O Guardiao Das 7 Cruzes - Rubens Saraceni

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0 Guardião das

Sete Cruzes
T
arde da noite, um senhor de avançada idade, que aqui chamaremos
de Guido, acordou sobressaltado por causa do horrível pesadelo
que tivera.
Ele se vira lançado numa torrente escura onde rostos desfigurados ou
deformados o olhavam acusativamente, culpando-o por suas desgraças e
infortúnios.
Este não havia sido o primeiro desses pesadelos assustadores, já que
ultimamente mal conciliava o sono. Sentia-se lançado em meio aos mais
assustadores horrores.
Guido, com certa dificuldade, sentou-se na beira do leito, serviu-
se de uma taça de água e, enquanto a bebia, começou a refletir sobre sua
vida.
Lembrou-se de si mesmo quando tinha uns poucos anos de vida. Viu-
se diante do Papa... que o abençoou e distinguiu-o com carinhosos beijos
nas faces.
Aquele fato marcou-o muito e foi fator decisivo quando, com doze
anos, o pai sentenciou:
— Guido, meu filho, serás um Papa também!
— Eu não quero ser um Papa. Vou ser um soldado como Gino.
— De jeito nenhum. És muito inteligente para ser um simples soldado.
Nasceste predestinado a ser grande, muito grande!
— Papai...
— Não se discute mais. Amanhã mesmo vou confiar sua educação ao
monsenhor Giuseppe de Pádua, que te tomará em um ótimo diácono em
pouco tempo. Com ele te orientando, no futuro nossa casa estará represen-
tada em Roma.
— Papai...
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Guido olhou para cada um daqueles nobres sacerdotes e tentou des-


cobrir qual deles havia ordenado a morte de seu sobrinho, que, na verdade,
era seu filho, já que seu irmão era mais estéril que o deserto.
Sim, Gino quando veio para Roma já estava casado há vários anos e
não tinha nenhum filho. Mas bastou a afogueada cunhada de Guido fla-
grá-lo nos braços da tia Conchetta e exigir a mesma atenção em troca do
silêncio, para engravidar e dali a nove meses nascer Felipe, seu sobrinho
envenenado há cerca de dois meses.
Gino, ou acreditou que finalmente iria ser pai, ou fingiu não perceber
como sua fogosa esposa assediava o irmão padre, que o compensava dan-
do-lhe a oportunidade de participar ativamente da política da Igreja com
sua sanguinária espada e sua desmedida ambição de poder.
Os dois entendiam-se muito bem, e ambos serviram a diversos papas
antes do próprio Guido ser eleito Papa. E a tia Conchetta, que acobertara
toda a sua fraqueza?
Quantos erros! — pensou ele, enquanto examinava o rosto impassí-
vel de seus mais íntimos auxiliares.
E quanto a eles?
O que poderia dizer a favor daqueles homens frios e calculistas no
dia de seus juízos finais?
Nada que os livrasse dos infernos.
Qual deles teria ordenado a morte de Felipe?
Guido já vinha se fazendo esta pergunta há dias e não obtinha respos-
ta. Mas o culpado era ele mesmo, pois alimentara os mais astutos, ambicio-
sos e falsos com as regalias do poder.
A reunião encerrou-se quando ele concordou em só anunciar sua re-
núncia durante o concilio, programado para dali a dois meses.
Mas aqueles homens ambiciosos, mal deixaram a reunião secreta, já
começaram a articular um sucessor... e a enviar emissários muito bem ins-
truídos aos seus protegidos ou protetores espalhados pelo “mundo católico”.
Guido, apesar de ter falhado no seu desejo de ver seu sobrinho coroa-
do, havia colocado um pouco de ordem nas disputas entre as muitas fac-
ções existentes no seio da própria Igreja.
Ele, duas semanas depois, já não suportando os pesadelos, retirou-se
para as proximidades de Roma, onde se recolheu para orações e medita-
ção. Mas, na segunda noite, o pesadelo foi tão assustador que uma síncope
cardíaca o matou.
Sua sucessão foi antecipada e logo um de seus mais dedicados auxi-
liares, o cardeal, era eleito o novo Papa. E não reinaria por mais de al-
guns meses... mas isto não nos interessa, pois aqui só quisemos mostrar o
quanto é difícil a condução das coisas humanas e das coisas de Deus na
terra.
Por coisas humanas, entendemos as coisas que os homens devem fa-
zer: suas ações, decisões, opções, etc.
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Por coisas de Deus, entendemos isso: a religiosidade, a fé, a doutrina,


a liturgia, etc.
Nem sempre as coisas humanas se harmonizam com as coisas divi-
nas, ou vice-versa, em se tratando de tão vastos domínios, como era o caso
da Igreja naquela época em que o poder civil e o religioso se confundiam,
numa simbiose nociva para ambos.
Por isto não achamos correto criticar as decisões que pessoas alçadas
ao topo das grandes correntes humanas são obrigadas a tomar no calor dos
acontecimentos.
Nem criticaremos Guido, pois ele foi só mais uma vítima das circuns-
tâncias e desde criança foi estimulado e direcionado para exercer o poder
ou a conquistá-lo a qualquer preço.
Ele foi “educado” para isso e soube fazê-lo muito bem num tempo
tão turbulento quanto o que pontificou na cúria romana. Só fez o que achou
que deveria fazer para chegar onde queria, e quando lá chegou, fez o que
precisou para se manter no topo da hierarquia, pois quem vinha de baixo,
tinha-o como alvo a ser atingido e derrubado.
Este é um dos problemas das hierarquias: elas são amplas e abran-
gentes nas suas bases, mas vão se afunilando e tomando-se seletivas em
seus níveis mais elevados. Falta-lhes espaço nesses níveis para acomodar a
todos os que a elas se integram.
Quantas vezes os que estão nos níveis mais baixos não estimulam
certas ações que refletirão nos níveis superiores e solaparão a autoridade
de seus ocupantes?
A todo instante isto está acontecendo em todos os lugares e em todas
as hierarquias estabelecidas, sejam elas civis, judiciárias, religiosas, parla-
mentares ou militares.
Em todas, só com a mobilidade no topo, os níveis mais baixos conse-
guem galgar os degraus que conduzem aos cargos mais elevados.
Quantos partidos políticos não são fundados só para acomodarem os
“cardeais” da política?
Quantas revoltas militares não aconteceram antes do estabelecimen-
to de uma idade e tempo limite para os mais altos postos de comando?
Tudo isto são coisas humanas, pois um dos componentes de nossa
natureza nos impele, inconscientemente, no sentido de nos “elevarmos”.
Esta elevação, quando se processa no nosso lado material, lança-nos
num tormento, pois nem sempre, ou quase nunca, estar no topo de uma
hierarquia significa ser o “melhor”. Às vezes o mais hábil articulador, o
mais astuto estrategista, ou até o mais dissimulado alça-se ao topo sobre-
pujando seus competidores.
Mas isto tudo faz parte do processo seletivo que foi imposto aos seres
em geral, e não só aos da espécie humana. A própria fecundação já nos diz
ao que viemos: só um espermatozoide fecundará o óvulo que gerará uma
nova vida.
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E, na maioria das vezes, não é o que traz uma melhor carga genética
que chega primeiro ou consegue perfurar a membrana protetora do óvulo a
ser fecundado.
Quantos seres com defeitos, nem sempre visíveis, são gerados jus-
tamente por causa desse componente da natureza humana que em nós já se
manifesta na fecundação?
Há uma competição inata no ser humano que o impele a disputar
tudo, em todos os momentos de sua vida.
Durante a infância disputam a atenção dos pais.
Na escola disputam a atenção dos mestres.
Em sua juventude disputam a atenção do sexo oposto.
Na vida profissional disputam os postos mais vantajosos.
E por aí vai acontecendo a saga humana, que também é a nossa, pois
humanos todos nós somos.
A elevação não acontece por acaso, e só quando nos descobrimos no
limbo é que percebemos e que elevação a não é sinônimo de sobrepujação
dos instintos.
Não será sobrepujando a um nosso semelhante que nos elevaremos.
Pelo contrário: sempre que alguém muito afoito vem subindo, o melhor a
fazer é afastar-se da passagem e deixá-lo seguir célere rumo ao topo tão
desejado, pois, se estiver apto a ocupá-lo, lá se assentará. Mas se este não for
o caso, de bem mais alto será a queda do afoito, que demorará mais tempo
caindo, e assim terá tempo suficiente para refletir sobre as causas de sua
tão longa queda.
Não estamos sendo cruéis ao dizer isto. Apenas estamos sendo realistas,
já que um dos componentes da natureza humana sempre o impulsiona a tomar
medidas ousadas, mas um outro o alerta continuamente para que se acautele,
pois se há um ditado que diz que “tudo o que sobe desce”, no entanto há um
outro que nos diz que “nem tudo o que desce volta a subir”.
E quem sobe à custa do esforço ou da vida alheia, com certeza cairá.
Foi o que aconteceu com Guido, que após a síncope cardíaca, sentiu-
se lançado num escuro abismo que parecia não ter mais fim.
Todas as angústias e medos de toda uma vida não foram nada, se
comparados ao que ele sentiu ao “cair” naquele abismo.
Sentia-se no vazio em todos os sentidos e debatia-se, tentando agar-
rar-se a alguma coisa, enquanto do fundo de sua alma imortal um grito de
pavor ecoava.
Por fim, o impacto com um solo fofo e frio interrompeu aquela an-
gustiante e interminável queda.
O cheiro fétido impregnou-lhe primeiro as narinas, depois todo o cor-
po, coberto por algo semelhante a uma lama limosa e pegajosa. Passou as
mãos pelo rosto tentando limpar-se, mas elas também estavam cobertas por
aquela gosma fétida.
Um desespero abateu em sua alma de tal maneira, que um grito de
pavor ecoou naquela escuridão sufocante.
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E tal grito não o ajudou em nada, pois atraiu a atenção de criaturas


que perambulavam por ali e que logo o localizaram, disputando-o numa
luta voraz em que o mais forte assenhoreava-se dos espíritos humanos que
caíam naquele nível vibratório negativo; melhor denominando, podemos
dizer isto: naquele domínio das trevas!
Guido, em desespero, tentou fugir dali, mas o lodo era tão denso que
estava atolado até à altura das coxas.
Encontrava-se num pântano habitado por assustadoras criaturas, que
eram verdadeiras aberrações da criação, imaginou ele, ali imobilizado pelo
medo e por aquele lodo.
Impotente e incapaz até de pensar, só lhe restou assistir à feroz dispu-
ta que aquelas criaturas travavam entre si antes de voltarem-se contra ele,
o prêmio disputado.
Quando só uma daquelas criaturas ali ficou, pois as outras, ou ha-
viam fugido ou afundado no lodo, voltou-se para ele e, recorrendo a algum
poder, puxou-o de onde estava para bem perto de si.
Aquela carranca horrível abriu um riso de aprovação com a presa
conquistada. Das mãos em garras saíam negras unhas, muito afiadas,
que a criatura usou para rasgar a vestimenta religiosa que o cobria, e
deixar exposto seu corpo enlameado.
A seguir, a criatura agarrou-o e, por ter quase o dobro de sua altura e
tamanho, elevou-o até que seu estômago ficasse próximo daquela bocarra
medonha, que se afunilou e formou uma ventosa, que a criatura aplicou
sobre seu umbigo e chupou com força, aspirando as energias vitais do infe-
liz Guido.
Mas o que aconteceu realmente foi que a criatura, que se alimentava
de energias vitais de espíritos humanos, absorvera as energias dele através de
seu plexo umbilical.
Quando aquela criatura o soltou, estava exaurido energeticamente e
com o abdômen a doer muito, fato este que o fazia gritar desesperado por
Deus, por Jesus Cristo e por todos os santos de que se lembrava.
A criatura largou-o caído no lodo, mas outras se aproximaram e pro-
cederam de modo semelhante, tentando absorver algum resto de suas ener-
gias humanas que a primeira houvesse deixado.
Aquele tormento parecia não ter mais fim, pois, de tempo em tempo,
alguma delas o agarrava e, aplicando uma ventosa em seu umbigo, parecia
arrancar-lhe os intestinos, de tanta dor que sentia.
Guido, já reduzido a um esqueleto, de tão magro que havia ficado, só
foi abandonado por aquelas criaturas quando outro espírito caiu ali por perto
e atraiu a atenção delas, que começaram a disputar a nova presa.
Explicação: “estas criaturas são seres não humanos que vagam pe-
las esferas negativas onde caem espíritos devedores da Lei Maior. Assim
como as pessoas matam ovelhas, bois, aves, etc., para se alimentarem,
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esses seres não matam os espíritos humanos que caem nelas, mas se ali-
mentam de suas energias vitais, isto sim, é verdade”.

Guido, incapaz de mover-se, ficou caído naquele lodo denso, com par-
te de seu esqueleto submerso. E, ou porque já não servia mais àquelas
criaturas ou porque dele haviam se esquecido, muito tempo ali permane-
ceu, gemendo de dor... mas baixinho, para não atrair a atenção delas.
Depois de muito tempo, e sentindo muita dor, conseguiu pôr-se de pé
e caminhar com passos lentos, fugindo dali.
De vez em quando sentia que pisava em alguém reduzido a esqueleto,
submerso naquele pântano. E não foram poucas as vezes que isto aconteceu
até conseguir chegar a um solo ainda úmido, mas já não lodoso e movediço.
Viu algo semelhante a árvores retorcidas, como que calcinadas, pois não
tinham folhas e eram de cor cinza, quase pretas.
Vagou por aquela floresta fantasmagórica por muito tempo, só paran-
do quando se viu cercado por estranhas criaturas, tão ou mais apavorantes
que as anteriores, pois estas possuíam corpos humanos e cabeças de ser-
pentes. E dois olhos rubros, voltados todos para ele, a nova presa!
Paralisado pelo medo, Guido caiu no solo frio e cobriu os olhos com
as mãos, evitando olhar para aqueles horrores. Mas foi subjugado por mãos
lisas, escamosas, e sem dedos, que o arrastaram até um lugar onde havia
muitas outras criaturas iguais.
Um horror inimaginável apossou-se dele quando viu aquelas criatu-
ras assustadoras observarem-no detidamente.
Mas o que uma delas fez o apavorou tanto, que o levou às raias da
loucura: tocou com suas mãos asquerosas em seu escroto e apertou-o; ele
viu seu sexo saltar como uma mola, e um ardor insuportável, apossando-se
dele, intumesceu-o tanto que adquiriu uma dimensão enorme. Mais um
aperto e um líquido rubro começou a correr em abundância, “ensanguen-
tando-o” todo. A seguir, uma das criaturas com corpo de fêmea possuiu-o
com uma fúria indescritível até que ficou rubra, totalmente rubra e desa-
bou sobre ele, para logo ser substituída por outra, e outra e mais outra. E
aquele horror só cessou quando seu sexo exauriu-se, e começou a verter
um líquido escuro como carvão.
Guido havia gritado de medo, de dor e de pavor até a exaustão. E ali
ficou abandonado à própria sorte, sem poder se mexer.
O tempo que ali ficou foi longo o bastante para presenciar outros
espíritos serem torturados como ele havia sido. Viu criaturas masculinas
possuírem espíritos femininos e vice-versa. Mas só os possuíam até que o
líquido rubro era esgotado e um outro escuro começava a correr.
— Deus está me castigando — pensou ele, a certa altura. — Cometi
todos os pecados e crimes e estou sendo castigado pelos demônios do in-
ferno. E isto o que está acontecendo comigo!

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