Tese - MulheresIndigenasEm
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2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS
BELEM/PARÁ
2020
RAIMUNDO DE ARAÚJO TOCANTINS
BELÉM
2020
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Pará
Gerada automaticamente pelo módulo Ficat, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Conceito: ____________________
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Ivânia dos Santos Neves
(ILC/PPGL/UFPA – Orientadora)
______________________________________________________________________
Prof.ª Drª. Denise Gabriel Witzel
(UNICENTRO/Guarapuava – Membro)
______________________________________________________________________
Prof.ª Drª. Marcela Vecchione Gonçalves
(NAEA/UFPA – Membro)
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Angela Fabíola Alves Chagas
(ILC/PPGL/UFPA – Membro)
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Izabela Guimarães Guerra Leal
(ILC/PPGL/UFPA – Membro)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Nilton Milanez
(UFES/Feira de Santana – Membro)
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Tânia Sarmento Pantoja
(ILC/PPGL/UFPA – Membro)
Dedico esta tese às mulheres indígenas.
EU AGRADEÇO
À estas forças que regem o universo, lugares sagrados onde assumimos nossa fé fraturada
com diversas culturas e identidades plurais e convergentes: Deus, Oxalá, Jesus, Jeová,
Tupã, Maomé e Nossa Senhora de Nazaré.
A meus queridos e amados pais Raimundo dos Santos Tocantins (in memoriam) e
Francisca de Araújo Tocantins, pelo amor, carinho e dedicação. Amor incondicional,
sempre!
À Maria Cecília, minha filha que me enche de alegria com seu sorriso. Que você cresça
nutrida com os coloridos pensamentos decoloniais. Te amo!
À minha linda irmã de vida Ivaneida Neves, cheia de sabores e sorrisos que abastecem a
todos com boas energias. Nosso encontro nessa, minha irmã, é carinho na alma, um lugar
de raro afeto e histórias de vidas que certamente não nasceu nessa breve passagem que
iniciou em 1975. À dona Ivone Carmen, uma segunda mãe linda demais. Vamos pra
Mosqueiro, dona Ivone!
À CAPES, pela concessão de bolsa de estudos, que me auxiliou durante este período de
estudos. A todos os professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL-UFPA). Em especial à minha orientadora professora Dra. Ivânia Neves, pela
orientação e incentivo nos caminhos sinuosos, mas certamente, decoloniais onde a
pesquisa cresce e floresce. Agradeço também à professora, amiga e ativista do bem,
Juliana Queiroz.
À professora Denise Gabriel Witzel pela brilhante contribuição em redes foucaultianas,
fruto de sua leitura cuidadosa do meu texto de qualificação. À professora Maria do
Rosário Gregolin, por sua luz que ilumina as veredas abertas por Michel Foucault.
Aos amigos de caminhada do grupo de estudos GEDAI: Welton Lavareda, meu amigo de
pesquisa, trabalho e conversas intermináveis permeadas por afetos, sensibilidades e muita
risada de absolutamente tudo! Flávia Lisbôa, que apesar da pouca convivência, se
inscreve em um ponto da linha do meu tempo no doutorado.
A presente pesquisa oferece uma análise dos perfis de mulheres indígenas com o objetivo
de investigar suas produções discursivas inseridas em múltiplas redes. O ponto de partida
desse empreendimento é a web, compreendida como um território heterotópico para a
escrita de suas narrativas de si que contam as histórias do presente por meio de enunciados
ativistas. Além desta rede, as indígenas empreendem suas narrativas espraiadas em outros
espaços como as universidades, movimentos de organizações políticas e, também em suas
poéticas, espaços onde a arte pode ser compreendida a partir de suas perspectivas
originárias. O empreendimento teórico-metodológico orienta-se a partir da articulação
entre dois campos: a Análise do Discurso de caráter arquegenealógico empreendida por
Michel Foucault, basicamente na definição de “dispositivo”. Nessa arquitetura,
utilizamos a associação da leitura de Neves (2009, 2015) sobre o dispositivo foucaultiano,
que resultou na apreensão do “dispositivo colonial”. Além deste campo, também são
igualmente pertinentes os Estudos Decoloniais centrados em Walter Mignolo, Aníbal
Quijano, Julieta Paredes e Maria Lugones. Nessa empreitada embasamos nossas análises
a partir da compreensão das quatro linhas que compõem o dispositivo foucaultiano:
Visibilidade, Enunciabilidade, Força e Subjetividade. Estas linhas delineadas por Deleuze
(2006) nos oportunizam apreender as sedimentações implantadas pelo dispositivo ao
longo da história em direção às subjetividades indígenas. Por outro lado, as narrativas de
si empreendidas por mulheres indígenas ativistas revelam as fissuras ou fraturas por elas
criadas no interior do dispositivo. A partir desta perspectiva teórica, as sujeitas desta
pesquisa (re)elaboram suas subjetividades e constroem resistências por meio do fazer
ativista visibilizado na web.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................12
2 LUGARES DE ENUNCIAÇÃO, REGIMES DE VISUALIDADES,
NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS, CORPO E PRÁTICAS DE
RESISTÊNCIA ................................................................................................28
2.1 Entre chegadas e partidas: o encontro com a pesquisa ................................28
2.2 Regimes de visualidades, descontinuidades históricas e memória das
imagens .............................................................................................................34
2.3 Mulheres indígenas na web e as escritas de si como práticas de
resistência .........................................................................................................42
2.3.1 Protagonismo de mulheres indígenas e o cuidado de si ....................................44
2.4 Narrativas de si em espaços heterotópicos ....................................................48
2.4.1 Convergências e lugares de enunciação ............................................................52
3 MULHERES INDÍGENAS: ENTRE TEORIAS E
DESCOLONIZAÇÕES ...................................................................................56
3.1 Do feminismo aos feminismos: um breve percurso sobre teorias e
mulheres ...........................................................................................................58
3.2 Sobre descolonialidade e ecofeminismo .........................................................65
3.3 Sobre o feminismo comunitário em Abya Yala .............................................67
3.4 Entre feminismos e gênero: pensar empoderamento e protagonismo com
mulheres indígenas ...........................................................................................70
3.5 A história do presente na web: primeira marcha das mulheres indígenas ..71
3.6 Pietra Dolamita e a problematização de um feminismo indígena ..................82
4 ELAS SIM, ELE NÃO: A LUTA DAS MULHERES INDÍGENAS
POR REPRESENTATIVIDADE .....................................................................89
4.1 Representatividade já! ......................................................................................89
4.2 Sonia Guajajara, protagonismos, liderança e tradições indígenas ...............92
4.3 Sensibilidades em movimentos e representações políticas: acampamento
terra livre ...........................................................................................................99
4.4 Joênia Wapichana: ancestralidade e representatividade indígena
em Brasília .......................................................................................................107
5 DISCUSSÕES EPISTEMOLÓGICAS E PRÁTICAS EDUCACIONAIS:
AMANSANDO OS SABERES DOS BRANCOS .......................................117
5.1 A hierarquização dos saberes ........................................................................118
5.2 Do dispositivo ao dispositivo colonial ...........................................................119
5.3 O dispositivo colonial e o governo da língua ................................................121
5.4 O dispositivo escolar eliminando epistemologias indígenas .......................125
5.5 Valdelice e as linhas de atualização do dispositivo escolar .........................130
5.5.1 “Sabemos que não nascemos prontas, mas somos feitas!”. O kunhãkoty e a
importância da mulher na educação Guarani-Kaiowá .....................................132
5.6 Célia Xakriabá e o amansamento da escola do branco ...............................137
5.6.1 Célia Xakriabá, o barro, o giz e o genipapo: epistemologias nativas ...............141
5.7 A cosmologia Mura na academia e a descolonização do conhecimento .....146
5.8 Mulheres indígenas tecendo outras definições de língua .............................151
6 POÉTICAS DA RESISTÊNCIA: LINHAS DE CRIATIVIDADE E
HISTÓRIAS DECOLONIAIS ......................................................................154
6.1 As linhas de visibilidade e enunciabilidade em teatros e telas ....................154
6.2 Djuena Tikuna, a música indígena e as brechas do dispositivo ..................158
6.3 Daiara Tukano e Rádio Yandê: tinta de jenipapo e as camadas da terra em
narrativas de resistência ................................................................................168
6.4 Márcia Kambeba: literatura, territorialidade e ativismo ..........................173
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS EM MOVIMENTOS ...................................180
REFERÊNCIAS .............................................................................................187
12
Introdução
Nós mesmas sentíamos os olhares
questionadores quando distribuíamos o
polêmico Jornal do Grumin, em um
encontro sobre hidrelétricas, em Altamira,
Pará. Lembro que um líder indígena nos
mandou ir para a cozinha ou ficar fora das
assembleias segurando os filhos no colo,
inclusive o dele! Mas a guerreira Tuíra
mostrou o facão para um empresário, dono
da hidrelétrica que ameaçava a vida dos
kaiapós do Pará. Acredito que aí se abriu
uma brecha para a mulher indígena, embora
ainda hoje tenhamos que pressionar para
que as políticas públicas incluam a questão
de gênero.
Eliane Potiguara
analisamos, não se desligou das cosmologias indígenas, mas sim seguiu a trajetória das
identidades fraturadas destas mulheres e passou a lhes acompanhar nestes novos lugares.
A epígrafe que inicia esta introdução traz à tona o acontecimento protagonizado
por Tuíra Kaiapó, em 1989, que ganhou destaque nos jornais mundiais e trouxe aos olhos
ocidentais uma indígena envolvida com questões políticas. Sua atitude inaugurou um
novo modelo agenciado pela mídia, e com aproximações e distanciamentos passou
também a constituir o que o Ocidente compreende como as subjetividades destas
mulheres. Embora não soubesse o alcance de seu gesto, ela oportunizou novas formas de
estudos de gênero relacionados a mulheres indígenas. A força desse acontecimento, trinta
anos depois de sua emergência, certamente espargiu as sementes que, futuramente,
fizeram germinar a primeira Marcha das Mulheres Indígenas no ano de 2019.
Há décadas os estudos feministas insistem em mostrar que não é possível uma
definição única de mulher. Para Lugones (2008), a palavra mulher, sem especificação não
tem sentido, ou pior, tem um sentido racista, já que historicamente ela se refere apenas
aos grupos dominantes, às mulheres burguesas, brancas, heterossexuais. Ampliando estas
discussões, a generalização do enunciado “mulher indígena” também não existe e precisa
cada vez mais ser problematizada, ser compreendida em suas singularidades.
É difícil estabelecer um parâmetro territorial sobre o que significa mulher indígena
e esta definição, sem muita dificuldade, pode se espraiar pelos rastros da colonização
europeia iniciada com as grandes navegações do século XVI. Se considerarmos apenas o
Brasil, onde mais de 160 sociedades indígenas continuam escrevendo suas histórias, é
possível que existam 160 concepções diferentes sobre ser mulher indígena. Marcadas
pelas diferenças e pelas desigualdades produzidas pela colonização, hoje, podemos
identificar a mulher indígena monolíngue, falante da língua nativa de sua sociedade, a
mulher indígena que mora nas cidades, a mulher indígena universitária, a mulher indígena
evangélica, a mulher indígena militante política, a mulher indígena artista, a mulher
indígena professora, a mulher indígena amazônica, a mulher indígena exposta a jornadas
diárias de serviço dupla ou mesmo tripla. Para compreender estas sujeitas do discurso,
vamos nos fundamentar em uma série de autoras e autores que se debruçaram sobre estas
conceituações, sobretudo com o objetivo de ampliá-las a partir das formulações e das
experiências éticas e estéticas das mulheres indígenas ativistas cujos perfis analisamos.
A centralidade da categoria “discurso” pelo viés dos estudos empreendidos por
Michel Foucault, nos permite compreender, como os sujeitos e as coisas sobre o mundo
foram “construídos”. Nessa direção, o próprio autor afirma, o que “interessa no problema
14
Quando as pessoas falam assim “ah, mas tantas coisas [por] que vocês
lutam estão alinhadas com essa potência do movimento feminista”, eu
digo que a nossa luta é antes do conceito e vai ser pós-conceito. Então,
mesmo nós, mulheres indígenas, precisamos discutir isso e entender
outros jeitos de chamar essa luta, principalmente, dialogando com
mulheres que estão no território. Porque, na maioria das vezes, as
mulheres mais velhas, elas nem conhecem esse conceito e, para elas se
definirem nesse lugar, precisa ter profundidade. (XAKRIABÁ, 2019)
Essas indígenas desvelam outras maneiras de compreendermos as formas
organização e luta de mulheres. O embate delas acontece sem desprezar o diálogo com a
ancestralidade, que na maioria das vezes desconhece o conceito de feminismo, inclusive
nos jeitos de compreender e conceituar essa batalha. Na escrita dessa história de mulheres
indígenas, narrativizadas por elas não há desconsideração das lutas dos diversos
15
presidência pelo PSOL e Joênia Wapichana da REDE, a primeira mulher indígena eleita
deputada federal no Brasil.
Fonte: https://catarinas.info/43-mulheres-
indigenas-do-brasil-e-da-america-latina-para-se-
inspirar/valdelice-veron-guarani-e-kaiowa/
Antropologia e História dos Povos Indígenas do Brasil pela Universidade de São Paulo –
USP. Em sua tese intitulada “Tecendo Tradições Indígenas”, a professora de História da
rede estadual de Rondônia, utiliza as narrativas do povo Mura como fios que tecem a
retomada de saberes ancestrais e revelam a cosmologia do povo Mura, população
espalhada em comunidades às margens de lagos e rios no eixo que vai de Manicoré/AM
a Porto Velho/RO. Ao longo de sua história esses grupos passaram por processos de
desterritorialização em razão dos projetos desenvolvimentistas governamentais que nunca
consideraram as singularidades culturais dessas comunidades.
Além destas duas mulheres, Célia Xakriabá Mindã Nynthê1, do estado de Minas
Gerais, articula ao seu ativismo indígena a escrita
Figura 05: Célia Xakriabá
poética e a educação indígena. Cientista social,
mestre em Sustentabilidade Junto a Povos e Terras
Tradicionais pela UNB onde realizou a pesquisa “O
Barro, o Genipapo e o Giz no Fazer Epistemológico
de Autoria Xakriabá: reativação da memória por
uma educação territorializada” (CORREA
XAKRIABÁ, 2018). Em sua perspectiva, enquanto
indígena e educadora, interessada em produzir uma
educação intercultural, a escola tem funcionado
historicamente como “ferramenta moderna de
Fonte: colonização”. Neste sentido, ela propõe “indigenizar
https://www.instagram.com/onafilloy/
a escola”. Xakriabá nos apresenta formas de
compreender a educação a partir das singularidades dos povos indígenas, “kayaponizar”
ou “guaranizar” as práticas escolares. Em outras palavras, trazer para a escola indígena
de cada povo maneiras próprias de concebê-la: “refletir sobre os saberes e os fazeres
presentes no território, analisando as experiências de educação indígena mesmo antes da
presença da escola e depois do amansamento dessa” (CORREA XAKRIABÁ, 2018, p.
1
Célia Nunes Correa, assim como todas as outras identidades indígenas que nascem em território nacional,
têm seus nomes e sobrenomes registrados em cartório. Geralmente, esse registro costuma carregar nomes
não-indígenas. Além desta opção, eles e elas utilizam em espaços sociais seu primeiro nome seguido do
nome de sua etnia como uma maneira de marcar suas identidades originais. Podemos compreender esta
alternância de usos de nomes, à luz da teoria de Mignolo (2003), como uma materialização de formas
fraturadas das identidades brasileiras assumidas por muitos e muitas indígenas que carregam o orgulho de
suas origens.
19
materialidade e também a nos questionarmos sobre: “o que há, enfim, de tão perigoso no
Figura 07 - Daiara Tukano fato de as pessoas falarem e de seus discursos
proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o
perigo?” (FOUCAULT, 1996, p. 08)
Estéticas e ativismo.
As poéticas indígenas representam um
espaço de luta importante no movimento indígena.
Podemos mesmo identificar uma estética
decolonial da resistência que se constrói de forma
***
Metodologicamente dividimos os capítulos desta tese de acordo com as
contribuições que cada indígena realiza em diferentes áreas do conhecimento. Nessa
direção, levamos em consideração os espaços em que mais elas se destacam, mas isso não
significa que as sujeitas de nossas pesquisas não transitem por mais de uma categoria ou
área do conhecimento distribuídas nesses capítulos.
O objetivo geral desta tese se constitui em analisar os projetos étnicos, políticos e
culturais visibilizados a partir de enunciados produzidos em perfis indígenas publicados
em espaços da web para um grande público. As mulheres indígenas, ao se utilizarem
destes espaços de comunicação, ao mesmo tempo em que realizam intercâmbios diversos,
criam redes em diferentes escalas, demonstram a diversidade de vozes, situações e
experiências indígenas contemporâneas. Além disso, a pesquisa observa de maneira
específica as formas de opressão e violência promovidas pelos efeitos da colonização que
historicamente atravessam suas vidas, do mesmo modo como elas, em suas elaborações
ativistas plurais produzem formas de resistências que combatem e criam “fissuras” no
que compreendemos como dispositivo colonial.
Atualmente, a internet proporciona a publicação de diversos tipos de enunciados.
Percebemos que as visualidades têm nestes espaços um lugar privilegiado. A partir dos
enunciados produzidos por mulheres indígenas e suas formas de ativismo, propomos
produzir um gesto de leitura das imagens com a finalidade de interrogar, a partir desses
enunciados imagéticos quais as representações construídas por eles e elas dentro desse
regime de visualidades administrados nos espaços da web. Reafirmamos, a partir das
perspectivas oferecidas por estes enunciados, o corpo, observado na relevância de sua
centralidade, marcando o lugar de encontro de sua compreensão como discurso
(MILANEZ, 2011).
Compreendido como elemento discursivo, o corpo indígena é produtor de formas
plurais de ativismos que dialogam com a natureza, as narrativas orais, os rituais que
refletem suas religiosidades, músicas, pinturas corporais, em outras palavras, com suas
cosmologias. Corpos indígenas e cosmologias não podem ser compreendidos como
elementos apartados, eles são partes que se integram, complementam-se, trocam energias
e cuidados. Em nossas análises, consideramos a relevância do corpo como produtor de
sentidos. Imbuídas da consciência da importância do corpo como produtor de discursos,
as indígenas se apropriam da linguagem corporal na realização de seus enunciados. Por
23
meio de seus corpos, elas se inscrevem nas convergências culturais e midiáticas, assim
também como na história do presente.
Quando falamos em história, não estamos falando, evidentemente, da versão que
compreende estes homens e mulheres no cruzamento entre a atitude forjada por
enunciadores não-indígenas, que produziu os heróis e heroínas sofridas, descrito de
maneiras dicotômicas pelo romântico encontro entre o europeu e os selvagens comedores
de carne humana. Nem tampouco, aqui, compreendemos as identidades indígenas
somente como vítimas dos processos de violência e exploração a que eles e elas foram
submetidos desde o início da colonização deste continente.
Não desejamos inviabilizar o lugar do sofrimentos e expropriações, inclusive esta
tese também se constitui em um espaço de denúncias da violação dos direitos humanos
em direção aos povos indígenas. Compreendemos que a transgressão aos direitos desses
povos se realiza a partir das estratégias do dispositivo colonial, que continua se
atualizando entre nós. Todavia, também é urgente compreender seus corpos na produção
singular de formas de vivências e resistência. Estas formas levam em consideração seus
envolvimentos em suas ancestralidades e também suas relações com o mundo que os
cercam e os constituem.
Compreendemos essa forma de ler os corpos indígenas no gesto de leitura que
“trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” da
genealogia de Michel Foucault (2015, p. 55). Os corpos aqui apresentados estão
enriquecidos pelas experiências das histórias que marcam as singularidades dos
acontecimentos, colorido pelos tons de sua história que se afastam da finalidade
monótona. Esses corpos são espreitados de uma perspectiva de onde flui suas
originalidades, distanciando-se do lugar comum que a memória coletiva coloca os
indígenas. Buscamos percebê-los em espaços de sensibilidades, conscientes de que a
história oficial narrativizadas por outros não os considerou como portadores de história.
Os sentimentos, o amor, a consciência e suas expressões políticas diante das câmeras dos
celulares, elaboram nos espaços heterotópicos da web enunciados que nos revelam a
reescrita de uma história do presente enunciada pelos próprios indígenas.
O gesto de observar os corpos indígenas enredados em suas histórias
contemporâneas existe pela necessidade de tornar visíveis outras representações das
identidades indígenas além daquelas paralisadas no tempo de uma história elaborada por
aqueles que outrora narrativizaram essas subjetividades. O corpo indígena visto aqui
existe em diálogo constante com suas ancestralidades e com a história do presente. Essa
24
forma de compreender o corpo em seu encontro com outras histórias não a nega, nem se
opõe a história. “Ela se opõe a pesquisa de origem” (FOUCAULT, 2016, p.56).
A perspectiva que toma o corpo indígena em sua convergência com as histórias
narrativizadas por esses próprios corpos tem por finalidade mostrar “que o que se encontra
no começo histórico das coisas não é a identidade preservada da origem – é a discórdia
das coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2016, p.59). De homens e mulheres das diversas
etnias que habitam os territórios indígenas e os mesmos espaços urbanos é sempre
cobrado, ainda nos dias atuais, um suposto frescor que venha das águas cristalinas, do
verde das matas ou a agressividade dos animais silvestres. Esta cobrança, no entanto, não
é neutra, muito pelo contrário, ela está ancorada num discurso racista e se inscreve no
dispositivo colonial. A falsa ideia de progresso e as formas de governo criaram maneiras
de sufocar os territórios indígenas e aproximá-los das condições urbanas e não foram
poucas as instituições ocidentais, como a igreja e a escola, por exemplo, que procuraram
interditar as práticas culturais locais. As sociedades que sobreviveram e sobrevivem a esta
ordem, no mínimo, precisaram fraturar suas culturas. Quem se incomoda com homens e
mulheres indígenas em suas lutas por condições humanas de vida entoando cânticos,
recitando poemas e registrando seus atos nas lentes digitais, compartilhando isso tudo em
web rádios ou mídias índias?
A trilha da história que empreendemos nesta tese não observa somente uma
identidade preservada da origem, fruto de uma continuidade. Mas ela persegue o que
existe para além disso. Ela ambiciona o movimento descontínuo, quer ver a discórdia das
coisas, os disparates como nos sugere Foucault (2016). Neste sentido, a materialidade da
imagem orientada pelos corpos e suas articulações sob as perspectivas de uma história
descontínua, demanda categorias teóricas propostas por uma semiologia que se
comprometa com a ideia de que “analisar um discurso não é analisá-lo enquanto
sequência discursiva, mas como fragmento histórico, cuja natureza semiológica do objeto
de análise se impõe e não existe isolado das camadas históricas que o compõe”
(SARGENTINI, 2012, p. 109).
Entender quem são essas mulheres me atravessa, porque assim como uma parte
delas, meu lugar de enunciação é a Amazônia, e assim como elas, eu também estou nas
redes sociais. Mas sei que nossas diferenças são profundas porque, ainda que me
considere bastante distante do “homem, adulto branco sempre no comando”, meus
privilégios são incomparáveis e minha voz não precisa produzir uma revolução para ser
ouvida. Se em vários momentos nossas fraturas subjetivas nos colocam no mesmo lugar
25
2
“A astronomia, assim como todas as ciências, faz parte de uma instituição cultural maior: o conhecimento
humano. E, como toda construção cultural humana, ele é regido por seus desejos e suas necessidades. A
forma de ver e interpretar o céu também reflete a cultura de um povo. A etnoastronomia significa uma
maneira de estudar a astronomia, respeitando as diferenças culturais (NEVES, 2004, p.66).”
30
3
A grande nação Tenetehára, atualmente, está dividida em duas sociedades, os Tembé, que vivem no estado
do Pará e os Guajajara, no estado do Maranhão. Atualmente, são sociedades bilíngues, falam o Tenetehára
e a Língua Portuguesa e ainda mantêm rituais tradicionais muito semelhantes, como a iniciação de meninas
e meninos na vida adulta, conhecida como a Festa do Moqueado (NEVES; CARDOSO, 2015).
4
Estamos nos referindo aos Tembé que vivem localizado na Terra Indígena Alto Rio Guamá – TIARG, na
fronteira oeste do estado do Pará
33
e diálogo com os mais jovens da comunidade. Além disso, ao longo de sua existência, ela
lutou pela manutenção do patrimônio imaterial de seu povo a partir do incentivo ao uso
do grafismo corporal e ensino da língua Tenetehara aos mais jovens. No âmbito interno
de sua sociedade, Verônica Tembé dedicou sua vida a atividades de liderança, ou como
uma ativista que lutou por manter viva a cultura de seu povo.
Arihêra e Maria Suruí, assim como Verônica Tembé, são mulheres que exercem
a liderança entre seus povos e, muito timidamente conseguiram levar as lutas indígenas
para a mídia. Assim como elas, muitas outras mulheres indígenas estão à frente de suas
famílias insistindo em uma forma de vida singular. Embora sejam anônimas para a
opinião pública nacional e internacional, com seus micro-poderes inscrevem a resistência
indígena em suas sociedades.
As diferentes cosmovisões apresentadas por meio das narrativas contadas por
Arihêra Suruí, Maria Suruí, Murué Suruí, Sonia Bone Guajajara, Índia Ticuna Weena
Miguel e Verônica Tembé, além de proporcionarem uma forma plural de compreender
mulheres indígenas, representaram, em primeiro plano o rompimento com as formas
superficiais e estereotipadas de compreender povos originários e suas culturas. Em outro
plano, conhecer essas outras cosmologias, tem sido, para mim uma maneira de
desestabilizar a hierarquização dos saberes de ordem ocidental que estabelece um lugar
privilegiado para esses saberes e subalterniza as epistemologias dos povos indígenas.
Nos dois anos de observação da pesquisa para a dissertação e depois pela minha
própria experiência como usuário das redes sociais, pude perceber a crescente
midiatização da vida pública, proporcionada, nos últimos anos pelos meios digitais de
informação. Grande parte da humanidade, hoje, na condição de usuário orienta sua vida
no sentido de inserir suas práticas cotidianas nesta nova forma de mídia, que faz circular
informações, práticas sociais e identidades na velocidade dos ventos velozes da World
Wide Web.
A pesquisa desta tese germinou suas investigações com o objetivo de analisar a
produção de sentido dos enunciados relacionados ao ativismo realizado por mulheres
indígenas, na rede social Facebook, a princípio. Nestas produções elas assumem o papel
de enunciadoras nas lutas pelos direitos das sociedades indígenas brasileiras, mas logo
percebemos que diferente do que aconteceu entre os anos 2011-2013, havia um trânsito
muito mais plural nas redes sociais por parte dessas indígenas e o Facebook não seria
suficiente para abarcar suas diferentes frentes de atuação, dada à diversidade de tipos de
enunciados realizados por elas.
34
Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Hans-Staden-ao-fundo-
observando-um-ritual-antropofagico-Tupinamba-Fonte_fig2_250029115
desses elementos nos leva a conclusão de que estes fatores interferem na condição
documental e histórica dessas produções. Dessa maneira, muitas imagens que construíram
nossa memória sobre povos indígenas são discursos que revelam regimes de visualidades
sob determinações históricas e estéticas como nos elucida Hartmann (1975). Em outras
palavras, estas representações foram elaboradas sob outros regimes de visualidades que
nos revelam as condições sob as quais foram forjados os discursos, em sua materialidade
visual, que construíram para o Ocidente e para o futuro as subjetividades indígenas.
A clássica imagem do livro intitulado “Duas Viagens”, lançado em meados do
século XVI na Europa serve para materializar um determinado regime de visualidade
sobre os indígenas brasileiros. Este trabalho atribuído a Hans Staden, viajante mercenário
alemão que ficou conhecido por ter realizado duas viagens ao Brasil no século XVI,
apresenta aos olhos, uma espécie de banquete canibal (figura 10). O desenho do viajante
alemão apresentou à Europa índios nus comendo pedaços de corpos humanos, como se
isso fosse algo corriqueiro do cotidiano dos Tupinambá. O ritual de antropofagia dos
índios Tupinambá consistia na captura de outros indígenas, que eram aprisionados e
devorados por eles. Porém, este ritual era realizado com seus prisioneiros de guerra
considerados heróis. Em outras palavras, havia uma ordem para esta prática, ao contrário
da desordem canibal e do caos que o olhar europeu instituiu ao leitor desta imagem como
representação do selvagem e do não civilizado.
Em um primeiro olhar sobre a representação dos corpos na imagem, percebemos
a partir da leitura de seus traços e vestígios quais modelos de corpos foram utilizados para
retratar os indígenas brasileiros: vemos no plano central superior, na imagem à esquerda,
a representação de um homem de braços, tórax e abdômen de músculos salientes. Além
disso, seu rosto possui uma longa barba. Apesar desta figura central se diferenciar das
outras representações do sexo masculino desta imagem, também é possível perceber que
os corpos no trabalho atribuído a Staden obedecem a uma ordem que nos remete às
divindades gregas. A representação sobre os indígenas segue, nesse momento, a um
regime de visualidade que se submete à visão etnocêntrica do autor e à olhares estéticos
de determinadas correntes artísticas, como nos elucida Hartmann (1975).
Nesta direção, afinado com os estudos do discurso, lanço mão da caixa de
ferramentas teóricas proporcionadas pela Análise do Discurso filiada a Michel Foucault.
Essa articulação sugere como referenciais teóricos a semiologia dos detalhes, referente
ao paradigma indiciário de Ginzburg (1989), a semiologia histórica de Courtine (2011) e
a definição de intericonicidade proposta por Courtine (2005 e 2011).
37
assinatura daqueles e daquelas que antes tiveram suas biografias contadas por outros,
proponho o exame de uma prática que irrompeu em um determinado momento da história
humana. Refiro-me a criação das “lives” como forma de comunicação a distância e
segura. Esta forma de comunicação que acontece por meio da internet e requer o domínio
dos meios digitais de comunicação, tornou-se extremamente utilizada neste ano de 2020
devido à pandemia de Corona vírus que se alastrou pelo planeta.
A imagem de divulgação da live disponibilizada pelo perfil do Instagram de
Daiara Tukano, contou com a participação das lideranças indígenas Marivelton Baré e
Álvaro Tukano. Além deles, três indígenas acadêmicos de diferentes universidades
brasileiras também participaram deste evento com objetivo de arrecadar mantimentos
para os indígenas do estado do Amazonas.
Para avançar no empreendimento de uma teoria para a leitura das imagens,
Courtine (2011) propõe uma categoria de análise referente à relação entre imagem e
discurso que ele define como intericonicidade. Nas palavras do autor,
A intericonicidade supõe, portanto, dar um tratamento discursivo às
imagens, supõe considerar as relações entre imagens que produzem os
sentidos: imagens exteriores ao sujeito, como quando uma imagem
pode ser inscrita em uma série de imagens, uma arqueologia, de modo
semelhante ao enunciado em uma rede de formulação, em Foucault;
mas também imagens internas, que supõem a consideração de todo
conjunto da memória da imagem no indivíduo e talvez também os
sonhos, as imagens vistas, esquecidas, ressurgidas ou fantasiadas que
frequentam o imaginário. (COURTINE, 2011, p.160)
Para além dos aspectos visuais, esse fragmento histórico das identidades
indígenas, desvelado pelo viés teórico de Courtine que, empreende um roteiro de leitura
a partir da semiologia histórica, anuncia, em concordância com Courtine, o imbricamento
dos discursos com práticas verbais e não-verbais: o “verbo não poderia mais ser
dissociado do corpo e do gesto” (COURTINE, 2011, p.150). Nessa direção, o título da
live “S.O.S Indígenas do Amazonas”, dialoga com o enunciado verbal produzido por
Daiara. Nele, a comunicadora recorre a solidariedade e adesão do leitor em relação ao
difícil momento que os indígenas da região Norte estão atravessando em função da
pandemia ocasionada pelo Covid-19. O enunciado verbal postado por Tukano pede o
apoio para a arrecadação de materiais de higiene pessoal, alimentos, materiais
hospitalares e de proteção para a equipe de saúde envolvida no tratamento dos povos
originários do Amazonas.
O “S.O.S Indígenas do Amazonas”, revela a distopia que, no grego antigo,
significa literalmente “lugar ruim”. A web, neste enunciado, torna-se lugar para denunciar
a forma precária como as sociedades indígenas atravessam o período pandêmico. Sob um
regime autoritário promovido pelo atual presidente brasileiro, muitas comunidades de
povos originários encontram-se em situação de desespero por não receber do Estado
nenhuma forma de auxílio para o combate, prevenção e sobrevivência a uma forma de
vírus altamente letal que atinge o mundo e, com mais intensidade as comunidades em
situação de vulnerabilidade como os povos indígenas.
41
Fonte: https://www.instagram.com/p/CAvUmctnqto/
mais exata, na interpretação. Nesta direção, nossa memória discursiva nos direciona para
um campo tradicionalmente dominado por homens. Todavia, recentemente, o nome de
uma mulher indígena pouco conhecida na história brasileira começou a ganhar
visibilidade em estudos atuais no campo da tradução em território nacional: Bartira, da
etnia Guaianás, povo indígena que habitou o estado de São Paulo. Esta mulher entrou
para a história como a esposa do explorador português João Ramalho, responsável pela
fundação da capital desse estado. Por outro lado, o que não costuma circular nos livros é
que o envolvimento desse bandeirante com Mbicy, que depois de casada ganhou nome
ocidentalizado Izabel Dias, se deu devido seu ao talento como tradutora. Contudo, sobre
ela, a historiografia apenas reservou o papel de esposa do grande desbravador,
considerado como “pai dos paulistas”.
Assim como Mbicy, muitas mulheres indígenas foram silenciadas pela história,
ou, a elas foram atribuídos papeis menores, filtrados pelo binarismo eurocêntrico, que
impôs o patriarcado ocidental no continente americano. Nos livros, na mídia, na escola e
mesmo nas conversas cotidianas, estes recortes e fragmentos que nos chegam sobre as
mulheres indígenas oscilam, mas continuam a visibilizar uma mulher indígena genérica.
O discurso de resistência a esta condição, no entanto, começou a ganhar visibilidade nas
redes sociais e as mulheres indígenas ativistas passaram também a contar suas próprias
narrativas nesse espaço.
A construção narrativa sobre mulheres indígenas nos impele a olhar para a história
e tirar da caixa de ferramentas teórica as lentes da arquegenealogia de Michel Foucault
para refletir sobre elas. Observar os documentos e observar quem enunciava e sob quais
perspectivas esses discursos envolvidos nas tramas dos saberes e poderes eram
produzidos têm sido meu objetivo em minhas pesquisas para a elaboração desta tese.
Inicialmente, pensar a construção das subjetividades de mulheres indígenas era
refletir sobre uma elaboração forjada por enunciadores que dominavam os regimes de
visibilidade e enunciabilidade sobre elas, e dessa maneira construíram verdades do alto
de suas identidades ocidentais consideradas superiores. Como podemos compreender as
narrativas elaboradas por elas e sobre elas nos dias atuais? Essa será nossa empreitada
discursiva: organizar formas, à luz dos estudos do discurso e da perspectiva dos estudos
decoloniais, de compreender as narrativas empreendidas nos espaços da web por estas
mulheres indígenas. Neste lugar, elas presenteiam o público por meio de enunciados
verbais, visuais e audiovisuais com suas reelaborações identitárias e, a partir dessa escrita
de si apresentam na internet suas práticas de resistências contemporâneas.
44
Fonte:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1139357119557492&set=t.100004496437989&ty
pe=3
46
Os elementos da imagem deixam ver um corpo jovem, com adorno de penas azuis,
amarelas e vermelha ao centro. Este formato de cocar, hoje muito utilizado pelas mulheres
indígenas ativistas, na cultura de muitas sociedades indígenas, como dos Suruí-Aikewára
(NEVES; CORRÊA, 2012) e dos Tembé-Tenetehara (NEVES; CARDOSO, 2015), é uma
prerrogativa dos homens, os das mulheres, normalmente são menores, mas esta não é uma
regra que não possa ser flexibilizada entre eles.
O colorido do corpo de Célia Xacriabá traz os tons azuis e perolados, feitos com
cosméticos industrializados, no contorno dos seus olhos, formando uma sombra, e
espalhados no seu abdômen. O brilho de glitter azulado ganhou formas de grafismos
indígenas tanto em seu rosto, como no seu colo. As duas peças de roupa, assim como a
braçadeira, igualmente em tons de azul brilhante, afirmam o lugar de enunciação que ela
deseja marcar. Pela composição utilizada, o lugar de enunciação de Célia Xakriabá
assinala sim uma identidade indígena, mas uma identidade em movimento, que se
constrói nas fronteiras culturais, sem parâmetros fixos.
A partir do viés da semiologia dos detalhes de Ginzburg (1989) utilizado para
nossas análises, observamos na articulação dos elementos da imagem que nos mostra um
excesso de brilho e na indicação que está relacionada com a data da postagem realizada
em 05 de março de 2019, a relação com a data que coincide com o carnaval brasileiro.
Confirmamos esta hipótese com a intericonicidade de J.J. Courtine (2011), pois
consultamos nossa memória das imagens e inscrevemos o enunciado visual de Xakriabá
em uma série composta por imagens referentes ao carnaval. Neste trabalho arqueológico
o enunciado entra em uma rede de formulação com as imagens vistas que frequentam
nosso imaginário e produzem sentidos que deslocam e reposicionam culturas e
identidades. Nesta direção, Célia Xakriabá utiliza elementos de sua identidade indígena
em contato com a cultura ocidentalizada do carnaval e coloca na “avenida” das redes
sociais a situação da política atual brasileira.
O excesso de azul, nessa imagem, funciona como ativador da memória que
construiu representações em azul para o gênero masculino, suscitadas pela fala da
ministra Damares Alves no início do governo de Jair Bolsonaro em 2019. Por suas
posições controversas, que privilegiavam um discurso de extrema-direita nas redes
sociais, neste período, era comum usuários se referirem a ela como “Sinistra” da Família,
Mulher e Direitos Humanos.
Na postagem, o enunciado verbal “sou desobediente”, não deixa nenhuma dúvida
sobre sua posição discursiva. Em sua mão, ela exibe um desenho onde aparece a ministra
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diante de uma menina indígena de cabelos lisos e longos, com grafismos no rosto, a quem
ela estica os braços com uma blusa rosa. Essas duas cores, azul e rosa, representam no
discurso da ministra o binarismo.
Xakriabá, sobre “a nova era” brasileira, demonstra conhecer bem o discurso da
representante do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, muito visibilizada
internacionalmente como uma pessoa insana, entre outras razões, porque “viu Jesus na
goiabeira”. Na postagem fica claro que a ministra não a representa e que isso não lhe dá
o poder de ditar normas em direção aos corpos de meninas e mulheres indígenas. Os
discursos sexistas de Damares, alvos da “desobediência” de Célia, elaboram um certo
modo de ser mulher, indígena e politicamente atenta. O enunciado de Célia Xakriabá
inscreve-se em uma estética/ética que reflete uma prática refletida de resistência.
A partir dessa movimentação de discurso expressa nos enunciados de Célia,
podemos remontar à definição de Michel Foucault (2004, p. 268) sobre o cuidado de si.
O autor, referindo-se ao mundo greco-romano na Antiguidade, identifica na posição de
alguns sujeitos “o modo pelo qual a liberdade individual ou a liberdade cívica, até certo
ponto foi pensada como ética”. Ocupar-se de si mesmo, cuidar de si. Nesta direção, a
posição de ser “desobediente” é dizer não a um discurso que pretende reordenar as formas
de ser das identidades originárias. A subversão à ordem presente na narrativa de si de
Xakriabá representa que o cuidado de si implica também a relação com o outro, é o
exercício de uma ética que permite administrar os espaços de poder presentes nas relações
sociais.
Deslocando as análises de Foucault para pensar em como as mulheres indígenas
se constituem como sujeitas, podemos afirmar que esse exercício “não é sobre o fundo de
uma identidade psicológica, mas por meio de práticas que podem ser de poder ou de
conhecimento, ou ainda por técnicas de si” Foucault (2004, p. 236). A resposta de Célia
Xakriabá à Damares ainda nos faz refletir e compreender o enunciado como um recorte
no arquivo que expõe a história do presente. Além disso, ele expõe os jogos que ordenam
as verdades de uma época por meio dos discursos. Sobre estas questões discorre Neves-
Corrêa (2018, p. 25):
A pergunta que podemos fazer, então, é como recortar um pequeno
pedaço de um Arquivo, o domínio das coisas ditas, para contar uma
história do presente. Em seu célebre livro A ordem do Discurso,
Foucault nos apresenta sua visão sobre o perigo de tomar a palavra e
dos jogos que ordenam as produções de verdades por meio de discursos.
Foucault nos mostra que nada é dito por acaso, que há o que se pode
dizer e o que se deve calar. Ao trabalhamos nesta perspectiva, podemos
48
Neste sentido, esta tese sobre o ativismo de mulheres indígenas olha para
diferentes lugares da internet, pois cada ativista tem sua forma de expressão, de
constituição de seu ativismo e não podem ser restringidas apenas a uma forma de escrita,
elas se constituem de diferentes formas enunciativas que tomam espaço lugares distintos
da web. Deste modo, as narrativas destas mulheres carecem de uma compreensão sobre a
diversidade enunciativa realizada por elas.
Afinar o olhar sobre “espaços”, em busca de uma compreensão sobre eles, pede
que pensemos com Michel Foucault. De acordo com seus estudos sobre espaços
específicos construídos ao longo da história das sociedades ocidentais, ele nos alerta para
5
Este número refere-se a quantidade de amigos de Célia Xakriabá na rede Facebook.
50
o fato de que possivelmente não haja uma única cultura no mundo que não se organize
ou se constitua a partir de espaços heterotópicos. Estes espaços diferentes, considerados
por ele como lugares compreendidos como “uma espécie de contestação simultaneamente
mítica e real do espaço em que vivemos” (FOUCAULT, 2009, p. 416), nos fazem refletir
sobre como os seres humanos da modernidade vivem em contato com diferentes objetos
e temporalidades Gregolin (2015).
Em “Outros espaços” (publicado em 1967, reeditado na coleção “Ditos &
Escritos volume III” - 2009), Michel Foucault destaca dois tipos de heterotopias: as de
“crise” e as de “desvio”. Sobre as heterotopias de crise, podemos compreendê-las da
seguinte maneira:
Nas sociedades ditas "primitivas", há uma certa forma de heterotopia
que eu chamaria de heterotopias de crise, ou seja, que há lugares
privilegiados, ou sagrados, ou proibidos, reservados aos indivíduos que
se encontram, em relação à sociedade e ao meio humano no interior do
qual; eles vivem, em estado de crise. Os adolescentes, as mulheres na
época da menstruação, as mulheres de resguardo, os velhos etc.
(FOUCAULT, 2009, p. 416)
[...] é ela que vai permitir a reunião desses corpos, que outrora não
teriam espaços para se encontrar. É na WEB que encontraremos
histórias filmadas dos mais variados tempos, produzidos pelos mais
variados sujeitos: reportagens, documentários, vídeos amadores, vlogs,
cinedocumentários, selfies, vídeos de segurança, vídeos de denúncia e
mais uma infinidade de formatos que sequer foram renomeados ao
tempo em que escrevemos. Estas produções estão publicadas em uma
espécie de simultaneidade, de proximidade e de distância ao mesmo
tempo, seja nas redes sociais, nos blogs, nos grandes portais de
jornalismos e entretimentos. Trata-se, deste modo, de lançarmos um
olhar para a WEB como uma rede que ligaria todos esses espaços e
52
Essas narrativas nos permitem traçar uma rede, uma história que se liga
ao passado e ao presente através de narrativas dispersas, reunidas sob
os choques com o poder. Não pretendemos, porém, escrever uma
narrativa linear da historiografia dessas produções, nem tão pouco
visualizar os limites mais estreitos de suas conexões. A proposta é
contar uma história ou, talvez, fosse mais preciso dizer histórias do
presente dos corpos indígenas, mas através da dispersão destas
narrativas em torno de uma rede inteligível.
Estas reflexões assinalam o lugar de enunciação de onde olhamos para este novo
formato de narrativa das mulheres indígenas na web. São formas contemporâneas de
contar e de produzir subjetividades cada vez mais fraturadas e espraiadas.
Expostas mundialmente nos espaços heterotópicos da internet elas desvelam suas
lutas, vitórias, tristezas e formas fragmentadas de identidades, construídas nas fronteiras
entre as tradições indígenas e seus diálogos com o universo ocidentalizado. Estas
narrativas interagem com a cultura da convergência, atentas às transformações
tecnológicas e à importância de ocupar novos lugares de poder. As mulheres indígenas
ativistas assumem em postagens nas redes sociais formas cambiantes que conduzem o
leitor dessas narrativas a outros lugares na web, produzindo um efeito fragmentado ou
alinear a estas histórias.
Fonte: https://www.facebook.com/radioyande/videos/3036403369779490/
6
Link para o poema e canção “Nós Somos a Floresta” de Djuena Tikuna: https://youtu.be/jSicY_a20Fw
Fonte: https://www.facebook.com/photo?fbid=2980121285357705&set=pb.100000795879509.-2207520000..
55
mulher. Na área da educação, uma mulher, Nísia Floresta (Dionísia Gonçalves Pin, 1819-
1885), reconhecida pela luta de mulheres por espaços, é fundadora da primeira escola
para meninas no Brasil.
No século seguinte, as grandes cidades brasileiras, na esteira das novas exigências
mundiais, seguiam os passos e lidavam com as demandas e problemas impostos pelo
ímpeto que Revolução Industrial impunha ao mundo. Essa nova ordem mundial gerou
grandes transformações no modo de produção de mercadorias. Antes do surgimento da
indústria, a produção acontecia pelo modo de produção manufatureiro, isto é, um modo
de produção manual que utilizava a capacidade artesanal daquele que produzia. Assim, a
manufatura foi substituída pela maquinofatura.
Nesse cenário, além do baixo salário, os trabalhadores eram obrigados a lidar com
uma carga de trabalho extenuante. As mulheres das cidades recorriam ao trabalho em
fábricas, em sua maioria têxtil e buscavam melhores condições e regularização do
trabalho feminino, redução jornada e a abolição de trabalho noturno para mulheres. No
contexto de um Brasil urbano e dando continuidade a seu destino de desigualdades
sociais, as greves e manifestações de trabalhadores e trabalhadoras faziam parte da
realidade brasileira. Um destaque para a greve das costureiras realizadas nos anos de 1907
e 1917. Durante este período, a resolução para salário igualitário e a aceitação de mulheres
no serviço público foram lutas conquistadas pela Conferência do Conselho Feminino da
Organização Internacional do Trabalho.
Ao longo do século XX, o movimento de mulheres continua sua organização e em
1922, ano da famosa Semana de Arte Moderna, evento em que grandes nomes, incluindo
mulheres como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, entre outras artistas que fizeram parte
desse marco na produção artística nacional, é fundada a Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino. As principais batalhas dessa instituição eram o direito ao voto e o
livre acesso das mulheres ao campo de trabalho. Em 1928, é aprovado o primeiro voto
feminino. Celina Guimarães Viana, a primeira eleitora, era professora, residente na cidade
de Mossoró, estado do Rio Grande do Norte. Neste mesmo ano é eleita a primeira prefeita
no país, Alzira Soriano de Souza, em Lajes, também no Rio Grande do Norte. Contudo,
Alzira só permaneceu no executivo até o ano seguinte.
O sufrágio feminino foi conquistado durante o governo de Getúlio Vargas, em 24
de fevereiro de 1932. Todavia, o direito ao voto e à candidatura de mulheres somente
seria pleno a partir da Constituição de 1946. Um ano após o Decreto de 32, é eleita Carlota
60
que gênero é sobretudo uma construção sociocultural. Nessa direção, podemos nos fazer
a indagação proposta por Oyěwùmí (2004, p. 03):
Se o gênero predomina tão largamente na vida das mulheres brancas
com a exclusão de outros fatores, temos que perguntar: por que gênero?
Por que não alguma outra categoria, como raça, por exemplo, que é
vista como fundamental por afro-americanas.
Ao observarmos as manifestações de mulheres indígenas ativistas percebemos na
interseção entre suas cosmovisões e reinvindicações, que o direito ao território,
compreendido como fonte da vida tem sido o principal alvo das lutas dessas mulheres
indígenas, quer seja na web, nas manifestações pelas ruas ou em outros locais públicos.
Compreendemos por meio de nossas atentas observações interseccionais que no
cruzamento mulher indígena, o critério raça tem proporcionado aos povos indígenas, e
não somente às mulheres, imposições que definem sobre a existência de suas vidas e seus
territórios.
Perrot (2005) nos faz refletir sobre as instituições que estabeleceram o silêncio
das mulheres: “religiões, sistemas políticos, manuais de comportamento”. Além disso, ela
nos traz também os lugares que refletem esses silenciamento e até mesmo as ausências
de mulheres em espaços públicos e/ou privados: “a igreja, a sinagoga, a mesquita,
assembleias políticas”. Assim, Michelle Perrot nos mostra a perspectiva do silêncio e
exclusão das mulheres no ocidente.
reinvindicações de questões inerentes à gênero, sem dúvida. Mas, acima delas outras
emergem e são alvos primeiros das lutas para que mulheres indígenas possam continuar
a existir.
Hoje, as discussões teóricas sobre interseccionalidade compreendem um universo
mais amplo de mulheres (trans, intersex, lésbicas, mulher do Terceiro Mundo, indígenas),
mas a princípio, como anteriormente visualizamos, elas se organizaram a partir da
condição das mulheres negras e suas singularidades. Como reação à perspectiva endógena
das feministas brancas dos anos de 1960, que desconsideraram os processos de
subalternização das mulheres não brancas, movimentos sociais e intelectuais em diversos
continentes, inclusive no Brasil, propuseram formas de abordagens mais plurais para a
produção das identidades de gênero. Em linhas gerais, estas mulheres visibilizaram a
produção da diferença e da desigualdade entre mulheres envolvendo raça, classe social,
nacionalidade, religião e o binarismo heterossexual.
Nosso objetivo não é vincular as mulheres indígenas brasileiras a algumas formas
de feminismo(s), mas sim visibilizar em outros feminismos proposições sensíveis às
singularidades identitárias destas mulheres. Como veremos, diante deste caleidoscópio
teórico, existem mulheres indígenas que inclusive refutam o termo feminismo, por
relacioná-lo a teorias desenvolvidas por mulheres não indígenas que historicamente não
incluíram em suas lutas as opressões sofridas por elas.
importantes neste período, Holanda e Inglaterra. Para Mignolo (2017), essa perspectiva
cognitiva não é somente europeia, mas também daqueles que foram educados sob a
hegemonia do capitalismo mundial. O pensamento eurocêntrico naturaliza nossa
experiência de povos colonizados dentro desse padrão de saber- poder.
epistemológica, que tem por alvo desfazer hierarquias de saberes impostas pelos europeus
e seus cúmplices.
Uma maneira bastante singular de compreender a relação de mulheres que tecem
outras formas de viver no mundo e reelaboram suas relações com o universo que as cerca
vem da Índia, com o ecofeminismo de Vandana Shiva:
Para mim, ecofeminismo é, basicamente, primeiro reconhecer que há
uma confluência: do poder, da cobiça, do mercado, do capitalismo e da
violência. Então, primeiro é reconhecer isso e segundo é reconhecer
nosso próprio poder, porque o capitalismo e o patriarcado declararam
que as mulheres sejam passivas e que a natureza morra. O
ecofeminismo reconhece que a natureza não só está viva, mas também
é a base de toda a vida e que somos parte dela. E compreendendo que
nós, as mulheres, temos um grande potencial; mas um potencial
diferente, não violento, não de dominação e morte, mas sim de cuidar e
compartilhar. A criatividade e a compaixão das mulheres é possível em
todos os humanos, porque não creio no determinismo genético. Você
está viajando pela Índia numa jornada budista. É disso que trata o
budismo, que todos tenham compaixão. Então, este é realmente o poder
do ecofeminismo. (SHIVA, 2018)
Para esta intelectual indiana, o ecofeminismo insere a vida, gerada por mulheres,
no cerne do arranjo social, político e econômico. Outro ponto para a compreensão deste
feminismo, aponta para encruzilhadas muito bem demarcadas nas sociedades capitalistas.
Por exemplo, nas palavras da própria Shiva, capitalismo e patriarcado, colonialismo e
patriarcado como principais razões para a destruição do planeta. A confluência destes
elementos gera nas palavras desta autora a violência contra as mulheres, inclusive os
feminicídios, a violência contra crianças e idosos. “Este é o poder que vem da morte, o
poder de matar”.
mucho tiempo que en nuestros territorios de Abya Yala y en otros territorios, las mujeres
que han luchado contra el patriarcado que nos oprime, fueron vistas como incómodas,
para el sistema” (PAREDES, 2010, p. 37-38).
Julieta Paredes participa da Assembleia Feminista Comunitária de La Paz
(Bolívia) e da organização Mulheres Criando Comunidade. Ela também nos oferece a
definição desta forma de feminismo comunitário e de sua luta contra o patriarcado na vida
de mulheres indígenas. Paredes (2010) afirma que as bases deste feminismo entendem
que é errôneo confrontar ou erigir a partir dos direitos individuais. O que deve haver é o
olhar para os coletivos; a partir da comunidade que é lugar de identidade comum, de
memória ancestral. É possível identificarmos as bases deste feminismo fincadas em sua
relação com as necessidades da comunidade.
O enunciado Abya Yala é recorrente, quando se aborda o feminismo comunitário.
Esta expressão na língua do povo Kuna, originário da Serra Nevada, norte da Colômbia,
estabelece sentidos como “terra madura”, “terra viva” ou “terra em florescimento” e foi
registrada pela primeira vez em 1507. Contudo, seu uso somente se consagraria a partir
do final do século XVIII e início do século XIX, como símbolo de afirmação dos povos
desta região no processo de independência, fazendo um contraponto aos conquistadores
europeus.
Abya Yala marca um deslocamento epistemológico, institui uma forma própria de
denominar o território e ganha cada vez mais um sentido coletivo nos lugares em que os
povos originários se estabelecem com suas próprias cosmologias. A expressão constitui-
se como marca de autodesignação na superação à forma genérica imposta pelos povos
europeus, que durante o período de colonização das Américas instituíram a definição de
“índios” as diversas populações que nas Américas habitavam. Neste sentido, seu uso
político caracteriza o novo ciclo dos movimentos dos povos originários latino-
americanos.
Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2388847534531196&set=t.100004496437989&type=3
Foucault (2004, p.268). Esse ocupar de si, cuidar de si e conhecer-se não é compreendido
na escrita desse fazer ativista dessas mulheres de maneira egoísta, isoladamente. Em
sintonia com o que nos fala Foucault (2004), esse cuidado de si implica também a relação
com um outro, uma vez que, para cuidar bem de si, é preciso ouvir o outro, um mestre,
um guia, um conselheiro, esse cuidado sempre objetiva o bem dos outros. No contexto
das sociedades indígenas, os mais velhos são as vozes que falam sobre os saberes
ancestrais que orientam a olhar sempre em direção ao coletivo. Nesse sentido,
compreender a organização de mulheres indígenas requer observar os atravessamentos
73
Além disso, esses enunciados serão observados à luz de pensadoras indígenas que
promovem a compreensão, a partir da elaboração de teorias sobre mulheres indígenas.
O enunciado produzido por Sonia Guajajara em sua página no Facebook (figura
17), mostra o diálogo entre uma grande representatividade indígena e outras mulheres
não-indígenas. Guajajara relata sua participação no que ela nomeia como “roda de
conversa feminista”. A ativista aborda sobre a importância de mulheres ocuparem os
Fonte: https://www.facebook.com/soniaguajajara?hc_ref=ARQyJn96T3L8b0rUnmJ_jdJp4m-jJ1mkgp00r6M8p70o-
51lwImxq4tG9dTJR44iw24&fref=nf&hc_location=group
76
espaços político e também expõe sua preocupação com a demarcação territorial, não só
para os indígenas, mas também para as comunidades quilombolas.
Outro ponto para observação encontra-se na confluência entre mulheres e terra,
ambas compreendidas como reprodutoras da vida. Nesse sentido, Sonia manifesta neste
encontro feminista sua preocupação para o perigo da produção alimentícia do
agronegócio. Incentivada pelo Estado, esta forma de produção de alimentos em larga
escala, executada pelas grandes corporações, impõe a monocultura, devastando grandes
áreas de mata nativa e outras formas de biodiversidade. Além disso, o uso de pesticidas
químicos, chamados de “venenos”, empobrecem o solo e contaminam de forma letal os
alimentos, ocasionando graves problemas de saúde aos consumidores destes alimentos.
Sonia Guajajara leva para a “roda de conversa feminista” preocupações relacionadas aos
territórios, suas formas de ocupação e produção que, geralmente não fazem parte dos
debates feministas não-indígenas, todavia fazem parte das cosmovisões indígenas que
compreendem mulheres e os cuidados com o território e a vida.
O elo que Sonia realiza neste encontro faz relação com as ideias do Ecofeminismo
de Vandana Shiva, e a confluência apresentada por esta autora: poder, mercado,
capitalismo e violência. Guajajara leva para a discussão o conceito cosmológico de “que
a natureza não só está viva, mas também é a base de toda a vida e que somos parte dela”.
Em outra postagem, desta vez realizada por Márcia Mura na rede Facebook (figura
18), visualizamos um ato de mulheres indígenas na Praça da República em São Paulo. O
enunciado verbal expõe o seu posicionamento em relação ao feminismo de matriz
europeia. Nele, a indígena afirma: “Nosso feminismo não é ocidental”. Mura dialoga com
a ideia de que esta forma de feminismo não alcançou os setores populares ou
empobrecidos e, menos ainda os territórios e vidas indígenas.
O enunciado visual apresenta a participação das mulheres indígenas empunhando
uma faixa de tecido amarela, onde se destaca “Feminismo Comunitário”, ao lado o
símbolo do gênero feminino, seguido das palavras que anteriormente exploramos seu
sentido: “Abya Yala”.
77
O feminismo comunitário surge como uma proposta que pode se aliar às lutas
ativistas de mulheres indígenas brasileiras, pois ele fala de lugares como humilhação,
opressão, exploração das populações, ruína de recursos naturais e as sucessivas
apropriações das terras indígenas que somente os próprios indígenas podem falar. Além
disso, a compreensão da lógica patriarcal, como historicamente responsável pelas mazelas
dos povos originários aparece como um ponto de afinidades entre essas histórias de vidas
Fonte: ttps://www.facebook.com/marcia.nunesmaciel?fb_dtsg_ag=Adw2AoTrRNFkZrmBG1Kpq-
0pBxZ99kQuoWwByywJ9ZzxiA%3AAdwG_jLOdfbjR8h5qTlXb6m38_Kxc0Kpq5pZIgpPltWeCg Em 07-09-2014
Fonte:
https://www.facebook.com/XAMIRINHUPOTY?hc_ref=ARTDxI6Yp9FwExCcQnpPY6uAUyKAX1eynyTta77POuJBq4xorQr43UBZq
XRCRu5Y6hs&fref=nf&hc_location=group
diferentes categorias de mulheres têm ocupado ao longo da história. Como exemplo das
diferenças, são apresentados no enunciado a luta pela melhoria da saúde e a recorrente
batalha pela demarcação territorial, reinvindicações que ampliam a visada ativista de
mulheres indígenas para necessidades que se encontram além das pautas das questões de
gênero, e alcançam as comunidades indígenas de maneira geral.
Enquanto mulher indígena, desconheço a existência de um feminismo
indígena. Esse é um termo de origem europeia do século XIX que foi
ampliando suas reivindicações de acordo com as necessidades. Trazer
esse modelo para o interior indígena não faz sentido tanto quanto o faz
para as mulheres do mundo ocidental. A pegada de movimento das
mulheres indígenas é outra, e sempre tenho frisado isso. Não nos
reconhecemos nas pautas e nos moldes do feminismo ocidental, pois
atuamos como feminino indígena.
A nossa bandeira de luta é outra. Quando reivindicamos algo não é
somente para nós, mulheres, mas sim para a comunidade em geral. A
busca da melhoria da saúde e pela demarcação territorial são a mesma
coisa. Por mais silenciadas que as mulheres estiveram no pós-
colonização, hoje elas estão aí nas mais variadas esferas públicas, na
busca pelo bem-viver como garantia da sobrevivência e manutenção de
seu povo. (LINDA TERENA, 2017)
Fonte: https://www.facebook.com/pietra.dolamita
83
Pietra Dolamita Kuawá Apurinã faz parte do povo Apurinã, das aldeias Kamicuã-
Boca do Acre e Boa União-Pauíni- AM. Ela carrega na história de seu nome a marca do
apagamento das culturas indígenas e a prova de que os direitos dos povos originários têm
limites no Brasil. No momento de seu registro social, seu pai levou o desejo de sua família
de nominá-la como Poenã Kuáwá. Porém, ele foi impedido, o cartório se negou a dar a
criança um nome indígena e o persuadiu a trocar de ideia e a colocar na filha, de acordo
com a tradição católica, o nome da santa do dia de seu nascimento.
Fonte: https://www.instagram.com/pietradolamita/
Nascida em 13 de maio, Kuawá carrega até hoje nos documentos o nome de Maria
de Fátima Nascimento Urruth. Nome que ela se recusa a pronunciar e não o reconhece.
Acabou aceitando o outro nome que lhe foi dado, Pietra Dolamita, como é mais
conhecida. Kuawá tem formação em Direito e Artes Visuais (UFPel), Mestra em
Educação (IFSul) e em Antropologia Social (UFPel). Em sua dissertação intitulada
“Terra, Vida, Justiça e Demarcação: Mulheres Kaiowá e a luta pela Terra Indígena
Taquara, município de Juti, Mato Grosso do Sul, Brasil”, ela apresenta um estudo
orientado pela compreensão das tensões pela posse da referida terra indígena e seus
desdobramentos, sob orientação do que pode ser compreendido como uma antropologia
da violência, quando se refere a uma antropologia do colonialismo (APRURINÃ, 2018,
p. 08).
Pietra Dolamita está presente em três redes sociais da web: Facebook, Instagram
e Twiter. A figura 20, mostra seu perfil no Facebook. Neste espaço em que ela se define
como “Ativista Indígena Guerreira”, Pietra divulga sua formação acadêmica e tem a
liberdade de apresentar aos seus 3.987 amigos da internet, o que seria seu nome de
84
Fonte: https://www.facebook.com/pietra.dolamita/photos
Fonte: https://twitter.com/PietraDolamita/status/1238164281193046016/photo/1
dentro desta visão que outras pessoas não se encaixem nas caixas
mofadas. Uma visão que estabelece a segregação, a morte, e o
extermínio. (DOLAMITA, 2018, p. 13-14)
As perspectivas abordadas sobre gênero e feminismo que Dolamita, Oliveira e
Xakriabá apresentam em seus estudos interessam a esta pesquisa, pois trazem definições
orientadas pelas próprias perspectivas indígenas na luta contra os discursos
ocidentalizados que a partir de suas lógicas determinam olhares excludentes em direção
às mulheres indígenas de suas abordagens. Ler e ouvir as compreensões sobre gênero e
feminismo dentro das perspectivas de mulheres indígenas trazidas por elas nos faz pensar
sobre o silenciamento pelos quais passaram as identidades indígenas, especificamente as
mulheres. Desse modo, torna-se inevitável a reflexão sobre uma sociedade que controla,
seleciona e organiza discursos por se esquivar estrategicamente de sua pesada e temível
materialidade. Além disso, podemos nos questionarmos sobre “o que há, enfim, de tão
perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente?
Onde, afinal, está o perigo?” (FOUCAULT, 1996, p. 08)
No próximo capítulo observaremos a luta por representatividade empreendida por
Sonia Guajajara e Joênia Wapichana. Tomaremos conhecimento das diferentes formas de
lutas, organizações, ações de corpos nas ruas e a representatividade elaborada por elas
nos espaços da web.
***
Este capítulo foi cuidadosamente elaborado a partir de diferentes perspectivas de
mulheres e teorias sobre elas, traçando um panorama onde a diversidade de realidades
pudesse trazer diferentes pontos de vista para uma compreensão intercultural sobre
mulheres. Nessa direção, desejamos construir um delineamento teórico como o objetivo
de materializar uma descolonização das mentes para compreendermos melhor as
reinvindicações e posicionamentos das mulheres indígenas ativistas observadas a partir
de seus enunciados produzidos na web.
89
Fonte: https://www.facebook.com/soniaguajajara
Fonte: https://www.instagram.com/guajajarasonia/
Em outra rede social, o Instagram (figura 28), Guajajara conta com um público de
305 mil seguidores. Nesta rede social, o público formado por interessados na participação
de Sonia em eventos ativistas ou em seu diálogo com outros e outras indígenas é
contemplado com suas lutas pelo meio ambiente e também com os frequentes desenhos
realizados pelo artista internacionalmente conhecido, o afro-brasileiro Ibrahim
Nascimento.
A figura 29, apresenta o desenho desse artista, nesta representação Sonia
Guajajara e Célia Xakriabá aparecem com cocares, pinturas corporais, adereços indígenas
e empunhando um maracá, instrumento utilizado em festas e rituais. No vestido de
Xakriabá as inscrições “Racismo Mata”, elaboram um diálogo com o enunciado verbal
produzido por Sonia sobre a negligência do Estado em relação à criação de planos para o
enfrentamento da Covid-19 que assola as aldeias indígenas. O enunciado verbal de Sonia
94
Guajajara complementa: “A cada indígena que é morto, morre parte da nossa história e
voz coletiva é uma mão que deixa de segurar o MARACÁ.”
Fonte: https://www.instagram.com/p/CDSfvXvF1OA/
desenvolvem pelas mãos da colonialidade do poder que até os dias de hoje nutre o
dispositivo colonial.
Outra rede social da internet onde Sonia Guajajara é bastante atuante, com
postagens diárias é o Twitter (Figura 30). Levando em consideração a maneira dinâmica
como esta rede promove a interação de conteúdos para seus usuários, os mais de 89 mil
seguidores de Guajajara já podem ter informações sobre suas atividades desde a foto de
capa desta ativista nesta rede. Nessa imagem é possível atualizar-se sobre a participação
de Sonia em uma live a ser realizada em 09 de agosto. Em sua descrição na página inicial
dessa rede, a ativista apresenta também seu lugar de coordenadora executiva da APIB -
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Fonte: https://twitter.com/GuajajaraSonia
registrar, fazer as atas e tal. Minha vida inteira fiquei escrevendo ata de
reunião. (SONIA GUAJAJARA, 2018)
Fonte: https://twitter.com/GuajajaraSonia/status/1043320632795127808
sobre ser indígena ganhou os espaços da internet devido acusações sobre o suposto fato
da ativista “mentir” sobre seu nome. Registrada como Sonia Bone de Souza Silva Santos,
a então candidata pelo PSOL, concorreu ao pleito com sua identidade pública, que carrega
o nome de sua nação, os Guajajara, como sempre o fez desde durante sua carreira como
ativista das causas indígenas.
99
Apesar da controvérsia ter sido desfeita por conta da história pública de Sonia, e
também pelo amparo da lei do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que permite aos
concorrentes a utilização de apelidos ou os nomes pelos quais são conhecidos
publicamente, a legitimidade da origem Guajajara de Sonia foi questionada por grupos de
pessoas que souberam utilizar os discursos, muitas vezes racistas, que historicamente
“inventaram” e homogeneizaram as subjetividades indígenas.
O infeliz episódio coloca o racismo como um projeto do Estado, espraiado como
uma espécie de pandemia mundial motivada pela incapacidade de compreender e aceitar
a diferença. Esta maneira bastante recorrente de racismo contra as populações indígenas
é compreendida como uma espécie de “fossilização” cultural, ou seja, muitos não-
indígenas compreendem as culturas dos povos originários como algo estável, imutável e
estacionadas em uma época que remete aos enunciados produzidos pelos europeus que
discursivizaram as identidades destes povos. Podemos destacar como exemplos de
enunciados racistas: “você não parece índio”, “não é mais índio” ou, é “ex-índio”. Estes
enunciados, produzidos por não-indígenas, circulam sempre que os indígenas utilizam
celular, computadores, escrevem livros ou concorrem a posições como a de Sonia
Guajajara.
O ativismo de Sonia Guajajara, inscrito em seu talento para a articulação política,
desafia a compreensão dos não-indígenas a renovar-se a partir de outras elaborações
subjetivas, mais precisamente, no olhar em direção às mulheres indígenas. Além disso, o
talento desta mulher para as articulações políticas e denúncias sobre violações de
territórios, destruição ambiental e as diversas formas de violências sofridas pelos povos
indígenas colocam o corpo desta ativista na web ou nas ruas como um instrumento nessas
lutas.
Fonte: https://www.instagram.com/p/B_dlahHl4nt/
7
Desenho criado pelo artista visual Ibraim Nascimento. O perfil de Sonia Guajajara na rede Instagram
apresenta nessa postagem o endereço @ibraimnascimento, referente ao perfil desse artista nessa mesma
rede social.
103
Fonte: https://www.instagram.com/guajajarasonia/
regionais: Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espiŕ ito Santo
(APOINME), Conselho do Povo Terena, Articulaçaõ dos Povos Indígenas do Sudeste
(ARPINSUDESTE), Articulaçaõ dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), Grande
Assembleia do povo Guarani (ATY GUASU), Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (COIAB) e Comissão Guarani Yvyrupa.
No período de nove a treze de agosto de 2019, após a 15ª edição do ATL,
aconteceu em Brasília, a primeira Marcha das Mulheres Indígenas, que reuniu cerca duas
104
mil mulheres indígenas. Sob a temática “Território: nosso corpo, nosso espírito”, a
marcha suscitou questões fundamentais à luta indígena relacionadas à territorialidade.
Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil,
organização responsável pela marcha, tece as seguintes considerações sobre a
participação das indígenas na organização e participação do evento:
Fonte: https://www.facebook.com/Marchadasmargaridas/
discurso defendia uma “ordem” que estavas relacionada com os interesses hegemônicos
capitalistas.
As representações ativistas protagonizadas por mulheres indígenas, por outro
lado, nos mostram outras sensibilidades e outras formas de viver no mundo. As
manifestações nas ruas e os espaços da internet nos apresentam riquezas cosmológicas e
diferentes formas de existir, que relacionam territórios à vidas e culturas. Nesse caminho,
os “corpos em aliança”, como define Butler (2018, p. 16), elaboram estratégias
enunciativas que apresentam:
pensamento, aloja-se em tentar desvendar quais procedimentos populares fazem com que
uma sociedade não se ajoelhe por completo à capacidade opressiva de seu poder
controlador:
8
JOÊNIA WAPICHANA. Jornal Carta Forense (ed.). Direito Indígena. 2008. Entrevista. Disponível em:
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/direito-indigena/2652. Acesso em: 12 mar. 2020.
108
que acompanham esta Wapichana até hoje, pois, os conhecimentos adquiridos em Boa
Vista, complementam os valores que ela tem e defende.
Seguindo a perspectiva do pensamento liminar, incentivada por seus parentes e
imbuída da vontade de contribuir com justiça e trazer mudanças positivas para os povos
indígenas em Roraima, Joênia cursou a Faculdade de Direito. Esta experiência que
compreendemos como liminar, todavia, tem trazido para a vida desta mulher o
estranhamento de não-indígenas que, investidos do ponto de vista ocidentalizado, expõem
sua concepção identitária sobre indígenas que não concebem uma mulher indígena
ocupando posições sociais supostamente de pessoas não-indígenas. Nesta direção, ela nos
diz:
Muitos não acreditam que sou advogada, acham até impossível ter indígena
graduado. Outras vezes pensam que já que ingressei na escola, falo português,
fiz uma faculdade deixei de ser indígena, deixei de ser Wapichana,
contribuindo assim para uma série de preconceitos e discriminação contra os
povos indígenas (JOÊNIA WAPICHANA, 2008).
Fonte: https://www.facebook.com/Dep.Joeniawapichana/?ref=page_internal
Figura 37: Joênia concorre ao “Prêmio Congresso em Foco” A luta de Wapichana pelos direitos
indígenas, preservação da natureza contra o
avanço predatório do capital e por
representatividade para os povos originários
pode ser acompanhada a partir das três redes
sociais com seu nome que relatam o cotidiano
da deputada federal atuante incansável contra
as opressões sofridas pelos indígenas.
Na imagem que retrata a página inicial
de Joênia na rede Facebook (figura 36),
percebemos que não há “amigos”. Entretanto,
seus 19.629 seguidores podem acompanhar
suas atualizações. Em uma postagem nesta
rede social da web (figura 37), a atuação
histórica dessa Wapichana no Congresso
Nacional, leva o seu mandato a concorrer pela
2ª vez ao Prêmio Congresso em Foco, um dos
mais importantes prêmios da política
brasileira em três categorias: melhor
parlamentar, clima e sustentabilidade e defesa
da educação. A luta de Joênia recebeu outro
Fonte: https://www.facebook.com/Dep.Joeniawapichana/photos
reconhecimento, o prêmio das Nações Unidas
(ONU) de referência na defesa dos Direitos
Humanos no mundo – passando a fazer parte de um seleto grupo formado por
personalidades como a ativista paquistanesa Malala Yusafzai, o pastor norte-americano
Martin Luther King e o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela.
Joênia Wapichana também está presente também na rede social Instagram (figura
38), nesta rede que valoriza a imagem, a deputada federal contabiliza mil postagens e
mais de 34 mil seguidores. Sobre o valor simbólico em ser a segunda parlamentar
indígena e a primeira mulher a representar os interesses do povos originários, de maneira
bastante simbólica, ao assumir o poder, a deputada escolheu no Congresso Federal, o
gabinete de número 231 em homenagem ao artigo da Constituição mais importante para
ela e para os povos originários, aquele que “reconhece a organização social, os costumes,
111
as línguas, os credos e as tradições indígenas, assim como seus direitos originais às terras
que tradicionalmente ocupam”.
Fonte: https://www.instagram.com/joeniawapichana/
Fonte: https://twitter.com/JoeniaWapichana/media
Fonte: https://twitter.com/JoeniaWapichana
Fonte: https://twitter.com/JoeniaWapichana
41). Nessa rede composta por 8.710 seguidores, Joênia continua a mostrar seu trabalho
em Brasília. A mobilização da parlamentar nessa rede, durante o mês de julho de 2020,
girou em torno da aprovação do Plano Emergencial de enfrentamento à Covid-19. Em sua
batalha, essa ativista lutou contra a campanha de veto realizada por aqueles que inseridos
no poder em Brasília tentaram impedir as ações dessa proposta.
O enunciado verbal da postagem de Wapichana (figura 41) relata: “Vidas
Indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais importam! Precisamos da
derrubada de todos os vetos que prejudicam os mais vulneráveis”, dialoga com a imagem
inscrita em fundo negro e letras vermelhas que se posiciona contra os vetos a este projeto.
A postagem de Joênia nos fala do Projeto de Lei, conhecido como PL1142, que tramitou
115
***
A construção deste capítulo envolve a sensibilização da importância das narrativas
elaboradas por sujeitas indígenas em suas lutas ativistas. As escritas elaboradas por Joênia
Wapichana e Sonia Guajajara refletem o cuidado de si e do outro por meio da elaboração
de uma arquitetura enramada nas redes de empatia, solidariedade, luta e também a
construção de uma forma de conhecimento que nos revela o papel da representatividade
construída por mulheres indígenas. As narrativas dessas sujeitas na web mostram “um
exercício de si sobre si mesmo através do qual se procura se elaborar, se transformar e
atingir um certo modo de ser” (FOUCAULT, 2004, p. 265) em práticas de resistências
antifascistas. Nessa perspectiva, elas promovem a corrosão das linhas do velho
dispositivo e elaboram novas memórias decoloniais a partir de suas próprias redes de
representatividade, afetos e embates.
Ao observarmos as escritas de si na web, no papel de consumidores e produtores
de discursos, experienciamos, refletimos com Foucault e Jenkins sobre lugares
heterotópicos em meio a conexões que nos conduzem a narrativas dispersas nos mares
digitais. Com essas sujeitas ativistas percebemos em meio a cosmovisões e
reinvindicações, que o direito ao território, compreendido como fonte da vida tem sido o
principal alvo das lutas dessas mulheres indígenas. Nesse sentido, nos questionamos com
base em Oyěwùmí (2004, p. 03): “por que gênero? Por que não alguma outra categoria,
como raça, por exemplo? ”.
No próximo capítulo conheceremos as formas com que Célia Xakriabá, Valdelice
Veron e Márcia Mura subvertem as epistemologias eurocêntricas e fissuram as estruturas
do dispositivo colonial desenvolvendo saberes que envolvem a educação indígena e a
compreensão sobre gênero e mulheres indígenas.
117
A dimensão desse domínio pode ser observada nas forças que se impõe quando o
assunto é produção acadêmica. No Brasil, essas produções ainda estão fortemente
imbricadas com o nosso passado colonial, como por exemplo, a valorização da escrita
como materialização do conhecimento científico, a necessidade de provas de
proficiências em línguas europeias e a grande presença de autores europeus como forma
de validação das pesquisas. Estas imposições são amostras das relações de poder
desenvolvidas aqui, sedimentadas num processo de silenciamento e subordinação de
outras matrizes do conhecimento.
A estruturação dos saberes científicos, perpetrados pelas universidades ao longo
de suas existências em solo brasileiro tem sido estabelecida por meio da exclusão dos
conhecimentos das sociedades indígenas e dos afrodescendentes, uma lógica de herança
colonial por meio da contínua atualização de estruturas de dominação e dependência dos
saberes europeus considerados como superiores. Dessa maneira, sedimenta-se matriz
colonial de poder, da forma como nos apresenta Quijano (2011).
sujeitas produzidas dentro da teia social e histórica dos poderes e saberes dos quais nos
falam os estudos de Foucault.
A partir da história, podemos retomar o “programa de uma instituição que em um
determinado momento histórico, teve como função principal, responder a uma urgência”
Foucault (2015). Falamos aqui sobre empreendimento colonial iniciado no século XVI e,
ainda nos dias de hoje encontra espaços para seus discursos. Além disso, percebemos
também, sob quais regimes de verdades foram constituídas historicamente as sujeitas que
protagonizam as pesquisas desta tese, as mulheres indígenas. A afirmação de ordem
foucaultiana de que o sujeito tem uma gênese, uma formação, uma história, e que ele não
é originário, nos coloca diante da invenção discursiva realizada por enunciadores
europeus sobre as mulheres indígenas. Estas mulheres foram narrativizadas desde o início
da colonização pelo foco narrativo de quem estava no poder (NEVES, 2009).
A colonização europeia iniciada com as grandes navegações, emergência histórica
bastante significativa para a história dos povos que aqui habitavam, precisava de um
“programa” para cumprir sua “função estratégica dominante”. No sentido de organizar o
controle do vasto território e também de elaborar a construção das subjetividades, a Coroa
Portuguesa empreendeu em terras brasileiras “discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos” etc. Neste sentido, a partir deste conjunto heterogêneo que aqui chamamos
de dispositivo, produziram-se verdades sobre os povos originários. No entanto, Michel
Foucault também nos propõe que questionemos as verdades acabadas.
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros, suas políticas de verdade, quero dizer, discurso que ela
incorpora e que coloca para funcionar como verdadeiros (...)
(FOUCAULT, 2015, p.52)
Iniciamos esta seção com o relato-desabafo de Veron que nos apresenta a sua
realidade de mulher indígena em contato com uma realidade comprometida com a
produção de saberes eurocêntricos, a escola. A instituição escolar historicamente
implantada pelos europeus em solo brasileiro entra em choque com as realidades dos
povos indígenas, pois, não há nesta instituição intenção em dialogar com os saberes dos
povos originário, pelo contrário, como veremos mais adiante, ela é implantada no Brasil
comprometida com uma forma de conhecimento de matriz europeia. O enunciado que
abre esta seção nos fala sobre:
As práticas culturais dos povos indígenas que aqui viviam foram
colocadas dentro de uma hierarquia de racionalidades e os usos sociais
que faziam com que o verbal, na maioria das vezes imbricados com o
corpo (música, dança, grafismos, ritos religiosos), fossem
desqualificados diante das línguas europeias e dos processos
institucionais que elas agenciavam. (NEVES, 2018, p. 154)
refletia os ideais de europeus sem preocupações com as diversidades cultural e étnica que
formavam o território nacional.
A concepção do prédio escolar, no que se refere à sua estrutura física, apresenta
em sua gênese, uma arquitetura voltada para o controle dos corpos, por meio do controle
do espaço como enfatiza Gregolin (2015). Estes espaços onde o saber é produzido pela
vigilância, refletem o que diz Foucault em Vigiar e Punir (1999), sobre a disciplina
funcionando por meio de procedimentos muito específicos como o controle dos espaços
e dos corpos, organização do tempo, vigilância e a produção registrada de forma contínua
em cadernos, provas etc.
A figura 42 refere-se ao prédio do Grupo Escolar José Verissimo. Inaugurado em
7 de setembro de 1901, em Belém do Pará. Esta imponente edificação estava localizada
em uma área central da capital, onde historicamente se concentram as famílias de maior
poder aquisitivo desta cidade. Seu projeto implantava um novo modelo arquitetônico e
foi elaborado de acordo com as exigências da higiene e da pedagogia exigidos para
exercer as suas funções educacionais descritas anteriormente. É possível perceber nesta
imagem, a presença de crianças perfeitamente alinhadas e uniformizadas comandadas por
adultos. Vigilância e disciplina dos corpos constituíam-se como balizas fundamentais
desta instituição estrategicamente implantada em todo território nacional.
Mesmo nos dias atuais, a rede escolar brasileira tem se desenvolvido sob os
parâmetros das primeiras escolas implantadas em território brasileiro. Poucos são os casos
que fogem a esta realidade. Ao compreendermos os objetivos deste dispositivo e
compararmos com o relato de Valdelice (2018), que nos fala dos gritos da professora,
modo diferente de ensinar e os barulhos da cidade, entendemos que o dispositivo escolar
ao ser implantado não abarcava em seu projeto pedagógico as comunidades indígenas e
os seus modos de existência. Pelo contrário, os indígenas deveriam sujeitar-se a esses
saberes hegemônicos.
A experiência de Valdelice Veron com a instituição escolar a submeteu a maneiras
de desqualificação dos modos de vida indígenas. Nessa vivência, ela nos conta como
escola colonizadora não reconhecia os saberes inerente à sua comunidade e punia as
meninas Kaiowá em um processo importante em seu caminho para tornarem-se mulheres,
o rito de reclusão do Kunhãkoty:
Valdelice Veron
Na epígrafe que abre essa seção, observamos por meio das palavras de Veron, o
sentido do conhecimento fraturado e o seu valor na elaboração de uma educação que
Fonte: https://www.facebook.com/XAMIRINHUPOTY
Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2906049696130248&set=t.100001757387140&type=3
A figura 44, é composta por uma menina indígena ornada com cocar, pintura
corporal e roupa com penas e fibras coloridas, identificada no plano central da imagem.
Na imagem, esta menina está acompanhada por outro grupo de garotas que trazem no
corpo esses elementos bastante representativos das culturas originárias. Este enunciado
apresentado na rede social Facebook, reflete a constante preocupação de Valdelice Veron
com as novas gerações de indígenas.
Com a finalidade de compreendermos a relação entre essa imagem e a proposta
de desconstrução da escola colonizadora empreendida por Valdelice Veron, vamos
conhecer a partir de sua pesquisa de mestrado, os procedimentos de construção social
elaborado para formar as mulheres Guarani-Kaiowá. Esse modo de elaboração relaciona-
se à construção de gênero nas perspectivas desse povo que tem sua culminância no ritual
132
5.5.1 “Sabemos que não nascemos prontas, mas somos feitas! ”. O kunhãkoty e a
importância da mulher na educação Guarani-Kaiowá.
Veron nasceu à beira de uma estrada no município de Caarapó (MS), embaixo de
uma árvore. O momento do nascimento, realizado com a ajuda das Nhandesy e das
Maxuypy (mulheres mais antigas detentoras do conhecimento Kaiowá), representa para a
menina Kaiowá o início de uma longa e cuidadosa série de etapas que vão culminar no
Kunhãkoty, momento na puberdade, em que a menina entra em reclusão para preparar-se
para a vida adulta. Sobre o seu nascimento e o papel das mulheres em sua sociedade, ela
conta:
Minha mãe conta que quando eu nasci, as Nhandesy (guardiãs
espirituais) se assustaram porque meu cabelo era branco, então falaram
que minha bisavó Maxuypy Tomazia tinha voltado (reencarnado).
Fizeram rito de nominação, e meu nome veio Xamiri Nhupoty (Flor do
Campo). (VERON, 2018, p. 13)
Quando a mãe de Valdelice Veron completou nove anos de idade, sua avó
levantou cedo e falou para ela:
“Tapeendy, hoje você está fazendo nove geadas de vida e eu fiz esse
colar pra você”. Colocou-o no pescoço da menina e falou novamente:
‘A partir de hoje você não irá comer carne, durante seis luas, você só
pode comer pamonha, mandioca assada, batata doce assada, peixes e
xíxa’. E assim, todos os dias, minha mãe tomava banho com folhas de
ysy, folhas de nhandyta’y, folhas de cedro, folhas de ka’aroguene e à
noite passava óleo de mbuku’i no cabelo e no corpo, óleo de jacaré, óleo
de sucuri, óleo de mbore, óleo de jaratita. (VERON, 2018, p. 23)
Veron visibiliza um total de sete procedimentos, mas para efeitos de recorte para
nossa análise, foram expostos quatro deles. O quarto exemplo nos fala sobre a relação
entre “vida, terra e língua” e descreve que, “para ter vida deve haver a terra, local onde a
língua Kaiowá, o sopro da vida flui”. Esta definição de língua entra em diálogo com a
compreensão de Michel Foucault para esta materialidade, pois é possível enxergar na
relação entre a existência do signo, uma significação própria e sua relação com o espaço,
no caso Kaiowá, o território. É possível entrever uma importância e sentidos particulares
do tekoha que são ativados pela língua Kaiowá na geração do teko, específicas para este
povo. Ou, nas palavras de Foucault (1999, p. 132): “a linguagem é toda ela discurso, em
virtude desse singular poder de uma palavra que passa por sobre o sistema de signos em
direção ao ser daquilo que é significado”.
Michel Foucault discorre sobre o valor da linguagem em sua composição
discursiva, deixando-a envolvida pela língua quando nos fala de um “sistema de signos”.
O filósofo ressalta a importância central relacionada aos estudos da linguagem: o que
permite determinada significação e não outra, como nos assegura Gama Khalil (2014, p.
332).
A história de vida de Veron (2018, p. 06) nos elucida sobre a presença de quatro
línguas em sua constituição: “Sou falante das línguas Kaiowá, Guarani, Espanhol e
Português”. Cada uma destas línguas registra no corpo desta mulher atravessamentos. As
línguas portuguesa e espanhola são as línguas dos colonizadores. As línguas Guarani e
136
Figura 45: O tronco tupi
Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/L%C3%ADnguas
Kaiowá representam sua história, se relacionam aos seus modos de vida e espaços, como
é possível visibilizar na árvore que apresenta o tronco linguístico Tupi (figura 45). Nesta
árvore linguística, o Kaiowá, corresponde ao dialeto Guarani, da família Tupi-Guarani,
gerados a partir do grande tronco Tupi que é a base de outras nove famílias. O Kaiowá é
a língua de seu povo e guarda no seu interior a riqueza de sua cultura. O Kaiowá e o
Guarani marcam sua história étnica e de vida. A atitude metodológica empreendida no
cruzamento do seu Tekoha acadêmico, a vivência de Valdelice Veron em sua comunidade
e sua experiência na escola, coloca em movimento a língua e estabelece para seus signos
a relação com o seu espaço, construindo, dessa maneira, uma rede de significação própria
relacionada à sua formação discursiva. Nessa enredada relação e na atitude de articulação
de saberes, localiza-se a base da concepção de escola descolonizada empreendida por
Valdelice Veron.
A partir dessa concepção de construção de uma escola que valoriza a cultura e
respeita os corpos indígenas, Valdelice Veron empreende uma escola descolonizada onde
os aspectos como língua e cultura formam uma rede de saberes que fortalece as
identidades Guarani-Kaiowá.
Ao continuarmos o percurso do capítulo, observaremos a partir das postagens nos
perfis nas redes sociais das indígenas participantes dessa tese, como elas também, aos
137
Fonte: https://www.instagram.com/celia.xakriaba/
Em sua apresentação, Célia deixa marcada seu lugar de fala como mulher
Xakriabá em relação à língua portuguesa quando se apresenta como “membra”. A forma
138
Fonte: https://www.instagram.com/celia.xakriaba/
A imagem representada pela figura 47, um mosaico construído para esta pesquisa,
apresenta duas postagens em que Célia está acompanhada pelos compositores e
Fonte: https://www.instagram.com/celia.xakriaba/
Na próxima seção, observaremos um outro viés por onde Célia Xakriabá constrói
seu ativismo. Perceberemos, no exame da elaboração ativista desta indígena presente no
esforço da produção de uma educação intercultural, o estudo apresentado em Xakriabá
(2018), em que ela propõe um “amansamento da escola”. A partir de seu lugar de fala,
como indígena e educadora, Célia denuncia que a escola tem funcionado historicamente
como “ferramenta moderna de colonização”. No sentido de desconstruir o viés
colonizador dessa instituição, ela propõe “indigenizar a escola”.
Elaboramos a observação dessa perspectiva a partir da postagem criada por Célia
na rede social Facebook. Neste espaço de enuciação, ela articula a produção de uma
educação inigenizada à elementos como saúde, territórios e educação a partir das
singularidade dos povos indígenas. Nessa direção, Xakriabá nos fala sobre “kayaponizar”
ou “guaranizar” as práticas escolares. Em outras palavras, trazer para a escola indígena
maneiras próprias de concebê-la: “refletir sobre os saberes e os fazeres presentes no
território, analisando as experiências de educação indígena mesmo antes da presença da
escola e depois do amansamento dessa.” (XAKRIABÁ, 2018, p. 09).
Sob esta perspectiva, as metodologias de ensino específicas do povo Xakriabá,
“que passam, por exemplo, pelos conhecimentos tradicionais dos anciões de cada
comunidade, pelas formas geométricas das pinturas corporais de cada povo, ou ainda
pelos modos tradicionais pelos quais os males do corpo são tratados” (XAKRIABÁ,
2018, p. 130), seriam organizados por um calendário sociocultural regido pela lua que
orienta a maioria das práticas como plantio e colheita existentes nos territórios indígenas
e estão diretamente relacionadas aos processos de criação, fecundação e de vida como um
todo.
um fazer epistemológico Xakriabá. De acordo com Xakriabá (2018) elas devem ser
utilizadas no processo de ensino aprendizagem escolar indígena, pois, se comprometem
com práticas que propõem um deslocamento do aprender por meio do que é vivido pelos
Xakriabá ao logo da sua história e de seu território. Suas palavras possibilitam a
compreensão da relação entre narrativas, narradores, temporalidades, saberes e território:
A língua em uso revelada por Xakriabá é a portuguesa, língua que sua etnia, assim
como muitas outras fazem uso em território brasileiro. Porém, mesmo se tratando da
língua de seus colonizadores e não de uma língua de origem indígena, Célia a relaciona
com a história da vida Xakriabá e com o espaço onde seu povo habita. Isso a coloca em
144
posição de habitante desta língua com o poder de modificá-la de acordo com as suas
necessidades. A experiência Xakriabá com a língua portuguesa dialoga com o que
Foucault nos alerta sobre a importância da presença da “prática humana” e seus usos da
língua:
Se não houvesse o sujeito falante para retomar a cada instante a língua,
habitá-la no seu interior, contorná-la, deformá-la, utilizá-la, se não
houvesse esse elemento da atividade humana, se não houvesse a palavra
no próprio cerne do sistema da língua, como a língua poderia evoluir?
Ora, a partir do momento em que se deixa de lado a prática humana para
se considerar apenas a estrutura e as regras de coerção, é evidente que
se falha novamente em relação à história. (FOUCAULT, 2000, p. 285)
Xakriabá (2018) faz referência aos signos “barro”, “genipapo” e “carvão” por eles
estarem relacionados aos momentos rituais em que as tradições deste povo encontram-se
materializadas nestes corpos. São símbolos que contam a trajetória histórica desta etnia.
Eles são lembrados por meio de narrativas e utilizados em sala de aula. As narrativas
enfocam, por exemplo, questões como a liberdade das opressões e cerceamentos que por
muito tempo foram regras aos corpos desta sociedade. As narrativas podem estar
investidas nas materialidades da língua, presente na poesia, ou mesmo em materialidades
não-verbais como o desenho, a pintura corporal, ou até mesmo em possibilidades que se
materializam por meio da música e da dança, por exemplo.
Em relação à história que atravessa as temporalidades do “barro”, “do genipapo”
e “do giz”, ela nos ensina que o barro é a representação de um período em que:
não existia a presença da instituição escola, mas que já existia a
educação indígena, transmitida pelo entoar da palavra, na oralidade.
Portanto, não tinha escrita mas tinha memória (...) com o jenipapo
Genipapo, faço referência aos momentos rituais em que as nossas
tradições se materializam em nossos corpos. O povo Xakriabá e o
genipapo estabeleceu historicamente uma forte relação com as pinturas
corporais, representando o fortalecimento da nossa identidade como um
dos processos que configuram a nossa forma de fazer educação
indígena (não na escola, mas em nosso cotidiano). Quando nós nos
pintamos, em momentos específicos, acreditamos que não é somente a
pele que está sendo pintada, mas o próprio espírito. A pintura corporal
marca e demarca a identidade, neste contato entre o corpo e o espírito.
(...) Utilizo o giz para simbolizar a ressignificação da escola, a partir da
nossa concepção de educação, fazendo frente à escola que chega como
instituição externa, em um primeiro momento desagregadora de nossa
cultura. Somos Xakriabá e, após muita luta, podemos construir
narrativas em que contamos a nossa própria versão da história,
respeitando os processos próprios de uma escola diferenciada, que não
suprime o conhecimento e o modo de ser Xakriabá. O Giz é uma
referência ao que chamamos de "amansamento da escola"
(XAKRIABÁ, 2018, p. 61-62).
145
A construção subjetiva desse povo foi elaborada por meio da história em raros
escritos sobre essa nação considerada nesses documentos como povos sem religião, sem
lei, sem agricultura, sem aldeias e sem cultura material. A existência Mura na rede
147
Fonte: https://www.instagram.com/muramarcia/
Ou, nas palavras do próprio autor: “inteira conversão e reconciliação da grande e feroz
nação do gentio Mura”.
Logo na primeira parte, o prólogo, o autor adverte sob o seguinte subtítulo: “Para
servir de instrução aos que lerem”. Em seguida, o povo Mura é construído neste poema a
partir de adjetivos como “Feroz”, “indomável”, “cruel”. A “estrofe X” apresenta uma
amostra da elaboração discursiva forjada pelos colonizadores sobre a subjetividade desse
povo:
X
Algumas há Nações, que as mais excedem
No bárbaro costume, e crueldade,
Com que o esforço, e valentia medem,
148
Fonte: https://www.instagram.com/muramarcia/
indígenas, divulga campanhas de ajuda ao povo Mura e, apresenta o modo de vida desse
povo que tem nas águas uma forte relação cosmológica.
No mosaico realizado para fins desta pesquisa (figura 51), tendo como base dois
enunciados construídos na rede Instagram, observamos, a relação entre os Mura e as
águas. Inicialmente sobre a imagem à esquerda observamos Márcia e outros membros da
etnia Mura em contato com a natureza. O enunciado verbal desta postagem afirma a
capital de Rondônia, Porto Velho, como território ancestral Mura. Essa afirmação vai ao
encontro da ideia de que a construção das cidades invadiu os territórios indígenas. Sobre
essa imagem, Márcia tece a seguinte explicação na constituição verbal do enunciado:
“Fazendo o que nossos ancestrais sempre fizeram. Nós gostaríamos de viver mais esses
momentos, mas a violação de nossos direitos não permite.”
A imagem à direita exemplifica a relação com as
Figura 52: Perfil de Márcia no Facebook
altas das águas que historicamente delinearam os
deslocamentos das populações Mura. Contudo, nestas
novas emergências históricas, em um contexto urbano
construído por moradias fixas, não se torna possível a
mobilidade para os moradores que vivem às margens do
rio Madeira. Diante dessa situação essa imagem mostra
ruas e casas invadidas pelas altas do rio. Sobre essa
realidade que denota o abandono das autoridades estaduais
e municipais em relação a esta população, Márcia
denuncia em seu enunciado verbal sobre a falta de água
potável e vulnerabilidade a doenças por parte dessa
população.
Em seu perfil na rede social Facebook (figura 52),
Mura apresenta aos seus 3161 amigos sua formação
acadêmica e sua atuação profissional. Nesta rede social da
Fonte: https://www.facebook.com/marcia.nunesmaciel
internet, Mura mostra sua participação em um evento
acadêmico do “MURA - Grupo de Estudo e Pesquisa de
História e Resistência Indígena”, fundado em 2016, vinculado a Faculdade de História
(FACHTO) do Campus Universitário do Tocantins/Cametá (UFPA) (figura 50). De
acordo com as informações do site do CNPQ, o grupo segue a documentação colonial que
faz referência a grupos indígenas que seriam considerados como um entrave às ações
europeias nas regiões que se configuraram como Amazônia. Entre as ações promovidas
150
Fonte: https://www.facebook.com/gpmuraufpa/photos/t.100000405497771/1929309253799350
pelo Mura estão: eventos, oficinas, minicursos entre outras demais atividades acadêmicas
em diálogo com os campos de estudo sobre a história indígena.
O grupo Mura também dialoga com lideranças indígenas, no intuito de aprofundar
o diálogo e entender melhor a memória, as lutas e as reivindicações destes povos. As
quatro linhas de pesquisa do Mura “História, Cultura e Saberes Indígenas”; “Política
indígena”, “Indigenismo e Ensino”; “Populações Indígenas, Memória, Representação”;
“Sociedades Indígenas, Parentesco e Gênero”, possibilitam problematizar conceitos como
identidade, cultura, representação etc. Outro aspecto importante desse grupo de pesquisas
é permitir a enunciação dos próprios indígenas sobre suas histórias e não de acordo com
as perspectivas enunciativas de outros enunciadores.
Ao revisitarmos o conceito de eurocentrismo de Quijano (2011, p. 02) tomamos
ciência de que esse processo não existe apenas da perspectiva cognitiva dos europeus,
“mas de todos os educados sob sua hegemonia”, o advento da modernidade naturaliza de
maneira contínua a experiência das pessoas nesse padrão de poder. Nesse sentido,
sabemos que a universidade tem sido um dispositivo extremamente eficiente nessa visada.
Por outro lado, a inserção dos saberes indígenas desafia a colonialidade do saber nos
espaços acadêmicos e cria fissuras no dispositivo colonial, possibilitando visibilidade aos
indígenas na posição de enunciadores de sua própria história, autorizando dentro dos
151
Fonte: http://haroldobaleixe.blogspot.com/2010/04/belem-antiga-fotos-do-acervo-digital-de.html
objetivo de ser um espaço de grande porte para a elite da cidade contemplar espetáculos
do gênero lírico, como as óperas europeias apresentadas pelas grandes companhias deste
continente. Apesar de grande parte da população ser de descendência negra e indígena e
da força e presença de representações culturais como a música e a dança dessas matrizes,
essas expressões eram duramente repreendidas como formas badernas que atentavam
contra a tranquilidade das “famílias de bem” da sociedade. No estado do Pará, o carimbó,
lundu, retumbão, expressões artísticas populares, não poderiam em hipótese alguma
ocupar esse templo das formas europeias de arte.
A presença do Teatro da Paz, construído em uma cidade no coração da
Amazônia, elaborado aos moldes de um projeto arquitetônico inspirado no Teatro Scalla
de Milão (Itália), foi criado no intuito de satisfazer aos anseios de uma sociedade em uma
determinada época. Nessa senda, esse empreendimento nos fala sobre a historicidade dos
dispositivos, sobre “seus regimes de luz – mas é também a dos regimes de enunciado”
(DELEUZE, 1996, p. 01). Essa edificação visibilizava a materialização de uma
colonialidade europeia que absorvia e reproduzia na região amazônica brasileira as vozes
de uma enunciabilidade europeia.
157
Fonte:http://estudosliterariosnaweb.blogspot.com.br/2010/06/iracema-o-simbolo-do-brasil-e.html
Fonte: https://www.facebook.com/DJUENA
O seu perfil na rede social Facebook não divulga a quantidade de amigos que
fazem parte dessa rede. Porém, em sua descrição pessoal neste espaço, ela apresenta as
duas principais atividades que fazem parte de sua vida: o jornalismo e a música.
O mosaico referente às três últimas postagens publicadas entre os dias 08 e 09 de
agosto nesta rede social (figura 57), representa de forma bastante significativa sua
preocupação enquanto indígena, em reunir enunciados que abordem em sua militância a
preservação da vida dos povos originários ameaçada pela pandemia causada pelo Corona
Vírus.
Preocupada com o crescente número de indígenas contaminados e mortos por essa
doença, Djuena em sua página elabora três enunciados que nos apresentam como a arte
pode funcionar favoravelmente quando combinada com o ativismo. No mosaico que
construímos, temos na primeira imagem à esquerda, Djuena no plano central, vestida com
uma blusa que nos apresenta grafismos indígenas. No corpo, ela carrega colares feitos
com penas e sementes. Seu rosto traz a pintura de seu povo, os Tikuna.
160
Fonte: https://www.facebook.com/DJUENA
combate que deve ser travado não entre duas raças, mas a partir de uma
raça considerada como sendo a verdadeira e a única, aquela que detém
o poder e aquela que é titular da norma, contra aqueles que estão fora
dessa norma” (FOUCAULT, 1999, p. 72-73)
A leitura atenta do enunciado da figura 58, por exemplo, nos mostra um discurso
baseado numa suposta superioridade do enunciador. Esta “superioridade” constitui-se no
alicerce do que Foucault (1999) denomina de “racismo de Estado”. Esta forma de racismo
162
está relacionada a um tipo de purificação que “será uma das dimensões fundamentais da
normalização social” (FOUCAULT, 1999, p. 73). O racismo sob este ponto de vista se
apresenta como um abismo social que separa de maneira binária a sociedade. De um lado,
estariam indivíduos considerados “normais”, “superiores”. Do outro lado, compreendidos
como rivais da nação estão os outros, os que estão à margem, estigmatizados por alguma
diferença: racial, biológica, cultural etc.
O racismo de Estado deflagra um poder praticado de maneira difusa, “exercido
pela sociedade sobre ela mesma”, como nos apresenta Foucault. O atual presidente
compreende como o discurso do medo pode se transformar em ódio e, consequentemente
em coerção violenta, que será produzida pela exceção: “Uma parte do eleitorado se
simpatizou comigo na pré-campanha e na campanha tendo em vista a educação. Eu não
vi discussão sobre ideologia de gênero. Isso, no meu entender, não é mais para ser
discutido lá. O pai quer que o filho seja homem, que a filha seja mulher. Coisa óbvia,
né? Que respeite a cultura dos pais”, afirmou Bolsonaro. “Simpatizar” com ele representa
estimular o exercício da exclusão pelos próprios cidadãos, ou seja, “a sociedade agindo
sobre ela mesma” na prática desta forma de racismo.
No início de fevereiro de 2020, durante a cerimônia que transferiu o Conselho
Nacional da Amazônia Legal do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-presidência
da república, sem a participação dos governadores dos estados que compõem a região, o
atual (des)governo produziu a seguinte declaração sobre a relação povos indígenas e
território: “deixo bem claro que ninguém é contra dar devida proteção e terra aos nossos
irmãos índios, mas, da forma que foi feito, e hoje em dia reflete 14% do território
nacional demarcado como terra indígena, é um tanto quanto abusivo”. A declaração foi
dada durante uma cerimônia realizada no dia onze de fevereiro no Palácio do Planalto.
A definição de “abusiva” em relação à demarcação das terras indígenas também
estimula o racismo de Estado, por parte da população que dialoga com os discursos
Fonte: https://veja.abril.com.br/politica/o-indio-e-cada-vez-mais-um-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro/
163
Fonte: https://djuenatikuna.com/
Em outro espaço heterotópico da web, Djuena nos apresenta seu trabalho que
envolve arte, cosmologia indígena e ativismo: o Portal de Notícias gerenciado por ela
própria (Figura 59). Neste portal, há notícias dos acontecimentos sobre o movimento
indígena, atividades culturais, além de links que levam a respeitáveis páginas de
importantes organizações indígenas como Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros
(APIB) e o Conselho Indígena Missionário (CIMI) e a web Rádio Yandê.
165
Figura 60: perfil de Djuena no Instagram
Fonte: https://www.instagram.com/djuena_tikuna/
Fonte: https://linktr.ee/djuenatikuna
O ativismo indígena elaborado por essa artista continua sua luta na internet em
sua página na rede social Instagram (figura 60). Nesse espaço, Djuena divulga a partir de
um link, para a página da rede Linktree, sua participação ativista na web (figura 61).
O Linktree consiste em um serviço online para Instagram que permite divulgar os
links de todos os perfis e sites de seus usuários em um mesmo lugar. A ferramenta é muito
utilizada por influenciadores e empresas no sentido de promoverem suas contas em outras
redes sociais, como Facebook ou Twitter. No caso específico de Djuena Tijuna, este
166
serviço é utilizado para divulgar sua arte por meio de suas redes sociais e também para
arrecadar fundos para a ajuda dos povos indígenas (figura 40).
Além destes espaços, a voz dessa ativista que utiliza a música para apresentar os
modos de vida e reivindicações dos povos indígenas também encontra na plataforma
digital de compartilhamento de vídeos, YouTube (figura 62), um lugar para se tornar
ouvida pelo mundo. Nessa plataforma, Djuena divulga sua arte e outras questões relativas
à cultura indígena para mais de 2 mil pessoas.
O vídeo representado pela figura 62, disponível nessa rede, refere-se à imagem
da apresentação do espetáculo de Djuena, realizada em 2017, no imponente Teatro
Amazonas, localizado na capital Manaus (figura 63). Esse teatro, assim como o Teatro da
Paz, foi erguido no momento histórico compreendido como “Período da Borracha”.
Realizamos nossa compreensão discursiva sobre este prédio a partir de uma leitura dos
dispositivos realizada por Deleuze (1996), um instrumento representativo das linhas de
visualidade e enunciabilidade do dispositivo colonial.
Fonte: https://www.youtube.com/user/djuenatikuna
167
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=4-RNVE007j0
cantando e dançando ao som de suas canções, Djuena Tikuna entoa o grito: “Demarcação
Já! ”.
A apresentação de Tikuna no Teatro Amazonas também pode ser analisada como
uma ação ativista. Nessa incursão do corpo indígena como suporte para a compreensão
de suas cosmologias e lutas, Djuena Tikuna elabora um ativismo que leva a música a
ocupar as brechas dos espaços empreendidos nas linhas de visualidade e enunciabilidade.
Dessa maneira, ela contribui para a fissura dos dispositivos.
Na próxima seção, compreenderemos como a luta ativista nas redes sociais de
Daiara Tukano que envolve a tinta de jenipapo e as narrativas de seu povo pode nos levar
a poéticas de resistência indígenas.
Fonte: https://www.facebook.com/daiaratukano/
experiência. O universo é feito de três camadas básicas: céu, terra e "mundo inferior" 9.
Cada camada corresponde a um mundo em si, com seus seres específicos e podendo ser
entendidos tanto em termos abstratos como concretos Instituto Socioambiental (2020).
A comunicadora Tukano possui perfil nas redes sociais Facebook, Instagram e
um canal na plataforma de vídeos YouTube. Na rede Facebook, onde mantém uma página
de pessoa pública composta por publicações de diversas ordens, nos chama atenção, logo
Figura 65: Invasão na Rede Social de Daiara Tukano
Fonte: https://www.facebook.com/daiaratukano
na entrada nesse espaço, o desenho realizado por essa artista, intitulado “Avó do Universo
- 2016”. Ao acessarmos essa imagem a partir de um “clique”, observamos ao centro, a
representação de uma figura feminina, cercada por elementos da natureza, como serpentes
e ramos de folhas. A “Avó do Universo”, nessa imagem (figura 64), apresenta-se com seu
rosto e parte do busto, inteiramente pintados por grafismos indígenas. Além disso, abre-
se para o visitante um link para a página de Tukano no Instagram, utilizada por ela como
uma galeria digital para a apresentação de seus trabalhos.
9
Mundo inferior para a cosmologia dos Tukano corresponde ao Rio dos Mortos debaixo da terra, o barro
amarelo debaixo da camada do solo onde enterram-se os mortos, ou o mundo aquático dos rios subterrâneos.
170
jornalística de uma das edições do Acampamento Terra Livre (ATL). A partir desse
acontecimento, sua atividade como correspondente se desenvolve em sintonia com a
divulgação de diferentes modos de vida realizada por esta poderosa ferramenta. Daiara
no papel de comunicadora nos apresenta estratégias de resistências indígenas na web a
partir da educação, comunicação, arte e ativismo. Além disso, ela oportuniza ao grande
público, por meio de suas redes sociais, a visibilização de produções culturais como o
cinema e a música, entre outras, produzidas pelos povos indígenas brasileiros.
Compreendemos a participação desta ativista e seu envolvimento com a
comunicação comprometida com a diversidade cultural e étnica dos povos indígenas,
como um comprometimento com a construção de redes de esperança, “compartilhando
dores e esperanças no livre espaço público da internet” (CASTELLS, 2020, p. 10). Nesta
conexão, seu espaço de fala ajuda na formação de redes que fortalecem as relações entre
diferentes povos e modos de ser que se auto identificam como “parentes”. Conectando-
se, eles e elas concebem diversos projetos a partir de suas multiplicidades.
Fonte: https://www.instagram.com/daiaratukano/
A pintura produzida por Daiara Tukano desde sua infância, pode ser
compreendida como uma forma de arte contemporânea e, pode entrar em conflito com a
definição ocidental de arte, pois costuma-se atribuir a esta expressão compreensões
europeias. Em diálogo como as cosmovisões indígenas, a superfície da tela de acordo
com Tukano, em cores que muitas vezes são diferentes das encontradas na floresta,
servem como suporte para um diálogo realizado a partir da fratura entre sua vivência
tradicional e suas experiências nos centros urbanos onde ela passa grande parte de seu
tempo.
A ativista traz a comunicação e a pintura como formas de elaboração de um
ativismo que proporciona a desconstrução do paradigma eurocêntrico que coloca homens
e mulheres de diferentes etnias indígenas como portadores ficcionais de uma identidade
Fonte: https://www.instagram.com/daiaratukano/
apresentada pela poética visual, conta que na primeira camada, o quarto de quartzo
branco, morava a avó do universo; na segunda camada, ou “quarto das pedras velhas”
morava um segredo, pois ninguém sabia o que havia ali; na terceira camada, ou esteira de
miriti amarela é o mundo da superfície terrestre, onde vivemos; acima do nível onde
vivemos encontra-se um lugar chamado de quarto dos brincos do Sol, dos espíritos e
santos. Por último, a maloca do avô da terra.
A narrativa de Daiara apresenta elementos da cultura cristã como as ideias de
santos e Deus. Por outro lado, ela abriga um lugar para elementos como os avôs e avós
que nas cosmologias indígenas são personalidades que representam a sabedoria e a
experiência. Nessa história sobre a criação do universo, esses elementos compõem as
bases da materialidade pintada por Daiara.
Na próxima seção, Márcia Kambeba apresenta sua poesia ativista. Nesse
trabalho, ela apresenta um panorama sob a perspectiva das sociedades indígenas que nos
fala sobre a invasão das terras indígenas desde o início da colonização até os dias atuais.
Além disso, Kambeba apresenta o papel das resistências elaboradas pela união indígena.
Fonte: https://www.instagram.com/marciakambeba/
profissionais, acadêmica, seus talentos artísticos e também sua participação como pré-
candidata ao posto de Vereadora na cidade de Belém do Pará, nas eleições do ano de
2020. Na plataforma de compartilhamento de vídeos, YouTube, Márcia apresenta aos
quase 700 inscritos nessa rede, diversos vídeos que mostram todos esses talentos.
A partir da leitura dos elementos que compõem a imagem da “foto de capa” do
perfil de Márcia Kambeba no Facebook, gostaríamos de realizar nossas análises tendo,
175
Fonte: https://www.youtube.com/c/MarciaVieiradaSilva/videos
Fonte: https://www.facebook.com/marcia.vieiradasilva1
paradigma indiciário de Carlo Ginzburg (1989). De acordo com esse aporte teórico,
podemos estabelecer a relação entre imagem e a capacidade humana de produzir e
representar indícios e sinais. Nessa direção, podemos compreender que a imagem é
composta por elementos infinitamente pequenos, que por vezes podem passar
despercebidos. Todavia, esses “detalhes”, geralmente, fogem aos olhos que costumam se
voltar para elementos que fazem parte da centralidade da imagem. Por outro lado, tais
constituintes da imagem, em sua singeleza, podem ser considerados como filigranas dos
176
por aqueles que narrativizaram a história brasileira como entraves ao progresso do país,
ou como os estranhos, selvagens e sem cultura que em nada contribuem para o país.
Outro ponto abordado pelo poema fala da imposição da cultura ocidental aos
povos indígenas, modificando seus modos de existência. Na direção de recuperar seus
territórios e de preservar suas cosmologias, a escritora mostra a união dos Kambeba,
Macuxi, Tembé e Kocama, povos amazônicos na luta pelo direito à vida. Márcia finaliza
com a ideia de conexão entre os povos indígenas expressa no desejo de “Formamos uma
aldeia de irmãos”. Sobre o pensamento de união e conexão entre indígenas, o poema de
Kambeba dialoga intensamente com a tessitura dessa pesquisa. Nessa realização, este
espaço de pesquisa apresenta as conexões proporcionadas por meio da web, e o poema,
em sua rede de palavras, versos e estrofes enreda as nações indígenas por meio do talento
de Márcia.
A compreensão sobre a produção literária nas escolas e academias, locais onde
essas produções circulam e costumam ser analisadas à luz de teoria literária canônica,
geralmente não contempla a literatura produzida por indígenas. Ao refletirmos com
Mignolo (2003) sobre o estabelecimento das línguas europeias como as línguas oficiais
da ciência, a partir da colonialidade do poder, nos posicionamos criticamente em relação
aos espaços em que a literatura indígena produzida a partir de fraturas, tem ocupado nos
espaços dos saberes acadêmicos. Neves (2018, p. 153-154) nos ajuda a compreender e a
nos questionarmos sobre a produção literária indígena no continente americano.
Figura 71: União dos Povos chamamos de literatura indígena e que abrange diversos
gêneros, pode futuramente ser compreendido como o
romance ou a obra autobiográfica de Márcia Wayna
Kambeba, ou ainda uma outra categorização, que não
obedeça à teoria canônica e atenda às singularidades
indígenas.
Não pretendemos aqui criar uma definição para o
trabalho de Márcia Kambeba, nem de outro autor ou autora
proveniente das culturas originárias. Desejamos apenas
visibilizar essas produções aos olhos da comunidade
acadêmica, assim como as outras formas de arte que
compreendemos atualmente em uma poética das margens.
Ao realizarmos a análise do enunciado visual
produzido na rede social Facebook, visualizamos o corpo
da mulher indígena enredado historicamente pelas redes de
poderes e saberes, em posição de destaque na produção dos
saberes referentes à arte. O objetivo dessa compreensão é
trazer à tona o lugar de destaque que deve ocupar a mulher
escritora que vem nos falar a partir das várias fraturas
realizadas na produção de seu trabalho sobre a beleza de
Fonte:
sua cosmologia e de suas lutas.
https://almaacreana.blogspot.com/2018/06
/poemas-de-marcia-wayna-kambeba.html
***
Dijuena Tikuna, Daiara Tukano e Márcia Kambeba trazem em suas poéticas das
margens elementos como o corpo, o lugar de origem desse corpo, o discurso desses povos
e a produção de conhecimentos indígenas que nos apresentam panoramas que constituem
as poéticas das margens produzidas por essas mulheres indígenas. Estas perspectivas
revelam, nas palavras de Bessa-Oliveira (2018, p. 56):
Paisagens biogeográficas como proposta epistemológica outra que leva
em conta, por exemplo, o bios do sujeito e o lócus geográfico de
enunciação (crítico, teórico, artístico, dos discursos, das produções do
conhecimento e cultural) e, por conseguinte, as diferentes narrativas que
estão inscritas nesses corpos (lugares).
enunciabilidade, mas que é fissurado pelos saberes dessa indígena, em conjunto com as
narrativas de Daiara Tukano, materializada pelas visualidades construídas pelo jenipapo
e a poesia de resistência indígena de Márcia Kambeba, elaboram as poéticas das margens:
formas de pensar estéticas a partir de outras compreensões de arte, “para além do conceito
construído sob o padrão de arte ocidental que se perpetua até os dias de hoje” (BESSA-
OLIVEIRA, 2018, p. 56).
O fazer artístico, ou as “epistemologias fronteiriças” desafiam as imposições de
discursos sobre arte e conhecimento e nos apresentam “paisagens descoloniais” realizadas
por indígenas. As poéticas das margens nos apontam para a seguinte reflexão: se antes os
indígenas eram discursivizados pela arte de origem europeia e não podiam ocupar com
seus conhecimentos os espaços de visibilidade e enunciabilidade, hoje os discursos dos
indígenas presentes em suas produções artísticas invadem esses espaços criados para dar
visibilidade ao dispositivo, como os teatros e as telas e oportunizam outras formas de
subjetividades indígenas materializada em uma poética das margens.
180
outro lado, a pesquisa que observa as descontinuidades históricas, consegue por meio da
visibilização dos dispositivos, o desvelamento dessas práticas que, mesmo nos dias atuais,
depois de superado o processo de colonização, se desenvolvem por meio da colonialidade
que ainda pulsa de maneira latente no pensamento latino-americano. Esta forma de
construir pesquisa ainda torna possível compreender as maneiras como foram edificadas
as estruturas de opressão, observadas por meio do dispositivo colonial, assim como, as
formas de sedimentação proporcionadas pelas fissuras nas linhas desse dispositivo,
provocadas por sujeitos e sujeitas em posse das ferramentas que auxiliam na escrita de
suas próprias narrativas
Fonte: https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/08/12/demarcacao-de-terras-indigenas-reduziu-o-
desmatamento-na-amazonia-diz-estudo.ghtml
182
Fonte: https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/08/12/demarcacao-de-terras-indigenas-reduziu-o-desmatamento-na-amazonia-diz-estudo.ghtml
áreas verdes que resistem graças aos esforços de diversas vozes, entre elas, a dos povos
indígenas.
As vozes das indígenas ativistas que tornamos visíveis nesse espaço de pesquisa
envolvem-se em diversos movimentos e lutas. Entretanto, na compreensão das vozes de
mulheres indígenas, devemos ter o pensamento norteador alicerçado pelo discurso da
diversidade. Apesar da grande diversidade que envolve a definição “mulheres”, há
aproximações e distanciamentos com grupos formados por outras mulheres. No sentido
das pautas comuns, temas como a violência sexista, o aborto e a Marcha das Mulheres,
agregam mulheres indígenas e outros grupos de mulheres no desenvolvimento diálogos e
reivindicações.
Por outro lado, a heterogeneidade deve prevalecer, pois quando falamos em
movimento de mulheres, pensamos nas formas de feminismos. A reflexão sobre a questão
do feminismo relacionado às mulheres indígenas deve considerar o fato de muitas delas
não conhecerem o feminismo ou não assumirem a condição de feminista. Apesar disso,
esse fato não as retira da luta pela defesa dos seus diretos e de seus territórios, alvo
principal de suas lutas, pois sem território não há vida como elas afirmam. A luta de
mulheres indígenas aponta para diferentes caminhos que refletem necessidades e
realidades heterogêneas quando se pensa “mulheres indígenas”. Nessa direção, o uso de
um conceito de origem ocidental, como o “feminismo”, para defini-las, pode ser
compreendido como uma forma continuada do processo de colonização, como
visibilizamos a partir das próprias indígenas que fazem parte dessa pesquisa.
As batalhas das indígenas por representatividade como forma de constituição de
lugares de acolhimento das vozes dessas mulheres, compreendem a academia como um
espaço onde a partir da produção do conhecimento, elas possam agir na defesa de seus
direitos. Todavia, apesar a escassa produção acadêmica voltada para pesquisas sobre a
realidade de mulheres indígenas representa um lugar que se encontra em crescimento. O
início da compreensão da universidade como espaço de empoderamento para essas
mulheres, deve-se ao desenvolvimento de políticas de inclusão social, que possibilitaram
a muitas dessas indígenas a incursão nestes espaços de produção de conhecimento.
Conscientes da importância dessa inclusão, mulheres indígenas ativistas em seus
movimentos, lutam por esses lugares por meio da defesa da continuidade dessas políticas
públicas.
Nosso objetivo geral em observar as práticas de resistências de mulheres indígenas
divulgado através da circulação de imagens e projetos étnico-políticos para um grande
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