assim, é na rotina das
atividades que ocorre a apreensão dos saberes e a formação para a vida. A respeito da
relação cultural entre mulher e agricultura, assim diz Eliade (1990):
Portanto, apesar de não ser exclusivo delas, as mulheres possuem um papel central
"no uso, na conservação ou na circulação de recursos genéticos para a agricultura e
210
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… p. 248.
211
ELIADE, Mircea. Tratado das história das religiões… p. 313.
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Isso aí agora a gente que guarda né. Tudo o que eu colho eu separo pra que eu
torno a plantar. É de jeito que lá na Codecex quando a gente vai ser representado,
a cuidar da representação, eu gosto muito de falar isso, que eu sou guardiã das
sementes. [Na comunidade] cada qual guarda a sua. Agora, na época de plantar, se
eu não tenho uma semente e o meu vizinho tem daquela que eu não tenho, eu
pego com ele. E ele também, se eu tenho uma semente que ele não tem, ele pega
215
comigo.
212
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… p. 249.
213
Ibid., p. 250.
214
EMPERAIRE, Laure. A Biodiversidade Agrícola na Amazônia Brasileira: Recurso e Patrimônio. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Patrimônio Imaterial e Biodiversidade, n. 32, 2005, p. 31.
215
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
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216
A pesquisadora menciona neste segundo caso, o papel das assistências técnicas estatais no âmbito das
comunidades rurais (2019, p. 250).
217
Neste sentido, a modernização da agricultura em expansão mundial está atrelada à seleção de sementes
produzidas por grandes corporações, ao uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos, à dependência de
maquinário e ao estabelecimento de grandes complexos industriais, dentre outros..
218
Na literatura sobre o tema são chamadas de diversidades inter e intra-específica. Monteiro (2019) faz uma
abordagem mais pormenorizada em sua tese.
219
Durante uma das visitas à comunidade Mata dos Crioulos ouvimos de dona Jovita que se fechassem as
entradas da comunidade, os moradores não iam sentir grandes impactos, uma vez que ao menos comida não
faltaria.
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batata, fava, tomate, alho, repolho, beterraba, cebola, maxixe, quiabo, melancia, abacaxi,
banana, mamão, maracujá, manga, laranja, hortaliças diversas etc.
A agricultura se vincula profundamente à dimensão alimentar no SAT e vice-versa,
em todos os âmbitos que vão desde as comidas do cotidiano, até os alimentos rituais e
festivos. Isso faz com que para além da produção agrícola em si, seja criada toda uma
estrutura para o armazenamento, o processamento e a preparação desses alimentos. É
dessa maneira que se opera a passagem cultural da produção agrícola à comida
propriamente dita.220 Após a colheita, cada planta é manuseada de uma maneira específica
de modo a servir aos objetivos de consumo, como também de venda do excedente.
As diferentes variedades de mandioca são processadas de maneiras diversas
conforme os usos a que se destinam. As variedades "mansas" da planta podem ser
consumidas logo após colhidas, sendo que a forma mais comum de preparo se dá através do
cozimento que servirá de base para distintos modos de preparo como imersão em óleo
(frita), na forma de caldo, como massa de bolos e de quitandas. Já nas variedades "bravas"
da planta se extrai a farinha, que é uma tradição largamente presente entre todas as
localidades.
Antônio Bispo do Santos (2015) fala a respeito da "estrutura orgânico social de uma
casa de farinha", como central nos modos de vida de povos e comunidades tradicionais,
especialmente de quilombolas e indígenas.221 Em grande parcela das unidades familiares
haverá uma casa para produção de farinha, tamanha a importância desse alimento na
cultura dos grupos tradicionais que vivem na Serra do Espinhaço.
Há famílias que possuem casas de farinha tanto próximo às residências nas cotas
baixas da Serra, como nas áreas dos campos, já que em parte do ano são nesses ambientes
que ficam grande parte do tempo durante a época da panha de flores. A memória de uma
moradora de Pé de Serra é elucidativa a respeito da tradição envolvida entre os usos dos
ambientes, a agricultura e a cultura alimentar a partir da produção da mandioca. Segundo
ela, o pai plantava mandioca no alto da Serra e após a colheita descia com os cargueiros para
220
Cf: LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
221
SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos: modos e significados. Brasília: INCT/UNB, 2015.
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fazer farinha no sertão. Depois de pronta, a farinha era então levada de tropa rumo à
comunidade de Macacos.
222
Notas tomadas durante conversa informal.
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Por fim, na comunidade Raiz há um projeto para a construção de uma casa de farinha
comunitária, cujos maquinários já foram adquiridos para que a produção seja em maior
escala.
Assim como a mandioca, o milho é outro importante alimento que forma a base da
cultura alimentar deste SAT. Seus usos podem se dar tanto a partir das espigas recém
colhidas e "verdes", como de espigas secas. No primeiro caso, o milho geralmente é
consumido cozido, utilizado como massa para a preparação de bolos e quitandas ou também
para dele ser extraído a farinha pré-cozida.
No segundo caso, as espigas são colocadas para secarem ao sol e, em seguida,
ensacadas e armazenadas no paiol para serem utilizadas à medida da necessidade familiar.
Monteiro (2019) observou que nas comunidades católicas é comum os paióis guardarem
imagens e bandeiras de santos em sinal de proteção da colheita. Além disso, a palhada que
sobra da colheita do milho é deixada para alimentação de animais de grande porte. O
processamento do milho seco se dá principalmente, através da produção da farinha fina, o
fubá, cujo modo de fazer envolve o debulhamento e a moagem dos grãos que
tradicionalmente é feito nos moinhos de pedra movidos pela força da água ou também por
meio de maquinário.
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223
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de outubro de 2019]. Pé de Serra. Registro do SAT das
Apanhadoras e dos Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone.
Disponível no Acervo documental IEPHA-MG.
224
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019].
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Figura 14. Alimentação tradicional no café da manhã, na Comunidade de Mata dos Crioulos, Diamantina.
Fonte: Acervo Iepha-MG.
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Figura 16. Alimentação tradicional no almoço, na Comunidade de Mata dos Crioulos, Diamantina.
Fonte: Acervo Iepha-MG.
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Figura 17. Alimentação tradicional, na foto preparo de angu na Comunidade de Mata dos Crioulos, Diamantina.
Fonte: Acervo Iepha-MG.
225
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019
226
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sempre-Vivas. [19 de dezembro de 2019].
227
Cf: DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Ensaios sobre as noções de Poluição e Tabu. Lisboa: Edições 70, 1966.
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228
OLIVEIRA, Joana Cabral de et al (Orgs). Vozes vegetais: diversidade, resistências e histórias da floresta. São
Paulo: UBU Editora/IRD, 2020, p. 13-14
229
Ibid., p. 13.
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A fazenda era de uma mulher que chamava Ana Rosa. Daqui dessa fazenda
começou a comunidade de Macacos... Na época chamava Fazenda dos Macacos.
Era a comunidade, começou tudo foi daqui [...] Ana Rosa era poderosa, ela tinha aí
uns quinhentos “nego”, “nego” e escravo aí, na fazenda dela [...] Dizem que dava
muito ouro, diamante... E tinha muito gado, que ela tinha uma outra fazenda dizem
que lá para o lado do [...] para o lado do Curimataí [...] Aí o gado quando descia, lá,
lá em cima... descendo lá... lá de cima lá naquela pedra de [inaudível]. Minha avó é
233
que contava, que era gado demais.
230
De acordo com dados do Relatório do GIAHS, foi verificado ainda, criação de abelhas (nativas e africanas) e
coelhos.
231
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 275.
232
O gado tradicionalmente criado por essas comunidades é da raça "curraleira", que "apresenta rusticidade e
refere-se à primeira raça a chegar no Brasil, com os colonizadores, tendo sido reconhecida em 2012 como 'raça
brasileira' pelo Ministério da Agricultura" (Monteiro, 2019, p. 269).
233
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sempre-Vivas. [19 de dezembro de 2019]. Diamantina.
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No caso do ‘sertão’, é comum uma criança, ao nascer, ganhar dos pais e por vezes
dos padrinhos o animal da “sorte” (animais para começar seu próprio rebanho,
sobretudo de equinos e bovinos, mas até de porcos e galinhas). Essa prática de
iniciar o patrimônio para “começar a vida”, ou ter “prosperidade”, visa criar, ao
mesmo tempo, a noção de responsabilidade. Tal costume, porém, não é tão
comum entre os quilombolas, que, em geral, possuem rebanhos menores ou
mesmo algumas famílias não possuem gado. Porém, também entre eles, os pais
buscam ajudar os filhos, geralmente por meio da doação de animais quando eles
234
vão começar uma nova família.
Contudo, mais do que apenas ter condições para criar um rebanho, Monteiro (2019)
apontou que a aptidão ao trabalho com os animais é um fator importante, uma vez que este
é um ofício que demanda tempo e disposição, dada a característica extensiva do manejo.235
Nestes contextos, o trato com o gado marca o ritmo cotidiano, seja na época da roça, seja na
época da panha. Isto pode ser percebido, por exemplo, nas horas dedicadas aos cuidados
com o gado na rotina das famílias. Geralmente, uma das primeiras atividades do dia refere-
se à alimentação destes animais e à retirada do leite, que servirá para refeições e para a
produção de derivados, como foi observado na Comunidade de Pé de Serra.
234
Monteiro (2019) ainda analisa outras maneiras de formação dos rebanhos em sua tese, como a migração
temporária para acumulação de dinheiro para reverter em rebanho.
235
Ibid., p. 274.
117
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Eu acordo na base das quatro e meia, cinco horas, mais que eu levanto mesmo é
cinco e meia, seis horas. Aí eu levanto, vou cuidar de tratar das minhas criação e da
hora que eu trato das minhas galinhas, das minhas galinhas primeiramente. Eu vou
assear a casa. Aí depois que eu asseio a casa, aí agora eu já vou tratar dos porco,
239
depois que eu trato dos porcos eu vou pro mato se der tempo.
236
Contudo, há que se relativizar este padrão, uma vez que por exemplo, todos da família são envolvidos na
construção das estruturas para a criação dos animais: homens, mulheres e jovens. Por sua vez, as mulheres
podem atuar na benzeção para a proteção dos animais.
237
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro, Rocco,
1997.
238
A casa e a rua são entendidas aqui como categorias sociológicas, conforme proposto pelo antropólogo
Roberto DaMatta, que fazem parte de uma oposição entre si e que podem assumir contornos variados de
acordo com o plano de segmentação em que se considera (ex.: a casa pode ser o seu quarto e a rua, os outros
quartos ou, em outra escala, a casa pode ser o seu país e a rua, o mundo).
239
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
118
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Já a criação de gado se dá tanto nas baixas altitudes, como sobre a serra. No primeiro
caso que ocorre durante o período chuvoso do ano, o gado fica confinado em currais
contíguos às moradias ou soltos em áreas de pastagens próximas às unidades familiares. No
contexto de comunidades do sertão, observou-se que além das pastagens, há produção e
estocagem de cana de açúcar para complementação da alimentação do rebanho durante o
período de permanência nas cotas baixas.240
Na época seca do ano, que coincide com a época da panha de flores, o rebanho é
deslocado para as cotas altas da Serra, devido à baixa oferta de alimento nas menores
altitudes, assim como explica um morador do sertão:
Porque o pasto acaba aqui na época do sol, da seca, se não levar morre tudo. E lá,
eles até engordam lá nas queimadas. Todo ano leva. Agora mesmo tem gado lá, na
queimada. Fica lá é de abril, maio até novembro, dezembro. Conforme a chuva
241
chegar. Porque enquanto não chove para sair pasto não pode trazer.
Uma vez nos campos, o gado é solto para pastorear nas gramíneas nativas, em
lugares que não correspondem àqueles das coletas de flores, assim como explica um
morador da Comunidade de Lavras:
240
A percepção dos apanhadores (as) de flores a de que o período de estiagem está cada vez mais prolongado,
obrigando estratégias de permanência do gado na Serra, de plantação de alimento ou adição de ração, em
alguns casos.
241
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Buenópolis.
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No nosso território, nos nossos campos, a gente tem vários tipos de campos
diferentes: tem o campo de gado, o campo que a gente só cria gado, as chapadas; e
o campo de flor. Nós não usamos o campo de flor pra colocar gado não. O campo
242
de flor nosso é só pra flor. E o campo de gado é só pra gado.
Observa-se, assim, que o alcance dos usos do espaço pelos animais também foi um
fator que contribuiu de forma decisiva para a ocupação e delimitação das terras de uso
comuns do alto da Serra, especialmente para as comunidades do sertão. No contexto das
comunidades quilombolas, apesar da ocupação inicial ter se dado por outras vias de uso que
não o gado, a inclusão desses animais na estrutura produtiva ao longo da história, também
contribuiu como estratégia de ocupação territorial.244
Dessa forma, como os demais domínios da vida dos grupos sociais que desenvolvem
este SAT, a criação de gado também é regida por preceitos morais e por códigos de conduta
coletivamente compartilhados, especialmente em relação ao manejo dos rebanhos nas
terras de uso comum. Isso pode ser verificado, por exemplo, na regulação da quantidade de
animais levados para pastorear sobre a serra, podendo haver sanções sociais no caso de
242
SOUZA, Aldair José de. Sempre-Vivas. [18 de dezembro de 2019]. Lavras.
243
Ibid.
244
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 275.
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algum dono levar uma grande quantidade de cabeças para a Serra. Esse controle funciona
de forma a evitar o pisoteamento das chapadas pelos animais, o que pode ser prejudicial
para a manutenção dos recursos naturais.245
O tempo das chuvas avisa que é chegado o momento de deslocar-se com os animais
para as menores altitudes, evitando que "se intoxiquem com as ervas tóxicas que crescem
no período chuvoso".246 Portanto, assim como se dá com a panha das flores e o cultivo das
roças, o saber que norteia a criação dos animais entre esses grupos está diretamente
vinculado ao conhecimento do território e ao funcionamento dos ciclos climáticos. Contudo,
a percepção ambientalmente localizada é a de que o período de estiagem está cada vez mais
prolongado, fazendo com que apanhadores (as) de flores criem estratégias de manejo do
gado que se adequem aos tempos cada vez mais secos:
Quando era época de flor subia a serra e passava, alguns anos atrás chovia muito
mais. Então tinha a data certinha de levar o gado, quando era novembro por aí,
tinha que vim embora com eles, porque se deixasse eles morria, sabe. E hoje, a ver
247
a seca que começou a muito tempo, então o gado vive praticamente na serra.
Isso faz com que outras dimensões da vida tenham também que se adequar às
mudanças climáticas, conforme um relato aponta: "Fica mais tempo lá. Teve uma época que
a ração nossa acabou, nós levamos até as vacas pra serra e eu trazia o leite de lá! Nossa!
Ficava o dia todo na estrada".248 Além das alterações climáticas, a dinâmica da criação de
gado foi afetada pelos sucessivos conflitos socioambientais a que as comunidades estão
expostas, que levaram à expropriações territoriais e à proibição de acesso às terras de uso
comum. A este respeito, é de Mata dos Crioulos que provém a narrativa das consequências
da intrusão da unidade de conservação e da gestão da natureza:
Hoje por hora, já foi liberado, porque nós temos liberação, como essa Tatinha, a
gente recebeu o certificado de liberação da panha da flor, mais a gente, o gado
245
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 271.
246
Ibid., p. 270.
247
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de outubro de 2019]. Pé de Serra.
248
Ibid.
121
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pelo menos no lugar que eles fechô, ainda tá em dificuldade porque eles num tiram
249
o arame, o arame ainda tá lá.
Para aquelas comunidades e famílias que praticam este manejo em seu cotidiano
produtivo, o gado participa das mais variadas dimensões da vida. Uma delas diz respeito à
economia familiar, sendo que estar de posse destes animais é garantia de recursos
financeiros. Assim sendo, o gado funciona como uma "poupança" que constitui parte do
patrimônio familiar:250 "Vai lá panha mercadoria, vende e põe o dinheiro no bolso, compra
bezerrinha, depois compra mais outra e vai seguindo a vida. Né grande dinheiro não, é viver,
dá pra gente viver. E vai seguindo a vida.”251
O gado também fornece leite, que integra a dieta cotidiana252 e a cultura alimentar
das comunidades, através da produção de queijo, de requeijão e de doces, que são bastante
populares no contexto do sertão, especialmente. É de se observar que, tais feituras
encontram-se no domínio do feminino, que detêm os conhecimentos dos preparos. Dada a
valorização do animal do ponto de vista financeiro, sua carne não participa com frequência
do cotidiano alimentar das famílias, sendo reservada aos momentos festivos, nos quais é
costume o abate para as festas de santos no contexto de comunidades católicas, além de
casamentos e outras celebrações.
Nestas ocasiões, os festeiros do ano adquirem o animal para a celebração, tal como
foi verificado na Festa de São Sebastião e Nossa Senhora Aparecida, em Pé de Serra. O abate
do animal e o destrinchamento da carne são atividades direcionadas aos homens, enquanto
que o corte e a preparação das receitas, competem às mulheres. O resultado são carnes de
panela, farofas e outros pratos à base de carne bovina. É necessário pontuar que nestas
celebrações, bezerros e outras espécies animais são destinados aos leilões.
249
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
250
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 353.
251
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra.
252
Assim como foi analisado no item 3.1 deste Dossiê, as carnes e derivados da dieta de rotina provêm,
sobretudo, de galinhas e porcos.
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Figura 21. Preparação do alimento na festa de São Sebastião e Nossa Senhora Aparecida, feita por mulheres.
Fonte: Acervo Iepha - MG.
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vizinhos, como uma moradora de Mata dos Crioulos disse, a respeito do gado na economia
familiar em comparação ao passado:
Tudo era mais difícil. Que você criava mais era porco. Num criava gado, nem nada,
e hoje cria gado, como diz, tem hora que pode, se não tá com muita necessidade
de matar pra poder vender, num pode matar e dar um pedaço até praqueles, pra
família né. Custa muito fazer isso, mas pode. Até quando não tá muito assim,
253
apertado pra fazer outra coisa.
O gado também participa das atividades laborais, sendo comum sua utilização como
tração para os engenhos de cana, como consta no contexto local de Vargem do Inhaí, onde
especialmente no passado havia um grande número deles. Estes animais são empregados
também como transporte em carros de boi, a exemplo de Raiz, cujo processo de ocupação
territorial ocorreu quando o patriarca Pai Velho foi: "pra cuidar do gado, trabalhar de carro
de boi".254 Ainda com relação à dimensão do trabalho aliada à organização social, a criação
do rebanho pode ocorrer de forma conjunta entre os membros da família extensa, sendo os
cuidados divididos em parceria entre pais, irmãos e demais membros.
253
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
254
ALVES, Maria Terezinha; ALVES, Ercílio; ALVES, Eliad Gisele. Sempre-Vivas. [04 de março de 2020].
Comunidade Raiz.
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O couro, por sua vez, está presente na selaria artesanal e em demais artigos de
montaria, observado no contexto do sertão, assim como o esterco, que é largamente
utilizado pelas comunidades na adubação vegetal dos quintais. Na comunidade Raiz foi
explicado que é necessário deixar o esterco "pubar" embaixo dos restos de cana para que
seja possível a formação do adubo. Ademais, o gado e outros animais se envolvem com o
sistema de crenças destes grupos, sendo a eles dedicados orações e benzeções para a cura
de males:
Até onde eu conheço, eles fazem o benzimento é as orações só. E são várias, tanto
pra bicho mau, tipo cobra... Esse ano mesmo, eu tava na serra com uma mula lá,
que eu fui pegar uma carga lá, a mula adoeceu de dor de barriga. Aí eu liguei pra
minha mãe, pedi pra ela pra curar a mula. Ela fez o benzimento lá, a mula sarou.
255
Então a gente usa essas práticas....
Do que você comia, você tratava das criação, era mandioca, cê podia jogar
mandioca, podia dar milho, podia, inhame, que nós plantava, meu pai plantava
muito inhame. Até que levava, tocava assim, seis burros pra cidade carregado das
coisas que a gente comia, era inhame, é farinha, é milho, né. Então levava pra
255
SOUZA, Aldair José de. Sempre-Vivas. [18 de dezembro de 2019]. Lavras.
125
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vender na cidade. A gente tinha pra consumo e ainda vender, pra comprar alguma
256
outra coisa.
Dona Maria das Dores de Paula Martins, uma memorialista local da comunidade de
Vargem do Inhaí, informa que entre os anos 1920 a 1945 existiu um número
significativo de engenhos na comunidade de Vargem do Inhaí, que totalizavam
quinze. Desse total, dez eram engenhos de rapadura e cinco eram engenhos de
farinha. Nesse período, a memorialista informa que a produção deixou de ser
apenas para o consumo interno das famílias, pois os produtos começaram a ser
comercializados no distrito de Inhaí, e às vezes na cidade de Diamantina, onde
257
eram vendidos no antigo mercado dos tropeiros.
O pessoal de primeiro vivia só disso aí e roça né. Nem condução tinha e levava sabe
aonde? Lá no Joaquim Felício, pegava o cavalo pra vender e levava rapadura, arroz,
lá de Diamantina a cavalo, São João da Chapada. Gente, as coisas são outras, hoje,
eu vivo assim ainda, eu carrego mercadoria na cacunda de cavalo. Te mostro pra
vocês, tem uns videozinhos. Vou, panho a mercadoria, chego lá, ponho no
259
cargueiro venho, venho, volto de novo, trago tudo pra cá.
256
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
257
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 39.
258
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Buenópolis.
259
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra.
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lugares cujos caminhos são de difícil acesso a outros meios de transporte. Neste sentido,
Monteiro (2019) afirma que:
Ademais, a forte presença desses animais fez com que se estabelecesse uma cultura
de montaria bastante proeminente, sobretudo, nas comunidades do sertão. Mesmo com a
introdução de motocicletas nos contextos rurais, os cavalos ainda continuam a ser parte
fundamental da vida desses grupos, seja em momentos cotidianos, seja em momentos
festivos, conformando o imaginário das pessoas desde a infância:
260
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 237.
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dinheiro da colheita para: “trocar meu cavalo. Ano passado, usei o dinheiro pra
261
comprar meu cavalo, mas esse ano vou trocar ele”.
Não foi somente com as Sempre-vivas que apanhadores (as) de flores associaram-se
ao longo da história de suas territorializações na Serra do Espinhaço. Além dessa diversidade
de inflorescências, uma gama variada de espécies da flora e da fauna nativas do Cerrado
vem se relacionando aos modos de vida dessas coletividades, que compuseram um amplo
repertório de saberes a respeito de seus "hábitos, habitats, ocorrências, múltiplos usos e
significados".262
Assim, a interação entre as plantas e as pessoas no contexto do SAT dos
Apanhadores (as) de Sempre-Vivas vem possibilitando o manejo do Cerrado do ponto de
vista de um desenvolvimento realmente sustentável, que dá forma e conteúdo aos diversos
âmbitos da vida: medicina tradicional, construções, práticas do sagrado, alimentação,
ornamentação, usos cotidianos etc.263
Caminhar com os moradores por seus territórios é observar a maneira como
mobilizam o olhar e o tato na localização e na identificação de cada tipo de planta em meio à
profusão vegetal ininteligível para quem é de fora. Nesta empreitada, exercitam o olhar, o
olfato e por vezes, o paladar, para se certificarem que determinada planta encontra-se no
261
Ibid.
262
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 264.
263
Conforme apontado por Monteiro (2019), nas localidades pesquisadas no contexto do SAT foram
levantadas 35 espécies de frutos nativos destinados ao consumo alimentar, 16 espécies de madeira utilizadas
em técnicas construtivas e 83 espécies empregadas na medicina tradicional.
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tempo certo para seu uso. "Essa serra aí não tem canto que eu já não andei", disse um
senhor de Pé de Serra, revelando que é do conhecimento que se tem dos diversos
ambientes, que são obtidas folhas; madeiras; óleos; fibras; frutos; resinas; raízes; cipós;
sementes; cascas, entre outros produtos naturais que possuem usos diversificados. E muitos
destes ambientes encontram-se nas terras de uso comum do alto da Serra do Espinhaço,
como disse uma moradora, sobre o manejo vegetal no contexto da Comunidade Macacos:
É porque algumas dão no campo. A maior dificuldade é isso, porque o campo está
lá em cima e a gente está aqui... Algumas dão nas árvores, nos matos aqui, mas
outras só dão nos campos. As raízes igual Canguçu é… Postemeira que eles
chamam ela. Tem uma que se chama Velame. Elas dão é no campo, você vê o
264
pezinho dela assim, no meio do campo.
E muitas vezes não tinha nada em casa, às vezes ele [Pai Velho] saía pra trabalhar e
a casa estava limpa, sem nada. Aí mãe saía com nós pro mato pra caçar as frutas do
mato pra dar nós pra comer, coco, pequi, essas frutas do mato, ela saía com nós
264
SOARES, Geralda Maria. Sempre-Vivas . [19 de dezembro de 2019]. Diamantina.
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pra procurar. Samambaia, essas comida que nós criou comendo assim, essas
265
comidas. [...] num ora pro nobis, numa samambaia, numa embaúba.
265
ALVES, Maria Terezinha; ALVES, Ercílio; ALVES, Eliad Gisele. Sempre-Vivas. [04 de março de 2020].
Comunidade Raiz.
266
Estes são os nomes populares das espécies, que foram mencionadas durante uma incursão ao território
com moradoras da comunidade.
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Figura 25. Sementes, cabaças e buchas orgânicas tradicionais na Comunidade de Mata dos Crioulos.
Fonte: Acervo Iepha - MG.
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Do mesmo modo que a flora nativa se envolve aos aspectos da nutrição dos corpos e
ao modo como estes corpos habitam os espaços territorializados da Serra do Espinhaço
Meridional, também enreda-se nas dimensões de sua cura física e espiritual. As tradições a
respeito do conhecimento e dos usos terapêuticos de plantas do bioma do Cerrado para
tratamentos de diversos males é amplamente presente na vida de apanhadores (as) de
flores, sendo amplo o repertório de garrafadas, emplastros, benzeduras, unguentos, chás
etc., preparados com base na oferta vegetal dos territórios. Assim, mesmo que o acesso ao
sistema de saúde da medicina convencional tenha aumentado com o passar do tempo, a
cultura dessas comunidades é inteiramente baseada na medicina popular e tradicional.
Via de regra, muitas pessoas das comunidades possuem, em alguma medida,
conhecimentos gerais a respeito de certas práticas terapêuticas tradicionais, que foram
repassados pelos mais velhos, como disse o senhor Nô a respeito do seu próprio
conhecimento adquirido: “Meu pai também conhecia e eu conheço. Eu conheço muita raiz
da serra. Tem a jurema que o povo faz chá. Tem Jurema, Carobinha, Pustemeira, Velame. Pai
gostava demais de arrancar raiz. Colocar na pinga mesmo, fazer chá.”267 Contudo, não há
localidade que não tenha as suas referências no trato com as plantas; são os(as) mestres(as)
que tradicionalmente manipulam raízes, benzeções e orações, tendo acumulado um grande
repertório de saberes, adquirindo prestígio social e, portanto, sendo reconhecidos como tal
por suas comunidades.
Neste sentido, na Comunidade Pé de Serra, por exemplo, o senhor João Alves, o João
Preto, é uma dessas referências no trato com as raízes. O raizeiro disse que tudo o que sabe
sobre medicina tradicional aprendeu com a avó, que andava com ele pela chapada
mostrando-lhe as plantas dos ambientes, explicando-lhe o que cada uma tratava e como era
preparada, de modo que nunca mais esqueceu. Também disse conhecer incontáveis
espécies de plantas e seus modos de preparo, que variam conforme os ativos e as
finalidades com que serão ministradas. Sendo assim, há aquelas raízes cujo princípio ativo se
dá em forma de infusão, aquelas que devem ser colocadas diretamente no lugar que se quer
tratar ou mesmo aquelas preparadas em bases como a cachaça.
267
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Pé de Serra.
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Em Raiz, Erci Alves é reconhecida por sua comunidade como uma grande
conhecedora das plantas. Durante a pandemia de Covid-19 essa jovem liderança montou
uma farmacopéia denominada "Botica Mãe Terra", com diversos remédios tradicionais
produzidos para auxiliar na cura dos moradores.
O manuseio das plantas vem acompanhado pela mobilização de um sistemas de
crenças, em que benzeções e orações operadas em ligação com sagrado, têm sua eficácia
garantida. Mau olhado, dor de dente, dor de barriga, cobreiro, carne quebrada, quebranto,
espinhela caída, tirar sol… São muitas as causas que necessitam da intervenção de
benzedeiras e benzedores. Contudo, um dos relatos mais recorrentes e que atestam a
eficácia dessas práticas e o poder de quem as domina, se refere à cura de picadas de animais
venenosos. Sobre isto, o senhor Nô conta da vez em que foi picado por uma cobra:
Eu mesmo fui ofendido de cobra uma vez lá na serra e tinha um moço que
trabalhava no garimpo lá no ouro. Ele arrancou a raiz de Canguçu preto que é
veneno, mas para cortar veneno de cobra pode tomar. Ele fez para mim, nunca
tomei coisa ruim igual esse chá que ele fez. Meu pé ficou inchado, mas Deus ajudou
que não precisou ir para o médico não. E foi a jararaca que me mordeu. Podia ter
morrido, mas se não fosse ele a base de deus. Podia ter morrido porque eu não
268
dava conta nem de montar a cavalo para ir embora.
E a senhora Geralda conta sobre a ocasião em que sua filha foi picada por um
escorpião:
Eu não era muito crente em [Benzeção]. Assim, eu sabia, mas eu não tinha... assim,
eu achava que... Até no dia em que eu estava aqui com minha filha pequena e o
escorpião pegou ela de noite [...] Aí meu pai veio com a lamparina, iluminando assim
e falou: "aí, ó!". E meu pai ficou assustado porque ele [o escorpião] era muito mais
velho do que ela, porque eles falam que a quantidade de anos que eles têm são os
nozinhos no rabo. Aí na hora meu pai benzeu. Ele tinha uma raiz, Canguçu, que ele
andava com ela em uma bolsinha de pano, que ele andava com ela de um lado. Ele
socou essa raiz, pôs água, deu a ela para tomar [...] Aí nós subimos carregando ela,
de noite e ele ficou esperando a gente e eu levei ela. Só que chegou lá e o médico
falou: "Oh, se tinha que acontecer alguma coisa já... você vai tomar vacina, tudo, mas
o perigo já passou". Então parece que é a benzeção. Nesse dia eu comecei a
acreditar. A benzeção tem o poder porque é... eu já vi muita gente aqui que cobra
mordeu e benzeu e nem saiu daqui. Nunca ninguém saiu daqui por mordida de
269
cobra. Então a gente vê que a benzeção tem muito valor para nossa comunidade.
268
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019].Pé de Serra.
269
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sempre-Vivas. [19 de dezembro de 2019]. Diamantina.
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Esse ano mesmo, eu tava na serra com uma mula lá, que eu fui pegar uma carga lá,
a mula adoeceu de dor de barriga. Aí eu liguei pra minha mãe, pedi pra ela pra
curar a mula. Ela fez o benzimento lá, a mula sarou. Então a gente usa essas
271
práticas.
270
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
271
SOUZA, Aldair José de. Sempre-Vivas [18 de dezembro de 2019]. Lavras.
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de manusear uma raiz para fazer um chá, serão apenas algumas que terão acesso ao plano
do mistério e do segredo envolvidos nas técnicas curativas.
Figura 26. Afro Alves segurando garrafa com ervas de propriedades medicinais.
Fonte: Acervo Iepha - MG.
Por fim, em termos da flora nativa, o âmbito econômico das famílias é outro ponto
no qual os usos se fazem presentes, através da geração de renda advinda da venda de frutos
secos, cipós, folhas, sementes, cascas, musgos etc. Dessa maneira, juntamente com as flores
Sempre-vivas e os botões, estes produtos estão inseridos no mercado principalmente com
finalidade decorativa. Porém, assim como ocorre no caso das flores e dos botões, a venda
destes produtos de ornamentação é feita na forma bruta, em grandes quantidades e
geralmente, a um valor baixo para os apanhadores (as) de flores, que são o principal elo
dessa cadeia produtiva. Esta comercialização ainda pode estar sujeita às flutuações na
demanda, sendo que alguns produtos podem ser mais comercializáveis do que outros a
depender da época e da procura externa.
O manejo é feito nos distintos ambientes dos territórios, abarcando desde as partes
altas da Serra às cotas baixas, pois são de variadas espécies vegetais que são extraídos. A
coleta é feita de componentes específicos da flora nativa, "sendo agrupados os produtos
segundo as partes das plantas que são colhidas: folhagens, hastes, bainhas (brácteas),
sementes, frutos secos abertos com formatos diversos, cipós, musgos e líquens", tal como
disse Monteiro (2019)272. De maneira distinta dos saberes desenvolvidos especificamente
272
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 285.
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para a coleta das flores e dos botões, para estes produtos vegetais comercializáveis, não é
costume a utilização do fogo como parte do ciclo de reprodução vegetal. Nestes casos, os
apanhadores (as) de flores possuem conhecimento do tempo em que cada parte de
interesse da planta está pronta para ser colhida.
A variedade de produtos ornamentais coletados perfazem quase 300 diferentes
tipos.273 Canoinha, Cangaia de Sapo, Balancinha, Escova de Macaco, Tiborna, Cinzeirinho e
Arco são uma pequena amostra destas coletas.274 Isto coloca em perspectiva, que os modos
de vida dessas coletividades não englobam apenas o conhecimento dos diversos ambientes
de suas territorialidades tradicionais, mas também das potencialidades máximas que as
plantas presentes nestes ambientes fornecem. Isto se refere ao manejo da vegetação nativa
como um todo, em que uma mesma planta chega a possuir diferentes usos, a depender do
componente que se quer dela extrair.275
Além da flora, é importante mencionar que o manejo da fauna para subsistência
também se integra à história das experiências sociais, culturais e ecológicas das coletividades
que desenvolvem o SAT. Em um primeiro plano, esse manejo está relacionado à pesca, que é
realizada em determinados períodos do ano por algumas comunidades, estando no
momento presente, associada mais a uma atividade lúdica do que propriamente a um
elemento que conforma a base da cultura alimentar das famílias, conforme menciona
Monteiro (2019).276 Isso é corroborado pelo dado de que somente 26,11% da amostra
pesquisada por Costa Filho (2008) em comunidades apanhadoras de Sempre-vivas, apontou
que a pesca seria utilizada como um item alimentar.277
A atividade da pesca teve uma ocorrência maior no passado, especialmente dentre
as comunidades que se encontram às margens dos rios Jequitinhonha e Jequitaí, como é o
273
Conforme levantamento feito por Isopo, 2019 apud. MONTEIRO, 2019, p. 285.
274
Estes nomes foram fornecidos pela senhora Adilma Santos durante o trabalho de campo na comunidade de
Pé de Serra. Adilma disse que não se costuma vender menos do que um quilo dos produtos, sendo que em
torno de 3 Kg de Canoinha, 2 Kg de Cangaia de Sapo e 7 Kg de Balancinha, para ser viável economicamente às
famílias.
275
Este dado ficou patente na ocasião da oficina "Agroextrativismo" que integrou a programação do II Festival
da Panha.
276
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019.
277
COSTA FILHO, 2014 apud. MONTEIRO, Fernanda, 2019, p. 306.
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caso, por exemplo, de Vargem do Inhaí. Nesta comunidade, a pesca artesanal com anzóis e
redes no rio Jequitinhonha era uma prática incorporada ao âmbito cotidiano, além de
integrar-se à dieta alimentar das famílias. Entretanto, esta atividade foi duramente afetada
após a instalação de um empreendimento minerário e a consequente degradação do rio
devido ao assoreamento e a emissão de produtos tóxicos pela atividade extrativa.
Já no contexto das comunidades do sertão, quando foi perguntado a respeito desta
atividade na comunidade Pé de Serra, o senhor Nô respondeu que, atualmente, a pesca é
pontualmente praticada por alguns moradores, e que, antigamente: “como tinha mais água
dava mais peixe, aí o povo pescava mais. Agora é pouca gente que pesca porque quase não
está tendo peixe também. Lá em Lavras que sempre tem. Lá no Jequitaí tem muito peixe. O
povo pesca mais.”278
Em um segundo plano, o manejo da fauna se refere à caça para subsistência, uma
prática cujo discurso é pouco enunciado. Isto porque este assunto tornou-se um tabu entre
as comunidades tradicionais de um modo geral, já que a legislação ambiental brasileira
vigente criminaliza a caça, desconsiderando as especificidades da prática para subsistência
entre os povos e comunidades tradicionais.279
Nos relatos de apanhadores (as) de flores, o manejo da fauna aparece como uma
atividade relativa à memória, sendo comumente praticada pelos antigos. Tal como no caso
da flora nativa, as narrativas sobre caça apontam saberes específicos e seus diferentes usos.
Assim, por exemplo, um relato proveniente de Pé de Serra conta que durante a época de
mudança para a Serra, com o leite das vacas levadas para as chapadas produzia-se queijo,
que integrava a alimentação das famílias. Neste modo de fazer, era comum que o coalho
para o preparo fosse feito com o bucho do mocó, que é o nome popular dado a um pequeno
roedor dos ambientes do Cerrado.
Portanto, se faz necessário tratar este assunto de um modo desmistificado e
descriminalizado, para que haja dados mais concretos a respeito da história destas práticas e
os saberes associados nelas contidas. Uma vez que a caça constitui um recurso natural
278
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Pé de Serra.
279
No Brasil, somente a Lei 6001/1973 que institui o Estatuto do Índio reconhece explicitamente a caça como
parte da identidade destes grupos originários.
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280
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014.
281
Ibid., p. 39.
282
ALVES, Maria de Fátima. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Diamantina.
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aponta o documento, a água é concebida com uma das maiores riquezas disponíveis na
natureza e que foi herdada a partir de sua preservação pelos ancestrais, cujos ensinamentos
continuam no horizonte de vida dessas comunidades: "a água é tudo pra nós, ela que dá
condição de vida. E aqui na serra nós tâmo bem servido, mas tem que cuidar pra não faltar.
É assim desde o tempo dos antigo"283
283
Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço Meridional (FAO - ONU). GIAHS: Globally Important
Agricultural Systems. Brasil; FAO-ONU; 2019, p. 40.
284
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 39.
139
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Brasil, por abastecer diferentes bacias hidrográficas do país. Assim, a gestão das águas feita a
partir dos saberes tradicionais de apanhadores (as) de flores no contexto deste SAT, soma-se
a de outros povos tradicionais, frente à destruição sistemática deste bioma.
Por fim, pode-se pensar que o garimpo artesanal está igualmente inserido na
dimensão do manejo dos ambientes da Serra do Espinhaço, no contexto do SAT dos
Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas. O estabelecimento dessas comunidades nos
territórios esteve, para além da produção agrícola, estreitamente vinculada à atividade
garimpeira, especialmente em relação às comunidades quilombolas. Neste sentido, a
história do processo de territorialização de Vargem do Inhaí é exemplar a este respeito:
Todo mundo aqui garimpava, mas todo mundo aqui garimpava, mas plantava.
Tinha as épocas de mexer com o garimpo e tinha a época de mexer com a planta.
Na seca o povo num plantava, [garimpava] então nas água, ficava mexendo com
planta, tinha as época certa do mês, na época da planta, todo mundo ia mexer com
286
planta.
285
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 66.
286
INCRA. Relatório Antropológico de Mata dos Crioulos. 2014, p. 50.
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uma folgazinha e plantava uma roça num sábado, um domingo, e aí juntava mãe
287
com ele e as crianças pra cuidar das roças.
287
ALVES, Maria Terezinha; ALVES, Ercílio; ALVES, Eliad Gisele. Sempre-Vivas. [04 de março de 2020].
Comunidade Raiz.
288
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sempre-Vivas. [19 de dezembro de 2019]. Diamantina.
289
O documentário "Terra deu, Terra come" (2010) do diretor Rodrigo Siqueira, filmado na Comunidade
Quilombola de Quartel do Indaiá, em Diamantina mostra, através da história de Pedro de Alexino, esta relação
com o garimpo.
142
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Desde criança. Parece que eu quando eu estava no ventre da minha mãe eu já subia a serra [...] E de
primeiro para a gente sobreviver tinha só a sempre-viva.
Eu aprendi com meus pais né, que desde criança, como diz, bebê né, porque levava o menino assim,
criança de idade de dois meses, três meses já tava pra chapada afora. Eu mesmo fiz isso com meus
filhos.
Nessa época panhava só sempre-viva. Aí minha avó mais a minha irmã mais velha já ia com ela pro
campo panhar sempre-viva [...] A minha irmã conta que ela começou a ir pro campo com a minha
avó, ela tinha sete anos. [Hoje ela tem] mais de oitenta.
E tinha uns outros moradores, da época da minha mãe, da minha avó... Dessa época que eles subiam
pra soltar o gado e panhar flor. Porque minha avó conta que de pequenininha, que ela já ia para lá
panhar flor.
As citações que abrem este tópico são de moradores das diferentes localidades que
desenvolvem o SAT. Todas elas mostram o modo como a atividade de coleta das flores
Sempre-vivas se confunde à própria existência, aos elos familiares e comunitários, além das
dimensões ancestrais e de configuração das territorialidades específicas de apanhadores (as)
de flores da Serra do Espinhaço Meridional. Sobretudo, a atividade se impõe como central
para essas coletividades do ponto de vista econômico e político, estabelecendo-se como
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uma das principais fontes de renda das famílias e instrumento de auto identificação étnica e,
consequentemente, de lutas coletivas.
Essas inflorescências se encontram nos ambientes dos campos rupestres do bioma
do Cerrado, que estão localizados nas maiores altitudes da Serra do Espinhaço. Por essa
razão, em algumas comunidades faz-se referência às Sempre-vivas como campinas, que se
relacionam aos seus locais de proveniência, ou seja, os campos. A terminologia geral
Sempre-vivas que é mais popular engloba uma gama de diferentes tipos de flores, além dos
chamados botões. A respeito das diferentes nomenclaturas, Monteiro (2019) fornece o
seguinte panorama:
Comumente, entre as comunidades, o termo “flores” reporta-se às inflorescências
esbranquiçadas, com formato de “margaridinha”, já as que possuem outras formas
e cores são chamadas de “botões”. Os comerciantes, por sua vez, utilizam o termo
“flores secas”, distinguindo o grupo das “Sempre-vivas” e o grupo dos “botões”,
enquanto os consumidores denominam todas como “Sempre-vivas”, termo
popularizado no comércio local e nacional. Já no mercado internacional de artigos
ornamentais, o termo “flores secas” é mais comum, trata-se de um produto, em
grande medida, exportado para Estados Unidos da América, países da Europa e da
290
Ásia e para o Japão.
290
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 276.
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este respeito, o senhor Afro Alves descreve o calendário da panha que se verifica nos
campos da região de Pé de Serra:
As flores Sempre-vivas vão começar no mês de abril e maio é sempre-viva. Abril e
maio. Junho, julho, [é] jazida, só que ela passa um pouco, mas tem que panhar
rápido [...] Junho e julho [é] jazida. Aí na jazida vem o botão branco, mais ou menos
igual, passa um pouquinho pra frente, agosto, botão branco. Essa não pode
demorar muito pra panhá não, porque pode empretecer. Depois do botão branco,
vem o botão amarelo, que eles falam "espeta nariz", sabe? Nesse, mais ou menos,
panhando a jazida, a sedinha tá quase boa também. Agora, a flor cachorrinha, pode
panhá também. E vai seguindo. Quando é dezembro tem a janeirona. Dezembro,
janeiro a gente panha ela. E tem a toloba, eles levou ela pra lá, tem a toloba que é
mês de janeiro que é o certo. Se passar janeiro ela empretece. E tem a carrasqueira
também, é sempre-viva, tem a carrasqueira. A carrasqueira é mais ou menos
fevereiro, março por aí. Aí vai seguindo, botão amarelo é até dezembro. Aí já tá
chegando janeiro de novo. Aí vem a flor janeirona, boa demais. Aí vem janeiro,
291
fevereiro, março, abril começa de novo. Então vai direto.
291
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra.
145
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Do Renegado vai seguindo, Campo Triste que o parque tá envolvido, mas o pessoal
tá tudo panhando, toda vida panha. Do Campo Triste vai seguindo, Fundo da Lagoa,
já pertencendo, eles tão querendo mandar, mas tá pertencendo a nossos
documentos, nosso território. De lá, passa pra Campo João Alves. Campos João
Alves, já vai [para a] Fazenda São Caetano. Em cima: Pisa-pisa. Nós panha flor. E
Pisa-pisa tem, do outro lado, Água Limpa. É onde que tenho um barraco, cria os
292
bichos lá e panha flor a vida inteira.
292
Ibid.
293
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 282.
294
Ibid., p. 282.
295
Ibid., p. 279.
146
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básica para acomodar os moradores nas temporadas da panha, recebendo o mesmo cuidado
direcionado às unidades familiares das cotas baixas: "[A gente] acende o fogo também na
lapa. E a fornalha lá, inclusive minha fornalha lá, na lapa que eu fiquei esse ano, tá clarinha
igual tá essa aí [apontando para o fogão branco pela tabatinga recém passada]".296
Especialmente em tempos passados, dada a intensa circulação de pessoas no alto da
Serra, havia espaços montados para vendas de bebidas e comidas e variados momentos
festivos dentre forrós, bailes, aniversários etc. Há pessoas que falam que conheceram
companheiros(as) durante a panha e pessoas que dizem ser filhos(as) desses encontros
sobre a Serra:
E de primeiro tinha forró, muito! Muito forró [...] De primeiro tinha essas
radiolinha. Quando tinha um rádio, muitos até sabia o que era... muitos anos atrás.
Muitas pessoas me contam também, mais velhos do que eu, né? Aí fazia o forró lá,
uma pessoa assobiando pros outros dançar... Namorava! Nossa Senhora, também
297
já namorei lá demais [...] isso é o normal... é uma vivência!
296
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
297
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra.
298
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 279.
299
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de outubro de 2019]. Pé de Serra.
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sentido estrito do termo, sendo comum ouvir que apesar do corpo cansar, a cabeça
descansa em cima da Serra:
Muitas pessoas fala que sofre muito. A gente sofre! Mas eu sofro gostando desse
sofrimento, sabe? Eu nasci e criei.. eu gosto disso aí. Se eu ficar muito tempo sem ir
lá, eu acho que eu adoeço. Quando eu chego lá, às vezes tô preocupado com
alguma coisa, aí tem tanta coisa pra gente enxergar, a mente fica limpinha,
300
limpinha. O sono mais gostoso, a água tudo limpinha.
300
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra.
148
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muito longe, aí fico lá oito dias... até eles acertarem alguma coisa. Faltou alguma
coisa de comer? Pega o animal, vem cá e busca. Porque lá não vai carro, lá vai carro
muito longe para rodear. Vem cá, busca alguma coisa de comer, volta. E vai enfia
301
trinta, quarenta [pessoas] para panhar as flores. É desse tipo assim.
Aprende-se a panhar Sempre-vivas somente indo aos campos, o que ocorre ainda na
primeira infância com as crianças acompanhando as famílias na lida com as flores e/ou gado,
como fica evidente em algumas das citações que iniciam este item do estudo. Além de
adquirirem as habilidades necessárias com relação aos diversos conhecimentos envolvidos
no manejo das Sempre-vivas, bem como, dos ambientes da Serra do Espinhaço em geral, as
crianças têm nesta atividade uma de suas primeiras relações com dinheiro advindas do
trabalho com a terra: "Se não tiver no tempo da escola, até menino desse tamanho aqui faz
dinheiro [apontando para neta de cerca de cinco anos de idade]".303
Como se pode observar, o período escolar influencia na presença e permanência das
crianças na Serra durante a época da panha. Sendo assim, as crianças e os jovens em idade
escolar costumam participar da panha no geral, somente aos fins de semana, férias e
feriados, uma vez que o sistema escolar local não é adequado aos modos de vida
diferenciados desses alunos.
Os saberes tradicionais desenvolvidos ao longo do tempo em relação ao manejo das
Sempre-vivas envolve uma série de tópicos que visam, em última instância, a manutenção
das plantas no ambiente e a oferta presente e futura deste recurso natural. Assim, em um
301
SANTOS, Afro Alves dos. Sempre-Vivas. [15 de junho de 2019]. Pé de Serra.
302
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
303
Ibid.
149
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primeiro plano, um saber que está relacionado à própria possibilidade de existência das
Sempre-vivas diz respeito ao manejo tradicional do fogo.
Em geral, o fenômeno natural do fogo possui uma "feição inimiga" decorrente de seu
poder de destruição e dos prejuízos ambientais e materiais dele advindos. Quando
expressada pelos incêndios florestais esta feição ganha contornos ainda mais perceptíveis,
de modo que até fins do século XX predominou o paradigma do "fogo zero", em que a
supressão total do fogo em alguns biomas foi instituída como política ao redor do mundo.304
Contudo, estudos apontam que alguns biomas dentre os quais o cerrado brasileiro, são
predispostos a determinados regimes de queima tendo no fogo um dos elementos centrais
na constituição de sua biodiversidade.
Estudos recentes (Fidelis e Pivello, 2011; Durigan e Ratter, 2016; Schmidt et al.,
2018) apontam que sem o fogo este bioma tende a adensar sua vegetação florestal
em detrimento do estrato herbáceo (gramíneas e arbustos), onde se localiza cerca
de quatro quintos de sua biodiversidade. Isso porque o fator de seleção provocado
pelo fogo inibe o fechamento dos dosséis arbóreos, favorecendo o ambiente para
305
espécies endêmicas dos estratos inferiores.
Esta percepção encontra-se no bojo dos modos de ser, fazer e viver territorializados
de camponeses, povos e comunidades tradicionais estabelecidos neste bioma, apesar dos
processos de criminalização historicamente empregados às suas práticas tradicionais de
manejo do fogo. No caso de apanhadores (as) flores, esta criminalização alcançou seu ponto
máximo com a intrusão de unidades de conservação em suas terras de uso comum e a
proibição do acesso e permanência na Serra.
Para as comunidades que desenvolvem o SAT o manejo do fogo é um saber que se
faz presente, para além da produção das roças, no estímulo à brotação de alguns tipos de
Sempre-vivas e de gramas nativas para pastoreio do gado. Isso é necessário devido às
condições desses ambientes, conformado por um conjunto de características como solos
mais arenosos e temperaturas mais baixas devido a altitude. Monteiro (2019) apregoa que
"essas condições resultam em menor atividade biológica no solo e, com isso, menores taxas
304
FAGUNDES, Guilherme Moura. Fogos Gerais: transformações tecnopolíticas na conservação do cerrado.
Tese (Doutorado em Antropologia). Universidade de Brasília, 2019, p. 22.
305
Ibid., p. 22.
150
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O período específico para promover o manejo do fogo nos campos varia entre os
meses de abril a junho, por ser um período em que a umidade do ar ainda está
relativamente alta. Os meses subsequentes não são propícios ao fogo: "Se queimar julho,
agosto, setembro, acaba com o capim e a flor sempre-viva, a raiz".308 O tempo chuvoso é o
indicativo do momento em que o fogo deve ser ateado:
Na hora que dá uma lubrina, uma chuvinha, aí você aproveita aquela chuvinha que
deu, aquele mormaço, você vem e põe fogo. Aí o fogo só queima ali o lugar que
você tá querendo. Só queima naquela parte que você precisa. O fogo não entra em
lugar pra atrapalhar capão de mato, só queima ali naquele lugar porque se você
pôr o fogo num tempo muito seco, não tiver chovendo, aí o fogo lastra por todo
lado. Mas se choveu hoje cedo, quando for de tarde dá aquele mormaço, você
aproveita e passa o fogo. Aí queima aquele capim que tem ali, a flor sai
309
rapidamente. Porque não estraga nem a flor e nem o mato.
306
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 243.
307
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
308
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Pé de Serra.
309
CORREIA, op. cit., 2019.
151
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310
Cf. TSING, Anna L. Em meio à perturbação: simbiose, coordenação história e paisagem. In: Viver nas ruínas:
paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.
311
SANTOS, Antônio Bispo dos. As fronteiras do saber orgânico e o saber sintético. In: Marona, Marjorie
Côrrea; Oliva, Anderson Ribeiro (Eds). Tecendo Redes Antirracistas: Áfricas, Brasis, Portugal. São Paulo:
Autêntica, 2019.
312
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
313
Em seu estudo a respeito dessas espécies, Fernanda Moreira (2010) diz que com o auge da comercialização
entre as décadas de 1970 e 1980, chegando a grandes volumes exportados, a atividade de coleta se expandiu
consideravelmente. Segundo a autora, "embora a exploração excessiva e indiscriminada seja citada como a
principal causa da redução das populações de Sempre vivas no campo, pode-se dizer que a falta de normativas
152
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discurso fez com que algumas das espécies mais populares, tal como a "pé-de-ouro"
(Comanthera elegans) passassem a figurar na "Lista Vermelha" dos órgãos ambientais como
risco de extinção314. Contudo, a percepção local de apanhadores (as) contraria tal lista, já
que a flor pé-de-ouro é uma das mais abundantes dos campos de coleta.
De acordo com Monteiro (2019), não há estudos científicos que sustentem tais
afirmativas e "para encobrir a ausência de dados, justificaram tais decisões com o 'princípio
da precaução', o que foi seguido de aplicação contraditória de normativas". 315 Ao não
considerar as especificidades dos saberes de apanhadores (as) de flores em relação ao
manejo das Sempre-vivas, colocando-os em patamar de igualdade ao da exploração
capitalista das flores, os órgãos ambientais imputam-lhes sanções que criminalizam
duramente os modos de vida etnicamente diferenciados desses grupos.
No sentido de seus saberes específicos, a panha obedece a outros princípios de
manejo para além do uso do fogo, que compõem o "trabalho colaborativo" entre as Sempre-
vivas e apanhadores (as) de flores nas paisagens da Serra do Espinhaço Meridional.316 Um
deles refere-se ao modo como a coleta é realizada, no sentido de não retirar todas as flores
dos campos de uma só vez. A parcela deixada é chamada de restolho e visa à manutenção
das flores e dos botões no ambiente.317 O restolho, segundo uma quilombola das beiras do
Jequitinhonha, são aquelas flores "fracazinhas que tem lá, que a pessoa não cata mais não,
deixa lá pra semente. Esse que é o restolho, que a bem dizer já acabou. Fica só aquele
restolho".318
Outro princípio tradicionalmente desenvolvido diz respeito ao modo como as flores
são organizadas após serem coletadas. Para facilitar o transporte das Sempre-vivas dos
campos até ranchos, lapas e/ou até as unidades familiares para sua posterior
comercialização, são formados buquês após deixarem-nas secar por um ou dois dias.
que estabeleçam os procedimentos de coleta e comercialização tem contribuído, pelo menos em parte, para o
manejo inadequado nas áreas de ocorrência" (2010, p. 2).
314
Disponível em: <http://cncflora.jbrj.gov.br/portal/pt-br/listavermelha> acesso em 26/04/2021.
315
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 294.
316
TSING, Anna L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.
317
A respeito do controle diferenciado dos usos deste recurso conforme o regime agrário das comunidades,
ver Monteiro (2019).
318
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
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Durante esta preparação as flores são penteadas, o que inevitavelmente lança sementes ao
chão, devolvendo-as aos ambientes. Mesmo durante os deslocamentos há esta reposição de
sementes pelos caminhos percorridos, transformando quilombolas e apanhadores (as) de
flores em "semeadores".319
319
MONTEIRO, Fernanda Testa. Nas fronteiras das Minas com os Gerais… 2019, p. 285.
320
A este respeito, a Codecex contratou um estudo a respeito da cadeira de comercialização das flores
Sempre-vivas, como parte das ações do Plano de Conservação Dinâmica.
321
Sobre o detalhamento de como se dá a questão da comercialização: Monteiro (2019).
322
MOREIRA, Fernanda da Conceição. Avaliação de sistemas de cultivo das Sempre-vivas Comanthera elegans
(Bong.) L.R. Parra & Giul. E C. bisulcata (Körn) L.R. Parra & Giul. Dissertação (Mestrado em Produção Vegetal).
Diamantina: Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, 2010.
154
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Contudo, apesar da flor ser produto no qual o comércio é tecido nos circuitos do
mercado capitalista, para apanhadores (as) de flores "a flor não assume o sentido pleno de
mercadoria" conforme aponta Monteiro (2019):
[...] Embora essa produção tenha relação com a demanda dos comerciantes, as
famílias têm controle sobre seu tempo, seu trabalho e decidem se vão colher ou
323
não num determinado ano segundo a conjuntura familiar e os preços ofertados.
Por outro lado, a flor participa de forma definitiva na geração de renda das famílias,
sendo que estas acabam por ficar vulneráveis às oscilações do mercado de preços. Isto vem
sendo fortemente verificado no período da pandemia de Covid-19, no qual a demanda
sofreu variações e o preço diminuiu de forma significativa, se comparado aos anos
anteriores.324 Portanto, uma das principais demandas dos apanhadores (as) com relação às
flores refere-se à cadeia de valor e geração de renda, que é um dos eixos do Plano de
Conservação Dinâmica.
As singularidades relacionadas aos aspectos espaço-temporais determinadas pelos
padrões produtivos das flores Sempre-vivas integram-se, portanto, às construções de
mundos de apanhadores (as) de flores, em uma relação de via de mão dupla. Nos ambientes
dos campos da Serra do Espinhaço, estes grupos sociais criaram experiências colaborativas
entre espécies humanas e não-humanas, a partir de uma economia específica erigida por
meio de um conjunto de práticas e de significados que unem essa diversidade entre
espécies.
Pensando no contexto do SAT, a necessidade de obtenção de renda como meio de
reprodução social e cultural de determinadas coletividades territorializadas na região da
Serra do Espinhaço, fez com que se operasse uma ligação entre as Sempre-vivas e aqueles
que as coletam. E não somente entre eles, mas também entre demais produtos do cerrado e
apanhadores (as), entre gado e apanhadores (as), entre fogo e flores etc. De tal maneira, é
na paisagem do alto da Serra do Espinhaço que estas relações se forjam, assim como são
323
MONTEIRO, op. cit., p. 285.
324
Este dado foi trazido pelos(as) apanhadores (as) durante a reunião do Comitê Gestor do Plano de
Conservação Dinâmica ocorrido em abril de 2021.
155
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325
OLIVEIRA, Ana Gita, 2010 apud. EMPERAIRE, Laure. Patrimônio Agricultural e modernidade no Rio Negro
(Amazonas). In: CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (Orgs.). Políticas culturais e
povos indígenas. São Paulo: Editora UNESP, 2016, p. 65.
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326
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
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[A fazenda] lá tem o cemitério. Dizem que até gente mesmo, gente adulta mesmo
ele enterrou lá. Tem gente aqui da comunidade que morreu e eles enterrou lá, mas
só que não era no meu tempo. Foi no tempo dos antigos [...] Aí a gente ficou
sabendo né, que lá até gente adulta enterrou lá. Que lá tem o cemitério lá de
pedreira, que ela até já desmanchou bem as partes dela lá, mas ainda tem um
comprovante como era. Foi feito de pedreira pra num entrar nada com toda
327
certeza. Lá tinha capela, de velar os defuntos, lá nessa fazenda.
Como se pode observar a partir das narrativas, são sítios que também informam a
respeito de eventos traumáticos e sensíveis relacionados aos horrores da escravização dos
antepassados, que persistem até o tempo presente. Neste caso, a perpetuação das violações
e violências direcionadas a esta comunidade dá-se, no contexto atual entre outras, na
ocupação da sede da fazenda pela gestão do IEF e a consequente impossibilidade dos
moradores da comunidade de acessarem livremente os locais.328 Portanto, a desocupação
da Fazenda é uma demanda coletiva e, se efetivada, torna-se um gesto do conjunto de
reparações históricas direcionadas a esse grupo social.
O território quilombola de Vargem do Inhaí também apresenta construções que
foram erguidas pelos antepassados dos atuais moradores durante o período escravista da
sociedade mineira de séculos passados. As reminiscências dos muros de pedras são,
portanto, "cruciais no processo de entendimento dessa coletividade negra", remetendo-lhe
"ao passado de opressão tanto no período escravista quanto no período recente da história
brasileira".329
Por fim, ainda com relação a tais marcos construtivos, é importante mencionar o sítio
que está localizado a cerca de três quilômetros do atual distrito de São João da Chapada,
também localizado no município de Diamantina e que se vincula à memória social do
garimpo de diversos povoados e comunidades da região.330 Estes vestígios que atualmente
se encontram em uma propriedade rural particular, são do antigo povoado setecentista
denominado Chapada Velha. Caracterizam-se por um conjunto de muros de pedras,
327
Ibid.
328
De acordo com os próprios moradores, o Ministério Público está intervindo na questão.
329
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 47-48.
330
Além do próprio distrito de São João da Chapada, a comunidade de Macacos e também a Comunidade
Quilombola de Quartel do Indaiá, dentre outras.
159
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calçamentos, alicerces, currais e canais de abastecimento de água, além das ruínas de uma
cadeia.331
Além das reminiscências em pedra, as territorialidades das comunidades de
apanhadores (as) de flores são assinaladas pela presença de cruzes, cuja materialidade
ajuda a narrar as dinâmicas imateriais, sobretudo, aquelas relacionadas ao sagrado dos
grupos sociais. Presente na frente de igrejas, na entrada das casas, em encruzilhadas e
caminhos, nos montes ou altos de morros, a cruz "detém o tempo, imobiliza a duração, tece
o tecido do sistema cultural em torno de um objeto permanente que, por si só, escapa à
dissolução geral, à morte...".332
Especialmente em comunidades onde predomina o catolicismo popular, como é o
caso de Pé de Serra, as cruzes e os cruzeiros são observados com regularidade como
símbolos de devoção aos santos, homenagens aos mortos e local onde são direcionadas
orações. A elas são dedicadas enfeites e rezas no dia de Santa Cruz celebrado anualmente
em 03 de maio, bem como acompanham as bandeiras festivas e recebem as penitências de
chuva.
331
NETO, João Antônio Motta. Patrimônio geomineiro em Diamantina (MG). Caderno de Geografia, v. 28,
Número Especial 1, 2018.
332
DUVIGNAUD, Jean. El sacrificio Inutil. México: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 66 (tradução nossa)
160
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333
INCRA.Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014.
161
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334
Ibid., p. 53-54.
335
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
336
As técnicas construtivas permanecem sendo de pessoas das comunidades.
162
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lombo do burro. De primeiro a gente serrava na serra manual. Que o lugar que a
madeira que com uma hora a gente serra com a motosserra a gente gasta uns três
337
dias com a serra.
337
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019].Pé de Serra.
338
Ibid.
339
Informações obtidas em conversa informal durante visita a campo na comunidade no ano de 2019.
340
SILVA, op. cit.
163
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341
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019].Pé de Serra.
342
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
164
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Figura 34. Construção com cobertura em palha e folhas de palmeiras na comunidade de Mata dos
Crioulos.
Fonte: Acervo Iepha - MG.
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Comunidades
Mês
Pé de Serra Lavras Macacos Vargem do Inhaí
Fevereiro
Época do ano mais provável de incidir o período da Quaresma e a Páscoa, que
Março
343
Em algumas destas comunidades, como é o caso de Vargem do Inhaí, há uma variação de pessoas que se
dizem católicas e daquelas que se dizem protestantes.
344
Tabela baseada no levantamento de dados secundários e de dados primários. Além das missas que
geralmente ocorrem semanalmente ou quinzenalmente, há celebrações de outras datas do calendário do
catolicismo, como Corpus Christi e Finados.
166
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Setembro
Novembro
167
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A época seca de meados do ano traz consigo o aumento dos deslocamentos para a
panha de flores em muitas dessas comunidades, além da colheita de determinados produtos
agrícolas. Este momento coincide com os ciclos festivos e a devoção de determinados
345
Estilo de dança e canto de origem africana trazido ao Brasil no período colonial.
346
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019].Pé de Serra.
347
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sempre-Vivas. [19 de dezembro de 2019]. Diamantina.
168
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santos. Para alcançar a proteção na ida e permanência aos campos e ter uma boa colheita de
flores, a São Bento e a Nossa Senhora de Santana são dedicadas orações, assim como um
apanhador de flores e folião de Lavras disse:
Época de panha flor é maio e junho! Quando nós vamos panhar flor, aí nós vamos
lá na capela e fazemos uma promessa, compramos vela e põe lá na capela para
acender para Nossa Senhora de Santana e damos uma gorjeta lá, de esmola para
348
dar ajuda para a festa. Porque todo ano tem a festa nossa aí.
348
SOUZA, Domingos Teixeira de. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Mamonas. Registro do SAT das
Apanhadoras e dos Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone.
Disponível no Acervo documental IEPHA-MG.
349
Apesar de ter esta estrutura geral, as dinâmicas festivas variam no tempo e no espaço. Assim, por exemplo,
no contexto festivo da Comunidade de Pé de Serra, havia duas festas para cada um dos santos padroeiros que
transformou-se em somente uma única, após ação da igreja. Os moradores também disseram durante a festa
de 2019, que estavam vendo a possibilidade de mudar a tradição dos festeiros para uma comissão
organizadora da festa através da igreja. A interferência da igreja ocorreu também na Comunidade de Macacos,
que também tinha duas festas para cada santo de devoção, em janeiro e julho posteriormente sendo
transformada em apenas uma única festa em julho.
169
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Compondo este arranjo festivo há também toda uma parte profana envolvida através
da presença de barracas de comida e de bebida, forrós, danças, preparação e distribuição de
alimentos, cavalgadas, etc. Estas festas geralmente são também o momento de retorno de
familiares que moram fora às suas respectivas comunidades, tornando ocasiões de
encontros, de fortalecimento de laços e de atualização de sociabilidades. O calendário
prossegue com a aproximação novamente do ciclo natalino, em que há plantios e a saída das
folias.
Já nas comunidades protestantes, a conformação das edificações religiosas varia de
acordo com as vertentes evangélicas estabelecidas nos contextos locais. Na comunidade de
Raiz, por exemplo, há somente uma igreja da Congregação Cristã do Brasil que agrega toda a
comunidade. Já em Mata dos Crioulos foi verificada a presença de mais de uma igreja da
Assembleia de Deus, sendo a da localidade de Covão a mais central e de fácil acesso, tendo
sido construída em um terreno cedido por uma das famílias da comunidade.
A inserção de igrejas evangélicas e a conversão dos moradores é um processo que
vem sendo verificado em várias comunidades tradicionais do Brasil, ao longo dos anos.
Tanto em Raiz, como em Mata dos Crioulos tal processo teve início na década de 1970,
sendo que nesta última deu-se a partir do estabelecimento de um pastor externo à
comunidade e de sua família no território.
Com a inserção de uma outra lógica religiosa, novas linguagens, visões de mundo e
discursos foram sendo paulatinamente incorporados à fé de uma parcela da população, ao
170
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passo que manifestações até então praticadas caíram em desuso. Entretanto, essa
transformação social "não representa uma ruptura total com o passado católico popular. O
discurso pentecostal [...] cria uma interface amigável entre o novo e o antigo e a nova
realidade vai sendo cozida lentamente no molho das velhas tradições".350
Os momentos de maior sociabilidade relacionados ao sagrado destes grupos são os
cultos religiosos, as celebrações da Santa Ceia, batismos e outros eventos festivos. Em Mata
dos Crioulos foi dito que acontece durante a época de panha, das pessoas e famílias
descerem para participarem desses momentos:
Finais de semana nós desce pra poder ir pro culto aqui na igreja. Porque os cultos
aqui é dia de quarta, começa na quarta, e tem também quando é semana de ceia, a
semana toda é de oração. Quando é semana de ceia. Começa na segunda e termina
351
no domingo, é que termina a oração.
Nos cultos ou celebrações, algumas famílias costumam receber parentes que moram
distantes da igreja e precisam andar longas distâncias para participarem. É comum trazerem
uma muda de roupa para troca, além de ficar para um café, lanche ou jantar. Determinados
eventos festivos nas igrejas reúnem muitas, evangélicas ou não, demandando mutirão para
preparação dos alimentos a serem consumidos.352
No contexto religioso de Raiz, a igreja ainda enseja o contato da juventude com
determinadas práticas artísticas, principalmente relacionadas à música e ao teatro. Muitos
jovens e crianças da comunidade aprenderam a tocar instrumentos musicais de sopro e de
corda no âmbito da congregação para se apresentarem durante os cultos, sendo que alguns
até se profissionalizam. Ademais, nas ocasiões festivas sempre há montagem e
apresentações teatrais que abarcam temas das crenças religiosas e das questões políticas da
comunidade. Portanto, o teatro possui um importante papel educativo para além do aspecto
religioso, sendo um instrumento de empoderamento coletivo: "A religião na verdade prega
muitos bons princípios, é muito difícil a gente falar de bons princípios porque o outro tem
350
ABUMANSSUR, Edin Sued. A conversão ao pentecostalismo em comunidades tradicionais. Horizonte, Belo
Horizonte, v. 9, n. 22, jul./set. 2011, p. 411.
351
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
352
INCRA. Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural.
Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos. Diamantina: INCRA, 2014., p. 100.
171
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outra visão né, mais assim, sobre ser um ser humano mais humano, a igreja prega muito
isso. E são princípios que a nossa luta não tira isso da gente".353
Apesar da prevalência do catolicismo e do protestantismo no horizonte religioso do
SAT, a visão a respeito do sagrado deve ser ampliada para além da institucionalidade
presentificada nos territórios através das capelas e dos templos, bem como de suas distintas
devoções e doutrinas. No contexto deste SAT lógicas mágico-religiosas de diferentes
matrizes e tradições se entrecruzam e se imbricam, fazendo com que diferentes crenças
estejam sedimentadas dentre as coletividades.
A relação com o sagrado possui, portanto, muitas camadas estando presente em
todos os domínios da vida social. A "biointeração"354 presente nos modos de vida dessas
coletividades compõe um multiverso dessas relações com o sagrado, que se traduzem em
uma diversidade de ordenações e visões de mundo, ritos, celebrações e festejos. A respeito
do conceito de biointeração, Antônio Bispo dos Santos diz que:
Seja essa estreita relação da lógica cosmovisiva politeísta com os elementos da
natureza, é dizer, a sua respeitosa, orgânica e biointerativa com todos os
elementos vitais, uma das principais chaves para a compreensão de questões que
interessam a todas e a todos. Pois sem a terra, a água, o ar e o fogo não haverá
355
condições sequer para pensarmos outros meios.
Tal como foi observado ao longo do estudo, a relação com o sagrado encontra-se em
todos os aspectos deste sistema seja no trabalho por uma boa colheita, nos cuidados
353
CORREIA, Jovita Maria Gomes. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Mata dos Crioulos.
354
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos... 2015.
355
Ibid.
356
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista… 2019, p. 69.
172
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357
Ibid., 70.
358
COSTA FILHO, Aderval. Os Gurutubanos… 2008.
359
CODECEX. op. cit., p. 69.
360
ALVES, Maria de Fátima. Sempre-Vivas. [29 de maio de 2019]. Diamantina.
361
É necessário ter no horizonte que: "Feitiçaria” (assim como "bruxaria", "magia", "sorcellerie" etc.) é uma
tradução precária - especialmente em virtude das implicações pejorativas desta noção ocidental - de termos
africanos que em geral têm sentidos muito mais amplos e poderiam, portanto, ser mais bem traduzidos por
expressões mais neutras como "força oculta" ou mesmo "tipo especial de energia". Cf: GESCHIERE, Peter.
Feitiçaria e modernidade nos Camarões: Alguns pensamentos sobre uma estranha cumplicidade. Afro-Ásia, 34,
2006, p. 9-10.
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362
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 48.
363
É comum que nos estudos sobre esta região desde Aires da Mata Machado, o tópico dos "feitiços" se
encontre vinculado aos cantos dos Vissungos, que são dialetos em línguas banto utilizados pelos negros
escravizados em situações de trabalho, rituais, etc, relacionados às forças mágicas. A este respeito, ver:
JÚNIOR, Oswaldo Giovannini. Vissungos, vissungar, vissungueiros. Sentidos tradicionais e usos contemporâneos
de um ritual fúnebre. Anais da 30a Reunião Brasileira de Antropologia. João Pessoa, 03 a 06 de agosto de 2016.
364
LUZ, Flávia Lucimar Batista da. Uma análise dos vissungos sob a perspectiva das teorias de contato e morte
de línguas. Dissertação (Mestrado em Letras). Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
2016, p. 55.
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Aqui, na comunidade, tem muito feiticeiro, mas a gente não pode falar. Eu mesmo
conheço um grande ali, ele é perigoso. Outro dia, mandaram uma carne cozida
para uma mulher, estava uma beleza a carne, daí, ela desconfiada que fosse feitiço,
resolveu dar a carne para a cachorra da casa. Não demorou muito tempo a
cachorra apareceu morta. Ou seja, era feitiço. Aqui mesmo, quando a gente está
trabalhando no rancho fazendo comida, quando há muita gente, a gente não pode
sair de perto das panelas porque você não sabe o que passa na cabeça das pessoas.
Alguém pode colocar alguma coisa dentro da panela. Tem muita gente ruim nesse
365
mundo. Eu tenho é muito medo!" (Moradora).
365
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 45.
366
Informações que foram coletadas em conversas informais durante viagem realizada no ano de 2019.
367
As narrativas não apontaram desde quando o dialeto é praticado e o seu alcance territorial. Contudo foi
dito que em uma ocasião, um parente da comunidade de Espinho, que é o lugar de proveniência de Pai Velho
respondeu com o mesmo dialeto a uma conversa.
175
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comunidades, geralmente mais velhas. Estas narrativas versam sobre uma infinidade de
tópicos, dentre eles, o da vivência nos ambientes da Serra e a relação com as características
naturais dos territórios, elaborada junto a uma grande capacidade criativa e de imaginação,
assim como consta a narrativa de um contador de estórias reconhecido pela comunidade Pé
de Serra:
Eu via esse tio meu, que era tio do meu pai, e aqui não existia comércio não, não
tinha médico aqui em canto nenhum, quando adoecia uma pessoa, tinha que ir lá
em Diamantina. Então era o tio de meu pai adoeceu, ele mandou um “nego” de
noite ir lá em Diamantina buscar o remédio. Quando ele veio meia-noite uma onça
pulou nele aqui na descida da serra, tem lá a pedra até hoje. É vargem ao redor e
tem a pedra, a pedra alta, da altura disso aqui ó, no meio da vargem. Ele pulou em
“riba” dessa pedra fugindo da onça e a onça pulava e punha as mãos em cima
assim ó. E ele estava com o facão na cintura, ele riscava o facão na pedra assim e
saia aquelas faíscas de fogo, ela pulava lá no chão. Aí ela tornava a pular em riba,
batia as mãos, querendo pegar ele, ele tornava a passar o facão, tornava... foi até o
dia amanhecer. Na hora que o dia amanheceu ela sumiu, aí agora que ele desceu e
veio embora, umas coisas também que parecem mentira, mas não é mentira
368
isso.
368
VIEIRA, João. Sempre-Vivas [10 de novembro de 2019]. Pé de Serra. Registro do SAT das Apanhadoras e dos
Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone. Disponível no Acervo
documental IEPHA-MG.
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Para além da linguagem enquanto sua forma falada e escrita, há também uma
diversidade de expressões da linguagem corporal presentes no arcabouço das
imaterialidades deste SAT. Uma delas é a capoeira, que é verificada no contexto local de
Raiz. Conforme relatos de seus moradores, esta expressão cuja dinâmica engloba ao mesmo
tempo a dimensão de jogo, da dança e da brincadeira370 já era praticada no contexto
comunitário entre as crianças e os jovens, mesmo que a comunidade não se referisse a ela
como "capoeira". Assim, do modo como foi constituído neste contexto, a capoeira se integra
mais como um momento lúdico dos jovens desta coletividade.
369
ALVES, Eliad Gisele. Meu pedacinho de céu. Presidente Kubitschek: Edição própria, s/d.
370
Cf: BRASIL. Inventário para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil. IPHAN,
2007.
177
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371
SILVA, Antônio Carlos da Cruz. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Pé de Serra.
178
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Se por um lado determinadas práticas foram caindo em desuso neste contexto local,
outras manifestações emergiram como uma grande potência política e cultural. Em Vargem
do Inhaí a juventude, especialmente feminina, organizou um grupo cultural de dança afro.
Esta expressão está em estreita ligação com os processos de organização política da
juventude no sentido de afirmação de sua identidade negra e quilombola, da cultura afro-
brasileira, da preservação das tradições, da defesa do território e de demais direitos
coletivos.
As apresentações do grupo geralmente se dão em momentos festivos dentro e fora
da comunidade, o que pôde ser observado durante o II Festival da Panha que ocorreu na
comunidade Pé de Serra, em 2019. Nesta ocasião, o grupo de dança apresentou-se com
uma formação de três dançarinas descalças e vestidas com trajes e turbantes feitos em
tecidos de padronagens africanas, além de pinturas corporais. A dança consistia em
movimentos coreografados ao som de músicas de artistas negros brasileiros.
372
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí. 2014, p. 96.
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na própria comunidade. Esta é uma manifestação que teve início no passado e que é
atualizada no presente, após quase ser abandonada:
Esse negócio de batizar as bonecas eu aprendi com a minha mãe. Antigamente,
quando eu era criança, minha mãe fazia bonecas e chamava algumas pessoas para
batizar elas. Mas com o tempo isso foi acabando e daí resolvi fazer umas bonecas e
batizar também. É igual batizar uma pessoa. Você escolhe o padrinho e a madrinha
373
e batiza a boneca (Santa).
373
INCRA. Relatório Antropológico de Vargem do Inhaí, 2014, p. 101.
180
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374
Art. 1, carta de Burra. ICOMOS, Austrália, 1999. A Carta de Burra foca a questão da significância cultural
181
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coletividades. Sendo assim, através da noção sistêmica que dá corpo a este bem cultural,
compreende-se que o SAT dos Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas agrega os seguintes
valores: identitário, sociocultural e ecossistêmico.
Valor Identitário: Este sistema agrícola tradicional é historicamente desenvolvido por
coletividades localizadas na Serra do Espinhaço Meridional, em uma região geográfica do
estado de Minas Gerais que abarca distintos municípios do Alto Jequitinhonha e Norte
mineiro. Estas territorializações específicas se inserem no processo desigual de formação
social, político e territorial do Estado-Nação brasileiro, no qual populações negras rurais e
demais grupos sociais subalternizados desenvolveram outras lógicas de organização
socioterritorial e de modos de vida que os distinguem da sociedade englobante. No contexto
deste sistema, os grupos sociais etnicamente diferenciados se reconhecem a si próprios
como apanhadores (as) de flores Sempre-vivas. As flores endêmicas que são coletadas da
Serra do Espinhaço Meridional é um dos traços que compõem a especificidade étnica dessas
coletividades. Essas construções identitárias autorreferidas não significam, contudo, que as
mesmas são essencializadas ou isoladas, tampouco que são "tipos ideais" de uma dada
cultura, mas que compõe sinais contrastantes que norteiam e organizam as relações sociais
tanto no interior dos próprios grupos, como fora deles, marcando suas particularidades
socioculturais. Portanto, o valor de identidade das comunidades que desenvolvem o SAT se
encontra precisamente na diferença e na manutenção dessa diferença, está contido na
própria ideia de patrimônio cultural, que é compreendido como portador "de referências à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira",
conforme está posto no texto constitucional em seu artigo 216.
Valor Sociocultural: O Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadores (as) de Sempre-
Vivas se estrutura na agricultura, na criação de animais e no manejo dos produtos do
cerrado. Esta estrutura é composta por uma diversidade de saberes produtivos e de manejo;
de relações com sagrado; de coordenação com a paisagem e as espécies; de formas de
sociabilidade e trabalho; de domínios técnicos construtivos e de artefatos; de sistemas
alimentares locais; de gestão comunitária dos recursos naturais; de manifestações culturais
e religiosas; de dimensões políticas; de formas de transmissão intergeracional de saberes;
dentre outros. Portanto, não se trata somente da dimensão produtiva em si mesma, mas
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dela enquanto cultura, o que informa sobre as interações entre as atividades agrícolas e as
demais dimensões da vida sociocultural das coletividades. Apesar da importância e
interdependência de todos os elementos estruturantes, a coleta de flores Sempre-vivas se
destaca por sua forte relevância sociocultural neste sistema, pois, além de ser um recurso
natural endêmico da Serra do Espinhaço Meridional, de fundar a identidade étnica dos
grupos e de ser uma flor emblemática para a cultura mineira, é o símbolo por excelência da
vida, da autonomia e da liberdade para os grupos sociais praticantes do SAT.
Valor Ecossistêmico: Estes modos de vida diferenciados são baseados em um vasto
conhecimento acerca dos potenciais ecossistêmicos dos distintos agroambientes, o que
coloca em perspetiva a estreita relação que há entre determinados grupos humanos que
estão em coordenação com outras espécies animais e vegetais na paisagem da Serra do
Espinhaço, levando a continuidade de ecossistemas cultural e biologicamente diversos. Isto
significa que as visões de mundo locais, os conhecimentos adquiridos e transmitidos e as
práticas desenvolvidas fundaram-se na gestão, manejo e uso sustentável dos recursos
naturais nos territórios. Não por acaso, os territórios de povos indígenas e comunidades
tradicionais são os que apresentam os maiores níveis de biodiversidade, uma vez que a terra
possui valores profundos de pertencimento passado, presente e futuro. Neste sentido, as
dinâmicas socioculturais dos modos de vida daqueles que desenvolvem o SAT tornam-se
relevantes não somente para sua própria reprodução sociocultural, como também para a
conservação da natureza, o que acaba por beneficiar o planeta de uma forma geral.
Esta questão pode ser melhor compreendida, por exemplo, a partir da noção de que
os saberes e as técnicas contidas na agricultura tal como a manutenção das sementes
crioulas, da grande variedade de espécies cultivadas e manejadas e dos critérios culturais
para a produção de roças, hortas e quintais, são de extrema importância no atual "contexto
simultaneamente marcado por uma erosão da diversidade agrícola e por um interesse cada
vez maior por esses recursos enquanto reservatórios de moléculas ou de genes com
potencialidades econômicas".375 Os saberes do Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadores
(as) de Sempre-Vivas além de garantirem a reprodução sociocultural dos grupos que o
375
EMPERAIRE, Laure. A biodiversidade agrícola na Amazônia Brasileira… 2005, p. 30-43.
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5 PLANO DE SALVAGUARDA
A Salvaguarda é um dos instrumentos de proteção do patrimônio cultural brasileiro
previsto tanto nas legislações federal, estadual, assim como de alguns municípios.376 Em
linhas gerais, trata-se do conjunto de ações promovidas por diversos agentes no sentido de
reconhecer, valorizar, estimular, fomentar, divulgar e promover o bem cultural protegido.
Como ponto de partida, as ações de salvaguarda devem ser construídas pelo poder
público prioritariamente, em conjunto com coletivos e grupos sociais responsáveis pela
existência do bem, já que a manutenção dessas práticas está intrinsecamente relacionada
aos agentes promotores desse patrimônio e, sem eles, não há legitimidade de tais ações.
As ações de salvaguarda que serão propostas nesta seção, se referem ao patrimônio
cultural imaterial que, assim como a própria dinâmica da cultura, não possui limites físicos
que o delimite, nem que o separe de seus aspectos materiais, da sociedade englobante e dos
grupos que o produzem. Tal patrimônio é caracterizado por ser difuso, fato que deve ser
levado em consideração na proposição das ações de políticas públicas que visem à
valorização desse patrimônio, assegurando a possibilidade de continuidade dessas práticas
376
Referimo-nos aqui aos artigos nº 215 e nº 216, da Constituição Federal do Brasil, e aos artigos nº 207, nº
208 e nº 209, da Constituição Estadual de Minas Gerais. Também ao Decreto Federal, nº 3.551 de 04 de agosto
de 2000 ao Decreto Estadual nº 42.505, de 15 de abril de 2002, que instituiu o Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial em Minas Gerais.
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377
Em linhas gerais os direitos difusos constituem direitos transindividuais, ou seja, que ultrapassam a esfera
de um único indivíduo. Para maiores informações ver: CASTILHO, Ricardo dos Santos. Direitos e interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos. Campinas: LZN editora, 2004. p. 35 e 36.
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Figura 40. Eixos para salvaguarda de bens culturais imateriais do estado de Minas Gerais.
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sistema agrícola, cujo objetivo geral é o fortalecimento da resiliência do SAT, por meio de
ações integradas envolvendo todos os atores acima citados.
É importante mencionar que alguns dos princípios norteadores do PCD se coadunam
ao próprios princípios da salvaguarda do patrimônio cultural, sendo os mais indicativos: 1) A
participação efetiva das comunidades locais é condição para o êxito deste plano de ação; 2)
O conhecimento tradicional é o ponto de partida para a conservação dinâmica do sistema
agrícola de apanhadores (as) de flores Sempre-vivas; 3) A gestão e acompanhamento deste
plano de ação tem como premissa o controle social.378
O PCD está estruturado em 5 eixos referentes aos principais elementos que
constituem o SAT, sendo que cada um destes eixos se descortinam em ações propositivas às
demandas apresentadas pelas comunidades. Especificamente em relação ao Eixo 4
"Paisagem", o Iepha-MG figura como parceiro em duas ações específicas, em função das
quais já vem desenvolvendo as seguintes ações de salvaguarda:
4.1 Reconhecimento oficial e regularização fundiária de territórios das comunidades
apanhadoras de flores Sempre-vivas da Serra do Espinhaço Meridional:
● Conclusão do Processo de Registro 12/2018 e apresentação ao Conep - segundo
semestre de 2021 ;
● Aprovação de emenda de recurso parlamentar para elaboração de peças técnicas
para regularização fundiária do território da Comunidade Raiz - primeiro semestre de
2021;
● Visita técnica e formulação de denúncia ao Ministério Público Federal PRM Sete
Lagoas, a respeito da invasão territorial da Comunidade Raiz - primeiro semestre
2020;
● Suspensão das licenças (LP+LI+LO) da empresa Mineração K3 Eirelli ME/ Fazenda
Ouro Verde, no território da Comunidade Raiz, para apresentação de Estudos de
Impacto ao Patrimônio Cultural (EPIC/RPIC) - segundo semestre de 2020;
378
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista… 2019, p. 97
190
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● Articular com a CODECEX e parceiros a criação de Comitê para a salvaguarda do SAT dos
Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas;
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● Articular com prefeituras e estimular as políticas públicas locais para a salvaguarda do SAT dos
Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas;
● Elaborar uma edição dos Cadernos do Patrimônio Cultural sobre SAT dos Apanhadores (as) de
Flores Sempre-Vivas;
● Incentivar a participação das novas gerações, em especial as jovens lideranças das comunidades
com relação à salvaguarda do SAT dos Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas;
● Promover o compartilhamento dos Saberes relativos ao SAT dos Apanhadores (as) de Flores
Sempre-Vivas para as novas gerações, articulando os modos tradicionais com as novas
tecnologias;
● Apoiar as condições materiais de (re)produção dos saberes do SAT dos Apanhadores (as) de
Sempre-Vivas;
● Promover um plano de distribuição dos Cadernos do Patrimônio na Rede Pública de Ensino dos
municípios;
● Publicizar o Dossiê de Registro do SAT dos Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas no site do
Iepha-MG;
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A partir dos encontros realizados pela equipe técnica com a Codecex e apanhadores
(as) de flores Sempre-vivas, ocorridos durante os trabalhos de campo e das reflexões
técnicas desenvolvidas ao longo da pesquisa, foram identificados os seguintes pontos em
relação ao SAT dos Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas:
a) A produção e reprodução dos modos de vida que constituem o SAT dos Apanhadores (as)
de Flores Sempre-Vivas está indissociável da materialidade dos territórios tradicionalmente
ocupados. Inclusive, foi por ter a percepção de que o território é a garantia da continuidade
sociocultural, é que as comunidades incluíram no PCD seu reconhecimento como patrimônio
cultural junto à regularização fundiária. Especialmente, devido ao fato de que o direito
coletivo aos territórios ainda não estão resguardados, o que coloca em risco a manutenção
de seu patrimônio cultural. Sobretudo, porque estas comunidades vêm historicamente
sendo impelidas por conflitos socioambientais, seja devido à sobreposição de unidades de
conservação em seus territórios, seja devido à intrusão de grandes projetos de
desenvolvimento, tais como mineração, monoculturas, etc.
c) Muitas das comunidades que desenvolvem o SAT possuem edificações, ruínas de pedras e
outros bens materiais que fazem parte de sua memória coletiva e ancestral, sendo parte
fundamental de sua identidade e modos de vida. É o caso, por exemplo, da fazenda e das
ruínas do cemitério no território de Mata dos Crioulos, da casa de Pai Velho em Raiz, e das
ruínas de Chapada Velha, no distrito de São João da Chapada, para citar alguns. Contudo,
muitas destas materialidades estão inseridas nos contextos de conflitos com fazendeiros,
gestores de unidades de conservação, etc. que impedem o acesso dos moradores a estas
construções.
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d) As roças, quintais agroecológicos, hortas, criação de animais, etc., são uma das faces mais
importantes deste SAT. Sobretudo, porque os saberes desenvolvidos na produção, na
utilização de sementes crioulas e na presença de determinadas raças locais, garantem
segurança e alta diversidade alimentar, impactando no uso e manejo da terra, nos sistemas
alimentares locais, na renda e na manutenção dos modos de vida. Contudo, é necessário
atentar-se com o avanço de perdas territoriais, da erosão da diversidade do patrimônio
genético, da inserção de sementes e raças diferentes daquelas tradicionalmente utilizadas,
entre outros.
f) As comunidades que desenvolvem este SAT tem como demandas históricas a solução de
necessidades básicas relacionadas à infraestrutura de saneamento básico, de acesso à
energia elétrica e serviços de comunicação/internet, além de serviços de saúde e educação.
No caso específico desta última, é uma demanda que seja uma educação que leve em
consideração os modos de vida diferenciados dessas dessas comunidades, que seja uma
educação antirracista e orientada às especificidades culturais das comunidades.
PROPOSTAS ESPECÍFICAS
● Articular junto aos órgãos competentes do estado a regularização fundiária das comunidades de
apanhadores (as) de flores Sempre-vivas;
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● Articular junto a outros órgãos do Estado de Minas Gerais ações que visem a autonomia da panha
de flores Sempre-vivas em áreas dos territórios em que há sobreposição de unidades de
conservação;
● Apoiar, fomentar e divulgar o artesanato promovido pelos(as) apanhadores (as) de flores Sempre-
vivas;
● Apoiar a Codecex na construção dos Protocolos Bioculturais para garantia do acesso e uso da
biodiversidade
● Fomentar e valorizar a cultura alimentar tradicional no contexto do SAT dos apanhadores (as) de
flores Sempre-vivas;
● Valorizar os mestres e demais pessoas de referências dos saberes relativos ao SAT dos Apanhadores
(as) de Flore Sempre-Vivas;
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● Apoiar eventuais processos de tombamento de ruínas, imóveis, etc. que sejam relevantes para a
memória coletiva e ancestral das comunidades que desenvolvem o SAT, tanto a nível estadual,
como municipal;
● Ampliar o escopo do inventário cultural do SAT dos Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas;
Estas ações que foram inicialmente propostas para a salvaguarda deverão ser objeto
de consulta e aprovação por parte dos detentores, em encontros posteriores para a
elaboração do Plano de Salvaguarda.379 Para tanto, o Iepha-MG propõe em articulação junto
à Codecex a criação de um comitê para a salvaguarda do bem cultural imaterial em questão.
O Plano deverá ser consolidado e atualizado periodicamente, após o Conselho Estadual de
Patrimônio Cultural – CONEP deliberar pelo registro do bem cultural imaterial em tela. Dessa
forma, a proposta inicial das ações de salvaguarda deverá ser apresentada e validada pelos
detentores do bem cultural, e a ela poderão ser acrescidas novas ações que porventura
possam surgir na ocasião desses encontros.
379
O Plano de Salvaguarda é um instrumento de gestão que visa, por meio da relação entre Estado e
Sociedade, alcançar a autonomia e sustentabilidade da salvaguarda de um bem cultural a curto, médio e longo
prazo. Ele está previsto no Decreto Estadual no 42.505 de 2002, sob a forma do Programa Estadual de
Patrimônio Imaterial; na portaria 47 de 2009, é tratado na seção do Dossiê Técnico, no item VI - Plano de
Salvaguarda, que prevê o diagnóstico e a proposição de diretrizes e ações para a salvaguarda do bem
protegido.
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Sugere-se que o comitê seja composto pela Codecex, por apanhadores (as) de flores
Sempre-vivas, gestores locais, coletivos de cultura, instituições de ensino e pesquisa,
associações de municípios e outros. Ao comitê caberá:
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Por fim, espera-se que com o Registro e a implantação do Plano de Salvaguarda para
Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadores (as) de Flores Sempre-Vivas, principalmente
através da articulação do Comitê para Salvaguarda do bem cultural, possam garantir as
condições de manutenção desse importante bem cultural de Minas Gerais.
I - as formas de expressão;
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SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. [19 de dezembro de 2019]. Diamantina. Registro do
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Apanhadoras e dos Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana
Paula Belone e Débora Raiza Carolina Rocha Silva. Disponível no Acervo documental IEPHA-
MG.
SOUZA, Domingos Teixeira de. Sempre-Vivas. [10 de novembro de 2019]. Mamonas. Registro
do SAT das Apanhadoras e dos Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista
concedida a Ana Paula Lessa Belone. Disponível no Acervo documental IEPHA-MG.
VIEIRA, João. Sempre-Vivas [10 de novembro de 2019]. Pé de Serra. Registro do SAT das
Apanhadoras e dos Apanhadores (as) de flores Sempre-Vivas. Entrevista concedida a Ana
Paula Lessa Belone. Disponível no Acervo documental IEPHA-MG.
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FONTES ARQUIVÍSTICA
Diário de Minas. 11/02/1873. Edição 009, p.3.
FONTES AUDIOVISUAIS
TEMPO da Roça, Tempo da Campina. Direção: Cláudio Tammela e Tiago Carvalho. Produção:
Gabriel Dayer. Local: Diamantina. CODECEX: Comissão em Defesa dos Direitos das
Comunidades Extrativistas, 2019.
FONTES ELETRÔNICAS
Blog João Naves de Melo. Disponível em:
<http://joaonavesdemello.blogspot.com.br/2009/11/do-cerrado-as-barrancas-do-rio-
sao_14.html>.
Téo Azevedo conta "causos" e lendas da Viola Caipira. Canal Youtube Rozini Instr. Musicais.
Publicado em 23 de out de 2012. Disponível
em:<https://www.youtube.com/watch?v=mfgqx5rXTVI> Acesso em: 24 mai. 2018.
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02 DESCRIÇÃO SÍNTESE
A comunidade de Lavras, inserida nos limites do município de Bocaiúva, no Norte de Minas Gerais, é
uma das comunidades que integra o Sistema Agrícola Tradicional dos Apanhadores de Sempre-vivas (SAT
Sempre-Vivas), na porção oeste da Serra do Espinhaço Meridional. As moradias da comunidade estão
localizadas nas terras designadas como “sertão”, devido às baixas altitudes que se conformam junto ao sopé da
Serra. Seus moradores dominam, conhecem e ocupam sazonalmente as partes altas da Serra, seja para a criação
de gado, a “panha” das flores Sempre-vivas ou o extrativismo de espécies nativas e/ou exógenas. O território da
comunidade é, portanto, ocupado com práticas tradicionais e se estende para além da porção baixa, na qual
estão fixadas as moradias. Essa ocupação obedece a formas complexas de posse e propriedade, baseadas, em
grande medida, no direito costumeiro.
03 CONTEXTO HISTÓRICO
Na narrativa de uma das lideranças da comunidade, Aldair José de Souza, apanhador de flores e criador
de gado que nasceu e vive nesse território, Lavras teve início a partir da chegada de um núcleo familiar no qual
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João Domingos, Ana “Véia” e Maria Clara são figuras centrais. De acordo com Aldair José, todos na
comunidade são descendentes dessa única família – hoje em sua quinta geração –, que chegou ao território no
período escravista brasileiro, contexto que deixou marcas físicas na comunidade. Em sua narrativa, a memória
desse período pode ser visualizada na localidade, tanto sobre a Serra quanto nas partes baixas, por meio do que
chama de “rastros de trabalho de escravos”, tais como ruínas de senzala, artefatos utilitários construídos e
utilizados pelos escravizados como, por exemplo, fogão e mesas.
DATAS IMPORTANTES PARA A HISTÓRIA DA LOCALIDADE
Data Evento
Séc XVIII Início da formação da comunidade
2002 Publicação do Decreto de criação do Parque Nacional das Sempre-vivas
2007 Mudança de gestão do parque para o ICMBio e implementação das proibições de
atividades realizadas na área do Parque Nacional das Sempre-vivas
2010 Fundação da Codecex
2018 Certificação como Comunidade Apanhadora de Flores Sempre-vivas pela Comissão
Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT-MG)
2020 Reconhecimento como Patrimônio Agrícola Mundial pela FAO/ONU
04 CONTEXTO TERRITORIAL
Uma das comunidades que compõe o Sistema Agrícola Tradicional dos apanhadores e apanhadoras de
flores Sempre-vivas (SAT Sempre-vivas) é a comunidade de Lavras, que está localizada no município de
Bocaiúva, no planalto meridional da porção mineira da Serra do Espinhaço, ao norte do estado de Minas Gerais.
Ressalta-se, no entanto, que embora Lavras pertença administrativamente ao município de Bocaiúva, no que se
refere aos serviços de saúde, educação e comércio, a referência é a cidade de Buenópolis, que dista cerca de 50
quilômetros da comunidade.
Geograficamente, Lavras está situada no limite entre as bacias hidrográficas dos rios Jequitinhonha e
São Francisco, na porção territorial conhecida entre os apanhadores como “sertão”. De acordo com a geógrafa
Fernanda Monteiro (2011), essa é uma denominação endógena e diz respeito às áreas baixas que se encontram
no sopé da Serra do Espinhaço, em sua face ocidental, com altitudes que variam em torno de 600 metros.
Região de baixa umidade com clima típico de semiárido, o “sertão” apresenta um regime de precipitação mais
baixo em relação às áreas que estão sobre a serra, mais úmidas. Assim, o sertão se configura em oposição às
terras altas, chamadas nesse contexto de “Serras”, que se diferem tanto pelas altitudes, quanto pelo clima, pela
vegetação e pela disponibilidade hídrica. Na estação do verão, o sertão apresenta chuvas e temperaturas
elevadas, enquanto o inverno é seco e com temperaturas mais baixas. As estações chuvosa (novembro a abril) e
seca (maio a outubro) são bem definidas. No entanto, nos últimos anos os moradores da comunidade
perceberam que houve diminuição da precipitação, motivo pelo qual alguns cursos d'água secaram ou tiveram
sua vazão diminuída.
As comunidades que vivem na parte ocidental da serra, tem o Rio Jequitaí, um dos tributários do Rio
São Francisco, como referência de localização. Lavras se encontra à margem direita desse rio, que é também um
marco de delimitação de localidades na região, conformadas pelas sub-bacias dos rios Jequitaí, Maravilha e São
José, que dividem Lavras em localidades menores: Lavras, Mamonas e Campo Alegre. Nas duas primeiras,
situam-se as casas de moradores e, em Campo Alegre, localiza-se a Igreja de Santana, frequentada pelos
moradores de Lavras. Segundo consta a hierofania, a imagem da santa apareceu em um toco de madeira, no
mesmo lugar onde hoje está a Igreja. De acordo com relatos dos moradores, foi um homem chamado Ambrósio
Vieira de Ataíde quem primeiro encontrou a imagem e levou-a para casa. Contudo, a santa voltou ao mesmo
lugar onde fora encontrada. Isso ainda ocorreu algumas vezes, até que a Igreja começasse a ser construída em
Campo Alegre.
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No nosso território, os nossos campos, a gente tem vários tipos de campos diferentes:
tem o campo de gado, o campo que a gente só cria gado, as chapadas; e o campo de
flor. Nós não usa o campo de flor pra colocar gado não. O campo de for nosso é só
pra flor. E o campo de gado é só pra gado. É porque a gente também tem um espaço
maior, né? Isso, dessa forma, esse manejo, é tanto eu e meus irmãos e meus primos. A
gente trabalha assim (SOUZA, Entrevista concedida em 18 de dezembro de 2019).
Embora esteja fora da área compreendida pelo Parque Nacional das Sempre-vivas (Parna Sempre-
vivas), a área das moradias dos comunitários de Lavras está muito perto de seus limites, na zona considerada
como “tampão” ou de “amortecimento”. De acordo com o relatório produzido pela Codecex (2019), na zona
tampão se concentram empreendimentos minerários e de plantio de eucalipto para a produção de carvão. A área
do Parque Nacional engloba, por sua vez, territórios que historicamente são utilizados pela comunidade para a
coleta de flores e para a criação do gado, impondo restrições aos moradores da comunidade, se sobrepondo às
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05 CONTEXTO SOCIOCULTURAL
Os Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) dizem respeito às estratégias agroalimentares desenvolvidas
a partir da coadaptação de grupos humanos com o seu ambiente, de acordo com suas necessidades e aspirações,
resultando em “rica biodiversidade, alimentos e conhecimentos tradicionais, que permitem a
manutenção/conservação dos recursos naturais em paisagens variadas” (CODECEX, 2019, p. 88). Nesse
sentido, o Sistema Agrícola desenvolvido pelas comunidades apanhadoras de flores Sempre-vivas, localizadas na
porção meridional da Serra do Espinhaço, é também tradicional e possui características próprias, que permitem
seu reconhecimento enquanto um Sistema específico, desenvolvido pelas comunidades que se reconhecem
como “apanhadoras de flores sempre-vivas” e que articulam essa identidade em sua organização política, em
torno da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (CODECEX). Essa Comissão tem
atuado na promoção do debate sobre o acesso a mercados, divulgando os programas governamentais e os
direitos civis e territoriais das comunidades apanhadoras de Sempre-vivas, bem como atua para o
reconhecimento e valorização dessas comunidades enquanto guardiãs de rico patrimônio genético, ambiental e
cultural.
As comunidades que compõem esse SAT e que, até o presente momento, estão articuladas em torno da
Codecex são: Lavras, Pé-de-Serra, Macacos, Raíz, Mata dos Crioulos e Vargem do Inhaí, grupos que se
distribuem em cotas distintas da porção meridional da Serra do Espinhaço. Entre essas comunidades verificam-
se “relações de parentesco, modo de vida análogo, princípios de organização [e] formas de sociabilidade, com
pequenas variações em termos de suas formas culturais” (CODECEX, 2019, p. 68).
Entre as características fundamentais desse Sistema estão a prática da transumância, realizada pelos
comunitários entre os agroambientes da Serra, que se dão de forma a articular sazonalmente os usos
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tradicionalmente desenvolvidos para cada um deles; a biodiversidade específica que se conforma na relação
humana dos apanhadores com o ambiente, conformando uma paisagem idiossincrática a partir do manejo
tradicional; e o compartilhamento de referências culturais que se conformam no contexto desse SAT. Além
disso, com certas variações, os regimes de propriedade comum que se verificam e o sentimento de pertença dos
grupos envolvidos podem ser percebidos como sinais diacríticos nos modos de vida dessas comunidades
(CODECEX, 2019).
Em Lavras, comunidade que compreende cerca de 30 famílias, esse Sistema Agrícola se conforma em
torno do uso e do manejo das terras baixas do sertão para a fixação dos moradores da comunidade e para o
cultivo das roças. Já nas médias altitudes, na escarpa ocidental da Serra do Espinhaço, os comunitários praticam
a coleta e a extração de espécies endêmicas e a criação de gado “na solta”. A criação de animais é uma
característica muito marcante da comunidade, o que pode ser verificado pelo fato de que, em grande medida, o
trabalho diário dos moradores é voltado para essa atividade. Além disso, os moradores praticam o cultivo de
roças e de quintais agroecológicos. Em relação ao manejo dos ambientes tem-se a prática tradicional do
emprego controlado do fogo para o preparo do solo para as roças e para o manejo das espécies de flores
coletadas e vendidas pelos(as) apanhadores(as). Além disso, tem-se a manipulação genética através da seleção
de espécies e dos cruzamentos entre indivíduos vegetais e animais para a seleção e adaptação artificial de
espécies.
Assim o profundo conhecimento do ambiente em que vivem e as tecnologias desenvolvidas ao longo
do tempo nessa relação, possibilita que os apanhadores e apanhadoras de flores Sempre-Vivas da comunidade
de Lavras ampliem o território em que vivem, produzem e se relacionam entre si e com as divindades.
No sertão, próximos às moradias, onde se tem baixas altitudes e relevos mais aplainados, os moradores
cultivam suas roças de milho, feijão, abóbora, melancia e outras variedades. De acordo com Aldair José, a
possibilidade de se plantar roças perto das casas não acontece em todas as comunidades que compõem o SAT
Sempre-vivas. Em Lavras, essa possibilidade se deve ao fato de a comunidade possuir um grande território,
compartilhado por poucas famílias, o que faz com que haja uma pressão menor sobre a terra. Isso possibilita
também que algumas famílias tenham mais de uma roça. Em algumas delas, são empregadas máquinas no
cultivo, em outras, porém, são utilizadas apenas ferramentas manuais, como a enxada, para preparar o terreno
para as plantações. Segundo Aldair José, poucas são as pessoas que fazem roça de toco na comunidade de
Lavras, sistema de cultivo que é realizado em outras comunidades do SAT, se configurando como uma das
características fundamentais do Sistema. As roças de toco consistem na abertura de clareiras em meios
arborizados, por meio de roçadas e uso do fogo, de forma a preparar o solo para o cultivo. Depois de algum
tempo de plantação naquela área, segue-se um período maior, na qual a área é destinada ao pousio.
Outro ponto que é distintivo do Sistema Agrícola Tradicional dos Apanhadores de Flores Sempre-
vivas, é a utilização de sementes crioulas nas plantações. De acordo com Aldair José, a maior parte das pessoas
da comunidade utilizam essas sementes, ainda que algumas pessoas se valham de sementes compradas. Ainda
segundo o relato, os moradores costumam guardar as sementes, normalmente em garrafas pet, para que sejam
plantadas no próximo ano, constituindo um “banco genético” entre os moradores. Outro costume que
contribui nesse sentido é o da troca de sementes e mudas não só entre os moradores de Lavras, como também
de outras comunidades, conforme pode ser percebido no relato de Aldair José:
A gente troca, às vezes dá, sabe? Pra pessoa. Doa pra pessoa. Às vezes a pessoa quer
plantar, tipo assim, um feijão de corda, por exemplo. A pessoa quer plantar, mas ele
não tem a muda. Aí ele procura a pessoa, a pessoa doa aquele pra pessoa. Depois a
pessoa doa outro tipo de semente que a gente tem interesse, que a gente não tem, e faz
doação também.
Além das plantações nas partes baixas, no sertão, as roças também podem ser cultivadas nas partes altas
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A última roça que eu plantei foi lá em cima. Deve ter uns dois anos. Eu acho que eu
não plantei roça mesmo foi esse ano [...]. Eu plantei lá foi feijão e milho. E abóbora,
melancia [...]. Já em fevereiro, a gente costuma plantar um feijão, que a gente fala feijão
da seca. A gente costuma plantar. Isso é uma das roças que tem mais resultado.
(SOUZA, Entrevista concedida em 18 de dezembro de 2019).
Outro elemento do SAT que se faz presente na comunidade é a criação de gado. No entanto, nas
comunidades do sertão, essa prática costuma assumir uma dimensão de destaque no modo de vida dessas
comunidades. Pratica-se a criação de gado “na solta”. É nas encostas da Serra, em altitudes médias, entre 700 e
1000 metros, onde se encontram os campos destinados à criação de gado (ex: Jatobá, Vargem Grande,
Kalunga). Neles, os animais são criados livres, mas sob o monitoramento de seus donos ou por parentes e
vizinhos de seus proprietários. Sobre essa dinâmica, Aldair José comenta: “Quando eu vou no campo, que eu
olho o gado, dou uma olhada no gado e vejo uma vaca de um vizinho, de um primo, eu falo assim: ‘ô, Pedrinho
– por exemplo – eu vi sua vaca lá no Kalunga, eu vi sua vaca lá na larga do Jatobá, a sua vaca tava na Vargem
Grande, tá lá na Santa Isabel...” (SOUZA, Aldair. Entrevista concedida em 18 de dezembro de 2019). Os
moradores não costumam levar o gado até os campos de criação de gado, mas sim soltá-los perto das casas, em
locais onde o acesso se dá até as escarpas da Serra:
O campo que a gente cria gado, as chapadas, a gente chega na porta da casa da minha
mãe e solta o gado. O gado já vai sozinho e volta. Porque a gente usa o baixio pra
roça, e a chapada pro gado. Então você solta o gado na porta e o gado já sobe. [...] Ele
desce, mas assim, ele desce e volta, sabe? Ele tem o acesso livre” (SOUZA, Entrevista
concedida em 18 de dezembro de 2019).
Mesmo assim, são muitas as atividades destinadas à pecuária, como: tirar leite, subir aos campos para
“olhar o gado”, entre outras, ocupando grande parte do cotidiano dos moradores, durante os períodos em que
esses não estão na Serra para a “panha” das flores sempre-vivas.
É também nas terras altas da Serra do Espinhaço que os apanhadores da comunidade de Lavras
coletam as flores que brotam nas chapadas, áreas se localizam nas partes mais altas da serra, que possuem relevo
aplainado. É lá também que colhem frutos nativos e plantas medicinais, tanto para consumo familiar, quanto
para a venda (MONTEIRO, 2011). As diversas espécies de sempre-vivas, que têm seus períodos específicos de
coleta entre abril e o final de setembro, são profundamente conhecidas pelos apanhadores e apanhadoras de
flores na comunidade. Durante esse período, como afirma Aldair José: “a gente praticamente fica na Serra.
Quase que é só na Serra. Mas a gente tem aquela atividade, gado e flores e alguns mexem com roça” (SOUZA,
Aldair. Entrevista concedida em 18 de dezembro de 2019). Os campos de coleta de flores Sempre-vivas, assim
como os campos de criação de gado, são identificados também por nomes específicos, que são passados de
geração em geração.
As flores coletadas nesses campos são vendidas, em sua maioria para intermediários, que revendem a
produção das famílias em mercados locais, nacionais e até mesmo internacionais. De acordo com Fernanda
Monteiro (2011), mesmo que “esteja sujeito às variações de mercado, o extrativismo vegetal continua sendo
uma atividade importante como fonte de renda das famílias camponesas residentes nas comunidades” que
integram o Sistema Agrícola Tradicional dos Apanhadores de Flores Sempre-Vivas (p. 189). Além disso, a
“subida à serra” também propicia o convívio entre os comunitários e as festas ou seja, uma sociabilidade
específica que se desenvolve nas terras altas. É comum os moradores dizerem que ‘dá até casamento na serra’,
durante as festas, danças e cantorias que tem lugar ao final dos dias de trabalho intensos nos campos de coleta.
Os regimes de propriedade que se exercem nos campos de flores estão vinculados ao emprego do
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trabalho familiar em um determinado espaço, historicamente compartilhado e/ou transmitido por relações de
parentesco, casamento e compadrio. Assim, as terras ocupadas pela comunidade obedecem a regimes de
propriedade complexos, que envolvem áreas particulares, propriedades – que são em sua maioria familiares –, e
de posse, com os territórios de uso comum. A narrativa de Aldair José deixa entrever a complexidade que se
configura a partir de combinações de regimes de propriedade e suas sobreposições:
Uma parte é de uso comum de uma família só. Agora, as outras partes são coletivas.
Não são individual. As outras partes é individual. Mas também, em Lavras também
tem algumas partes individual no coletivo. É uma misturada, sabe? É porque, quando
aquela parte de herança dos meus bisavós, ela é coletiva da família toda. Agora, outras
partes que a gente adquiriu, que não é de herança, é particular. E já é propriedade
(SOUZA, Entrevista concedida em 18 de dezembro de 2019).
As famílias que compõem a comunidade de Lavras possuem relações de parentesco entre si e com a
localidade de Pé de Serra, como foi abordado anteriormente. Em relação à religiosidade e às celebrações, as duas
comunidades também possuem ligações, posto que em ambas há forte presença do catolicismo popular, que se
manifesta na realização de festas em comemoração a santos católicos e na existência de grupos de Folia de Reis
e de São Sebastião. No mês de julho a comunidade de Lavras realiza a festa de Santana, padroeira da localidade,
e em outubro, celebra-se Nossa Senhora Aparecida. Essas celebrações costumam reunir diversas manifestações
culturais, como culinária, cavalgada, música e danças.
No caso da Folia de Reis, por exemplo, tem-se também a chula, a umbigada, o batuque, o lundu e o
forró, que são praticadas como danças associadas a essa manifestação. A fundação desses grupos, comumente
está ligada às famílias, que transmitem seus sobrenomes à folia levantada. Assim acontece com o grupo da
localidade de Mamonas, conhecido como “Folia dos Pintos”, por se referir à família que carrega esse
sobrenome. Seguindo o calendário religioso da comunidade de Lavras, bem como em Pé de Serra, em dezembro
tem início o ciclo festivo das folias. Esse é o momento no qual acontecem, nas duas comunidades, as saída das
folias de reis, celebrando o nascimento de Jesus, com seu giro que se estende dos dias 24 de dezembro a de 06
de janeiro, dia dedicado à devoção dos Santos Reis. Após essa data, estendendo-se até o dia 20 de janeiro, é o
momento em que a folia celebra São Sebastião, em nome de quem as casas passam a ser visitadas. Já em outros
contextos festivos, são performadas outras danças, como a recortada, a espinica, a saia dourada, o guiano
(praticada por homens) e a pomba chorou (realizada somente com mulheres).
Outra referência cultural da localidade é a cavalgada “Cowboy Viajante”, fundada por Aldair José, que
reúne cavaleiros de Pé de Serra e de Lavras. O grupo se reúne e sai em comitiva nos dias de homenagem aos
santos de devoção da comunidade, quais sejam: Santana, Santos Reis e São Sebastião, mas também em dias de
festividades não-religiosas. Constituída por cavaleiros de faixas etárias variadas, em sua maior parte os
participantes se caracterizam com camisas bordadas com o nome da comitiva, botas, chapéus e cintos com
fivelas grandes. Além disso, é comum que enfeitem os cavalos com flores sempre-vivas amarradas às selas.
A tradição da benzeção, ligada ao catolicismo popular, também está muito presente na comunidade de
Lavras. São muitos os benzedores e benzedeiras que conhecem as rezas empregadas na cura e na proteção de
roças, animais e pessoas. De acordo com Aldair José, os benzedores da localidade não costumam utilizar plantas
em suas benzeções, que são feitas somente com as rezas específicas, conhecidas por eles. A mãe de Aldair José,
Maria Pires, é uma das benzedeiras da comunidade, muito procurada por pessoas que tem problemas com suas
roças. Em Lavras é comum que as famílias que plantam roças, no intuito de garantir o sucesso de suas
plantações, recorram a orações, cantos e ritos para livrar as plantas de insetos e pragas. Além das rezas, o
conhecimento das plantas medicinais é outro elemento que compõe o Sistema Agrícola Tradicional dos
apanhadores(as) de flores sempre-vivas, muito difundido na comunidade de Lavras, e transmitido entre gerações
de moradores. Isso revela a sabedoria local a respeito de espécies nativas e seus usos para o tratamento de
desequilíbrios variados, tanto em humanos quanto nos animais.
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Assim, em Lavras, como nas outras comunidades que compõem este SAT, as apanhadoras e
apanhadores de flores sempre-vivas, fazem a extração de espécies botânicas (nativas e exógenas), a prática de
roça, o cultivo de quintais com hortaliças e plantas frutíferas e medicinais e a criação do gado, interagindo e
conhecendo bem os ambientes em que vivem e desenvolvendo uma paisagem muito peculiar na Serra do
Espinhaço. Todas essas práticas fazem com que a comunidade seja identificada como executora de um sistema
agrícola tradicional, posto que os habitantes dessa comunidade dominam os diferentes ambientes e paisagens
que compõem este território, tendo desenvolvido ao longo do tempo, um ou mais usos para cada um deles,
além de traços culturais que conformam essas práticas e que são conformadas por elas.
Referências Culturais da Localidade
Formas de expressão:
- Chula
- Umbigada
- Batuque
- Forró
- Lundu
- Cavalgada Cowboy Viajante
- Recortada
- Espinica
- Saia dourada
- Pomba chorou
- Guaiano
Celebrações:
- Festa de Nossa Senhora Aparecida
- Festa de Santana
- Folia de Reis
- Folia de São Sebastião
Saberes:
- Benzeção
- Guardiões de sementes
- Conhecimento de plantas Medicinais
- Trabalho com fibras
- Trabalho com madeira
- Processamento de mandioca
- Processamento de cana
06 PROBLEMAS ENFRENTADOS
Assim como todas as comunidades que compõem o SAT Sempre-Vivas, os moradores de Lavras
enfrentam problemas relacionados ao “cercamento” de grande parte da Serra do Espinhaço, acarretado pela
implementação do Parque Nacional das Sempre-Vivas e à forma como os gestores do parque e a polícia tratam
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os apanhadores(as), que historicamente fazem uso e conformam aqueles ambientes. As interdições colocadas
aos apanhadores(as) em nome da preservação ambiental, como por exemplo a proibição do uso tradicional do
fogo no manejo das espécies endêmicas se colocam, por vezes, como impeditivos à reprodução sociocultural e
econômica dessas comunidades.
Como um de seus efeitos, o cercamento do Parque tem aprofundado a migração de jovens da
comunidade de Lavras, em busca de outras opções de consecução de renda. A percepção do “encurralamento”
está bem descrita na fala de uma moradora do “Sertão”, concedida em entrevista a Fernanda Monteiro (2011):
A gente já era encurralado pelos fazendeiros aqui no sertão. Agora o parque encurralou
a gente por cima, tomou nossa serra. Não sei o que fazer prá viver. Por que que o
governo nunca pensa no pobre? (p. 165)
07 PROPOSIÇÕES
A proposição mais urgente para a comunidade é a regularização fundiária dos territórios ocupados por
ela, nos termos do Decreto Federal nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007 e o Artigo 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT). Para tanto, é necessária a produção de relatório antropológico para fins de
demarcação territorial, de forma a considerar as especificidades territoriais de cada comunidade, e do SAT
Sempre-Vivas, considerando sua produção e reprodução cultural ao longo do tempo.
Outra proposição importante para os moradores é o desenvolvimento de técnicas e instalação
equipamentos para captação de água das chuvas, a exemplo das cisternas e de pequenas barragens, posto que a
falta de água tem sido uma das dificuldades enfrentadas pelos moradores de Lavras. Como informado
anteriormente, a falta de água tem sido uma preocupação dos comunitários, que vem percebendo a diminuição
das chuvas na região.
Essas e outras questões foram consideradas no Plano de Conservação Dinâmica (PCD), elaborado
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08 FOTOGRAFIAS
Figura 5: Cruz para proteção da roça em Lavras Figura 6: Folião “Seu” Domingos
Fonte: (Gabriel Dayer) Relatório Codecex Fonte: Acervo Iepha-MG
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Figura 09: Colheita de flores Sempre-vivas. Figura 10: Panha de flores Sempre-vivas.
Fonte: (Valda Nogueira) Acervo Codecex. Fonte: (Valda Nogueira) Acervo Codecex.
Figura 11: Panha de flores Sempre-vivas. Figura 12: Panha de flores Sempre-vivas.
Fonte: (Valda Nogueira) Acervo Codecex. Fonte: (Valda Nogueira) Acervo Codecex.
Figura 13: Aparando pelos de orelha de cavalo. Figura 14: Panha de flores Sempre-vivas na Serra do
Fonte: (Valda Nogueira) Acervo Codecex Espinhaço.
Fonte: (Valda Nogueira) Acervo Codecex
09 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CODECEX. Sistema Agrícola Tradicional dos/das Apanhadores/as de Flores Sempre-Vivas: roças-de-toco,
biodiversidade e transumância na Serra do Espinhaço Meridional (MG/Brasil). Diamantina, 2019.
MONTEIRO, Fernanda Testa et al. Sistema Agrícola Tradicional Dos/Das Apanhadores/As De Flores
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02 DESCRIÇÃO SÍNTESE
A Comunidade Tradicional de Apanhadores/as de Flores Sempre-Vivas, Macacos, está localizada na Serra do
Espinhaço Meridional, no distrito São João da Chapada, município de Diamantina. Seu contexto histórico se
vincula ao estabelecimento da atividade mineradora nesta região, especialmente a partir da fazenda de José
Manuel Joaquim de Vilas Boas e de Ana Rosa, ancestrais dos atuais moradores da comunidade, de acordo com a
narrativa local. Fixada na entrada do Parque Nacional das Sempre Vivas, a comunidade vive um processo antigo
e complexo de disputa pela “posse” do território habitado por seus ancestrais desde o início da ocupação da
região, com a expansão da atividade mineradora, ainda no período colonial.
03 CONTEXTO HISTÓRICO
A formação sociohistórica da Comunidade de Apanhadoras(es) de Flores Sempre-Vivas Macacos está atrelada
ao desenvolvimento da atividade de extração mineral que estruturou econômica e socialmente o distrito
diamantino a partir dos séculos XVII/XVIII, como parte do colonialismo europeu nas Américas. De acordo
com as narrativas dos atuais moradores da comunidade, Macacos deriva de uma fazenda de mesmo nome, cuja
sede foi construída em uma área que fica próxima à ponte que atualmente marca o início do território desta
comunidade tradicional.
A Fazenda dos Macacos pertencia ao português José Manoel Joaquim de Vilas-Boas e a Ana Rosa, sendo que
esta organização primária é considerada, portanto, o núcleo ancestral da Comunidade de Macacos. A figura de
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Ana Rosa especialmente, possui grande importância para a memória coletiva da comunidade, na qual a narrativa
assevera que quase todos os atuais habitantes de Macacos descendem dessa mulher, considerada "poderosa"
para a época, nas palavras de Antônio Alves, que nasceu em Macacos. Conforme este senhor, Ana Rosa foi
bisavó de seu pai. Outro traço dessa ancestralidade é o sobrenome Soares oriundo de uma das netas de Ana
Rosa, que havia se casado com um homem com este sobrenome, conforme relatou Geralda Soares, que é uma
referência da comunidade e descendente deste tronco familiar. Ainda segundo essa senhora, Ana Rosa era uma
indígena que foi "pega no laço", indicando a origem étnica da ancestral.
Estudos arqueológicos indicam que antes da apropriação territorial pelo colonialismo europeu e a consequente
introdução de mão de obra negra escravizada, esta região da Serra do Espinhaço foi ocupada por grupos sociais
autóctones. Baseados em vestígios e pinturas rupestres encontradas em sítios de Diamantina, as pesquisas
apontam que populações nativas já habitavam a região no intervalo entre os anos de 660 a 1310 E.C. Entre os
vestígios encontrados nessa porção da Serra, estão os materiais coletados de sepultamentos que revelaram
semelhanças com material genético de povos indígenas. (ISNARDIS, 2009). Em consonância com os referidos
estudos, estão os relatos das populações que atualmente ocupam o território, os registros de viajantes europeus
do século XIX e de escritores, como Joaquim Felício dos Santos, que mencionam a presença de indígenas
denominados “Puris”, desde antes do início das atividades mineradoras na região.
As ruínas da Fazenda dos Macacos estão inscritas na memória da comunidade e compuseram a sua paisagem até
serem completamente destruídas, há alguns poucos anos atrás. As lembranças dão conta de que haviam dois
muros laterais feitos de pedras e ao centro uma grande casa, cujos alicerces eram compostos por toras de
madeiras espessas de peroba. Cada uma das enormes janelas frontais continha gradis também feitos em madeira
maciça, para impedir a passagem de escravos. Acompanhando o porte das janelas, os cômodos também eram
amplos, sugerindo certa opulência dado os padrões da época.
Apesar de haver lacunas quanto a pesquisas históricas específicas a respeito da Comunidade de Macacos, é
possível acompanhar os rastros de seu contexto de formação a partir das produções historiográficas que
abordam o território do que hoje é o atual município de Diamantina e também de seu distrito, São João da
Chapada, que é vizinho à comunidade e com o qual estabelece relações históricas de parentescos, sociabilidades
e práticas culturais.
O povoado de São João da Chapada possui ocupação colonial a partir de meados do século XVIII, vinculada à
extração aurífera e diamantífera, o que acabou por fomentar a ocupação dessa região a partir da exploração
mineral. “No ano de 1833, os povos da chapada e adjacências que margeavam o córrego de São João,
descobriram as lavras da Pratinha, onde hoje está localizado o distrito de São João da Chapada e assim outras
lavras vão surgindo ao redor” (REIS, p. 40, 2018).
Dada a abundância das jazidas minerais, a região tornou-se um centro de convergência de contingentes de
indivíduos atraídos pela atividade, dentre eles, negros faiscadores que mineravam de forma independente ou
para seus senhores, pois, naquele momento ainda não havia o controle da mineração por parte da Coroa
Portuguesa. Portanto, segundo a literatura e os relatos locais, os primeiros habitantes do povoado de São João
da Chapada foram, sobretudo, negros que chegaram ao local atraídos pela possibilidade do garimpo.
Com a regulamentação da extração de diamantes a partir de 1739, a atividade passou a ser monopólio exclusivo
da Coroa Portuguesa, que criou sistemas de extração e também aparatos para coibir a exploração considerada
clandestina e o contrabando. Para tal, foram instalados postos militares de fiscalização em determinados pontos
de acesso, dentre eles, no local atualmente conhecido por Chapada Velha, onde encontram-se as ruínas do
primeiro povoado de São João da Chapada. Era a "Guarda da Chapada, lotada no destacamento do Registro do
Caeté-Mirim, um dos seis pontos de entrada no Distrito Diamantino" (RIBEIRO, 2017, p. 159).
Após a mudança do povoado em meados do século XIX, resta no lugar as ruínas dos muros, dos alicerces das
antigas habitações, das ruas, dos currais e dos canais de água, além da estrutura da antiga cadeia, que estão
entremeados por vestígios de lavras abandonadas. Este sítio arqueológico, que se encontra nos domínios de uma
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propriedade particular, é considerado de relevância histórica e cultural para os habitantes dessa região.
No século XIX, "o garimpo de ouro e diamante, a extração de madeira, a criação de gado vacum (raça crioula) e
as culturas de milho, feijão e mandioca eram as principais atividades econômicas do distrito.” (MARTINS, 2019,
p. 47). São João da Chapada se dividia entre numerosas pequenas posses e grandes fazendas, sendo a Fazenda
de Macacos uma destas. Deste modo, a fazenda foi estabelecida provavelmente entre os séculos XVIII e XIX,
em função da pujança da atividade mineradora praticada nesta época na região.
A Fazenda dos Macacos possuía muitos escravos, "uns quinhentos", conforme aponta o senhor Antônio Alves.
Isto condiz com a literatura sobre a região que assim diz: “As terras ao redor de São João da Chapada
abrigaram, no século XIX, as mais expressivas lavras do município de Diamantina, razão pela qual ali se
concentrou mais de um terço da escravaria local, quase toda envolvida na mineração do “diamante de massa”
(MARTINS, 2019, p. 47).
Portanto, os escravizados eram colocados para trabalhar nos garimpos, na agricultura e também no trato do
gado da fazenda, que de tempos em tempos era deslocado para uma outra propriedade que a família possuía na
região de Curimataí, do outro lado do Espinhaço, no sertão do pé de serra. Foi relatado que, nos momentos de
descanso, os negros dançavam no terreiro de "semba", uma área localizada debaixo de uma grande árvore
próxima à casa grande.
Com a abolição da escravidão, muitos negros da fazenda teriam migrado para outras localidades, entre elas
Quartel do Indaiá e São João da Chapada. Já outros permaneceram na localidade que junto aos descendentes,
foram estabelecendo-se na área que hoje configura o território tradicionalmente ocupado. Os mais velhos
contavam que antigamente, o caminho para onde hoje é a área central da comunidade era feito por trilhas
entrecortadas por vegetação, sendo as habitações distantes umas das outras e construídas com matérias primas
do próprio ambiente. O garimpo ainda figurava como parte das atividades, junto à produção de roças de toco, a
criação de gados e o extrativismo de produtos vegetais do cerrado.
Com relação à panha de flores sempre-vivas, a narrativa é a de que a prática da atividade nesta comunidade
ocorre há cerca de cem anos, conforme a narrativa local. Esta percepção temporal é apreendida pela idade dos
antigos, tal como fala a senhora Geralda Soares: "minha mãe morreu com... com oitenta e oito, e minha avó
morreu com oitenta e... com quase... quase oitenta e tantos anos. E minha avó conta que quando ela era
pequena que... que a mãe dela já panhava flor".
Organizadas por direitos costumeiros locais, as terras de uso comuns, especialmente no que se refere à
panha de flores, eram os campos São Domingos, Lamarão, Vargem Grande e Quilombo. Nos
primórdios, tanto a atividade da coleta, quanto de solta do gado e extrativismo eram realizadas nestas
áreas livres de cercamento, em um passado que é sentido como provido de liberdade. Entretanto, os
cercamentos e arrendamentos de terras inauguraram as expropriações territoriais da comunidade, entre os anos
1950 e 1960. Este processo teve início com a chegada do padre Romano, que vindo da Alemanha, estabeleceu-
se em Macacos, adquirindo terras e controlando os acessos aos campos. Segundo a narrativa:
[...] um padre alemão adquiriu, nos anos 1960, 10 alqueires (aproximadamente 48 hectares) “de posse”
de um morador da comunidade de Macacos. Entretanto, o padre cercou quase 5.000 hectares, e obteve
o título referente a toda essa área. Como isso se deu é algo desconhecido pelos moradores. Segundo eles,
foi a primeira vez que alguém cercou “com arame e pau” uma área na serra, causando estranhamento e
tensão entre as famílias. Por ele ser padre, e alemão, ficaram com medo de questioná-lo. Esse padre
viveu por muitos anos em Macacos e passou a cobrar dos moradores percentuais do que fosse ali
coletado - geralmente uma taxa de 10% (uma espécie de “dízimo”) - e a arrendar pastos para moradores
do sertão, que, historicamente, utilizavam a área para tal fim (MONTEIRO, 2011, p.188).
O mesmo padre articulou a abertura das estradas que ligam São João da Chapada a Macacos e dessa
comunidade ao campo de “panha” conhecido como Arrenegado. À época o terreno desse campo foi comprado
por uma família da cidade de Diamantina. Atualmente, a área está localizada na região central do Parque
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Apanhadora de Flores Sempre-vivas pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas
Gerais. Já em março de 2020, o sistema agrícola tradicional do apanhadores de flores sempre-vivas foi
reconhecido como Patrimônio Agrícola Mundial. Trata-se do primeiro Sistema a ser reconhecido no Brasil e o
terceiro na América do Sul.
04 CONTEXTO TERRITORIAL
A Comunidade Apanhadora de Flores de Macacos está localizada no município de Diamantina, na região do
distrito de São João da Chapada, encontrando-se 56 km da sede do município. O principal acesso para se chegar
à comunidade partindo de Diamantina, se dá através da estrada que passa pelo distrito de Guinda, seguido por
Sopa, pela localidade de Morrinhos e pelo distrito de São João da Chapada. Este percurso é feito por estrada de
terra em meio à paisagem da Serra do Espinhaço.
Muitos dos moradores de Macacos também possuem uma residência no distrito de São João da Chapada,
devido à facilidade de acesso a serviços públicos como educação e atendimento básico de saúde, por exemplo.
Há moradores que, apesar de manterem residência na comunidade, passam grande parte do ano morando no
distrito. Assim, São João da Chapada acaba por ser uma importante referência para Macacos, tanto do ponto de
vista histórico e cultural, como do ponto de vista social, já que se ligam também por relações de parentesco, de
sociabilidade e de reciprocidade.
A partir de São João da Chapada são mais 22 Km de estrada de terra que se encontra relativamente em bom
estado de tráfego na maior parte de seu percurso. Ao longo do trajeto em direção à comunidade, observa-se um
cercamento nas bordas da via perfazendo muitos quilômetros, e que diz respeito a um empreendimento
minerário estabelecido na área. Diversas placas presas a este cercamento avisam que a propriedade é particular.
Além deste, outros focos de garimpo também são vistos pelo caminho.
A ponte sob o Rio da Fazenda é o marco inicial do território tradicional de Macacos. Do lado direito de quem
vem de São João da Chapada, está localizada uma área de grande relevância para a comunidade, já que é onde
foi construída a Fazenda dos Macacos. Apesar dos elementos materiais da edificação terem sido removidos, as
lembranças da casa grande, do moinho de água que havia nos fundos e do lugar debaixo da grande árvore que
acomodava o "terreiro de semba" são referências culturais que compõem a memória desta coletividade.
Após atravessar a ponte inicia-se uma subida íngreme, cujo caminho de terra leva às habitações. Assim que a
subida é vencida, abre-se para uma área mais ampla onde já começam a aparecer as primeiras casas. Este
caminho continua adentrando ainda mais à comunidade até chegar a uma bifurcação, em que ambos lados
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levam a mais residências. Enquanto a via da esquerda transforma-se em uma leve subida, a via da direita é mais
reta e extensa. Cada um desse dois caminhos encontram-se com uma mesma via formando uma espécie de
triângulo. Esta terceira via, ao cruzar-se com aquela mais reta, torna-se um dos principais caminhos que conduz
aos campos de coleta de flores e de solta do gado para pastoreio.
É também neste cruzamento que está localizada a Capela do Sagrado Coração. A pequena construção religiosa
encontra-se em uma área descampada e gramada, que fica defronte para as cotas mais altas da Serra do
Espinhaço. A capela é precedida frontalmente por uma cruz e é ladeada por um muro baixo que limita a área do
cemitério localizado na parte de trás.
No geral, as habitações estão localizadas dentro deste raio descrito, sendo que algumas se encontram um pouco
mais distantes desta área. As casas geralmente possuem grandes árvores frutíferas ao seu redor e são constituídas
por quintais agroflorestais que contém uma gama de espécies de verduras, frutas, ervas e plantas para uso
medicinal. Também é comum que as unidades familiares contenham outras construções adjacentes, tais como
currais, casas de farinha e cômodos para guardar ferramentas, utensílios, etc.
O território é composto por muitas nascentes e rios, sendo que a água é entendida como um bem comum que
deve ser protegida por todos. Entre os principais estão os rios Pardo Grande e Caeté-Mirim, entre outros cursos
d'água. A comunidade está localizada em cima da Serra do espinhaço, porém, em ambientes das porções mais
baixas, onde encontram-se as residências, as roças de toco e os quintais agroflorestais. Já os locais da panha de
flores encontram-se nas cotas mais altas, no ambiente dos campos rupestres do cerrado.
Na época da panha de flores, que ocorre sobremaneira no período da seca, as famílias tradicionalmente
deslocavam-se rumo aos campos e lá fixavam moradia em lapas ou ranchos construídos com materiais
disponíveis no ambiente. O gado também era levado para pastorear nos capins nativos e pequenas produções
agrícolas, tal como aponta a senhora Geralda Soares, na época em que seu pai ainda subia: "Então, ele mexia na
roça, nós tínhamos um terreno lá dentro do campo São Domingos, lá tem um terreno e é lá que tinha criação de
gado, tem até uma casinha lá até hoje, lá é que ele criava o gado [...]".
No que diz respeito à questão fundiária, as áreas foram historicamente apropriadas sob regimes de uso comum,
organizados por direitos costumeiros locais. Nesta lógica tradicional agrária, de acordo com Fernanda Monteiro
(2011), não se fazem necessários nesses territórios, os cercamentos para delimitações das posses. No entanto, tal
como foi apontado no contexto histórico, as expropriações territoriais ocorridas a partir da década de 1960,
alteraram substantivamente as atividades realizadas especialmente em cima da serra, afetando profundamente o
modo de vida e o sistema agrícola tradicional a ele relacionado.
A criação do PARNA Sempre-vivas elevou essa afetação a um outro patamar, uma vez que sua implantação se
sobrepôs às terras de uso comuns da Comunidade de Macacos, proibindo a comunidade de acessá-las para
desenvolver as atividades tradicionais do sistema agrícola. Assim, o desrespeito ao modo tradicional de vida
dessa comunidade ocorreu a partir de diversas maneiras, indo da proibição à implementação de uma das
entradas do parque a partir de seu território. Contudo, com a mobilização social da luta por direitos, os
moradores começaram a fazer o movimento de retorno aos campos, mesmo com os receios advindos da
fiscalização do órgão gestor do parque, que é feito de modo truculento. Este movimento vem sendo celebrado
como a chamada dos apanhadores de sempre-vivas por sua liberdade e a autonomia.
Lugares de referência
Local onde era a sede da Fazenda dos Macacos;
Área onde os negros dançavam ("terreiro de semba");
Distrito de São João da Chapada;
Ruínas de Chapada Velha;
Comunidade Quilombola de Quartel do Indaiá;
Rio da Fazenda;
Serra do Galho;
Campo São Domingos;
Outros campos: Arrenegado; Vargem Grande; Lamarão e Quilombo.
Plantas, Mapas e/ou Croquis
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05 CONTEXTO SOCIOCULTURAL
A comunidade de Macacos possui a sua reprodução sociocultural enredada por um sistema agrícola tradicional,
composto pelas atividades de produção agrícola em roças de toco, a criação de animais de raças crioulas, o
extrativismo de produtos naturais de cerrado para finalidades alimentares, de geração de renda e de medicina
tradicional, bem como a coleta de espécies de flores sempre-vivas. Esta última atividade faz precisamente com
que os moradores desta comunidade identifiquem a si mesmos como apanhadores de flores sempre-vivas,
fazendo com que, mais do que apenas uma atividade econômica, seja uma atividade que os diferenciam
etnicamente em relação a outros grupos sociais.
Todos os elementos que compõem o sistema agrícola que é tradicionalmente desenvolvido pelos moradores de
Macacos envolvem saberes e técnicas que foram aperfeiçoados na interação historicamente estabelecida com os
diversos ambientes e paisagens da Serra do Espinhaço. Saberes estes são transmitidos entre as gerações que
ocuparam e ocupam este território tradicional, sendo mantidos entre esta coletividade.
Neste sentido, com relação à agricultura, os conhecimentos relacionam-se à produção das chamadas roças de
toco, que consistem em plantações feitas em áreas com restos de vegetação, que somam nutrientes ao solo. Uma
variedade de espécies são plantadas sem a aplicação de insumos químicos e mediante a utilização de sementes
crioulas, que justamente garantem a diversidade produtiva e, logo, a soberania alimentar para a comunidade.
Neste ponto, a cultura alimentar conforma uma dieta que tem como base os produtos agrícolas que são
plantados, colhidos e processados na própria comunidade, daqueles extraídos do cerrado. Assim, um exemplo
são as variedades de mandioca com as quais se fazem farinhas, que são bastante utilizadas na preparação de
receitas do dia a dia. A maior parte dos alimentos consumidos pela comunidade é produzida nos quintais que,
segundo eles, são uma “mistura de tudo”, pois possuem grande variedade de vegetais, hortaliças e frutos
plantados.
A criação de animais de raças crioulas, também participam da dieta, oferecendo a dose de proteínas necessária,
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como os ovos e carne de galinha, por exemplo. O gado possui valor e criá-lo é uma forma de investimento,
além de fornecer leite e carne, em geral para ocasiões festivas. A criação destes últimos conjuga o conhecimento
a respeitos dos diversos tipos de ambientes serranos, já que há períodos nos quais o gado é deslocado para a
porção alta da serra para pastar nos campos nativos, garantindo seu desenvolvimento.
A panha de flores sempre-vivas, por sua vez, envolve conhecimentos específicos sobre os campos e as épocas
específicas de cada espécie; sobre o manejo tradicional do fogo que, segundo os apanhadores, é necessário para
a própria sobrevivência das espécies; sobre as técnicas de como colher tendo o cuidado de deixar o chamado
"restolho" e sobre a organização dos buquês e seu transporte para as partes baixas. Ademais, subir a serra para
panhar sempre-vivas é vivenciado como um importante momento de sociabilidade intra e inter grupal. Apesar
dos problemas enfrentados no acesso aos campos de coleta, ao relatarem como é a rotina durante a época da
panha das flores, os apanhadores ressaltam a alegria, a união e os momentos de encontro e partilha entre si e
com outras famílias que são, muitas das vezes, de comunidades vizinhas que frequentam os mesmos campos.
Durante a panha, que dura cerca de oito horas por dia, os moradores de Macacos sobem de manhã para os
campos levando “merendas” e voltam no fim da tarde/ início da noite. Entre os alimentos que costumam
compor as merendas estão refeições cotidianas, como arroz, feijão, verduras, legumes e carne e também farinhas
de milho ou mandioca.
A relação com a água, que é bastante abundante no território, também requer saberes específicos para sua
manutenção, já que é compreendida como um bem natural diretamente envolvido com a manutenção presente e
futura da comunidade. Assim, a proteção de nascentes, por exemplo, através do plantio de lírios nas
proximidades é um desse conhecimentos que garantem a proteção deste recurso.
Junto às atividades que compõem o sistema agrícola, foi desenvolvida uma rica cultura material através de
saberes e modos de fazer que se utilizam, sobretudo, dos materiais disponíveis na natureza para construções,
ferramentas e acessórios para o trabalho produtivo e doméstico. Assim, as moradias, especialmente as mais
antigas, são constituídas por madeira e barro nos alicerces, além de tabatinga na tintura. Era comum também a
existência de Moinhos de fubá movidos pela força da água. De acordo com Geralda Soares, na preparação para
os casamentos, eram construídas a residência do futuro casal e um moinho de fubá para servir aos noivos.
Alguns desses moinhos podem ser encontrados ainda hoje na localidade. Se fazem presentes também as casas
de farinha, construídas com madeira e cipós e os fornos feitos com chapas de pedras retiradas dos campos e não
de ferro, como é comum em outros locais. Há também a fabricação de cercas, bancos, cabos de enxada, dentre
outros.
Este modo de vida tradicional também tem como conteúdo constitutivo um arcabouço de práticas, celebrações
e ritos que, sejam sagrados ou profanos, participam da construção dessa existência coletiva e desse processo
simbólico de ligação e de pertença ao território.
A Comunidade de Macacos está religiosamente vinculada ao catolicismo de forte acento popular, sendo que a
comunidade é basicamente católica. Com base nas pesquisas de periódicos, é possível evidenciar os rastros
históricos deste elemento formador da coletividade. Assim, no jornal de militantes católicos Pão de Santo
Antônio, por exemplo, há uma publicação que divulga os agradecimentos de João e Maria Dorothea Machado à
visita de moradores de Macacos e Quartel do Indaiá em decorrência da morte de sua filha, Maria do Socorro, no
ano de 1935. Quando o jornal passa a se chamar Voz de Diamantina, a partir do ano de 1936, há um volume
maior de notícias encontradas em referência à Comunidade de Macacos envolvendo práticas do catolicismo,
como a divulgação do pagamento de promessas a Santo Antônio, doações à Pia União do Pão de Santo
Antônio, que é uma associação dedicada à prática da caridade cristã e à propagação da devoção a Santo Antônio
de Pádua. Além disso, no jornal da Igreja Católica Estrela Polar há a publicação de expedientes do arcebispado e
entre eles estão divulgações sobre a ida de padres para a comunidade de Macacos e também autorizações para
realização da festa do Sagrado Coração de Jesus na capela da Fazenda dos Macacos, no ano de 1951.
O Sagrado Coração de Jesus é uma forte devoção que teve lugar em Macacos, provavelmente através dos
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ancestrais da Fazenda dos Macacos, e a ela é dedicada a capela da comunidade. Tombada pelo município de
Diamantina desde 2011, a Capela do Sagrado Coração foi construída entre 1940 e 1950, sendo inaugurada em
1957. Sua arquitetura é peculiar, por ser em formato octogonal irregular. Nela, são celebradas missas mensais, às
quais há grande adesão por parte dos moradores, que também costumam assistir às missas na comunidade São
João da Chapada, localidade em que muitos deles possuem casas ou parentes. A devoção ao sagrado Coração é
celebrada no mês de julho, junto à devoção a Nossa Senhora da Conceição. Segundo relatos, no passado
ocorriam duas festas por ano dedicadas a cada uma das divindades de devoção, entretanto, um padre que atuava
na comunidade determinou que as festas fossem realizadas em um único momento do ano.
O ciclo festivo é organizado anualmente por festeiros e consiste em momentos preparatórios e solenes até
chegar ao final de semana festivo propriamente dito. É costume haver a procura do mastro nas matas próximas,
sendo um momento bastante festivo quando o mesmo é carregado até a comunidade. Há também o período das
novenas, cujas orações são realizadas na igreja por grupos de devotos durante noves dias antes do dia da festa.
Já no final de semana, a celebração prossegue com o levantamento do mastro e hasteamento das bandeiras das
divindades, cujo momento é acompanhado por cânticos de louvor, da reunião ao redor das fogueiras e da
comunhão das comidas e bebidas tradicionais que foram preparadas, tais como “farofa”, arroz, feijão, carnes,
fubá suado e o cuscuz de panela, "caldos de tubérculos e doces de frutos da região" (MONTEIRO et al, 2019).
Neste momento festivo, é comum que os moradores que migraram para outras localidades retornem para rever
os parentes e participar das celebrações.
No âmbito do sagrado não institucionalizado, a benzeção é uma prática que se faz muito presente na
comunidade e o conjunto de conhecimentos que a envolve é transmitido entre as gerações, entre pessoas que
manifestam o dom. Segundo relatos de moradores, “os mais velhos” não costumam realizar as benzeções na
frente de outras pessoas, conformando uma aura de ‘segredo’ em relação aos procedimentos envolvidos na
prática. Entretanto, determinadas benzeções são mais acessíveis, sendo mais amplamente conhecida. Os rituais
de cura buscam sanar não somente os males que acometem as pessoas, mas também os animais, as plantas, a
casa, etc., de modo que para cada desordem, há uma reza específica.
Também se relaciona a essas práticas curativas, o conhecimento da vegetação nativa para seus usos medicinais,
através da preparação de soluções específicas com raízes, cipós, troncos, folhas, etc., para cada problema de
saúde. Prática de que atravessa gerações, a este respeito, a senhora Geralda Soares conta que seu pai sempre
“andava com uma bolsinha de pano” para coletar raízes e plantas enquanto andava pelo território, seja cuidando
das roças de toco e dos animais, seja panhando sempre-vivas nos campos. Quem dominava estes
conhecimentos, geralmente eram pessoas de referência da comunidade, que eram bastante respeitadas devido
aos saberes que possuía.
Além da prática de medicina tradicional, outro ofício bastante comum em Macacos era a presença de parteiras
responsáveis por auxiliarem as mulheres a terem seus filhos em casa, uma vez que o acesso à saúde em tempos
passados era muito precário. Atualmente, devido à melhoria no acesso, este saber já não é tão presente no
contexto sociocultural de Macacos, tal como era antigamente. As narrativas dão conta de outras práticas que
havia na comunidade em épocas passadas, tais como a saída de Pastorinhas, além de expressões culturais como
danças de roda, mas que hoje já não existem mais.
Outra questão bastante relevante para a comunidade é a manutenção das narrativas sobre o período em que a
Fazenda dos Macacos ainda era ativa e a escravidão ainda era vigente. Há relatos sobre o poder de Ana Rosa, a
vida dos escravizados, o garimpo e seus mistérios, as ruínas, etc.
Já no que se refere ao contexto sócio demográfico e espacial, atualmente a Comunidade de Macacos é composta
por cerca de vinte famílias que ocupam o território tradicional. Com a falta de oportunidade de trabalho e a
queda na geração de renda, especialmente após as proibições impostas pelo PARNA Sempre-vivas, muitas
pessoas, especialmente os mais jovens, migraram para outras cidades, tendo casos de mudanças até para outros
estados. Isso faz com que atualmente, a comunidade tenha característica etária predominantemente adulta.
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Como já foi pontuado, além das posses na comunidade, há famílias que também possuem moradias no distrito
de São João da Chapada, que é uma localidade com a qual Macacos possui relação histórica de parentescos e
sociabilidades. É para este distrito que as crianças e os jovens acessam educação, bem como as pessoas recorrem
aos serviços básicos de saúde. Quando necessitam de tratamentos mais complexos, recorrem à Diamantina e até
mesmo Curvelo ou Belo Horizonte.
A comunidade possui energia elétrica e acesso bastante precário à internet. Não há serviço de abastecimento de
água e esgoto, sendo que água das casas provém do encanamento de cursos d'água do território. Já o esgoto é
coletado em fossas. Também não há serviço de coleta de lixo, sendo que o mesmo geralmente é queimado.
Referências Culturais da Localidade
Saberes (ofícios e modos de fazer):
Modo de fazer roça de toco;
Quintais agroflorestais;
Panha de flores sempre-vivas;
Manejo tradicional do fogo;
Manejo da água;
Benzedor;
Medicina tradicional (Raizeiro);
Parteiras;
Técnicas construtivas;
Processamento de alimentos.
Celebrações e ritos:
Festa de Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora da Conceição (novenas; levantamento de mastro com
hasteamento de bandeiras; cânticos; fogueira);
Benzeção;
Missa.
Formas de expressão:
Literatura oral e memória.
Pessoas de Referência na Localidade
Geralda Maria Soares;
Eliane Todos os Santos Amorim;
Antônio Alves.
06 PROBLEMAS ENFRENTADOS
O cerceamento dos campos de panha e o controle destes por parte de agentes externos à comunidade
tradicional é o principal problema identificado na comunidade de Macacos. Essa situação ocorre desde os anos
de 1960, quando um padre estrangeiro comprou porções de terras de pessoas da comunidade e promoveu o
cercamento não somente deste terreno, mas de áreas adjacentes onde os moradores costumavam coletar as
flores Sempre-vivas. Com isso, os apanhadores passaram a ter que arrendar as terras onde, anteriormente,
praticavam a coleta de forma livre e comunitária. Com a consolidação da prática do “arrendamento”, o modo de
vida da comunidade foi duramente impactado, posto que, anteriormente, apesar da existência de propriedades
privadas e da divisão de terrenos dentro da comunidade, os moradores tinham livre acesso às áreas de panha e
solta do gado, que eram apropriadas de forma comum. Ademais, com a difusão da prática de arrendamento,
pessoas externas à comunidade passaram a frequentar o local nas épocas de colheita das espécies mais
valorizadas no mercado de flores sempre-vivas. Essas pessoas eram contratadas de modo autônomo para atuar
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na coleta de flores sempre-vivas, que para elas era uma atividade entendida exclusivamente do ponto de vista
comercial, causando comprometimento do manejo dos campos de coleta e também de todo o ecossistema da
região que é tradicionalmente realizado pelas comunidades de apanhadoras e apanhadores de flores Sempre-
vivas.
Além disso, com a criação do Parque Nacional das Sempre-vivas em 2002, os conflitos em torno do território se
aprofundaram, com a limitação do acesso da comunidade aos seus lugares de vida e reprodução sociocultural.
Em entrevistas concedidas ao Grupo de Pesquisa em Temáticas Ambientais - Gesta/UFMG, no âmbito do
projeto "Observatório dos Conflitos Ambientais em Minas Gerais" , os moradores da comunidade relataram
além do impedimento de circulação nas áreas tradicionais de coleta, alguns dos episódios de violência, de
intimidação e sobre os moradores da comunidade, por parte de agentes do Estado, particularmente aqueles
vinculados ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio (GESTA, 2012).
Em 2006, o IBAMA publicou e reeditou uma portaria que proibia a exportação de espécies da flora nativa
consideradas em extinção. Na lista constavam algumas das espécies flores sempre-vivas. Essas espécies eram
responsáveis por uma parte considerável das demandas do mercado externo e, portanto, mais valorizadas. No
mercado interno, no entanto, a comercialização daquelas espécies não foi proibida. De acordo com a portaria, as
espécies em extinção somente poderiam ser comercializadas se cultivadas ou manejadas de forma sustentável,
sob inspeção do órgão ambiental (MONTEIRO, 2011).
Outro problema enfrentado pela comunidade diz respeito à garantia de direitos básicos à população, como falta
de pavimentação e manutenção das rodovias que dão acesso à comunidade, bem como a falta de pontes e
manutenção das pontes existentes. Outro fator agravante em relação ao acesso ao território, diz respeito ao
fechamento da estrada real, que liga o povoado de Macacos ao de Curimataí, decorrente do cercamento do
Parque Nacional das Sempre Vivas, o que dificulta o transporte entre as duas comunidades (MONTEIRO et al,
2019). Os moradores reivindicam também a melhoria das estruturas de comunicações, como telefonia móvel e
internet.
07 PROPOSIÇÕES
A primeira e mais importante proposição a ser pensada refere-se à efetivação do direito coletivo ao território,
que é a garantia do pleno acesso aos recursos naturais e, logo, à continuidade sociocultural da Comunidade de
Macacos. Sendo uma comunidade tradicional que se autoidentifica como Apanhadora de Flores Sempre-Vivas,
Macacos possui direitos diferenciados e que são reconhecidos pela legislação, tanto no âmbito federal, como no
estadual. Nessa primeira esfera, destacam-se a própria Constituição Federal de 1988 e o Decreto Federal n°
6.040/2007. Já na segunda, o mecanismo que institui as políticas públicas de povos e comunidades tradicionais
em Minas Gerais, é a Lei Estadual n° 21.147/2014.
Além da questão da regularização fundiária, outra recomendação a ser executada refere-se à resolução dos
conflitos com a unidade de conservação que está sobreposta às terras de uso comum da comunidade. Assim,
uma das lutas dessa e de outras comunidades impactadas passa pela recategorização desta UC em categorias que
permitem a presença humana e reconhecem o papel das comunidades na conservação ambiental e manutenção
da biodiversidade através do manejo sustentável do ecossistema, tal como as Reservas de Desenvolvimento
Sustentável (RDS) e as Reservas Extrativistas (RESEX).
O Plano de Conservação Dinâmica traz uma série de ações que podem ser tomadas enquanto ações de
salvaguarda do sistema agrícola como patrimônio cultural. Assim, a partir do estabelecimento de parcerias com
diversos atores institucionais, são ações que versam sobre: assistência técnica em agroecologia e
agroextrativismo sustentável; valorização do uso de sementes crioulas; aperfeiçoamento das práticas de manejo
das espécies de sempre-vivas; promoção de boas práticas de manejo do fogo; promoção da cultura alimentar
local; promoção de práticas da medicina tradicional; pesquisas sobre os valores ecossistêmicos e socioculturais e
econômicos do sistema agrícola; pesquisas sobre as dinâmicas territorial e cultural dos sistema agrícola;
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adequação do marco legal municipal para reconhecimento dos sistema agrícola; fortalecimento da representação
dos apanhadores de flores nos espaços de consulta; melhorias e ampliação do acesso a serviços públicos (saúde,
educação, saneamento básico, energia e comunicação, transporte, ação social, esporte e lazer); construção de
protocolos de consulta; promoção de boas práticas com a água; inventário e fortalecimento das manifestações
culturais existentes; desenvolvimento da cadeia de valor das flores; organização do artesanato; melhoramento
das condições de beneficiamento e conservação alimentar; inclusão dos produtos aos mercados de circuito
curto; ampliação do acesso aos programas de compras de alimentos pelos governos e, por fim, ampliação do
turismo de base comunitária.
08 FOTOGRAFIAS
Figura 3: I Festival da Panha das Sempre-vivas: “Apanhar nosso Figura 4: Residências da comunidade
direito, cultivar nossa liberdade ” Fonte: Acervo Iepha-MG.
Fonte: Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas
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Figura 7: Capela do Sagrado Coração Figura 6: Paisagem da Serra do Espinhaço vista a partir do
Fonte: Acervo Iepha-MG. núcleo comunitário.
Fonte: Acervo Iepha-MG.
Figura 09: Senhora Geralda Soares, uma referência da comunidade. Figura 10: Produção de farinha de mandioca.
Fonte: Acervo Iepha-MG. Fonte: Acervo Iepha-MG.
09 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes:
Acervo da Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional
- Pão de Santo Antônio. 1918-1935
- A Estrela Polar. 1949-1961
Acervo Museu Tipografia Pão de Santo Antônio. Diamantina: Associação do Pão de Santo Antônio.
- Voz de Diamantina. 1936-1961
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ALMEIDA, Harley Fernandes de. Comunidade Quilombola de Quartel do Indaiá (MG) e Parque Nacional das Sempre
Vivas: direitos, territórios e saúde. 2014.
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Parque Nacional das Sempre-Vivas em ato. Disponível em:
https://www.caa.org.br/biblioteca/noticia/apanhar-nosso-direito-e-cultivar-nossa-liberdade-povos-ocupam-
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das Sempre-Vivas – Município de Diamantina, Buenópolis, Olhos D’Água e Bocaiúva, MG. GESTA/UFMG, Belo
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nacional das sempre-vivas. Disponível em: http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/conflito/?id=259. Acesso
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MARTINS, Marcos Lobato. A economia da sempre viva: o extrativismo em São João da Chapada (MG), 1930-
1970. PPGER/ UFVJM, 2019.
MONTEIRO, Fernanda Testa et al. Sistema Agrícola Tradicional Dos/Das Apanhadores/As De Flores Sempre-Vivas:
roças-de-toco, biodiversidade e transumância na Serra do Espinhaço Meridional (MG/Brasil). Diamantina:
Setembro de 2019.
MONTEIRO, Fernanda Testa. Os (as) apanhadores (as) de flores e o Parque Nacional das Sempre-Vivas (MG): travessias
e contradições ambientais. 2011.
REIS, Aremita Aparecida Vieira dos. Sentidos e significados (significações) atribuídos pelos povos à saúde e o processo de
implantação do Parque Nacional das Sempre-vivas: “sofrimento é ocê não ter liberdade”. 2018.
RIBEIRO, Loredana. Cativos do Diamante: Etnoarqueologia, Garimpo e Capitalismo. Revista
Espinhaço/UFVJM. [S.l.], p. 153-167, mar. 2017.
Disponível em: http://www.revistaespinhaco.com/index.php/journal/article/view/27. Acesso em 21/05/2020.
SOARES, Geralda Maria; ALVES, Antônio. Sistema Agrícola Tradicional dos Apanhadores de Sempre-Vivas .
[19 de dezembro de 2019]. Diamantina. Projeto SAT Sempre-vivas. Entrevista concedida a Ana Paula Lessa Belone
e Débora Raiza Carolina Rocha Silva. Disponível no Acervo documentalIepha-MG.
10 FICHA TÉCNICA
Fotografias Ana Paula Lessa Belone, Débora Rocha Silva/Acervo Iepha- Dez. 2019
MG
Áudios Ana Paula Lessa Belone, Débora Rocha Silva Dez. 2019
Transcrições Mariana Loures Morais Jan. 2020
Levantamento Mariana Loures Morais Dez. de 2019
Elaboração Mariana Loures Morais e Ana Paula Lessa Belone Dez. 2019 -
Mai. 2020
Revisão Ana Paula Lessa Belone Mai. 2020
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02 DESCRIÇÃO SÍNTESE
Mata dos Crioulos é uma comunidade quilombola cujo território tradicionalmente ocupado abarca seis
municípios da região do Alto Jequitinhonha. A ocupação de seu território se deu no contexto do pós-abolição e
a história de sua formação está ligada à presença de negros escravizados na região diamantina. É constituída por
oito localidades nas quais se distribuem as moradias das famílias, que se ligam por relações de parentesco e
reciprocidade. Essa comunidade desenvolve um sistema agrícola tradicional que envolve distintos saberes para a
produção de roças e de quintais agroecológicos, a criação de animais de pequeno e grande porte, o manejo de
produtos nativos e a panha de flores sempre-vivas, que são coletadas no alto da Serra do Espinhaço durante
determinado período do ano. Os moradores dessa comunidade possuem grande domínio sobre a Serra do
Espinhaço, manejando os seus diferentes ambientes.
03 CONTEXTO HISTÓRICO
A formação de Mata dos Crioulos está inserida no contexto pós-abolição, ao final do século XIX, com
a fixação dos primeiros ancestrais dos atuais moradores da comunidade, que eram ex-escravizados ou filhos de
escravizados vindos de fazendas da região, em direção à margem direita do rio Jequitinhonha e próximo ao Pico
do Itambé, duas referências naturais do território.
A presença de escravizados na região diamantina levanta indícios da ocupação negra dese território na
transição do século XVIII e XIX. Nesse contexto, um escravizado de nome Isidoro teria se estabelecido após a
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fuga junto a outros homens na mesma situação, em uma região de mata na Chapada do Couto, localizada no
alto da Serra do Espinhaço. Conhecido como Mata do Isidoro, este lugar, assim como o próprio negro Isidoro,
é uma referência às raízes e à ancestralidade da comunidade Mata dos Crioulos, de acordo com as narrativas dos
próprios moradores. Contudo, conforme consta no estudo do INCRA para identificação e delimitação do
território quilombola (2014), não se verificou uma correlação direta do negro Isidoro com a comunidade, ao
menos no que diz respeito à genealogia de parentesco (INCRA, 2014). Porém, a relevância dessa figura é
incontestável na conformação étnica, sociocultural e histórica dessa comunidade.
Um marco histórico dessa ocupação se deu ainda no século XVIII, através da Fazenda Santa Cruz do
Gavião, de propriedade de José Vieira Couto (INCRA, 2014). Ainda hoje essa fazenda faz parte da memória
social dos membros de Mata dos Crioulos, conforme pontua dona Jovita Correia, ao informar que os negros
eram enterrados em um cemitério localizado próximo à sede da fazenda.
Além das ruínas do cemitério, há também as ruínas de um antigo curral de pedras. Ambos foram
construídos por escravizados e também fazem parte da memória coletiva como uma referência cultural e,
portanto, parte de sua identidade quilombola. Contudo, os moradores se veem impedidos de acessar tais lugares
já que, atualmente, estão sob o controle do Instituto Estadual de Florestas - IEF. O curral de pedras foi
provavelmente utilizado no contexto das tropas, prática bastante comum na transição entre os séculos XVIII e
XIX.
A atividade tropeira ficou arraigada na cultura de muitas comunidades dessa região do Alto
Jequitinhonha. Em Mata dos Crioulos, por exemplo, era bastante comum o ajuntamento de animais de carga
para conduzirem os alimentos produzidos nas lavouras em direção aos mercados dos centros urbanos, tal como
recorda dona Jovita sobre os antigos: “Até que levava, tocava assim, seis burros pra cidade carregando das
coisas que a gente comia, era inhame, é farinha, é milho, né. Então levava pra vender na cidade”. Ademais, os
animais eram – e ainda são – bastante utilizados para o deslocamento até os campos e também para o transporte
das flores coletadas, desvelando os rastros das antigas tropas, mesmo após a decadência dessa atividade a partir
dos anos 50 do século XX (LOPES e MARTINS, 2011).
De acordo com a memória de ocupação do território, a chegada das primeiras famílias se deu em
função do trabalho n as roças, por meio do sistema de “terça” ou de “meia” nas terras dessa fazenda. O
estabelecimento dos moradores ocorreu em diferentes pontos do território, assim denominados: Acaba Mundo;
Cardoso; Pindaíba; Algodoeiro (família de Maria Hermínia); Covão (família Correia); Bica D’água (família
Pereira); Santa Cruz (família Gomes) e Serra da Bicha. Esse estabelecimento conformou núcleos familiares que
vêm historicamente se relacionando através do parentesco, da reciprocidade e do uso comum dos recursos
naturais das distintas paisagens.
Além da agricultura, o garimpo artesanal também compunha o universo de atividades econômico-
produtivas dos moradores de Mata dos Crioulos desde esse período. A coleta de botões e de flores sempre-vivas
somou-se como mais uma atividade a integrar-se ao modo de vida tradicional dessa comunidade, tornando-se
um dos elementos centrais de sua identificação, cultura e sistema agrícola tradicional, por envolver o
deslocamento e a permanência das famílias por longos períodos nos campos, localizados nas partes mais altas da
serra. A “panha de campina”, tal como a comunidade se refere ao manejo de sempre-vivas, ocorre há mais de
oitenta anos, de acordo com as referências cronológicas dos moradores mais antigos.
Os campos de uso comuns localizados na parte alta da Serra do Espinhaço são lugares de referência
historicamente manejados pelos habitantes de Mata dos Crioulos. Era em direção a eles que as famílias se
deslocavam com os gados para a solta e se estabeleciam na época de coleta das sempre-vivas. Uma vez no alto
da serra, as famílias “arranchavam” em lapas, que se transformavam temporariamente em suas moradias. Cada
uma ocupava ano após ano, a mesma lapa, fazendo com que estas recebessem a identificação das famílias que as
ocupavam como, por exemplo, “lapa do Lorico”, que era ocupada pela família do casal Lorico e Jovita Correia.
Dada à mudança sazonal, havia pessoas que até montavam pequenos estabelecimentos com provimentos para
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comercialização com os vizinhos e demais pessoas que frequentavam a serra na época da panha. Esse período
era, portanto, tempo em que se instaurava uma intensa sociabilidade, em que a atividade da panha era
entremeada por momentos lúdicos, festivos e religiosos.
No que diz respeito às manifestações do sagrado, as práticas mágico-religiosas associadas ao catolicismo
negro e popular, tais como a benzeção, predominavam em Mata dos Crioulos. Neste contexto, a comunidade
celebrava o ciclo natalino com as folia de reis, festejava os padroeiros com levantamento de mastros e montava
fogueiras para os santos juninos. Tais ritos foram sendo paulatinamente abandonados quando houve a
conversão de muitos moradores à religião evangélica de fundamento pentecostal. Conforme as narrativas, a
Igreja Assembleia de Deus se estabeleceu na comunidade há cerca de 40 anos, cuja sede foi erguida próxima à
residência da família de dona Jovita Correia. A partir disso, tomaram lugar os cultos religiosos que tem como
base o louvor, que consiste na entoação de cantos, e o sermão, quando há ensinamentos baseados na Bíblia.
Contudo, mesmo com as transformações verificadas na dimensão da religiosidade, ainda é bastante presente em
Mata dos Crioulos as práticas de cura e de proteção, cuja lógica está assentada no poder da oração a Deus.
A partir da década de 1990, os modos tradicionais de vida de Mata dos Crioulos, especialmente no que
se refere à panha de campina, foram severamente afetados pela criação de unidades de conservação da natureza
(UC’s). Tais UC’s se sobrepuseram aos territórios tradicionalmente ocupados da comunidade quilombola,
levando a processos de expropriação das áreas de uso comum pelos quilombolas/apanhadores de flores.
A primeira UC sobreposta ao território de Mata dos Crioulos foi o Parque Estadual do Rio Preto, no
ano de 1994, tornando-se o primeiro evento crítico a causar uma fragmentação dos arranjos tradicionais locais
ligados ao sistema agrícola tradicional, principalmente dos elementos vinculados à panha de flores. A esta UC
estadual seguiu-se a criação de outras: Parque Estadual Pico do Itambé (1998) e Área de Proteção Ambiental
Águas Vertentes (1998). Em todos eles não houve qualquer informação, nem mesmo consulta prévia aos
moradores de Mata dos Crioulos, a respeito dos processos em curso em seu território. Ao contrário, o que se
observou após a consolidação das UC’s foi a proibição e a criminalização da prática tradicional de panha de
flores nos campos, com afetações nas diversas esferas da vida. A gestão especialmente do Instituto Estadual de
Florestas - IEF Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tem sido considerada extremamente intransigente
com os moradores, além de provocar a expulsão dos mesmos das área de uso comum do território
tradicionalmente ocupados.
Ante os conflitos desencadeados pela implantação das UCs, foi criada no ano de 2010, a Comissão em
Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (CODECEX) a partir da representação de comunidades da
Serra do Espinhaço, dentre elas Mata dos Crioulos. A CODECEX atua, portanto, junto às comunidades
apanhadoras de flores e quilombolas que estão localizadas na porção meridional da Serra do Espinhaço,
apoiando suas lutas pela manutenção dos territórios, pela garantia de direitos, pelo manejo sustentável e pela
agrobiodiversidade, além de contribuir para a formação política dos comunitários.
Foi também em 2010 que essa coletividade passou a mobilizar-se em defesa do território, a partir da
compreensão de si como uma comunidade remanescente de quilombo. Esse processo de autorreconhecimento
teve lugar a partir da mobilização comunitária contra o projeto de ampliação envolvendo os Parques Estaduais
do Rio Preto e Pico do Itambé. A obtenção da certificação pela Fundação Cultural Palmares se deu em 21 de
dezembro do ano de 2010 e fez com que o projeto fosse interrompido (INCRA, 2014).
O processo de identificação étnica dessa comunidade levou à solicitação da regularização fundiária de
seu território tradicionalmente ocupado, cujo processo administrativo foi aberto pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA, no ano de 2011. Assim, em 2014, como parte do processo de
Regularização Fundiária do território de Mata dos Crioulos, o INCRA produziu o “Relatório Antropológico de
Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural”. Apesar disso o processo ainda segue em
aberto.
Outra ação que integra a luta em defesa do território de Mata dos Crioulos foi a candidatura, junto a
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outras comunidades apanhadoras de flores e/ou quilombolas, do Sistema Agrícola Tradicional dos Apanhadores
de Flores Sempre-Vivas da Serra do Espinhaço Meridional ao Programa “Globally Important Agriculture
Heritage Systems”, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO/ONU. Foi
durante o I Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas ocorrido em Diamantina nos dias
21 e 22 de junho de 2018, que o Dossiê de candidatura foi entregue à representação da FAO Brasil. No mesmo
Festival, Mata dos Crioulos recebeu da Comissão Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT-
MG), a certificação enquanto comunidade tradicional apanhadora de Sempre-vivas. Já nos dias 28 e 29 de julho
de 2019 houve a visita técnica do comitê científico da FAO/ONU ao município de Diamantina para avaliação
do Sistema Agrícola Tradicional em questão. Na ocasião, a comitiva composta também pela CODECEX, por
pesquisadores e representantes das prefeituras municipais, do governo estadual e federal visitou a Comunidade
Mata dos Crioulos para conhecerem os elementos do Sistema Agrícola Tradicional, sendo recebida pela família
de dona Jovita Correia. Em 11 de março de 2020, o SAT Sempre-vivas foi reconhecido enquanto patrimônio
agrícola mundial pela FAO/ONU.
Durante o II Festival comunitário dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-vivas de 2019
que ocorreu entre os dias 14 a 16 de junho de 2019 na comunidade Pé-de-Serra no Município de
Buenópolis/MG houve o lançamento do Protocolo Comunitário de Consulta Prévia, que é um instrumento que
foi construído coletivamente pelas comunidades quilombolas e/ou apanhadoras de flores sempre-vivas. Direito
previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, a consulta prévia é uma garantia
dos povos e comunidades tradicionais à escolha, participação e avaliação sobre qualquer interferência em seu
território e seus modos de vida, seja de empreendimentos a pesquisas acadêmicas.
Assim, o fortalecimento político de Mata dos Crioulos e a compreensão dos comunitários em serem
sujeitos de direitos coletivos veem repercutindo de diversas maneiras na vida dessa comunidade, especialmente
na retomada da tradição de arranchar nas terras de uso comum para a panha de campina, atividades que foram
proibidas com a criação das UC’s.
DATAS IMPORTANTES PARA A HISTÓRIA DA LOCALIDADE
Data Evento
Pós-abolição da Ocupação do território pelos ancestrais dos atuais moradores.
escravidão
Há cerca de 80 anos Memória de quando a panha começou a ser praticada no território de Mata dos Crioulos.
Década 1990 Criação de Unidades de Conservação Estaduais e início dos conflitos.
2010 Criação da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas
(CODECEX).
21/12/10 Certificação Quilombola pela Fundação Cultural Palmares.
2011 Abertura do processo administrativo para Regularização Fundiária do território pelo
INCRA.
2014 Produção do “Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica,
Ambiental e Sociocultural”, pelo INCRA, como parte do processo de Regularização
Fundiária de Mata dos Crioulos.
22/06/2018 Entrega do Dossiê de Candidatura à FAO/ONU durante o I Festival dos Apanhadores
e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas.
22/06/2018 Entrega da Certificação da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais
para a comunidade de Mata dos Crioulos.
28/07/2019 Visita técnica da FAO/ONU ao território de Mata dos Crioulos.
Fim de 2017 e início Subida e permanência nos campos para a panha de flores sempre-vivas após anos de
de 2018 (período da receio pelas proibições impostas pelos órgãos ambientais.
panha)
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04 CONTEXTO TERRITORIAL
O território tradicionalmente ocupado pela Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos possui uma
área total de 356.912.376.15 m² ou 35.691.2376 ha e está localizado na confluência de seis municípios do Alto
Jequitinhonha: Diamantina, Serro, Couto de Magalhães de Minas, São Gonçalo do Rio Preto, Felício dos Santos
e Serra Azul de Minas (INCRA, 2014). Dentre esses, é a sede do município de Diamantina que serve de
referência à comunidade no que diz respeito ao acesso a serviços básicos de educação, saúde, assistência social,
comércio, etc. Muitos moradores da comunidade, inclusive, mantêm vínculos com a sede por meio de
residências estabelecidas no bairro Palha, localizado na zona periférica do município, na saída para a
comunidade. Essas casas servem de suporte às famílias durante a estadia na zona urbana, conformando outras
condutas territoriais para além do território tradicionalmente ocupado.
É também a partir do município de Diamantina que se tem o melhor acesso para a comunidade, através
da única via trafegável por automóvel. A partir da cidade, o percurso é feito por estrada de terra, percorrendo
uma distância de cerca de 20 km até a ponte Acaba Mundo que, sob o rio Jequitinhonha, é o marco inicial do
território.
A Comunidade se encontra cravada na Serra do Espinhaço e é cortada pelo rio Preto, sendo que muitas
das moradias se encontram ao longo do seu curso ou de seus afluentes, em meio a áreas de matas e de morros.
As habitações estão dispostas de forma esparsa pelo território, de modo que à primeira vista, algumas são
imperceptíveis em meio à paisagem, integrando-se a ela.
O território é composto por um total de oito localidades: Acaba-Mundo; Cardoso; Pindaíba;
Algodoeiro; Covão; Bica D’água; Santa Cruz e Serra da Bicha (INCRA, 2014). Ao todo, Mata dos Crioulos
possui um número estimado de 140 famílias. O território compreende, ainda, duas escolas municipais, uma
igreja evangélica e uma associação comunitária, cuja sede está instalada na localidade de Algodoeiro.
A configuração do território de Mata dos Crioulos está estreitamente vinculada às relações de
parentesco estabelecidas ao longo de sua história. De um modo geral, a organização social estabelecida na
comunidade é a que preconiza que após o casamento, a área de propriedade do pai do marido seja o destino de
domicílio da nova família, conformando regras de herança e de posse de terras (INCRA, 2014). Portanto, no
geral, na medida em que os homens se casam, é mais comum construírem moradias nas terras paternas, fazendo
com que estas sejam utilizadas por gerações de uma mesma família. As relações de vizinhança e de compadrio
(esta última em menor intensidade após a conversão religiosa) também são estratégias de fomentar parentescos
e, assim, garantir o domínio sobre o território, além dos próprios códigos morais, culturais, sociais, etc.
As moradias de Mata dos Crioulos são cercadas por quintais com grande variedade de cultivos como
hortaliças, ervas para uso medicinal e árvores frutíferas. Ao redor das casas há também espaço para a criação de
animais de pequeno porte, como porcos e galinhas, além de construções tais como casas de farinha, paiol,
espaços para guardar as flores coletadas, entre outras.
Já as roças de toco podem estar localizadas tanto próximas quanto mais distantes das moradias, sendo
comum uma mesma família possuir mais de uma roça em distintos locais do território. Quando necessário, há a
organização coletiva do trabalho em mutirões ou trocas de dias. O modo de fazer roças de toco consiste em um
saber tradicional baseado na derrubada e queima da vegetação na época de preparo do solo para o plantio,
fazendo com que a terra seja fertilizada para receber as sementes e mudas. Nesse sistema de plantio, após certo
tempo de uso de um mesmo espaço para as roças, a área entra em pousio por alguns anos até haver uma
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regeneração da terra, para receber novamente uma plantação. Neste ponto, é importante referenciar os
chamados guardiões de sementes crioulas como importantes na manutenção da variedade de alimentos
disponíveis no território. Assim, as famílias quilombolas de Mata dos Crioulos manejam uma grande diversidade
de espécies cultivadas, além do conhecimento das espécies nativas de valor alimentar, o que garante segurança
alimentar ao grupo durante todo o ano.
Na época da campina, que ocorre no período de janeiro a abril, as pessoas da comunidade fazem o
movimento de transumância para as cotas mais altas da serra do Espinhaço, também conhecidas como chapada,
onde estão localizados os campos de coleta e os espaços para a solta do gado. Esse deslocamento geralmente é
feito a cavalo, a pé, de motocicleta, ou mesmo de automóvel, que passou a ser utilizado mais recentemente.
Assim como nas áreas das moradias, os comunitários também possuem um grande domínio sobre os ambientes
dos campos de coleta, por meio do manejo tradicional da flora nativa e, por conseguinte da própria paisagem,
que vai sendo configurada na estreita relação estabelecida com os quilombolas/apanhadores de flores.
Na época da panha, as famílias costumam acordar cedo para se deslocarem até os campos de coleta, já
que alguns estão distantes das lapas e ranchos. Lá, permanecem horas na prática de coleta, que demanda grande
técnica e esforço físico. Contudo, mesmo com a dificuldade imposta pela atividade, os apanhadores e
apanhadores costumam dizer que se o corpo cansa a mente descansa, pois estar nos campos proporciona uma
grande sensação de liberdade. Durante o dia, as pessoas envolvidas no trabalho costumam cantar hinos
religiosos, conforme disse dona Jovita, que é uma forma de fazer o tempo passar de forma mais alegre.
Os campos de flores são utilizados de forma comum, sendo compartilhado por todas as famílias na
realização da panha. Dessa forma, em Mata dos Crioulos tem-se o costume de não panhar todas as flores
disponíveis, garantindo a campina para os próximos que utilizarão o mesmo lugar para a panha. Mesmo a última
família a realizar a panha, não coleta todas as flores dos campos, deixando para trás os chamados “restolhos”. A
manutenção de determinada quantidade das espécies é também uma estratégia de conservação das flores e
botões, calcadas nos saberes tradicionais desenvolvidos ao longo do tempo pelos quilombolas.
Ao final do dia, as pessoas voltam às suas moradias com as flores coletadas. Uma vez nas lapas e nos
ranchos, o trabalho prossegue, e consiste na disposição da colheita, de forma que as sempre-vivas possam secar
ao sol. Posteriormente, as plantas são arranjadas em buquês que são batidos no chão de forma a organizar e
limpar os arranjos. Nesse procedimento, as sementes se desprendem e caem sobre o solo, o que faz com que
possam ser novamente germinadas.
Dessa maneira, a relação no trato com o meio ambiente se mostra nos conhecimentos tradicionais, que
foram desenvolvidos e transmitidos entre gerações. Esses saberes se referem, entre outros, à própria panha de
flores, ao manejo do fogo, ao conhecimento das plantas do cerrado e de seus usos, além do próprio modo de
vida desenvolvido no alto da serra. Na chapada cada localidade possui uma toponímia que foi atribuída pelos
ancestrais dos atuais moradores, dentre os quais: Capão Coqueiro, Mata Galinha, Lapa da Garricha, Cotó, entre
tantas outras.
Antes dos conflitos deflagrados pelas unidades de conservação, o ritmo sazonal instaurado pela panha
de sempre-vivas era algo vivenciado com muita intensidade pela comunidade, por meio de uma sociabilidade
própria entre sua coletividade. Contudo, com a sobreposição das áreas de proteção ambiental às terras de uso
comum e a consequente expropriação dos territórios, essa dinâmica foi fragilizada, pois as pessoas foram
proibidas de acessar os campos para panhar flores e de arrancharem nas lapas. Após uma série de ações em
defesa dos territórios empreendidas especialmente por meio da Comissão em Defesa das Comunidades
Extrativistas – CODECEX, os comunitários vêm retomando essa tradição.
É importante mencionar ainda, conforme dados do Relatório do INCRA, que próximo à localidade denominada
Acaba-Mundo havia um empreendimento minerário, cujas atividades já estavam embargadas judicialmente à
época dos estudos para elaboração do documento (INCRA, 2014). Portanto, além dos conflitos com as UC’s, o
território de Mata dos Crioulos também tem na mineração um risco de expropriação territorial.
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Lugares de referência
Mata do Isidoro
Pico do Itambé
Chapada do Couto
Lapas
Sede da Associação de Moradores
Escola Municipal
Sede da Fazenda Santa Cruz do Gavião
Ruínas do cemitério
Cruzeiro de Santo Antônio
Ruínas do curral de pedra
Ponte do Acaba Mundo
Bairro Palha (Diamantina)
Plantas, Mapas e/ou Croquis:
05 CONTEXTO SOCIOCULTURAL
As características socioculturais de Mata dos Crioulos foram sendo construídas tendo o pertencimento
ao território como base elementar, a partir de determinados sinais tais como: a ancestralidade negra de ocupação
do espaço, a coleta de flores sempre-vivas, os animais de carga, a agricultura, o garimpo artesanal, dentre outros,
que lhes confere identidade étnica específica como grupo social.
Essa comunidade possui cerca de 140 famílias dispersas pelas diferentes localidades que estão nas cotas
baixas do território e que estão ligadas, sobretudo, por laços de parentesco, de vizinhança e de compadrio. A
grande maioria dos moradores nasceu na comunidade, mas há também moradores vieram de localidades que
mantêm relações de proximidade com Mata dos Crioulos.
Dado o contexto de exclusão histórica que permeia a constituição de Mata dos Crioulos, seus
moradores possuem uma carência de direitos e de cidadania, dentre os quais de infraestrutura básica, sendo que
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a maior parte dos moradores não possui energia elétrica em suas residências e rede de coleta e distribuição de
água.
Atualmente, os nascimentos costumam ocorrer em hospitais, especialmente no município de
Diamantina, o que revela uma mudança gradual na cultura dos partos naturais domiciliares, em especial, da
centralidade da figura das parteiras. Contudo, em Mata dos Crioulos ainda existem parteiras que auxiliam as
mulheres em casos nos quais o parto ocorre na comunidade, o que mostra a continuidade dessa tradição, que é
transmitida entre gerações de mulheres.
De acordo com observação preliminar feita durante o processo de pesquisa para o registro, Mata dos
Crioulos é uma comunidade formada predominantemente por pessoas cuja faixa etária média está entre 30 e 60
anos. Contudo, há também um expressivo número de crianças e de jovens nas famílias que junto a outros
fatores, garante a continuidade dos descendentes no território tradicionalmente ocupado.
Por ser composto de uma maioria adulta, o nível de escolaridade da maior parte dos moradores ainda é
baixo, fruto do contexto de exclusão histórica que permeia a comunidade. Contudo, nos últimos anos houve um
incremento no acesso ao ensino superior por meio do ingresso de jovens da comunidade na Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. Esse fato até então raro entre os habitantes, provoca
um impacto positivo na comunidade, corrigindo, em certa medida, uma desigualdade histórica e fortalecendo a
compreensão de que são sujeitos de direitos.
As crianças frequentam a escola pública municipal presente na comunidade até a conclusão do quinto
ano do ensino fundamental. Para a continuidade dos estudos é necessário que os jovens, posteriormente,
frequentem as escolas da sede dos municípios aos quais acessam serviços. De acordo com informação dos
moradores cedidas ao Iepha-MG, a prefeitura de Diamantina disponibiliza transporte para o deslocamento dos
estudantes, o que é feito com certa dificuldade devido às condições das estradas. Há famílias que se mudam
temporariamente para Diamantina durante o período letivo dos filhos, para facilitar a logística.
Ainda segundo os moradores, antigamente era comum toda a família se mudar para a chapada durante
o período da panha de flores sempre-vivas. Assim, as crianças também acompanhavam seus pais nos campos de
coleta, sendo uma vivência necessária para o aprendizado de todas as etapas da panha, bem como, da solta dos
gados. Já hoje em dia, muitas das crianças em idade escolar sobem para os campos quando estão no período das
férias escolares. A esse respeito, de acordo com o Relatório do Incra (2014, p. 111), a divisão do trabalho nesse
período envolve todos da família, inclusive as crianças que, ao mesmo tempo que ajudam os pais nas tarefas da
casa, roça, criação e panha, também aprendem a lidar com as atividades que perfazem o cotidiano, além de
dominar os vários ambientes do território.
Muitas das moradias e outras estruturas são construções vernaculares feitas a partir de matérias-primas
obtidas na própria região tais como barro, fibras naturais e folhas de palmeiras para a cobertura do teto, além de
madeiras de diversos tipos. Contudo, há muitas casas que também são construídas com materiais de alvenaria.
As técnicas construtivas empregadas são saberes tradicionais dominados por homens e mulheres. Há também
uma rica cultura material envolvida na fabricação de utensílios para o beneficiamento de alimentos, que vão
desde moendas para o processamento da cana, passando por casas de farinhas e a fabricação de fogões a lenha,
e de utensílios de uso doméstico, como mancebos, alforjes de taquara, entre outros.
A variada produção agrícola, o manejo de produtos nativos e a criação de animais de pequeno e de
grande porte como práticas estruturantes do sistema agrícola tradicional desenvolvido por Mata dos Crioulos
produz uma rica e diversa cultura alimentar, que assegura a soberania dos moradores da comunidade com
relação à alimentação. São as mulheres, em sua maioria, que transmitem através de gerações os saberes de como
preparar as refeições que fazem parte do cotidiano das famílias, valendo-se de ingredientes encontrados no
bioma do cerrado, tais como o gondó e o broto de samambaia, ambos muito importantes para a cultura
alimentar local; utilizando produtos da roça e dos quintais, com importância dada, por exemplo, ao milho, à
mandioca, ao feijão e aos temperos; consumindo proteínas por meio de frangos e de porcos e transformando as
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frutas em sucos e doces. Nos momentos festivos, tais como casamentos e aniversários, a comunidade tem por
costume fazer refeições com carnes, arroz e macarrão, que é um dos poucos alimentos adquiridos na cidade.
O âmbito da produção e do manejo desenvolvido no sistema agrícola tradicional também integra os
conhecimentos que os moradores têm a respeito das plantas com finalidades curativas e medicinais. Os
remédios feitos a partir de raízes, troncos, folhas, cascas, etc., provém de saberes que foram e ainda são
repassados no tempo, e que servem para tratar de diversos males, tanto de humanos como de não humanos, o
que revela a inter-relação dos elementos que compõem esse sistema.
Referências Culturais da Localidade
A partir do que foi pontuado nos contextos histórico, territorial e sociocultural, a comunidade Mata dos
Crioulos apresenta as seguintes referências culturais:
Saberes:
- “Panha” de campina;
- Roça de toco;
- Manejo tradicional do fogo;
- Medicina Tradicional (ervas e raízes);
- Cultura alimentar;
- Técnicas construtivas tradicionais;
- Artesanato em madeira;
- Artesanato com fibras vegetais;
- Práticas de rezas e de curas;
- Guardiões de sementes;
- Parteiras.
Celebrações e ritos:
- Mutirão;
- Cultos evangélicos;
- Santa Ceia.
Formas de Expressão:
- Hinos religiosos.
06 PROBLEMAS ENFRENTADOS
O maior problema que Mata dos Crioulos vem enfrentando nos últimos tempos está ligado à
sobreposição das unidades de conservação em seu território tradicionalmente ocupado. As categorias dessas
áreas naturais protegidas pelo Estado seguem um modelo que desconsidera as relações intrínsecas que as
comunidades tradicionais estabelecem com o meio ambiente e vive versa, excluindo seus modos de vida e
expulsando-as de seus territórios. No contexto em tela, a criação dessas UC’s estaduais foi feita completamente
à revelia da comunidade, que não foi ouvida em nenhum dos processos.
Além das UCs, outra questão que afeta Mata dos Crioulos advém da instalação de empresas
mineradoras no território. Assim como ocorreu no caso das unidades de conservação, os processos envolvendo
esses empreendimentos têm sido feitos violando o direito à consulta prévia à comunidade quilombola. Essa
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violação ocorre desde a etapa da pesquisa minerária até a efetiva instalação da atividade. Assim, licenças
ambientais vem sendo emitidas desconsiderando a existência da comunidade quilombola nos processos de
licenciamento. Isto deflagra conflitos, nos quais Mata dos Crioulos segue lutando pela manutenção de seu
território ancestral.
A proibição dos moradores em acessar as terras de uso comum para a coleta de flores e a solta do gado,
cujos saberes e técnicas envolvidas compõem seu modo de vida tradicional, veio acompanhada de episódios de
violação de direitos humanos, ainda muito presentes na memória dos comunitários. Os impactos dessas ações
foram amplos e duradouros, com repercussão na vida social de Mata dos Crioulos. Há relatos de que mediante
as ações truculentas e sem diálogo dos órgãos gestores das UC’s, houve casos de adoecimento por conta dos
cerceamentos a que os moradores foram submetidos ou mesmo casos em que pessoas se mudaram para
Diamantina por não poderem mais ir à chapada. Como anteriormente pontuado, os modos de vida tradicionais
dessa comunidade quilombola foram afetados de maneira bastante significativa em praticamente todos os
âmbitos. Ademais, para além de terem interferido na organização social, cultural, produtiva, econômica, dentre
outras, que a sazonalidade da coleta de flores instaurava, a percepção dos próprios comunitários é de que não
houve uma maior preservação da natureza após a instauração das UC’s,. Ao ignorar os saberes tradicionais da
comunidade, a exemplo daqueles relacionados ao manejo do fogo, a percepção é a de que as queimadas nos
campos aumentaram e de que a ocorrência de algumas espécies de flores diminuiu.
Após a criação da CODECEX e a intensificação da luta pelo direito ao território, houve alguns avanços
na relação com a gestão das UC’s, conforme a percepção de dona Jovita Correia. Segundo ela, se antes a
comunidade era completamente impedida de atravessar a cerca que demarca o parque para ter acesso aos
campos de coleta, hoje os comunitários não se sentem mais amedrontados como antes para panharem as flores.
Contudo, apesar disso, o conflito segue em curso.
Ainda que o processo de implantação e gestão das unidades de conservação no território quilombola
seja a questão de maior impacto, há outras dificuldades que acompanham a comunidade há tempos. Muito dos
demais problemas que afetam Mata dos Crioulos estão diretamente relacionados à invisibilidade histórica dessa
coletividade perante os poderes públicos e a sociedade em geral. Isso se apresenta de diversas maneiras, a
começar pela dificuldade de acesso à comunidade e suas localidades, já que a estrada é de terra e possui vários
trechos íngremes e difíceis de transitar. Isso repercute no escoamento das flores sempre-vivas, de produtos das
roças, dos quintais e da pecuária para Diamantina. Além disso, na época das chuvas, o transporte escolar não
vai até a a comunidade, impedindo o deslocamento dos jovens para a escola e dos moradores de um modo
geral.
Ainda no que diz respeito a serviços básicos, a grande maioria das famílias não possui luz elétrica em
suas residências, fazendo com que o cotidiano seja permeado por dificuldades que vão desde o modo como se
os alimentos são acondicionados, até a impossibilidade de utilizar eletrodomésticos e chuveiro com água quente.
Um programa governamental havia instalado pequenas placas solares nos quintais, porém, algumas pessoas
disseram que o dispositivo não dá conta de produzir energia elétrica suficiente para a família. Ademais, não há
rede de esgotamento sanitário e nem coleta de lixo. O esgoto doméstico é jogado em fossas, enquanto o lixo é
queimado, em sua maioria. Já a água que abastece as residências procede de nascentes e cursos d’água de dentro
do território, sendo encanada e distribuída entre os moradores. Dona Jovita pontuou que algumas famílias
receberam caixas d’água por meio de um programa governamental da Emater-MG, assim como os canos para
direcionamento da água.
Por fim, um grande problema que persiste e que é colocado como uma das principais apreensões em Mata dos
Crioulos diz respeito à situação fundiária, uma vez que até o presente momento, não houve a titulação do
território quilombola. Assim, sem a titulação, a comunidade permanece em constante risco de expropriação
territorial, seja pela política ambiental conservacionista, a qual as unidades de conservação são o maior exemplo,
seja pela política econômica desenvolvimentista, em que os empreendimentos minerários se destacam.
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07 PROPOSIÇÕES
A partir dos problemas que foram apontados, a ação de maior urgência para a Comunidade Quilombola
Mata dos Crioulos refere-se ao direito coletivo ao seu território tradicionalmente ocupado, por meio da titulação
da terra. Além de corrigir a exclusão histórica a que essa comunidade está submetida, a regularização da situação
fundiária é a garantia fundamental para a produção e reprodução do sistema agrícola tradicional da comunidade,
bem como, para a defesa ante as sucessivas expropriações que vem sofrendo. Nesse sentido, se enquadrando na
categoria de terras devolutas do Estado de Minas Gerais, uma via para se pensar a regularização fundiária do
território de Mata dos Crioulos é através dos mecanismos legais do próprio Estado de Minas Gerais,
especialmente o Decreto n° 47.289, de 20 de novembro de 2017 que institui dentre outros procedimentos a
“identificação, discriminação e titulação dos territórios tradicionalmente ocupados por povos e comunidades
tradicionais”. Nesse sentido, o estabelecimento de um diálogo institucional entre o INCRA, a Secretaria de
Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Seapa-MG e o Iepha-MG se faz primordial, posto que esses
órgãos podem coletivamente construir formas de regularização do território.
Quanto às unidades de conservação que estão sobrepostas ao território de Mata dos Crioulos, as
proposições de soluções nascem a partir da própria experiência da comunidade e de sua luta pelo território. É
necessário, portanto, que o processo de regularização fundiária da comunidade seja concretizado, com a
desafetação e titulação coletiva do território ocupado pelos quilombolas.
A sobreposição das UC’s a porções do território ocupado, o que foi feito de forma a ignorar por
completo a presença histórica das comunidades nos territórios, bem como, seus modos de vida que garantem a
manutenção dos ambientes da Serra do Espinhaço, gerou uma série de enfrentamentos. Dessa forma, é
importante que a comunidade possa retomar seu território, incluindo lugares que são referência à sua memória,
como as ruínas e a sede da fazenda, que hoje estão sob o domínio do IFF.
Além disso, é necessário que haja um trabalho de formação com os gestores das UC’s estaduais e
federal que atuam na região da Serra do Espinhaço quanto à presença e a relação de populações humanas com o
meio ambiente e seus recursos naturais. Especialmente no que diz respeito aos povos e comunidades
tradicionais, sua presença no território não significa destruição da natureza, posto que a relação com a terra não
é regida pela lógica de mercado. Ao contrário, tais grupos humanos são dependentes da contínua reprodução
dos recursos naturais renováveis para sua própria reprodução sociocultural (DIEGUES, 1996).
Ademais, o Plano de Conservação Dinâmica que integra o documento de candidatura ao selo da
FAO/ONU, contém uma série de outras ações a serem executadas nas comunidades que desenvolvem o
Sistema Agrícola Tradicional. Tais proposições foram pensadas em conjunto pelas próprias comunidades,
dentre elas Mata dos Crioulos, a partir das necessidades situadas desde dentro. Nesse tocante, quanto ao acesso
a serviços públicos básicos dessa comunidade quilombola, há ações que cujas metas são o estabelecimento de
acordos com a Prefeitura de Diamantina para os atendimentos nas áreas de saúde, educação, saneamento básico,
energia elétrica e transporte à população de Mata dos Crioulos.
Há também proposições que dizem respeito a ações que valorizem e promovam os conhecimentos dos
distintos ambientes manejados, relacionados à produção agroecológica (roças e quintais), ao agroextrativismo
(produtos nativos do cerrado e flores sempre-vivas), à conservação de sementes crioulas, ao uso tradicional do
fogo e às áreas de pastagens dos gados. Além disso, ações que objetivam estudos sobre a dinâmica territorial, os
saberes tradicionais e a transmissão entre as gerações.
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08 FOTOGRAFIAS
Figura 1: Marco de início do território da Comunidade Quilombola Figura 2: Acesso a duas localidades da Comunidade Quilombola
Mata dos Crioulos. Mata dos Crioulos.
Fonte: Acervo Iepha-MG Fonte: Acervo Iepha-MG
Figura 3: Gados em curral na localidade de Covão. Figura 4: Roça de toco próxima à moradias, em meio a um dos
Fonte: Acervo Iepha-MG ambientes manejados no território.
Fonte: Acervo Iepha-MG
Figura 5: Moradia na comunidade quilombola. Figura 6: Lapa utilizada como casa de farinha no território
Fonte: Acervo Iepha-MG quilombola.
Fonte: Acervo Iepha-MG
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Figura 7: Jovita Correia e sua filha em frente à cerca que marca o Figura 8: Panha de flores Sempre-vivas nos campos no alto da
limite do Parque Estadual do Rio Preto, sobreposto ao território Serra do Espinhaço.
quilombola. Fonte: Acervo Iepha-MG
Fonte: Acervo Iepha-MG
Figura 9: Jovita Correia e sua filha com flores Sempre-vivas Figura 10: Cozinha com fogão a lenha.
colhidas. Fonte: Acervo Iepha-MG
Fonte: Acervo Iepha-MG
Figura 11: Ilza Correa com flores Sempre-vivas. Figura 12: Flores Sempre-vivas.
Fonte: Acervo Iepha-MG. Fonte: Acervo Iepha-MG.
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09 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Relatório Antropológico de Caracterização Histórica,
Econômica, Ambiental e Sociocultural. Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos, Diamantina – MG. 2014.
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista da Serra do Espinhaço Meridional, Minas Gerais (Brasil). Minas Gerais,
2019.
DIEGUES, Antônio Carlos Diegues. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2001.
LOPES, Marco Antônio; MARTINS, Marcos Lobato. Negócio à moda antiga: tropas de comércio em
Diamantina nos meados do século XX. História (São Paulo), v. 30, n. 1, p. 332-348, 2011.
10 FICHA TÉCNICA
Fotografias Ana Paula Belone, Débora Raiza Mai. 2019 a Jan. 2020
Áudios Ana Paula Belone Mai. 2019
Transcrições Ana Paula Belone Jun. 2019
Levantamento Ana Paula Belone, Débora Raiza Rocha Jan. e fev. 2020
Elaboração Ana Paula Belone Jan. 2020
Revisão Ana Paula Lessa Belone, CODECEX, Débora Raiza Mar a Mai. 2020
Rocha, Laura Moura Martins
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02 DESCRIÇÃO SÍNTESE
Composta por cerca de 300 famílias, a comunidade de Pé de Serra é uma das que compõe o Sistema
Agrícola Tradicional das Apanhadoras e Apanhadores de Flores Sempre-vivas. Localizada no sopé da Serra do
Espinhaço Meridional, o clima que se configura na região é o semiárido, o que faz com que o Rio Jequitaí,
próximo à comunidade, adquira grande importância na vida dos comunitários. As terras altas e encostas da Serra
também compõem o território tradicionalmente ocupado por esta comunidade, que pratica o cultivo de roças,
quintais agroflorestais criação de gado rústico e a coleta das flores sempre-vivas, demonstrando um profundo
conhecimento do território e uma gama de saberes tradicionais que se conformam na interação, ao longo do
tempo, com os agroambientes que se conformam nesta região. A religiosidade que predomina na comunidade é
o catolicismo popular, o que se reflete em muitas das manifestações culturais, como a Folia de Reis e as festas
em devoção a santos católicos, como São Sebastião e Nossa Senhora Aparecida. Atualmente, o território
tradicionalmente ocupado pelo grupo está sobreposto pela implantação do Parque Nacional das Sempre-vivas, o
que vem gerando conflitos e interdições ao modo de vida tradicional dessa comunidade.
03 CONTEXTO HISTÓRICO
A ocupação humana na região onde se localiza o território tradicionalmente ocupado pela comunidade
Pé de Serra remonta a períodos pré-históricos. Essa informação ganha força através dos vestígios arqueológicos
encontrados na Serra do Cabral, que faz parte da cordilheira da Serra do Espinhaço e está a 36 quilômetros de
distância da comunidade Pé de Serra. As inúmeras pinturas rupestres, além de materiais cerâmicos e líticos
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encontrados na região apontam para uma intensa presença de grupos humanos nômades nessa porção do
centro-norte mineiro, ao longo de várias etapas temporais (SEDA e PANGAIO, 2016, p. 46).
O processo de ocupação da região prosseguiu ao longo dos períodos pré-colonial por meio de grupos
indígenas, e colonial, com os portugueses colonizadores e os negros, trazidos ao Brasil em função do trabalho
forçado. Com relação ao povoamento indígena no território onde se estabeleceu a comunidade tradicional de Pé
de Serra, é preciso dizer que muitas etnias sofreram violentos processos de desterritorialização ao longo da
empreitada colonizadora dos sertões mineiros, sobretudo devido às práticas de aldeamento. A presença de
indígenas na conformação sociocultural desse território se faz presente a partir das narrativas dos próprios
moradores da comunidade. De acordo com a memória dos habitantes de Pé de Serra, a formação da
comunidade tem início com a junção entre um fazendeiro denominado Francisco Santos Coelho e uma índia
“tapuia”, que teria sido “pega no laço”, expressão que definia o ato de sequestrar mulheres indígenas de suas
aldeias. O vínculo com essa história está na chamada família dos Santos, também conhecidos como os Panta,
identificados como um dos primeiros troncos familiares a se estabelecerem nesta área. Conta-se que esse núcleo
familiar tem como ancestral fundador, Francisco Coelho, que, segundo consta, estabeleceu uma fazenda onde
hoje é Pé de Serra, há cerca de 300 anos. A esse respeito, o senhor Afro Alves dos Santos, membro dessa
família, assim conta: “Eu sei que quem chegou primeiro, da nossa descendência é do Francisco Santos Coelho, o
cabeçalho da fazenda é em nome dele todo. Tá registrado certinho, mas não tem inventário. Mas nós também
temos geração de tapuio, cê entendeu? [...]” (SANTOS, 15 de junho de 2019).
De acordo com a pesquisadora Núbia Ribeiro, “Tapuia” consiste em um termo genérico para designar
o “povo considerado como os primitivos habitantes das vastas terras do Brasil, [e que] tornou-se comum no
vocabulário para designar o inimigo gentio no interior da colônia” (2008: p. 64-65). O que abre à compreensão
de que esse termo poderia englobar diversas etnias indígenas que habitaram e/ou passaram pela área. Porém,
ainda segundo a pesquisadora, os índios Tapuia, em maior número nas Minas, procuravam habitar próximos aos
rios das bacias Franciscana e do Jequitinhonha (RIBEIRO, 2008), constatação que referenda a narrativa dos
moradores da comunidade de Pé de Serra.
Por outro lado, é importante destacar que esse território foi ocupado também por negros na condição
de escravizados, devido ao trabalho nas fazendas existentes na região. Um dos exemplos dessa dinâmica é
corroborado pela narrativa presente na comunidade de Macacos, localizada no município de Diamantina. De
acordo com a senhora Geralda Maria Soares da Silva, os ancestrais fundadores dessa comunidade, Ana Rosa e
José Manuel Joaquim de Vilas Boas tinham uma propriedade, denominada Fazenda Macacos, situada na
vertente ocidental da Serra do Espinhaço, onde está localizada a comunidade Pé de Serra. De acordo com
história contada:
[...] Tinha muito gado. Ela tinha uma outra fazenda, dizem que lá pro lado do [...] Lá na
Taboca [...] É, no sertão, no Pé de Serra tem a fazenda Taboca lá, era dela [...] Aí o gado
descia lá de cima, lá naquela pedra [...] minha avó que contava, era gado demais [...] A Ana
Rosa tinha a fazenda lá da Taboca... Quando era a época de plantar, ela tirava um bocado dos
negros aí e mandava cento e tantos negros para lá [Fazenda Macacos], escravos. Aí eles iam
preparar a terra... Porque lá... A fazenda lá é bonita! É terra de primeira [...] Aí eles iam,
preparavam a terra e plantavam o milho... Plantavam milho, feijão, só não plantavam arroz
porque lá é muito seco. Aí a hora que... Vinham embora para garimpar. Quando “dava na
época” de tirar o mato, limpar, eles iam. Aí limpavam. Quando era para colher tornavam a
levar a turma lá e cada um enchia aqueles sacos de... Sacos de estopa, cada um enchia um saco
daquele e trazia um saco na cabeça, porque eles sofriam mesmo (SILVA, Geralda. Entrevista
concedida em 19 de dezembro de 2019).
A partir desse relato, observa-se uma ligação historicamente estabelecida entre a região de Pé de Serra e
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outras regiões do sertão mineiro, que servia de mercado abastecedor para a outra vertente da Serra do
Espinhaço, em Diamantina. O alto da Serra era entrecortado por caminhos e por passagens de tropas que se
deslocavam de um ponto a outro com mantimentos e produtos agrícolas para serem comercializados nas
localidades mineradoras. O senhor Afro Alves revela, por meio de seu relato, a importância dessas práticas
estabelecidas no território no passado, e que até hoje estão enraizadas na cultura de Pé de Serra:
O pessoal de primeiro vivia só disso aí, roça né. Nem condução tinha e levava sabe aonde? Lá
no Joaquim Felício, pegava cavalo pra vender e levava rapadura, arroz, lá em Diamantina a
cavalo, São João da Chapada. Gente, as coisas são outras, hoje, eu vivo assim ainda, eu
carrego mercadoria na cacunda de cavalo [...] Vou, panho a mercadoria, chego lá, ponho no
cargueiro venho, venho, volto de novo, trago tudo pra cá (ALVES, Afro. Entrevista
concedida em 15 de junho de 2019).
Além da ligação estabelecida pela dimensão econômica, há também aquelas cuja natureza é da ordem
do parentesco, da reciprocidade, estabelecidos tanto com moradores dos territórios contíguos à comunidade,
como com moradores de comunidades mais distantes, tal como é o caso de Macacos. São a partir de tais
vínculos que os principais troncos familiares se conformaram em Pé de Serra, dentre os quais estão, de acordo
com Adilma Santos, as famílias Ferreira, Vieira, Santos (Panta) e Pereira.
Essas famílias historicamente estabelecidas no território apresentam, além da agricultura tradicional e da
criação de gado, a coleta de flores sempre-vivas, como parte de seu modo tradicional de vida. A partir de
indicações temporais de pessoas mais velhas da comunidade, depreende-se que a prática da panha de flores é
realizada há muitos anos, já que os relatos apontam que os pais desses moradores, cuja faixa etária está em torno
de 70-80 anos, já subiam a serra para irem aos campos de coleta.
A base estabelecida pela tríade agricultura-criação-coleta é composta por uma infinidade de saberes, de
celebrações e de ritos do catolicismo popular, bem como de formas de expressão e de lugares de referência que
são seu conteúdo material e imaterial. “Ir para a serra” significa deslocar-se, deixar “o sertão” por um período
do ano. O sertão é a região de menor altitude onde os comunitários estabeleceram suas residências,
permanecendo por um determinado período do ano (época das chuvas), que corresponde à produção das roças.
A transumância para a serra tem por objetivo soltar o gado em pastos naturais e a panha de flores e botões de
sempre-vivas. Antes da chegada do Parque Nacional das Sempre-Vivas, este movimento propiciava uma
verdadeira mudança de perspectiva para as famílias, tanto no aspecto físico, cuja permanência se dava em lapas e
ranchos transformados em moradias, como no aspecto simbólico, já que instaurava momentos de sociabilidade
específicos dessa sazonalidade.
Na época da coleta de flores sempre-vivas essa sociabilidade entre as comunidades tomava contornos
ainda mais eminentes, uma vez que havia uma alta incidência de pessoas em cima da serra e o cotidiano
comunitário se passava nos campos de coleta e nos ranchos. Há relatos de que, com a transumância, as pessoas
faziam queijo com o leite das vacas que eram levadas, açúcar de rapadura para as refeições e outras atividades
que eram comumente exercidas no sertão. Nesses longos períodos, casamentos também eram realizados, além
de aniversários e outros momentos festivos. A senhora Adilma dos Santos contou que o primeiro ano de vida
de sua filha foi comemorado em cima da serra, no Campo São Caetano, com um bolo de fubá feito por sua mãe
no fogão a lenha do rancho da família.
Contudo, a partir do início da década de 2000, esses modos tradicionais de vida, especialmente no que se
refere ao âmbito do deslocamento e permanência na serra, foram severamente afetados pela criação do Parque
Nacional das Sempre-Vivas, que foi feita sem a devida consulta prévia e informada à comunidade. A
sobreposição do PARNA Sempre-Vivas aos territórios de uso comum de Pé de Serra instaurou um intenso
conflito, especialmente devido à gestão do ICMBio, que foi considerada agressiva pelos comunitários.
Ante ao quadro de violação de direitos ocorridos após a instalação da Unidades de Conservação
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sobreposta a comunidade, foi criada, no ano de 2010, a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades
Extrativistas (CODECEX), na qual há representação de seis comunidades tradicionais diretamente afetadas pela
criação do PARNA Sempre-vivas, dentre elas, Pé de Serra. A CODECEX atua junto às comunidades
apanhadoras de flores e quilombolas que estão localizadas na porção meridional da Serra do Espinhaço,
apoiando sua luta pela manutenção dos territórios, garantia de direitos, manejo sustentável e agrobiodiversidade,
além da formação política dos comunitários.
Outra ação que integra a luta em defesa do território de Pé de Serra foi a candidatura, junto a outras
comunidades apanhadoras de flores e quilombolas, do Sistema Agrícola Tradicional dos Apanhadores de Flores
Sempre-Vivas da Serra do Espinhaço Meridional ao Programa “Globally Important Agriculture Heritage
Systems”, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO/ONU. Foi durante o I
Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas ocorrido em Diamantina nos dias 21 e 22 de
junho de 2018, que o Dossiê de candidatura foi entregue à representação da FAO Brasil. Após visita técnica de
uma comitiva da FAO a uma das comunidades, na qual verificou-se a presença dos componentes do Sistema
Agrícola Tradicional, a FAO/ONU reconheceu, em março de 2020, o SAT Sempre-vivas como Patrimônio
Agrícola Mundial. Trata-se do primeiro Sistema a ser reconhecido no Brasil e o terceiro na América do Sul.
Em 2019, entre os dias 14 a 16 de junho de 2019, foi realizado na comunidade de Pé de Serra, o II
Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-vivas. Na ocasião houve o lançamento do
Protocolo Comunitário de Consulta Prévia, instrumento construído coletivamente pelas comunidades
quilombolas e apanhadoras de flores sempre-vivas. O fortalecimento político da comunidade Pé de Serra e a
compreensão dos comunitários enquanto sujeitos de direitos coletivos vem repercutindo de diversas maneiras
na vida dessa comunidade, especialmente na retomada da tradição de ir para a serra panhar sempre-vivas,
atividade que foi proibida com a criação da Unidade de Conservação.
DATAS IMPORTANTES PARA A HISTÓRIA DA LOCALIDADE
Data Evento
Século XVIII Memória de origem da comunidade de Pé de Serra
Há cerca de 30 anos Memória de quando a Festa de São Sebastião e Nossa Senhora Aparecida começou a ser
celebrada.
2002 Criação do Parque Nacional das Sempre-Vivas e início dos conflitos.
2010 Fundação da Comissão em Defesa das Comunidades Extrativistas – CODECEX.
Julho de 2019 II Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas ocorrido na
comunidade Pé de Serra e Lançamento do Protocolo de Consulta Prévia Comunidades
Quilombolas e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas durante o II Festival dos
Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas.
Março de 2020 Reconhecimento do SAT como Patrimônio Agrícola Mundial pelo Programa SIPAM da
FAO/ONU
04 CONTEXTO TERRITORIAL
A comunidade Pé de Serra está inserida nos limites do município de Buenópolis, distanciando-se 47
quilômetros da sede. É a Buenópolis que os moradores da comunidade recorrem quando necessitam de serviços
de saúde, educação, comércio, dentre outros. Há moradores que, além da propriedade em Pé de Serra, possuem
também residência em Buenópolis, de forma a facilitar a estadia na cidade quando há necessidade de um maior
tempo de permanência.
O acesso ao território é feito por estrada de terra, cujo início se dá a partir da rodovia BR-135 no
sentido do município de Montes Claros. No percurso, é possível observar que há outras comunidades e
fazendas no entorno de Pé de Serra. Algumas dessas apresentam monocultivos de eucaliptos, fato que é
percebido por alguns moradores como uma das causas diminuição da vazão de determinados cursos d’água da
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região.
A comunidade, assim como a própria toponímia sugere, localiza-se aos pés da Serra do Espinhaço. Nas
cotas mais baixas do território que chegam a 600 metros de altitude, e cujo termo nativo dado é o de “sertão”,
encontram-se as casas e demais construções, tais como escola, posto de saúde, campo de futebol, igreja e a sede
da associação de produtores rurais da comunidade. Próximos às moradias, estão localizados os quintais
agroecológicos, compostos por hortaliças, árvores frutíferas e ervas para temperos, que compõem a dieta das
famílias de Pé de Serra. É também onde estão as roças produzidas para o cultivo alimentar, feitas nas baixadas e
vazantes, e os espaços para a criação de animais de raças caipiras de pequeno porte. Outras construções tais
como currais, casas de farinha e pequenos engenhos de cana de açúcar, dentre outros, também se localizam
nessa porção do território. Os moradores promovem, ainda, o extrativismo de produtos do cerrado e de plantas
para finalidades medicinais em áreas de vegetação nativa.
Em Pé de Serra, as propriedades estão relativamente próximas umas das outras, sendo que a igreja de
São Sebastião é considerada o ponto central da comunidade. Nas suas proximidades, há uma concentração
maior de residências. Próxima à igreja, no mesmo terreno, se encontra a sede da Associação de Produtores
Rurais. Ao lado dela, há um grande campo de futebol de terra batida, que é um dos lugares de referência no
âmbito do lazer dos comunitários. Já no sopé da Serra do Espinhaço, à margem esquerda do rio Curimataí, que
corta o território, há um número menor de casas. Em geral, cada lugar da comunidade constitui-se de um
ajuntamento de parentes que cria, junto ao vínculo territorial, vínculos morais e produtivos.
O uso e a posse da terra seguem a lógica das relações de parentesco estabelecidas historicamente, em
que a reprodução social leva à dominialidade do território. Nesse sentido, “(...) o parentesco em última instância,
é a expressão das relações de propriedade que perduram ao longo do tempo” (COSTA FILHO, 2008, p. 140).
As relações de parentesco regulam a questão do direito de posse e de herança entre as famílias da comunidade.
Além desta, as relações de solidariedade e compadrio também são estratégias de manutenção da comunidade no
território.
Assim, em Pé de Serra, o padrão mais comumente seguido é aquele em que após o matrimônio, o casal
vai morar na propriedade do pai do marido, recebendo essa porção da terra como herança. Essa relação
estabelecida faz com que a terra permaneça em usufruto de um mesmo núcleo familiar ao longo de gerações.
Embora essa forma de organização predomine no sistema das inter-relações familiares, há outras configurações
possíveis que também garantem a permanência dos moradores no território. O compadrio, por exemplo, é
comum nesta comunidade em que o catolicismo é predominante. Apadrinhar os filhos de outras famílias
estabelecendo laços de compadrio conforma uma espécie de parentesco simbólico, sendo que os compadres
passam a ser como “irmãos rituais” (WOORTMAN, 1987, p. 33). Uma prática que foi descrita por Adilma dos
Santos e que fazia parte desse universo moral é a de que, durante as celebrações juninas, quem pulasse primeiro
a fogueira apadrinhava o filho do dono da casa onde a festa era realizada.
A questão do uso e da posse da terra também é verificada na “serra”, que é a denominação dada aos
campos de coleta de flores sempre-vivas e de solta do gado, nas cotas mais altas da Serra do Espinhaço. De
acordo com informações de Adilma dos Santos, moradora da comunidade, ela e seus irmãos herdaram do pai
um terreno na serra, onde a família desenvolve as atividades supracitadas. Já os moradores que não possuem
terras na serra costumam fazer a coleta de flores em regime de meia com os proprietários ou fazer uso comum
das áreas.
Além do domínio historicamente exercido nos ambientes do “sertão”, os habitantes de Pé de Serra
também possuem um profundo conhecimento dos ambientes e paisagens do alto da Serra do Espinhaço, para
onde se deslocam periodicamente para a coleta de flores sempre-vivas, a solta do gado nas pastagens naturais e
o extrativismo de produtos do cerrado, que estão incorporados à sua cultura alimentar, ao seu sagrado e à sua
economia, conformando um sistema agrícola tradicional. Outro importante conhecimento associado a este
sistema agrícola tradicional é o uso do fogo para o manejo das espécies de sempre-vivas.
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O uso controlado do fogo pelos apanhadores de flores envolve saberes bastante sofisticados sobre
onde, como e quando o fogo deve ser provocado, respeitando capões de mata, nascentes e demais locais de
importância estratégica para a proteção ambiental. Segundo os apanhadores de flores, o fogo é necessário à
própria existência das espécies de flores sempre-vivas. O fogo é também manejado para a preparação das roças.
Assim, sua proibição acarreta impactos na produção agrícola, na segurança alimentar e na transmissão
intergeracional de saberes sobre esses domínios do sistema agrícola tradicional.
Outro elemento que compõe esse sistema é o “subir a serra”. Trata-se de um movimento
tradicionalmente realizado pelos comunitários, assim como era na época de seus pais e avós. O deslocamento
do sertão para a serra é feito, sobretudo, a cavalo, e a depender da distância dos campos de coleta, pode-se
percorrer longas horas em um único dia. Uma vez no alto da serra, as famílias se hospedam em lapas ou em
ranchos, que são construídos por eles, com materiais locais. No contexto da comunidade de Pé de Serra e
estendendo-se também para a comunidade de Lavras, com a qual aquela possui relações de parentesco, o
calendário de panha das cerca de duzentas espécies das flores sempre-vivas e dos botões perfaz praticamente
todo o ano, sendo que cada período corresponde a determinadas espécies. Porém, é na estação seca do ano,
entre os meses de março a junho, que os apanhadores e apanhadoras permanecem no ambiente da serra, devido
à coleta tornar-se mais intensa. Já no período chuvoso, que se entende entre os meses de outubro a março, os
comunitários se dedicam ao trabalho nos quintais e nas roças com policultivos. Dessa forma, a comunidade
utiliza os diferentes agroambientes que se conformam na paisagem, de maneira a conjugar as práticas agrícolas e
extrativistas com as variações sazonais.
Portanto, neste sistema agrícola tradicional conformado a partir de vínculos historicamente
estabelecidos com a Serra do Espinhaço, os habitantes de Pé de Serra possuem um vasto conhecimento a
respeito das paisagens das cotas altas. Essa relação se manifesta inclusive, nas denominações dos campos de
coleta e de outras localidades do território, dadas pelos antepassados e que servem de referência geográfica e
simbólica aos atuais moradores: Dois Córregos, Seriema, Chapadinha, Campo Triste, Campo João Alves,
Arrenegado, Vargem Funda, Vargem da Lapinha, Vargem do Galheiro e Pedra Redonda são alguns exemplos.
O Campo São Domingos também é uma referência para a Comunidade Pé de Serra, estando presente
em narrativas de diversos moradores. Este campo promove uma espécie de território de ligação com a região do
distrito de São João da Chapada e com a comunidade de Macacos, com as quais os moradores de Pé de Serra
uma relação de reciprocidade e parentesco. A esse respeito, a apanhadora de flores e membro da Codecex Maria
de Fátima Alves, conhecida como Tatinha, dá essa dimensão relacional quando diz que é filha desse encontro
entre a serra e o sertão, uma vez que uma parte de sua família provém da comunidade de Pé de Serra, enquanto
a outra parte é da Comunidade de Macacos, na região de Diamantina.
Contudo, assim como ocorreu com as demais comunidades que integram esse sistema agrícola
tradicional, o território de Pé de Serra foi severamente afetado pela criação de unidades de conservação, em
especial o Parque Nacional das Sempre-Vivas, que se sobrepôs às áreas de usos comum do alto da Serra do
Espinhaço, no ano de 2002.
Lugares de referência
Serra do Espinhaço Meridional;
Campo São Domingos
Campo Arrenegado;
Vargem da Lapinha;
Vargem do Galheiro;
Região de Pedra Redonda;
Comunidade Lavras;
Sede do município de Buenópolis;
Igreja de São Sebastião;
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05 CONTEXTO SOCIOCULTURAL
Pé de Serra possui cerca de 300 famílias distribuídas pelo território. Conforme observações realizadas
nas viagens de pesquisa para a elaboração dos estudos, na composição etária dessa comunidade prevalece um
maior número de homens e de mulheres na fase adulta, com grande incidência das faixas etárias que abarca dos
41 aos 60 anos de idade. Contudo, esse grupo social é bastante heterogêneo, sendo composto também por uma
parcela de idosos, que são os guardiões das memórias e da história da comunidade, bem como por crianças, que
são a quem os saberes sobre o sistema agrícola tradicional serão transmitidos ao longo do tempo.
É importante destacar que grande parte dos moradores de Pé de Serra teve pais e/ou avós nascidos na
comunidade, o que reforça a ligação ancestral com o território. De tal maneira, muitos dos atuais habitantes
residem na comunidade ou desde que nasceu ou por grande parte da vida, havendo uma correlação entre a
proveniência e o pertencimento ao território. Já as pessoas que não nasceram em Pé de Serra, vieram de
comunidades próximas, com as quais aquela mantém relações, como Salobro, Curimataí ou mesmo Lavras, que
pertence administrativamente ao município de Bocaiúva, mas que é uma comunidade com a qual Pé de Serra
mantém relações socioculturais históricas. Esse dado revela que há uma extensa rede de relações nesta porção
da Serra do Espinhaço.
O estado civil que predomina é o de pessoas casadas, sendo que em cada família há ao menos um filho,
sendo raro um casal que não tenha herdeiros. Foi observado que um filho(a) adulto(a) solteiro tem por costume
permanecer na propriedade do pai ajudando-o com o cotidiano da terra e da casa, até que porventura se case.
Entretanto, conforme relatos, alguns jovens estão migrando para outras cidades de Minas Gerais e até mesmo
para outros estados, tanto com o objetivo de estudarem, como em busca de trabalhos com melhores
remunerações do que na roça. Esse é o caso, por exemplo, das filhas do senhor Antônio Carlos (Nô),
apanhador de flor e atual presidente da Associação de Produtores Rurais de Pé de Serra, que foram estudar no
município de Sete Lagoas. Já outros jovens, tais como os filhos do senhor Afro Alves e da senhora Maria José,
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retornaram à comunidade após permaneceram um tempo morando fora para concluírem os estudos. Tais
configurações fazem com que a garantia de continuidade dos descendentes no território seja uma constante
preocupação, especialmente entre os mais velhos.
Com relação à educação, dado o predomínio de pessoas adultas neste contexto social, parte dos
habitantes possui um nível de escolaridade mais baixo, sendo poucos aqueles terminaram o ciclo educacional até
o nível superior, predominando o ensino fundamental e médio, seja completo ou incompleto. Especialmente
dentre os moradores idosos, há ocorrência de analfabetismo, devido entre outras, à dificuldade de acesso ao
ensino formal no passado. Já com relação às crianças, o acesso à escola é grande, sendo que parte da formação,
inclusive, é feita na escola municipal que há na comunidade. O acesso ao ensino superior, por sua vez, cresceu
nos últimos anos, e jovens da comunidade passaram a frequentar universidades. Para tal, como já pontuado,
muitos precisam se mudar da comunidade para conseguirem estudar. Há também a inserção desses jovens em
cursos técnicos e em formações, tais como as que ocorrem pela via do Centro de Agricultura Alternativa do
Norte de Minas – CAA/MN, que é um parceiro da CODECEX.
No âmbito da saúde, Pé de Serra ainda mantém viva as práticas tradicionais de cura. O conhecimento
sobre os usos medicinais das plantas presentes no território é bastante arraigado, especialmente através dos
raizeiros que existem na comunidade. As benzeções e demais rituais também estão presentes nesse contexto
sociocultural, auxiliando nos males terrenos e espirituais. Assim como servem para as pessoas, essas práticas de
cura são empregadas aos bichos e plantas, o que revela a visão holística entre os elementos que conformam o
sistema agrícola tradicional dos apanhadores e apanhadoras de flores sempre-vivas.
Uma das mudanças que ocorreram no domínio sociocultural da saúde ao longo do tempo foi a
diminuição do papel das parteiras, uma vez que as mulheres grávidas são encaminhadas para o hospital
municipal de Buenópolis para acompanhamento pré-natal e parto. Ademais, Pé de Serra conta com um posto de
saúde dentre os equipamentos públicos existentes no território, no qual agentes de saúde da prefeitura realizam
atendimentos periódicos. Neste caso é importante ressaltar que a agente de saúde que atende as famílias no
território, nasceu na própria comunidade.
Ainda tratando dos elementos constituintes do sistema agrícola tradicional presente na comunidade,
cita-se a religiosidade praticada em Pé de Serra. No local a grande maioria dos comunitários se diz católica, o
que acaba por conformar muitas das dimensões da organização sociocultural do território, o que pode ser
observado, por exemplo, no próprio calendário agroextrativista, que se coaduna ao calendário religioso
estabelecido. Assim, na época em estão ocorrendo os giros das folias, a maior parte das pessoas se encontra no
sertão, uma vez que é o período de cultivo das roças e dos quintais.
Em Pé de Serra há folias de Santos Reis e de São Sebastião, cujos giros se dão respectivamente, entre 24
de dezembro e 06 de janeiro e de 06 a 20 de janeiro. Durante esses períodos, os grupos visitam a casa dos
devotos para cumprir promessas, distribuir bênçãos e entoar rezas. É comum durante as visitas os foliões
dançarem o lundu e a chula em determinados momentos do ritual. Após os períodos dos giros, cada folia faz
seu arremate com o intuito de fechar o ciclo festivo. A fartura alimentar é uma marca das festas de Pé de Serra,
sendo, por exemplo, que uma diversidade de doces está tradicionalmente presente nos arremates, sendo
preparados com alimentos da produção das roças e da criação dos gados leiteiros. Assim, há a produção de doce
de leite, doce de mamão, doce de fava, entre outros.
Já o período das colheitas corresponde às fogueiras para os santos de junho (Santo Antônio, São Pedro,
São João) e julho (Sant'Ana), que são momentos de celebração e agradecimento à fartura produtiva. Nessas
festas, consomem-se os alimentos que foram colhidos nas roças, tais como batata, milho, mandioca, etc.
O santo padroeiro de Pé de Serra é São Sebastião, homenageado pelas folias em janeiro e festejado
junto a Nossa Senhora Aparecida, no mês de outubro. A estrutura da festa em louvor a São Sebastião e Nossa
Senhora Aparecida é composta por novenas, leilões, busca e levantamento de mastros, procissão e missa. A São
Sebastião também é dedicada a igreja da comunidade que, por sua vez, tem missas mensais com um padre da
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paróquia de Buenópolis. No mesmo terreno, ao lado da igreja, foi construída a sede da Associação de
Produtores Rurais de Pé de Serra, que é o local onde ocorrem os encontros da coletividade, como as festas
religiosas, os bailes, festivais da panha, etc. Nesses momentos festivos é comum os moradores dançarem, além
do popular forró, algumas danças de roda que são tradicionais nesse contexto comunitário, tais como Espinica,
Saia Dourada e Pomba Chorou. Ademais, assim como nas folias, a fartura alimentar com produtos locais, é uma
marca dessas celebrações religiosas e demais momentos festivos.
Geralmente essas festas, sejam religiosas ou não, contam com a presença da Cavalgada Cowboy
Viajante, que é formada por cavaleiros e amazonas das comunidades de Pé de Serra e de Lavras, que costumam
se reunir por motivos religiosos, cívicos, lúdicos, etc. Esta região possui, aliás, um número considerável de
grupos de cavalgada, o que revela a importância dessa prática cultural no contexto territorial em questão. A
relação com os cavalos é, portanto, parte constitutiva da cultura da comunidade, cujos rastros provêm das
atividades tropeiras que tiveram um importante papel socioeconômico na região da Serra do Espinhaço
Meridional. A partir disso, é notável que também haja ofícios relacionados ao trabalho artesanal com couro,
selaria, etc., confeccionando peças na criação de gado. Existem também artesãos que trabalham com madeira
na produção de gamelas, colheres de pau e com fibras vegetais para a produção de balaios e cestas.
Com relação às moradias estabelecidas no sertão, as características de infraestrutura das residências
podem ser compreendidas a partir do “Relatório-Diagnóstico sobre as Comunidades Tradicionais das
Imediações e Dentro do Parque Nacional das Sempre-Vivas” (COSTA FILHO, 2014), cuja amostra auferida
para o levantamento de dados incluiu Pé de Serra. De tal maneira, no que diz respeito às moradias da
comunidade, a maior parte delas é construída com materiais locais tais como o adobe, que é feito na própria
comunidade, a exemplo do senhor Nô, que possui um forno em sua propriedade para a produção de tijolos.
Contudo, também há grande incidência de casas construídas com material de alvenaria. Há pessoas que são
reconhecidas por terem conhecimentos a respeito de construções com madeiras, tais como alicerces de casas,
cancelas, engenhos, casas para o processamento de farinhas, etc.
O esgotamento sanitário mais utilizado nas residências é a fossa, sendo que o serviço básico de rede de
esgoto não é universalizado nessa comunidade. Assim também é para o fornecimento de água, que não conta
com a universalização do serviço da rede de distribuição. A água provém, sobremaneira, das nascentes do
território e é canalizada até as casas, sendo que é culturalmente compreendida como um bem comum e uma
riqueza a ser preservada. Com relação à destinação dada ao lixo doméstico, a mais comum é a queima. A energia
elétrica está presente em praticamente todos os domicílios de Pé de Serra, que contam com aparelhos
eletrodomésticos tais como geladeira, rádio, televisão, etc. O telefone celular é um meio bastante utilizado pelos
moradores para se comunicarem. O acesso à internet existe, mas ainda é muito limitado.
Por fim, deslocando-se do contexto do sertão para a serra onde os apanhadores de flores permanecem
durante um período do ano, depreende-se que a relação estabelecida com os campos está para além de uma
economia instrumental em consequência da panha de flores. É certo que a panha tem um importante papel na
economia comunitária, contudo, mais do que isso, ir para a serra significa "ancestralidade, afetividade, prazer,
liberdade, trabalho e renda e tradição" (CODECEX, 2019, p. 25).
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- Doces e quitandas;
- Raizeiro;
- Carpinteiro;
- Benzedeira;
- Trabalho com couro;
- Trabalho com madeira;
- Trabalho com fibras;
- Processamento da mandioca;
- Processamento da cana;
Celebrações e ritos:
- Folia de Reis;
- Folia de São Sebastião;
- Folia do Bom Jesus;
- Celebração de Santa Cruz;
- Fogueira de Santo Antônio;
- Fogueira de São João;
- Fogueira de São Pedro;
- Fogueira de Santana;
- Festa de Nossa Senhora Aparecida e São Sebastião;
- Penitências;
- Promessas;
- Simpatias;
- Novenas;
- Missas.
Formas de Expressão:
- Forró;
- Danças: Espinica, Saia Dourada, Pomba Chorou;
- Lundu, Chula;
- Literatura oral;
- Cavalgada.
06 PROBLEMAS ENFRENTADOS
Um dos mais graves problemas que Pé de Serra vem enfrentando ao longo dos últimos anos, de acordo
com a narrativa dos próprios moradores, diz respeito à sobreposição do Parque Nacional das Sempre-Vivas ao
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seu território tradicionalmente ocupado e aos conflitos advindos desse processo. A criação do PARNA Sempre-
Vivas foi feita à revelia das comunidades que vivem, há séculos, nos territórios da Serra do Espinhaço, como foi
o caso de Pé de Serra. A categoria de proteção integral que esta Unidade de Conservação (UC) se enquadra não
concebe a presença humana nas áreas, uma vez que a trata enquanto uma ameaça à preservação dos
ecossistemas. Contudo, a conservação que ali se verifica tem relação direta com a presença ancestral das
comunidades tradicionais no território, cuja reprodução do modo de vida está em estreita dependência com a
conservação dos recursos naturais, que lhe garantem a perspectiva de futuro.
Assim, com a delimitação da UC sobreposta às terras de uso comum, os moradores foram proibidos de
permanecerem na serra para panhar flor, soltar o gado, fazer o manejo do fogo e o extrativismo de produtos do
cerrado, que são atividades tradicionalmente realizadas pelos moradores da comunidade e que conformam sua
cultura, constituem sua visão de mundo, participam de sua economia e integram seu sistema agrícola. Esse
cerceamento da liberdade e da garantia de uso dos recursos naturais levou a um grande desarranjo sociocultural
em Pé de Serra, com impactos em diversos âmbitos da vida coletiva, que são sentidos até o presente.
A proibição veio acompanhada por violações perpetradas pela gestão da UC, que está a cargo do
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio. Conforme relatos houve diversos
episódios de constrangimento e de ameaças contra os apanhadores de flores como, por exemplo, quando os
funcionários do ICMBio atearam fogo no rancho de um apanhador de flor, queimando toda sua carga de flores
recém coletada. Segundo os moradores da comunidade o cunho intimidatório aplicado em muitas ocasiões
desencadeou processos de adoecimento, migração e conflitos internos que são enfrentados até hoje no contexto
comunitário.
Mesmo com a mobilização de Pé de Serra junto a outras comunidades afetadas pelas UC's através da criação e
atuação da CODECEX, a partir de 2010, e dos consequentes avanços na luta pelo direito ao território, a
comunidade ainda convive com os impedimentos impostos pela existência do PARNA Sempre-Vivas e com a
hostilidade dos gestores no trato com os apanhadores de flores e seu modo de vida tradicional. Nesse ponto, a
questão do manejo do fogo pelos apanhadores de flor é um ponto sensível. Com a proibição da prática e a
desconsideração do conhecimento popular a respeito da queima, os comunitários perceberam uma piora no
aumento das queimadas que fogem ao controle, após a responsabilidade da atividade ser tomada pelo órgão
gestor do parque. Apesar de já haver um movimento interno no ICMBio no sentido de proceder a discussões a
respeito do uso controlado do fogo com a presença de comunidades tradicionais (CODECEX, 2019, p. 102), há
ainda um grande caminho a ser percorrido em direção à compreensão e utilização dos saberes tradicionais.
A percepção de que há uma transformação climática em curso também é sentida entre os moradores de
Pé de Serra, que já começam a enfrentar alguns problemas, principalmente com relação à variação nos regimes
das chuvas e à vazão dos rios, apesar de ainda ser um território rico em recursos hídricos. Por essa razão, a
conservação hídrica é vista como de extrema relevância para a comunidade.
Outra questão que foi narrada pelos moradores relaciona-se à dificuldade de escoamento do excedente
da produção das roças e dos quintais agroecológicos para um possível mercado consumidor a ser formado, ou
para sua inclusão em Programas de Compras Públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o que poderia incrementar a renda das famílias. A
comercialização das flores sempre-vivas também é um ponto sensível, tanto pela dificuldade de escoamento da
produção, quanto pela distância do mercado consumidor.
Por fim, há problemas relacionados à falta de infraestrutura e de acesso a alguns serviços básicos, que
comprometem o bem-estar das famílias da comunidade. A carência de transporte público regular, de serviços de
ambulância e de vias interrompidas pela presença do PARNA Sempre-Vivas, por exemplo, são pontos
prioritários.
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07 PROPOSIÇÕES
A primeira e mais importante proposição a ser pensada refere-se à efetivação do direito coletivo ao
território, que é a garantia do pleno acesso aos recursos naturais e, logo, à continuidade sociocultural de Pé de
Serra. Sendo uma comunidade tradicional que se autoidentifica como Apanhadora de Flores Sempre-Vivas, Pé
de Serra possui um regime agrário diferenciado e que é reconhecido pelo sistema jurídico, tanto no âmbito
federal, como no estadual. Nessa primeira esfera, destacam-se a própria Constituição Federal/1988 e o Decreto
Federal n° 6.040/2007. Já na segunda, o mecanismo que institui as políticas públicas de povos e comunidades
tradicionais em Minas Gerais, é a Lei Estadual n° 21.147/2014.
Além da questão da regularização fundiária, outra recomendação a ser executada refere-se à resolução
dos conflitos com os parques sobrepostos às terras de uso comum da comunidade Pé de Serra. Assim, uma das
lutas dessa e de outras comunidades impactadas passa pela recategorização dessas UC’s em categorias cuja
presença humana é legitimada, tal como as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e as Reservas
Extrativistas (RESEX).
A superação dos conflitos relacionados aos usos dos recursos naturais pela comunidade também passa,
conforme pontua o Plano de Conservação Dinâmica (PCD) do Relatório de Candidatura ao selo
GIAHS/FAO/ONU (2019), pela promoção de pesquisas sobre “as práticas de manejo tradicionais e assistência
técnica orientada à conservação do sistema agrícola tradicional” (CODECEX, 2019, p. 102). Nesse sentido, é
necessário que haja o estabelecimento de parcerias das comunidades com universidades, organizações da
sociedade civil e poder público que viabilizem tais ações, que devem ser pensadas de forma participativa e que
valorize os conhecimentos locais.
O Plano de Conservação Dinâmica traz, ainda, uma série de outras proposições que se atrelam à
dinâmica da salvaguarda do sistema agrícola tradicional desenvolvido por essa comunidade em seu território
tradicionalmente ocupado e que, portanto, devem ser pensadas em consonância ao seu registro como
patrimônio. Assim, no que tange à questão de infraestrutura e serviços básicos, as ações se direcionam no
sentido da ampliação e melhorias em vias de acesso, transporte, serviços de saúde e educação, além de cultura e
lazer. Para tal, o PDC apresenta a importância do reconhecimento municipal do SAT dos Apanhadores de
Flores Sempre-Vivas a partir de seu marco legal e o fortalecimento da representação dos apanhadores de flores
nas diversas instâncias consultivas.
Com relação aos produtos agroextrativistas e a comercialização das flores sempre-vivas, as ações
passam pelo desenvolvimento da cadeia de valor das flores e no incremento do artesanato e na ampliação ao
acesso a programas governamentais de compras de alimentos da agricultura familiar e o acesso a circuitos curtos
de mercado como as feiras e exposições.
08 FOTOGRAFIAS
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Figura 7: Nascente que abastece famílias na comunidade. Figura 8: Cruzeiro na comunidade Pé de Serra.
Fonte: Acervo Iepha-MG. Fonte: Acervo Iepha-MG.
Figura 09: Extrativismo de produtos do cerrado. Figura 10: Casa aos pés da Serra do Espinhaço.
Fonte: Acervo Iepha-MG. Fonte: Acervo Iepha-MG.
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Figura 12: Cavalgada Cowboy Viajante. Figura 13: Festa de São Sebastião e Nossa Senhora Aparecida.
Fonte: Acervo Iepha-MG. Fonte: Acervo Iepha-MG
09 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CODECEX. Sistema de Manejo Agroextrativista da Serra do Espinhaço Meridional, Minas Gerais (Brasil). Diamantina,
2019.
COSTA FILHO, Aderval. Os Gurutubanos: territorialização, produção e sociabilidade em um quilombo do
centro-norte mineiro. 293p. Tese (Doutorado em Antropologia). Universidade de Brasília, 2008.
COSTA FILHO, Aderval. Relatório-Diagnóstico sobre as comunidades tradicionais das imediações e dentro do Parque
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Nacional das Sempre-Vivas – Municípios de Diamantina, Buenópolis, Olhos D’Água e Bocaiúva/MG. Universidade Federal
de Minas Gerais, 2014.
PAGAIO, Lúcia; SEDA, Paulo. Serra do Cabral, Minas Gerais: um patrimônio arqueológico e ambiental ainda
em busca de preservação. Anais do IV Seminário Preservação de Patrimônio Arqueológico. Rio de Janeiro, 2016.
Disponível em: <http://site.mast.br/hotsite_anais_ivsppa/pdf/01/03%20serra%20do%20cabral.pdf> acesso
em 12/02/2020.
RIBEIRO, Núbia Braga. Os Povos Indígenas e os Sertões das Minas do Ouro no Século XVIII. 405p. Tese (Doutorado
em História Social). Universidade de São Paulo, 2008.
WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se neguceia”: o campesinato como ordem moral. Anuário
Antropológico, 12(1), 11-73, 1987.
10 FICHA TÉCNICA
Fotografias Ana Paula Belone Jun. e Out. 2019
Áudios Ana Paula Belone, Débora Silva, Jun. e Dez. 2019
Laura Martins
Transcrições Laura Martins, Mariana Loures Fev. 2020
Levantamento Ana Paula Belone Fev. 2020
Elaboração Ana Paula Belone Fev. 2020
Revisão Débora Silva, Codecex, Laura Fev. a Mai. 2020
Martins, Ana Paula Belone
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02 DESCRIÇÃO SÍNTESE
A Comunidade Quilombola Raiz encontra-se localizada no município de Presidente Kubitschek e é formada
por famílias descendentes do casal Geraldo Ferreira e de Maria Madalena da Conceição, Pai Velho e Mãe Velha,
que são os fundadores. Esta comunidade que se autorreconhece como quilombola e apanhadora de flores
sempre-vivas desenvolveu em interação com o espaço ao longo do tempo, uma diversidade de práticas
produtivas, extrativistas, sociais, econômicas, culturais, religiosas, políticas, etc., que dá continuidade ao grupo e
confere a este um senso de pertencimento ao território. Ao mesmo tempo, vêm sendo historicamente afetados
por sucessivas expropriações territoriais, especialmente pelas monoculturas de eucaliptos e atividades minerárias,
que se chocam ao seu modo de vida e atingem seu sistema agrícola tradicional.
03 CONTEXTO HISTÓRICO
A comunidade quilombola Raiz está localizada na zona rural do município de Presidente Kubitschek. Durante o
século XIX, a região do atual município recebia o nome de Pouso Alto de Diamantina, por configurar-se em
uma localidade que abrigava tropeiros que atravessavam a região com mantimentos e produtos para serem
comercializados nas localidades mineradoras. O nome Raiz se relaciona, inclusive, a essa característica
socioeconômica do território. Como a própria narrativa dos moradores pontua, havia uma árvore caída pela
força das águas do córrego que passa pelo território, cujas grandes raízes expostas serviam como ponto de
pouso para viajantes de passagem.
Os moradores de Raiz acreditam ainda que no passado, também houve a presença de negros escravizados neste
território, uma vez que as ruínas de muros de pedras, de antigos garimpos e de vestígios em lapas são
consideradas evidências materiais da existência desses grupos.
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Contudo, a memória de conformação da comunidade Raiz pode ser fixada na vinda e estabelecimento de
Geraldo Ferreira e de Maria Madalena da Conceição neste território. Conhecidos como “Pai Velho” e a “Mãe
Velha” (Pai Véio e Mãe Véia), são considerados os ancestrais fundadores de Raiz.
Conforme a cronologia apresentada nas narrativas dos moradores mais antigos, Pai Velho chegou ao território
há cerca de oitenta anos, vindo da Comunidade de Espinho, que pertence ao município de Gouveia. Foi levado
por Álvaro Cruz para desempenhar os mais diversos tipos de serviços braçais, especialmente aqueles
relacionados ao carreamento de bois e ao cuidado com o gado do “patrão”. Hoje em dia, mediante um processo
de reconhecimento étnico e de luta pelo território, a comunidade reconhece que Pai Velho foi levando na
condição de escravizado, posto que além de vivenciar condições extremamente precárias de vida e de trabalho,
não recebia pelos serviços prestados ou recebia apenas alguns trocados, conforme disseram.
Na ocasião, mudaram-se junto com Pai Velho, Mãe Velha, três filhos do casal e a mãe de Pai Velho. Nesta
época, as únicas construções que havia nesse “retiro” era a casa do patrão, chamada pelos moradores de Raiz de
“fazenda grande”, e a moradia da família de Pai Velho e Mãe Velha. Nessa época, a casa da família era bastante
simples segundo relatos, sendo que na época das chuvas era necessário colocar tábuas para não pisar na água
que se acumulava no chão. Foi nesta casa que Mãe Velha ganhou outros sete filhos. Contudo, um dos filhos do
casal morreu ainda criança, sendo que do total de dez filhos nascidos, foram nove que cresceram e se
desenvolveram. Foi, portanto, através da formação de famílias a partir dos casamentos dos filhos de Pai Velho e
de Mãe Velha, que Raiz se consolidou enquanto uma comunidade.
Posteriormente, outra moradia foi construída próxima a antiga casa. Com o tempo, a família plantou árvores
frutíferas no entorno do imóvel, sendo que uma jabuticabeira é lembrada pelos descendentes de Pai Velho e
Mãe Velha com uma especial consideração. Próxima à moradia há um lugar chamado lapa de Bina, que era onde
Mãe Velha sentava-se com os netos para contar histórias, trançar os cabelos das meninas e colocar produtos da
roça para secar ao sol.
Os filhos de Pai Velho e Mãe Velha disseram que, no passado, a família tinha uma convivência relativamente
fechada com o entorno, já que a vizinhança era distante do território e também porque a família sofria grande
preconceito. Algumas das comunidades mais próximas com as quais se estabelecia relações eram Andrequicé e
Cubas, onde participavam de festividades e celebrações do catolicismo popular até a conversão religiosa, que foi
feita por volta de 1974. Foi através de algumas pessoas de Cubas que a Igreja Congregação Cristã no Brasil foi
introduzida em Raiz.
Conforme a memória dos filhos de Pai Velho e Mãe Velha, a vida da família era permeada por grandes
dificuldades e por muita pobreza, a ponto de passarem fome em certos momentos. De acordo com a senhora
Maria Terezinha Alves (Têca), uma das filhas do casal, era comum Mãe Velha andar com os filhos pelo “mato”
afora, com o objetivo de caçar frutos e outros alimentos do cerrado, tais como pequi, samambaia e embaúba
para saciar a fome. Essa prática contribuiu para a conformação da cultura alimentar dessa comunidade, que
possui muitos produtos alimentícios do meio ambiente local em sua dieta.
A produção de roças também contribuía para a alimentação da família. De acordo com informações dos mais
velhos, Pai Velho mexia com as roças de toco sempre que havia folga dos outros afazeres, geralmente aos finais
de semana. Como a plantação geralmente era feita no terreno que pertencia ao patrão, uma parcela da produção
era deste. Assim, a produção de roças era feita em regime de terça ou quarta.
Além da atividade com o gado e a roça, o garimpo artesanal de diamantes e de cristais também fez parte do
cotidiano de trabalho desta localidade. Dona Têca conta que, após atingir determinada idade, alguns dos filhos
de Pai Velho participavam das árduas atividades no garimpo, o que reforça para esta comunidade o fato de que
não somente Pai Velho, mas toda sua família, foi exposta a uma grave situação de servidão. Enquanto que as
pedras de primeira categoria eram retiradas para o patrão, as pedras ditas de segunda categoria eram vendidas
pela família, o que não acontecia com frequência, de acordo com dona Têca:
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O garimpo falhava muito. Se tirasse diamante tinha dinheiro, se não tirasse não tinha dinheiro.
O cristal também muitas vezes trabalhava, trabalhava e não tirava nada. Então o sofrimento
era todo esse. Sofria no garimpo, tanto faz do cristal ou do diamante, mas muitas vezes
trabalhava duas semanas, quinze dias, vinte dias, até trinta dias e não tirava nada. Aí era um
sofrimento de passar fome. E a sempre-viva, a minha irmã conta que ela começou a ir pro
campo com a minha avó, ela tinha sete anos (ALVES, Maria Terezinha, 04 de março de 2020).
Conforme pontuam, as primeiras lembranças que se têm a respeito da panha de flores sempre-vivas neste
território, é a partir da experiência de Efigênia Alves, filha mais velha do casal e que hoje está com 84 anos. Já
aos sete anos de idade, Efigênia acompanhava sua avó aos campos próximos para coletar flores. Nessa época,
segundo dona Têca, a espécie mais procurada para a coleta era a flor sempre-viva em função do melhor preço
que tinha. Contudo, a coleta se estendia a outras espécies de flores, inclusive a sedinha, que era vendida inteira.
Foi a partir de 2006, que esta comunidade passou a explorar as potencialidades socioeconômicas da sedinha por
meio do artesanato. Na época, um técnico da Emater-MG visitou a comunidade e observou que a sedinha era a
mesma espécie conhecida como capim dourado em outras partes do Brasil. O artesanato tornou-se, desse
episódio em diante, uma importante atividade de Raiz, do ponto de vista cultural, étnico, social e econômico. A
destreza em transformar a matéria-prima em uma diversidade de peças, é apontada pelos moradores como
consequência de uma antiga prática de se fazerem trabalhos manuais com o capim de cheiro.
O ano de 2006 também foi marcante para Raiz pelo fato de ser o momento no qual a comunidade passou a ter
o território expropriado por monoculturas de eucaliptos, levando à perda substancial do acesso às terras de uso
comum para panha de flores, coleta de lenhas e de produtos alimentícios e medicinais provenientes do cerrado,
elementos que conformam o seu sistema agrícola tradicional. Além disso, os eucaliptos causaram e vêm
causando impactos na oferta dos recursos hídricos, que são bastante sentidos pela comunidade.
De acordo com os moradores, o primeiro empreendimento a instalar-se nas terras de uso comum foi a Planejar
Engenharia de Projetos e Negócios Ltda. (Fazenda Ouro Verde), em uma região denominada localmente como
Capão Redondo. Esta área é reconhecida como uma das maiores e mais importantes em termos de campos de
espécies de flores sempre-vivas do território, local onde as pessoas de Raiz, e mesmo de outras comunidades do
entorno, se deslocavam para fazer a panha de flores. Após a expropriação territorial da área do Capão Redondo
a comunidade viu, ao longo do tempo, os campos de flores, frutos e as mais diversas espécies da flora do
cerrado se tornarem um deserto verde. O lago que havia no local também desapareceu e as cercas ao longo da
área impediram a passagem dos comunitários. Passados quase quinze anos do início da invasão do território
pelos monocultivos, a Comunidade Raiz se viu novamente às voltas com este processo de desterritorialização.
Em novembro de 2019, os moradores descobriram que o dono de uma fazenda vizinha à comunidade estava
plantando eucaliptos no Morrão, próximo a uma área conhecida localmente como Cariambola, uma das últimas
terras de uso comum para a panha de flores e demais atividades do sistema agrícola tradicional relacionada ao
extrativismo de produtos do cerrado.
Contudo, apesar de ser uma das mais impactantes, a questão das monoculturas de eucalipto é apenas uma das
faces de um processo mais complexo de expropriações territoriais que Raiz vem sistematicamente sofrendo ao
longo do tempo. De acordo com as pessoas mais velhas da comunidade, a recordação se volta para um tempo
em que o território era praticamente livre de cercamento, sendo utilizado de modo mais disponível para
moradias e para as atividades produtivas e extrativistas. Conforme a memória aponta, foi por volta das décadas
de 1950/60, que começaram a surgir os pretensos “donos” que, por meio da grilagem de terras, foram cercando
o território e confinando a comunidade a um espaço cada vez menor.
A fazenda do patrão de Pai Velho, por exemplo, segundo conta os moradores, foi sendo passada de mão em
mão até o atual dono, que cercou a área onde se plantavam as antigas roças de toco, conhecida localmente como
Capoeira Grande e também a área onde se encontra a casa de Pai Véio, ficando de posse desta e proibindo a
passagem da comunidade. Essas sucessivas perdas de direitos territoriais e de violações simbólicas e à memória
da comunidade suscitaram a mobilização de Raiz em torno da organização política, especialmente após inserção
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04 CONTEXTO TERRITORIAL
A comunidade Raiz está localizada na zona rural do município de Presidente Kubitschek. Está a uma distância
de aproximadamente 12 quilômetros da sede municipal e pode ser acessada a partir da rodovia estadual LMG-
900. Um grande banner que dá as boas vindas aos visitantes e duas placas menores em madeira escritas
“artesanato de capim dourado” e “comunidade quilombola Raiz” já indicam, logo de início, que é este caminho
que conduz à referida comunidade.
O acesso é feito por uma estrada de terra de aproximadamente três quilômetros. Um pouco antes de atravessar
a ponte de madeira que marca o início do território, há alguns imóveis e fazendas. Esta área é denominada “Raiz
de baixo” pelos moradores da comunidade, e não mantém qualquer relação de parentesco com os quilombolas.
Uma das propriedades que ali se localiza é a fazenda de um homem que vem há anos invadindo as terras de uso
comuns dos quilombolas com monoculturas de eucaliptos. A escola da comunidade, que atualmente está
desativada, também está localizada nesta área.
Após atravessar a ponte e adentrar os limites do território de Raiz, algumas moradias já começam a aparecer.
Uma das primeiras casas é a de dona Efigênia Alves, filha mais velha de Pai Velho e Mãe Velha, e uma das mais
importantes referências e mestras da comunidade. O arranjo espacial é formado por uma concentração linear de
moradias ao longo de uma via principal e de outras moradias relativamente mais esparsas. O trecho da via onde
se encontra o ponto mais central de Raiz é pavimentado com pedras e, em seu entorno, há uma quadra para
práticas esportivas e o galpão da associação comunitária que foi construído para a realização de reuniões e
eventos. É neste espaço que também estão armazenadas e expostas para venda as peças de artesanato feitas com
o capim-dourado, conhecido na localidade como sedinha. Em um terreno ao lado da quadra foi construído um
imóvel onde funcionará o posto de saúde e o Programa de Saúde da Família – PSF.
Distanciando-se desse ponto central, a rua torna-se mais íngreme e, na parte mais alta, está o imóvel da Igreja
Congregação Cristã no Brasil. A igreja marca o fim do calçamento da rua e sua continuidade conduz às demais
moradias da comunidade. Os últimos terrenos são da família de dona Têca e de seu Ercílio. Nele encontram-se,
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além da casa do casal, as casas de alguns dos seus filhos(as) que são casados(as).
As relações de parentesco estabelecidas, especialmente através dos casamentos cruzados, são uma importante
ferramenta social para manutenção dos descendentes de Pai Velho e Mãe Velha no território. Na organização
sociocultural de Raiz é comum, portanto, casamentos entre primos, fazendo com que o território fique na posse
dessa mesma família há cerca de três gerações.
A comunidade é atravessada pelo Córrego Raiz, que é um divisor natural entre o local onde estão as atuais
moradias e aquele onde se encontra a casa de Pai Velho. A área onde está a casa foi a primeira a ser ocupada no
território, pois era nela que foram construídas as primeiras habitações (além da casa de Pai Velho, também o
rancho do patrão). Atualmente, esta área está na posse de uma pessoa que adquiriu as terras e a cercou,
impedindo os moradores de Raiz de terem acesso a vários pontos do território, dentre eles, a própria casa de Pai
Velho, que é uma importante referência material e simbólica para seus descendentes. O entorno da casa do casal
era repleto de árvores frutíferas, que foram derrubadas para darem lugar a uma plantação de braquiária para
alimentação animal, fazendo com que essas vivências comunitárias ficassem apenas na memória.
Outro local que também foi cercado por este fazendeiro é a Capoeira Grande, uma terra de uso comum que, no
passado, era utilizada para a produção de roças de toco, que é um dos pilares do sistema agrícola tradicional
desenvolvido por essa comunidade.
Atualmente, há poucas áreas para a produção de roças de toco em Raiz, e os períodos de pousio tendem a ser
menores do que o tempo tradicionalmente empregado para o descanso do solo. Para ultrapassar a dificuldade da
falta de extensões maiores de terras para o plantio, as famílias aproveitam ao máximo os quintais das casas e os
terrenos baldios, plantando uma grande variedade de alimentos, tanto em roças, como em hortas. Outra
atividade do sistema agrícola tradicional que também foi impactada pelas sucessivas expropriações territoriais
sofridas ao longo do tempo foi a criação de gado. Hoje em dia, os moradores possuem poucos animais, uma vez
que não há espaço suficiente para mantê-los de modo adequado.
Raiz é rodeada por serras e por morros de onde brotam nascentes que abastecem as casas da comunidade.
Dentre as referências estão a Serra do Sapo, a Serra do Esbarrador, o Morro Dois Irmãos e o Morro da Gravata,
que conformam a paisagem dessa localidade. Junto a esses, o território é formado também por campos e por
matas que possuem uma infinidade de espécies de plantas para consumo alimentar e medicinal, de flores que são
coletadas pelos moradores e da oferta de lenha para o uso doméstico, dentre os quais se destacam: Campo
Falhadinho, Mata de Taquara, Berra Onça, Funil, Canto da Serra, Mata do Beco, Morrão, Cariambola, dentre
outros.
Os moradores da comunidade têm grande conhecimento a respeito dos usos desses ambientes, contudo,
observa-se que uma expressiva parte das terras ao redor das áreas ocupadas já estão tomadas por extensas
plantações de eucalipto. Um dos exemplos mais paradigmáticos a esse respeito refere-se ao Capão Redondo,
que é um dos campos onde mais se panhava flores e que atualmente está totalmente tomado pelos eucaliptos,
sendo este o primeiro local do território a ser invadido pela monocultura.
As expropriações devido às plantações de eucalipto continuam a ocorrer no território tradicionalmente ocupado
pela comunidade quilombola e em suas terras de uso comum. A região do Morrão atualmente está sendo
invadida. Isto também coloca em risco a região do Cariambola, que é um dos últimos locais de extrativismo
dessa comunidade, o que pode impactar de forma irreversível seu sistema agrícola tradicional e, portanto, seus
modos de vida diferenciados.
Lugares de referência
Cariambola,
Berra Onça,
Canto da Serra,
Campo Falhadinho
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Mata de Taquara,
Mata do Beco,
Morro da Gravata,
Morro Dois Irmãos,
Serra do Sapo,
Serra do Esbarrador,
Capão Redondo,
Capoeira Grande,
Lapa de Bina,
Casa de Pai Velho,
Casa de dona Efigênia,
Córrego Raiz,
Igreja da Congregação Cristã do Brasil,
Galpão,
Posto de Saúde,
Escola desativada,
Quadra de futebol.
Plantas, Mapas e/ou Croquis
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05 CONTEXTO SOCIOCULTURAL
A comunidade de Raiz é atualmente constituída por cerca de 31 famílias, de acordo com informações obtidas
durante visita à comunidade. Os casamentos entre parentes são prática comum e, desse modo, a narrativa
predominante no quilombo é a de que todos seus moradores são descendentes de Pai Velho e Mãe Velha. Esta
família se encontra estabelecida há três gerações no território, mantendo com este uma relação que estruturou
um modo de vida específico, uma identificação étnica e um sistema agrícola tradicional. Nesse sentido, esta
comunidade que se autorreconhece como quilombola e apanhadora de flores sempre-vivas desenvolveu em
interação com o espaço ao longo do tempo, uma diversidade de práticas produtivas, extrativistas, sociais,
econômicas, culturais, religiosas, políticas, etc., que dá continuidade ao grupo e confere a este um senso de
pertencimento ao território.
As práticas tradicionais referenciadas pelos quilombolas e que compõem o sistema agrícola tradicional
desenvolvido no território são transmitidas de pais para filhos através, sobretudo, da oralidade e da prática
cotidiana. Os elementos estruturantes são o cultivo das roças de toco e das hortas, a panha das flores sempre-
vivas, a coleta de plantas alimentícias e medicinais nos ambientes do cerrado e, em menor escala, a criação de
animais de pequeno e grande portes. Juntamente a tais atividades descortina-se uma gama de saberes, práticas
culturais e religiosas que são o conteúdo desse sistema agrícola tradicional que se realiza no território ocupado.
Um dos primeiros elementos a serem pontuados é o cultivo das roças e de hortas e os conhecimentos advindos
dessas atividades. Os saberes envolvem a percepção dos ciclos naturais, dos ambientes, das sementes crioulas e
das técnicas empregadas, dentre outras. Em Raiz, é tradição fazer as roças de toco, que consistem em preparar o
solo por meio do manejo tradicional do fogo em áreas com restos de vegetação. É daí que deriva o nome dessa
técnica de cultivo. Após certo tempo de uso, tais áreas são deixadas em pousio para haver uma regeneração do
solo, de modo a serem reutilizadas futuramente.
Os moradores também utilizam cada espaço disponível ao redor de suas residências para produzirem roças e
hortas. Entre os gêneros mais comumente produzidos estão couve; batata doce; cana de açúcar; chuchu; taioba;
feijão; milho; jiló; mandioca; cebolinha; salsa; coentro; espinafre; rúcula; agrião; vagem; alface; mostarda; gondó;
abóbora; pimentão; ora-pro-nobis, serralha; inhame, além de frutas (manga, figo, laranja, abacaxi, limão,
maracujá, acerola, mamão, jabuticaba, banana, ameixa, romã, etc.). Embora a atividade agrícola da comunidade
seja abundante e gere renda para algumas famílias como, por exemplo, através do Plano Nacional de
Alimentação Escolar - PNAE e da venda de cestas de hortaliças e quitandas através de uma Feira Virtual em
Diamantina, a destinação maior da produção ainda é o consumo interno das famílias. A comunidade possui
sementes crioulas e é notável a fartura de espécies alimentares produzidas e o fato destas serem livres de
insumos químicos.
A criação de animais, especialmente de galinhas, é comum pelas famílias de Raiz, não sendo muito verificado a
produção de suínos. No entanto, a criação de gado é pouco significativa se comparada à atividade no passado,
sendo que apenas algumas famílias possuem poucas cabeças de gado. Isso se deve às perdas territoriais da
comunidade e a dificuldade de acesso aos campos onde se soltavam o gado para pastagem.
O ambiente do cerrado também é fonte de muitos alimentos tais como samambaia, embaúba, pequi, grão de
galo (fruto), sangue de cristo (fruto), panã, azeitona, cagaita, caba janta, amoreci, ananás, jatobá, marmelada de
cachorro, coco, quiabo da lapa, cajuzinho, gabiroba. Nos campos que ainda são acessados, ainda há
disponibilidade dessas plantas de uso alimentar, assim como também de plantas, raízes, troncos e sementes para
com finalidades medicinais. É bastante popular os usos do chapéu de couro (para os rins); sangue de cristo e
batata quaresma (como depurativo do sangue); arcanfor (antinflamatório); barbatimão (diversos usos);
unhadanta (para coluna e nervo ciático), dentre tantos outros.
Além dos conhecimentos ancestrais relativos à fabricação e usos de remédios naturais, os moradores de Raiz
também criaram e aperfeiçoaram saberes e técnicas relativas à cozinha e à cultura alimentar, dentro de todo o
complexo de produção e extrativismo de recursos naturais. Assim, há o processamento da cana de açúcar nos
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engenhos domésticos (que era chamado por Mãe Velha de esbaçador), do café nos pilões, além da produção de
queijo daqueles que criam gado. Entre as comidas consumidas cotidianamente estão o angu, biscoito de
polvilho, beiju, mandioca cozida, farofa de torresmo, gondó com umbigo de banana, fubá suado, embaúba,
picão, couve e serralha refogados, ovo, etc. O Cobu, que é uma broa de fubá produzida no âmbito da cultura
alimentar dessa comunidade, é uma iguaria que tem sido reconhecida e apreciada no município de Diamantina,
no âmbito da Feira Virtual que tem ocorrência no contexto da pandemia de COVID-19.
Este sistema agrícola tradicional enseja também conhecimentos relativos à uma diversidade de técnicas
construtivas, seja de edificações, seja de instrumentos para o trabalho e usos cotidianos. Quem domina tais
técnicas utiliza os recursos provenientes do meio ambiente, tais como o barro e a madeira para construir casas,
currais, fornos, fogão a lenha, cabos de enxada, de foice, de machado ou de vassouras. A taquara é utilizada para
fazer galinheiros e também esteiras e coberturas de teto, um conhecimento de Pai Velho que foi repassado a
alguns de seus filhos. Já algumas plantas como a lenha da candeia e a canela, que é bastante comum nos campos,
são ótimas opções para acender fogo. Já a seiva da sumaré e a paina são lembradas como plantas que, no
passado, eram usadas para fazer, respectivamente, cola e enchimento de travesseiro. Há também uma pequena
flor que os comunitários denominam "sabão de Mãe Velha", que dá uma espuma que era utilizada pela
matriarca para lavar roupas.
Os campos de uso comum do território também oferecem a esta comunidade as mais de oitenta espécies de
flores sempre-vivas, cuja atividade da coleta integra seu modo de vida e seu sistema agrícola tradicional.
Conforme apontam os moradores, cada campo em particular contém tipos específicos de flores. Sendo assim,
algumas espécies nascem em morros secos, ao passo que outras se adaptam melhor a brejos e tufeiras como é o
caso da sedinha, que gosta de ambientes em que a terra "segura a água". Antes do tempo da coleta, os
apanhadores(as) vão aos campos fazer o manejo tradicional do fogo que, segundo eles, é essencial para a
continuidade das espécies. Este é um saber tradicional bastante sofisticado a respeito da época exata de fazer o
fogo (após a chuva), do tamanho da área, da direção dos ventos, dos aceiros e até mesmo de quantas pessoas
participam.
Cada flor possui uma época determinada para ser coletada, mas, no geral, são nos meses secos do ano que há
um número maior de espécies nos campos. Os moradores deslocam-se diariamente até os campos de coleta,
uma vez que as distâncias são menores, se comparadas às demais comunidades que também desenvolvem este
sistema agrícola tradicional. Uma vez nos campos, as pessoas passam o dia juntos na coleta, cantando hinos
religiosos, conversando e comendo alimentos encontrados no ambiente. Ao final do dia retornam às casas com
os buquês de flores que serão organizadas e acondicionadas em lugares específicos das casas.
Como anteriormente pontuado, as sedinhas coletadas destinam-se ao artesanato. Sendo assim, a panha desta
espécie tem que ser feita de forma a suprir todo o período de trabalho. Com a expropriação das terras e o acesso
cada vez mais restrito aos campos de coleta, a comunidade foi motivada a realizar experimentos de produção
domesticada, como alternativa ao manejo da sedinha. Nesse sentido, o projeto de pesquisa da agrônoma Maria
Neudes Sousa de Oliveira, professora associada da UFVJM experimentou a instalação de unidades de cultivo da
sedinha (Syngonanthus nitens), fora dos campos. Segundo os moradores, enquanto as primeiras tentativas baseadas
somente nos conhecimentos agronômicos deram errado, a partir do momento em que pessoas da comunidade
passaram a contribuir com seus conhecimentos, os campos começaram a dar resultados positivos e mostraram
sua viabilidade. Contudo, devido às especificidades dessa flor, o experimento de cultivo de sedinha fora dos
campos não vem tendo continuidade.
O artesanato da sedinha é feito por várias pessoas de Raiz, dentre mulheres, homens, jovens e idosos, tornando-
se uma importante referência cultural da comunidade, além de uma importante fonte de renda. As principais
peças produzidas são potes de todos os tamanhos e formas, sousplats, bandejas, bolsas e bijuterias (brincos,
colares, anéis). Além de exporem no galpão da associação, a comunidade participa também de feiras e eventos,
tais como a Feira de Artesanato da UFMG e a Feira Nacional de Artesanato.
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Ainda com relação às referências culturais da comunidade, destacam-se expressões relacionadas à oralidade, à
literatura e à música, sendo a igreja um importante espaço comunitário de transmissão desses saberes. É por
meio da prática religiosa que se reproduz e transmite uma grande parte das tradições como pontuam as
pesquisadoras Andreia dos Santos e Francine Perpetuo (2016). Conforme as autoras, o teatro é, por exemplo,
uma atividade que incentiva o conhecimento dos “causos” dos mais velhos por meio da escrita de peças e da
dramatização das estórias ancestrais. A música - canto e instrumentos musicais - também foi desenvolvida no
seio dessa instituição, atraindo muitos jovens para a prática, inclusive na composição de letras, destacando-se
neste campo de criação, Erci Alves.
Já a literatura se manifesta em poemas e em cordéis que têm como temáticas principais os modo de vida, as
lutas, a ancestralidade, a identidade quilombola, entre outras. A estrofe do cordel "Nosso pedacinho de céu", da
autoria de Eliad Alves, assim mostra:
"Há muitos anos atrás
Se refugiaram aqui
Dois guerreiros de coragem
Para a luta resistir
Talvez fosse ela a mais difícil
Mas decidiram assim".
Um traço bastante singular desta comunidade é a manutenção de uma linguagem específica que foi há muito
tempo desenvolvida e que é repassada entre as gerações através da oralidade. Esta espécie de dialeto
referenciada apenas como "nossa língua", é mais difundida entre os jovens, que utilizam tanto internamente nos
mais diversos momentos, como externamente, em ocasiões que necessitam de certa segurança para falarem
entre si, por exemplo. Não se sabe com exatidão as origens desse dialeto, contudo, foi relatado que certa vez em
que estavam visitando a comunidade de Espinho, de onde veio Pai Velho, uma parente respondeu a uma
conversa que estava sendo feita nessa linguagem, o que abre à perspectiva de ancestralidade contida neste
código compartilhado familiarmente.
A capoeira é também outra expressão comunitária que tem lugar entre as crianças e os jovens da comunidade.
Conforme relatos, esse jogo misturado a movimentos esportivos e de dança já é praticado há muitos anos na
comunidade, mas sem conhecimento de que se chamava capoeira.
Ademais, no âmbito da igreja Congregação Cristã do Brasil (CCB) ocorre cultos regulares geridos pelos próprios
moradores de Raiz às quartas, sextas e domingos, sendo que o culto próprio para as crianças ocorre durante as
manhãs deste último dia. Além das celebrações semanais, um dos mais importantes rituais é a chamada Santa
Ceia. A religiosidade está contida, ainda, na lógica do sistema agrícola tradicional, através dos hinos religiosos
entoados nos momentos de trabalho nas roças, hortas ou durante a panha, bem como, nos pedidos a Deus por
boas colheitas.
Já com relação aos aspectos sociais, no que tange a oferta de serviços básicos, Raiz acabou de receber um posto
de saúde construído pela prefeitura, onde funcionará o Programa de Saúde da Família. Portanto, até então, a
comunidade recebe visitas quinzenais de médicos que se deslocam da sede do município para fazer consultas de
menor gravidade. Para casos de maior complexidade, é necessário o deslocamento para outras localidades de
onde se tem acesso a centros de saúde mais equipados, como Presidente Kubitschek e Diamantina.
A escola da comunidade encontra-se fechada desde 2010. Assim, as crianças e os jovens precisam frequentar os
equipamentos públicos de educação na sede de Presidente Kubitschek: a Escola Municipal Nossa Senhora das
Dores, do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, e a Escola Estadual Pio XII, do 6º ano do ensino fundamental
ao 3º ano do ensino médio, sendo que a prefeitura disponibiliza transporte escolar diariamente para os
estudantes da comunidade.
Com o intuito de reativar a escola da comunidade as jovens lideranças de Raiz elaboraram, em parceria com a
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Codecex e a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), um Plano Político Pedagógico de Educação
Quilombola, para que a Escola Maria Madalena seja reaberta como escola quilombola, mas o projeto ainda não
foi implementado (SANTOS; PERPETUO, 2016).
No ano de 2015, três jovens ingressaram na universidade pública, nos cursos de Agroecologia e Licenciatura em
Educação do Campo na UFVJM. O ingresso se deu via ações afirmativas e há o recebimento de bolsas de
incentivo por meio do Programa Bolsa Permanência como quilombolas. A formação acadêmica acontece em
modelo de alternância, permitindo que frequentem a universidade e também estejam presentes em Raiz para a
realização das atividades comunitárias junto a seus familiares. Atualmente, o número de jovens universitários
passou de três para onze e esses trânsitos entre universidade e comunidade tem fortalecido a mobilização
política dos quilombolas e o estabelecimento de parcerias.
Com relação ao saneamento básico, segundo Oliveira e Silva (2017), as casas contam com água encanada que é
captada de nascentes presentes na própria localidade, não havendo sistema de recolhimento de esgoto, que é
feito por meio de fossa. Já a coleta de lixo é realizada pela prefeitura de Presidente Kubitschek em períodos
irregulares. Raiz conta com serviço de energia elétrica, mas enfrenta inconstâncias no funcionamento. Os
serviços de comunicação são restritos. O sinal de telefonia móvel é fraco assim como, o acesso à internet.
Como espaço de lazer, a comunidade possui uma quadra de futebol onde os moradores, em especial as crianças
e os jovens, se reúnem para práticas esportivas. O galpão ao lado da quadra é um espaço de grande importância
para a comunidade, que o utiliza para todos os eventos socioculturais e políticos, tais como oficinas, grupos de
formação, palestras, reuniões e teatros.
06 PROBLEMAS ENFRENTADOS
O maior problema que vem historicamente sendo enfrentado pela Comunidade Raiz é a sucessiva expropriação
de seus territórios tradicionalmente ocupados. Os paulatinos processos de invasão e de cercamento das terras
por fazendeiros, por empresas monocultoras de eucaliptos e por pessoas que se disseram donas das terras,
levaram e continuam a levar a conflitos territoriais, nos quais a correlação desigual de forças faz com que Raiz
seja cada vez mais exposta à diversas formas de violência.
Tal como foi pontuado, a comunidade vem sendo pressionada desde 2006, pelo estabelecimento de
monoculturas de eucaliptos em suas terras de uso comum. Isto é considerado pelos moradores a questão mais
grave em termos das consequências socioculturais, econômicas e ambientais que causaram. Os eucaliptos são os
principais responsáveis pela diminuição do acesso aos recursos naturais que integram as dinâmicas do sistema
agrícola tradicional, com destaque para as flores sempre-vivas. As atividades da panha de flores em campos que
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eram considerados de grande importância local foram inviabilizadas dada a destruição ambiental ocasionada
pelo sistema de monocultivo predatório. Além das flores sempre-vivas, as plantações de eucaliptos devastaram a
flora, expulsaram a fauna, além de destruir diversos cursos hídricos.
A percepção da piora na qualidade do ambiente vivenciada na prática pelos moradores de Raiz, é corroborada
na pesquisa realizada por Oliveira e Silva (2017). Em Raiz, 38,9% de pessoas identificaram problemas
relacionados à degradação ambiental no território da comunidade, sendo que destas, 35,3% atribuíram esses
problemas às monoculturas de eucalipto. Embora o estudo relativize o potencial destrutivo dessas culturas, a
degradação estaria atrelada principalmente ao elevado consumo de água dessas plantas, culminando no
esgotamento dos mananciais. Também houve substancial mudança da paisagem do território “com o avanço das
áreas de cultivo sobre áreas de bioma mata atlântica e campos rupestres" (OLIVEIRA E SILVA, 2017).
As invasões ao território pelos eucaliptos se mantêm desde então, de forma que nos últimos meses do ano de
2019, os moradores se deram conta de que uma nova monocultura estaria ganhando corpo em uma das únicas
áreas de uso comum ainda íntegras no Morrão, próxima à área chamada localmente de Cariambola. Apesar de
um grupo da comunidade ter ido reportar-se diretamente com o fazendeiro, inclusive acionado o Protocolo de
Consulta Prévia, o mesmo continuou preparando o terreno e procedendo com o plantio, mesmo que sem o
devido licenciamento ambiental. Isso vem causando grande apreensão entre os moradores de Raiz uma vez que
além das afetações já conhecidas por este processo, está havendo uma situação de violência por meio de
ameaças veladas direcionadas à comunidade.
A questão das expropriações e das consequentes violências morais e simbólicas a que estão submetidos os
moradores de Raiz, também se verificam no caso das fazendas estabelecidas no território, especialmente à que
se encontra nas terras de ocupação primária do território. Isto porque a pessoa que possui o domínio das terras
cercou importantes espaços de referência para Raiz em múltiplos sentidos, como as terras de produção de roças
de toco e a área onde se encontra a casa de Pai Velho. Neste último caso, além de cercar a edificação e impedir
o acesso dos descendentes, o proprietário ainda ficou de posse das chaves da casa. Esta situação é sentida como
um duro golpe à memória e à história do quilombo.
Além da memória, a comunidade também se vê às voltas com problemas referentes à sua cultura, modo de vida
e sistema agrícola tradicional. A primeira delas se refere aos riscos que incidem sobre a soberania alimentar com
espaços cada vez menores para a produção de roças de toco, o que leva também, à ameaça aos saberes
tradicionais contidas nessa atividade. A questão dos acessos aos campos de coleta levanta outra questão, que se
refere aos impactos nos modos de vida enquanto apanhadores de flores, assim como nos saberes relacionados à
panha. Por fim, outra questão que foi apontada se refere ao risco de desaparecimento dos modos de fabricação
com taquara, já que são apenas dois ou três homens mais velhos que possuem o conhecimento.
Outro problema enfrentado pela comunidade ao longo do tempo de ocupação do território, diz respeito àquilo
que entendem como “descaso” em relação aos seus conhecimentos e modos de vida tradicionais, especialmente
no que diz respeito à identidade étnica quilombola. Este entendimento é elaborado desde as circunstâncias de
opressão a que foram submetidos no passado, até a luta por direitos coletivos a que estão engajados no
presente.
Os relatos dão conta de que, por exemplo, uma das questões que contribuíram para o fechamento da escola da
comunidade foi o preconceito étnico e também religioso com os alunos quilombolas. Uma vez frequentando as
instituições de ensino da sede municipal, os jovens sentem os impactos de não haver nenhum tipo de educação
referente à cultura quilombola, como também o conjunto de conhecimentos e habilidades lecionados nas
escolas não atende eficientemente as necessidades práticas da vida na comunidade.
Esse preconceito que se reproduz na forma de alienação no âmbito escolar pela exclusão do conjunto extenso
de conhecimentos quilombolas do conteúdo programático constitui estratégias daquilo que Sueli Carneiro
(2005, p. 324) identifica como epistemicídio, processo esse que se configura a partir da “negação aos negros da
condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições
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[...] da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e
pela produção do fracasso e evasão escolar”. Isso fica claro no trabalho de Santos e Perpetuo (2016) que, ao
pensarem sobre letramento na comunidade quilombola, apontam como gêneros textuais de grande importância
para a vida em comunidade e a partir dos quais gera-se essa literacia em questão estão completamente
desconectados da vida escolar formal da juventude.
07 PROPOSIÇÕES
A demanda mais imediata a ser executada na garantia de continuidade dos modos de vida da Comunidade Raiz
refere-se à titulação do território quilombola. Apesar de já haver um processo de regularização fundiária aberto
pelo Incra desde 2016, pouco se avançou nesta pauta. De tal maneira, uma via para se efetivar a questão
fundiária da comunidade pode se dar através da esfera estadual e de sua legislação concernente ao tema, uma
vez que as terras se configuram como devolutas do estado de Minas Gerais. Neste sentido, já há um processo
aberto desde o ano de 2018 (processo nº 1640.01.0001932/2018-82), em que é preciso avançar em sua
execução.
Neste sentido, o primeiro passo na direção da titulação é a realização de estudo antropológico no Quilombo
Raiz (Presidente Kubitschek/MG) para subsidiar a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID), por meio de articulações institucionais: universidade pública; Seapa, Iepha-MG, Codecex,
etc.
Outra demanda com caráter de urgência refere-se à intervenção no sentido de barrar o avanço das últimas áreas
plantadas com eucaliptos e das licenças minerárias para exploração do quartzito e areia de uso comum. Para tal,
já há algumas ações sendo articuladas interinstitucionalmente entre a Codecex, o Iepha-MG, o Ministério
Público, etc. Ainda no que se refere à questão dos eucaliptos, uma demanda comunitária diz respeito à
necessidade do acesso a determinados campos de coletas (região do Funil), que ficam em meio a áreas da
Fazenda Ouro Verde, cuja entrada é impedida por gradis e porteiras trancadas a cadeados. somente quando esta
porteira está aberta é que os apanhadores conseguem passar, porém, com receio de serem interpelados ou de
serem submetidos a algum tipo de violência.
A comunidade já elaborou dois importantes projetos que dizem respeito à manutenção de sua cultura e modo
de vida, mas que ainda necessitam ser implementados. O primeiro deles é o Plano Político Pedagógico
Quilombola a ser instituído na escola da comunidade, com professores quilombolas. E o segundo, é a
construção de um galpão para a implantação da casa comunitária de farinha, já que a comunidade adquiriu o
maquinário através da mobilização de suas lideranças. Um ponto fulcral da iniciativa é “o resgate da tradição de
plantar a mandioca e fazer a farinha que é uma prática herdada dos antepassados deste grupo” (SANTOS, et al.,
2018).
Uma importante demanda referente à salvaguarda da memória da comunidade e do legado de Pai Velho e Mãe
Velha refere-se à retomada e o consequente tombamento da casa de Pai Velho.
Ademais, o Plano de Conservação Dinâmico traz ações de salvaguarda ao sistema agrícola tradicional como
pesquisas e desenvolvimento de boas práticas voltadas à produção de roças de toco, manejo do fogo e panha de
flores.
Por fim, com relação ao artesanato especificamente, o PDC traz o levantamento de demandas dos grupos de
artesãos, a realização de cursos sobre a produção artesanal, a realização de investimentos em equipamentos e
ferramentas para contribuir com o ofício, o desenvolvimento de identidade visual dos produtos, além de
material de divulgação e implantação de canais virtuais para divulgação e comercialização.
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08 FOTOGRAFIAS
Figura 5: Trabalho no artesanato da sedinha Figura 6: Trabalho coletivo de artesanato com sedinha
Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz
Figura 7: Irmãs Alves panhando flores no Cariambola. Figura 8: Panha de flores nos campos do território.
Fonte: Acervo Iepha-MG Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz
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Figura 09: Senhora Têca e senhor Ercílio em meio a monocultura Figura 10: Córrego Raiz, que atravessa o território.
na região do Capão Redondo Fonte: Acervo Iepha-MG.
Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz
Figura 10: Loja de artesanato na sede da Associação. Figura 11: Mestres da comunidade, descendentes de Pai Velho e
Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz Mãe Velha
Fonte: Acervo Iepha-MG
Figura 12: Casa de Pai Velho Figura 13: Pai Velho e Mãe Velha, fundadores da Comunidade
Fonte: Acervo Iepha-MG Raiz.
Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz
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Figura 14: Igreja Congregação Cristã do Brasil Figura 15: Apresentação teatral na sede da Associação
Fonte: Acervo IEPHA-MG Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz
Figura 16: Colheita de milho criolo. Figura 17: Senhor Ercílio trabalhando com a criação.
Fonte: Acervo Iepha-MG Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz
Figura 18: Matéria orgânica sendo preparada para enriquecer o solo Figura 19: Plantação de abacaxis no terreno de Erci Alves.
das roças. Fonte: Acervo Iepha-MG
Fonte: Acervo Iepha-MG
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Figura 20: Pés de urucum em um quintal. Figura 21: Técnica construtiva com barro e madeira.
Fonte: Acervo Iepha-MG Fonte: Acervo Iepha-MG
Figura 22: Almoço feito com verduras colhidas no quintal. Figura 23: "Esbaçador" de cana.
Fonte: Acervo Iepha-MG Fonte: Acervo Comunidade Quilombola Raiz
09 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Eliad Gisele. Nosso pedacinho do céu. s/d.
CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como Fundamento do Ser. 339 p. Tese (Doutorado em
Educação junto à área de Filosofia da Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
OLIVEIRA E SILVA, Bethânia de. Avaliação da percepção ambiental de moradores de comunidades rurais de Presidente
Kubitschek/MG. Dissertação (Mestrado em Engenharia Agrícola) – Universidade Federal de Lavras, Lavras,
2017, 126 p.
REDE GLOBO. Comunidade rural, em MG, explora o artesanato com capim dourado. [S.I.] 2014. Disponível em:
<https://glo.bo/2GSd0Uo>.
SANTOS, Andreia Ferreira dos; ALVES, Eliad Gisele; SANTOS, Lilian Maria. Estratégias de resistência e luta
pelo território: o caso da comunidade quilombola de Raiz. In: Anais do VI Congresso em Desenvolvimento Social, ago.
2018, p. 2282-2287.
SANTOS, Andreia Ferreira dos; PERPETUO, Francine Nilma. A análise teórica dos letramentos de famílias da
comunidade quilombola de Raiz. In: Anais do Congresso Nacional Universidade, EAD e Software Livre, v. 1, n. 7,
2016.
SCHRAMM, Franciele P. Monocultivo de eucalipto ameaça práticas tradicionais da comunidade quilombola Raíz, em MG.
[S.I.] 2018. Disponível em: <https://bit.ly/2UpPRAr>. Acesso em: 03 fev. 2020.
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10 FICHA TÉCNICA
Fotografias Ana Paula Lessa Belone, Débora Rocha Silva/Acervo Iepha- Dez. 2019
MG, Valda Nogueira.
Áudios Ana Paula Lessa Belone, Débora Rocha Silva
Transcrições Ana Paula Lessa Belone
Levantamento Ana Paula Lessa Belone, Guilherme Eugênio, Leandro
Nunes
Elaboração Ana Paula Lessa Belone, Guilherme Eugênio
Revisão Débora Rocha Silva, Leandro Nunes
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02 DESCRIÇÃO SÍNTESE
Vargem do Inhaí é uma comunidade remanescente de quilombo localizada no município de
Diamantina, próxima ao distrito de Inhaí. Sua história de ocupação é antiga e intimamente ligada à história da
mineração de diamantes, cristais e ouro em Minas Gerais, carregada de narrativas da escravatura e da resistência
negra no Brasil Império. Atualmente, vivem cerca de trinta famílias no território tradicionalmente ocupado que
foi reduzido em detrimento principalmente, da implantação do Parque Nacional das Sempre-Vivas. A
sobreposição desta unidade de conservação ao território quilombola levou à proibição da panha de flores por
parte dos moradores de Vargem do Inhaí, com a subsequente proibição da solta de gado nas campinas e do
garimpo nas margens do Rio Jequitinhonha. No entanto, a partir desse processo houve a tomada identitária da
categoria “apanhadores de flores sempre-vivas” como forma de organização política e enfrentamento dos
conflitos socioterritoriais nas instâncias responsáveis do poder público. É nesse contexto que os habitantes de
Vargem do Inhaí continuam a produzir e reproduzir suas formas de sociabilidade por meio de suas referências
culturais específicas que demarcam sua forma única de viver.
03 CONTEXTO HISTÓRICO
A memória da ocupação territorial e de formação da Comunidade Quilombola Vargem do Inhaí é
indissociável da presença de negros na condição de escravizados que compuseram a estrutura socioeconômica
da empresa mineradora da região do distrito diamantino. Conforme o relato de duas importantes mestras que
são referência para os moradores desta comunidade, dona Rosa e dona Joana, a história de Vargem do Inhaí
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está vinculada à presença de Chico Lopes, que é apontado como seu ancestral fundador (INCRA, 2014).
De acordo com a narrativa que atravessa as gerações da comunidade, Chico Lopes estabeleceu-se junto
a outros outros negros e suas famílias, vindos das minas de ouro e diamantes da região. Ali na área das vargens,
próximas aos cursos d'água que compõem a paisagem, este grupo construiu as primeiras moradias (ranchos) e,
consequentemente, as primeiras as roças. Um dos negros que ocupou o território junto a Chico Lopes foi Juca
Fernandes, avô de dona Rosa.
Os indícios dessa ocupação ancestral estão espalhados pelo território por meio de antigos muros de
pedras, engenhos de farinhas movidos com a força das águas, e demais vestígios presentes. Dona Rosa ainda
asseverou que durante sua infância ouvia dos mais velhos histórias sobre presença desses escravizados em
Vargem do Inhaí. O relato também revelou o sentimento de pertença que os atuais moradores têm com o
território, devido à profundidade da relação com o lugar: "Nós nascemos e criamos aqui nas vargens. Aqui é
antigo. Meu tataravô, meu bisavô, meu pai eram todos daqui. Agora a gente mais nova vai casando e muda aqui"
(INCRA, 2014, p. 40).
Assim, a constituição de Vargem do Inhaí se insere no contexto de fundação semelhante a de outras
comunidades rurais negras da região, sendo sua história intimamente ligada ao garimpo de ouro, cristais e
diamantes, à estrutura escravocrata e ao mercado de abastecimento do distrito diamantino (GUIMARÃES,
1988; 1989). Durante o auge da mineração de diamantes, a atividade de produção agrícola da região de
Diamantina era reduzida tanto porque os contingentes de trabalhadores livres e negros escravizados estavam
direcionados sobremaneira, ao ofício das minas, quanto devido às dificuldades impostas pela própria geografia
do espaço que se tornaram incontornáveis frente às tentativas coloniais e colonizadas de adaptação.
A partir da metade do século XIX, houve o declínio do volume de diamantes extraídos nas lavras do
distrito. Isadora Moura Mota (2005, p. 34) aponta como “a comarca [do Serro] caminhou para o fortalecimento
de uma economia diversificada, largamente voltada para o mercado interno, na qual destacava-se uma
agricultura mercantil com forte participação de fazendeiros possuidores de escravos”. Nesse contexto, “os
quilombos eram mais do que tentativas isoladas de combate ao sistema escravista, constituindo parte
fundamental da economia informal” (MOTA, 2010, p. 136)
Ao percorrer as paisagens repletas de serras e declives, os negros escravizados acabaram por encontrar
na região das vargens, às margens do rio Jequitinhonha, uma área propícia à agricultura, ali estabelecendo
moradia, afastando-se da servidão das minas. O nome dado à comunidade deriva, portanto, da característica
física do ambiente, das "vargens" existentes no território. O movimento hídrico na área de baixada do rio
Jequitinhonha faz com que, após a vazante das águas represadas na época das cheias, a terra fértil seja utilizada
para o cultivo. Portanto, o topônimo revela a medida da relação dos quilombolas com o ambiente e seus
recursos.
Além da agricultura, a atividade do garimpo também compôs o modo de vida desses grupos sociais
negros aquilombados da região diamantina ao longo do tempo, dentre eles de Vargem do Inhaí. Tanto é que
determinadas categorias êmicas desta comunidade, tais como "grupiaras" (garimpeiro de cristal e ouro) e
"faisqueiros" (garimpeiro de diamante) advém justamente dessa atividade que é, sobretudo, artesanal e meio de
subsistência para as famílias da região. Estes atributos afastam tais grupos da ideia de garimpeiro.
O viajante Saint-Hilaire revela a origem da ideia de garimpo, como algo relacionado ao contrabando de
diamantes durante a alta da extração do minério. Os contrabandistas, geralmente trabalhadores livres pobres ou
negros fugidos, empreendiam em grupos extrações ilegais e particulares (durante o século XVIII, todos os
diamantes pertenciam à coroa portuguesa) das minas, de forma que:
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A coleta de flores sempre-vivas também foi uma atividade que estruturou o modo de vida tradicional da
Comunidade Quilombola Vargem do Inhaí, integrando-se como um dos eixos de seu sistema agrícola. Esta
prática socioeconômica participava da subsistência das famílias, devido à valorização das flores no mercado. A
ocorrência das diferentes espécies de flores se dava ao longo do ano, com picos em determinadas épocas.
Nestas ocasiões, as famílias deslocavam-se até os campos de uso comum, mudando-se momentaneamente para
as grutas e lapas existentes, lá permanecendo durante o auge do período da panha. Quando este cessava, as
famílias retornavam para a parte baixa do território, onde se encontravam as casas e as roças. Esta dinâmica
criou territorialidades específicas, nas quais os moradores tinham grande domínio sobre os diferentes ambientes
e paisagens, que garantiu a reprodução social do grupo ao longo do tempo. Tais domínios integram saberes
específicos sobre os usos e manejos dos recursos naturais disponíveis em cada um desses diferentes ambientes,
em uma lógica contra-hegemônica de relação com o território.
Devido ao conteúdo histórico e social de formação da comunidade, assentado na escravidão no Brasil, não há
como se furtar ao fato de que Vargem do Inhaí vem carregando consigo as marcas desse passado de opressão e
subalternização, que se revela de distintas maneiras como, por exemplo, no quadro crônico de invisibilidade da
comunidade frente ao Estado e à sociedade envolvente. Se por um lado essa posição constituiu-se em uma
estratégia de sobrevivência e em um meio de liberdade e autonomia, por outro, levou à exclusão sistemática
desta coletividade a uma série de direitos, dentre os quais o de acesso e uso ao território na lógica própria de
comunidades etnicamente diferenciadas, tal como é o caso de Vargem do Inhaí, e que se choca frontalmente à
lógica capitalista de mercadorização da terra. A partir disto, a comunidade se viu às voltas com processos que
culminaram em expropriações territoriais, conflitos socioambientais e riscos da perda de seu modo de vida e de
seu sistema agrícola tradicional.
A partir da década de 1980, esta comunidade foi duramente impactada pela implantação da mineradora Tijucana
nos arredores de seu território tradicionalmente ocupado, adentrando-se a este. A exploração predatória de ouro
e diamante às margens do rio Jequitinhonha, bem como de cristal, causou degradação ambiental cujas marcas
ficaram visíveis por meio dos montes de pedras formados pelos maquinários utilizados. Esta atividade afetou as
áreas inundáveis (vargens) devido ao assoreamento do rio e, consequentemente, impactou o sistema de plantio.
A utilização de produtos tóxicos durante o processo de mineração também foi algo que afetou a qualidade de
vida dos moradores. Por fim, quando a atividade cessou, outro problema que surgiu de imediato foi o
desemprego, já que alguns moradores trabalhavam para a empresa.
De acordo com estudo do Incra para Identificação e Delimitação do território da comunidade quilombola, outra
ameaça de expropriação territorial sofrido por Vargem do Inhaí diz respeito à tentativa de implantação de
monoculturas de eucaliptos, pela empresa do ramo do agronegócio Coopeavi, nos primeiros anos da década de
2000. Especialmente por meio da Eucamix, empresa vinculada àquela, a comunidade sofreu graves tentativas de
intimidação e de pressão para deixarem o território, inclusive mediante um mandado de reintegração de posse
conseguido pela empresa, mas que foi suspenso pela justiça estadual.
A partir do ano de 2002 com a implantação do Parque Nacional das Sempre-Vivas e sua sobreposição ao
território tradicionalmente ocupado da comunidade, outros conflitos passaram a afetar Vargem do Inhaí. O
processo do PARNA foi feito inteiramente sem consulta à comunidade e de forma autoritária, por meio da
proibição das atividades desenvolvidas nos ambientes da serra, tais como o manejo do fogo, a panha de flores, a
solta do gado, o extrativismo vegetal, etc. Isto ocasionou uma série de afetações aos modos de vida e ao sistema
agrícola tradicional da comunidade.
Ante ao quadro de violação de direitos ocorridos após a instalação da Unidades de Conservação sobreposta a
comunidade, uma série de ações voltadas à garantia ao território e à manutenção do modo de vida tradicional
foram movimentadas pelos comunitários, a partir da inserção em movimentos sociais.
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Governo do Estado de Minas Gerais
Assim, no ano de 2010, foi criada a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas
(Codecex), na qual há representação de comunidades tradicionais diretamente afetadas pela criação de unidades
de conservação e de outras atividades econômicas, tais como mineração e monocultura. A Codecex atua junto
às comunidades apanhadoras de flores e quilombolas que estão localizadas na porção meridional da Serra do
Espinhaço, apoiando sua luta pela manutenção dos territórios, garantia de direitos, manejo sustentável e
agrobiodiversidade, além da formação política dos comunitários.
No ano de 2011, a comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de
quilombo. Em seguida, foi aberto no Incra o processo 54170.004355/2011-14 para regularização fundiária do
território quilombola, cuja etapa do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID foi realizada em
2014, sem outros avanços.
Já em 2018, a comunidade foi certificada pela Comissão Estadual de Povos e Comunidade Tradicionais
de Minas Gerais como apanhadora de flores sempre-vivas. Neste mesmo ano, o sistema agrícola tradicional das
comunidades quilombolas e apanhadoras de flores sempre-vivas da serra do Espinhaço Meridional candidatou-
se ao selo Globally Important Agriculture Heritage Systems pela FAO/ONU, obtendo o reconhecimento como
Patrimônio Agrícola Mundial em 13 de março de 2020. Um pouco antes, em janeiro de 2020, esta e outras
comunidade apanhadoras de flores foram reconhecidas como patrimônio material e imaterial do município de
Diamantina, por meio da Lei Municipal 156.
DATAS IMPORTANTES PARA A HISTÓRIA DA LOCALIDADE
Data Evento
Meados do século Início da ocupação do território e fundação da comunidade.
XIX
Década de 1930 Início da exportação de flores sempre-vivas
Década de 1980 Entrada da empresa mineradora Tijucana no território marcando o início das
expropriações territoriais da comunidade.
Primeiros anos da Conflitos socioambientais advindos da tentativa de implantação de monoculturas de
década de 2000 eucaliptos pela empresa Coopeavi.
Dezembro de 2002 Implantação do Parque Nacional das Sempre-Vivas.
2010 Fundação da Codecex – Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades
Extrativistas.
Junho de 2011 Certificação como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares.
2011 Abertura do processo de Regularização Fundiária pelo Incra
2014 Elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação pelo Incra.
2018 Certificação como comunidade tradicional apanhadora de flores sempre-vivas pela
Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais.
Junho de 2018 Candidatura ao selo Globally Important Agriculture Heritage Systems pela FAO/ONU.
Julho de 2019 Lançamento do Protocolo Comunitário de Consulta Prévia das Comunidades
Quilombolas e Apanhadoras de Flores Sempre-vivas.
Março de 2020 Reconhecimento como Patrimônio Agrícola Mundial pela FAO/ONU
04 CONTEXTO TERRITORIAL
A Comunidade Quilombola Vargem do Inhaí está localizada no município de Diamantina, na região político-
administrativa do Alto Jequitinhonha, estando situada à margem esquerda do rio Jequitinhonha. Encontra-se
distante cerca de 70 quilômetros da sede do município de Diamantina. A sede é o lugar onde as pessoas de
Vargem do Inhaí recorrem no que diz respeito aos serviços públicos ou ao comércio. O município de Couro de
Magalhães de Minas, distante 48 quilômetros, também é um lugar com o qual a comunidade mantém relações.
Para acessar Vargem do Inhaí saindo da sede de Diamantina, é necessário percorrer a BR-367 no sentido de
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Mendanha. Será a partir deste distrito que se chega ao distrito diamantino de Inhaí, local por meio do qual parte
uma estrada sem pavimentação de cerca de 15 quilômetros que leva a Vargem do Inhaí. Ambas localidades
estabeleceram ao longo do tempo um vínculo histórico por meio de relações sociais e econômicas.
O percurso entre o distrito e a comunidade já sinaliza a riqueza hídrica da região, uma vez que apresenta
diversos cursos d'água ao longo do caminho. A beleza da paisagem natural característica da serra do espinhaço é
também verificada durante o itinerário rumo à comunidade. Como esta estrada também conduz a outras
localidades, é utilizada como acesso por pessoas de fora da comunidade. A este respeito, o Incra apontou no
Relatório, que uma mineração à época recém instalada havia aumentado o fluxo de transeuntes, aumentando
também o medo dos quilombolas em relação à violência na região (INCRA, 2014, p. 11).
Já nos limites do território tradicionalmente ocupado, a característica da abundância de água se acentua. Além
do rio Jequitinhonha e do rio Inhacica, o território é entrecortado por vários córregos (Lamarão, Escuro,
Fundo), sendo o maior deles o córrego da Vargem, dotando essa coletividade com a alcunha de "povo das
vargens". É a partir deste marco natural - o córrego da Vargem -, assim como da estrada de acesso, que se
delineia as duas vertentes de ocupação do espaço, aglutinando as habitações e demais edificações. Conforme
aponta o estudo do Incra, um desses adensamentos tem como referência a escola e o outro, o Rancho de dona
Rosa, próxima à foz do córrego da Vargem (INCRA, 2014, p. 69). Há, ainda, algumas poucas habitações que
estão localizadas mais distantes de ambos adensamentos.
Assim como foi anteriormente citado, o território comporta uma quantidade de vestígios de diferentes épocas,
desde antigos muros de pedras a ruínas de habitações, além de cruzeiros e outros locais de memória. Já dentre as
construções atuais, destacam-se a escola, a sede da associação de moradores e o Rancho de dona Rosa, como
equipamentos coletivos, e as moradias das famílias. Esta relação entre o passado e o presente contido nas
materialidades do território revela-se, também nos elementos do sistema agrícola desenvolvido, através de
antigos pontos de roças, garimpos, campos de panha e de extrativismo, coexistindo com os locais atualmente
utilizados, o que mostra as distintas camadas históricas e simbólicas vividas naquele "chão" pelas diferentes
gerações de ocupação.
Assim, os indicativos da territorialização de Vargem do Inhaí expõem uma etnicidade autorreferida, calcada na
negritude dos atuais moradores e de seus ancestrais, das referências culturais próprias da comunidade e das
histórias de antepassados ligados àquilo que se identifica como o “tempo dos escravos” ou “tempo dos
antigos”. Essa temporalidade é explicitada pela própria paisagem desenhada pelos habitantes da comunidade ao
longo dos séculos: as casas e as taperas abandonadas, as lapas, os valos e os cruzeiros antigos.
O território de Vargem do Inhaí é formado por diferentes ambientes e paisagens que são objeto de profundo
conhecimento dos comunitários, resultante da interação ancestralmente estabelecida. A comunidade sabe
aproveitar ao máximo todas as potencialidades desses ambientes, de modo a garantir autonomia produtiva e
extrativa, a liberdade sociocultural e a soberania alimentar.
Deste modo, nas cotas mais baixas do território (grotas), no qual se encontram os cursos d'água, localizam-se as
unidades de produção familiares, composta pelas habitações, as roças e os quintais. É também onde localiza-se a
área denominada de manga, cuja finalidade é a criação de gados (INCRA, 2014, p. 115). Já nas cotas mais altas
(chapadas), encontram-se os campos rupestres, o ambiente nativo das espécies de flores sempre-vivas.Os locais
de referência para a panha são o Campo João Alves e as Vargens da Conquista, Valeriano, Morro do Chapéu,
Fundão, Córrego Manguara e Contagem. Devido à característica de formações rochosas com presença das
grutas e lapas, é costume sua utilização como moradia nos períodos de coleta de flores, estando localizadas
principalmente nas Vargens do Buriti e do Lamarão que são separadas por uma serra.
São também nas terras de uso comum das chapadas que os moradores de Vargem do Inhaí encontram
plantas nativas para consumo alimentar e medicinal, lenhas, sementes, fibras, etc., e por conta do capim nativo,
soltam os gados para pastoreio. Por fim, é relevante indicar que são as partes altas do território que abastecem
de água às partes baixas, sendo sua conservação de extrema importância para a comunidade, uma vez que a água
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05 CONTEXTO SOCIOCULTURAL
A Comunidade Quilombola de Vargem do Inhaí é composta por famílias que fazem parte de genealogias que
vêm ocupando este território desde o século XIX, a partir da fixação de negros então na condição de
escravizados, nesta região. As relações de parentesco estabelecidas são, portanto, um dos elementos que
garantem a reprodução social do quilombo e a ocupação e permanência desse grupo no território, através da
transmissão da terra entre os mesmos troncos familiares.
No contexto desta comunidade, assim como de outras formas campesinas de vida, uma das maneiras culturais
de manter a terra nos domínios das mesma famílias é através dos matrimônios contraídos. Em Vargem do Inhaí
é comum, portanto, os casamentos cruzados (entre primos), mas também observa-se relações matrimoniais com
pessoas de fora da comunidade. Há, ainda, uma formação familiar específica na qual mulheres têm filhos sem
estarem formalmente casadas (INCRA, 2014, p. 88). Contudo, ainda predomina a formação da família nuclear,
na qual a unidade familiar é também uma unidade produtiva.
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Além do parentesco formal, outras relações conformam a organização social do quilombo, tal como o
compadrio, que está ligada às práticas do catolicismo e também a reciprocidade (trabalho e amizade) com outras
comunidades, especialmente Braúnas, Contagem e Lagoa da Pedra, cuja ancestralidade também é negra. Essas
relações, tanto internas quanto externas, criam laços simbólicos entre pessoas/grupos e redes de relações com o
território ampliado.
A religião historicamente estabelecida na comunidade é o catolicismo de acento popular. A partir da devoção a
santidades católicas criou-se uma série de ritos e de celebrações, dentre as quais a folias de reis e as pastorinhas,
que têm lugar no ciclo natalino. Na comunidade, os giros são realizados no período de 25 de dezembro a 06 de
janeiro pela Folia de Reis de Vargem do Inhaí. O grupo que tem cerca de 12 integrantes entre capitão,
bandeireiro, cantadores e tocadores de violão, sanfona, caixa e pandeiro. De acordo com dados do Cadastro
"Folias de Minas", este grupo possui aproximadamente 100 anos de existência, permanecendo parado por
alguns anos, até ser novamente retomado em 2017.
Assim como a folia, as Pastorinhas de Vargem do Inhaí saem neste mesmo período do ano. O grupo, composto
por cerca de oito mulheres adultas e adolescentes que levam a bandeira, cantam e tocam pandeiro e violão,
possui por volta de 50 anos de existência e é repassado entre gerações, mesmo que enfrentando dificuldades
para se manter ao longo do tempo, devido a falta de instrumentos e de uniformes. Em cada grupo, a devoção é
direcionada, respectivamente, aos Santos Reis e ao Menino Jesus.
Outra forte devoção em Vargem do Inhaí relaciona-se ao Senhor Bom Jesus, ao qual é dedicado uma festividade
no mês de agosto. A devoção ao Senhor Bom Jesus está, inclusive, inscrita no território, por meio de um
cruzeiro levantado em sua homenagem por João Pio, um morador da comunidade, há tempos passados, como
pagamento a uma promessa feita ao santo. Esta celebração é realizada no Rancho de dona Rosa, que é o local
onde ocorrem as principais reuniões dessa coletividade. A estrutura festiva é composta pela fogueira, a
preparação e busca da bandeira na casa dos festeiros, o levantamento do mastro e o oferecimento de comidas e
bebidas. Os festeiros escolhidos a cada ano são os responsáveis por providenciar as ofertas e executar a festa
com a ajuda de devotos. Ademais, esta festa torna-se um importante momento em que muitos moradores que
migraram para outros lugares, voltam à sua comunidade natal para rever os familiares e amigos.
Além da tradição de fazer promessas aos santos de devoção com a finalidade de se alcançar alguma graça, sendo
que geralmente o impulso para esses momentos ritualísticos, essa comunidade quilombola tem também a
tradição popular de fazer penitências propiciatórias voltadas aos ciclos da natureza, a exemplo do ritual para
atrair boas chuvas.
Além do catolicismo popular que fundamenta essas manifestações culturais e religiosas na comunidade, uma
parte dos moradores de Vargem do Inhaí são praticantes de religião evangélica da igreja Assembleia de Deus,
tendo se convertido a partir da década de 1980. Essa conversão ocorre por meio de batismos através dos quais a
pessoa torna-se um irmão da congregação. Como não há templos religiosos na comunidade, as missas católicas
e cultos evangélicos são realizados em espaços da comunidade como no Rancho, onde as missas são realizadas
quinzenalmente por um padre vindo do distrito de Inhaí. Já para participar dos cultos, as pessoas se deslocam
para o distrito de Inhaí.
Essa comunidade quilombola apresenta uma idiossincrasia local dentre as manifestações que compõem seu
universo sociocultural, que é o batismo simbólico de bonecas. As narrativas dão conta de que esta é uma
tradição dos antigos, que foi sendo passada entre gerações, mas que estava quase em desaparecimento (INCRA,
2014). O ritual consiste na escolha de um padrinho ou madrinha para a boneca que será batizada e, dali em
diante, essas pessoas passarão a ser compadres e comadres. Desse modo, o batismo acaba por atualizar as
relações de compadrio de uma maneira lúdica, reafirmando os vínculos familiares e comunitários. Ademais, o
batismo é importante por também manter os saberes relacionados aos modos de fazer bonecas.
Outra manifestação que tem lugar nessa comunidade é a dança afro, desenvolvida por um grupo de jovens
mulheres. Esta expressão está em estreita ligação com o processo de organização política da juventude no
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também vem sendo de suma importância para a luta por direitos, como é o caso da Codecex, que possui
representação dos apanhadores de flores em vários conselhos, comitês, articulações, dentre outros.
Referências Culturais da Localidade
Celebrações:
Festa de Bom Jesus (fogueira, busca da bandeira, levantamento de mastro da bandeira de Bom Jesus);
Folias de Reis;
Pastorinhas;
Promessas;
Penitências;
Missa e cultos;
Batismo de conversão.
Formas de Expressão:
Batizado de bonecas;
Dança afro.
06 PROBLEMAS ENFRENTADOS
Em Vargem do Inhaí o principal problema que vem sendo enfrentado pela comunidade refere-se às
sucessivas expropriações de seu território tradicionalmente ocupado pela lógica da produção capitalista do
território, seja através de projetos de cunho desenvolvimentista, seja de cunho conservacionista. Tais processos
revelam-se ainda mais complexos devido ao fato de que os direitos coletivos dos povos e comunidades
tradicionais e que são legalmente previstos não estão sendo cumpridos, levando a crescentes tensões e conflitos.
No caso específico da Comunidade Quilombola de Vargem do Inhaí, as expropriações territoriais têm
se dado historicamente nestas duas vertentes, sendo a desenvolvimentista, por meio do licenciamento e
operação de empreendimentos minerários e silvicultores. Já a conservacionista, através da implantação de
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unidades de conservação, em especial, do Parque Nacional das Sempre-vivas, sendo que ambas provocaram a
proibição do acesso a porções do território utilizados para o plantio de roças, solta do gado, panha de flores,
extrativismo vegetal, garimpo artesanal, etc. Essas inibições colocaram em risco o modo de vida tradicional
associado ao sistema agrícola que, como foi mencionado, contém uma diversidade de saberes, celebrações e
expressões que se atêm aos laços mantidos com o território e com os usos dos recursos naturais.
Além de não ter sido consultada em nenhum momento sobre tais processos, a comunidade foi tratada
de modo extremamente violento por parte de funcionários dos empreendimentos e do órgão gestor da UC,
sendo expostos a ameaças, pressões e intimidações, inclusive com omissão do poder público à época. Estes
fatos perpetuam a posição de vulnerabilização histórica da comunidade, que teve sua origem de ocupação
alicerçada no contexto escravista da região, sendo negado a este grupo e a seus descendentes qualquer tipo de
direitos fundamentais.
A experiência de exclusão social também se desvela em problemas atuais, tal como o preconceito
direcionado aos quilombolas fora de seu território. A discriminação toma forma a partir da vinculação dessas
pessoas aos delitos ocorridos na região, como roubos, furtos e outras formas de violência. Esse preconceito se
reproduz também, na forma de alienação no âmbito escolar do distrito tanto pela exclusão do conjunto extenso
de conhecimentos quilombolas do conteúdo programático, quanto pela estigmatização das crianças e
adolescentes que atendem à escola do distrito e são frequentemente retratadas como “desinteressadas”,
“preguiçosas” ou “indisciplinadas”, constituindo estratégias daquilo que a pesquisadora Sueli Carneiro identifica
como "epistemicídio", processo esse que se configura a partir da “negação aos negros da condição de sujeitos de
conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano
e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e
pela produção do fracasso e evasão escolar” (2005, p. 324).
07 PROPOSIÇÕES
A demanda mais imediata a ser executada na garantia de continuidade dos modos de vida da Comunidade
Quilombola de Vargem do Inhaí refere-se à titulação do território. Apesar de já haver um processo de
regularização fundiária aberto pelo Incra desde 2011, mas que pouco avançou na pauta. A garantia ao território
é condição primordial para que as demais garantias dessa comunidade sejam asseguradas, entre elas, a
possibilidade de manutenção da sua cultura, modo de vida e sistema agrícola tradicional.
Ademais, o Plano de Conservação Dinâmica elaborado conjuntamente entre as comunidades quilombolas e
apanhadoras de flores sempre-vivas e os atores institucionais parceiros, traça uma série de estratégias que podem
ser associadas às ações de salvaguarda deste patrimônio cultural.
No caso das questões que são sensíveis à Comunidade Vargem do Inhaí está:
- a recategorização do PARNA Sempre-vivas ou a desafetação da área sobreposta ao território quilombola,
- Manutenção dos acessos à comunidade com a devida sinalização;
- Melhorar a infraestrutura da escola, com implementação de planos político-pedagógicos quilombola na
comunidade;
- Inventariar as práticas culturais existentes na comunidade;
- Realizar educação patrimonial em instituições de ensino, associações e demais espaços coletivos;
- Levantamentos e pesquisas relacionadas aos saberes e práticas tradicionais relacionados ao sistema agrícola
tradicional.
Por fim, especificamente em relação à referências culturais da comunidade, é necessário atentar-se para
as demandas dos grupos de folia de reis e pastorinha, que já estiveram em vias de desagregação por dificuldades
relacionadas à falta de instrumentos, uniformes, etc. Também é necessário valorizar a continuidade que a
comunidade promove com relação ao batizado de bonecas e também à dança afro, que é expressão política da
juventude de Vargem do Inhaí.
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08 FOTOGRAFIAS
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Figura 13: Plantas nativas de Vargem do Inhaí. Figura 13: Comunidade de Vargem do Inhaí.
Fonte: Acervo Codecex. Fonte: Acervo Codecex.
09 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Slenes. 2005. 235 p. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
10 FICHA TÉCNICA
Fotografias Valda Nogueira/Acervo Codecex -
Áudios - -
Transcrições - -
Levantamento Leandro Soares Fev. 2020
Elaboração Leandro Soares, Ana Paula Lessa belone Fev. a Mai. 2020
Revisão Ana Paula Lessa Belone, Débora Rocha Silva, Codecex Mai. 2020
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DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA
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