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VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2000
Àqueles e àquelas que acreditam e lutam pela democratização
dos recursos naturais, em especial a ÁGUA - fonte de vida e
elemento essencial no processo de germinação
de sementes e de esperança.
ii
AGRADECIMENTO
Escrever uma tese é uma tarefa difícil. É dedicação exclusiva que exige
paciência da família, do companheiro, dos amigos e dos colegas, que muitas
vezes superam a possibilidade de compreensão. É um esforço conjunto de
pessoas e instituições que nos sustentam emocional e materialmente.
Aos meus familiares, João, Martine, Fábio, Laurette, Ronna, Jordanna,
Darlene, Jorge, Ana Paula e Jorgito, pelo amor e carinho ao longo da minha
vida. A Dirlene e a Maria, que, apesar de não estarem mais nesse plano,
sempre se fizeram presentes.
Ao meu companheiro Jerônimo, pelo amor e pela dedicação, apesar da
distância física. E aos nossos familiares, Rita, Antônia, Teresa, Lúcia, Neto,
Marta, Ziza e sobrinhos, pela atenção e carinho em todas as horas.
À minha irmã Bruna, pelo amor e pela companhia, especialmente nos
seis meses que esteve estudando na UFV.
Aos meus amigos Paulo Gabriel, Daniela Torres, Ana Maria, Maurício,
Pedro Moreau, Alessandro Borges, Patrícia Barreto, Oldair e Rozane, que
estiveram presentes nos momentos difíceis e alegres.
Aos meus colegas, que, ao longo do curso, se tornaram figuras
marcantes: Andréia Zulato, Nunes, Marluce, Andréa Alice, Adriana, André
Torres, Ubiratan, Cláudia Maia, Silvana, Romilda, Geana, Nazaré e Renata.
iii
Aos amigos de convivência em casa, que, na hora da partida, deixaram
saudades: Emanuel, Ricardo, Guilherme, Jersone, Anete e Raquel. E aos que
ficaram: Orlando, Anderson, Cristina (Pitu) e Aparecida (Cida).
A Dione e Aelson, pelo carinho e pelo apoio antes e durante o curso.
A Malu e a Júnior, pela amizade e pela receptividade em Fortaleza.
A Mirtes, Humberto, Jairo, Paula, Carla e Elisângela, pela atenção e
pelo apoio em um momento difícil.
À CAPES, pela concessão das bolsas de estudos no Mestrado e no
Programa Especial de Treinamento (PET) na Graduação.
Ao professor Fábio Faria Mendes, pela orientação atenciosa e
cuidadosa, pelo aprendizado e pela amizade em todos os momentos de
convívio.
Ao professor José Norberto Muniz, pelas orientações e pela dedicação
ao longo do curso.
Ao professor José Ambrósio, pelas sugestões e pela presteza.
Aos professores Luiz Lima, Franklin Rothman, Rosana Heringer, Vera
Muniz, France Coelho, Amilcar Baiardi, Marisa Barleto e Willer Barbosa, pelo
apoio na construção deste trabalho.
Aos professores Otávio Soares Dulci e Newton Paulo Bueno, pela
participação na banca de defesa e pelas contribuições pertinentes.
Às professoras da Universidade da Flórida, Dorota Haman e Marianne
Smick, pela atenção dispensada.
Aos funcionários Graça, Brilhante, Gilcemir, Tedinha, Rosângela, Rita,
Carminha e Helena, pela presteza durante o curso, e à Ana Maria, pelas
correções lingüísticas.
Às instituições públicas, que tornaram possível a realização deste
trabalho: Universidade Federal de Viçosa (UFV), Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas (DNOCS), Companhia de Desenvolvimento do Vale do
São Francisco (CODEVASF) e Departamento de Gestão de Águas Federais da
Secretaria de Recursos Hídricos (SRH).
iv
BIOGRAFIA
v
CONTEÚDO
Página
ABSTRACT ........................................................................................... xv
1. INTRODUÇÃO .................................................................................. 1
3. METODOLOGIA ............................................................................... 12
vi
Página
APÊNDICE ............................................................................................ 92
vii
LISTA DE TABELAS
Página
ix
LISTA DE FIGURAS
Página
x
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
xi
IOCS Inspetoria de Obras Contra as Secas.
MA Ministério da Agricultura.
MARA Ministério da Agricultura e de Reforma Agrária.
MEAI Ministério Extraordinário para Assuntos de Irrigação.
MIR Ministério da Integração Regional.
MIN Ministério da Integração Nacional.
MME Ministério das Minas e Energia.
MMA Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da
Amazônia Legal.
MINTER Ministério do Interior.
PAPP Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural.
PND Plano Nacional de Desenvolvimento.
POLONORDESTE Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do
Nordeste.
PROEMA Programa de Emancipação.
PROINE Programa Nacional de Irrigação no Nordeste.
PRONI Programa Nacional de Irrigação.
PRONID Programa de Irrigação e Drenagem.
PROTERRA Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à
Agroindústria do Norte e Nordeste.
SERTANEJO Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semi-
Árida do Nordeste.
SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste.
SUVALE Superintendência do Vale do São Francisco.
TVA Tenesse Valley Authority.
xii
RESUMO
xiii
trajetória do DNOCS é contemplada por várias fases, em que concepções e
papéis diferentes governaram as ações da agência na gestão da água. Apesar
de se tratar da trajetória histórica do DNOCS desde sua fundação, em 1909, a
análise foi concentrada na década de 70, com a intensificação de utilização da
água para a formação dos perímetros irrigados, a partir da fase hidroagrícola.
Mais do que em qualquer outro período de sua história, esse foi um momento
em que os grandes projetos implementados pelo DNOCS deixavam
transparecer os dilemas que envolviam as sua intervenções, combinando
grandes investimentos públicos tecnicamente planejados e apropriação privada
e seletiva dos benefícios. A finalidade central dos perímetros era difundir a
irrigação no semi-árido brasileiro, modernizando a agricultura através do
aumento da produtividade do setor, sem, entretanto, promover mudanças
substantivas na estrutura agrária da região. Para análise, foi construída uma
tipologia de três modelos que configurariam o campo de alternativas
historicamente disponíveis, que, em momentos distintos da trajetória brasileira
de gestão das águas, foram mais ou menos próximos às práticas institucionais
das agências ligadas à gestão dos recursos hídricos. Estes modelos de gestão
idealizados e praticados no Brasil serviram como base para situar o DNOCS no
contexto de sua dinâmica. A transformação recente dos modelos de gestão dos
recursos hídricos tem colocado em questão os papéis tradicionais exercidos
pelo DNOCS, fazendo com que propostas de reestruturação administrativa, ou,
mais radicalmente, extinção da agência, passem a disputar a arena política
mais ampla.
xiv
ABSTRACT
The role the federal government has played against the climatic
adversities in the northeastern semi arid region has been historically symbolized
by the creation of DNOCS - National Department of Action against Drought.
This public institution has played the role of a privileged interlocutor favoring the
needs of the northeastern regional elites, thus performing the role of a pioneer
agency in the formation and mediation of government policies in the fight
against drought in this area. Since its creation, this agency activities have
focused on the physical and infrastructural dimensions, disregarding the social
and institutional conditions under which the existing water provision systems
operate represented by the “action against drought”. The core question of this
work, which focus on the interpretation of the DNOCS trajectory, is to
understand how an agency planned to act as a technical tool of economic
development was, if we may say so, “colonized” by the local regional elites,
becoming a decisive tool in the local distributive game. DNOCS trajectory
xv
underwent various phases, with different concepts and roles guiding its actions
in the area of water management. Although concerning the historical trajectory
of DNOCS since its foundation in 1909, this analysis concentrates on the
1970s, when the use of water was intensified to build the irrigated perimeters
(hydro agricultural phase). More than at any other time of its history, this was a
moment in which the powerful DNOCS implemented projects, showing the
dilemas involving its interventions, which combined large public investment
technically planned and private and selective appropriation of benefits. The
main goal was to diffuse irrigation in the semi arid Brazilian region, by
modernizing agriculture, and increasing productivity in the sector without,
however, promoting substantive changes in the agrarian structure of the region.
For analysis, a typology of the 3 models was developed, which would show the
extension of historically available alternatives which, in distinct water
management phases, were somehow closer to the institutional practices of the
agencies involved in water resource management. These management models,
created and applied in Brazil, served as a basis to place DNOCS in the context
of its dynamics. Recent changes in the water resource management models
have questioned the traditional roles played by DNOCS in the political arena
leading to proposals of administrative restructuring and, even more radically, to
proposals of extinction of the agency.
xvi
1. INTRODUÇÃO
1
do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS)1. Essa
agência pública assumiu o papel de interlocutor privilegiado das reivindicações
das elites regionais nordestinas, exercendo a função de agência pioneira na
formação e intermediação de políticas governamentais no combate aos efeitos
das secas nessa região.
Desde o início, o DNOCS teve sua atuação marcada por uma
concepção de gestão dos recursos hídricos eminentemente tecnicista. As
atividades desenvolvidas pela agência foram sempre voltadas para as
dimensões físicas e de infra-estrutura, desconsiderando as condições sociais e
institucionais de operação dos sistemas de provisão de água construídos. Os
esforços e a capacitação técnica do DNOCS foram direcionados para a
realização de obras de engenharia de grande escala, representadas nas “obras
contra as secas”.
A definição de “missão” do DNOCS tem algo de paradoxal na sua
enunciação. Considerando que não se pode, realisticamente, “lutar” contra um
fenômeno natural, essas obras, concretamente, procuram mitigar os efeitos das
secas através de perfuração de poços, construção de barragens e de
implantação de perímetros irrigados. A “missão” do DNOCS, entretanto, não
definia claramente as prioridades distributivas no fornecimento dos recursos
hídricos escassos, que foram, historicamente, capturados pelos grupos
dominantes da região.
Neste trabalho, investigou-se a trajetória institucional do DNOCS desde
a sua criação, no início do século XX, procurando compreender como esta
agência moldou as formas de gestão dos recursos hídricos da Região
Nordeste. Segundo FLEURY e FISCHER (1990:22-23), a recuperação do
momento de criação de uma instituição
... e sua inserção no contexto político e econômico da época propiciam o pano
de fundo necessário para compreensão da natureza da organização, suas
metas, objetivos... Ainda nesta recuperação histórica é importante investigar os
incidentes críticos por que passou ... crises, expansões, pontos de inflexão, de
fracassos ou sucessos.
1
A Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) e a Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas (IFOCS) foram agências reestruturadas que deram origem ao atual DNOCS.
2
políticas e ideológicas ao longo do tempo. De acordo com UIRANDÉ (1986), as
políticas básicas de atuação do DNOCS na gestão dos recursos hídricos
abrangeram os estudos hidrológicos, predominando os levantamentos e o
reconhecimento das potencialidades e dos recursos naturais de áreas; as
obras hidráulicas, caracterizadas pela construção de infra-estrutura; e as
utilizações das águas ou o aproveitamento hídrico, com ênfase na construção
de açudes para abastecimento, na piscicultura e, principalmente, na agricultura
irrigada. Essas políticas básicas da agência foram periodizadas em distintas
fases, conforme a Tabela 1.
Hidráulica
Obras hidráulicas (poços e açudes) e infra-
IFOCS 1920-1945 (Politécnica de
estrutura (rodovias e portos).
Engenharia)
3
transformação em DNOCS, a agência começou a intensificar as obras
hidráulicas e a utilização hídrica nas fases Hidrotécnica (1946-70) e
Hidroagrícola (1971-1999), respectivamente.
A ênfase principal deste estudo, entretanto, foi para o período que se
inicia na década de 70, conforme a Tabela 1, na fase hidroagrícola, quando foi
intensificada a política de aproveitamento hídrico, principalmente através da
agricultura irrigada, com a implantação de projetos públicos no semi-árido
brasileiro. Esses projetos foram implantados em áreas relativamente mais bem
dotadas de recursos hídricos.
O grande problema da agricultura irrigada na região, além da
disponibilidade de água, é a eficiência gerencial e distributiva dos recursos
hídricos. Quanto a isso, CARVALHO (1997:102) salienta que, particularmente no
Nordeste, o aproveitamento dos recursos hídricos requer esquemas de gestão
eficientes em face da “irregularidade de sua distribuição espacial e temporal”.
A implementação de esquemas eficientes de gestão dos recursos
hídricos, entretanto, confronta-se diretamente com o enfoque produtivista
adotado na política agrícola desde os anos 60, particularmente na região
nordestina. Com essa política, não há respeito às vulnerabilidades e limitações
dos recursos hídricos, sendo assim difícil o estabelecimento de um
gerenciamento integrado e eficiente desses recursos nessa região.
A ênfase produtivista delineou o planejamento e a implantação dos
perímetros irrigados do DNOCS por quase três décadas, pressupondo que,
aumentando a produtividade agrícola, os problemas sociais e econômicos da
região seriam solucionados automaticamente. Essa diretriz está delineada nos
planos e programas regionais de desenvolvimento da época, definindo formas
de aproveitamento dos recursos naturais de forma mais intensiva e completa
possível (BRASIL, 1966; 1988a).
Por essas razões, o uso da água nas atividades desenvolvidas pelo
DNOCS visou apenas o aspecto econômico como possibilidade de
enfrentamento dos problemas sociais da região. O DNOCS, então, executava
as ações dos planos e respectivos programas com grande ênfase nas
dimensões físicas e técnicas, tendo como suporte o modelo de gestão voltado
para determinados fins setorizados, sem integração das atividades
relacionadas com o planejamento e a utilização dos recursos hídricos.
4
A gestão setorizada dos recursos hídricos permeia o DNOCS na sua
forma de intervenção, afetando assim a oferta e a conseqüente distribuição
desses recursos na região de sua atuação. Essas formas de intervenção
propiciaram a proliferação de conflitos no uso da água e a projeção de
problemas ambientais.
As formas de gestão dos recursos hídricos, entretanto, têm evoluído
recentemente para a formação de políticas que integralizem a água como mais
um recurso natural no meio ambiente, não permitindo o seu uso setorizado.
Dessa maneira, foi determinado um novo marco institucional para as atividades
do DNOCS, especialmente nos perímetros públicos irrigados, uma vez que
estes princípios pressupõem eficiência na gestão de uso integrado da água,
redefinindo o papel da instituição e dos agentes sociais envolvidos (BRASIL,
1997a).
5
de gestão dos recursos hídricos utilizados pelo DNOCS nas suas conexões
com as flutuações das políticas nacional e regional.
A criação do DNOCS tinha por intenção reduzir os obstáculos ao
desenvolvimento da região afetada pela seca, produzindo, supostamente,
redistribuição mais eqüitativa de riqueza entre as regiões e mesmo dentro da
região.
Apesar da delimitação geográfica ampla e vaga de sua atuação, pois
se trata de uma agência “nacional” na sua abrangência, as ações do DNOCS
concentraram-se sempre em algumas regiões específicas do semi-árido
nordestino, atendendo a clientelas bastante específicas. Essa delimitação
correspondia à apropriação da “imagem de sofrimento” da região pelas elites
regionais (CASTRO, 1992:60). A presença de “elites” econômicas e políticas
firmemente assentadas sobre a topografia social da região moldou
decisivamente a trajetória histórica do DNOCS.
A questão central da interpretação da trajetória institucional do DNOCS
é entender como uma agência planejada para servir como um instrumento
eminentemente técnico de desenvolvimento econômico foi “colonizada” pelas
elites políticas locais e se tornou um elemento decisivo no jogo distributivo
local.
Dessa forma, importa compreender a trajetória do DNOCS enquanto
agência mediadora entre a elite regional e o Governo Federal, servindo como
arena privilegiada onde se operam a reprodução dos recursos de poder e a
preservação da estrutura política regional. Essa trajetória contempla várias
fases, em que concepções e papéis diferentes governaram as ações da
agência na gestão da água, conformando alguns “modelos de gestão” distintos,
cuja dinâmica será analisada no Capítulo 6.
Apesar de se tratar da trajetória histórica do DNOCS desde sua
fundação, a análise foi concentrada na década de 70, com a intensificação de
utilização da água para a formação dos perímetros irrigados. Mais do que em
qualquer outro período de sua história, esse foi um momento em que os
grandes projetos implementados pelo DNOCS deixavam transparecer os
dilemas que envolviam as sua intervenções, combinando grandes
investimentos públicos tecnicamente planejados e apropriação privada e
seletiva dos benefícios.
6
O modelo institucional de gerenciamento implementado nos perímetros
irrigados a partir dos anos 70 foi o público, no qual o DNOCS adquiria a terra
por desapropriação de interesse público e construía as infra-estruturas social,
de produção e de irrigação. A finalidade central era difundir a irrigação no semi-
árido brasileiro, modernizando a agricultura através do aumento da
produtividade do setor, sem, entretanto, promover mudanças substantivas na
estrutura agrária da região.
7
2. INSTITUIÇÕES E TRAJETÓRIAS NA IMPLEMENTAÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
8
“free-riding”. Instituições estabelecem padrões normativos e cognitivos, que
estabilizam as expectativas dos agentes sociais.
Entretanto, as instituições servem não apenas para impedir, mas
também para fazer certas coisas, sugerindo que as atividades executadas
pelas instituições devem gerar benefícios com a implementação de metas. Vale
ressaltar que as instituições não estão livres de falhas no desempenho das
suas atividades. Dessa forma, MENDES (1997:5) afirma que as instituições
... não são mecanismos que servem exclusivamente para decidir, mas também
para fazer, para atingir certos fins. As opções disponíveis, as seqüências de
opções, a oferta de informações e a estrutura de recompensas e punições, se
alteradas, mudam os padrões de resultado esperado...
9
analisar o desenvolvimento institucional como dependente das trajetórias
históricas. Decisões críticas tomadas em determinado momento histórico
alteram o conjunto de possibilidades de futuro, entre outras razões, porque
instituições também criam constelações de interesses; e o institucionalismo
histórico procura integrar a análise institucional com outras dimensões
decisivas dos resultados políticos, como o conflito de classe, as identidades
sociais e o papel das idéias.
STEINMO e THELEN (1998) argumentam que o institucionalismo
histórico permite examinar a relação entre atores políticos como agentes da
história. O significado e as funções das instituições também podem mudar com
o passar do tempo e produzir resultados inesperados. As preferências, as
estratégias e o poder desses atores são definidos pelo contexto institucional,
no qual o “jogo político” é estabelecido.
Igualmente importante é notar as especificidades da arena de políticas
que são tratadas aqui. A gestão de recursos naturais e, mais especificamente,
de recursos hídricos apresenta algumas características particulares
importantes. Muitos dos problemas centrais de gestão de recursos referem-se
à coordenação de estratégias individuais dos usuários no dilema da ação
coletiva. A tragédia dos comuns é a formulação clássica deste dilema
(HARDIN, 1977). O problema da ação coletiva emerge quando os bens
públicos têm as propriedades de indivisibilidade e de não excludência no seu
consumo. De acordo com a lógica da ação coletiva, o bem não será provido na
ausência de coerção ou de incentivos seletivos, a menos que o grupo seja
pequeno (OLSON, 1971; SANTOS, 1993).
As estratégias de maximização dos agentes, entretanto, quando
agregadas, tendem a gerar conflitos, especialmente no caso de recursos
abertos. Ao analisar a dinâmica de apropriação de recursos comuns2 de livre
acesso, HARDIN (1977) e OSTROM (1995) ilustram essa possibilidade com a
tragédia dos comuns, em que o livre acesso a recursos partilhados pode levar,
se não regulado por alguma forma de contenção pactada, ao esgotamento dos
2
Recurso comum é um termo que se refere a sistema natural ou artificial suficientemente
grande e com possibilidade de excluir beneficiários potenciais no seu uso. Alguns exemplos:
campos pesqueiros, áreas de pastagens, canais de irrigação, pontes, lagos, oceanos e outros
corpos de água (OSTROM, 1997).
10
recursos. Desta maneira, os autores chamam a atenção para o caráter
decisivo da regulação institucional dos recursos comuns, que devem seguir
critérios eqüitativos, auto-sustentáveis e não predatórios de governança.
Algumas formas de regulação institucional podem prevenir, ou, ao
contrário, incentivar a superexploração dos recursos hídricos. Duas soluções
clássicas têm sido oferecidas ao problema dos comuns, ambas problemáticas
na sua operacionalização: a solução hobbesiana, ou seja, a atribuição ao
Estado da prerrogativa de controle dos recursos comuns e regulação do seu
uso; a solução de mercado: a atribuição de direitos de propriedade, dividindo
os recursos em partes para controle individual. A fluidez de recursos naturais
como a água, entretanto, torna ambas as soluções insatisfatórias (MARCH e
OLSEN, 1984; OSTROM, 1995).
11
3. METODOLOGIA
3
MAIA, M.H.B.A., COSTA, T.J.S.C. Catálogo das publicações editadas pelo DNOCS 1960-
1989. Fortaleza: DNOCS, 1989. 98 p.
13
histórica, mudando apenas as informações quantitativas, o que significa que
eram apenas uma atividade formal e burocrática. Além disso, nos últimos cinco
anos não foram publicados os relatórios de atividades pela Diretoria Central, e
os três últimos relatórios anuais nem foram elaborados. Conforme a Divisão de
Documentação dessa Diretoria, esses relatórios não foram feitos em razão das
“dificuldades financeiras” do DNOCS. Foi necessária, então, a
complementação das informações através de entrevistas semi-estruturadas
com alguns dos principais atores institucionais. Entrevistas semi-estruturadas
por se caracterizarem num “procedimento mais usual no trabalho de campo,
pois, através dela, o pesquisador busca obter informes contidos na fala dos
atores sociais” (CRUZ NETO, 1994:57).
A escolha desses atores institucionais não foi aleatória, sendo
considerados os setores da instituição responsáveis pelas várias etapas de
implementação dos perímetros irrigados, limitando-se aos técnicos da 2.a, 3.a e
4.a Diretoria Regional e da Central do DNOCS. Os técnicos entrevistados
pertenciam à Divisão de Irrigação das Regionais e os da Central eram da
Diretoria de Irrigação, Diretoria de Estudos e Projetos e Grupo de Operação e
Assessoramento (GOA). Além desses setores, mediante a reestruturação por
que passa a instituição, foram entrevistados técnicos que integram a Comissão
de Defesa do DNOCS e, por causa de trabalhos desenvolvidos conjuntamente
na gestão dos recursos hídricos, o técnico responsável por esses trabalhos da
Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH/CE). No total foram
entrevistados 15 técnicos, sendo apresentadas as entrevistas ao longo da
pesquisa com a denominação de “Técnico”. Esse procedimento teve por
objetivo preservar a identidade dos técnicos entrevistados.
15
4. O DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS
4
O primeiro registro histórico da seca no Nordeste é o do bispo D. Fernão Cardim, afirmando
que “No ano de 1583 houve tão grande seca e esterilidade nas Províncias de Pernambuco e
Bahia, que os engenhos d’água não moeram muito tempo. As fazendas de canaviais e
mandioca muitas secaram, por onde houve muita fome, principalmente no sertão de
Pernambuco, pelo que descerem do sertão apertados pela fome, socorrendo-se aos brancos
quatro ou cinco mil índios” (ALVES, 1982:17-18).
5
O Governo Imperial nomeou uma comissão de engenheiros para estudar, no Ceará, meios de
garantir água às populações da região. Pode-se, assim, remontar às origens do DNOCS. Esta
comissão apresentou um relatório que propunha a construção de açudes para a retenção de
águas. Um desses açudes, o Quixadá (atualmente Cedro), foi a primeira obra no Brasil
utilizada para irrigação de canais, apresentando problemas técnicos de conservação dos
16
em 1884 e finalizada somente em 1906, devido às dificuldades técnicas e aos
problemas de desapropriação, transformando-se em símbolo de ineficiência
governamental (PÁEZ, 1968).
Em virtude da forma errática com que o combate dos efeitos das secas
tinha sido conduzido desde a Grande Seca, em 1909, foi criada a primeira
agência federal para a região, a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)6,
com sede no Rio de Janeiro. HIRSCHMAN (1963) lembra que a criação dessa
agência pública tinha como objetivo pôr fim à má-administração e à falta de
continuidade das decisões isoladas, principalmente na execução de projetos de
construção de açudes, poços e rodovias. Segundo PÁEZ (1968:10),
a criação da Inspetoria visava ao estabelecimento de uma agência unificada e
permanente, uma vez que desde 1904 haviam sido criadas várias comissões
federais temporárias e ineficientes, localizadas em alguns estados nordestinos
(Comissão de Açudes e Irrigação, Comissão de Estudos e Obras contra os
Efeitos das Secas, Comissão de Perfuração de Poços).
7
Esta combinação revelou-se particularmente eficiente em 1919, 1932 e em 1958. Estes foram
os anos em que houve maiores recursos consignados nos orçamentos da União no plano de
obras contra os efeitos das secas e de acumulações d’água nos açudes públicos no período
de 1909 a 1994 (DNOCS, 1999).
18
combater os malefícios provocados pelos efeitos da seca, sem, entretanto,
afetar as relações sociais de produção da região. Nesse sentido, em 1919, foi
criada a Caixa Especial das Obras de Irrigação das terras cultiváveis do
Nordeste brasileiro, que compreendiam fartos recursos financeiros destinados
a estudos e obras de acumulação hídrica necessárias à irrigação,
representando 2% da receita federal anual. Essa Caixa foi criada no governo
do presidente nordestino Epitácio Pessoa, sendo, entretanto, extinta em cinco
anos, no governo do presidente mineiro Arthur Bernardes. Paralelamente à
criação da Caixa Especial, ocorreu uma reforma administrativa e a IOCS foi
transformada em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS)8
(MOTA, 1979).
As sucessivas reformas sofridas pela agência, num padrão que se
tornaria recorrente nos anos subseqüentes, caracterizam-se por um processo
incremental, ao invés de totalmente reconstrutivo ou destrutivo, aumentando
assim as chances de sua sobrevivência, embora não necessariamente a sua
eficiência. Esse processo não mudou a concepção exclusivamente técnica do
combate dos efeitos da seca, ao contrário, incorporou outras atividades
técnicas que intensificaram a construção de obras de infra-estrutura,
principalmente de açudes e estradas.
HIRSCHMAN (1963) argumenta que, apesar da intensificação das
políticas direcionadas para a construção de infra-estrutura, ainda prevaleceu a
intratabilidade do combate aos efeitos da seca no semi-árido nordestino. As
ações da IFOCS, segundo PÁEZ (1968), podem ser divididas em duas
categorias: a) planejamento e implementação de uma solução hidráulica; e b)
medidas de emergência para empregar e auxiliar a população em estado de
calamidade.
As medidas emergenciais, empregadas apenas durante os anos de
calamidade, caracterizavam-se por salvar o flagelado da fome, com doações de
alimentos e frentes de serviço9. As medidas estruturais, por sua vez,
8
No período da IFOCS, as seções foram substituídas pela denominação de Distritos, sendo
mantida a divisão espacial. Enquanto DNOCS, passaram a ser Diretorias Regionais (BRASIL,
1985c).
9
Ver BURSZTYN (1984).
19
concentravam-se na construção de barragens, estradas10 e perfuração de poços,
através de grandes projetos hidráulicos na implantação de infra-estrutura. Essas
últimas ações caracterizam a fase hidráulica, concentrando-se entre a criação da
IOCS e 1945, podendo ser subdivididas em científica, de 1909-1919, e politécnica
de engenharia, de 1920-1945, por apresentarem distinções nas suas atividades
prioritárias, apesar de serem complementares. Enquanto a fase científica
priorizou estudos de potencialidades dos recursos naturais disponíveis na região
nordestina, a fase politécnica de engenharia foi voltada para a intensificação das
obras estruturais de acumulação hídrica (BRASIL, 1980b; HOLANDA, 1979).
De acordo com ANDRADE (1994), a construção de grandes açudes e
de estradas não repercutiu diretamente sobre a agricultura, a pecuária e o
abastecimento regional, apenas permitiu, respectivamente, a acumulação de
águas e socorros para a população flagelada e facilitou o êxodo rural na região.
Essas obras de infra-estrutura foram realizadas pela IFOCS com uma
visão tecnocrata de solucionar os problemas agrários do semi-árido nordestino,
não favorecendo, entretanto, a implantação de políticas de desenvolvimento
regional. Segundo QUEIROZ et al. (1996), a ação da agência, nesse período,
reduzia-se a simples construção de açudes, sem qualquer preocupação com a
distribuição de água, não havendo nenhuma coordenação entre as políticas
anti-seca. Essas obras eram planejadas e executadas de forma a explorar os
recursos hídricos da região e maximizar apenas a sua oferta e não a
distribuição da água às populações atingidas ao longo dos anos.
Pode-se considerar que o objetivo de explorar os recursos hídricos no
semi-árido nordestino está associado ao conflito de interesses de alocação dos
recursos escassos, como é o caso da água na referida região. Dessa forma, a
trajetória política temporal da agência visava apenas a maximização da oferta
de água nas estruturas físicas de engenharia hidráulica.
A tendência técnica pode ser observada nas reformas administrativas
da agência, como a de 1931-32, em que, entre outras alterações na IFOCS11,
foi reforçada a ênfase na construção de grandes açudes, além de se começar a
10
As obras de infra-estrutura de transporte, principalmente nas vias de acesso, exigidas para o
escoamento da produção, também facilitariam a fuga das populações atingidas pelos efeitos
da seca. Essas obras foram denominadas solução rodoviária (ANDRADE, 1994).
11
Esta reforma transferiu a sede da IFOCS do Rio de Janeiro para Fortaleza-CE.
20
implantação da pesca e piscicultura. Essas atividades eram caracterizadas,
respectivamente, por políticas anti-seca e aproveitamento dos recursos hídricos
armazenados nos açudes construídos pela agência.
As atividades anti-secas eram desenvolvidas sem nenhuma
regularização formal na utilização dos recursos hídricos. A gestão desses
recursos teve seu marco legal fundamental apenas com a promulgação do
Código de Águas12, em 1934, através do Decreto n.º 24.643. Esse Código
classifica as águas em duas categorias: de domínio comum e público, ou
particulares. Essa legislação foi concebida de forma a regular as atribuições à
União e aos Estados brasileiros no que se refere ao uso deste recurso natural.
O Código ainda determinou que, em zonas assoladas pelas secas, as águas
seriam consideradas de uso comum de domínio público (Artigo 5).
De acordo com esse Código, as atividades desenvolvidas pela IFOCS
na execução de poços e açudes poderiam ser públicas, mediante iniciativa
administrativa do Estado, ou particulares (em cooperação), atendendo
solicitações dos proprietários de terras. A denominação “cooperação” dos
açudes foi dada mediante a concessão de “prêmios” aos proprietários rurais,
entre 50% e 70% sobre os orçamentos das obras, em regime de cooperação,
embora os recursos hídricos acumulados nessas obras fossem de domínio
privado (CARVALHO, 1988).
Apesar da legislação não permitir água de domínio privado nas zonas
atingidas pelos efeitos da seca, a política de atuação da IFOCS continuou
resultando mais em apropriação privada dos escassos recursos hídricos da
região do que pública. Dessa forma, o Código de Águas não teve conseqüência
concreta sobre o modo de combate dos efeitos da seca na região, no que se
refere à apropriação indevida desses recursos.
Em 1936, com a regulamentação do Artigo 177 da Constituição de
1934, foi delimitada a área de ocorrência da seca no Nordeste brasileiro,
conhecida como polígono das secas, sendo definida como área de realização
12
O Código de Águas firmou dois preceitos importantes para a conservação dos recursos
hídricos, determinando que é ilícito contaminar águas que prejudicariam terceiros e que, nos
trabalhos de salubridade das águas, os custos ficam a cargo dos infratores, além da
responsabilidade criminal pelas perdas e danos que causarem. LEAL (1997) relata que
vários princípios do Código de Águas são atuais, porém a sua aplicação foi prejudicada por
falta de uma regulamentação específica e de um quadro institucional e administrativo-
político favoráveis.
21
de obras e serviços da IFOCS. A delimitação dessa área foi modificada em
1946, 1947, 1951 e 1965, aumentando a sua abrangência no Nordeste
brasileiro, incluindo até mesmo o norte de Minas Gerais (BRASIL, 1984;
HIRSCHMAN, 1963). O polígono das secas representava também a região em
que não se poderia ter domínio privado dos escassos recursos hídricos. A
agência atuava nessa região perfurando poços e construindo açudes, que,
muitas vezes, eram de domínio privado, constituindo-se em atividades de infra-
estrutura importantes no que se refere à captação de águas superficiais e
subterrâneas, permanecendo, entretanto, apenas como depósitos de água.
Novas secas ocorreram, porém repetindo os problemas anteriores,
demonstrando a pouca eficácia da solução hidráulica, visto que esta não
tentava adaptar as atividades humanas às circunstâncias naturais, e havia
claro favorecimento para os proprietários de terras, representando a elite
política local, como sugerido pela Tabela 2.
Piauí 04 05 09 - - -
Ceará 17 27 44 13 179 192
Rio Grande do Norte 20 11 31 06 11 17
Paraíba 03 18 21 02 12 14
Pernambuco 01 08 09 - - -
Alagoas - 01 01 - - -
Sergipe 01 01 02 - 01 01
Bahia 05 09 14 03 04 07
22
De acordo com a Tabela 2, o número de açudes construídos em
cooperação é superior ao de açudes públicos, concentrando-se no período da
IFOCS (1920-45), momento em que foram intensificados os esforços na
construção de obras hidráulicas. Os valores totais, entretanto, escamoteiam
uma assimetria entre os estados que aparecem claramente na Tabela. A
grande concentração dos açudes em regime de cooperação aparece apenas
no caso do Ceará, enquanto nos demais estados nordestinos há
predominância ou exclusividade dos açudes públicos. Essa correlação sugere
um padrão de “convivência” distinto entre a IFOCS e as elites do Ceará, onde,
a partir de 1932, estava situada a sede central da agência.
Observando a Tabela 2, percebem-se duas dimensões nas atividades,
realizadas pela IFOCS, de acumulação dos escassos recursos hídricos na
região: primeiro, na direção horizontal, através das ações desiguais entre os
estados nordestinos; e segundo, no sentido vertical, referindo-se ao
direcionamento para o domínio privado da água. Nesse sentido, CASTRO
(1992) sugere um confronto entre os interesses particulares e gerais da
sociedade nordestina das ações da agência. Os açudes em cooperação com
domínio privado das águas, localizados nas terras de grandes proprietários
principalmente no Ceará, ao mesmo tempo que sustentavam a população no
campo com possibilidade de trabalho temporário (frentes de serviços),
asseguravam maior rendimento aos proprietários, porque não havia água nas
localidades rurais.
As obras de infra-estrutura de açudes e poços foram reivindicações da
elite regional (local) por obras e investimentos para combater os efeitos da
seca na região. CASTRO (1992: 59) comenta que “os resultados práticos são...
açudes, açudes e mais açudes”. Os investimentos em construção de açudes e
de perfuração de poços nas grandes e médias propriedades, entretanto,
serviram para reforçar a estrutura de oportunidade econômica e de poder da
região. A IFOCS, além de construir açudes e poços privados, valorizando as
terras dos grandes proprietários, na época de calamidade absorvia mão-de-
obra nas frentes de serviços, o que reforçava a estrutura de poder local na
forma de infra-estrutura nas propriedades, principalmente em estrutura de
armazenamento dos escassos recursos hídricos na região.
23
A acumulação hídrica já tinha demonstrado a sua pouca eficácia como
política anti-seca na região, pois não havia a preocupação com a distribuição
da água para a população local. Outras atividades, então, já tinham sido
pleiteadas como políticas anti-seca, a exemplo do desenvolvimento da irrigação
na região, através de recursos financeiros especiais em 1919, voltando a ser
rediscutido apenas em meados da década de 30. A promoção da agricultura
irrigada, no entanto, encontrou dificuldades principalmente devido à estrutura
fundiária da região, com a apropriação dos recursos hídricos, além da
inexistência de lei de irrigação que regularizasse a posse e o uso da terra
beneficiada. O Governo Federal na época “... não tinha poder político suficiente
para desapropriar os grandes latifúndios...”, pois não se dispunha entrar em
conflito com os interesses da elite política regional (ANDRADE, 1988:65).
CARVALHO (1988:213) argumenta que a irrigação, nesta época, não
refletia os interesses da elite regional, vinculados ao “... latifúndio pastoril e,
portanto, à agropecuária extensiva, de baixa produtividade”. O
desenvolvimento da irrigação era visto como atividade transformadora, pois
exigia a desapropriação de terras ao longo das bacias dos açudes.
HIRSCHMAN (1963) comenta que a IFOCS manipulava os recursos técnicos e
financeiros com a finalidade de atender uma clientela específica, demonstrando
que a agência tinha desenvolvido laços estreitos com a elite local, e não se
dispunha a entrar em conflito com os grandes ou médios proprietários de
terras, para a desapropriação.
A descontinuidade dos trabalhos de desenvolvimento da irrigação pela
IFOCS foi justificada pela insuficiência de recursos financeiros e pela
desorganização da população da região. CASTRO (1992) relata que, através
do aparato burocrático centralizado, foram evitadas alterações nas relações
sociais e políticas, com a finalidade de reduzir os focos de conflitos com a elite
política local.
No contexto da estrutura agrária desigual na região, pode-se perceber
que a agência desempenhou distintos papéis complementares. Enquanto a
IOCS envolveu trabalhos de levantamento e reconhecimento da área
geográfica (fase científica), a IFOCS construiu açudes, portos, ferrovias,
malhas viárias, entre outros (fase politécnica de engenharia). Em 1945, com
outra reforma, a IFOCS transformou-se em DNOCS - Departamento Nacional
24
de Obras Contra as Secas - voltado para o desenvolvimento de recursos
hídricos relacionados com a acumulação hídrica e sua conseqüente utilização
(SIMAS, 1988).
Tanto a IFOCS quanto o DNOCS foram órgãos federais (nacionais).
Nesse sentido, OLIVEIRA (1981:50) considera, particularmente, que o DNOCS
foi
... concebido para atuar no combate a esse fenômeno climático onde quer que
ele se apresentasse no território do país. O fato de nunca ter realizado
nenhuma obra fora do Nordeste, é um resultado de sua captura pela oligarquia
regional, e não uma intenção ou objetivo inicial...
13
O DNOCS começou a atuar no norte de Minas Gerais, a partir de 1946, quando esta região
foi incorporada ao polígono das secas.
25
quedas de Paulo Afonso, ambas atuando na bacia hidrográfica do Rio São
Francisco. Apesar das possibilidades do uso múltiplo da água, estabeleceram-
se imediatamente conflitos intersetoriais entre essas agências e o próprio
DNOCS (LANNA, 1995; BRASIL, 1980b; PÁEZ, 1968).
As instituições formadas na fase hidrotécnica tiveram a base física das
obras de engenharia realizadas na fase hidráulica (politécnica de engenharia).
Nesse contexto, o DNOCS passou a dividir, sem nenhuma coordenação, o
espaço das políticas contra os efeitos da seca com essas novas agências -
CVSF e CHESF - de orientação distinta na execução de obras públicas, com
ênfase no aproveitamento hídrico das estruturas hidráulicas ou de infra-
estruturas (BRASIL, 1984).
A criação de uma série de instituições voltadas especificamente para o
desenvolvimento do Nordeste brasileiro pode ser explicada por esta ter sido
apresentada como uma região-problema para o País, em que “a seca e a
pobreza aparecem como delineadores de um cenário reivindicatório de
recursos, (mais) do que de mudanças nas relações sociais” (CASTRO,
1992:148). O Governo Federal, através dessas instituições, planejava e
executava as ações políticas de assistência às populações atingidas pelas
secas, mas tais benefícios eram instrumentalizados politicamente pelas elites
locais.
A partir de 1954, surgiu a idéia de planejamento do desenvolvimento
econômico de uma forma mais abrangente, tendo em vista os repetidos
insucessos no combate dos efeitos da seca. Os policy-makers passaram a
buscar fatores estruturais de natureza econômica e política como causas do
atraso da região, com indução direcionada ao desenvolvimento regional,
supondo que os investimentos em grandes projetos tivessem efeitos
diversificados sobre a economia da região como um todo. Duas instituições
surgiram nesse contexto: o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e a
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). A SUDENE
tinha a tarefa de realizar estudos sistemáticos dos recursos naturais no
Nordeste, com o objetivo de desenvolvimento regional, e o BNB com recursos
financeiros de suporte para tais atividades, na forma de depósito obrigatório do
Tesouro Nacional da chamada reserva especial de emergência do fundo da
26
seca, correspondendo a 0,8% da receita tributária nacional (SILVA NETO,
1976).
Na segunda metade da década de 50, o desenvolvimentismo do
governo de Juscelino Kubistschek foi simbolizado pela elaboração do Plano de
Metas e pela criação da SUDENE, além da construção de Brasília – que
passou a concentrar as sedes das instituições públicas, incluindo o DNOCS. O
Plano de Metas previa projeção desenvolvimentista em infra-estrutura básica
pelo Estado como meio de alavancar o desenvolvimento industrial e diminuir as
disparidades regionais. A SUDENE foi criada numa época em que as
desigualdades econômicas e sociais no semi-árido brasileiro adquiriram
conotações políticas de cunho revolucionário, tratando-se, assim, de controlar e
dominar as tensões agrárias crescentes na região. Segundo MARTINS
(1994:59), este governo
... não suprimiu arcaicas agências de clientelismo político como o DNOCS.
Com isso podia assegurar apoio político para o seu projeto de desenvolvimento
econômico e de modernização da sociedade brasileira, supondo que as elites
regionais e oligárquicas, beneficiárias do atraso e por ele responsáveis,
legitimariam seu projeto modernizante.
14
Após concluído o I Plano Nacional de Desenvolvimento, no período de 1971/74, a SUVALE
foi substituída pela CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco (BRASIL, 1980a).
27
Os debates desenvolvimentistas de caráter modernizador orientam
esse período pelo acompanhamento de esforços estatais sistemáticos para a
integração da região no mercado, pois o Nordeste já não era mais visto apenas
sob o ângulo do problema climático, mas como região de desenvolvimento
atrasado, pois na região o
... fator de maior importância para o desenvolvimento regional é a
disponibilidade de água, para as mais diversas utilidades, a ação
Governamental na região deveria ser incrementada tendo como um dos
suportes a ampliação da capacidade hídrica, pela execução de obras de
captação, acumulação e regulação do potencial de águas superficiais (BRASIL,
1984: 65).
30
não atendia às necessidades das populações atingidas pelos efeitos da seca
(VIEIRA, 1979).
O DNOCS passou então por uma nova reestruturação interna,
reformulando suas funções e atividades, voltado principalmente para os
sistemas de irrigação no semi-árido do Nordeste, passando à fase
hidroagrícola (a partir de 1970), desenvolvendo mais sistematicamente também
o programa de pesca e piscicultura. Essa fase foi desenvolvida por intermédio
de programas de aproveitamento das águas acumuladas nas obras de
engenharia, concebidas principalmente para a exploração agrícola mediante o
uso do sistema de irrigação. CARVALHO (1988:233) argumenta que o governo
federal reorientou as políticas de combate dos efeitos da seca, mas garantiu
paralelamente “legitimidade e poder... mediante a concessão de privilégios
extraordinários” à elite política regional.
A reformulação da política de atuação da agência não implicou o
abandono das suas atividades tradicionais, pois o programa de recursos
hídricos subdividiu-se na açudagem e na construção de poços tubulares
(ARAÚJO, 1982). Conforme a Tabela 3, a construção de açudes15, em
cooperação e públicos, decaiu com o passar dos anos, mas continuaram
prevalecendo os açudes em cooperação quando comparados com as unidades
públicas, principalmente no Ceará, no Rio Grande do Norte e na Paraíba. A
construção de poços tubulares aproveitados segue essa mesma tendência,
conforme indica a Tabela 4.
A concentração de açudes e de poços tubulares no Nordeste,
principalmente no Ceará, é explicada oficialmente por ser este estado a
principal vítima, não só do ponto de vista econômico e financeiro dos efeitos
das secas, mas também do social, devido aos grandes deslocamentos sofridos
por sua população. Este argumento, entretanto, não explica a desproporção na
quantidade de unidades (açudes e poços) públicas e em cooperação (privados)
no próprio estado, como pode ser observado na trajetória de atuação da
agência.
15
Segundo ARAÚJO (1982), por determinações governamentais, alguns açudes tiveram seus
nomes modificados, atribuindo-lhes nomes de personalidades técnicas e políticas ligadas ao
DNOCS e à região nordestina.
31
Tabela 3 - Açudes públicos e em cooperação, construídos pelo DNOCS (1946-
1998)
Piauí 03 02 03* 08 - - - -
Ceará 15 13 04 32 251 14 - 265
Rio Grande do Norte 18 04 - 22 45 - - 45
Paraíba 17 05 01* 23 45 01 - 46
Pernambuco 23 04 02 29 11 - - 11
Alagoas 23 - - 23 - - - -
Sergipe 09 - - 09 - - - -
Bahia 16 04 02 22 13 - - 13
Minas Gerais 04 - - 04 - - - -
32
Nota-se que, a partir de 1990, segundo a Tabela 3, a agência não
construiu mais açudes em cooperação com a vigência da Constituição de 1988,
que, apesar de pouco alterar o Código de Águas16, extinguiu o domínio privado
da água, passando a ser apenas de domínio público, tornando-se bens da
União, dos estados e do Distrito Federal. Essa Constituição (Artigos 20 e 26,
respectivamente) considera bens da União “lagos, rios e quaisquer correntes
de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado,
sirvam de limites com outros países ou se estendam a território estrangeiro ou
dele proveniente”. Por sua vez, são bens dos estados “... as águas superficiais
ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, que não sejam federais”.
A partir de 1990, pois, aparecem os açudes conveniados com os
estados, sendo caracterizados como públicos. Cerca de 70% dos açudes
públicos federais de responsabilidade do DNOCS, foram repassados para os
estados nordestinos, representando, entretanto, apenas 30% total da água
acumulada neles. A agência continuou gerenciando 70% da água acumulada
nos açudes públicos federais, representados pelos açudes estratégicos,
definidos pela maior quantidade de água acumulada (técnicos do DNOCS).
Para justificar os serviços da agência, isto é, a perfuração de poços
privados no polígono das secas, esses poços deveriam ter a finalidade de
abastecimento de mais de 500 habitantes, onde não existisse, num raio de 5
km, açude público, curso d’água perene ou manancial d’água potável (Artigo 17
da Lei de 05/10/57). Nos períodos de emergência, diminuem a população
beneficiada para 200 habitantes e a distância para 2 km do próximo manancial.
AB’SÁDER (1999) comenta que a solicitação para a abertura de poços
em propriedades particulares era atendida com relativo protecionismo e, muitas
vezes, por influências políticas. Dessa forma, pode-se observar na Tabela 4 a
desproporção de poços privados quando comparados com os públicos em
todos os estados do polígono das secas, com exceção de Pernambuco, Piauí e
Bahia, no período de 1991 a 1996.
Apesar das normas específicas para a perfuração de poços privados e
da não-execução de mais açudes em cooperação, PARENTE (1985) comenta
que os açudes e os poços comunitários continuaram a beneficiar os
16
BRASIL. Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934. Decreta o Código de Águas. Brasília:
[19--]. (http://www.codevasf.gov.br/port/legislação /D24643.html)
33
proprietários particulares. Ainda persiste a manipulação de verbas destinadas à
construção de açudes e de poços pela elite política local, principalmente em
áreas que não foram desapropriadas, violando a legislação vigente. MARTINS
(1994:70) comenta que “a questão, portanto, não é a de aprovar leis
avançadas, mas assegurar que elas não serão executadas, ou não serão
executadas contra os interesses dos que as aprovaram”.
De acordo com as Tabelas 3 e 4, a agência continuou atuando nas
suas atividades tradicionais que caracterizavam a fase hidrotécnica, mas não
de forma prioritária. Assim, as atividades da agência determinavam a
exploração intensiva dos recursos naturais disponíveis, não planejando,
entretanto, o seu uso racional conforme as características climáticas da região.
O aproveitamento mais intensivo e racional das águas acumuladas,
principalmente nos açudes públicos, foi a base para o programa de
aproveitamento hidroagrícola, concentrando-se a partir da década de 70.
Dessa forma, entende-se por Programa de Aproveitamento Hidroagrícola
... ao conjunto de ações que propiciem a utilização racional da água no
processo produtivo, visando-se ao aumento da produção, em termos
absolutos, e ao aumento da produtividade, quer através da irrigação
pública, quer da irrigação particular, ou ainda promovendo-se a
valorização das propriedades rurais, e fomentando-se a piscicultura,
extensiva e intensiva (BRASIL, 1983:71).
34
seguir, descrever-se-á a formação dos perímetros irrigados no contexto do
planejamento e do gerenciamento do DNOCS.
35
5. A FORMAÇÃO DOS PERÍMETROS PÚBLICOS IRRIGADOS:
O PLANEJAMENTO E AS AÇÕES NA GESTÃO
DOS RECURSOS HÍDRICOS
36
tendência “produtivista” delineada na política nacional de desenvolvimento
regional, à qual subordinou suas atividades, principalmente com o
desenvolvimento da irrigação no semi-árido nordestino.
Ao se tratar do fenômeno climático da seca na região semi-árida
nordestina, nota-se ambigüidade nas versões políticas e técnicas do discurso:
ora como “intratável”, numa visão fatalista17, ora como desafio a ser vencido
por “técnicas modernas”, abordadas nos planos e programas direcionados para
a região.
A concepção e implementação dos perímetros públicos irrigados eram
conseqüência direta da estratégia de desenvolvimento esboçada nos planos e
programas regionais de irrigação. Para análise, as ações de planejamento na
área de recursos hídricos foram divididas em dois grandes conjuntos históricos:
1) planos nacionais de desenvolvimento dos governos autoritários, no período
de 1971 a 1985, quando foi implantada a maioria dos perímetros públicos
irrigados do DNOCS; e 2) planos e programas de irrigação da “Nova
República”, a partir de 1986, período que se inicia o PROINE - Programa de
Irrigação do Nordeste, prevendo a descentralização das ações do DNOCS
através do processo de emancipação dos perímetros públicos irrigados.
17
PARENTE (1985:68) cita um trecho do discurso do presidente João Baptista Figueiredo,
argumentando que “... a miséria do Nordeste só vai acabar quando Deus quiser”. O trecho
do discurso revela uma visão fatalista referente ao fenômeno climático da seca como causa
das condições sociais e econômicas regionais. Fica clara a ideologia dominante de
apropriação da seca vinculada à exploração regional.
18
O Programa Plurianual de Irrigação foi incluído no I PND (BRASIL, 1982a).
37
melhoria do padrão de vida da população, com a conseqüente redução do
êxodo rural (ESTEVAM NETTO, 1987; BRASIL, 1971 e 1984).
O DNOCS reorientou então as suas ações para a expansão da
agricultura irrigada nas bacias hidrográficas de grandes açudes públicos no
polígono das secas, com exceção da bacia do São Francisco, que era de
responsabilidade da CODEVASF. A finalidade do DNOCS passou a ser a
valorização hidroagrícola das terras agricultáveis do Nordeste semi-árido,
através de agropecuária racional e moderna (CARNEIRO, 1981). A base de
recursos para a implantação dos perímetros era o aproveitamento da estrutura
hídrica instalada pela agência nas décadas anteriores, principalmente em áreas
de melhores condições de solo e água. Assim, a antiga política da agência
“através do armazenamento de água, mesmo não dando resultado imediato,
deixou, como infra-estrutura, um bom número de açudes de grande porte”,
dando suporte ao programa hidroagrícola (NEVES, 1982:10).
Nesses moldes, o DNOCS implementou a política de irrigação pública19
através dos perímetros irrigados, que se pretendia que passassem a constituir
pólos de desenvolvimento regional com “ênfase... na irrigação, que assegure a
criação e o desenvolvimento de uma agricultura de alta produtividade...” no
semi-árido nordestino, atraindo as populações que migravam do campo para as
cidades, conforme as diretrizes do Programa Plurianual de Irrigação (DNOCS,
1974:3). Numa visão altamente idealizada do papel dos perímetros (mas que
deixava perceber, nas entrelinhas, sérios problemas de gerenciamento),
CARNEIRO (1981:40) afirma que o perímetro irrigado representava
... uma organização econômica; mais ainda, é uma resposta econômica à
problemática ecológica, social, institucional, econômica, dos espaços do semi-
árido, naturalmente engajando componentes de engenharia hidráulica e
agronômica. Um perímetro, acima de tudo, é um ‘modelo de economia’ com
irrigação. A ausência dessa escala de compreensão tem sido uma das causas
diretas dos próprios equívocos técnicos na operação dos perímetros e
notadamente em alguns procedimentos gerenciais.
19
De acordo com o Decreto n.º 89.496 de 29/03/84, projeto de irrigação é definido como “...
conjunto de atividades de planejamento, execução, administração, operação e manutenção,
visando ao aproveitamento agrícola dos recursos de água e solo em determinada área” (Art.
8.º §1.º). E segundo a Lei n.º 6.662 de 25/06/79 (Art. 8.º §1.º), podem-se definir projetos
públicos como “... aqueles cuja infra-estrutura de irrigação é projetada, implantada e
operada, direta e indiretamente, sob a responsabilidade do Poder Público...”.
38
hidrotécnica (1946-1970) na região. O planejamento das ações da agência
tinha que combinar agora as capacidades técnicas de produção e o
monitoramento de obras hidráulicas, com o objetivo de produção agronômica
voltada para resultados econômicos. O delineamento dos perímetros irrigados,
portanto, acompanhava as diretrizes gerais do I PND (1972-74) - Plano
Nacional de Desenvolvimento20, com sua ênfase no produtivismo econômico
em detrimento do “bem-estar social”, prevendo a transformação da agricultura
tradicional do Nordeste em uma agricultura moderna e competitiva, mediante o
uso intensivo de tecnologias modernas (DNOCS, 1972b).
A partir do I PND, a experiência de formulação e implementação dos
Planos de Desenvolvimento implicava um modelo de decisão altamente
centralizado e com elevado grau de intervenção estatal na economia. O I PND
tinha por intenção moldar as instituições públicas, de modo a criar uma
“economia moderna, competitiva e dinâmica”, especialmente para o Nordeste
brasileiro, com o objetivo de disseminar o “progresso” econômico (BRASIL,
1971:14). No contexto das políticas de desenvolvimento regional do Nordeste,
o DNOCS tinha um papel estratégico. Ele seria o principal responsável pela
construção e pelo monitoramento da infra-estrutura para a organização do
espaço físico dos perímetros irrigados, tendo por objetivo supremo a obtenção
de ambiciosas metas quantitativas de superfície irrigada das áreas implantadas
ou em operação, de área cultivada, de valores da produção e de
demonstrativos de valores creditados do DNOCS nos perímetros públicos21.
A partir da constituição dos perímetros públicos, a irrigação torna-se a
principal atividade desenvolvida pelo DNOCS22, tornando as ações tradicionais
20
Os PNDs foram considerados um marco no processo de centralização do planejamento
nacional, "diluindo" o tratamento especial para o Nordeste (PARENTE, 1985). Dessa forma,
os PNDs substituíram os Planos Diretores da SUDENE, que deram visibilidade ao Nordeste,
intensificando a luta regional conduzida pela elite local. A SUDENE legitimou o contorno
artificial da região semi-árida, institucionalizando o "Nordeste da SUDENE", indicando um
caráter regionalista de manipulação das ações e dos planos diretores para os investimentos
prioritários para esse contorno (CASTRO, 1989).
21
Relatórios de Atividades do DNOCS.
22
O tópico “Emergência” só aparece nos anos de secas, com distribuição de alimentos,
abertura de linhas especiais de crédito e frente de serviço (DNOCS, 1977, 1980, 1983, 1985
e 1986). O tema “emergência” vincula-se como forma de cobrança de recursos financeiros e
créditos especiais do governo federal para a região semi-árida nordestina (CASTRO, 1992).
39
de açudagem pública23, perfuração de poços, piscicultura, pesquisa e
experimentação ações secundárias24. As políticas “compensatórias”
tradicionais de combate aos efeitos da seca perdiam espaço definitivamente,
numa visão empresarial do desenvolvimento econômico. A agência continuou
priorizando as bases técnicas e físicas na execução dessas atividades, apesar
da incorporação do discurso de desenvolvimento econômico nas suas “obras”
contra os efeitos da seca no semi-árido nordestino.
A infra-estrutura física e as capacidades de engenharia do DNOCS
foram reconvertidas para “... o objetivo fundamental de implantar uma
agricultura moderna na região, alta absorção de capital e elevado
rendimento...” à base do aproveitamento racional dos recursos hídricos e dos
solos do Nordeste (DNOCS, 1972b:119). Tal racionalização visava maximizar o
uso econômico dos recursos naturais, sem que houvesse preocupação com a
sustentabilidade ambiental dos empreendimentos. Como OSTROM et al.
(1993) relatam, tal padrão tem sido característico de uma vasta gama de
grandes investimentos em infra-estrutura física em todo o Terceiro Mundo,
produzindo, a longo prazo, não só destruição ambiental como também perda
de rendimento econômico destes empreendimentos, muitos deles
abandonados ou insuficientemente monitorados.
O II PND (1975-1979), apesar de enunciar certa preocupação com a
depredação ambiental provocada pela poluição industrial e pela devastação
dos recursos naturais como resultado da modernização, continuou marcado
pela visão produtivista e setorizada que havia caracterizado o I PND
(MENDES, 1978). Neste contexto, criaram-se programas específicos para o
desenvolvimento do Nordeste, como o Programa de Desenvolvimento de Áreas
Integradas do Nordeste – POLONORDESTE, instituído em 1974, e o Programa
de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semi-Árida do Nordeste – o Projeto
Sertanejo25. Estes programas, entretanto, não alteraram o padrão de atividade
praticado historicamente pelo DNOCS, concentrado na construção de açudes e
23
A construção de açudes foi suspensa em 1972, sendo reiniciada seis anos depois com a
finalidade de assegurar o suprimento hídrico de novos projetos de irrigação (DNOCS, 1979).
24
Relatórios de Atividades do DNOCS.
40
de infra-estrutura para a irrigação. Ao contrário, esses programas regionais
acentuaram a importância estratégica para o desenvolvimento da região da
formação de reservas de água e da intensificação da agricultura irrigada
(BRASIL, 1974; CARNEIRO, 1981).
CASTRO (1984) relata que os planos e programas regionais desta
época não foram implementados na íntegra, num grande descompasso entre o
que foi planejado e o que foi executado. Como ficou claro pelo desempenho
posterior dos perímetros irrigados, o Plano Plurianual de Irrigação, na época,
superestimava os recursos hídricos disponíveis (FREITAS, 1984). Do mesmo
modo, as metas quantitativas previstas pelo Plano, em termos de emprego
direto e indireto, assim como de índices de produtividade agrícola dos projetos,
não seriam atingidas, configurando um “fracasso” relativo dos projetos. A
política regional de irrigação no II PND ocorreu à revelia da realidade rural da
região, não considerando os limites de uso dos recursos naturais e as
condições socioculturais da população (FREITAS, 1984).
Durante o III PND, foi implantado o Programa de Recursos Hídricos –
PROHIDRO, proveniente do Plano de Integração Nacional – PIN, fixando as
suas metas no represamento de águas superficiais, através da construção de
barragens, públicas ou particulares, a cargo da SUDENE, da CODEVASF e do
DNOCS. O DNOCS intensificou as atividades do PROHIDRO e do Projeto
Sertanejo, em que o desenvolvimento da agricultura deveria apresentar
resultados superiores em termos de produtividade quando comparada à da
agricultura de sequeiro. Para isso, a técnica da irrigação deveria ser mais
difundida entre os produtores. As ações do Estado eram dirigidas
fundamentalmente para concluir os projetos já implantados, mas que ainda não
estavam em operação. Dessa forma, os perímetros concentravam-se na
implementação, operação e manutenção que possibilitassem a maximização
da exploração dos recursos naturais das áreas irrigadas (BRASIL, 1982a e
1985c).
Um dos instrumentos de desenvolvimento econômico e social para o
Nordeste foi o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor – PAPP, que unificou
25
O Projeto Sertanejo foi implantado posteriormente à publicação do II PND, instalando
núcleos de propagação tecnológica, tendo por base os perímetros irrigados. O DNOCS
iniciou o trabalho nos núcleos, como também elaborou projetos para propriedades privadas.
41
a coordenação dos programas especiais regionais (POLONORDESTE,
SERTANEJO, PROHIDRO e Programa de Irrigação), eliminando, assim, a
duplicidade e a superposição de recursos financeiros. O programa teve os
objetivos de “ampliar a utilização da água na produção agrícola, através da
irrigação, e promover o manejo racional dos recursos de água e solo no âmbito
do desenvolvimento rural da região”, abrangendo a irrigação pública, privada, a
piscicultura e o abastecimento d’água (BRASIL, 1988b).
As metas para irrigação no final do III PND foram definidas através do
PAPP/Projeto Nordeste, que estabeleceu as ações nas áreas em que os
recursos hídricos já estivessem disponíveis; a utilização dos recursos água e
solo na produção agrícola, a partir da infra-estrutura montada pelo Estado, a
montante dos açudes públicos, destinados à geração de energia elétrica; e
técnicas adequadas de irrigação que evitassem a salinização e a degradação
dos solos.
O Projeto Nordeste, instituído pelo Governo Federal em 1985, visava o
“desenvolvimento econômico e social, mediante a implantação de políticas
globais e setoriais condizentes com a realidade do Nordeste do Brasil”. Dessa
forma, a irrigação continuou sendo apresentada como um instrumento eficaz
para a modernização do setor, determinando soluções a curto prazo através dos
ganhos de produtividade (BRASIL, 1988b:7).
A criação de programas regionais de desenvolvimento, intermediados
pelo DNOCS, demonstrava que a “fórmula adotada se baseava na
intensificação da modernização da produção agrícola e da pecuária, mediante
uma ação paternalista por parte do Estado...” (BURSZTYN, 1984:104). A
dimensão “paternalista” da intervenção estatal torna-se evidente na
implantação dos perímetros irrigados de gerenciamento público, nos quais a
agência, através de recursos financeiros federais, construía as infra-estruturas
de irrigação, de produção e de assistência social. Nos perímetros irrigados, “...
a prática paternalista tem por característica o tratamento individual dos
irrigantes, do processo seletivo das formas de transferência do uso e da
propriedade dos lotes, passando pelo tipo de resolução dados aos problemas
do cotidiano do perímetro” (GRAZIANO DA SILVA, 1988:25).
Os perímetros públicos representam cerca de 20% das terras irrigadas
no Nordeste “sob o patrocínio direto do setor público”, sendo, portanto,
42
“expressiva a contribuição do governo para o desenvolvimento da agricultura
irrigada no Nordeste, mormente nas áreas semi-áridas, onde a sua presença
sempre foi mais ativa” (CARVALHO, 1997:101). Os perímetros públicos foram
divididos em lotes dotados de infra-estrutura necessária à produção e à
moradia. Foram também delimitadas as categorias de irrigantes, que poderiam
requerer a ocupação dos lotes, divididos em colonos (agricultores familiares),
técnicos agrícolas, engenheiros-agrônomos e empresários. GRAZIANO DA
SILVA (1988:24) comenta que a seleção dos colonos atendia
preferencialmente os pequenos proprietários que tivessem áreas
desapropriadas para a formação dos perímetros, enquanto
... posseiros, moradores, agregados, comodatários, parceiros e até mesmo
filhos de proprietários que viviam na área desapropriada, além de não
receberem indenização pela terra perdida, ainda ficam em segundo plano,
mesmo nessa preferência legal... por outro lado, os critérios de seleção de
lotes empresariais ou as regras das licitações públicas são pouco observadas
diante dos interesses e pressões das empresas.
26
O Estatuto da Terra foi promulgado pela Lei n.º 4.504, em 30 de novembro de 1964.
27
IANNI (1979) também aborda a política sistemática do governo com o processo de
colonização da Amazônia, a partir da década de 70.
44
nordestino. O Estatuto da Terra, entretanto, não provocou mudanças nos
padrões de concentração fundiária da região, conforme indica a Tabela 5.
Nesta tabela, observa-se que a concentração da propriedade da região semi-
árida constitui uma característica importante da realidade fundiária do
Nordeste, em que não há grande diferença significativa entre os anos
apresentados (1950, 1960, 1970 e 1975).
%
Estrato 1960 1970 1975
Estab. Área Estab. Área Estab. Área
45
Um dos depoimentos dos técnicos do DNOCS confirma esta
“politização” da política de colonização dirigida no Nordeste, apontada por
Ianni. Segundo ele, os perímetros de irrigação foram concebidos numa
... época da ditadura ‘braba’, porque se tinha medo das ligas camponesas, do
problema do campo. Então se concebeu um projeto para fazer frente a pressão
do homem por terra. Outra coisa: como foi feito dentro da lógica da ditadura,
então se vê que a arquitetura do projeto como a arquitetura de uma prisão. Agora
não, mas antes quando se ia fazer alguma pesquisa no projeto tinha que se dizer
para onde iria, qual era a casa que iria visitar, quer dizer... o irrigante era vigiado,
dito o que ele ia plantar, para quem ele ia vender...
28 o
BRASIL. Lei n. 6.662 - 25 de junho de 1979. Dispõe sobre a Política Nacional de Irrigação e
dá outras providências. Brasília: CODEVASF, 1979. 6 p. (http://www.codevasf.gov.br/port/
legislação/LEI6662.html).
29 o
BRASIL. Decreto n. 89.496 - 29 de março de 1984. Dispõe sobre a Política Nacional de
Irrigação e dá outras providências. Brasília: CODEVASF, 1984. 12 p. (http://www.
codevasf.gov.br/port/legislação /D89496.html).
46
restantes. Quando se observa, entretanto, as dimensões de superfície irrigada
por categoria de irrigantes, apresentadas na Tabela 6, vê-se que a Bahia
(76,1%), o Rio Grande do Norte (74,7%) e principalmente Pernambuco (53,2%)
não seguiram a determinação da Lei de Irrigação com relação à percentagem
de área destinada aos colonos. Essa constatação pode ser justificada por outro
decreto30 (§3.º), de 1984, que permitia a redução para 50% da área dos
perímetros para os colonos, desde que fosse autorizada especificamente pelo
Ministério responsável pela política de irrigação (CODEVASF, 1999).
A possível redução da área destinada aos colonos e o conseqüente
aumento para as demais categorias, no mesmo ano que a Lei de Irrigação foi
regularizada, podem ser interpretados como uma forma de acomodação dos
interesses da elite política local, representada principalmente pelos
empresários.
Engenheiros- Técnicos
Colonos Empresários
Estados agrônomos agrícolas
(%) (%)
(%) (%)
30
Decreto n. 90.309 de 16/10/1984.
47
Conforme a Tabela 6, a média da área dos empresários nos perímetros
foi de 21,4%, havendo uma variação relativamente grande entre a menor e a
maior média, respectivamente 11,4% no Piauí e 47,8% em Pernambuco. O
sucessivo aumento das áreas nos perímetros públicos irrigados dos
empresários “dá-se mais pelo atendimento personalizado e local de interesses
privados” do que propriamente por uma estratégia regional “que privilegie a
maior eficiência da iniciativa empresarial” (GRAZIANO DA SILVA, 1988:24).
Pode-se observar na Tabela 6 que as categorias engenheiros-
agrônomos e técnicos agrícolas tiveram nos perímetros áreas bem inferiores,
quando comparadas com a dos empresários. Essa comparação torna-se
importante quando se observa que a Lei de Irrigação não determinava o
percentual de área no perímetro para as três distintas categorias. Segundo um
Técnico do DNOCS, a partir do final da década de 80, esse fato fez com que
essas categorias fossem enquadradas como apenas empresários. Entende-se
que esse enquadramento teve como fim possibilitar que engenheiros e técnicos
tivessem visão empresarial, pois a criação do Programa de Ocupação de Lotes
Empresariais por profissionais de Ciências Agrárias “objetiva, basicamente, o
aproveitamento de profissionais da área agrícola nos projetos públicos de
irrigação... que permanecem subempregados ou desempenhando atividades
alheias à sua formação profissional”31. Ademais, isto implica que apenas
pessoas jurídicas podem agora pleitear, como empresários, os lotes.
A distribuição de lotes pelo DNOCS, entretanto, tem sido realizada de
forma diferenciada entre colonos e empresários para os perímetros públicos.
Essa diferenciação ocorre principalmente pela realização do processo de
seleção, que para os colonos, é de responsabilidade da Diretoria de Irrigação -
DIRGA, enquanto o GOA - Grupo de Operação e Assessoramento - responde
pela licitação pública dos empresários. Em entrevista, um técnico do DNOCS
diz que o GOA é um setor informal da agência, “com muita força”, sendo
comparada a uma estrutura paralela à Diretoria Geral da agência.
31
BRASIL. Programa de Irrigação do Nordeste. Ocupação de lotes empresariais. Brasília:
PROINE, 1986. p. 6-7.
48
A área ocupada pelos colonos nos perímetros atingiu os percentuais
definidos pela lei de irrigação na maioria dos estados32, conforme se vê na
Tabela 6. Segundo GRAZIANO DA SILVA (1988:27-28), no entanto, a dinâmica
interna dos perímetros demonstra padrões de interação muito mais complexos.
Muitos dos lotes nos perímetros públicos foram vendidos ilegalmente, pois o
colono “não soube acompanhar as exigências da agricultura irrigada”. Dessa
forma, emerge aí um novo personagem, os testas-de-ferro, que garantem a
utilização dos lotes por outras categorias que não sejam os colonos. Assim, o
autor relata que o resultado “já é aparente, é um movimento de concentração
da propriedade da terra no interior dos perímetros”.
A divisão dos lotes nos perímetros do DNOCS, segundo os técnicos
informantes, oferece, normalmente, a seguinte diferenciação: os colonos têm
direito aos lotes de 5 hectares; os técnicos agrícolas, a lotes de 10 hectares ; e
os empresários e engenheiros-agrônomos, a parcelas de 20 hectares. A partir
de 1997, no contexto da crescente importância da visão empresarial dos
perímetros, o limite dos lotes empresariais chega a 200 ha, conforme as
características específicas de cada projeto, privilegiando, assim, a participação
da iniciativa privada.
Entre 1968 e 1987, o DNOCS implantou 31 perímetros irrigados. Os
perímetros em operação obedecem à seguinte distribuição: Piauí: Caldeirão
(1974), Fidalgo (1969*), Gurguéia (1975*) e Lagoas do Piauí (1974); Ceará:
Araras Norte (1987*), Ayres de Souza (1977), Curu-Paraipaba (1974), Curu-
Pentecoste (1975), Ema33(1973), Forquilha (1977), Icó-Lima Campos (1973),
Jaguaruana (1977), Morada Nova (1970), Quixabinha (1972) e Várzea do Boi
(1975); Pernambuco: Boa Vista (1975), Cachoeira II (1972), Custódia (1975) e
Moxotó (1977); Bahia: Brumado (1986), Jacurici (1973) e Vaza Barris (1973);
Paraíba: Engenheiro Arcoverde (1972), São Gonçalo (1973) e Sumé (1970); e
no Rio Grande do Norte: Cruzeta (1975), Itans-Sabugi (1977) e Pau dos Ferros
32
Em fonte anexa, as Tabelas 5 e 6 detalham, respectivamente, o percentual da área ocupada
pelas categorias de irrigantes e a superfície irrigada em operação por hectare e em
percentagem, por perímetro público do DNOCS nos estados nordestinos.
49
(1980). Além desses perímetros, o DNOCS implantou três perímetros na bacia
hidrográfica do Rio São Francisco, dois no norte de Minas Gerais - Estreito e
Gorutuba, e um na Bahia - Ceraíma. Esses perímetros foram transferidos, em
1976, para a CODEVASF e, por isso, não foram dispostos na Tabela 7.
50
É importante ressaltar que a irrigação não pode ser praticada em todas
as regiões do semi-árido nordestino, dependendo diretamente das condições
favoráveis do meio natural para a sua implementação. Portanto, as condições
edafoclimáticas devem ser consideradas, e normalmente são necessárias
tecnologias modernas e de larga escala para a sua utilização ou adequação.
GRAZIANO DA SILVA (1988:35) comenta que “... a grande irrigação pública
não é uma política que pode ser multiplicada em todo o semi-árido nordestino...
a irrigação é necessariamente pontual, isto é, afeta apenas as terras em que é
implantada”.
Dos 28 perímetros públicos irrigados pelo DNOCS, 25 começaram a
operar na década de 70. Isso é um indicativo de que a maioria dos perímetros
da agência encontra-se envelhecida. De acordo com SOUZA (1994), foram
realizados poucos investimentos de recuperação das estruturas dos projetos
desde então, comprometendo assim a eficiência de operação, acumulando
danos ao meio ambiente, como o desperdício de água e a salinização dos
solos nas áreas dos projetos.
As políticas gerais de fomento à agricultura irrigada nos perímetros
também se confundiram com a implementação da agricultura moderna34, com
base em modificações técnicas de produção. O agricultor familiar, que
praticava secularmente a agricultura de sequeiro e, ou, de várzea, teve que
incorporar técnicas especializadas ao ser assentado nos perímetros, sendo
transformado em colono irrigante. Segundo QUEIROZ et al. (1996:30), a
incorporação dessas novas técnicas nos perímetros irrigados representou para
essa categoria “uma nova opção de vida, uma ruptura com o antigo universo
referencial, uma redefinição completa dos processos produtivos antes
desenvolvidos”.
Conforme esses autores, a modernização da produção de subsistência
na região semi-árida nordestina foi decorrência direta da atuação do Estado,
através da criação de programas específicos, em particular o desenvolvimento
da agricultura irrigada, sendo adequados aos interesses dos grupos
34
Essa agricultura é caracterizada pelo uso do pacote tecnológico. Pode-se definir pacote
tecnológico como “... conjunto de técnicas, práticas e procedimentos agronômicos que se
articulam entre si e que são empregados indivisivelmente numa lavoura ou criação...”
(AGUIAR, 1986:42).
51
econômicos e políticos locais. A intervenção do Estado, ao melhorar as
condições de infra-estrutura em determinados ramos produtivos, contribuiu para
a modernização da agricultura no Nordeste, intensificando a exploração dos
recursos naturais considerados renováveis.
35
Desde 1986, a política de irrigação vem sofrendo o impacto das seguidas “reformas”
administrativas do Governo Federal, tendo passado pelas seguintes jurisdições: Ministério
do Interior, Ministério Extraordinário para Assuntos de Irrigação – 1986; Ministério Especial
da Irrigação, Ministério da Agricultura – 1988; Ministério da Agricultura e Reforma Agrária,
Secretaria de Desenvolvimento Regional da Presidência da República – 1990; Ministério da
Integração Regional (1992); Ministério do Meio Ambiente – 1998; Secretaria Especial de
Políticas Regionais da Presidência da República e Ministério da Integração Nacional (1999).
36 o
BRASIL. Decreto n. 92.344 - 29 de janeiro de 1986. Institui o Programa Nacional de
Irrigação do Nordeste - PROINE e dá outras providências. Brasília: CODEVASF, 1986. 1 p.
(http://www.codevasf. gov.br/port/legislação/ D89496.html).
37 o
BRASIL. Decreto n. 92.395 - 12 de fevereiro março de 1986. Institui o Programa Nacional de
Irrigação - PRONI; atribui ao Ministro de Estado Extraordinário a sua execução; e dá outras
providências. Brasília: CODEVASF, 1986. 2 p. (http://www.codevasf. gov.br/port/legislação/
D92395.html).
52
como principal objetivo aumentar a produção de alimentos e o número de
empregos, bem como fomentar as atividades econômicas do Nordeste, a partir
do incremento da produtividade agrícola.
É interessante ressaltar que o PROINE pretendeu intervir nos aspectos
institucionais organizacionais de funcionamento e administração ligados à
execução dos projetos públicos irrigados no Nordeste, mas com grande ênfase
na irrigação privada (BRASIL, 1986). A partir do PROINE, os perímetros públicos
conviveram com a implementação do modelo institucional de gerenciamento
misto, que incluiu a participação do Estado e da iniciativa privada, mas grande
parte das funções nos perímetros públicos ainda cabia às agências estatais.
Foram dimensionadas algumas estratégias de ação para os projetos
públicos, baseadas na expansão da agricultura irrigada, de forma que os
irrigantes participassem e executassem as ações nos perímetros, através das
suas entidades representativas (associação ou cooperativa). O Estado, nesse
contexto, mudaria a postura de executor (como foi nos anos anteriores) para a
de agente indutor. A função indutora compreendeu o “conjunto de atividades
que visam promover e fortalecer a atuação dos diversos agentes envolvidos ou
necessários ao desenvolvimento da irrigação” (BRASIL, 1986:55).
A partir da Constituição de 1988, o Governo Federal descentralizou os
programas governamentais, tornando a ação pública mais seletiva e menos
abrangente. Nesse sentido, o PROINE previu que o Estado ainda tinha
competência para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de
desenvolvimento econômico e social” (BRASIL, 1988b:23).
O Estado, intermediado pelo DNOCS, ao mudar a sua postura perante
o gerenciamento dos perímetros irrigados, desencadeou o processo
denominado emancipação, constituindo-se, posteriormente, em Programa de
Emancipação – PROEMA. Apesar de a emancipação dos perímetros públicos
irrigados ter sido prevista ainda na década de 80, através do PROINE, o
DNOCS teve dificuldades de implementá-la. Um dos motivos foi a própria
estrutura organizacional da agência, que permaneceu com a mesma
configuração anterior ao PROINE. Outro aspecto decisivo foi a resistência dos
técnicos do DNOCS, por receio de perderem as suas funções com a
emancipação dos perímetros (BRASIL, 1988b). As dificuldades organizacionais
53
do DNOCS em relação à execução do PROINE eram geradas pelo fato de que
internamente
... não existe nenhum mecanismo de contato ou integração entre as áreas.
Todas as iniciativas nesse sentido se dão mais a nível informal e de acordo
com as necessidades. Externamente, os contatos de maior peso se dão com a
coordenação geral do PROINE e com as empreiteiras que executam as obras
dos perímetros. Com a coordenação geral do PROINE, o relacionamento é
formal entre titulares de ambas as entidades, e informal entre as coordenações
setoriais do PROINE e as diretorias do DNOCS (BRASIL, 1988b:67).
38
Entende-se explotação no DNOCS por produção agrícola e, ou, agropecuária.
54
trabalho: Grupo de Apoio à Produção - GAP, Grupo de Operação e
Manutenção - GOM e Grupo de Organização dos Produtores - GOP. A
Gerência dos Perímetros, que funcionava nas áreas dos projetos, como agente
intermediador entre os irrigantes e a agência, foi substituída pela Coordenação
do Programa de Emancipação do Perímetro.
A criação de estruturas informalizadas pela Diretoria de Irrigação
envolveram uma nova sistematização dos trabalhos desenvolvidos para a
política de emancipação dos perímetros públicos irrigados: o GAP incorporou
as atribuições das Divisões de Explotação Agronômica, de Gestão de Insumos
e de Comercialização e Industrialização; o GOP absorveu as funções das
Divisões de Assistência às Comunidades e de Promoção Cooperativista; e o
GOM absorveu as atribuições do antigo Grupo de Operação e Manutenção,
com o objetivo de adequar a execução das ações previstas na Lei de Irrigação
e no PROEMA.
Apesar da incorporação de novas estruturas administrativas para a
execução das atividades do DNOCS, evidencia-se a rigidez das configurações
burocráticas da agência no gerenciamento dos perímetros, dificultando, assim,
a implementação de uma gestão eficiente. Dessa forma,
... a descontinuidade dos programas, os cortes orçamentários, as liberações
intermitentes, os entraves administrativos e políticos de diversas ordens, são,
na verdade, os elementos que compuseram o pano de fundo que impossibilitou
o desenvolvimento pleno das propostas do Departamento de Secas ao longo
da sua história (BRASIL, 1998a:2).
55
Pode-se afirmar, entretanto, que esse modelo de gestão dos
perímetros públicos do DNOCS, através das ações políticas implementadas,
demonstrou, ao invés de ações emancipadas, a falta de capacidade gerencial e
sucessivos fracassos não-planejados, podendo-se citar a inaptidão tecnológica
dos assentados, os critérios imperfeitos de seleção dos irrigantes, a relação
assistencialista e paternalista com os irrigantes, a escolha inadequada das
áreas e o superdimensionamento físico dos projetos (BRASIL, 1997a).
Segundo os técnicos, em alguns perímetros, o processo de emancipação não
foi instalado, simplesmente porque não há irrigação por falta de água para
abastecimento do sistema. Nesse sentido, QUEIROZ et al. (1996:25)
consideram que o processo de emancipação
... tem correspondido muito mais a uma reação administrativa do órgão ao
problema da falta de recursos institucionais para a manutenção dos perímetros
irrigados, do que uma necessidade sentida pelos próprios produtores. Surgiu,
portanto, como uma mera alternativa de transferência de responsabilidades.
56
apoio à irrigação pública e principalmente à privada, do ponto de vista
empresarial (CODEVASF, 1999).
O PRONID, assim como o PROINE, previa a redução da intervenção
do Governo Federal no processo de implantação dos projetos, aumentando a
participação da iniciativa privada. A preocupação com o meio ambiente nestes
programas vincula-se ao uso racional, sem, entretanto, modificar o objetivo
voltado à produtividade agrícola das áreas irrigadas.
O PROINE e o PRONID manifestam relativa preocupação com o meio
ambiente, pois cuidados especiais deveriam ser tomados para “atenuar os
impactos ambientais... a partir da prática de agricultura intensiva... torna-se
indispensável a adoção de medidas visando a criação, aplicação de normas e o
direcionamento de ações no sentido de prevenir a degradação da natureza”
(BRASIL, 1986:74). Apesar da relativa preocupação com os impactos ao meio
ambiente mediante a implantação dos programas regionais de irrigação, como
se pode ver nos relatórios do DNOCS, apenas o Relatório Sintético de
Atividades, de 1988, continha tópico específico para gerenciamento e
conservação de recursos hídricos. A gestão, entretanto, abrangia somente a
implementação de “modelagem matemática e na instalação de dispositivos”
para maior controle e eficiência do uso da água pela irrigação (DNOCS,
1989a:41). Os Relatórios de Atividades do DNOCS continuaram marcados por
excessiva preocupação com os indicadores quantitativos dos perímetros
irrigados, chegando ao ponto de os relatórios mensais da 2.a DR39
apresentarem-se simplesmente através de tabelas, sem nenhuma discussão
qualitativa dos dados.
Os relatórios de atividades da agência detalharam todas as atividades
administrativas internas, especificando despesas e receitas dos diversos
setores. Por isso, relatórios de anos diferentes têm o mesmo formato, variando
apenas os valores de cada atividade. A produtividade das áreas irrigadas é
vista com grande ênfase nos Relatórios do DNOCS. Dessa forma, um técnico
considera que a agência age com o “... tecnicismo extremado...”. E continua
comentando que
39
DNOCS (1998b, c, d, e, f, g, h, i e j).
57
... se tinha técnicos críticos fazendo trabalhos nos perímetros irrigados de
conscientização dos colonos... nos relatórios só aparecem as tabelas... esse
trabalho também não era da agência, era da qualidade pessoal do técnico...
58
de-obra no processo produtivo é definido na administração do DNOCS, porém
todo o risco de execução desse planejamento é transferido para os colonos.
A preocupação quase exclusiva com as dimensões técnicas de
engenharia hidráulica na gestão dos perímetros faz com que o DNOCS não
priorize aspectos fundamentais da gestão eficiente dos recursos naturais,
considerando os seus limites e as ações humanas. De acordo com os
Relatórios de Atividades, praticamente não existe uma preocupação com a
população envolvida nas atividades e muito menos com o meio ambiente.
O desenvolvimento do PROEMA não alterou a dinâmica institucional do
DNOCS. O planejamento e o monitoramento das ações continuaram sob a
responsabilidade da agência, incluindo a responsabilidade pela tarifação da
água fornecida para irrigação, seu faturamento e a efetiva cobrança e controle
do seu recebimento. As estruturas organizacionais dos irrigantes
responsabilizariam-se pela operação e manutenção do perímetro,
administração dos recursos comuns e infra-estrutura social, assistência técnica,
comercialização e administração e operação das unidades agrícolas (BRASIL,
1988b).
A arrecadação de recursos para essas atividades tiveram como base a
tarifação da água40 (Artigo 43), que foi subdividida em K1 e K2 nos perímetros.
A tarifa K1 é calculada com base em hectare irrigável, correspondendo à
amortização dos investimentos de infra-estrutura de irrigação de uso comum,
sendo pago diretamente ao DNOCS. O K2 é calculado pelo consumo de água
nos lotes, sendo os recursos destinados às respectivas organizações dos
irrigantes, para as despesas de administração, operação, conservação e
manutenção das infra-estruturas. Porém, conforme os técnicos do DNOCS, há
inadimplência na maioria dos perímetros, sendo mais significativa com relação
à tarifa K1.
Apesar da tarifação e distribuição da água pelo DNOCS, os técnicos da
agência apontaram a existência de inúmeros conflitos entre os usuários da
água dentro dos perímetros. Porém, os mais problemáticos acontecem entre os
irrigantes do projeto e outros usuários externos da água. Segundo um técnico,
... é o exemplo do perímetro X (ocultação nossa) com uma cidade próxima que
utiliza a água da barragem, depois de irrigado o perímetro, para o
40
Decreto n. 89.496, de 29/03/84.
59
abastecimento humano. Mas ... se deve dar prioridade ao abastecimento
humano e a dessendentação de animais, mas ali também deve ser levado em
consideração a irrigação porque o investimento é muito grande, porque caso o
DNOCS não tivesse construído a barragem, a cidade vizinha estaria na mesma
ou pior situação... mas também essa cidade planta sem nenhum controle sobre
o uso da água... não é área de jurisdição do DNOCS... o DNOCS tem o
controle da área de jurisdição dele, que é o perímetro irrigado... a área que vai
do açude e o perímetro, o DNOCS não controla e há uso indiscriminado da
água... Como o DNOCS vai controlar uma área que ele não desapropriou e não
pagou?
60
A COGERH determina a quantidade de água nos açudes públicos
federais para ser utilizada em alguns perímetros. Com isso, a Divisão de
Irrigação da 2.ª DR elabora o Plano de Explotação Agronômica mediante os
dados passados pela COGERH, evitando, portanto, conflitos setoriais na
utilização da água.
A gestão da água pelo DNOCS é planejada de forma setorializada,
atuando “somente em áreas de sua jurisdição”, conforme o técnico da agência.
A sua área de jurisdição concentra-se apenas entre os perímetros irrigados e
os açudes federais, onde o DNOCS desapropriou e indenizou os antigos
proprietários da terra. Nesse sentido, um técnico comenta que
... a montante e no canal há uso da água e o DNOCS não tem controle nesse
uso. Às vezes quem fica no final do canal sofre porque as pessoas utilizam
mais água, principalmente com mudanças de culturas não planejadas nos
perímetros.
61
nordestino brasileiro. Além dessa mudança, o processo de emancipação dos
perímetros irrigados teve que obedecer a critérios mais rigorosos na gestão dos
recursos hídricos, previstos também no modelo de gestão integrativo41. Esse
modelo tem dependência direta do desenho institucional da agência estatal,
como o DNOCS, onde se espera que os critérios de utilização da água sejam
cumpridos conforme previsto nos planejamentos e no programa regional e, ou,
federal.
41
Este modelo define os princípios básicos de gestão do uso da água: adota a bacia
hidrográfica como unidade de planejamento, reconhece a água como um bem limitado e de
uso múltiplo, prioriza o consumo humano em caso de escassez, reconhece o seu valor
econômico e descentraliza as decisões (BRASIL, 1997b).
62
6. A GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL
63
Na linguagem do novo discurso ambiental, a água sofre uma
transformação semântica que a redefine como recurso hídrico, ou seja, os
elementos do meio ambiente passam a constituir recursos escassos e dotados
de valor econômico apropriado, de modo comum ou individual, pelos múltiplos
atores sociais, desempenhando funções econômicas e sociais. Do ponto de
vista normativo, os usuários da água passam a ter direitos de acesso aos
recursos hídricos, definidos como de natureza pública.
Os recursos naturais têm sido tradicionalmente classificados como
renováveis ou não-renováveis (SETTI, 1996). O limite dessas duas categorias,
entretanto, não é bem definido, podendo recursos considerados renováveis
tornarem-se exauríveis. A água, por exemplo, tem sido considerada pelos
estudos hidrológicos como recurso plenamente renovável e ilimitado, por se
recompor em quantidade e qualidade pelo ciclo hidrológico42. Estudos recentes,
entretanto, têm demonstrado que o ciclo hidrológico pode ser severamente
afetado pelos usos e pelas formas de gestão a que são submetidos os recursos
hídricos. HARDIN (1977), ao formular a teoria da tragédia dos comuns,
argumentou que o uso não-regulado da água (assim como outros recursos
naturais de uso comum) estaria submetido a um paradoxo de ação coletiva.
Sendo o recurso abundante e de acesso a todos, a estratégia dominante dos
usuários seria a de maximização da exploração. O resultado agregado seria o
de um desastre coletivo, provocando a indisponibilidade da água. De modo
semelhante, OSTROM (1977) argumenta que, em situações em que há
recursos comuns e múltiplos usuários, emerge a necessidade de arranjos
institucionais que regulem o uso indiscriminado da água, que podem assumir
inúmeras formas.
Nos modelos tradicionais de gestão, o tratamento dado à água levava
em consideração apenas o ciclo hidrológico, tendo, por assim dizer, uma visão
“reducionista” do problema, ao considerar apenas o fator quantitativo, deixando
de lado a sua distribuição e usos. Essa visão tecnocrática foi dominante a partir
da década de 70, com o modelo de agricultura adotado nos planos e
42
O Ciclo Hidrológico é visto como ciclo permanente de “renovação automática”, considerando
que a água cai em forma de chuva, corre para os rios ou infiltra-se na terra; a água
eventualmente evapora e retorna às nuvens para voltar, outra vez, como chuva (BRASIL,
1993).
64
respectivos programas regionais, que priorizavam as altas taxas de
produtividade agrícola, independentemente dos seus efeitos sobre o meio
ambiente.
A implementação dos perímetros irrigados foi acompanhada então de
detalhados estudos hidrológicos e de viabilidade técnica dos empreendimentos,
enquanto as condições sociais e institucionais de sua operação e manutenção
eram totalmente desprezadas. Este modelo tomava por suposto que as
soluções técnicas para a promoção do desenvolvimento econômico e social
funcionariam eficazmente, independentemente dos incentivos e das
oportunidades estratégicas oferecidas aos vários interesses e atores
envolvidos (OSTROM, 1977). A partir dos anos 70, o DNOCS foi capaz de
associar simbolicamente as suas obras técnicas de engenharia de larga escala
ao desenvolvimento da região. A apropriação dos escassos recursos hídricos
da região pelos perímetros irrigados era justificada como forma de maximizar o
seu uso produtivo. Os efeitos perversos da implantação dos perímetros a
jusante e mesmo seus efeitos sobre o abastecimento urbano de água foram
completamente desconsiderados.
Como já se viu, tal postura tecnicista define a auto-imagem e
acompanha a trajetória do DNOCS desde o princípio das suas atividades no
início desse século. Ainda assim, a agência definiu formas de planejamento de
utilização dos recursos naturais, que englobavam a administração ou a gestão
desses recursos, ainda que de forma centralizada e setorizada.
A gestão dos recursos naturais, de acordo com VIEIRA e WEBER
(1997:21-22),
... surge como um dos componentes essenciais do processo de regulação das
inter-relações entre os sistemas socioculturais e o meio ambiente físico, num
horizonte que leva em conta a diversidade de representações cognitivas dos
atores sociais em jogo, a variabilidade envolvida nas diferentes escalas espaciais
(do local ao global) e temporais (do curto ao longo prazo), bem como as
incertezas e controvérsias científicas que marcam a busca de compreensão da
dinâmica evolutiva dos sistemas sócio-ambientais contemporâneos.
65
recursos hídricos serão entendidas aqui como resultados de negociações entre
os diversos atores sociais, institucionais e políticos. Vale ressaltar que o quadro
atual se caracteriza por descontinuidade e indefinição institucional com relação
a uma política unificada e integrada de aproveitamento dos recursos hídricos
(BRASIL, 1993).
Essa indefinição institucional pode ser observada no descompasso
entre as diretrizes nacionais e os planos e programas regionais, em que a
ênfase é claramente dada à gestão setorizada dos recursos hídricos para os
seus respectivos objetivos, como no caso do DNOCS. A seguir, pretende-se
formalizar os principais modelos de gestão dos recursos hídricos, de forma a
compreender as diferenças entre seus princípios norteadores.
43
Esses modelos teóricos foram adaptados a partir de BRASIL (1995) e LEAL (1997).
66
Modelo setorial Recursos hídricos vistos pontualmente.
44
Esses modelos têm alguma identidade com os modelos de gestão da administração de
organizações: burocrático, sistêmico e sistêmico contingencial (BRASIL, 1995).
68
concebida, fundamentalmente, como um bem que pode ser objeto de
apropriação em função de razões de Estado.
Os modelos teóricos45 de interação entre políticos e técnicos das
instituições públicas no processo político institucional, formulados por PETERS
(1987), podem oferecer algumas indicações interessantes da lógica de
operação do que se denomina modelo setorial. O modelo de interação,
proposto pelo autor, que mais se aproxima de tal situação é o que Peters
chama de modelo Formal, em que os políticos moldam as decisões e os
técnicos as implementam. Os conflitos internos são resolvidos pela hierarquia
institucional. As mudanças geralmente são feitas (ou discutidas) dentro dos
gabinetes dos políticos e, ou, através de propostas dos técnicos, que estejam
coerentes com a linha determinada pelos políticos e que representam fonte de
poder decisório.
As atividades de provisão, regulação e conservação dos recursos
hídricos são, dessa forma, concentradas em instituições públicas de natureza
burocrática, e suas tarefas definidas como técnicas, mais que de intermediação
de interesses. No mais das vezes, o papel das instituições públicas envolvidas
com o gerenciamento dos recursos hídricos resumiu-se em cumprir e fazer
cumprir as rotinas de acompanhamento definidas pelos dispositivos legais. O
DNOCS, em boa parte de sua história, representa precisamente este papel
litúrgico de mero mediador de políticas definidas por executivo federal e
traduzidas pelas pressões das elites estaduais. LANNA (1995) argumenta que
esse modelo priorizou metas formais e rotinas burocratizadas, não levando em
consideração a complexa rede dos problemas ambientais e sociais que
emergiam a partir das intervenções destas agências públicas.
A visão fragmentada do gerenciamento dos recursos hídricos do
modelo setorial tem por resultado um grande potencial de conflitos inter e intra-
setoriais. Outras anomalias que acompanhariam esse modelo de gestão seriam
o desempenho restrito ao cumprimento das normas; a limitação da execução
das atividades dos atores institucionais em tarefas predeterminadas; a
distorção da aplicação de normas e regulamentos que passam a ser
45
Os modelos de interação servem como um guia às observações empíricas e à construção de
modelos comparativos. O autor apresenta as distinções conforme os seguintes modelos:
Formal, Village Life, Life Functional, Adversarial e Administrative State.
69
determinados como fins em vez de meios; a centralização das decisões,
obedecendo a padrões hierárquicos; a desconsideração das estruturas
informais e as relações assimétricas de poder entre os cargos nas agências
(BRASIL, 1995).
O modelo de gestão de recursos hídricos setorial tem sido
característico do conjunto de políticas de promoção do desenvolvimento com
ênfase nos setores modernos de elevada produtividade. As ações do DNOCS,
especialmente a partir da implementação dos perímetros públicos irrigados
durante os anos 70, conformaram-se de modo exemplar a este modelo de
gestão, privilegiando os resultados econômicos de curto e médio prazos,
desprezando as condições institucionais de operação e manutenção dos
perímetros. Muitos dos perímetros irrigados da agência encontram-se hoje, em
função da ausência de regulação abrangente, com a oferta de água
praticamente esgotada, a exemplo dos perímetros do DNOCS localizados em
Pernambuco e na Paraíba.
70
O modelo de gestão econômico-financeiro corresponde à adequação
da utilização setorizada dos recursos hídricos a determinada bacia hidrográfica.
A criação da CVSF, atual CODEVASF, marcou a primeira experiência regional
com este modelo, a partir de 1948. Esta agência enfatizou o aproveitamento
econômico e energético múltiplo dos recursos naturais ao longo da bacia
hidrográfica do Rio São Francisco. O modelo implementado foi inspirado pela
experiência norte-americana da Tenesse Valley Authority – TVA.
O modelo econômico-financeiro ocupa uma posição intermediária no
conjunto dos modelos de gestão de recursos hídricos definidos no início deste
capítulo. Se comparado ao modelo setorial, suas modalidades de planejamento
e intervenção apresentam maior grau de racionalidade a médio e longo prazos,
por considerar o uso dos recursos hídricos no contexto geográfico da bacia
hidrográfica (LANNA, 1995). O modelo econômico-financeiro, entretanto,
apesar de considerar os recursos hídricos no ambiente da bacia, privilegia o
uso intensivo e setorizado dos recursos para determinado fim, como irrigação
ou geração de energia, por exemplo. Dessa forma, esse modelo possibilita e
favorece a emergência de conflitos intersetoriais. O gerenciamento dos
recursos hídricos por programas setoriais não integralizados pode gerar
conseqüências não-planejadas de longo alcance, especialmente quando as
atribuições das diversas agências dirigidas a políticas setoriais distintas se
sobrepõem, sem uma definição clara de suas jurisdições (LANNA, 1995).
46
Essa lei seguiu alguns fundamentos assinalados, em 1972, pela Conferência Internacional
sobre a Água e o Meio Ambiente, em Dublin – Irlanda. Este evento teve caráter preparatório
para a Conferência Rio 1992 – ECO 92, sendo considerada a importância dos recursos
hídricos no meio ambiente (SETTI, 1996). Essa lei, entretanto, só foi promulgada em 8 de
janeiro de 1997, mas ainda não está regulamentada.
47
Ver CARNEIRO, J.M.B. Responsabilidade local e desafio regional: relações
intergovernamentais na gestão de recursos hídricos. São Paulo: FGV, 1994.
Dissertação (Mestrado em Administração Pública) – Fundação Getúlio Vargas, 1994.
48
Ver LEAL (1997:159).
72
Segundo LEAL (1997), esse modelo, através de uma estrutura
institucional participativa, com a criação de colegiados compostos por
representantes do poder público, dos usuários e da população, ao
descentralizar as decisões, reduziria a probabilidade de conflitos intra e
intersetoriais, processando-os institucionalmente. Para isso, alguns
instrumentos de gestão tornam-se importantes para a concretização dos
fundamentos de gestão integrada, podendo-se citar a criação dos comitês e
agências de bacia; a outorga dos direitos de uso da água; a realização de
planos diretores por bacia hidrográfica; a instituição do Sistema de Informações
de Recursos Hídricos; o enquadramento em classes de uso dos corpos d’água
e a cobrança pelo uso da água (BRASIL, 1997b).
Foram sumarizadas as distinções analíticas dos modelos teóricos de
gestão dos recursos hídricos na Tabela 8, com a finalidade de sistematizar e
comparar os principais aspectos dispostos nos respectivos modelos.
73
6.2. O futuro do DNOCS: reestruturação ou extinção?
49
Esses atores foram constituídos, respectivamente, por representantes da Secretaria Especial
de Políticas Regionais, Secretaria de Gestão do Ministério de Orçamento e Gestão,
Ministério do Meio Ambiente, e dois representantes do DNOCS.
75
considera os parlamentares federais nordestinos como elite regional, ao
argumentar que esses atores intermediam a política regional com a nacional,
assumindo o papel de “agentes legítimos” entre essas duas esferas de poder.
Historicamente, os argumentos usados pelos parlamentares da
bancada nordestina têm se concentrado na “forte imagem de carência
regional”, como conseqüência do fenômeno climático da seca, e como
corolário, na responsabilidade do governo federal com a região (CASTRO,
1992:145). Na conjuntura da reestruturação do DNOCS, argumentos
semelhantes retornam com toda força. O “fortalecimento” do DNOCS, no
discurso dos parlamentares, é vital para a região nordestina.
O documento final de reestruturação da agência (DNOCS, 1999c)
ajusta-se perfeitamente a esta posição, afirmando que “a campanha pela
preservação do DNOCS é apenas um aspecto da luta pela redenção do
Nordeste”. Esta visão está também presente nos discursos dos técnicos da
agência, afirmando que “o DNOCS é essencial para o Nordeste. Traz recursos
para áreas secas... e quem tem que arcar é o governo federal. O Nordeste não
pode ficar sem os seus órgãos federais (DNOCS, CODEVASF e SUDENE)”.
O discurso em defesa da permanência do DNOCS, por parte dos
parlamentares federais nordestinos, ressalta o papel de mediação política
exercido pela agência, como declarou o representante da bancada nordestina,
após uma reunião em que se discutiam as estratégias contra a medida
provisória que extinguia o DNOCS: “Não admitimos a extinção... Insistimos
num órgão de gerenciamento dos recursos hídricos, uma autarquia especial”50.
Mais uma vez, o debate sobre a manutenção da agência era formulado de
acordo com o vocabulário do discurso regionalista, de forma a barganhar a
preservação de uma agência especial para o semi-árido nordestino. O discurso
regionalista conota a imagem do semi-árido como essencialmente carente,
sendo apropriada ideologicamente pela elite regional como suporte de
barganha com o Governo Federal. O que importa é a disponibilidade de
recursos financeiros e de poder, sem que, entretanto, se estabeleçam
compromissos de eficiência e distribuição eqüitativa de benefícios das
atividades realizadas (CASTRO, 1992).
50
Jornal Diário do Nordeste (http://www.uol.br/diariodoNordeste/1999/04/28/010008.htm).
76
O documento oficial de reestruturação da agência (DNOCS, 1999c),
resultado dos trabalhos da comissão interna de reestruturação, aponta para a
adequação das estruturas do órgão aos princípios da Lei de Águas. Esse
documento, entretanto, é vago quanto à forma de operacionalização dos novos
princípios de gestão na estrutura interna da agência. Como já demonstrado,
essa estrutura foi direcionada historicamente para a exploração setorializada
dos recursos hídricos, com ênfase em suas dimensões de infra-estrutura e uma
visão geral marcada pelo produtivismo. O processo de reestruturação imposto
ao DNOCS, entretanto, questiona diretamente o estilo de gestão de recursos
hídricos praticado na região por quase um século.
77
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Composição efetivamente
Composição legalmente estabelecida
estabelecida
81
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
82
BRASIL. Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. III Plano Diretor
de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste 1966 – 1968.
Brasília: 1966. 184 p.
83
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gerenciamento DNOS, DNOCS e CODEVASF. Brasília: Ministério da
Irrigação, 1988b. 69 p. (Relatório Final).
84
CARVALHO, O. A economia política do Nordeste: secas, irrigação e
desenvolvimento. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 505 p.
85
DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS - DNOCS.
Divisão de Estatística. Relatório 1983. Fortaleza: Divisão de Documentação,
1985. 227 p.
86
DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS - DNOCS. 2.a
Diretoria Regional. Relatório das atividades referentes ao mês de maio/
1998. Fortaleza: Divisão de Documentação, 1998e. 41 p.
87
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Managing the commons. San Francisco: Freeman and Company, 1977.
p. 16-30.
88
NEVES, N.S. Projeto Morada Nova: planejamento físico rural. Fortaleza:
DNOCS, 1982. 34 p.
OLSON, M. The logic of collective action: public goods and the theory of
groups. Cambridge: Harvard University, 1971. 185 p.
OSTROM, E. Collective action and the tragedy of the commons. In: HARDIN,
G., BADEN, J. Managing the commons. San Francisco: W.H. Freeman and
Company, 1977. p. 173-181.
POMPEU SOBRINHO, T. História das secas (século XX). 2.ed. Rio Grande
do Norte: Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte, 1982. 539 p.
(Coleção Mossoroense, 225).
89
QUEIROZ, C.N. , ARAGÃO, P.O.R., PAKMAN, E.T. Perímetros irrigados e
modernização agrícola. Revista Raízes, v. 15, n. 12, p. 15-32, 1996.
90
VIEIRA, V.P.P.B. O DNOCS e o aproveitamento dos recursos hídricos no
Nordeste. Fortaleza: DNOCS, 1979. 29 p.
91
APÊNDICE
APÊNDICE
93
DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS - DNOCS.
Divisão de Estatística. Relatório de 1977. Fortaleza: Divisão de
Documentação, 1978. 176 p.
94
DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS - DNOCS.
Divisão de Estatística. Relatório sintético 1988. Fortaleza: Divisão de
Documentação, 1989c. 83 p.
95
DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS - DNOCS. 4.a
Diretoria Regional. Relatório anual 1997. Salvador: Divisão de
Documentação, 1997b.
96
DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS - DNOCS.
Divisão de Estatística. Relatório 1996. Fortaleza: Divisão de Documentação,
1999b. (no prelo)
LITERATURA CONSULTADA
97
Tabela 1A - Percentual da área ocupada pelas categorias de irrigantes nos pe-
rímetros do DNOCS no Piauí (1996)
Engenheiros- Técnicos
Perímetros do Colonos Empresários
Agrônomos Agrícolas
Piauí (%) (%)
(%) (%)
Caldeirão 100 - - -
Fidalgo 100 - - -
Gurguéia 77,5 2,6 3,1 16,8
Lagoas do Piauí 100 - - -
Engenheiros- Técnicos
Perímetros do Colonos Empresários
Agrônomos Agrícolas
Ceará (%) (%)
(%) (%)
98
Tabela 3A - Percentual da área ocupada pelas categorias de irrigantes nos pe-
rímetros do DNOCS em Pernambuco (1996)
Engenheiros- Técnicos
Perímetros de Colonos Empresários
Agrônomos Agrícolas
Pernambuco (%) (%)
(%) (%)
Engenheiros- Técnicos
Perímetros da Colonos Empresários
Agrônomos Agrícolas
Bahia (%) (%)
(%) (%)
99
Tabela 5A - Percentual da área ocupada pelas categorias de irrigantes nos pe-
rímetros do DNOCS na Paraíba (1996)
Engenheiros- Técnicos
Perímetros da Colonos Empresários
Agrônomos Agrícolas
Paraíba (%) (%)
(%) (%)
Cruzeta 100 - - -
Itans-Sabugi 100 - - -
Pau dos Ferros 55,9 - - 44,1
100
Tabela 7A - Os perímetros em operação no Piauí, com a respectiva superfície
irrigada em hectare e percentagem (1996)
Superfície irrigada
Piauí
em ha em %
Superfície irrigada
Ceará
em ha em %
101
Tabela 9A - Os perímetros em operação em Pernambuco, com a respectiva
superfície irrigada em hectare e percentagem (1996)
Superfície irrigada
Pernambuco
em ha em %
Superfície irrigada
Bahia
em ha em %
102
Tabela 11A - Os perímetros em operação no Rio Grande do Norte, com a res-
pectiva superfície irrigada em hectare e percentagem (1996)
Superfície irrigada
Rio Grande do Norte
em ha em %
Superfície irrigada
Paraíba
em ha em %
103
104
Conselho de Administração
Diretoria Geral
Diretoria Geral Adjunta Diretoria Geral Adjunta Diretoria Geral Adjunta Diretoria de Pessoal
de Planejamento e Coordenação de Administração de Operações
Coordenação de Coordenação de Coord. de Modern. Diretoria de Diretoria de Diretoria de Diretoria de Diretoria de Diretoria de Diretoria de
Planejamento Programação Adm. e Inform. Finanças Serviços Gerais Recursos Hídricos Obras Hidráulicas Irrigação Piscicultura Engenharia Rural
105