Potyara. Políticas Sociais Contemporãneas
Potyara. Políticas Sociais Contemporãneas
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Política social contemporânea: concepções e
configurações no contexto da crise capitalista
Potyara Amazoneida Pereira
Introdução
Tem-se falado muito de política social nos círculos políticos e gover-
namentais da atualidade. E, de par com esse tema, tem-se falado de empode-
ramento, manejo de riscos, melhoria das capacidades humanas, inclusão social,
cidadania, propiciados por meio da ativação dos demandantes dessa política
para o trabalho.
No entanto, o que chama a atenção nesse discurso recorrente é o des-
taque dado ao social, à política e ao trabalho em uma época em que estes fatores
estão sendo precarizados, dada a sua incompatibilidade com os valores indivi-
dualistas, privatistas e desregumentadores do regime neoliberal dominante.
Portanto, não deixa de ser irônico que seja feita referência constante a es-
ses fatores num momento e num ambiente que lhes são ideológica e politicamente
adversos; ou que se recorra à política como uma estratégia de “nova geração”
quanto mais ela parece ser insustentável para cumprir a sua principal função, que é
a de concretizar direitos sociais (inclusive o direito ao trabalho condigno).
Se considerarmos o contexto da crise capitalista atual1, cuja magnitude
supera as crises vividas pelo capitalismo no final do século XIX, no período
compreendido entre os anos 1929-1945 e na década de 1970 – cujo diferencial é
o de ser sistêmica (total), global (planetária) e permanente (sem ciclos) – vere-
mos que a política social do segundo pós-guerra, que mantinha (bem ou mal)
compromissos com os direitos de cidadania, encontra-se na encruzilhada. Isso
porque, com o empenho do capital em encontrar saídas da última crise, ajudado
por governos de países centrais e periféricos, que transferiram vultosos recursos
públicos a instituições financeiras e a empresas transnacionais endividadas, a
política social tornou-se muito mais útil ao capital do que ao trabalho.
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A crise atual é sistêmica e estrutural por três principais motivos: a) porque atinge a todas as áreas
da vida humana (social, política, econômica, financeira, ecológica e de paradigma); b) porque se dis-
seminou pelo mundo sob o domínio da lógica de funcionamento das forças livres do mercado; c)
porque parece ser a indicação de uma fase final das oscilações econômicas típicas do capitalismo,
ou dos ciclos expansivos do capital, que agora encontraram o seu limite. Ou melhor, trata-se, a atual
crise - que muitos confundem com uma crise financeira - do início de um processo que não está mais
sujeito a depressões e recuperações cíclicas, mas avança, em sobressaltos, para uma das duas seguintes
situações: a derrocada do próprio capitalismo ou a barbárie, traduzida em ainda maior superexploração
do trabalho e rebaixamento ou anulação da proteção social pública.
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Diante dos efeitos deletérios do endividamento maciço praticado pelo capitalismo central, com o
objetivo de enfrentar a crise de superprodução capitalista dos anos 1970 (decorrente do aumento de
produtividade com, simultaneamente, diminuição do poder de compra da massa de consumidores e
redução da taxa de lucro das grandes empresas), um novo pico de crise despontou. Por volta de 2007,
assomou uma crise denominada financeira, que levou a uma inédita inadimplência famílias, empre-
sas e Estados. O fato mais emblemático foi a falência do Banco Lehman Brothers, em setembro de
2008. Mas, tal crise não era apenas financeira, e sim a mais grave crise do capitalismo desde 1929, que
os governos do chamado Primeiro Mundo procuraram amenizar. Para tanto, entregaram às grandes
empresas e bancos ameaçados de falência cerca de 25 trilhões de dólares. Isso, pelo que foi divulgado.
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(2001), se impôs, desde o final dos anos 1970 e, desta vez, em escala planetária.
Trata-se do capitalismo neoliberal, ou ultraliberal, como prefere chamar
Forrester, o qual está no cerne da crise capitalista atual. E em sendo, esse mo-
delo, ultraliberal, certamente ele é ultradireitista e implacável com qualquer
veleidade de se utilizar a política social como fonte estratégica de poder à
classe trabalhadora, ou de associá-la à cidadania. Afinal, para o neoliberalismo,
diz Forrester,
[...] não se trata de organizar uma sociedade, de estabelecer suas formas
de poder, mas de colocar em marcha uma ideia fixa, que poderíamos cha-
mar de ‘maníaca’: uma obsessão em abrir caminho à corrida sem obstá-
culos ao lucro, um lucro cada vez mais abstrato e virtual. Obsessão de ver
o planeta tornar-se um terreno entregue a uma pulsão, afinal de contas,
muito humana, mas que não esperávamos que viesse a ser – ou mesmo
que pudesse vir a ser – o elemento único, soberano, a meta final da aven-
tura planetária: esse gosto pela acumulação, essa neurose do proveito, essa
isca do lucro, do ganho em estado puro, pronta para todas as devastações,
abarcando o conjunto do território, ou melhor, o espaço em seu todo, não
limitado a suas configurações geográficas. (2001, p.7).
Não admira, portanto, que, nesse cenário, a política social que vigora
mundialmente, tenha sofrido uma forte guinada para direita já que foi apro-
priada pelo ideário neoliberal triunfante e submetida, até os dias de hoje, aos
seus desígnios. Em vista disso, uma primeira tendência da política social con-
temporânea a ser demarcada, é o da sua direitização.
Direitização, no sentido da submissão da política social ao crescente
poder do capital sobre o trabalho e da capacidade daquele de impor as defini-
ções das necessidades pessoais e sociais. A sua meta, sob a ingerência direta do
capital, deixa de ser qualitativa e variada, como o são as demandas e necessi-
dades das pessoas e grupos, e passa a ser quantitativa e singular, à semelhança
das necessidades do capital, que se resumem na expansão e na maximização
do lucro – condição universal para a completa sobrevivência do capitalismo.
Este é o objetivo mais importante do capital, para cujo alcance destrói todos
os demais valores humanos e transforma tudo em mercadoria ou em valores
de troca, carreadores de lucros. A política social se defronta aí com objetivos
de bem-estar propiciados, fragmentadamente, pelo mercado, que só atende a
quem pode comprar. Mas, por não poder suplantá-los, tal política adapta-se à
função residual que lhe é reservada de aliviar, junto aos pobres, os sofrimentos
causados pela debilitação de sua condição de cidadãos.
Entretanto, isso não constitui uma fatalidade. Pelo fato de a política
social ser um processo complexo e internamente contraditório – e não um
sistema, um ato formal de Estado ou de governo, uma receita técnica ou uma
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mera resposta política – ela pode mudar de tendência e ser colocada a ser-
viço do trabalho na sua luta constante contra o capital. Tudo vai depender do
impacto das mudanças estruturais em curso sobre os rumos da história; do re-
gime político vigente; da organização e movimento da sociedade e da correla-
ção de forças em presença. Donde se conclui que a direitização da política social
teve e continua a ter o aval (consentido ou não) de grande parte da sociedade.
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É um programa de transferência condicionada de renda, criado em 2004, pelo Governo Federal,
para integrar e unificar vários programas isolados que transferiam renda às famílias em situação de
extrema pobreza. A principal contrapartida oferecida pelas famílias beneficiadas pelo programa é o de
manter seus filhos matriculados em escolas públicas e fazer uso dos serviços da rede pública de saúde.
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por amostragem, pelo INEP4. Diante desse fato, mesmo que não se fale do
seu flagrante retrocesso em matéria de igualdade de tratamento do alunado nas
escolas, vale ressaltar uma irracionalidade sempre presente nas políticas sociais
focalizadas: os gastos elevados que tal aferição de rendimento escolar suscitará
como resultado da preocupação do projeto em economizar e empregar bem o
dinheiro público (LAVINAS, 2010). Outro exemplo, ainda referente às portas
de saída do Programa Bolsa Família, é a firmatura de convênio do governo
federal com a Câmara Brasileira de Indústria de Construção, para que sejam
reservadas vagas em obras de construção civil do Programa de Aceleração do
Crescimento do governo Federal (PAC) aos beneficiários do programa.
Para vários analistas, a tendência à laborização da política social está
associada, de um lado, à desestruturação do padrão fordista de produção,
que, entre 1945-1975, assentava-se nas estruturas keynesianas de acumula-
ção e consumo de massa, no pleno emprego e na adoção de políticas sociais
universais e, de outro lado, à emergência de outro padrão de organização
produtiva chamado pós-fordismo que pretendia mudar tudo isso. Entretanto,
apesar de o pós-fordismo não ter rompido totalmente com os mecanismos
de exploração fordistas/tayloristas, ele foi apropriado, a partir dos anos 1980,
pelo neoliberalismo, e passou a basear-se em outra doutrina econômica, emula-
dora do trabalho, do mérito, da monetarização da proteção social, do empreen-
dedorismo e da inovação destrutiva, cuja inspiração remonta a Schumpeter5.
Donde se conclui que, se quiséssemos eleger a mais marcante tendência da
política social contemporânea, deveríamos dizer que ela está sofrendo um evi-
dente processo de descidadanização e de desproteção social (ou dessassistencialização),
em nome do “mérito”, medido pelo poder de consumo do beneficiário e con-
traposto à justiça social. Isso porque a maior parte do trabalho da chamada
era pós-fordista é precário (apesar de primar pela intensificação qualitativa dos
ritmos produtivos, da qual os operadores de telemarketing são exemplos vivos)6,
flexível, mal pago e desprotegido. E o que vem sendo chamado de assistência
tem mais caráter de punição do que de proteção, tal como acontecia no século
XIX sob a regência do sistema das workhouses inglesas, alcunhadas pejorativa-
mente de novas bastilhas, dado o sofrimento impingido nessas casas de trabalho
forçado aos que precisavam da assistência pública. Ou melhor, aos demandantes
da assistência – os pobres, o sistema das workhouses impunha o seguinte dilema:
4
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, vinculado ao Ministério da Educação.
5
Joseph Schumpeter (1883-1950), economista austríaco, considerado um dos pais do empreende-
dorismo e mentor da ideia de inovação destruidora de velhas práticas empresariais, que deveria ser
realizada por indivíduos audaciosos, criativos, de grande iniciativa e capacidade de ação.
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Isso induz ao entendimento de que o prefixo “pós” do termo “pós-fordista” constitui uma falácia.
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